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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA
COMPARADA
WALT WHITMAN
E A FORMAÇÃO DA POESIA NORTE-AMERICANA (1855-1867)
Bruno Gambarotto
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
do Departamento de Teoria Literária e Literatura
Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, sob a
orientação do Prof. Dr. JORGE MATTOS BRITO DE
ALMEIDA, com vistas à obtenção do título de Mestre
em Teoria Literária e Literatura Comparada.
Orientador: Prof. Dr. Jorge Mattos Brito de Almeida
São Paulo
Fevereiro de 2006
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2
RESUMO
O objetivo desta dissertação é analisar alguns dos momentos decisivos do processo de formação da poesia norte-americana, marcados
pelas quatro primeiras edições (1855, 1856, 1861,1867) de Leaves of Grass, de Walt Whitman. A escolha desses momentos sublinha o
caráter engajado do projeto poético de Whitman, que não visava à mera aclimatação da poesia européia no Novo Mundo, mas sim à
constituição formal de uma poesia norte-americana adequada à realidade social de seu país. Nesse sentido, a leitura das quatro primeiras
edições de Leaves of Grass pressupõe dois movimentos complementares: o entendimento dessa poesia enquanto resposta aos inúmeros
conflitos que perpassam as décadas de 1850 e 1860 norte-americanas, quando a modernização, encabeçada pela industrialização e pelo
trabalho livre, entra em choque definitivo com estruturas sociais de origem colonial, baseadas tanto na exploração do trabalho escravo
como na própria constituição descentralizada da reblica; e a configuração literária desses problemas, em que veremos elementos
constitutivos da poesia romântica européia em relação dialética com formas locais de expressão, muitas vezes estranhas ao quadro
literário do Velho Mundo, mas reforçadas pela pretensão de se fazer valer (não sem contradições) uma literatura de caráter nacional. Para
tanto, nossa análise toma não apenas a longa tradição de estudos whitmanianos, que atualmente têm se dedicado à revisão histórica de
Leaves of Grass centrada quase que exclusivamente na experiência social norte-americana, mas a própria tradição crítica brasileira, na
qual se consolidou um importante corpo de conceitos e debates acerca da posição periférica das literaturas do Novo Mundo em relação à
Europa, o que nos permite tanto colocar a literatura de Whitman em um quadro mais abrangente de formação literária como observar ali
algumas questões comuns às experiências brasileira e norte-americana para a consolidação de seu sistema literário, tais como o caráter
empenhado da elite literária; a busca de novas formas; a representação e afirmação, na lírica, do indivíduo e da natureza do país; as
questões éticas e econômicas ligadas ao problema da escravidão; e a relação ambígua e contraditória com os movimentos literários
europeus.
Palavras-Chave: 1) Walt Whitman (1819-1892); 2) Literatura norte-americana; 3) Formação da literatura norte-americana; 4) Literatura e
Sociedade; 5) Teoria Literária.
ABSTRACT
The purpose of this dissertation is to analyze some of the decisive moments in the making of North American poetry, determined by the
development, from 1855 to 1867, of the four initial editions of Walt Whitman's Leaves of Grass. The choice of these remarkable
moments serves to underline the engaged feature of Whitman’s poetical accomplishment, which implied not the mere transposition of
European literary thought into the New World, but mainly the formal constitution of a national poetry fit for the social environment of the
United States. In this sense, the analysis of these four Leaves of Grass’ editions (1855, 1856, 1861, 1867) presupposes two
complementary ways: firstly the acknowledgment of Whitman’s poetry as a response to the social tensions in North American mid-
nineteenth century, when modernity, led by free labor and industrialization, collides with colonial and pre-modern social structures, based
upon slavery and the very descentralized commercial Republic constitution; secondly the literary configuration of these tensions, in
which we observe elements of the literary Romanticism dialetically linked to local forms of expression, some of them alien to the literary
achievements of the Old World, but reinforced by the founding project of a national literature. To attend these questions, this dissertation
recovers the long tradition of Walt Whitman studies – dedicated in the present time to the historical revisioning of the poet’s works
centered almost exclusively in the North American social experience – by the light of the Brazilian critical tradition, in which very
important concepts and debates over the periferical position of New World literatures were consolidated. This theoretical perpective
allows us not only to place Leaves of Grass in a wider perspective of New World literatures but also to build a indirect comparative view
that rests upon some important questions to the North American and Brazilian literary traditions, as the engaged ethos of their literary
elites; the search for new literary forms; the lyrical affirmative representation of national individuals; the economical and ethical
responses to slavery; and the ambiguous and contradictory relation with European literary movements.
Keywords: 1) Walt Whitman (1819-1892); 2) North American Literature; 3) Making of North American Literature; 4) Literature &
Society; 5) Theory of Literature.
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3
Aos meus pais, Carlos e Conceição, ofereço estas primeiras folhas.
4
AGRADECIMENTOS
A Jorge de Almeida, que deu fundamento a nossa pesquisa e ajudou a colocar esta
dissertação em pé.
A Viviana Bosi, que antes de todos, por sua atenção e empenho, tornou possível meu
ingresso na pós-graduação. Lembrando sua ótima participação em nossa qualificação, fica
também a menção a Fábio de Souza Andrade, que se dispôs a completar a banca e nos
auxiliou com suas colocações.
A Maria Clara Bonetti Paro, pioneira nos estudos whitmanianos no Brasil e a quem
muito devo pelo interesse, pelo diálogo e pela prestatividade com que nos recebeu e cedeu
sua biblioteca.
A Adriano Aprigliano, melhor amizade e presença em tempos incertos.
A Leandro Pasini, companheiro de mestrado, parceiro do conceito e amigo novo.
A Amadeu Amadei Barbiellini, amigo e livreiro de fé.
A Camila Rodrigues, na luta.
A Alexandra Macedo Moraes (that thing called love).
Por fim, às pessoas que por algum gesto, preocupação, paciência ou interesse participaram
deste processo, em especial a: Paola e Beatrice Gambarotto, irmãs pacientes, Professora
Sandra Vasconcelos, pela lembrança em Portugal, Ricardo Mora Rothmann, por seu
achado, Carlos Alberto Pasinato, Ewerton Talpo, Luciana Martin Kanawati e Raquel
Vendruscolo, amigos que esses dois últimos anos afastaram e aos quais agradeço por nada,
só com apreço e saudade.
5
Esta dissertação recebeu o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (FAPESP) de março de 2004 a fevereiro de 2006.
6
ÍNDICE
Apresentação - Walt Whitman e a formação da literatura norte-americana 7
Primeiro Capítulo – O Velho Mundo segundo Walt Whitman: problemas da formação do
sistema literário norte-americano 18
Segundo Capítulo -
E PLURIBUS UNUM
: os paradoxos da forma em 1855 56
Terceiro Capítulo – As Formas da Democracia: o Trabalho, a Raça e a formação do Corpo
de Estado 125
Quarto Capítulo – O Sermão do Oceano: Lírica e Dissolução do Estado 186
Conclusão – A Formação como Elegia 260
Bibliografia 269
7
APRESENTAÇÃO
WALT WHITMAN: A FORMAÇÃO DA POESIA NORTE-AMERICANA (1855-1867)
“‘
Somos os deserdados da arte!’”, ele gritou ‘Nós estamos condenados à
superficialidade! Estamos excluídos do círculo mágico. O solo da percepção americana é
um pequeno sedimento pobre e esril’”. Com estas palavras, o norte-americano Teobaldo,
personagem de “The Madonna of the Future”, de Henry James, sintetiza todo o tradicional
rancor dos artistas formados sobre o sedimento “pobre e estéril” (leia-se: periférico) do
Novo Mundo, para os quais o “círculo” europeu constitui uma coerência e uma necessidade
inatingíveis – ou simplesmente “mágica”. Considerando que essa mistificação alimenta
apenas cegueira em relação aos modos como a arte se articula na sociedade moderna,
abraçando suas contradições e condensando suas tensões em formas capazes de denunciar e
superar (ou acatar) esterilidades, temos de tomar o exemplo de Teobaldo com os olhos
voltados para seu duplo deslize. Pois, negando a contingência das formas da arte em
Florença, como o artista do Novo Mundo poderia concebê-las em um solo diverso, onde
todas as tentativas de acomodação entusiasmada do conhecimento em suas “formas
exemplares” – isto é, próprias a uma Europa que impunha sua civilização e despontava
como centro econômico e cultural do mundo – resultavam em desarranjo, paródia ou
frustração?
Periferia não é apenas um termo geográfico destinado a designar uma posição em
relação ao centro, tampouco uma metáfora reservada os despossuídos da divisão
internacional do trabalho. Mais uma vez estendido, o conceito também se refere, com
bastante propriedade, a um triste desconhecimento de si, de especificidades sociais que não
poderiam ser tomadas sob régua científica e ideológica de segunda mão. Nessa acepção,
propriamente cultural, supera-se a “condição periférica” mediante o pensamento
empenhado e a reflexão aguda sobre os problemas próprios à sociedade, elevada desse
modo a centro de si própria, em que pesem as providências tomadas para que os saberes
ultramarinos não se tornem um fim, mas um instrumento de todo necessário à formação de
uma lógica e de uma expressão próprias, capazes de fazer ver aquela realidade local em sua
riqueza e contradição, bem como em sua relação com o mundo. Assim fomos capazes de
8
atentar a problemas locais e formar, a partir deles, uma ciência crítica e local, apta a
enfrentar a posição perversa e desprivilegiada em que o país parece se perpetuar. Não há
dúvida de que o diálogo entre esferas desencontradas favoreceria um desenvolvimento
homogêneo, que fizesse a autonomia cultural condizer com conquistas políticas e
econômicas internas e externas. Entretanto, é preciso admitir que não há paridade
necessária entre as instâncias – o que também nos permite dizer que sociedades bem-
sucedidas em sua formação política e econômica perante o avanço do capitalismo no XIX
tenham de seguir o curso da crítica com vistas a uma formação própria, com resultados tão
“idiossincráticos” quanto os de outras sociedades periféricas.
Voltamos, então, a Teobaldo, artista de uma sociedade que, muito embora
experimentasse, à época (1873), as benesses e os dissabores de uma posição autônoma
frente à mundialização da economia européia, parecia engatinhar em seu
autoreconhecimento perante o mundo. Os Estados Unidos da América têm uma história
bastante particular no contexto da colonização e de seu desenvolvimento como país
independente e periférico em relação à Europa ao longo do XIX. Para começar,
experimentou uma colonização heterogênea e de pouco controle metropolitano: aberta pelas
plantagens da Virgínia no início do XVII, a colonização da América Britânica desenvolveu-
se a partir de contingentes que ocuparam, de modo desigual, toda a costa leste do
continente, tanto obedecendo ao quinhão do pacto colonial, o que se deu ao Sul daquele
primeiro assentamento, formando com ele uma sociedade baseada em relações escravistas
de trabalho e unidades de exploração agrária, que supriam necessidades do comércio
metropolitano, como constituindo desde o início uma sociedade autônoma e fortemente
centrada em suas necessidades, tal qual a que ocupa as terras ao Norte da Virgínia, onde se
reuniram grupos de calvinistas perseguidos ou desmobilizados logo após a Revolução
Puritana, que fundou na Inglaterra uma República de vida breve. Essa divisão, que legará
diferenças sociais quase intransponíveis ao país independente, perde sua validade no
período revolucionário, que abrange as décadas de 1760 a 1780, quando a crítica às
instituições e à tirania do regime monárquico britânico une as 13 colônias da América do
Norte em nome da fundação de um corpo político adequado às estruturas representativas
locais. A Revolução Americana é uma revolução fundamentalmente política: tem início
pela reivindicação de representantes coloniais no parlamento britânico em resposta à
9
taxação do comércio interno e externo das colônias; e termina com a deslegitimação do
poder metropolitano e a constituição de um corpo representativo de Comuns, que compõem
a federação das antigas colônias a partir da necessidade de proteção e fomento daquele
capitalismo comercial. Nesse sentido, os Estados Unidos da América permanecem
relativamente à margem da chamada Revolução Dual (a econômica, Inglesa, e a política,
Francesa), muito embora tenham participação em ambas, como coadjuvantes, devido a uma
relação colonial bastante afrouxada (Inglesa), e exemplo de luta bem-sucedida contra a
tirania monárquica (Francesa).
Apesar do relativo isolamento em relação a importantes transformações históricas,
que irão, em um futuro próximo, abalar o resto do continente americano, o país recém-
fundado buscou de início a formação de instituições que o legitimassem perante o Velho
Mundo. Pode-se verificar desde os primeiros anos da República uma forte preocupação
com o cultivo das artes e das ciências, sempre referidas aos grandes feitos patrióticos – a
Revolução e, sobretudo, a Constituição do corpo político, que colocava um divisor de águas
entre o “mundo monárquico e tirânico”, a Europa, e o “mundo republicano e
representativo”, a América. Assim, a literatura e as artes do Velho Mundo passarão pelo
crivo político de homens que buscam formar saberes aptos à integração do país na ordem
da ciência ocidental, ainda baseada em idéias iluministas. No prefácio a uma das principais
obras do período federalista, o poema épico de diretriz clássica The Columbiad (1807), seu
autor, Joel Barlow, diz:
Meu objeto é a um só tempo de natureza moral e política. Desejo encorajar e
reforçar, nas gerações vindouras, um senso de importância das instituições
republicanas; que correspondem à fundação maior da felicidade pública e
privada, ao alimento necessário do futuro e ao melhoramento permanente da
condição da natureza humana.
Este é o momento na América de dar tal diretriz à poesia, à pintura e às outras
belas artes, que as verdadeiras e úteis idéias de glória podem ser implantadas nas
mentes dos homens aqui, para tomar o lugar de outras, falsas e destrutivas, que
têm degradado a espécie em outros países (...).
1
1
Traduzido de PEARCE, Roy Harvey.
The Continuity of American Poetry
, 60.
10
A referência ao texto da Constituição não será índice do nacionalismo literário que
conhecemos ao longo do XIX. Lembrando a motivação patriótica do founding father John
Adams, que desejava um “poema heróico, igual àqueles que são os mais estimados em
qualquer país”,
2
Barlow indica menos o desejo de uma expressão nacional do que o de
estabelecer no Novo Mundo instituições civilizadas (translatio studii), problema que
tornaria seu poema menos afeito a questões estéticas do que às disputas da scientia entre
autoridades do Novo e do Velho Mundo, as mesmas que fizeram, por exemplo, o governo
de Thomas Jefferson enviar a Paris as ossadas completas de um Mamute (a taxonomia
nomeou o exemplar segundo o espírito emulador de seus hospedeiros: Mammuthus
jeffersonii) encontrado às margens do Rio Ohio (Estado da Virgínia) como prova da
grandeza natural americana e, conseqüentemente, do desenvolvimento da ciência e da
civilidade no Novo Mundo, questionada pelos primeiros naturalistas e cientistas europeus.
3
Permanecerá, contudo, a natureza “moral e política” desse projeto artístico e
literário, que só avançará para além das linhas e dos tons provincianos a partir das décadas
de 1830 e 1840, quando a Nova Inglaterra supera o conservadorismo de sua tradição
religiosa e passa a recolher os frutos de uma secularização da cultura que incide fortemente
sobre o pensamento literário da região. É neste ponto que encontramos Ralph Waldo
Emerson:
Our age is retrospective. It builds the sepulchres of the fathers. It writes
biographies, histories, and criticism. The foregoing generations beheld God and
nature face to face; we, through their eyes. Why should not we also enjoy an
original relation to the universe? Why should not we have a poetry and
philosophy of insight and not of tradition, and a religion by revelation to us, and
not the history of theirs? Embosomed for a season in nature, whose floods of life
2
“Espero viver para ver nossa jovem América em Posse de um Poema Heróico, igual àqueles que são os mais
estimados em qualquer País.” PEARCE, Roy Harvey .
The Continuity Of American Poetry
, 60.
3
A importância do Mamute para a legitimação da ciência e dos cientistas americanos na época pode ser
ilustrada pela presença do animal no catálogo de espécies animais americanas, composto por Jefferson em
suas Notas Sobre o Estado da Virgínia. Talvez para compensar a notícia de um único exemplar, Jefferson
transcreve, a título de evidência, a fala de um chefe Delaware que atesta, diante do governador da Virgínia, a
presença de semelhante animal – “
the Big Buffalo
” – ao norte do Ohio. Cf. JEFFERSON, Thomas.
Notes on
The State of Virginia
, 37-44.
11
stream around and through us, and invite us by the powers they supply, to action
proportioned to nature, why should we grope among the dry bones of the past, or
put the living generation into masquerade out of its faded wardrobe? The sun
shines to-day also. There is more wool and flax in the fields. There are new lands,
new men, new thoughts. Let us demand our own works and laws and worship.
4
Fortemente influenciado pela estética européia, abraçada após o abandono da
congregação Unitarista e o início de uma carreira de palestrante e ensaista que avançará ao
longo de quase todo o século XIX, Emerson escreve em seu livro de estréia (Nature, de
1836) as diretrizes de uma nova experiência literária, em que aquelas preocupações “morais
e políticas” serão incorporadas à reivindicação de uma voz local, combinando o repúdio
romântico a tradições, que impõem ao homem a retrospecção e visão filtrada por “segundos
olhos”, com a necessidade (de mesma procedência) de recuperação da Natureza em relação
a um nós – “novos homens, novos pensamentos” –, que estabelece a comunidade de “novas
terras” como parâmetro para a “formação de novos trabalhos e leis e culto”, resultados de
nosso contato original com o universo”. A partir de Emerson, o “sedimento estéril” que o
artista lamentava em Florença ganha vigor e problemas próprios, não mais ligados a uma
experiência no mundo, mas do mundo, entendido como universal ao qual a América se
filia.
É nesse sentido que Emerson será crucial para a formação de um sistema literário
particularíssimo, que liga uma história e uma cultura de independência e isolamento ao
entendimento e à recepção de modos civilizados, que vêm na esteira da tensa inserção do
país no mundo capitalista, uma vez que os Estados Unidos responderão, a um só tempo, por
4
“Nossa idade é retrospectiva. Ela constrói o sepúlcro de nossos pais. Ela escreve biografias, histórias e
crítica. As gerações passadas encontraram Deus e a natureza cara a cara; nós, através de seus olhos. Por que
nós não deveríamos também desfrutar de uma relação original com o universo? Por que nós não deveríamos
ter uma poesia e filosofia de desvelamento e não de tradição, e uma religião revelada a nós, e não a história
delas? Nascidos para uma estação em natureza, cujas torrentes de vida transbordam ao nosso redor e através
de nós, e nos convidam pelos poderes que conferem, a agir conditos com a natureza, por que nós deveríamos
andar às apalpadelas em meio aos ossos secos do passado, ou colocar a geração viva em fantasias saídas de
seu guarda-roupa apagado? O sol brilha hoje também. Há mais lã e linho nos campos. Há novas terras, novos
homens, novos pensamentos. Vamos exigir nos próprios trabalhos e leis e culto.” EMERSON, Ralph Waldo.
Nature
(1836). Em
The Writings of Ralph Waldo Emerson
, 3.
12
demandas internas, próprias de uma economia que se industrializa, e externas,
fundamentadas no suprimento estrangeiro de matérias-primas e no fortalecimento de uma
economia de exploração assentada sobre o trabalho escravo. Falando ao norte-americano
(nós), Emerson terá de conviver, “moral e politicamente”, com essa situação contraditória,
que se agrava à medida que a própria sociedade de sua Nova Inglaterra atravessa as
mudanças sociais inevitáveis impostas pelas estruturas de acúmulo e exploração do trabalho
livre. Sob esse aspecto, as tendências conservadoras do filósofo serão supridas,
paradoxalmente, pela legião de radicais e experimentalistas de atividade variada que,
abrindo veios e estabelecendo alternativas por meio de seu Transcendentalismo, serão
responsáveis pela formação de um meio cultural riquíssimo, que coloca suas realizações no
divisor de águas da história política e econômica do país, em sua transição de uma
federação comercial descentralizada para uma potência industrial unificada.
Aqui, encontramos o mais ilustre desses radicais e experimentalistas, que levará o
pensamento literário do antecessor a limites desconhecidos, sendo o maior responsável pela
formação da literatura norte-americana moderna: Walt Whitman. Como Whitman configura
sua América de transição, tensa e contraditória, em poesia e, em sentido inverso, como as
formas da poesia ganham corpo segundo as necessidade de expressão dessa sociedade, são
os problemas aos quais nos dedicaremos. Atento a turbulências e mudanças da vida na
metrópole que saúda o capital, Whitman recupera as necessidades inerentes à expressão do
local – novas formas, temas e paragens – em um momento em que velhos sentimentos
patrióticos passam à palavra de indivíduos formados em uma realidade bastante distinta
daquela que legitimava o corpo representativo da República. Nesse sentido, a leitura de
Whitman nos mostra o limite tênue entre o esvaziamento de tradições, decorrente das
violentas transformações impostas pela industrialização, e seu importante papel na
acomodação e na formação de um capitalismo particular, cuja ideologia não encontrará no
romance, forma por excelência da burguesia européia, terreno fértil para o trânsito de seus
caracteres, mas em uma poesia empenhada no retrato de uma nação em conflito consigo
própria, caminhando em direções contrárias como uma corda prestes a se romper.
Os anos que antecedem a Guerra de Secessão (1861-1865), conhecidos pela
expressão antebellum, serão cruciais na formação da poesia de Leaves of Grass, obra que,
muito embora tenha sido escrita, revista e ampliada ao longo de quase 50 anos e sete
13
edições, encontrou entre 1855 (ano de sua primeira edição) e 1860 (quando sua terceira
edição foi publicada, já às vésperas do conflito) seus desenvolvimentos decisivos. Da
“cosmogonia democrática” de 1855, em que “Walt Whitman, um americano”, homem cioso
de representação e autogoverno, se apresenta ao público para interpretar e transformar um
país fragmentado, no qual a liberdade é estigmatizada pela escravidão, em uma ordem
democrática em face do surgimento de um poder absoluto e ilimitado, à dissolução dessa
mesma ordem e o recolhimento a uma lírica que pretende fundar uma “nova cidade de amor
e camaradagem” à sombra da guerra e da morte, atravessando o retrato das contradições de
uma classe trabalhadora em sua experiência da desigualdade, Whitman cria um panorama
dos tempos, possível tanto pelo radicalismo de suas inovações literárias – que não só
perfazem a crítica das formas da poesia tradicional como agregam e remodelam técnicas,
conhecimentos e registros de variada procedência (fotografia, teatro, sermão, teologia,
jornalismo, ciências) –, quanto pela consciência com que se apropria, no momento
oportuno, de formas consagradas que ganham em expressividade à medida que se
acomodam às necessidades impostas pela situação.
Nesse período, que se fecha com a publicação da quarta edição do volume (1867),
da qual constam os poemas dedicados à Guerra Civil, encerraremos os quatro capítulos
desta dissertação, divididos segundo os temas centrais de cada edição.
No primeiro capítulo (“O velho mundo segundo Walt Whitman: problemas de
formação do sistema literário norte-americano”), nosso objetivo é o de analisar, a partir do
“Prefácio” à primeira edição de Leaves of Grass (1855) e das primeiras resenhas do livro,
que dão os termos de sua recepção inicial, pontos concernentes à situação e formação do
sistema literário norte-americano. Segundo Candido, a distinção entre literatura e
manifestações literárias se dá pela formação de “um sistema de obras ligadas por
denominadores comuns”,
5
assentado na tríade produtor-obra-público, donde o
entendimento da literatura como “um tipo de comunicação inter-humana”, “que aparece sob
este ponto de vista como sistema simbólico, pelo meio do qual as veleidades profundas do
indivíduo se transformam em elementos de contacto entre os homens, e de interpretação das
5
CANDIDO, Antonio. “Literatura como Sistema”. Em
Formação da Literatura Brasileira (momentos
decisivos)
, 23.
14
diferentes esferas da realidade”.
6
O que nos interessa na aproximação do conceito de
“sistema literário” e a análise da primeira recepção de Leaves of Grass (1855) está nas
tensões sociais embutidas na leitura de todos os resenhistas, que julgarão a poesia de
Whitman segundo preceitos fortemente arraigados em uma tradição representativa que
passa a se justificar segundo um sentimento de classe, contrário ao que, por sua vez, se
expressa pela figura “turbulenta” e “grosseira” do “bardo americano”, aquele que se deixa
“medir por seu povo”. Na esteira dessa explicação, conseguiremos abrir os esclarecimentos
quanto ao fato da poesia estar no centro desse sistema, à medida que lhe cabe realizar a
mediação e a configuração de conflitos que, em outras sociedades periféricas, couberam
somente ao romance.
No segundo (“E Pluribus Unum: paradoxos da forma em 1855”), cuidamos da
análise do primeiro dos doze poemas anunciados pelo prefácio de 1855, o futuro “Song of
Myself”, em que o périplo do “bardo americano(cuja figura pública é descrita ao longo
das páginas de abertura do volume) será avaliado a partir de seu desejo de demonstração da
unidade do mundo, bem como de experiência de uma totalidade mística baseada na
identidade entre a Natureza, orgânica, universal e unitária, e a Democracia, representada
pela América. Escolhemos esse tema não só por sua abrangência, como pelas
incongruências que acaba formando entre a necessidade de configuração de uma “forma
democrática”, dialógica, que traz em seu bojo exigências formais de cunho nacional (a
negação de modelos literários estrangeiros e a aproximação das estruturas poéticas a modos
de expressão locais), e a falência desse mesmo diálogo, subsumido pela “unidade natural”
da América, que, sendo expressão maior de um princípio de representação absoluta,
dissolve os limites entre os interlocutores. No momento em que a Natureza (idêntica à
América e ao sujeito do poema) centraliza a representação, ela nos fornece uma imagem de
nação em conflito com a constituição do próprio país, que, segundo Hannah Arendt, teria se
formado a partir da crítica à estrutura absoluta do poder monárquico, partilhado
proporcionalmente entre os Estados que formam a União, em que esse absoluto se
reapresenta tutorado pelo consenso entre as partes. Nessa tensão entre União mistificada,
absoluta e centralizadora, e Federação, fragmentária e consensual, encontraremos um dos
6
Id
.,
ibid.
15
principais temas políticos do antebellum norte-americano, intimamente ligado às
transformações sociais analisadas no primeiro capítulo.
O terceiro capítulo (“As Formas da Democracia: o trabalho, a raça e a formação do
corpo de Estado”) mostra o estreitamento dessas estruturas centralizadoras, que a partir de
1856 (segunda edição de Leaves of Grass) se tornam tributárias da relação entre formas
poéticas e trabalho livre. Responsável pela celebração de um continente de trabalhadores e
de um divine average pautada pela liberdade individual, as “formas” (shapes, como se lê
em “Song of Broad-Axe”) excluem da formação americana a escravidão sem a necessidade
da superação ética e política que, em 1855, havia dado o tom das relações entre o “bardo
americano” e a figura do escravo em seus importantes aparecimentos ao longo dos poemas
(retomaremos essa edição por poemas que, em 1892, viriam a formar “I Sing the Body
Eletric” e “The Sleepers”) daquele mesmo ano. Nesse novo rumo formal, que inclui uma
tentativa didática de instaurar a reforma social pela poesia (envolvendo temas como a
sexualidade, a igualdade de gêneros, a crítica à sociedade materialista e a educação
política), veremos o prenúncio de uma resposta ambígua ao problema da escravidão e à
integração do negro na nação americana; ademais, no acirramento da proposta nacional
unificadora de Whitman, que passa à doutrina de seus iguais em oposição a um ambiente
urbano corrompido, veremos um índice claro das diferenças irreconciliáveis entre as partes
que, poucos anos depois, levariam o país à guerra.
O quarto e último capítulo (“O Sermão do Oceano: lírica e dissolução de Estado”)
está dedicado à poesia que se forma a partir de um ideal nacional destruído por iniqüidades,
corrupção e disputas regionais cada vez mais tensas. Num país à beira da dissolução e da
guerra, Whitman escreverá sua poesia mais pungente, não mais ligada às “folhas da grama”
(outrora símbolo da Democracia), nem a uma Natureza centralizadora, que, se antes de tudo
unificava, agora traz consigo a palavra do insondável e da destruição, apenas superada pela
apropriação da lírica amorosa, que em Calamus está voltada à celebração do “amor entre
camaradas” (adhesiveness), perfazendo em chave absolutamente diversa a Democracia
cantada e divulgada nos anos anteriores. Fechando o capítulo, trataremos ainda da poesia de
Drum-Taps, que aparece como síntese de todos os desenvolvimentos formais, ligados à
celebração da União mística e política, à formação da raça democrática e à lírica amorosa,
apresentados ao longo das três primeiras edições.
16
Como nossa proposta fala aos primeiros momentos de Leaves of Grass, tivemos de
buscar a primeira realização de muitos dos poemas analisados. Quanto aos poemas de 1855,
estes estão citados segundo a edição presente em Poetry and Prose (New York: Library of
America, 1996); já os de 1856, 1860 e 1867 serão citados, na falta de edição impressa, a
partir das edições facsimiladas de Ed Folson e Kenneth M. Price, presentes em The Walt
Whitman Archive (www.whitmanarchive.org). De qualquer forma, para a comodidade do
leitor, retomo sempre a última edição dos poemas (1891-1892), com sua indicação de
página e seção na edição de Poetry and Prose, que ao nosso ver é uma edição fidedigna e
acessível. As únicas exceções a esse critério estão na análise de As I Ebb’d with the Ocean
of Life” (também “Bardic Symbols”) e Out of the Cradle Endlesly Rocking” (também A
Word Out of the Sea”), poemas citados na primeira seção do último capítulo (“O Sermão do
Oceano”) a partir da edição de 1891-1892. A razão para a mudança de critério está na
revisão pesada que esses dois poemas sofreram ao longo de suas sucessivas publicações; no
caso de “Out of the Cradle”, a Comprehensive Reader Edition (BLODGETT; BRADLEY:
1966) chega a sugerir um estudo fechado de todas as alterações. Não sendo essa nossa
intenção, e observando que em essência os poemas eram os mesmos, preferimos fechar
nossa análise em sua última edição, usando os cortes sempre que pudessem acrescentar algo
a nossos argumentos.
Sendo este um estudo de formação de uma literatura periférica, não é possível
deixar de lado a longa e profícua tradição que trazemos de interpretação de um quadro
social de linhas descontínuas que, lembrando Paulo Arantes, torna a idéia de formação um
conceito tortuoso, vendido a preço de ouro. À medida que trazemos à análise de uma
literatura estrangeira o que pudemos deter dessa tradição, nosso trabalho se vale,
indiretamente, de uma visada comparativa, que pede menos a autores do que a problemas,
aqueles que fizeram a complexidade e a dificuldade da experiência literária do Novo
Mundo e de suas “providências” para ganhar voz e expressão próprias. De certa forma,
seguimos com essa tradição em mão oposta aos estudos americanos, que dão privilégio a
conceitos autocentrados, como os de fundação (founding), construção (making),
desenvolvimento (development) ou surgimento (rising), com a consciência de sua própria
história, ou ainda a interdisciplinaridade dos Estudos Culturais, que fazendo surgir das
páginas de Leaves of Grass a vida e os problemas do antebellum como que em tempo real,
17
nos forneceram as melhores páginas da crítica whitmaniana de que dispusemos. Não
poderíamos fazer a cultura norte-americana falar a si. Nos termos deste trabalho, é
inevitável – e necessário – que ela dialogue conosco.
18
PRIMEIRO CAPÍTULO
O VELHO MUNDO SEGUNDO WALT WHITMAN:
PROBLEMAS DA FORMAÇÃO DO SISTEMA LITERÁRIO NORTE-AMERICANO
1
AMERICA does not repel the past or what it has
produced under its forms or amid other politics or
the idea of castes or the old religions . . . . accepts
the lesson with calmness . . .
(“Preface 1855”)
Uma das marcas do século XIX é o reconhecimento da nação como modo de
organização da soberania e da cultura das sociedades do Ocidente. Como Hobsbawn nos
ensina por uma breve história do termo,
7
a nação só reivindica homogeneidade popular e
centralização estatal de modo amplo a partir da primeira metade do XIX, quando a agitação
e a revolta popular em diversas regiões européias passa a contar com o “princípio de
nacionalidade” que a Revolução Francesa teria promovido, antes, sob a necessidade de
formação de um estado uno e indiviso, do qual o “povo”, definido agora por sua cidadania,
seria a expressão política. Recuperando o sentido de nação revolucionária, bem como
daquela que aparece nos escritos do liberalismo inglês, o historiador nos mostra um
conceito relativamente aberto a contribuições e reflexões tão variadas quanto as
necessidades advindas das especificidades de sua acomodação em sociedades de história
diversa, embora sua finalidade maior, a partir de fins da primeira metade do mesmo século,
estivesse somente na adequação econômica e política das sociedades européias diante do
avanço do capitalismo no continente. O sucesso e o fracasso do pensamento nacional,
muito conhecidos da historiografia dos movimentos de libertação e unificação territorial,
emprestam suas linhas tortuosas ao trabalho dos cartógrafos e ao nosso duro entendimento
da cultura ocidental.
À luz das idiossincrasias indicadas por Hobsbawn e de um conceito de formação
que, na literatura brasileira, se associa quase que automaticamente à proclamação da
Independência, o caso norte-americano, visto pelo prisma daquele que se dizia “o bardo da
7
HOBSBAWN, Eric. “A Nação como Novidade: da revolução ao liberalismo”. Em Nações e Nacionalismo
desde 1780. Paz e Terra, 2002.
19
nação americana”, é sem dúvida alguma exemplar. Aos incomodados com a “multidão
contraditória” que surge emSong of Myself” para dar formas ao poeta nacional, Whitman
garante um refúgio de lógica e constância em sua imagem e conceito do Velho Mundo, do
qual surgirá seu antagonista, o Novo. Da abertura da primeira edição do volume às últimas
peças em prosa, a Europa (e por metonímia, a velha metrópole, a Inglaterra) será detratada
como o lar de reis despóticos e príncipes pomposos, a mãe da nobreza e de sua literatura
frívola e aristocrática, amiga do ornamento e do preceito, que só serão abandonados diante
de batalhas sangrentas, propícias à poesia épica antiga, ou de maquinações, crimes,
ambições, amor e ciúme que constituem seu melhor drama. Sendo toda a poética de Leaves
of Grass um libelo de negação desse passado em nome do “grande salmo da República”,
proferido por um poeta igualitário (“um dos trabalhadores”) “que vê as sólidas e belas
formas do futuro onde não existem formas sólidas”,
8
não se pode dizer que o Velho Mundo
é problema menor para o poeta:
AMERICA
does not repel the past or what it has produced under its forms or amid
other politics or the idea of castes or the old religions . . . . accepts the lesson
with calmness . . . is not so impatient as has been supposed that the slough still
sticks to opinions and manners and literature while the life which served its
requirements has passed into the new life of the new forms . . . perceives that the
corpse is slowly borne from the eating and sleeping rooms of the house . . .
perceives that it waits a little while in the door . . . that it was fittest for its days . .
. that its action has descended to the stalwart and wellshaped heir who
approaches . . . and that he shall be fittest for his days
.
9
8
Let the age and wars of other nations be chanted and their eras and characters be illustrated and that
finish the verse. Not so the great psalm of the republic. Here the theme is creative and has vista. Here comes
one among the wellbeloved stonecutters and plans with decision and science and sees the solid and beautiful
forms of the future where there are now no solid forms”
. WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 08.
9
“A América não repele o passado ou o que tenha sido produzido sob suas formas ou em meio a outras
políticas ou à idéia de castas ou às antigas religiões . . . . aceita sua lição com calma . . . não é tão impaciente
como se tem suposto já que a pele morta ainda esta presa nas opiniões e maneiras e literatura enquanto a vida
que serve a seus requerimentos passa para uma nova vida de novas formas . . . percebe que o cadáver é
lentamente retirado dos quartos e da sala-de-jantar da casa . . . percebe que ele pára um instante na porta . . .
que ele foi o mais adequado para seus dias . . . que sua ação descende do robusto e bem formado herdeiro que
20
Há, entretanto, algo incômodo nessa passagem, que abre Leaves of Grass em 1855.
Não se trata, como lemos, da afirmação de um particular frente ao mundo ou simplesmente
de uma nação que procura seu lugar entre outras nações, ocupando com legitimidade um
solo comum. Whitman vai mais longe – seu problema é uma verdadeira disputa entre
civilizações. De um lado, a “velha” Europa e o mundo antigo inteiro, caracterizados pela
“pele morta” das castas e das religiões ainda presa à vida que se desenvolve em “novas
formas”; do outro, a América, “novidade” que espera, com paciência e serenidade, o
cadáver ser retirado da “casa”, que, completando a alegoria, representa o mundo. Parece,
sem dúvida, estranho que, num mundo de nações movidas pela busca e pela exaltação de
suas especificidades, um poeta de forte apelo nacional as busque em uma tensão tão
abstrata quanto universal. Aparentemente, Whitman não se preocupava com outros
argumentos. Passados quase 20 anos, marcados por uma violenta guerra civil, a visada
jovial e entusiástica de 1855 dará ainda o tom às reflexões do poeta experimentado, que em
meio às críticas severas endereçadas ao ingresso de seu país no mundo do capital, mantém
aquela rivalidade genérica entre um mundo novo e os modos do príncipe:
Dominion strong is the body's; dominion stronger is the mind's. What has fill'd,
and fills to-day our intellect, our fancy, furnishing the standards therein, is yet
foreign. The great poems, Shakspere included, are poisonous to the idea of the
pride and dignity of the common people, the life-blood of democracy. The models
of our literature, as we get it from other lands, ultramarine, have had their birth
in courts, and bask'd and grown in castle sunshine; all smells of princes' favors.
10
se aproxima . . . e que há de ser o mais adequado para seus dias.” WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”.
Em
Poetry and Prose
, 05.
10
“Domínio forte é o do corpo; domínio mais forte é o da mente. O que tem preenchido e preenche nosso
intelecto, nossa fantasia, promovendo aqui as formas tradicionais, é ainda estrangeiro. Os grandes poemas,
incluindo Shakspere [sic], são nocivos à idéia do orgulho e da dignidade das pessoas comuns, o sangue da
Democracia. Os modelos de nossa literatura, tais como os temos emprestado de outras terras, ultramarinas,
tiveram seu nascimento nas cortes, aquecidos e crescidos na aurora do castelo; tudo cheira à boa vontade do
príncipe.” WHITMAN, Walt. “
Democratic Vistas
”. Em
Poetry and Prose
, 979.
21
Em 1871, o argumento beira a mais absoluta inconsistência. Utilizando um fraseado
tão conhecido quanto gasto, Whitman discorre sobre “mentes dominadas” e “modelos
ultramarinos” nocivos às mentes das pessoas comuns, base da nação. Entretanto, a correção
não clama pelos elementos propriamente nacionais, mas simplesmente por formas literárias
“adequadas” à Democracia, que strictu sensu não se pode dizer pertencente a uma nação
específica. No limite, poderíamos dizer que a literatura norte-americana, segundo Whitman,
sofre de uma espécie de insulamento temporal: bem próximo do século XX e vivendo em
um país já bastante engajado no capitalismo industrial que caracteriza o período, os
argumentos contra a ordem feudal compõem um anacronismo incompatível com a
perspectiva nacionalista, não só própria da época e do modelo econômico norte-americano,
mas absolutamente desconhecida do tempo remoto a que cortes e príncipes nos remetem.
Muito embora o absolutismo de algumas monarquias arrastasse suas pesadas correntes em
direção do século XX, já era possível referir a qualquer um desses velhos impérios – Russo,
Austro-Húngaro ou Otomano – a imponência do capital, que já não reconhecia fronteiras e
via tais organizações como fósseis à beira da dissolução.
De fato, Whitman se refere a um passado relativamente distante. Tomando para si o
nascimento da nação mediante a Revolução e a Independência, o poeta articula referências
sem dúvida estranhas à régua nacional do XIX – régua que, ironicamente, está em seu
íntimo ligada aos acontecimentos que formaram a República do Novo Mundo em fins do
século XVIII. Como bem coloca Hannah Arendt,
11
o princípio revolucionário que tomou de
assalto a Europa pela luta contra iniqüidades tem raiz americana. A começar pela idéia de
que era possível uma vida sem miséria, uma vida em que a pobreza e a riqueza, a tirania e a
submissão, não compunham regra ou ontologia: tal pensamento formava o continente
diante dos olhos e das mentes européias e movia as paixões revolucionárias francesas em
nome de uma abundância possível. É desse modo que, já aos olhos europeus, a América
compunha uma imagem de felicidade e paz, uma utopia alimentada por séculos e
determinante para a formação dos pensamentos de soberania e nacionalidade, surgidos na
Europa como alternativa para a derrubada de reis e sua legitimidade política.
É também nesse sentido de ruptura que Whitman retoma a América em suas
investidas nacionalistas: trata-se da América política, que nasce com a liberdade e o fim dos
11
ARENDT, Hannah.
Da Revolução
, 19.
22
jugos feudais e nobiliárquicos, abrindo caminho a um futuro que as gerações posteriores – e
o próprio país – não herdaram sem problemas. A ruptura com o Velho Mundo forma a
cultura norte-americana com uma abrangência notável até mesmo entre aqueles que,
tradicionalmente, são encarados por sua atitude arrogante e reacionária.
Acostumados,
como estamos, por exemplo, ao tom lamurioso que deu forma à constatação de não sermos
europeus, as palavras do norte-americano Teobaldo, personagem de The Madonna of the
Future (1873), de Henry James, nos causam estranhamento:
“We are the disinherited of Art!" he cried. "We are condemned to be superficial!
We are excluded from the magic circle. The soil of American perception is a poor
little barren artificial deposit. Yes! we are wedded to imperfection. An American,
to excel, has just ten times as much to learn as a European. We lack the deeper
sense. We have neither taste, nor tact, nor power. How should we have them?
Our crude and garish climate, our silent past, our deafening present,the constant
pressure about us of unlovely circumstance, are as void of all that nourishes and
prompts and inspires the artist, as my sad heart is void of bitterness in saying so!
We poor aspirants must live in perpetual exile.
12
A passagem não se ajusta por meros queixumes. Antes, fala com cálculo e frieza: o
exílio é um imperativo, a decisão mais acertada que um aspirante às artes toma para realizar
seu trabalho e, principalmente, formar-se do modo mais adequado, no que se lê o solo
pátrio como obstáculo e limitação a ser superada. Menos que a ave e seu gorjeio, importa o
apuro do ouvido que a escuta.
12
"Somos os deserdados da arte! Estamos condenados à superficialidade! Somos excluídos do círculo
encantado! O solo da percepção americana é um sedimento pequeno, pobre, estéril, artificial. Sim! estamos
destinados à imperfeição. Para atingir a excelência, o americano tem dez vezes mais a aprender do que o
europeu. Falta-nos o sentido mais apurado. Não temos gosto, nem tato, nem força. E como poderíamos ter?
Nosso clima rude e mal encarnado, nosso passado silencioso, nosso presente ensurdecedor, a pressão
constante de circunstâncias desprovidas de graça – tudo é tão sem estímulo, alimento e inspiração para o
artista, quanto é sem amargura o meu coração ao dizê-lo! Pobres aspirantes, nós devemos viver em perpétuo
exílio.” JAMES Jr., Henry. “The Madonna of the Future. The Atlantic Monthly. Boston: The Atlantic
Monthly Co., Volume 31, Issue 185, 03.1871. (Cf. sítio
Making of América
:
http://library8.library.cornell.edu/moa/) .
23
Se retomássemos o velho lugar-comum da arte pela arte, que antes de reivindicar a
pureza perdida em meio aos desvarios românticos, prescreve o modo burguês de defender-
se de si próprio (reação à mercadoria e fetiche duplicado na contemplação do artífice), ou
ainda se chamássemos de pronto a nosso socorro a periferia, tão afeita a transformar os
problemas da civilização em modismos de gente bem educada, deixaríamos de observar o
principal, o fato de que, em algum lugar do Novo Mundo, a nação não se manifesta como
condição ontológica sem lastro, cujos acidentes compõem, em tempos de otimismo, a
celebração da raça e, quando consumidos pela melancolia, a deformidade essencial a ser
compreendida. O atestado de civilização impossível, que bem poderia servir de nó para atar
as duas pontas do pensamento de nosso Machado de Assis, jamais teria a assinatura de
James. Quando o norte-americano escreve a respeito da decisão de viver na Inglaterra para
o melhor desenvolvimento de seu ofício – je ne sais que faire neste vasto Novo Mundo”
13
–, sua pena vai além do reconhecimento daqueles modos próprios de “tratar as ideologias”,
que configuram o Romance. Inerente à sua acuidade é seu pertencimento ao mundo que
constitui essa forma, aspecto da experiência norte-americana que força nossa vista para um
ponto em que Velho e Novo Mundo convergem, constituindo um solo contíguo.
No exílio, você parece estar em casa – e para mim Florença parece uma belíssima
Sibéria. A ironia de H– (a inicial nos leva a identificar narrador e autor), que inverte a
proposição de Teobaldo e atribui ao artista as mesmas qualidades de um ambiente inóspito,
é enganosa. Em breve, veremos seu distanciamento se revelar tão insuficiente quanto o
empenho do artista. Depois de pressionar e ridicularizar Teobaldo, homem de modos
ingênuos e descabidos que clamava pela figura do Gênio tal como esse se expressava pelas
Madonnas de Florença, sobretudo a de Rafael, o narrador desafia o artista a pintar a
“Madonna das Madonnas” – a “Madonna do Futuro” – tomando a causa por perdida e a
aposta ganha. No entanto, o compatriota o surpreende em gênio e caráter: Teobaldo, que
não poderia ser considerado um yankee senão pela devoção com que se entregava à Arte, é
encontrado, ao fim de uma semana, em petição de miséria diante de uma tela amarelada e
vazia. Seu desabafo é valioso demais para não ser citado na íntegra:
13
Citado por SCHWARZ, Roberto.
Ao Vencedor as Batatas
, 11.
24
I suppose we are a genus by ourselves in the providential schemewe talents
that can't act, that can't do nor dare! We take it out in talk, in plans and
promises, in study, in visions! But our visions, let me tell you," he cried, with a
toss of his head, "have a way of being brilliant, and a man has not lived in vain
who has seen the things I have seen! Of course you will not believe in them when
that bit of worm-eaten cloth is all I have to show for them; but to convince you, to
enchant and astound the world, I need only the hand of Raphael. His brain I
already have. A pity, you will say, that I haven't his modesty! Ah, let me boast and
babble now; it's all I have left! I am the half of a genius! Where in the wide world
is my other half?’
14
Negados os “dedos do estúpido copista” e de “algum artesão vulgar”, a obra de
Teobaldo ganha em substância à medida que não se realiza, que não permite os contornos
da mercadoria vulgar que enche as praças e oficinas da Florença em que vive. No entanto, a
questão ganha em profundidade se levamos em conta que é pela irrealização da obra e pela
aporia da Arte que H– e Teobaldo se reconciliam como legítimos contemporâneos, uma vez
que a tela vazia não só expressa o “deserto” que o narrador entendia pelas ruas de Florença
e nos olhos de cada Madonna, como faz compreender seu lugar no mundo.
A Madonna do Futuro nos fala justamente de uma aproximação possível com o
maior legado da Revolução, à qual James sem dúvida permanece fiel: o tempo da América,
herança de uma liberdade política que se fez valer às expensas da grandeza artística e
cultural, interrompida em nome da identidade que se constituía pela impossibilidade de
aproximação com o chamado centro; tempo que, em uma metáfora genial, Henry James
14
“Suponho que sejamos gênios por nós mesmos de um modo providencial – nós, talentos que não podem
agir, que não podem ousar! Nós o expressamos em conversas, em planos e promessas, em visões! Mas nossas
visões, deixe-me dizê-lo, têm um modo de serem brilhantes e um homem que viu as coisas que vi não viveu
em vão! É claro que você não acreditará nelas quando um pedaço de tecido carcomido por vermes é tudo o
que tenho para mostrá-las; no entanto, para convencê-lo, para encantar e assombrar o mundo, eu preciso
apenas da mão de Rafael. A mente eu já tenho. Pena, você dirá, que eu não tenho sua modéstia! Ah, deixe-me
agora as glórias e o queixume; eis tudo o que me resta. Sou a metade de umnio! Onde estará, neste vasto
mundo, minha outra metade?” . JAMES Jr., Henry. “The Madonna of the Future”. The Atlantic Monthly.
Boston: The Atlantic Monthly Co., Volume 31, Issue 185, 03.1871. (Cf. sítio Making of América:
http://library8.library.cornell.edu/moa/) .
25
compara à tela em branco do “pintor fracassado”(?), guardada pelo narrador como a obra-
prima defendida no relato de H– a seus companheiros de mesa, americanos que diletavam
de modo frívolo acerca de pintores que haveriam deixado à posteridade uma única obra de
valor. Ademais, a perspectiva de James nos deixa, mais do que questões importantes a
serem feitas à obra de Whitman, que nos propõe, como veremos, “a origem de todos os
poemas”, o modo mais interessante de nos aproximarmos da querela que dá argumentos à
poesia nacional de Leaves of Grass: a que mundo ela realmente se refere? Ou melhor: a que
América?
2
What we are we are, nativity is answer enough to objections.
(“By Blue Ontario’s Shore, 2”)
Ligada de modo muito íntimo à “arte impossível” de Teobaldo, encontraremos a
primeira edição de Leaves of Grass (1855), em tudo promotora de um estranhamento
tamanho que mesmo a descrição mais sucinta e objetiva do volume é capaz de transmiti-lo.
Os doze poemas sem título, introduzidos por uma peça em prosa, estão editados em formato
de table book,
15
sugerindo a leitura coletiva, com capa verde de pano e tipos dourados e
luxuosos, nos quais lemos o título do volume e referência nenhuma ao nome de seu autor.
O anonimato preservado na capa será reforçado no frontispício, onde o que vemos é um
retrato de um autor
15
REYNOLDS, David.
Whitman’s América: a cultural biography
, 312.
26
nem um pouco semelhante às figuras aristocráticas que geralmente ornavam essas páginas.
Trata-se, pelo que o tempo nos ensina, de um tipo popular, em roupas de trabalhador e
chapéu de rua, de feições seguras e indolentes que afastam qualquer idéia da figura privada
e respeitosa que a poesia pedia para a sua fruição. Note-se ainda que o efeito do retrato
torna arbitrária a associação do nome que aparece na contracapa, junto ao registro de
propriedade do volume (“Walter Whitman Jr.”), ao autor em presença, que na ausência de
qualquer editor, é também o único responsável pela divulgação do volume, cuja história
registra prensado pelo próprio poeta na gráfica da Fowlers & Wells, editora de livros de
Frenologia que, em nome da amizade a Whitman, cedeu-lhe as prensas e permitiu que parte
dos exemplares fosse vendida em sua loja frenológica. A data de publicação do volume
também é digna das pretensões do poeta: apesar do feriado, consta de quatro de julho de
1855.
Não foram poucas as resenhas e notas dedicadas à “publicação” de Leaves of Grass,
que recebeu atenção de intelectuais americanos e britânicos graças ao esforço de
distribuição do próprio poeta. Desconsiderada aqui a divulgação do próprio poeta, que
27
publicou algumas resenhas anônimas em jornais de Nova York e adjacências com o intuito
de estabelecer polêmica (“An american bard at last!
16
), essa primeira recepção do livro é
notável pela pertinência e pelo alcance dos pontos que levanta, todos direta ou
indiretamente relacionados àquilo que “diz” o retrato do poeta. A ele podemos referir a
surpresa dos entusiastas, formulada publicamente, por exemplo, no natural poet” de
Charles Dana,
17
que, relacionando a natureza romântica de “nosso bardo sem nome” ao
loaferism (vadiagem) de Nova York, lia “audácia e violência” em sua “independência”,
“despojamento e indecência em sua linguagem”, ou na resenha eruditíssima do Washington
Daily National Intelligencer
18
, que recorre ao panteísmo de Espinosa, à imanência de
Platão e à meditação e aos prazeres dos pastores de Virgílio para descrever a poesia de um
“representante dos arruaceiros”, cujo retrato “serviria muito bem para um ‘cara da Bowery’,
um dos ‘assassinos’”, “o ‘Mose’ da peça” (referência ao teatro picaresco, de grande sucesso
popular) e que poderia ser visto nos jornais ao lado de “muitos criminosos célebres”. O
exercício de ilustração de Dana e do Washington Daily encontrará o reverso da moeda em
Rufus Griswold, que admitia com pesar a menção ao “poeta (?)” em “nossas colunas”,
“indevidamente recomendado por um cavalheiro de alta reputação”, em que se subentenda
o nome de Emerson, mais adiante referido como o verdadeiro responsável pelas “folhas” –,
e literatos, que se não fizeram questão de queimar o livro, como o fez Whittier, referiram-se
a ele com ironia, para citar James Russell Lowell, que na condição de literato polido e
esclarecido não poderia levar a sério o livro de um popular, um “amigo de condutores de
carruagem”. Repulsa e entusiasmo à parte, Leaves of Grass despertava o interesse,
sobretudo, por aquilo que o “afastava” da arte.
16
ANÔNIMO [Walt Whitman]. “
Walt Whitman and his poems
(
United States Review
, 5, September 1855)”.
Republicado em WHITMAN, Walt.
Walt Whitman’s Leaves of Grass, edited and with an Afterword by David
Reynolds
, 110.
17
DANA, Charles. “New Publications: Leaves of Grass”. Em New York Daily Tribune, 23 de julho de 1855.
Republicado em WHITMAN, Walt. Walt Whitman’s Leaves of Grass, edited and with an Afterword by David
Reynolds, 107.
18
ANÔNIMO. Notes on New Books (“Washington Daily National Intelligencer”, 18, February 1856)”.
Republicado em WHITMAN, Walt.
Walt Whitman’s Leaves of Grass, edited and with na Afterword by David
Reynolds
, 135.
28
Transitando entre a surpresa e o mal estar, lemos a cuidadosa resenha de Charles Eliot
Norton, editor da Putnam’s Monthly Magazine, publicada em julho de 1855. O crítico, que
também preferiu o anonimato em sua resenha, “não podia deixar de registrar” (entenda-se o
misto de encantamento e ironia) a publicação daquela “curiosa e caótica coleção de
poemas” escritos “em uma espécie de prosa empolgada, quebrada em versos sem
adequação alguma à mesura ou à regularidade”, repleto de termos “comumente banidos da
sociedade polida, empregados sem reserva e com perfeita indiferença a seu efeito na mente
do leitor”. Não por acaso, após referir o conjunto como um “composto de
transcendentalismo da Nova Inglaterra e brutalismo nova-iorquino”, Norton supõe que “um
bombeiro ou condutor de bonde, que tivesse inteligência suficiente para absorver as
especulações daquela escola de pensamento, que culminou em Boston há 15 ou 18 anos
atrás, e capacidade de expressão para levá-las adiante em uma forma pessoal, com desprezo
pelo gosto público e empáfia suficiente para afrontar toda a usual propriedade de dicção,
poderia ter escrito este livro rude, porém elevado, superficial, porém profundo, absurdo,
porém de alguma forma fascinante”.
19
Norton deixa de lado as especulações, de efeito cômico, após uma longa seleção de
trechos, nos quais sublinha “uma percepção original da natureza, um vigor masculino e
uma diretriz épica”, que nos melhores momentos fariam “as mais vastas e vagas
concepções” do transcendental “atravessarem, sem perda de qualidade”, “o medium
intelectual rude e extravagante” do outro. Concluindo “muito apropriado para um livro de
poesia transcendental” que “o autor afaste seu nome da página de rosto e apresente, no
lugar desse, seu retrato gravado em ferro, posto que o retrato torna viável a idéia de um ser
essencial de quem procedam tais declarações”, o editor ainda destaca o fato de seu nome
constar de uma única página do volume (a vigésima-oitava), onde se lê “Walt Whitman, um
americano, um dos arruaceiros, um kosmos”, apresentação que só recebe crítica no que
19
A fireman or omnibus driver, who had intelligence enough to absorb the speculations of that school of
thought which culminated at Boston some fifteen or eighteen years ago, and resources of expression to put
them forth again in a form of his own, with sufficient self-conceit and contempt for public taste to affront all
usual propriety of diction, might have written this gross yet elevated, this superficial yet profound, this
preposterous yet somehow fascinating book”
. NORTON, Charles Edward. “
Editorial Notes: Whitman’s
Leaves of Grass
”. Em
Putnam’s Monthly Maganize
, June, 1855.
29
concerne ao último epíteto, que expandindo a representatividade desse sujeito às fronteiras
da totalidade, é “informação para qual realmente não estávamos preparados”.
Seria inútil a demora nessas resenhas e em suas descrições e impressões do livro
caso elas não anunciassem um ponto importantíssimo: a ambigüidade entre autoridade
literária e posição social, que regula diretamente a opinião sobre Whitman, representante
dos b’hoys de Five Points (Washington Daily) e figura inaceitável nos círculos de gente de
bem (Griswold), que jamais poderia alcançar a expressão de um todo (Norton), ainda que
houvesse conivência com seus modos “naturais”, de certa forma apropriados à verdadeira
poesia (Dana). Vista do ângulo da representatividade, seria possível dizer que, loafer
desocupado ou b’hoy arruaceiro, a literatura cosmogônica de Whitman está presa às roupas
da classe. Não temos dúvida de que a opinião pública no XIX tenha feito da crítica literária
o braço de uma armada sempre pronta à denúncia de imoralidades; alguns dos melhores
autores do XIX tiveram sua crítica mais significativa redigida em tribunais. Entretanto, os
críticos aqui citados parecem trazer junto a seus julgamentos um conceito que organiza a
reprimenda e a ressalva, conceito esse que não apenas é conhecido de Whitman como lhe
serve para instaurar a divergência com esses intelectuais. Não seremos capazes de entender
o Velho Mundo de Whitman sem considerarmos o problema da representação,
desenvolvido com primor e igual densidade de problemas por Emerson (desde sempre, o
pai literário de Whitman) em ensaios como “The American Scholar”, “The Poet” e Self
Reliance”, conhecidos modelos do poeta e com os quais seu prefácio de 1855 dialoga.
Segundo Emerson, a literatura nacional norte-americana seria uma das
conseqüências de uma reforma cultural ampla, perpetrada, em seus escritos dos anos 1830 e
da primeira metade dos anos 1840, pela figura pública e pela individualidade do “homem
pensante”. Em The American Scholar”, discurso proferido a uma congregação de
estudantes de Harvard em 1837, Emerson faz um sumário das obrigações desse letrado, as
mais nobres em uma sociedade fragmentada em “homens parciais” cuja unidade só poderia
ser reavida pelo intelectual. Perfazendo sua crítica à fragmentação social e buscando assim
as divisas do letrado, Emerson nos fala de um homem atento à natureza (“medida de seus
conhecimentos”
20
) e ao passado (representado pelos livros
21
) que jamais perde de vista a
20
EMERSON, Ralph Waldo. "The American Scholar". Em
The Writings of Ralph Waldo Emerson
, 48.
21
Idem,
48.
30
ação (“matéria-prima com que o intelecto molda seus produtos esplêndidos”
22
) a vida
(“força elementar” de “viver a verdade”
23
e ultrapassar o conteúdo dos livros) e, por fim,
seu dever, atribuído à função de “estimular, incitar e guiar os homens, mostrando-lhes os
fatos em meio às aparências”
24
. “Coração” e “olho do mundo”, o letrado terá de “achar
consolo no exercício das mais altas funções da natureza humana”, tornando-se “aquele que
se coloca acima das considerações privadas para respirar e viver pensamentos públicos e
eminentes”.
25
Sua autoconfiança
For the instinct is sure, that prompts him to tell his brother what he thinks. He
then learns that in going down into the secrets of his own mind he has descended
into the secrets of all minds. He learns that he who has mastered any law in his
private thoughts, is master to that extent of all men whose language he speaks,
and of all into whose language his own can be translated.
26
e seu poder como representante, citando aqui passagem de The Poet”,
... for the poet is representative. He stands among partial man for the complete
man, and apprises us not of his wealth, but of the common wealth. The Young
man reveres men of genius, because, to speak truly, they are more himself than he
is
.
27
são qualidades que demonstram com clareza o lugar sui generis da literatura nacional norte-
americana no esquema elaborado por Emerson e, com divergências que serão observadas,
22
Idem, 53.
23
Idem,
54.
24
Idem,
55.
25
Idem
, 55.
26
“Pois é inevitável o instinto que o impele a dizer a seu irmão o que pensa. Então, ele aprende que, descendo
aos segredos de sua própria mente, ele desce aos segredos de todas as mentes. Ele aprende que quem domina
qualquer lei de seus pensamentos privados é senhor, em tal medida, de todos os homens cuja linguagem fala e
de todos os homens em cuja linguagem a sua própria pode ser traduzida”. Idem, 56-57.
27
Com a passagem completa: “O alcance do problema é enorme, pois o poeta é representativo. Ele fica entre
homens parciais como homem completo e nos informa, não de sua riqueza, mas da riqueza comum”.
EMERSON, Ralph Waldo. “
The Poet
”.
Op.Cit
., 320.
31
endossado por Whitman em 1855. Se atentos ao modo como o filósofo trata as figuras do
letrado e do poeta, veremos que seu esforço genial de consulta à natureza, de “penetrar
aquela região onde o ar é música” e onde “ouviremos tais gorjeios primordiais e
intentaremos registrá-los”, aceitando, enfim, “uma poesia escrita antes que existisse o
tempo”
28
está organizado por uma idéia de representação que faz do literato, em última
instância, um agente político. Na condição de representantes da natureza una, regida por
leis que a sociedade conhece na moral, apesar de esquecidas (o que propicia o ímpeto de
reforma), letrado e poeta caminham juntos em uma sociedade em que a alienação é medida
pela mediocridade daqueles que, por sua função, a deveriam conduzir. As passagens são
claras: o letrado será todos os homens, ainda que todos os homens não sejam o letrado,
esse conhecedor da verdade de onde surgem os afetos e os pensamentos mais íntimos de
cada homem da comunidade e que não poderiam ser expressos por eles de maneira tão
veraz e contundente.
Levando-se em conta a adesão de Emerson aos princípios da arte romântica,
amplamente divulgada no Transcendentalismo pela reprovação do artifício e a busca de
formas orgânicas, próprias de um indivíduo ciente de sua liberdade e de sua realização
genial, os modelos de natureza e representação que seus escritos apresentam compõem uma
dissonância por vezes incômoda. Para seguir o curso de Leon Chai, que lendo Emerson foi
arguto na identificação de uma Lei Natural imutável, cuja expressão material é evidência da
Razão Divina própria ao entendimento racional e científico do XVIII,
29
podemos ampliar o
anacronismo inerente ao entendimento que Emerson faz da filosofia romântica e sugerir a
comparação de seu modelo representativo (que Whitman e seus cometadores, certamente,
terão em mente) com a passagem em que Públio, persona de The Federalist, discutirá as
formas de governo que melhor controlam insurreições e facções perniciosas para a
segurança do público.
Depois de desautorizar a “democracia pura” (“pela qual entendo uma sociedade que
consiste em um número reduzido de membros que formam assembléias e administram o
governo em pessoa”) como forma ideal de governo, dada a sua instabilidade diante dos
interesses organizados de minorias e maiorias e sua incapacidade de defender a “segurança
28
EMERSON, Ralph Waldo. “
The Poet
”.
Op.Cit.
, 322.
29
CHAI, Leon.
The Romantic Foundations of the American Renaissance
, 71-72.
32
pessoal e o direito à propriedade”, Públio propõe a República (“pela qual entendo um
governo em que o esquema de representação toma lugar”) como o meio adequado de
regulação dos interesses públicos, à medida que delega o governo “a um número pequeno
de eleitos pelo resto” e se demonstra capaz de reger um número maior de cidadãos em um
território maior do que aquele referido às assembléias democráticas. Ao diferenciar os
sistemas, Públio diz:
The effect of the first difference is (...) to refine and enlarge the public views, by
passing them through the medium of a chosen body of citizens, whose wisdom
may best discern the true interest of their country, and whose patriotism and love
of justice, will be least likely to sacrifice it to temporary or partial
considerations. Under such a regulation, it may well happen that the public voice
pronounced by the representatives of the people, will be more consonant to the
public good, than if pronounced by the people themselves convened for the
purpose.
30
A discussão, que pertence ao 10
º
ensaio (atribuído a Alexander Hamilton), é
importante por estabelecer os conceitos de Democracia e República que vigorarão, não sem
turbulências, ao longo do antebellum. Sem eles não teríamos condições de entender, por
exemplo, a crítica contundente que Emerson dirige, em suas palestras de 1837-1838, à
“furiosa democracia”, “operação perversa e obstrutiva” do princípio de individualidade, que
sob sua influência “destitui homens distintos e envia gente iletrada e baixa aos cargos de
deputado” sem qualquer respeito à Revolução Americana, um dos célebres rebentos do
“progresso histórico do homem”.
31
Nesse mesmo sentido, não precisamos nos esforçar para
encontrar a “função” do letrado e a “riqueza comum” revelada pelo poeta representativo
30
“O efeito da primeira diferença é (...) o de refinar e alargar as perspectivas públicas, fazendo-as passar pelo
medium
de um corpo escolhido de cidadãos, cuja sabedoria poderia melhor discernir o verdadeiro interesse de
seu país, e cujo patriotismo e amor à justiça seria menos provável de ser sacrificado por considerações
parciais ou temporárias. Sob tal regulação, pode muito bem acontecer que a voz pública, pronunciada pelos
representantes do povo, seja mais consonante com o bem público do que se fosse pronunciada pelas próprias
pessoas convocadas para falar.” [HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James]. The Federalist,
25.
31
Citado por MILDER, Robert. “The Radical Emerson?”. Em The Cambridge Companion to Ralph Waldo
Emerson, 54.
33
naquela esfera pública conduzida por representantes e mantenedora da propriedade e da
ordem que, ao fim e ao cabo, conferem sentido aos anseios e expectativas nacionais do
filósofo e dos comentadores de Leaves of Grass, todos bem amparados pelos princípios
republicanos que fazem da posição social a base da autoridade política e econômica que se
impõe à literatura.
Entretanto, o retorno de Emerson, cioso de harmonia social, aos princípios
representativos do federalismo do XVIII (a bem da verdade, sua posição social nos indica
mais um reforço desses princípios do que um retorno a eles) não justifica a impressão de
preconceito de classe que deriva das resenhas, muito embora as críticas feitas a Emerson
por Griswold pressuponham a “alta reputação” de Emerson como sinal daquela mesma
representatividade. Levando-se em conta que o filósofo formula os deveres de seu Letrado
como crítica à divisão social do trabalho, geradora de “homens parciais” graças à
mediocridade de seus representantes, o preconceito, ora implícito, ora explícito, dos
resenhistas mostra que a compilação de uma sociedade fragmentária não implicaria um
retorno, ainda que abstrato, à coesão orgânica da sociedade, mas sim a uma espécie de
“república nostálgica”, pouco efetiva na crítica aos modelos produtivos e na busca de
soluções. A maior evidência disso, que nos cabe entender como um anacronismo aberto a
ambigüidades, está nos próprios termos de desqualificação de Whitman. Loafer e b’hoy são
tipos baixos e marginalizados de um sistema que não conhece “cavalheiros”. Se o primeiro,
como bem apontou o erudito do Washington Daily, se deixava comparar ao bucolismo de
Virgílio, ainda que de modo um tanto enviesado e pernicioso, uma vez que o elogio do rus
romano nada tem a ver com a assimilação de uma vida desprovida de conforto material que
caracterizava os modos de um determinado segmento de jovens desempregados de Nova
York na década de 1840 (o loaferism
32
), o segundo evoca conflitos sociais que não apenas
dão a dimensão do “assassino” que insistia em se esconder por trás do retrato, como mostra
32
Some have argued that his indolent, loafing persona stood in direct oppsition to an increasingly capitalistc
American culture where manhood was equated with pragmatic activity. To say this, however, is to ignore the
way in which his poetry reflected a whole class of antebellum Americans with whom he identified deeply: the
class of so called loafers. These were mainly young working-class men and women who had been impeled by
hard times to reject normal capitalism pursuits and find other means of gratification and amusement.
” Cf.
REYNOLDS, David.
Op.Cit
. 64.
34
a situação de uma tradição política que, até aqui, vimos relevante em apenas um dos lados
da moeda.
Os b’hoys e g’hals são introduzidos ao público norte-americano pelo teatro cômico
inglês, no qual são personagens picarescas que protagonizam aventuras e qüiproquós em
ambiente urbano. Serão eles – “Mose”, “Billy Sykes (after the murder of Nancy”, para
lembrar a menção do Washington Daily) – tipos que adquirem novos contornos e
identidade na América, sobretudo à medida que ganhavam vitalidade formal no comércio
de literatura popular mediante novelas, geralmente veiculadas junto a jornais baratos, como
The Mysteries and Miseries of New York (Os Mistérios e Misérias de Nova York), The
G’hals of New York (As Raparigas de Nova York) e The B’hoys of Boston (Os Rapagões de
Boston), que popularizavam o b’hoy como tipo “brigão” e dado a “patuscadas”, bem ao
estilo do que se lê nas novelas picarescas.
33
Embora tais informações bastassem para
identificarmos as ironias de um resenhista da capital federal, não podemos deixar de dizer
que a imagem do b’hoy serviu de anteparo cultural para um amplo contingente
populacional que formava a periferia proletária das grandes cidades norte-americanas –
especialmente Nova York, repleta de crimes, abusos, conflitos, carências e injustiças que
abarrotavam os jornais sensacionalistas – e se organizava em torno de símbolos de lutas
passadas e presentes que expressavam uma condição completamente avessa ao edifício
conceitual da República e da representatividade, formulada por Emerson e endossada pelos
comentadores. É a elas e, principalmente, a sua visão de mundo, que Whitman se refere
quando, no “Prefácio de 1855” (assim chamado posteriormente), seu assunto deixa a
exaltação da “natureza poética” da América e seu “maior poema” (os Estados Unidos) para
nos dizer onde mora o gênio de seu país:
Other states indicate themselves in their deputies . . . . but the genius of the
United States is not best or most in its executives or legislatures, nor in its
ambassadors or authors or colleges or churches or parlors, nor even in its
33
As traduções de b’hoy como “rapagão” e g’hal como “rapariga” fazem menção direta aos tipos baixos
populares das “súcias” e “patuscadas” descritas por Manuel Antônio de Almeida em seu Memórias de um
Sargento de Milícias. Qualquer tentativa de imitar a corruptela seria menos esclarecedora do significado dos
termos do que essa transposição, que nos oferece uma idéia bastante clara da constituição tipológica desses
caracteres.
35
newspapers or inventors . . . but always most in the common people. Their
manners speech dress friendships---the freshness and candor of their
physiognomy---the picturesque looseness of their carriage . . . their deathless
attachment to freedom---their aversion to anything indecorous or soft or mean---
the practical acknowledgment of the citizens of one state by the citizens of all
other states---the fierceness of their roused resentment--- their curiosity and
welcome of novelty---their self-esteem and wonderful sympathy---their
susceptibility to a slight---the air they have of persons who never knew how it felt
to stand in the presence of superiors---the fluency of their speech---their delight
in music, the sure symptom of manly tenderness and native elegance of soul . .
their good temper and openhandedness---the terrible significance of their
elections---the President's taking off his hat to them not they to him---these too
are unrhymed poetry. It awaits the gigantic and generous treatment worthy of
it.
34
Sem indicação de título que a destaque do livro, a prosa de abertura de Leaves of
Grass em 1855 é um pronunciamento à sociedade norte-americana, um discurso em que
aqueles “criminosos” – ou “homens parciais” – ganham de Whitman a unidade de um povo
e o estatuto de nação. Advento de tal comunhão e igualdade (“comensurado com seu
povo”), o bardo se torna “o árbitro”, “o equalizador de seu tempo e sua terra”, que saberá
falar aos homens sobre o “espírito da paztanto quanto da guerra, quando é imperativo
“tirar o sangue” de cada palavra proferida. É evidente que o poeta de Whitman terá os
34
“Outros estados indicam a si mesmos por seus deputados . . . . mas o gênio dos Estados Unidos não é maior
ou melhor em seus executivos ou legislaturas, nem em seus embaixadores ou autores ou colegiados ou igrejas
ou oradores, nem mesmo em seus jornais ou inventores . . . . mas sempre maior nas pessoas comuns. Suas
maneiras de falar, de vestir, sua amizade – o frescor e a candura de sua fisionomia – o pitoresco despojamento
de sua carruagem . . . sua adesão imortal à liberdade – sua aversão a tudo que seja indecoroso ou banal ou
ruim – o conhecimento prático dos cidadãos de um estado pelos do outro – a força de seu ressentimento
extravasado – sua curiosidade e abertura a novidades – sua auto-estima e sua maravilhosa afinidade – sua
suscetibilidade ao mínimo – o ar que eles têm de pessoas que nunca souberam o que é estar diante ou na
presença de superiores – a fluência de seus discursos – seu gosto por música, o claro sintoma da ternura
masculina e a elegância nativa da alma . . . seu bom temperamento e generosidade – o terrível significado de
suas eleições – o Presidente que tira seu chapéu para eles, enquanto eles não tiram – essas coisas todas são
também poesia sem rima. Elas esperam um tratamento gigantesco e generoso digno delas.” Em WHITMAN,
Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 05-06.
36
mesmos talentos públicos do letrado pensado por Emerson; entretanto, sua autoridade não
está prescrita por funções hierárquicas nem sua representatividade coincide com o dever de
classe de conduzir a sociedade. Embora acredite, como o filósofo, em um poeta “completo
em si mesmo”, “visionário”, que “não pertence ao coro”, nem “pára diante de regulação
alguma” por ser ele próprio “o presidente da regulação”,
35
sua analogia para a composição
do caráter do poeta não é, a princípio, a do soberano,
36
mas a do juiz. A literatura nacional
encontra no poeta de Emerson um problema ético a partir do momento em que esse literato
– conhecedor e executor das leis do pensamento humano – tem a função de reger e
representar a mente de todos os homens de sua sociedade, sendo sob esse aspecto distinto
do povo que o terá por representante. Whitman elabora outra leitura ética. Seu poeta
também é conhecedor daquelas leis; contudo, à medida que “vê sua grandeza ao ser um da
massa”,
37
a execução do dever, que em Emerson seria parte constitutiva da verdade da
forma poética, dá lugar ao juízo partilhado e à autoridade consentida, “sem monopólios ou
segredos”,
38
que se forma entre iguais – “os bardos americanos são loucos por iguais noite e
dia” – e “encoraja competidores”
.
39
Assim, tornam-se determinantes para a forma e para a
35
WHITMAN,Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 10.
36
Lê-se em “The Poet” (Op.Cit., 321): The poet is the sayer, the namer, and represents beauty. He is a
sovereign, and stands on the centre. For the world is not painted, or adorned, but is from the beginning
beautiful; and God has not made some beautiful things, but Beauty is the creator of the universe. Therefore
the poet is not any permissive potentate, but is emperor in his own right. (“O poeta é o que diz, o que nomeia
e representa a natureza. É um soberano e está no centro. Pois o mundo não está nem pintado, nem adornado,
mas desde o princípio se revela belo; Deus não criou algumas coisas belas: a Beleza é criadora do universo.
Por isso mesmo, o poeta não é nenhum potentado consentido, mas imperador por direito próprio”.).
37
WHITMAN,Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 16.
38
WHITMAN,Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 15.
39
A passagem completa é: “Os bardos americanos devem ser notórios pela generosidade e afeição e por
encorajar competidores . . Eles hão de ser o kosmos . . sem monopólio ou segredos . . contentes de transmitir
tudo para qualquer um . . loucos por iguais noite e dia. Eles não devem se preocupar com os ricos ou com
privilégio . . . . Eles hão de ser os ricos e o privilégio . . . . eles hão de saber quem é o homem mais influente.
O homem mais influente é aquele que confronta todas as demonstrações que vê com equivalentes de fora de
sua própria riqueza. O bardo Americano não vai delinear classe de pessoas nem um ou dois de um grupo de
interesses nem mais amor nem mais verdade nem mais alma nem mais corpo . . . . e não vai ser mais para os
estados do leste do que para os do oeste, nem mais para os estados do norte do que para os sul”.
WHITMAN,Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 15.
37
verdade da palavra poética a igualdade e o diálogo entre os homens, que colocarão a
natureza ao alcance da expressão de todos. Por isso
In the make of the great masters the idea of political liberty is indispensible.
Liberty takes the adherence of heroes wherever men and women exist . . . . but
never takes any adherence or welcome from the rest more than from poets. They
are the voice and exposition of liberty. They out of ages are worthy the grand
idea . . . . to them it is confided and they must sustain it. Nothing has precedence
of it and nothing can warp or degrade it. The attitude of great poets is to cheer up
slaves and horrify despots..
40
Dissertando sobre a liberdade política, Whitman destitui da poesia “aquele
hieróglifo, o rei”, com que Emerson pretendia simbolizar a relação do poeta com a natureza
e, ao mesmo tempo, também se aproxima do modelo representativo. À paixão com que
Whitman descreve a adesão dos poetas à liberdade (“o giro de seus pescoços, o som de seus
passos, os movimentos de seus punhos são cheios de perigo para uns e de esperança para
outros”
41
) são contrapostos os momentos e as situações em que a liberdade parece arrefecer.
É nesse momento do discurso que o vocabulário antigo, de repúdio às instituições
monárquicas, é substituído por uma nova terminologia, segundo a qual as iniqüidades não
mais dependerão da antiga ordem:
When liberty goes it is not the first to go nor the second or third to go . . it waits
for all the rest to go . . it is the last. . . When the memories of the old martyrs are
faded utterly away . . . . when the large names of patriots are laughed at in the
public halls from the lips of the orators . . . . when the boys are no more
christened after the same but christened after tyrants and traitors instead . . . .
when the laws of the free are grudgingly permitted and laws for informers and
40
“Na formação dos grandes mestres a idéia de liberdade política é indispensável. A liberdade tem a adesão
de heróis onde quer que existam homens e mulheres . . . . mas nunca tem mais adesão ou saudação alguma de
qualquer um do que dos poetas. Eles são a voz e a exposição da liberdade. Ao longo dos tempos eles honram
a grande idéia . . . . ela está confiada a eles e eles devem sustentá-la. Nada a precede e nada pode atacá-la ou
degradá-la. A atitude dos grandes poetas é a de encorajar escravos e horrorizar déspotas”. Em
WHITMAN,Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 17.
41
WHITMAN,Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 17.
38
bloodmoney are sweet to the taste of the people . . . . when I and you walk abroad
upon the earth stung with compassion at the sight of numberless brothers
answering our equal friendship and calling no man master---and when we are
elated with noble joy at the sight of slaves . . . . when the soul retires in the cool
communion of the night and surveys its experience and has much extasy over the
word and deed that put back a helpless innocent person into the gripe of the
gripers or into any cruel inferiority . . . . when those in all parts of these states
who could easier realize the true American character but do not yet---when the
swarms of cringers, suckers, doughfaces, lice of politics, planners of sly
involutions for their own preferment to city offices or state legislatures or the
judiciary or congress or the presidency, obtain a response of love and natural
deference from the people whether they get the offices or no . . . . when it is better
to be a bound booby and rogue in office at a high salary than the poorest free
mechanic or farmer with his hat unmoved from his head and firm eyes and a
candid and generous heart . . . . and when servility by town or state or the federal
government or any oppression on a large scale or small scale can be tried on
without its own punishment following duly after in exact proportion against the
smallest chance of escape . . . . or rather when all life and all the souls of men
and women are discharged from any part of the earth---then only shall the
instinct of liberty be discharged from that part of the earth.
42
42
“Quando a Liberdade se vai ela não é a primeira ou a segunda ou a terceira . . ela espera todo o resto ir
embora . . ela é a última . . quando a memória dos velhos mártires é de todo esquecida . . . . quando os grandes
nomes dos patriotas são motivo de chacota nas salas de convenção e na boca de oradores . . . . quando os
garotos não são educados com aqueles homens, mas com tiranos e traidores . . . . quando as leis da liberdade
são hostilizadas e as leis de informantes e mercenários são mais aptas ao gosto do povo . . . . e quando eu e
você caminhamos para além das fronteiras de sobre a Terra tocados de compaixão diante de inúmeros irmãos
que correspondem nossa amizade e não chamam ninguém de senhor – e quando nós nos regozijamos diante
de escravos . . . . quando a alma sai em retiro para a comunhão fresca da noite e reagrupa sua experiência e
encontra muito êxtase sobre a palavra e aquilo acaba deixando de lado um inocente sob a ameaça dos
ameaçadores ou sob qualquer inferioridade cruel . . . . quando aqueles que em todas as partes destes estados
podem facilmente perceber o verdadeiro caráter Americano e ainda não conseguem – quando as hordas de
covardes, puxa-sacos, gente empertigadinha, corjas de políticos, planejadores de armações para seu próprio
benefício em cidades ou legislaturas estaduais ou o judiciário ou o congresso ou a presidência obtêm a
resposta de amor e deferência das pessoas não importando se ascendem ou não aos cargos . . . . quando é
melhor ser um imbecil e um salafrário com altos salários na administração do que ser o mais pobre e livre
artesão ou fazendeiro com seu chapéu preso à cabeça e os olhos firmes e um coração generoso e sincero . . . .
e quando o servilismo de cidade ou estado ou governo federal ou a opressão em qualquer escala grande ou
39
O prejuízo da liberdade não está mais em uma ordem superada. À medida que todos
os tipos corruptos e toda a desigualdade, indicados no seio da vida política norte-americana,
são relacionados à possibilidade ou impossibilidade de se “perceber o verdadeiro caráter
Americano”, Whitman tem a oportunidade de atribui a poesia americana não àqueles que
representarão a nação por sua excelência patrimonial, como o faz Emerson, mas àqueles
que, representando-a sem discriminação, honestos, humildes e livres, a expressam por sua
liberdade individual e pelo direito de exercê-la. É pela denúncia de uma sociedade
moralmente degradada, pela qual se demonstra o fim da liberdade e a necessidade da
revolta, que Whitman se vê diante de um projeto literário, segundo o qual a poesia será o
meio de revelação de “um caráter Americano” subterrado pelos escombros da ganância e da
irresponsabilidade de seus governantes. O deslocamento das preocupações estéticas e
políticas expostas por Emerson é substancial: à medida que a massa expressa o verdadeiro
caráter nacional por uma poesia revelada, o poeta delega a soberania a uma força absoluta e
abstrata, da qual o poeta, assumindo-se parte da massa, é mediador (“menos um estilo
assinalado e mais o canal de pensamentos e coisas sem acréscimo ou diminuição”
43
), donde
podemos reafirmar a configuração típica de Walt, portador do anonimato elaborado com a
finalidade de confrontar abertamente a figura excepcional,
44
isolada por seu dever e
grandeza, que lemos no representante de Emerson e, sob outras roupagens, no tédio e nas
idiossincrasias dos gênios românticos. Antes, contudo, de buscar a unidade pelo tradicional
ou folclórico, o tipo agrega um importante elemento da poética a ser desenvolvida nos
poemas de 1855:
pequena pode ser levada adiante sem ser seguida da punição devida em sua exata proporção contra a menor
chance de escapar . . . . ou melhor quando toda a vida e todas as almas de homens e mulheres são libertadas de
qualquer parte da Terra – só assim o instinto de liberdade desaparecerá daquela parte da Terra”. Em
WHITMAN,Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 18.
43
WHITMAN,Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 14.
44
The self of Whitman’s songs is typical, not exceptional. Unlike Barlow’s Columbiad, which reflects the
epic convention of a hero elevated above the people, Whitman invests the poet hero of
Leaves of Grass
with
the energies of the people
”. ERKILLA, Betsy.
Walt Whitman, The Political Poet
, 78-79.
40
The greatest poet does not moralize or make applications of morals . . . he knows
the soul. The soul has that measureless pride which consists in never
acknowledging any lessons but its own. But it has sympathy as measureless as its
pride and the one balances the other and neither can stretch too far while it
stretches in company with the other. The inmost secrets of art sleep with the
twain. The greatest poet has lain close betwixt both and they are vital in his style
and thoughts.
45
A tipologia de que Whitman se serve para criar seu “poeta gregário” não pode ser
alijada de uma passagem como essa; estranhamente (para os padrões da subjetividade
presente na poesia lírica moderna), o “conhecimento da alma”, oposto à aplicação de uma
moral reguladora, não pressupõe, por isso, a solidão em que se dá a revelação da verdade;
pelo contrário, do mesmo modo que a configuração tipológica e anônima tem por objetivo a
identificação do público com o poeta, a necessidade de instaurar a palavra poética segundo
os ditames do orgulho (que estabelece o limite da palavra poética em relação à alma, “que
só conhece suas próprias lições”) e da compaixão (que impõe ao sujeito poético a igualdade
com os demais) introjeta nesta poesia Americana não só os princípios interativos que
destituem a solidão de sua função poética imediata, como questões de eficácia lingüística
manifestadas na formação do estilo e do pensamento. Em outras palavras, o “maior poeta”
é caracterizado por uma subjetividade (esse “conhecimento da alma”) que agrega a esfera
pública, onde não veríamos, a princípio, sujeitos, mas indivíduos, que não serão
reconhecidos por sua vida privada (outra face da solidão), mas por sua presença entre
outros, isto é, por seu lugar no coletivo. Estilo e pensamento são, portanto, mais do que
problemas subjetivos; a bem da verdade, a subjetividade só terá valor enquanto parte da
formação do indivíduo, inserindo formalmente a poesia em um coletivo do qual,
tradicionalmente, ela se afasta. Como corolário de tal proposição de estilo e pensamento,
podemos ler ainda:
45
“O maior poeta não moraliza nem faz uso da moral . . . ele conhece a alma. A alma tem aquele orgulho
desmedido que consiste em nunca reconhecer quaisquer lições que não as de si própria. Mas ela tem
compaixão tão desmedida quanto seu orgulho e uma contrapõe-se à outra e nenhuma delas pode ir longe sem
que uma vá em companhia da outra. Os segredos mais interiores da arte dormem junto ao par. O maior poeta
tem se situado entre elas e elas são vitais em seu estilo e pensamentos”. WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass
1855
”. Em
Poetry and Prose
, 13.
41
A great poem is no finish to a man or woman but rather a beginning. Has any one
fancied he could sit at last under some due authority and rest satisfied with
explanations and realize and be content and full? To no such terminus does the
greatest poet bring . . . he brings neither cessation or sheltered fatness and ease.
The touch of him tells in action.
46
É nessa altura dos argumentos que o tipo deixa de lado sua tendência à
uniformidade caricata e nos conduz a um aspecto importantíssimo do que se pretende
introduzir às formas literárias, criticadas neste ponto do pronunciamento por fazerem
coincidir, tradicionalmente, experiência individual e fruição privada. Como se em
Emerson, a perspectiva soberana e o dever representativo do Letrado dão margem a uma
recepção passiva da obra literária. Mantendo a comparação, Whitman reconfigura a
recepção de modo que essa participe diretamente da produção das formas literárias,
tornando esteticamente pública a nova poesia que se anuncia por seu pronunciamento. Que
se diga da seguinte forma: a poesia do “grande poeta”, de natureza pública, conduz seu
leitor à experiência individual somente enquanto essa mesma experiência se torna parte de
um coletivo em que a constituição da individualidade – de todo subjetiva – é suficiente para
estabelecer a autoridade de cada um, traduzida em ações e pensamentos que fazem da obra
literária, mais até do que um início, um ponto de confluência e partida das experiências
individuais.
É nesse sentido que destacamos, junto à causa de uma literatura nacional
comprometida com a liberdade e com a crítica à “degradação moral” dos representantes, a
possibilidade de intervenção política numa sociedade carcomida pela desigualdade e pela
corrupção, ponto que, completando a figura messiânica do poeta whitmaniano, nos conduz
às referências políticas da igualdade almejada e celebrada no prefácio como base da
literatura norte-americana e que, curiosamente, não encantaram, exceção feita a Emerson,
46
“Um grande poema não é um fim para um homem ou para uma mulher, mas um começo. Alguém teria
suposto que ele poderia se sentar diante de alguma autoridade consentida e descansar satisfeito com
explicações e entendê-las e ficar contente e pleno? O maior poeta não traz um fim desse tipo . . . . ele não traz
cessar ou opulência protegida ou tranqüilidade. Seu toque fala em ação”. Em WHITMAN, Walt. “
Leaves of
Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 24.
42
seus primeiros leitores, assustados com os modos de um b’hoy que Whitman faz questão de
celebrar em sua poesia nacional e democrática.
A questão talvez mais interessante do pronunciamento de Whitman está na
articulação de um vocabulário revolucionário norte-americano (do qual o poeta empresta
lugares-comuns como o “ódio aos déspotas”, a querela entre Novo e Velho Mundo e
mesmo a caracterização de um “americano rebelde”, que não se deixa guiar por autoridades
e preza sua liberdade individual), com tensões sociais próprias de uma sociedade que era
introduzida às ilusões e desigualdades do capitalismo. Enquanto “representante dos
b’hoys”, o poeta anunciado pelo prefácio de Whitman falará a um público que não
reconhece sua “função” na sociedade norte-americana. Seu lugar, aliás, será o do
arruaceiro, do homem que luta violentamente contra a ordem estabelecida, alimentando
rancor daqueles que detém o poder e a riqueza. Para falar da revolta potencial do tipo,
podemos remetê-lo não às páginas de crime e desgraça da penny press, mas ao conhecido
Astor House Riot de 1849, manifestação violenta de populares da região de Five Points
reduto dos b’hoys e das gangues de Nova York – que marcharam aos milhares às portas do
refinado Astor Place Opera House de Nova York com o intuito de impedir a encenação de
Shakespeare promovida por uma companhia inglesa de teatro cujo ator principal, William
Charles Macready (conhecido à época por suas posições antiamericanas), rivalizava com
um dos mais conhecidos atores do Bowery e do Brooklyn Theater, Edwin Forrest, aclamado
pelo povo por suas interpretações viscerais do dramaturgo inglês. Os epítetos de Forrest –
Bowery B’hoys Delight, the Mastodon of the Drama –, de resto também famoso por ser o
orador de Andrew Jackson nos anos 1830, são capazes de registrar as diferenças brutais de
encenação e interpretação das companhias, que encarnavam aos olhos dos populares
amantes do teatro a velha disputa colonial, muito embora a presença de palco e o “estilo
mental” de Macready fossem do agrado de homens respeitáveis, notórios por sua defesa da
coisa americana, como Emerson e Longfellow.
47
O incidente, descrito por Sean Wilentz como “uma comédia cruel, uma explosão
atávica vazia de política organizada, radicalismo ou de qualquer coisa que se aproximasse
47
REYNOLDS, David.
Op.Cit.
, 165.
43
de uma consciência de classe
48
– apesar do choque entre tropas militares e populares que
apedrejavam e invadiam o teatro –, é exemplar para mostrar as medidas do abismo social
expresso pelo conflito cultural que, voltando ao nosso assunto, se apresenta nos
comentários daqueles primeiros leitores de Leaves of Grass e receberá, como veremos,
configuração poética bastante problemática. Entretanto, é importante notar que o
aproveitamento que Whitman faz desses tipos (em sua autobiografia, November Boughs, de
1881, o poeta chega a lamentar a falta de um Dickens que os celebrasse
49
) não pressupõe
exatamente, até pela proposta de uma literatura comprometida com a política, a análise e a
conscientização de classe. Como esses trabalhadores e excluídos, o “grande poeta” de
Leaves of Grass estará atento à ascensão e queda dos movimentos europeus de libertação de
1848 (dedica a eles, em 1851, seu “Europe 72th and 73th Years of These States”) que, aliás,
reforçavam sua perspectiva revolucionária tanto quanto a atraíam ao “princípio de
nacionalidade” condutor das revoltas européias, conferindo assim um novo nuance a seu
entendimento da sociedade norte-americana; nesse sentido, a tradicional autodefinição
política, a da cidadania norte-americana, seria reforçada por um sentido de “coletividade
nacional” quase sempre referido a critérios raciais, culturais e territoriais de primeira
importância para o início dos levantes populares e a legitimidade da soberania almejada. No
entanto, a opressão, a desigualdade e a corrupção que Whitman identificará em sua
sociedade não conduzirá a poesia a formas revolucionárias, mas ao restabelecimento
daquele “verdadeiro caráter Americano”, o que pressupõe apenas o caminho da correção e
da reforma.
48
WILENTZ, Sean.
Chants Democratic: New York City & the Rise of the American Working Class, 1788-
1850
, 359.
49
“Recordando daquele período os momentos de Booth e Forrest, qualquer boa noite no velho Bowery, cheio
do forro ao fosso como sua platéia formada sobretudo de jovens fortes e homens de meia-idade, atenciosos e
bem-vestidos, a melhor média dos mecânicos americanos natos – a natureza emocional de toda a massa
despertada pelo poder e o magnetismo dos comediantes mais poderosos que já pisaram o palco – o auditório
completamente lotado e o que nele se agitava e brilhava dos rostos e dos olhos, para mim tão integrada ao
espetáculo quanto qualquer outra parte – explodindo em uma daquelas longas tempestades de palmas próprias
do Bowery – sem aquele negócio delicado de luvas de pelica, mas a força elétrica e a energia de talvez 2000
homens em pleno vigor”
WHITMAN, Walt
.
The Old Bowery
”. Em
Poetry and Prose,
1213.
44
É nos moldes da reforma que os b’hoys do Brooklyn e de Nova York serão
representantes da democracia radical, corrente política norte-americana cuja formação
remete aos dias da Revolução e à crítica do modelo de representação republicano, adotado
pela Constituição Federal, e que ganha força entre os descamisados das décadas de 1840 e
1850 com os eventos europeus. Como vimos pelo excerto do debate federalista, trata-se da
possibilidade da representação direta, rebatida ali em nome da segurança e da manutenção
da propriedade, mas defendida com afinco entre os trabalhadores urbanos. Trazida à
discussão do prefácio (que muito empresta da retórica furiosa desses democratas), fica
evidente pelas noções de “orgulho” e “compaixão” que a literatura norte-americana, tal
como proposta por Whitman, não se dissocia da autorepresentação, uma vez que as formas
literárias, o estilo e o pensamento do “maior poeta” devem preservar as possibilidades de
expressão coletiva a despeito de seu “patrimônio” ou de sua “função” na sociedade. Na
esteira dessas considerações, é possível ainda identificar o princípio democrático naquela
“poesia sem rima”, que tornando o estilo literário adequado ao modelo social, articula
questões elocutórias à própria natureza humana:
(...) folks expect of the poet to indicate more than the beauty and dignity which
always attach to dumb real objects . . . . they expect him to indicate the path
between reality and their souls. Men and women perceive the beauty well enough
. . probably as well as he. The passionate tenacity of hunters, woodmen, early
risers, cultivators of gardens and orchards and fields, the love of healthy women
for the manly form, sea-faring persons, drivers of horses, the passion for light
and the open air, all is an old varied sign of the unfailing perception of beauty
and of a residence of the poetic in outdoor people. They can never be assisted by
poets to perceive . . . some may but they never can. The poetic quality is not
marshalled in rhyme or uniformity or abstract addresses to things nor in
melancholy complaints or good precepts, but is the life of these and much else
and is in the soul. The profit of rhyme is that it drops seeds of a sweeter and more
luxuriant rhyme, and of uniformity that it conveys itself into its own roots in the
ground out of sight. (...) The fluency and ornaments of the finest poems or music
or orations or recitations are not independent but dependent. All beauty comes
from beautiful blood and a beautiful brain. If the greatnesses are in conjunction
in a man or woman it is enough . . . . the fact will prevail through the universe . . .
. but the gaggery and gilt of a million years will not prevail. Who troubles himself
45
about his ornaments or fluency is lost. This is what you shall do: Love the earth
and sun and the animals, despise riches, (...) stand up for the stupid and crazy,
devote your income and labor to others, hate tyrants,(...) take off your hat to
nothing known or unknown or to any man or number of men, go freely with
powerful uneducated persons and with the young and with the mothers of
families, (...) and your very flesh shall be a great poem and have the richest
fluency not only in its words but in the silent lines of its lips and face and between
the lashes of your eyes and in every motion and joint of your body. . . . . . . .
50
“A arte da arte, a glória da expressão e brilho solar da luz das letras é
simplicidade”.
51
Se, num primeiro momento, a “poesia sem rima” justifica as formas de um
povo cuja virtude prescinde da legitimidade institucional, aqui a negação do artifício e do
ornamento, reiterando o já exaustivo repúdio à formalidade, à riqueza e à autoridade
50
“Os camaradas esperam que um poeta indique mais do que a beleza e a dignidade que sempre se unem a
objetos medíocres e reais . . . . eles esperam que ele indique o caminho entre a realidade e suas almas.
Homens e mulheres percebem muito bem a beleza . . provavelmente tanto quanto ele [o maior poeta]. A
apaixonada tenacidade dos caçadores, homens da floresta, gente que levanta cedo, cultivadores de jardins,
pomares e campos, o amor da mulher saudável pelas formas masculinas, marinheiros, cavaleiros, a paixão
pela luz e pelo ar livre, tudo isso são velhos sinais variados da infalível percepção da beleza e de uma
residência do poético nas pessoas que vivem fora de casa. Elas nunca podem ser auxiliadas por poetas para
perceber . . . . algumas talvez mas elas nunca podem. A qualidade poética não é organizada em rima ou
uniformidade ou referências abstratas às coisas nem nas queixas melancólicas ou bons preceitos, mas é a vida
dessas coisas e muito mais e está na alma. O lucro da rima é que ela lança sementes de uma mais doce e
luxuriante rima e de uniformidade que se manm em suas próprias raízes no chão longe dos olhos. (...) A
fluência e ornamentos dos mais finos poemas ou música ou sermões ou recitações não são independentes mas
dependentes. Toda beleza vem de um lindo sangue e de um lindo cérebro. Se as grandezas estão em
conjunção com um homem ou uma mulher é suficiente . . . . mas as bobagens e a culpa de um milhão de anos
não irão prevalecer. Quem se preocupa com seus ornamentos ou fluência está perdido. Eis tudo o que
devemos fazer: Amar a terra e o sol e os animais, desprezar os ricos, (...) defender loucos e retardados,
devotar seus lucros e seu trabalho aos outros, odiar déspotas (...) nunca tirar o chapéu para coisa alguma
conhecida ou desconhecida ou para qualquer homem ou número de homens, ir livre com poderosas e iletradas
pessoas e com os jovens e com as mães de família (...) e sua própria carne será um poema e terá a mais rica
fluência não apenas em suas palavras mas também no silêncio de seus lábios e rosto e entre as pálpebras dos
olhos e em qualquer movimento ou junta de seu corpo . . . . .” Em WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass
1855”. Em Poetry and Prose, 11.
51
WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 13.
46
despótica, serve ao elogio de um bucolismo estético e moral que tem contrapartida política
na “mito agrário” da Democracia Jeffersoniana, alimento daqueles radicais, na qual os
ideais de independência, liberdade, igualdade, soberania local e governo mínimo (pontos,
como temos visto, presentes ao longo de toda a descrição whitmaniana do povo americano)
seriam preservados pela “retidão histórica
52
dos pequenos proprietários de terra, tementes
a Deus e respeitadores da família e da comunidade, que assim “fazem de seus corações seu
peculiar depósito de uma substancial e genuína virtude”
53
. Nesse sentido, a beleza, possível
de ser percebida por todos e em todos, sem a necessidade de que o poeta lhes mostre o
caminho (atitude que, aliás, lhe é vetada) é uma beleza bucólica e democrática, que limita a
autoridade poética em nome do coletivo ao mesmo tempo que impõe às questões estéticas
já presentes na literatura norte-americana, sobretudo a da organicidade defendida por
Emerson, uma nova ordem de problemas formais.
O pronunciamento de Whitman aponta para dois caminhos: um, em que a
desigualdade social urbana, caracterizada pelo b’hoy, fomenta a rebeldia de fundo não
exatamente revolucionário, mas reformista, e a congregação de um povo que deve lutar
contra a opressão de seus governantes; outro, em que a poesia só se justifica por uma
natureza democrática e virtuosa, presente em todos os homens. Nessas duas linhas de
argumentação, encontraremos a mistura de elogio e ressalva que caracteriza a leitura dos
primeiros comentadores, preocupados em dissociar a figura urbana, rude e ameaçadora, do
idílio rural e poético que, ao recuperar o problema das formas orgânicas em literatura, trazia
consigo a marca filosófica de Emerson, percebida através das divergências políticas
impostas por Whitman. No entanto, é na junção desses argumentos – ou melhor dizendo: na
necessidade de reuni-los – que encontraremos o verdadeiro problema do prefácio. Pois
enquanto Whitman refere a uma situação urbana de desigualdades, na qual o velho poder
despótico, fim de toda liberdade, se presta à figura das iniqüidades perpetradas por uma
classe dirigente corrupta – a mesma que irá pedir à Inglaterra as ossadas do rei Jorge em “A
Boston Ballad”, um dos poemas de 1855, e à qual, de forma figurada, se dirigem as
ameaças daquele “Europe – 72th and 73th Years of These States”, também presente na
primeira edição
52
ERKILLA, Betsy.
Whitman, the Political Poet
, 26.
53
Citado por ERKILLA, Betsy.
Op.Cit.
, 26
47
Those corpses of young men,
Those martyrs that hang from the gibbets . . . those hearts pierc’d by the gray
lead,
Cold and motionless as they seem, live elsewhere with unslaughter’d vitality.
They live in other young men, O kings!
They live in brothers, again ready to defy you!
They were purified by death . . . they were taught and exalted.
Not a grave of the murder’d for freedom, but grows seed for freedom, in its turn
to bear seed,
Which the winds carry afar and re-sow, and the rains and the snows nourish.
Not a disembodied spirit can the weapons of tyrants let loose,
But it stalks invisibly over the earth, whispering, counseling, cautioning
.
54
a saída reformista pensada, como vimos, por Emerson, que pretendia reconfigurar a
estrutura de representatividade e excelência para combater a fragmentação social, se torna
mero passadismo, nostalgia de um tempo que Whitman retoma já na forma de um mito nem
sempre enfrentado pela realidade. A Democracia agrária e radical de Jefferson,
personalidade que, ao lado de Washington, o “grande comandante”, e Paine, o “grande
revolucionário”, sempre ocupou lugar de destaque entre os founding fathers da república
whitmaniana, já não podia ser recuperada, com seus predicados morais de prudência,
humildade e compaixão, senão pela mediação de uma arte comprometida com um conceito
de nação que os escritos e as ações desses revolucionários não pressupunham. Em 1855, a
velha república via seus representantes transformados em burgueses e proprietários,
54
“Aqueles jovens mortos, / Aqueles mártires que balançam nas forcas . . . aqueles corações varados de
chumbo, / Frios e imóveis como parecem estar . . eles vivem em algum outro lugar com vitalidade intocada. /
/ Eles vivem com outros jovens, Ó reis! / Eles vivem com irmãos mais uma vez prontos para desafiá-los: /
Eles foram purificados pela morte . . . . eles são ensinados e exaltados. / / Não há uma cova dos assassinados
pela liberdade em que não cresça a semente da liberdade . . . . a que por sua vez carrega outra semente, / Que
o vento leva longe e replanta e as chuvas e as neves alimentam. / / Não há um espírito desencarnado que possa
se perder diante das balas dos tiranos, / Ele avança invisível pela Terra . . sussurrando aconselhando
alertando.” Em WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 134.
48
enquanto seus cidadãos, os representados, passavam a compor uma massa de gente
ignorada e explorada, à qual a harmonia das “funções” reorganizadas pelo Letrado se
prestava ao endosso de uma sociedade de classes. É justamente essa tensão que forma o
conceito de nação em Whitman. Filha de uma revolta iminente para o retorno aos velhos
motivos da virtude e da natureza, a nação nos ensina a ruína do velho sistema republicano e
o surgimento de uma América que, sendo “a mais apta aos seus dias”, há de enterrar a si
própria.
3
“That he was an American, we knew before, for
aside from America, there is no quarter of the
universe where such a production could have had a
genesis. That he was one of the roughs was also
tolerably plain; but that he was a kosmos, is a piece
of news we were hardly prepared for. Precisely what
a kosmos is, we trust Mr. Whitman will take an early
occasion to inform the impatient public”.
([Charles Eliot Norton], “Whitman’s Leaves of Grass”)
Neste primeiro capítulo, estivemos diante de perspectivas bastante singulares da
resposta literária que os norte-americanos haviam de dar à sua herança política. Se para
James, o respeito, digamos, “patriótico” à obra-prima jamais realizada endossa o
compromisso do norte-americano com uma arte alheia, Emerson e Whitman partem das
possibilidades inerentes a um caráter universal da literatura, eminentemente romântico, que
daria abertura à expressão de especificidades locais. Como diz o filósofo na abertura de
Nature (1836), seu livro de estréia, era preciso superar a “idade retrospectiva” que forçava a
mente norte-americana a buscar num passado remoto ou estrangeiro a excelência das
realizações artísticas: “Por que nós não deveríamos também estabelecer uma relação
original com o universo? Por que nós não deveríamos ter uma poesia e uma filosofia de
desvelamento e não de tradição, e uma religião pela revelação que nos fosse feita e não pela
história deles [os antepassados]?”.
55
Muito embora preserve o universalismo em “formas
55
“Our age is retrospective. It builds the sepulchres of the fathers. It writes biographies, histories, and
criticism. The foregoing generations beheld God and nature face to face; we, through their eyes. Why should
49
naturais”, o nós sustenta toda a reivindicação: nós, norte-americanos; logo, partes de um
universal que poderá ser alcançado nos limites de uma experiência local agora totalmente
remodelada, pois ser norte-americano implica, necessariamente, estar no mundo.
Os problemas dessa perspectiva não são poucos, como nos ensinam as comparações
entre os contemporâneos Emerson, o primeiro a formulá-las em chave romântica, e
Whitman, tradicionalmente reconhecido como seu discípulo. Na base do problema, havia a
interpretação e o desenvolvimento desses conceitos de pertencimento: se o universal
parecia resolvido em uma visada mística da Natureza, ou em certas qualidades intrínsecas
ao gênio poético, que estabelecerá o contato do indivíduo – sob este aspecto, solitário –
com um mundo misterioso, em que a verdade permanece preservada além de todo artifício
e corrupção, os elementos que configuravam um modo de ser norte-americano pareciam
instáveis, propícios a uma polêmica generosa com o crítico que queira extrair de suas linhas
e motivos os princípios de reconhecimento da nacionalidade em aberto e sua ligação, essa
nem um pouco resolvida, com um mundo de transição.
Há, como nos propõe a crítica norte-americana, dois modos de recuperarmos os
termos da relação entre Emerson e Whitman. Um, certamente o mais privilegiado por ela,
em que a convergência de projetos literários os vincula, de modo hierárquico, porém
equivalente e seguro, a um mesmo contexto de idéias filosóficas: desse modo, Whitman
será simplesmente, como diz Borges (não sem reservas), o poeta que Emerson profetizou
ser digno da América,
56
como se o filósofo tivesse elaborado, ao longo de seus Ensaios, um
not we also enjoy an original relation to the universe? Why should not we have a poetry and philosophy of
insight and not of tradition, and a religion by revelation to us, and not the history of theirs? Embosomed for a
season in nature, whose floods of life stream around and through us, and invite us by the powers they supply,
to action proportioned to nature, why should we grope among the dry bones of the past, or put the living
generation into masquerade out of its faded wardrobe? The sun shines to-day also. There is more wool and
flax in the fields. There are new lands, new men, new thoughts. Let us demand our own works and laws and
worship.” EMERSON, Ralph Waldo. Nature (1836). Em The Writings of Ralph Waldo Emerson, 3.
56
“A economia dos versos de Whitman lhes [para os Franceses] foi tão inaudita que não conheceram
Whitman. Preferiram classificá-lo: louvaram sua license majestuese, tornando-o precursor dos muitos
inventores caseiros do verso livre. Am disso, remendaram a parte mais vulnerável de sua dicção: as
complacentes enumerações geográficas, históricas e circunstanciais que Whitman alinhou para realizar certa
profecia de Emerson sobre o poeta digno da América. Esse remedos ou lembranças foram o futurismo, o
50
programa de exigências e metas para o literato que quisesse, um dia, fazer justiça à
celebração particular do universal. Note-se, no presente caso, a relação desigual entre o
literato exemplar, mestre, e o homem comum, discípulo, que lhe toma os ensinamentos. O
outro, mais recente e ligado a desdobramentos da crítica que colocam em primeiro plano a
práxis social, irá pelo curso das polêmicas quanto à legitimidade da figura que representa a
nação, vertente igualmente importante que, embora deixe um pouco de lado a interpretação
do que lhes é comum, nos mostra as diferenças de classe e projeto que permanecem entre
os escritores e os vinculam a “Américas” distintas.
A partir do momento que identificamos ambas as perspectivas anunciadas ao
longo das primeiras resenhas do volume, publicadas no mesmo ano de seu aparecimento,
sua releitura nos mostra que tais possibilidades lançadas pela crítica norte-americana são
conseqüência de uma compartimentação que, em 1855, não existia. “Que ele fosse um
Americano, nós já sabíamos, pois afora a América, não há outro lugar do universo onde tal
produção pudesse ter origem. Que ele fosse um dos arruaceiros também era toleravelmente
óbvio; mas que ele fosse um kosmos, essa é uma notícia para a qual não estávamos
realmente preparados. O que é precisamente um kosmos, nós confiamos que logo o Sr.
Whitman irá informar a seu impaciente público”.
57
Oferecendo-nos uma das mais
cuidadosas resenhas de Leaves of Grass, o editor da Putnam’s Monthly Magazine, Charles
Eliot Norton, reforça nossos argumentos quanto à união necessária das perspectivas. Por
este pequeno trecho, que encerra sua resenha, somos capazes de identificar algumas das
linhas críticas que se apropriarão do volume ao longo do século: a especificidade “nativa”
da poesia de Leaves of Grass; a tolerância e a complacência irônicas e dirigidas aos modos
vulgares do poeta; e, finalmente, a discriminação de classe embutida na crítica às
pretensões cosmogônicas de Whitman, que recebe um pronome de tratamento formal (Sr.
Whitman) tão discreto quanto eficiente na demarcação dos limites entre o “mundo dos
unanismo ”. BORGES, Jorge Luis. “O Outro Whitman”. Em
Discussão
(1932).
Obras Completas: Volume I
.
Rio de Janeiro: Editora Globo, 218.
57
That he was an American, we knew before, for aside from America, there is no quarter of the universe
where such a production could have had a genesis. That he was one of the roughs was also tolerably plain;
but that he was a kosmos, is a piece of news we were hardly prepared for. Precisely what a kosmos is, we
trust Mr. Whitman will take an early occasion to inform the impatient public
”. NORTON, Charles Eliot.
“Editorial Notes: Whitman’s Leaves of Grass”. Em
Putnam’s Monthly Maganize
, June, 1855.
51
toscos” e o “mundo dos cavalheiros”, nas mãos dos quais permanece a literatura e seu
universal, instituições nobres quereceberão “Walt” Whitman “vestido a caráter” – e para
dar esclarecimentos, uma vez que sua poesia (e eis aqui nossa questão) denuncia a ligação
orgânica entre o particular de classe e o universal simbólico. O “kosmos” não cabe a um
“tosco”.
Em outras palavras: não sendo o universal uma categoria isenta, mas ele próprio
símbolo distintivo da classe, temos diante de nós outro problema, que não pode ser
formulado a partir do modo como literatos de procedência social distinta abordam as
mesmas questões, mas sim do contrário, isto é, de como essas questões recebem uma
configuração problemática e totalmente distinta dentro de um mesmo meio social,
fragmentado e desigual, em que o estabelecimento do legítimo cabe a um grupo
determinado, que estabelece as regras e os modos da troca simbólica. Mais do que uma
relação problemática, a ligação entre as obras de Emerson, literato exemplar e respeitado
por todos aqueles resenhistas, e Walt Whitman, “um tosco”, estabelece os termos da
discussão na base da formação do próprio sistema literário.
No que se refere àquela profecia de Emerson, esta é a visada mais justa do
problema. Pois, escapando à aporia de Teobaldo, o direito que nós temos de experimentar o
universal não se dissocia de uma perspectiva política que o próprio filósofo estabeleceu
como mediação de tal fim. “Nós”, nos Ensaios de Emerson, são aqueles que por seu
“patrimônio universal”, o das “leis” que governam a mente dos homens, reproduzem uma
ordem norte-americana para a qual a posse significa poder representativo sobre os
despossuídos que, participando ainda da coisa pública, devem ser “bem conduzidos”
segundo as regras da ordem social e da preservação do bem comum, seja ele uma fazenda,
seja ele a própria Beleza. Nesse sentido, as “veleidades individuais”
58
de que fala Antonio
Candido na introdução de sua Formação da Literatura Brasileira ao descrever o sistema
literário como troca simbólica, reproduzem a ideologia da classe, tão mais declarada à
medida que os “governados” adquirem voz e reivindicam para si, também como classe, o
universal reservado a outros.
No que toca à experiência da literatura norte-americana, o que é absolutamente
fundamental de se perceber é o campo da mais importante das batalhas travadas nessa
58
CANDIDO, Antonio.
Formação da Literatura Brasileira
, 23.
52
guerra, ou seja, a poesia. Enquanto outras literaturas periféricas do mesmo período tinham
no romance, gênero burguês por excelência e, assim, adequado à nova ordem mundial, o
estandarte da formação literária, já que em sua produção, em seus temas e sua fruição
tínhamos os pré-requisitos para qualquer sociedade que se quisesse a par das novidades do
centro, os entraves em torno do lícito e ilícito em literatura nos Estados Unidos começaram
por um gênero que a sociedade burguesa delegou não só à exposição da subjetividade
isolada dos conflitos de ordem pública, esses tratados de modo aberto pela prosa, mas
também à salvaguarda de valores nobres que, contrapondo o “ideal do artista” a uma figura
caricata do burguês, auxiliavam o próprio burguês em seu maior projeto, o do apagamento
da burguesia como classe, leia-se, exploradora
59
. Quando comparada a essa relação entre
gêneros na sociedade européia, a situação da literatura norte-americana na década de 1850
nos reserva uma configuração mista de total relevância para o entendimento da obra de
Whitman: levando-se em conta o papel de Emerson como ideólogo do desejo dos norte-
americanos de terem uma literatura, fato inegável, o filósofo não só remete a excelência da
literatura de seu país ao cultivo da poesia (o poeta é seu letrado exemplar), como acomoda
a poesia, calcada em uma perspectiva absolutamente individual e subjetiva, à exposição dos
valores representativos, isto é, públicos.
À medida que a poesia norte-americana afirma, e não esconde ou escamoteia, os
atributos da classe, ela nos oferece a verdadeira dimensão dos problemas que enfrentamos.
59
“O romântico projeta no burguês tudo quanto é odioso: tudo aquilo que ele detesta é chamado de burguês.
Essa generalização grosseira do “J’appelle bourgeois quiconque pense basement” (Flaubert) é o correlato
romântico da imagem que a burguesia fazia de si mesma. Se o burguês histórico concebia a si mesmo como o
“homem por excelência”, o romântico enxergava no “burguês” o “negativo do homem por excelência”, ou
seja, ele havia muito perdera de vista o burguês real e o substituíra por um burguês-fantasma, que podia
assumir também as feições do proletariado. Há muito já foi observado que o romantismo antiburguês e suas
quimeras – por vezes pouco mais que posse e coqueteria – faziam o jogo da burguesia; as fraquezas e as
aporias dessa postura antiburguesa foram descritas com máxima precisão por Sartre no
Idiot de la famille
. O
ódio mortal do romantismo e da boemia ao burguês não fazia mais do que facilitar as estratégias da burguesia
para negar a si mesma como classe. “On reconnaît lê bourgois à ce qu’il nie l’existence de classes et
singulièrement de la bourgeoisie”, observa Sartre em 1947. O romântico revela-se como burguês justamente
por sua fobia ao burguês, pois pensando ver o burguês por toda a parte, torna-se cego para a burguesia como
classe e, mais ainda, como classe exploradora”. OEHLER, Dolf.
Quadros Parisienses: Estética Antiburguesa
1830-1848
, 12.
53
Emerson ignora o romance como forma literária adequada à expressão de sua sociedade,
pois sua “maneira de tratar as ideologias
60
simplesmente não parecia necessária ao
entendimento do contexto social norte-americano. Essa posição de Emerson justifica a si
mesma no quadro republicano que impõe às formas poéticas: a “república da beleza”, que
tem no letrado-poeta seu representante, transforma a síntese entre sujeito e natureza, própria
da poesia européia, na necessidade de consenso que configura a razão da federação formada
em proteção ao comércio e à propriedade; nesse sentido, “nós” é a sociedade de
representantes e representados, que em nome do bem comum (a beleza e a natureza)
consentem na divisão social de funções, sendo a do letrado-poeta a de representar aqueles
que não tem propriedade (domínio das leis do pensamento) e concedem a palavra aos que,
cientes de seus deveres, podem alcançar a verdade de “todos” (“nossa verdade”) melhor do
que cada indivíduo entregue a sua própria sorte e risco. Como “teoria patrimonialista” da
literatura, a filosofia de Emerson compõe a reação literária mais elaborada ao avanço
daquela “democracia de toscos” que ele próprio lamentava em fins da década de 1830
(quando, diga-se de passagem, os traços gerais dessa teoria já estavam lançados) por não
dizer respeito ao mundo de representantes e representados que pensava e reforçava, e sim à
divisão do trabalho, que abria as portas da América ao mundo moderno. Nesse sentido, a
elaboração das bases da poesia norte-americana é pré-moderna.
Contudo, nosso problema não está em detectar esse anacronismo, que em Emerson
assume a difícil função reformadora. A questão, sim, é de atentar ao que Emerson está
deixando a seu “discípulo”, a saber: a possibilidade de enfrentar diretamente as tensões
sociais – essas de todo proscritas na poesia de Emerson, para quem a beleza é matéria
pública filtrada pela representação – a partir da forma poética, que Whitman irá submeter à
formação de contradições de classe próprias à ordem industrial capitalista. Não é por menos
que Ezra Pound, “talhando” o grande tronco cortado por Whitman, definiu a poesia de
Leaves of Grass como a “histoire morale do XIX norte-americano”.
61
Fazendo eco (não
60
SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas, 36.
61
“Os erros de Whitman são superficiais; ele dá bem uma imagem de seu tempo: escreveu história moral,
assim como Montaigne escreveu a história de sua própria época. Pode-se aprender mais acerca dos Estados
Unidos do século XIX com Whitman do que com qualquer um dos escritores que ou se abstiveram de
perceber, ou limitaram seu registro ao que lhes haviam ensinado era expressão literária conveniente”.
POUND, Ezra. O ABC da Literatura, 150. A citação de “história moral” em francês, atrinuída a Pound, está
54
sabemos se consciente ou não) ao comentário de Engels sobre as novelas de Balzac, “de
que seria possível aprender com elas muito mais sobre a história da França no período de
1815 a 1848 do que com todos os historiadores burgueses e pequeno-burgueses da
época”,
62
a opinião de Pound não pode ser meramente atribuída a seu julgamento negativo
do verso de Whitman (muito embora seja esse o contexto da afirmação em seu ABC da
Literatura), senão enquanto as formas “pouco buriladas” de Leaves of Grass sejam
elaboradas a partir da necessidade de se configurar uma poesia condizente com tal
responsabilidade, a de fazer o verso comportar a tensão ideológica de que a poesia
européia estava destituída num sentido muito semelhante ao que leva Whitman, em
caminho inverso, a deslegitimar o romance em seu “Prefácio”:
Great genius and people of these states must never be demeaned to romances. As
soon as histories are properly told there is no more need of romances.
63
Do mesmo que a poesia romântica européia, tributária da figura do “artista ideal”,
permanecia “à margem” dos conflitos sociais, o romancista norte-americano era condenado
a ser suprimido pela poeta, que reivindicava o avanço “por todas as interposições e
máscaras e conflitos e estratagemas” em direção aos “primeiros princípios”, “dissolvendo a
pobreza de sua necessidade e os ricos de sua vaidade”.
64
Para que esses “primeiros
princípios”, ligados à Natureza enquanto negação de todo artifício, sejam alcaçados, é
preciso que todos os conflitos inerentes à forma romanesca sejam superadas pela e na
forma poética. Assim, à medida que Whitman, “uma da massa” de toscos e criminosos
abominada por aqueles resenhistas cavalheiros, toma para si as bases políticas da poética de
Emerson (“representatividade” do bardo e a América “consensual”), coloca-se a construção
poética da República em choque direto com a nova ordem social, que reivindica a
em MATTHIESSEN, F. O..
American Renaissance: Art and Expression in the Age of Emerson and Whitman
.
Já a referência ao “tronco talhado” por Pound está em seu poemaA Pact”.
62
OEHLER, Dolf. Op.Cit., 14.
63
O grande gênio e o povo destes estados nunca deve ser tratado por romances. Tão logo as histórias sejam
propriamente contadas não haverá mais necessidade de romances”. WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass
1855
”. Em
Poetry and Prose
, 19.
64
WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 18-19.
55
Democracia enquanto caminha a passos largos para formação moderna – não comercial,
mas industrial – das classes e da exploração. Esta é a base contraditória dos problemas da
primeira poesia de Leaves of Grass (1855-1856). A tentativa de Whitman de fazer frente a
essa tensão, veremos, levará sua arte poética a completa dissolução.
A adequação problemática do princípio de representação emersoniano às tensões
que configuram a luta de classes e as reivindicações democráticas, é o assunto de nosso
próximo capítulo, que analisa o poema que se forma dessa primeira tentativa de solução do
problema, o futuro “Song of Myself”.
56
SEGUNDO CAPÍTULO
E PLURIBUS UNUM: OS PARADOXOS DA FORMA EM 1855
1
“Stop this day and night and you shall possess the origin of all poems
(“Leaves of Grass 1855”)
Como bem diz Paul Zweig, o que veio a ser chamado “Prefácio de 1855” na
compilação final de Whitman surgiu não como “prosa apressada”,
65
supostamente escrita
ao som das prensas, mas como uma espécie de manifesto sobre os deveres do poeta e as
qualidades de sua poesia, assuntos que, problematizados pelo trabalho propriamente
poético, passariam à prova nos próprios poemas da edição. Assim, ao sentenciar o destino
do maior poeta (“a prova de um poeta é que seu país o absorva tão afetuosamente quanto
ele o absorveu”), o orador que abre o livro de modo impessoal deixa seu “púlpito
imaginário” para que ele, o próprio “poeta Americano”, suba e inicie sua “fala”:
I celebrate myself,
And what I assume you shall assume,
For every atom belonging to me as good belongs to you.
66
Aqui escutamos, pela primeira vez, a voz do poeta aclamado nas páginas do
prefácio. A impressão sonora e o registro pessoal, impostos pelos versos iniciais, não são
pouca coisa. Como estivéssemos diante do “maior poeta” em ação, somos levados a um
novo registro da palavra poética, que de início é destituída das quantidades métricas
regulares e tradicionais em favor da oralidade, predominando o ritmo da fala (discutiremos
65
“O prefácio é o trabalho em prosa de maior força de Whitman. Junto com ‘A Décima Oitava Presidência’ e
o ensaio sobre linguagem chamado
Uma Cartilha Americana
forma o corpo inicial da prosa de Whitman.”
ZWEIG, Paul. Walt Whitman. A Formação do Poeta, 247.
66
“Eu celebro a mim mesmo / E o que eu assumo você tem de assumir / Por todo átomo que pertence a mim tanto quanto a você”.
WHITMAN, Walt.Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 27. As traduções dos poemas são nossas; quando houve dúvidas (e
não foram poucas), buscamos soluções no cotejo das ótimas traduções de André Cardoso, Geir Campos, José Agostinho Baptista e
Rodrigo Garcia Lopes (cf. Bibliografia;Seção A). Para efeito de consulta do original, também indicaremos a passagem na edição de
1891-1892. Fique, no entanto, a ressalva de que pontuação e passagens foram alteradas pelo autor ao longo dos anos. Cf. WHITMAN,
Walt.Song of Myself, 1”. Em Poetry and Prose, 188.
57
esse ponto mais adiante) em reforço à “presença” não somente do poeta, como do leitor
ou “público” –, convocado a “assumir” tudo o que será dito a seguir por questões de
natureza e igualdade.
Nesse “púlpito imaginário”, o poeta passa a descrever suas reações ao mundo:
“vadiando” e “convidando sua alma”, ele “se curva” para “observar uma lâmina de grama”
e passa à descrição sucinta de interiores, “casas e salões”, cujos perfumes adoráveis, porém
intoxicantes, o afastarão para seu encontro com a “fragrância inodora” da atmosfera de um
bosque onde, “sem disfarces e nu”, o sujeito, “louco para entrar em contato” consigo
mesmo, vê-se em comunhão com o ambiente, como se natureza e homem integrassem um
único corpo:
The smoke of my own breath,
Echos, ripples, and the buzzed whispers . . . . loveroot, silkthread, crotch and
vine,
My respiration and inspiration . . . . the beating of my heart . . . . the passing of
blood and air through my lungs,
The sniff of green leaves and dry leaves, and of the shore and darkcolored sea-
rocks, and of hay in the barn,
The sound of the belched words of my voice . . . . words loosed to the eddies of
the wind,
(...)
67
A qualidade rítmica da seqüência está inteiramente ligada aos encadeamentos
internos – em que os elementos descritos se justapõem –, e externos, formados pela
alternância do que é do corpo (a respiração, a voz) e do bosque (raízes, plantas, o cheiro das
folhas) até que palavra e vento tornem-se um só. A comunhão com o bosque e a nudez do
homem em natureza só se deixam quebrar pelo retorno à ordem intoxicante e urbana, aqui
67
O vapor da minha própria respiração, / Ecos, murmúrios, suspiros e zumbidos . . . . raiz-do-amor, fios-de-
seda, forquilha e vinha, / Minha expiração e inspiração. . . . a batida do meu coração . . . . . a passagem do
sangue e do ar pelos meus pulmões, / O cheiro das folhas verdes e das folhas secas, e da praia e das pedras do
mar escurecidas e do feno no celeiro, / O som das palavras que jorram da minha voz. . . . . .palavras lançadas
nos redemoinhos do vento (...).” WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose,
27.
Cf.
WHITMAN, Walt. “
Song of Myself
, 2”. Em
Poetry and Prose
, 189.
58
representada, de modo irônico, pela figura do leitor, que transformaria o bosque em acres
de terra, palavras em escrita e poemas em meros significados passivos de decodificação:
Have you reckoned a thousand acres much? Have you reckoned the earth much?
Have you practised so long to learn to read?
Have you felt proud to get at the meaning of the poems?
68
É a esses “disfarces” de civilidade, “perfumes” de pronto evitados, que o poeta
contrapõe a razão de sua presença, motivo maior do poema:
Stop this day and night with me and you shall possess the origin of all poems,
You shall possess the good of the earth and sun . . . . there are millions of suns
left,
You shall no longer take things at second or third hand . . . . nor look through the
eyes of the dead . . . . nor feed on the spectres in books,
You shall not read through my eyes either, nor take things from me,
You shall listen to all sides and filter then from yourself
.
69
Nas perspectivas assumidas em relação à natureza e à civilidade encontraremos a
tensão inaugural do poema, um conflito que, veremos, o poeta trata de desatar. O assunto
do poema, tal como nos é proposto, é a “origem de todos os poemas”, que recuperando a
figura do poeta sem disfarces, bem como sua preterição de uma ordem artificialmente
racionalizada, a “vadiagem” (loafe) do poeta se opõe, como já vimos, ao trabalho – embora
68
“Quantos acres você já contou? Quanto da Terra você já contou? / Você já treinou muito para aprender a
ler? / Você já se sentiu muito orgulhoso de chegar ao significado de poemas?” WHITMAN, Walt. “
Leaves of
Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose,
28.
Cf. WHITMAN, Walt. “
Song of Myself
, 2”. Em
Poetry and Prose
,
189.
69
“Fique comigo esta manhã e esta noite e você vai ter a origem de todos os poemas, / Você vai possuir o
bem da terra e do sol. . . . . há uma infinidade de sóis restantes, / Você não vai mais pegar as coisas de
Segunda ou terceira mão . . . . nem olhar através dos olhos dos mortos. . . . . nem se alimentar de espectros dos
livros, / Você não vai olhar também pelos meus olhos, nem tomar as coisas de mim, / Você vai ouvir todos os
lados e filtrá-los por você mesmo.” WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 28. Cf.
WHITMAN, Walt. “
Song of Myself
, 2”. Em
Poetry and Prose
, 189-190.
59
não à ordem do trabalho, dos artifícios e dos perfumes tóxicos – nos leva ao conflito com
uma civilidade formada por protocolos, medidas exatas e convenções indiretamente
atribuídas a alguém (“you”) que, leitor do poema, vê seu suposto modo de vida negado em
nome de uma experiência original, primeva, que deverá ser por ele assumida. Como vimos
na discussão do prefácio, a natureza que dá ensejo aos modos de um “homem sem
disfarces” nos remete aos ideais de uma democracia idílica, medida real e verdadeira da
civilidade; assim, não lemos aqui a proposta de um mero retorno ao bucólico, mas da
reforma da cidade, entendida como locus do interlocutor e de onde o poeta se afasta para
recuperar e expressar uma verdade primordial. Como problema literário, esse “retorno
urbano” à natureza e sua devida contrapartida política demonstram-se prolíficos na
literatura norte-americana do período. Outro discípulo de Emerson, Thoreau, faz de seu
retiro às margens do lago Walden o relato de um cidadão que busca na natureza as
verdadeiras medidas da civilidade:
Finding that my fellow-citizens were not likely to offer me any room in the
courthouse, or any curacy or living anywhere else, but I must shift for myself, I
turned my face more exclusively than ever to the woods, where I was better
known. I determined to go into business at once, and not wait to acquire the usual
capital, using such slender means as I had already got. My purpose in going to
Walden Pond was not to live cheaply not to live dearly there, but to transact some
private business with the fewest obstacles; to be hindered from accomplishing
which for want of a little common sense. A little enterprise and business talent,
apperead not so sad as foolish.
70
A defesa do indivíduo e de seu direito à produção de bens e seu comércio sem
interferências do Estado está no cerne do retorno de Thoreau a uma natureza em que alguns
70
“Verificando que meus concidadãos não pareciam dispostos a me oferecer qualquer lugar no tribunal ou
qualquer cargo, restando-me viver por mim mesmo, voltei-me com mais exclusividade que nunca para os
bosques, onde era mais bem conhecido. Resolvi começar a trabalhar imediatamente, sem esperar adquirir o
capital costumeiro, usando apenas os parcos meios que já tinha obtido. Meu propósito, ao ir para o Lago
Walden, não era viver com ou sem custos, mas executar alguns negócios privados com um mínimo de
obstáculos; ser impedido de realizá-los por falta de um pouco de senso comum, de um pouco de iniciativa e
60
de seus “concidadãos”, como George Ripley, criador da comunidade de Brook Farm, e
Orestes Brownson, um dos grandes críticos do capitalismo norte-americano, anteviam a
possibilidade de uma experiência comunal em crítica aos abusos de um sistema que,
“fragmentando” a sociedade (para usar aqui um termo de Emerson), reduzia o homem à
“nona parte”
71
de si. “Onde termina essa divisão do trabalho? E a que objetivo ela
finalmente serve? Não tenho dúvida de que outra pessoa possa pensar por mim; mas não
seria desejável que ele pudesse fazê-lo de modo que excluísse meu próprio pensamento”
72
:
com essas palavras, Thoreau dá uma boa medida da crítica à industrialização e à exploração
do homem pelo homem que embasava as melhores páginas do chamado
Transcendentalismo da Nova Inglaterra, cuja face política foi um tanto quanto obliterada
pela crítica norte-americana ao longo do século XX. É nesse debate, em que política,
filosofia, economia e literatura encontram terreno fértil para o diálogo, que Whitman
propõe a seu interlocutor a busca de uma “origem”, segundo a qual a poesia se legitima não
como forma de reiterar uma ordem de convenções, medida por acres ou pela informação
diluída e morta, mas enquanto meio e verdade para a formação do indivíduo livre,
propriamente democrático, cuja autoridade – isto é, seu poder de autorepresentação – reside
em “si próprio”. Eis as linhas que podemos depreender do “exórdio” do poema. A seguir,
veremos que a franqueza da proposta, bem como a oposição clara entre natureza e
civilização, trazem consigo conflitos e incongruências um pouco mais acalorados.
A constituição dessa individualidade em relação à natureza é o primeiro assunto do
poema e se desenvolve por demonstração. A exposição de si, mediante ação seguida de
comentário, fornece ao interlocutor um exemplo de articulação de sua própria experiência
em relação ao que é essencial e verdadeiro. Desse modo, o poeta prossegue com a
expiação da vida urbana, cujas “últimas notícias . . . . descobertas, invenções, sociedades . .
de talento para os negócios parecia menos triste do que tolo.” THOREAU, Henry David. “Walden”. In
BODE, Carl (ed.) The Portable Thoreau, 274-275.
71
THOREAU, Henry David. “Walden”. In BODE, Carl (ed.). The Portable Thoreau, 310.
72
Where is this division of labor to end? And what object does it finally serve? No doubt another may also
think for me; but it is not desirable that he should do so to the exclusion of my thinking for myself.
THOREAU, Henry David. “Walden”. In BODE, Carl (ed.)
The Portable Thoreau
, 310.
61
. . autores novos e velhos”, bem como “jantares, roupas, associações, negócios,
complementos, deveres”, dizem somente aquilo que “não é Eu mesmo
73
:
Apart from the pulling and hauling stands what I am,
Stands amused, complacent, compassionating, idle, unitary,
Looks down, is erect, bends and arm or an impalpable certain rest,
Looks with its sidecurved head curious what will come next,
Both in and out of the game, and watching and wondering at it.
Backward I see in my own days where I sweated through fog with linguists and
contenders,
I have no mockings or arguments . . . . I witness and wait.
74
Aqui a experiência urbana exige uma postura crítica. “Dentro e fora do jogo,
assistindo e refletindo”, Whitman nunca perde de vista o ponto de onde se afasta: é a
“névoa” da condução falsa e materialista da vida, própria da experiência urbana, que leva o
poeta à comunhão com uma natureza verdadeira, na qual está a pureza ainda plausível de
uma origem. Em outras ocasiões, como o nono poema de 1855 – posteriormente chamado
A Boston Ballad (1854)” – o “testemunho” dos acontecimentos e a “espera” de seu
desenrolar são propostos pelo homem cínico e descrente da república que desfila sua
tirania:
73
Trippers and askers surround me, / People I meet . . . . the effect upon me of my early life . . . . or the ward
and city I live in . . . . of the nation, / The latest news . . . . discoveries, inventions, societies . . . . authors old
and new, / My dinner, dress, associates, looks, business, compliments, dues, / The real or fancied indifference
of some man or woman I love, / The sickness of one of my folks – or of myself . . . . or ill doings . . . . or loss or
lack of money . . . . or depressions or exaltations, / They come to me days and nights and go from me again, /
But they are not the Me myself
. WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 29-30. Cf.
Song of Myself, 4”, 191-192.
74
“Longe dos lugares apertados e tumultuados está o que sou,/ Está pensativo, complacente, cheio de
compaixão, preguiça, unitário, / Olha para baixo, está ereto, curva o braço sobre um impalpável certo resto, /
Olha de soslaio curioso para saber o que vem depois, / Ambos dentro e fora do jogo, assistindo e refletindo ao
mesmo tempo.” WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 30. Cf. “
Song of Myself
,
4”, 192.
62
Clear the way there Jonathan!
Way for the president’s marshal! Way for the government Cannon!
Way for the federal foot and draggons . . . . and the phantoms afterward.
I rose this morning to get betimes in Boston town;
Here’s a good place at the corner . . . . I must stand and see the show.
75
Falta aA Boston Ballad (1854)”, um dos dois poemas de Leaves of Grass escritos e
publicados antes de 1855, justamente aquilo que, neste primeiro poema, completa o caráter
crítico do sujeito poético. A “gozação e os argumentos” que o poeta de Whitman diz não ter
em 1855 serão fundamentais para o desenvolvimento da “balada”, cujo contexto (de difícil
identificação no poema) é a decisão federal de fazer valer a “Lei do Escravo Fugitivo”
76
no
caso de Anthony Burns, negro fugido da Virgínia que é capturado em Massachussetts e
conduzido por tropas federais ao cativeiro. Nesse poema, o desfile das tropas, que exibindo
armas e uniformes servem de índice da tirania do governo federal, é acompanhado de perto
pelos fantasmas da Guerra de Independência, que tratados com displicência e cinismo pelo
poeta, retornam a seus túmulos sem ouvir a recomendação feita ao Major das tropas, a de
que o governo deveria promover um novo desfile com as ossadas do rei Jorge da Inglaterra,
como se a Revolução (fim da tirania britânica sobre a América) jamais tivesse ocorrido.
Já no primeiro poema de 1855 (o futuro “Song of Myself”), o poeta deixará de lado o
cinismo urbano – também ele “intoxicante” – em nome do reconhecimento de sua própria
Alma:
I believe in you my soul . . . . the other I am must not abase itself to you,
And you must not be abased to the other.
75
“Ei Zezinho, abre caminho! / Abre caminho para a delegação do Presidente! Abre caminho para o canhão
do governo! / Caminho também para a infantaria, para a cavalaria armada. . . . e para os fantasmas que vêm
atrás. // Hoje acordei cedinho para chegar o mais rápido possível na cidade de Boston;/ Aqui na esquina tem
um bom lugar . . . . agora eu paro e assisto ao espetáculo”. WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em
Poetry and Prose, 135. Cf. “A Boston Ballad (1854)”, 404.
76
A Lei do Escravo Fugitivo, de 1850, declarava que todo o negro escravo do Sul que ultrapasse em fuga a
fronteira da escravidão deveria ser preso por autoridades e conduzido de volta ao cativeiro. Cf. REYNOLDS,
David.
Op.Cit.
, 137-138.
63
Loafe with me on the grass . . . . loose the stop from your throat,
Not words, not music or rhyme I want . . . . not custom or lecture, not even the
best,
Only the lull I like, the hum of your valved voice.
77
A comunhão desse indivíduo urbano (o “outro que sou”) com a Alma e o
reconhecimento de si compõem o momento central da formação do sujeito. Como fica claro
pelo encontro “em uma manhã transparente de Verão”, a união do indivíduo com a alma,
em que os modos líricos e o simbolismo do encontro amoroso reforçam o distanciamento
do poeta frente à cidade, dá ensejo à revelação da verdade e da completude de um mundo
ainda sujeita ao indivíduo apartado da sociedade, cujas relações não permitiriam a liberdade
e a universalidade encontrada na solidão do poeta em natureza:
Swiftly arose and spread around me the peace and knowledge that pass all the
argument of the earth,
And I know that the hand of God is the promise of my own,
And I know that the spirit of God is the brother of my own,
And that all the men ever born are also my brothers, and the women my sisters
and lovers,
And that a kelson of the creation is love,
And limitless are leaves stiff or drooping in the fields,
And brown ants in the little wells beneath them,
And mossy scabs of the worm fenced heap'd stones, elder, mullein and poke-
weed.
78
77
“Eu acredito em você, minha alma. . . . o outro que sou não deve cair diante de você, nem você deve cair
diante dele. // Vem folgar comigo na grama . . . . afrouxa o nó da garganta, / Não quero rimas, nem musica ou
palavras. . . . nem costumes nem lição, nem o melhor, / Apenas o acalanto, o murmúrio de sua voz
aveludada.” WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose,
30.
Cf. WHITMAN, Walt.
Song of Myself, 5”. Em Poetry and Prose, 192.
78
“Rapidamente surgiu e se estendeu ao meu redor a paz e o prazer e o conhecimento que perpassa todo
argumento e todo o conhecimento da terra / E eu sei que a mão de Deus é minha mão mais velha / E eu sei
que o espírito de Deus é meu espírito mais velho / E que todos os homens que nasceram são também meus
irmãos . . . . e as mulheres minhas irmãs e amantes, / E que uma quilha da criação é o amor; / E que ilimitadas
são as folhas que secam ou caem nos campos / E as formigas marrons nos buraquinhos por debaixo delas / E
64
Aproveitando a deixa de James E. Miller Jr., que define o poema como
“representação dramática de uma experiência mística”,
79
já nos cabe uma primeira tentativa
de mostrar o fio condutor da experiência subjetiva tal como Whitman nos apresenta no
início deste poema. Expressão da “origem”, o êxtase religioso não se dissocia de uma
conduta social marcada pela resistência do indivíduo ao abafamento do meio urbano, bem
como por sua busca de conhecimento e formação, encontrada junto à natureza, tendo por
horizonte a completude de si e a reforma do todo, do qual participa o leitor (“stop this day
and night with me”), para quem o poeta ainda é exemplo de conduta pública. Dessa forma,
a experiência mística de Whitman só ganha sentido, expressão e verdade enquanto retorna
à coletividade (de onde o “drama” na análise de Miller Jr.). Não à toa, a conclusão deste
momento do poema introduz “a grama” e a tentativa de compreensão de seu significado:
A child said, What is the grass? fetching it to me with full hands;
How could I answer the child? . . . . I do not know what it is any more than he.
80
A “grama” que dá nome ao volume (ou as tradicionais “relva” ou “erva” das
traduções de língua portuguesa
81
), não se apresenta à experiência íntima e isolada de um
indivíduo em êxtase, mas advém, como tema, da oportunidade que o poeta tem de
as crostas de limo na cerca apodrecida e as pedras empilhadas e as flores silvestres, o musgo e o espinheiro.”
WHITMAN, Walt.
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose,
30-31.
Cf. WHITMAN, Walt. “
Song of
Myself
, 5”. Em
Poetry and Prose
, 192.
79
MILLER Jr., James E.. “‘Song of Myself as Inverted Mystical Experience”. Em MILLER Jr., James E.
(ed.).
Whitman’s “Song of Myself” – Origin, Growth, Meaning
, 134.
80
“Uma criança diz O que é a grama? trazendo-as para mim com as mãos cheias; / Como posso responder
para a criança? . . . . eu não sei mais do que ela.” WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and
Prose,
31.
Cf. WHITMAN, Walt. “
Song of Myself
, 6”. Em
Poetry and Prose
, 192.
81
Rodrigo Garcia Lopes, em sua tradução da primeira edição de Leaves of Grass (publicada em dezembro de
2005), discute a tradução do título (“Folhas de Relva”) argumentando o caráter ornamental que a grama
recebeu em nosso meio urbano. Assim, a palavra “relva”, que designa qualquer conjunto de ervas no solo,
seria mais adequada ao sentido de grass para Whitman. Cf. WHITMAN, Walt. A Primeira Edição (1855) de
Folhas de Relva: Tradução e posfácio de Rodrigo Garcia Lopes
, 260. Já a tradução portuguesa de José
Agostinho Baptista (seleção de 2003) opta por
Folhas de Erva
.
65
responder à dúvida de uma criança, que representando uma ação cotidiana, a princípio
inexpressiva e inconseqüente, traz um forte contraste àquele momento de revelação. Após o
contato com a verdade íntima do mundo, o poeta joga com possíveis respostas. “Bandeira
de minha disposição, que tremula o verde da esperança”, “lenço de Deus”, que “cai de
propósito” para que alguém leia as iniciais bordadas e pergunte “de quem é?” ou “a própria
criança”, “bebê produzido da vegetação” – todas essas respostas trazem o tom da
brincadeira infantil e abrem caminho para que o poeta mude de registro e fale em tom geral,
como encerrasse a fala da criança em um episódio e dirigisse suas reflexões ao interlocutor:
Or I guess it is a uniform hieroglyphic,
And it means, Sprouting alike in broad zones and narrow zones,
Growing among black folks as among white,
Kanuck, Tuckahoe, Congressman, Cuff, I give them the same, I receive them the
same.
82
A verdade igualitária da natureza a ser contemplada pela poesia está toda expressa
nesta passagem. Estendendo-se em regiões amplas e estreitas, entre brancos, negros,
canadenses e peles-vermelhas, bem como pelos extremos da esfera pública norte-americana
(congressistas e imigrantes), a grama será não apenas símbolo revelado da igualdade, mas
também da unidade e visibilidade natural de absolutamente tudo que existe, totalidade
diante da qual o poeta indistintamente “dá e recebe”. Igualando e incluindo em seu poema
indivíduos de uma sociedade desigual e segregatória, a Natureza aqui se revela
contestatória e, à medida que abarca a verdade do mundo, legitima o distanciamento do
indivíduo que, apartado da sociedade, busca o conhecimento de si e do mundo. “Ó eu
percebo depois de tudo que são muitas línguas falantes!
83
: a identificação das folhas da
82
“Ou acho que é um hieróglifo uniforme, / E ele significa, estendendo do mesmo modo em amplas e estreitas
regiões, / Crescendo entre negros do mesmo modo que entre brancos, / Canadense, Pele-Vermelha,
Congressista, Imigrante, eu lhes dou o mesmo, e recebo deles o mesmo”. WHITMAN, Walt. “Leaves of
Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 31. Cf. WHITMAN, Walt. “Song of Myself, 6”. Em Poetry and Prose,
193.
83
O I perceive after all so many uttering tongues! WHITMAN, Walt.Leaves of Grass 1855”. Em Poetry
and Prose,
32.
Cf. WHITMAN, Walt.
Song of Myself
, 6”. Em
Poetry and Prose
, 193.
66
grama com a língua (“tongue”), tanto índice de opinião e individualidade como de
compromisso e coletividade, encerra as tentativas de entendimento da grama e, com elas, o
trânsito isolado do poeta pela natureza.
Antes que o poeta expresse seu desejo de “traduzir os fragmentos sobre os mortos”
ou de “se fundir” com o mundo (passagens seguintes), a “palavra revelada” de Whitman
pede ainda atenção quanto a seus modos de expressão, inteiramente identificados com
aquela Natureza. Lembrando o prefácio, “a rima e uniformidade dos poemas perfeitos
mostram o livre crescimento das leis métricas e brotam delas tão desprovidas de erro e
livres como lilases ou rosas em um arbusto”
84
. Entretanto, do mesmo modo que o poeta se
afasta da sociedade e encontra a natureza para fazer seu conhecimento retornar àquela
segundo um desejo de reforma, a expressão poética até aqui observada não será mero
desenvolvimento do que se convencionou chamar “princípio orgânico” mediante a teoria do
poeta inglês Samuel Coleridge, que contrapunha as formas naturais da arte às mecânicas e
artificiais do trabalho:
The form is mechanic, when on any given material we impress a pre-determined
form, not necessarily arising out of the proprieties of the material; - as when to a
mass of wet clay we give whatever shape we wish it to retain when hardened. The
organic form, on the other hand, is innate; it shapes, as it develops, itself from
within, and the fulness of its development is one and the same with the perfection
of its outward form. Such as life is, such is the form. Nature, the prime genial
artist, inexhaustible in diverse powers, is equally inexhaustible in forms
...
85
Como vimos no poema, a distinção entre natureza e civilização não compreende um
antagonismo intransponível, mas o desejo expresso de síntese, à qual o “artista genial” de
84
WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 11.
85
“A forma é mecânica, quando em qualquer material dado nós imprimimos uma forma não necessariamente
surgida das propriedades do material; - como quando a uma massa de barro úmido nós damos qualquer forma
que desejemos que se fixe quando endurecida. A forma orgânica, por outro lado, é inata; forma-se, como se
desenvolve, de dentro, e a completude de seu desenvolvimento é uma e a mesma em relação à perfeição de
suas formas exteriores. Como a vida, a forma. A Natureza, a primeira artista genial, inexaurível em diversos
poderes, é igualmente inexaurível em formas . . .”. Citado por MATTHIESSEN, F. O.. “IV.
The Organic
Principle
”. Em
American Renaissance: Art and Expression in the Age of Emerson and Whitman
, 133-134.
67
Coleridge não dá margem. Assim, incorreríamos em erro caso partíssemos de uma
concepção meramente “natural” do verso, a qual F. O. Matthiessen (responsável pela
recuperação de Coleridge e do “princípio orgânico” no que toca à análise da literatura
Transcendentalista norte-americana) deu crivo enquanto julgava “sem forma” (“formless”)
a poesia de Whitman, colocando em prática os critérios “artesanais” que ocupavam a mente
dos críticos eliotianos. O tratamento formalista da poesia de Leaves of Grass tira do
horizonte analítico justamente o desejo de síntese, que nos termos da arte poética de
Whitman se traduz por uma espécie de “reforma dos ouvidos”, que visa retirar a palavra do
poder de estruturas métricas tradicionais (“pré-concebidas”) do mesmo modo com que a
terra, no início do poema, é destituída de medidas ou os poemas de significados
decodificáveis. Em outras palavras: o “princípio orgânico” não pode ser separado do
ímpeto social da poesia.
A primeira qualidade do verso que temos lido até aqui nos remete àquela “espécie
de prosa empolgada, quebrada em versos sem adequação alguma à mesura ou à
regularidade”, lembrando aqui Charles Eliot Norton. De fato, a leitura atenta nos permitiria
dizer que não há diferença significativa entre os versos do poeta e a prosa que abre o
volume: contando a estranha pontuação do prefácio, que especifica níveis de pausa
completamente avessos às convenções escritas, os poemas ainda mantêm a mesma sintaxe
afrouxada e o mesmo ritmo de encadeamentos e justaposições, somados à absoluta
destituição das estruturas métricas. Firme no propósito de evitar rimas e ritmos tradicionais
em nome da “nova expressão americana”, o poeta ainda causa desconcerto aos que
pretendem investigar suas técnicas de versificação, como não ocorresse a esses estudiosos
que sua própria ciência está pressuposta na “perdição” a que estão entregues os que se
preocupam com “ornamentos e fluência”.
86
Atentos às qualidades a um só tempo radicais e místicas que se apresentam no
indivíduo que busca o conhecimento mediante a fusão com a natureza, recuperemos o
testemunho que Whitman reserva, em seu autobiográfico November Boughs (1881), a Elias
86
Para que se tenha uma idéia das dificuldades enfrentadas pelos críticos e leitores norte-americanos,
lembremos a introdução de uma das principais análises do metro whitmaniano, a de Sculley Bradley – um dos
responsáveis pela mais importante edição das obras de Whitman, a
Comprehensive Edition
de 1966 – que em
68
Hicks, pastor quacre de grande influência na família do poeta e sobre o qual Whitman
cogitou escrever uma biografia. De um sermão de Hicks, ao qual o poeta teria assistindo
junto à sua mãe, em 1829, Whitman sublinha:
A pleading, tender, nearly agonizing conviction, and magnetic stream of natural
eloquence, before which all minds and natures, all emotions, high or low, gentle
or simple, yielded entirely without exception, was its cause, method, and effect.
Many, very many were in tears. Years afterward in Boston, I heard Father
Taylor, the sailor’s preacher, and found in his passionate unstudied oratory the
resemblance to Elias Hicks’s—not argumentative or intellectual, but so
penetratingso different from anything in the books(different as the fresh air
of a May morning or sea-shore breeze from the atmosphere of a perfumer’s
shop.) While he goes on he falls into the nasality and sing-song tone sometimes
heard in such meetings; but in a moment or two more, as if recollecting himself,
he breaks off, stops, and resumes in a natural tone. This occurs three or four
times during the talk of the evening, till all concludes.
87
Sem preocupação com a veracidade do testemunho, o que nos chama a atenção
nesta passagem é a relação entre a retórica do pastor e a poesia de Whitman. Valendo-se da
mesma distinção entre “ar fresco” e “perfumes”, Whitman rememora a “eloqüência natural”
do pastor em relação ao que, no poema, é o fim dos “disfarces” e a “nudez” com que
caminha diante do leitor, como se pretendesse assumir o mesmo “fluxo magnético” e a
mesma “penetração” incontestável, diante dos quais cederiam todas as mentes e naturezas.
seu “
The Fundamental Metrical Principle in Whitman’s Poetry
”, de 1939, tentava “obter uma racionalidade
no verso de Whitman” de modo a “aumentar enormemente o valor de Whitman para seus leitores”.
87
“Uma convicção advogada, terna, próxima da agonia, e um fluxo magnético de eloqüência natural, diante
da qual todas as mentes e naturezas, todas as emoções, elevadas ou baixas, gentis ou simples, cediam
inteiramente sem exceção, eram sua causa, seu método e efeito. Muitos, muitos mesmo iam às lágrimas. Anos
depois em Boston, eu ouvi Pai Taylor, o pregador dos marinheiros, e encontrei em sua oratória rude e
apaixonada a semelhança com a de Elias Hicks – não argumentativa ou intelectual, mas tão penetrante, tão
diferente de qualquer coisa nos livros – (diferente como o ar fresco de uma manhã de Maio ou a brisa
marítima da atmosfera são de uma loja de perfumes). Enquanto seguia ele caía na nasalidade e nas melodias
às vezes ouvidas em tais encontros; mas em um momento ou dois, como se recompusesse, ele impunha a
quebra, parava e retornava em um tom natural. Isto ocorre três ou quatro vezes durante a fala da noite, até que
tudo se conclui”. WHITMAN, Walt. “
Elias Hicks
”. Em WHITMAN, Walt.
Op.Cit
., 1258.
69
O poema também obedece à mesma cadência e contraste que supomos nas “melodias”
entrecortadas pelo “tom natural”, cujo conjunto oratório, para continuar com o testemunho,
clama “algo inominável para além da oratória”, “emanando do coração de Hicks para o
coração da audiência
88
do mesmo modo com que Whitman guia seu interlocutor à “origem
de todos os poemas”. É evidente que o entendimento da retórica de Hicks passa pelo filtro
do princípio orgânico, como se vê pelos símiles naturais e pela consciência de uma forma
regida pela emoção e pelo espírito; contudo, interessa a nós a possibilidade de se atribuir à
poesia as mesmas qualidades do discurso prosaico. É na transposição de marcas da
exposição oratória à estrutura poética que encontraremos um desenvolvimento importante
da poesia de Whitman, “incomparável sermão” segundo Thoreau
89
, um de seus primeiros
entusiastas.
Como a natureza, que até aqui envolve liberdade política e experiência mística, o
sermão oferecerá ao poeta não apenas a liberdade rítmica como o alcance social de um
gênero que, embora menor dentro do esquadro literário romântico, contava com sólida
tradição em solo americano, fosse em sua vertente propriamente religiosa, fosse como parte
da prática política. Embora estivesse bastante preocupado com o valor do craftsmanship,
próprio da época, Matthiessen relacionou com bastante propriedade as preocupações
estéticas do rhythmic verse de Whitman às sociais que, citando o poeta, impunham o
afastamento das formas métricas clássicas, impróprias para “os grandes temas modernos, a
ampliação da experiência das pessoas, o avanço da ciência, os novos fatos da indústria”
90
.
No que toca à leitura da primeira edição de Leaves of Grass, o sermão oferece o tom de
pronunciamento do prefácio e a estrutura (tese, ilustração e reiteração) em que Whitman
assenta o relato entrecortado de sua experiência mística e pública, sempre exemplar,
88
Then a word about his physical oratory, connected with the preceding. If there is, as doubtless there is, an
unnameable something behind oratory, a fund within or atmosphere without, deeper than art, deeper even
than proof, that unnameable constitutional something Elias Hicks emanated from his very heart to the hearts
of his audience, or carried with him, or probed into, and shook and arous’d in thema sympathetic germ,
probably rapport, lurking in every human eligibility, which no book, no rule, no statement has given or can
give inherent knowledge, intuitionnot even the best speech, or best put forth, but launch’d out only by
powerful human magnetism. WHITMAN, Walt. “Elias Hicks”. Em WHITMAN, Walt. Op.Cit., 1262.
89
REYNOLDS, David.
Op. Cit
., 364.
90
MATTHIESSEN, F. O..
Op.Cit.
, 580-581.
70
dirigida a alguém que se identifica com um leitor ou grupo de leitores possíveis
91
, mas que,
à força declamatória do poema, repleto de invectivas e variações de tom e pessoa, poderia
bem ser ouvinte ou auditório, ao qual se dirige aquele, de modos rudes e roupas de
trabalhador, que nos foi apresentado somente como “maior poeta”, e para quem o poema –
estamos falando do futuro “Song of Myself” – não será uma forma fechada e tradicional,
mas, ancorado pelos dois lados possíveis de um diálogo,
the limits of an agonistic arena in which the poet commands, questions, mocks,
wrestles, fondles, and instructs his reader, finally sending him or her back into
the world bearing the seeds of democratic potency.
92
A “arena” de Betsy Erkilla nos dá uma ótima perspectiva de uma das funções
impostas à oratória e ao sermão em suas incursões poéticas, que é, em 1855, a de regular as
variações de gênero e tom ao longo do poema. É nesse sentido que os questionamentos, as
lutas, o chiste, a ironia, a crônica e a lírica ganham a unidade formal no âmbito das ações de
um “homem exemplar”, para quem a formação representa um ato de assunção coletiva com
vistas à revelação de uma verdade que não cabe ao sujeito senão à medida que esse
comunga com o outro, lembrando não apenas as questões de “orgulho e compaixão” do
Prefácio como a orientação poética de absorver a tensão de cunho social que possa existir
entre as partes. O “fluxo magnético de eloqüência natural, diante da qual todas as mentes e
naturezas, todas as emoções, elevadas ou baixas, gentis ou simples, cediam inteiramente
sem exceção” é parte desse compromisso coletivo, em que cabe ao poeta, ciente de seu
dever, a moção das paixões que conduzem o outro à verdade, social e religiosa. Como
Emerson, que em seu “Discurso para a Escola da Divinidade” (1837) impõe à vida pública
do orador o “fogo do pensamento”, o poeta-orador de Whitman submete-se à verdade do
mundo para a consumação de sua autoridade pública. Lembrando a discussão do capítulo
anterior, a regulação sermonística da poesia é responsável pela identificação da
subjetividade poética, presente no percurso do poeta em busca da natureza, com a figura
91
Lembremos que a forma "you" tem seu número definido apenas pelo contexto. A dúvida entre um ou
muitos leitores já foi tema da fortuna crítica de Whitman.
92
ERKILLA, Betsy.
Op. Cit.
, 95.
71
pública, que torna a experiência isolada exemplo de conduta e matéria de instrução para o
coletivo.
Vimos como essa identificação se deu na conclusão do capítulo anterior, analisando
a responsabilidade de Emerson na elaboração de um sistema literário no qual a poesia
assumia a dianteira na configuração literária das tensões sociais, bem como de sua possível
solução. Podemos dizer que é essa abertura à expressão da sociedade, traduzida pela
necessidade de uma forma poética nova, não apenas no sentido da afirmação local, mas
também da responsibilidade que a poesia assume nesse contexto, conduzindo Whitman à
apropriação desse gênero que, da metade do XVIII ao início do XIX, encontrou-se no
centro de uma grande secularização de hábitos religiosos. Com universidades (controladas
por pastores) e congregações enviando professores e estudantes à Inglaterra e à Alemanha
para estudos de teologia e filosofia, o pensamento romântico – inclusive o literário – passou
por um filtro inusitado, que engessado nas cátedras, como se pode ver pela literatura de
poetas como Longfellow, Holmes e Lowell, todos integrantes da Academia de Harvard,
ganhou um forte campo de debates na área teológica, da qual o Transcendentalismo de
Emerson, que poderia ser descrito literariamente como o próprio Romantismo norte-
americano, é ruptura perante o Unitarismo da Nova Inglaterra, esse já dissidente das
congregações puritanas ortodoxas que, conferindo à fé e não à formação ética do indivíduo
(inovação Unitarista a ser contemplada por Emerson) o principal meio de salvação, via as
artes em sua acepção mais genérica como futilidade ou pecado.
Do debate teológico também saem transformações importantes do gênero
sermonístico. No caso de Emerson (que inicia sua carreira como pastor, substituindo o pai
na Congregação Unitarista), a transformação é sentida no próprio estilo de seus ensaios,
que antes de assumirem a palavra escrita, eram apresentados ao público na forma de
palestras, ministradas em diversos pontos do país, atividade comum entre escritores norte-
americanos e que fez o filósofo nacionalmente conhecido. Como parte da audiência de uma
dessas palestras, Whitman tomou contato, ainda em 1842, com uma versão oral de “The
Poet”, que recebeu do, àquela época, editor do Aurora uma resenha farta de elogios.
Tributário do sermão, o ensaismo de Emerson vazou importantes questões desenvolvidas
pela estética alemã e pela literatura romântica européia: a individualidade genial do artista,
característica de seu letrado-poeta; o retorno à natureza como meio de recuperar a pureza
72
frente a uma sociedade de artifícios; e, nesse sentido, a busca de formas literárias orgânicas,
que pudessem reatar a relação do homem com o universo. No entanto, como em Whitman,
todas essas questões estarão submetidas à expressão didática de valores públicos, o que
sem dúvida torna o Romantismo norte-americano bastante peculiar; afinal, reforçando aqui
a questão que já lançamos anteriormente, como relacionar uma arte formada na cisão entre
sujeito e mundo com uma sociedade coesa, em que o letrado deve tornar públicas as leis
que formam o pensamento privado? É a partir desse desajuste entre a arte romântica e a
necessidade de coesão comunitária, própria da Nova Inglaterra, que Matthiessen nota:
The attitude produced by that illumination was dominant throughout his work,
and was strong contrast to much European romanticism to the pattern of
qualities that Madame de Stäel had seen in the emerging new literature, ‘the
sorrowful sentiment of incompleteness of human destiny, melancholy, reverie,
mysticism, the sense of the enigma of life’.
93
Contrário às expectativas do Romantismo, o sentido de “completude iluminada”
animado por esse poeta que pensa a vida urbana moderna e a natureza a partir da vida
comunitária e do dever cívico manifesta-se na forma poética a partir de um elemento que,
retomando o aspecto representativo, inerente à autoridade pública do “maior poeta” do
Prefácio, remonta a uma questão teológica que forma, principalmente na Nova Inglaterra
puritana, uma verdadeira tradição de pensamento: a tipologia. Muito embora possamos
analisar o caráter tipológico da poesia de Whitman, sobretudo da figura de seu poeta, por
suas referências da literatura popular, é preciso dizer que tais elementos não dão conta da
transformação de sentimentos e ações individuais em exemplos comunitários, nem da
própria idéia de um mundo hieroglífico, do qual a maior (e mais democrática) expressão é a
“grama”. A tipologia surgiu junto aos debates sobre a incorporação das escrituras hebraicas
no novo cânone bíblico, sendo a solução segundo a qual pessoas, instituições, lugares e
acontecimentos presentes no Velho Testamento prefiguravam “antítipos” do Novo: o
93
“A atitude produzida por aquela iluminação era dominante por todo seu trabalho e estava em forte contraste
com muito do romantismo Europeu, com aquele conjunto de qualidades que Madame de Stäel havia visto na
nova literatura emergente, ‘o triste sentimento da incompletude do destino humano, melancolia, nostalgia,
misticismo, o senso do enigma da vida
’”.
MATTHIESSEN, F.O..
Op. Cit
. 540.
73
apóstolo Mateus, por exemplo, se refere a Jonas, personagem do Velho, como antítipo do
Cristo (“Pois, assim como Jonas esteve três dias e três noites na barriga da baleia; o Filho
do homem ficará três dias e três noites no coração da Terra”
94
); logo, Jonas não é mais
apenas Jonas, mas um tipo que remete à figura do Salvador. Estendida para além da
interpretação das escrituras sagradas, o princípio da tipologia se aplicou à relação entre a
história sagrada e a secular e está no centro da interpretação que identificava na Nova
Inglaterra o sítio de uma “Nova Jerusalém”, como mostra Cotton Mather, importante líder
puritano da região no XVII, em sua interpretação da chegada do Arbella (que trazia colonos
puritanos) à costa americana:
The Church of our Lord Jesus Christ, well compared unto a Ship, is now
victoriously sailing round the Globe . . . . [carrying] some thousands of
reformers into the Retirements of an American Desart [sic], on purpose that . . . .
He might there, To them first, and them By them, give a Specimen of many Good
Things, which He would have His Churches else where aspire and arise unto . . .
[This is] the HISTORY OF A NEW-ENGLISH ISRAEL . . . . to antecipate the
state of the New Jerusalem
.
95
O paralelo de Mather entre a peregrinação dos “hebreus-puritanos” em fuga do
“Egito-Inglaterra”, que atravessando o “Mar-Deserto Americano” fundaram na “Nova-
Israel Inglesa” a “Nova Jerusalém”, lugar em que se assenta, por indicação de Deus, o
“povo escolhido-colono” é um exemplo clássico do pensamento tipológico aplicado à
história secular dos puritanos na Nova Inglaterra. Mais importante, no momento, do que
essa tipologização específica do destino Americano, é a funcionalidade dos princípios
tipológicos, que aplicados à comunidade transformam toda ação individual em exemplo ou
evidência de progresso ou vício coletivo, interpretada em forma de “mensagem” que
remonta, em última instância, a uma ordem total, providencial e predestinada. O problema,
em relação a Whitman, é que essa cultura tipológica já não se encerra na religião – do
94
Citado por CRASSNOW, Ellman; HAFFENDEN, Phillip. “New Founde Land (Terra Nova)”. Em
BRADBURY, Malcolm; TEMPERLEY, Howard (org.).
Introdução aos Estudos Americanos (tradução de:
Élcio Cerqueira)
, 50.
74
mesmo modo que os Estados Unidos já não eram, à época, o “Estado-Igreja” dos puritanos
ortodoxos. Nesse sentido, a secularização da tipologia, transformada em procedimento
literário, o que se deve em parte pelo fim da ortodoxia puritana na Nova Inglaterra, torna-se
elemento dos mais importantes na poética dessa primeira poesia de Leaves of Grass:
relacionado à idéia genérica e impalpável de “caráter Americano”, o “maior poeta”,
enquanto representante, é tipo, que tanto remete ao “povo”, do qual empresta as formas,
como, diante de seu público, faz de suas ações exemplo para a conduta coletiva; ao mesmo
tempo, o coletivo, ao qual se atribui nas mínimas partes a representatividade, pode se tornar
tipo de uma esfera ideal, que recupera suas ações em relação a uma ordem superior, de
certa forma já prevista pelo próprio episódio da “grama”, “hieróglifo de Deus”, que é
interpretada como evidência da igualdade natural entre todos os homens, o que legitima a
Democracia em termos não exatamente racionais ou dialógicos, mas divinos.
Voltaremos às conseqüências da tipologia como visão de mundo mais tarde. Pois
escorada em uma identidade entre matéria e espírito, a tipologia também se associa às
formas poéticas em suas mínimas estruturas, isto é, ao verso. Em um dos textos seminais do
debate sobre o verso de Whitman, Sculley Bradley
96
retoma a natureza do verso inglês,
estruturado não pelas quantidades silábicas, mas pela simples relação entre acento e sílaba,
que na prosódia da poesia clássica inglesa ganha regularidade rítmica imprevista pela
balada popular. Entretanto, mais importante do que a justificativa da irregularidade métrica
do verso de Whitman é o que se expressa por essa irregularidade, que é a adequção do
ritmo poético à exposição da matéria, bem ao gosto do metre-making argument proposto
por Emerson em “The Poet
97
e, nesse sentido, da necessária relação tipológica entre o
verso, entendido como matéria, e o que ele refere, como se seu significado fosse o
“espírito” da palavra. Quando recuperamos um exemplo já citado, o momento de revelação
por que passa o sujeito poético após sua comunhão com a Alma,
95
Citado por BERCOVITCH, Sacvan. “The Ends of Puritan Rhetoric”. Em
The Rites of Assent:
Transformations in the Symbolic Construction of America, 68.
96
BRADLEY, Sculley. The Fundamental Metrical Principle in Whitman’s Poetry”. Em American
Literature, 49-72.
97
“For it is not metres, but a metre-making argument that makes a poem – a thought so passionate and alive
that like the spirit of a plant or an animal it has architecture of its own, and adorns nature with a new thing”.
EMERSON, Ralph Waldo. “The Poet”. “
Essays: Second Series”
.
Op.Cit.
, 323.
75
Swiftly arose and spread around me the peace and knowledge that pass all the
argument of the earth,
And I know that the hand of God is the promise of my own,
And I know that the spirit of God is the brother of my own,
And that all the men ever born are also my brothers, and the women my sisters
and lovers,
And that a kelson of the creation is love,
And limitless are leaves stiff or drooping in the fields,
And brown ants in the little wells beneath them,
And mossy scabs of the worm fenced heap'd stones, elder, mullein and poke-
weed.
98
vemos essa relação coesa e necessária entre significante e significado se estender em uma
ordem mais abrangente que, ultrapassando a organização do verso, faz com que a estrofe
mantenha-se coesa. O paralelismo nessa primeira poesia de Leaves of Grass não é um
recurso entre outros, mas seu próprio sentido rítmico, cujo verso sempre se apresenta
ligado à exposição da matéria. É o deslocamento melódico e o contraste entre períodos,
unidades de assunto, que fazem a “eloqüência natural” de Elias Hicks e levam os críticos de
Whitman a chamar seu verso de “verso periódico”, ou ainda de “período rítmico”; da
mesma forma, é a exposição coesa da matéria em sentenças, sempre pontuadas por
argumentos ou invectivas, que elimina a necessidade de rimas ou metros regulares e cria
aquilo que De Selincourt (citado por Bradley
99
) nomeou identidade de substância em
oposição à identidade de estrutura que governaria a poesia métrica tradicional.
Trata-se de uma expressão muito interessante, pois a identidade necessária entre
verso e matéria encontra paridade nos modos com que o universo poético se organiza por
98
“Rapidamente surgiu e se estendeu ao meu redor a paz e o prazer e o conhecimento que perpassa todo
argumento e todo o conhecimento da terra / E eu sei que a mão de Deus é minha mão mais velha / E eu sei
que o espírito de Deus é meu espírito mais velho / E que todos os homens que nasceram são também meus
irmãos . . . . e as mulheres minhas irmãs e amantes, / E que uma quilha da criação é o amor; / E que ilimitadas
são as folhas que secam ou caem nos campos / E as formigas marrons nos buraquinhos por debaixo delas / E
as crostas de limo na cerca apodrecida e as pedras empilhadas e as flores silvestres, o musgo e o espinheiro.”
V. nota 62.
99
BRADLEY, Sculley.
Op. Cit
., 59.
76
paralelismos, anáforas e enumerações cujo efeito maior, no âmibito do significado, é o
nivelamento dos elementos destacados da realidade, que passam, assim, a responder por um
significado unificado que os transcende, enquanto, no nível da forma, a justaposição de
sentenças cria um contínuo rítmico que, remetendo às raízes bíblicas do sermão, destitui de
suas funções a regularidade métrica tradicional em nome de uma estrutura coesiva que se
aplica a estrofes de extensão variada, marcadas ainda pelo uso sistemático de aliterações e
assonâncias que ultrapassam o próprio limite dos versos, como se lê na belíssima seqüência
de versos acima citada
And that a kelson of the creation is love,
And limitless are leaves stiff or drooping in the fields,
e que dão coesão e governo à irregularidade inerente à distribuição do acento nas sentenças.
De qualquer forma, a irregularidade própria do “ritmo natural” da fala (em relação à qual
métrica e rima seriam como a “divisão artificial” da terra em “acres”) é o elemento a ser
preservado por esses recursos técnicos, que desse modo se tornam fundamentais para a
caracterização tipológica do sujeito poético em sua “arena”: expressando a ligação orgânica
entre palavra, verso e significado, a fala não justificativa apenas para o afastamento de toda
a regularidade tradicional em nome de uma “língua americana”, pois é adequada ao tipo do
poeta, que contrapõe o êxtase declamatório de suas visões a momentos eloqüentes de
introspecção e exortação, de todo peripatéticas e cujo objetivo é a formação ética do
coletivo, baseada naquele “caráter Americano” que encontra seu exemplo na figura do
poeta e que, no discurso inicial, estava sob os escombros da vida política de seu país.
Retornemos agora ao momento em que o poeta pretende a fusão com o mundo, da
qual participam essas questões ligadas à estrutura do verso, que vimos provido de uma
“irregularidade governada”, e do discurso poético, que coordenado pela palavra do sermão,
dá a Whitman a possibilidade de encerrar na figura pública do poeta perante o “auditório”
(you) a força persuasiva e “cósmica” da poesia. À luz das palavras de Elias Hicks, que
incarnavam uma verdade una e penetrante, Whitman transformará a regularidade necessária
à poesia em uma unidade que manifesta, em seus próprios recursos materiais, verbo ou
indivíduo, a coesão espiritual (um dos elementos de retomada da épica em base poética) de
77
uma nação. Os modos, por vezes paradoxais, com que essa unidade se expressa serão nosso
próximo assunto.
2
“Encompass worlds but never try to encompass me,
I crowd your noisiest talk by looking toward you.
Writing and talk do not prove me,
I carry the plenum of proof and everything else in my face,
With the hush of my lips I confound the topmost skeptic!”
(“Leaves of Grass 1855”)
O reconhecimento de si mediante uma natureza igualitária, cuja atmosfera se opõe
aos perfumes da cidade e da civilização em que o homem só conhece corrupção. Implícito,
o desejo de negar o conjunto de fenômenos a que se havia reduzido a natureza, engajando a
experiência da solidão necessária e aceite da alma, o grande instante que se individualiza,
na reforma coletiva e no estreitamento de uma união que, dividida em acres ou fluente
apenas no uso correto de ornamentos e rimas, o tempo parecia negar. A verdade revelada
do poeta e a eloqüência natural do orador, levadas ao extremest verge of democracy
enquanto a incompletude da modernidade parecia reinar sobre o mundo serão o assunto
delicado da seqüência deste primeiro poema de 1855 e que Whitman, ao transformar seu
prefácio quase que literalmente em um dos “poemas” de 1856 (“Poem of Many in One”, o
By Blue Ontario’s Shore” de 1892), resolveu chamar pela divisa da antiga república
fundada, E Pluribus Unum.
Voltemos ao momento do “fundir-se”, que deixamos em suspenso para mostrar as
relações entre um sujeito absolutamente lírico e a necessidade de tornar sua experiência
exemplo de conduta. Ao concluir – “O menor rebento mostra que não há morte de fato / E
que se realmente existisse ela conduziria para a vida e não esperaria o fim para tomá-la”
100
–, o poeta também nega o colapso do mundo em nome de uma força irresistível e suprema,
Vida em maiúsculo que, lhe sendo revelada, passa a compor seu ser e suas ações:
78
I pass death with the dying and birth with the new-washed babe . . . . and am not
contained between my hat and boots,
And peruse manifold objects, no two alike, and every one good,
The earth good and the stars good, and their adjuncts all good.
I am not an earth nor an adjunct of an earth,
I am the mate and companion of people, all just as immortal and fathomless as
myself;
They do not know how immortal, but I know.
101
Por esses juízos, o êxtase (que não “cabe entre o chapéu e as botas”) marca a
celebração do concerto do mundo, relacionando aqui esse momento de revelação à
distinção que se faz entre o poeta e o “povo que o acompanha”, como ilustram os traços de
uma ignorância primordial: “eles não sabem como são imortais, mas eu sei”. Veremos as
conseqüências formais desse pressuposto mais adiante. Por enquanto, é preciso dizer que,
transformada em onisciência e onipresença diante de um mundo completo em si mesmo, a
visão transcendente do poeta escapa ao momento lírico propriamente dito e se expressa
pelo que foi entendido só recentemente (coisa de 50 anos atrás) como parte integrante da
forma poética desenvolvida por Whitman, o chamado catálogo. Encadeamento de
descrições organizadas segundo tema e estruturas de repetição (paralelismos, enumerações,
anáforas) encabeçado, encerrado ou interpolado com comentários ou sentenças de cunho
moralizante, podemos incluí-lo entre os argumentos da formlessness identificada por
Matthiessen sob o “princípio orgânico” da literatura do Renascimento Americano, mas
100
They are alive and well somewhere;
/ The smallest sprout shows there is really no death / And if there was
it led forward life, and does not wait at the end to arrest it,
/ And ceased the moment life appeared.
WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 32. Cf. “Song of Myself, 6”, 194.
101
“Vou pela morte com os mortos e nasço com os bebês que acabaram de sair de seu primeiro banho . . . . e
não me deixo conter entre meu chapéu e minhas botas / E examino objetos variados, nem dois são parecidos e
todos são bons, / A terra é boa e as estrelas são boas e suas junções são todas boas, / Eu não sou uma terra,
nem um adjunto da terra, / Eu sou o chapa, o companheiro do povo, todos tão imortais e insondáveis quanto
79
também na base da estrutura rítmica do poema, aquele “fluxo magnético de eloqüência
natural” que vimos anteriormente e retoma o plano de expressão tipológica em uma chave
que, no primeiro momento do poema, não era possível prever. Mesmo Randall Jarrell, um
dos responsáveis pela retomada crítica de Whitman no século XX, ainda os entendia
“apenas” como “listas”, embora soubesse identificar a condução de “semelhança e oposição
e continuidade e clímax e anticlímax” entre as imagens, “transições manejadas”,
102
embora
isso não lhe parecesse fato e sim “mágica”.
103
Para nós, o catálogo está no cerne do que
veremos ser o retorno da subjetividade à ordem coletiva, marcando definitivamente a
Democracia como representatividade atribuída a todos.
Quem precisa ter medo de se fundir?”: com essa pergunta, dirigida ao leitor, a
quem pede para tirar a roupa, recuperando a nudez com que abre o poema “sem disfarces”
– “você não é culpado para mim, nem estagnado, nem descartado, / Eu vejo através das
roupas de baixo e da camisa xadrez se você é ou não” – o poeta, “sempre por perto, tenaz,
aquisitivo, incansável”, começa a demonstrar sua onipresença e onisciência divinas
arrolando um primeiro recorte de cenas que, iniciadas ao lado do berço de um bebê, seguem
de um ponto de vista definido somente pela “vista do alto” com que um jovem casal é
observado e pelo “testemunho” de um suicídio, quando a “presença invisível” do poeta é
denunciada pela indicação do lugar exato da queda da pistola. Do quarto do suicida,
seguimos para um panorama da cidade:
The blab of the pave . . . . the tires of carts and sluff of boot-soles and talk of the
promenaders,
The heavy omnibus, the driver with his interrogating thumb, the clank of the shod
horses on the granite floor,
The snow-sleighs, clinking and shouted jokes and pelts of snow-balls,
The hurrahs for popular favorites . . . . the fury of roused mobs,
eu mesmo, / Eles não sabem o quanto, mas eu sei.” WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry
and Prose, 32-33. Cf. “Song of Myself, 7”, 194.
102
JARRELL, Randall. “Some Lines From Whitman”. Em Poetry and the Age, 121. Também em MILLER
Jr., James E..
Whitman’s “Song of Myself” – Origin, Growth, Meaning
, 127.
103
Idem
.
80
The flap of the curtained litter – a sick man inside borne to the hospital,
The meeting of enemies, the sudden oath, the blows and fall,
The excited crowd – the policeman with his star quickly working his passage to
the centre of the crowd,
The impassive stones that receive and return so many echoes,
The souls moving along . . . . are they invisible while the least atom of stones is
visible?
What groans of overfed or half-starved who fallon the flags sunstruck or in fits,
What exclamations of women taken suddenly, who hurry home and give birth to
babes,
What living and buried speech is always vibrating here . . . . what howls
restrained by decorum,
Arrests of criminals, slights, adulterous offers made, acceptances, rejections with
convex lips,
I mind them or resonance of them. . . . I come again and again.
104
A descrição sucinta e a sucessão de fragmentos recebem a moldura de um poeta
observador, eqüidistante como percebemos pelo ritmo homogêneo da enumeração,
pontuada de comentários breves ou sugestões de narrativa cotidiana. “Atento à cidade e à
sua ressonância”, o poeta panorâmico também deixa, junto à fragmentação das cenas
104
“O burburinho da rua . . . . a roda das carruagens, o arrastar da sola das botas e a fala dos que caminham, /
Os bondes pesados, o condutor com seu dedão interrogativo, o trote dos cavalos no chão de pedra, / O
carnaval dos trenós, a risada aguda, o grito das piadas, o impacto das bolas de neve; / Os aês p’r’os preferidos
do povo . . . . a fúria da confusão que se generaliza, / A rapidez da liteira cortinada . . . . o homem doente
dentro, sendo levado para o hospital, / O encontro dos inimigos, o xingamento de pronto, os socos e a queda, /
A multidão agitada – o policial com sua estrela trabalhando rapidamente abrindo caminho no meio da
multidão; / As pedras impassíveis que recebem e retornam tantos ecos, / As almas se movendo . . . . serão elas
invisíveis, enquanto o menor átomo das pedras é invisível? / Quantos gemidos de gente empanturrada ou
faminta, que caem de insolação ou de alguma síncope, / Quantos gritos de mulheres que passam mal, que
correm p’ra casa e dão à luz os bebês, / Quanto discurso de gente morta ou viva sempre vibra por aqui . . . .
quantas vaias são constrangidas pelo decoro, / Prisão de criminosos desfeitas, ofertas de adultério, aceitações,
rejeições com os lábios convexos, / Estou atento a essas coisas e sua ressonância . . . . eu venho de novo e
novo”. WHITMAN, Walt.
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 33-34. Cf. “
Song of Myself
, 8”,
195.
81
justapostas, seu ponto de fuga, que nos permite a extensão da metáfora por sua posição
estratégica (literalmente o centro do catálogo) de onde a multidão revela “as almas que se
movem”, outrora princípio de reconhecimento e revelação lírica que reencontra, ainda pela
perspectiva distanciada do indivíduo, o ambiente urbano; este, marcado pela desigualdade
entre fartos e famintos, pela violência entre populares e pela tensão entre a multidão e a
polícia, ainda pode ser colocado segundo aquela mesma “ignorância da imortalidade”.
Voltando sua perspectiva distanciada ao campo, contudo, o poeta nos mostra outra
realidade:
The big doors of the country-barn stand open and ready,
The dried grass of the harvest-time loads the slow-drawn wagon,
The clear light plays on the brown gray and green intertinged,
The armfuls are packed to the sagging mow;
I am there . . . . I help . . . . I came stretched atop of the load,
I felt its soft jolts. . . . one leg reclined on the other,
I jump from the cross-beams and seize the clover and timothy,
And roll head over heels and tangle my hair full of wisps.
105
O contraste entre campo e cidade se dá pela própria ação do poeta, “testemunha” da
violência de agentes ignorantes de sua natureza, e “ator” do ambiente idílico. Aqui, a
rapidez dos deslocamentos dá lugar a descrições pormenorizadas, em que a caça, a
vilegiatura e a pesca, o casamento de um colono com uma índia, a ajuda a um escravo
fugitivo, o desejo de uma mulher que observa um grupo de 28 banhistas, o trabalho de um
açougueiro, de um artesão e, por fim, de um negro na lavoura (momentos pontuais
justapostos como as cenas rápidas do primeiro catálogo) dão vazão à identificação
momentânea da figura do poeta com seus protagonistas em chave simbólica. A objetividade
105
As grandes portas do galpão, abertas e prontas, / A grama seca do tempo da colheita enche a caçamba
lenta, / A claridade brinca na mistura de verde, cinza e marrom, / As braçadas estão empilhadas no celeiro não
muito firme, / Eu estou lá . . . . eu ajudo . . . . eu vim deitado no topo da pilha, / Eu sinto o sacolejar suave . . .
. uma perna dobrada sobre a outra, eu salto de cima das pilhas, pego o trevo e o timóteo, / Saio dando
cambalhotas e encho meu cabelo de palhinha seca.” WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry
and Prose
, 34. Cf. “
Song of Myself
, 9”, 196.
82
e minúcia das descrições, atentas a detalhes de paisagem e fisionomias, têm uma
contrapartida hermética que não cabe somente ao leitor ou ao crítico. Como veremos, o
poeta será o primeiro leitor dessas cenas: dessa forma, mais do que ratificar seu caráter
panorâmico, uma vez que a seqüência pormenorizada traz justamente aquilo que não há na
perspectiva urbana, Whitman deixa claro que as cenas não devem ser tomadas somente por
aquilo elas exibem; elas têm uma razão de ser e que ainda não somos capazes de captar. Se
as primeiras cenas (a descarga num celeiro, a caça nas montanhas e a vilegiatura
acompanhada da pesca com barqueiros) serão, respectivamente, a celebração da vida
campestre, o reconhecimento do brilho e da luz que emanam do sujeito em contato com a
natureza e o convite à participação do interlocutor
I tucked my trowser-ends in my boots and went and had a good time,
You should have been with us that day round the chowder-kettle.
106
no casamento do colono com a índia a terra e a natureza se fazem presentes pela adesão do
colono norte-americano ao solo nativo, representado tanto pelo pai da noiva e seus amigos,
que sentados sobre as pernas cruzadas fumam silenciosamente, como pelos “membros
voluptuosos” da noiva; já a caracterização do noivo, que com uma mão segura o rifle e com
a outra a nativa, é bastante sugestiva da aliança entre natureza e civilidade até aqui
idealizada pela possibilidade do interlocutor urbano chegar à origem de todos os poemas,
que o poeta identifica à natureza. A seguir, os cuidados com o escravo ferido após a fuga
nos colocam outra dimensão do poeta, aqui protagonista cuja compaixão se mede tanto pelo
acolhimento do negro (“Dei-lhe um quarto em que se entrava pelo meu”) como por sua
adesão à tentativa do escravo de atravessar a fronteira da escravidão:
He stayed with me a week before he was recuperated and passed north,
I had him sit next me at table. . . . my fire-lock leaned in the corner.
107
106
Enfiei a barra das calças para dentro das botas e saí e passei um belo dia / Você bem que podia ter
passado aquele dia com a gente perto da panela de ensopado”. WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”.
Em
Poetry and Prose
, 35. Cf. “
Song of Myself
, 10”, 196.
83
Entretanto, nenhum desses quadros supera, em simbolismo e hermetismo, o que
figura o desejo de uma mulher que observa à distância 28 banhistas. A polêmica das
opiniões em torno do quadro, que oscilam entre o total despropósito e a representação mais
significativa da “democracia erótica” de Leaves of Grass, tem como base a identificação do
poeta-narrador com a própria mulher. Segundo análise de Betsy Erkilla,
108
na qual o
número de banhistas corresponde tanto ao ciclo da lua como ao ciclo menstrual das
mulheres, a cena reitera uma das verdades reveladas ao poeta em seu momento de êxtase e
completude (“e uma sobrequilha da criação é o amor”) –, sugerindo que o “desejo sexual
que aproxima a mulher dos jovens seja uma sobrequilha da criação – a unificadora e
equalizadora energia de Eros – que cruza as fronteiras sexuais, sociais e de classe e a une
em imaginação com a multidão democrática”,
109
enquanto a figura feminina seria “uma
máscara para o próprio poeta”, anonimamente desejoso dos corpos dos jovens em sua
fantasia solitária”
110
. Sem entrar nos méritos do debate de fundo psicológico ou biográfico,
o que nos interessa é a aproximação entre os pontos de vista do poeta e da mulher, se
tornam o “vigésimo-nono banhista”:
Where are you off to, lady? for I see you,
You splash in the water there, yet stay stock still in your room.
Dancing and laughing along the beach came the twenty-ninth bather,
The rest did not see her, but she saw them and loved them.
The beards of the young men glisten'd with wet, it ran from their long hair,
Little streams pass'd all over their bodies.
An unseen hand also passed over their bodies,
It descended tremblingly from their temples and ribs.
107
“Ele ficou comigo uma semana antes de se recuperar e prosseguir rumo ao norte / Eu o tive na mesa ao
meu lado . . . . minha carabina encostada no canto da sala.” WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em
Poetry and Prose, 35-36. Cf. “Song of Myself, 10”, 197.
108
ERKILLA, Betsy. Whitman, the Political Poet, 100.
109
Idem
.
110
Idem
, 101.
84
The young men float on their backs, their white bellies bulge to the sun . . . . they
do not ask who seizes fast to them,
They do not know who puffs and declines with pendant and bending arch,
They do not think whom they souse with spray.
111
A invisibilidade do vigésimo-nono banhista, ignorado pelos jovens que não
reconhecem sua própria sensualidade (“eles não sabem... mas eu sei”, diria o poeta, fazendo
eco àquela “ignorância”) confirma até aqui um modo de articulação todos esses quadros –
base descritiva dos catálogos – em relação ao sujeito poético, que participa, em sua
perspectiva isolada e abrangente, das situações à medida que lhes confere profundidade e
simbolismo, como o demonstram a descrição do casamento do colono e da nativa e mesmo
o auxílio ao escravo fugitivo, cena descrita em um passado que o poeta recupera já de modo
distanciado. A contenção figurativa desses quadros, expressada pela escolha dos detalhes e
pela rigidez das cenas (sempre passivas de algum imobilismo, apesar de sua composição
narrativa), opõe-se ao panorama urbano somente pela profundidade simbólica que a cidade,
por enquanto, trata de rechaçar, como não houvesse ali espaço para uma “mão invisível”
que desse forma e profundidade aos corpos agitados da multidão. Em essência, a
necessidade de um ponto de fuga é a marca dos catálogos, ilusionismo ou paisagem
racionalizada que, como bem aponta Buell em seu artigo sobre o tema, se traduz por uma
“arte implícita”,
112
indireta, à qual podemos aplicar uma opinião mais forte: a de que esse
ponto de fuga, inerente à perspectiva distanciada dos catálogos, expressa a própria visada
tipológica do poeta, que transformando as ações e os desejos de suas personagens – já
dotadas do princípio representativo em chave democrática – em manifestações de uma
111
“Aonde você vai, moça? Pois eu te vejo, / Você se joga ali na água, ainda que contune parada na sala. / /
Dançando e rindo pela praia chegava a vigésima-nona banhista, / Os demais não a viam, mas ela os via e
amava. // A barba dos jovens rapazes brilhava com a água e ela corria por seus cabelos longos, / Pequenos
córregos corriam por seus corpos. // Uma mão invisível também passava por seus corpos, / Ela descia
tremendo por suas têmporas e costelas. // Os jovens rapazes nadam de costas, suas barrigas brancas boiam sob
o sol . . . . eles não perguntam sobre quem se agarra a eles com tanta força. // Eles não sabem quem cai ou
arqueja as costas, / Eles não pensam em quem fica molhada com os espirros d’água.”. WHITMAN, Walt.
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 36. Cf. “
Song of Myself
, 11”, 197-198.
112
BUELL, Lawrence. “Transcendentalist Catalogue Rhetoric: Vision vs. Form”. Em
American Literature
,
118.
85
razão superior, cria o mesmo efeito de “ingenuidade” presente no primeiro panorama
urbano (“eles não sabem... mas eu sei”), oposta ao conhecimento que o poeta quer partilhar,
pela assunção, com seu interlocutor. Encerrando a seqüência de quadros com a descrição de
um trabalhador negro da lavoura,
His blue shirt exposes his ample neck and breast and loosens over his hip-band,
His glance is calm and commanding, he tosses the slouch of his hat away from
his forehead,
The sun falls on his crispy hair and mustache, falls on the black of his polish'd
and perfect limbs.
113
Whitman nos oferece a marca mais extrema de sua técnica de retratista. A ver pela
coincidência da descrição do negro com a figura do poeta que se apresenta no frontispício
do volume, temos aqui a identidade absoluta entre a perspectiva e o retratado, como se
paisagismo e natureza, saber e objeto, formassem um único corpo. A identidade
provocativa entre o negro e o poeta, que simplesmente destrói as diferenças raciais em uma
sociedade escravocrata, também aponta às linhas com que Whitman demarca seus
panoramas e cenas na conclusão da passagem, quando a natureza que desfaz diferenças
raciais, tradicionais e autoritárias se mostra expressão de uma “lei natural”, sob a qual
encontraremos o poeta e seus companheiros de ocasião:
Oxen that rattle the yoke and chain or halt in the leafy shade, what is that you
express in your eyes?
It seems to me more than all the print I have read in my life.
(...)
The sharphoofed moose of the north, the cat on the house-sill, the chickadee, the
prairie-dog,
The litter of the grunting sow as they tug at her teats,
113
“Sua camisa azul deixa seu pescoço largo e seu pescoço à mostra e alarga na altura da cintura / Seu olhar é
calmo e comandante . . . . ele afasta da testa a aba de seu chapéu.” WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass
1855
”. Em
Poetry and Prose
, 37. Cf. “
Song of Myself
, 13”, 198-199.
86
The brood of the turkeyhen and she with her halfspread wings,
I see in them and myself the same old law.
The press of my foot to the earth springs a hundred affections,
They scorn the best I can do to relate them.
114
Havíamos visto até aqui uma natureza passiva de descrição em chave lírica, que o
poeta fazia questão de opor à ordem racionalizada da cidade. Entretanto, o que a “velha lei”
ensina, pelo que lemos aqui, não é o controle sobre a razão, que a via dialética dos
românticos coloca pela síntese de forças opostas – em seu extremo traduzidas pela
selvageria natural e a barbárie racional – mas uma razão em si mesma. “Mais instrutiva do
que qualquer livro”, a lei natural, abstrata e invisível, está no cerne do que dá sentido aos
catálogos, quando entendidos pela via da tipologia: como ponto de fuga dos retratos e cenas
descritas em sua singularidade (ou seja: em sua representação), a lei coincide com o ponto
de vista do próprio poeta, o que pressupõe a identidade entre pensamento e natureza e a
sugestão de uma ordem a um só tempo interior (está em todas as coisas, é a mesma para
homens e animais) e superior, cabendo ao poeta apenas a sua expressão (“a pressão de
meus pés na terra faz nascer centenas de afetos”). A questão, no entanto, é que a lei, dando
ensejo à tipologização de tudo o que é representado em sua singularidade – esta,
Democrática – impõe como que uma correção dos fragmentos, um sentido que os reúne e
transcende.
Neste ponto, podemos acrescentar algo à conclusão de Betsy Erkilla
115
, que vê no
poder político da natureza (do sexo, mais especificamente) a transcendência da
114
“Bois que sacolejam os jugos ou descansam na sombra, o que vocês expressam em seus olhos?/ Me parece
mais do que todos os papéis que li em minha vida. // (...) O alce de chifres afiados do norte, o gato na varanda
de casa, o canário, o cão-da-pradaria, / Os filhotes da porca que grunhe enquanto seus filhotes mordiscam
suas tetas, / A ninhada da perua e ela com suas asas semiabertas, / Eu vejo em mim e neles a mesma velha lei.
// A pressão do meu pé na terra faz brotar centenas de afetos, / Eles caçoam do melhor que posso fazer para
descrevê-los”. WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 37-38. Cf. “Song of Myself,
13-14”, 199-200.
115
The sexual urge that draws the woman to the young man is the kelson of creation – the unifying and
equlizing energy of Eros – that cuts across sexual, social, and class lines and joins her in imagination with
democratic crowd
”. ERKILLA, Betsy.
Op.Cit.
, 100.
87
fragmentação social e da alienação ditada pela cidade. O retorno da natureza à cidade só
transcende desigualdades e segregação à medida que demonstra a existência de uma mesma
lei fundadora, capaz de assumir formas diversas – os tipos – a partir de uma essência
única e divina. O fim da primeira seqüência de catálogos irá nos mostrar essa essência e – o
que nos interessa, sobretudo – o termo de sua abrangência. É no retorno do poeta
panorâmico e na formação de um imenso catálogo, no qual referências urbanas e
campestres se misturam
The pure contralto sings in the organ loft,
The carpenter dresses his plank, the tongue of his foreplane whistles its wild
ascending lisp,
The married and unmarried children ride home to their Thanksgiving dinner,
The pilot seizes the king-pin, he heaves down with a strong arm,
The mate stands braced in the whale-boat, lance and harpoon are ready,
The duck-shooter walks by silent and cautious stretches,
The deacons are ordain'd with cross'd hands at the altar,
The spinning-girl retreats and advances to the hum of the big wheel,
The farmer stops by the bars as he walks on a First-day loafe and looks at the
oats and rye,
(...)
que Whitman concilia campo e cidade a partir de um “sono comum”
The city sleeps and the country sleeps,
The living sleep for their time . . . . the dead sleep for their time,
The old husband sleeps by his wife and the young husband sleeps by his wife;
And these tend inward to me, and I tend outward to them,
And such as it is to be of these more or less I am.
116
116
“A contralto pura canta na sala do órgão, / O carpinteiro corta a tábua . . . . a lâmina de sua plaina assovia
seu corte ascendente e frenético, / Os filhos casados e solteiros vão para casa no dia de ação de graças, / O
piloto agarra o leme e o puxa com força para baixo, / O imediato se levanta de pronto no baleeiro, lança o
arpão, estão a postos, / O caçador de patos anda com cautela e em silêncio se move, / Os decanos são
ordenados com as mãos cruzadas no altar, / A tecelã recua e avança ao som da grande roda do tear, / O
fazendeiro pára nos balcões do domingo e olha para o trigo e para o centeio (...) A cidade dorme e o campo
dorme / Os vivos vivem por sua vez . . . . os mortos dormem por sua vez, / O velho marido dorme com sua
88
como se ambos descansassem sob um único país, para o qual os catálogos serão a forma
poética mais bem acabada da unidade e identidade de todas coisas, vistas ora sob a
perspectiva da Natureza, ora sob a perspectiva da Nação, também manifestação material
dessa lei natural, de onde o poeta, em 1892, “tece a canção de mim mesmo”.
117
A essas
alturas, cabe-nos interpretar a formação do poeta à luz de seu entendimento – ou visão – do
E Pluribus Unum (“De Muitos Um”), divisa de uma Revolução que pretendia fazer com
que as treze antigas colônias, por meio do consenso interno e da luta contra um inimigo
externo, formassem um único corpo – que Whitman retoma ao se autoproclamar, na
seqüência, “um de uma grande nação, a nação de muitas nações”.
118
Se o catálogo e a
perspectiva não são novidades da poesia de Whitman, que já os encontra, pelo menos
potencialmente, na prosa de Emerson e Thoreau, para os quais a natureza também é
símbolo do espírito e a analogia o método de estabelecer relações entre verdade e
matéria,
119
por outro é o poeta quem pela primeira vez abre o catálogo à sociedade como
um todo (ou seja, pela perspectiva democrática), fazendo com que ali se configurem suas
formas e tensões, finalmente corrigidas quando temos diante de nós a Nação, que oferece
a Whitman o sentido daquilo que, a princípio, parecia refratário à “mão invisível” do poeta.
Mais importante do que a identificação do nacionalismo de Whitman é o caminho que se
percorre até a idéia de Nação, conseqüência lógica da sociedade “unida, atada e firme” que
a Natureza revela e síntese de experiências rurais e urbanas sob a régua de uma lei natural e
mulher e o jovem marido dorme com sua mulher, / E estes e todos vêm para dentro de mim e eu me vou para
fora deles, / E mais ou menos como eles eu sou”. WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and
Prose, 39-42. Cf. “Song of Myself, 15”, 200-203.
117
Em 1892, a passagem referente à seção 15 ganha um último verso: “
And of these one and all I weave the
Song of Myself
”. WHITMAN, Walt. “
Song of Myself
, 15”, 199-200. Em
Poetry and Prose
, 203.
118
One of a great nation, the nation of many nations – the smallest the same and the largest the same, / A
southerner soon as a northerner, a planter nonchalant and hospitable / A Yankee bound my own way . . . .
ready for trade . . . . my joints the limberest joints on earth and the sternest joints on earth, / A Kentuckian
walking the vale of the Elkhorn in my deerskin leggings, (...)”. WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”.
Em Poetry and Prose, 42. Cf. “Song of Myself,16”, 203.
119
Every particular nature is a symbol of spirit, all natures are related to each other by analogy; symbol and
analogy are the basis of natural law, so they are the chief methods of literary style – the result or expression
of nature, in miniature
”. Cf. BUELL, Lawrence.
Op.Cit.
, 120.
89
igualitária, propriamente democrática, cujo sentido superior a poesia do “literato divino” se
propõe a resgatar.
Conciliando a experiência individual e absoluta da Natureza com a revelação do
significado subjacente a uma sociedade até então cindida entre a violência urbana, própria
da desigualdade promovida pelo sistema econômico, e o idílio rural, onde a vida encontra
sentido e virtude, Whitman corrompe a própria razão de seu distanciamento individual de
um mundo incompleto e fragmentado, tomado em nome de sua própria constituição
subjetiva, lançando as formas de sua poesia a uma contradição de difícil solução. Como
visão de um mundo formado por um pensamento primevo, “presente em todos os homens
em todas as eras e terras”, e segundo o qual
In all the people I see myself, none more and not one a barleycorn less,
And the good or bad I say of myself I say of them.
And I know I am solid and sound,
To me the converging objects of the universe perpetually flow,
All are written to me, and I must get what the writing means.
120
a Natureza traz à sociedade o fim de todo conflito inerente ao sujeito moderno, pois
simplesmente não se repete a síntese inaugural e individual: como se a tensão que
motivava o distanciamento do poeta simplesmente se dissipasse diante do conhecimento de
uma ordem superior, a cidade que dorme junto ao campo não receberá lições da terra, uma
vez que ela própria expressa a natureza enquanto nação. Nesse sentido, a forma de diálogo
e consenso proposta por Whitman no início do poema, quando entendíamos no refúgio e na
comunhão com a Natureza o ponto de partida para o reconhecimento da igualdade entre os
homens, perderá força à medida que os “objetos do mundo” (e seria um imenso engano não
incluir aqui a própria “sociedade ingênua”, matéria passiva diante do conhecimento do
poeta) se tornam letra aos olhos do poeta. Eis a maior conseqüência da tipologia na
120
Em todas as pessoas vejo a mim mesmo, em ninguém mais, em ninguém um grãozinho a menos, / O bom
e o ruim que falo de mim mesmo eu falo deles. // E eu sei que sou sólido e sonoro, / Em mim convergem os
objetos de um universo que flui perpétuo, / Ele todo está escrito para mim e eu preciso saber o que essa escrita
significa”. WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 45-46. Cf. “Song of Myself,
20”, 206.
90
figuração poética de Whitman, de todo necessária para a superação das tensões sociais e a
configuração de um mundo coeso e fechado sob o signo da democracia: é como letra que o
ambiente urbano finalmente permite, indiviso e coerente, a leitura do poeta; como letra,
também podemos pensar a estranha igualdade entre campo e cidade, cujas diferenças,
preservadas no início do poema e indicadoras de uma história que impunha ao homem a
cisão fundadora de uma subjetividade, acabam reduzidas à expressão de uma lei única, essa
por fim a abstração que ganha o corpo tanto da natureza como da civilização.
Passando sua mão invisível e abstrata pelas páginas do campo e da cidade, Whitman
reconhecerá os signos de uma Nação absoluta, que se deixa expressar, como o próprio
sujeito poético, em tudo e em todos que serão, enfim, reduzidos ao corpo de um Estado
auto-evidente e idêntico à Natureza, para o qual todo diálogo – mesmo o que dá sentido à
“arena” do poema – é troca dentro de um ambiente completo e desprovido de tensão. Nesse
sentido, a mesma Betsy Erkilla comenta, em relação aos “catálogos democráticos” de
Whitman, os traços de uma ordem opressiva e hierárquica,
operando paradoxalmente um tipo de tirania formal, emudecendo o fato da
desigualdade, do conflito racial e a diferença radical com uma economia retórica
de muitos e um
121
.
É com a idéia de um “experimento em autogoverno que testa e ilustra a capacidade
de um indivíduo muscular e autônomo de governar a si mesmo”
122
, presente na própria
configuração pública e exemplar do poeta, que Erkilla perfaz seu paradoxo. Completando
seu raciocínio, podemos dizer que, propiciando a toda a sociedade o princípio de
representação, tirando-o assim da esfera do patrimônio para transformá-lo em direito
comum, Whitman gera um princípio de desregulação, que só se resolve a partir do
momento em que toda a sociedade, descrita de modo exaustivo nos catálogos, se
distensiona em nome de um princípio absoluto. De fato, todos estão representados, a arena
está formada; entretanto, todos estão submetidos a uma Lei universal, que pela tipologia
121
For all their poetic democracy, Whitman’s catalogues could operate paradoxally as a kind of formal
tiranny, muting the fact of inequality, race conflict, and radical difference within a rhetorical economy of
many and one
.” ERKILLA, Betsy.
Op.Cit.
, 101-102.
122
Idem.
91
submete a representação de todas as partes dessa arena à expressão de um princípio único,
que foge à esfera do consenso emersoniano, formado na base de um mundo dividido entre
representantes e representados. A lei universal do filósofo estava nessa divisão, própria da
república do XVIII. No entanto, quando Whitman resolve submetê-la à Democracia,
formando um mundo em que não há distinção entre representantes e representados, a Lei
também já não pode ser consensual – mas uma força que estabelece para além da
representação de cada indivíduo ou coisa singular, regulando-a de fora das ações, que
submetidas a elas passam a representar, em um conjunto nivelado, a sociedade unificada.
Em outras palavras: é pela democratização da representatividade que Whitman chega ao
poder que entende absoluto, o poder da União.
Sem nos alongarmos em questões de natureza filosófica e política, podemos dizer
com alguma segurança que o conceito de União aplicado à Independência das antigas Treze
Colônias não era fundamento, mas conseqüência de uma ordem instaurada. Ao debater os
prejuízos e as benesses de certos modelos políticos, os Federalistas nos ensinam que a
formação da federação se opunha ao enfraquecimento e aos perigos externos inerentes à
independência governamental de pequenos estados:
Leave America divided into thrirteen ou, if you please, into three or four
independent governments – what armies could raise and pay – what fleets could
ever hope to have? If one was attacked, would the others fly to its succour, and
spend their blood and money in its defence? Would there be no danger of their
being flattered into neutrality by its specious promises, or seduced by a too great
fondness for peace to decline hazarding their tranquility and present safety for
the sake of neighbours, of whom perhaps they have been jealous, and whose
importance they are content to see diminished? Although such conduct would not
be wise, it would, nevertheless, be natural. The history of the states of Greece,
and of other countries, abounds with such instances, and it is not improbable that
what has so often happened would, in similar circunstances, happen again.
123
123
“Deixe a América dividida em treze ou, se você quiser, em três ou quatro governos independentes – que
forças armadas poderiam se erguer e equipar – que esquadras poderiam ter a esperança de conseguir? Se um
fosse atacado, iriam os outros voar em seu socorro, e gastar seu sangue e dinheiro em sua defesa? Não haveria
perigo de ficarem entusiasmadas com a neutralidade por suas promessas lucrativas, ou tão seduzidas por um
grande gosto de paz a ponto de não arriscarem sua tranqüilidade e segurança presente em nome de vizinhos,
92
Os argumentos morais de John Jay (autor do quarto ensaio) se completam pela
necessidade de uma salvaguarda nacional e de um governo comum a esses pequenos
estados, que não cometendo os erros de nações antigas, seriam respeitados pelas demais
nações estrangeiras:
If they see that our national government is efficient and well administered, our
trade prudently regulated, our militia properly organized and disciplined, our
resources and finances discreetly managed, our credit reestablished, our people
free, contented, and united, they will be much more disposed to cultivated our
friendship than provoke our resentment If on the other hand, they find us either
destitute of an effectual government (each state doing right or wrong, as to its
rulers may seem convenient), or to split into three or four independent and
probably discordant republics or confederacies, one inclining to Britain, another
to France, and a third to Spain, and perhaps played off against each other by the
three, what a poor, pitful figure will America make in their eyes!
124
Note-se, aqui, que toda a argumentação envolvendo a necessidade de uma união
federativa leva em consideração somente a relação externa, sempre relativa aos estados
estrangeiros, cujo poder seria capaz de incitar conflitos entre as pequenas repúblicas ou
entre confederações americanas. Em âmbito propriamente nacional, o debate federalista
dos quais talvez elas sejam enciumadas, e cuja importância eles ficariam gratos de ver diminuída? Ainda que
tal conduta não seja sábia, ela seria, apesar de tudo, natural. A história dos estados da Grécia, e de outros
países, abundam em tais problemas, e não é improvável que o que tenha acontecido tantas vezes possam, em
circunstâncias similares, acontecer de novo.” [HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James]. The
Federalist, 36.
124
“Se eles perceberem que nosso governo nacional é eficiente e bem administrado, nossos negócios
regulados com prudência, nossas milícias propriamente organizadas e disciplinadas, nossas finanças e
riquezas manejadas com discernimento, nosso crédito reestabelecido, nosso povo livre, contente e unido, eles
estarão muito mais dispostos a cultivar nossa amizade do que a provocar nosso ressentimento. Se, por outro
lado, eles nos encontrarem destituídos de um governo efetivo (cada estado fazendo certo ou errado, do modo
que seus dirigentes acharem conveniente), ou se separarem em três ou quatro independentes ou
provavelmente discordantes repúblicas ou confederações, uma inclinada para a Inglaterra, outra para a França,
e uma terceira para a Espanha, e talvez brigando entre si em nome das três, que pobre e triste figura terá a
América a seus olhos!” [HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James]. The Federalist, 37.
93
reserva a cada estado o direito a uma constituição soberana que ganha representação em
uma capital abstrata e consensual, capaz de regular conflitos e negócios entre os Estados.
Ainda em The Federalist a república norte-americana clama por uma unidade nacional
mediada não por um poder central, que sobrepujasse as leis e as assembléias de cada
estado, mas por uma partição desse poder absoluto entre os Estados, que unidos formariam
uma unidade e autoridade tão consensual e construída quanto os edifícios e as ruas do
Distrito Federal que o abrigaria. Nesse sentido, a União só tem legitimidade à medida que
os Estados que a constituem sejam respeitados em sua autonomia, como compusessem
pequenas nações – o termo ali tem raiz no liberalismo de um Adam Smith – para as quais a
Federação era a extensão lógica de pequenos poderes locais, em última instância,
preservados pela cidadania legal inerente a cada indivíduo. Estes são os traços mais gerais
do que se pretendeu guardar na antiga divisa republicana.
Como dizem alguns críticos, a Constituição teria sido a primeira utopia norte-
americana. Para tomar a palavra de um republicano tradicionalista, Henry Adams (para
quem, aliás, o governo federal era “nosso governo estrangeiro”
125
), os Estados Unidos
teriam experimentado já nos primeiros anos de soberania a tensão acachapante entre uma
teoria imperial, propriamente federalista e baseada na idéia simples – cito aqui Bernard
Bailyn – de que “um corpo soberano não precisa ser supremo em toda a parte e em todas as
questões no território controlado, mas apenas em alguns assuntos e de alguns modos e que
outros corpos menores poderiam exercer poderes absolutos e arbitrários”
126
, e uma teoria
de assimilação, republicana, para a qual o consenso estabelecido em nome da federação
ganha estatuto de poder unificado. Em relação à “compra usurária e anexação da
Louisiana”, feita pela administração de Jefferson, Adams nos diz:
Três anos depois de sua posse Jefferson comprou uma colônia estrangeira sem
seu consentimento e contra sua vontade, a anexou aos Estados Unidos por um ato
que converteu a Constituição em um papel em branco; e então ele, que havia
considerado seu predecessor [John Adams] por demais monárquico e a
Constituição por demais liberal em poderes – ele, que quase havia rompido os
vínculos da sociedade antes de permitir a seu predecessor ordenar a retirada de
125
OROZCO, José Luiz.
Henry Adams y la Tragédia Del Poder Norteamericano,
148.
126
BAILYN, Bernard.
As Origens Ideológicas da Revolução Americana
, 200.
94
um perigoso estrangeiro do país em um tempo de ameaça de guerra – se fez a si
mesmo monarca do novo território [Louisiana] e reservou para si, contra todos os
protestos, os poderes dos velhos reis.
127
Os termos que Adams usa para desqualificar o episódio são muito interessantes para
o que pretendemos colocar a seguir. A Constituição perderá validade, segundo o
historiador, justamente no momento em que o poder federal se reserva o direito de agir não
por um consenso diante da ameaça externa, mas em nome da anexação de um “território”
que, teoricamente, não teria onde ser anexado (Adams, como federalista, não reconhece a
União como território), nem quem o governasse (a federação não seria um poder central).
Em Adams, a União é tomada em sua acepção mais contingente, simplesmente como o
consenso de treze territórios que autoriza um poder político e regulador de contendas e
acordos internos e externos sem que pudesse se formar como um fim em si, o que o
historiador identifica nas “pretensões monárquicas” de Jefferson. Alterando “o sentido da
União”, Adams sugere que o acordo entre o impulso abstrato próprio de um poder
descentralizado (a “teoria imperial”), sempre passivo de soma, e a tendência unificadora da
república, pronta à assimilação do externo em uma unidade, teriam sido fundamentais para
o surgimento, pouco mais de três décadas depois da Independência, de um “novo país”,
pronto a dar condições de desenvolvimento àquilo que Adams, um patrimonialista, neto e
bisneto de presidentes norte-americanos, mais abominava: o capitalismo e sua contraparte
expansionista.
A “mão invisível” que passeia pelas páginas urbanas e rurais da América e o
“sujeito sem disfarces” que congrega os homens e as mulheres de todos os Estados,
rompendo com sua visão infinita todas as fronteiras de sexo, raça, classe e religião para se
considerar “não apenas do Novo Mundo, mas da África, da Europa ou da Ásia”
128
,
responde positivamente aos apelos daquele “novo país”, mostrando-nos, indiretamente, o
conflito que se instaura da perspectiva dos mesmos princípios federativos e consensuais,
127
Citado por OROZCO. José Luiz. Op. Cit., 150.
128
Of every hue and trade and rank, of every caste and religion, / Not merely of the New World but of Africa
Europe or Asia . . . . a wandering savage, / A farmer, mechanic, or artist . . . . a genleman, sailor, lover, or
quaker, / A prisioner, fancy-man, rowdy, lawyer, physician or priest
”. WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass
1855
”. Em
Poetry and Prose
, 43. Cf. “
Song of Myself
, 16”, 204.
95
presentificados no poema pela relação dialógica e assuntiva entre poeta e público, mas
recuperados em nome de uma identidade formada em reação a problemas de outra ordem
que não exatamente a política. No que se refere aos catálogos, podemos dizer que Whitman
alimenta aqueles mesmos ímpetos “imperiais” e “republicanos”: conduzindo-se como que
pela diversidade dos impérios, o bardo americano “assimila” a diferença e celebra a
unidade inerente a um “Espírito”, que se manifesta igualmente pela Natureza da perspectiva
individual subjetiva, pela Nação, coletiva, e pelo Mundo, em que por fim o poeta fita a
totalidade, expressão da lei universal que o poeta conhece sob as formas da Democracia.
Sendo sua motivação dialógica, adequada à “arena” por onde o dito “poeta do
senso-comum”
129
parece transitar, a Democracia poderia se limitar à mediação da
experiência individual lírica, colocando-a em uma chave reformista que identificamos no
poema, compondo aquilo que há de mais interessante e próprio à poesia de Whitman.
Entretanto, o poeta ultrapassa a idéia de consenso representativo – ou de muitos em um – e
impõe à regulação política da sociedade a expressão de um princípio que inverterá a
proposta: a partir do momento em que povo se torna letra ou tipo de uma lei universal,
Natureza ou Nação, divina, eterna e “inerente ao Ser”, segundo o próprio poeta, a
diversidade se torna atributo de uma unidade que ultrapassa toda a disputa: já não serão
Muitos formando Um, mas Um expresso em Muitos. Nessa contradição encontraremos os
pólos da poesia de Whitman, capaz de libertar escravos a partir do uso político da palavra
poética do mesmo modo com que os prende e condena a um universo atemporal, que
subsume a história enquanto a torna manifestação de um espírito ordenador. A leitura
ambígua da divisa republicana coloca em xeque a relação entre as formas dialógicas e o
próprio sentido da América de Whitman, que tomando as velhas divisas da fundação parece
cada vez mais distante de suas origens.
Como já vimos, o primeiro poema de Leaves of Grass busca uma origem, em que se
entenda o poder constituinte e seminal de todas as ações humanas, bem como de seus
poemas. Se o início do poema era capaz de impor à origem um argumento consensual ou
uma mediação contratual entre poeta e leitor, aqui já percebemos nosso engano. A origem,
129
I am the poet of commonsense and of the demonstrable and of immortality;/ And am not the poet of
goodness only . . . . I do not decline to be the poet of wickedness also
”. WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass
1855
”. Em
Poetry and Prose
, 48. O primeiro verso foi cortado da edição de 1892: “
Song of Myself
, 22”, 209.
96
tal como a percebemos pelos catálogos, não se traduz pelo acordo, pela assunção, mas por
uma imposição da verdade, that you shall assume”, o que em sentido inverso significa a
extensão desse princípio ao Outro, que o fim do processo colocará como o Mesmo. O
sujeito que emana dos catálogos e se apresenta ao mundo
Walt Whitman, na American, one of the roughs, a kosmos,
Disoderly fleshy and sensual . . . . eating drinking and breeding,
No sentimentalist . . . . no stander above men and women or apart from them . . . .
no more modest than immodest.
Unscrew the locks from the doors!
Unscrew the doors themselves from their jambs!
Whoever degrades another degrades me . . . . and whatever is done or said
returns at last to me,
And whatever I do or say I also return.
(...)
I speak the password primeval . . . . I give the sign of democracy;
By God! I will accept nothing which all cannot have their counterpart of on the
same terms.
130
demonstra com clareza esse misto de busca por consenso e autoritarismo. À luz do
consenso, a “contrapartida democrática” será a anulação das tensões entre grupos que
encontrarão no poeta um representante absoluto. Como lemos na continuação da passagem,
130
“Walt Whitman, um americano, um dos arruaceiros, um kosmos, / Desordenadamente carnal e sensual . . .
. comendo, bebendo e respirando, / Sem sentimentalismo . . . . sem ficar acima de homens e mulheres ou
distante deles . . . . não mais modesto do que imodesto // Arranquem a fechadura das portas! / Arranquem as
próprias portas de seus batentes! // Quem quer que maltrate alguém me maltrata . . . . e tudo aquilo que é dito
ou feito por fim retorna a mim, / E tudo que eu faça ou diga também retorna. // Eu falo a palavra primeva . . . .
eu dou o sinal da democracia; / Meu Deus! Eu não aceito nada que não tenha sua contrapartida nos mesmos
termos.” (...) WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 50. Cf. “
Song of Myself
, 24”,
210-211.
97
Through me many long dumb voices,
Voices of interminable generations of slaves,
Voices of prostitutes and of deformed persons,
Voices of diseased and despairing, and of thieves and dwarfs,
Voices of cycles of preparation and accreation,
And of the threads that connect the stars – and of wombs, and of the fatherstuff,
And of rights of them the others are down upon,
Of the trivial and flat and foolish and despised,
Of fog in the air and beetles rolling balls of dung.
Through me forbidden voices,
Voices of sexes and lusts . . . . voices veiled, and I remove the veil,
Voices indecent by me clarified and transfigured.
131
a demonstração do que vem a ser contrapartida democrática primeiro afirma a existência do
baixo (como se tipos explorados e proibidos, escravos e prostitutas, fossem natureza e não
desajuste social) para depois clarificá-los e transfigurá-los sob o novo princípio que lhes dá
voz, imediatamente anulada: a palavra de revolta ou ressentimento que poderia pertencer
aos escravos, às prostitutas, aos doentes e aos deformados destrói apenas o que já foi
destruído, isto é, a ordem que os segregava. É nesse sentido que reconhecemos, já em
Song of Myself”, primeiro poema de 1855, o paradoxo formado mediante a
responsabilidade conferida à poesia de dar formas às tensões sociais: pois, à medida que a
poesia de Whitman celebra a União nacional sob a égide da Democracia, estendendo o
princípio de representação a todos, sem exceção, os conflitos de classes acabam
subsumidos por uma ordem superior e fechada; desse ponto de vista, que é supremo e
afirma sua onipresença enquanto o poeta reduz o universo material à letra de um
131
“Através de mim muitas vozes caladas e desejosas, / Vozes de intermináveis gerações de escravos, / Vozes
de prostitutas e de pessoas deformadas, / Vozes de doentes e desesperados e de ladrões e de anões,/ Vozes de
ciclos de preparação e crescimento, / E dos fios que ligam as estrelas – e dos úteros e das substâncias dos pais,
/ E dos direitos deles que outros colocaram abaixo, / Do trivial e fútil e bobo e desprezado, / Da neblina no ar
e dos besouros que rolam bolas de bosta. // Através de mim as vozes proibidas, / Vozes de sexos e luxúrias . .
. . vozes veladas e eu removo os véus, / Vozes indecentes por mim clarificadas e transfiguradas”.
WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 50. Cf. “
Song of Myself
, 24”, 211.
98
significado uno e indiviso, acabam as desigualdades tanto quanto as diferenças,
necessárias para o estabelecimento de uma ordem consensual. Disso decorrerá tanto a
degradação do Outro, que assumindo tudo o que já é assumido pelo poeta democrático
perde sua especificidade (torna-se o Mesmo), como a que dá ensejo àquelas “portas
arrancadas”, que simbolizam menos a resistência e o tumulto de um excluído do que uma
resistência impossível aos princípios que configuram o “kosmos” poético e democrático do
poeta, cuja expansão não conhece contrapelo:
Encompass worlds but never try to encompass me,
I crowd your noisiest talk by looking toward you.
Writing and talk do not prove me,
I carry the plenum of proof and everything else in my face,
With the hush of my lips I confound the topmost skeptic.
132
A prova absoluta é própria de uma ação que abarca todas as ações e nulifica todas as
pretensões de um outro tomá-la para si. Já não nos encontramos diante de um sujeito que,
“sem argumentos ou zombarias, testemunha e espera”; à medida que sua identidade não é
retorno de um “homem partido” à natureza, mas recuperação de um universal que o renova,
a cosmogonia do “americano Walt Whitman” surge da identidade do homem com o poder.
O poeta, segundo Leaves of Grass, será representação de um poder de formas absolutas e
totalizantes, que só diz respeito a si mesmo. Assim, o aviso – “abarque mundos, mas não a
mim” – não formaliza exatamente um ímpeto de desigualdade entre o poeta e seu público,
mas a própria natureza da unidade perpetrada no corpo do poeta, “parte e todo” de um
poder absoluto, que para renovar a fina ironia de Henry Adams, é reino sem rei, Estado sem
alegoria, transformando a diversidade do mundo em símbolos de seu significado vago,
porém uno, fechado e inequívoco.
132
“Abarque mundos, mas nunca tente me abarcar, / Eu loto sua fala mais alta só de olhar para você. //
Escrever e falar não dão provas de mim, / Eu trago comigo a plenitude da prova e tudo em meu rosto, / Com o
movimento dos meus lábios eu confundo o maior dos céticos”. WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”.
Em
Poetry and Prose
, 53. Cf. “
Song of Myself
, 25”, 213.
99
3
“I laugh at what you call dissolution,
And I know the amplitude of time.”
(“Leaves of Grass, 1855”)
“Let up again to feel the puzzle of puzzles,
And what we call Being.
To be in any form, what is that?”
(“Leaves of Grass, 1855”)
A resposta de Leaves of Grass aos princípios do “novo país” nos forçam a uma nova
interpretação das palavras que abrem o poema, principalmente às endereçadas ao
leitor/público: And what I assume you shall assume / For every atom belonging to me as
good belongs to you. Os poucos comentadores que se detiveram no “imperativo da
assunção” cuidaram, não sem algum incômodo, para que fosse atenuado em nome do
diálogo que se torna a forma mais original da poesia de Whitman. Contudo, ele ali
permanece (you shall assume”) tão estranho à “poesia democrática” como o argumento de
natureza (“for every atom”) que o poeta anuncia como razão para a adesão do Outro a seus
princípios. Afinal, parece-nos que a razão persuade mediante algo que a transcende, isto é,
que não depende do convencimento, tampouco do diálogo. De certa forma, a assunção não
indica igualdade, mas identidade – fim de todas as diferenças entre Mesmo e Outro, que a
Democracia, antes, deveria garantir.
O fim dessas distinções, proposta por Whitman em sua poesia natural e democrática
e derivada da representação de um poder absoluto que não conhece segregação, faz eco a
uma das passagens mais conhecidas do ensaísmo de Emerson. Em seu livro de estréia,
Nature, de 1836, Emerson nos fala de um retorno à Natureza como saída para os males de
uma “idade retrospectiva”, que constrói “o sepulcro de seus pais” e se dedica às atividades
da razão – biografias, crítica, história – sem repetir o feito das “gerações passadas” que
“olharam Deus e a Natureza face a face”. Falando, com Whitman, de um afastamento da
sociedade como forma de se alcançar o sublime, Emerson parte da mesma tensão entre
natureza e civilização para designar uma perspectiva pura, comparada à da criança
100
To speak truly, few adult persons can see nature. Most persons do not see the
sun. At least they have a very superficial seeing. The sun illuminates only the eye
of the man, but shines into the eye and the heart of the child.
133
e pela a qual o homem poderia se despir de seus anos, de seus artifícios e paixões para
desfrutar de uma experiência original:
In the woods too, a man casts off his years, as the snake his slough, and at what
period soever of life, is always a child. In the woods, is perpetual youth. Within
these plantations of God, a decorum and sanctity reign, a perennial festival is
dressed, and the guest sees not how he should tire of them in a thousand years. In
the woods, we return to reason and faith. There I feel that nothing can befall me
in life, -- no disgrace, no calamity, (leaving me my eyes,) which nature cannot
repair. Para falar francamente, poucos adultos podem ver a natureza. Standing
on the bare ground, -- my head bathed by the blithe air, and uplifted into infinite
space, -- all mean egotism vanishes. I become a transparent eye-ball; I am
nothing; I see all; the currents of the Universal Being circulate through me; I am
part or particle of God. The name of the nearest friend sounds then foreign and
accidental: to be brothers, to be acquaintances, -- master or servant, is then a
trifle and a disturbance. I am the lover of uncontained and immortal beauty. In
the wilderness, I find something more dear and connate than in streets or
villages. In the tranquil landscape, and especially in the distant line of the
horizon, man beholds somewhat as beautiful as his own nature.
134
133
“A maioria das pessoas não vêem o sol. No mínimo elas têm uma visão muito superficial. O sol ilumina
apenas o olho do homem, mas brilha no olho e no coração da criança.” EMERSON, Ralph Waldo.
Nature
(1836). Op.Cit., 6.
134
“Nos bosques também, um homem se despoja dos anos, como uma cobra de sua carcaça, e em todo aquele
período de vida, é sempre uma criança. Nos bosques, a juventude é perpétua. Com essas plantações de Deus,
um decoro e santidade reinam, um festival perene está composto, e o convidado não vê como ele poderia se
cansar em mil anos. Nos bosques, nós retornamos à fé e à razão. Lá eu sinto que nada pode me derrotar na
vida, - nenhuma desgraça, nenhuma calamidade, (deixando-me meus olhos), que a natureza não possa reparar.
Des pés descalços no chão – minha cabeça banhada com brisa agradável, e erguido em um espaço infinito –
todo o vil egotismo se esvai. Eu me torno um olho transparente; Nada sou; Vejo tudo; as correntes do Ser
Universal circulam através de mim; eu sou parte e partícula de Deus. O nome do meu amigo mais chegado
soa estranho e contingente: irmãos, conhecidos, - senhor ou servo, tudo é então um distúrbio trivial. Eu sou o
amante de uma beleza incontida e imortal. No mundo selvagem, eu encontro algo mais caro para mim do que
101
O “olho transparente” de Emerson declara, em termos abstratos, um ponto de vista
idêntico ao dos catálogos de Leaves of Grass. Notem-se as semelhanças que fazem justiça
às comparações entre o filósofo e o poeta: mais uma vez, encontraremos “as plantações de
Deus” (em Whitman, “pomares”, que ainda veremos), o retorno à razão e à fé (que marcam
o distanciamento do poeta para o encontro amoroso com sua Alma), o “corpo sem
disfarces” (aqui de “pés descalços”, com o vento soprando os cabelos), o contato com um
Ser Universal (absoluto, para o qual calamidades e desgraças nada são) e o fim das relações
sociais, em que se sublinhe a redução da exploração (senhores e servos) a um “distúrbio
ínfimo”. De quebra, Emerson conclui a passagem transformando tudo o que o circunda em
uma “tranqüila paisagem”, na qual “o homem vê algo tão belo quanto sua própria
natureza”, o que, em outros termos, equivale a reconhecer sua própria essência humana em
todos os objetos, sobrepujando até mesmo questões de propriedade, como lemos na
seqüência:
The charming landscape which I saw this morning, is indubitably made up of
some twenty or thirty farms. Miller owns this field, Locke that, and Manning the
woodland beyond. But none of them owns the landscape. There is a property in
the horizon which no man has but he whose eye can integrate all the parts, that
is, the poet. This is the best part of these men’s farms, yet to this their warranty-
deeds give no title.
135
Emerson empresta suas técnicas paisagísticas à poesia panorâmica e catalógica de
Whitman e permite que o poeta participe do que Richard Poirier (e com ele Jenine
Abboushi Dallal) argumentou como “a posse simbólica da América no olhar”, alternativa
“nobre” à expansão continental
136
, marca do “novo país” criticado por Henry Adams. Como
para Emerson, todas as convenções da sociedade que salta de Leaves of Grass aos olhos do
leitor (a propriedade, por exemplo, que se aplicava tanto a terras como a negros cativos)
nas ruas ou vilas. Na paisagem tranqüila,e especialmente na distante linha do horizonte, o homem atenta a
algo tãobelo quanto sua própria natureza.” EMERSON, Ralph Waldo. Nature (1836). Op.Cit., 6.
135
Citado por DALLAL, Jenine Abboushi. “American Imperialism UnManifest: Emerson’s ‘Inquest’ and
Cultural Regeneration”. Em American Literature, Volume 73, Number 1, March 2001, 67.
136
Idem.
102
desaparecem perante a natureza imaterial, o “horizonte”, que integra todas as coisas. A
possibilidade de imersão nessa natureza, de apagamento do sujeito, que “se desfaz dos
anos” em Nature para encontrar a si próprio no todo – movimento que Dallal chama de
conquest as inquest, em referência aos modos da ideologia expansionista norte-americana –
, está no cerne do trecho que encerra “Song of Myself”, quando, ao fim de seu périplo, o
“poeta intraduzível” diz a seu interlocutor que “parte como o ar”, “derramando sua carne
em redemoinhos” “para crescer da grama que amo”:
If you want me again look for me under your bootsoles.
You will hardly know who I am or what I mean,
But I shall be good to you nevertheless,
And filter and fibre your blood.
Failing to fetch me at first keep encouraged,
Missing me one place seaching another,
I stop some where waiting for you.
137
Chegamos, em Leaves of Grass, à revelação final da Democracia, que já não se
limita à articulação de sentimentos e opiniões coletivas ou simplesmente a uma forma de
organização política da sociedade, mas que se impõe como sentido inequívoco de um
mundo fechado e perfeito, que após a apresentação do poeta (“Walt Whitman, um
americano...”) e a resposta “daquilo que buscava deitado na grama
138
corresponderá à
137
Se você quiser me ver de novo procure sob suas botas. // Você dificilmente saberá quem sou o que
significo, / Mas mesmo assim ainda vou te trazer boa saúde, / E filtrar e engrossar o seu sangue. //
Desanimando de me pegar de primeira não desanime, / Não me vendo em um lugar procure em outro, / Eu
paro em algum lugar esperando por você”. WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
,
88. Cf. “
Song of Myself
, 52”, 247.
138
Swift wind! Time! Space! My soul! Now I know it is true what I guessed at; / What I guessed when I
loafed on the grass, / What I guessed while I lay alone in my bed . . . . and again as I walked the beach under
the paling stars of the morning. // My ties and ballasts leave me . . . . I travel . . . . I sail . . . . my elbows rest in
the sea-gaps, I skirt sierras . . . . my palms cover continents, / I am afoot with my vision.” (“Ventania! Tempo!
Espaço! Agora sei que é verdade o que já suspeitava; / O que suspeitava enquanto vadiava na grama, / O que
suspeitava enquanto estava deitado na cama . . . . e de novo enquanto andava pela praia sob a pálida estrela da
103
absoluta extensão do tempo e do espaço, “esrico produto de Deus” perante o qual o poeta
permanece para nele se imiscuir e, finalmente, se dissolver no solo que convida o
interlocutor ao mesmo périplo – ou encontro do mesmo. Respondendo ao problema inicial,
a “origem de todos os poemas”, encontraremos a Democracia – e a Nação norte-americana
– na essência do mundo que se liberta de um “velho cadávercolonial, feudalista, artificial
e tirânico. Reforçada ainda pela figuração tipológica, que mantém no horizonte a
possibilidade de completude e concerto do universo, a poesia de Whitman, em 1855, perde
o senso de mediação, que ainda se mantinha em Emerson, para quem o particular (“nós”)
pode alcançar a universalidade. Já, segundo Whitman, o quadro se inverte. Partindo de um
de absoluto conferido ao particular, a nação norte-americana se torna a própria
universalidade, enquanto a democracia, essência, é idêntica à Natureza. Em outras palavras:
a América é o próprio mundo.
Assim, abre-se um novo caminho de interpretação do imperativo à luz do poder
absoluto e do “novo país” que o poeta representa. Como Dallal nos ensina, uma das
qualidades do debate sobre a aplicabilidade da Constituição aos territórios do Oeste é sua
auto-suficiência, traduzida pela idéia de que o documento “interpretava a si mesmo”. Essa
possibilidade discursiva seria contemplada, por exemplo, nas discussões entre os Senadores
John Calhoun e Daniel Webster acerca da aceitação do Oregon na União, defendida por
Calhoun segundo o princípio de que a Constituição se pronuncia como a “suprema lei da
terra” (grifo meu). O questionamento de Webster, que ironiza a indeterminação do discurso
de Calhoun (“What land?”), é contrargumentado pelo fato dos próprios Estados Unidos
serem “uma parte da terra
139
. A idéia de “autoexpansão em um espaço livre”, implícita na
internalização de qualquer querela entre o país e o que vai além de suas fronteiras (note-se
que não se discute a natureza do território conquistado, mas apenas a validade da
Constituição nesse território), vem acompanhada de uma história de ocupações e conflitos
jamais contados com sangue e força, mas terminologia diplomática e consensual. Às
manhã. // Minhas amarras e meus lastros me deixam . . . . eu viajo . . . . eu navego . . . . meus cotovelos
descansam nos desfiladeiros do mar, / Eu contorno serras . . . . as palmas das minhas mãos cobrem
continentes, / Caminho com minha visão”.). WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and
Prose, 59. Cf. “Song of Myself, 33”, 219.
139
Citado por DALLAL, Jenine Abboushi. “American Imperialism UnManifest: Emerson’s ‘Inquest’ and
Cultural Regeneration”. Em American Literature, Volume 73, Number 1, March 2001, 47.
104
muitas “anexações”, “compras” e “cessões” que escondem, sob a negociação de cavalheiros
(ou, como quis o Presidente James Polk, em sua “Mensagem de 1845”, “a deliberada
homenagem de cada pessoa a um grande princípio”
140
), o holocausto indígena, a afronta da
soberania mexicana ou mesmo a encenação de um atentado na costa de Cuba, que inicia a
Guerra contra a Espanha em 1898, poderíamos introduzir justamente os termos que
consagram as relações entre o poeta, o público e o mundo em 1855: para o primeiro, a
assunção, propriamente consensual, cujo imperativo não chega sequer a disfarçar o estado
de fragmentação, desacordo e violência que marcam as relações sociais; já ao segundo, a
possibilidade de auto-interpretação da Constituição, que se transforma em “essência
americana de todas as terras”, essas tornadas “letras” do princípio articulado no documento,
do mesmo modo que a sociedade e o mundo se relacionam com a “velha lei” do poeta.
Entretanto, o expansionismo-norte-americano apenas confirma um longo processo
político, que José Luiz Orozco define, pensando na figura histórica de Henry Adams, como
“o esgrimir do universo político e intelectual do primeiro mundo burguês norte-americano”
(no qual encontraríamos o primeiro desenvolvimento poético de Emerson, calcado na
representatividade do XVIII) “ante a corrosão e a vulgaridade do segundo, monopolista e
imperialista
141
(em que Whitman submete aquela representatividade ao absoluto
democrático). Trata-se da consolidação do capitalismo no país, que já na década de 1850
faz a expansão ser acompanhada da implementação de ferrovias, do crescimento da
indústria pesada, da destruição do modo de produção artesanal e da conseqüente
proletarização dos artesãos, favorecidos pela centralização do poder num esquema que o
mesmo historiador (falando a Gilded Age) define como “germanização” do Estado. A
grande ironia que perpassa tal processo está no fato de que todas as muletas ideológicas do
período, inaugurado pela “Doutrina Monroe” (1823) da América para os americanos e
depois envolvido de aura religiosa pelo “Destino Manifesto” (1845), correspondem à
destruição sistemática daquilo que conferira ao país um destino diverso da Europa e
legitimara seu sentido de civilização.
140
DALLAL, Jenine Abboushi.
Op. Cit
., 55.
141
OROZCO, José Luiz.
Henry Adams y la Tragédia Del Poder Norteamericano
, 14.
105
Retomando Whitman, não há pensamento mais distante da configuração de Leaves
of Grass do que o da própria fundação norte-americana, que Whitman tinha a pretensão de
completar. Voltemos à discussão dos fundadores, segundo Hannah Arendt:
O próprio fato de os homens da Revolução Americana se considerarem
fundadores indica até que ponto eles devem ter tido consciência de que seria o
próprio ato de fundação, e não um Legislador Imortal, ou uma verdade auto-
evidente, ou qualquer outra fonte transcendente e extraterrena, que acabaria se
tornando a fonte de autoridade do próprio corpo político. Daí se segue que é inútil
a busca de um absoluto para romper o círculo vicioso no qual todo o princípio se
enreda, porque esse “absoluto” está no próprio ato de iniciação. De certa forma,
esse fato sempre foi conhecido, embora nunca tenha sido cabalmente articulado
em termos conceituais, pela simples razão de que o próprio princípio anterior à
era da Revolução, sempre estivera envolto em mistério, e sempre fora objeto de
especulações. A fundação que agora ocorrera, pela primeira vez, em plena luz do
dia, passível de ser testemunhada por todos aqueles que a presenciaram, fora,
durante milhares de anos, objeto de lendas primordiais, através das quais a
imaginação tentava devassar um passado e um evento que a memória não poderia
alcançar.
142
O fundamento da República Americana, segundo Arendt, estava no entendimento
do que lhe dava legitimidade institucional. No que concerne às monarquias européias, as
leis e sua execução ligavam-se, em última instância, a Deus, cujo poder absoluto era
delegado, na Terra, ao Rei, sendo, portanto, o Estado regido por uma força centralizadora
que se manifestava em todo o chamado Corpo de Estado, do qual a cabeça era o regente e
os membros formados por seus súditos. O que distinguiria a Revolução Americana das
demais Revoluções, sobretudo a Francesa, reside na solução dada ao problema do absoluto
político. Nesta última, o absoluto não foi questionado mesmo quando foi fundada a
República: instituiu-se, com Robespierre, o chamado “Legislador Imortal”, o que segundo a
mesma filósofa seria, “herança do absolutismo, o qual, por sua vez, fora constituído
herdeiro daqueles longos séculos em que nenhum estado secular existia no Ocidente que
não estivesse, em última instância, assente na sanção outorgada pela Igreja, e, por
conseguinte, em que as leis seculares eram entendidas como a expressão mundana de uma
106
lei divinamente outorgada”
143
. Quando os fundadores da República Americana conferem
autoridade à fundação, sem apelos a um absoluto que não estivesse subscrito àquele
mesmo ato, e, além disso, partilham esse poder absoluto entre os Estados, que formarão,
pela força do consenso dos representantes – e não de Deus –, a União política do país,
instaura-se uma ordem diversa, coesa não por obra superior, mas pela própria ação,
consciência e memória dos indivíduos, que assim negam qualquer transcendência em
relação ao ato e ao arbítrio do início.
A dissolução do poeta no mundo, que fecha a celebração da identidade em Song of
Myself”, o primeiro poema de 1855 e, sem dúvida alguma, o maior esforço poético de
Whitman, apela justamente àquela forma absoluta e superior a todo ato humano.
Entretanto, cabe-nos perguntar como surge essa forma, que, por um lado, não tem paralelo
na história da cultura política do país e, por outro, tem uma configuração complexa o
suficiente para afastar qualquer menção, pelo menos direta, a uma nascente ideologia de
Estado. Essa configuração está na base do princípio tipológico, que embora secularizada ao
longo do XVIII, não perde a característica de reduzir a diversidade à manifestação de um
princípio abstrato, absoluto em sua essência. Assim, à medida que os panoramas, urbanos e
rurais, e a configuração física e espiritual do próprio poeta manifestam um princípio de
unidade nacional, política e natural, o poeta não só eleva tudo que sua visão abrange a uma
condição divina e absoluta como transforma toda sociedade, em suas mínimas formas, em
uma “manifestação secular” dessa unidade. Não há dúvida de que a ideologia do Destino
Manifesto, surgida na década de 1840 como parte do movimento expansionista norte-
americano, tem origens culturais puritanas; entretanto, Whitman está menos interessado na
declaração meramente ideológica desse destino do que em sua própria elaboração literária
que, democratizando a representação e submetendo-a à tipologia, torna a sociedade “letra”
de uma União mística.
Não se trata, portanto, da mera adoção do absoluto político nos termos do Estado
monárquico ou da República sob o comando de um “Legislador Imortal”, em resposta a
uma unificação territorial que a federação consensual dos fundadores não admitia, mas de
142
ARENDT, Hannah. Da Revolução, 164.
143
Idem
, 152.
107
um pensamento singular em seu movimento, uma vez que transforma um construto racional
(a União era formada pelo consenso de Estados que faziam a partição do absoluto,
ganhando independência entre si, e sua subordinação aos indivíduos) em uma expressão de
Deus, para o que não há dissidência. Enquanto, na ordem européia, a primeira queda da
justificativa divina do poder (a execução do rei) serve à deslegitimação de tudo que decorra
desse acontecimento, a ordem norte-americana segue em sentido contrário, pois transforma
uma elaboração racional, construída pela ação, em princípio abstrato e supremo, portador
de poderes de representação absolutos e centralizadores. Assim, transforma-se a “vastidão
desconhecida”
144
e o isolamento quase ontológico da América, decorrentes dos debates
sobre a fundação do Estado, que inicialmente livraram o país de qualquer absoluto político
ou representação de um Supremo, na expressão de um “grande princípio”, seja a “lei
natural” que une homens e animais e permite ao poeta falar a uma totalidade perfeita, na
qual ele poderá, por seu poder único de representação, ser tudo e todos em quaisquer
formas, posto que amparado por uma existência superior e controladora impossível de ser
vislumbrada e à qual se identifica.
É certo que Whitman não escreve tratados políticos; no entanto, será ingenuidade
crer que sua literatura não expresse mudanças conceituais radicais no pensamento político
do país – ainda mais quando, para retratá-lo, se vale do que Arendt, para confrontar as
tradições políticas do Novo e do Velho Mundos, chama “o mais comezinho e mais perigoso
dos disfarces que o absoluto jamais assumiu na esfera política, o disfarce da nação”
145
.
Como coloca a crítica mais recente, a igualdade entre homens e mulheres, a inversão de
postura na relação do povo com seus representantes, a dignificação daqueles que viviam à
margem do sistema, a libertação de escravos, a celebração do sexo e do corpo contra a
hipocrisia e a degeneração têm contrapartida real, possível de ser rastreada num mundo de
interesses conflituosos, tenso, cujas irresoluções políticas, que encontram sua realidade
mais crua nos embates acerca do valor da Constituição, parecem conduzir à inevitável
secessão. No entanto, como diz o próprio autor em seu testamento literário,
144
“Na perspectiva da História, sabemos hoje quais as conseqüências dessa libertação, sabemos como isso
afastou a América do desenvolvimento do Estado-Nação europeu, interrompendo, por mais de cem anos, a
unidade original da civilização atlântica, lançando a América de volta à ‘vastidão desconhecida’ do novo
continente e despojando-a da grandeza cultural da Europa”. ARENDT, Hannah.
Da Revolução
, 156.
108
This was a feeling or ambition to articulate and faithfully express in literary or
poetic form, and uncompromisingly, my own physical, emotional, moral,
intellectual, and aesthetic Personality, in the midst of, and tallying, the
momentous spirit and facts of its immediate (...).
146
Leaves of Grass não é exatamente a grande crônica do XIX norte-americano que alguns
críticos esperam e dependerá, a título de teoria, das formas literárias ou poéticas para o
“registro” dos tempos. Imbuídas de tal responsabilidade, essas formas começarão, em
breve, a se destruir junto ao edifício representativo e tipológico que as sustentava.
Em outras palavras: as formas literárias aproveitadas por Whitman negarão o
embate democrático, pedindo estabilidade e organicidade a uma União que, elevada à
condição divina e infalível, semelhante àquela fundamentada na política européia, leva seu
poeta a diminuir a importância das ações individuais em nome do “palco” de seus
acontecimentos, que por sua vez determina atos e pensamentos tornando-os expressão
tipológica e inequívoca de seu princípio. Não é à toa que Whitman encontra no teatro uma
das metáforas mais arraigadas para a definição de mundo em Leaves of Grass. Quando trata
de comparar a vida Americana ao “coro musical” (“it is indeed music”), o parâmetro de
Whitman será a ópera, ou seja, a encenação de papéis cujo conjunto formará a grande peça,
de conjunto harmônico e fechado. Prosseguindo com a relação, em uma das passagens mais
dramáticas do poema, quando o poeta assume o corpo e a condição de um escravo
perseguido
I am the hounded slave, I wince at the bite of the dogs,
Hell and despair are upon me, crack and again crack the marksmen,
I clutch the rails of the fence, my gore dribs, thinn'd with the ooze of my skin,
I fall on the weeds and stones,
The riders spur their unwilling horses, haul close,
145
Idem, 156.
146
“Este era um sentimento ou ambição de articular e expressar em forma literária ou poética, e
descompromissadamente, sua própria Personalidade física, emocional, moral, intelectual e estética em meio, e
registrando, ao espírito momentâneo e os fatos de seus dias imediatos (...).WHITMAN, Walt. “Backward
Glance O’er Travel’d Roads”. Em
Poetry and Prose
, 658.
109
Taunt my dizzy ears and beat me violently over the head with whip-stocks.
o clímax da cena coincide com um abrupto distanciamento, em que o poeta retoma sua
própria voz para teorizar o momento experimentado:
Agonies are one of my changes of garments,
I do not ask the wounded person how he feels, I myself become the wounded
person,
My hurts turn livid upon me as I lean on a cane and observe.
147
Com esta passagem, recortada da grande seqüência que se inicia quando, após a
jornada pela totalidade do mundo, o poeta faz uso de sua já discutida superioridade sobre
todas as coisas, aqui expressa pela visita ao velho lugar-comum das “plantações de Deus”
emersonianas –
I visit the orchads of God and look at the spheric product,
And look at quintillions ripened, and look at quintillions green
(...)
I help myself to material and immaterial,
No guard can shut me off, no law can prevent me.
148
– reforçamos não apenas o princípio performático da poesia de Whitman, cujo verso se
baseia em formas declamatórias, pelas quais o sujeito poético não difere em modos de um
147
“Eu sou o escravo fugitivo . . . tremo com a mordida dos cães, / Inferno e desespero caem sobre mim . . . .
atiradores não param de atirar, / Me agarro aos paus da cerca . . . . meu sangue escorre grosso com a lama da
minha pele, / Eu caio sobre o mato e as pedras, / Os cavaleiros esporeiam seus cavalos ariscos e me acuam, /
Xingam em meus ouvidos atordoados . . . me batem na cabeça com violência com o cabo dos chicotes. //
Agonias são uma de minhas mudanças de indumentária/ Eu não pergunto ao ferido como ele se sente . . . . eu
mesmo me torno o ferido, / Minha dor se torna lívida em mim enquanto me apóio na bengala e observo”.
WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 65. Cf. “Song of Myself, 33”, 225.
148
Eu visito os pomares de Deus e olho para seu esférico produto, / E olho para os quintilhões colhidos e
para os quintilhões verdes. // (...) Evito o material e o imaterial, /Não há guarda que possa me barrar, não há
lei que possa me barrar”. WHITMAN, Walt.
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 63. Cf. “
Song of
Myself
, 33”, 223.
110
orador diante de seu público, esse igualmente contemplado pelas formas poéticas, como
também vemos a esfera pública, recriada literariamente por essa relação, se desdobrar em
uma espécie de encenação, segundo a qual cada indivíduo (o sabemos pelas longas listas de
catálogos e, agora, por esses momentos de imersão do poeta) possui um papel a ser
interpretado sobre o palco continental da América, onde o poeta tem absoluto controle,
temporal e espacial: I am the man . . . . I suffured . . . . I was there.
149
Por outro lado, a idéia da política como teatro tem forte tradição na fundação norte-
americanas. Basta que contemplemos o conteúdo político que o teatro pode assumir em
uma República, notado com bastante precisão por John Adams ao tratar da “paixão da
distinção” – “o desejo não apenas de igualar-se ou assemelhar-se, mas de distinguir-se” –
como impulso para as ações humanas e vitalidade da representação política, que dessa
forma deixa de ser mera questão de “autopreservação” para se estabelecer no cerne do
domínio público. Falando sobre a pobreza, o mesmo Adams não se refere à ausência de
condições mínimas de sobrevivência, mas sim da falta do “brilho da excelência”:
A consciência do pobre é límpida; contudo, ele se envergonha [...] Sente-se
alijado da visão dos outros, tateando no escuro. A humanidade não toma
conhecimento dele, e ele vagueia e perambula, desapercebido. Em meio a uma
multidão, na igreja, no mercado [...] ele está tão na obscuridade quanto se
estivesse num sótão ou num porão. Ele não é nem desaprovado, nem censurado,
nem acusado; ele simplesmente não é notado [...] Ser totalmente ignorado e ter
consciência disso, é algo intolerável.
150
Da perspectiva de Whitman, as palavras de Adams dizem respeito a um mundo
passado, que Hannah Arendt situa em uma “ausência da miséria” inerente às condições da
vida na América colonial, que teria possibilitado ao presidente “descobrir a exigência
política dos pobres” – muito embora, segundo a mesma filósofa, o “brilho da excelência”
não tivesse tido influência no curso da revolução justamente por essa ser uma idéia
“dificilmente compartilhada pelos pobres”, para os quais a função do governo continuava a
ser, mesmo em momentos de bonança ou bem-estar, a da autopreservação. De qualquer
149
WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 64. Cf. “
Song of Myself
, 33”, 225.
150
ADAMS, John. “Discourse on Davila”. Citado por ARENDT, Hannah.
Op.Cit
., 55.
111
forma, ainda que Whitman pretenda com seu “teatro nacional” recuperar o “brilho” e fazer
com que todos os homens, independente de sua condição, recebam as luzes da ribalta e
façam sua vida falar por si própria, a pobreza de Adams, que dá condições ao anúncio de
uma “nova história” (Novus Ordo Saecuorum, para usar os termos da República fundada) já
não é conhecida do poeta. Para demonstrar a distância entre ambos, damos a palavra ao
bisneto do presidente, Henry Adams, que rememorando sua participação como secretário
na missão diplomática do pai na Inglaterra no início dos anos 1860 (cabia a esse dissolver a
aliança entre confederados e ingleses), nos fala de sua “educação prática” no tumultuado
“Distrito Negro” de Birmingham:
Then came the journey up to London through Birmingham and the Black District,
another lesson, which needed much more to be rightly felt. The plunge into
darkness lurid with flames; the sense of unknown horror in this weird gloom
which then existed nowhere else, and never had existed before, except in volcanic
craters; the violent contrast between this dense, smoky, impenetrable darkness,
and the soft green charm that one glided into, as one emerged;the revelation of
an unknown society of the pit,—made a boy uncomfortable, though he had no
idea that Karl Marx was standing there waiting for him, and that sooner or later
the process of education would have to deal with Karl Marx much more than with
Professor Bowen of Harvard College or his Satanic free-trade majesty John
Stuart Mill. The Black District was a practical education, but it was infinitely far
in the distance. The boy ran away from it, as he ran away from everything he
disliked.
151
As memórias do velho Henry Adams lançam à “educação prática” do jovem a visão
de uma realidade desconhecida e que, entretanto, se anuncia ameaçadora à República que
fazia parte de seu próprio sangue. Assumir Marx e a “sociedade anônima da pena” era
assumir também a falência de um projeto Americano, sem dúvida pré-moderno e
reacionário, apesar de projetar sobre Adams uma lucidez tremenda, que o permite
relacionar a realidade do Black District londrino não apenas a um modo de produção
(Adams, já vivendo a Guerra de Secessão, compara a revolta do lumpesinato londrino a
uma rebelião de escravos no Sul), mas também à tradição política norte-americana, que não
151
ADAMS, Henry. “Berlin (1858-1859)”. Em
The Education of Henry Adams
(1918).
112
poderia permitir a reprodução da sociedade de classes capitalista sem desvirtuar sua origem
republicana, à qual devemos acrescer, segundo a perspectiva adamsiana, alguma hipocrisia.
De qualquer forma, fique claro que Adams não repele Marx – Adams repele, antes, a
sociedade que dá ensejo à perspectiva marxista, que tiraria dos Estados Unidos sua
especificidade frente às aristocracias européias e lançaria o país a um estado de conflito
permanente.
São o Distrito Negro e o lumpesinato – não a “obscuridade” da pobreza dos
fundadores – os problemas que Whitman, iniciando sua poesia pelos meios da
representatividade herdada de Emerson, tem em mãos. Em Five Points, distrito de
Manhattan que, por suas condições subumanas, estava à altura do gueto inglês, Whitman
recolherá suas técnicas de palco junto a atores do Bowery como Edwin Forrest e Junius
Brutus Booth – “O Trágico Louco” – que levava ao palco de seu Ricardo III, segundo o
velho Whitman de November Boughs, “significados sem precedentes” para as palavras
“fogo, energia e abandono
152
, qualidades que serviam para designar um “estilo
americano” de atuação, igualmente verificável entre aqueles que freqüentavam o lugar:
Recalling from that period the occasion of either Forrest or Booth, any good
night at the old Bowery, pack’d from ceiling to pit with its audience mainly of
alert, well dress’d, full-blooded young and middle-aged men, the best average of
American-born mechanicsthe emotional nature of the whole mass arous’d by
the power and magnetism of as mighty mimes as ever trod the stagethe whole
crowded auditorium, and what seeth’d in it, and flush’d from its faces and eyes,
to me as much a part of the show as anybursting forth in one of those long-
kept-up tempests of hand-clapping peculiar to the Boweryno dainty kid-glove
business, but electric force and muscle from perhaps 2000 full-sinew’d men
(...).
153
152
The Old Bowery
”. Em “
November Boughs
”. WHITMAN, Walt.
Op.Cit
., 1216.
153
"Recordando daquele período os momentos de Booth e Forrest, qualquer boa noite no velho Bowery, cheio
do forro ao fosso como sua platéia formada sobretudo de jovens fortes e homens de meia-idade, atenciosos e
bem-vestidos, a melhor média dos mecânicos americanos natos – a natureza emocional de toda a massa
despertada pelo poder e o magnetismo dos comediantes mais poderosos que já pisaram o palco – o auditório
completamente lotado e o que nele se agitava e brilhava dos rostos e dos olhos, para mim tão integrada ao
espetáculo quanto qualquer outra parte – explodindo em uma daquelas longas tempestades de palmas próprias
113
Como respondesse ao problema do “brilho”, Whitman ainda lamentará que, após o
declínio do Bowery na década de 1840, “os jovens construtores de barcos, os açougueiros,
os bombeiros (o “costeletas-de-sabão” dos velhos tempos ou o exagerado “Mose” ou
“Sikesey” das peças de Chanfrau)” jamais tenham encontrado seu Dickens, ou Hogarth, ou
Balzac, “desaparecendo sem retrato
154
. Alguém poderia objetar os lamentos do poeta com
sua própria poesia. Entretanto, descobrimos pela poesia de Whitman que a excelência desse
palco e de seus caracteres, buscada pela legitimidade de uma poesia democrática, já não se
faz, com o perdão do paradoxo, sem a mediação de um absoluto que a vida teatral da
República não pressupunha, ou melhor, refratava, posto que toda idéia de transcendência é
contrária ao tipo de excelência e destaque do antigo teatro político. Em outras palavras: a
própria idéia de nação, em que se assenta a possibilidade do poeta assumir “todas as
formas” e papéis, estendendo o princípio de representatividade a todos, destrói a
exuberância e a pluralidade da Democracia, que se faz absoluta e finalmente entregue às
imposições da ordem econômica, capitalista e industrial, que cria tais caracteres. É a
possibilidade de se erguer às alturas dos “pomares de Deus para olhar sobre o esférico
produto”, visão de um absoluto presente nos traços da nação unida, subsumindo toda a
diferença e reduzindo os indivíduos a uma ação prevista pela natureza – e não a disputa
racional e política – que permite a cada um de “nós” seu “verso de fama”.
Interessante, nesse sentido, é observar como Whitman se apropria, com muito
entusiasmo, de elementos de cultura de massa (cujo espetáculo é absolutamente contrário à
atividade política) para recuperar o brilho e a excelência dos “indivíduos” contemplados
por sua poesia. Afora o próprio uso da oratória e de suas técnicas persuasivas, bastante
apreciadas pelos populares norte-americanos, do imperativo inicial, segundo o qual temos
de assumir tudo o que o poeta assume sob o risco de alienarmos nossa própria natureza
(“for every atom belonging to me as good belongs to you”), à exaltação dos “trilhões de
invernos e verões” que guardamos conosco, anunciando os “outros trilhões” que ainda
do Bowery – sem aquele negócio delicado de luvas de pelica, mas a força elétrica e a energia de talvez 2000
homens em pleno vigor”. “
The Old Bowery
”. Em “
November Boughs
”. WHITMAN, Walt.
Op.Cit
., 1213.
154
The Old Bowery
”. Em “
November Boughs
”. WHITMAN, Walt.
Op.Cit
., 1216.
114
viveremos
155
, Whitman sempre envolve seus talentos persuasivos – dedicados a uma vida
sem disfarces e à adesão a um princípio de nacionalidade – em um conceito bastante
material, científico e preciso de realidade:
My words are words of a questioning, and to indicate reality;
This printed and bound book . . . . but the printer and the printing-office boy?
The marriage estate and settlement . . . . but the body and mind of a bridegroom?
Also those of the bride?
The panorama of the sea . . . . but the sea itself?
The well-taken photographs . . . . but your wife or friend close and solid in your
arms?
(...)
The saints and sages in history . . . . but you yourself?
Sermons and creeds and theology . . . . but the human brain, and what is called
reason, and what is called love, and what is called life?
156
Não é somente a analogia com procedimentos técnicos industriais que torna a
“realidade” de Leaves of Grass um construto próprio da era industrial. Aqui livros,
propriedade, paisagismo, retratos, santos e teologias são destituídos de autoridade em nome
da realidade; contudo, à medida que o poeta nivela meios industriais ou mecânicos e de
pensamento, mesmo quando não se tratam exatamente dos chamados media, como é o caso
da teologia, chegamos a uma unidade de conjunto, que implica tomar um só caminho: o de
uma realidade passiva de reprodução. Em passagem muito semelhante àquela em que Walt
ensina a seu interlocutor “a origem de todos os poemas”, propondo a visão de um mundo
155
“Eternity lies in bottomless reservoirs . . . . its buckets are rising forever and ever, / They pour and they
pour and they exhale away. // We have thus trillions of winters and summers; / There are trillions ahead, and
trillions ahead of them.” WHITMAN, Walt. "Leaves of Grass 1855". Op.Cit., 80. Cf. “Song of Myself, 44”,
238. A primeira estrofe foi excluída da última edição do poema.
156
“Minhas palavras são palavras de um questionamento e para indicar a realidade? / Este livro impresso e
fechado . . . . mas e o gráfico e o menino da gráfica? / O dote do casamento e o assentamento . . . . mas e o
corpo e a mente do noivo? Mas e os da noiva? / A perspectiva do mar . . . . mas e o mar? / As fotos bem
tiradas . . . . mas e sua mulher ou amigo próximo e sólido em seus braços? / (...) Os santos e os sábios na
história . . . . mas e você mesmo? / Sermões e crenças e teologia . . . . mas e o cérebro humano e o que eles
115
em “primeira mão”, Whitman pede ao Poeta “que seus poemas não sejam feitos do espírito
que advém do estudo dos retratos das coisas e sim do espírito que advém do contato com as
coisas reais elas mesmas”,
157
o que em sentido inverso significa reiterar a possibilidade de
reduzi-las a retratos, desde que não sejam “retratos de retratos”. Seguindo Susan Sontag,
que apontava para o fato de como a fotografia do século XX atendia às exigências estéticas
de Whitman ao abarcar o baixo e o feio ao lado do belo,
158
é possível pensar, antes, como a
fotografia (importante elemento da cultura de massa do XIX norte-americano) participa da
própria base figurativa de Leaves of Grass:
IN a little house keep I pictures suspended, it is not a fix'd house,
It is round, it is only a few inches from one side to the other;
Yet behold, it has room for all the shows of the world, all memories!
Here the tableaus of life, and here the groupings of death;
Here, do you know this? this is cicerone himself,
With finger rais'd he points to the prodigal pictures.
159
O tema de “Minha Galeria de Retratos” (1881) é antigo e remonta aos primeiros
esboços do livro, quando em um longo poema intitulado “Pictures” (1855), excluído da
primeira edição de Leaves of Grass, o Poeta dizia receber de tudo que ouvia, lia ou
observava, formando assim um longo catálogo de História Universal do qual constam
heróis, poetas, políticos, povos, monumentos, paisagens e lugares – “Eu nomeio todas as
coisas à medida que elas vêm” –, todos “perfeitos retratos” pendurados em suas paredes
mentais. O princípio de “Pictures” é o mesmo que governa a perspectiva das cenas da
chamam de razão e o que eles chamam de amor e o que eles chamam de vida?”. WHITMAN, Walt.
"Leaves
of Grass 1855". Op.Cit
., 76. Cf. “
Song of Myself
, 42”, 236.
157
Citado por ORVELL, Miles.
The Real Thing: Imitation and Authenticity in American Culture
, 06.
158
Cf. SONTAG, Susan. “Estados Unidos, Vistos em Fotos, sob um Ângulo Sombrio”. Em
Sobre Fotografia
,
39-61.
159
Em uma pequena casa mantenho os retratos suspensos, não é uma casa fixa, /É redonda, tem só algumas
poucas polegadas de um canto a outro; / Mas atenção! Ela tem espaço para todos os espetáculos do mundo,
todas as memórias! / Aqui estão os quadros da vida, aqui estão os grupos da morte; / Aqui, você conhece isto?
É o próprio guia, / Com o dedo erguido ele aponta para os pródigos retratos”.
"My Picture Gallery”
.
WHITMAN, Walt. “
Autumn Rivulets
”.
Op. Cit
., 524.
116
primeira parte de “Song of Myself”, como se o olho do poeta se equiparasse às lentes de um
daguerreótipo e “registrassem” eventos e tipos com a precisão de um discurso que se
pretende “idêntico à visão”, como é dito no primeiro poema de 1855
160
. Por outro lado, a
ilusão de realidade sugerida pela fotografia se adequa bem aos modelos de evidência, prova
e argumento presentes nas formas da poesia de Whitman, que desde o prefácio exalta as
qualidades inerentes aos chamados modelos naturais:
These American states strong and healthy and accomplished shall receive no
pleasure from violations of natural models and must not permit them. In
paintings or mouldings or carvings in mineral or wood, or in the illustrations of
books or newspapers, or in any comic or tragic prints, or in the patterns of woven
stuffs or any thing to beautify rooms or furniture or costumes, or to put upon
cornices or monuments or on the prows or sterns of ships, or to put anywhere
before the human eye indoors or out, that which distorts honest shapes or which
creates unearthly beings or places or contingencies is a nuisance and revolt. Of
the human form especially it is so great it must never be made ridiculous. Of
ornaments to a work nothing outre can be allowed . . but those ornaments can be
allowed that conform to the perfect facts of the open air and that flow out of the
nature of the work and come irrepressibly from it and are necessary to the
completion of the work. Most works are most beautiful without ornament. . .
Exaggerations will be revenged in human physiology. Clean and vigorous
children are jetted and conceived only in those communities where the models of
natural forms are public every day. . . . . (...).
161
160
WHITMAN, Walt.
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 37-38. Cf. “
Song of Myself
, 13-14”,
199-200.
161
Estes estados Americanos fortes e saudáveis e talentosos hão de encontrar prazer nenhum da violação de
modelos naturais e não o permitirão. Em pinturas ou moldes ou entalhes em pedra ou madeira, ou nas
ilustrações de livros ou jornais, ou em qualquer impresso cômico ou trágico, ou nos modelos de produtos
trançados ou de qualquer coisa de embelezar cômodos ou mobília ou vestimentas, ou de colocar por sobre
cornijas ou monumentos ou na proa ou popa dos navios, ou de colocar em qualquer lugar diante do olho
humano, em interiores ou exteriores, aquilo que distorce formas honestas ou que cria seres não-terrenos ou
lugares ou contingências é um estorvo e revolta. Da forma humana especialmente ela é tão grandiosa que
nunca deve ser ridicularizada. De ornamentos a um trabalho nada de exagerado pode ser permitido. . . senão
aqueles ornamentos conformes aos fatos perfeitos do céu aberto e que fluem da natureza do trabalho e vêm
irrepreensivelmente dele e são necessários para a finalização do trabalho. A maioria dos trabalhos são mais
117
Embora a defesa da figuração natural beire o absurdo, aqui se nota como as
exigências da realidade são recebidas e transmitidas pela poesia de Whitman, de início
“literatura a-literária” que se presta à denúncia do literário como artificioso e contrário “às
coisas como elas são”. Mesmo a idéia de História é revista por essa concepção de “registro
objetivo”, segundo o qual, no dizer do escritor Oliver Wendell Holmes, “a verdade mesma
será conservada e a história deixará de ser fabulosa”, opinião que dividia com Whitman,
para quem seria muito melhor que os inúmeros registros contraditórios e os testemunhos da
Antigüidade pudessem ser substituídos por uma meia dúzia de bons retratos, “a melhor
história, história da qual não haveria súplica”
162
. Há de se considerar, neste ponto, que o
advento da fotografia não opera essa revolução de mentalidades sozinha: a valorização da
imagem como “verdade nua e crua” vem acompanhada de saberes que entendiam na
aparência e na matéria todos os sintomas e evidências da alma convertida em uma verdade
que já não dependeria de convencimento, “argumentos, metáforas, símiles ou rimas”, mas
simplesmente da demonstração de sua “presença”
163
, o que sem dúvida permanece no
horizonte de Whitman, que pensava seu livro e seus poemas como partes de si mesmo,
corpo e matéria que em 1855 habilitavam seus leitores à “leitura de um homem” mediante
um de seus possíveis retratos:
Its author is Walt Whitman and his book is a reproduction of the author. His
name is not on frontispiece, but his portrait, half-lenght, is. The contents of the
book form a daguerreotype of his inner being, and the title page bears a
representation of its physical tabernacle
.
164
bonitos sem ornamento. Puras e vigorosas crianças são esguichadas e concebidas apenas naquelas
comunidades onde os modelos das formas naturais são blicos todos os dias. . . . (...).” WHITMAN, Walt.
"Leaves of Grass 1855".
Op.Cit
., 19.
162
REYNOLDS, David.
Op.Cit
, 282.
163
I and mine did not convince by arguments, similes, metaphors, rhymes / We convince by our presence.
"Song of The Open Road, 10" WHITMAN, Walt. Op.Cit., 303.
164
“Seu autor é Walt Whitman e seu livro é uma reprodução do autor. Seu nome não está no frontispício, mas
seu retrato, de meio corpo, está. Os textos do livro formam um daguerreótipo de seu ser interior e a página de
título carrega uma representação de seu tabernáculo físico.” Anônimo (Walt Whitman). “
Leaves of Grass
”.
Publicado no
Brooklyn Eagle
em 15.09.1855 e citado por ORVELL, Miles.
Op.Cit
., 08.
118
A aproximação da imagem poética ao retrato e, portanto, às técnicas fotográficas é
mais do que uma mera metáfora. Segundo a voz de seus mais importantes admiradores, a
fotografia era o “maior dos triunfos humanos sobre as condições terrenas”,
165
exaltada junto
ao crescimento de uma cultura material pronta a introduzir ao público as mais variadas
“realidades” mediante portfolios e réplicas. De certa forma, a fotografia é apenas uma das
faces de uma ciência (talvez a de mais fácil aceitação) que introduz e impõe às artes de
modo irrevogável o padrão do “real”: uma fotografia ou daguerreótipo era capaz de uma
reprodução fiel das formas (faltavam-lhes àquela altura as cores) tais como eram recebidas
pelo olho humano e nessa particularidade forjou-se a palavra da “coisa em si”, objetiva e
nua como jamais poderiam ocorrer ao pincel e às tintas do artista, à época ainda
relativamente fragilizados diante do discurso “real” que se impunha à figuração pictórica.
Whitman não deixava de participar do culto à nova técnica – “a fotografia tem essa
vantagem: ela deixa a natureza seguir seu curso: o incômodo com os pintores é que eles não
deixam a natureza seguir seu curso”
166
– e o aplicava à própria composição de seus poemas
– “nestas Folhas tudo é literalmente fotografado. Nada é poetizado”.
167
Retornando a “Song
of Myself” por uma passagem que encabeça o mais longo de seus catálogos, quando o poeta
já está prestes a cortar cordilheiras e cobrir continentes com suas mãos”, afoot with his
vision, veremos a aplicação desse princípio:
All truths wait in all things,
They neither hasten their own delivery nor resist it,
They do not need the obstetric forceps of the surgeon,
The insignificant is as big to me as any,
(...)
Logic and sermons never convince,
The damp of the night drives deeper into my soul.
Only what proves itself to every man and woman is so,
165
ORVELL, Miles. Op. Cit., 76.
166
REYNOLDS,
Op.Cit
., 281.
167
REYNOLDS,
Op.Cit
., 281.
119
Only what nobody denies is so.
168
Tomando a poetização relacionada à história irrevogável dos retratos, ficamos bem
próximos do efeito violento, absolutamente a-político e a-histórico, que a “verdade inerente
a todas as coisas” causa sobre a palavra. Se a realidade é o “brilho da excelência” em seu
extremo e cabe ao poeta apenas a celebração da pluralidade mantida (nós diríamos:
seqüestrada) por uma verdade mais elevada, nada mais resta ao diálogo ou à verdade
forjada mediante consenso, elementos que constituem a legitimidade do palco político.
Concomitantemente, a celebração do mundo não diferirá de sua transformação em
espetáculo, conceito, aliás, inerente a um das metáforas mais utilizadas para o
entendimento da fotografia – bem como do cinema – em seus primórdios: o hieróglifo, que
serve igualmente para a primeira denominação tipológica da grama no poema (“hieróglifo
de Deus”, que cresce sem distinção de lugar) e dá ensejo a um mundo onde “tudo é escrito”
e diante do qual o poeta é um leitor privilegiado.
Em primeiro lugar, o hieróglifo (segundo o que se depreende de Whitman) mantém
a perspectiva de um registro fatual que incide no corpo da escrita ou letra tomada em sua
acepção mais primária e material. Levando-se em conta os catálogos de cenas agrupadas a
partir do que se escuta ou se vê ou ainda a partir da própria experiência do poeta, capaz de
atravessar o continente em suas mínimas partes e viver as “mínimas vidas”
By the city's quadrangular houses - in log huts, camping with lumber-men,
Along the ruts of the turnpike, along the dry gulch and rivulet bed,
Weeding my onion-patch or hosing rows of carrots and parsnips, crossing
savannas, trailing in forests,
Prospecting, gold-digging, girdling the trees of a new purchase,
Scorch'd ankle-deep by the hot sand, hauling my boat down the shallow river,
Where the panther walks to and fro on a limb overhead, where the buck turns
furiously at the hunter,
168
“Todas as verdades esperam em todas as coisas, / Elas nunca apressam sua entrega, nem resistem, / Elas
não precisam do fórceps obstetrício do cirurgião, / O insignificante é tão grande para mim como tudo, (...) //
Lógica e sermões nunca convencem, / O rocio da noite vai fundo na minha alma. // Apenas o que prova a si
mesmo a um homem e a uma mulher existe, / Apenas o que ninguém nega existe”. WHITMAN, Walt.
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 56. Cf. “
Song of Myself
, 30”, 216-217.
120
Where the rattlesnake suns his flabby length on a rock, where the otter is feeding
on fish,
(...)
169
sempre referidas em forma nominal, conduzida por ações reduzidas a infinitivos, gerúndios,
particípios ou simplesmente ligadas a um lugar ou tempo marcado adverbialmente, e cuja
materialidade se reforça por assonâncias e aliterações que dão corpo e ritmo aos versos, o
registro e suas particularidades ganham o corpo do próprio poema, que por sua vez alçam
os eventos descritos ou relatados, em conjunto, sempre a uma realidade superior, para qual
não há “lógica ou sermão”, mas “a prova em si mesmo”, a auto-evidência, a presença da
coisa, reafirmada ainda quando o poeta assume o corpo do Outro (escravo em fuga,
bombeiro ferido, velho soldado, sobrevivente do massacre do Álamo, marinheiro em
batalha naval
170
) e sublinha, sobretudo, o aspecto patético dos “papéis”:
I become any presence or truth of humanity here,
And see myself in prison shaped like another man,
And feel the dull intermitent pain.
171
Sentir o papel e fazê-lo aderir ao próprio corpo, a ponto de “tornar-se toda e
qualquer presença ou verdade da humanidade” ou, como se lê momentos atrás, quivering
169
“Pelas casas quadrangulares da cidade . . . . em cabanas no mato ou acampando com lenhadores; / Ao
longo dos sulcos da trilha . . . . ao longo do arroio seco e do leito do riacho, / Capinando um canteiro de
cebolas e fileiras de cenouras e mandioca . . . . cruzando savanas . . . . trilhando florestas, / Escavando. . . .
procurando ouro . . . . deixando sinais nas árvores de uma nova propriedade, / Escaldando os tornozelos na
areia quente . . . . arrastando um barco pelo rio raso; Onde a pantera caminha de um lado para o outro sobre
um galho lá em cima . . . . onde um cervo se vira com raiva contra um caçador, / Onde a cascavel banha de sol
sua flácida extensão sobre uma rocha . . . . onde a lontra está se alimentando de peixe (...)”. WHITMAN,
Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 37-38. Cf. “
Song of Myself
, 33”, 199-200.
170
WHITMAN, Walt.Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 64-69. Cf. “Song of Myself, 33, 34,
35”, 219-229.
171
“Aqui eu me torno qualquer presença ou verdade da humanidade, / E me vejo numa prisão como um
homem qualquer, / E sinto a dor surda e contínua”. WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry
and Prose
, 70. Passagem excluída da última edição do poema (1892). De qualquer modo, cf. “
Song of Myself
,
36”, 229-230.
121
me to a new identity
172
– sem, contudo, perder de vista a objetividade do relato, nem a
materialidade do retrato: esta é a técnica peripatética pela qual “o americano Walt
Whitman” faz as mínimas partes de sua América retomarem o velho “brilho da distinção”,
compondo desse modo seu “kosmos”. Aqui, a “lente objetiva” da poesia de Leaves of
Grass nos conduz a um impasse que encontra, em última instância, a figura do próprio
poeta enquanto ator de sua democracia absoluta. Terminadas as “atuações”, que em 1892
compreendem três seções inteiras de “Song of Myself” (34-36), o poeta, que em seu clímax
se diz “surgido em êxtase de tudo”, pára subitamente e se dirige a seu público:
Somehow I have been stunned. Stand back!
Give me a little time beyond my cuffed head and slumbers and dreams and
gaping,
I discover myself on a verge of the usual mistake.
That I could forget the mockers and insults!
That I could forget the trickling tears and the blows of bludgeons and hammers!
That I could look with a separate look on my own crucification and bloody
crowning!
173
Trata-se da última cena, que sintetiza o pathos de todas as personagens americanas
na paixão maior – nada mais, nada menos, do que a do próprio Cristo. Entretanto, a cena é
introduzida com pedidos de afastamento, como se o espetáculo acabasse e o poeta pedisse a
seu público tempo para se recuperar física e emocionalmente das atuações. Eis então que,
recuperado e em posse de uma “força suprema”, o poeta segue seu caminho como “um de
uma procissão média infindável”, com a qual – ele se refere a “nós” – caminha as estradas
do Continente (“Ohio e Massachussets e Virgínia e Wisconsin e Nova York e Nova Orleans
172
WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 55. Cf. “Song of Myself, 28”, 215.
173
“Não sei como, mas fiquei acabado. P’ra trás! / Me dêem um tempinho para coçar a cabeça e dar uma
cochilada e dormir e despertar, / Eu me vejo prestes a cometer o erro de sempre. // Que eu possa esquecer os
insultos e as gozações! / Que eu possa esquecer as lágrimas correndo e os golpes das clavas e das marretas! /
Que eu possa olhar com olhos distanciados para minha própria crucificação e coração sangrenta”.
WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 70-71. Cf. “
Song of Myself
, 38”, 230-231.
122
e Texas e Montreal e San Francisco e Charleston e Savannah e México”), “rompendo
fronteiras” para, finalmente, encontrar seus alunos (eleves):
Eleves I salute you,
I see the approach of your numberless gangs . . . . I see you understand
yourselves and me,
And I know that they who have eyes are divine, and the blind and lame are
equally divine,
And that my steps drag behind yours yet go before them,
And are aware how I am with you no more than I am with everybody.
174
Daqui por diante o poeta falará apenas a seu público, estabelecendo com ele uma
relação de superioridade (conhecimento mediado pela “experiência” do mundo, que o
público não tem), demonstrando regozijo diante fama (o poeta atrai alunos e passa a
responder a seus clamores) e uma mistura de orgulho e incentivo diante da “jornada
perpétua” (“I have no chair, nor church, nor philosophy”. . .“you must travel it for
yourself”). É neste ponto do poema que se perde a clareza do “tipo de ator” promovido por
Whitman: estaria o “americano Walt Whitman” realmente propondo a cada um dos
indivíduos de seu público uma nova e original interpretação da grande peça da Democracia,
ou seria o caso de considerá-lo – ele, “Walt Whitman” – aquele que Walter Benjamin
chama de “o ator cinematográfico típico, que só representa a si mesmo”?
175
O rebento mais ilustre da cultura de massa do XIX é o cinematógrafo, cuja função
era, inicialmente, a de rodar uma seqüência de imagens criando ilusão de movimento. Não
nos cabe aqui conjeturar as possibilidades formais que Whitman teria encontrado a partir de
tal técnica; é possível, entretanto, observar que Whitman se vale da mesma cultura de
massa que incide sobre a técnica cinematográfica (logo tomada, nos E.U.A., pela
174
“Alunos, eu os saúdo; / Eu vejo a chegada de suas gangues sem fim . . . . eu os vejo, vocês entenderam a
vocês mesmos e a mim, / E sei que aqueles que têm olhos são divinos e que os cegos e aleijados são
igualmente divinos, / E que meus passos arrastam perto dos seus ainda que estejam a frente, / E estão cientes
de que eu não sou mais com você do que com qualquer um”. WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em
Poetry and Prose, 71. Cf. “Song of Myself, 38”, 231. Em 1892, a passagem foi modificada e reduzida a:
Eleves! I salute you! Come forward! Continue your annotations, continue your questionings
”.
175
BENJAMIN, Walter.
Obras Escolhidas: Mágia e Técnica, Arte e Política
, 181-182.
123
dramaturgia
176
) e estimula, ainda segundo Benjamin, “o culto do estrelato, que não visa
conservar apenas a magia da personalidade, há muito reduzida ao clarão putrefato que
emana de seu caráter de mercadoria, mas também o seu complemento, o culto do
público”.
177
Não à toa, aplicou-se nos primórdios do cinema o mesmo entendimento
hieroglífico, que visava “retomar o plano de expressão dos Egípcios”, a partir do qual o
cinematógrafo expressaria somente “as personagens do pensamento superior”,
178
o que
Whitman alcança remetendo a mesma expressão hieroglífica à esfera da tipologia
mistificadora. Dessa forma, no que toca às estruturas poéticas, e mais importante do que o
catálogo de todas as referências técnicas utilizadas por Whitman ao longo de sua
interpretação do mundo (além da fotografia e do teatro, podemos citar as pseudociências –
Frenologia, Fisiologia – das quais nos ocuparemos adiante), é preciso destacar a função
final do pensamento tipológico e representativo, que sintetiza a apropriação poética de
todas as contribuições técnicas, transformadas, por fim, em metáforas da construção mais
profunda da poesia.
Ao indicar a seus “seguidores” a estrada pela qual deverão perfazer sua “jornada
perpétua”, Walt Whitman abre caminho para “interpretações originais”: “honrará meu
estilo aquele que aprender com ele a destruir o professor”.
179
Contudo, é necessário que nos
perguntemos se essa jornada ainda é possível. Pois, muito embora o poeta representativo, o
“ator” de Leaves of Grass, seja capaz de assumir todas as formas, o que poderíamos
entender por reprodutibilidade é, na verdade, sua face ritual. A celebração de si é, como
bem sabemos, a celebração do princípio da Nação, um princípio político e pluralista que,
alçado à experiência do Absoluto, perde seu sentido primordial. É a União mistificada que
torna a “jornada perpétua” motivo de culto e a Democracia um ritual. Ao se dissolver para
nascer da grama que ama, tornando-se o mundo por onde o Outro deve caminhar em busca
176
Tome-se, por exemplo, o prólogo de
The Birth of a Nation
(1911), de D. Griffith, onde seu diretor expressa
o desejo de conferir ao Cinema o valor artístico das peças de Shakespeare. Griffith, que neste filme conta o
nascimento da nação Americana a partir da Guerra de Secessão (em sua perspectiva, um fratricídio
ocasionado pela presença maléfica dos negros no país), não conseguiu a estatura dos grandes clássicos da
literatura. Entretanto, desenvolveu as técnicas narrativas do cinema moderno.
177
BENJAMIN, Walter. Op.Cit.,180.
178
Citação de Abel Gance. Em BENJAMIN, Walter.
Op.Cit
., 176.
179
WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 83. Cf. “
Song of Myself
, 47”, 242.
124
de si, só encontraremos o Mesmo, para o qual a liberdade de escravos, a igualdade de
gêneros e os modos rudes do poeta representam o fim de distinções caducas, porém de
alguma eficiência política. Chamando para si a responsabilidade de cantar sob um princípio
político, Whitman expressa, tragicamente, o fim da prática política e a exaltação do poder
em sua face absoluta.
O movimento de mistificação da União e de centralização de toda a representação,
que passa ao controle a um único princípio, paradoxalmente libertário (pois acaba com as
distinções da república de Emerson) e aprisionador (uma vez que a representação
indiscriminada é a representação unificada por uma ordem superior), surge em resposta a
conflitos que, em última instância, anunciavam a dissolução completa do país. Quanto a
isso, a poesia de 1855 não expressa apenas a transformação da Democracia em um ritual do
consenso, como se transforma em sua maior defesa contra a corrupção moral e política do
país, a mesma que, no “Prefácio”, constrange a liberdade indispensável para os bardos
Americanos. Podemos dizer, sob esse aspecto tão utilitário quanto sua formação
sermonística, que o futuro “Song of Myselfcoordena o movimento de defesa mais amplo e
irrestrito que a arte poética de Whitman irá desenvolver ao longo do antebellum, pois seu
kosmos equivale à distensão absoluta de todos os conflitos a partir da solução democrática
dada ao legado de Emerson, isto é, a extensão irrestrita do princípio representativo a toda a
sociedade e sua transformação em um poder absoluto e mistificado, que reúne o “povo”
como tipo da América, civilização fechada. Assim, Whitman supera “todas as interposições
e máscaras e conflitos e estratagemas”, destitui “a pobreza de sua necessidade e os ricos de
sua vaidade” e faz com que a poesia seja a expressão dos “primeiros princípios”.
Entretanto, à medida que as tensões se agravam e o próprio poeta, aqui “juiz”
perante o povo, abraça a causa de sua própria classe, a dos trabalhadores livres, rumo à
modernidade, veremos que a pesada tarefa atribuída à poesia norte-americana, a de
representar a sociedade sob um princípio unificado e igualitário, não será capaz de se
sustentar.
125
TERCEIRO CAPÍTULO
AS FORMAS DA DEMOCRACIA:
O TRABALHO, A RAÇA E A FORMAÇÃO DO CORPO DE ESTADO
1
The shapes arise!
Shapes of America, shapes of centuries,
Shapes of those that do not joke with life, but are in earnest with life,
Shapes ever projecting other shapes,
Shapes of a hundred Free States, begetting another hundred north and south,
Shapes of the turbulent manly cities,
Shapes of the untamed breed of young men and natural persons,
Shapes of women fit for These States,
Shapes of the composition of all the varieties of the earth,
Shapes of the friends and home-givers of the whole earth,
Shapes bracing the whole earth, and braced with the whole earth.
(“5-Broad-Axe Poem”, 1856 – “Song of Broad-Axe, 12”, 1891-1892)
Escrevendo a Emerson em 1856, Whitman comparava a poesia a um ofício. No
entanto, num tempo em que os adeptos da arte pela arte começavam, na Europa, a justificar
a poesia como trabalho e artifício segundo modelos artesanais (ourivesaria, joalheria) cuja
nobreza compreendia mestre e produto, Whitman se referia não apenas indistintamente à
composição intelectual e tipográfica de seus poemas
The first edition, on which you mailed me that till now unanswered letter, was
twelve poems – I printed a thousand copies, and they readily sold; these thirty
two poems I stereotype, to print several thousand copies of. I much enjoy making
poems. Other work I have set for myself to do, to meet people and the States face
to face, to confront them with an American rude tongue; but the work of my life is
making poems.
180
180
“A primeira edição, sobre a qual você me escreveu a carta até agora sem resposta – eu imprimi mil cópias
e elas foram logo vendidas; estes trinta e dois poemas que prensei, para imprimir outras milhares de cópias.
Eu adoro produzir poemas. Determinei outros trabalhos a fazer, encontrar pessoas e os Estados face a face,
126
o que, certamente, faz justiça ao poeta-trabalhador que deseja sair pelo país para confrontar
o povo com sua “língua rude”, como, de modo bastante entusiasmado, submete sua
“profissão” aos “números” da produção literária norte-americana, que tinha a seu dispor
“vinte e uma” das “vinte e quatro modernas prensas-mamute de dois, três e quatro cilindros
duplos” existentes no mundo, fora “as doze mil livrarias e bibliotecas”, “os três mil
jornais”, “folhetins cheios de estórias sensacionalistas”, “revistas semanais”, “um sem-
número de romances sentimentais” – “all are prophetic; all waft rapidly on”.
181
A despeito
de “etiqueta e jóias”, que provariam o pouco que as literaturas estrangeiras (leia-se:
européias) conhecem da Natureza,
182
a fundação da literatura norte-americana, parte das
limitless foundings da América,
183
implicaria a assunção de um modo de vida
absolutamente integrado ao que entendemos ser a produção massificada de bens e seus
meios técnicos, que Whitman relaciona ao surgimento aos “bardos do igual”.
184
É bom que se note a sutileza inerente à expressão de seu gosto de ser poeta: “I much
enjoy making poems
.
185
“Fabricar” ou “produzir”, mas também “editar” e “montar”, são
termos que já se aplicam ao jornalismo (“making news”) dos tempos de Whitman e, na
“Carta a Ralph Waldo Emerson”, célebre resposta àquela que o saúda “at the beggining of a
great career”,
186
designam a tarefa que distingue o literato Americano das “bases orgânicas
de outros países”, jamais inserido em uma “classe apartada, que circula apenas no círculo
de si própria”.
187
A princípio, a idéia literal de “produção poética” serve ao fechamento de
uma linha de análise iniciada com a aproximação da tipologia e da representatividade às
técnicas fotográficas (imagéticas) e peripatéticas (parte da composição exemplar do bardo-
confrontá-los com uma língua Americana rude; mas o trabalho da minha vida é produzir poemas.”
WHITMAN, Walt.
Appendix to Leaves of Grass, 1856: Letter to Ralph Waldo Emerson
”. Em
Poetry and
Prose
, 1350-1351.
181
Ibidem
, 1353.
182
Ibidem
, 1355.
183
Ibidem
, 1351.
184
Ibidem
, 1357.
185
Ibidem
,
1351.
186
Ibidem
, 1350.
187
Ibidem
, 1357.
127
ator) que formam a figuração poética, reforçando as marcas de verossimilhança
transformadas em “realidade” pelo poeta, cujo “discurso era idêntico à visão”. No entanto,
a “Carta a Emerson” dá um passo além: ela coloca o círculo literário norte-americano no
coração da massa, submetido ao trabalho livre de um modo que não vimos na poesia de
1855.
Essa nova diretriz literária, entusiasmada com as hordas de trabalhadores urbanos,
intensifica algo já assinalado na primeira edição do volume. Apesar de Whitman se referir
na “Carta” (que, lembrando, foi publicada no fim da edição de 1856 e funcionou como
“posfácio”) à “destruição dos modelos literários europeus”, nada úteis ao “ar forte” da
América, vimos que a primeira poesia de Leaves of Grass, tal como descrita em 1855, não
emulava diretamente com poetas de outras terras ou a poesia de outros tempos. Ao tratar da
necessidade pública de modelos naturais e do fim de uma arte ornamental, o Prefácio dá a
deixa: “o grande gênio e o povo destes estados nunca deve ser tratado por romances. Tão
logo as histórias sejam propriamente contadas não haverá mais necessidade de
romances”.
188
Aliada ao reforço da natureza como medida da verdade democrática, a
preterição do gênero romanesco (urbano por excelência) envolve o tipo de lugar pretendido
pela poesia fundada por Whitman: depois de negar rimas e medidas métricas tradicionais,
artifícios poéticos formados junto a sociedades aristocráticas, a literatura de Leaves of
Grass quer a realidade e o fato introduzidos pela franqueza de uma palavra ilusoriamente
desprovida de arte, como aquela que se propõe a falar de “verdades universalmente
conhecidas”, caso de Jane Austen, ou, como Daniel Defoe, a relatar e tornar pública, por
exemplo, a história extraordinária de um náufrago, não inventá-la.
189
Avesso a qualquer
técnica ou matéria que sirva de mediação entre autor e público, Whitman chega ao ponto de
denunciar o próprio livro como entrave para o contato entre corpos e almas, como nos
primeiros versos do segundo poema de 1855:
188
WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Poetry and Prose, 19.
189
As comparações entre o gênero romanesco e a poesia de Leaves of Grass são tratados também por Paul
Zweig. Cf. ZWEIG, Paul. Walt Whitman. A Formação do Poeta, 258-27. Note-se, ainda, a tradução
problemática do título do livro, que no original é
Walt Whitman. The Making of the Poet
. Pela discussão que o
livro incita, a melhor tradução de
making
seria “fabricação” ou “produção”.
128
Come closer to me,
Push close my lovers and take the best I possess,
Yield closer and closer and give me the best you possess.
This is unfinished business with me . . . . how is it with you?
I was chilled with the cold types and cylinder and wet papers between us.
I pass so poorly with paper and types . . . . I must pass with the contact of bodies
and souls.
190
O que causa interesse na passagem não é tanto a consciência do livro como suporte
“pobre” para o contato de corpos e almas; aliás, em outras passagens, Whitman argumenta
em sentido inverso, reiterando o ilusionismo da representação completa (“Camerado, this is
no book, / Who touches this touches a man
191
) ou parcial (o livro é o “daguerreótipo da
alma do autor”). Unindo os argumentos simplesmente pela relação material entre o homem
e a produção seriada, sejam daguerreótipos, sejam “cilindros e tipos”, podemos dizer que a
poesia de Leaves of Grass será mais do que a afirmação de uma arte local e soberana: em
certo sentido, sua literatura também está apoiada nos modelos ilusionistas do artifício
industrial e científico, envolvendo o homem, definindo-o pelas formas do trabalho.
Assim, aliando a ilusão da presença e da realidade à produção racionalizada, as
passagens falam aos primórdios de uma “literatura realista” que, na segunda metade do
XIX, estará diretamente ligada à cultura de massa. Em uma passagem digna de Whitman,
Clarence Seward Darrow (conhecido defensor das causas trabalhistas de fins do XIX e
início do XX) comenta: “O mundo está cansado de pastores e sermões; hoje ele clama por
fatos. Ele está cansado de fadas e anjos, e clama por carne e sangue. Ele observa a vida
como ela existe hoje – ao mesmo tempo bela e horrível, alegre e triste. Ele deseja ver tudo;
não apenas o príncipe e o milionário, mas o trabalhador e o mendigo, o senhor e o
190
Venham mais perto de mim, / Cheguem perto meus amores e peguem o melhor que possuo, /Cheguem
cada vez mais perto e me dêem o que vocês têm de melhor. // Para mim, este é um trabalho que ainda não
acabou . . . . e quanto a vocês? / Fiquei gripado com esses tipos frios e cilindro e papéis úmidos entre nós. //
Eu fico tão pobre passando com papel e tipos . . . .eu preciso passar com o contato de corpos e almas”.
WHITMAN, Walt.
Leaves of Grass 1855
”. Em
Poetry and Prose
, 89. Cf. “
A Song for Occupations
”, 355-
362.
129
escravo”.
192
É a relação do fato com uma visão imparcial e irrestrita da sociedade que torna
o Realismo, defendido por Darrow na ocasião (início da década de 1890) contra
perspectivas “religiosas” ou “fantasiosas”, um equivalente da Democracia, seguindo nesse
sentido as mesmas diretrizes inauguradas por Whitman em sua aproximação da técnica
literária ao trabalho, suas técnicas mecanizadas e seus produtos – “fatos” que, recuperando
ainda a fala de Darrow, serão fundamentais para que a humanidade “pare, pense e se
pergunte por que um deve ser senhor e outro servo”.
193
O que essa aproximação de opiniões
nem tão distantes no tempo nos revela é como a apropriação da “verdade” na poesia de
Whitman está ligada à formação do proletariado, para o qual o termo fatual decreta,
praticamente, um estar no mundo. Entretanto, o fato na poesia de 1855, produzido por uma
perspectiva quase fotográfica do mundo, não se limita apenas à figuração da liberdade ou
de sua exploração: como vimos em passagens do primeiro poema desse ano, os “disparos
fotográficos” do poeta também contemplam os escravos, para os quais a desigualdade
social assume outra face – não a da exploração da liberdade, que os fatos poderiam
denunciar, mas a do cativeiro, presente em uma ordem, senão contrária a da ciência,
distante da que permite sua formação.
194
Lembrando a base tipológica da poesia de 1855,
que submetia todos os aportes técnicos (inclusive a fotografia) à demonstração de uma
unidade divina de todas as coisas, o fato, com todo o peso de sua formação urbana e
conflituosa, tornava-se apenas metáfora para uma “realidade superior” que se espelhava
tanto em ambientes urbanos, nos quais pululavam os trabalhadores e seus ofícios, como no
campo, em que o poeta poderia encenar os dramas de um escravo e superá-los. No entanto,
a questão é que a resposta de Whitman a Emerson já não se refere a esses meios técnicos
com o distanciamento proporcionado pela tipologia, que faz o povo à imagem da América,
e pela representatividade, que o transforma em nação. Colocar os círculos literários norte-
americanos no coração da massa supõe, sim, a identificação fechada do poeta com os
representantes de um determinado modo de produção, aos quais sua poesia (“making
poems”) agora corresponde não como uma mera acomodação ética de modos literários à
191
WHITMAN, Walt. “So Long”. Em “Songs of Parting”. Poetry and Prose, 611.
192
ORVELL, Miles. Op.Cit., 106-107.
193
Clarence Darrow, citado por ORVELL, Miles.
Op.Cit
., 107.
194
Cf, SCHWARZ, Roberto.
Ao Vencedor as Batatas
, 11.
130
figura do poeta: sua “língua rude” quer, agora, conquistar um “povo” formado por
trabalhadores livres, como vemos por um pequeno poema de 1860, I Hear America
Singing”, em que esses trabalhadores serão relacionados ao signo maior da poesia de
Whitman:
I HEAR
America singing, the varied carols I hear,
Those of mechanics, each one singing his as it should be blithe and
strong,
The carpenter singing his as he measures his plank or beam,
The mason singing his as he makes ready for work, or leaves off work,
The boatman singing what belongs to him in his boat, the deckhand
singing on the steamboat deck,
The shoemaker singing as he sits on his bench, the hatter singing as
he stands,
The wood-cutter's song, the ploughboy's on his way in the morning,
or at noon intermission or at sundown,
The delicious singing of the mother, or of the young wife at work,
or of the girl sewing or washing,
Each singing what belongs to him or her and to none else,
The day what belongs to the day - at night the party of young
fellows, robust, friendly,
Singing with open mouths their strong melodious songs.
195
195
EU ESCUTO
a América cantando, variados cânticos eu escuto, / O dos mecânicos, cada qual cantando sua
canção como se deve, forte e rude, / O carpinteiro cantando a sua enquanto mede sua tábua e sua prancha, / O
pedreiro cantando a sua enquanto se apronta para o trabalho, ou sai do trabalho, / O barqueiro cantando o que
lhe pertence em seu barco, o marinheiro do convés cantando no convés do navio, / O sapateiro cantando
enquanto ele senta em sua bancada, o chapeleiro cantando enquanto pára ali, / A canção do cortador de
madeira, a do menino da roça em seu caminho de manhã, ou na pausa da tarde ou ao pôr do sol, / O delicioso
cantar da mãe, ou da jovem esposa no trabalho, ou da garota costurando ou lavando, / Cada qual cantando o
que pertence a ele e a ela e a mais ninguém, / O dia o que pertence ao dia – à noite a festa dos jovens,
robustos, amigáveis, / Cantando em alto e bom som suas fortes e melodiosas canções.” WHITMAN, Walt. “I
Hear America Singing
”. Em “
Inscriptions
”.
Op.Cit
., 174.
131
Mantendo o aspecto ritual do entendimento do mundo (“carols I hear”),
identificaremos o continente canoro pelo “ruído” (aqui melodia) dos inúmeros
trabalhadores (mecânico, pedreiro, sapateiro, encanador, marinheiro) em seus ofícios; nesse
sentido, o pequeno catálogo reforça a individualidade, índice da liberdade, entre si: a
canção – ou cântico – da América é uma sobreposição dessas canções de trabalho
singulares, igualadas, sob esse aspecto, ao próprio poema (ele próprio uma “canção de
trabalho”) e sua arte, que torna o trabalho configurador da ordem e mediador entre o
universal político e a ordem estética e literária que se pretendia inaugurar a partir de um ato
negativo, circunscrevendo artifício e realidade nos limites, respectivamente, de um passado
monárquico-colonial devidamente enterrado e de um presente de liberdade que abre
caminho para o futuro democrático.
Absolutamente tributário do que veio a ser desenvolver, sobretudo, nos 20 novos
poemas da segunda edição de Leaves of Grass (1856), o país representado em I Hear
America Singing” sintetiza os problemas da poesia de Whitman a partir da relação entre
poesia e trabalho livre e que só encontrará seu devido contrapeso na importância assumida
pela figura do escravo nos poemas da primeira edição. Pois, à medida que o continente de
trabalhadores mostra a supressão da formas do trabalho escravo na formação do país, a
poética de Whitman não apenas passa a um ponto de vista parcial da sociedade (antes, sua
poesia, de pretensões totalizantes, pressupunha o escravo e reagia à sua existência), como
traz para si dois problemas de grande importância. O primeiro diz respeito aos dilemas do
trabalhador livre norte-americano da década de 1850 frente ao negro e à escravidão: livre, a
mão-de-obra dos negros competiria de modo desigual com os brancos no trabalho urbano;
cativa, ela denegria sua força-de-trabalho. A segunda parte dessa nova perspectiva parcial,
que acaba identificando a liberdade, outrora presente em todas as partes e homens sem
distinção de cor, a um extrato da sociedade, o que no plano poético causa impacto de
grande conseqüência: se a tipologia era, antes, a base de toda a figuração, submetendo a si,
em nome da União e de sua representatividade indiscriminada e democrática, todo o
“mundo secular”, as relações sociais e a história, como ela se sairá a partir de sua
identificação com um elemento não apenas parcial, como contraditório, uma que a
liberdade do trabalho não se dissocia da desigualdade e da exploração?
132
O início da resposta a esse problema está na mudança que os vinte novos poemas de
1856 impõem à nova edição do livro, que segundo alguns críticos, tinha a pretensão não
mais de “incarnar”, mas de “fundir o país”.
196
Em 1855, tínhamos um prefácio que
introduzia doze poemas sem título, aos quais a própria insígnia “poema”, introduzida junto
à apresentação do “bardo Americano”, demonstrava-se problemática. Aqui, o novo
conjunto de trinta e duas peças já traz títulos individuais. O primeiro poema de 1855, por
exemplo, chama-se “Poem of Walt Whitman, an American” e abre o volume sem prefácio,
seguido de “Poem of Women” (em 1892: “Unfolded Out of the Folds”), no qual o poeta
discorre sobre o corpo e a fertilidade da mulher (“Unfolded out of the folds of the woman
man comes unfolded
197
). A seqüência (o primeiro fala ao homem e o que deve defini-lo; o
segundo à mulher, com a mesma intenção) mostra uma das novidades da edição, que é sua
compartimentação de conteúdos, aos quais Whitman empresta o termo “poema”, sempre
dedicado ao desenvolvimento moral e necessário de um tema, à maneira, por exemplo, de
um Martin Farquhar Tupper,
198
que em uma espécie de prosa poética (muitas vezes
comparada a de Whitman) desenvolvia pensamentos edificantes a uma série de tópicos
ligados à vida comum. Como no Proverbial Philosophy de Tupper (1838), os “poemas” se
referem a tópicos variados como a “procriação”, a “estrada”, o “corpo”, o “trabalhador”, “a
explicação da prudência”, “os cantores e as palavras dos poemas”, os “muitos em um
(versão poética do prefácio de 1855), que sugeriam ao leitor a consulta de uma palavra de
sabedoria, de conselho e conforto,
199
que bem poderia servir para a definição da poesia
196
Whereas in 1855 he envisioned the poet as an incarnator of the nation, in 1856 he moves toward an
emphasis on the poet as a fuser of the nation
.” ERKILLA, Betsy.
Op.Cit.
, 133.
197
Cf. “Unfolded out of the folds”. WHITMAN, Walt. Op.Cit., 515.
198
REYNOLDS, David. Op.Cit., 353-354.
199
A respeito da edição de 1856, diz Harold Aspiz:
Like the authors of Fowler and Wells’s manuals of reform
and personal advicemany of whose ideas are interwoven into Whitman’s poemsthe persona often appears
as a fatherly or brotherly counselor in matters physical, personal, or spiritual. At times his prescriptive tone
borders on the prosaic, even the banal, and dilutes the intensity of some of the new poems. But Whitman was
attempting to enlarge the poet-reader relationship by projecting himself as "the general human personality".
And Whitman’s contemporaries often found this hortatory tone to be congenial. Of this edition, Thoreau
(while troubled by the edition’s sensuality and its mixture of poetic wonders with "a thousand of brick")
declared: "I do not believe that all the sermons, so-called, that have been preached in this land put together
are equal to it for preaching". “Leaves of Grass, 1856 edition”. Em LeMASTER, J. R.; KUMMINGS,
133
dessas peças, como nos diz um “poema” declaradamente metalingüístico, “Poem of the
Poet”:
A young man came to me bearing a message from his brother,
How should the young man know the whether and when of his brother?
Tell him to send me the signs.
And I stood before the young man face to face, and took his right hand in my left
hand and his left hand in my right hand,
And I answered for his brother and for men, and I answered for the answered for
the poet, and sent these signs.
200
A passagem citada já figura em 1855 como o oitavo dos poemas e sua revisão para
se tornar “Poem of the Poet” é digna da mudança que ocorre entre uma e outra edição. Em
1855, a presença da passagem no conjunto do livro reforça o aspecto episódico e mimético
dos poemas: trata-se de um momento específico da experiência do sujeito e exemplo
poético, o “americano Walt Whitman”, que já vimos realizando seu périplo de dissolução
no palco da América e ultrapassando os tipos e os cilindros para entrar em comunhão com
seus leitores. Com a pontuação revisada e o devido isolamento propiciado pelo título, não
só se perde o caráter imediato da ação imitada e fortuita, outrora vazada pela “fala” de
Walt, como o poema passa a responder a uma racionalização de temas plausíveis, aqui a
metalingüística “função do poeta”, distanciada, transformada em desenvolvimento poético
que servirá de registro da relação do leitor com os “poemas” do livro, nos quais buscará um
saber, uma moral ou modo de condução no mundo,
201
Assim, a titulação dos poemas
Donald D. (ed.). Walt Whitman: An Encyclopedia. New York: Garland Publishing, 1998. Também citado em
FOLSON, Ed.; PRICE, Kenneth M.. The Walt Whitman Archive. (www.whitmanarchive.org/works).
200
Em 1892, “
Poem of Poet
” corresponde à primeira seção de “
Song of the Answerer
”.
201
Em relação à última das revisões sofridas pelo poema, a de 1876, que dá a versão de 1892, note-se a
transformação da seqüência inicial, cujos verbos (“came”, “should”, “stood”, took”, “answered”) ficam no
presente. Assim, o poeta não estava, mas está diante do rapaz que pede – não mais pedia – sua ajuda. A idéia
episódica de “Song of the Answerer”, a princípio baseada num evento (a chegada de um rapaz pedindo ajuda)
do qual o poeta extrai suas considerações perde-se completamente em nome da figuração genérica da relação
poeta-leitor, que se inicia já em 1856.
134
acarreta em normativização de sua leitura, como se o poeta que, “conhecedor da alma”,
não “aplicava a moral” passasse, agora e justamente, a moralizar o leitor, o que traz
conseqüências à composição de sua figura, anteriormente “público” sem outra
especificidade senão a de “ter de assumir tudo aquilo que o poeta assumia”.
Como se os papéis se invertessem e a realidade pedisse revisão, o poeta de 1856
“assume” seus leitores ávidos de sabedoria – e eles não “serão” negros ou escravos, como
por vezes o poeta de 1855 “foi” para a celebração de seu poder absoluto. Muito embora a
invectiva de 1855 ao leitor permaneça nos poemas do volume e mesmo depois, o fato é que
o novo público impõe aos “poemas” de 1856 sua realidade, seus problemas, seus anseios e,
em um sentido mais profundo, sua história. Significativo para os vieses apresentados é o
poema dedicado ao Machado, “Broad-Axe Poem” (em 1892: “Song of Broad-Axe”), o
quinto da edição de 1856, emblema com que Whitman pretendia substituir a águia da
República e que condensa não apenas a passagem de uma ordem monárquica e autoritária,
na qual o Machado pertencerá ao “carrasco europeu”, à outra em que o mesmo Machado
está nas mãos dos trabalhadores da América, reformulando assim a velha tensão entre
civilizações que em 1855 marcava a ordem democrática do mundo celebrada no futuro
Song of Myself”, bem como a imagem da sociedade para a qual o Machado se torna “o
mais poderoso e amigável emblema do poder de minha própria raça”.
Assim, após a descrição do Machado que abre o poema
BROAD-AXE
, shapely, naked, wan!
Head from the mother’s bowels drawn!
Wooded flesh and metal bone! limb only one, and lip only one!
Gray-blue leaf by red-heat grown, helve produced from a litlle seed sown,
Resting the grass amid and upon,
To be leaned and to lean on.
202
202
"
MACHADO
, modelado, nu, pálido, / Cabeça saída das entranhas da mãe, / Carne de madeira e osso de
metal! Um só membro e um só lábio/Folha azul-cinzenta crescida do calor vermelho, cabo produzido por uma
pequena semente semeada,/ Descansando em meio e sobre a grama, / Para inclinar-se e ser inclinado.” “5-
Broad-Axe Poem
”. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive
(http://www.whitmanarchive.org/works/)
. Cf. “
Song of Broad-Axe,1
”. Em WHITMAN, Walt.
Op.Cit
., 330.
135
onde se percebe uma estrutura estranhamente regular, baseada em rimas externas (a-b-a-b-
c-c) e internas (bone-one / grown-sown), bem como na alternância rítmica tradicional,
produzindo efeito bastante pomposo, dos pés trocaicos que abrem o poema (forte/fraco:
“Broad-
AXE,
203
SHA
pely,
NA
ked,
WAN
”; “
HEAD
from the
MO
ther’s
BO
wels
DRA
wn”),
anapestos (fraco-fraco-forte: “limb only
ONE
”), que abrange ainda a relação das terras e da
natureza que dá os materiais para a confecção do instrumento e de suas strong shapes (“and
attributes of strong shapesmasculine trades, sights and sounds”), o poema consulta a
chegada dos primeiros colonos à América:
The log at the wood-pile, the axe supported by it,
The sylvan hut, the vine over the doorway, the space cleared for a garden,
The irregular tapping of rain down on the leaves,after the storm is lulled,
The wailing and moaning at intervals, the thought of the sea,
The thought of ships struck in the storm, and put on their beam-ends, and the
cutting away of masts;
The sentiment of the huge timbers of old-fashioned houses and barns;
The remembered print or narrative, the voyage at a venture of men, families,
goods,
The disembarcation, the founding of a new city,
The voyage of those who sought a New England and found it,
The Year 1 of These States, the weapons that year began with, scythe, pitch-fork,
club, horse-pistol,
The settlements of the Arkansas, Colorado, Ottawa,Willamette,
The slow progress, the scant fare, the axe, rifle,saddle-bags;
The beauty of all adventurous and daring persons,
The beauty of wood-boys and wood-men, with their clear untrimmed faces,
The beauty of independence, departure, actions that rely on themselves,
The American contempt for statutes and ceremonies, the boundless impatience of
restraint,
The loose drift of character, the inkling through random types, the
203
Já na terceira edição do poema, “
Broad-Axe
”, que forma um jambo inicial, é substituído por “
Weapon
”.
Note-se que a mudança regulariza o verso por inteiro, assim formado por quatro pés trocaicos.
136
solidification;
204
Aqui já não há o trabalho com ritmos tradicionais e o poeta retorna à velha lógica
enumerativa e ao verso-sentença característico de sua primeira poesia. Essa observação é
importante, pois nos limita uma interpretação simbólico-estrutural (o trabalho com o verso
imitaria o trabalho com os materiais que compõem o machado) para favorecer o aspecto
retórico-declamatório do poema, que no futuro tornará essa estrutura, de exórdio tradicional
e pomposo seguido do desenvolvimento livre, bastante recorrente. Em “Broad-Axe Poem”,
as qualidades retóricas da língua inglesa presentes no exórdio serão, talvez, a homenagem
ao colono que, deixando seu machado preso a um tronco, recorda a partida da Inglaterra e
os passos da colonização. O “pensamento do mar”, a “tempestade” que teria assolado o
navio e os “sentimentos” que envolviam a possibilidade de vida melhor remetem, sem
dúvida alguma, aos Peregrinos que embarcaram no Mayflower em 1620 e, após infindáveis
problemas no mar revolto, perderam a rota inicial (que os levaria a um assentamento da
Virgínia) e atracaram em Cape Cod (atual Massachussets) para “a fundação de uma nova
cidade”, estabelecida segundo o chamado Mayflower Compact, assinado ainda no navio
ancorado entre os sobreviventes, que “procuravam uma Nova Inglaterra” (os peregrinos
eram chamados “Separatistas”, puritanos que fugiam da perseguição religiosa) “e a
encontraram”. A referência histórica da longa enumeração, que do “início em qualquer
parte” (note-se o mais absoluto descaso com os nativos) segue pela independência e pela
construção do país (em que a figuração do trabalho livre e urbano não encontra a
contrapartida rural ou escravocrata) garante à poesia de 1856 a posse de um mito fundador
outrora dispensável. Em Broad-Axe Poem, Whitman fica aquém da assunção e, à imagem e
semelhança de seu leitor renovado, restitui o “começo” – a origem do Machado norte-
americano, inglesa, que ainda será contrastada ao uso passado do instrumento entre
Assírios, Romanos e guerreiros europeus em combate.
É na melhor tradição puritana (“nothing endures but personal qualities”) que o
poema prossegue com uma pergunta:
204
WHITMAN, Walt.5- Broad-Axe Poem” (1856). Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The Walt
Whitman Archive (http://www.whitmanarchive.org/works/)
. Cf. “
Song of Broad-Axe,3
”. Em WHITMAN,
Walt.
Op.Cit
., 331-332.
137
Do you think the greatest city endures?
Or a teeming manufacturing state? or a prepared constitution? or the best-built
steamships?
Or hotels of granite and iron? or any chef-d’oeuvres of engineering, forts,
armaments?
Away! These are not to be cherish’d for themselves;
They fill their hour, the dancers dance, the musicians play for them;
The show passes, all does well enough of course,
All does very well till one flash of defiance.
The greatest city is that which has the greatest man or woman;
If it be a few ragged huts, it is still the greatest city in the whole world.
205
Muito embora não seja acentuado na primeira edição de Leaves of Grass, exceto
pelo repúdio à corrupção política do Prefácio, a crítica de Whitman ao materialismo de sua
sociedade é uma constante de sua obra. No entanto, note-se que essa reparação do orgulho e
da luxúria, que vem embutida na contingência a que são legados estados manufatureiros,
navios bem construídos, constituições bem preparadas, hotéis de granito e aço, obras-
primas da engenharia, fortes e armamentos (todos indicativos de opulência material,
desenvolvimento científico e força militar disponíveis para um mundo liberal), bem como o
elogio de “umas poucas cabanas estropiadas” em que vive o “maior homem ou mulher”,
acabam por tornar a cidade industrial o centro efetivo da poesia de Leaves of Grass.
Embora “Poem of Walt Whitman, an American” ainda traga uma cidade que dorme junto ao
campo para formar o palco da nação em que o poeta se dissolve, aqui a perspectiva
205
Você pensa que uma grande cidade perdura? / Ou o grupo de um estado manufatureiro? Ou uma
constituição preparada? Ou os navios mais bem construídos? / Ou hotéis de granito e aço? Ou qualquer obra-
prima da engenharia, fortes, armamentos? // Saí fora! Essas coisas não devem ser desfrutadas por si mesmas; /
Elas dão conta de seu momento, os dançarinos dançam, os músicos tocam para eles; / O espetáculo passa,
tudo muito bem é claro, / Tudo muito bem até o primeiro sinal de desafio. // A melhor cidade é aquela que
tem o melhor homem e a melhor mulher; / Se for feita de uns poucos barracos estropiados, ainda assim ela
será a melhor cidade de todo o mundo.” “
5 – Broad-Axe Poem
” (1856). Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth
138
eminentemente material da sociedade demanda uma posição mais declarada do sítio em que
se assenta a democracia de Leaves of Grass. É assim que, ao inquirir o lugar da maior
cidade, lemos:
Where the city stands with the brawniest breed of orators and bards,
Where the city stands that is beloved by these, and loves them in return, and
understands them,
Where these may be seen going every day in the streets, with their arms familiar
to the shoulders of their friends,
Where no monuments exist to heroes, but in the common words and deeds,
Where thrift is in its place, and prudence is in its place,
Where behavior is the finest of the fine arts,
Where the men and women think lightly of the laws,
Where the slave ceases, and the master of slaves ceases,
Where the populace rise at once against the never-ending audacity of elected
persons,
Where fierce men and women pour forth, as the sea to the whistle of death pours
its sweeping and unript waves,
Where outside authority enters always after the precedence of inside authority,
Where the citizen is always the head and idealand President, Mayor, Governor,
and what not, are agents for pay,
Where children are taught to be laws to themselves, and to depend on themselves,
Where equanimity is illustrated in affairs,
Where speculations on the Soul are encouraged;
Where women walk in public processions in the streets, the same as the men,
Where they enter the public assembly and take places the same as the men,
Where the city of the faithfulest friends stands,
Where the city of the cleanliness of the sexes stands,
Where the city of the healthiest fathers stands,
Where the city of the best-bodied mothers stands,
There the great city stands.
206
M. The Walt Whitman Archive (http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf. “Song of Broad-Axe,4”. Em
WHITMAN, Walt. Op.Cit., 335.
206
“Onde fica a cidade com a voz mais vigorosa de oradores e bardos, / Onde fica a cidade que é por eles
amada e que os ama em retorno e os entende, / Onde eles podem ser vistos caminhando todos os dias pelas
139
Não há passagem de Leaves of Grass em que os princípios da chamada Democracia
Radical, em que os trabalhadores urbanos encontravam representação, e os tópicos
reformistas, que tinham seus ativistas nas cidades, apareçam de modo tão claro: a estrofe
fala da cidadania e da igualdade entre homens e mulheres (“onde homens e mulheres
pensam brilhantemente sobre leis”, “onde mulheres tomam o mesmo lugar dos homens nas
assembléias”), ao estilo dos movimentos de reivindicação feminina, da participação política
indiscriminada, que também pressupõe o fim da escravidão (“onde o escravo acaba e o
senhor acaba”) e da hierarquização do poder (“onde o cidadão é a cabeça e governa”), e do
endosso da autoridade individual, com menção à educação programática das crianças
(“onde as crianças são ensinadas a serem a lei de si próprias e a dependerem de si
próprias”); por outro lado, invoca a saúde do corpo social (“a limpeza do sexo”, “os pais
saudáveis”, “as mães bem formadas”), assunto que ocupava as classes médias e baixas das
grandes cidades norte-americanas e abrangia a erradicação do alcoolismo, bandeira do
temperance movement, e os cuidados com a saúde da mulher. É certo que o tempo de
Whitman estava atento a essas referências. O que nos interessa, por enquanto, é o que
podemos observar em comparação com as formas totalizantes celebradas em “Song of
ruas, com seus braços familiares sobre os ombros dos amigos, / Onde não há monumentos a heróis que não
estejam nas palavras e nos feitos comuns, / Onde a parcimônia tem seu lugar e a prudência tem seu lugar, /
Onde o comportamento é a mais bela das belas artes, / Onde homens e mulheres pensam as leis com leveza, /
Onde o escravo acaba e o senhor de escravos acaba, / Onde a população se levanta de uma só vez contra a
infinita audácia das pessoas eleitas, / Onde homens e mulheres se manifestam com bravura como o mar, que
joga diante do assobio da morte suas ondas rápidas sem arrebentação, / Onde a autoridade exterior sempre
vem precedida da autoridade interior, / Onde o cidadão é sempre a cabeça e o ideal, enquanto Presidente,
Prefeito, Governador são agentes pagos, / Onde as crianças aprendem a ser a lei de si próprias e a depender de
si próprias, / Onde a igualdade é ilustrada pelas situações, / Onde as especulações sobre a alma são
estimuladas, / Onde mulheres caminham em procissões públicas nas mesmas ruas dos homens, / Onde elas
entram em assembléias públicas e tomam os mesmos lugares dos homens; / Onde fica a cidade dos mais fiéis
amigos, / Onde fica a cidade da maior pureza dos sexos, / Onde fica a cidade dos mais vigorosos pais, / Onde
fica a cidade das mais bem encorpadas mães, / Ali fica a maior cidade.” “5 – Broad-Axe Poem” (1856). Em
FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive
(http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf.
Song of Broad-Axe,5
”. Em WHITMAN, Walt.
Op.Cit
., 335-336.
140
Myself”, diante das quais o “Poema do Machado”, igualmente ligado a uma idéia de
fundação, revela uma guinada formal interessantíssima.
Aqui a América não será simplesmente um jovem continente a assumir seus deveres
na chefia da “casa”, nem haverá possibilidade do poeta ser docemente absorvido pelo
universo divino de seu theatrum mundi. Expressando um modo de organização da
sociedade determinado pela história para transformá-lo em verdade poética, Whitman
aproximará o common people do prefácio e o concerto divino do mundo à “palavra en-
masse” que, no poema de abertura do livro em 1892 (“One’s Self I Sing”, de 1867), será
parte da definição do “Homem Moderno”, indivíduo que não buscará mais a verdade de
uma natureza alheia a acres e aceitará com entusiasmo a racionalidade da ciência como
mediação das “leis divinas” que dão forma à sociedade. Por outro lado, a adesão às formas
do trabalho livre torna arbitrária a permissão divina de ser escravo e senhor, operário e
patrão em celebração da ordem natural. Escravidão e senhorio, antigas indumentárias do
“bardo Americano”, representarão agora o limite, senão o próprio abalo, da ordem que o
trabalho impõe junto a uma tensão que, em 1855, a poesia de Whitman não conhecia, dado
que sua pretensão era a de demonstrar a unidade do país, para o qual o escravo era como
que a definição de uma região muito específica, o Sul. Nesse sentido, a união da América
moderna encontra seu sítio no Norte urbano, democrático e industrial.
O nervo desse estreitamento está na expressão com que Whitman definia, em 1855,
a relação entre sua poesia e o mundo, a idéia de um “discurso idêntico à visão”. Essa
identidade não remetia apenas ao registro fatual que o poeta pretendia aplicar à sua
tipologia, mas às possibilidades que o pensamento tipológico oferecia à interpretação do
mundo. Se não era plausível, dada a conseqüente mistificação da União, a perspectiva
política de um mundo reduzido à letra ainda se relacionava bem com a visão de uma
totalidade e permitia ao poeta a refutação de tudo que a desconcertasse. Partindo de um
ponto de vista imóvel (a América, nova liderança da “casa”), ecumênico (a luta pela
liberdade) e total (a igualdade entre os homens), o poeta pôde transitar pelo mundo secular
transformando-o, sempre que necessário, à imagem e semelhança de seu absoluto: é assim
que o caos da cidade é contornado; da mesma forma, os escravos ganham representação e,
em passagens que veremos a seguir, liberdade. Em Broad-Axe Poem, o elemento invisível e
total da tipologia não tem os mesmos predicados, primeiro por sua parcialidade (é o
141
trabalho livre em uma sociedade que conta com escravos) e, depois, por suas contradições
internas, já que a perspectiva do trabalhador, democrata radical, supõe a reivindicação e o
conflito com partes que não participam de seus objetivos. Em outras palavras: o discurso
não apenas deixa de ser idêntico à visão, por necessitar de uma “seleção” que antes era
inadmissível, como a própria tentativa de exposição do absoluto por meio de uma ideologia
de reivindicação entrará em contradição, primeiro, com a realidade total que pretende
expressar e, num sentido mais abrangente, com a própria configuração histórica, que
permitia à América a distinção orgânica em relação à Europa, já que não se trata mais de
mostrar a manifestação política do Novo Mundo (a Democracia contra a tirania), mas a
econômica, que pelo avanço do capitalismo liga os dois continentes a uma única história.
Em Broad-Axe Poem”, a adesão ao trabalho livre, que se via completa emI Hear
America Singing”, ficará clara no momento em que o Machado, após uma longa viagem
pelas antigas civilizações, chega às mãos do “carrasco europeu”, representante de uma
ordem que sintetiza a humanidade anterior à América e reitera a idéia de um Novo Mundo
que teria atingido sua maturidade com a morte do Velho. Neste ponto, Whitman requisita
os lugares-comuns da figuração norte-americana do período revolucionário francês: junto
ao carrasco encapuzado e seu poderoso machado, ainda coberto de sangue (“De quem é
esse sangue que o cobre, ainda tão grosso e úmido?”), o poeta “vê o claro crepúsculo dos
mártires” e “os fantasmas de lordes assassinados, senhoras destronadas, ministros
impedidos, reis rejeitados”, representantes da nobreza que, em outras oportunidades,
Whitman referirá pelos enredos e traições da tragédia shakespeariana; serão também
contemplados “aqueles que em qualquer terra morreram pela boa causa”, deixando a
semente que, em Resurgemus” (1850), oitavo poema de 1855, brota da cova dos
assassinados (“Não há uma cova dos assassinados pela liberdade em que não cresça a
semente da liberdade, a que por sua vez carrega outra semente”).
É interessante lembrar que a qualidade ecumênica da “boa causa” (“aquele que em
qualquer terra morreram”) não pertence à perspectiva revolucionária norte-americana, mas
à francesa, e chega aos portos do país para, com muito sucesso, ser absorvida pelos artesãos
norte-americanos, que por seus ideais encontram uma bandeira de organização, luta e
reivindicação política contra a visível aristocratização da República, iniciada ainda durante
os debates federalistas e a constituição legal do país, que durante suas primeiras
142
administrações adota uma política externa abertamente anglófila (Washington) e medidas
econômicas que favoreciam a centralização financeira e o enriquecimento de comerciantes
e banqueiros (Hamilton), antagonistas da classe artesanal, defensora da produção de bens
como o principal (senão o único) meio de enriquecimento. Clubes e associações de
influência jacobina pululam em cidades como Nova York e Filadélfia e o legado
revolucionário do próprio país, abandonado com o término da Guerra de Independência,
passa por uma revisão de forte influência no discurso político norte-americano, que absorve
ideologicamente os princípios da classe artesanal para formar a imagem de um “nobre
artesão”, politicamente ativo, respeitado por seu ofício e por seu passado de luta contra o
despotismo e a tirania, ponto de vista que governa, por exemplo, o cinismo dos impossibilia
de “A Boston Ballad (1854)”, poema que em 1855 faz par com “Resurgemus” e no qual
Walt sugere o desfile das ossadas do rei inglês para que se celebre o despotismo das
autoridades federais norte-americanas.
A perspectiva whitmaniana do conflito europeu é totalmente marcada por essa
formação ideológica, a ponto de não atentar às incongruências e limitações que, pouco
acentuadas em um poema como Resurgemus”, cuja pretensão é somente a de estabelecer a
comunhão de um norte-americano com os princípios com os revolucionários de 1848,
mostram-se bastante problemáticas no “Broad-Axe Poem”. Aqui, a luta pela liberdade do
proletariado na Europa não é colocada em progresso, nem traz continuidade: não mais que
de repente, o sangue que escorre pelo machado é lavado, o carrasco se inutiliza, o cadafalso
fica vazio e o instrumento reaparece como “o poderoso e amigável emblema do poder da
minha própria raça”.
207
Desse modo, se pela seqüência enumerativa dos catálogos
evidencia-se, mais uma vez, o conceito de Novo Mundo enquanto nascimento de uma nova
civilização, o que surgirá das formas do machado nos ensinará algo absolutamente diverso:
207
I see the blood washed entirely away from the axe, / Both blade and helve are clean, / They spirt no more
the blood of European nobles, they clasp no more the necks of queens. // I see the headsman withdraw and
become useless, / I see the scaffold untrodden and mouldy, I see no longer any axe upon it, // I see the mighty
and friendly emblem of the power of my own race, the newest, largest race.” “5 – Broad-Axe Poem” (1856).
Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive
(www.whitmanarchive.org/works). Cf.
Song of Broad-Axe, 8
”. Em WHITMAN, Walt.
Op.Cit
., 337-338.
143
The shapes arise!
Shapes of the using of axes anyhow, and the users and all that neighbors them,
Cutters down of wood and haulers of it to the Penobscot, or St, John, or Kenebec,
Dwellers in cabins among the Californian mountains or by the little lakes,
(...)
Shapes of factories, arsenals, foundries, markets,
Shapes of the two-threaded tracks of railroads,
Shapes of the sleepers of bridges, vast frameworks, girders, arches,
(...)
208
Na América, a arma de combate e execução se torna instrumento do trabalho que
faz surgir as formas (shapes) entendidas em sua absoluta materialidade. De seu uso no
campo, entre os colonos de regiões distantes como a Califórnia, Whitman retira a
preparação para que se celebrem as formas de fábricas, arsenais, fundições, mercados e
ferrovias, declaradas não pela perspectiva crítica que nos informou a “melhor cidade”, mas
segundo a civilização com que se identificam, ora pela marcha a oeste, ora pela frenética
industrialização. O poder absoluto da nação permanecerá no horizonte do poeta; entretanto,
o “Poema do Machado” já o coloca explicitamente sob a égide da economia, que na
seqüência confere ordem e visibilidade a seus trabalhadores, cujo trabalho produz tanto as
formas materiais do país como aquelas que decorrem da estrutura social, igualmente
entendida em sua materialidade:
The shape measured, sawed, jacked, joined, stained,
The coffin-shape for the dead to lie within in his shroud;
The shape got out in posts, in the bedstead posts, in the posts of the bride’s bed;
The shape of the little trough, the shape of the rockers beneath, the shape of the
babe’s cradle;
The shape of the floor-planks, the floor-planks for dancers’ feet;
208
“As formas surgem! Formas do uso variado dos machados, de seus usuários e de todos aqueles que se
avizinham, / Os que cortam árvores e os que as levam até o Penobscot, ou a St. John, ou ao Kennebec, / Os
habitantes de cabanas na Califórnia ou perto dos pequenos lagos, (...) // Formas de fábricas, arsenais
fundições, mercados, / Formas dos trilhos duplos das ferrovias, / Formas das travessas das pontes, enormes
estruturas, vigas mestras, arcos (...).” “
5 – Broad-Axe Poem
” (1856). Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive
(www.whitmanarchive.org/works/). Cf. “
Song of Broad-Axe, 9
”, 339.
144
The shape of the planks of the family home, the home of the friendly parents and
children,
The shape of the roof of the home of the happy young man and womanthe roof
over the well-married young man and woman,
The roof over the supper joyously cook’d by the chaste wife, and joyously eaten
by the chaste husband, content after his day’s work.
The shapes arise!
The shape of the prisoner’s place in the court-room, and of him or her seated in
the place;
The shape of the pill-box, the disgraceful ointment-box, the nauseous application,
and him or her applying it;
The shape of the slats of the bed of a corrupted body, the bed of the corruption of
gluttony or alcoholic drinks;
The shape of the liquor-bar lean’d against by the young rum-drinker and the old
rum-drinker;
The shape of the shamed and angry stairs, trod by sneaking footsteps;
The shape of the sly settee, and the adulterous unwholesome couple;
The shape of the gambling-board with its devilish winnings and losings;
The shape of the step-ladder for the convicted and sentenced murderer, the
murderer with haggard face and pinion’d arms,
The sheriff at hand with his deputies, the silent and white-lipp’d crowd, the
dangling of the rope.
The shapes arise!
Shapes of doors giving many exits and entrances;
The door passing the dissever’d friend, flush’d and in haste;
The door that admits good news and bad news;
The door whence the son left home, confident and puff’d up;
The door he enter’d again from a long and scandalous absence, diseas’d, broken
down, without innocence, without means.
209
209
A forma medida, serrada, nivelada, entalhada, envernizada, / A forma do caixão para o morto deitar em
sua mortalha; / A forma moldada em postes e varais, nos suportes da cama da noiva; / A forma do pequeno
balde, a forma dos suportes arquejados, a forma do berço do bebê; / A forma das tábuas do chão, as tábuas do
chão para os pés dos dançarinos, / A forma das tábuas da casa da família, a casa dos pais camaradas e das
crianças, / A forma do telhado da casa do jovem casal, o telhado sobre o jovem e a jovem bem-casados. / O
telhado sobre o jantar divinamente cozinhado pela esposa casta, e divinamente comido pelo caso esposo, feliz
após seu dia de trabalho. // As formas surgem! A forma do lugar do prisioneiro na corte, e dele ou dela
145
Já não vemos aqui a dita “civilização Americana” que justifica a passagem do
Machado entre Europa e América. A cidade industrial, “medida, serrada, polida, entalhada,
envernizada”, é também a cidade de homens consumidos pelo vício, pela doença, pela
corrupção dos corpos, pelo crime e seu controle, seja o policial, seja o da presença de um
“casal casto” e de uma “família bem constituída”, que dão as medidas de uma virtude
alienada do processo de destruição que consome a vida de alguns. Da porta por onde a sai
um “filho confiante” e entra um homem “deprimido, sem inocência e sem recursos”, vê-se
o realismo que figura na caracterização dos explorados de Dickens, que em 1854 publicava
Hard Times, bem como a antecipação poética daquela “Cidade da Noite Apavorante” (“The
City of Dreadful Night”) de James Thomson, que com seus versos
The City is of Night, perchance of Death
But certainly of Night, for never there
Can come the lucid morning’s fragrant breath
After the dewy morning’s cold grey air!
210
não só inspirou a “terra arrasada” de Eliot (Thomson teve a feliz idéia de comparar a visão
dos subúrbios industriais aos círculos do “Inferno” de Dante, abrindo uma perspectiva
inusitada da cidade moderna), como esteve no horizonte de uma série de denúncias
sentado no lugar; / A forma da caixinha de pílulas, a desgraçada caixa de ungüentos, a aplicação nauseabunda
e dele ou dela que os aplica; / A forma das manchas da cama do corpo corrompido, a cama da corrução da
gula ou do alcoolismo; / A forma da garrafa inclinada pelo jovem bebedor de rum e pelo velho bebedor de
rum; / A forma dos degraus envergonhados e irados, caminhados por passos furtivos; A forma do dissimulado
divã e do casal totalmente adúltero; A forma da mesa de jogo com suas diabólicas vitórias e derrotas; A forma
das grades para o assassino convicto e condenado, o assassino com seu rosto lívido e os braços manietados, /
O xerife a postos com seus delegados, a multidão silenciosa e de lábios pálidos, a corda que balança. // As
formas surgem! Formas de portas que dão muitas entradas e saídas; / A porta por onde passa o amigo que
passa mal, às pressas e com vergonha; / A porta que admite boas e péssimas notícias; / A porta por onde o
filho deixa a casa, confiante e orgulhoso; / A porta por onde ele entra de novo depois de uma longa e
escandalosa ausência, doente, esgotado, sem inocência, sem recursos.” “5 – Broad-Axe Poem” (1856). Em
FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The Walt Whitman Archive (www.whitmanarchive.org/works/). Cf. “Song
of Broad-Axe, 10”, 339-340.
210
Citado por HALL, Peter. Cidades do Amanhã, 17.
146
jornalísticas da miséria urbana que surgiram na década de 1880 e levaram o governo
britânico, sob as ordens pessoais da Rainha Vitória, à criação de uma comissão real que
investigasse meios de melhoria das condições de vida da classe trabalhadora, abrindo
caminho para uma reforma social. No editorial que abriu a série, “Não Está na Hora?”,
publicado por W. T. Stead, redator-chefe do vespertino Pall Mall Magazine em 1883,
encontraremos uma descrição possível para os cômodos e os habitantes do lugar descrito
por Whitman:
Poucos dos que lêem estas páginas sequer concebem o que são estes pestilentos
viveiros humanos, onde dezenas de milhares de pessoas se amontoam em meio a
horrores que nos trazem à mente o que ouvimos sobre a travessia do Atlântico por
um navio negreiro.
(...)
Cada quarto, nessas podres e fétidas moradas coletivas, aloja uma família, muitas
vezes duas. Um fiscal sanitário registra em seu relatório ter encontrado, num
porão, o pai, a mãe, três crianças e quatro porcos! Noutro, um missionário
encontrou um homem com varíola, a mulher na convalescença de seu oitavo parto
e as crianças zanzando de um lado para o outro, seminuas e cobertas de
imundícies. Aqui estão sete pessoas morando numa cozinha de subsolo e ali
mesmo, morta, jaz uma criancinha. Em outro local estão uma pobre viúva, seus
três filhos e o cadáver de uma criancinha morta há treze dias. Pouco antes, um
marido, um cocheiro, havia se suicidado
.
211
O casamento funesto das descrições da periferia londrina com a cidade de Whitman
não nos deixa outra saída senão a de observar a incongruência existente entre os
imperativos morais de umas poucas “cabanas estropiadas” e a devastação a que os “nobres
trabalhadores” da América estão submetidos. Se o poeta é lúcido o suficiente para integrar
a pobreza deflagrada às formas racionalizadas da indústria e do acúmulo do capital (a
Manhattan que “surge” de hotéis grandiosos e da marina opulenta), por outro lado revela-se
incapaz de admitir a distância que o separa dos ideais de igualdade e participação política
que moveram colonos e fundadores. Aqui já não há sequer a sombra daquele povo que
demonstrou seu talento na constituição de corpos políticos. Embora ligada à fundação do
211
Idem
, 19-21.
147
Novo Mundo, a cidade que se apresenta pela industrialização e faz convergirem as palavras
de sabedoria do poeta em 1856 já não tem respaldo na formação Americana e corresponde
a uma realidade melhor representada pela luta, não contra a tirania em nome da liberdade
política – a “boa causa” que inspira e mareja os olhos do poeta, sempre simpático aos
movimentos revolucionários europeus –, mas contra a miséria que conduziu a Revolução
Francesa em suas páginas de luta e terror.
Como líamos em 1855, o americano Walt Whitman admitiria nada que não pudesse
ter uma contraparte nos mesmos termos. De certa forma, a justaposição de “virtude” e
“vício”, vida realizada e experiência do sofrimento e da exploração, apela a esse
entendimento. No entanto, a preservação do contraste em “Poem of Walt Whitman, an
American” pretendia-se política e designava uma relação de poder que, contraditória em
relação ao passado social que o poeta pretendia recuperar, se anulava em nome de uma
“liberdade absoluta”, una, natural e democrática, com a qual o poeta se identificava para
configurar a nação sob um poder unificado. No momento em que Whitman finalmente
sintetiza os opostos do “Poema do Machado” nas “formas” da Natureza
Her shape arises,
She, less guarded than ever, yet more guarded than ever;
The gross and soil’d she moves among do not make her gross and soil’d;
She knows the thoughts as she passes, nothing is conceal’d from her;
She is none the less considerate or friendly therefor;
She is the best belov’d, it is without exception, she has no reason to fear, and
she does not fear;
Oaths, quarrels, hiccupp’d songs, smutty expressions, are idle to her as she
passes;
She is silentshe is possess’d of herselfthey do not offend her;
She receives them as the laws of nature receive them, she is strong,
She too is a law of nature, there is no law stronger than she is.
212
212
“Sua forma surge, / Ela menos guardada do que nunca e ainda mais guardada do que nunca, / O sórdido e
grosseiro por onde ela se move não a fazem sórdida e grosseira, / Ela sabe os pensamentos enquanto passa,
nada escapa a ela, / Nem por isso ela é menos considerada ou amiga, / Ela é a mais bem amada, sem exceção,
ela não tem razão a temer e ela não teme, / Promessas, brigas, canções soluçadas, obscenidades, lhe são
indiferentes enquanto passa, / Ela é silenciosa, ciente de si, essas coisas não a ofendem, / Ela as recebe como
as leis da Natureza as recebem, ela é forte, / Ela é também uma lei da Natureza – não há lei mais forte do que
148
a indiferença frente aos destinos humanos (“O sórdido e o grosseiro onde se movem não a
tornam grosseira nem sórdida, / Ela conhece os pensamentos quando passa, nada lhe é
ocultado, (...) Blasfêmias, rixas, canções entre soluços, obscenidades, tudo isso lhe é
indiferente quando passa”) nos coloca diante de um cenário desastroso, no qual o sistema
econômico finalmente se revela na base do poder expresso, tomando de assalto a
constituição física de todas as coisas, que uma vez racionalizadas, já são incapazes de
retornar à sua organicidade senão pela via encontrada pelo próprio poeta: a de tornar o
sistema econômico uma natureza e a palavra poética uma norma.
Em termos mais abrangentes, a saída “natural” de Whitman para as contradições do
sistema de produção capitalista marca o momento em que a tradição emersoniana, de raiz
federalista, entra em choque definitivo com a ordem industrial moderna e democrática que
o poeta pretende celebrar. Se em 1855 o resultado da representatividade democrática havia
sido paradoxal, uma vez que o consenso (“De Muitos em Um”) não se distinguia do poder
absoluto (“Um em Muitos”), agora a aplicação da régua representativa a uma situação que
não resolve a desigualdade pela política criará a insustentável celebração de uma
“igualdade na desigualdade”. Nesse sentido, quando as “formas da América” (“Formas da
Democracia, finais – resultado de séculos”) que nos serviram de epígrafe, aparecem para
dar à luz “outras formas” (“cidades turbulentas”, “cem Estados Livres, fazendo nascer
outros cem ao norte e ao sul”, “pessoas naturais”, “mulheres adequadas a Estes Estados”), o
que temos, definitivamente, já não é uma sociedade à altura do que, outrora, a história lhe
permitia ser. Com o mito fundador assimilado totalmente por uma estrutura econômica, a
questão social chegava às palavras da América para ser expressa com uma ingenuidade
assustadora, legitimada por um conceito de realidade que já não cabe ao pensamento
tipológico. Clarence Darrow queria que os homens pensassem diante dos fatos, pois esses
poderiam ser um meio de superação da ideologia. Whitman, em “Broad-Axe Poem”,
transforma-os em uma “natureza Americana”, indiferente ao destino de seu povo, mas apta
a palavras de conselho e conforto, face normativa de caráter refomador que, em 1856,
ela”. “
5 – Broad-Axe Poem
” (1856). Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive
(
http://www.whitmanarchive.org/works
/)
. Cf. “
Song of Broad-Axe, 11
”, 340-341.
149
momento em que a América é manifestada pelo trabalho livre, socorre as formas outrora
inequívocas e absolutas de sua dissolução no caos.
2
“I see not merely that you are polite or whitefaced . . . . married or single . . . . citizens of old states or citizens of new states . . . . eminent
in some profession . . . . a lady or a gentleman in a parlor . . . . or dressed in a jail uniform . . . . or pulpit uniform,
Not only the free Utahan, Kansian, or Arkansian . . . . not only the free Cuban . . . . not merely the slave . . . . not Mexican native, or
Flatfoot, or negro from Africa,
(...)
Grown, half-grown, and babe – of this country and every country, indoors and outdoors I see . . . . and all else is behind or through
them”.
(“Leaves of Grass 1855”)
Factories, mercantile life, labor-saving machine, the Northeast, Northwest, Southwest,
Manhattan firemen, the Yankee swap, southern plantation life,
Slavery – the murderous, treacherous conspiracy to raise it upon the ruins of all the rest,
On and on to the grapple with it – Assassin! then your life or ours be the stake, and respite no more.
(“By Blue Ontario’s Shore, 6”)
Num momento em que o trabalho se torna não apenas fundamento das formas
poéticas como parte integrante das origens do país, a supressão do trabalho escravo
perpetrada por Whitman se torna um problema de difícil explicação. Diante da baía de
Manhattan ou de algumas de suas fábricas, que forneciam vestimentas e calçados para os
escravos com matérias-primas vindas do Sul, como não assumir a importância funesta dos
cativeiros, fornecedores de matéria-prima para a indústria do norte, para o enriquecimento
do país? Como não admitir a influência de seus senhores, tão empenhados e bem sucedidos
em fazer a escravidão se estender aos territórios anexados pela União? Como não
reconhecer o negro como força a compor “o mais poderoso e amigável emblema do poder
de minha própria raça”, uma vez que sua presença na América inglesa é tão antiga quanto o
estabelecimento da plantagem na Virgínia, nos primórdios da colonização? Por fim, como
negar os momentos capitais da primeira poesia de Leaves of Grass, quando um norte-
americano branco tomava para si as dores, os açoites, o desejo de liberdade e mesmo o
trabalho de um norte-americano negro para mostrar a seu público o verdadeiro sentido da
nação e da igualdade?
150
Quanto a esse último ponto, é preciso reconhecer que a identificação entre o poeta e
o negro vai dos momentos marcados ao longo de sua jornada. Desde o retrato de um
“criminoso” de 1855, Whitman dedica-se à contestação de um sistema simbólico que,
perpetrado por uma representatividade não-democrática, liga sua obra, sob o signo da luta,
a outras pouco lembradas da grande literatura, como os relatos literários de ex-escravos que
surgiam na década de 1840 e 50, dentre os quais é possível destacar a Narrative of the life
of Frederick Douglass, An American Slave (1845), escrita pelo principal líder abolicionista
do período.
Seguindo a preciosa indicação de Ed Folsom, que compara o retrato do frontispício
de Leaves of Grass com o que se apresenta em Narrative,
213
lemos:
The same social conventions that marked an achievement of identity for Douglass
threatened identity for Whitman; an African-American posing as distinguished
writer was every bit as singular in the culture of mid-nineteenth-century America
as a white poet posing as a day laborer. Just as Douglass’ portrait undermines
the generally expected image of a slave, Whitman’s portrait undermines the
expectations that his readers would bring to an engraving in this context; his is
anything but the conventional image of the poet on the frontispiece of a book. He
offers us an image of informality, physicality, and rough manners and dress
213
Imagens disponíveis em http://docsouth.unc.edu/douglass/douglass.html
151
unbefitting the anticipated enviroment of poetic pages. This image of the poet is
just as much out of the place in the tradition of poetry books as the poetry itself
is. Thus the portrait effectively announces Whitman’s new poetic project, with all
its ironies and its dissolving tensions between “poetry” and “work”, between
“poet” and “working man”.
214
Folsom marca, ao término do parágrafo, os termos que compõem nosso argumento
central: pois é “dissolvendo as tensões entre poesia e trabalho, poeta e trabalhador” que
Whitman remodela a teoria poética patrimonialista de Emerson e abre caminho para a
inserção, na poesia, das tensões sociais. À medida que os excluídos (b’hoys ou escravos)
tomam parte dessa tradição literária pautada pela excelência da representatividade que não
os integra senão como “homens parciais”, ou mesmo párias, a literatura passa a se
confundir com um campo de batalha, que insere símbolos e modos literários (todos, em
última análise, ligados às formas do caráter individual, que fundamenta a representatividade
do poeta) no conflito de classe que forma demandas políticas e denuncia os pólos de força
de uma sociedade desigual. Retomando Ed Folsom, responsável pela comparação, um
negro escravo posando de autor e autoridade literária era tão estranho aos olhos do público
de literatura quanto um branco trabalhador arrogando para seu anonimato a alcunha de
“bardo americano”. Embora as estratégias utilizadas por um e por outro sejam
absolutamente opostas (como diz Folsom, “as mesmas convenções sociais que marcam a
elaboração da identidade para Douglass ameaçam Whitman”), é possível que as
encontremos em uníssono diante do seguinte ponto: o escravo e o trabalhador que os
autores queriam sublinhar em suas obras eram tipos marginalizados pela sociedade. Que
um negro fosse excluído da sociedade norte-americana, o fato era compreensível pelo longo
histórico de opressão, exploração e racismo recuperado e enfrentado por Douglass. No caso
de um branco, entretanto, há uma novidade que compreenderemos pela mescla de nostalgia
e utopia que surgem junto à integridade dos trabalhadores e à dignidade dos ofícios
descritos em Leaves of Grass.
Em seus longos catálogos, por onde transitam os “mecânicos” de um sem-número
de ocupações, Whitman recupera um tempo que os trabalhadores norte-americanos,
214
FOLSON, Ed. “
Illustrations of the Self in Leaves of Grass
”. Em GREENSPAN, Ezra (ed.).
The
Cambridge Companion to WALT WHITMAN
, 145.
152
sobretudo os de grandes centros como Nova York e Brooklyn, viam se perder ano após ano.
Mesmo a biografia do poeta é capaz de ilustrar a pauperização dos artesãos e o fim do
artesanato como modo de vida das populações urbanas: seu pai, Walter Whitman, era um
carpinteiro de Long Island que, aproveitando o boom imobiliário de Manhattan dos anos de
1820, levou a família para o Brooklyn a fim de se assentar como construtor; porém, com o
surgimento quase que concomitante de estruturas de construção pré-fabricadas, os projetos
de Walter foram reduzidos à construção e à venda de casas de baixo orçamento na própria
região do Brooklyn, onde o poeta viveu com a família até a falência definitiva do pai, que
na década de 1830 deixou Whitman, na época um jovem aprendiz de gráfico, no Brooklyn
para retornar com os demais para a ilha. Tal situação, que ao longo dos anos de 1830 e
1840 foi abrangendo outras áreas do artesanato, criou uma situação de miséria urbana que
reproduzia a segregação imposta pelos modelos industriais de produção mediante sua
organização em grupos de autoproteção, as gangues, altamente discriminatórios, que
encontravam distinção em um nacionalismo (o nativismo) tão orgulhoso quanto violento no
que dizia respeito aos bodes-expiatórios de sua pobreza, os imigrantes europeus, sobretudo
irlandeses, que chegavam aos milhares e competiam diretamente pelas vagas de trabalho.
Os sentimentos de pertencimento ao país e a celebração de um passado colonizador
e revolucionário não tinham, para os norte-americanos do Norte, relação alguma com a
situação dos escravos, concentrados nas propriedades agrícolas do Sul do país desde os
tempos da independência. Primeiramente, a vida dos escravos passa a ser assunto das
classes populares quando sua pauperização e exploração chegam aos limites da comparação
com a vida dos negros em benefício dos últimos. Trata-se da clássica wage slavery,
“escravidão assalariada” que, presente de modo indireto nos argumentos de um inglês da
década de 1880 (o editorial de Stead, citado anteriormente, compara a situação dos cortiços
aos horrores de um “navio negreiro”), chegou a ocupar a pena do jornalista Whitman no
início da década de 1840, quando um de seus editoriais compara a situação de um
trabalhador branco miserável a de um negro das fazendas do Sul e argumenta em favor do
“bom senhor”, que cuida de seu “trabalhador” e serve de exemplo aos patrões do Norte, que
deixam seus empregados à míngua. De um modo geral, os habitantes do Norte tinham
praticamente nenhum contato com a realidade da escravidão: representada pelas pequenas
propriedades rurais ou pelos ofícios citadinos, a região ao norte da Virgínia viu seus poucos
153
escravos chegarem a zero ainda no início do XIX, fosse pela abolição estadual, iniciada na
década de 1810, fosse pela natureza dos ofícios. Whitman, por exemplo, teria visto um
escravo apenas em sua estadia de três meses em Nova Orleans como editor de um jornal
local, no ano de 1848.
A despeito dos estereótipos que participavam da cultura geral e pintavam um negro
passional, sensual e moralmente fraco, o surgimento do negro como assunto e polêmica
nacional se dá de modo irrevogável em 1846, ano em que o presidente James Polk consulta
o Congresso norte-americano para o uso de dois milhões de dólares na aquisição dos
Territórios mexicanos ocupados no pós-guerra e o projeto sofre a emenda de um
congressista da Pensilvânia, David Wilmot, que pretendia aprovar o investimento com a
condição de que “nem escravidão, nem qualquer tipo de servidão involuntária”
215
fossem
aceitas em qualquer parte do território adquirido. A emenda Wilmot (“Wilmot Proviso”),
como ficou conhecida, reacendeu o conflito entre os estados escravagistas e os que não
admitiam a escravidão, resolvido de modo cavalheiresco em 1820 com o Compromisso do
Missouri, que determinava o paralelo 36º 33’ como fronteira da escravidão no território da
União, e deixava evidente o motivo da disputa política, que envolvia o modelo de país a se
expandir para além das fronteiras do Oeste.
O fato da escravidão acabar no centro da pauta política e não exatamente de um
debate econômico é importantíssimo para o que se desenvolverá na poesia de Leaves of
Grass. Como ativista e integrante da classe trabalhadora, Whitman participou da ala radical
do chamado Free Soil Party, nascido da derrota da emenda Wilmot no Congresso e a
confirmação do paralelo 36 como fronteira para os territórios livres e escravagistas, e que
reivindicava a proibição de escravos nos territórios anexados. A abrangência da pauta fez
com que se reunissem em torno do Solo Livre abolicionistas e segregacionistas declarados
e criou, de início, um racha na composição partidária, que acabou consolidando na ala
conservadora os Hunkers, favoráveis à proibição de negros nos territórios fossem eles
escravos ou livres (o que se exemplifica pela Constituição do Oregon, da década de 1850)
enquanto a radical trazia os Barnburners, que incluíam entre suas reivindicações a abolição
da escravatura, embora não a defendessem em uníssono junto ao direito de participação
política dos negros.
215
Citado por KLAMMER, Martin.
Whitman, Slavery, and the Emergence of Leaves of Grass
, 29.
154
Como jornalista, Whitman usou seus editoriais do Brooklyn Eagle como plataforma
de discurso free soiler, demonstrando bastante desenvoltura na retórica partidária, bem
como na organização das opiniões dos white workingmen, cujo trabalho seria “degradado”
na competição com o escravo:
O trabalho não pode ser degradado. Os jovens homens dos Estados livres não
podem ser descartados do novo domínio (onde a escravidão ainda não existe) pela
introdução de uma instituição que irá tornar suas honradas indústrias não mais
respeitáveis.
216
O editorial de Abril de 1847 não deixa dúvida a respeito das motivações
antiescravagistas de Whitman. Trata-se não do sentimento humanitário perante o negro,
mas sim do interesse do trabalhador branco e da moralidade de que se investe sua atividade
perante a ameaça escravocrata, opinião moderada quando recordamos a força dos quadros
exclusionistas do partido, que defendiam a segregação política e social dos negros, segundo
desejos de uma sociedade racialmente homogênea, na qual a miscigenação é vista como
destempero e vício (como lemos, aliás, no romance Franklin Evans do jovem Whitman
217
),
ou mesmo aberração, perspectiva que integra o quadro da segregação racial justificada
cientificamente mediante disciplinas como a Negrotologia e, posteriormente, a Eugenia,
bastante populares ao longo do XIX norte-americano. Desse modo, a defesa de territórios
livres não impedia a reprodução do preconceito racial, nem a existência de posturas
discriminatórias, que os trabalhadores brancos, em seu medo de competição com a mão-de-
216
Citado por KLAMMER, Martin. Whitman, Slavery, and the Emergence of Leaves of Grass, 30.
217
Aqui vale fazer menção a
temperance novel
escrita por Whitman em 1842,
Franklin Evans, or the
Inebriate
, obra negada pelo poeta de
Leaves of Grass
, apesar de seu incrível sucesso editorial. Nela, o
alcóolatra Franklin Evans, viúvo de sua esposa e entregue ao vício, viaja ao Sul e, num ato de descontrole
propiciado pela bebida, se casa com uma mulata, Margaret, essa por sua vez codificada segundo padrões
libidinosos e destemperados. A hybris do casamento, expressa pelo desconforto do narrador e culminante no
desespero de Evans diante de seu “erro” e no suicídio de Margaret quando essa descobre a afeição do marido
por uma conquistadora branca do Norte, Mrs. Conway. Com a morte de Margaret e o fim do caso com Mrs.
Conway, Evans retorna a Nova York e, vivendo de sua pouca propriedade, se torna abstêmio. Ainda que
combine elementos abolicionistas com a subversão de elementos da literatura de reforma, o resultado do
romance ainda se dá nos termos da apologia da escravidão.
155
obra negra, trataram de cultivar, criando uma fronteira discursiva entre a questão política e
a econômica.
Tal fronteira é clara na poesia de Whitman, que reflete de um modo quase binário o
disparate entre um e outro critério. Levando-se em conta estritamente a poesia de 1855, é o
argumento político que falará mais alto. À medida que a Natureza se identifica com a
Democracia e com a igualdade, o poeta absoluto terá seu trânsito garantido pelas
“indumentárias” do negro, que presente entre os inúmeros tipos oprimidos e marginalizados
pela sociedade, são, a princípio, tão importantes quanto os tipos mais elevados. No entanto,
em um sentido mais específico, a figura do escravo coincidirá em 1855 com a daqueles que,
não tendo liberdade, lutarão contra o poder despótico, o que recupera um sentido bastante
antigo da figura do escravo no discurso revolucionário norte-americano, que comparava a
sociedade colonial, taxada pela Coroa e sem representação no Parlamento Inglês, a uma
sociedade de escravos do poder despótico inglês. É nesse sentido que, em 1854, a prisão do
escravo Anthony Burns em Massachussets se torna inspiração para uma dura crítica do
poder federal. Em “A Boston Ballad (1854)” não há referência alguma à figura do escravo
que segue preso pelas ruas de Boston, como se a escravidão pudesse ser reduzida à falta de
liberdade e aos mandos e desmandos de um governo despótico, que age sem consulta à
opinião da sociedade. Confirma essa leitura, em sentido contrário, os primeiros versos do
poema que antecede “A Boston Ballad” em 1855:
Suddenly out of its stale and drowsy lair, the lair of slaves,
Like lightining Europe le’pt forth . . . . half startled at itself,
Its feet upon the ashes and the rags . . . . Its hands tight to the throats
of kings.
O hope and faith! O aching close of lives! O many a sickened heart!
Turn back unto this day, and make yourselves afresh.
218
218
“VINDO de repente de covil imundo e sonolento, o covil de escravos, / Como um raio pulou meio
acordado . . . . sobre si mesmo, / Seus pés enfiados em cinzas e molambos . . . . suas mãos apertadas na
garganta dos reis. // Ó esperança e fé! Ó fim doloroso da vida de patriotas exilados! Ó tanto coração doente!
/Retornem a este dia e refaçam-se novos!”. “
Leaves of Grass 1855
”. Em WHITMAN, Walt.
Op.Cit
., 133.
156
Não se pode dizer que um poema como Europe – 72th and 73th Years of These
States” seja um libelo pela revolta dos escravos norte-americanos. Falando abertamente à
Europa e contra a tirania dos reis, o “escravo” aqui participa da figuração carregada do
início do poema, aberto com os tradicionalíssimos jambos de um Whitman que, em 1850,
ainda se prendia a algumas convenções poéticas. Todavia, é preciso dizer que nem “A
Boston Ballad”, nem “Europe”, integram o processo de elaboração de Leaves of Grass:
ambos foram publicados isoladamente em periódicos antes de sua participação no volume
e, assim, se destacam da “experiência de linguagem” que ocorria nos cadernos de anotação
do poeta, onde (diz a fama) os principais poemas do livro apareciam aos excertos sem
ordem ou reunião
219
. O que, aparentemente, é o primeiro desses trechos, datado de 1847,
corresponde a um tipo de escravo que não poderia servir de figuração para a realidade do
Velho Mundo:
I am the poet of slaves and of the masters of slaves
I am the poet of the body
And I am
Como fosse um falso começo, o poeta reformula a seguir:
I am the poet of the body
And I am the poet of the soul
I go with the slaves of the earth equally with the masters
And I will stand between the masters and the slaves,
Entering into both so that both will understand me alike.
220
Perdidos os cadernos em que estariam os trechos da primeira poesia de Whitman,
supostamente reunidos por Whitman para formarem os poemas da primeira edição de
Leaves of Grass, as duas seqüências citadas se tornaram, fama fertur, o embrião do volume.
De fato, a enumeração e o verso-sentença, marcas registradas do livro, aqui presentes
permitiram à crítica a coincidência do início do projeto poético whitmaniano com a tomada
219
Uma observação semelhante foi feita por KLAMMER, 156.
220
Citado por KLAMMER, Martin. Op.Cit., 50-51.
157
de consciência sobre o tema. Ainda nos excertos, escravos e senhores terão um caráter
universal: são “os senhores e escravos da Terra”, que mantêm a possibilidade de serem
identificados a todos os que se relacionam segundo os termos da tirania e da servidão.
Porém, os poemas que foram publicados somente em 1855 trazem inovações à imagem do
escravo que Whitman publicou anteriormente. Como nos excertos, as figuras do escravo e
do senhor estarão vinculadas a do poeta como extremos de uma sociedade que necessita de
entendimento (“Eu sigo com os escravos da Terra do mesmo jeito que com os senhores”),
arbitragem (“E eu ficarei entre os senhores e os escravos”) e consenso (“Entrando em
ambos de um modo que ambos irão me entender do mesmo jeito”), propostas por fim
presentes naquele que será o “poeta do corpo e da alma” de 1855, que falando em nome da
Democracia e da Natureza, irá propor a liberdade inerente a qualquer ser vivo, incluindo o
negro escravo:
A slave at auction!
I help the auctioneer . . . . the sloven does not half know his business.
Gentlemen, look on this curious creature,
Whatever the bids of the bidders they cannot be high enough for him,
For him the globe lay preparing quintillions of years, without one animal or
plant,
For him the revolving cycles truly and steadily roll’d.
In that head the allbaffling brain,
In it and below it, the making of the attributes of heroes.
Examine these limbs, red black or white . . . . they are very cunning in tendon and
nerve;
They shall be stript, that you may see them.
Exquisite senses, lifelit eyes, pluck, volition,
Flakes of breast-muscle, pliant back-bone and neck, flesh not flabby, good-sized
arms and legs,
And wonders within there yet.
158
Within there runs his blood . . . . the same old blood. . . . the same red running
blood;
There swells and jets his heart. . . . there all passions, desires, reachings,
aspirations;
Do you think they are not there because they are not express’d in parlors and
lecture-rooms?
This is not only one man. . . . this is the father of those who shall be fathers in
their turns;
In him the start of populous states and rich republics,
Of him countless immortal lives, with countless embodiments and enjoyments.
How do you know who shall come from the offspring of his offspring through the
centuries?
Who might you find you have come from yourself, if you could trace back through
the centuries?
221
Este é um dos momentos brilhantes da poesia de Whitman e da união entre Natureza
e Democracia em 1855, valendo sua citação integral. A princípio, o poeta auxiliará o
leiloeiro. Entretanto, após assumir seu posto e criticá-lo, Walt chamará a atenção, já
ironicamente, à “curiosa criatura” que a seguir será “valorizada” e “dissecada” de um modo
221
Um escravo em leilão! / Eu ajudava o pregoeiro . . . . o relapso não sabe metade de seu serviço. //
Senhores, olhem para esta maravilha, / Quaisquer sejam os lances dos compradores, eles não serão
suficientemente altos para ela, / Pois o globo há milhões de anos o vem preparando sem um animal ou planta,
/ Pois os ciclos evolutivos constantemente levam a ela. // Nesta cabeça, o cérebro todo poderoso, / Nela ou
abaixo dela, os atributos dos heróis, // Examinem estes membros, vermelhos negros ou brancos . . . . eles são
astutos em tendões e nervos, / Deviam estar abertos para que pudésseis vê-los. // Sentidos raros, olhos
iluminados de vida, energia, vontade, / Lâminas do músculo do peito, pescoço e espinha flexíveis, a carne
vigorosa, braços e pernas bem formados / E ainda mais maravilhas ali dentro. // Ali dentro o sangue corre . . .
. o bom e velho sangue . . . . O mesmo sangue vermelho corrente; / Ali o coração bombeia e dilata . . . . ali
todas as paixões e desejos . . . . conquistas e aspirações: Você pensa que não estão lá porque não são
expressos em conferências e salas de leitura? // Este não é apenas um homem . . . . este é o pai daqueles que
hão de ser pais por sua vez, / Nele o início de estados populosos e ricas repúblicas, / Dele são as incontáveis
vidas imortais e suas infindáveis incarnações e alegrias. // Como vocês sabem quem virá do nascimento de
seu nascimento ao longo dos séculos? / De quem vocês não poderiam vir, se pudessem traçar o caminho de
volta ao longo dos séculos?”. “
Leaves of Grass 1855
”. Em WHITMAN, Walt,
Op.Cit
., 122.
159
que nem os mais renomados poetas abolicionistas, como Longfellow e Whittier (citados por
nosso Joaquim Nabuco em seu O Abolicionista), foram capazes. Dos “quintilhões de anos”,
que preparam seus membros, a seu cérebro, que traz “os atributos dos heróis”, Whitman
perfará a humanização do escravo a partir de seu corpo, o que configura uma nova
perspectiva em relação a toda poesia de cunho abolicionista, que encarava o problema de
uma perspectiva humanitária e não propriamente racial. “Examinando seus membros”,
Whitman não se embrenhará, por exemplo, pelos sonhos de um escravo com sua terra natal,
caso de “The Slave’s Dream”, de Longfellow
222
, mas por “sentidos belos, olhos iluminados
de vida, cabelo, desejo” e “maravilhas” que lhe pertencem em solo americano e em uma
situação de exploração e opressão que não apenas supera por sua própria natureza como
lhe abre caminho para um futuro em que seu corpo será “o início de estados populosos e
ricas repúblicas”. De quebra, ainda coloca a Democracia sob o signo de uma igualdade
entre raças (os membros dissecados são “vermelhos pretos e brancos”) que seria capaz de
fazer justiça à “Democracia racial” de Gilberto Freyre.
222
Beside the ungathered rice he lay, / His sickle in his hand; / His breast was bare, his matted hair / Was
buried in the sand. / Again, in the mist and shadow of sleep, / He saw his Native Land. // Wide through the
landscape of his dreams / The lordly Niger flowed; / Beneath the palm-trees on the plain / Once more a king
he strode; / And heard the tinkling caravans / Descend the mountain-road. // He saw once more his dark-eyed
queen / Among her children stand; / They clasped his neck, they kissed his cheeks, / They held him by the
hand!-- / A tear burst from the sleeper's lids / And fell into the sand. // And then at furious speed he rode /
Along the Niger's bank; / His bridle-reins were golden chains, / And, with a martial clank, / At each leap he
could feel his scabbard of steel / Smiting his stallion's flank. // Before him, like a blood-red flag, / The bright
flamingoes flew; / From morn till night he followed their flight, / O'er plains where the tamarind grew, / Till
he saw the roofs of Caffre huts, / And the ocean rose to view. // At night he heard the lion roar, / And the
hyena scream, / And the river-horse, as he crushed the reeds / Beside some hidden stream; / And it passed,
like a glorious roll of drums, / Through the triumph of his dream. // The forests, with their myriad tongues, /
Shouted of liberty; / And the Blast of the Desert cried aloud, / With a voice so wild and free, / That he started
in his sleep and smiled / At their tempestuous glee. // He did not feel the driver's whip, / Nor the burning heat
of day; / For Death had illumined the Land of Sleep, / And his lifeless body lay / A worn-out fetter, that the
soul / Had broken and thrown away!”. LONGFELLOW. Henry Wadsworth.“The Slave’s Dream”. Em
“Poems on Slavery”. The Works of Henry Wadsworth Longfellow, 68. A título de comparação, sugerimos o
quinto canto de “O Navio Negreiro”, de Castro Alves, que trabalha com um roteiro idêntico ao de
Longfellow, o que mostra o apelo de certos lugares-comuns no discurso abolicionista internacional.
160
Há ainda de se mencionar uma qualidade que envolve essa libertação do corpo pelo
corpo. Envolvendo os demais momentos, vistos até aqui, em que a Natureza impõe a
igualdade a uma sociedade cuja organização hierárquica e a valoração de uma raça em
detrimento de outras são aspectos dos artifícios a serem destruídos, o que se percebe é uma
perspectiva solar e positiva, em que a igualdade racial e a liberdade estendida a brancos,
negros e vermelhos reiteram e celebram a onipotência e a onipresença de uma lei divina e,
assim, o concerto do mundo, cuja verdade devasta quaisquer pretensões distintivas. No
entanto, haverá o momento em que o sol se põe; e a penumbra e a alienação invadirão a
Terra, tomando de assalto as formas outrora celebradas em comunhão:
I WANDER
all night in my vision,
Stepping with light feet . . . . swiftly and noiselessly stepping and stopping,
Bending with open eyes over the shut eyes of sleepers;
Wandering and confused . . . . lost to myself . . . . ill-assorted . . . . contradictory,
Pausing and gazing and bending and stopping.
223
Este é o cenário do “Night Poem” de 1856, quarto poema sem título de 1855 e
futuro “The Sleepers” (1892), que a crítica do século XX irá louvar por sua semelhança
com os experimentos oníricos da arte surrealista. Richard Bucke, primeiro biógrafo de
Whitman, caracterizaria o poema em 1873 como “uma representação da mente durante o
sono – dos pensamentos e dos sentimentos conexos, semiconexos e desconexos que
ocorrem durante os sonhos, alguns lugares-comuns, alguns estranhos, alguns voluptuosos, e
todos relacionados aos verdadeiros e estranhos acompanhamentos que lhes pertencem
224
;
já John Burroughs confessa, “falando por muitos”
225
, não entender o poema. Do que se
depreende de seu tema e estrutura, veremos aqui o poeta transitar por um mundo
sonâmbulo, em que acontecimentos, lembranças e sentimentos pertencem aos sonhos a que
cada personagem – com as quais o poeta se funde à maneira de “Song of Myself” – dará
223
VAGUEIO
toda a noite em minha visão, /Pisando com pés leves . . . . rápida e silenciosamente pisando e
parando, /Me curvando com os olhos abertos sobre os olhos dos adormecidos; Errando e confuso . . . . perdido
de mim mesmo . . . . sem rumo . . . . contraditório, / Parando e observando e me curvando e parando”.
Leaves
of Grass 1855
”. Em WHITMAN, Walt.
Op.Cit.
, 107.
224
Citado por BRADLEY-BLODGETT, 424-425.
161
voz. Outros elementos também indicam que este quarto poema de 1855 funcione como um
contraponto ao concerto do primeiro de 1855. Aqui, por exemplo, afora a perspectiva
temporal de continuidade (“Song of Myself” se fecha com o pôr-do-sol) e a “visão” do
mundo que abre o poema, nos remetendo a um momento bem definido de “Song of Myself
(“I am afoot with my vision”), no qual o poeta será capaz de vislumbrar o “esférico produto
de Deus”, ainda o encontraremos em identidade com um novo banhista, não mais aquele
que junto a seus 28 camaradas extravasa o prazer e a volúpia da natureza, mas um “nadador
gigante e nu nadando pelos confins do mar”, atirado às pedras pelas ondas, lutando contra a
correnteza até que essa o vence e mata.
É nesse universo de solidão e morte, em que navios afundam e náufragos retornam
mortos à praia, que Whitman irá recuperar a figura do escravo, desta vez com os contornos
de uma revolta outrora aplacada, ou sequer possível de ser anunciada pela ação benevolente
da natureza:
Now Lucifer is not dead . . . . or if he was I am his sorrowful terrible heir;
I have been wronged . . . . I am opressed . . . . I hate him that oppresses me,
I will either destroy him, or he shall release me.
Damn him! How he does defile me,
How he informs against my brother and sister and takes pay for their blood,
How he laughs when I look down the bend after the steamboat that carries away
my woman.
Now the vast dusk bulk that is the whale’s bulk . . . . it seems mine,
Warily, sportsmen! Though I lie so sleepy and sluggsh, my tap is death.
226
225
Idem
.
226
“Agora Lúcifer não está morto . . . . ou se estava eu sou seu herdeiro sofrido e terrível; Eu sou mal tratado .
. . . eu sou oprimido . . . . eu odeio quem me oprime, / Ou irei destruí-lo, ou ele há de me libertar. // Que ele se
dane! Como ele me desafia, /Como ele entrega meu irmão e irmã e é pago por seu sangue, / Como ele ri
quando abaixo a cabeça diate do barco que leva minha mulher. // Agora o vulto imenso e sombrio que é o
vulto de uma baleia . . . . ela parece minha, / Cuidado, folgazão! Ainda que eu esteja tão lenta e sonolenta,
meu golpe é mortal”. WHITMAN, Walt. “
Leaves of Grass, 1855
”.
Op.Cit.
, 113.
162
Distante do “escravo em fuga”, que dependerá da benevolência e dos cuidados do
poeta, ou ainda do que era açoitado e humilhado nas passagens de Song of Myself”, aqui o
poeta se funde à expressão da frustração e do ódio do escravo, dirigidas ao senhor, jurado
de morte em nome da liberdade, aos homens que são pagos pela delação de seus irmãos e
irmãs em fuga e ainda aos que riem de sua separação da mulher que ama, vendida e levada
de navio para outras terras. Os detalhes simbólicos do trecho também são marcantes. Se a
referência bíblica ao anjo caído por sua vontade de desafiar a onipotência de Deus (Lúcifer)
atribui alma ao escravo, em oposição à tradicional justificativa cristã da escravidão dos
negros, que não seriam filhos de Deus, o amor e a noção de comunidade colocarão ainda a
paixão e a razão dos oprimidos em vias de se organizar com o intuito de destruir o sistema
que os rebaixa e humilha. Transformado em “baleia adormecida” no oceano, Lúcifer nos
reserva várias possibilidades de interpretação, da referência bíblica ao Leviatã (diante dos
questionamentos de Jó, Deus irá se comparar ao “rei sobre todos os filhos de animais
altivos”: “Ninguém há tão atrevido, que a despertá-lo se atreva; quem, pois, é aquele que
ousa erguer-se diante de mim? (...) Quem abrirá as portas do seu rosto? Pois em roda de
seus dentes está o terror”
227
), que ainda traz consigo uma noção de “castigo de Deus” e “ira
divina” presente na opinião de Jefferson sobre uma possível rebelião dos escravos
228
, ao
“insondável e imponderável” de Moby Dick, passando pela clássica alegoria política de
Hobbes. De qualquer forma, não apenas o escravo ganha voz própria numa sociedade que
não ostenta a onipotência benevolente de Deus, como a escravidão ganha um corpo
destacado no mundo, com força e vontade de decidir sobre seu destino.
O sono, que em “The Sleepers” une a América (“I swear they are averaged now . . .
. one is no better than the other, / The night and sleep have likened them and restored
227
SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL (ed.). “Livro de Jó, 40: 15-24 – 41: 1-34”.
Bíblia Sagrada –
contendo O Velho e o Novo Testamento (traduzida em português por João Ferreira de Almeida)
. Sociedade
Bíblica do Brasil: São Paulo, 397-398.
228
Indeed I tremble for my country when I reflect that God is just: that his justice cannot sleep for ever: that
consisting numbers, nature and natural means only, a revolution of the Wheel of fortune, na Exchange of
situation, is among possible events: that it may become probable by supernatural interference! The Almighty
has no attribute which can take side with us in such a contest
”. JEFFERSON, Thomas.
Notes on the State of
Virginia
. Citado por KLAMMER, Martin.
Op. Cit
., 153.
163
them
229
) e permite que “o chamado do escravo seja o mesmo do senhor” (“ . . . . e o
senhor saúda o escravo”), faz as vezes de uma Natureza noturna que não intercede
diretamente em nome da igualdade de seus filhos, senão pela situação de absoluto
isolamento que impõe aos homens, limitando seus sonhos a uma esfera que só poeta é
capaz de acessar e compilar. A passagem da noite, contudo, traz a mesma proposta do dia:
nela, a igualdade, que sofrerá com o enfrentamento de indivíduos alienados em suas dores e
desejos, há de ser atingida junto à Natureza “niveladora”. Nesse sentido, ainda poderíamos
especular sobre o sentido das falas e das experiências individuais apartadas desse nexo
igualitário como o próprio sentido da alienação presente no poema que, paradoxalmente,
expõe a consciência material e social de um escravo no momento em que a perspectiva
igualitária parece alcançar a experiência humana somente pelo “average sleep” que a
aprisiona, golpe tremendo nesse momento de radicalismo da figuração do escravo.
Um limite plausível para o fechamento dessa interpretação, que faz eco à
Democracia absoluta e silenciosa de Song of Myself”, está na própria leitura dos poetas
negros norte-americanos que, durante as décadas de 1940 e 1950, integraram a chamada
Harlem Renaissance, levantando a poesia de Whitman como um de seus ícones culturais.
Langston Hughes, provavelmente o mais conhecido dos poetas do movimento, não só
defendeu a importância da leitura de Whitman (First Great Poetic Friend, Lincoln of
Letters
230
, segundo texto publicado em quatro de julho de 1953) entre os negros, como
elaborou algumas antologias da poesia de Leaves of Grass baseadas nas causas da
negritude
231
. Contudo, nas escolhas de Hughes, que aproveita a “experiência global” de
Whitman para chegar, em sua própria poesia, à África e ao contato com uma origem racial,
e encontra em poemas como “I Hear America Singing” e “A Song of Occupations” diálogo
possível e salutar para a formação de uma voz negra norte-americana, poderemos encontrar
também a confirmação de nossos argumentos: sem falar na experiência ecumênica da
liberdade, que pertence à voz de Whitman, a recuperação dos poemas que falam aos
trabalhadores só pode ser vista do ângulo da proletarização dos negros, que no século XX
229
Eu juro que eles estão igualados agora . . . . um não é melhor do que o outro, / A noite e o sono os
tornaram semelhantes e os restauraram”. WHITMAN, Walt.
Op.Cit.
, 114.
230
KLAMMER, Martin.
Op.Cit.
, 1.
164
migram das fazendas do Sul para o trabalho em centros industriais do Norte e do Centro-
Oeste. Antes, se nos cabe falar sem anacronismos, a perspectiva do trabalhador urbano que
toma as páginas de Leaves of Grass já em 1856 não poderia configurar a experiência da
população negra, predominantemente escrava durante a primeira e rural durante a segunda
metade do XIX.
Como também nota Martin Klammer em seu trabalho sobre a figura do negro na
obra de Whitman, após 1855 o interesse do poeta pela experiência do negro escravo na
América se perde; mesmo seus momentos capitais serão revisados, de modo a tornar a
expressão mais leve ou universal, ou simplesmente cortados da versão final dos poemas. À
medida que o trabalho e a cidade surgem como palco definitivo das tensões que formavam
a poesia Leaves of Grass, a própria visada dos negros passa a obedecer ao conflito entre
modos de produção que permanecia nos subterrâneos do embate político entre Norte e Sul.
Como vemos pelo contexto do verso que diz não haver lugar para escravos na “cidade dos
melhores homens e mulheres”, o simples fato da perspectiva do escravo se reduzir a um
imperativo da utopia de trabalhadores livres, que não poderiam encontrar suas raízes
também em um navio negreiro, mas somente na “fundação de uma cidade” e na “busca de
uma Nova Inglaterra”, mostra o estreitamento da América quando transformada nas
“formas” do trabalho. Em uma passagem posterior à Guerra Civil (1861-1865) acrescentada
às revisões de By Blue Ontario’s Shore
Factories, mercantile life, labor-saving machine, the Northeast, Northwest,
Southwest,
Manhattan firemen, the Yankee swap, southern plantation life,
Slavery – the murderous, treacherous conspiracy to raise it upon the ruins of all
the rest
232
231
KARBIENER, Karen. “Lecture 10 – I, Too, Sing America: Black Voices Respond to Whitman”. Em Walt
Whitman and the Birth of Modern American Poetry. Mais informações em http://www.recordedbooks.com.
232
“Fábricas, vida mercantil, máquinas poupadoras de trabalho, o Nordeste, o Noroeste, o Sudoeste, / Os
bombeiros de Manhattan, o barco ianque, a vida da plantação do sul, / Escravidão – a conspiração traiçoeira,
assassina, para se erguer sobre as ruínas de todo o resto, (...)”. “
By Blue Ontario’s Shore
, 6”. Em WHITMAN,
Walt.
Op.Cit.
, 473.
165
a escravidão surge da associação com a “vida da plantação do sul” para se postar no centro
da “conspiração traiçoeira” que pretendia “se erguer sobre as ruínas” de fábricas, vida
mercantil, máquinas e ocupações livres que encontramos em “Broad-Axe Poem” com a
devida ascendência branca, urbana e européia. Se a luta contra a escravidão “assassina”,
assinalada pela passagem de “By Blue Ontario’s Shore”, nos basta para reiterar o
compromisso político do poeta com a liberdade e contra a escravidão, também há de se
considerar que o negro acaba integrado entre os antagonistas rurais do poeta sem
consideração alguma acerca de seu lugar na América indiscriminadamente livre que se
anuncia em 1856.
A solução dada por Whitman ao papel do negro na América será um assunto a que
retornaremos quando tratarmos da poesia da Guerra Civil, compilada na seção “Drum-
Taps” de Leaves of Grass. Por enquanto, o que pretendemos mostrar é como duas linhas
formais irão se estabelecer a partir de 1856: uma, baseada nas relações entre natureza e
política, propriamente ecumênica, que abraçará a figura do negro escravo como parte do
périplo de superação de uma sociedade movida por artifícios para o encontro, por vezes
inconsistente ou problemático, com a liberdade e a igualdade políticas absolutas,
encontradas por uma visão tipológica do mundo; e outra que se apropria das formas do
trabalho livre para celebrar e doutrinar seus protagonistas, entregando a poesia e o tipo à
reprodução, indireta ou ingênua, de um modo de organização social desigual, legitimado
por uma natureza indiferente aos destinos singulares, mas ligada à promoção de um
princípio de União que, na época, se via bastante ameaçado pelas tensões entre Norte e Sul
acerca do destino dos territórios ocupados. Pela complementaridade verificada em uma
passagem do postbellum, vimos que a América surgida do trabalho livre e da indústria
aceita a tensão secessional, o que em “Song of Broad-Axe” já se anuncia à medida que a
oposição da sociedade livre à escravidão implicava o isolamento do negro em uma região
(o Sul agrário), bem como em um sistema que não conhecia fim.
É certo que, em 1855, Whitman não tinha a menor pretensão de referir a cisão
econômica e regional do país, que ganhava a política e, indiretamente, a poesia a partir de
1856, quando, isolando o Sul escravocrata, celebra-se o trabalho livre como forma
(“shape”). Pelo contrário, seu objetivo, ao celebrar a unidade da nação e de sua natureza,
era o de mostrar o próprio princípio unificador da América, que em 1856 deve ser lembrada
166
pelos moços e moças do “compacto orgânico Destes Estados” à guisa de ensinamento e
sabedoria
You just maturing youth! You male and female!
Remember the organic compacts of These States,
Remember the pledge of the Old Thirteen thenceforward to the rights, life,
liberty, equality of man,
Remember what was promulged by the founders, ratified by the States, signed in
black and white by the Commissioners, and read by Washington at the
head of Army.
e em 1860 será comparada a um ramo de flores e folhas (“Our Old Feullage”)
Singing the song of These, my ever united lands – my body no more inevitably
united, part to part, and made out of a thousand diverse contributions one
identity, any more than my lands are inevitably united and made O
NE
IDENTITY
oferecendo-nos outra importante metáfora, a do Corpo do Estado, da qual participará um
dos pontos mais alterados pela perspectiva do trabalho e igualmente político e libertário nos
idos de 1855, o sexo.
3
Whatever goes to the tilth of me it shall be you,
You my rich blood, your milky stream pale stripping of my life
(“Leaves of Grass, 1855”)
Through you I drain the pent-up aching rivers of myself,
In you I wrap a thousand onward years,
On you I graft the grafts of the best beloved of me and America,
The drops I distil upon you shall grow fierce and athletic girls, new artists, musicians, and singers
(“Poem of Procreation, 1856 A Woman Waits for Me”, 1860)
Apesar de ter sido publicamente pouco afeito à lírica amorosa ao longo de sua
carreira poética, Whitman expressou pelo amor e pelo sexo páginas importantes de sua
167
poesia. É o enlace erótico entre indivíduo e alma que sela o reconhecimento da natureza e a
revelação da verdade e do concerto do mundo no primeiro poema de 1855. No voyerismo
da mulher, que se deixa levar pela volúpia de vinte e oito banhistas nus, temos não só a
celebração da fertilidade como a exposição do modo com que o poeta “toca” realidade que
o cerca, deixando-a fluir por seu corpo abstrato e continental. Já em uma cena de
masturbação, descobrimos os limites perigosos de seu método, quando o “toque” – que “o
conduzia a novas identidades” – se volta ao próprio corpo do poeta, que perde os sentidos e
só consegue reaver o significado do mundo em uma nova empreitada junto à natureza. O
modo descomedido e copioso com que seus catálogos estendem o mundo revelado nos dá a
sensação de um universo que brota diante de seus olhos para deixar à mostra cada poro da
realidade. “Desordenadamente carnal e sensual”
233
, Whitman encontra na fecundidade e
nos processos de crescimento e maturação da natureza, sempre ligados à figuração de um
“corpo sem disfarces”, uma via sem dúvida profícua de apropriação e aprofundamento do
“princípio orgânico” desenvolvido de modo um tanto abstrato por Emerson e Thoreau.
Na “Carta a Ralph Waldo Emerson”, o que pertencia à poesia sem dissertação ganha
tópico entre os pontos que devem ser debatidos pelos “bardos do conjunto”. Ironizando o
“gênero neutro” que domina a figuração literária do sexo e a sociedade ortodoxa (“se as
vestes fossem trocadas, homens poderiam facilmente se passar por mulheres e as mulheres
por homens”), Whitman propõe ao filósofo uma abordagem “fiel” do tema, que pudesse
salvá-lo da hipocrisia e do descaso a que estava condenado:
Infidelism usurps most with foetid polite face; among the rest infidelism about
sex. By silence or obedience the pens of savans, poets, historians, biographers,
and the rest, have long connived at the filthy law, and books enslaved to it, that
what makes the manhood of a man, that sex, womanhood, maternity, desires,
lusty animations, organs, acts, are unmentionable and to be ashamed of, to be
driven to skulk out of literature with whatever belongs to them. This filthy law has
to be repealed – it stands in the way of great reforms. Of women as much as man,
it is interest that there should not be infidelism about sex, but perfect faith.
233
Cf. “
Leaves of Grass 1855
”. Em WHITMAN, Walt.
Op.Cit.
, 50.
168
Women in These States approach the day of that organic equality with men,
without which, I see, men cannot have organic equality among themselves.
234
Aqui temos uma boa amostra do ímpeto reformista que governa as revisões e a
poesia presentes na edição de 1856. Boa parte dos elementos que compunham diretamente
a persona do poeta e seu caráter público e exemplar, como o pertencimento ao país e o
desejo de estabelecer a natureza como princípio de todo contato social, aqui se tornam
palavras de ordem ou sabedoria, acarretando a panfletagem de alguns momentos, como nos
imperativos nacionalistas de “Poem of Remembrances for A Girl or A Boy of These States”,
ou o dogmatismo que transforma a volúpia e o erotismo com que o universo poético se
configurava em sexo, tópico de interesse público que impõe correção e norma ao corpo
mediante a procriação, regente tanto da purificação de desejos e órgãos e do combate ao
“silêncio e à obediência” que convinham à perpetuação de uma “lei imunda”, como do
surgimento de uma “raça democrática”, imagem que se depreende do programa unionista
aplicado pelo poeta ao sexo a partir de 1856. Não é caso de ver o poeta de 1855 à margem
dos movimentos de reforma social, mas de observar como esses elementos ganham nova
roupagem em resposta a problemas que, com o passar dos anos ou com a comprovada
ineficácia de procedimentos, vão assumindo novas proporções, lançando luzes inusitadas
sobre um passado que, de tão próximo, parece por vezes imperceptível.
Para encontrarmos o problema que torna o sexo assunto de primeira ordem, se
preciso retornar ao primeiro poema de 1855 e atentar àquilo que o sexo representa em um
universo poético onde o erotismo e a sensualidade já são absolutamente sensíveis às
inflexões políticas do poeta, denunciando a pertinência ou a impertinência de sua conduta
234
“Infidelidade usurpa muitas coisas com sua fétida cara polida; entre essas coisas, a infidelidade quanto ao
sexo. Por silêncio ou obediência, a pena dos escritores, poetas, historiadores, biógrafos e outros tem há muito
sido conivente com essa lei imunda, e os livros por ela escravizados, que [diz] que o que faz a masculinidade
do homem, que o sexo, a feminilidade, a maternidade, os desejos, animações de luxúria, órgãos, atos, não são
mencionáveis e devem causar vergonha, para serem levados para longe da literatura com tudo o que lhes
pertença. Essa lei imunda tem de ser repelida – ela emperra as grandes reformas. Das mulheres tanto quanto
dos homens, é interessante que não exista infidelidade em relação ao sexo, mas perfeita fé. As mulheres
Nestes Estados se aproximam do dia daquela igualdade orgânica igualdade com os homens, sem a qual, vejo,
os homens não podem ter uma orgânica igualdade entre si. WHITMAN, Walt. “Appendix to Leaves of
Grass, 1856: Letter to Ralph Waldo Emerson”. Em Poetry and Prose, 1358-1359.
169
pública e de seu contato com o mundo. Tão importante quanto conceito de “fusão” (merge),
que torna possível a Walt a imersão na verdade do mundo e a reunião dos fragmentos
problemáticos da realidade em uma unidade mística que encontra sua melhor expressão,
segundo o “Prefácio”, nos próprios Estados Unidos (“o maior poema”), é o pensamento
sobre a forma (“form”) presente em uma breve, porém importante, digressão.
Após chegar a um primeiro êxtase da união nacional, experimentando a vida do
campo para transfigurar a cidade e reatá-la à verdade que, no início do poema, foi vertida
pela união entre indivíduo e alma, Walt passa a refletir sobre sua “própria diversidade
235
,
na qual o país, integro em sua natureza, passa a admitir a existência em igualdade de tipos
outrora separados por uma hierarquia de competências e saberes denunciados como
artifícios que somente a União, mística e política, supera. Assim, encontrando a confluência
de todos os objetos do universo em si, Walt Whitman – “um americano, um dos
arruaceiros, um kosmos” – chega à concisão do mundo e de sua relação com o Outro não
apenas mediante sua identidade pública, como por meio de seu próprio corpo:
If I worship any particular thing it shall be some of the spread of my body;
Translucent mould of me it shall be you,
Shaded ledges and rests, firm masculine coulder, it shall be you,
Whatever goes to the tilth of me it shall be you,
You my rich blood, your milky stream pale stripping of my life
(...)
236
O Outro, que no início do poema “há de assumir tudo que assumo”, aqui já se torna
parte dos “átomos” do poeta, agora discriminados: “molde translúcido”, “sangue rico” e
“córrego leitoso e pálido de minha vida”, o interlocutor, bem como qualquer coisa cultuada
pelo poeta, “brota” de seu corpo, tão fértil quanto gregário. Como a grama, que expressa a
Democracia à medida que cresce indistintamente sob os pés de todos os homens e
235
WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Op.Cit., 43.
236
“Se eu cultuar qualquer coisa em particular, ela há de ser algo que brota do meu corpo; / Translúcido
molde de mim há de ser você, / Saliências sombreadas e retiros, masculino e firme arado, há de ser você, /
Tudo o que venha de meu cultivo há de ser você, / Você meu sangue rico, seu regato pálido e leitoso em jatos
do meu corpo, (...)”. WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Op.Cit., 51.
170
mulheres, a fertilidade é celebrada a partir da mais perfeita comunhão com o Outro, a forma
mais sintética do mundo que, até aqui, víamos o poeta absorver a ponto de tornar as
palavras, com que “envolve mundos e volumes de mundos”, idênticas à visão, por onde o
que lhe é externo atravessa a primeira fronteira da identidade para configurar o todo e,
assim, a experiência absoluta do Ser, que não implica somente o arrebatamento dos
sentidos propiciado por um Universo vertido em música, mas também pela assunção
individual de toda e qualquer forma:
To be in any form, what is it?
If nothing lay more developed the quahaug and its callous shell were enough.
Mine is no callous shell,
I have instant condutors all over me whether I pass or stop,
They seize every object and lead it harmlessly through me.
I merely stir, press, feel with my fingers, and am happy,
To touch my person to some one else’s is about as much as I can stand.
237
Preterindo as “duras formas” da concha, símbolo do isolamento e do encerramento
em si, as formas de Walt serão definidas pelos “condutores instantâneos”, que remontam à
idéia de um poeta que não tem “um estilo delimitado” por ser “um canal de pensamentos e
coisas sem enriquecimento ou empobrecimento”
238
. A justa medida, reforçada, segundo o
mesmo prefácio, pelo juramento do poeta contra o estilo (“Ele jura para sua arte, eu não
vou intervir, eu não vou ter em meus escritos nenhuma elegância ou efeito ou originalidade
que esteja pendurado no caminho entre mim e o resto como cortinas. Eu não vou pendurar
coisa alguma no caminho, nem as mais ricas cortinas. O que disser vou dizer precisamente
por aquilo que é”
239
), vai de encontro à simplicidade de seu contato variado com o que lhe é
237
“Estar em qualquer forma, o que é isso?/ Se nada acabasse mais desenvolvido o marisco e sua concha dura
seriam suficientes. // A minha não é concha dura, / Eu tenho condutores instantes por mim por onde passe ou
pare, / Eles pegam todos os objetos e os conduzem sem dor através de mim. / Eu apenas mexo, aperto, sinto
com meus dedos e fico feliz, / Tocar alguém minha pessoa em outra é o máximo que posso agüentar”.
WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em Op.Cit., 55. Cf. “Song of Myself, 27”, 215.
238
WHITMAN, Walt. “Leaves of Grass 1855”. Em WHITMAN, Walt. Op.Cit., 14.
239
Idem, Ibidem.
171
exterior (“mexo, aperto, sinto com os dedos e sou feliz”), objetos, animais e pessoas que
deverão passar por seu crivo sensual para que alcancem tal plenitude de ser. Assim, as
“formas” que abraçam o mundo e o próprio poeta seriam feitas do êxtase (“a felicidade”)
resultante da união entre sujeito e objeto ou mesmo do toque entre sujeitos (“é o máximo
que posso agüentar”), ponto alto da digressão metalingüística que alia a forma ao encontro
não apenas das almas, como dos corpos, para os quais a poesia é expressão do prazer, não
da dor.
A diretriz hedonista da poética de Whitman passará, todavia, por um momento de
crise que explicita, mais do que qualquer outra passagem do volume, as relações entre o
prazer e a comunhão coletiva:
Is this then a touch?. . . . quivering me to a new identity,
Flames and ether making a rush for my veins,
Treacherous tip of me reaching and crowding to help them,
My flesh and blood playing out lightning to strike what is hardly different from
myself,
On all sides prurient provokers stiffening my limbs,
Straining the udder of my heart for its withheld drip,
Behaving licentious toward me, taking no denial,
Depriving me of my best as for a purpose,
Unbuttoning my clothes, holding me by the bare waist,
Deluding my confusion with the calm of the sunlight and pasture-fields,
Immodestly sliding the fellow-senses away,
They bribed to swap off with touch and go and graze at the edges of me,
No consideration, no regard for my draining strength or my anger,
Fetching the rest of the herd around to enjoy them a while,
Then all uniting to stand on a headland and worry me.
The sentries desert every other part of me,
They have left me helpless to a red marauder,
They all come to the headland to witness and assist against me.
I am given up by traitors,
I talk wildly . . . . I have lost my wits . . . . I and nobody else am the
greatest traitor,
I went myself first to the headland. . . . my own hands carried me there.
172
You villain touch! what are you doing?. . . . my breath is tight in its throat;
Unclench your floodgates! you are too much for me.
240
O “toque”, que ainda segundo a arte poética “me faz tremer a uma nova identidade”,
aqui se volta contra o corpo de Walt. O conflito e a traição estão no cerne da masturbação
figurada: a carne e o sangue lançam raios para atingir “algo que em nada se diferencia de
mim”; o roçar traiçoeiro força passagem; a lascívia prende os membros, não aceita
negativas, ilude os sentidos e paga propinas para pastar nas profundezas do poeta, como se
tivesse alguma intenção conspirada; os sentinelas desertam, a insurreição se completa; e o
poeta se destempera, perde o juízo, mas se reconhece como o maior traidor de si, “suas
próprias mãos” o conduziram ao promontório. O onanismo figura um momento de
desequilíbrio não apenas entre o corpo e a alma, mas também entre os limites colocados
entre o indivíduo e a coletividade; o prazer, antes expressão do contato do sujeito com o
mundo, isola o poeta definido pela relação dialógica com o Outro e o conduz ao
desgoverno do próprio corpo. A metáfora não deixa dúvida quanto aos desígnios do prazer,
que faz surgir em 1855 um corpo político, confirmado pela tipologia que faz do indivíduo a
manifestação da nação abstrata. É a natureza política do corpo que, no início do poema, faz
240
“Então isso é um toque? . . . . me fazendo tremer até uma nova identidade, / Chamas e éter lançados em
minhas veias, / Roçar traiçoeiro de mim alcançando e forçando passagem para auxiliá-los, / Minha carne e
meu sangue lançam raios para atingir aquilo que mal se diferencia de mim mesmo, / De todos os lados
provocadores lascivos prendem meus membros, / Comportando-se de modo licencioso, não aceitando um não
como resposta, / Privando-me do meu melhor por alguma razão, / Desabotoando minhas roupas e me
segurando pela cintura nua, / Iludindo-me com a calma da luz do sol e os campos do pasto, / Sem modéstia
guiando para longe meus sentidos queridos, / Eles me subornam para passar com seu toque e vão e pastam nas
profundezas de mim, / Sem consideração, sem dar atenção para minhas forças que se vão ou minha raiva/
Chamando o resto da manada para desfrutar um pouco mais, / E assim todos se unindo para subir um
promontório e me acabar. // As sentinelas abandonam todas as partes de mim, / Eles me deixaram sem saída
diante de uma pilhagem sangrenta, / Eles todos vieram do promontório para testemunhar e se apresentar
contra mim. / Eu fui abandonado por traidores; / Eu falo como louco . . . . Eu perdi meus dons . . . . Eu – e
mais ninguém – sou o maior traídor, / Fui por minha conta para o promontório . . . . minhas próprias mãos me
carregaram até lá. / Seu toque vil! O que você está fazendo? . . . . minha respiração está apertada nesta
garganta; / Abram suas comportas! Vocês são demais para minha cabeça”. WHITMAN, Walt. “Leaves of
Grass 1855”, 57 Cf. “Song of Myself, 28”, 215-216.
173
da união amorosa entre o indivíduo, artificial, e a alma, natural, o consenso para a formação
do corpo como primeira instância de uma esfera pública que, em seguida, se ampliará com
a reabilitação da cidade e o reconhecimento da unidade sensual e mística entre espaço
urbano e campo. Ademais, como na cena de libertação do escravo no leilão, o entendimento
político do corpo será importante para o estabelecimento da igualdade e do direito
universal, integrando o sexo, como vimos pela “Carta”, na fundação e no regime da
república.
A “abertura das comportas” encerra a passagem como uma espécie de distensão
ocasionada pela força irresistível do “toque vil”, que, alcançado o objetivo, abandonará o
poeta. Seguindo, teremos mais um momento de digressão, como que completando o
primeiro pensamento sobre as “formas”, baseadas no “toque” e atingidas pela contra
argumentação fortíssima que acabamos de ver. Assim:
Blind loving wrestling touch! Sheathed hooded sharptoothed touch!
Did it make you ache so leaving me?
Parting tracked by arriving . . . . perpetual payment of the perpetual loan,
Rich showering rain, and recompense richer afterward.
Sprouts take and accumulate . . . . stand by the curb prolific and vital,
Landscapes projected masculine full-sized and golden.
À força do toque são atribuídas qualidades passionais (“briguento” e “amoroso”) e
uma “cegueira” sem dúvida ligada à irracionalidade, como se fizessem menção somente aos
caninos de um homem pensante, a quem caberá o “pagamento perpétuo” de um
“empréstimo perpétuo”. A relação de troca, colocada como condição sine qua non de uma
“chuva rica e abundante” e de “recompensas mais ricas” permitem ao poeta o acúmulo de
frutos (oposto ao “desperdício” da passagem anterior) e o ingresso em um “mercado
prolífico e vital”, de onde se projetam as “paisagens masculinas douradas em tamanho
natural”, resultado de uma regulação social das formas: para se formarem do sujeito,
dependerão sempre de sua relação com o Outro, limite político que dá legitimidade aos
sentidos do poeta, “louco por iguais noite e dia”, para ficarmos no “Prefácio”.
174
Em 1855, a relação sensual com o mundo aparecia na prova da comunhão (essa,
política) entre o terreno e o espiritual: a relação democrática que se estabelecia entre os
homens a despeito das convenções e dos artifícios vazava, dependendo de sua adequação
tipológica (ou seja, de sua proximidade com a verdade mística da União), o prazer e a dor.
Contudo, à medida que as formas naturais (“form”) dão lugar às formas do trabalho
(“shape”), a fertilidade que advinha do encontro entre sujeito e mundo passará a uma
regulação externa que vem no bojo do novo elemento de mediação, uma liberdade que já
não se constata pela natureza, mas pela assunção de uma convenção econômica (a liberdade
do trabalho), que muito embora seja determinada pela história, passa por um processo de
mistificação encabeçado pela própria Natureza, “indiferente” à desigualdade e à destruição
de vidas incitada pelo modo de produção. No que diz respeito ao sexo, a transição do
pensamento formal motivará o aporte de uma ciência normativa que toma o corpo de
assalto, atribuindo-lhe funções e extraindo de seu funcionamento evidências de saúde e
doença, sociabilidade e segregação, que encontram finalidade na formação não mais de um
corpo político, cuja natureza liberta para manifestar a igualdade, mas de um corpo de
Estado, para o qual a experiência sensual da América se torna passiva de correção e
finalidade. Nessa toada, o poeta que outrora “abarcava mundos”, mas não permitia a
própria definição, passa a ser figurado por um mosaico de categorias científicas e regimes
médicos:
His shape arises,
Arrogant, masculine, naive, rowdyish,
Laugher, weeper, worker, idler, citizen, countryman,
Saunterer of woods, stander upon hills, summer swimmer in rivers or by the sea,
Of pure American breed, of reckless health, his body perfect, free from taint from
top to toe, free forever from headache and dyspepsia, clean-breathed,
Ample-limbed, a good feeder, weight a hundred and eighty pounds, full-blooded,
six feet high, forty inches round the breast and back,
Countenance sun-burnt, bearded, calm, unrefined,
Reminder of animals, meeter of savage and gentleman on equal terms,
Attitudes lithe and erect, costume free, neck gray and open, of slow movement on
foot,
Passer of his right arm round the shoulders of his friends, companion of the
175
street,
Persuader always of people to give him their sweetest touches, and never their
meanest,
A Manhattanese bred, fond of Brooklyn, fond of Broadway, fond of the life of the
wharves and the great ferries,
Enterer everywhere, welcomed everywhere, easily understood after all,
Never offering others, always offering himself, corroborating his phrenology,
Voluptuous, inhabitive, combative, conscientious, alimentive, intuitive, of copious
friendship, sublimity, firmness, self-esteem, comparison, individuality, form,
locality, eventuality,
Avowing by life, manners, works, to contribute illustrations of results of The
States,
Teacher of the unquenchable creed, namely, egotism,
Inviter of others continually henceforth to try their strength against his.
241
Como o refrão indica (“His shapes arise”), esta é uma passagem de “Broad-Axe
Poem”, mais especificamente a que se segue às formas da Natureza (“Her shapes arise”).
Neste autoretrato, ou atestado de saúde física e mental, excluído do poema em 1867, o
poeta mistura as paixões fortes, a pureza de alma e a cosmogonia tipológica que
241
“Suas formas se levantam! / Arrogante, masculino, ingênuo, tosco, / Alegre, triste, trabalhador, folgado,
cidadão, homem do campo, / Passeia pelos bosques, pára nas colinas, nada nos rios durante o verão ou pelo
mar, / De pura raça Americana, saúde inquebrantável, seu corpo perfeito, livre de problemas dos pés à cabeça,
livre para sempre de dor-de-cabeça e dispepsia, de hábito puro, / De membros largos, um bom garfo, pesando
cento e oitenta libras, de sangue forte, um metro e oitenta, quarenta polegadas ao redor do pescoço e das
costas, / De rosto bronzeado, barbado, calmo, sem finezas, / Lembrador de animais, encontrador de selvagem
ou homem educado nos mesmos termos, / Atitudes eretas, de costumes livres, pescoço cinza e largo, de
movimentos lentos a pé, / Passador do braço direito ao redor dos ombros de seus amigos, companheiro da rua,
/ Persuasivador sempre de pessoas para dar-lhes seus mais doces toques e nunca seus piores, / Um
Manhatteseano, que gosta do Brooklyn, da Broadway, da vida das docas e das grandes balsas, / Ingressante
em todo lugar, bem recebido em todo lugar, facilmente compreendido apesar de tudo, / Nunca oferecendo os
outros, sempre oferecendo a si mesmo, corroborando sua frenologia, / Voluptuoso, habitativo, combativo,
consciente, alimentativo, intuitivo, de copiosa amizade, sublimidade, firmeza, autoestima, comparação,
individualidade, forma, localidade, eventualidade, / Atento a vida, maneiras, trabalhos, para contribuir com
ilustrações de resultados Dos Estados, / Professor de uma inabalável crença, a saber, egotismo, / Convidador
de outros para que daí em diante testem sua força contra a dele”. “
Leaves of Grass 1860: from Chants
Democratic and Native American
”. Em WHITMAN, Walt.
Op.Cit
., 677-678.
176
caracterizam seu American rough (“Arrogante, masculino, ingênuo, desordeiro, /Alegre,
triste, trabalhador, folgado, cidadão, homem do campo”) aos atributos de uma vida em
natureza (passeia pelos bosques, pára nas colinas, nada nos rios durante o verão) e de um
“corpo perfeito”, “livre de mau-hálito, dispepsia e dores de cabeça”. Opulento, grosso,
persuasivo e gregário, Walt ainda “corrobora sua frenologia”: “voluptuosidade,
habitatividade, combatividade, consciência, alimentativo, intuitivo, de copiosa amizade”
(em 1860, a categoria será referida por seu verdadeiro nome, “adesividade”), sublimidade,
firmeza, auto-estima, comparação, individualidade, forma, localidade e eventualidade” são
as categorias (“órgãos”) que esquadrinhavam o crânio humano, cujas medidas se traduziam
em pontuações; essas, combinadas segundo cada quesito, formavam o chamado “mapa de
protuberâncias”, no qual líamos as qualidades da alma do examinado. Whitman era um
entusiasta da Frenologia (seu “mapa” é uma das principais e mais antigas relíquias do
acervo pessoal do poeta) e um freqüentador assíduo da casa frenológica dos irmãos
Fowlers, que lhe cederam a loja para a venda dos exemplares das primeiras edições de
Leaves of Grass. No entanto, o que nos causa interesse aqui não é tanto a peculiaridade
biográfica, mas o aporte da terminologia científica relacionado a “formas” que não serão
mais designadas por um hedonismo divinizado, mas por uma qualidade técnica e
socialmente determinada.
Como vimos, a paixão de Whitman pelas novidades científicas e tecnológicas não
escapa à primeira poesia de Leaves of Grass. O princípio frenológico de que é possível
determinar o desenvolvimento de qualidades éticas ou de alma a partir de evidências
presentes na matéria é contemplada pela escrita tipológica do mundo que se manifesta em
Song of Myself”, bem como na importância conferida ao retrato do poeta na primeira
edição. Nesse sentido, Whitman teria recorrido também à Fisionomia, “ciência” que a
época viu se difundir amplamente por obra de John Caspar Lavatier e seus Ensaios sobre
Fisionomia, nos quais lemos a seguinte definição: “a fisionomia é a ciência de
descobrimento da relação entre o exterior e o interior – entre a superfície visível e o espírito
invisível que ela cobre – entre o animado, matéria perceptível, e o princípio imperceptível
que imprime este caráter de vida por sobre ela – entre o efeito aparente e a causa afastada
que o produz”
242
. Aplicada à expressão do rosto humano e demonstrada por gráficos e
242
Citado por ORVELL, Miles.
Op.Cit
., 14.
177
matéria quantificada, a fisionomia é, supostamente, o princípio para o sexto dos poemas
(“Faces” em sua versão definitiva, de 1871) que compõem a primeira edição de Leaves of
Grass:
Sautering the pavement or riding the country byroad, faces!
Faces of friendship, precision, caution, suavity, ideality,
The spiritual prescient face, the always welcome common benevolent face,
The face of the singing of music, the grand faces of natural lawyers and judges
broad at the back-top,
The faces of hunters and fishers bulged at the brows. . . . the shaved blanched
faces of orthodox citizens,
The pure, extravagant, yearning, questioning artist's face,
The ugly face of some beautiful soul. . . . the handsome detested or despised face,
The sacred faces of infants. . . . the illuminated face of the mother of many
children,
The face of an amour. . . . the face of veneration,
The face as of a dream. . . . the face of an immobile rock,
The face withdrawn of its good and bad. . . . a castrated face,
A wild hawk. . his wings clipped by the clipper,
A stallion that yielded at last to the thongs and knife of the gelder.
Sauntering the pavement or crossing the ceaseless ferry, here then are faces;
I see them and complain not, and am content with all.
243
243
Caminhando pela calçada ou atravessando o país por estrada aqui estão, os rostos,/ Rostos de amizade,
precisão, precaução, suavidade, idealidade,/ O presciente rosto espiritual, o sempre bem-vindo e comum rosto
benevolente, / O rosto do cantar de música, os grandiosos rostos de advogados e juízes naturais e largos até a
parte de trás da cabeça, / Os rostos de caçadores e pescadores, salientes na testa . . . . os rostos /
esbranquiçados e escanhoados dos cidadãos ortodoxos, / O rosto puro extravagante do artista que questiona e
anseia, / O rosto feio de alguma bela alma . . . . o rosto bonito e detestado ou desprezado, / Os rostos sagrados
das crianças . . . . o rosto iluminado da mãe de muitas crianças, / O rosto de um amor . . . . o rosto de
veneração, / O rosto como que de um sonho . . . . . o rosto de uma rocha imóvel, / O rosto afastado de seu bom
ou mau . . um rosto castrado, / Um falcão selvagem . . suas asas cortadas pelo cortador, / Um garanhão que
por fim cede ao couro e à faca do castrador. // Caminhando pela calçada ou cruzando as ferrovias sem fim,
aqui estão por fim os rostos; / Eu os vejo e não reclamo e estou contente com todos”. WHITMAN, Walt.
"Leaves of Grass 1855". Op. Cit
., 125. Cf. “
Faces
”.
From Noon to Starry Night
.
Op.Cit.
, 576.
178
Em “Rostos” ficam evidentes os termos da união entre “corpo e alma”, sem conflito
possível posto que essência e aparência aqui são, mais do que indissociáveis, expressão
uma da outra. Também não fica dúvida quanto ao saber que guia os olhares do poeta por
seus hieróglifos; entretanto, não temos ainda o desejo de correção ou quadro clínico
exemplar que se manifesta no autoretrato do “Poema do Machado”, no qual a ciência já não
tem presença discreta ou inócua e empresta sua terminologia para o entendimento corretivo
do mundo. A título de exemplo, o leitor poderia passar em branco pela referência
fisionômica de “Faces”; mesmo a aproximação dessa ciência com os hieróglifos de 1855 a
conduz à órbita das demais técnicas que vazam o princípio tipológico de representação do
mundo. Já aqui, o aparecimento do poeta clinicamente perfeito, formado (“shaped”) junto à
Democracia e à América, dá surgimento ao “marido robusto das mulheres americanas”:
It is I, you women, I make my way,
I am stern, acrid, large, undissuadable, but I love you,
I do not hurt you any more than is necessary for you,
I pour the stuff to start sons and daughters fit for these States, I press with slow
rude muscle,
I brace myself effectually, I listen to no entreaties,
I dare not withdraw till I deposit what has so long accumulated with me.
244
No poema que a segunda edição dedica ao tema da procriação (o décimo-terceiro,
Poem of Procreation”), a linguagem simbólica que envolvia o sexo se torna literal e pede
a presença não de um interlocutor qualquer, mas de uma mulher resignada à força e ao
desejo de um homem que justifica sua virulência, digamos, “saudável”, por uma via
explicitamente patriótica, “o início de filhos e filhas adequados a estes Estados”. Falando
inicialmente a homens e mulheres (em 1867, o poema dá ênfase à figura da mulher,
244
“Este sou eu, Ó mulheres, eu que traço meu caminho, / Sou amargo, ríspido, grande, intransigente e amo
vocês, / Não machuco vocês mais do que lhes é necessário, / Derramo a matéria que inicia os filhos e as filhas
adequados a estes Estados, meu rude músculo premente, / Apóio-me com força, não escuto súplicas, / Não
ouso me retrair sem que antes tenha depositado em vocês o que foi acumulado em mim por tanto tempo”. “13
– Poem of Procreation”, (1856). Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The Walt Whitman Archive
(
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. Cf. “
A Woman Waits for Me
”. Em WHITMAN, Walt.
Children of
Adam
.
Op.Cit.
, 259-260.
179
ganhando o título “A Woman Waits for Me”) o poema explicará a importância do sexo para
a sociedade (“o sexo contém tudo, corpos, almas, / Significados, provas, purezas,
delicadezas, resultados promulgações, / Canções, comandos, saúde, orgulho, o mistério
maternal, o leite seminal”) e a necessidade de se compreender o tema sem a “vergonha”
(“Sem vergonha o homem de que gosto conhece e admite as delícias de seu sexo, / Sem
vergonha a mulher de que gosto conhece e admite as dela”) que, na “Carta a Emerson”,
vimos ligada a uma “lei suja”. A evidência de uma voz normativa e moral, que
percebemos pela intenção de se falar por um Outro (“o homem de que gosto”, “a mulher de
que gosto”), emprestando ao “Eu” a alteridade do exemplo, está ainda no breve arrolar das
características de uma mulher “correta”: “dispensando as mulheres impassivas”, o poeta
buscará aquelas “que recebem no rosto o sol nascente e o sopro dos ventos” e “sabem como
nadar, remar, cavalgar, lutar, atirar, correr, atingir, recuar, avançar, resistir e se defender”.
Para essas mulheres exemplares, “depósitos” daquilo que “se acumula” no corpo do poeta,
“o marido robusto dessas mulheres”, o desejo e o prazer serão tema de saúde pública, cuja
finalidade, em última instância, se encontra na perpetuação do Estado:
Through you I drain the pent-up rivers of myself,
In you I wrap a onward thousand years,
On you I graft the grafts of the best-beloved of me and America,
The drops I distil upon you shall grow fierce and athletic girls, new artists,
musicians, and singers,
The babies I beget upon you are to beget babes in their turn,
I shall demand perfect men and women out of my love-spendings,
I shall expect them to interpenetrate with others, as I and you interpenetrate now,
I shall count on the fruits of the gushing showers of them, as I count on the fruits
of the gushing showers I give now,
I shall look for loving crops from the birth, life, death, immortality, I plant so
lovingly now.
245
245
“Em vocês deságuam os rios contritos de mim mesmo, / Em vocês envolvo os mil anos do porvir, / Em
vocês enxerto as mudas do que mais amo de mim e da América, / Das gotas que destilo em vocês crescerão
fortes e atléticas garotas, novos artistas, músicos e cantores, As crianças que semeio sobre vocês virão por sua
vez a semear crianças, / Exigirei por meu amor homens e mulheres perfeitos, / Esperarei que se interpenetrem
com outros, da mesma forma que nos interpenetramos, vocês e eu, / Contarei com os frutos de suas chuvas
torrenciais como conto com os frutos que são adventos de minhas chuvas torrenciais, / Procurarei pelas
180
Outra é a substância que “se acumula” no corpo do poeta. Estão claros os ecos da
utopia formulada no “Poema do Machado”: homens e mulheres se encontram e formam
descendentes de corpo e alma perfeitos (“garotas atléticas e corajosas, novos artistas,
músicos e cantores”) para os quais a fertilidade (“interpenetração”) ainda lembra a
comunicação. No entanto, a metáfora parece se inverter: a comunicação não é comparada à
fertilidade, mas a fertilidade, com as devidas modulações da procriação e da descendência,
à comunicação. Da mesma forma, o poder de consenso e comunhão atribuídos
anteriormente à linguagem, simbolicamente associados ao “desejo acumulado” em 1855,
passam à ordem do corpo propriamente dito. Não diz outra coisa o “Poem of Women”, de
1856, cujo argumento é a precedência da mulher a todas as ações, modos e pensamentos do
homem:
Unfolded out of the folds of the woman man comes unfolded and is always to
come unfolded,
Unfolded out of the superbest woman of the earth is to come the superbest man of
the earth,
Unfolded only out of the friendliest woman is to come the friendliest man,
(...)
Unfolded out of the inimitable poems of woman can come the poems of man,
Unfolded out of the strong and arrogant woman I love, only thence can appear
the strong and arrogant man I love,
(...)
Unfolded out of the folds of the woman’s brain come all the folds of the man’s
brain, duly obedient,
Unfolded out of the justice of the woman all justice is folded.
246
colheitas do amor que desde o nascimento, a vida, a morte, a imortalidade, planto agora tão amorosamente”.
13 – Poem of Procreation”
, (1856). Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive
(http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf. A Woman Waits for Me”. Em WHITMAN, Walt. Children of
Adam. Op.Cit., 259.
246
Desdobrado das dobras da mulher o homem vem desdobrado e sempre há de ser desdobrado, /
Desdobrado da melhor mulher da Terra há de vir o melhor homem da Terra, / Desdobrado apenas da mulher
mais amigável de vir o homem mais amigável, / (...) / Desdobrado dos inimitáveis poemas da mulher
podem vir os poemas do homem, / Desdobrado da forte e arrogante mulher que amo, apenas assim pode
181
Amizade, poesia e justiça têm, mediante o corpo da mulher, legitimidade
“eugênica”
247
, que se declara por exigências normativas já enunciadas no “Poema da
Procriação”. Ali, todos os atributos da “mulher correta” passam pelo crivo de prescrições e
regimes que a literatura médica do período recomendava à saúde física e mental das
mulheres
248
, aliados a representações literárias em que as mulheres despontam como
heroínas de invejável preparo físico, economicamente independentes e portadoras de uma
auto-estima capaz de conviver com a tradicional divisão de tarefas que constituía o
casamento
249
. A mulher que lemos nestes poemas, tanto no que concerne a seus atributos
procriativos como aos atléticos, representa um corpo engajado nessas preocupações, que
assumem caráter político modulado pela ordem biológica, atenta à formação da
descendência que necessita de qualidades físicas positivas para perpetuar consigo uma
determinada ordem social, que Whitman nivela a ponto de termos de concordar com a
ironia precisa de D. H. Lawrence: ‘Athletic Mothers of These States –’ Muscles and
Wombs. They needen’t have had faces at all
250
.
Não que os rostos garantissem a individualidade das mães, bem como de todos os
que se apresentam ao longo dos catálogos ou como que surgidos das “formas” da América.
aparecer o forte e arrogante homem que amo, / (...) / Desdobrado das dobras do cérebro da mulher vêm todas
as dobras do cérebro do homem, devidamente obediente, / Desdobrado da justiça da mulher toda a justiça se
desdobra”. “
2 – Poem of Women
”, (1856). Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive
(
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. Cf. “
Unfolded Out of the Folds
”. Em WHITMAN, Walt.
Autumn
Rivulets
.
Op. Cit.
, 515-516.
247
BLODGETT, BRADLEY (ed.). Leaves of Grass: Comprehensive Reader’s Edition, 391.
248
Essa saúde, entretanto, não é advento de uma vigilância exaustiva sobre um corpo inteiramente
patologizado e tomado pela sexualidade. Que a vigilância ocorria, não há dúvida: na época, um dos lugares-
comuns da medicina nos Estados Unidos era sublinhar a fraqueza e a palidez das mulheres americanas frente
às mulheres de gerações passadas ou estrangeiras. Em 1858, um colunista e fisiólogo da
Life Illustrated
apontava: “É notório, por todo o mundo civilizado, que as mulheres americanas são frágeis e que a tendência
a doenças e enfermidades cresce constantemente”, o que poderia provar “uma das principais causas da atual
degeneresncia do povo americano e a derrota final de nosso governo republicano”. Cf. REYNOLDS,
David. Whitman's America, 217.
249
REYNOLDS, David.
Whitman's America
., 217-218.
250
LAWRENCE, D.H.. “Whitman”. Em
Studies in Classical American Literature
, 176.
182
Como Lawrence também percebe, o desejo “daquele que dói de Amor” (“I’m he who aches
with amorous love”) é só uma das representações totalizantes embutidas no conceito de
América, das quais a sensualidade, arriscamos dizer (não sem ressalvas), se via livre na
primeira poesia de Whitman. O que esses poemas nos ensinam é a integração do sexo em
uma representação da totalidade que, a partir de formas historicamente especificadas
(“shapes”), ganha atributos de escala (econômica e livre), algo ainda impossível de se
pensar em uma cosmogonia como a de “Song of Myself”. Desse modo, a poesia que se valia
de elementos ainda ligados ao símbolo, dada a configuração tipológica, tem sua linguagem
endurecida: a natureza, que antes trazia a subversão de uma ordem artificial, passa a servir
à própria ordem artificial (industrial e capitalista) mediante correção de iniqüidades e
problemas próprios à exploração sem, contudo, questionar sua norma. Ao longo desses
“poemas do sexo”, veremos essa visada corretiva em uma exaltação ostensiva da saúde e do
que cabe, na procriação, a homens e mulheres, de onde, por vezes, surge uma
metaforização grosseira, baseada em “zangões polinizadores” que, curvados sobre “flores
senhoritas já crescidas”, “se agarram a elas até que seu desejo” – o de procriar e formar a
nação – seja satisfeito
251
. A funcionalidade referida ao desejo destrói a sensualidade
simbólica outrora vazada na comunicação. Uma vez esvaziada, ela tenderá à figuração de
um mecanismo, peça ou parte de uma máquina do mundo abstrata que não mais se
manifesta pela matéria, mas se coloca contra ela, para corrigi-la à sua imagem e
semelhança.
A mecanização do sexo, que justifica a crítica de Lawrence quanto ao “rosto” das
mulheres, traz o elemento que falta ao quadro formado pelas novas formas (“shapes”) da
América: como o homem, que ganha corpo e identidade pelas formas do trabalho, o sexo
será racionalizado e normalizado com vistas à “produção” de uma nação homogênea,
orgânica e indivisível como o “compacto” dos Estados, para a qual, deve-se dizer, “a mais
251
“O corpo do meu amor, o corpo da mulher que amo, o corpo do homem, o corpo da terra, / A brisa serena
do entardecer e as terras a sudoeste que sopram essa brisa, / O zangão selvagem e hirsuto que murmura, o
desejo contido na vibração de seu corpo no ar, zangão que domina a madura flor feminina e se curva sobre ela
com pernas amorosas e fortes, zangão que toma seu desejo dessa flor, agarrado a ela até que satisfeito (...)”.
“28-Bunch Poem”. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The Walt Whitman Archive
(
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. Cf. “
Spontaneous Me
”. WHITMAN, Walt.
Children of Adam
.
Op.Cit.
, 261.
183
poderosa raça” não será tanto uma formação biológica, essa um problema absolutamente
silenciado, mas normativa, isto é, baseada na perpetuação correta e corretiva do princípio
democrático que agrega e confere “
UMA IDENTIDADE
” ao corpo social. É como expressão
desse espaço restrito e fechado como um ovo”, para usar uma das metáforas provocativas
de Lawrence, que a cidade também surge como o ponto de encontro dos amantes:
Out of the rolling ocean the crowd came a drop gently to me,
Whispering I love you, before long I die,
I have travel'd a long way merely to look on you to touch you,
For I could not die till I once look'd on you,
For I fear'd I might afterward lose you.
Now we have met, we have look'd, we are safe,
Return in peace to the ocean my love,
I too am part of that ocean my love, we are not so much separated,
Behold the great rondure, the cohesion of all, how perfect!
But as for me, for you, the irresistible sea is to separate us,
As for an hour carrying us diverse, yet cannot carry us diverse forever;
Be not impatient – a little space – know you I salute the air, the ocean and the
land,
Every day at sundown for your dear sake my love
.
252
Retornamos à cidade do trabalho livre, que agora assume as formas da multidão,
pintada não com as cores européias do isolamento e da alienação, que ingenuamente já
apareceram no “Poema do Machado”, mas com a integridade do corpo social indivisível – a
“raça” –, ao qual o poeta empresta a imagem do Oceano. Em “Out of the the Ocean the
Crowd”, os efeitos do programa imposto ao amor e à sexualidade são cristalinos: a cidade
aqui dá ensejo ao encontro dos amantes anônimos, para os quais a longa viagem, a
252
“Do inquieto oceano da multidão me veio gentilmente uma gota / Sussurando eu te amo, muito antes de
morrer, / Fiz uma longa viagem apenas para te ver, para te tocar / Pois eu não poderia morrer sem que antes
te visse, / Pois eu temia que pudesse depois de tudo te perder. // Agora já nos encontramos, já nos vimos,
estamos a salvo, / Retorna em paz ao oceano, Ó meu amor, / Também sou parte desse oceano, não estamos
tão separados, / Olha ao teu redor, olha a coesão de todas as coisas - que perfeição!”
. "Out of the Rolling
Ocean the Crowd".
Em “
Children of Adam
”. WHITMAN, Walt.
Op.Cit
., 263.
184
individualidade e o medo da perda parecem mero capricho do eu-lírico – ambos são “gotas
de um oceano de “filhos e filhas adequados a Estes Estados”. Quando comparamos “Out of
the Ocean” a um poema incrivelmente semelhante em argumento, o “A Uma Passante”, de
Charles Baudelaire:
A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.
Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, lívido céu onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.
Que luz . . . e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste.
253
notamos com maior agudeza os efeitos da “régua democrática” e sua fragilidade no que diz
respeito à subjetividade. O percurso de ambos os poemas é o mesmo: “inquieta” ou
“frenética”, a multidão carrega as mesmas personagens que ganham contornos para logo
em seguida – e como que arbitrariamente – perdê-los. Entretanto, o erótico em Whitman
não coincide com o mistério do jogo e a precariedade dos termos amorosos diante da
massa. O erótico em “Do Oceano Inquieto da Multidão” tem por condição o encontro do
mesmo, que acaba por enfraquecê-lo em nome de um amor entre iguais: ambos pertencem à
mesma massa, oceano ao qual retornam sem antes observarem a “coesão de todas as
coisas”, para o qual a tragédia da separação final não se concretiza, sendo o amor passivo
de contemplação em toda e qualquer parte. Enquanto Baudelaire assume a homogeneidade
253
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal (trad. Ivan Junqueira), 345.
185
da massa como elemento negativo, onde só resta ao sujeito deixar suas “pegadas” para o
astuto detetive, ou flâneur agudo, capaz da reconstituição de uma subjetividade já mediada
pelo crime e pela maldade de sua dissolução original, Whitman (lembremos: o herói que ri
daquilo que chamamos dissolução
254
), a celebra. O que está em jogo para o poeta norte-
americano não é a individualidade, mas a indivisibilidade e a organicidade do todo, que
pela reforma do sexo, aqui já distante da lei “imunda” (mas não da “lei”) que o governava
segundo a “Carta”, “produz” tanto as formas da massa como da América. Por efeito da
norma, um corpo, uma identidade.
A fisiologia da Democracia Americana é o ponto culminante da racionalização das
formas, que começa pela adoção da liberdade do trabalho como parâmetro para o
desenvolvimento de uma literatura nacional que, ao mesmo tempo, respondesse à crise que
consumia o país. Nesse sentido, a palavra dogmática, de caráter reformatório, vem na
esteira da insuficiência da própria palavra poética, absolutamente impotente diante dos
conflitos que, outrora, pareciam passíveis de solução na representatividade democrática.
Dissemos no primeiro capítulo que a força da poesia de Whitman, fincada no entre mundos
da poética patrimonialista de Emerson e a necessidade configurar tensões sociais que essas
formas não pressupunham, podia ser comparada a de uma corda tensionada, prestes a se
romper. Após a tentativa de recuperar o irrecuperável, a “natureza Americana”, igualdade
na desigualdade, chegará finalmente a termo. A seguir, acompanharemos o surgimento de
uma poesia subterrânea e negativa, que transformará o corpo purificado do poeta nos
destroços do naufrágio anunciado, enquanto as águas deixarão a nu a fragilidade de sua
União.
254
WHITMAN, Walt.
"Leaves of Grass 1855". Op.Cit
., 46.
186
QUARTO CAPÍTULO
O SERMÃO DO OCEANO:
LÍRICA E DISSOLUÇÃO DO ESTADO
1
Whereto answering, the sea,
Delaying not, hurrying not,
Whisper’d me through the night, and very plainly before daybreak,
Lisp’d to me the low and delicious word death,
And again death, death, death, death
(“Out of the Cradle Endlesly Rocking”)
Ao longo das duas primeiras edições de Leaves of Grass, acompanhamos o esforço
monumental de construção de uma literatura nacional a partir, quase que somente, dos
índices turbulentos e contraditórios de uma cultura local, formada não só de um passado
que tornava imperativo o distanciamento dos antigos símbolos de distinção e cultivo
literário, europeus como o Velho Mundo superado na política e derrotado nas armas, mas
também dos impasses presentes que, tomando as cores da tragédia, conduziam o país à
destruição de sua herança, aproximando-o perigosamente às antigas estruturas
centralizadoras, outrora desfeitas por aqueles que constituíram, um dia, o corpo político da
sociedade. Em face da desagregação social trazida pelas estruturas da sociedade capitalista,
acompanhamos até aqui o percurso de um poeta que levou sua obra ao limite de seu poder
de congregar e superar todas desigualdades em nome de um princípio democrático
associado à representatividade indiscriminada. Neste último capítulo, veremos a tensão
entre as formas literárias igualitárias (baseadas na possibilidade de extensão indiscriminada
da representatividade) e a sociedade fragmentada pelo trabalho, anunciada desde o início do
projeto de Leaves of Grass, chegar a seu termo. Esse termo será trazido pela configuração
de uma imagem, a do Oceano.
Citando uma passagem de “Sea-Shore Fancies”, pequeno texto de Specimen Days,
coletânea de prosa autobiográfica da década de 1880, Whitman nos diz: “mesmo quando
criança, eu tinha o sonho, o desejo, de escrever uma peça, talvez um poema, sobre a
187
praia”
255
. Remetendo esse desejo à infância, o testemunho do poeta também nos relata que,
desse desejo, não houve inicialmente nenhuma “tentativa lírica, épica ou literária”, mas
uma “influência invisível”
256
. Se lembrarmos a função da coletânea, que como testemunho
do poeta serve à consolidação de uma persona ou autoridade literária que tem seu pilar em
Leaves of Grass, a “influência invisível” das praias de Long Island nos mostra, mais do que
um “relato” ou memória de um fato, um exemplo do processo de atualização dos poemas
do volume com vistas a uma unidade da experiência poética, o que, no caso, envolve a
normalização da tensão que o desenvolvimento do símbolo do oceano irá formar.
Por “influência invisível” poderíamos entender, nos primeiros anos de atividade
poética de Whitman, “influência nenhuma”, posto que o Oceano tratado em “Sea-Shore
Fancies” é o mesmo que configura uma perspectiva nova da Natureza e da persona
literária, incidindo de modo igualmente decisivo nas formas poéticas. Figurada ora pela
fauna e pela flora terrestres, ora pelo trabalho rural, a Natureza em 1855 participava, como
vimos, da experiência formativa de um poeta que, afastando-se da vida urbana, repleta de
afetações, “perfumes inebriantes” e artifícios que tinham por conseqüência a violência, a
desigualdade e a corrupção da sociedade, encontrava nela a essência e a verdade de todas as
coisas, “a origem de todos os poemas”, para citar o primeiro poema do volume, expressos
mediante a “palavra revelada” e a visão de um mundo coeso e orgânico, que encontra
fundamento em uma Lei natural, organizadora da vida humana e animal, e forma na
tipologia.
Ao longo dos dois capítulos anteriores, falamos das conseqüências e das
contradições inerentes a essa perspectiva tipológica: é a possibilidade de reduzir a
sociedade a tipo da América ideal, fundamentada na igualdade e na liberdade, que Whitman
transforma a União em um poder central e místico que, invisível em toda a matéria,
255
Even as a boy, I had the fancy, the wish, to write a piece, perhaps a poem, abou the sea-shore – that
suggesting, dividing line, contact, junction, the solid marrying the liquid – that curious, lurking something,
(as doubtless every objective form finally becomes to the subjective spirit,) which means far more than its
mere first sight, grand as that is – blending real and ideal, and each made portion of the other”. “Sea Shore
Fancies”. Em Specimen Days. WHITMAN, Walt. Op.Cit., 820.
256
Afterward, I recollect, how it came to me that instead of any lyrical or epical or literary attempt, the sea-
shore would be an invisible
influence
, a pervading gauge and tally for me, in my composition
”. “
Sea Shore
Fancies
”. Em
Specimen Days.
WHITMAN, Walt.
Op.Cit.
, 820.
188
infunde-lhe uma razão dedutível em cada particular; já à medida que o princípio político é
subsumido pela ordem econômica, desigual e fraturada, a tipologia recebe apoio de uma
palavra normativa, de cunho reformista, que tem a pretensão não mais de demonstrar a
manifestação do “caráter Americano” no mundo, mas de impor à realidade fragmentada e
desigual seu regime corretivo. Tomando somente a figuração da natureza sob a perspectiva
tipológica, veremos que a Natureza não empresta somente suas formas orgânicas e firmes a
America: em virtude da razão que se quer ver infundida no mundo material, também
decorrerá um entendimento do mundo natural como mecanismo coeso e centralizado, que
permite a Whitman sua organização total, bem como sua redução a um “espírito de ordem”.
É na esteira dessa possibilidade de organização e redução que Whitman adota, junto a
muitos escritores e intelectuais de seu tempo, o Swedenborgianismo, que prolifera nos
Estados Unidos, primeiro, a partir da fundação, em 1787, da Nova Igreja (“New Church”)
e, principalmente depois, pela fragmentação de sua doutrina, que passa a se relacionar,
mediante a conhecida “Teoria das Correspondências”, às pseudociências que estabeleciam
a consulta do corpo enquanto forma de se aproximar da alma, tal como a Frenologia, a
Fisionomia e o Mesmerismo, quando não é levada a extremos por adeptos isolados do
místico. Whitman ligou-se não só ao aspecto científico, mas também a alguns desses
estudos isolados, que se desenvolvem por interpretações que privilegiavam ora uma idéia
de erotismo místico e união com o “Homem Divino”, ou seja, Deus (Reynolds observa a
presença dessa vertente em passagens de “Song of Myself”, como a do encontro entre
indivíduo e alma), ora se baseiam na percepção do duplo (como o pássaro de “Out of the
Cradle Endlesly Rocking”, que veremos a seguir) ou simplesmente das correspondências,
que recebem a imagem do Oceano em uma de suas primeiras aparições de peso em Leaves
of Grass. Em “Clef Poem”, de 1856 (em Sea Drift, com revisão: “On the Beach at Night
Alone”), a praia recebe o poeta que ali reflete sobre “a clave do universo e do futuro”,
segundo a qual:
A vast similitude interlocks all,
All spheres, grown, ungrown, small, large, suns, moons, planets, comets,
asteroids,
All the substances of the same, and all that is spiritual upon the same,
All distances of place, however wide,
189
All distances of time—all inanimate forms,
All Soulsall living bodies, though they be ever so different, or in different
worlds,
All gaseous, watery, vegetable, mineral processesthe fishes, the brutes,
All men and womenme also,
All nations, colors, barbarisms, civilizations, languages,
All identities that have existed, or may exist, on this globe, or any globe,
All lives and deathsall of the past, present, future,
This vast similitude spans them, and always has spanned, and shall forever span
them, and compactly hold them, and enclose them.
257
A chave universal de Clef Poemé a mesma que torna possível a transição entre o
mundo marinho e o terrestre do décimo-sexto poema da seção Leaves of Grass da edição de
1860 (em Sea Drift: “The World Below the Brine”), mantendo-se a comunhão do sujeito
poético com a Natureza e a perspectiva orgânica de todas as coisas. É notável aqui que toda
a flora marinha seja descrita segundo analogia com a vida terrestre
Forests at the bottom of the seathe branches and leaves,
Sea-lettuce, vast lichens, strange flowers and seedsthe thick tangle, the
openings, and the pink turf,
Different colors, pale gray and green, purple, white, and goldthe play of light
through the water,
Dumb swimmers there among the rockscoral, gluten, grass, rushesand the
aliment of the swimmers,
(...)
258
257
“Uma imensa similitude liga tudo, / Todas as esferas crescidas, incipientes, pequenas, amplas, sóis, luas,
planetas, / Todas as distâncias de lugar embora imensas, / Todas as distâncias de tempo–todas as formas
inanimadas, / Todas as almas–todos os corpos vivos ainda que sempre tão diferentes, ou em mundos
diferentes, / Todas as coisas gasosas, líquidas, vegetais, processos minerais–os peixes, os brutos, / Todos os
homens e mulheres –eu inclusive, / Todas as nações, cores, barbarismos, civilizações, linguagens, / Todas as
identidades que existem ou existiram sobre este globo, ou qualquer globo, / Todas as vidas e mortes – tudo
do passado, presente, futuro, / Esta vasta similitude abrange essas coisas e sempre abrangeu, / E para sempre
há de abrangê-las e compactamente segurá-las e reuni-las”. “15 –Clef Poem”, (1856). Em FOLSON, Ed.
PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. Cf. “
On the Beach
at Night Alone
”. Em WHITMAN, Walt. “
Sea-Drift
”.
Op.Cit.
, 400-401.
190
como se ali encontrássemos mata cerrada por onde “nadadores mudos” viveriam suas
“paixões e guerras”, experimentariam as “posses” e conviveriam com “tribos”, “respirando
aquele ar denso”, análogo ao “ar sutil que respiramos nesta esfera”. Ainda aqui veremos
somente o “trânsito entre esferas” e a correspondência entre mundos. De qualquer forma, a
imagem do Oceano, como vimos por estes dois poemas, é apenas desenvolvimento
secundário, tributário de uma Natureza vista sob a perspectiva da união modelar e
transcendental, aplicável indistintamente à formação do sujeito e da autoridade pública, o
que, nos termos da expressão, verifica-se pela versificação ainda atada às conquistas junto
ao “princípio orgânico” imposto às convenções poéticas e à “visão” revelada ao poeta em
sua primeira comunhão com a Natureza, da qual o melhor exemplo está nos catálogos.
O Oceano que nos interessa poderia advir de uma reflexão que se apresenta ainda na
segunda edição de Leaves of Grass não em relação às marés, mas à correnteza de um rio.
Em “Sun Down Poem” (em 1892: “Crossing Brooklyn Ferry”), o trânsito entre as margens
do rio, conduzido pela balsa que liga a antiga cidade do Brooklyn à ilha de Manhattan, dá
ensejo à reflexão do poeta sobre a identidade dos tempos presente e futuro. Metaforizado
pelo eterno fluxo das águas, o tempo impõe a mesma “similitude” que já vimos em “Clef
Poem”; entretanto, essa semelhança, que o poeta busca na figura de um interlocutor futuro,
abre caminho para uma confissão estranha aos modos com que “Walt” até então se
apresentava ao público:
It is not upon you alone the dark patches fall,
The dark threw patches down upon me also,
The best I had done seem’d to me blank and suspicious,
My great thoughts, as I supposed them, were they not in reality meagre? Would
not people laugh at me?
258
O mundo abaixo das águas marinhas, / Florestas no fundo do mar, os ramos e as folhas, / Algas, vastos
liquens, estranhos bosques e sementes, o emaranhado denso, aberturas, a relva lilás, / Diversas cores, o cinza
pálido e verde, púrpura, branco, dourado, o jogo da luz através da água, / Nadadores mudos ali em meio às
rochas – coral, glúten, relva, correntes – e o alimento dos nadadores, (...)”.“Leaves of Grass 16”, (1860). Em
FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The Walt Whitman Archive (http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf.
The World Below the Brine
”. Em WHITMAN, Walt. “
Sea-Drift
”.
Op.Cit.
, 399-400.
191
It is not you alone who know what it is to be evil,
I am he who knew what it was to be evil,
I too knitted the old knot of contrariety,
Blabb’d, blush’d, resented, lied, stole, grudg’d,
Had guile, anger, lust, hot wishes I dared not speak,
Was wayward, vain, greedy, shallow, sly, cowardly, a malignant person,
The wolf, the snake, the hog, not wanting in me,
The cheating look, the frivolous word, the adulterous wish, not wanting,
Refusals, hates, postponements, meanness, laziness, none of these wanting.
But I was a Manhattanese, free, friendly, and proud!
I was call’d by my nighest name by clear loud voices of young men as they saw
me approaching or passing,
Felt their arms on my neck as I stood, or the negligent leaning of their flesh
against me as I sat,
Saw many I loved in the street, or ferry-boat, or public assembly, yet never told
them a word,
Lived the same life with the rest, the same old laughing, gnawing, sleeping,
Play’d the part that still looks back on the actor or actress,
The same old role, the role that is what we make it, as great as we like,
Or as small as we like, or both great and small.
259
259
“Não é apenas sobre você que caem as manchas escuras, / O escuro lança suas manchas sobre mim
também, / O melhor que tenha feito me parece vazio e suspeito, / Meus melhores pensamentos como os
supunha, não eram eles apenas uma realidade magra? E as pessoas não poderiam rir de mim? / Não é apenas
você sozinho que sabe o que é ser mau, / Eu sou aquele que sabia o que era ser mau, / Eu também atei o velho
nó de contrariedades, / Me envergonhei, falei besteiras, fiquei ressentido, menti, roubei, invejei, / Fui sacana,
senti raiva, luxúria, desejos e calores que não ouso dizer, / Fui contrário, inútil, mesquinho, fútil, malandro,
covarde, uma pessoa má, / O lobo, a cobra, o porco, que não quis em mim, / O olhar enganoso, a palavra fria,
o desejo adúltero, que não quis, / Negativas, ódios, atrasos, maldade, preguiça, nada disso eu quis, // Mas eu
era um homem de Manhattan, livre, amigo, orgulhoso!/ Era um em meio ao resto, os dias e os problemas do
resto, / Era chamado pelo meu nome mais comum pelas vozes claras dos rapazes enquanto eles me viam
chegando ou passando, / Senti seus braços sobre meu pescoço enquanto estava de pé, ou a negligente
inclinação de suas carnes de encontro à minha enquanto sentava, / Vi muitos que amei nas ruas ou na balsa ou
na assembléia, ainda que nunca tenha lhes dirigido a palavra, / Vivi a mesma vida do resto, o mesmo riso de
sempre, o mesmo ruminar, o mesmo dormir, / Interpretei o papel que ainda clama pelo ator e pela atriz, / O
mesmo papel de sempre, o papel que é o que dele fazemos, tão grande quanto o queremos, / Ou tão pequeno
quanto o queremos, ou grande e pequeno ao mesmo tempo”. (...)”.“
11- Sun-Down Poem”
, (1856). Em
192
Embora o assunto do poema seja “o esquema, simples, compacto, bem constituído”
que remete papéis “grandes ou pequenos” à perfeição e à imortalidade da Alma e do
Espírito que formam o mundo, a despeito da História, não podemos deixar de notar o lapso
de incompletude, a cisão repentina entre sujeito e mundo, o desacordo entre indivíduo e
sociedade que configuram a passagem. Como também percebe Reynolds, em relação à
leitura dos poemas da primeira edição, “a busca por fenômenos unificadores que saiam da
esfera das estruturas sociais corruptas guia Whitman a várias direções”
260
– e, sem dúvida,
o esquema bem-construído, de raiz Swedenborgiana atada ao princípio tipológico, é um
desses “fenômenos”. No entanto, o que chama atenção é a consolação embutida nesse
“esquema”, que à maneira da Natureza total e indiferente de “Broad-Axe Poem”, mas sem a
mesma virulência, deixa à mostra aquilo que se quer esconder: de repente, o poeta que até
então havia se dedicado à celebração do mundo e da nação e à construção de uma
autoridade pública a partir do relato de sua experiência subjetiva e exemplar confessa seu
desconcerto e sua culpa perante o mundo presente e seu cotidiano medíocre, no qual o
indivíduo não encontra realização. Mostrando a vida subterrânea dos espaços públicos, em
que o sujeito se encontra em absoluto desarranjo com seu povo, com a cena exterior e seus
protocolos, ironizados ainda pela indiferença com que trata “papéis grandes e pequenos”,
Whitman aproxima-se da experiência do indivíduo urbano moderno e coloca em xeque a
natureza unitária e formadora que é celebrada emSong of Myself”, caminhando de
encontro a uma perspectiva distinta. Assim, a fragmentação e a ausência de sentido,
perspectiva ou projeto que marcam esse momento, subsumido pelo argumento espiritualista
de “Sun Down Poem”, serão recuperados de forma dramática e decisiva justamente no
retorno de Whitman à praia, já em 1858, quando o mar se torna modelo de outra natureza:
As I wend to the shores I know not,
As I list to the dirge, the voices of men and women wreck’d,
As I inhale the impalpable breezes that set in upon me,
As the ocean so mysterious rolls toward me closer and closer,
FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The Walt Whitman Archive (http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf.
Crossing Brooklyn Ferry
, 6”. Em WHITMAN, Walt.
Op.Cit.
, 311.
260
REYNOLDS, David.
Op.Cit
., 337.
193
I, too, but signify, at the utmost, a little wash’d-up drift,
A few sands and dead leaves to gather,
Gather, and merge myself as part of the sands and drift.
Bardic Symbols” (em Sea Drift: “As I Ebb’d with the Ocean of Life”) apresenta
“praias desconhecidas”, que somadas ao “lamento dos náufragos” nos proporciona um
ambiente sinistro, como até então jamais havíamos visto
.
O poeta, que mesmo em seus
momentos mais sombrios (“The Sleepers”, por exemplo) encontrou uma “saída natural”
para o desconcerto do mundo, aqui se vê absolutamente entregue a uma “brisa impalpável”
e a um “oceano misterioso”, que se aproxima sem dar pista de suas intenções. Mesmo a
fusão, outrora relacionada a um mundo fechado, em que o sujeito submergia certo da ordem
presente em todas as coisas, representa uma força oposta à razão, que faz do poeta “um
punhado de areia e folhas mortas” a mercê da maré, sem rumo. Diante deste momento de
absoluto descaminho, em que pela primeira vez encontramos o poeta diante do
“desconhecido”, vale a pena perguntar o que poderia conferir sentido ao encontro do sujeito
com o mar. A resposta a essa pergunta está nos versos que antecedem a estrofe citada,
relativos à caminhada do poeta pelas praias de Paumanok, as “praias conhecidas”, onde ele
observa o quebrar das ondas
As I walked with the eternal self of me, seeking types
261
.
Ao enunciar, pela primeira vez, a “busca de tipos” como fundamento de sua
“poética do conhecido”, opondo-a desse modo às “praias desconhecidas”, em que o poeta
261
A estrofe traduzida é: “Fascinado, meus olhos voltando do sul, exaustos, de seguir aqueles tênues
redemoinhos, / Joio, palha, lascas de madeira, mato e os restos do mar, / Espuma, nuances das rochas
brilhantes, folhas de alga, deixadas pela maré, / Milhas andando, o som das ondas que quebram no outro lado
de mim, / Paumanok ali, aquelas horas, enquanto pensava o velho pensamento das semelhanças, / Aqueles
que você me apresentou ilha em forma de peixe, / Enquanto caminhava pelas praias que conheço, / Enquanto
andava com aquele eu elétrico procurando tipos”. “As I Ebb’d with the Ocean of Life, 2”. Em WHITMAN,
Walt. “Sea-Drift”. Op.Cit., 394-395 (Grifo meu). Cf. “Bardic Symbols, 3-4”. Em The Atlantic Monthly (Vol.
5, Issue 30, April 1860), disponível no sítio Making of America (http://cdl.library.cornell.edu) . “Leaves of
Grass, 1 (3)”
, (1860). Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive
(
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
.
194
vaga sem rumo e se deixa levar pelas marés, Whitman coloca entre o mundo formado sob o
princípio tipológico, regulação da representatividade democrática, e esse novo Oceano um
marco de transição fundamental para os desenvolvimentos futuros de sua poesia. Era o tipo
que formalizava o conhecimento e o sentido eterno do mundo, conferindo ordem à matéria
dos dias tanto quanto às formas poéticas, que por ele organizavam tanto o ímpeto
sermonístico como a figura exemplar do “maior poeta”; pela tipologia, Whitman ainda
tinha a possibilidade de referir a representatividade política de todos a um princípio
absoluto e organizador, transformando a união de todos em tipo da Nação. Contudo, diante
de um Oceano misterioso e insondável, restará a reflexão de um sujeito em queda, que
enfim percebe a razão de sua impotência:
O baffled, balk’d, bent to the very earth,
Oppress’d with myself that I have dared to open my mouth,
Aware now, that, amid all that blab whose echoes recoil upon me, I have not once
had the least idea who or what I am,
But that before all my insolent poems the real ME stands yet untouch’d, untold,
altogether unreach’d,
Withdrawn far, mocking me with mock-congratulatory signs and bows,
With peals of distant ironical laughter at every word I have written,
Pointing in silence to these songs, and then to the sand beneath.
Now I perceive I have not understood anythingnot a single objectand that no
man ever can.
I perceive Nature, here in sight of the sea, is taking advantage of me, to dart upon
me, and sting me,
Because I have dared to open my mouth, to sing at all.
262
262
“Enquanto caminho por praias desconhecidas, / Enquanto ouço o lamento, as vozes de homens e mulheres
que naufragaram, / Enquanto exalo a brisa impalpável que se põe sobre mim, / Enquanto o oceano tão
misterioso rola em minha direção, cada vez mais perto, / De uma só vez descubro, a menor coisa que me
pertença, que eu veja ou toque - e não as conheço; / Eu, mesmo, apenas significo uma pequena onda, - um
punhado de areia e folhas mortas para serem reunidas, / Me reúno, mergulho como parte das areias e flutuo. //
Ó confuso, perdido, inclinado de frente para a própria Terra, / Oprimido por mim mesmo, que ousei abrir a
minha boca, / Agora ciente, que em meio a toda a bobagem cujos ecos recaem sobre mim jamais tive a
mínima idéia de quem ou o que sou , / Mas que diante de todos os meus poemas arrogantes meu Eu real
permanece ainda intocado, jamais dito, jamais inteiramente alcançado, / Bem afastado, me gozando com
195
Mais do que o descompasso entre sujeito e natureza, o Oceano de “Bardic Symbols
representa aos olhos do sujeito uma natureza insondável, que não só esconde a “realidade”,
outrora celebrada, como, em sentido retrospectivo, fulmina toda a poesia anterior, reduzida
a “bobagens” que pesam sobre o poeta no refluxo da maré. Como devolvesse os “símbolos
do bardo americano” (os tipos almejados) na forma de entulho, o Oceano toma-lhe a
palavra para ministrar, em sua ressaca, um sermão em que o silêncio se torna derrisão,
vergonha da antiga ousadia (“porque ousei abrir a minha boca para cantar”) e morte. Aqui
já não há sombra do “equalizador” da raça e do tempo, orador cheio de confiança e certeza,
para quem o livro era um púlpito imaginário e seu leitor o público que havia de ser
transformado, pela força oratória da palavra, em nação. A tipologia, que entrava em crise
junto à representação na mistificação problemática do trabalho livre, cai por terra.
A negação dos princípios tipológico e representativo, que até então davam ossos à
poesia de Whitman em sua busca do “caráter Americano”, é mais do que uma mudança de
rumos poéticos. Ela marca, nos padrões de Whitman, o esgotamento de um projeto de
formação da literatura norte-americana a partir da poesia, que neste momento, perde a
possibilidade de trazer às suas formas os conflitos a que, outrora, estava dedicada. Negadas
as formas, partem com ela todos os predicados que formavam a antiga ordem, em que
Natureza e Nação tentavam formar unidade harmônica, bem como os atributos públicos e
exemplares do “maior poeta”, agora um solitário a se perder no silêncio do mundo que o
cerca. Fica clara a partir deste momento a dependência das particularidades da poesia
fundada por Whitman em relação às teorias pré-modernas legadas por Emerson: perdendo a
função de congregar a sociedade, a natureza e a identidade do homem com a Lei universal,
que fundamentavam a poesia, serão destruídas por meio de uma figuração poética européia,
acenos e meneios de parabéns ridículos, / Com sonoras, distantes e irônicas gargalhadas a cada palavra que
tenha escrito, / Me atingindo com insultos, até que eu caia sem saída sobre a areia. // Percebo que não entendi
nada, nem um simples objeto, e que nenhum homem jamais entendeu, / Natureza aqui aos olhos do mar
tirando vantagem de mim para me acertar, para me fustigar, / Porque ousei abrir minha boca para cantar”. “As
I Ebb’d with the Ocean of Life, 2”. Em WHITMAN, Walt. “Sea-Drift”. Op.Cit., 394-395. Cf. “Bardic
Symbols, 5-8”. Em The Atlantic Monthly (Vol. 5, Issue 30, April 1860), disponível no sítio Making of America
(http://cdl.library.cornell.edu) . “
Leaves of Grass, 1 (4-7)”
, (1860). Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
.
196
mais especificamente, aquela que o Romantismo consagrou na prosa inspirada de Ossian ou
na personagem de Byron, Childe Harold, para quem as praias do Oceano
Thy shores are empires, changed in all save thee –
Assyria, Greece, Rome, Carthage, what are they?
Thy waters washed them power while they were free,
And many a tyrant since; their shores obey
The stranger, slave, or savage; their decay
Has dried up realms to deserts: - not so thou,
Unchangeable save to thy wild waves’ play,
Time writes no wrinkle on thine azure brow –
Such as creation’s dawn beheld, thou rollest now
263
.
O Oceano, outro símbolo bárdico, leva Whitman à apropriação de lugares-comuns
próprios do Romantismo europeu em um sentido inverso ao adotado até então: agora é a
régua européia que mede a América, o que não é de pouca conseqüência. Como para
Byron, o mar de Whitman será força selvagem, eterna e imutável, porém indiferente aos
impérios tanto quanto às palavras de um poeta que agora assiste à deserção de seus poderes
oratórios, “bobagens” para a verdade insondável que reflui junto à selvageria das marés.
Natureza apaixonada, irracional, que ensina ao homem os limites da razão, o Oceano se
torna, pelo Romantismo, a consumação do irrepresentável na representação, modo
conveniente de pensarmos o símbolo nas artes a partir do XIX. Pensando-o exclusivamente
em relação a Whitman, a referência a esse modo de expressão artística se revela sem dúvida
oposto àquele que o poeta havia elaborado a partir de um contexto em que a Natureza e a
Democracia, entendidas como uma só lei universal, permitiam a representação absoluta.
O Oceano em questão não se deixa ler como a “escrita” a que o poeta de 1855
reduzia o mundo. A clareza dos “hieróglifos” que o homem privilegiado, dito “poeta do
263
Tuas praias são impérios, salvos de toda mudança –/ Assíria, Grécia, Roma e Cartago – o que são? / Tuas
águas os lavaram com poder enquanto livres, / Muitos foram os tiranos desde então; suas praias / Obedeceram
a estrangeiro, escravo ou bárbaro; / Sua queda tem secado riqueza aos desertos – mas não o teu, / Imutável e
livre para os jogos de tuas ondas selvagens, / O tempo não escreve vincos em tua fronte azulada – / Como
diante do olhar da aurora de Deus, rolas agora.” BYRON, Lord George Gordon.
Childe Harold: Canto IV, St.
182 (1818).
197
senso-comum”, via em sua América é substituída por formas sombrias, envoltas no
mistério que as dissolve junto aos grãos de areia. Seguindo esta nova representação do
mundo, o poeta não já não se forma a partir de um trânsito privilegiado entre o mundo
material e o espiritual:
I throw myself upon your breast my father,
I cling to you so that you cannot unloose me,
I hold you so firm till you answer me something.
Kiss me my father,
Touch me with your lips as I touch those I love,
Breathe to me while I hold you close the secret of the murmuring I envy.
Aqui, os apelos fervorosos a Deus refletem o desespero do poeta diante da queda,
que não diz respeito apenas a si, mas ao todo. Sem Deus ou alguma ordem absoluta, o
mundo perde o sentido de totalidade que outrora era celebrado e a experiência, destituída
do concerto, agora “segredo invejado”, pede o ajuste de contas de um indivíduo formado
pela consciência da incompletude e pelo desejo (que sabemos sempre acompanhado de sua
frustração) de se equiparar a Deus. Esse “equiparar-se a Deus” não é, neste contexto, uma
tentativa de recuperação do que era possível segundo os princípios da tipologia, pois o
absoluto do mundo não permitia essa idéia de avanço e superação. O poeta de 1855 não
procurava ser o “equivalente” de Deus; à medida que seu corpo, seus atos e pensamentos
manifestavam a ordem do universo, não havia distinção a ser feita entre homem e
divindade. A partir de “Bardic Symbols”, essa distinção passa a ser efetuada, pois o
“segredo invejado” não vai ser conquistado mediante o fervor do poeta, que já não pode se
igualar a Deus desde que seu mundo se tornou contingência e sua vida solidão. Em outras
palavras: o “maior poeta” foi apresentado à cisão formadora da subjetividade.
A formação da subjetividade em sentido propriamente moderno não significa,
tampouco, o abandono do antigo projeto; pelo contrário, ela se forma diante da falência
desse projeto, parte de um acirramento dos conflitos que haviam tomado a sociedade norte-
americana ao longo dos anos de 1850, os quais a poesia de Whitman, até então, sempre
pretendeu confrontar. Mas a confirmação dessa subjetividade, que remete a modos poéticos
198
propriamente europeus, nós podemos encontrar ainda, de modo lateral, porém muito
esclarecedor, fora da solidão poética. O momento de publicação de Bardic Symbols” é o
mesmo do retorno de Whitman ao jornalismo, do qual estava afastado desde sua demissão
do Brooklyn Eagle no início dos anos de 1850, quando o poeta passa a se dedicar à
carpintaria e à elaboração de seu livro. O que para nós é notável nestes novos trabalhos
jornalísticos do poeta é o vigor concentrado em sua detratação das massas e de tudo que
compunha a base de sua poesia: poeta que “encorajava escravos e horrorizava déspotas”,
Whitman escreve nesse período um de seus mais controversos artigos sobre a questão
negra, duvidando da impossibilidade de “Negros e Brancos se amalgamarem” e negando
qualquer chance de que aqueles “se tornem uma raça independente e heróica” em solo
americano
264
; já as “turbulentas e masculinas cidades Americanas” contêm agora
“multidões de mal-formados, dispépticos e cadavéricos”, enquanto seus jovens estão
“dedicados ao brutalismo e aos maus hábitos”; as mulheres são “entediadas, doentes e
frágeis”. Perplexo, o jornalista Whitman ainda pergunta:
What is to be done with the hundreds of idle, dissolute Young men in our midst,
who defy the law, disturb the peace and quiet of the community, and make
themselves generally a curse to themselves, and to peaceable and quiet
citizens?
265
As luzes que o jornalista lança sobre nossos comentários recupera um de nossos
argumentos iniciais: formando-se em uma perspectiva pré-moderna, a poesia norte-
americana pode trazer para si as tensões da sociedade, pois essas deveriam ser superadas
em nome de uma unidade coletiva; agora, diante de massas que não comportam mais
aquela unidade de todas as coisas (não porque elas tenham mudado ao longo de meros três
anos, mas porque a própria tentativa de configuração poética das tensões sociais, uma vez
acirradas, tornou-se insustentável), o poeta adota uma postura semelhante à antiburguesa
264
Who believes that Whites and Blacks can ever amalgamate in America? Or who wishes it to happen?
Nature has set an impassable seal against it. Besides, is not America for the Whites? And is it not better so?
As long as the Blacks remain here, how can they become anything like an independent and heroic race?
There is no chance for it
”. Citado por REYNOLDS, David.
Op.Cit.
, 373.
265
Como as passagens citadas entre aspas no parágrafo: REYNOLDS, David.
Op.Cit.
, 370.
199
parisiense, que na época influenciava o grupo de literatos boêmios com que Whitman se
reunia
266
. Dizemos “semelhante”, pois o sujeito de “Bardic Symbols”, surgindo dos
escombros de sua poesia anterior, elabora a cisão entre si e o mundo na chave de seu
projeto perdido, estabelecendo o silêncio, a negação, o desespero e a morte, que se
desenvolvem fora do alcance da nobreza nostálgica do romantismo byroniano, citado a
título de comparação, e se aproximam, por sua vez, do poema que entrou para o cânone
como uma das mais perfeitas realizações poéticas de Whitman.
Em “Out of the Cradle Endlesly Rocking” a sabedoria do Oceano encontra
espectador atento na infância do poeta (o primeiro título do poema, publicado no natal de
1858, foi “A Child’s Reminiscence”, modificado em 1860 para “A Word Out of The Sea”) e
cria um problema de conjunto. O assunto do poema, aqui, é a própria experiência de
formação do poeta, algo que até então era dado por certo na idéia de que o bardo teria as
medidas de seu povo ou seria forma entre tantas nascidas da Democracia e da América. Em
Out of the Cradle”, no entanto, encontraremos uma nova formação mística, concertada
pela interpretação impossível da palavra do mar.
A primeira edição de Leaves of Grass contemplava a experiência da infância no
mesmo sentido de “Out of the Cradle”, ou seja, sugerindo nos primórdios da vida um modo
de condução da poesia. Assim, em “There Was a Child Went Forth”, décimo poema de
1855, encontraremos o bebê transformando o mundo em “indumentária”:
THERE was a child went forth every day,
And the first object he look’d upon, and received with wonder or pity or love or
dread, that object he became;
And that object became part of him for the day or a certain part of the day . . . .
or for many years or stretching cycles of years.
267
Segue-se daí o longo catálogo de “indumentárias”, em que todo o contato com o
exterior – sejam os lilases, a grama, os campos cheios de brotos de Abril e Maio, sejam os
266
Cf. REYNOLDS, David.
Op.Cit
., 376.
267
“Havia uma criança que vinha à frente todo dia, / E o primeiro objeto que ela olhou e recebeu com surpresa
ou piedade ou amor ou nojo, aquele objeto ela se tornou; / E aquele objeto se tornou parte dela ao longo do
200
pais, a casa, as primeiras caminhadas pela rua agitada e os próprios leitores (“and these
become of him or her that peruses them now”) – pressupõe o poder de “fusão” que já
caracterizava o poeta, enquanto o contínuo da ação no tempo (went/ goes/ will go forth
every day) garante ao poeta adulto, “bardo americano”, a ingenuidade e a natureza da
perspectiva infantil, em oposição ao mundo de artifícios que, no poema, combale a mãe e
dá os traços de um pai violento – ambos subsumidos pela perspectiva totalizante.
Como em “As I Ebb’d”, o que está em jogo em “Out of the Cradle” é essa
perspectiva ingênua do mundo, que será substituída definitivamente por outra experiência
formadora: a da queda. Numa praia coberta de madrugada e névoa, em que as sombras nos
são apresentadas em “um jogo místico” “como se estivessem vivas”, o poeta infante acorda
ao som desesperado de um pássaro-gaio (o mocking bird) apaixonado que desperta sozinho
em seu ninho. Por meio da “tradução” do poeta, saberemos que o pássaro clama por uma
resposta dos ventos, da lua, da terra e das ondas do mar a respeito do paradeiro de seu
amor. Concluindo a “ária” (o canto do pássaro é comparado a uma seção da ópera) com o
sofrimento da perda, os ecos do pássaro se misturam aos gritos de uma mãe “velha e
corajosa” que tanto se refere à mãe do poeta infante como à natureza que, apesar da perda
do pássaro, segue seu curso indiferente às paixões que aprisionam o pássaro. É nesse
momento que o menino, assistindo ao desespero do pássaro (“cantor solitário”) sente seu
coração tumultuado pela dor da experiência:
The boy extaticwith his bare feet the waves, with his hair the atmosphere
dallying,
The love in the heart long pent, now loose, now at last tumultuously bursting,
The aria’s meaning, the ears, the Soul, swiftly depositing,
The strange tears down the cheeks coursing,
The colloquy therethe trioeach uttering,
The undertonethe savage old mother, incessantly crying,
To the boy’s Soul’s questions sullenly timingsome drown’d secret hissing,
To the outsetting bard.
dia ou uma certa parte do dia . . . . ou por muitos anos ou alargados ciclos de anos”. “
Leaves of Grass 1855
”.
Em WHITMAN, Walt.
Op.Cit.
,138. Cf. “
There Was a Child Went Forth
”.
Autumn Rivulets
,
Op.Cit
., 491.
201
Demon
268
or bird! (said the boy’s soul,)
Is it indeed toward your mate you sing? or is it mostly to me?
For I, that was a child, my tongue’s use sleeping,
Now I have heard you,
Now in a moment I know what I am forI awake,
And already a thousand singersa thousand songs, clearer, louder and more
sorrowful than yours,
A thousand warbling echoes have started to life within me,
Never to die.
269
Há uma poética inteira de certezas caindo por terra. Se, em “Song of Myself”, o
destino do bardo é a dissolução no palco continental, ordem Americana que, enfim, era a
268
Algumas vezes, Whitman comete erros de ortografia e morfologia que passaram em branco por suas
revisões, mas não pelo testemunho de seus leitores e amigos mais próximos. Ora os erros são corrigidos; ora
não. Daí, por exemplo, o “semitic muscle” (“músculo semítico”) do prefácio de 1855 (“Leaves of Grass
1855”. Op.Cit., 23) que deveria dizer “seminal muscle”, em referência ao “pênis” que penetra a América, não
aos “judeus”. No caso de “Out of the Cradle”, por “demon” os comentadores pedem a leitura de “daemon”,
um duplo daquele que o traz consigo (Sócrates faz referência a um “daemon” de si em um dos Diálogos), e
não uma imagem do mal ou de um anjo caído que queira superar Deus como criador, leitura que até seria
possível desde que ignorássemos as peculiaridades da poesia de Whitman. Assim, na dúvida entre uma
leitura de Fausto ou uma menção a Swedenborg, fiquemos, pelo bem da fortuna crítica, com a segunda.
269
“O garoto extático, com os pés descalços as ondas, com seu cabelo a atmosfera acariciando, / O amor no
coração, há muito contrito, agora livre, agora enfim explodindo em tumulto, / O significado da ária, os
ouvidos, a alma, depositando veloz, / As estranhas lágrimas pelo rosto descendo, / O colóquio ali, o trio, os
três falando, / O não dito, a velha mãe selvagem gritando sem parar, / Às perguntas da alma do menino
ressentidas esperando, algumas afogadas em segredo, sibilando, / P’ra formar o bardo. // Demônio ou
passarinho! (disse a alma do menino,) / Foi mesmo para o seu amor que você cantou? Ou foi p’ra mim? / Pois
eu, que era uma criança, de língua adormecida, agora escuto você, / Agora em um instante sei porque existo,
acordei, / E de pronto milhares de cantores, milhares de canções, mais claras, mais altas e mais tristes do que
as suas, / Milhares de gorjeios ecoando começaram a viver dentro de mim, p’ra nunca mais morrer”. “
Out of
the Cradle Endlesly Rocking”. Em WHITMAN, Walt.Sea-Drift”. Op.Cit., 392-393. Em relação à edição de
1860 (“A Word Out of the Sea, 28-29”), duas são as alterações dessas estrofes. No verso de 1891-1892 em que
se lê “To the outsetting bard”, a edição de 1860 traz um acréscimo: “To the outsetting bard of love”. Já na
passagem “Demon or bird! (said the boy’s soul)” lê-se: “Bird! (then said the boy’s soul)” . Cf. “A Word Out
of the Sea 28-29
”.
Leaves of Grass 1860
. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive
(
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
.
202
razão do poema, aqui o choro, a confusão e os gritos selvagens da mãe misturados à dor do
colóquio e às questões do coração do menino, recalcadas ou sibilantes, criam a atmosfera
de dúvida e privação em que a criança, finalmente, “acorda”. O “despertar do bardo”,
maturação perfeita pelo reconhecimento da contingência inerente à modernidade,
condenando o homem à subjetividade e à recuperação de uma existência que, por fim,
dirá respeito ao próprio sujeito, é uma novidade absolutamente estranha ao antigo modo
(ingênuo) de condução pública e privada de “Walt”. Acabam-se os gestos exemplares, a
regulação do corpo diante do Outro, a visão e o ímpeto ordenador; e o que se reconhece,
junto às “milhares de canções mais altas, claras e doloridas”, não será somente o sentido
missionário da existência, mas o desconhecido:
O you singer, solitary, singing by yourselfprojecting me;
O solitary me, listening—nevermore shall I cease perpetuating you;
Never more shall I escape, never more the reverberations,
Never more the cries of unsatisfied love be absent from me,
Never again leave me to be the peaceful child I was before what there, in the
night,
By the sea, under the yellow and sagging moon,
The messenger there arous’d—the fire, the sweet hell within,
The unknown want, the destiny of me
.
270
270
“Ó você cantor solitário, cantando p’ra si, me projetando, / Ó solitário eu que escuto, nunca mais hei de
parar de perpetuá-lo, / Nunca mais hei de fugir, nunca mais as reverberações, / Nunca mais os gritos de amor
insatisfeito serão tirados de mim, / Nunca mais deixe-me ser a criança pacífica que fui antes do que aconteceu
aqui esta noite. / No mar, sob a lua amarela caindo, / O mensageiro, ali se erguendo, o fogo, o doce inferno
dentro, / A imensidão desconhecida, o meu destino”. “
Out of the Cradle Endlesly Rocking
”. Em WHITMAN,
Walt. “
Sea-Drift
”.
Op.Cit.
, 393. Em 1860 a estrofe é a seguinte: “
O throes! / O you demon, singing by
yourselfprojecting me, / O solitary me, listeningnever more shall I cease imitating, perpetuating you, /
Never more shall I escape, / Never more shall the reverberations, / Never more the cries of unsatisfied love be
absent from me, / Never again leave me to be the peaceful child I was before what there, in the night, /By the
sea, under the yellow and sagging moon, / The dusky demon arousedthe fire, the sweet hell within, / The
unknown want, the destiny of me”. Cf. “A Word Out of the Sea, 30”. Leaves of Grass 1860. Em FOLSON, Ed.
PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
.
203
Mais uma vez, deve-se menção às revisões que marcam as sucessivas edições dos
poemas. Diz a Comprehensive Reader’s Edition de Blodgett e Bradley (1966), em nota ao
poema, que a revisão de 1860, de trânsito entre a publicação do poema avulso na edição de
Natal do Saturday Press, que tinha por chefe Henry Clapp (um dos amigos de boemia do
poeta), e a terceira edição de Leaves of Grass merece estudo particular
271
. Sem fazer plena
justiça às palavras dos editores, gostaríamos de nos deter apenas em um dos ajustes, que diz
respeito diretamente à noção de “destino”. Na passagem citada, o poeta reforça o pacto com
o pássaro, seu duplo
272
, assumindo para si, diante do mar e da lua, a solidão e o fogo da dor
que se transforma em inquietude, como destino: eis o que a revisão final do poema nos dá a
entender, seguindo a versão de 1860. No entanto, o que se lê como estrofe isolada em 1892
O give me the clew! (it lurks in the night here somewhere;)
O if I am to have so much, let me have more!
273
traz na primeira versão um interessante desenvolvimento do “destino”, tomado a partir do
conflito com a perspectiva consagrada pela ordem. Assim:
O a word! O what is my destination? (I fear it is henceforth chaos;)
O how joys, dreads, convolutions, human shapes, and all shapes, spring as from
graves around me!
O phantoms! you cover all the land and all the sea!
O I cannot see in the dimness whether you smile or frown upon me;
O vapor, a look, a word! O well-beloved!
O you dear women’s and men’s phantoms!
274
271
BLODGETT, BRADLEY (ed.).
Leaves of Grass: Comprehensive Reader’s Edition
, 247.
272
Cf. “nota 250”.
273
“Ó me dê uma pista! (ela espera, ela se esconde em algum lugar da noite), / Ó se existo p’ra tanto, me dê
mais!” “
Out of the Cradle Endlesly Rocking
”. Em WHITMAN, Walt. “
Sea-Drift
”.
Op.Cit.
, 393.
274
“Ó uma palavra! Ó qual é meu destino? (eu temo que seja daqui a diante o caos;) / Ó que prazeres, nojos,
convoluções, formas humanas e todas as formas, aparecidas como que das tumbas ao meu redor! / Ó
fantasmas! Vocês cobrem toda a terra e todo o mar! / Ó eu não posso ver na penumbra se vocês sorriem para
mim ou lamentam! / Ó vapor, um olhar, uma palavra! Ó bem amado! / Ó queridos fantasmas de homens e
mulheres!”. Cf. “
A Word Out of the Sea, 31
”.
Leaves of Grass 1860
. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
.
204
O medo do “caos” dá a medida da “queda” que representa, para a poética de Leaves
of Grass, a perspectiva propriamente subjetiva do mundo, isto é, sem sua contrapartida
pública ou concerto do mundo e da nação. Como em “As I Ebb’d”, a primeira versão de
Out of the Cradle” vai da ordem absoluta à morte em um passo: fantasmas cobrirão toda a
terra e todo o mar, a escuridão não permite o discernimento entre a expressão feliz ou
grave. O “despertar”, da perspectiva que será suprimida em 1860, encherá o poeta de
ressentimento e dúvida vazados, no mesmo ano, por poemas em que a morte se alia ao
reverso da moeda lançada pela “religião sem Deus”
275
(também mecanismo divino),
oriunda do deísmo iluminista dos Fundadores e casada com o espiritualismo de raiz
Swedenborgiana que vimos nas primeiras figurações do Oceano. Poemas como A Hand
Mirror
Hold it up sternly – see this it sends back, (who is it? Is it you?)
Outside fair costume, within ashes and filth,
No more a flashing eye, no more a sonorous voice or springy step,
Now some slave’s eye, voice, hands, step,
A drunkard’s breath, unwholesome eater’s face, venerealee’s flesh
(...)
276
em que o corpo de Walt perde toda a regulação social (liberdade da alma-saúde do corpo),
ecoando a sentença de I Sing the Body Eletric” (“Aqueles que corrompem seus corpos
segregam a si mesmos”), ou os conflitos íntimos, a ausência de fé e as “multidões sórdidas”
de “O Me! O Life!
277
(que só aparece em 1865) refletem os humores do poeta que se via
275
REYNOLDS, David.
Op. Cit.
, 237-238.
276
“SEGURE
isto com firmeza– veja isto que vem de volta (Quem é? É você?), / Fora das roupas mais justas,
vestido de cinzas e sujeira, / Não mais um olho brilhante, não mais uma voz sonora ou um passo elástico, /
Agora uns olhos de escravo, voz, mãos, passos, / O bafo de bêbado, uma total aparência de obeso, uma carne
carcomida de sífilis, (...)”. “A Hand-Mirror”. Em WHITMAN, Walt. By the Roadside. Op. Cit., 408.
277
A revisão deste poema é particularmente interessante. À pergunta que encerra o poema em 1860 (“Of the
empty and useless years of the rest, with the rest me intertwined, / The question, O me! So sad, recurring
What good amid these, O me, O life
?”), o poeta escreve, em dois versos a “resposta” em 1881, bem
representativa da poesia dos últimos anos de Whitman:
205
em face da pior das conjunturas. O edifício físico e espiritual de sua União ruía diante de
todos os norte-americanos. Já não se tratava apenas da corrupção da alma e do materialismo
desenfreado que eram combatidos por um “bardo americano” e sua utopia.
Em “Para Identificar a 16ª, 17ª e 18ª Presidências”, Whitman já apelava a
“crepúsculos sombrios” em que “eu e os demais dormimos”. Não havia ciência e regimes
para a cura do Corpo do Estado; restava apenas o “rugir do trovão” para o “despertar do
Norte, do Sul, do Leste e do Oeste” e o enfrentamento dos “cães noturnos” e dos
“morcegos” que empestiavam o Capitólio
278
. Como muitos de seus poemas de 1860
279
nos
indicam, a última esperança era a rebelião. Entretanto, a guerra anunciada não seria a
promovida pela “divine average” como último recurso para a promoção de um processo
radical de “higiene pública”. Assim, voltamos à resposta sobre o “destino”, que o poeta
pedirá cheio de ansiedade e que última edição do poema responde de modo evasivo, porém
direto e límpido:
A word then, (for I will conquer it,)
The word final, superior to all,
Subtle, sent up—what is it?I listen;
Are you whispering it, and have been all the time, you sea-waves?
Is that it from your liquid rims and wet sands?
Whereto answering, the sea,
Delaying not, hurrying not,
Whisper’d me through the night, and very plainly before day-break,
Lisp’d to me the low and delicious word death,
And again death, death, death, death
But edging near, as privately for me, rustling at my feet,
Creeping thence steadily up to my ears, and laving me softly all over,
“Answer.
That you are here – that life exists and identity,
That the powerful play goes on, and you may contribute a verse”.
278
To the States To Identify the 16
th
, 17
th
, 18
th
Presidentiad”, 415.
279
Para efeito de consulta, boa parte desses poemas foram reunidos na seção “By the Roadside” de
Leaves of
Grass
(1892)
206
Death, death, death, death, death.
280
A morte, sussurrada pelo oceano em um encadeamento aliterativo de difícil
reprodução em português (“death” imita aqui o som das ondas que quebram na praia) será a
razão insondável do cantar, motivo irrepresentável e palavra final de um oceano que assim
se torna a “influência invisível” a preterir a “origem de todos os poemas”, colocada em
1855 como a comunhão racional e virtuosa entre a nação Americana e a natureza. Seguindo
a diretriz formal indicada por uma figuração de raiz européia, o oceano e sua razão
insondável inaugurarão um trabalho mais consciente com o verso em seu sentido
tradicional. Trabalhando ainda com a irregularidade própria do “verso-sentença”, Whitman
traz para seus versos medidas tradicionais já sem o efeito pomposo que vimos em “Broad-
Axe Poem” ou “Europe”. “Out of the Cradle Endlesly Rocking”, celebrado como um dos
poemas mais bem realizados de Whitman, traz não apenas a marcação de vozes, que lhe
permite a comparação com a ópera, como uma seqüência inicial (mais uma vez, uma
espécie de exórdio) feita em base variável de pés dactílicos (F f f ), trocaicos (F f) e
anapestos (f f F), sempre marcados como um primeiro pé, depois do qual seguem as
sentenças. Esse trabalho será a marca registrada do melhor verso do poeta, antes de sua
280
“Uma palavra então, (pois eu a conquisto), / Uma palavra final, superior a todas, / Sutil, enviada – o que é?
– eu escuto,
/
Vocês estão sussurrando, desde sempre sussurrando, mar ondas?
/
É isso que sai da areia
molhada e de seus limites líquidos?
//
Assim respondendo, o mar, sem atraso, sem pressa,
/
Sussurrou-me
noite adentro e antes do amanhecer,
/
Sibilou para mim a baixa e deliciosa palavra morte,
/
E de novo morte
morte morte morte morte! / Acabando, próxima e ruidosa, aos meus pés, somente para mim, / Deslizando de
pronto p’ra dentro dos meus ouvidos e lavando o meu corpo inteiro,
/
Morte, morte, morte, morte, morte”. Cf.
Out of the Cradle Endlesly Rocking
”. Em WHITMAN, Walt. “
Sea-Drift
”.
Op.Cit.
, 393. Em 1860 lemos:
32
A word then, (for I will conquer it,) / The word final, superior to all, / Subtle, sent upwhat is it?I listen;
Are you whispering it, and have been all the time,you sea-waves? / Is that it from your liquid rims and wet
sands? //33 Answering, the sea, / Delaying not, hurrying not, / Whispered me through the night, and very
plainly before daybreak, / Lisped to me constantly the low and delicious word
DEATH
, / And again Death
ever Death, Death, Death, / Hissing melodious, neither like the bird, nor like my aroused child's heart, / But
edging near, as privately for me, rustling at my feet, / And creeping thence steadily up to my ears, / Death,
Death, Death, Death, Death
”. Cf. “
A Word Out of the Sea, 32-33
”.
Leaves of Grass 1860
. Em FOLSON, Ed.
PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
.
207
incursão dedicada ao verso propriamente tradicional, presente em seus poemas de
circunstância do pós-Guerra Civil.
Ademais, o conceito de “canção”, que depreendemos de Out of the Cradle” como
canto apaixonado de um sujeito e, sobretudo, como conseqüência da experiência
impalpável da morte – o irrepresentável por excelência – entra em conflito com o primeiro
motivo do poeta, “a origem de todos os poemas”, em que a Natureza revelada é proposta
como ordem, no limite, passiva de entendimento, consulta e representação. Lendo agora o
relato autobiográfico de “Sea-Shore Fancies” como afirmação de um problema que já
encontrou solução, podemos nos voltar a um aspecto igualmente importante da vida
literária de Whitman: a revisão do volume, que em 1892 encontrou sua última forma.
Antes de “Out of the Cradle” e “As I Ebb’d” não há “canções” em Leaves of Grass.
Tomemos por exemplo o mais conhecido poema do volume, Song of Myself”, que em
1855 é o primeiro poema – sem título – do livro, sendo chamado em 1856 de Poem of
Walt Whitman, an American”, título reduzido em 1860 somente a “Walt Whitman”. As
primeiras titulações do poema demonstram (como a própria ausência de título de 1855, por
razões que não cabe agora dizer) a preocupação do poeta com a autoridade pública que dá
suporte ao nome, no que se entenda o conceito de “poema” indistinto talvez do de
“pronunciamento público” ou “sermão”, dada sua natureza exortativa e dialógica, bem
como a importância do texto, que sendo atribuído diretamente à figura do poeta denota sua
centralidade em relação ao conjunto do livro. Poema seminal durante o antebellum
americano, “Walt Whitman” perderá sua especificidade na primeira grande revisão do
volume, a de 1881, quando o poeta resolve reunir sua obra poética sob o título Leaves of
Grass após tentativas de reunião em dois volumes, dos quais Leaves era o primeiro. Nesse
momento, a “canção” surge como possibilidade de reunião que parte da figura de um
“cantor solitário”, aquele que se forma do encontro com o pássaro e do nascimento de
milhares de canções, todas referentes a uma única experiência mística e decisiva, na qual o
poeta aceita a cisão entre público e privado para a composição do “poeta americano” não
como indivíduo exemplar diante da comunidade, mas como sujeito em sua solidão. É em
relação à subjetividade que o Oceano assume não apenas a forma simbólica do mistério
insondável e universal, como dá a palavra – “morte” – com que Whitman irá moldar os
próximos momentos de sua poesia.
208
Antes que essa morte venha acompanhada da Guerra, que dá fechamento a esses
momento de confusão, desgosto e imobilismo da sociedade norte-americana, será
necessário falar de como ela se manifesta por outro “irrepresentável”, a adesividade, ou
amor entre camaradas.
2
Emblematic and capricious blades I leave you, now you serve me not,
I will say what I have to say by itself,
I will sound myself and comrades only, I will never again utter a call only their call,
I will raise with it immortal reverberations through the States,
I will give an example to lovers to take permanent shape and will through the States,
Through me shall the words be said to make death exhilarating,
Give me your tone therefore O death, that I may accord with it
(“Calamus, 2, 1860 – Scented Herbage of My Breast, 1892)
Em um importante conjunto de ensaios de interpretação da cultura norte-americana,
o crítico canadense Sacvan Bercovitch descreve seu encontro com os clássicos literários do
antebellum norte-americano. Embora seu volume trate de Whitman apenas de modo lateral,
parece incrível como em determinado momento de sua dissertação, que pretende dar conta
da formação do mito americano (a America) desde o surgimento de um “povo escolhido
para fundar a Nova Jerusalém” até a chegada da Revolução, em que sua perspectiva de uma
“terra prometida” embala a reunião de uma sociedade heterogênea (o consenso nacional)
contra os desígnios “apocalípticos” da Coroa britânica, suas palavras parecem nos servir
como uma luva ao percurso poético de Whitman:
Damning or affirmimg, our classic antebellum writters offer the most striking
testimony we have to the power of American consensus. The many disparities
they register between social and “ultimate” values were not to them intrinsic
defects of the American Way. They were aberrations, like the backslidings of a de
facto saint or the stiff-necked recalcitrance of a chosen people. Their
denunciations were part of a ritual attempt to wake their countrymen up to the
potential of their common culture. And, if anything, the ritual becomes more
insistent in proportion to the writers’ sense of despair. If America failed, then the
cosmos itself – the laws of history, nature, and mind – has failed as well.
209
Millenium or doomsday, American heaven or universal hell: it was the choice
demanded by the rhetoric of consensus.
281
“Céu Americano ou inferno universal”: estas são também as opções da poesia de
Whitman, que encontrando em si as limitações inerentes à formação do sujeito moderno,
segue pelo caminho do “caos” e da “morte”, palavras que servirão à expiação do corpo, da
sociedade e do país, anteriormente expressões indistintas do “ritual do consenso”, invocado
nas primeiras palavras do poeta em 1855, “Walt Whitman, um americano” que bem poderia
personificar a “busca” (errand) que Bercovitch identifica entre as “três certezas” daquele
ritual: a profecia, que leva à migração e à licença ilimitada de expansão; a disciplina do
peregrino, presente em “uma doutrina do chamado que liga as identidades pública e
privada” e “endossa o individualismo sem promover a anarquia”, transformando a política
congregacional “de um instrumento de rebelião em controle”; e o progresso, que fez da
Nova Inglaterra, segundo o crítico, uma “estrada para o futuro”
282
, para a qual as
instituições não designarão estabilidade, mas sustentarão o processo de desenvolvimento de
“um passado sagrado para um futuro sagrado. É na aparente falência dessa visão de
mundo, a America propriamente dita, que crescem as feridas pelo corpo do país;
transformada em pântano e solidão, essa ausência de sentido fará nascer a flor dos
camaradas, o cálamo.
Os poemas numerados
283
que formam Calamus, seção central de 1860, são mais do
que o desenvolvimento lógico da poesia relacionada ao Oceano. Longe de falar pura e
simplesmente ao ingênuo “inferno universal”, presente em outras passagens da terceira
edição de Leaves of Grass, os poemas do cálamo trilham, para lembrar o poema de abertura
da seção, “caminhos desusados” (“[Escapado] de todas as oficialidades até então
publicadas, dos prazeres, lucros, conformidades, / Que por muito tempo estava oferecendo
281
BERCOVITCH, Sacvan. “Ritual of Consensus”. Em
The Rites of Assent: Transformations in the Symbolic
Construction of America
, 61.
282
BERCOVITCH, Sacvan. “Ritual of Consensus”. Em The Rites of Assent: Transformations in the Symbolic
Construction of America
, 33-34.
283
Em 1860, os poemas da seção não eram identificados por título; somente por números, de 1 a 45. Como tal
apresentação foi substituída já em 1867 pelos títulos que conhecemos e a identificação numérica é custosa,
210
de alimento para minha alma”
284
), perfazendo o mito americano em face da morte. Tal
percurso é a síntese do que o Oceano ensina ao poeta nos dois momentos capitais de seu
“sermão”: na infância, o marulhar da morte confere um sentido irrepresentável ao “caos” da
experiência do contingente; adulto, o poeta cai diante das ondas que lhe revelam um “
EU
real ainda intocado”, reduzindo sua poesia de celebração e sabedoria a “bobagens”. Na
convergência desses momentos, a palavra do Oceano proporciona à poesia de Whitman
uma possibilidade de reorganização do mito em chave subjetiva, filtrada por um dos termos
clássicos da lírica, o amor, que move o poeta, “resoluto em não cantar as canções de hoje,
mas aquelas da adesão masculina”, a “dizer o segredo de meus dias e noites” e “celebrar a
necessidade de camaradas”
285
.
A recusa do presente (mergulhado em corrupção e às vèsperas de uma guerra
fratricida) e a sinceridade com que esse amor sigiloso ganha expressão se tornaram,
ironicamente, os pilares de uma crítica biografista que, embora bastante afeita ao mito da
Personalidade alimentado pelo próprio poeta, erigiu, a partir deCalamus, a imagem do
poeta homossexual, que usa a poesia como arma contra seus recalques (incluído o momento
histórico desfavorável, do qual o poeta estaria se alienando) e a intolerância da sociedade
vitoriana, cujas instituições chauvinistas haviam de ser enfrentadas pela “instituição do
terno amor dos camaradas”
286
. Muito embora a única acusação de obscenidade pesada
referiremo-nos aos poemas a partir de seu título final (que traz sempre o primeiro verso de cada poema)
indicando em nota o número correspondente na primeira edição.
284
IN paths untrodden, / In the growth by margins of pond-waters, / Escaped from the life that exhibits itself,
/ From all the standards hitherto published – from the pleasures, profits, conformities, / Which too long I was
offering to feed my Soul”. “Calamus 1”. Leaves of Grass 1860. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The
Walt Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. Cf. “
In Paths Untrodden
”. WHITMAN,
Walt. “
Calamus
”.
Op.Cit
., 268.
285
Resolved to sing no songs to-day but those of manly attachment, / Projecting them along that substantial
life, / Bequeathing, hence, types of athletic love, / Afternoon, this delicious Ninth Month, in my forty-first
year, / I proceed, for all who are, or have been, young men, / To tell the secret of my nights and days, / To
celebrate the need of comrades”. “Calamus 1”. Leaves of Grass 1860. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive (http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf. “In Paths Untrodden”. WHITMAN,
Walt. “Calamus”. Op.Cit., 268.
286
I HEAR it was charged against me that I sought to destroy institutions; / But really I am neither for nor
against institutions, (What indeed have I in common with them?Or what with the destruction of them?) /
211
sobre o poeta tenha decorrido leitura da seção “Children of Adam” (a mesma que, em 1860,
foi assunto do último encontro pessoal entre Whitman e Emerson, incomodado com a
figura do “poeta procriador”), pelo menos dois escritores se manifestaram de alguma forma
contra a publicação dos poemas de Calamus”: o primeiro, o poeta inglês William Michael
Rossetti, que na edição inglesa dos Poems of Walt Whitman (1867) omitiu boa parte dos
poemas da seção, incluída na censura dos textos de conteúdo sexual, que ainda incidiu
sobre “Song of Myself” e “Children of Adam”; depois, foi a vez de outro inglês, John
Addington Symonds, admirador da obra de Whitman, que posto a par das recentes
descrições clínicas e psicológicas da “inversão sexual”, realizadas por médicos alemães na
década de 1880, interrogou Whitman sobre uma possível “contaminação” dos textos de
Calamus” causada pela “adesividade”. Além dessas reações de contemporâneos, sempre
rechaçadas, ora por Whitman, ora por seu séqüito, corroborariam a leitura homoerótica a
solteirice do poeta, as longas e íntimas relações que Whitman estabeleceu com alguns
rapazes ao longo de sua vida e as listas variegadas de nomes de homens jovens, descritos de
modo bastante sucinto, nos cadernos de anotação do poeta.
Embora críticos e biógrafos mais recentes venham mostrando a impropriedade de
alguns argumentos, apoiados basicamente em um ponto de vista sincrônico e cultural
287
, a
perspectiva homoerótica demonstra-se bastante prolífica e integra, por vezes, uma luta por
Only I will establish in the Mannahatta, and in every city of These States, inland and seaboard, / And in the
fields and woods, and above every keel, little or large, / Without edifices, or rules, or trustees, or any
argument, / The institution of the dear love of comrades”.
(“
OUÇO
que fui acusado de procurar destruir
instituições, / Mas de fato eu não sou nem contra nem a favor das instituições, / (O que eu teria em comum
com elas? E o que teria com sua destruição?) / Eu apenas estabelecerei em Mannahatta e em toda cidade
desses Estados, interioranas ou costeiras, / E em todos os campos e bosques e sobre todo barco pequeno ou
grande, / Sem edifícios ou regras ou fiadores ou qualquer discussão. / A instituição do querido amor dos
camaradas.”).
Calamus 24”. Leaves of Grass 1860
. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt
Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
.
Cf.
“I Hear It Was Charged against Me”.
WHITMAN, Walt. “Calamus”. Op.Cit., 281.
287
Citemos dois exemplos. Paul Zweig lê nas listas privadas de possíveis amantes de Whitman os elementos
presentes e desenvolvidos nos retratos poéticos de Leaves of Grass, como o que há em “I Sing the Body
Eletric, 5”. Já David Reynolds recupera os modos do relacionamento entre pessoas do mesmo sexo tal como
se apresentavam no período. Segundo este crítico, a convivência poderia incluir, sem prejuízo moral ou desejo
contrito, declarações de amor, abraços, beijos ou mesmo noites dormidas em uma mesma cama.
212
reconhecimento e direitos que simplesmente não nos cabe julgar, senão pela visada
biográfica da obra de Whitman – problema que, em se tratando do poeta, transcende
quaisquer ramificações da crítica e da teoria literária. Voltando ao que nos interessa,
Whitman tratou da adhesiveness em um dos momentos capitais de Democratic Vistas”,
provavelmente a mais importante obra do poeta no postbellum. Definindo o conceito de
governo, Whitman atribuirá ao primeiro, com a devida carga de suas posições políticas, o
dever de garantir a propriedade e o bem comum, bem como de criar condições ao
crescimento pessoal e de encorajar todas as possibilidades de emergência e benefício
humano, alimentando a aspiração à independência e o orgulho e respeito próprio que estão
latentes em todos os homens; sob esses aspectos, o Estado governa como um pai que ensina
seus filhos a se autogovernarem por meio das leis democráticas, que lhes darão uma
plataforma comum e universal.
Entretanto, tal governo e tais leis seriam apenas a parcela material e inferior (a ser
superada) da Democracia que dá fundamento às almas como uma “lei superior”, posta na
mesma ordem das Leis que regem o Universo, congregando os homens de todas as nações e
religiões em uma única familia e irmandade, na qual aquele individualismo fomentado
pelos bons governos é só uma metade:
There is another half, which is adhesiveness or love, that fuses, ties and
aggregates, making the races comrades, and fraternizing all. Both are to be
vitalized by religion, (sole worthiest elevator of man or State,) breathing into the
proud, material tissues, the breath of life. For I say at the core of democracy,
finally, is the religious element. All the religions, old and new, are there.
288
.
288
“Há uma outra metade, que é a adesividade ou amor, que funde, amarra e agrega, fazendo camaradas as
raças e confraternizando-as. Ambas devem ser vitalizadas pela religião (o mais valioso elevador do homem ou
do Estado), respirando dentro dos altivos enredos materiais, sopro de vida. Pois digo que o cerne da
Democracia, finalmente, é o elemento religioso. Todas as religiões, novas e velhas, estão ali”. WHITMAN,
Whitman.“
Democratic Vistas
”. In WHITMAN, Walt.
The Works of Walt Whitman (in Two Volumes As
Prepared by Him For the Deathbed Edition): Volume II, The Collected Prose
, 223.
213
Pelo lugar do conceito em “Democratic Vistas”, percebe-se que a “negação do dia
presente” não é tão categórica quanto o poema introdutório de Calamusparece nos dizer.
A adesividade (ou “amor”) será aqui um dos termos responsáveis pela Democracia, mais
especificamente por sua parcela espiritual, que “funde, amarra e agrega” no sentido da
confraternização universal; unida ainda às instituições materiais, ajuda a compor o
“elemento religioso”, o “mais valioso elevador do homem”, que torna a Democracia uma
síntese de todas as religiões existentes. Tão importante para nós quanto a relação entre a
Democracia e a religião, que confirma a interação entre as esferas já vista, é o caráter
político da “adhesiveness”, que transforma os antigos iguais da ordem celebrada pela
poesia de 1855 e 1856 em “camaradas”, apartados tanto das “formas produzidas”, essas
derivadas da parcela material da Democracia, como de um discurso que se pretende
“idêntico à visão”, no qual as esferas material e espiritual se unificam.
Em 1860, não havia ainda possibilidade de unificação; aliás, para que essa ocorra no
ensaio de 1871, o poeta terá de travar e solucionar, já por meio da lírica, uma nova ordem
de conflitos. Com isso, o que é preciso ter em mente é a dupla inovação que o conceito traz
para dentro da poesia de Whitman: por um lado, a realização anterior será coordenada por
uma lírica até então só reconhecida como parte de uma experiência poética que não
separava identidade pública e privada; por outro, a lírica, enquanto universal ligado à
expressão do sujeito moderno, se desenvolve a partir da tensão dialética com um particular,
sendo nesse sentido a expressão de um sujeito em face de uma contingência própria, ligada
às especificidades de sua sociedade. Aparentemente, no que se refere ao segundo ponto,
estaríamos falando o óbvio; no entanto, essa é uma situação nova para a poesia de
Whitman, que até então havia se dedicado a fazer da expressão particular, baseada na
celebração das formas eternas da América, o próprio universal. Como essa fosse uma
ordem impossível fora do círculo de destruição a que o mundo parecia se entregar, o
primeiro poema após a introdução trata de estabelecer o novo estado de coisas, no qual a
grama, que antes crescia indiscriminadamente entre brancos e negros, enterrará suas raízes
em um jazigo:
SCENTED
herbage of my breast,
Leaves from you I yield, I write, to be perused best afterwards,
Tomb-leaves, body-leaves growing up above me above death,
214
Perennial roots, tall leaves – O the winter shall not freeze you delicate leaves,
Every year shall you bloom again – Out from where you retired you shall emerge
again;
O I do not know whether many, passing by, will discover you or inhale your faint
odor – but I believe a few will;
(...)
289
Antes infringida pelas ondas, ou resultado da interpretação de um evento decisivo,
aqui a morte está interiorizada, não como antagonista da vida igualmente celebrada em
Song of Myself”, mas como força motora de uma vida, desse modo, sitiada. Uma
estabelecida como condição do próprio sujeito, passamos às “folhas”, que agora são tanto o
que se escreve como o que cresce desse corpo contingente, donde surge a perenidade não
mais vivida, mas desejada, indiferente aos invernos e às demais estações, como se a palavra
finalmente assumisse tanto a sobrevida do registro, independente da ação fugaz de quem a
proferisse, como a particularidade daquele que a utiliza. Não serão “os pensamentos de
todos os homens em todos os tempos”
290
, mas de um homem, esse que diante da morte
deseja dar sentido a sua vida. A assunção da contingência ainda se espraia para a relação
dessas folhas com os homens, dos quais já se espera a incompreensão (“uns poucos as
entenderão”), ou ainda: a compreensão inteiramente condicionada pela comunhão privada,
não mais idêntica a que ocorre na esfera pública, assim lembrando a seqüência inicial de
Song of Myself”, em que o poeta se afasta dos “perfumes artificiais” para alcançar a pureza
inodora da atmosfera. Contudo, ao contrário do que ocorre naquele poema, a vida pública
não clama concerto ou eternidade; já o sujeito concentra suas forças na superação desse
289
HERBÁRIO
perfumado do meu peito, / Partindo de vocês eu revelo, eu escrevo, para ser lido mais
atentamente adiante, / Folhas das campas, folhas do corpo crescendo por sobre mim, por sobre a morte, /
Raízes perenes, folhas altas – Ó que o Inverno não as congele, delicadas folhas, / Todos os anos vocês hão de
florescer novamente - De onde encontraram seu retiro vocês hão de emergir novamente; / Ó de fato não sei se
muitos andarilhos irão descobrir vocês ou inalar suas tênues fragrância – mas acredito que poucos irão; (...)”.
Calamus 2”. Leaves of Grass 1860. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The Walt Whitman Archive
(http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf “Scented Herbage of my Breast”. Em WHITMAN, Walt.
Calamus
”.
Op.Cit
., 268.
290
Cf. “
Leaves of Grass 1855
”. Em WHITMAN, Walt.
Op.Cit.
, 43. “
Song of Myself,
17”.
Op.Cit
., 204.
215
contingente a partir do que lhe resta, isto é, a própria alma solitária, que a seqüência do
poema ainda tinge de cores mais melancólicas:
O slender leaves! O blossoms of my blood! I permit you to tell, in your own way,
of the heart that is under you;
O burning and throbbingsurely all will one day be accomplish’d;
O I do not know what you mean, there underneath yourselvesyou are not
happiness,
You are often more bitter than I can bearyou burn and sting me,
Yet you are very beautiful to me, you faint-tinged rootsyou make me think of
Death,
Death is beautiful from you(what indeed is finally beautiful, except Death and
Love?)
291
Como mantivesse, em surdina, o acerto de contas das retrospectivas oceânicas, as
“delicadas folhas” perdem os atributos que outrora as havia consolidado como símbolo
maior da Democracia. Elas ainda têm lugar priviliegiado, são a “expressão do coração” em
que fincam suas raízes; entretanto, o sujeito já não é mais capaz de discernir sobre seu claro
sentido (“vocês não são a felicidade”), interrompido pela amargura “que queima e fustiga”
e só equilibrado pela beleza melancólica que ainda emana da grama e perfaz a acomodação
do símbolo nesta nova situação: “a morte é bela quando vem de vocês”. A metáfora, apesar
de abreviada (“vocês me fazem pensar na Morte”), é, certamente, uma das maiores
evidências da transformação que se opera na arte poética de Whitman, agora sob a égide do
irrepresentável: as folhas já não são o “hieróglifo de Deus”, metáfora digressiva que
designava uma ordem em que todas as coisas eram idênticas a si mesmas e para qual a
291
“Ó delicadas folhas! / Ó botões de meu sangue! Permiti que falassem à sua maneira do coração que está
sob vocês, / Ó queimando e pulsando – com certeza tudo isso um dia vai ser consumado / Ó Não sei o que
vocês significam sob vocês mesmas – vocês não são a felicidade, / Vocês muitas vezes são mais amargas do
que posso suportar – vocês me queimam e me picam, / E ainda assim vocês são lindas para mim, vocês,
pálidas raízes, levemente coradas – vocês me fazem pensar a respeito da morte, / A morte é linda quando
vinda de vocês - (o que de fato é realmente lindo senão o amor e a morte?)”. “Calamus 2”. Leaves of Grass
1860. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The Walt Whitman Archive
(
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. Cf. “
Scented Herbage of My Breast
”. WHITMAN, Walt.
Calamus
”.
Op.Cit.
, 269.
216
América não necessitava de tradução ou qualquer mediação para expressar seu significado.
Restando às folhas a aproximação frágil e “bela” de significados advindos da cisão entre
sujeito e mundo, veremos sua inserção num mundo de fantasia, em que mesmo o corpo,
antes esquadrinhado em funções e membros, só ganha sentido pela aproximação de
elementos (o corpo é “jazigo”; o coração é “terra” onde crescem as folhas de grama) que,
assim, perdem sua integridade ou sentido material, que passam à esfera subjetiva, aqui
tomada por uma tensão (vida e morte) que a afasta da possibilidade de dizer as coisas como
são. A morte sitia o corpo e, com ele, a própria representação do mundo sensível,
abandonado para a celebração do amor em sua imaterialidade:
Do not remain down there so ashamed, herbage of my breast!
Come, I am determin’d to unbare this broad breast of mine—I have long enough
stifled and choked;
Emblematic and capricious blades, I leave younow you serve me not;
Away! I will say what I have to say, by itself,
I will escape from the sham that was proposed to me,
I will sound myself and comrades onlyI will never again utter a call, only their
call,
I will raise, with it, immortal reverberations through The States,
I will give an example to lovers, to take permanent shape and will through The
States;
Through me shall the words be said to make death exhilarating;
Give me your tone therefore, O Death, that I may accord with it,
Give me yourselffor I see that you belong to me now above all, and are folded
togetheryou Love and Death are;
292
292
Não fique aí embaixo tão tímido, herbário do meu peito! / Venha! Estou pronto a desnudar este largo
peito meu – por tempo demais sufocado, por tempo demais afogado; / Deixo vocês, emblemáticas e
caprichosas lâminas – agora vocês não me servem, / Direi o que tenho de dizer por si, / Vou fazer soar apenas
a mim e aos camaradas –unca mais invocarei que não seja a deles, / Com meu canto farei soar reverberações
imortais através dos Estados, / Darei exemplo aos amantes, para que tomem forma e vontade permanente
através dos Estados;/ Através de mim hei de fazer com que as palavras pronunciadas façam a morte emanar, /
Para isso me dá o tom, Ó morte, que estarei de acordo com ele, / Me dá você mesma – pois vejo que agora
você me pertence mais que todas as coisas, e estão atadas – vocês Amor e Morte estão;(...)”. “
Calamus 2
”.
Leaves of Grass 1860
. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive
217
A nudez que expressou a vida passa à celebração da morte e conduz o poeta ao
radicalismo de abandonar suas “folhas”, inclusive chamadas por um dos nomes
consagrados no uso polido, “lâminas”
293
, denotando o distanciamento simbólico de toda a
poesia anterior, condenada junto ao mundo sensível, desprovido da verdade agora reunida
em torno do abstrato e imortal “amor dos camaradas”, cujas “reverberações” se farão sentir
(eis o que o poeta promete) “através dos Estados”. Há de se considerar aqui que o apelo
nacional diz respeito aos limites do mundo sitiado pela morte (os Estados que a disputa
política desagrega e a escravidão mancha) e não à velha celebração do “maior poema”;
ademais, há uma idéia de resistência intrínseca ao exemplo dado àqueles que são os
“poucos” amantes, de que mantenham a “forma e a vontade” “através” – ou melhor: a
despeito – da realidade que, na seqüência do poema, é “máscara de materiais” e “espetáculo
de aparências”, que “escondem em suas formas mutáveis de vida” a “essência”, aquela que
se iguala em “tom” com a Morte. O amor e seus modos íntimos, aborrecidos a toda matéria
e multidão, farão justiça a America, mito de organicidade e comunhão democrática agora
abstraída da ordem política e coletiva, país que o tempo vê se corromper.
Em outras palavras: a “adesividade”, nome técnico do “amor entre camaradas”, dará
formas ao mito Americano, agora mediado pela lírica amorosa. Em todos os seus detalhes,
a América dos amantes será contemplada em oposição ao país e a tudo que possa se
materializar neste mundo, recebendo as graças da natureza pela comunhão espiritual.
Mesmo o mar, quando é convocado a participar desses momentos, não traz as duras
palavras de antes. Enquanto seu nome é chamado ao Capitólio para receber honrarias, o
(
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. “
Scented Herbage of My Breast
”. WHITMAN, Walt. “
Calamus
”.
Op.Cit.
, 269.
293
A grama em inglês não pode ter por unidade de conjunto, como em português, o termo correspondente à
“folha”, em inglês leaf, sendo correto dizer blade ou spear, “lâmina” ou “espora”. À época das primeiras
publicações de Leaves of Grass (título que incomodava o poeta por sua imprecisão, segundo os testemunhos),
Whitman teria consultado um especialista para saber se era cientificamente possível a expressão que dá nome
ao livro. Não havendo objeção, o nome se imortalizou. Para nós, o debate é especialmente interessante já que
o termo
grass
” nos dicionários nos dá uma gama de possibilidades tradutórias, como equivalentes para
“relva” ou “mato”, que chegam a validar a idéia de “folha”. Cf. REYNOLDS, David.
Op.Cit.
, 241.
218
poeta se afasta para recordar o dia em que acordou feliz junto a seu amigo na praia, que
aqui saúda, junto aos raios de luar, o enlace:
And that night, while all was still, I heard the waters roll slowly continually up
the shores,
I heard the hissing rustle of the liquid and sands, as directed to me, whispering,
to congratulate me,
For the one I love most lay sleeping by me under the same cover in the cool night,
In the stillness, in the autumn moonbeams, his face was inclined toward me,
And his arm lay lightly around my breastand that night I was happy.
294
Com o aval da natureza, a comunhão amorosa dos camaradas se mostra bastante
próxima da comunhão democrática de outrora: apesar do registro privado, a felicidade do
encontro amoroso em “When I Heard at the Close of the Day” demanda o silêncio e o
consentimento mútuo do acordo consensual, que já encontra arestas na celebração oficial;
mais adiante, em “When I Peruse the Conquer’d Fame”, poema de temática semelhante, a
felicidade dos amantes causa “inveja” ao sujeito lírico, que lê atentamente a fama de heróis
e generais vitoriosos, mas prefere a “irmandade dos amantes”, que “caminham juntos
através da vida, dos perigos e do ódio, imutáveis”, “afeiçoados e fiéis”, sentimentos de
comunhão que, percebemos, lhe são desconhecidos. Essa irmandade em natureza, consenso
restrito aos amantes, também será verificada no abraço de dois jovens que atravessam o
país em plena posse de sua saúde:
Up and down the roads going – North and South excursions making,
Power enjoying – elbows stretching – fingers clutching,
Arm’d and fearless – eating, drinking, sleeping, loving,
No law less than ourselves owning – sailing, soldiering, thieving, threatening,
294
“E naquela noite enquanto todas as coisas estavam em silêncio ouvi as águas chegando continuamente à
praia, / Ouvi o ruído sibilante do líquido e da areia como se dirigidos a mim sussurrassem para me
parabenizar, / Pois aquele que mais amava deitava dormindo ao meu lado sob as mesmas cobertas da noite
fria, / Na calma do luar de Outono seu rosto se inclinava de encontro ao meu / E seu braço caía leve
envolvendo meu peito – e naquela noite estava feliz”. “Calamus 11”. Leaves of Grass 1860. Em FOLSON,
Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. “
When I
Heard at the Close of the Day
”. Em WHITMAN, Walt.
Calamus.
Op.Cit.
, 276.
219
Misers, menials, priests alarming – air breathing, water drinking, on the turf or
the sea-beach dancing,
With birds singing – With fishes swimming – With trees branching and leafing,
Cities wrenching, ease scorning, statutes mocking, feebleness chasing,
Fulfilling our foray.
295
Em “We Two Boys Together Clinging”, os camaradas trazem consigo características
bastante similares às do “americano Walt Whitman”, verificáveis na exibição do corpo e de
suas funções (“comendo, bebendo, dormindo, amando”), bem como nas qualidades de seu
caráter, “destemido” e “natural”, atravessando cidades, caçoando e ameaçando suas
instituições oficiais (“estátuas”, “pastores”, “propriedade”) com a mesma desenvoltura com
que “cantam com os pássaros, nadam com os peixes, ramificam e se enchem de folhas com
as árvores”, natureza que, como eles, não conhece “outra lei que não seja a de si próprios”.
Esse potencial subversivo dos amantes, de todo ligado à tipologia da Democracia Radical
que se apresenta ao longo das duas primeiras edições do livro, será decisivo na
configuração da utopia amorosa, em que o sujeito lírico se torna o “professor do robusto
amor Americano” nas distantes terras da Califórnia:
A promise and gift to Califórnia,
Also to the great Pastoral Plains, and for Oregon:
Sojourning east a while longer, soon I travel to you, to remain, to teach
robust American love;
For I know very well that I and robust love belong among you, inland, and along
the Western Sea,
295
“Indo para cima e para baixo nas estradas
fazendo excursões pelo Norte e pelo Sul, / Desfrutando o
poder
esticando os cotovelos
apertando os dedos, / Armados e destemidos
comendo, bebendo,
dormindo, amando, / Não havendo lei maior do que a de nós mesmos
navegando, combatendo, roubando,
ameaçando, / Preocupando gente avara e servil, preocupando os padres
respirando o ar, bebendo a água,
dançando na relva da praia, / Cantando com os pássaros Nadando com os peixes Com as árvores
ganhando folhas e galhos*, / Destruindo cidades, desprezando sem medo, tirando sarro das estátuas,
perseguindo a fraqueza, / Realizando nossa pilhagem”. “Calamus 26”. Leaves of Grass 1860. Em FOLSON,
Ed. PRICE, Kenneth M. The Walt Whitman Archive (http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf. “We Two
Boys Together Clinging
”. Em WHITMAN, Walt.
“Calamus” . Op.Cit..
, 282 . O verso indicado com “*” foi
cortado na versão final do poema.
220
For These States tend inland, and toward the Western Seaand I will also.
296
Neste breve poema, A Promise to California”, Whitman desenvolverá, em chave
amorosa, um dos temas mais caros ao mito Americano: a migração. Não estamos diante de
uma Nova Jerusalém, mas de um sítio em que uma América, ou Idade de Ouro, possa
reaflorar. Como os antigos protestantes, que se deslocaram em direção ao Oeste para
estabelecer no continente Americano o reino de Deus, de paz e de prosperidade na terra,
distante da perseguição religiosa (uma “tendência para o interior e para o mar do Oeste”,
como o poema aponta), o sujeito-lírico vê nas terras longínquas da Califórnia e do Oregon
(em 1860, já devidamente anexadas à União) a possibilidade de refundar, sob os termos da
comunhão espiritual, que outrora regera as colônias do Norte, a sociedade caída, em que o
amor se iguala aos limites do privado e, sobretudo, da privação de uma ordem que lhe
permitira o trânsito público. Essa idéia permanecerá no imaginário do poeta mesmo em
suas realizações ensaísticas, como o “Democratic Vistas”, de 1871, onde Whitman discorre
sobre o deslocamento para Oeste do eixo do poder americano:
In a few years the dominion-heart of America will be far inland, toward the West.
Our future national capital may not be where the present one is. It is possible,
nay likely, that in less than fifty years, it will migrate a thousand or two miles,
will be re-founded, and every thing belonging to it made on a different plan,
original, far more superb. The main social, political, spine-character of the
States will probably run along the Ohio, Missouri and Mississippi rivers, and
west and north of them, including Canada. Those regions, with the group of
powerful brothers toward the Pacific, (destined to the mastership of that sea and
its countless paradises of islands,) will compact and settle the traits of America,
with all the old retain’d, but more expanded, grafted on newer, hardier, purely
native stock. A giant growth, composite from the rest, getting their contribution,
296
UMA
promessa e um presente à Califórnia, / Ou no interior do país às enormes Planícies pastoris em
direção ao Pacífico e ao Oregon: / Demorando-me no Leste, logo viajo em vossa direção, para ficar, para
ensinar o robusto amor Americano; / Pois bem sei que eu e o amor robusto encontraremos pertencimento
entre vós, no interior e ao longo do Mar do Oeste, / Pois estes Estados inclinam-se ao interior em direção ao
Mar do Oeste - e eu farei a mesma coisa”. “Calamus 30”. Leaves of Grass 1860. Em FOLSON, Ed. PRICE,
Kenneth M.
The Walt Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. Cf. “
A Promise to
California
”. Em WHITMAN, Walt. “
Calamus
”.
Op.Cit
., 282-283.
221
absorbing it, to make it more illustrious. From the north, intellect, the sun of
things, also the idea of unswayable justice, anchor amid the last, the wildest
tempests. From the south the living soul, the animus of good and bad, haughtily
admitting no demonstration but its own. While from the west itself comes solid
personality, with blood and brawn, and the deep quality of all-accepting
fusion.
297
.
Note-se, em primeiro lugar, o contingenciamento da capital da União, que Whitman
desloca tanto em “Democratic Vistas” como em “A Promise to California”, a uma região
que sintetize o caráter e o momento americano: a velha cidade de Washington teria servido
o seu tempo, expressando o consenso inicial entre aquele “intelecto, o sol das coisas, e
também a idéia de justiça incorruptível, ancorada em meio aos demais, às mais violentas
tempestades”
,
próprio ao Norte, e “a alma viva, os bons e maus sentimentos, soberbamente
admitindo demonstração nenhuma, senão a sua própria”, que caracteriza o Sul
;
às vésperas
da guerra entre essas regiões, o poeta se volta a um Oeste que, segundo o texto do
postbellum, traz as qualidades prezadas em seus camaradas, “a personalidade sólida, com
sangue e músculos, e a profunda qualidade da fusão que tudo aceita”
.
É difícil (e Bercovitch já faz essa ligação) não relacionar esse príncipio de
mobilidade colonizadora e protestante à formação da ideologia expansionista (a “Doutrina
Monroe”, o “Destino Manifesto”), que neste trecho de “Democratic Vistas” está mais do
297
“Em poucos anos o coração da América estará longe no interior, em direção ao Oeste. Nossa futura capital
nacional não estará onde a presente está. É possível, não apenas provável, que em menos de 50 anos ela migre
mil ou duas mil milhas e seja refundada e todas coisas que pertençam a ela se façam em um plano diferente,
original, muito mais imponente. O cerne social e político, a espinha dorsal do caráter desses Estados
provavelmente correrá ao longo do rios Ohio, Missouri e Mississipi, e a oeste e norte deles, incluindo o
Canadá. Essas regiões, com o grupo de poderosos irmãos diante do Pacífico, (destinados à liderança daquele
mar e seu infinito número de paraísos de ilhas) compactará e assentará as fronteiras da América, com todo o
velho retido, mas mais expandido, enxertado em um mais novo, mais consistente, ramo nativo. Um
desenvolvimento gigantesco, composto a partir dos demais, tomando sua contribuição, absorvendo-a, para
fazê-la mais ilustre. Do norte, intelecto, o sol das coisas, e também a idéia de justiça incorruptível, ancorada
em meio aos demais, às mais violentas tempestades. Do sul a alma viva, os bons e maus sentimentos,
soberbamente admitindo demonstração nenhuma, senão a sua própria. Enquanto do Oeste vem a
personalidade sólida, com sangue e músculos, e a profunda qualidade da fusão que tudo aceita”. WHITMAN,
Walt.
“ Democratic Vistas”
. In COWLEY, Malcolm (ed.).
The Works of Walt Whitman
,
vol II
, 225-226
222
que assimilada, como vemos pela menção às ilhas do Pacífico e do Canadá, regiões que
“compactarão” as fronteiras norte-americanas, formando um novo corpo, um novo Estado.
No entanto, o poema de 1860 não tem ainda o caráter conciliador implícito na passagem do
ensaio e que só compreenderemos mais adiante, quando nosso assunto for os poemas da
Guerra Civil. Ainda em “Calamus”, a migração para o Oeste, mediada pela adesividade,
carrega o fardo de um mundo dissoluto, para o qual a Califórnia é o não-lugar que faz
frente aos momentos sombrios da seção. Neles, quem fala é o poeta desconfiado do corpo e
de sua vida material duvidosa, que atraindo o antigo interlocutor anônimo inspirará os
alertas do sujeito:
WHOEVER
you are holding me now in hand,
Without one thing all will be useless,
I give you fair warning before you attempt me further,
I am not what you supposed, but far different.
298
Em “Whoever you are holding me now in hand” temos o desenvolvimento mais
intenso e conseqüente da estrutura dialógica neste contexto fúnebre e amoroso. Como
ocorre às “folhas”, retomadas com melancolia para serem, em seguida, dispensadas junto
ao “espetáculo de aparências”, o interlocutor que aparece diante deste sujeito não o
receberá com a mesma felicidade ou com a mesma palavra de sabedoria de outrora. O
contato indiscriminado agora não causa prazer, mas desconforto e desconfiança: “quem é
ele que gostaria de se tornar meu seguidor? / quem gostaria de se candidatar aos meus
afetos?// O caminho é suspeito, o resultado incerto, talvez destrutivo”
299
. Na seqüência,
encontraremos os elementos que nos permitem caracterizar um interlocutor urbano, o leitor
298
“Quem quer que você seja segurando a minha mão,/ Sem uma coisa todo o resto é inútil, / Te dou o aviso
antes que você me procure adiante, / Eu não sou o que você pensa que eu sou, mas muito diferente”.
Calamus 3
”.
Leaves of Grass 1860
. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive
(http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf. Whoever You Are Holding Me Now in Hand”. WHITMAN,
Walt. “CalamusOp.Cit., 270.
299
Who is he that would become my follower? / Who would sign himself a candidate for my affections? // The
way is suspiciousthe result uncertain, perhaps destructive; (...). “Calamus 3”. Leaves of Grass 1860. Em
FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. Cf.
Whoever You Are Holding Me Now in Hand
”. WHITMAN, Walt. “
Calamus
Op.Cit.
, 270.
223
do livro, que teria de “largar tudo” (“toda a teoria passada de sua vida e toda a
conformidade às vidas que te circundam”) para ainda enfrentar um “noviciado longo e
estafante”. É clara a má-vontade do sujeito-lírico: “Por isso, me libera antes que você se
complique, tira a mão de cima dos meus ombros, / Me deixa ir e segue o teu rumo”
300
.
Há, contudo, um momento de fraqueza, em que o sujeito quase se entrega. Pois,
embora sejamos avisados de que não há meio dele “emergir sob o teto de qualquer cômodo
de casa”, nem em livrarias, onde “feneço como um mudo, um imbecil, ou abortado, ou
morto”, ainda existe uma possibilidade desse encontro se dar “às escondidas em algum
bosque a título de julgamento, / ou atrás de uma pedra a céu aberto”. Desde que “nenhum
desavisado apareça milhas por perto” – ou ainda “navegando no mar, ou na praia do mar,
ou em alguma ilha tranqüila” –, “o beijo do novo marido”, o “camarada”, é “permitido”.
Assim, vão surgindo “exceções”:
Or if you will, thrusting me beneath your clothing,
Where I may feel the throbs of your heart, or rest upon your hip,
Carry me when you go forth over land or sea;
For thus merely touching you is enough – is best,
And thus touching you would I silently sleep and be carried eternally.
301
Voltamos, então, ao “toque”, tão importante para a poesia de “Song of Myself”. As
cenas descritas aqui são como que uma versão condensada do encontro, no seio da
natureza, entre indivíduo e alma (no qual a alma se deita sobre os quadris do poeta,
desabotoa sua camisa e faz sua língua atravessar o esterno para penetrar seu coração), ao
300
Therefore release me now, before troubling yourself any furtherLet go your hand from my shoulders, /
Put me down, and depart on your way”
.
(...).
Calamus 3
”.
Leaves of Grass 1860
. Em FOLSON, Ed. PRICE,
Kenneth M.
The Walt Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. Cf. “
Whoever You Are
Holding Me Now in Hand
”. WHITMAN, Walt.
Calamus
.
Op.Cit.
, 270.
301
Ou se você quiser, me coloca por sob as suas roupas, / Onde eu poderia escutar os batimentos de seu
coração, ou descansar sobre os seus quadris, / Me carrega quando você viajar por terra e por mar; / Pois tocar
você dessa forma é o suficiente – é o melhor, / Tocando você dessa maneira eu poderia dormir
silenciosamente e ser carregado eternamente”. (...).Calamus 3”. Leaves of Grass 1860. Em FOLSON, Ed.
PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. Cf. “
Whoever You
Are Holding Me Now in Hand
”. WHITMAN, Walt.
Calamus
.
Op.Cit.
, 271.
224
qual se aplica a “suficiência” do toque, que em 1855 faz o poeta “estremecer de encontro a
uma nova identidade”, e aqui, assumindo o ponto de vista do interlocutor, permite-lhe o
descanso no corpo do Outro, onde poderia ficar pela eternidade. Mas o sujeito não poderá
aplacar seu desejo, do qual já estamos convencidos e que remete, como já vimos, aos
antigos princípios de sua sociabilidade:
But these leaves conning, you con at peril,
For these leaves, and me, you will not understand,
They will elude you at first and still more afterward – I will certainly elude you,
Even while you should think you had unquestionably caught me, behold!
Already you see I have escaped from you.
302
“Sem uma coisa, tudo será inútil”: esse é o aviso inicial, retomado agora em relação
ao “toque”, que, como as “folhas”, é diretamente afetado pelo novo estado de coisas.
Ambos agora trazem “perigo” ao interlocutor, seja pela assunção de uma igualdade que se
manifesta no corpo (caso das “folhas”), seja pelos sentidos, que em uma ordem
absolutamente etérea já não são um bom índice de realização ou fracasso. EmNot
Heaving From this Breast Alone”, a adesividade não poderá existir “nos membros e nos
sentidos do meu corpo que o tomam e enganam continuamente”
303
. Nesse sentido, a
“aparência” marca uma diferença, um lapso impassível de “compreensão”, sendo, portanto,
índice da irracionalidade a que a matéria (em que se incluam as folhas e a figura do poeta)
está submetida. Consciente de sua impotência, resta ao sujeito a fuga, o isolamento e a dor
de um desejo de comunhão que não pode se realizar neste mundo, alheio à ordem que só
poderá ser celebrada sob a tutela da morte, à qual se atribui concerto e libertação às
expensas da representação.
302
Mas estas folhas enganosas podem colocar você em perigo, / Pois eu e estas folhas, você não vai nos
entender, / Elas vão iludir você de primeira e mais adiante – eu certamente vou te iludir, / Mesmo enquanto
você por ventura pensar que me pegou completamente, preste atenção! / Num piscar de olhos, terei
escapado”. (...).Calamus 3”. Leaves of Grass 1860. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The Walt
Whitman Archive (http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf. “Whoever You Are Holding Me Now in
Hand
”. WHITMAN, Walt. “
Calamus
Op.Cit.
, 271.
303
Calamus 6
”. Cf. “
Not Heaving from This Breast Alone
”. WHITMAN, Walt. “
Calamus
Op.Cit.
, 274.
225
Às dificuldades da correspondência do amor, somam-se os “segredos reveladores”
(“Aqui eu encubro e escondo meus pensamentos, eu mesmo não os exponho, / E ainda eles
me expõem mais do que todos os meus outros poemas”
304
) ou à existência de algo que
impede o encontro entre os amantes, “indômito e terrível”, e que “não ouso revelar, nem
mesmo nestas canções”
305
. Da separação forçada, ficarão ainda “as horas que demoram,
amargas e de coração pesado, / horas de solidão, quando me afasto para uma solitária e
infrequentada clareira, me sentando, deitando meu rosto sobre as mãos”
306
, não porque o
amado encontrou um novo amor ou simplesmente resolveu acabar com o relacionamento,
tópicos relativamente comuns da lírica amorosa. O que está por trás desses desencontros é
somente sua impossibilidade nesses “anos de areia movediça”
307
, para citar a imagem de
um de um poema de 1865, em que só resta ao poeta sangrar o próprio corpo
O drops of me! Tricke, slow drops,
Candid from me falling – drip, bleeding drops,
From wounds made to free you whence you were prision’d,
(...)
Stain every page – stain every song I sing, every word I say, bloody drops,
(...)
308
304
Calamus 44”. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The Walt Whitman Archive
(
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. Cf. “
Here the Frailest Leaves of Me
”. WHITMAN, Walt.
Calamus
Op.Cit.
, 283.
305
Calamus 36. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive
(http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf. Earth, My Likeness”. WHITMAN, Walt. “CalamusOp.Cit.,
284.
306
Calamus 9
”. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive
(
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. Cf. [
Hours continuing long
]. WHITMAN, Walt.
Supplementary
Poems:
Leaves of Grass [1860] from Calamus
.
Op.Cit.
, 687.
307
Cf. “Quicksand Years”. WHITMAN, Walt. Whispers of Heavenly Death. Op.Cit., 563.
308
Ó GOTAS
de mim mesmo! Pinguem, lentas gotas, / Caindo de mim cândidas – gotejando, gotas que
sangram, / Das feridas abertas para libertar vocês de onde estavam aprisionadas, / (...) / Manchem toda página
– manchem toda canção que canto, toda palavra que digo, gotas sangrentas, (...)”. “Calamus 15”. Em
FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. Cf.
Trickle Drops
”. WHITMAN, Walt.
Calamus
.
Op.Cit.
, 274.
226
como se a expiação da matéria enganosa, necessária para o encontro das almas e a
conseqüente formação de uma sociedade ordenada pelo amor, tivesse de começar com a
própria vida do sujeito. O encontro dentro deste mundo chega a ser simulado em algumas
oportunidades, quando o amor acontece furtivo e inesperado, evidenciando-se por uma
simples troca de olhares:
ONE
flitting glimpse through a interstice,
Of a crowd of workingmen and drivers in a bar-room, around the stove late of a
night – And I unremark’d seated in a corner,
Of a youth who loves me and whom I love, silently approaching and seating
himself near, that he may hold me by the hand;
A long while amid the noises of coming and going – of drinking and oath and
smutty jest,
There we two, content, happy in being together, speaking little, perhaps not a
word.
309
“De relance”, também notamos as condições da comunhão já vistas em outros
poemas da seção: um bar de trabalhadores em fim de noite e a agitação em torno, desviando
a atenção da multidão são elementos conhecidos. A questão está nessa remodelação do
anônimo (“you whoever you are”) que se aproxima sem aviso e para quem (isto é muito
importante) as palavras são dispensáveis. A palavra é matéria das mais atingidas por este
dolce stil’ nuovo. Em “Calamus”, elas já não serão mais as palavras do “orador”, perdendo
desse modo as funções didática, persuasiva e celebratória que definiam a poesia do “bardo
americano”; também deixam de ser as palavras que expressavam a identidade entre sujeito
e mundo (“o discurso idêntico à visão”). Sua função agora é a de desdizer o mundo e a
matéria, desvencilhar-se da concretude da resposta e do diálogo e remeter o leitor às
entrelinhas, ao “sangue” que, enfim, é imanência, não representação ou discurso, problema
309
UM
leve relance num interstício, / De uma multidão de trabalhadores e condutores num bar ao redor de
um braseiro tarde da noite – E eu discretamente sentado num canto, / De um jovem que me ama e que eu amo,
se aproximando em silêncio e se sentando perto, para que pudesse segurar a minha mão; / Um longo tempo
por entre os barulhos de entra e sai – de copos e pragas e sacanagens, / Lá nós dois, contentes, felizes por
estarmos juntos, falando muito pouco, talvez nem uma palavra”
.
Calamus 29
.
Cf.
A Glimpse
”.
WHITMAN, Walt.
Calamus
.
Op.Cit.
, 283.
227
de formação realmente novo para a poesia de Whitman, pois em nenhum outro momento
ela se abriu a uma hermenêutica. Essa, aliás, foi desde as primeiras linhas de “Song of
Myself” afastada e de tal modo que lhes retirar algo subjacente ou escondido configurava
uma espécie de traição, uma dificuldade crítica diante da honestidade”, da “clareza” e da
“verdade” de suas palavras, que pretensiosamente nomeavam e celebravam o mundo em
sua totalidade.
A sociedade nunca escapou à poesia de Whitman; mas ela lhe pertencia, quase
sempre, direta e textualmente, sendo, portanto, fundamental para o estabelecimento de
conceito e forma estética. Nesse sentido, a morte não é apenas “bela” quando vem das
folhas, mas configura, pela primeira vez, a beleza em chave moderna e romântica, o que
vem a ser o reduto último de um concerto que a sociedade não é capaz de prover, bem
como de um sujeito solitário, que só é capaz de configurar o mundo em sua própria
perspectiva. Presentes esses elementos, trata-se ainda de uma poesia impotente diante da
crise, sendo essa impotência parte da formação desse sujeito-lírico em sua cultura e
conjuntura locais, constituindo-se dessa forma o particular da realização nacional que
jamais desapareceu do horizonte de Whitman.
De acordo com o que temos mostrado, arriscamos dizer que os poemas de
Calamus” são uma realização ímpar da poesia lírica norte-americana, que dada a situação
limite, não chegou em outras oportunidades a esse nível de complexidade e de concisão de
problemas. Em vista da dissolução política, Whitman toma o caminho do amor e da lírica
para transformá-los na comunhão possível, salvaguardando na solidão do sujeito a
integridade de um princípio (o “mito Americano”) que, à primeira vista, segundo havíamos
visto pela formação púbica do poeta, lhe era absolutamente contrário. É comum encontrar
esse princípio relacionado à “cidade turbulenta” que os atuais Estudos Culturais
destrincham termo a termo, fazendo de Leaves of Grass, ou o “colossal Walt Whitman”
desenhado por John Burroughs em fins do XIX, a própria alegoria norte-americana,
transferindo os pontos de tensão literária da estética para práxis copiosa dos movimentos
sociais de seu tempo e seu método de estudo, que lhes permite criar os efeitos de um
pluralismo, diálogo e inquietude onde, a bem da verdade, eles não existem
310
. Talvez a
310
Devo a sugestão desta crítica, que há pelo menos dois anos pedia formulação, a BERCOVITCH (“
Music of
America
”.
Op.Cit.
, 19).
228
cidade que melhor encontre os objetivos literários de Whitman seja esta, a sonhada cidade
dos amigos:
I DREAMED
in a dream I saw a city invincible to the attacks of the whole of the
rest of the earth,
I dreamed that was the new city of friends,
Nothing was greater there than the quality of robust love – it led the rest,
It was seen every hour in the actions of the men of that city,
And in all their looks and words.
311
Estamos diante do mito Americano transposto à guerra e reduzido a seus mínimos
elementos: a cidade formada pelo contrato espiritual de um “amor robusto”, disciplinador
das ordens pública e privada (“visto a toda hora nas ações dos homens daquela cidade / em
seus olhares e palavras”), que tornam os cidadãos “amigos” a despeito (e também por
causa) dos ataques de todo o resto da Terra. Contornando tudo, o sonho de um sujeito que
vaza pela solidão da lírica as ruínas ameaçadoras daquilo que seria a consumação desse
ideal. Sitiada, mas invencível, eis a América que escuta o rufar dos tambores.
311
SONHEI
num sonho que via uma cidade invencível diante dos ataques de todo o resto da Terra, / Sonhei
que essa era a nova cidade dos Amigos, / Nada era maior ali do que a qualidade do amor robusto, ele guiava
todo o resto, / E era visto a todo momento nas ações dos homens daquela cidade, E em todos os olhares e
palavras”. “
Calamus 34
”. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive
229
3
OVER the carnage rose prophetic a voice,
Be not dishearten’d, affection shall solve the problems of freedom yet,
Those who love each other shall become invincible,
They shall yet make Columbia victorious
(“Over the Carnage Rose Prophetic a Rose”)
A Guerra Civil Norte-Americana, também chamada Guerra de Secessão, ocorrida
entre os anos de 1861 e 1865, se torna um acontecimento historicamente decisivo em
termos locais e mundiais pela contemplação de quaisquer de pontos-de-vista.
Politicamente, ela extravasa mais de meio século de conflitos regionais e põe às claras a
fragilidade do consenso que havia redigido a Constituição da república diante de
transformações sociais responsáveis por uma cisão irrecuperável no território norte-
americano – finalmente, falarão mais alto as diferenças populacionais e demográficas,
diretamente ligadas à organização livre e senhorial das sociedades estaduais.
Economicamente, ela transformará um convívio entre estruturas escravagistas e liberais,
regionalmente limitadas e relativamente interligadas de modo quase neo-colonial, em uma
questão expansionista, causa do Norte industrial, que inverteu em pouco mais de 50 anos a
representatividade regional
312
e pretendia usar o poder federal para se estender
indiscriminadamente pelo vasto território conquistado a Oeste e pelo próprio Sul do país.
Militarmente, a guerra norte-americana vê nascer as primeiras máquinas de morte
massificada (seu principal rebento é a metralhadora), que fazem de um conflito local um
dos mais sangrentos da história mundial, abrindo caminho para a tecnicização da guerra
(particularmente abominável no decorrer das duas Grandes Guerras), da qual os norte-
americanos serão reconhecidos pioneiros e exportadores da tecnologia, por fim, formando
um dos principais e mais influentes setores de sua indústria. Estávamos diante de uma
(
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. Cf. “
I Dream’d in a Dream
”. WHITMAN, Walt. “
Calamus
Op.Cit., 284.
312
À época da revolução e da constituição da república, a maior parte da população norte-americana se
concentrava no Sul do país. Em um contexto de representação proporcional, tal diferença se traduzia em
poder no Congresso. Com o desenvolvimento da indústria no Norte e o aumento populacional baseado,
sobretudo, na imigração e naturalização dos contingentes, que não eram demograficamente diferenciados dos
brancos como os negros escravos (que para efeito de representatividade, equivaliam a 3/5 de um branco), a
ordem se inverte.
230
cidade sitiada por exércitos de todo o mundo, contra os quais só havia o “amor invencível”:
seu “maior camarada” cantará as armas e os homens dessa guerra?
A participação de Whitman na guerra pode ser descrita de um modo relativamente
simples. Sendo homem de paz, não se alistou, atitude que, na família, coube ao irmão
George, que ingressou ainda em 1861 no 13º Regimento do Brooklyn e lutou ao lado das
tropas Unionistas sob o comando de inúmeros generais (entre eles Grant e Sherman) em
importantes batalhas, até aparecer em uma lista de feridos da batalha de Fredericksburg, no
New York Tribune em setembro de 1862 O poeta, que até então estava trabalhado como
freelancer em jornais do Brooklyn, acompanhando com particular entusiasmo eventos
diplomáticos, como a visita dos príncipes do Japão a Nova York, em Junho de 1861, (que
lhe inspiraria os versos de “A Broadway Pageant”, poema que comemora “o encontro do
Ocidente com o Oriente”) e com alguma preocupação as sucessivas derrotas do Norte em
batalha, parou absolutamente tudo o que fazia para procurar o irmão ferido em algum dos
hospitais de Guerra. Viajou primeiro à Filadélfia. Lá, só conseguiu ser assaltado. Sem
recursos e após três dias de viagem, chegou a Washington. Ali finalmente encontrou o
irmão sem ferimentos graves e por lá ficou, trabalhando como voluntário ao lado de
enfermeiros e médicos e auxiliando emocionalmente os feridos até o fim da Guerra
313
.
Esse brevíssimo resumo dos dias de Whitman na Guerra importa por compor as
primeiras linhas de uma narrativa paralela à poesia, que começa a ser escrita nos primeiros
anos do postbellum, colocando os cinco anos da Secessão como ponto central de todo o
pensamento poético de Whitman (“this is the very centre, circunference, umbilicus, of my
whole career”, dirá a Horace Traubel
314
) para acompanhar e reforçar a persona do poeta e
as realizações de seu livro, que a partir dessa experiência passará por uma séria revisão,
muitas vezes com simples objetivo de atualizar os poemas à luz desses anos. “My book and
war are one” não é uma frase feita no calor da hora, mas o resumo do projeto que, após a
desistência de estabelecer Drum-Taps (1865) e sua continuação elegíaca, Sequel of Drum-
Taps (1867), como um segundo volume de poemas, encerrando Leaves of Grass como
registro poético do antebellum, toma os recursos do poeta durante as duas últimas décadas
313
REYNOLDS, David. Op.Cit., 406-410.
314
SCHMIDGALL, Gary (ed.).
Intimate with Walt: Selections from Whitman’s Conversations with Horace
Traubel 1888-1892
, 179.
231
de sua vida. O termo de nascimento do “Good Gray Poet”, tributário desses anos de
conflito, e as formas finais dadas aos conflitos do antebellum, entre eles as tensões entre
mito e país, democracia e capital, liberdade e escravidão serão os assuntos com que
pretendemos encerrar esta dissertação.
Segundo críticos e biógrafos, a guerra para Whitman tinha, em primeiro lugar, efeito
expurgatório. Como para muitos norte-americanos, a começar por Jefferson, o pecado da
escravidão
315
, que Whitman entendia (apesar de todas as contradições de seu pensamento
racial) como uma doença no corpo do Estado, cobraria o sangue e a liberdade de seus
homens nas formas de uma justiça divina. A “interferência sobrenatural” será confirmada
no segundo discurso de Lincoln à República, já em face da Guerra: “Se nós devemos supor
que a Escravidão Americana é uma dessas ofensas que, na providência de Deus, precisa ser
posta a termo, mas que, tendo continuado para além de Seu ultimato, Ele agora quer
extirpar, e Ele o dá ao Norte e ao Sul, esta terrível Guerra, como grito devido àqueles sobre
quem a ofensa caiu, hemos nós de decidir daí qualquer afastamento daqueles atributos
divinos que os crentes de um Deus Vivo sempre ligaram a Ele?
316
. Num sentido mais
abrangente, a guerra também falava ao fim das contradições que haviam conduzido o poeta
“à morte e ao amor” dos poemas da adesividade: expurgar, portanto, também significava a
purificação da política, até então conduzida por homens pérfidos, e da sociedade civil,
condescendente com a desigualdade e a corrupção. Se os norte-americanos ainda fariam
justiça a America, a guerra diria.
Por outro lado, a guerra oferecia a Whitman, pela primeira vez, um tema de
abrangência realmente nacional. Até então, tudo o que havia lhe proporcionado uma arte
poética – a democracia, o pensamento de liberdade, radical e reformista, os tipos
americanos, o sexo, a ciência e mesmo a adesividade – era absolutamente tributário dos
debates incitados em meios urbanos muito específicos, como Brooklyn, Nova York e, para
ir um pouco mais longe, Boston; apesar de celebrar a vida num campo maior do que sua
Long Island natal, de pequenas propriedades, arrolar inúmeros tipos de fronteira e citar
extensivamente regiões e lugares de todo o mundo, seu conhecimento era enciclopédico e
sua experiência a de um jornalista provinciano, que não havia conhecido mais de seu país
315
ERKILLA, Betsy.
Op.Cit.
, 190.
316
Idem
, 191.
232
do que uma breve estadia de três meses em Nova Orleans, cortando o país de norte a sul e
presenciando modos de vida que só conhecera no lugar-comum das revistas, é certo; mas
curta e pouco representativa para quem pretendia cantar, tanto quanto a nação, o globo
terrestre. O problema, contudo, é que sua União não comportava mais desejo de síntese e
consenso. Ela se tornava causa de um dos lados da guerra.
Assim, a “experiência de causa da América” está entre os elementos que os novos
poemas, as revisões da poesia antiga e, como reforço paralelo, a escrita biográfica
pretendem promover. Disso decorreram dois pontos importantes, que são a perspectiva do
poeta em relação à Guerra, tomada desde o início com um significado inequívoco, e os
problemas inerentes ao desejo de dar forma poética à experiência do conflito.
Quanto ao primeiro ponto, a própria idéia de que a Guerra expurgaria o mal e
unificaria como tema o país já dá conta do posicionamento do poeta em relação ao conflito.
Os Estados Unidos, como o poeta devia saber, não nasceram da união de duas regiões
distintas, o “Norte” e o “Sul”. Aliás, foi do esforço da elite sulina e de homens como
Washington, Jefferson e Madison, todos oriundos da Virgínia, que o movimento pela
independência das treze colônias ganhou unidade e consolidou uma identidade americana
baseada ainda no esforço patriótico contra britânicos e legalistas, esses presentes em todas
as colônias sem distinção; mesmo nos chamados Anos Federalistas (1789-1801), quando a
Constituição já ratificada abre caminho para leituras de interesse regional, em que já se
prenuncia a tendência centralizadora dos estados do Norte, os estados sulinos serão
defensores da restrição do poder federal, preservando os direitos residuais reservados a
cada estado, e críticos no que concerne a partidarismos e regionalismos, como depois
veremos pela vitória de Jefferson contra os federalistas nas eleições de 1800
(desconsiderando-se aqui as contradições de sua administração) e a formação de um forte
sentimento nacionalista durante a Guerra contra a Inglaterra, em 1812.
O único vínculo realmente forte entre os estados do Sul, capaz de distingui-los do
Norte do país, era o escravo, que com o latifúndio e a monocultura formava a grande
unidade produtora, característica da região. Mais do que uma herança dos tempos
coloniais, que a “era de liberdade haveria de extinguir gradualmente”, parafraseando aqui o
pensamento de Jefferson e outros políticos do período, a escravidão integrava o
funcionamento de uma sociedade que, à maneira de outras regiões escravocratas (para não
233
dizer de pronto – a nossa), se manteve à margem do desenvolvimento industrial e urbano,
fortalecendo laços aristocráticos em um pequeno grupo de proprietários, cujo poder
dependia da demanda estrangeira por matérias-primas. Foi, portanto, as sucessivas ameaças
desse modo de organização social, que cresceram no Norte do país quase que na mesma
proporção em que o território da União se estendia em direção ao Oeste, os responsáveis
pela formação de um sentimento de distinção entre esses Estados, que não só contradiziam
a perspectiva progressista dos que acreditavam no fim gradual da escravidão, como fizeram
aumentar a necessidade de mão-de-obra escrava a partir da invenção do descaroçador de
algodão, que permitia a ampliação das áreas de produção. Fica claro, portanto, o interesse
do Sul em estender a escravidão para os estados ingressos na Federação, como o Missouri,
o Maine e a Lousiana, que abriram a polêmica sobre a extensão da escravidão para os
territórios, criando a necessidade de delimitar uma fronteira para instituição (Compromisso
do Missouri, 1820) e, formando, consequentemente, uma idéia de identidade para a região.
Essa identidade será ameaçada e defendida a partir dos anos de 1830 em várias
ocasiões
317
, que formarão uma tensão regional crescente. Seu ápice será a eleição de
Abraham Lincoln (1860), candidato do Norte apoiado por abolicionistas, religiosos,
trabalhadores e industriais que viam o fim da escravidão como uma necessidade
humanitária, religiosa e econômica, o que vem a ser: o fim de uma incongruência política
histórica; a vitória final de Deus contra os pecaminosos fazendeiros sulinos; o elogio final
do trabalho livre como fundamento da América; e, principalmente, o enfraquecimento
definitivo do poder decisório da região no Congresso, abrindo caminho para um poder
federal condescendente com a ampliação da indústria nortista pelo território norte-
americano. No entanto, a vitória de Lincoln não foi exatamente o catalisador da
transformação de uma identidade regional em outra, propriamente nacional. A consulta aos
documentos da Secessão mostra, como principal argumento do desligamento da União, a
inconstitucionalidade das pressões do Poder Federal. Fica clara a idéia de abuso de poder
317
Em virtude da publicação em Nova York do primeiro número do Libertador, de William Lloyd Garrison
(1831); no levante de escravos liderados por Nat Turner em Southampton County (Virgínia, 1831); na
promulgação da lei de tarifas do governo de Andrew Jackson, que levou a Carolina do Sul a pedir a saída da
União sob o argumento de que a lei projetava o início de uma exploração econômica do Sul em nome dos
interesses nortistas e federais (Crise da Revogação, 1832-1833).
234
pelo discurso do primeiro e único presidente dos Estados Confederados da América,
Jefferson Davis, proferido no Alabama em Fevereiro de 1861:
The declared purposes of the compact of Union from which we have withdrawn
were to establish justice, insure domestic tranquillity, to provide for the common
defence, to promote the general welfare, and to secure the blessings of liberty for
ourselves and our posterity; and when in the judgment of the sovereign States
now comprising this Confederacy it had been perverted from the purposes for
which it was ordained, and had ceased to answer the ends for which it was
established, an appeal to the ballot box declared that so far as they were
concerned the government created by that compact should cease to exist. In this
they merely asserted a right which the Declaration of Independence of 1776
defined to be inalienable. Of the time and occasion for its exercise, they, as
sovereign, were the final judges each for itself. The impartial and enlightened
verdict of mankind will vindicate the rectitude of our conduct, and He who knows
the hearts of men will judge the sincerity with which we have labored to preserve
the government of our fathers, in its spirit and in those rights inherent in it, which
were solemnly proclaimed at the birth of the States, and which have been
affirmed and reaffirmed in the Bills of Rights of the several States. When they
entered into the Union of 1789, it was with the undeniable recognition of the
power of the people to resume the authority delegated for the purposes of that
government whenever, in their opinion, its functions were perverted and its ends
defeated. By virtue of this authority, the time and occasion requiring them to
exercise it having arrived, the sovereign States here represented have seceded
from that Union, and it is a gross abuse of language to denominate the act
rebellion or revolution. They have formed a new alliance, but in each State its
government has remained as before. The rights of person and property have not
been disturbed. The agency through which they have communicated with foreign
powers has been changed, but this does not necessarily interrupt their
international relations.
318
318
“As razões declaradas do compacto da União do qual nos afastamos eram as de estabelecer justiça, garantir
a tranquilidade doméstica, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral e assegurar as bênçãos da
liberdade para nós mesmos e a posteridade; e quando no julgamento dos Estados soberanos agora compondo
esta Confederação, ela pervertia as razões de sua ordenança e parava de responder aos fins pelos quais se
estabelecia, um apelo à urna eleitoral declarou que tanto quanto lhes concernia [aos Estados Confederados] o
governo criado por aquele compacto deveria acabar. Nisto eles apenas insistem em um direito que a
235
Como se percebe, a Confederação preserva a palavra dos fundadores e a memória
de 1776; os corruptores de sua autoridade são aqueles que chamam os confederados de
“rebeldes” ou “revolucionários” e, segundo “os inalienáveis direitos do povo”, perverteram
os princípios que, em 1789, formaram a União. No discurso de Davis, do qual extraímos o
segundo parágrafo, não há referência à escravidão; no entanto, todas as cartas de
justificativa secessional têm numa possível intervenção abolicionista, ou ameaça à
instituição, seu principal argumento, como colocam os delegados da Carolina do Sul,
defensores da escravidão como responsabilidade local a ser respeitada pelos demais
membros da União (no melhor estilo constitucional), os do Mississipi, que ainda apelavam
à ciência (o branco não teria condições naturais de trabalhar com afinco em regiões
tropicais para o bem-estar da União) e da Geórgia, que apelavam para a história das
civilizações (abertamente favorável à realização norte-americana) para justificar a
“instituição peculiar”. Não há liberdade sem escravidão, diria com uma justiça quase
dialética um senador do Mississipi. Liberal ou escravocrata, os leitores da Constituição
norte-americana, fossem, a essa altura, unionistas ou confederados, estavam diante de um
documento vazio, capaz de justificar atos contraditórios pelo mais simples jogo retórico.
Secessão ou cisma, a guerra fincava suas garras também na interpretação da palavra
fundadora.
Declaração da Independência de 1776 definia ser inalienável. Do tempo e da ocasião para seu exercício, eles,
como soberanos, eram os juízes finais de si mesmos. A imparcialidade e o esclarecido veredito dos homens
irá reivindicara retidão de nossa conduta e Ele que conhece os corações dos homens irá julgar a sinceridade
com que nós temos trabalhado para preservar o governo de nossos pais, em seu espírito e em seus direitos a
ele inerentes, que foram solenemente proclamados ao nascimento dos Estados e que têm sido afirmados e
reafirmados na Declaração dos Direitos de muitos Estados. Quando eles entraram na União em 1789, era com
o inegável reconhecimento do poder do povo de retomar a autoridade delegada às propostas daquele governo
caso, em sua opinião, suas funções fossem pervertidas ou seus fins derrotados. Em virtude dessa autoridade,
tendo chegado o tempo e a ocasião requerentes a esse exercício, os Estados soberanos aqui representados se
desligam daquela União, e é um abuso grosseiro de linguagem denominar o ato rebelião ou revolução. Eles
formam uma nova aliança, mas em cada Estado seu governo permanece o mesmo. Os direitos individuais e de
propriedade não foram atingidos. A agência através da qual eles se comunicam com poderes estrangeitos
mudou, mas isto não necessariamente interrompe suas relações internacionais”. Em
http://www.civilwarhome.com/davisinauguraladdress.htm
236
Na luta pela posse dos princípios de 1776, Whitman não poderia deixar de declarar
sua posição, saudando a noite em que Manhattan foi acordada pelo rufar dos tambores:
A shock electricthe night sustain’d it;
Till with ominous hum, our hive at day-break pour’d out its myriads.
From the houses then, and the workshops, and through all the doorways,
Leapt they tumultuousand lo! Manhattan arming.
To the drum-taps prompt,
The young men falling in and arming;
The mechanics arming, (the trowel, the jack-plane, the blacksmith’s hammer, tost
aside with precipitation;)
The lawyer leaving his office, and armingthe judge leaving the court;
The driver deserting his wagon in the street, jumping down, throwing the reins
abruptly down on the horses’ backs;
The salesman leaving the storethe boss, book-keeper, porter, all leaving;
Squads gather everywhere by common consent, and arm; (...)
319
Canção que celebra a cidade e seus trabalhadores, “First O Songs For a Prelude
transmite-nos a euforia do momento de eclosão da Guerra e a agitação de homens e
mulheres mobilizados. Podemos, já neste primeiro poema, notar uma das diretrizes formais
da seção, que se apóia na revitalização de antigos modos de composição (inicialmente, o
catálogo volta a reanimar os panoramas urbanos desativados na lírica de “Calamus”) a
partir do uso extensivo de ritmos tradicionais (como os jambos, predominantes nesta
passagem e ao longo de todo o poema), que no “Prelúdio” tem, por um lado, a clara função
319
“Um choque elétrico – a noite o sustém; / Um burburinho geral, nossa colméia no nascer do dia despeja
suas miríades. // Das casas, então, e das oficinas, e por todas as portas, / Eles pularam em tumulto – e Ó lá!
Manhattan se armando. // Prontos ao rufar dos tambores; / Os rapazes vindo e se armando; / O advogado
deixando seu escritório, e se armando – o juiz deixando a corte;/ O condutor deixando sua carroça na rua,
pulando, jogando suas rédeas abruptamente nas costas dos cavalos; / O vendedor deixando a loja – o chefe, o
bibliotecário, o porteiro, todos deixando; / Pelotões se reunindo em todos os lugares em consentimento
comum, e se armam; (...)”.Drum-Taps”. Leaves of Grass 1867. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The
Walt Whitman Archive (http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf. WHITMAN, Walt. “First O Songs for a
Prelude”. WHITMAN, Walt. “Drum-Taps”. Op.Cit., 418.
237
de mimetizar a agitação marcial da cidade e, por outro, de dar um tom adequado ao tema,
elevado, épico. Por trás dessa agitação, note-se também o papel equalizador da guerra, que
unirá os extremos da sociedade (juízes e artesãos; advogados e condutores de carruagem)
em defesa daquilo que, outrora, necessitou de argumentos místicos para se legitimar numa
sociedade fundamentalmente desigual e fragmentária. Nesse sentido, a guerra também
materializará aos olhos do poeta os “filhos de sua democracia utópica”, em que homens,
soldados, e mulheres, enfermeiras, se engajam igualmente, formando uma “raça armada
que avança” para viver nos acampamentos “uma vida masculina”, relembrando aqui a
adesividade de Calamus”. Mesmo a parada militar, que em “A Boston Ballad (1854)
exibia as marcas de um poder despótico, será reabilitada:
The tumultuous escortthe ranks of policemen preceding, clearing the way;
The unpent enthusiasmthe wild cheers of the crowd for their favorites;
The artillerythe silent cannons, bright as gold, drawn along, rumble lightly
over the stones;
(Silent cannonssoon to cease your silence!
Soon, unlimber’d, to begin the red business;)
All the mutter of preparation—all the determin’d arming;
The hospital servicethe lint, bandages, and medicines;
The women volunteering for nursesthe work begun for, in earnestno mere
parade now;
War! an arm’d race is advancing!the welcome for battleno turning away;
War! be it weeks, months, or yearsan arm’d race is advancing to welcome it.
Mannahatta a-march!and it’s O to sing it well!
It’s O for a manly life in the camp!
320
320
“A tumultuada escolta – as fileiras de policiais na frente, abrindo caminho; / O entusiasmo incontido – as
selvagens saudações da multidão para seus favoritos; / A artilharia – o canhão silencioso, brilhante como
ouro, puxado ao longo da rua, fazendo um leve barulho sobre as pedras; / (Canhões silenciosos – logo irá
acabar seu silêncio! Logo, armado, para começar o serviço vermelho;) / Toda a mudez da preparação – todos
determinados se armando; / O serviço de hospital – as bandagens, os medicamentos; / As mulheres
voluntárias como enfermeiras – o trabalho iniciado, na seriedade – não uma mera parada agora;/ Guerra! Uma
raça armada está avançando - saudações à batalha – sem volta; / Guerra! Sejam semanas, meses ou anos –
uma raça armada está avançando para saudá-la. // Manhattan marchando! E é Ó para cantá-la como se deve! /
É Ó para uma vida masculina no acampamento!”. “
Drum-Taps
”.
Leaves of Grass 1867
. Em FOLSON, Ed.
238
O “Prelúdio” traz um sentimento de euforia chauvinista que, certamente, era
partilhado por muitos cidadãos norte-americanos, simplesmente ignorantes da duração e da
carnificina que iriam caracterizar conflito. Muitos poetas, do Norte e do Sul, saudaram a
guerra com o mesmo entusiasmo e violência, que não se devia apenas às rivalidades
exaltadas, mas ao sentimento de nobreza e cavalheirismo que ainda conferia aura
ritualística à guerra; no caso do “Prelúdio”, fica evidente a preterição do negócio privado e
dos afazeres domésticos (no caso das mulheres) em nome das armas, o que também aparece
no que sabemos ser o primeiro poema da seção a ter sido composto, “Beat! Beat! Drums!”:
BEAT! beat! drums!Blow! bugles! blow!
Through the windowsthrough doorsburst like a ruthless force,
Into the solemn church, and scatter the congregation;
Into the school where the scholar is studying;
Leave not the bridegroom quietno happiness must he have now with his bride;
Nor the peaceful farmer any peace, plowing his field or gathering his grain;
So fierce you whirr and pound, you drumsso shrill you bugles blow.
321
Segundo consta, o poema teria sido composto após o surgimento das primeiras
notícias da derrota das tropas unionistas em Bull Run e lido em voz alta no restaurante
boêmio Pfaff’s, correndo de lá quase que simultaneamente às prensas do Boston Evening
Transcript, do New York Leader e da Harper’s Monthly Magazine
322
. Mais uma vez, a
guerra invadirá com “força irresistível” casas, igrejas e escolas e acabará com a paz de
noivos e fazendeiros, recuperando o trânsito entre campo e cidade; a aliteração explosiva do
PRICE, Kenneth M. The Walt Whitman Archive (http://www.whitmanarchive.org/works/). WHITMAN, Walt.
First O Songs for a Prelude”. WHITMAN, Walt. “Drum-Taps”. Op.Cit., 418.
321
Bater! Bater! Tambores! – Soprar! Cornetas! Soprar! / Através das janelas – através das portas –
explodindo como força irresistível, / Para dentro da igreja solene, dispersa a congregação, / Na escola onde o
professor está estudando, / Não deixem o noivo quieto – ele não tem paz com sua noiva, / Nem o fazendeiro
pacífico paz alguma, arando seu campo ou colhendo seus grãos; / Vocês tão corajosos sua vibração e sua
explosão vocês, tambores – tão agudas cornetas soprem”. “
Beat! Beat! Drums!
”.
Leaves of Grass 1867
. Em
FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
.
WHITMAN, Walt. “
Beat! Beat! Drums!
”. WHITMAN, Walt. “
Drum-Taps
”.
Op.Cit.
, 419.
239
primeiro verso, refrão para as duas estrofes seguintes, regularmente formadas de sete versos
de ritmo pesado (formado basicamente em anapestos) como o do “Prelúdio”, fará ainda
com que barganhas, advogados e especuladores deixem seus ofícios para vestir a cor das
tropas, o azul da farda do soldado que personificará o ano de 1861 no poema de mesmo
nome (“Eighteen Sixty One”), que dispensa “versos sentimentais de amor” ou “poetinhas
sentados à mesa balbuciando melodias de piano”, avançando por sobre as pradarias do
Illinois e de Indiana, correndo em direção do Oeste ou descendo aos rios Tennessee e
Cumberland. O ano de 1861, que canta pela boca dos canhões e pela voz determinada de
seus combatentes, não só recupera o corpo do Estado, que a morte e a ilusão haviam
afastado, como dá justificativa formal à poesia que Whitman cultivava desde os anos do
antebellum.
Tal justificativa não elimina, desses poemas, o incômodo caráter propagandista, que
tem desdobramentos fortes na seção, como em seu maior poema, o dramático “Song of the
Banner at the Daybreak”, que produz um diálogo entre quatro partes, o poeta, a bandeira, o
pai e a criança, cada qual caracterizada segundo um posicionamento diante da guerra: ao
poeta, caberá a visão absoluta da cena e a canção de versos que imitam balas e “derramam
rios de sangue, cheios de volição, cheios de júbilo”; a bandeira, por sua vez, ouvirão a voz
do “bardo” e o convocarão, junto com a criança, curiosa a respeito do que diz a bandeira e o
poeta, “para voar nas nuvens e nos ventos comigo e brincar na luz desmedida”; ao pai da
criança, por outro lado, representará um papel pouco nobre diante da causa urgente. Assim,
em resposta às perguntas do filho sobre o que chama sua atenção no céu:
Father
Nothing my babe you see in the sky
And nothing at all to you it says – but look you my babe,
Look at this dazzling things in the houses, and see you the money-shops opening,
And see you the vehicles preparing to crawl along the streets with goods;
These ah these, how valued and toil’d for these!
How envied by all the earth.
323
322
The Better Angel: Walt Whitman in the Civil War, 42.
323
“Nada meu filho você vê no céu, / Nada a você ela diz – mas olhe, meu filho, / Olhe para essas coisas
deslumbrantes nas casas, e veja os bancos abrindo, / E veja os veículos se preparando para se arrastar ao longo
das ruas com bens; / Estas ah estas coisas, quão valiosas e trabalhadas! Como são enviadas para toda a
240
Reserva ao pai o papel do homem que se nega a interromper seus negócios e
convida o filho a admirar a riqueza da cidade, que segue sua rotina e enriquece a despeito
do sangue que corre pátria afora. Apesar do pouco destaque que se a essa personagem,
que o poema propagandista trata de descartar junto à paz (o tempo é de guerra e “nenhum
dinheiro é tão precioso quanto a bandeira”, dirá o poeta), ela representa muito mais do que
um tipo materialista que, se não olha para a guerra com desinteresse, tem o peito de
desgosto ao ver o filho (“Filho meu você me enche de angústia, (...) / Pouco você sabe
deste dia, e depois dele, para sempre, / Ele não trará ganhos, só riscos e destruição para
todas as coisas, / Ademais, ficar nos campos de batalhas – e Ó, essas guerras! – o que você
tem a ver com elas?”) absolutamente convencido da causa do poeta, que como a da
bandeira, assinala “o terror e a carnificina” necessários. Como o pai, a indústria do Norte
parece ter ignorado os anos da guerra, não somando grandes perdas ao longo do conflito:
embora sua mão-de-obra tenha ficado mais cara e problemática – em que se conte o início
da organização sindical de trabalhadores e as greves, bem como o recrutamento (às vezes
chamada para a contenção de trabalhadores em fúria) e a interrupção dos fluxos migratórios
–, e a inflação tenha acometido os mercados do Norte (claro – longe da escala com que se
abateu sobre o Sul), setores ligados à produção de carvão, aço (relacionada ao setor de
armamentos e ferrovias) e tecidos mantiveram (senão aumentaram) as taxas de crescimento
do antebellum, contando ainda com o fim de uma regulamentação regional pesada e a
ampliação de seus mercados em escala nacional, preparando-se assim para o boom da
década de 1870, que não conheceu concorrentes internos na chamada Gilded Age, era dos
grandes monopólios.
Ainda no âmbito da poesia de propaganda, Whitman trouxe a “Drum-Taps” a voz
dos veteranos da Revolução e a incongruência de princípio dos “rebeldes”, argumentos que,
como vimos, serviram os confederados para do mesmo modo legitimar suas posições.
Construindo a continuidade entre os projetos unionistas e a Revolução de 1776 em “The
Centennarian’s Story”, o poeta constrói um diálogo entre um “voluntário de 1861” e o
Terra!”. “Song of the Banner at the Daybreak, 6”. Leaves of Grass 1867. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth
M.
The Walt Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
. WHITMAN, Walt. “
Song of the
Banner at the Daybreak
”. “
Drum-Taps
”.
Op.Cit.
, 422.
241
velho combatente da Guerra da Independência, que assistindo à preparação das tropas
yankees no Brooklyn, rememora a antiga batalha que se deu naquelas terras (a primeira de
toda a guerra revolucionária), quando lutou ao lado de soldados da Virgínia e de Maryland
(Estados Confederados) sob o comando de Washington contra as tropas inglesas, que
saíram da batalha vitoriosas. A retirada do General é testemunhada pelo veterano:
I saw him at the river-side,
Down by the ferry, lit by torches, hastening the embarcation;
My General waited till the soldiers and wounded were all pass’d over;
And then, (it was just ere sunrise,) these eyes rested on him for the last time.
Every one else seem’d fill’d with gloom;
Many no doubt thought of capitulation.
But when my General pass’d me,
As he stood in his boat, and look’d toward the coming sun,
I saw something different from capitulation.
324
A morte em batalha do soldado centenário, convocado para a relação entre a
Independência – causa da União – e atuais confederados, ganhará termos ainda mais
explícitos quando a Virgínia é personificada como um soldado que segura “a faca insana
contra a Mãe de Tudo” (a União), que quer saber do “Rebelde” (é o que o poeta, irônico,
“parece ouvir”) o que o leva a matar aquilo que ele próprio “se prontificou a defender para
sempre”
325
. “Virginia – the West” (poema tardio, publicado somente em 1872) dá uma boa
mostra da composição temática desses poemas de propaganda nortista, sempre baseados na
324
Eu o vi às margens do rio, / Descendo pela balsa, iluminado por tochas, apressando a embarcação; / Meu
General esperou até que todos os soldados e feridos tivessem atravessado / E então, (já estava nascendo o
dia), estes olhos o viram pela última vez. // Todos os demais pareciam cheios de tristeza, Sem dúvida muitos
pensavam em capitular. // Mas quando meu General passou por mim, Enquanto se erguia em seu bote e
olhava para o sol que nascia, Eu vi algo diferente da capitulação”. “The Centennarian’s Story”. Leaves of
Grass 1867. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The Walt Whitman Archive
(http://www.whitmanarchive.org/works/)WHITMAN, Walt. “The Centennarian’s Story” . EmDrum-Taps”.
Op.Cit.
, 434.
325
Cf. “
Virginia – The West
”. WHITMAN, Walt. “
Drum-Taps
”.
Op.Cit.
429.
242
figuração arrebatadora e violenta que encontra sua síntese em “Rise O Days from your
Fathomless Deeps
326
, no qual o poeta percorre seus anos de formação junto à Natureza
(“Durante muito tempo devorei o que a Terra ofereceu a minha alma voraz e ginasticada /
Durante muito tempo percorri as florestas do Norte e assisti às precipitações do Niagara”)
para reencontrá-la passional e virulenta. São mares agitados, escuridão, nuvens e
relâmpagos que mostram o avanço da Democracia “com desesperado e vingativo rosto”,
pronta a “desferir seu golpe” contra um mundo que enchia o poeta de “dúvidas” e o
“satisfazia pela metade”.
Se, por um lado, Whitman chega à reformulação das relações primordiais entre
Natureza e Democracia a partir da experiência expurgatória e renovadora da guerra, por
outro a perspectiva apocalíptica desse conjunto de poemas propagandistas, cujo júbilo só se
equipara ao sangue e à morte, parece bastante adequada às posições extremistas do governo
da União, liderado por Lincoln. Passados quase dois anos do conflito, a administração de
Lincoln tomava medidas bastante ofensivas às liberdades individuais dos cidadãos do
Norte: sem aprovação do Congresso, aumentou o contingente do exército da União; criou o
primeiro imposto sobre renda da história norte-americana; tornou obrigatório o alistamento;
e, talvez sua medida mais drástica, proibiu o hábeas corpus no período de Guerra para
facilitar a prisão daqueles que eram acusados de traição à União, como os chamados
Copperheads (ou Peace Democrats, dependendo do ponto de vista) que, se não apoiavam
diretamente a causa confederada (temendo, entre outras coisas, a abolição da escravatura e
a migração de negros para o Norte), pelo menos tentavam, fosse no Congresso, fosse por
meio de organizações secretas, dissuadir os unionistas de uma guerra que já estava
alcançando baixas tremendas. Mesmo Lincoln não era um partidário incondicional da
abolição, como se vê pela demora com que pautou a questão: em janeiro de 1863, a
abolição representava mais um recurso de desestruturação do Sul, que vinha levando a
melhor na guerra, do que uma causa humanitária; no Norte, aliás, a idéia de que os norte-
americanos estavam destruindo seu país por causa dos negros era bem comum entre as
camandas mais baixas da população do Sul (os mais ameaçados pelas leis de alistamento da
União) e levou a linchamentos de negros livres e protestos violentíssimos.
326
Cf. WHITMAN, Walt. Drum-Taps. Op.Cit., 427-429.
243
Assim, a causa da União não só deixava de ser a causa de todos, como dissemos
anteriormente, como tomava proporções autoritárias que feriam os direitos individuais. Dirá
ironicamente um daqueles Copperheads que Lincoln tratava a guerra como “fraternidade
ou morte” (“Be my brother, or I kill you! Unite with me, or I will exterminate you!”
327
),
criando uma teleologia bem esclarecedora da “cruzada” e do despotismo que os poemas de
propaganda de Whitman propõem, como se o próprio poeta arrogasse para a figura de seu
“maior poeta” e para sua antiga União revigorada, após momentos de dúvida e ilusão, o
autoritarismo governamental que ainda o cegava quanto aos efeitos devastadores da
carnificina em andamento nas batalhas da guerra, esses talvez mais bem entendidos por
outro escritor norte-americano, Herman Melville, que em seu Battle-Pieces and Aspects of
the War (1866), também vazou em versos a experiência da guerra:
Plain be the phrase, yet apt the verse,
More ponderous than nimble;
For since grimed War here laid aside
His Orient pomp, ‘twould ill befit
Overmuch to ply
The rhyme’s barbaric cymbal.
Hail to victory without the gaud
Of glory; zeal that needs no fans
Of banners; plain mechanic power
Plied cogently in War now placed –
Where War belongs –
Among the trades and artisans.
Yet this was battle, and intense –
Beyond the strife of fleets heroic;
Deadlier, closer, calm ’ mid storm;
No passion; all went on by clank,
Pivot, and screw,
And calculations of caloric.
327
REYNOLDS, David.
Op.Cit.
, 435.
244
Needless to dwell ; the story’ known.
The ringing of those plates on plates
Still ringeth round the world –
The clangor of the blacksmith’s fray.
The anvil-din
Resounds this message from the Fates:
War shall yet be, and to the end;
But war-paint shows the streaks of weather;
War yet shall be, but warriors
Are now but operatives; War’s made
Less grand than Peace,
And a singe runs through lace and feather.
328
A importância da comparação com Whitman se dá pelo esclarecimento da
perspectiva de Melville, artística e humanitária. Como o “bardo americano”, Melville trará
a poesia ao conflito, mas não para justificar o ritmo marcial e a virulência dos modos em
comparação aos “poetinhas de escrivaninha”. “Simples seja a expressão, ainda apta ao
verso / Mais elaborado do que rápido / Pois desde que aqui a Guerra cruel tomou lugar /
Sua pompa Oriental, ela seria tristemente substituída / em grande parte para suprir / Os
pratos bárbaros da guerra”: negando a rima, Melville nega os “pratos bárbaros” de uma
328
“Simples seja a expressão, ainda apta ao verso / Mais elaborado do que rápido / Pois desde que aqui a
Guerra cruel tomou lugar / Sua pompa Oriental seria tristemente substituída / em grande parte para suprir / Os
pratos bárbaros da guerra. // Saudações à vitória sem o júbilo / da glória; zelo que não precisa da agitação /
das bandeiras; o simples poder mecânico / manipulado com força e exatidão na Guerra agora presente – /
Onde há Guerra – / Entre negociantes e artesãos.// Ainda assim era uma batalha, e intensa –/ Além da disputa
das heróicas esquadras; / Mais mortal, próxima, fria em meio à tempestade; / Sem paixão; tudo veio por
estrondos, / Pino, e parafuso, / E cálculos de calor. //Não é necessária a presença; a história é conhecida./ O
repicar daquelas chapas nas chapas / Ainda repicadas ao redor do mundo - / O tinir do desgaste do martelo. /
A pancada na bigorna / faz resonar esta mensagem ao Destino: / / Guerra ainda há de ser, e até o fim; / Mas o
retrato da guerra mostra as linhas do desgaste; / Guerra ainda há de ser, mas guerreiros / São agora apenas
operadores; a Guerra se tornou / Menor do que a Paz, / E o fogo chamusca laços e penachos”. MELVILLE,
Herman. “A Utilitarian View of the Monitor’s Fight”. Em Battle-Pieces and Aspects of the War,
61.MELVILLE, Herman. “
A Utilitarian View of the Monitor’s Fight
”. Em
Battle-Pieces and Aspects of the
War
, 61.
245
guerra que toma lugar entre “artesãos e mecânicos” e conhece “vitórias sem glória”; uma
guerra travada sem paixão e que pode ser mais bem vista de modo “utilitário”, pela “mira”
das armas, que matam e debilitam com a frieza dos “cálculos”, para os quais soldados se
transformam em meros “operadores” de máquinas de matar. Em seus Civil War Poems,
subtítulo que traz uma expressão nunca utilizada por Whitman nesses anos de guerra (como
Lincoln e os Unionistas, Whitman preferiria dizer “Guerra da União”) Melville se ocupa
indiscriminadamente dos dois lados da guerra, tratando criticamente ambas as posições
(“The South is the sinner!” Well, so let it be ; / But shall the north sin worse, and stand the
Pharisee?”, diz em “A Meditation
329
, que fecha o volume) e retratando “uma guerra sem
vencedores” (ainda em A Meditation”: “When Vicksburg fell, and the moody files marched
out, / Silent the victors stood, scorning to raise a shout”), algo que simplesmente não
passaria pela cabeça de Whitman nesses primeiros anos do conflito, quando aproveitou o
entusiasmo da guerra para exaltar mais uma vez sua antiga arte poética, abandonada em
Calamus”, e renovar seus votos de apoio incondicional à União, a despeito dos homens e
dos interesses que a comandavam.
Diz o autor da introdução a Battle-Pieces, Lee Rust Brown, que fazendo uma breve
comparação entre os autores para demonstrar a preocupação de Melville em elaborar uma
poesia para a Guerra, não passa dessas linhas: “como poeta, contudo, Whitman já havia se
definido tão amplamente em 1861 que suas experiência de guerra lhe serviram
principalmente para afirmá-lo, mais do que para mudar suas diretrizes literárias”
330
.
Alguém poderia objetar essas afirmações citando a aproximação de Whitman ao verso
polido e aos ritmos tradicionais da poesia inglesa, ainda aliados ao relevo sempre irregular
da matéria, que para não dizer que negam seus primeiros anos, serão, pelo menos,
recorrentes nos anos do postbellum. Em Drum-Taps, no entanto, essa é uma questão
secundária, pois nesses poemas de propaganda o verso polido consolida apenas a
“elevação” da matéria (a União) em guerra, que impõe o tom marcial sem, contudo, chegar
a estabelecer um nível propriamente épico, dada a distância do conflito. Esse só tomará
329
MELVILLE, Herman. A Meditation: Atributted to a Northener after attending the last of two funerals
from the same homestead – those of a National and a Confederate officer (brothers), his kinsmen, who had
died from the effects received in the closing battles
”. Em
Op.Cit.
, 241-243.
330
BROWN, Lee Rust. “
Introduction
”. Em
Battle-Pieces and Aspects of the War
, X.
246
realmente o fôlego de Whitman após sua viagem em busca do irmão e a permanência em
Washington como voluntário. Como veremos a seguir, a experiência efetiva do conflito nos
hospitais não chegará a despertar no poeta o nível crítico de Melville; por outro lado, sua
poesia, ainda corroborando a análise de Rust Brown, irá formular episódios que, indo de
encontro àquela “guerra sem vencedores”, certamente escapam à pena de Battle Pieces.
Como vimos, a guerra acabou com as “dúvidas” de um homem que se sentia
“satisfeito pela metade”. A verdade desse verso de “Rise O Days” ganha expressão fechada
no que diz respeito aos “poemas da adesividade”, que não foram somente reabilitados pela
urgência do conflito, como a antiga poesia da União, mas se desvencilharam do mundo de
aparências e corrupção que os sitiava. De fato, Whitman não tomava novos rumos poéticos;
eram, sim, as realizações de sua poesia anterior que tomavam nova roupagem e, no caso
específico da “adesividade”, resolviam do modo possível arestas que, aos olhos do poeta,
lhe eram incômodas. Essa possibilidade de solução é, realmente, interessante, dadas as
possibilidade de análise que a poesia de “Calamus” nos proporcionava; pois aos nossos
olhos, a lírica amorosa mediada pela assunção de um mundo desprovido de unidade ou
sentido, esse somente possível mediante a solidão do sujeito com seu amante, ou seja, à
margem do mundo visível ou oficial que deixava o “Eu real intocado”, era uma solução
estética condizente com as formas desencontradas do mundo moderno, ao qual tentamos
aproximar a “poesia da adesividade” para mostrar que, naquele momento em especial, o
“edifício ritual” da América ruía e dava lugar a uma construção da universalidade
propriamente estética – ou, pelo menos, condizente com a nossa. A partir de Drum-Taps,
essa incompletude deverá ser tratada como um simples lapso, que a conjuntura da guerra
trata de reformar, não da maneira tão pronta com que a União entrou nos desígnios
unionistas. Assim, chegamos a “Vigil Strange I Kept One Night in the Fields”:
VIGIL strange I kept on the field one night:
When you, my son and my comrade, dropt at my side that day,
One look I but gave, which your dear eyes return’d, with a look I shall never
forget;
One touch of your hand to mine, O boy, reach’d up as you lay on the ground;
Then onward I sped in the battle, the even-contested battle;
Till late in the night reliev’d, to the place at last again I made my way;
Found you in death so cold, dear comradefound your body, son of responding
247
kisses, (never again on earth responding;)
331
(...)
De cara, a tensão entre vida e morte, presente em “Calamus”, se inverte; como
vemos, não se fala mais da “morte-em-vida”, que impedia a consumação do amor (“vida-
em-morte”) do sujeito lírico. A relação dos camaradas ganha materialidade; sua
consumação poderia ocorrer no campo de batalha; moribundo, o rapaz (“meu filho, meu
camarada”; “filhos de beijos correspondentes”) chega a “responder com afeto” ao olhar do
sujeito; sua morte, desprovida da perspectiva simbólica que “dava o tom” à poesia que
“reverberava através dos Estados”, ocorre diante daquele que fala e se torna o único
empecilho a um amor que agora ganha vida sem a tensão que, antes, o restringia à esfera
privada e segregava. O campo de batalha é também um espaço coletivo, que embora
deserto, se mostra devidamente assimilado às condições em que o encontro devia ocorrer
em “Calamus”: sublinhando a natureza do campo, o rosto do rapaz morto está “descoberto
à luz das estrelas” e a “doce vigília” – também “vigília de silêncio, amor e morte”,
recuperando quase que o mesmo encadeamento de “Scented Herbage of My Breast” – se dá
em uma “noite silenciosa e perfumada”, em que o sujeito “passa horas imortais e místicas”
entre gestos de carinho e declarações de amor, até que vem a aurora e o sujeito envolve o
camarada em seu cobertor e o conduz até a cova, para ser enterrado no lugar em foi abatido.
Como se percebe, a violência da linguagem de propaganda não encontra lugar no
campo de batalha freqüentado por esse sujeito, cuja lírica (caso de “Vigil Strange”) chega
até a contestar o valor da batalha. Em seu lugar, nasce a compaixão e o amor, dedicados a
mais duas cenas de encontro com camaradas mortos: em “A Sight in Camp in the Daybreak
Gray and Dim”, ele sairá da tenda sem sono e caminhará pelo acampamento, para encontrar
331
“Estranha vigília eu fiz no campo uma noite; / Quando aquele dia você meu filho e camarada caiu ao meu
lado, / Bastou um único olhar, que seus olhos queridos devolveram com uma expressão que jamais
esquecerei, / Um toque de sua mão na minha, garoto, que erguia enquanto você deitava no chão, / Então fui à
frente na batalha, a até mesmo contestável batalha, / Até que tarde da noite, tranqüilo, retornei ao lugar onde
estava, / Encontrei você em uma morte tão fria, camarada, encontrei seu corpo filho de beijos correspondentes
(nunca mais na Terra respondendo) (...)”.“Vigil Strange I Kept One Night in the Field”. Leaves of Grass 1867.
Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M.
The Walt Whitman Archive (
http://www.whitmanarchive.org/works/
)
.
Cf. “
Vigil Strange I Kept One Night in the Field
”. Em WHITMAN, Walt. “
Drum-Taps
”.
Op.Cit.
, 438.
248
ao lado da tenda hospitalar três combatentes (“queridos camaradas”) mortos, um velho, um
jovem (“quem é você minha criança querida? / Quem é você doce menino de rosto que
ainda desabrochava?”) e um terceiro, “rosto nem de criança nem de velho, muito calmo,
como de um belo mármore branco amarelado”, em quem o sujeito identifica o Cristo,
“morto e divino e irmão de todos e aqui jaz mais uma vez”; já em “As Toilsome I Wander’d
Virginia’s Woods”, o poeta reflete, “ao longo das estações e em multidões turbulentas”,
sobre a interrupção abrupta da vida ao encontrar o jazigo de um soldado anônimo,
enterrado durante a retirada de tropas, sob uma árvore, em que se lê a inscrição “Valente,
cuidadoso, sincero, meu amado camarada”
332
. Neste último caso, principalmente, note-se
que o camarada encontraria lugar na cidade por onde caminha o poeta com sua memória,
que assim confere novo estatuto a seus poemas de amor e morte: aqui a cidade, esfera
pública recuperada pela guerra, não traria empecilhos à vida amorosa.
Embora, nesse sentido, a adesividade pague tributos à União purificada, fazendo a
lírica passar de alternativa formal à dissolução do mundo a subgênero da unidade
reconstituída, a violência e a destruição não escaparão a esse novo momento de Drum-
Taps. O mesmo sujeito que vela seus camaradas também nos oferece a visão infernal do
hospital de guerra, que por um momento atira o poeta em uma “estrada desconhecida” e
sem futuro:
’Tis a large old church at the crossing roads’tis now an impromptu hospital;
Entering but for a minute, I see a sight beyond all the pictures and poems ever
made:
Shadows of deepest, deepest black, just lit by moving candles and lamps,
And by one great pitchy torch, stationary, with wild red flame, and clouds of
smoke;
By these, crowds, groups of forms, vaguely I see, on the floor, some in the pews
laid down;
At my feet more distinctly, a soldier, a mere lad, in danger of bleeding to death,
(he is shot in the abdomen;)
332
As Toilsome I Wander’d Virginia’s Woods
. Leaves of Grass 1867.
Em FOLSON, Ed. PRICE
, Kenneth
M. The Walt Whitman Archive (http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf.
As Toilsome I Wander’d
Virginia’s Woods
”. WHITMAN, Walt. “
Drum-Taps
”.
Op.Cit.
, 438.
249
I staunch the blood temporarily, (the youngster’s face is white as a lily;)
Then before I depart I sweep my eyes o’er the scene, fain to absorb it all;
Faces, varieties, postures beyond description, most in obscurity, some of them
dead;
Surgeons operating, attendants holding lights, the smell of ether, the odor of
blood;
The crowd, O the crowd of the bloody forms of soldiersthe yard outside also
fill’d;
333
Se há uma descontinuidade formal entre os poemas de propaganda e a experiência
dos campos de batalha, ela se configura na imagem da violência, que nos primeiros poemas
da seção é comemorada com grande vitalidade e senso ritualístico da guerra. Em “A March
in the Ranks Hard Prest, and the Road Unknown”, pelo contrário, o sujeito desvia o olhar
das terríveis cenas de morte e dor – não há como absorvê-las. É notório o sentido
metalingüístico do termo em Leaves of Grass: a absorção designa, como o toque, o poder
que tem o “bardo” de assumir novas identidades; no fim do Prefácio à primeira edição
(1855), “o povo deverá absorver o bardo tão afetuosamente quanto ele o absorveu”, o que
dá também o peso cultural do termo, à medida que uma das funções do poeta Americano
seria a de reunir e dispor o mundo aos olhos de seu povo-público, tornando essa “visão” o
verdadeiro caminho da matéria à alma, do qual o poeta é o “guia”. Em outras palavras, a
“visão” dos feridos, que vai “além de todos os retratos e poemas feitos”, e a memória do
333
“É uma grande e velha igreja na encruzilhada das estradas, - é agora um hospital improvisado, / - Entrando
apenas um minuto, eu vejo uma visão além de todos os retratos e poemas já feitos: / Sombras da mais
profunda, da mais profunda escuridão, iluminados apenas pelas candeias e velas instáveis; / E por uma grande
tocha de piche fixa, com uma selvagem chama vermelha e nuvens de fumaça; / Por esses, multidões, grupos
de formas que vagamente vejo no chão, algumas deitadas nos bancos da igreja; / Aos meus pés mais
distintamente um soldado, só um garoto, correndo o risco de sangrar até a morte (ele foi baleado no
abdômen;) / Eu estanco o sangue por um tempo, (o rosto do garoto está lívido como uma flor); / Então antes
de sair eu passo os olhos pela cena tão horrível para ser absorvida plenamente; / Rostos, vários, posturas além
da descrição, muitas no escuro, muitos mortos; / Cirurgiões operando, ajudantes segundo as luzes, o cheiro do
éter, o cheiro do sangue; / A multidão, Ó a multidão de formas sangrentas – o pátio da igreja também cheio,
(...)”. “A March in the Ranks Hard Prest, and the Road Unknown”. Leaves of Grass 1867. Em FOLSON, Ed.
PRICE
, Kenneth M. The Walt Whitman Archive (http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf.
A March in
the Ranks Hard Prest, and the Road Unknown
”. Em WHITMAN, Walt. “
Drum-Taps
”.
Op.Cit.
, 440.
250
conflito, tal como se apresentam no “hospital improvisado em uma igreja”, são impossíveis
e inexprimíveis, senão pela “escuridão” que encerra o poema:
These I resume as I chant, I see again the forms, I smell the odor;
Then hear outside the orders given, Fall in, my men, fall in;
But first I bend to the dying lad, his eyes open, a half-smile gives he me,
Then the eyes close, calmly close, and I speed forth to the darkness,
Resuming, marching, ever in the darkness marching, on the ranks,
The unknown road still marching.
334
A “escuridão” expressa o último olhar lançado por um garoto moribundo,
condenado com o poeta a marchar eternamente por uma estrada desconhecida, que não lhe
trará alívio, nem descanso. Antes persuadidos a lutar em nome da União, esses soldados,
figurados do modo mais pungente (muitas vezes serão garotos), se tornarão vítimas da
guerra, nos deixando à sombra de um conflito que não conhece honra e cavalheirismo a não
ser no momento da morte, sempre solitária e resignada, assistida somente pelo poeta, que
proporciona em suas mortes um último instante de comunhão e sublimação dos horrores da
guerra. A experiência do trauma, por sua vez, não escapa àquele que sobrevive e está
condenado às visões do campo de batalha:
WHILE my wife at my side lies slumbering, and the wars are over long,
And my head on the pillow rests at home, and the vacant midnight passes,
And through the stillness, through the dark, I hear, just hear, the breath of my
infant,
There in the room as I wake from sleep this vision presses upon me;
334
“Estas coisas eu recupero enquanto canto, eu vejo mais uma vez as formas, eu sinto o cheiro; / Então ouço
de fora as ordens dadas, Formar fileiras meus homens, formar fileiras; / Mas primeiro me debruço sobre o
garoto moribundo, seus olhos abertos, um meio sorriso ele me dá, / Então, os olhos se fecham calmamente, eu
corro a toda a velocidade para a escuridão, / Recuperando, marchando, sempre na escuridão marchando ou
nas fileiras, / A estrada desconhecida ainda marchando”. “A March in the Ranks Hard Prest, and the Road
Unknown”. Leaves of Grass 1867. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The Walt Whitman Archive
(http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf. A March in the Ranks Hard Prest, and the Road Unknown
Em WHITMAN, Walt. “Drum-Taps”. Op.Cit., 440.
251
Eis a “visão do Artilheiro”, sua “fantasia irreal”: os “batedores rastejando com
cuidado à frente”, “os tiros espaçados”, “o som dos diferentes obuses, o curto t-h-t! t-h-t!
das balas dos rifles”, “as granadas explodindo deixando pequenas nuvens brancas”, “as
bombas assoviando enquanto passam”. Sem mais, nem menos, o veterano em vigília ao
lado da mulher e dos filhos que dormem é acometido da memória tormentosa da batalha e a
revive com riqueza sórdida de detalhes: ele respira a fumaça sufocante, escuta os gritos do
regimento, vê o general bradando sua espada e o revide do exército adversário; em meio ao
“caos mais alto do que nunca”, ele “não quer olhar” à queda e ao sangue dos mortos,
enquanto as bombas explodem no ar e os projéteis enchem a noite de variadas cores. A
propaganda dos primeiros poemas não encontraria resposta melhor: a única cena de batalha
descrita em Drum-Taps está mediada pelo trauma incurável, que torna essas imagens partes
de uma experiência que não se sedimenta e para a qual a narrativa não existe fora da
“esquizofrenia”, que não tendo descrição ainda no XIX, só poderá ser atribuída à
honestidade e à sensibilidade com que o poeta trata o assunto. Pela visão do artilheiro,
Whitman chega à descrição mais viva da guerra e de seus efeitos devastadores, rivalizando
com o “confronto sem paixão” e os “operadores” de Melville.
É diante dessas vítimas da guerra que Whitman sintetiza a imagem de seu poeta no
conflito, o enfermeiro (“wound dresser”), que permite ao poeta o reencontro com uma de
suas primeiras formulações da função do poeta Americano, o “cuidador da vida onde quer
que ela se manifeste”:
AN old man bending, I come, among new faces,
Years looking backward, resuming, in answer to children,
Come tell us, old man
, as from young men and maidens that love me;
Years hence of these scenes, of these furious passions, these chances,
Of unsurpass’d heroes, (was one side so brave? the other was equally brave;)
Now be witness againpaint the mightiest armies of earth;
Of those armies so rapid, so wondrous, what saw you to tell us?
What stays with you latest and deepest? of curious panics,
Of hard-fought engagements, or sieges tremendous, what deepest remains?
335
335
“Um homem velho, curvado eu caminho entre rostos novos, / Olhando para os anos passados e
recuperando-os em resposta às crianças, /
Venha nos contar, velho
, como viesse de jovens e meninas que me
amam, / Anos depois dessas cenas, dessas de furiosas paixões, dessas oportunidades, de heróis inalcançáveis
252
Ao contrário do que se passa com o artilheiro, a memória do enfermeiro já supera
posições políticas e patentes militares de ambos os lados. Perante as novas gerações, o
enfermeiro compõe a experiência transmitível do conflito, que na versão de 1865 (a que
lemos acima) ainda não traz a importante digressão que acompanha, em 1892, o chamado
desses jovens admirados: “De pé e nervoso, eu pensava em acabar com o alarme e invocar
a guerra tremenda, / Mas logo meus dedos quedam, meu rosto, e eu me resigno, / A sentar
entre os feridos e dedicar-lhes meus cuidados, ou simplesmente observar os mortos”
336
.
Lembrando aqui a passagem do prefácio de 1855, segundo a qual cabe ao poeta Americano
a crônica da guerra e da paz, infundindo a ambas palavras adequadas, os jovens pedem a
imagem viva (a “pintura”) “dos exércitos mais poderosos da Terra” e o que teria ficado de
“mais urgente e profundo”, ou seja, a narrativa épica do conflito, à qual a intervenção de
1892 traz uma contribuição riquíssima, haja vista que o velho poeta se mostra ali incapaz
de invocar os confrontos, como não houvesse Musa disposta ao canto dos feitos desses
homens de guerra. Sendo a experiência da dor dos soldados, não suas batalhas, a mais
profunda e urgente, o poeta encontra o sentido de sua arte na cura, que implica não só os
cuidados e o amor dedicados aos camaradas feridos, como à ferida maior, que cindia o
corpo da Nação. Somente pela cura, que lhe faz nascer no peito “uma chama ardente”, o
poeta será capaz de trazer à tona, “em silêncio, em projeções de sonhos”, a imagem dos
feridos que lotavam os hospitais improvisados; somente pela cura a absorção terá sentido e
a estrada será iluminada; e é somente por essa atitude frente às feridas do país que o amor
entre os camaradas se torna, finalmente, público e concreto:
Thus in silence in dreams’ projections,
(só um lado era corajoso? O outro era igualmente corajoso;) / Seja agora e novamente a testemunha – pinte os
exércitos mais poderosos da Terra, / O que você viu para nos dizer daqueles exércitos tão velozes e tão
espetaculares? / O que ficou com você de mais profundo e último? Do pânico curioso, dos engajamentos
duramente enfrentados ou daqueles que foram tremendamente cercados – o que de mais profundo ficou?”
The Dresser”. Leaves of Grass 1867. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The Walt Whitman Archive
(http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf. “The Wound-Dresser, 1.”. WHITMAN, Walt. Drum-Taps.
Op.Cit
., 442-443.
336
The Wound Dresser, 1
”. Em WHITMAN, Walt. “
Drum-Taps
”.
Op.Cit.
, 442-443
253
Returning, resuming, I thread my way through the hospitals,
The hurt and wounded I pacify with soothing hand,
I sit by restless all the dark night, some are so young,
Some suffer so much, I recall the experience sweet and sad,
(Many a soldier’s loving arms about this neck have cross’d and
rested,
Many a soldier’s kiss dwells on these bearded lips.)
337
A adesividade, mediada pela cura da ferida secessional, se torna, portanto, a
verdadeira experiência da guerra; como profecia, ela ainda surgirá como voz por sobre a
“carnificina” (síntese da épica proporcionada por essa poesia), clamando pela manutenção
da esperança: “a afeição ainda vai resolver os problemas da liberdade, / Aqueles que amam
uns aos outros hão de se tornar invencíveis, / Eles hão de fazer a Colúmbia vitoriosa”
338
. A
Cidade dos Amigos, que antes, atacada por exércitos de toda a Terra, formava o símbolo
maior da poesia de “Calamus”, empresta sua “invencibilidade” ao país que reencontrará
unidade no amor: “O de Massachussets há de ser camarada do Missouriano, / O do Maine e
o da quente Carolina e outro do Oregon hão de fazer um trio de amigos, / Mais preciosos
uns aos outros do que todas as riquezas da Terra”; do mesmo modo, “Será costumeiro nas
casas e nas ruas ver o amor masculino, / Os mais rudes e destemidos irão se tocar as faces
com leveza, / A dependência da Liberdade hão de ser os amantes, / A continuidade da
Igualdade hão de ser os camaradas”
339
. Voltando àquele comentário de Lee Rust Brown, de
337
“Assim, em silêncio em projeções de sonhos, / Retomando, recuperando, eu sigo meu caminho através dos
hospitais, / O machucado e o ferido eu pacifico com mãos de cura, / Eu sento ao lado dos esgotados por toda a
noite escura, alguns são tão jovens, / Alguns sofrem tanto, eu relembro a experiência doce e triste; / (Os
muitos braços amorosos que se cruzaram sobre este pescoço e nele descansaram, / Os muitos beijos dos
soldados que moram nesses lábios coberto de barba)”.
The Wound Dresser, 4
”. Em WHITMAN, Walt.
Drum-Taps
”.
Op.Cit.
, 445.
338
Over the Carnage Rose Prophetic a Voice
”.
Leaves of Grass 1867.
Em FOLSON, Ed. PRICE
, Kenneth
M. The Walt Whitman Archive (http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf. “Over the Carnage Rose
Prophetic a Voice”. WHITMAN, Walt. Drum-Taps. Op.Cit., 449. Importante dizer que este poema, com
exceção do primeiro e dos últimos três versos, constava da seção Calamus (“Calamus 5”) de 1860.
339
Over the Carnage Rose Prophetic a Voice. Leaves of Grass 1867. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth
M. The Walt Whitman Archive (http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf. “
Over the Carnage Rose
Prophetic a Voice
”. WHITMAN, Walt.
Drum-Taps
.
Op.Cit
., 449.
254
fato Whitman já havia definido suas diretrizes poéticas em 1861; no entanto, o que
permanece à margem de seu comentário é a produtividade das formas dessa poesia,
manejadas com extremo engenho e sensibilidade por Whitman, que ao fim nega o gênero
épico, como Melville, muito embora os caminhos percorridos tenham sido outros.
Benjamin nota o significado dúbio das palavras vitória e derrota em se tratando de
guerras:
O primeiro, o sentido manifesto, significa decerto o desfecho, mas o segundo, que
dá ressonância especial a ambas as palavras, significa a guerra em sua totalidade,
indica como o seu desfecho para nós altera seu modo de existência para nós. Esse
segundo sentido diz: o vencedor conserva a guerra, o derrotado deixa de possuí-
la; o vencedor incorpora seu patrimônio, transforma-a em coisa sua, o vencido
não a tem mais, é obrigado a viver sem ela. E não somente a guerra em geral, mas
todas as suas peripécias, cada uma de suas jogadas de xadrez, inclusive as mais
sutis, cada uma de suas escaramuças, mesmo as menos visíveis.
340
Descontada a distância histórica, que no ensaio de Benjamin conduz à política
estetizada e à guerra fascista, tomemos por fato a base do argumento do crítico: a guerra é
dos vencedores; são eles que contam a história das guerras e esse se torna seu mais valioso
espólio. Ainda não terminamos com essa passagem. Em primeiro lugar, devemos dizer que
é diante desse argumento que as posições de Melville e Whitman se distanciam. Para o
primeiro, a guerra é uma herança indesejada, a maior tragédia que se abateu sobre o povo
norte-americano; em momento algum, segundo o autor de Battle-Pieces, foi possível dar
completude aos eventos
341
: fosse a escravidão confederada, fosse a ganância unionista,
todas as batalhas formam a “tragédia dos tempos”, que ensina a posteridade, à maneira
aristotélica, com “horror e piedade”
342
. Já para Whitman, a derrota de ambos se torna
vitória a partir do momento que Colúmbia, ou seja, o mito de Igualdade e Liberdade, volta
a compor com o país relação de completude, como fossem corpo e alma ressurgidos da
340
BENJAMIN, Walter. “Teorias do fascismo alemão: sobre a coletânea Guerra e guerreiros, editada por
Ernst Jünger”. Em Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política, 65.
341
MELVILLE, Herman. “Supplement”. Em
Battle-Pieces and Aspects of the War.
342
MELVILLE, Herman. “Supplement”. Em
Battle-Pieces and Aspects of the War, 272.
255
grande infecção que havia acometido o corpo da pátria
343
. O sofrimento, o trauma e a morte
serão subsumidos pelo reino de amor que se instaura com o fim do conflito. No entanto,
como notará o observador, essa aliança final não fala até o momento do negro; nós
mesmos, não tivemos outra oportunidade senão a da contextualização do conflito. Whitman
não dedicará, na primeira versão de Drum-Taps, uma linha sequer ao que a historiografia
tradicional colocou como estopim da guerra, a escravidão. Essa esperaria ainda cinco anos
para aparecer na seção temporária Bathed in War’s Perfume”, da quinta edição (1871-
1872) como “Ethiopia Saluting the Colors”, poema de 1870:
1
WHO are you, dusky woman, so ancient, hardly human,
With your woolly-white and turban’d head, and bare bony feet?
Why, rising by the roadside here, do you the colors greet?
2
(’Tis while our army lines Carolina’s sand and pines,
Forth from thy hovel door, thou, Ethiopia, com’st to me,
As, under doughty Sherman, I march toward the sea.)
3
Me, master, years a hundred, since from my parents sunder’d,
A little child, they caught me as the savage beast is caught;
Then hither me, across the sea, the cruel slaver brought.
4
No further does she say, but lingering all the day,
Her high-borne turban’d head she wags, and rolls her darkling eye,
And curtseys to the regiments, the guidons moving by.
5
343
Em ensaio do início da década de 1870, Whitman elenca de modo exaustivo e sombrio os agentes da
“gripe” que assolava as “maravilhosas pessoas das massas, fazendeiros, artesãos e comerciantes”,
concentrados “no Norte e no Oeste, principalmente na Filadélfia e em Nova York” – muito pior no Sul –,
completando: “é estranho que uma tempestade tenha decorrido de tão mórbidos e venenosos estratos?”. A
guerra para Whitman não coincide com o último círculo do Inferno, mas com o início da reação vigorosa de
um corpo doente, febre que poderia destruir, mas anuncia a cura e a volta aos eixos, que em Leaves of Grass
são a vocação pública e a representatividade, cujos maiores antagonistas se encontravam nos porões da
subjetividade. “
Origins of the Attempted Secession
”. Em WHITMAN, Walt.
Op.Cit.
, 1020.
256
What is it, fateful womanso blear, hardly human?
Why wag your head, with turban boundyellow, red and green?
Are the things so strange and marvelous, you see or have seen?
344
No que diz a este trabalho, havíamos deixado o negro junto à celebração de um
continente de trabalhadores canoros, que suprimindo o trabalho compulsório do negro em
nome da liberdade laboriosa dos homens livres, referia a formação do país ao produto
(shapes) dos ofícios. Pois bem – eis o negro de volta em um momento capital de Leaves of
Grass, quando defini-lo envolve a definição da própria perspectiva que se toma em relação
ao conflito. Como vimos num breviário da história, foi a defesa de um sórdido “direito à
escravidão”, consentido na medida do possível e do desejável por parte considerável dos
representantes norte-americanos, que criou a identidade regional sulina e gerou a tensão
deflagradora da guerra. Neste contexto, “surge esta mulher escura, tão velha, com muito
custo humana”, de “pés ossudos e descalços” e “cabeça de cabelos crespos e brancos
coberta com um turbante, o que no fim do poema traz as cores (“amarelo, vermelho e
verde”) que a identificarão (Etiópia, cuja bandeira tem as cores desse turbante) na falta de
um nome.
A posição da mulher na cena também é digna de nota. Ela está à beira da estrada,
onde está seu curral, e dali suas cores saúdam a passagem das tropas de William Sherman,
um dos principais generais da União, pela Carolina do Sul, referências que nos fazem crer
344
“Que é você, mulher escura tão antiga e com muito custo humana, / Com sua cabeça de branca lã,
envolvida em turbante, e seus pés ossudos e descalços? / Por que você surge neste ponto à beira da estrada,
você saúda as cores? // ( É enquanto nosso exército cruza as areias e os pinheiros da Carolina / Que tu Etiópia,
saída do curral, vens até mim, / E eu sob o valeroso Sherman marcho de encontro ao mar) //
O sinhô de mim
faz cem anos que me apartou dos meus pais, / Criança pequena, elas me pegaram como se pega um bicho / E
depois o escravizador me trouxe até aqui pelo mar
// Ela não disse mais nada, mas ficou ali parada o dia todo,
/ Balançando a cabeça coberta com o turbante e virando seus olhos pretinhos, / Cumprimentando os
regimentos, as fileiras que partiam. // O que é isso, mulher destinada, de formas indecisas, humana com tanto
custo? / Por que balança sua cabeça coberta com o turbante, amarelo, vermelho e verde? / Que coisas tão
estranhas e maravilhosas você vê ou tem visto?”. “Ethiopia Saluting the Colors (A Reminiscence of 1864)”.
Leaves of Grass 1871-1872. Em FOLSON, Ed. PRICE, Kenneth M. The Walt Whitman Archive
(http://www.whitmanarchive.org/works/).
Cf. “
Ethiopia Saluting the Colors”.
WHITMAN, Walt.
Drum-
Taps
.
Op.Cit.
, 452.
257
que se trata da fase final do conflito. Saindo do curral e vindo de encontro ao sujeito, que
aparentemente participa da campanha, ela conta a velha narrativa de um escravo em inglês
sofrível, denotando, junto à dor da separação de seus pais, “pega como se pega um bicho”,
e à viagem para as novas terras, a falta de assimilação ao meio, contraste que se cria
também pela linguagem formalíssima utilizada pelo poeta (a segunda pessoa pronominal)
quando se dirige a ela, que depois da breve narrativa fica ali em silêncio, a saudar as tropas,
“balançando a cabeça e virando os olhos pretinhos” que causam a admiração do sujeito.
Há um descompasso programado no poema, ao qual não poderia se atribuir
descuido ou irreflexão da parte do poeta, dado o nível formal da peça: as estrofes de três
versos e as rimas são índices claros das medidas desse encontro entre as tropas e a negra.
Não que este poema sirva de parâmetro para separar o trabalho poético da frouxidão
formal; o caso, aqui, é que Whitman está trabalhando com outras formas, uma construção
poética diferente da que havíamos visto até aqui, mais tradicional (vejam as rimas - a-b-b –
e a divisão estrófica regular) e, nesse sentido, bem significativa da poesia escrita no
postbellum. De qualquer forma, o quadro não se presta a descuidos e, assim, a diferença
que se quer acentuar pode ser vista por dois pontos: da diferença substancial entre a
figuração das tropas e da mulher; e da polidez com que o sujeito se dirige a ela. Para o
primeiro caso, a mulher não apenas uma anônima diante das tropas; ela é a personificação
(alegoria) de um país (a Etiópia) que, por sua vez, designa o continente africano, que
corresponde aos atributos de antigüidade (so ancient) imemorial com que a mulher é
caracterizada; essa identificação se fortalece pelo cuidado com que o sujeito se dirige a ela,
usando pronome de segunda pessoa, falando provavelmente em nome dessas tropas e
também da terra, Estados Unidos. Compõe, dessa forma, o quadro que mostra a África
saudando a América pela vitória da União, libertadora dos negros: liberdade é a
“maravilha” que se saúda em silêncio.
Fica, então, o problema da estrada, a posição dessa mulher (não esqueçamos: hardly
human) que está à margem dos eventos, como fosse alheia a tudo o que se passara naqueles
cinco anos. É esse alheiamento que nos interessa, pois ele se manifesta de outras maneiras:
Sherman, as tropas, as florestas da Carolina, a estrada e o curral de onde sai a mulher falam
por si, apenas denotam; está na “Etiópia” o descompasso da cena, como se naquele ponto
específico do quadro o poeta simplesmente colasse a imagem que fala pelo outro, o negro.
258
Sua existência não é colocada em si; a ele não cabe a expressão em sua própria condição.
Sua fala, ainda que presente, tem a voz de outro, voz africana, que rememora o momento de
alijamento da pátria-mãe e o tratamento desumano da viagem, e não seu lugar na “Cidade
dos Amigos”, nem a correspondência àquele “amor invencível” que fazia profecias por
sobre a carnificina. É realmente difícil conciliar Etiópia com a liberdade e a representação
de que gozava o negro em poemas do antebellum. A alegoria denuncia mais do que a
impossibilidade dessa mulher, representante da raça, falar por si e por sua condição de
mulher que, ex-escrava, é norte-americana. Enquanto o poeta de 1855 era o wound dresser
do negro que fugia de seu cativeiro, ou ainda aquele que libertava do leilão as formas livres
do preço e do jugo de senhores, grandiosa como grandiosos seriam os heróis que dele
nasceriam pela verdade do corpo e da alma igualados, em “Ethiopia Saluting the Colors
veremos justamente o lugar do negro na poesia que se desenvolve junto ao elogio do
trabalho livre, onde havíamos percebido aquela supressão sem, contudo, retirar maiores
conclusões. A União dos trabalhadores livres e dos camaradas, a “raça dos veteranos”, “de
tempestade e paixão”
345
, à qual caberá aquela “realidade real” e o simbolismo decorrente de
um novo entendimento da poesia, que ultrapassará a representação política e a autoridade
do Estado para alçar-se ao universal do amor mediado pela crise e pela morte anunciadas,
não pressupõe os negros, não os contempla e tampouco os integra.
O que torna essa alegoria mais significativa vem na esteira da “vitória da
Liberdade”, mensagem final de Drum-Taps, e nos faz retomar a citação de Benjamin. Diz
Benjamin que a guerra, em seu sentido mais profundo e cada um de seus mínimos lances,
fica em posse daqueles que a venceram. Este, definitivamente, não é o caso da Guerra de
Secessão, cujos rituais de guerra, cujos símbolos e eventos capitais se tornaram patrimônio
quase que exclusivo dos derrotados. A União venceu a guerra, mas a guerra imortalizou a
Confederação – o que não se deu sem a extensão da guerra para o campo político,
econômico e cultural ao longo de décadas. Sem nos determos em muitos particulares desse
novo campo de batalha, tão copioso em momentos e lances quanto a guerra real, o que se
345
RACE
of veterans! Race of victors! / Race of the soil, ready for conflict! race of the conquering march! /
(No more credulity’s race, abiding-temper’d race;) / Race henceforth owning no law but the law of itself; /
Race of passion and the storm
”. “
Race of Veterans
”.
Leaves of Grass 1867
. FOLSON, Ed. PRICE
, Kenneth
259
pode dizer do renascimento do Sul como parte integrante da União, destituído assim da
pecha de traidor dos princípios nacionais sem a perda de sua identidade regional, pressupõe
o lugar do negro no conflito. Pois enquanto abolicionistas como Frederic Douglass
defenderam a Guerra da Secessão como “uma guerra entre a liberdade e a escravidão”
346
,
em que se pesasse os papéis assumidos por Unionistas e Confederados na guerra, as
negociações em nome da inclusão do Sul na reconstrução de uma União que não
representasse apenas os vitoriosos no conflito tiveram na figura do negro um tema
delicadíssimo, que acabou se arranjando não só em sua exclusão definitiva do quadro
patriótico, como em sua responsabilização pelo conflito, cuja memória acabou se
construindo como a guerra entre irmãos causada por um “elemento estranho”, que
deslocado de seu “lugar de origem”, alimentou na primeira metade do XIX as tensões entre
partes que deveriam, antes, viver em harmonia e liberdade. Eis o negro finalmente
confinado à sua condição de afro-americano, à “margem da história” construída por
aqueles a quem jamais foi negado, fossem Unionistas ou os agora admitidos Confederados,
a honra de serem norte-americanos.
M. The Walt Whitman Archive (http://www.whitmanarchive.org/works/). Cf. “Race of Veterans.”.
WHITMAN, Walt. “Drum-Taps”. Op.Cit., 452.
346
O’LEARY, Cecilia Elizabeth. “Blood Brothehood: The Racialization of the Patriotism 1865-1898”. Em
Bonds of Affection
. 69.
260
CONCLUSÃO
A FORMAÇÃO COMO ELEGIA
A formação de uma literatura periférica não se dissocia do enfrentamento. Como diz
o caso brasileiro, a importação de formas literárias estabelecidas na Europa implicava seu
ajuste sofrido a uma realidade local, feita de tipos e circunstâncias que configuravam uma
ordem refratária a quaisquer impulsos da razão formada em terras ultramarinas, ao mesmo
tempo em que, por meio de seu imobilismo ideológico ou peculiaridade intransponível, essa
mesma ordem vinha a completar o quadro da própria ciência desejada: um país
escravagista, dividido em grandes propriedades senhoriais e fora dos esquadros
esclarecidos; integrado, entretanto, no capitalismo internacional. A qualidade paradoxal da
formação brasileira pode ser contraposta à noção a um só tempo descritiva e normativa
347
que o conceito ganha ao longo dos inúmeros trabalhos de interpretação do país: descritiva,
enquanto constrói o retrato de nossas anomalias bem assentadas no mundo esclarecido;
normativa, à medida que pretende, pelo caminho da crítica, superar esse primeiro véu de
contradições e alçar a sociedade ao centro decisório. Para lembrar Paulo Arantes, em seu
ensaio sobre Antonio Candido, e Roberto Schwarz, em sua análise de Machado de Assis, a
formação à brasileira tem seu quinhão de providência e planejamento, que pressupõem o
distanciamento crítico e almejam o fim das contradições inerentes ao atraso do país.
Em relação à experiência brasileira, a formação da literatura norte-americana nos
revela, de início, dois grandes problemas: o primeiro, o das formas literárias que trouxeram
para si a configuração das tensões sociais; o segundo, sua relação com as forças
transformadoras do capitalismo, que impuseram à velha ordem norte-americana problemas
e contradições dignas de uma periferia, cultural e econômica. Quanto ao primeiro
problema, nada mais estranho às periferias que a configuração das contradições de classe
em forma poética. Machado de Assis parte das formas européias do romance (e de “sua
maneira de tratar as ideologias”, como diz Schwarz) e das diversas contribuições locais
(Alencar, Joaquim Antônio de Macedo) no sentido de dar formas à experiência social
347
ARANTES, Paulo Eduardo. “Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo”. Em
ARANTES, Otília Beatriz Fiori; ARANTES, Paulo Eduardo.
Sentido da Formação: três estudos sobre
Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa
, 12.
261
brasileira mediante o gênero, para transformar aquelas formas e chegar a um romance
propriamente local, em que a sociedade escravista brasileira impõe sua desfaçatez a
estruturas antes formadas em uma sociedade de homens livres e conduzidas por outras
contradições. De certa forma, esse era o percurso a ser providenciado por intelectuais de
quaisquer sociedades formadas à margem do centro econômico e cultural, posto que o
romance, nascido junto à burguesia para se tornar a forma literária consagrada do mundo
pós-Revolução, tinha a única função – lembremos as polêmicas de sua transformação em
uma arte – de dar corpo e voz aos diversos tipos e ações das sociedades avançadas.
A contribuição decisiva de Emerson à poesia de Leaves of Grass veio no sentido de
dar alento a uma nova possibilidade de configuração desses problemas entregues ao
romance. Pois está em Emerson, potencialmente, a configuração social da expressão
poética: à medida que faz da beleza um “bem comum” e do poeta um “representante”, para
dizer com “The Poet”, o filósofo abre caminho para que a poesia, gênero menor no
esquadro burguês, articule e expresse, nos Estados Unidos, as tensões e a ideologia de sua
sociedade política, ainda ligada às conquistas do XVIII, em que se constitui a República
comercial norte-americana. A questão é que Emerson dá à poesia, cujas formas aprende no
Romantismo, uma perspectiva pré-moderna, fazendo pesar o caráter reformista de reação às
transformações sociais em curso no XIX norte-americano: a “república da Beleza” de
Emerson se caracteriza por um representante (o letrado-poeta) a quem cabe a boa condução
das almas representadas; sua perdição, que é dever do letrado-poeta evitar, entra no
esquadro da passagem de uma sociedade “filtrada” pela representação para outra em que a
representação está na lista de reivindicações de uma classe que não conhece “cavalheiros” e
começa a erguer a causa trabalhista. No ponto de tensão entre a tradição representativa
legada e a realidade conflituosa das classes, está Walt Whitman.
A contradição entre mundos, legado de Emerson, ganha em Leaves of Grass a força
de uma corda prestes a se romper. Em 1855, sua poesia avança junto às conquistas do
pensamento de Emerson, incorporando às necessidades de uma “expressão norte-
americana”, livre, orgânica e nova, os diversos índices formais da sociedade em transição
do XIX norte-americano: para dar voz e corpo à representatividade do “bardo
democrático”, “um da massa”, comparece o sermão, gênero coletivo e dialógico, no qual o
poeta encontra alternativas para os problemas formais da poesia tradicional (organização
262
estrófica, metro e rima) em sua empreitada junto ao povo turbulento e sua necessidade de
autoreconhecimento; para dar sentido à representatividade emersoniana em chave
democrática, concorre a tipologia, de raiz religiosa e secularizada, que regula a pluralidade
com vistas à unidade e à celebração nacional; ambas, por sua vez, serão aliadas à imensa
produção cultural de apelo popular, que segue da fotografia e das pseudociências
(frenologia, fisionomia, mesmerismo) ao uso da gíria e de uma linguagem baseada na
expressão cotidiana, presente na penny press e nos inúmeros veículos de informação
dedicados às massas, aquelas que transformarão a “beleza republicana” de Emerson em
uma experiência de linguagem própria da democracia norte-americana, ao mesmo tempo
em que extremam a contradição inerente à postura conservadora do filósofo, o que nas
formas do primeiro poema de 1855 se traduz por um paradoxo: a representatividade
democrática, que conferindo “visibilidade” do teatro político a tudo e todos (o “Muitos em
Um” da divisa republicana) nivela e distensiona todas as diferenças em nome da unidade
mística e nacional (o “Um em Muitos” do Estado moderno). A democracia, reivindicação
de igualdade em um mundo dividido em classes, não comporta as formas representativas
nascidas de uma república comercial.
Neste ponto, vale dizer que a relação entre Emerson e Whitman não é somente uma
relação entre mestre e discípulo, como por muito tempo foi convencionado. Muito embora
Whitman tenha se servido das primeiras diretrizes poéticas emersonianas, sua relação se
torna conflituosa enquanto falam a mundos distintos, o que se verifica a partir do momento
em que Whitman assume incondicionalmente sua classe, identificando as formas místicas
da America não mais no direito absoluto e irrestrito à representação, inerente a todo ser,
mas no trabalho livre. A transição entre as formas sensuais do mundo (“forms”) às forjadas
pelo trabalho livre (“shapes”) marca um momento problemático de Leaves of Grass em sua
segunda edição (1856). Ao assumir as formas livres definidas pela esfera econômica, como
lemos em “Song of Broad-Axe, Whitman estreita sua visão da América: por um lado, toma
partido definitivo da modernidade e pontua a desigualdade social própria à cidade
industrial, que estende suas formas à representação tipológica da América; por outro, nega
lugares a agentes sociais presos ao mundo pré-moderno, os negros escravos, que em 1855
não apenas eram contemplados pelo poeta como exigiam de sua figura heróica a luta pela
liberdade, de todo necessária para a unificação da Nação. A incongruência desse momento
263
tem reflexos aterradores na forma poética: assumindo a liberdade do trabalho sem meios de
superar sua contradição de classe (a exploração do trabalho), resolve-se o problema pela
celebração de uma “unidade na desigualdade”, como vimos pelo encerramento de Song of
Broad-Axe”, e pela palavra de ordem, dogmática e reformatória, que se esclarece na
necessidade de criação de uma “raça democrática” pela palavra programática em que o sexo
é envolvido. De quebra, a supressão do trabalho escravo na formação do país traz o
conflito político secessional entre Norte (industrial) e Sul (agrário e escravocrata) para a
configuração das formas poéticas.
Nesse percurso, como vimos, as respostas de Whitman à necessidade de uma
literatura nacional, legitimadas pelos antigos símbolos de luta (“a América contra o
feudalismo”; “as formas democráticas contra a literatura aristocrática”; o embate político,
não econômico, contra a escravidão) se transformam em anacronismo e desajuste diante da
nova ordem anunciada. Sintomático, portanto, é que o acirramento das tensões sociais e o
perigo da dissolução do Estado sejam vazados não pela poesia de diretrizes épicas dos
primeiros anos de Leaves of Grass (1855-1856), mas por sua negação, que faz surgir dos
escombros da vida política e da poesia pública um sujeito lírico.
O trajeto de formação desse sujeito lírico, que em Calamus (1860) retoma a ordem
americana em chave amorosa (“o amor entre os camaradas”) é complexo, pois, em primeiro
lugar, implica a superação de uma cultura consensual, de raiz religiosa, que não encontrava
meias palavras para designar o sucesso e o fracasso da realidade local (“American heaven
or Universal hell”, segundo Bercovitch
348
) e permanecia na base da primeira expressão do
desconcerto, presente nos chamados “poemas do oceano”, sobretudo em “Bardic Symbols
(1859), onde a busca do poeta “por tipos” termina em morte e caos absolutos diante de uma
natureza que nega todas as realizações de sua poesia anterior. Daí que a subjetividade lírica
revela uma outra face daqueles desajustes: não seria possível a alternativa subjetiva, que
vem a suprir o caos instaurado, sem a formação de um mundo que oferece, nos limites do
privado (agora absolutamente refratário à esfera pública), a esperança da comunhão com a
natureza e do concerto na relação com o Outro. Desfeita a indistinção entre o privado e o
público (não o contrário) que caracterizava, até então, a tipologia do “bardo americano”, e
348
BERCOVITCH, Sacvan. “Ritual of Consensus”. Em
The Rites of Assent: Transformations in the Symbolic
Construction of America
, 61.
264
apontando para a irreconciliação dessas esferas (à moda européia), Whitman chega ao
indivíduo cindido da totalidade, que só encontrará em sua limitação constitutiva (sua
solidão) a resistência e o universal perdido, seja na racionalidade corrupta da política e da
sociedade, seja na irracionalidade da guerra. Diante dessa configuração, a retomada da
ordem pública já no interior da lírica, como se vê em Drum-Taps (1867), só demonstra que
a necessidade da formação norte-americana se dava não como negação de um Outro, que as
periferias reconhecem em suas metrópoles coloniais, mas como negação de si. Não era a
colonização que interrompia o país em sua busca do centro. O que a literatura de Whitman
nos ensina é que a formação de sua sociedade, no sentido nacional próprio ao capitalismo
moderno, ocorreu às expensas de sua própria tradição, formação elegíaca que, antes de
abrir as portas do futuro, teria de enterrar seu próprio passado, não com o esquecimento,
mas com seu esvaziamento. Aquele mesmo Sacvan Bercovitch fala em “produtividade” e
“capacidade de renovação” inerentes à ideologia consensual norte-americana; no entanto, é
se renovando e absorvendo elementos que lhe são externos que essa mesma ideologia deixa
ao longo do caminho seus mortos, propriamente norte-americanos. Em outras palavras: não
é possível dizer que o capitalismo chegou à América com o Mayflower; e as exigências
produtivas e acumulativas eram maiores do que a república comercial fundada por 13
antigas colônias, que respondendo à luta contra a tirania, ficaram presas à antagonista
aristocrática como um “cadáver”, que está “preso a uma vida que se desenvolve em novas
formas”.
Essa inversão de papéis é claríssima na notícia que Whitman nos lega da Guerra de
Secessão: “É certo para mim que os Estados Unidos, em virtude daquela guerra e de seus
resultados, e apenas assim, estão agora prontos para entrar, e certamente vão entrar, em sua
carreira única na história, enquanto não se desfaçam mais, nem se dividam na espinha de
seus requisitos, mas sejam uma grande Nação homogênea – todos os Estados livres uma
unidade política e moral na variedade
349
(grifo meu). Ao término da guerra, o que era a
principal contradição das formas poéticas em 1855, a indissociação entre o plural e a
unidade no conceito de União, se resolve – e, do E Pluribus Unum, chegamos finalmente à
celebração de seu oposto, Ex Uno Plures. Retomando a formação nacional sob o prisma de
1855, o que temos de fato não é a celebração da América como o jovem continente que vê
349
WHITMAN, Walt. “
Origins of Attempted Secession
”. Em “
Collect
”.
Poetry and Prose
, 1023.
265
o Velho Mundo sendo carregado de casa, pois o elemento que dá sentido – ou melhor, vida
– àquela “existência meio satisfeita” do antebellum não é Americana. O Estado-Nação,
unificado sob um poder indivisível e absoluto, foi a solução européia (portanto, produto de
um “mundo em decadência”, diria Whitman) para que a política acompanhasse o
desenvolvimento de um modo de produção e relações sociais que a República Americana,
fundada sobre a crítica do poder absoluto e promessas da liberdade no comércio e da
felicidade no bem comum, não foi capaz de promover.
É preciso neste ponto destacar a importância do esvaziamento (não do apagamento)
das estruturas políticas tradicionais em relação dialética com a formação do capitalismo
norte-americano. Embora a Guerra Civil norte-americana tenha marcado o embate final
entre um país formado nas exigências políticas de um capitalismo comercial (capaz de
manter em seu todo descentralizado, sem outras contradições que não as da esfera ética, a
convivência do trabalho livre com a escravidão, defendida pela Confederação sulina como
um direito) e outro, unionista, para o qual era preciso quebrar barreiras comerciais e sociais
em nome da produção e do acúmulo ilimitado, a redenção de tradições arrasadas ao longo
do processo foi fundamental para a acomodação ímpar do capitalismo em terras norte-
americanas. Considerando-se um guardião da tradição revolucionária, Whitman fala junto a
uma massa que recupera esse legado na esteira dos movimentos revolucionários de 1848,
donde o nacionalismo popular que impulsiona a reivindicação da literatura nacional e sua
conotação reformista peculiar, baseada na mesma Democracia e no mesmo princípio de
nacionalidade que, entre os trabalhadores europeus ou nações submetidas à monarquia (que
não conheciam sequer o sufrágio masculino norte-americano) significava revolução. O
discurso reformista, presente em Emerson e outro discípulo seu, Thoreau, com a devida
carga conservadora, definida pelo retorno ao XVIII comercial como meio de deter a
degradação promovida pela massificação da sociedade, mostra a devida modulação que
sofre em meio aos trabalhadores norte-americanos, que como Whitman, comemoram as
Revoluções de 1848 (momento crucial da formação da classe proletariada) sem que suas
reivindações se confundam com as européias. A revolução para Whitman não era
impossível somente em virtude da natureza da Constituição norte-americana, que ainda
prevê o direito à rebelião diante de possíveis desmandos governamentais. A revolução era
266
impossível, pois, em comparação com os próprios movimentos europeus de 1848, ela já
havia acontecido.
O golpe que essa associação entre revoluções (visível em poemas como Europe,
72th and 73th Years of These States” e “A Boston Ballad (1854)”) desfere em favor da
anulação da tradição política norte-americana é imenso: de um lado, traduz-se em
desconhecimento da realidade européia, que poderia fornecer a Whitman problemas
próximos dos enfrentados por classes artesanais empobrecidas e desempregados de sua
Manhattan, talvez tão carentes de direitos quanto os europeus; de outro (e esta é a questão
mais aterradora), remodela a luta pela independência norte-americana como um conflito de
classe, do qual a Democracia sairá vencedora contra o antagonista aristocrata e tirânico.
Essa interpretação, implícita na própria formação da classe trabalhadora norte-americana
(dirá Sean Wilentz que, em Nova York, as revoluções de 1848 inspiraram votos, não
barricadas
350
) será determinante para a transição que Whitman perfaz, sem dificuldade, do
movimento nacionalista, de cunho popular, à celebração da nação, questão que, a exemplo
do que ocorreu na Europa, parte das classes dirigentes
351
e que participa da configuração
poética de Leaves of Grass à medida que a valorização da cultura popular e de massa, em
oposição aos modos da alta cultura, impulsiona a construção, que aquele continente viu
atribuída às altas rodas da sociedade, de uma simbologia e de uma linguagem literária
nacional.
350
WILENTZ, Sean.
Chants Democratic: New York City & the Rise of the American Working Class, 1788-
1850
, 359.
351
Havia uma diferença fundamental entre o movimento para fundar Estados-nações e o nacionalismo. O
primeiro era um programa para construir um artifício político que se dizia basear-se no segundo. Não
dúvidas de que muitos daqueles que se consideravam “alemães” por alguma razão achavam que isso não
implicava necessariamente um Estado alemão único, um Estado alemão de algum tipo específico ou mesmo
um Estado onde todos os alemães vivessem dentro de uma área determinada (...). Bismarck, por exemplo,
teria negado que sua rejeição a esse programa da “grande Alemanha” significasse que ele não era menos
alemão que um junker provinciano e funcionário do Estado. Ele era alemão, mas não um alemão nacionalista,
provavelmente nem mesmo um nacionalista “pequeno-alemão” por convicção, embora tenha unificado o país
(excluindo áreas do Inpério Austríaco que tivessem pertencido ao Sacro Império Romano, mas incluindo
áreas tomadas pela Prússia aos poloneses, que nunca tinham feito parte do Império Romano)”. HOBSBAWN,
Eric J.. “A construção das nações”. Em
A Era do Capital
, 133-134.
267
Essa síntese do alto e do baixo em perspectiva nacional pode ser atribuída ao
próprio processo de modernização norte-americana, que enquanto busca seu espaço na
economia mundial, recebe o influxo de correntes de pensamento e reivindicação européias
modernas em condições sociais e históricas únicas dentro do panorama periférico das
Américas. Pensando diretamente na América Latina, suas literaturas tiveram de esperar
pelas Vanguardias hispânicas ou pelo Modernismo brasileiro para a estabelecer aquele
nível de questionamento formal em âmbito nacional, já condicionado por uma leitura
muitas vezes privilegiada da cultura popular, em relação à qual Whitman se revela
precursor e inspirador de poetas como Pablo Neruda, Jorge Luis Borges e Mário de
Andrade
352
, cujas sociedades dificilmente conheceram tal integração entre formas de
expressão populares e construção nacional, que nos Estados Unidos pressupôs a eliminação
de contradições pré-modernas, encontradas nos impasses políticos da República frente à
expansão do capitalismo no mundo.
Hannah Arendt comenta que a libertação das colônias norte-americanas no XVIII e
a constituição da federação, afastando a América do desenvolvimento do Estado-nação
europeu, teria interrompido por mais de cem anos a unidade original do que ela chama de
“civilização atlântica”, lançando a América de volta à “vastidão desconhecida do novo
continente” e “desponjando-a da grandeza cultural da Europa”
353
. O percurso literário de
352
Vale aqui lembrar a própria contribuição da literatura norte-americana, com destaque a Whitman, para a
formação dos questionamentos que conduziram as literaturas européias à vanguarda: é na Europa que
Whitman se tornará precursor do
vers libre
(segundo Edmund Wilson, procedimento técnico introduzido no
verso francês por um escritor norte-americano radicado na França, Francis Vièle-Griffin) e de procedimentos
imagéticos, disputado pelos Simbolistas franceses e depois pelas diversas correntes artísticas do início do
século, sobretudo Futuristas e Espiritonovistas.
No Modernismo brasileiro, a recepção de Whitman já é filtrada por essas tendências de vanguarda. Sobre o
assunto, vale a leitura dos ótimos trabalhos de PARO, Maria Clara Bonetti,
Leituras Brasileiras da Obra de
Walt Whitman
. Tese apresentada junto à área de Teoria Literária e Literatura Comparada para a obtenção de
título de Doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
orientada pela Prof. Dr. Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo, 1995. _________________. Recepção
Literária de Walt Whitman no Brasil: primeiro tempo modernista: 1917 - 1929. Dissertação de Mestrado,
defendida na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH - USP) em 1979, orientada pela
Prof. Dr. Oneida Célia Pereira de Queiroz.
353
ARENDT, Hannah.
Da Revolução
, 156.
268
Whitman, que encontra seus anos decisivos em um momento muito próximo do vencimento
do século que separou, segundo a filósofa, Novo e Velho continentes, não nos fala tanto
sobre aquele desconhecido, que a leitura da cultura norte-americana pode ainda traduzir por
seu isolamento ou sua especificidade quase intangível no mundo, mas sobre o rápido e
intenso reconhecimento de terras que, à sombra das contradições insustentáveis
identificadas por Arendt na perda da tradição revolucionária norte-americana, recorreram às
traições do Velho Mundo, assumindo e renovando não o que lhes era próprio graças à
realização revolucionária, mas o gasto princípio de desigualdades e tirania que, a princípio,
negavam. Melhor do que todos, Whitman traz em sua poesia a expressão desse processo
formativo, a formação como elegia.
269
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Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, orientada pela Prof. Dr. Aurora
Fornoni Bernardini. São Paulo, 1986.
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apresentada junto à área de TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA
COMPARADA para a obtenção de título de DOUTOR pela Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, orientada pela
Prof. Dr. Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo, 1995.
______________________.
Recepção Literária de Walt Whitman no Brasil: primeiro
tempo modernista: 1917 - 1929. Dissertação de Mestrado, defendida na Faculdade
de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH - USP) em 1979, orientada pela
Prof. Dr. Oneida Célia Pereira de Queiroz.
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Volume 62, nº 4 .
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Matthiessen”. In American Literature. New York: Duke University Press, 12.1998,
Volume 70, nº 4.
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New York: Duke University Press, 11.1980, Volume 52, nº 3.
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and the Literary Pattern” In American Literature. New York: Duke University
Press Volume, 10.1982, Volume 54, nº 3.
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Literature. Duke University Press, 05.1982, Volume 54, nº 2.
MARTIN, Terence. “The Negative Structures of American Literature”. In American
Literature. Duke University Press, 03.1985, Volume 57, nº 1.
MILDER, Robert. “The Last of the Mohicans and the New World Fall”. In American
Literature. New York: Duke University Press, 11.1980, Volume 52, nº 3.
RENKER, Elizabeth. “Resistance and Change: The Rise of American Literature Studies”.
In American Literature. New York: Duke University Press, 06.1992, Volume 64, nº
2.
ROMERO, Lora. “Vanishing Americans: Gender, Empire, and New Historicism”. In
American Literature. New York: Duke University Press, 09.1991, Volume 63, nº 3.
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277
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informações em http://www.recordedbooks.com
F) PESQUISA NO SÍTIO MAKING OF AMERICA, DA CORNELL UNIVERSITY
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New York: J.& H.G. Langley, Volume 36, 07.1855.
ANÔNIMO. "America for the Americans". In Putnam's monthly magazine of American
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Living Age Co. Inc., Volume 225, 30.06.1900.
APPLETON, T. G.. "The Flowering of a Nation". In The Atlantic Monthly. Boston:
Atlantic Monthly Co., Volume 28, 07.1871
354
Trata-se de uma "biblioteca digital de fontes primárias da história social americana", formada pela Cornell
University Library. O acervo é particularmente forte nas áreas de educação, psicologia, história americana,
sociologia, religião, ciência e tecnologia, contendo 267 monografias e mais de 100000 artigos de jornal
datados de um período que se estende de 1815 a 1926. A coleção pode ser acessada por
Corel Draw
, uma vez
que todo o acervo está devidamente escaneado, e os textos citados nesta bibliografia são aqueles que já estão
disponíveis em nosso computador, resultado de uma pesquisa que ainda está em seu início.
278
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Falls: University of Northern Iowa, Volume 154, 05.1892.
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Falls: University of Northern Iowa, Volume 168, 01.1899.
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University of Northern Iowa, vol. 82, issue 489, 06.1898
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