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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
CIÊNCIAS JURÍDICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
NÍVEL MESTRADO
BIOÉTICA E BIODIREITO:
discursos jurídicos acerca do aborto por grave anomalia fetal
PAULA PINHAL DE CARLOS
Orientador: Prof. Dr. Vicente de Paulo Barretto
São Leopoldo, fevereiro de 2007.
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PAULA PINHAL DE CARLOS
BIOÉTICA E BIODIREITO:
discursos jurídicos acerca do aborto por grave anomalia fetal
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito da Área das Ciências
Jurídicas da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos, para obtenção do título de Mestre em
Direito.
Orientador: Prof. Dr. Vicente de Paulo Barretto
São Leopoldo, fevereiro de 2007.
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Catalogação na Publicação:
Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184
C284a Carlos, Paula Pinhal de
Bioética e biodireito: discursos jurídicos acerca do aborto por
grave anomalia fetal / por Paula Pinhal de Carlos. -- 2007.
152 f. ; 30cm.
Dissertação (mestrado) -- Universidade do Vale do Rio dos
Sinos, Programa de Pós-Graduação em Direito, 2007.
“Orientação: Prof. Dr. Vicente de Paulo Barretto, Ciências
Jurídicas”.
1. Direito - Aborto. 2. Decisão judicial - Aborto - Grave
anomalia fetal. 3. Discurso jurídico - Direito da gestante. 4.
Bioética. I. Título.
CDU 343.62
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS
CIÊNCIAS JURÍDICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – PPGD
NÍVEL MESTRADO
A dissertação intitulada: Bioética e biodireito: discursos jurídicos acerca do aborto por grave
anomalia fetal”, elaborada pela aluna Paula Pinhal de Carlos, foi julgada adequada e aprovada
por todos os membros da Banca Examinadora para a obtenção do título de MESTRE EM
DIREITO.
São Leopoldo, 28 de fevereiro de 2007.
Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais,
Coordenador Executivo
do Programa de Pós-Graduação em Direito.
Apresentada à Banca integrada pelos seguintes professores:
Presidente: Dr. Vicente de Paulo Barretto
Membro: Dra. Gisela Maria Bester
Membro: Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho
DEDICATÓRIA
Aos meus pais que, como professores, foram os
responsáveis pelo despertar do meu interesse pela
vida acadêmica.
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Vicente de Paulo Barretto, por todo o
aprendizado nesses dois anos do curso de Mestrado
e, sobretudo, por ter sempre incentivado os alunos a
sustentar suas próprias idéias.
Ao Diogo, namorado e melhor amigo, que, mais do
que nunca, se revelou um grande companheiro,
apoiando-me em todos os momentos,
compreendendo as ausências, incentivando o alcance
dos objetivos traçados e compartilhando comigo
todas as vitórias.
À Taysa, que, como colega, sempre esteve disposta a
discutir minhas idéias durante a execução deste
trabalho, bem como a ler e tecer valiosas sugestões à
sua versão final e, que, como grande amiga,
socorreu-me em todos os momentos de “crise
existencial”, mesmo à distância.
À Profa. Dra. Maria Cláudia Crespo Brauner,
responsável pela minha iniciação científica, a quem
devo meu início nos estudos de gênero, bioética e
direitos humanos.
RESUMO
A partir do advento de novas tecnologias de diagnóstico pré-natal, passou a ser possível a
identificação intra-uterina de graves anomalias fetais. Contudo, o avanço da Medicina ainda
não permite, na grande maioria das vezes, a disponibilização de tratamento para essas
enfermidades. Por isso, o aborto adquire um sentido diferenciado, na medida em que se coloca
como a única opção disponível para amenizar o sofrimento daqueles, gestantes ou casais, que,
diante da impossibilidade de sobrevivência do feto após o nascimento, afirmam não poder
suportar levar a termo a gravidez. Isso se reflete também no âmbito jurídico, principalmente
por meio das ações judiciais que demandam autorização para a realização do aborto. Diante
da ausência de regulamentação legal da questão, a resposta tem sido dada pelo Poder
Judiciário. O objetivo principal deste trabalho é o de verificar quais são os discursos jurídicos
proferidos sobre o tema, bem como o de compreender os significados que engendram esses
mesmos discursos, dando-se especial ênfase à questão da gestante. Como objetivos
específicos, cabe citar: a realização de um estudo histórico referente ao aborto, a averiguação
das questões éticas suscitadas diante da aplicação das novas tecnologias de diagnóstico pré-
natal, o exame do conteúdo dos princípios e direitos constitucionais que dizem respeito ao
tema, a análise dos projetos de lei em tramitação no Brasil, a realização de um estudo de
jurisprudência, a apreciação dos argumentos suscitados pela Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 54, a verificação da abrangência do conceito de gênero, a
compreensão da maternidade como uma importante constituinte do gênero feminino, e suas
conexões com a maternidade, a observação do processo de reconhecimento dos direitos
sexuais e reprodutivos e, por fim, a investigação do conteúdo ideológico do Direito. Como
metodologia, recorreu-se à pesquisa bibliográfica descritiva de caráter interdisciplinar,
abrangendo não só a área jurídica, mas também a História, a Filosofia, a Saúde, a Bioética, a
Antropologia e a Sociologia. Foi efetuada também pesquisa documental, envolvendo tratados
e convenções internacionais, leis, projetos de lei, ações e decisões judiciais. Percebe-se que os
discursos jurídicos proferidos acerca da gestante nos casos de aborto por grave anomalia fetal
têm profundas conexões com o papel de gênero feminino tido por ideal, especialmente com a
relevância que a maternidade adquire no exercício desse papel. Dessa forma, se a maternidade
é representada como destino biológico, o aborto significa a negação da própria natureza
feminina. Além disso, o aborto, nos casos de grave anomalia fetal, contraria o ideal do instinto
maternal, na medida em que demonstra o caráter cultural do amor incondicional da mãe pelo
filho e dos sacrifícios que fariam parte do exercício da maternidade. No caso da reprodução
dessas noções pelo Direito, verifica-se que isso é devido ao fato de que ele se constitui num
fenômeno ideológico, permitindo a manutenção de um determinado status quo e operando
como produtor e reprodutor de verdades. Assim, verifica-se que a liberdade da gestante não e
passível de legitimação jurídica, pois ela não é considerada como sujeito moral, capaz de
realizar escolhas no campo da reprodução.
Palavras-chave: aborto. grave anomalia fetal. gestante.
ABSTRACT
From the advent of new technologies of prenatal diagnosis, it started to be possible the
intrauterine identification of serious foetus anomalies. However, the improvement of
Medicine still does not allow, most of the times, the availability of treatment for these
diseases. Consequently, the abortion acquires another sense, because it leads to the only
available option to reduce the suffering of the pregnants or couples, who has to face the
impossibility of the foetus survival after the birth and do not consider themselves able to bear
and take pregnancy to the term. This fact also reflects in the legal area, mainly considering the
legal actions that demand authorization for abortion accomplishment. Because there is no
legal regulation for this question, the answer has been given by the Court. The main objective
of the present work is to verify what are the pronounced legal speeches regarding the subject,
as well as to comprehend the meanings that are behind these speeches, giving special enfasis
to the pregnant issue. As specific objectives, it is possible to quote: the accomplishment of a
historical study concerning abortion, the ascertainment of bioethical questions generated by
the use of new technologies of prenatal diagnosis, the content examination of the principles
and constitutional rights concerning the theme, the analysis of the law projects in course in
Brazil, the accomplishment of a jurisprudence study, the appreciation of the arguments
generated by “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental” nº 54, the verification
of the gender concept wide-ranging, the understanding of maternity as an important
constituent part of the female gender, the observation of the recognition process of sexual and
reproductive rights and, finally, the inquiry of the ideological content of the Law. The
methodology used was a descriptive and interdisciplinary bibliographical research, including
not only the legal area, but also History, Philosophy, Health, Bioethics, Anthropology and
Sociology. It has been also done a documentary research, involving treats and international
conventions, laws, law projects, actions and sentences. It has been perceived that the
pronounced legal speeches concerning the pregnants in cases of abortion for serious foetus
anomaly have deep connections with the ideal female gender role, specially with the
relevance that maternity acquires in this role exercise. Therefore, if maternity is represented as
a biological destination, abortion means the denial of the female nature itself. Moreover, the
abortion, in cases of serious foetus anomaly, opposes the ideal of maternal instinct, because it
shows the cultural side of unconditional love given by the mother to her child and the
sacrifices that would be part of the maternity exercise. In case of reproduction of these notions
by the Law, it is verified that it happens due to the fact that it consists in an ideological
phenomenon, allowing the maintenance of a determined status quo and operating as a
producer and reproducer of truths. Thus, it has been verified that the pregnant freedom cannot
be legitimized because the pregnant is not considered a moral subject, capable of making
choices in reproduction field.
Keywords: abortion. serious fetal anomaly. pregnant.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO …………………...……………………………………………….....…….. 10
2 O ABORTO NA HISTÓRIA E O IMPACTO DAS NOVAS TECNOLOGIAS DE
DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL ................................................................................................ 15
2.1 BREVE HISTÓRICO DO ABORTO NO OCIDENTE ............................................ 15
2.1.1 O Aborto no Século XIX ............................................................................... 16
2.1.1.1 O Processo de Medicalização da Saúde .............................................. 16
2.1.1.2 A Valorização da Maternidade ........................................................... 18
2.1.1.2 A Prática do Aborto ............................................................................ 20
2.1.2 Revolução Sexual, Contracepção e Aborto a partir dos Anos 1960 ......... 23
2.1.2.1 Estados Unidos e Europa .................................................................... 24
2.1.2.1.1 Modificações sociais a partir da possibilidade de controle da
fecundidade ............................................................................................ 24
2.1.2.1.2 A emergência do movimento feminista .................................. 26
2.1.2.1.3 Aborto ..................................................................................... 27
2.1.2.2 Brasil ................................................................................................... 32
2.1.2.2.1 Movimento feminista e ditadura militar ................................. 32
2.1.2.2.2 Controle da fecundidade e aborto ........................................... 33
2.2 AS NOVAS TECNOLOGIAS DE DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL E A
DISCUSSÃO SOBRE O ABORTO: O CASO DAS GRAVES ANOMALIAS FETAIS 35
2.2.1 A Aplicação do Conceito de Pessoa ao Feto Portador de Grave
Anomalia ................................................................................................................. 38
2.2.1.1 Relevância da Questão ........................................................................ 38
2.2.1.2 O Feto pode ser Considerado Pessoa? ................................................ 40
2.2.1.3 Viabilidade e Graves Anomalias Fetais .............................................. 44
2.2.1.4 A Controvérsia acerca do Aborto é Solucionada mediante
a
Resposta à Questão o Feto é Pessoa? ............................................................. 45
2.2.2 Sacralidade da Vida versus Qualidade de Vida .......................................... 49
2.2.3 O Aborto por Grave Anomalia Fetal enquanto Procedimento Eugênico 53
3 O ABORTO POR GRAVE ANOMALIA FETAL E OS PODERES LEGISLATIVO E
JUDICIÁRIO BRASILEIROS ................................................................................................ 58
3.1 O ABORTO POR GRAVE ANOMALIA FETAL E O PODER LEGISLATIVO .. 59
3.1.1 Constituição Federal ..................................................................................... 59
3.1.1.1 A Dignidade da Pessoa Humana como Princípio Constitucional
Fundamental .................................................................................................... 61
3.1.1.1.1 O caráter de princípio jurídico ................................................ 61
3.1.1.1.2 Conteúdo ético da dignidade da pessoa humana .................... 62
3.1.1.1.3 Conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana ............... 63
3.1.1.2 Os Direitos Fundamentais ................................................................... 65
3.1.1.2.1 O direito à vida ....................................................................... 67
3.1.1.2.2 O direito à liberdade ............................................................... 68
3.1.1.2.3 O direito à saúde ..................................................................... 70
3.1.2 Projetos de Lei ............................................................................................... 72
3.2 O ABORTO POR GRAVE ANOMALIA FETAL E O PODER JUDICIÁRIO ...... 74
3.2.1 O Discurso dos Jul
g
adores nos Acórdãos de Aborto por Grave
Anomalia Fetal ........................................................................................................ 75
3.2.1.1 Linguagem Jurídica e Definições Persuasivas .................................... 76
3.2.1.2 Definições Persuasivas nos Acórdãos Coletados ................................ 78
3.2.1.2.1 Definições persuasivas referentes ao Direito ......................... 80
3.2.1.2.2 Definições persuasivas referentes ao feto ............................... 80
3.2.1.2.3 Definições persuasivas referentes à gestante .......................... 81
3.2.1.2.4 A visão do Poder Judiciário acerca da gestante ...................... 87
3.2.2 A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 90
4 MULHER, MATERNIDADE E ABORTO POR GRAVE ANOMALIA FETAL .......... 94
4.1 MULHER, GÊNERO E DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS ..................... 94
4.1.1 Conceito de Gênero ....................................................................................... 94
4.1.2 A Maternidade como Constituinte do Gênero Feminino ........................... 98
4.2 O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS ......... 104
4.2.1 Conceituando Direitos Sexuais e Reprodutivos ......................................... 105
4.2.1.1 Surgimento da Noção de Direitos Reprodutivos ................................ 107
4.2.1.2 Surgimento da Noção de Direitos Sexuais .......................................... 108
4.2.2 Instrumentos Internacionais de Proteção aos Direitos Sexuais e
Reprodutivos ........................................................................................................... 110
4.2.2.1 Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres .................................................................. 110
4.2.2.2 Segunda Conferência Internacional de Direitos Humanos ................. 111
4.2.2.3 Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a
Violência contra a Mulher .............................................................................. 111
4.2.2.4 Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento ........ 111
4.2.2.5 Quarta Conferência Mundial da Mulher ............................................. 113
4.2.3 Proteção dos Direitos Sexuais e Reprodutivos no Direito Brasileiro ........ 114
4.3 NOTAS SOBRE A VINCULAÇÃO ENTRE DIREITO E IDEOLOGIA 116
4.3.1 Conceituando Ideologia ................................................................................ 116
4.3.2 O Direito como Fenômeno Ideológico ......................................................... 121
4.3.3 Maternidade e Escolhas Reprodutivas ........................................................ 125
5 CONCLUSÃO ..…………………...……………………………………………….....…….. 131
REFERÊNCIAS......................................................................................................................... 138
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho trata do aborto
1
em decorrência de grave anomalia fetal, sendo
restrito às patologias letais, que podem ser abrangidas pelo conceito de inviabilidade,
sendo consideradas irreversíveis e comprometendo funções vitais, o que necessariamente
gera a morte do recém-nascido muito pouco tempo após o parto. Busca-se estudar
sobretudo as questões relativas à gestante.
O objetivo principal é o de verificar quais são os discursos jurídicos proferidos
sobre o tema, bem como o de compreender os significados que engendram esses mesmos
discursos. Como objetivos específicos, cabe citar: a realização de um estudo histórico
referente ao aborto; a averiguação das questões éticas suscitadas diante da aplicação das
novas tecnologias de diagnóstico pré-natal; o exame do conteúdo dos princípios e
direitos constitucionais que dizem respeito ao tema; a análise dos projetos de lei em
tramitação no Brasil; a realização de um estudo de jurisprudência; a apreciação dos
argumentos suscitados pela Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) nº 54; a verificação da abrangência do conceito de gênero; a compreensão da
maternidade como uma importante constituinte do gênero feminino; a observação do
processo de reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos e, por fim, a investigação
do conteúdo ideológico do Direito.
Para tanto, realizou-se pesquisa bibliográfica descritiva, a qual, em virtude da
complexidade do tema, demandou uma abordagem interdisciplinar, recorrendo-se à
bibliografia não só da área jurídica, mas também da História, da Filosofia, da Saúde, da
Bioética, da Antropologia e da Sociologia. Foi efetuada também pesquisa documental,
envolvendo tratados e convenções internacionais, leis, projetos de lei, ações e decisões
judiciais.
O avanço da ciência permitiu o surgimento de novas tecnologias de diagnóstico
pré-natal, passando a ser possível a identificação intra-uterina de graves anomalias
fetais. No entanto, essa situação gerou um paradoxo, na medida em que, na grande
1
Embora o termo médico correto seja abortamento, optou-se neste trabalho pelo emprego do vocábulo aborto, já
que, além de ser esta a expressão mais comumente utilizada nos mais diversos âmbitos científicos, também está
em conformidade com a conceituação jurídica.
maioria das vezes, não há tratamento disponível para essas enfermidades. Dessa forma,
a interrupção da gestação coloca-se como a única opção disponível para amenizar o
sofrimento da gestante (ou do casal) que afirma não poder suportar levar a termo a
gravidez, sabendo que seu filho não possui chances de sobrevivência.
Diante desse avanço da Medicina, percebe-se também reflexos no âmbito
jurídico. Isso se dá sobretudo por meio das ações judiciais postulando a concessão de
alvarás que autorizem a realização do aborto. Diante da ausência de regulamentação da
questão, já que o Código Penal, que disciplina as práticas abortivas no país, é de 1940,
época em que não era possível realizar o diagnóstico pré-natal dessas graves
malformações, as pessoas buscam se socorrer do Poder Judiciário, que adquire, aqui,
um papel fundamental.
Num primeiro momento, tentar-se-á demonstrar, a partir de um resgate
histórico, a polêmica que tem envolvido a temática do aborto. Para tanto, será focalizado
o Ocidente e, especificamente, três momentos históricos: o século XIX, o período
posterior aos anos 1960 e o que engloba o final do século XX, quando se verifica um
maior desenvolvimento e a difusão das novas tecnologias de diagnóstico pré-natal.
A escolha pela Idade Moderna foi efetuada porque, com o seu início, o processo
de medicalização da saúde insere mudanças substanciais. Assim, também os cuidados
com a gestação passam a ficar a cargo dos médicos, e não das parteiras, dissolvendo-se
as redes de solidariedade femininas, responsáveis pela difusão de métodos abortivos.
Com o aumento do poder dos médicos o aborto, assunto antes privado, torna-se público,
passando a ser mais perseguido. Nesse período o aborto adquire outro sentido, pois,
diante da nova lógica da família nuclear, passa a ser utilizado como controle da
fecundidade e no interior das relações conjugais.
Na segunda metade do século XX, percebe-se a instauração de processos
descriminalizatórios do aborto nos Estados Unidos e em muitos países europeus, sendo
que a análise deste trabalho será restrita aos Estados Unidos e à França. Esse fato tem
profunda conexão com o advento dos métodos contraceptivos eficazes, como a pílula
anticoncepcional. Propicia-se, dessa forma, a ocorrência de uma revolução sexual, com a
possibilidade de dissociar sexo de reprodução. Paralelo a isso, emerge a segunda onda do
movimento feminista, composta por mulheres que reivindicavam autonomia corporal,
inclusive no que dizia respeito ao aborto. Analisar-se-á também os reflexos dessas
modificações sociais no Brasil, verificando de que forma as reivindicações relativas à
contracepção e ao aborto forma aqui inseridas, especialmente diante do momento
histórico presenciado, qual seja, o regime militar.
Após isso, serão averiguados os principais complicadores trazidos pelas novas
tecnologias de diagnóstico pré-natal à já polêmica discussão sobre o aborto. Com isso,
serão analisados também não só o impacto do advento dessas novas tecnologias, mas
outras questões pertinentes ao aborto em caso de grave anomalia fetal, tais como a
extensão do conceito de pessoa, o critério de inviabilidade e a aplicação das noções de
qualidade de vida e eugenia a esse tipo à interrupção da gestação.
Passado o estudo de questões históricas, referentes ao século XIX e aos anos 1960,
e bioéticas, relativas ao advento das novas tecnologias de diagnóstico pré-natal, dar-se-á
início ao estudo jurídico do tema, tendo-se por base aspectos legislativos e judiciais
concernentes ao aborto por malformação fetal grave. Num primeiro momento, verificar-
se-ão os dispositivos constitucionais atinentes à questão. A análise da Constituição torna-
se indispensável diante da presença de uma lacuna na legislação penal, não
contemplando, nas excludentes do crime do aborto, os casos de patologias consideradas
letais. Serão apreciados, também, os projetos de lei que tramitam no Congresso
Nacional sobre o aborto por grave anomalia fetal.
Quanto à atuação do Poder Judiciário, inicialmente expor-se-ão os resultados de
uma pesquisa de jurisprudência realizada em alguns Estados do país, objetivando-se a
visualização das tendências discursivas relativas ao Direito, ao feto e à gestante, o que
será feito por meio de um estudo de linguagem jurídica. Com isso, tentar-se-á
demonstrar qual é a visão que os julgadores possuem acerca da gestante de feto
portador de grave anomalia que deseja realizar um aborto. Por fim, proceder-se-á à
averiguação da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54,
repercutida nacionalmente, já que levou à apreciação do Supremo Tribunal Federal a
questão do aborto devido à anencefalia fetal. Assim, serão analisados os principais
argumentos trazidos pela peça processual.
No último capítulo, com base nas considerações feitas principalmente à atuação
judicial no julgamento dos alvarás que postulam a realização do aborto, tentar-se-á
identificar os porquês das tendências discursivas encontradas em relação à gestante. Isso
se dará a partir da compreensão de que as preocupações relativas à mulher são parte
fundamental do problema do aborto.
Para tanto, iniciar-se-á com a exposição do conceito de gênero, o qual é
imprescindível para a análise de questões que envolvem as mulheres, tal como o aborto
por grave anomalia fetal. Isso porque é a partir de uma perspectiva de gênero que será
possível compreender o papel que a cultura tem sobre a produção da feminilidade, bem
como que esse construto social pode ser naturalizado, o que faz com que ele passe
despercebido, sendo visto como imutável.
A partir da verificação da construção do papel social de gênero feminino,
necessitar-se-á estudar a relevância da maternidade. Isso será necessário para verificar
se, devido ao fato de a gestação consistir num processo biológico exclusivamente
feminino, ela pode fazer com que a maternidade seja tida como o aspecto central da vida
das mulheres, o que poderia justificar os sacrifícios necessários ao exercício desse
destino biológico. Ademais, procurar-se-á compreender o significado que o aborto pode
ter se a maternidade é visualizada como constituinte do gênero feminino.
Em contraposição ao exposto, entendendo a maternidade não como destino
natural, mas como escolha, caberá expor a noção de direitos sexuais e reprodutivos. Ela
denota a rejeição à compreensão da sexualidade e da reprodução como intrínsecas ao
âmbito da natureza, o que faz com que esses processos sejam passíveis da racionalidade
do Direito. Dessa forma, expor-se-á o processo de reconhecimento desses direitos,
demonstrando-se, também, de que forma eles estão garantidos, seja pelo Direito
Internacional ou Brasileiro.
Ao perceber-se que os discursos jurídicos estão fortemente atrelados à
naturalização da maternidade, será preciso tratar da vinculação entre Direito e
ideologia. Consistindo a ideologia numa forma de dominação, que opera de maneira
velada, produzindo verdades, tal noção pode estar vinculada ao Direito. Portanto,
procurar-se-á verificar se o Direito consiste num fenômeno ideológico, o que faria com
que ele reproduzisse desigualdades e estereótipos presentes em nossa sociedade. Tratar-
se-á, então, de aplicar tal noção aos discursos relativos ao aborto por grave anomalia
fetal.
É com base nesses discursos que será problematizada, conclusivamente, a
efetividade do status de sujeito da gestante, sobretudo com base nas poucas
considerações relativas à sua liberdade e à necessidade da utilização do critério de
inviabilidade, como forma de desqualificar o feto, para que sejam tecidas considerações
a seu respeito.
2 O ABORTO NA HISTÓRIA E O IMPACTO DAS NOVAS TECNOLOGIAS DE
DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL
Nesse primeiro momento, tentar-se-á, a partir de um resgate histórico,
demonstrar o impacto das novas tecnologias de diagnóstico pré-natal nas já polêmicas
discussões acerca do aborto. Para tanto, realizar-se-á um breve histórico do aborto no
Ocidente, privilegiando dois momentos: o século XIX e o período a partir dos anos 1960.
Posteriormente, adentrar-se-á na questão específica do aborto por graves malformações
fetais, suscitada a partir do advento de novas tecnologias de diagnóstico pré-natal, a
qual traz consigo diversos complicadores, tais como as questões relativas à aplicação do
conceito de pessoa ao feto, bem como a emergência dos temas da qualidade de vida e da
eugenia.
2.1 BREVE HISTÓRICO DO ABORTO NO OCIDENTE
O aborto é algo que parece ter sido praticado em todos os tempos e nos mais diversos
locais. A regulamentação sobre sua prática, no entanto, seja ela com base na moralidade da
sociedade em que é verificada, ou mesmo no Direito, é que é diferenciada. Em conformidade
com Junges, grande parte dos filósofos gregos aprovava o aborto por motivos eugênicos ou
demográficos. Na Roma Antiga, os pais tinham o poder decidir sobre a vida ou morte de seus
filhos. Na Idade Média, era feita uma divisão entre fetos não-animados e animados, sendo
apenas a expulsão dos últimos considerada como aborto (2006, p. 150).
Embora a prática do abortamento seja muito antiga, perdendo-se no tempo
(PEDRO, 2003a, p. 21), serão analisados aqui somente dois momentos históricos
específicos do aborto no Ocidente, quais sejam, o século XIX e o período dos anos
sessenta do século XX. É na Idade Moderna que se insere uma mudança substancial,
com o processo de medicalização da saúde, o que culmina também no maior
desenvolvimento da ginecologia e da obstetrícia. A mulher passa a ser mais estudada e
os cuidados com a gestação deixam, pouco a pouco, de ficar a cargo das parteiras,
passando ao poder dos médicos. Com isso, práticas abortivas comumente empregadas
não são mais tão acessíveis às gestantes, com a dissolução das redes de solidariedade
femininas. O que é relativo à saúde feminina passa ao domínio homens, que exercem seu
poder sobre os corpos femininos por meio da Medicina.
O período histórico posterior aos anos 1960, por sua vez, traz consigo uma verdadeira
revolução, sendo possível verificar diversas transformações sociais. Novamente a Medicina
está presente, pois é sobretudo a partir da possibilidade de utilização de métodos
contraceptivos mais eficazes, especialmente da pílula anticoncepcional, que é possível
verdadeiramente separar sexo de procriação. Num período de grande efervescência cultural,
em que estão presentes manifestações sobre direitos civis de minorias, o feminismo adquire
visibilidade, colocando o direito ao aborto, bem como à contracepção, como formas de
assegurar a não ingerência sobre os corpos das mulheres. Nesse contexto, visualiza-se, nos
Estados Unidos e em alguns países europeus, legislações mais brandas a respeito dessa
prática.
2.1.1 O Aborto no Século XIX
Durante o século XIX, o aborto passa a ter um caráter diferenciado: diante da nova
lógica da família nuclear, dotada de um menor número de filhos, é visto também como uma
forma de controle da fecundidade, utilizado no interior das relações conjugais. As práticas
abortivas nesse período histórico não podem ser analisadas, no entanto, sem o estudo de dois
processos importantes e que afetaram sobremaneira a vida das mulheres da época, que são a
medicalização da saúde e a valorização da maternidade.
2.1.1.1 O Processo de Medicalização da Saúde
O processo de medicalização da saúde, verificado na Idade Moderna, teve grande
influência na publicização da prática do aborto nas sociedades européias ocidentais. Nesse
contexto, verifica-se o exercício de um controle, por parte de uma Medicina
institucionalizada, dos corpos femininos, com especial atenção à saúde materna, sendo que,
para Knibiehler, a vigilância e o culto destinado às mulheres grávidas dirigia-se sobretudo ao
feto (1994, p. 358). Assim, o discurso médico é valioso para a delimitação do papel social
atribuído às mulheres, legitimando a idéia de uma vocação maternal baseada em dados
biológicos, ao mesmo tempo em que passa aos homens um conhecimento eminentemente
feminino, relativo tanto aos cuidados com a gestação e o parto, quanto aos métodos abortivos.
É no século XIX que é intensificada a integração do corpo feminino ao campo das
práticas médicas (PEDRO; SILVA, 2003, p. 120). Dessa forma, a partir do final do século
XVIII, na Europa, verifica-se uma maior interferência dos médicos na vida familiar e na
saúde materno-infantil (PEDRO, 2003a, p. 31).
Nas suas referências específicas às mulheres, o discurso médico do século XIX reforça a
idéia de uma fragilidade feminina natural. Assim, a mulher, segundo Knibiehler, é,
nessa época, “uma eterna doente”. Todas as etapas da vida feminina, como a gravidez, o
parto, a puberdade e a menopausa, ainda que independente de qualquer doença, são
apresentadas como “crises temíveis” (1994, p. 361). O conhecimento médico é também
o responsável pela comprovação da biologicidade do amor materno (PEDRO, 2003a, p.
31). Também o desenvolvimento da ovologia, entre 1840 e 1860, demonstra que o
prazer feminino não é necessário para a ocorrência da fecundação, o que vem a
confirmar a vocação da mulher para a maternidade (KNIBIEHLER, 1994, p. 367).
Sendo a gravidez e o parto considerados como momentos críticos, caberia à Medicina
intervir nesses momentos das vidas das mulheres, trabalho antes reservado às parteiras. Com
isso, tem início o processo de medicalização do parto, o qual, para Knibiehler, inicia-se no
século XVIII, mas se difunde somente no século XIX. Inicialmente, tal prática médica é um
fator de esnobismo, já que o preço do trabalho do médico era o triplo ou o quádruplo do valor
cobrado pelas parteiras: “chamá-lo é um sinal de prosperidade”. Com a diminuição da
clientela das parteiras, muitas passam a trabalhar nos hospitais e em clínicas privadas, mas
submissas aos médicos, e não à disposição das gestantes. É assim que “uma forma tradicional
de solidariedade feminina desorganiza-se, e as mulheres perdem toda a autonomia no domínio
da reprodução” (1994, p. 358 e 360).
2
No entanto, refere Pedro que, apesar de o conhecimento médico ter tido grande
participação “na formulação de políticas públicas, na naturalização de papéis sexuais e
no controle da sexualidade das mulheres”, o controle dos médicos sobre a gravidez foi
difícil, já que tal acontecimento, assim como o do parto, era partilhado anteriormente
entre mulheres e permeado pelo pudor, o que dificultou o acesso masculino a fatos
considerados femininos. É nesse contexto que tem início a perseguição às parteiras e
curandeiras, ou seja, no cenário da “luta pelo controle da medicina institucional”
(2003a, p. 39).
2.1.1.2 A Valorização da Maternidade
Embora a prática da interrupção de uma gravidez indesejada tenha encontrado amparo
em várias culturas e em diversas épocas da história da civilização ocidental, os processos de
urbanização e aburguesamento, segundo Pedro, estariam por trás da instituição de formas de
controle sobre o corpo, as quais geraram, no fim do século XVIII, a dedicação à maternidade
como constituição da identidade de gênero (2003a, p. 22 e 27). Por isso, faz-se necessária uma
análise da valorização da maternidade nesse período histórico, já que tal fato tem relação,
assim como a medicalização da saúde, com as interdições às práticas abortivas.
2
Acrescenta a autora que, embora as mulheres tenham elas próprias se tornado médicas, “o seu acesso a essa
profissão foi tardio e lento. Durante muito tempo suspeitas aos olhos dos seus colegas masculinos,
comportavam-se como alunas dóceis para melhor serem aceites; não ousavam reivindicar postos de iniciativa e
de responsabilidade” (KNIBIEHLER, 1994, p. 361).
Conjuntamente com a ampliação do poder da Medicina institucionalizada, tem
influência na vida das mulheres do século XIX a valorização da maternidade. Compreende-se
que ela faz parte do seu destino biológico, bem como que a procriação é necessária para que a
sociedade burguesa prospere. Assim, as mães têm um papel muito específico nessa época,
sendo responsáveis pela manutenção da ordem doméstica, na qual são repassados para os
filhos os valores necessários à concretização da nova ordem política.
Para Fraisse e Perrot, no século XIX o poder que as mulheres ganham é sobretudo o de
mães, fazendo com que a maternidade seja supervalorizada (1994a, p. 12). A extrema
valorização da procriação pode ser visualizada também nos discursos acerca das mulheres sós
e celibatárias do século XIX. Tais mulheres eram vistas como praticantes de um desvio
relativo ao ideal feminino (DAUPHIN, 1994, p. 492). Essas mulheres negavam o destino
burguês de esposas e mães, contrariando, dessa forma, a sua natureza feminina.
Quanto ao papel da mãe no século XIX, verifica-se a presença dos ideais de abnegação
e de sacrifício de si mesma em favor dos outros, os quais embasam os conceitos que
permeiam a história cultural desse século em relação ao gênero feminino (GIORGIO, 1994, p.
234). É por esse motivo que, segundo Godineau, as mulheres são necessárias nas suas
famílias. O modelo republicano de mulher era o de mãe e as suas competências e a sua força
deveriam ser colocadas a serviço da família, não se estendendo às questões públicas (1994, p.
36).
3
Diante de tal valorização do papel social de mãe, a educação das filhas também
deveria servir para despertar o instinto maternal, o que, em conformidade com Knibiehler, era
realizado por meio de algumas práticas familiares do século XIX. Na educação das filhas
adolescentes por suas mães, ensinava-se que a menstruação lembraria às mulheres, todos os
meses, o seu “verdadeiro destino”. Além disso, a adolescente poderia tornar-se responsável
pela criação de um animal doméstico ou, ainda, pela participação na educação moral de uma
criança, na condição de madrinha. É, contudo, a boneca que consiste no principal instrumento
3
Ainda de acordo com a autora, a mãe republicana tem um papel social a representar no espaço público, na
medida em que tem o dever de “educar seus filhos como bons cidadãos”. Ela possui, portanto, uma
responsabilidade política, ainda que esta não ultrapassasse o âmbito doméstico (GODINEAU, 1994, p. 36).
de preparação à maternidade. Por volta de 1850, os fabricantes passam a produzir bonecas em
forma de recém-nascidos, produto que tem sucesso imediato (1994, p. 368 e 369).
Paradoxalmente à supervalorização da maternidade, verifica-se, no contexto histórico
do início da Idade Moderna, a prática do controle da fecundidade. Assevera Knibiehler que
cada vez mais mulheres desejavam reduzir o número de filhos. Os dois países que
apresentaram queda no número de nascimentos foram a França, a partir de 1790, e os Estados
Unidos, a partir de 1800. “A redução dos nascimentos é um fenómeno complexo, onde se
conjugam factores económicos, culturais, psicológicos: cada caso é especial”.
4
Além disso,
nessa época, a gravidez era tida como um obstáculo para a realização sexual, já que muitas
mulheres pensavam que as relações sexuais eram prejudiciais durante a gestação e a
amamentação, período que durava cerca de dois anos (1994, p. 731).
Nas classes médias francesas do século XIX, processos de controle da concepção
conhecidos há muito tempo começam a adentrar nos casais legítimos, sendo sobretudo o coito
interrompido o método mais utilizado, salienta a autora. Embora dependente essencialmente
da iniciativa masculina, prosperando a lógica patriarcal que determina a submissão passiva da
mulher ao dever conjugal, esse método vem a oferecer às mulheres da época “a possibilidade
de uma vida diferente, liberta das cargas da maternidade”. Com a redução do número de
integrantes da família, também a função materna se modifica, já que “a mãe de poucos filhos
está mais presente junto de cada um deles, mais atenta, mais terna” (KNIBIEHLER, 1994, p.
372 e 375).
2.1.1.3 A Prática do Aborto
Embora haja notificação da prática do aborto em diversos períodos históricos, no
âmbito da sociedade burguesa ele adquire um sentido diferenciado. Se antes era especialmente
uma prática destinada às mães solteiras e as mulheres liberadas sexualmente, agora passa a ser
visto como uma forma de controle da natalidade, no contexto da conjugalidade. Contesta-se,
assim, o papel social da mulher na sociedade burguesa, desvinculando-se sexo de reprodução,
4
O declínio dos nascimentos não pode ser creditado à industrialização, já que tanto na França quanto no Estados
Unidos tal processo o precede. Não corresponde à diminuição da mortalidade infantil e nem se deve à liberdade
de consciência praticada pelo protestantismo (a população francesa é majoritariamente católica). Na França, são
as camponesas que souberam regular mais cedo sua fecundidade, enquanto que as damas da aristocracia e da alta
burguesia, bem como as operárias, continuavam a ter muitos filhos (KNIBIEHLER, 1994, p. 371).
bem como a valorização da procriação e da maternidade. Contudo, isso ocorre paralelamente
ao aumento do poder dos médicos. O aborto torna-se um assunto público, não mais restrito,
portanto, às redes de mulheres, que partilhavam, juntamente com as parteiras, seus
conhecimentos sobre o funcionamento do corpo feminino.
Numa época em que as taxas de natalidade na classe média caíam vertiginosamente e
que, no entanto, os métodos contraceptivos disponíveis eram pouco confiáveis, o aborto
estava associado a uma estratégia genérica de controle da reprodução humana, infere
Walkowitz. Ao contrário do uso de métodos contraceptivos, que obrigava os casais a ter mais
consciência da sua sexualidade, o aborto, enquanto uma prática exclusivamente feminina,
possuía uma dimensão diferenciada, pois deixava clara a separação do ato sexual da intenção
reprodutiva. Ademais, as técnicas contraceptivas disponíveis na época requeriam tempo e
dinheiro, não apresentavam grande taxa de segurança e dependiam da cooperação dos
homens. Já o aborto, além de ser compreendido como um recurso nos casos de fracasso da
contracepção, tinha a vantagem de conferir às mulheres algum tipo de controle sobre a sua
pessoa, sobretudo nos casos em que o marido se negava a praticar a contracepção (1994, p.
421 e 422).
5
Embora o aborto fosse tido como uma negação do destino biológico feminino, ainda
segundo a autora, muitas mulheres de classe média recorriam às práticas abortivas com o
intuito de cumprir o papel de mãe de família burguesa. Portanto, “o ‘culto da verdadeira
feminilidade’ [...] incitava tanto a estratégias pró-natalidade como anti-natalidade”. Como no
início do século XIX as famílias mais enxutas haviam se tornado o símbolo da classe
burguesa, o planejamento do número de filhos fazia parte dessa ética familiar, associando-se
ao dever maternal de possuir menos e melhores filhos. “Longe de ser uma fuga à maternidade,
o aborto, enquanto alternativa à contracepção, ajudava a mulher burguesa a cumprir os seus
deveres para com os filhos, a classe, a raça” (WALKOWITZ, 1994, p. 428).
Para Fraisse e Perrot, no século XIX, a mulher, bem como o seu corpo, é pública e
privada e é o parto que coloca os corpos femininos num local central do aparelho social. O
5
Quanto aos métodos abortivos, refere Walkowitz que figuravam entre eles a auto-indução, a infusão de
substâncias abortivas, como a arruda, pílulas de chumbo, sangrias, banhos quentes e exercícios violentos. A
prática de tais atos não era individual, envolvendo a cumplicidade de uma rede de apoio entre mulheres. Como
último recurso, recorriam as mulheres a uma aborteira. Em meados do século XIX, o comércio que girava em
torno do aborto havia se tornado uma indústria, que era fonte de grandes lucros para médicos, farmacêuticos,
massagistas, curandeiros e para a indústria de drogas (1994, p. 422 e 423).
nascimento, por exemplo, com a substituição das parteiras pelos médicos, torna-se um assunto
estatal. O controle da natalidade, também: “os demógrafos se insinuam nos segredos de
alcova, suspeitando do aborto, praticado por um número crescente de mulheres casadas
multíparas, uma forma insidiosa de controlo dos nascimentos”. A vontade das mulheres,
portanto, intervém na limitação do número de descendentes, tornando-as também “actrizes
demográficas” (1994b, p. 347).
É a interferência médica sobre o corpo das mulheres que, ao desarticular redes de
solidariedade feminina, bem como ao desqualificar conhecimentos populares, o que era feito
pelas parteiras e curandeiras, apagou da memória muitas técnicas populares de interrupção da
gestação: “práticas anteriormente consideradas ‘coisa de mulher’, tratadas por mulheres,
transmitidas entre gerações, tornaram-se parte do conhecimento médico e masculino. Entre
estas, encontram-se as técnicas abortivas” (PEDRO, 2003a, p. 40 e 41).
Conforme Knibiehler, “desde sempre” as mulheres recorriam às práticas abortivas,
sozinhas ou com a ajuda de outras mulheres, sem se sentirem culpadas, pois acreditavam que
o feto só estava vivo a partir do momento em que se mexia, o que ocorria somente por volta
do quarto mês de gestação. No entanto, no século XIX o aborto passa a ter outro caráter e
significado, em virtude dos progressos técnicos e devido à interferência masculina no
processo. Devido aos conhecimentos adquiridos acerca da anatomia e da fisiologia femininas,
torna-se possível o uso de métodos menos traumáticos do que os utilizados anteriormente para
interromper a gestação, como drogas e quedas, passando a ser utilizada uma agulha de tricotar
para furar a bolsa que envolve o feto e, posteriormente, uma cânula que injeta água com sabão
no útero (1994, p. 374).
A prática feminina do aborto passou, no século XIX, a ter um outro peso e um
significado diferente como problema social e de identidade, assevera Walkowitz. Embora
classificada em definições oficiais como uma atividade ilícita de mulheres sexualmente
desregradas, compreende muito mais do que isso, tendo relação com o trabalho das mulheres,
o seu estilo de vida e as suas estratégias de reprodução, incluindo aí a atividade sexual não
reprodutora (1994, p. 404).
6
6
Segundo Walkowitz, o aborto, embora possuindo um estatuto legal no século XIX, era uma prática muito
evidente, consistindo também num grande negócio nos centros urbanos europeus e nos Estados Unidos. O tema
“provocava violentos protestos dos médicos, e grupos de pressão esforçavam-se por impedir o livre acesso das
Menciona a autora que as campanhas contra o aborto realizadas por médicos norte-
americanos, franceses, ingleses e russos demonstraram preocupações relativas à concorrência
profissional realizada pelas aborteiras. Outras inquietações diziam respeito à má conduta das
mulheres e às ameaças sobre a ordem social. As campanhas contra o aborto demonstravam
medos classistas, raciais e sexuais.
7
Um dos alardeadores dos médicos foi a difusão da prática
entre senhoras da alta sociedade. Entendiam eles que essas mulheres tinham abandonado os
seus deveres maternais, em prol de fins egoístas, tornando-as inclusive desleais em relação a
seus maridos (1994, p. 424).
Noticia Knibiehler que, independentemente do meio utilizado para abortar, o número
de interrupções da gestação aumentou na segunda metade do século XIX. Antes um ato
reservado a jovens seduzidas ou mães de famílias numerosas, passa a ser visto como um
processo de limitação dos nascimentos. Isso fez com que uma prática que antes era privada e
discreta, restrita ao âmbito feminino, passasse a ser comercializada no mundo dos homens
(1994, p. 374), já que também os médicos passam a realizar abortos, apropriando-se do
conhecimento antes exclusivo das parteiras.
Compreende-se, então, que o contexto verificado no século XIX, em relação às
mulheres, traduz explicações para a compreensão dos debates contemporâneos acerca do
aborto. Embora tal prática tenha sido interditada em grande parte das sociedades ocidentais da
época, foi sobretudo quando os médicos adquiriram uma espécie de domínio sobre os corpos
femininos que a maternidade e, conseqüentemente, a interrupção da gestação, geraram
maiores preocupações no âmbito público.
mulheres ao aborto”. As mulheres que interrompiam sua gestação eram freqüentemente vistas como alguém que
negava o seu destino materno. No momento em que os médicos passaram a compreender o aborto não somente
como o último recurso das mães solteiras, mas também como um método de controle da natalidade por parte de
mulheres casadas, passou a ser intensificada a propaganda pública e as medidas legais contra mulheres que
abortavam (1994, p. 421 e 424).
7
Para médicos franceses, ingleses e norte-americanos, essa fuga à maternidade poderia conduzir ao “suicídio da
raça”, alude Walkowitz. Expressava-se, dessa forma, a aplicação de alguns elementos do pensamento darwinista
ao problema populacional, já que uma linhagem racial superior era tida como indispensável para a sobrevivência
dos mais adaptados nas lutas de classe e nacionalistas. Nos Estados Unidos, também temia-se que as mulheres
prósperas, brancas e protestantes não gerassem filhos suficientes para a manutenção dos domínios político e
social do seu grupo. Na Grã-Bretanha, por fim, os eugenistas preocupavam-se com a diferença apresentada entre
a taxa de natalidade de mulheres das classes média e alta e das mulheres de classes inferiores. “No final do
século XIX demógrafos franceses imputavam o problema populacional francês à decadência geral da sociedade e
às mulheres egoístas e de espírito independente que se furtavam aos seus deveres cívicos de produzir filhos para
a defesa da república” (1994, p. 425 e 426).
Assim, a maternidade é valorizada e considerada, nesse momento histórico, como um
destino natural, como um dos principais papéis sociais atribuídos às mulheres. É esse o espaço
público reservado às mulheres da sociedade burguesa, pois, no papel de mães, cabia a elas
também a transmissão e manutenção dos valores republicanos. Logo, é no momento em que
se percebe que os métodos contraceptivos e abortivos são utilizados também nas famílias de
classe média, como forma de controle da natalidade, que o tema da perseguição ao aborto
ganha força. Tratava-se de garantir a prosperidade dessa ordem social, o que se daria também
pela procriação e, portanto, pela restrição das mulheres ao seu papel de mãe.
2.1.2 Revolução Sexual, Contracepção e Aborto a partir dos Anos 1960
Na segunda metade do século XX, verifica-se a instauração de um processo de
descriminalização do aborto nos Estados Unidos e em vários países europeus. Esse fato,
contudo, não é isolado: inscreve-se, ao contrário, num contexto de profundas
modificações sociais, caracterizadas, sobretudo, pela possibilidade de controle eficaz da
concepção, por meio dos novos métodos contraceptivos, como a pílula anticoncepcional,
bem como pela emergência da chamada segunda onda do movimento feminista,
reivindicando direitos sobre o próprio corpo. A análise concentrar-se-á nos Estados
Unidos e na Europa e, num segundo momento, referir-se-á especificamente ao contexto
brasileiro.
2.1.2.1 Estados Unidos e Europa
É nos Estados Unidos e em alguns países europeus que a discussão acerca do
aborto é mais contundente, gerando, inclusive, novas regulamentações legais sobre a sua
prática. Tal fato, ocorrido na década de 1970, tem como precedentes a possibilidade de
controle eficaz da fecundidade e a emergência do movimento feminista que, nesse
período histórico, vem reivindicar direitos sobre o próprio corpo, incluindo
contracepção e aborto.
2.1.2.1.1 Modificações sociais a partir da possibilidade de controle da fecundidade
Se, a partir do século XIX, conforme visto anteriormente, já se verifica uma
modificação na estrutura familiar, com a diminuição do número de filhos, a
fecundidade, a partir dos anos sessenta, cai ainda mais, diante da possibilidade de um
controle mais eficaz, com a utilização de novos fármacos. Com isso, o sexo desvincula-se
da atividade reprodutiva e a sexualidade adquire um novo caráter, sobretudo para as
mulheres.
A década de 1960 coloca em cena diversas mudanças e tanto a revolução sexual,
que surge com o feminismo, juntamente com outros movimentos a favor dos direitos
individuais, como a difusão da pílula anticoncepcional, são cruciais nas mudanças
verificadas nessa época (DURAND; GUTIÉRREZ, 1999, p. 215). Com isso, também a
instituição familiar foi atormentada quando, a partir de meados dos anos sessenta, os
números indicadores de natalidade e fecundidade começaram a cair, levando a maior
parte dos países desenvolvidos, após o período de quinze anos, à impossibilidade de
substituição da população (LEFAUCHEUR, 1995, p. 479).
Para Lefaucheur, a diminuição da mortalidade infantil gerou uma transição
demográfica nos países desenvolvidos: os pais já não precisavam mais ter cinco ou seis
filhos, na esperança de verem dois deles atingirem a idade adulta. Isso fez com que
pouco a pouco fosse limitada a fecundidade, instaurando-se um novo regime
demográfico, que tinha como características uma fraca mortalidade e fecundidade. Esse
birth control
8
encontrou, no final dos anos cinqüenta, uma forte arma, com o
aperfeiçoamento e a comercialização de contraceptivos hormonais e dispositivos intra-
uterinos, os quais, no entanto, “não se impuseram sem resistências nem lutas” (1995, p.
488).
Segundo Michel, graças aos progressos científicos foi possível a confecção de
contraceptivos eficazes, os quais permitiram às mulheres a separação da sexualidade da
procriação. A partir de então, foi iniciada uma grande batalha para colocar esses
métodos a serviço de todas as mulheres e para que fossem abolidas as legislações
repressivas à contracepção, em vigor em grande parte dos países. Nos Estados Unidos, a
maioria dos casais em idade procriativa utilizava algum método contraceptivo em 1973.
O mesmo se deu na França, na qual aproximadamente dois a cada três casais
praticavam a contracepção (1983, p. 118 e 119).
8
Cabe ressaltar que o investimento maciço na pesquisa de métodos anticoncepcionais, durante os anos 60,
se dá principalmente após a divulgação de estatísticas alarmantes acerca do crescimento populacional nos
países subdesenvolvidos (VIEIRA, 1999, p. 75).
Nos anos 1950 e 1960 a libertação feminina passa pelo controle da fecundidade, o
que vem a gerar uma reivindicação pela disposição do próprio corpo, na forma da
tentativa de legalização da contracepção, refere Mossuz-Lavau. A gravidez, nesse
contexto, se indesejada, é tida como algo que lesiona o livre exercício das potencialidades
femininas, pois passa a ser compreendido que a mulher “já não é apenas mãe” (1995, p.
80). Isso porque, com contraceptivos eficazes, a maternidade torna-se escolha e não mais
pode ser caracterizada como destino natural, o que permite que a mulher adquira
também outros papéis sociais.
O advento desses novos métodos contraceptivos está, para Lefaucheur, na origem
da “revolução das relações entre os sexos no que respeita à iniciativa e ao controlo da
concepção e, talvez, ao conjunto da vida sexual”. A pílula anticoncepcional,
especialmente, reduz as limitações nas relações sexuais e é muito mais confiável do que
os métodos anteriormente utilizados. Ressalta-se que os novos métodos contraceptivos
são de iniciativa feminina, permitindo às mulheres a decisão antecipada sobre a
concepção gerada pelas suas relações sexuais, sobre o número de gestações a que querem
se expor, bem como sobre o momento em que pretendem ter filhos. Deixa-se, então de
evitar os filhos, passando-se a desejá-los. A utilização desses métodos também permite às
mulheres, pela primeira vez, a não exposição contra a sua vontade ao risco de uma
gravidez, fazendo com que o desejo de paternidade também se torne tributário da
vontade da maternidade (1995, p. 489 e 490).
Foi a utilização de métodos contraceptivos, especialmente da pílula
anticoncepcional, fundamental para a explosão da sexualidade verificada durante os
anos 1960, afirmam Toscano e Goldenberg. Nesse contexto, a mulher passa a ser vista
como um ser com necessidades sexuais, que devem ser satisfeitas pelo seu parceiro. Ao
mesmo tempo, a não repressão do desejo não era mais somente uma regra masculina.
Foi porque o prazer sexual estava dissociado da procriação e a decisão acerca de ter um
filho era algo que podia e devia ser planejada que o exercício da sexualidade foi
modificado (1992, p. 70 e 71).
9
Essa nova visão acerca da mulher também está
profundamente conectada com a segunda onda do movimento feminista, que emerge
nesse período.
2.1.2.1.2 A emergência do movimento feminista
A emergência do movimento feminista nessa época não se constitui num fator
isolado. Está profundamente associado com essa dissociação entre o exercício da
sexualidade e a reprodução, a partir da possibilidade do controle da fecundidade, bem
como com a emergência de novas mulheres, que tinham maior acesso à educação e que
entraram no mercado de trabalho. Diante disso, buscam modificações nas suas vidas,
reivindicando, a partir de uma mobilização, direitos.
As mobilizações feministas ocorridas nos anos 1960 e 1970 foram em grande
parte reflexo dos conteúdos políticos produzidos nesse contexto histórico (DURAND;
9
O medo da gravidez, segundo as autoras, sempre foi uma espécie de freio ao livre exercício da sexualidade
feminina. Por isso a pílula era vista como uma verdadeira revolução no controle da sexualidade, já que seria
possível a busca do prazer sexual sem estar presente a preocupação com uma gestação indesejada. A gravidez
passa a ser uma opção, e não uma obrigação à qual todas as mulheres estão sujeitas e o exercício da sexualidade
passa a ser possível para mulheres de diferentes idades e dentro ou fora do casamento (TOSCANO;
GOLDENBERG, 1993, p. 71).
GUTIÉRREZ, 1999, p. 215). Os movimentos de liberação das mulheres apareceram a
partir de 1965 na América do Norte e na Europa, contendo uma nova geração de
mulheres com um nível de instrução superior ao de suas mães e que questionavam a
impossibilidade de utilização dos novos fármacos que permitiam a separação da
sexualidade da procriação, o seu tratamento como objetos sexuais, a exigência de um
papel doméstico na família, ou seja, um tratamento como o de um segundo sexo
(MICHEL, 1983, p. 121).
O sucesso do movimento feminista na segunda metade do século XX foi devido a
vários fatores: emergência da sociedade de consumo, entrada das mulheres em massa na
força de trabalho e integração com outros movimentos de libertação emergentes (como a
luta dos negros por direitos civis) (MURARO, 1993, p. 173 e 174). Por isso, a história das
mulheres pode ser dividida em duas épocas, separadas pela revolução sexual de 1960,
quando passaram a fazer parte da mão-de-obra, a controlar seu corpo e a desafiar a
supremacia masculina em todas as suas formas, fazendo com que a revolução contra o
patriarcado, ainda que não completa, fosse irreversível (LASCH, 1999, p. 113).
Para Beauvoir, “ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino
biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da
sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto, intermediário entre o
macho e o castrado que qualificam de feminino” (1980a, p. 9). Embora tenha sido escrito
em 1949, seu livro O segundo sexo ganha notoriedade sobretudo a partir da década de
1960, fundando, de certa forma, essa nova etapa do feminismo.
É “distinguindo sexo e género, e politizando o espaço que assim se define”, que
“os feminismos contemporâneos dotaram a feminilidade de profundidade e
possibilidade históricas”, entende Ergas. O slogan “o privado é político” não afirmava
somente uma não aceitação de que as prerrogativas dos maridos no casamento ou a
violência sexual ficassem confinadas à moralidade individual, mas denotava também a
importância da reconstrução do eu feminino (1995, p. 594 e 596).
Essa questão do “específico feminino” estava inserida num clima de insatisfação
geral, devido às grandes mudanças atravessadas pelo mundo após a Segunda Guerra
Mundial, entendem Toscano e Goldenberg. A forte predisposição pra uma ação política
organizada é oriunda da inferioridade feminina no plano político, da falta de
representatividade nas áreas do poder e das desigualdades no mercado de trabalho e no
plano educacional, dentre outras questões que provocaram um clima de inquietação
(1992, p. 31 e 32). O tema do aborto é uma dessas questões, verificando-se, a partir da
década de 1970, uma tendência descriminalizadora dessa prática, o que, sem dúvida, foi
fortemente influenciado pelas reivindicações feministas de controle sobre o próprio
corpo.
2.1.2.1.3 Aborto
Conforme o já afirmado anteriormente, as discussões levantadas sobre o aborto
na segunda metade do século XX inserem-se num momento específico de profundas
modificações sociais, as quais incluem uma nova visão da sexualidade, especialmente da
feminina, por meio da possibilidade de controle da fecundidade, e a emergência do
movimento feminista. O direito ao aborto tornou-se, nessa época, uma de suas principais
reivindicações, pois estaria associado à autonomia corporal. Sendo assim, verifica-se, a
partir dos anos 1970, uma onda de descriminalização dessa prática.
10
Devido ao fato de os métodos contraceptivos não serem totalmente eficazes,
compreendia-se que a total dissociação entre sexualidade e procriação somente efetuar-
se-ia por completo com a garantia do direito ao aborto, afirma Michel. Foram as
feministas inglesas e norte-americanas as primeiras a encabeçar essa luta. Em 1967, foi
instaurada a liberalização do aborto na Inglaterra e, em 1973, nos Estados Unidos. Na
França isso ocorreu somente em 1975 e a maior parte dos países europeus, após essa
data, descriminalizou o aborto (1983, p. 119 e 120).
Pedro revela que um dos grandes marcos no advento de legislações mais liberais
quanto à interrupção voluntária da gestação se dá na década de setenta. Foi o movimento
feminista, retomado na década de sessenta que, principalmente em países da Europa, gerou
ações que levaram a significativas modificações legislativas. “Ao lado disso, a campanha pelo
controle da natalidade, o ressurgimento de ligas malthusianas e a divulgação das últimas
descobertas – incluindo a da pílula – de métodos contraceptivos, promoveu uma verdadeira
revolução no campo da sexualidade e do direito das mulheres ao controle sobre seu corpo”
(PEDRO, 2003b, p. 169).
Segundo Ergas, as chamadas políticas do corpo eram as que apareciam de forma
mais freqüente nas agendas feministas e incluíam diversas questões, sendo que as
principais, nos países ocidentais, eram o aborto e a violência sexual. A idéia de que o
corpo lhes pertencia era difundida com base em que, ao ser expropriada do seu corpo, a
mulher era também expropriada do seu eu. Logo, se o desejo era o de retomar a posse
do eu, era preciso retomar também a posse corporal. A sexualidade foi o terreno crucial
para essa auto-reapropriação. Para muitas feministas, tirar a sexualidade do âmbito da
dominação masculina significava lutar pela liberalização da contracepção e do aborto.
Havia discordâncias, no entanto, por meio da compreensão de que o aborto apenas
reforçava privilégios masculinos (1995, p. 600-602).
Para a autora, apesar das oposições, as feministas mobilizaram-se na defesa da
liberalização do aborto em toda a Europa Ocidental e na América do Norte, sendo que
as maiores campanhas concentraram-se na França, na Itália, na Holanda, nos Estados
Unidos, no Reino Unido e na Espanha. Essas campanhas incluíam admissões de culpa
por parte de mulheres e médicos, auto-incriminações,
11
julgamentos exemplares,
12
assim
como a promoção do acesso ao aborto por parte de grupos de auto-ajuda, o que gerou
10
Aqui, contudo, restringir-se-á a análise desses processos legislativos aos Estados Unidos e à França.
11
Em 1971, 374 mulheres notáveis da Alemanha ocidental declararam a uma revista ter interrompido
voluntariamente sua gestação. No mesmo ano, 343 francesas assinaram um manifesto confessando a prática do
aborto, testemunho seguido, dois anos mais tarde, pelo de 345 médicos que admitiram ter feito abortos (ERGAS,
1995, p. 602).
12
É citado como exemplo o julgamento, em 1972, de Michèle Chevalier, de 16 anos, a qual teria sido estuprada
por um colega de aula, que a denunciou por ter praticado um aborto ilegal. Tal causa tornou-se célebre na França
(ERGAS, 1995, p. 603).
também uma cooperação internacional entre as feministas envolvidas na prestação de
serviços de aborto (ERGAS, 1995, p. 602).
Adverte Mori que foi na segunda metade dos anos 60 e no princípio da década
seguinte que o aborto passou a ser afirmado, por meio de repetidas intervenções de mulheres,
como um direito, o qual seria necessário para a garantia da igualdade entre elas e os homens.
Assim, o tema do aborto, antes “inominável”, passou a ser “um objeto sério de debate
público”, pois várias mulheres admitiam publicamente a prática abortiva em algum momento
de suas vidas. Elas também acusavam as legislações proibitivas de ineficácia e de as levar a
buscar abortos clandestinos. Novas tecnologias médicas utilizadas na prática do aborto
também podem ter sido responsáveis por tal reivindicação, já que o advento da técnica
abortiva por sucção transformou o procedimento em intervenção ambulatorial, e não mais
cirúrgica (1997, p. 25 e 26).
A partir de 1970, conforme Mossuz-Lavau, o aborto e a questão do corpo das
mulheres torna-se a principal preocupação das feministas francesas. No entanto, se era o
direito a serem as únicas donas de seus próprios corpos que era reclamado, é justamente
essa exigência que não é aceita por um certo número de instâncias. Dá-se prioridade, ao
contrário, à necessidade da eliminação do aborto clandestino e da modificação de leis
que são desrespeitadas diariamente, bem como, por fim, à argumentação econômica,
segundo a qual as famílias não possuem condições de ter todos os filhos que desejam
(1995, p. 81 e 82).
Segundo Durand e Gutiérrez, nos Estados Unidos e nas democracias européias a
luta pela legalização do aborto era tida como uma defesa da vida das mulheres, já que,
devido às condições da sua prática, ele poderia gerar sua morte, doença crônica ou
sanção legal. Tal movimento esteve intrinsecamente ligado à luta pela legalização da
anticoncepção, pois o controle da fecundidade era considerado como um bem moral,
como a liberdade e a responsabilidade de escolha, da qual as mulheres não podiam ser
privadas. Era postulado não só a não-interferência estatal na liberdade, mas a garantia
das condições de seu exercício (1999, p. 218 e 219).
Nossa atenção será voltada, agora, de forma mais específica, à regulamentação do
aborto, nos anos 1970, nos Estados Unidos e na França. De acordo com o relatado por
Durand e Gutiérrez, a denúncia da penalização do aborto foi um dos aspectos abordados
pelas mulheres norte-americanas na década de 60. Elas articularam-se para investigar e
denunciar as complicações e mortes registradas por abortos realizados de forma
insegura. Assim, a demanda pelo aborto legal e seguro apareceu como um princípio de
liberdade individual, sob o argumento de que as mulheres tinham direito à autonomia
sobre o próprio corpo, bem como que as decisões acerca da reprodução eram
necessárias para a ocorrência de um processo de autodeterminação feminino. Esses
argumentos foram contrapostos por meio da formulação do direito à vida (1999, p. 219).
Guitton e Irons revelam que, no caso Roe versus Wade, ocorrido nos Estados Unidos,
uma mulher solteira, utilizando o pseudônimo de Jane Roe, postulava autorização para
interromper sua gestação, alegando que a lei norte-americana violava seu direito à
privacidade, garantido constitucionalmente. A decisão da Suprema Corte reconheceu, então,
que as mulheres possuíam um direito fundamental ao aborto, embora tenha também
reconhecido o interesse estatal na proteção da potencialidade da vida humana após o primeiro
trimestre de gestação (1995, p. 23). O caso Roe versus Wade é o mais famoso dos já
decididos na Suprema Corte dos Estados Unidos e sua decisão tem sido criticada desde então
(DWORKIN, 2003, p. 141).
A Suprema Corte dos Estados Unidos, nesse caso, sustentou sua decisão na viabilidade
fetal, compreendendo que o Estado teria um interesse legítimo na proteção da vida em
potencial, o qual tornar-se-ia inexorável com a viabilidade, pois seria a partir de tal ponto do
desenvolvimento fetal que seria possível supor a capacidade do feto de levar uma vida
significativa fora do organismo materno, o que ocorreria entre o segundo e o terceiro
trimestres de gestação (SINGER, 1998, p. 149 e 150). A Suprema Corte, nessa decisão,
entendeu que o termo pessoa não incluía o ser não nascido (MORI, 1997, p. 26).
Na Europa, lembra Mori que o debate jurídico concentra-se sobretudo na preocupação
com o número de abortos clandestinos e com as suas decorrentes complicações, tendo sido
evitada a discussão sobre a personalidade do feto. Assim, a partir dos anos 1970 foram
aprovadas nesse continente diversas legislações permissivas ao aborto (1997, p. 26).
Segundo conta Ardaillon, a regulamentação do aborto na França e nos Estados
Unidos ocorreu de forma bastante diferente. Na França, o aborto não foi
descriminalizado. O que ocorreu foi que, em 1975, durante o auge das demandas
feministas, a lei de 1810 foi suspensa por cinco anos, até que um novo projeto fosse
regulamentado. Em 1979, a lei antiga foi votada de forma renovada. Manteve-se a
criminalização do aborto, garantindo-se o respeito ao ser humano desde o começo da
vida. O que ocorreu foi o acréscimo de um parágrafo autorizando a interrupção
voluntária da gravidez. Assim, não foi concedido um direito, mas uma tolerância. “A
nova lei criou um permissivo único que controla a desobediência”. Já nos Estados
Unidos o aborto foi declarado como um direito constitucional em 1973. Com isso, a
sociedade americana permitiu o aborto nos três primeiros meses de gravidez, garantindo
o direito à “expressão pública do íntimo” (1997, p. 386 e 387).
Nos debates franceses sobre a interrupção voluntária da gravidez, afirma
Mossuz-Lavau, as prerrogativas do homem são mencionadas: a sua aceitação poderia
conceder à mulher o direito de abortar sem o consentimento do pai do filho,
desapossando o homem de uma autoridade ancestral. Da mesma forma, era realizada
uma oposição à idéia de pertencimento do próprio corpo, com a compreensão de que o
corpo de uma mulher grávida deixa de a pertencer. Assim, a prioridade cabe ao filho, a
outra vida que em seu corpo se desenvolve (1995, p. 82 e 83).
Na França, por sua vez, conforme Durand e Gutiérrez, nos primeiros anos da
década de sessenta a preocupação centrava-se no desenvolvimento de consultórios de
planejamento familiar, proibidos por uma lei de 1920. Após os acontecimentos de maio
de 1968, tem início uma grande movimentação pela legalização do aborto, que
culminará com a aprovação de uma lei em 1975 (1999, p. 220).
Verifica-se, então, que os processos de descriminalização do aborto nesses dois
países, Estados Unidos e França, se deu de forma diferente. Nos Estados Unidos,
mediante uma decisão da Suprema Corte, conferiu-se ao aborto status constitucional,
compreendendo-o como um direito, o qual estaria associado à intimidade, ou seja, à não
interferência estatal. Na França, por sua vez, instituiu-se uma forma de tolerância legal,
concebendo-se, no entanto, que isso não desrespeita o direito à vida desde o seu
princípio.
2.1.2.2 Brasil
Em nosso país, ecoam as modificações visualizadas nos Estados Unidos e nos países
europeus. No entanto, isso se dá de forma diferenciada, já que o país se encontrava imerso no
regime ditatorial. Dessa forma, os principais esforços concentravam-se nas movimentações a
favor da restauração democrática, fazendo com que reivindicações específicas, como as
referentes aos direitos das mulheres e, mais especificamente, ao aborto, ficassem em segundo
plano.
2.1.2.2.1 Movimento feminista e ditadura militar
No Brasil, o movimento feminista está profundamente conectado com a
resistência ao regime militar. As mulheres organizam-se, em princípio, juntamente com
os homens, para mobilizar-se contra a ditadura, inclusive por meio da luta armada. Essa
inserção num contexto de luta política faz com que as militantes transcendam o papel
habitualmente reservado às mulheres, o que vem a gerar, entre elas, profundos
questionamentos acerca da condição social feminina.
Para Toscano e Goldenberg, o período de repressão política, iniciado em 1964, foi
propício para a conscientização acerca da situação da mulher na sociedade brasileira.
Algumas mulheres organizavam-se em torno da resistência à ditadura militar. Elas
possuíam as mais diferentes idades e origens políticas, sociais e religiosas (1992, p. 34).
O feminismo militante tem início no Brasil dos anos 1970 e surgiu principalmente
como conseqüência da resistência das mulheres à ditadura, após a derrota das que
acreditaram na luta armada, buscando-se elaborar política e pessoalmente tal derrota,
conforme Sarti. A presença de mulheres na luta armada significava não somente uma
insurgência contra a ordem política vigente, mas uma profunda transgressão ao papel
reservado na época às mulheres. Negando esse papel tradicional, as militantes assumiam
um comportamento sexual que colocava em questão a virgindade e o casamento e,
inclusive, pegavam em armas, ou seja, exerciam diversas facetas do papel antes atribuído
somente aos homens (2004, p. 36 e 37).
Para Rago, foi no contexto de crise e construção de novos padrões de
subjetividade e sexualidade nos anos 70 que emergiu o feminismo organizado em nosso
país. Esse movimento era formado por mulheres da classe média, sobretudo por
intelectuais. Na oposição à ditadura militar, o poder masculino era uma realidade
também dentro das organizações de esquerda, que impediam a participação feminina
em condição de igualdade com os homens. As feministas desse período objetivavam uma
recusa radical dos padrões sexuais e do modelo de feminilidade posto, colocando em
xeque também o conceito de mulher enquanto sombra do homem (1995/1996, p. 33).
As mulheres marcadas por uma experiência na esquerda política brasileira
entenderam que o movimento pelos direitos das mulheres não poderia ser subordinado à
luta pela redemocratização do país (RAGO, 1995/1996, p. 34). As feministas brasileiras,
durante o período ditatorial, organizavam-se “à margem da esquerda”, pois as
propostas feministas eram tidas como “pequeno-burguesas” para os partidos de
esquerda, vistas como incapazes de atender aos interesses das mulheres trabalhadoras e
desnecessárias naquele momento, em que o principal objetivo era a luta contra o
autoritarismo e o debate sobre os problemas sociais do país (MANINI, 1995/1996, p. 52).
Denota-se, portanto, que as questões referentes às mulheres não eram bem vistas
dentro do contexto de mobilização política contra a ditadura militar. Compreendia-se,
nesse momento, que toda a movimentação deveria reunir-se em torno de um só objetivo,
o que tornava de certa forma invisíveis as questões acerca da condição social feminina.
2.1.2.2.2 Controle da fecundidade e aborto
Durante o período da ditadura militar no Brasil, segundo Schultz, a
implementação de uma política de controle da natalidade era incompatível tanto com a
doutrina da Igreja Católica, detentora de uma grande força no país, como com o
discurso oficial do crescimento da população como algo favorável ao crescimento
econômico e à proteção geoestratégica de espaços não habitados. No entanto, era dada
permissão a um grande número de organizações privadas estrangeiras para que
implementassem programas de controle populacional. A maior delas, a Sociedade Civil
de Bem-estar Familiar, fundada em 1965, difundia uma ideologia neomalthusiana,
segundo a qual a causa do subdesenvolvimento é a população excessiva, sobretudo nas
classes pobres. Essa organização distribuía contraceptivos hormonais sem custo nas suas
clínicas, sem, no entanto, acompanhamento médico ou oferecimento de métodos
alternativos (1993, p. 82).
Para Pedro et al., teria sido no seio das discussões sobre a regulamentação da
fecundidade, que foram acirradas no Brasil a partir da década de sessenta, que o aborto passou
a ser debatido. Nesse contexto verificou-se também a entrada de novos métodos
contraceptivos em nosso país. Tal fato veio acompanhado de uma discussão acerca do aborto,
pois a pílula surgia também “como uma solução para a redução dessa prática”. Além disso, a
partir desse momento histórico, questões como aborto, contracepção, planejamento familiar e
preocupações com o crescimento da população
13
passaram a ser intimamente relacionadas
(2003, p. 230, 231 e 242). Foi a entrada no mercado brasileiro da pílula anticoncepcional,
conforme Pedro, ocorrida em 1962, assim como a discussão acerca da adoção de um
programa de controle de natalidade, que trouxeram à tona a temática do aborto. Teria sido
“justamente para combater sua incidência e prática que se defendia a comercialização e
distribuição de contraceptivos” (2003c, p. 297).
No Brasil, o aborto era visto como um drama social, oriundo da pobreza e da
ignorância das mulheres, ou seja, como questão de saúde pública, até 1975, ano a partir
do qual tem início uma efetiva demanda pela sua autorização (ARDAILLON, 1997, p.
377). Os debates brasileiros sobre o aborto são também um reflexo da inserção de
métodos contraceptivos e das preocupações com o crescimento populacional. No entanto,
em nosso país, as discussões acerca do tema não geraram uma regulamentação legal
diferenciada, permanecendo, assim, a legislação que já vigorava desde 1940 sobre o
tema. A questão do aborto, contudo, vem novamente à tona a partir da década de 1990,
com a profusão das novas tecnologias de diagnóstico pré-natal.
2.2 AS NOVAS TECNOLOGIAS DE DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL E A DISCUSSÃO
SOBRE O ABORTO: O CASO DAS GRAVES ANOMALIAS FETAIS
Verificar-se-á, a partir de agora, quais são os principais complicadores trazidos pelas
novas tecnologias de diagnóstico pré-natal, que podem levar à interrupção da gestação por
motivo de grave anomalia fetal, à já tão polêmica discussão acerca do aborto. Se somente o
tema aborto já provocava debates intensos nas sociedades ocidentais, não surpreende que o
diagnóstico pré-natal possa conduzir à exacerbação dos posicionamentos acerca da temática
(DOUCET, 1995, p. 128). Nesse sentido, será avaliado o impacto do advento dessas
tecnologias, bem como serão analisadas questões pertinentes ao aborto em caso de grave
anomalia fetal, tais como a extensão do conceito de pessoa ao feto, o critério da inviabilidade
e a aplicação dos critérios de qualidade de vida e eugenia a esse tipo de interrupção da
gestação. Trata-se, dessa forma, do estudo de questões bioéticas relativas ao aborto, já que,
além de esta ser uma questão envolvendo o início da vida, inclui, também, nos casos de grave
anomalia fetal, a consideração dos reflexos das novas tecnologias, o que é feito a partir de um
enfrentamento interdisciplinar, próprio da Bioética.
13
Destacam as autoras dois momentos relativos a políticas de controle da fecundidade no país: o primeiro,
ocorrido durante o regime militar, entre as décadas de sessenta e setenta, em que o Estado atua estimulando a
expansão da população e, o segundo, após os anos setenta, sob a influência de idéias neomalthusianas,
principalmente em função de pressões internacionais, em que o Estado passa a compreender a contracepção
como uma solução para problemas econômicos (PEDRO et al., 2003, p. 243).
Os primeiros registros acerca da discussão sobre o aborto por malformações fetais
ocorreram no início dos anos 60, ressalta Mori. Na Europa e nos Estados Unidos milhares de
mulheres haviam utilizado, no início de suas gestações, a substância denominada talidomida,
que não se sabia que gerava anomalias nos fetos. Tal problema parecia poder ser resolvido
com a ampliação das exceções normativas relativas ao aborto, que contemplam o risco de vida
materno e a gestação resultante de estupro (1997, p. 25).
No entanto, é somente no final do século XX, com o desenvolvimento e a conseqüente
difusão de tecnologias mais específicas e seguras de diagnóstico pré-natal, que o tema das
hipóteses de proibição do aborto se faz mais presente. O diagnóstico pré-natal objetiva a
detecção de patologias, principalmente de natureza genética ou malformativa, utilizando-se,
para tanto, técnicas não invasivas, como a ecografia, ou invasivas, como a amniocentese
14
(FASANELLA et al., 2001, p. 267). Se o aborto já era uma das questões éticas discutidas
mais acirradamente (SINGER, 1998, p. 145), tais discussões ganham um elemento
complicador quando passa a ser possível a identificação intra-uterina de anomalias fetais.
Assim, a possibilidade desses diagnósticos viria a gerar um novo capítulo na história do
debate acerca do aborto.
A capacidade da Medicina de verificar a saúde do feto gerou um paradoxo, pois,
embora seja possível a previsão de anomalias intra-uterinas consideradas incompatíveis com a
vida, é impossível oferecer aos pacientes a opção de amenizar o sofrimento decorrente desse
diagnóstico (FRIGÉRIO et al., 2002, p. 77), diante da impossibilidade de tratamento dessas
doenças graves. No atual estado do conhecimento e dos recursos médicos, a fase diagnóstica
raramente está vinculada à terapêutica, restando, na maioria dos casos, apenas duas
alternativas: a aceitação do feto ou o recurso à interrupção da gestação (SGRECCIA, 1996, p.
256). Ou seja, já que grande parte das doenças diagnosticadas pelas novas tecnologias pré-
natais não possui tratamento ou cura, muitas mulheres,
15
nos casos mais graves, desejam
14
A ecografia avalia a normalidade do crescimento fetal, permitindo a visualização de anomalias estruturais do
feto. Já a amniocentese consiste na retirada de líquido amniótico para a detecção de anomalias genéticas
(FASANELLA et al., 2001, p. 267).
15
Segundo pesquisa efetuada por Guilam em um ambulatório de genética pré-natal no país, contemplando
especialmente casos de anencefalia e Síndrome de Down, há reações diversas em relação à possibilidade de
interrupção da gestação, mesmo nos casos de feto anencéfalo, cuja interrupção pode ser juridicamente amparada.
Ou seja, nem todas as mulheres optam pela realização do abortamento, “seja por motivos religiosos, por
esperança de que algo aconteça e mude o curso da gravidez ou para viver a experiência da gestação até o fim”
(grifo da autora) (2005, p. 173).
interromper sua gestação (DINIZ, 2003, p. 252). Sendo assim, entende Gollop que, ao ser
detectada uma anomalia incompatível com a vida extra-uterina, deveria ser permitido ao
médico oferecer uma alternativa ética capaz de resguardar, na medida do possível, a
integridade emocional da gestante e/ou do casal (GOLLOP, 2000, p. 79).
Segundo Diniz, o exame realizado por meio de ecografia ampliou as possibilidades de
tratamento do feto e, ao mesmo tempo, introduziu o tema do abortamento por má-formação
fetal no cenário da Medicina Fetal (2003, p. 252). Antes da década de noventa, período em
que as técnicas de diagnóstico pré-natais estiveram restritas à Medicina privada, as decisões
acerca do abortamento ficavam restritas ao âmbito da relação médico-paciente. No entanto,
foi em meados dos anos noventa, com a inserção da ecografia na Medicina pública, “que a
pergunta sobre o que fazer diante do diagnóstico de inviabilidade fetal ultrapassou as
fronteiras dos consultórios e hospitais e alcançou os tribunais e o parlamento”. Isso porque
foram principalmente as mulheres usuárias do serviço público de saúde que buscaram
autorização judicial para interromper sua gestação (2005, p. 83).
Diante da utilização dessas novas tecnologias também no serviço público de saúde,
Gollop ressalta que o diagnóstico intra-uterino não pode ser considerado elitista, já que é
realizado apenas por ultra-sonografia em cinqüenta por cento dos casos. Metade das graves
anomalias fetais, como “agenesia renal bilateral, anencefalia e anormalidades graves do
esqueleto fetal” podem ser diagnosticadas em todo o país, por uma tecnologia simples e
disponível no serviço público de saúde, atingindo gestantes de todos os estratos sociais da
população. Nos demais casos, em que são necessárias técnicas mais sofisticadas, “os exames
invasivos de monitoração fetal concentram-se em hospitais universitários, para onde é
encaminhada a população de baixa renda”. Ademais, os métodos utilizados são seguros e
eficientes, tanto que a margem de erro de todas as técnicas é de cerca de 0,1 por cento (2000,
p. 80).
Sendo possível a realização desses exames intra-uterinos, é preciso questionar acerca
do livre consentimento das gestantes ou dos casais. Sherwin afirma que, pelo princípio da
autonomia, é preciso questionar se as gestantes têm um aconselhamento suficiente, antes da
realização dos testes, “para avaliar a gama de possíveis resultados e as decisões que serão
chamadas a tomar no caso de um resultado positivo”. Ou seja, trata-se de assegurar o
consentimento informado não só no que se refere ao exame que possibilita o diagnóstico de
malformações fetais, como quanta à decisão relativa ao aborto (2003, p. 337 e 338).
A análise ética do diagnóstico pré-natal exige, ainda, compreende Doucet, além do
estudo de suas diferentes facetas, a necessidade de o situar no contexto contemporâneo da
reprodução humana. Atualmente ter um filho não tem o mesmo significado de outrora. A
procriação humana está ligada à interpretação de um mundo aonde os seres humanos, devido
ao seu saber, podem controlar diversos processos naturais. O desejo do filho se insere, dessa
forma, num contexto cultural e científico que permite a utilização de técnicas como o
aconselhamento genético, a reprodução assistida, além dos desenvolvimentos relativos ao
período pré-natal (1995, p. 128).
Delineados os primeiros esboços acerca do impacto das tecnologias de diagnóstico
pré-natal desenvolvidas na contemporaneidade, passar-se-á à análise de questões específicas
referentes à temática, como a aplicação do conceito de pessoa ao feto portador de grave
anomalia fetal, bem como a utilização dos critérios de qualidade de vida e eugenia nesses
casos.
2.2.1 A aplicação do Conceito de Pessoa ao Feto Portador de Grave Anomalia
2.2.1.1 Relevância da Questão
Freqüentemente, no estudo da temática aborto, é a designação da pessoalidade ou
não ao feto que ocupa lugar central. Assim, a interdição ou não da interrupção da
gestação seria solucionada com a determinação do status do ser não nascido. Essa
relevância pode ser vista em diversos autores. Afinal, o que é pessoa?
É a teoria kantiana que traz a idéia de pessoa. Para Kant, o ser humano “existe como
fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”.
Por isso, em suas ações, ele deve considerar-se a si próprio, bem como a todos os outros seres
humanos, sempre como fim. É isso o que distingue coisas de pessoas. As coisas possuiriam,
portanto, apenas um valor relativo, o de meios, enquanto que as pessoas seriam objeto de
respeito, não podendo ser empregadas somente como meios, pois a sua natureza as
distinguiria como fins em si mesmas. É a partir desse ponto que se origina o seu imperativo:
“age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de
qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”
(2004, p. 58 e 59).
Sève menciona que o ser humano, e não a pessoa, faz parte dos conceitos advindos da
ciência biológica. Logo, “aquilo que visamos no ser humano, ao nomeá-lo pessoa, é de ordem
incorporal”. A qualidade de humano de um ser decorre do fato de que seu ponto de partida é a
espécie biológica, ou seja, a humanidade é um fato. Já um ser humano é pessoa porque tem a
humanidade como “ideal regulador”, ou seja, a pessoalidade é um valor. A palavra pessoa
expressa que “o ser humano tem uma dignidade que motiva o respeito”: “a pessoa é uma
relação humana, uma prerrogativa ética que, ao mesmo tempo, me pertence e me ultrapassa:
aquilo que, nela, me pertence ultrapassa-me, aquilo que nela me ultrapassa, pertence-me”
(grifos do autor) (1997, passim).
É devido ao fato de que o conceito de pessoa, então, traz a idéia de fim e,
portanto, a exigência de um respeito, bem como a conexão a uma dignidade, que a
caracterização do feto como pessoa parece ser tão importante no tema do aborto. Pessini
e Barchifontaine alegam que a questão da personalidade do feto é um dos elementos
mais críticos no debate acerca do aborto. Por isso, a resposta dada às questões o feto é
uma pessoa? e a partir de quando? afeta o posicionamento relativo ao tema (2000, p. 236).
Então, pelo menos a partir da década de 1960, passou a ser possível a divisão das
posições acerca do aborto em dois grupos, sendo ressalvadas as divergências dentro de
cada um deles: pró-vida e pró-escolha, adverte Mori. O posicionamento do primeiro
grupo traz o argumento da existência de uma pessoa desde a concepção, o qual tem um
papel dominante no debate atual, fazendo parecer que “toda a controvérsia depende da
questão de saber se o feto é ou não pessoa” (1997, p. 31).
A importância da questão do status moral do feto pode ser visualizada em diversos
autores, o que será feito a partir de agora, de forma resumida. Barretto analisa diversos
modelos que buscam determinar a partir de que momento há vida humana. Para o
modelo vitalista, a pessoa existe desde a concepção, sendo necessário apenas o substrato
biológico para que o ser humano se torne uma pessoa. Já para o modelo cultural, é
preciso uma manifestação atual ou futura de consciência moral e racionalidade para que
se fale em pessoa humana (2003, p. 233-243).
Também para Tooley parece ser fundamental, no debate sobre o aborto, questionar
quando um membro da espécie humana se torna uma pessoa (1983, p. 76). O mesmo entende
Wertheimer, para quem a questão fundamental envolvendo o aborto diz respeito ao status
moral do feto. Ele analisa posições liberais e conservadoras, compreendendo que elas são
absolutamente opostas no que se refere a esse estatuto, já que, para os liberais, o feto não seria
um ser humano ou uma pessoa, enquanto que, para os conservadores, o seria (1983, p. 35 e
55).
Já Singer possui um argumento diferenciado. Ele descreve o ponto de vista
conservador acerca do aborto como sendo o que coloca a premissa de que um feto humano é
um ser humano inocente, motivo pelo qual seria errado matá-lo. Haveria, portanto, o direito à
vida desde o momento da concepção. Já os argumentos liberais não contestam a afirmação de
que o feto é um ser humano inocente, embora entendam que o aborto é admissível. Para os
liberais, portanto, a defesa do aborto não está conectada com a negação do status de pessoa ao
feto. Baseiam-se eles em três argumentos: as conseqüências das leis restritivas, o que teria
como resultado não “tanto a redução do número de abortos realizados, mas, sim, o aumento
das dificuldades e dos perigos para as mulheres com uma gravidez indesejada”; o argumento
segundo o qual, sendo o aborto um crime sem vítimas, precisaríamos “ser tolerantes com os
que defendem idéias diferentes das nossas e deixar a decisão de fazer um aborto a cargo da
mulher que está vivendo o problema”; bem como o argumento feminista, segundo o qual
“uma mulher tem o direito de escolher o que fazer com o seu próprio corpo” (1998, passim).
Para Dwokin, a maioria das pessoas credita a polêmica acerca do aborto à questão
moral sobre o status de pessoa do feto. No entanto, também ele compreende que “tal modo de
apresentar o debate sobre o aborto é fatalmente enganoso”. Isso porque, numa análise
detalhada das concepções conservadora e liberal sobre o tema, seria perceptível que nem a
primeira deriva da pessoalidade do feto e que tampouco a segunda tem origem na sua
negação
16
(2003, p. 42 e 43).
Diante do exposto, foi possível compreender a importância da definição do estatuto
moral do feto, entendendo-o ou não como pessoa. É devido ao fato de que essa designação
conferiria ao feto um respeito especial que grande parte do debate acerca do aborto centra-se
nessa questão. No entanto, as discussões não se restringem à pessoalidade do feto, já que,
conforme visto em Singer e Dworkin, a determinação do status fetal não solucionaria o
problema.
2.2.1.2 O Feto pode ser Considerado Pessoa?
16
O jurista norte-americano utiliza como exemplos as exceções admitidas pelo ponto de vista conservador, como
a tolerância ao aborto quando há risco de vida à gestante ou quando a gravidez resulta de estupro, o que seria
incompatível com o pressuposto de que o feto é uma pessoa com direito à vida, bem como a opinião liberal sobre
o aborto, segundo a qual, pelo menos em geral, ele suscita um problema moral, não sendo justificável por
“razões triviais ou frívolas”, o que também não está de acordo com a negação do status moral de pessoa do feto
(DWORKIN, 2003, p 42-45).
Ainda que não seja unânime entre os autores analisados a importância da determinação
do estatuto moral do feto para a moralidade do aborto, tratar-se-á de verificar, agora, a
possibilidade de considerar-se o feto em geral e, especificamente, o portador de grave
anomalia fetal, como pessoa. Assim, traz-se abaixo o argumento vitalista ou cultural de alguns
autores. Ressalta-se que, diante do caráter descritivo deste capítulo, buscou-se explorar ambos
os argumentos, sejam eles favoráveis ou não à consideração da pessoalidade do feto.
O estatuto pessoal é por diversas vezes negado ao feto em função da sua dependência
biológica da gestante. Compreende-se, dessa forma, que o feto é parte do corpo da mulher,
que poderia retirá-lo ou não de acordo com sua vontade. Azevêdo nega essa afirmação,
compreendendo que a autonomia garantiria ao feto o status de pessoa. Assim, entende a
autora que o feto possui autonomia em relação à gestante, não podendo ser considerado parte
de seu corpo. Tal autonomia é perdida somente com o nascimento, que é “a mais absoluta das
dependências humanas”, já que o recém-nascido precisa ser alimentado e protegido por
alguém o tempo inteiro.
Sgreccia também parte da afirmação da nova entidade biológica na qual consiste o
feto, desde o momento da concepção, para afirmar a sua personalidade. Ele coloca que um
dado esclarecido pela genética e incontestável é o de que, no momento da fertilização, os dois
gametas formam uma nova entidade biológica, que é o zigoto, o qual consiste numa nova vida
individual. Sendo assim, também aqui o feto não é considerado como parte da mãe, sendo que
seu desenvolvimento dependeria da mãe apenas de modo extrínseco (2002, p. 346).
17
Para esse autor, o ser em gestação é um ser humano, do ponto de vista biológico,
devido ao fato de existir apenas uma diferença de desenvolvimento entre o primeiro momento
da concepção e o momento do nascimento. O autor salienta, ainda, que, também do ponto de
vista filosófico, todo o valor da pessoa humana estaria presente desde o momento da
concepção, enumerando duas razões para tanto:
17
O autor refere também que fica demonstrada, pela fertilização in vitro, que é possível proceder à fertilização
pela união de duas células gaméticas, sendo que, desse momento em diante, o embrião desenvolver-se-ia por
mecanismos autoconstrutivos (SGRECCIA, 2002, p. 346).
a) o vínculo entre o corpo e a alma é um vínculo substancial e não acidental: o corpo
é transcrição, epifania, instrumento da pessoa e não simples vestido ou acessório. A
pessoa é corpórea, Eu encarnado e não apenas entidade que tem um corpo;
b) a personalidade no homem coincide com o ato existencial que realiza a natureza
humana composta de alma e de corpo, de psique e de físico; o ato existencial age no
momento mesmo em que está em ato o novo ser. [...] A unidade de desenvolvimento
e a unidade ontológica do ser humano em formação levam à mesma conclusão:
estamos diante de uma vida humana individual em estado de desenvolvimento
(2002, p. 364 e 365).
Outros autores, por sua vez, negam esse status ao feto, compreendendo que nele não
está presente o substrato necessário à consolidação da pessoa. Tal afirmação não
necessariamente está conectada, contudo, à negação da existência biológica de um novo ser a
partir do momento da concepção. Percebe-se, abaixo, a necessidade de diversas
características, inexistentes na vida fetal, para que seja possível falar em pessoa e,
conseqüentemente, ser sujeito do direito à vida. Por vezes, tais características seriam
adquiridas somente com o nascimento, a exemplo do que salienta Arendt, para quem a
natalidade é uma condição humana. É com o nascimento que “vem ao mundo algo
singularmente novo”, ou seja, é com esse evento que tem início a ação (2001, p. 191). Outras
vezes, como no caso dos argumentos presentes em Singer e Engelhardt, mesmo nos recém-
nascidos o estatuto pessoal poderia não ser verificado.
Para Tooley, só pode ser compreendido como pessoa e como sujeito do direito à vida
quem tem condições de desejar a continuidade da própria existência. Assim, seria necessário
que o ser humano possuísse a idéia de si mesmo “como sujeto continuo de experiencias y
otros estados mentales, y que crea que es tal entidad”.
18
É o desejo de algo, portanto, que faz
com que alguém possa possui o direito a essa mesma coisa. Portanto, somente se o feto
pudesse desejar viver teria direito à vida (1983, p. 81).
Conforme Singer, a vida de um feto não tem um valor superior à vida de um animal
num estágio semelhante de racionalidade, consciência, capacidade de sentir etc. Entende o
autor que o feto não é uma pessoa, motivo pelo qual não possui direito à vida. Contudo, tal
argumento aplica-se, na sua opinião, também aos recém-nascidos, pelo fato de que eles, assim
como os fetos, não são seres racionais e conscientes de si (1998, p. 178 e 179). Junges
também trata do tema, embora de forma diferenciada. Para ele, desde a concepção há
18
O autor ressalta que o direito de um indivíduo a algo pode também ser violado quando ele desejaria tal coisa se
não adviessem as causas seguintes: desequilíbrio emocional, inconsciência temporal ou influência para que
desejasse a ausência desse algo (TOOLEY, 1983, p. 83).
“personeidade”, ou seja, há as estruturas antropológicas necessárias ao tornar-se pessoa, mas
não “pessoalidade”, pois tais estruturas não teriam ainda sido levadas à expressão (1999, p.
137). Isso não descaracterizaria o respeito que se deve ter com relação ao feto, em virtude da
possibilidade de ele vir a ser pessoa, ao mesmo tempo em que não torna o aborto condenável
em todos os casos.
De acordo com a moralidade secular, exposta por Engelhardt, “o início da vida
biológica humana não é o início da vida de uma pessoa como agente moral”, o que torna
problemática a condição moral dos fetos e até de bebês. Entende o autor que “não se pode
afirmar que os fetos sejam pessoas, no sentido estrito de serem agentes morais”. Isso porque,
como ainda não se sabe que tipo de pessoa o feto será, não podem ser atribuídas
“responsabilidades morais seculares especiais” em relação às pessoas que ainda não existem.
(1998, p. 308 e 309). Ou seja, o feto não é considerado aqui pessoa, porque não é agente
moral. Logo, o feto não seria sequer passível de respeito, já que este somente pode ser
atribuído às pessoas, enquanto agentes morais.
A condição moral do feto, ainda de acordo com esse autor, só pode ser compreensível
a partir do exame do quanto tal vida é importante para as pessoas. Assim, um feto humano
pode ter uma condição moral superior à de um animal no mesmo nível de desenvolvimento
devido ao significado que ele possui para a mulher que o concebeu e para outras pessoas que
possam estar interessadas na pessoa que esse feto irá se tornar. Logo, o valor dos fetos é dado,
numa moralidade secular geral, por aqueles a quem eles pertencem. Por isso, devido ao feto
ser malformado, por exemplo, um valor negativo lhe pode ser atribuído. Quem pode conferir
esse valor e, ao mesmo tempo, determinar o uso do feto, seriam aqueles que o tenham
produzido, especialmente a mãe, que o carrega em seu ventre. (ENGELHARDT, 1998, p.
310).
Boltanski também está de acordo com a necessidade de atribuição do valor do feto por
outras pessoas. Para o autor francês, haveria uma manipulação ontológica do feto, o qual
poderia ser caracterizado como autêntico ou tumoral. O feto autêntico já é um bebê. Ele faz
parte de um projeto e encarna uma criança que nascerá. Já o feto tumoral deve deixar no
mundo a menor quantidade de traços possível, não fazendo parte da memória (a não ser da
gestante). Ele é uma figura que não existiu (2004, p. 173 e 174). Portanto, enquanto que o feto
desejado poderia ser considerado pessoa antes do nascimento, porque alguém lhe atribuiu esse
valor, o feto tumoral, categoria na qual poderiam estar incluídos os portadores de grave
anomalia fetal, mas somente nos casos em que a gestante deseja interromper a gestação,
jamais adquirirá esse status.
Especificamente quanto aos fetos com graves malformações, é possível falar na
permanência do estatuto pessoal? Em geral, para os que compreendem que o ser humano deve
ser respeitado desde a concepção, possuindo o feto direito à vida, a ocorrência de patologias
letais não modificaria sua condição de pessoa. No que tange ao aborto em decorrência de
malformações, Sgreccia afirma que as malformações ou deficiências não interferem na
realidade ontológica do nascituro (2002, p. 376). Semelhante opinião expressa Nedel, para
quem o aborto seletivo ou eugênico viola “o direito fundamental à vida do concepto, que é
prioritário, ao menos no aspecto temporal, em relação ao direito, também fundamental, de vir
a ser após o nascimento”. Sendo assim, uma mentalidade que acolhe a vida somente sob
determinadas condições chocar-se-ia com o imperativo ético do respeito incondicional à vida
humana (2004, p. 21). Já os posicionamentos contrários parecem basear-se no critério de
viabilidade, a ser analisado abaixo.
2.2.1.3 Viabilidade e Graves Anomalias Fetais
A partir da possibilidade de diagnóstico de graves anomalias fetais, dá entrada no
cenário das discussões acerca do aborto o tema da viabilidade. Tratando-se de malformações
letais, ou seja, que gerarão a morte do recém-nascido pouco tempo após o parto, passa-se, por
vezes, a considerar que tal vida não é viável, não possuindo condições autônomas de
manutenção, pois, com o desligamento do organismo materno, não possuiria ele o substrato
necessário à manutenção da vida.
Assim, considerando-se o feto como inviável, pode-se questionar, como o faz Leone,
se haveria mesmo aborto, ou se seria possível falar em indução do parto, já que o
procedimento não traria reflexos para a vitalidade do recém-nascido, podendo produzir um
efeito psicológico benéfico na mãe. “Fará sentido ‘respeitar’ por uns poucos dias a vida de um
recém-nascido que, com toda a certeza, irá morrer? Será aceitável esta intangibilidade sagrada
da vida?” (2001, p. 40).
Lilie também considera que o direito à vida só se faria presente se o feto fosse viável.
Tratando do aborto por grave anomalia fetal, no que tange ao conflito existente entre os
direitos do nascituro e de seus pais, salienta que o direito do feto à vida, caso se entenda que
ele a possui, não anula o direito dos genitores. Logo, caberia “sustentar que o feto é titular de
um direito firme à vida apenas se possui a potencialidade de converter-se em um ser
autoconsciente, capaz de autodeterminação e livre-atuação” (2002, p. 141).
Da mesma forma, Barchifontaine questiona se deve ser considerada como pessoa um
feto que não possui substrato biológico que lhe permita realizar uma vida “verdadeiramente
humana”. Pergunta, ainda, se haveria aborto, no sentido moral do termo, em caso de
interrupção da gestação em decorrência de deformação irreversível, como a anencefalia
(2003, p. 251). Sève também traz a hipótese do feto como pessoa potencial. Logo, para ele, a
oposição à interrupção da gestação de fetos malformados ou portadores de doenças graves e
incuráveis “revelaria uma obstinação ética míope” sobre esse ser, e não um “verdadeiro
respeito prospectivo pelo ser humano futuro” (1997, p. 111).
Junges, ao tratar das enfermidades letais intra-uterinas, compreende que nesses casos
os fetos, embora vivos, não são viáveis. Coloca, outrossim, que “pode-se prever certas
conseqüências graves para a mulher grávida e a continuação da gravidez pode parecer absurda
e desprovida de sentido para aquela que sabe que não poderá receber em seus braços um filho
vivo”. Termina referindo que as normas morais podem, em casos excepcionais, tornar-se
injustas, o que pode ser verificado nos casos de graves anomalias: “o feto acometido por
alguma enfermidade letal é um natimorto conservado em vida apenas pela ligação com a mãe,
sem nenhuma viabilidade posterior. Quando existe um conflito de bens importantes para a
mãe, seria permitido cortar essa ligação” (1999, p. 143 e 144).
2.2.1.4 A Controvérsia acerca do Aborto é Solucionada mediante a Resposta à Questão o Feto
é Pessoa?
Primeiramente, tratou-se de demonstrar a relevância da questão o feto é pessoa?, bem
como de que forma a controvérsia sobre o aborto foi sobre ela construída. No entanto, nem
sempre a determinação do status moral do feto põe fim à questão acerca da moralidade do
aborto. Diante desse fato, busca-se aqui demonstrar outras teses acerca do tema, que não
colocam a pessoalidade do feto como ponto central. Varga, por exemplo, afirma que a questão
central no aborto é quando tem início a vida humana?, e não o feto é pessoa? Ele entende que
“o emprego do termo ‘pessoa’ somente obscurece o problema principal, porque a sua
definição pode ser arbitrariamente sujeita ao objetivo para o qual a definição foi formulada”
(2001, p. 65 e 66).
Outros autores, contudo, trazem argumentos vinculados à moralidade, e não ao
biológico. Mesmo supondo que há uma pessoa desde o momento da concepção e que o ser
não nascido possui direito à vida, é possível sustentar a defesa do aborto, como o faz
Thomson. Entende ela que a gestante tem direito ao seu próprio corpo e que o fato de o feto
possuir direito à vida não garante que ele possa dispor do corpo da mãe, contra a vontade
desta, ainda que essa disposição seja indispensável para a continuidade de sua existência.
Sendo assim, o ato de negar o uso do seu corpo não seria injusto, já que não é possível exigir
que a gestante sacrifique sua saúde e seus interesses por nove meses para manter viva outra
pessoa (1983, p. 20 e 27). Dessa forma, para essa autora, a questão do aborto estaria
intrinsecamente ligada à liberdade da gestante, já que o direito à vida do feto não seria
absoluto, dependendo da validação materna.
Mori vai além, ao afirmar não só que o direito à vida de uma pessoa não torna
obrigatória uma ligação necessária à continuidade dessa vida, mas também que “a mulher não
perde a faculdade de retirar seu consentimento a uma eventual ligação, mesmo que o tivesse
dado (implicitamente ou explicitamente) antes, ao aceitar a relação sexual (1997, p. 76).
19
Outras opiniões expressam, apesar de não categorizar o feto como pessoa, um respeito a esse
ser, o qual decorreria de outros elementos.
Segundo Junges, o respeito absoluto ao ser não nascido não decorre da sua
pessoalidade, já que ele não possui muitos elementos que definem o status de pessoa, mas na
sua “‘ascrição’
20
ao gênero humano” ou na “solidariedade ontológica” de todos os seres
19
Para ele, não é possível sustentar a irrevogabilidade do consentimento à gravidez. “[...] o consentimento
(implícito ou explícito que seja) ao uso de algo sobre o qual temos direito é sempre revogável”. Logo, conclui
que, devido ao direito ao uso de seu próprio corpo que a mulher possui, o aborto seria sempre lícito, mesmo
quando a mulher não utilize métodos contraceptivos, o que poderia denotar um consentimento implícito à
gestação (MORI, 1997, p. 74 e 75).
20
O conceito de ascrição está presente na obra de Ricoeur, que a designa como um desdobramento entre o si e o
outro, ou seja, trata-se do poder do agente de designar-se a si mesmo ao designar o outro (1996, p. 85 e 103).
Silva Filho comenta essa conceituação, compreendendo que “ela indica que a atribuição de um predicado no
plano da ação é sempre feita para uma pessoa, percebida a partir de uma unidade indissolúvel entre o corporal e
o psíquico, assumindo centralidade a relação entre o agente e a motivação do seu ato” (2006, p. 128).
humanos. Para esse autor, a dignidade humana, enquanto intrínseca ao ser humano, é
extensível ao feto, ainda que ele não seja manifestamente pessoa (1999, p. 138 e 140). Sève
salienta que a ascrição é interpessoal e recíproca, pois é a forma de atribuição só utilizável
quando “reportamos ao ser individual características universais da pessoa”. Seria a ascrição de
uma dignidade o processo pelo qual o indivíduo passasse a pertencer ao gênero humano
(1997, p. 74). Logo, ainda que o ser não nascido não possa ser considerado pessoa, a simples
pertença ao gênero humano faz com que o respeito ao feto seja um dever. Dessa forma, o feto
pode possuir dignidade humana, o que fundamentaria o respeito que as pessoas devem ter
com ele.
Com opinião diversa, Boltanski fala da necessidade do reconhecimento como
condição do direito à vida, embora não use o termo ascrição, exposto acima. Para o autor, o
valor do feto é o valor que lhe é conferido pelas pessoas a ele relacionadas, especialmente
pela mãe.
21
Seria pelo desejo da mãe que se operaria a relação de ser desejado também numa
ordem simbólica, sendo que o acesso a tal ordem seria uma condição de humanização. Assim,
somente aquele que é desejado tem acesso a uma plena humanização, não podendo o aborto
de um feto não desejado ser comparado à destruição de um ser humano (2004, p. 250-252).
Com isso, Boltanski coloca as pessoas responsáveis pelo feto, como os seus familiares e,
especialmente, a mãe, como responsáveis pela sua humanização. Então o pertencimento ao
gênero humano não é algo que ocorre automaticamente, porque passa pelo desejo de terceiros.
O valor do feto não é intrínseco, dependendo de um reconhecimento externo, sendo somente a
partir dessa valoração que lhe é conferida dignidade humana.
D’Agostino, por sua vez, entende que o problema básico, no que se refere ao status do
feto, é o da identidade. O nascituro possuiria, portanto, uma “subjetividade, autônoma e
distinta daquela da mãe que o carrega no ventre” (grifo do autor). Daí adviria o seu direito de
nascer. A identidade consistiria, em primeiro lugar, na “individualidade biológica própria de
cada sujeito”, mas não se esgotaria nela, abrangendo também uma dimensão antropológica,
que seria referida à possibilidade de “perceber a si mesmo como um eu e ser reconhecido
pelos outros como tal” (grifo do autor), que é o que constitui o ser humano como sujeito. É a
identidade que gera também a dignidade da vida, já que a vida humana seria digna justamente
21
Assim, para uma mulher que deseja ter um filho o feto é uma pessoa, a partir do momento em que ela sabe da
gravidez, enquanto que, para a mulher que não tem esse desejo, a gestação é uma invasão e o feto é considerado
como intruso (BOLTANSKI, 2004, p. 250 e 251).
porque o ser humano “é o único sujeito natural que possui uma identidade, não-redutível à sua
constituição estritamente biológica”. Baseando sua teoria no conceito de identidade, o aborto,
para o autor, não é ilícito por atingir a pessoa, mas por atingir a identidade, ou seja, o sujeito
pertencente à espécie humana (2006, passim).
Percebe-se, do exposto, que, de certa forma, também aqui está presente a idéia de
pertença ao gênero humano. No entanto, o autor nomina isso de outra forma, sob o prisma da
identidade. Com isso, ele coloca a ascrição ao gênero humano como algo que tem início com
a individualidade biológica do feto. É com essa individualidade, somada à subjetividade, à
possibilidade de reconhecer-se a si e de ser reconhecido pelos outros como sujeito, que
derivaria a dignidade da vida, dirigida ao feto. Por isso, é por consistir num atentado ao ser
humano que o aborto é condenável.
Habermas fala em dignidade da vida humana ao se referir à vida pré-pessoal. Entende o
autor que os dois lados da discussão sobre o aborto (pró-vida e pró-escolha) não se dão
conta de que algo pode ser considerado indisponível, mesmo que não possua o status de
sujeito de direitos, ou seja, mesmo que não lhe sejam assegurados direitos humanos.
Assim, embora não compreenda o feto como pessoa, não possuindo também uma
dignidade humana, haveria uma dignidade da vida humana, extensível ao feto (2004, p.
44, 50 e 51). Portanto, não é a condição de pessoa necessária à atribuição de dignidade,
da qual derivaria o respeito. Coloca-se, dessa forma, a dignidade (e a dignidade da vida
humana) como algo anterior à atribuição de direitos. Habermas não considera o feto, no
entanto, sujeito de dirietos.
Semelhante opinião expressa Bourguet, para quem há um indivíduo da espécie humana
desde a concepção, embora não haja uma pessoa. No entanto, tal fato não faz com que
não exista uma necessidade moral de respeitar esse ser como pessoa (2002, p. 233).
Note-se que o autor utiliza a expressão indivíduo, denotando concordância com a teoria
de D’Agostino, exposta anteriormente, de que o feto possui autonomia em relação à
gestante, contando também com uma identidade biológica diferenciada.
No caso das opiniões que expressam um respeito à vida humana, ainda que não se
possa referir ao feto enquanto pessoa, parece existir um plano anterior, que sustentaria essa
dignidade, ainda que não se possa falar em pessoalidade. Trata-se do conceito de sacralidade
da vida. Tal perspectiva, da qual poderia ser denotado o respeito que deve ser garantido à vida
humana, é freqüentemente oposta à outra, qual seja, a da qualidade de vida, fortemente
ressaltada como uma das justificativas para a realização do aborto por grave anomalia fetal.
2.2.2 Sacralidade da Vida versus Qualidade de Vida
Esse respeito há vida humana, seja ele absoluto ou não, parece estar baseado na idéia
de que ela é sagrada. Por isso, não seria imprescindível a exisncia de uma pessoa para que a
consideração que impõe o respeito à vida humana fosse demandada. É a sacralidade, portanto,
que pode explicar a concepção do aborto como um dilema, mesmo para aqueles que o
defendem. Logo, tendo como fundamento a sacralidade da vida humana, é que ninguém
parece duvidar do valor intrínseco da vida humana antes do nascimento (HABERMAS, 2004,
p. 46).
Iniciaremos expondo a opinião de Dworkin
que, ao contrário do que faz a maioria dos
doutrinadores, busca o ponto de convergência
nos posicionamentos liberal e conservador
acerca do aborto. Assim, ambas as posições
pressuporiam que “a vida humana tem em si
mesma um significado moral intrínseco, de
modo que é um erro, em princípio, pôr fim a
uma vida mesmo quando não estão em jogo os
interesses de ninguém”. O autor, com tal
afirmação, subverte a lógica da maioria das
discussões sobre o tema, que colocam a
divergência acerca da consideração ou não do
feto como pessoa como o centro, colocando
esse significado intrínseco da vida humana
como um valor moral comum a ambas as
posições. Para ele, aquilo que é compartilhado
por todos, o valor intrínseco da vida humana,
“é mais fundamental do que nossas
divergências sobre suas melhor interpretação”.
E é devido ao pensamento de que a vida
humana, incluindo a vida fetal, tem um valor
intrínseco, que o aborto é moralmente
problemático (DWORKIN, 2003, p. 47, 99 e
102).
Referindo-se especificamente às graves malformações fetais, que determinam uma
vida após o nascimento breve e muito limitada, Dworkin aponta que a decisão se refere à
morte anterior, pelo aborto, ou posterior, de forma natural, sendo que em ambos os
posicionamentos há referências à sacralidade da vida humana. No último caso, tem-se que a
morte imediata do feto “é uma frustração mais terrível do milagre da vida do que seria a vida
breve e penosa de uma criança”, enquanto que, no caso dos que defendem o aborto, “seria
uma frustração de vida ainda pior permitir que essa vida fetal continuasse”. Assim, o jurista
entende que as divergências sobre o aborto são mais bem compreendidas com a análise
conferida à “importância moral relativa das contribuições natural e humana à inviolabilidade
das vidas humanas individuais” (2003, p. 124-126).
22
Embora não seja desta forma pelo autor
denominada, parece estar aqui presente a oposição entre os valores da sacralidade da vida e da
qualidade de vida, travestidas sob a denominação de contribuição natural e humana.
Mori segue essa opinião, igualmente afirmando que a justificativa da interdição
do aborto recai no princípio da sacralidade da vida humana. Seria a ética da sacralidade
da vida que pressuporia que a pessoa não possui a capacidade de dispor livremente de si
mesma, pois teria o dever de seguir os fins impostos pela natureza (1997, p. 80). Já
Singer ressalta que essa idéia da sacralidade da vida aplica-se somente à vida humana. A
doutrina da santidade da vida humana consiste numa maneira de sustentar que a vida
humana tem um valor especial, que difere do valor conferido à vida de outros seres
vivos. No entanto, entende o filósofo que esse valor conferido aos membros da espécie
Homo sapiens não teria razão de ser, já que “os fatos biológicos que determinam a linha
divisória da nossa espécie não têm um significado moral”. Dessa forma, preferir a vida
de um ser devido ao fato de ele pertencer a tal espécie faria com que possuíssemos a
mesma posição dos racistas, que discriminam quem não possui a mesma raça que a sua
(1998, p. 93, 94 e 98).
A sacralidade da vida freqüentemente aparece em oposição à qualidade de vida, como
se fossem antônimas. No entanto, é suficiente o princípio da sacralidade da vida para
solucionar as controvérsias acerca do aborto? Ou será que a simples defesa da sacralidade da
vida intra-uterina, sem a consideração pelas condições em que o ser, após o nascimento,
viverá, é, conforme Junges, “uma contradição e incoerência”? Como muitas vezes a defesa da
inviolabilidade da vida pode levar a uma desconsideração com a qualidade de vida, ou seja, a
uma ausência de preocupação com as condições de uma vivência digna (1999, p. 114 e 115), é
preciso analisar também o outro conceito.
De acordo com Blondeau, é por meio da noção de qualidade de vida,
freqüentemente colocada em oposição à de sacralidade da vida, que é considerada a
22
Dworkin, ao explicar tal afirmação, indica que é por isso que não surpreende que muitas pessoas contrárias ao
aborto, situadas no extremo natural ou biológico do espectro, sejam adeptas de alguma fé religiosa, pois para elas
Deus seria o autor do que há de natural no mundo, motivo pelo qual também “cada feto humano é um exemplo
único de sua realização mais sublime”. Essa posição também pode ser creditada às pessoas que consideram a
reprodução como um “milagre natural”, pois a ordem natural exigiria respeito “em nome de seu caráter sagrado”,
o que faria com que a frustração desse investimento natural na vida humana raramente pudesse ser justificada.
De forma oposta, as opiniões liberais atribuiriam maior peso à importância de não frustrar o investimento
humano na vida, compreendendo-se aqui que a vida humana constitui-se centralmente pelas escolhas pessoais,
pela formação, pelo envolvimento e pela decisão. Por isso, para tal opinião, “o fato de as ambições, o talento, a
formação e as expectativas de um adulto se perderem devido a uma gravidez imprevista e indesejada frustra o
milagre da vida muito mais do que a morte de um feto antes que se tenha feito qualquer investimento
significativo dessa natureza” (2003, p. 127-129).
diversidade de aspectos da experiência humana, sem limitá-la à sua dimensão biológica.
Essa forma de referência à qualidade de vida é recente, tendo aparecido somente após a
Segunda Guerra Mundial. Tal noção aplica-se aos casos de fetos com graves
malformações, permitindo o não prolongamento de sua existência, rompendo-se, assim,
com o dogma do respeito absoluto à vida (1995, p. 296 e 297).
D’Agostino refere que a santidade da vida e a disponibilidade da vida seriam duas
categorias tradicionais utilizadas na Bioética. A partir da perspectiva da santidade da vida,
esta seria indisponível, sendo o seu imperativo “defende a vida!” de caráter deontológico
absoluto. Já para a outra perspectiva, a vida deve ser defendida somente quando merecesse ser
vivida. Privilegia-se aqui a escolha autônoma dos indivíduos e o imperativo “defende a
qualidade da vida!” seria a norma fundamental. Conclui afirmando que ambas as éticas têm o
mesmo fundamento, qual seja, a vida enquanto objeto, e que as antinomias se referem não à
definição da vida humana, mas ao sentido conferido a ela (2006, p. 187 e 189 – grifos do
autor).
Junges, da mesma forma, disserta acerca do tema da sacralidade da vida,
23
compreendendo que tal idéia está baseada em dois princípios: o da inviolabilidade,
baseado na idéia de que a vida é propriedade divina, sendo o ser humano apenas seu
administrador, e o da intangibilidade, que estaria centrado somente da dimensão
biológica, podendo gerar considerações abstratas e descontextualizadas da vida.
Entende o autor que sacralidade e qualidade da vida não são princípios excludentes e
que, dependendo do momento, será preferível a utilização de um ou outro princípio, sem
negá-los (1999, p. 113-116).
Segundo o mesmo autor, a qualidade de vida, por sua vez, diria respeito com as
“condições da vivência digna”, manifestando-se como saúde. Gozar de boa saúde,
então, significaria mais do que a simples ausência de doença, ou mesmo do que a
fruição de um estado de completo bem-estar físico, mental e social: “sadia é aquela
pessoa que consegue de tal maneira integrar na própria vida uma perturbação do bem-
estar físico, psíquico e social que possa realizar-se como pessoa, não perdendo o sentido
da própria dignidade e lutando para modificar aquelas coisas que sejam possíveis de
mudar e integrando aquelas que sejam um dado imodificável” (1999, passim).
Devido ao fato de se referir à preocupação com as condições de uma vivência digna,
conforme exposto, a qualidade de vida é uma questão bastante suscitada quando se trata
dos recém-nascidos portadores de graves anomalias. Isso porque, devido às
malformações, sua vida será muito breve e com uma qualidade prejudicada. A questão
da qualidade de vida está no cerne dos debates bioéticos acerca da interrupção da
gestação por grave anomalia fetal, devendo tal valor ser visto como complementar à
vida (TESSARO, 2002, p. 81).
23
Para o teólogo, a idéia da sacralidade não necessariamente remete ao contexto religioso, existindo também
uma sacralidade leiga (JUNGES, 1999, p. 115).
Nesse caso, entende Engelhardt, a qualidade de vida deve incluir não só a qualidade de
vida considerada pelos indivíduos ligados a essa vida, como os pais, mas também a
qualidade de vida do modo com que ela será percebida por quem a vai viver (1998, p.
323). Também Dworkin trata do tema, afirmando que, se, para os posicionamentos
liberais relativos ao aborto, tal procedimento seria permissível quando o nascimento
acarreta uma condição de pouca qualidade de vida, tal justificativa é mais forte se,
devido a deformações físicas graves, a vida torna-se “muito difícil e dolorosa”,
implicando frustrações tanto para a criança quanto para os pais (2003, p. 135).
Coloca-nos este último autor que, embora quase todos aceitem o princípio abstrato de
que é intrinsecamente mau que a vida humana, uma vez começada, venha a ser frustrada, as
pessoas divergem quanto à melhor resposta à questão de se a morte prematura passível de ser
evitada é sempre, ou invariavelmente, a mais grave frustração de vida possível. A opinião
conservadora tem por base a convicção de que a morte imediata é inevitavelmente uma
frustração mais grave do que qualquer opção que adie a morte, mesmo ao custo de uma maior
frustração em outros aspectos. Já o ponto de vista liberal tem por base a convicção de que em
alguns casos, ao menos, a opção pela morte prematura minimiza a frustração da vida, não
sendo, portanto, uma atenuação do princípio de que a vida humana é sagrada, mas sim a
opção que mais respeita esse princípio (2003, p. 125).
Percebe-se, dessa forma, que sacralidade e qualidade de vida não são dois
princípios opostos, mas complementares. Não são, da mesma forma, princípios
absolutos, pois a priorização de um ou outro variará de acordo com o caso concreto.
Tampouco possuem conceitos objetivos, já que nem o que é sagrado, nem o que é
vivência digna, é extensível e compartilhável por todas as pessoas. A qualidade de vida
pode ser oposta, ainda, nos casos de aborto por grave anomalia fetal, à eugenia. Assim,
pode ser sustentado que esse tipo de procedimento consiste numa seleção dos seres que
mereciam ou não viver, contrariando o princípio da sacralidade da vida.
2.2.3 O Aborto por Grave Anomalia Fetal enquanto Procedimento Eugênico
Por fim, cabe a análise de um tema fortemente suscitado nos casos de aborto por grave
anomalia fetal: a eugenia. Procurar-se-á verificar, aqui, os argumentos utilizados na
caracterização ou descaracterização desse tipo de interrupção da gestação como procedimento
eugênico, bem como o possível impacto da permissão desse tipo do aborto para as pessoas
portadoras de algum tipo de deficiência.
A questão ética da eugenia, conforme Barros, é a doutrina com pretensões
científicas que objetiva a melhoria da espécie humana por meio da seleção artificial de
indivíduos considerados inadequados (2003, p. 277). A eugenia consiste no estudo dos
fatores que permitem o melhoramento da espécie humana, enquanto que o eugenismo é
a “doutrina sociopolítica destinada a empreender essa melhoria”, podendo assumir a
forma do eugenismo negativo, mediante a eliminação dos fatores indesejáveis, evitando-
se a sua transmissão, ou do positivo, por meio da promoção desses caracteres desejáveis,
encorajando-se a sua transmissão (GOFFI, 2003, p. 345).
Azevêdo adverte, quanto às anomalias congênitas, que não há normalidade genética, já
que todos possuímos imperfeições, as quais são constitutivas da espécie humana, o que seria
um motivo para não discriminar um feto malformado. Conclui a geneticista que está
instaurada na atualidade uma ideologia do filho perfeito, o que faz com que a condição de
saúde seja superior ao amor incondicional estabelecido entre pais e filhos. Considera a
dependência da sobrevivência dos filhos dos testes pré-natais uma limitação, que modifica “a
tradição de soberania do amor materno”, o que denota “o surgimento de uma nova moral
dentro da família” (AZEVÊDO, 2000, passim).
Questiona Sherwin como permitir os diagnósticos pré-natais, bem como o aborto
seletivo, sem transformar as crianças em produtos. Pergunta-se, ainda: é possível, por meio da
introdução dessas novas tecnologias, “não acusar as mulheres caso sua recusa a participar
dessas práticas resulte em crianças nascidas com deficiências previsíveis?” Entende que é
preciso avaliar como a prática destinada a criar filhos saudáveis, no caso o aborto em
decorrência de malformação fetal, pode alterar as experiências da gestação e da maternidade e
da paternidade, bem como que é preciso considerar o impacto de tais práticas na vida dos
deficientes (2003, p. 339).
A mesma advertência faz Barchifontaine, para quem o progresso científico dos
diagnósticos pré-natais, ao permitir a seleção de filhos sadios, coloca “a questão do lugar
dos deficientes na nossa sociedade” (2003, p. 252). Sfez também credita às novas
tecnologias, dentre elas os testes pré-natais, o reforço da idéia do ser humano perfeito. A
noção de criança perfeita não é originária propriamente das tecnologias, mas do senso
das características que são indesejáveis (1996, p. 177).
Asch salienta que o teste pré-natal seguido de aborto não tem a intenção de evitar a
deficiência ou a doença de um ser humano que irá nascer ou que já nasceu, mas a de
evitar o nascimento de um ser humano que terá uma característica considerada
indesejada. Para a autora, não haveria objeções morais ao abortamento quando a
gestante decide que não quer gerar um filho naquele momento, por qualquer motivo que
seja. No entanto, se está presente o desejo por esse filho e se isso desaparece diante do
diagnóstico de uma anomalia, trata-se de uma medida discriminatória. Salienta, por fim,
que, além da diminuição das capacidades físicas, há um estigma cultural muito forte
acerca da incapacidade de algumas deficiências (2003, passim).
24
Diniz, ao contrário de alguns autores citados acima, compreende que não há
semelhança entre a eugenia praticada durante o nazismo e o aborto por anomalia fetal.
Afirma que o aborto eugênico seria aquele que as mulheres praticam independente da
sua vontade, por razões raciais, étnicas ou religiosas e que o aborto por anomalia fetal é
baseado no pressuposto da autonomia reprodutiva (2004, p. 59 e 60).
Também Missa entende que o aborto por grave anomalia fetal não possui a
natureza do eugenismo de Estado empregado, por exemplo, na Alemanha nazista, pois
suas finalidades são diferentes. Para ele, não é pertinente o emprego desse termo, devido
à sua carga emocional, a uma situação na qual são proporcionadas liberdade e
autonomia. O diagnóstico pré-natal deve ser oferecido pelo médico e aceito pela gestante
ou pelo casal. A decisão acerca do abortamento também a eles compete. O objetivo do
casal que se utiliza dessa prática não é a melhora da espécie humana, mas apenas evitar
o nascimento de um ser portador de uma doença grave. Trata-se de um eugenismo
privado, o qual não deve ser temido enquanto a autonomia individual for respeitada.
Por fim, não estaria presente, nessa situação, a busca irreal de um filho perfeito, mas o
“desejo razoável de gerar um filho que não sofra de doenças graves” (2003, p. 352 e
353).
Conforme Jonas, o caso de diagnóstico pré-natal de malformações graves e
incuráveis seguido de aborto está no campo da eugenia negativa, a qual consistiria
apenas na tentativa de evitar a transmissão de genes que causam patologias, não
trazendo problemas éticos. Trata-se de um controle biológico que ele denomina de
protetor ou preventivo. A eugenia positiva, ao contrário, estaria presente apenas nos
casos em que a seleção tem o objetivo de melhoramento da espécie, o que poderia ser
verificado não no desejo dos pais de ter uma descendência perfeita, mas no
estabelecimento de critérios mais ambiciosos para a admissão da vida, como a seleção de
sexo, por exemplo (1997, p. 115-117).
Opinião contrária possui Dworkin. Ele refere que, às vezes, o juízo liberal acerca
do aborto em caso de malformações fetais é erroneamente interpretado como
implicando um desprezo pelas vidas de crianças ou adultos deficientes, ou mesmo como
uma sugestão, associada à odiosa eugenia nazista, de que seria melhor para a sociedade
se essas pessoas fossem eliminadas. Trata-se de um erro duplo. Em primeiro lugar, a
questão geral da relativa tragédia inerente a diferentes fatos é muito diferente de
qualquer questão sobre os direitos das pessoas que estão vivas agora, ou sobre o modo
como devem ser tratadas. Em segundo lugar, a opinião liberal sobre o aborto de fetos
deformados não implica, em absoluto, que seria melhor que até mesmo as pessoas
24
Cabe referir aqui que a forma com que as deficiências são vistas é determinada culturalmente. Podemos citar
como exemplo a deficiência visual parcial, como a decorrente de miopia, por exemplo, a qual não é encarada
como uma deficiência pela nossa sociedade.
seriamente incapacitadas morressem. O juízo liberal não diminui a preocupação com os
deficientes; ao contrário, tem raízes no mesmo respeito fundamental pelo investimento
humano na vida, no mesmo horror diante da possibilidade de desperdício de tal
investimento (2003, p. 136 e 137).
Trata aqui o autor do que ele denomina contribuição humana à vida. Assim, o
desejo da morte das pessoas deficientes ou mesmo uma ausência de preocupação com
elas é algo que contrariaria esse investimento humano. Ele apenas coloca que, de acordo
com o juízo liberal, é a contribuição mais importante do que a natural (opinião oposta à
do juízo conservador), mas que isso não diminui em hipótese alguma as considerações
com as pessoas deficientes, estando, pelo contrário, em conformidade com elas.
Singer partilha do mesmo posicionamento. Ele entende que os deficientes físicos
constituem um grupo de pessoas que tem se sujeitado a discriminações injustificáveis.
Isso talvez se deva ao fato de que, “como, em alguns aspectos os deficientes são
diferentes, deixamos de ver como discriminatório o ato de tratá-los de modo diferente”.
No entanto, assevera que tais argumentos não são contraditórios em relação à sua defesa
do aborto quando o feto possui grave deficiência:
Ser capaz de andar, de ver, de ouvir, de estar relativamente livre da dor e do
mal-estar, conseguir comunicar-se bem, são coisas que, sob virtualmente
quaisquer condições sociais, constituem benefícios inquestionáveis. Dizer isto
não significa negar que as pessoas às quais faltam essas aptidões possam
triunfar sobre as suas deficiências e viver vidas de uma riqueza e diversidade
surpreendentes. Não obstante, não demonstramos preconceito contra os
deficientes se preferimos, seja para nós mesmos ou para os nossos filhos, não
nos deparar com obstáculos tão grandes que o simples fato de superá-los já
constitui, em si, um triunfo (1998, p. 62-64).
Quanto à correlação do aborto por anomalia fetal com os direitos dos deficientes
físicos, Diniz aduz que não há uma relação de causalidade entre a liberdade de escolha
quanto à realização do aborto nesses casos e os direitos dos deficientes, já que grande
parte das deficiências resulta do envelhecimento e de traumas, e não de malformações
fetais. Logo, independentemente da popularização ou não do aborto por anomalia fetal,
as deficiências continuarão a ser uma questão central em nossa sociedade,
principalmente com o envelhecimento crescente da população (2004, p. 60 e 61).
Percebe-se, do exposto, que as novas
tecnologias de diagnóstico pré-natal, ao
permitirem a visualização de diversas
malformações fetais que, contudo, não
possuem cura ou possibilidade de tratamento,
suscitam diversos questionamentos acerca do
aborto, que transcendem os tradicionais
argumentos empregados, tais como a
denominação do feto como pessoa. A partir
desse momento, questões como eugenia,
qualidade de vida e inviabilidade fetal são
também suscitadas. Ver-se-á, agora,
especificamente no Direito brasileiro, a
regulamentação legal do tema, os projetos de
lei propostos a partir da difusão dessas novas
tecnologias e o encaminhamento que vem
sendo dado à matéria pelo Poder Judiciário, a
partir das postulações de autorizações para a
prática do aborto nos casos de graves
malformações fetais.
3 O ABORTO POR GRAVE ANOMALIA FETAL E OS PODERES LEGISLATIVO E
JUDICIÁRIO BRASILEIROS
Neste momento, efetuar-se-á uma
análise legislativa e judicial da questão do
aborto por grave anomalia fetal. Num primeiro
momento, no que tange ao Poder Legislativo,
verificaremos o alcance de alguns dispositivos
constitucionais referentes ao tema. Diante da
não regulamentação dessa modalidade de
aborto pelo Código Penal,
25
verifica-se uma
lacuna dinâmica,
26
já que existente desde o
momento da promulgação da lei, o que se deu
em 1940, devido ao não desenvolvimento das
tecnologias de diagnóstico pré-natal nessa
época. O tema tampouco é regulamentado pela
legislação civil, pois a capacidade de direitos e
deveres nessa ordem é conferida às pessoas,
27
sendo que não há regulamentação acerca do
status moral do feto. Além disso, é disposto
que a personalidade civil tem início com o
advento do nascimento com vida e, embora os
direitos do nascituro estejam assegurados
desde a concepção,
28
não há consenso acerca
25
A legislação penal brasileira criminaliza o aborto, mas não o pune em dois casos: “Art. 128. Não se pune o
aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de
estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”
26
Conforme Canaris, as lacunas legislativas nem sempre são negativas, já que podem ter a função de se oporem
a uma generalização muito rígida. Assim, as lacunas podem servir à “tendência individualizadora da justiça”
(2002, p. 240).
27
“Art. 1º. Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.”
28
“Art. 2º. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a
concepção, os direitos do nascituro.”
da extensão desses direitos a outros que não os
apenas patrimoniais, decorrentes da sucessão.
Por esse motivo, nosso estudo será restrito aos
dispositivos constitucionais atinentes ao tema,
os quais são geralmente utilizados nas
fundamentações judiciais. Apreciar-se-á
também os projetos de lei em tramitação no
Congresso Nacional sobre o aborto de fetos
ditos inviáveis.
Quanto à atuação do Poder Judiciário,
inicialmente serão expostos os resultados de
uma pesquisa de jurisprudência realizada em
alguns estados do país, com a finalidade de
visualizar as tendências discursivas relativas
ao feto e à gestante, o que foi feito por meio de
um estudo de linguagem jurídica. Por fim,
proceder-se-á à averiguação da Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº
54, a qual teve grande repercussão nacional
por levar a questão do aborto por anencefalia à
apreciação do Supremo Tribunal Federal.
3.1 O ABORTO POR GRAVE ANOMALIA
FETAL E O PODER LEGISLATIVO
Para as gestantes e/ou os casais que se
sentem incapazes de suportar
psicologicamente a gestação de um feto
portador de grave anomalia, sabendo que seu
filho morrerá muito precocemente, a única
alternativa a ser oferecida é a interrupção da
gestação, diante da impossibilidade de
tratamento. No entanto, atualmente não existe,
em nosso país, previsão legal para a realização
do procedimento médico de interrupção da
gravidez nesses casos.
A lei possui especial valor nos países da família romano-germânica, o que faz com que
os juristas tenham nela a melhor maneira de chegar a soluções de justiça (DAVID, 1996, p.
93). Por isso, especialmente em países como o Brasil, o Direito positivo possui uma função
legitimadora (WARAT, 1983, p. 45). A lei pode ser caracterizada, ainda, como “um campo de
forças que incessantemente se recompõem, uma batalha onde se medem os grupos em
presença, a profundidade dos obstáculos, a natureza das alianças, as mudanças de opinião”
(PERROT, 1994, p. 530). Diante do exposto, percebe-se que a análise de dispositivos legais é
imprescindível para o estudo de uma questão jurídica, ainda que ela não esteja contemplada
em lei, como é o caso do aborto por grave anomalia fetal, motivo pelo qual proceder-se-á a
uma análise dogmática crítica.
3.1.1 Constituição Federal
Devido à ausência de regulamentação da
matéria em sede penal, na solução do tema do
aborto por grave anomalia fetal devem ser
buscados dispositivos constitucionais.
29
Por
isso, nossa análise será restrita à Constituição e
aos dispositivos que podem ilustrar o
tratamento dessa questão. A Constituição pode
ser conceituada como sendo um “acordo de
vontades (pacto fundante) políticas
desenvolvido em um espaço democrático que
permite a consolidação histórica das
pretensões sociais de um grupo” (MORAIS,
2002, p. 67).
29
Para David, as regras constitucionais estão no vértice da hierarquia das leis. Nos países da família romano-
germânica, é reconhecido às constituições um “prestígio particular” (1996, p. 93).
É esse pacto fundante que confere força
normativa à Constituição. Assim, todas as
normas constitucionais possuem uma eficácia
normativa, sendo que as que consagram
direitos fundamentais consistem num “direito
actual directamente regulador de relações
jurídicas” (CANOTILHO; MOREIRA, 1991,
p. 43).
30
Segundo Hesse, o desenvolvimento
da força normativa da Constituição depende da
incorporação do “estado espiritual de seu
tempo”, ou seja, a sua correspondência à
“natureza singular do presente”. Por isso, uma
mudança das relações fáticas deve mudar a
interpretação da Constituição, já que ela está
condicionada pela realidade histórica (1991, p.
20, 23 e 24).
Demonstra-se, então, que a
Constituição de um país possui um valor
extremamente importante, seja ele relativo ao
ordenamento jurídico ou à própria
consolidação da democracia. Dessa forma,
estariam contempladas nela as pretensões
populares referentes a um determinado local e
a uma determinada época.
Quanto à sua interpretação, tem-se, de
acordo com Streck, que a Constituição é o
topos hermenêutico”, devendo com ela estar
conforme toda a interpretação do restante do
ordenamento jurídico. Ela coloca à disposição
de uma comunidade mecanismos que
permitem a concretização do “conjunto de
objetivos traçados no seu texto normativo
deontológico” (2001, p. 237). O fato de a
Constituição ser tida, dentro do ordenamento
jurídico, como lei hierarquicamente superior
faz com que ela não possa ser subordinada a
qualquer outro parâmetro normativo, bem
como que todas as outras normas devam com
ela estar conformes, compreendem Canotilho e
Moreira. Ou seja, essa “preeminência
normativa da Constituição” faz com que toda a
30
A imposição normativa da Constituição se dá quando
há uma ação inconstitucional, ou seja, quando é
realizado aquilo que ela proíbe, bem como quando
existe uma omissão inconstitucional, quando não se faz
aquilo que ela impõe (CANOTILHO; MOREIRA, 1991,
p. 46).
ordem jurídica deve ser lida de acordo com
suas normas e princípios, tornando-se
inválidas as normas infraconstitucionais
desconformes (1991, p. 45 e 46). Por isso, a
partir da hermenêutica constitucional
contemporânea, é possível a realização de uma
nova leitura da dogmática jurídica, a qual
transcende, dessa forma, uma concepção
exclusivamente dogmática do direito
(BARRETTO, 1999, p. 378).
Logo, os princípios e regras
constitucionais servem ainda como
norteadores da interpretação de todo o restante
do ordenamento jurídico. Assim, não se torna
necessária a expressa revogação de um
dispositivo infraconstitucional se ele viola ou
está em desacordo com a Constituição. Para o
intérprete e aplicador do Direito, portanto,
qualquer leitura do ordenamento jurídico
necessita, paralelamente, de uma leitura
constitucional.
Cabe salientar, por fim, o papel
exercido pela atual constituição em nosso país.
A Constituição de 1988 foi elaborada após a
saída de um regime ditatorial, motivo pelo
qual foi vista como um “instrumento de
reconquista da liberdade e lugar propício para
a definição de uma nova ordem jurídica,
democrática e justa” (DALLARI, 1999, p. 33).
Logo, o valor simbólico da Constituição de
1988 assenta-se no fato de ela ter sido a
principal forma de restauração do Estado
democrático de Direito, com a superação de
uma perspectiva autoritária e não pluralista de
exercício do poder político (BARROSO, 1999,
p. 43).
Dessa forma, o momento de elaboração
da atual constituição foi aquele em que todos
os grupos tentavam concretizar seus interesses,
sob a forma de direitos constitucionais. Como
vários desses interesses podem ser opostos, a
redação do texto constitucional constituiu-se
num verdadeiro embate de forças, o que é
verificado, por exemplo, no que se refere à
tutela da vida, contemplada adiante. Expostas
essas linhas gerais sobre a Constituição,
passar-se-á à análise de alguns dos seus
dispositivos.
3.1.1.1 A Dignidade da Pessoa Humana como
Princípio Constitucional Fundamental
3.1.1.1.1 O caráter de princípio jurídico
Consistindo a dignidade da pessoa
humana em um princípio constitucional
fundamental, cabe primeiramente verificar a
conceituação de princípio jurídico, o que
geralmente é feito em oposição ao conceito de
regra. Isso é imprescindível porque, de acordo
com a concepção contemporânea de
interpretação constitucional, a hermenêutica
refere-se não somente a normas, mas também
a princípios, os quais antecedem a ordem
constitucional (BARRETTO, 1999, p. 381).
Dessa forma, a violação de um princípio
constitucional significa também a ruptura da
Constituição (STRECK, 2001, p. 239).
Segundo Canotilho, os princípios exigem
“a realização de algo, da melhor forma
possível, de acordo com as possibilidades
fácticas e jurídicas”. Assim, não se verifica a
proibição, permissão ou exigência de alguma
coisa, impondo-se, ao contrário, a otimização
de um direito ou bem jurídico (2000, p. 1215).
Os princípios consistem, então, em
“ordenações que se irradiam e imantam os
sistemas de normas” (SILVA, 2004, p. 92).
Enquanto as normas contêm uma regra, uma
instrução ou uma imposição vinculante, os
princípios, que são a base das normas
jurídicas, são “núcleos de condensação nos
quais confluem bens e valores constitucionais”
(CANOTILHO; MOREIRA, 1991, p. 49).
Dworkin considera como princípio todo
padrão que não é regra. Para ele, as regras são
aplicáveis “à maneira do tudo-ou-nada”, o que
leva à consideração da validade ou não dessa
regra. Já os princípios consistem em padrões a
serem observados porque são “uma exigência
de justiça ou eqüidade ou alguma outra
dimensão da moralidade”, motivo pelo qual
possuem a dimensão do peso ou da
importância (2002, p. 36, 39 e 42).
Ávila realiza a distinção entre regras e
princípios, propondo um conceito de ambos.
Assim, as regras descrevem comportamentos,
possuem um caráter retrospectivo e possuem
pretensão de decidibilidade e abrangência. As
regras têm seu centro em finalidades ou
princípios. Já os princípios estabeleceriam um
fim a ser alcançado, possuindo um caráter
prospectivo. Além disso, a aplicação dos
princípios exigiria “uma avaliação da
correlação entre o estado de coisas a ser
promovido e os efeitos decorrentes da conduta
havida como necessária à sua promoção”
(2006, p. 78 e 79).
Verifica-se, então, que os princípios
jurídicos, enquanto estabelecedores de
finalidades, possuem uma extrema importância
em nosso ordenamento jurídico. Dessa forma,
são cruciais para a resolução de questões não
contempladas diretamente, que é o que ocorre
com o aborto por grave anomalia fetal.
3.1.1.1.2 Conteúdo ético da dignidade da
pessoa humana
Se a dignidade da pessoa humana consiste
no fundamento não jurídico da ordem jurídica
(BORELLA, 1999, p. 30), é preciso, para
compreender sua influência no ordenamento
brasileiro, a análise do seu conteúdo ético.
Neste trabalho, privilegiar-se-á o conceito de
dignidade humana de Kant.
31
Sendo assim,
torna-se imprescindível o estudo do imperativo
categórico ou do princípio da moralidade.
Para Kant, o imperativo é uma fórmula da determinação da ação necessária de acordo
com o princípio da boa vontade. O imperativo será categórico se a ação for representada como
boa em si mesma. O imperativo categórico, também denominado de imperativo da
31
Também tratam do conteúdo ético desse princípio, dentre outros: ANDORNO, Roberto. La bioéthique et la
dignité de la personne. Paris: Universitaires de France, 1997; BORELLA, François. Le concept de dignité de la
personne humaine. In: PEDROT, Philippe (dir.). Ethique, droit et dignité de la personne. Paris: Economica,
1999, p. 29-38; GONZÁLEZ, Ana Marta. La dignidad de la persona, presupuesto e la investigación científica.
In: LLOMPART, Jesús Ballesteros; MIRALLES, Ángela Aparisi (eds.). Biotecnología, dignidad y derecho:
bases para un diálogo. Navarra: EUNSA, 2004, p. 17-41; MIRANDOLA, Giovanni Pico della. Discurso sobre a
dignidade do homem. Lisboa: 70, 1986; NINO, Carlos Santiago. Ética y derechos humanos. Barcelona: Ariel,
1989, p. 267-301 e ROUSSEAU, Dominique. Les libertés individuelles et la dignité de la personne humaine.
Paris: Montchrestien, 1998, p. 62-70.
moralidade, determina imediatamente um comportamento, sem se basear em nenhum
propósito para chegar a esse comportamento (2004, p. 45 e 47).
Kant descreve o imperativo categórico da seguinte forma: “age só segundo máxima tal
que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”. O autor acrescenta que, se
desse imperativo é possível derivar todos os imperativos do dever, o imperativo universal do
dever exprimir-se-ia assim: “age como se a máxima da tua ação devesse se tornar, pela tua
vontade, lei universal da natureza” (2004, p. 51 e 52).
Ao tratar da dignidade, Kant alega que o ser humano existe como um
fim em si mesmo, e não como meio para o uso arbitrário de alguma
vontade. Logo, ele deve ser sempre considerado como fim. O filósofo
salienta que somente os seres racionais são pessoas, pois a natureza os
distingue como fins em si mesmos e, por isso, eles são objeto de
respeito. Assim, tem-se que “a natureza racional existe como fim em
si”. Portanto, conclui o autor com a formulação do seguinte
imperativo: “age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto
em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (2004,
p. 58 e 59).
Assim, segundo o autor, tudo tem um
preço ou uma dignidade. Aquilo que tem preço
pode ser substituído por algo equivalente. Já
algo que está acima de qualquer preço, não
admitindo equivalência, possuiria dignidade.
Coloca-nos o filósofo, ainda, a condição da
moralidade para tornar um ser racional um fim
em si mesmo. Portanto, somente “a moralidade
e a humanidade enquanto capaz de moralidade
são as únicas coisas providas de dignidade”
(2004, p. 65).
3.1.1.1.3 Conteúdo jurídico da dignidade da
pessoa humana
Exposta a concepção de dignidade de
Kant, é possível agora verificar seu conteúdo
jurídico e a importância exercida por esse
princípio no sistema constitucional. A
dignidade da pessoa humana é um “valor
supremo”, atraindo o conteúdo de todos os
direitos fundamentais, sejam eles os direitos
pessoais tradicionais ou os direitos sociais
(SILVA, 2004, p. 105). Nesse sentido, ela
constitui-se como fonte ética de todos os
direitos humanos (MIRANDA, 2000, p. 181).
O princípio da dignidade da pessoa
humana exerce o papel de “núcleo filosófico
do constitucionalismo pós-moderno”,
consistindo num norteador na interpretação e
aplicação das normas jurídicas (CASTRO,
1999, p. 113 e 114). A consagração do
princípio da dignidade da pessoa humana
como o fundamento da unidade do sistema
constitucional dos direitos fundamentais
elucida que a pessoa humana possui um valor
em si mesma (G. MORAES, 1997, p. 89).
É porque a dignidade da pessoa
humana ocupa um lugar central nos
pensamentos filosófico, político e jurídico que
ela é qualificada como valor fundamental,
sobretudo para as ordens constitucionais que
buscam a constituição de um Estado
democrático de Direito, entende Sarlet. Por
isso, o constituinte de 1988 elevou-a à
condição de princípio fundamental (2004a, p.
38 e 67). O autor conceitua a dignidade da
pessoa humana como:
[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade,
implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que
assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e
desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma
vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável
nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres
humanos (2004a, p. 59 e 60).
Para Castro, diante da menção
constitucional à dignidade da pessoa humana
como fundamento da organização nacional,
nosso Estado possui uma abertura
constitucional radicada nesse princípio.
Portanto, seria uma instituição tendente a
absorver de forma ilimitada aspirações e
conquistas sociais, pacificando os diversos
projetos de dignificação humana (1999, p. 106
e 107). Segundo A. Moraes, a dignidade é um
valor moral inerente à pessoa, manifesto na
autodeterminação relativa à própria vida e
incluindo o respeito por parte das demais
pessoas. Esse princípio fundamental possui
uma dupla concepção: prevê um direito
individual protetivo ao mesmo tempo em que
estabelece um dever de tratamento igualitário
dos semelhantes (1997, p. 60 e 61).
Por meio da positivação do princípio da
dignidade da pessoa humana, o Direito
Constitucional brasileiro reconhece que a
pessoa humana tem uma dignidade própria e
constitui um valor em si mesma, o qual não
pode ser sacrificado em prol de interesses
coletivos (FERREIRA FILHO, 2000, p. 19).
De acordo com Bastos e Martins, a partir da
previsão posta pelo constituinte, “o Estado se
erige sob a noção da dignidade da pessoa
humana”, ou seja, uma das finalidades do
Estado é a de propiciar condições para que as
pessoas se tornem dignas. Assim, embora o
sentido da vida humana seja algo conferido
pelos indivíduos, o Estado pode facilitar essa
tarefa com a ampliação das “possibilidades
existenciais do exercício da liberdade” (1988,
p. 425).
Percebe-se, então, que a noção de
dignidade da pessoa humana ocupa um papel
central no ordenamento jurídico constitucional
brasileiro. Por meio desse princípio, coloca-se
a pessoa como o cerne das preocupações do
Estado democrático de Direito. Disso, decorre
a garantia de todos os direitos fundamentais,
sejam eles individuais ou coletivos. Ela possui,
ainda, uma função hermenêutica, já que todo a
legislação constitucional ou infraconstitucional
deve ser de acordo com tal princípio
interpretada.
3.1.1.2 Os Direitos Fundamentais
Conforme afirmado anteriormente, é do
princípio da dignidade da pessoa humana que
decorrem os direitos fundamentais, que estão
expressos na Constituição. É a
dignidade da pessoa humana, conforme Sarlet,
que exige e pressupõe o reconhecimento e a
proteção dos direitos fundamentais. É devido a
essa ligação intrínseca que se pode afirmar
que, em caso de ausência do reconhecimento
dos direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sua dignidade está sendo negada
(2004a, p. 84). Portanto, é preciso verificar o
conceito e o alcance da expressão direitos
fundamentais.
A expressão direitos fundamentais
designa os direitos humanos concretizados
pelo ordenamento jurídico positivo,
objetivando a dignidade, igualdade e liberdade
da pessoa humana (SILVA, 2004, p. 178 e
179). Os direitos fundamentais também podem
ser conceituados como direitos subjetivos que
asseguram “uma esfera de ação própria e livre,
impondo abstinência ou limitação à atividade
estatal ou privada”, bem como direitos que
determinam a possibilidade de exigência de
prestações estatais positivas (G. MORAES,
1997, p. 24).
Os direitos fundamentais assentam-se nos
seguintes pressupostos: existência de uma
esfera individual de ação própria e livre frente
ao Poder Público, existência de um Estado ou
de uma comunidade política integrada e
verificação de uma positivação jurídico-
constitucional (G. MORAES, 1997, p. 26 e
27). A positivação dos direitos fundamentais
na Constituição denota a incorporação à ordem
jurídica de direitos inalienáveis dos indivíduos
(CANOTILHO, 2000, p. 371), reconhecendo-
se, também, a sua historicidade,
imprescritibilidade e irrenunciabilidade
(SILVA, 2004, p. 181). Segundo G. Moraes,
haveria seis diretrizes básicas do sistema
constitucional de direitos fundamentais: a
representação do indivíduo como portador de
um valor absoluto, a consideração da pessoa
humana como inserida em uma unidade social
que permite a plena realização individual, a
concepção de autonomia pessoal, o objetivo da
qualidade de vida, a impossibilidade de a
dignidade humana ser objeto de qualquer
modo de limitação espacial e a prevalência da
liberdade sobre a propriedade (1997, p. 92-95).
Esses direitos podem ser categorizados
como direitos de defesa e como direitos a
prestações, entende Sarlet. Enquanto direitos
de defesa, os direitos fundamentais tratam de
limitar o poder do Estado, o que assegura aos
indivíduos sua liberdade, bem como outorga
um direito subjetivo que evite intromissões
indevidas na sua esfera de autonomia
pessoal.
32
Já enquanto direitos a prestações, os
direitos fundamentais necessitam de uma
postura ativa do Estado, obrigando-o a colocar
à disposição dos indivíduos prestações de
natureza jurídica e fática. Assim, não basta que
o Estado não intervenha na esfera de liberdade
pessoal dos indivíduos, sendo necessária a
colocação à disposição dos meios que
possibilitam o exercício dessa liberdade
(2004b, p. 180, 181 e 200).
Conceituados os direitos fundamentais,
pode-se passar agora à análise específica dos
que são mencionados na discussão acerca do
aborto por grave anomalia fetal. Serão
analisados apenas os direitos à vida, à
liberdade e à saúde. O direito à vida e à
liberdade são os que se opõem quando se trata
do aborto, sendo freqüentemente utilizados na
sustentação da posição contrária (direito à
vida) ou favorável ao aborto (direito à
liberdade). Já o direito à saúde tem uma
implicação importante especialmente nos
casos de grave anomalia fetal, diante dos
riscos ou danos acarretados à gestante. Embora
não sejam os únicos suscitados pela questão,
entende-se que, além de serem os principais,
são também os mais referidos pela
jurisprudência analisada no item 3.2.1, bem
como são os que constam na Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº
54.
3.1.1.2.1 O direito à vida
O primeiro direito a ser verificado aqui é
também aquele mencionado sobretudo pelos
que se opõem à realização do aborto nos casos
de graves malformações fetais, qual seja, o
direito à vida. É com base na vida do feto que
não poderia ser permitido, seja legalmente ou
judicialmente, o procedimento médico de
interrupção da gestação. No entanto, não há
previsão constitucional acerca do início da
proteção jurídica da vida humana.
32
Segundo o autor, essa “´função defensiva’ dos direitos fundamentais não implica, na verdade, a exclusão total
do Estado, mas, sim, a formalização e limitação de sua intervenção, no sentido de uma vinculação da ingerência
por parte dos poderes públicos a determinadas condições e pressupostos de natureza material e procedimental”
(SARLET, 2004b, p. 181).
Para Silva, nossa Constituição não
enfrentou o tema do aborto diretamente.
Descreve ele três tendências presentes no
âmbito da Constituinte: a que queria assegurar
o direito à vida desde a concepção, a que
previa que a condição de sujeito de direito
seria adquirida com o nascimento com vida e,
por fim, a que compreendia que a Constituição
não deveria vedar nem admitir o aborto. Para
esse autor, a Constituição “parece inadmitir o
abortamento”. No entanto, tal decisão
dependeria de outra, relativa ao início da vida,
a qual, para o constitucionalista, já existiria no
feto. No entanto, coloca que o aborto é
decidido pela legislação ordinária, sobretudo a
penalista. Termina salientando que há casos
em que a interrupção da gestação é
justificável, citando, além do salvamento da
vida da gestante e da gestação decorrente de
estupro, os casos “que a ciência médica
aconselhar” (2004, p. 202).
Também Mota e Spitzcovsky revelam que
a previsão constitucional do direito à vida gera
diversas controvérsias relativas ao aborto, com
base no momento em que a vida se iniciaria.
Diante da neutralidade presente na
Constituição, compreendem os autores que as
normas referentes ao aborto contidas no
Código Penal são recepcionadas em sua
totalidade, ou seja, tanto no que tange à sua
caracterização como crime, quanto no que diz
respeito às duas excludentes, quais sejam, os
casos de risco de vida para a gestante e quando
a gravidez resulta de estupro. Seria com
fundamento nessa abstenção constitucional
relativa ao início da tutela da vida que o Poder
Judiciário estaria admitindo a possibilidade de
realização do aborto quando o feto não possui
condições de sobrevida (2000, p. 323).
De acordo com A. Moraes, a Constituição
protege a vida de forma geral, o que incluiria a
vida intra-uterina. A penalização do aborto no
sistema penal corroboraria essa proteção
jurídica da vida do nascituro. No entanto, no
que se refere às hipóteses de inviabilidade da
vida extra-uterina, o autor entende que não
haveria justificativas para a penalização, já que
o Direito não estaria protegendo a vida, mas
ferindo direitos fundamentais da mulher, a sua
dignidade humana e a sua liberdade,
consistindo tal restrição em uma “flagrante
inconstitucionalidade” (1997, p. 90 e 91).
Assim, embora a ordem constitucional
brasileira proteja a vida intra-uterina, tal
proteção não é tão intensa quanto a assegurada
à vida de pessoas nascidas, o que faz com que,
mediante uma ponderação de interesses, seja
possível a sua relativização em prol de direitos
fundamentais da gestante (SARMENTO,
2006, p. 150).
Conforme o exposto, diante do silêncio
constitucional quanto ao início da tutela da
vida, restam dúvidas sobre a sua extensão à
vida intra-uterina. Ademais, mesmo que se
compreenda que também a vida dos seres não-
nascidos é tutelada por esse direito, é possível
não o compreender como absoluto, o que daria
margem à sua relativização nos casos de grave
anomalia fetal, ainda que o direito à vida possa
ser considerado superior aos outros direitos
fundamentais, já que, sem a sua garantia,
nenhum outro direito pode ser exercido. Cabe
ressaltar, ainda, que o direito à vida pode ser
mencionado em relação à gestante, caso se
entenda que a continuidade da gravidez coloca
em risco sua vida. O mais comum, no entanto,
no caso do aborto por grave malformação
fetal, é a compreensão da existência de um
conflito entre a vida do feto e a liberdade da
gestante, direito fundamental examinado a
seguir.
3.1.1.2.2 O direito à liberdade
O direito à liberdade é posto como um dos
fundamentos mais relevantes na legalização ou
descriminalização do aborto, a exemplo do
verificado nas campanhas da década de
setenta, que proclamavam a autonomia sobre o
próprio corpo. Para Kant, a liberdade não é
aquela atribuível à nossa vontade,
independentemente de seu fundamento, mas a
que possuímos razão suficiente para atribuir a
todos os seres racionais. Portanto, “a liberdade
tem de ser demonstrada como propriedade da
vontade de todos os seres racionais”, deve
pertencer à atividade dos seres racionais
dotados de uma vontade (2004, p. 80 e 81). A
vontade, portanto, só é livre se é
universalizável. Na filosofia moral kantiana, a
dignidade humana é identificada com uma
liberdade autônoma (GONZÁLEZ, 2004, p.
20).
A liberdade pode ser conceituada, com
Silva, como a “possibilidade de coordenação
consciente dos meios necessários à realização
da felicidade pessoal”. Portanto, com o
exercício da liberdade busca-se a felicidade
pessoal, que é subjetiva e circunstancial, ou
seja, a liberdade deve estar em harmonia com
a consciência pessoal, com o interesse do seu
agente (2004, p. 232). Também Sánchez
Vázquez entende que a liberdade de escolha,
ou seja, de decisão e ação, acarreta
primeiramente a consciência das diferentes
possibilidades de ação (2005, p. 131). Por isso,
nos casos de aborto por grave anomalia fetal, é
apenas com a não interdição do procedimento
médico que é garantida a liberdade da
gestante, já que somente assim se colocam
diante dela diferentes possibilidades de ação.
Segundo Canotilho e Moreira, a liberdade
garantida constitucionalmente, no âmbito dos
direitos fundamentais, é “a liberdade em si e
para si, expressão da própria autonomia
individual”. O direito à liberdade não é
somente baseado numa teoria liberal,
possuindo ainda uma concepção social,
segundo a qual seria também um direito
positivo a prestações da coletividade e do
Estado, o que garantiria a sua efetividade
(1991, p. 101-103). Ou seja, não se trata,
apenas, de um direito que exige a não-
intervenção estatal ou de terceiros,
necessitando, para a sua concretização, de
prestações positivas, que assegurem o
exercício dessa liberdade.
A liberdade necessita para sua efetivação
de um domínio de autodeterminação pessoal
(FRIED, 1988, p. 105). É isso o que é
postulado nas campanhas em prol do aborto e
é também o sustentado em algumas decisões
permissivas à realização do aborto nos casos
de grave anomalia fetal. Isso porque o tema do
aborto envolve a autonomia reprodutiva da
mulher, fundamentada constitucionalmente no
direito à liberdade (SARMENTO, 2006, p.
161).
Logo, trata-se aqui não apenas da
disposição do próprio corpo, o que poderia ser
compreendido a partir da concepção do feto
como propriedade da gestante, mas, sobretudo,
de autonomia reprodutiva, ou seja, da
possibilidade de se efetuar escolhas morais no
campo da reprodução. Isso é subjetivo, pois é
possível que indivíduos ou casais diferentes
realizem também opções diferentes, como
acerca da manutenção ou não da gestação de
um feto portador de grave malformação. Além
do mencionado, se o direito à liberdade possui
também uma concepção social, a efetividade
da liberdade da gestante, nesses casos de
aborto, passa também pela garantia do
atendimento médico pela rede pública de
saúde.
3.1.1.2.3 O direito à saúde
O direito à saúde é outro direito
fundamental constantemente suscitado na
defesa dos interesses da gestante. Além do
comprometimento da saúde psíquica daquela
que deseja abortar e é impedida, devendo levar
a gravidez a termo, cabe ressaltar o
comprometimento da saúde física, acarretado
pela gestação de um feto portador de grave
malformação fetal, o que é verificado nos
processos analisados, com base em laudos
médicos. Em virtude disso, muitas vezes é
compreendido que, havendo risco à saúde da
gestante, seja ela física ou psíquica, não seria
razoável a imposição à mulher da continuidade
dessa gestação (SARMENTO, 2006, p. 155).
Embora a saúde esteja diretamente
conectada com o direito à vida, pois é um
pressuposto indispensável tanto à sua
existência, quanto à sua qualidade
(SCHWARTZ, 2001, p. 52), foi somente com
a criação da Organização Mundial da Saúde,
em 1946, que a saúde foi reconhecida como
um direito fundamental de todo e qualquer ser
humano e conceituada como “completo bem-
estar físico, mental e social, e não apenas
ausência de doença”, salienta Rocha. Para ele,
a conceituação da saúde deve ser
compreendida como a concretização da sadia
qualidade de vida, da vida com dignidade,
motivo pelo qual a discussão da saúde passa
pela afirmação da cidadania plena (1999, p.
43). De acordo também está Morais, que
entende que o direito à saúde não se refere
somente à cura ou prevenção das doenças.
Assim, a partir da noção de qualidade de vida,
falar-se-ia em promoção da saúde. O cerne
estaria na saúde, e não na doença, o que faz
com que tal direito consista num dos
elementos da cidadania (1996, p. 188 e 189).
Para Sarlet, é no direito à saúde que há
a vinculação mais contundente entre o seu
objeto com o direito à vida e o princípio da
dignidade da pessoa humana. Além dessa
vinculação, o direito à saúde está também
diretamente atrelado à proteção da integridade
física do ser humano, seja ela corporal ou
psicológica. Tal direito encontra sobretudo nos
artigos 196 e seguintes da Constituição uma
maior concretização normativa (2004b, p. 319
e 320).
O direito à saúde está incluído no rol
dos direitos sociais, que compreendem
prestações proporcionadas pelo Estado, com o
objetivo de assegurar melhores condições de
vida aos que não as possuem, assevera Silva.
Dessa forma, os direitos sociais estão ligados
ao direito de igualdade, pois com eles se busca
a criação de condições materiais para que seja
efetivada a igualdade real, bem como ao
exercício da liberdade, o qual só será
proporcionada com essa igualdade (2004, p.
285 e 286). O direito à saúde possui um
aspecto defensivo e uma dimensão
prestacional, assevera Sarmento. Em sua
dimensão defensiva, impede que o Estado ou
terceiros lesem ou ameacem a saúde do titular
do direito, enquanto que, em sua dimensão
prestacional, impõe ao Estado o dever de
implementação de políticas públicas que
objetivem a promoção da saúde das pessoas
(2006, p. 153).
Segundo Rocha, é porque a
Constituição trata o direito à saúde como
sendo de todos que ele possui a natureza
jurídica de um direito difuso, o qual
caracteriza-se pela pluralidade de titulares
indeterminados, bem como pela
indivisibilidade do objeto de interesse. Isso
não retira a sua qualidade de direito público
subjetivo exigível contra o Estado. A
referência à saúde como um direito social, faz
com que seja necessário observá-lo também
em sua concepção transindividual, já que
pertencem a determinados titulares aglutinados
em um grupo, classe ou categoria de pessoas
(1999, p. 46 e 47).
Conforme Schwartz, há uma conexão
entre Estado democrático de Direito e direito à
saúde. Diante disso, o Brasil teria o dever de
efetivamente aplicar a saúde, bem como de
que ela consista num instrumento de justiça
social. Assim, o direito à saúde seria, ao
mesmo tempo, um direito de primeira e
segunda geração, ou seja, um direito de
titularidade individual, que pode ser oposto à
vontade estatal, e um direito social, que exige
prestações estatais positivas para a sua
efetivação (2001, p. 50, 52 e 53).
Logo, percebe-se que o direito à saúde
conecta-se diretamente com o direito à vida, já
que a ausência de saúde coloca em risco o
exercício deste último. Tem relação, também,
com a noção de qualidade de vida, por meio da
qual é possível compreender a saúde como um
estado de completo bem-estar, conforme
preconizado pela Organização Mundial da
Saúde. Sendo assim, tem-se que o direito à
saúde abrange não só a saúde física, mas
também a psíquica. Então, seria esse o locus
jurídico não só para a explicitação dos riscos à
gestante em decorrência da patologia de seu
feto, como para a mensuração do seu
sofrimento psicológico. Ressalta-se, por fim,
que, enquanto direito social, o direito à saúde
exige prestações estatais positivas, no sentido,
no que tange aos casos de aborto estudados
neste trabalho, do acesso aos exames pré-
natais que garantem a visualização de graves
anomalias, da exposição das informações
sobre a enfermidade diagnosticada, de
acompanhamento por uma equipe
multidisciplinar, que auxilie a gestante ou o
casal na realização da sua escolha
(continuidade da gestação ou realização do
aborto).
Vê-se, portanto, que, além da do
princípio da dignidade da pessoa humana, é
também indispensável, para uma análise
jurídica da questão do aborto por grave
anomalia fetal, a verificação dos direitos
fundamentais conexos ao tema. Após esse
exame, pode-se passar à apreciação dos
projetos de lei sobre a temática que atualmente
tramitam no Congresso Nacional.
3.1.4 Projetos de Lei
O aborto em decorrência de anomalia fetal, nos casos em que há malformação
incompatível com a vida extra-uterina é uma situação que tem demonstrado um maior
consenso sobre sua moralidade em nosso país, assevera Diniz. Diante disso, verifica-se a
ocorrência de projetos de lei e recomendações médicas no sentido da modificação da
legislação brasileira. No entanto, os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional não
avançam e “as poucas sessões de audiências públicas sobre o tema têm mais semelhança com
espetáculos de horror do que com consultas públicas sobre a diversidade moral da população
brasileira” (2004a, p. 43). A partir dos anos noventa, é possível observar uma maior
quantidade de propostas favoráveis à possibilidade de interrupção da gestação, além das já
contempladas pelo Código Penal, salientam Hardy e Rebello. No entanto, apesar da tendência
geral favorável, até o presente momento não ocorreu modificação da legislação (1996, p.
262).
O primeiro projeto de lei versando sobre a interrupção da gestação por malformação
fetal (PL nº 632) foi proposto no Congresso Nacional em 1972, pelo deputado federal Araújo
Jorge, e tinha como objetivo impedir o nascimento de deficientes, bem como coibir a
reprodução de pessoas deficientes, expõem Rocha e Andalaft Neto. No entanto, o tema da
eugenia teria acompanhado o debate legislativo nesses casos como um argumento dos
parlamentares contrários à prática, e não como razão moral para a sua autorização. A exceção
é o projeto de lei (PL nº 1.459) proposto pelo deputado federal Severino Cavalcanti, em 2003,
propondo a criminalização do aborto de fetos inviáveis, com base no caráter eugênico do
procedimento. O fundamento dos demais projetos de lei sobre a matéria é o da autonomia
reprodutiva, amparada na inviabilidade fetal (2005, p. 84 e 85). Destaca-se, ainda, a
participação de segmentos da categoria médica nas discussões legislativas sobre aborto,
ocorrida sobretudo nos anos noventa, sustentando uma visão favorável à possibilidade de
realização do procedimento quando há anomalia fetal grave e irreversível (2003, p. 286).
Segundo Diniz, entre 1972 e 2004 foram apresentados ao Poder Legislativo doze
projetos de lei sobre grave anomalia fetal, sendo que metade no segundo semestre de 2004, ou
seja, após a tramitação da ação sobre anencefalia no Supremo Tribunal Federal. Destaca a
autora também que, embora a temática do aborto tenha sido tradicionalmente discutida na
Câmara dos Deputados, verifica-se nos últimos tempos uma forte participação do Senado
Federal, com a proposição de três projetos. Outros projetos de lei em tramitação propõem a
autorização ou proibição total do aborto no país, o que indiretamente legislaria sobre
malformação fetal (2005, p. 85).
Há atualmente cinco projetos de lei tramitando no Congresso Nacional referentes ao
aborto decorrente de anencefalia ou de outras anomalias fetais graves. O Projeto de Lei nº
3.280 data de outubro de 1992 e é de autoria do deputado federal Luiz Moreira. Dispõe sobre
a autorização para a interrupção da gravidez até a vigésima quarta semana quando o feto for
portador de graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais e desde que precedida de
indicação médica. Prescreve ainda que o parecer médico favorável à interrupção da gestação
deve ser dado por pelo menos um médico e que este deve ser diverso daquele que realizará o
abortamento. Atualmente, ele foi apensado ao Projeto de Lei nº 1.135, de 1991, de autoria do
deputado federal Eduardo Jorge, dentre outros, que visa suprimir o artigo do Código Penal
que caracteriza como crime o aborto praticado pela gestante ou com o seu consentimento.
Este último projeto encontra-se na Comissão de Seguridade Social e Família desde outubro de
2005.
O Projeto de Lei nº 1.956, de 23 de maio de 1996, é de autoria da deputada federal
Marta Suplicy. Objetiva autorizar a interrupção da gravidez quando o produto da concepção
não apresentar condições de sobrevida em decorrência de malformação incompatível com a
vida ou de doença degenerativa incurável, precedida de indicação médica, ou quando for
constatada a impossibilidade de vida extra-uterina. Esse projeto também foi apensado ao
Projeto de Lei nº 1.135.
Já o Projeto de Lei nº 1.459, proposto em 2003 e de autoria do deputado federal
Severino Cavalcanti, tem o objetivo de penalizar o abortamento em decorrência de anomalia
fetal. Busca o seu autor acrescentar um parágrafo ao artigo 126 do Código Penal, prevendo a
aplicação da pena do artigo aos casos de abortamento provocado em razão de anomalia fetal.
Tal projeto foi apensado ao Projeto de Lei nº 3.280.
O Projeto de Lei nº 4.403, também de 2004, é de autoria da deputada federal Jandira
Feghali, dentre outros deputados. Prevê o acréscimo do inciso III ao artigo 128 do Código
Penal, o qual disporia acerca do abortamento terapêutico, quando há evidência clínica
embasada por técnica de diagnóstico complementar de que o feto possui grave e incurável
anomalia, a qual implique na impossibilidade de vida extra-uterina. Esse projeto foi aprovado
na Comissão de Seguridade Social e Família, mas com uma emenda que o restringe aos casos
de fetos anencéfalos. Desde maio de 2005 ele encontra-se na Comissão de Constituição e
Justiça e de Cidadania. Trata-se do projeto com o andamento mais adiantado.
Por fim, o Projeto de Lei nº 4.834, o qual data de 2005 e que tem como autores os
deputados federais Luciana Genro e Doutor Pinotti, objetiva acrescentar o inciso III ao artigo
128 do Código Penal, prevendo a exceção legal quando o feto é portador de anencefalia,
contanto que a anomalia seja comprovada por laudos independentes de dois médicos. Ele
também foi apensado ao Projeto de Lei nº 1.135.
Visualiza-se que, dos cinco projetos, dois, o de nº 4.403 e o de nº 4.834 são posteriores
à Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 e tratam apenas da
anencefalia, tema da ação. Consistem os projetos, portanto, numa tentativa de permissão legal,
caso a ação seja julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal, ou mesmo numa forma
de legislar sobre a matéria após uma decisão favorável do Poder Judiciário.
3.2 O ABORTO POR GRAVE ANOMALIA
FETAL E O PODER JUDICIÁRIO
Diante da lacuna existente na legislação, a atenção deve necessariamente voltar-se às
decisões judiciais. No caso das graves malformações fetais, os alvarás judiciais consistem
num verdadeiro fenômeno, sendo o processo visto como um instrumento de garantia de um
direito subjetivo não previsto legalmente. Analisar decisões judiciais, não restringindo o
estudo à análise dos dispositivos legais referentes à matéria, faz-se necessário porque o
sentido jurídico não é formado apenas pelos textos legais, mas também pelo saber acumulado,
enquanto senso comum teórico,
33
e pelas práticas institucionais dos tribunais (WARAT, 1983,
p. 49). Destaca-se também, a relevância da Argüição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 54, embora ela trate especificamente dos casos de anencefalia fetal.
3.2.1 O Discurso dos Julgadores nos Acórdãos de Aborto por Grave Anomalia Fetal
Para Gollop, a detecção de graves malformações fetais “costuma ser um evento
extremamente traumático par o casal”, devido ao impacto da notícia do diagnóstico sobre os
desejos e as fantasias previamente elaborados em relação ao filho. Com a possibilidade de
33
Conforme Warat, “a expressão ‘senso comum teórico dos juristas’ designa as condições implícitas de
produção, circulação e consumo de verdades nas diferentes práticas de enunciação e escritura do Direito” (1994,
p. 13). A idéia de senso comum teórico é, portanto, uma crítica aos operadores jurídicos que se contentam em
reproduzir as palavras contidas nas leis, uma crítica à falta de aprofundamento teórico, jurídico e filosófico, o
que culmina com a introdução, no discurso jurídico, de pré-conceitos e pré-juízos.
realização do procedimento abortivo com autorização judicial, “a paciente pode ser internada
em um hospital da rede pública ou privada, utilizar seu seguro de saúde, evitar o sentimento
de estar incorrendo em crime e ter uma assistência médica e psicológica adequada”. Ressalta,
por fim, o descompasso existente entre a realidade cotidiana da Medicina Fetal, diante do
desejo da gestante e/ou dos casais de interromper a gestação, e os instrumentos jurídicos
disponíveis (2000, p. 81 e 82).
Segundo Diniz, o primeiro alvará que autorizou a realização de aborto em decorrência
de anomalia fetal teria se dado no estado do Mato Grosso do Sul, em Rio Verde do Mato
Grosso, em 1991. A anomalia constante no pedido era a anencefalia. O fundamento judicial
foi o de que a anencefalia impediria a sobreviva, motivo pelo qual não haveria violação ao
princípio de proteção da vida, no qual se baseia a proibição do aborto (2004a, p. 44).
Tem-se que, em nosso país, já teriam sido dadas cerca de duas mil autorizações para a
realização de abortamentos em decorrência de grave anomalia fetal,
34
sendo que a maior
concentração dos registros é verificada nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, além do
Distrito Federal (DINIZ, 2004a, p. 45). Por isso, nossa investigação será limitada a esses
Estados, além do Rio Grande do Sul, bem como aos tribunais superiores. A ausência de
jurisprudência sobre aborto por grave anomalia fetal no Tribunal de Justiça do Distrito
Federal provavelmente está ligada à instituição, pelo Ministério Público, “em 1999, no âmbito
da Promotoria de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde, do processo de habilitação para
autorização de antecipação terapêutica do parto de fetos com inviabilidade extraordinária”,
em que há a declaração de que o fato é atípico e que não será perseguido criminalmente,
possuindo as mesmas conseqüências do alvará judicial (RIBEIRO, 2004, p. 133 e 134).
3.2.1.1 Linguagem Jurídica e Definições Persuasivas
Em primeiro lugar, é preciso explicitar o porquê da importância do estudo da
linguagem para a ciência do Direito. Levando-se em consideração que o Direito sempre se
expressa através da linguagem, seja nas peças processuais, nas normas ou na doutrina,
podemos afirmar que a linguagem é central para a compreensão dos fenômenos de produção e
34
Ainda segundo a autora, não existe registro de autorização de aborto nos casos de malformação compreendida
como compatível com a vida extra-uterina, restringindo-se os alvarás judiciais aos casos de grave anomalia fetal
Tem-se como exemplo a Síndrome de Down. Embora tenha havido pedidos judiciais nesse sentido, o sistema
judicial brasileiro tem optado pela negação da autorização para aborto nesses casos (DINIZ, 2004, p. 46).
aplicação jurídicas. A necessidade do estudo da linguagem faz-se presente, ainda, devido ao
fato de que, em conformidade com Warat, as linguagens não se esgotam nas informações
transmitidas, já que engendram uma série de ressonâncias significativas e normalizadoras das
práticas sociais. Isso porque, ao transmitir uma mensagem, um indivíduo não só reflete seus
propósitos, como também reproduz uma concepção de mundo, fazendo com que a linguagem
possua também uma função social de dominação. Como a mensagem não se esgota na
significação de base das palavras empregadas, “o sentido gira em torno do dito e do calado”.
Por isso, a função da linguagem consiste num nível de análise que confere a elucidação das
relações entre os sentidos manifestos e encobertos de um discurso (1995, p. 15, 65 e 67).
Nos julgados analisados, encontramos definições persuasivas. Warat entende que o ato
de interpretação da lei sempre tem como conseqüência a produção de definições persuasivas,
que são aquelas nas quais “são estabelecidos critérios de relevância, visando a convencer o
receptor a compartilhar o juízo valorativo postulado pelo emissor para o caso”. O que se
busca, na utilização dessas definições, é a produção de um acordo sobre o seu conteúdo. Isso
porque “atrás de um argumento que justifica uma decisão nova, ou da redefinição que altera
as decisões socialmente aceitas, existe sempre um conjunto de padrões ideológicos que
tornam legitimável a decisão” (1979, p. 93, 146 e 147).
Para o autor, ao interpretar a lei sempre há a produção de definições persuasivas, nas
quais são estabelecidos critérios de relevância que objetivam convencer o receptor a
compartilhar o juízo valorativo postulado pelo emissor. Utilizamos uma definição persuasiva
quando, na definição de um termo, apresentamos como relevantes características que mantêm
o seu valor emotivo, bem como quando orientamos valores favoráveis ou desfavoráveis que o
uso desse termo implica, no que se refere às situações ou aos fatos aos quais tal terminologia
objetiva se referir. Sendo assim, com a formulação de uma definição persuasiva, recomenda-
se uma idéia com o intuito de modificar o significado descritivo de uma palavra, mas
mantendo o seu significado emotivo (1994, p. 33-35).
O jurista entende que as definições persuasivas
dizem respeito às cargas valorativas,
vinculadas aos usos emotivos da linguagem.
Por meio dessas cargas emotivas, objetiva-se a
aproximação do receptor das referências
valorativas do emissor. Tais referências
valorativas são, então, encobertas com uma
roupagem descritiva, o que facilita a aceitação
do discurso emitido. Por esse motivo, as
cargas emotivas vinculam-se às definições
persuasivas, as quais “encontram-se integradas
por propriedades designativas selecionadas
para os fins persuasivos”. Isso significa que,
“sob a aparência de definições empíricas, as
definições persuasivas encobrem juízos de
valor”. As definições persuasivas estabelecem
“critérios designativos com a finalidade de
convencer os receptores em relação aos juízos
valorativos que o emissor pretende induzir por
meio do processo definitório”. Por isso a
análise das definições persuasivas é
imprescindível quando se efetua uma leitura
ideológica dos discursos jurídicos, para que se
possa detectar justificações e legitimações que
atuam como se fossem explicações (1995, p.
69-71 e 80).
Prossegue o autor, salientando que as definições persuasivas pressupõem a realização
de um processo redefinitório. Redefinir seria “alterar o significado de um termo
possibilitando sua aplicação a situações antes não consideradas”. A redefinição torna-se uma
definição persuasiva quando o critério utilizado para a modificação é axiológico. Isso sempre
ocorreria na interpretação da lei, pois o modo de produção de significados nas decisões
judiciais é sempre valorativo. A partir das redefinições, o significado do texto legal pode ser
alterado, o que facilita a adequação da atividade judicial às modificações sociais (1979, p. 94
e 95; 1994, p. 38).
Nesse estudo, não se busca a rediscussão de um caso já julgado. Pretende-se, apenas,
através da identificação das definições persuasivas, no julgamento dos pedidos de autorização
judicial para a realização da interrupção da gestação de fetos portadores de graves anomalias
fetais, verificar qual é a imagem que os julgadores possuem acerca da do feto e da gestante.
3.2.1.2 Definições Persuasivas nos Acórdãos Coletados
Na pesquisa realizada, coletou-se acórdãos dos tribunais de justiça do Rio Grande do
Sul, de São Paulo e do Rio de Janeiro. Também foram buscados acórdãos no Superior
Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. A busca foi realizada por meio dos sites
da Internet dos respectivos órgãos públicos,
35
abrangendo o período de tempo entre 1º de
julho de 1996 até 30 de junho de 2006 e utilizando-se para tanto o termo aborto. Embora o
objetivo fosse apenas o de utilizar os acórdãos que versassem sobre graves anomalias fetais, a
busca genérica fez-se necessária devido ao fato de serem utilizadas expressões diferentes nas
ementas desses julgados, tais como aborto eugênico, eugenésico, terapêutico etc.
Ao todo, foram estudados trinta e seis acórdãos. As ocorrências estavam distribuídas
da seguinte forma: dez acórdãos no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, quinze
acórdãos no Tribunal de Justiça de São Paulo, seis acórdãos no Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro, quatro acórdãos no Superior Tribunal de Justiça e um acórdão no Supremo Tribunal
Federal.
Na maioria dos julgados, a malformação fetal que ensejava o pedido era a anencefalia.
A anomalia foi verificada em vinte e um dos pedidos. Em cinco processos, constava que o
feto era portador de Síndrome de Edwards. Múltiplas malformações fundamentavam o pedido
em três acórdãos; no mesmo número de julgados, não havia menção à grave anomalia fetal.
Em apenas um acórdão, por fim, encontramos as seguintes malformações: Síndrome de Patau,
anencefalia e ausência de olhos, deformidade no crânio e ausência de olhos e rins
multicísticos e encefalocele.
No que tange às decisões proclamadas, tem-se que dez dos julgados apresentavam
perda do objeto. Desses, oito processos tiveram seu pedido prejudicado devido à
superveniência do parto, em virtude da morosidade da justiça, enquanto que, nos outros dois
processos, tal fato verificou-se em virtude da realização do procedimento médico de
abortamento, com base em autorização judicial de instância inferior. Nesse último caso, uma
das ações era um mandado de segurança impetrado pelo Ministério Público contra o ato do
juiz que autorizou a interrupção da gestação, enquanto que a outra ação consistia num Habeas
Corpus impetrado por um terceiro, tendo como paciente o nascituro anencéfalo. Essa
intervenção de terceiros, ou seja, de pessoas interessadas na decisão, mas que não eram partes
no processo, foi verificada em cinco julgados. Em quatro dos processos, a ação era em favor
do feto e, em apenas um processo, em favor da gestante.
35
Disponíveis em <http://www.tj.rs.gov.br>, <http://www.tj.sp.gov.br>, <http://www.tj.rj.gov.br>,
<http://www.stj.gov.br> e <http://www.stf.gov.br>.
Quanto à decisão proclamada nos demais
acórdãos, os julgadores, em suas decisões,
extinguiram os processos sem julgamento do
mérito. Em quinze processos, a decisão final
foi pela expedição de alvará judicial que
autorizasse a interrupção da gestação,
enquanto que, em nove processos, os
julgadores decidiram pela desautorização do
procedimento médico. O único processo em
que não havia perda do objeto que foi julgado
no Superior Tribunal de Justiça teve sua
decisão contrária ao aborto. No Rio Grande do
Sul, seis pedidos foram deferidos, enquanto
que três foram indeferidos. A maioria dos
processos julgados pelo Tribunal de Justiça de
São Paulo também teve como resultado a
autorização do aborto, já que, dos oito
processos, apenas um deles o desautorizava.
No Rio de Janeiro, por sua vez, verificou-se
um posicionamento oposto. Lá, somente dois
julgados foram pela expedição do alvará
judicial, enquanto que, nos outros quatro, a
decisão final era contrária a tal ato.
Dos quinze acórdãos em que o procedimento de interrupção da gestação foi
autorizado, a anencefalia figurava como anomalia fetal em dez deles (em um julgado, o feto
possuía, além de anencefalia, ausência de olhos). Quatro dos processos tinham como
fundamento do pedido a Síndrome de Edwards e, um processo, a Síndrome de Patau. Já dos
nove julgados em que o aborto foi desautorizado, em seis deles o feto era portador de
anencefalia. Em dois processos, não havia menção à anomalia fetal e, em um acórdão, o
pedido era fundamentado em múltiplas malformações fetais.
Percebeu-se diversas definições persuasivas nos acórdãos coletados, as quais passar-
se-á a enumerar a partir de agora. Ressalta-se que as definições puderam ser visualizadas
inclusive em alguns dos julgados em que a decisão final foi pela perda do objeto.
3.2.1.2.1 Definições persuasivas referentes ao Direito
Duas das definições persuasivas encontradas não diziam respeito à gestante ou ao feto,
mas ao Direito. A definição persuasiva denominada desatualização do Direito foi encontrada
em nove acórdãos. Nesses, percebe-se que os julgadores que mencionam essa idéia nas suas
fundamentações entendem que a hipótese do aborto em decorrência de grave anomalia fetal
não poderia ter sido prevista no Código Penal, já que, à época de sua promulgação, não
estavam disponíveis no Brasil as tecnologias de diagnóstico pré-natal que hoje permitem a
visualização intra-uterina de malformações no feto. Percebe-se aqui a tentativa, por parte dos
julgadores, de, com base na desatualização, utilizar, em sua fundamentação, direitos
constitucionais, e não questões referentes à legislação penal, ou mesmo critérios meta-
jurídicos, tais como os laudos médicos sobre as condições fetais ou da gestante.
Já na definição ausência de previsão legal, descoberta em onze acórdãos, a idéia
presente é a de que não está prevista, na legislação penal, a autorização para a realização de
aborto em decorrência de grave malformação fetal, mas tão somente nos casos de risco de
vida para a gestante ou de gravidez resultante de estupro. Trata-se de uma definição
persuasiva, e não descritiva, pois tem como objetivo o convencimento de que não há
embasamento legal para deferir o pedido judicial. Sendo assim, é menos complicado para os
julgadores operar dessa forma, do que com fundamento em outros critérios, tais como o status
moral de pessoal do feto ou a sua titularidade do direito à vida. A solução mais simples
também parece mais legitimável, uma vez que é colocada como a impossibilidade da ausência
de resposta diversa do Judiciário.
3.2.1.2.2 Definições persuasivas referentes ao feto
Quanto ao feto, salienta-se a verificação da ocorrência de duas definições persuasivas.
A primeira, denominada incompatibilidade com a vida, foi visualizada em dezessete julgados
e expressa a opinião dos julgadores que percebem que a anomalia é irreversível e incurável,
fazendo com que o recém-nascido sobreviva muito pouco tempo após o parto e com pouca
qualidade de vida. Aqui, a persuasão está em desqualificar a vida do feto, colocando-o como
ser morto ou à beira da morte, o que ensejaria a permissão do aborto. Trata-se de, colocando o
feto no centro da questão, desconsiderá-lo ou não considerar que ele, em virtude de sua
patologia, merece a consideração destinada aos fetos saudáveis.
A segunda definição, chamada de direito à vida, foi encontrada em sete processos. A
partir dela, o julgador afirma que o nascituro possui direito à vida, o qual não poderia ser
violado pela autorização judicial do procedimento abortivo. Nesse caso, percebe-se que,
diante da disposição do feto como sujeito de direitos e, conseqüentemente, do direito á vida,
não poderia a liberdade da gestante ser com ele contrastada, já que a vida seria um bem
jurídico superior.
3.2.1.2.3 Definições persuasivas referentes à gestante
Proceder-se-á, então, à análise das definições persuasivas relativas à gestante, tema
aqui privilegiado. Ressalta-se que, das vinte e uma decisões citadas aqui, constam definições
persuasivas no discurso de três desembargadoras mulheres, em quatro acórdãos. Duas são do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e, a outra, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
A primeira definição persuasiva é intitulada sofrimento da gestante e figurou em
dezesseis julgados. Nesses, a idéia pré-concebida pelos desembargadores ou ministros era a
de que a gestação de um feto possuidor de uma grave anomalia fetal é algo que impõe um
sofrimento psicológico significativo à mulher. No Habeas Corpus apreciado pelo Superior
Tribunal de Justiça, o julgador reconhece que a anomalia do feto, consistente em rins
multicísticos e encefalocele, “é motivo de trauma profundo, dor, desespero, frustração
inimaginável, aptos a desestabilizar psicologicamente uma gestante, que nem mesmo o mais
sensível dos seres humanos tem condições de dimensionar” (BRASIL, 2006, p. 8). Também o
ministro do Supremo Tribunal de Justiça menciona o sofrimento da gestante, ao ressaltar o
seguinte:
[...] os estudos multidisciplinares indicam que as reações emocionais dos pais após o
diagnóstico de malformação fetal abrangem, conjuntamente ou não, os seguintes
sentimentos: ambivalência, culpa, impotência, perda do objeto amado, choque, raiva,
tristeza e frustração. É facilmente perceptível a enorme dificuldade de se enfrentar
um diagnóstico de malformação fetal. E é possível imaginar a quantidade de
sentimentos dolorosos por que passam aqueles que de súbito se vêem diante do
dilema moral de interromper uma gestação, unicamente porque nada se pode fazer
para salvar a vida do feto (BRASIL, 2004, p. 11).
O desembargador do Estado de São Paulo Egydio de Carvalho, em seu voto vencido,
expõe que a autorização da interrupção da gestação, devido à anencefalia fetal, é necessária
“para evitar sofrimento físico e psicológico à mãe e familiares”. Entende também que:
[...] não pode e não deve a gestante ser obrigada a suportar o prosseguimento desta
gestação deficiente, além do pior, que sepresenciar a morte de seu filho que já
antecipadamente sabe que virá a ocorrer. O sofrimento, portanto, seria desumano e
inexigível, e o prolongamento desse quadro não traria à requerente nenhum
benefício, mas ao contrário, prejuízo maior do que ela já vem sofrendo e certamente
sofrerá com o abortamento que se faz preciso (SÃO PAULO, 2002, p. 4 do voto
vencido).
O voto vencedor do desembargador Segurado Braz, de São Paulo, reconhece “a
angustiante situação da gestante e de seu companheiro, sabedores de que o feto apresenta
gravíssimo caso de anomalia (‘Síndrome de Edwards’) em que a vida extra-uterina se
prenuncia como vegetativa e breve”. No mesmo julgado, mas na declaração do voto do
desembargador Donegá Morandini, é referido que a gestação impõe “intenso sofrimento
psicológico e inútil à gestante” (SÃO PAULO, 2001, p. 3 do voto vencedor e p. 3 do voto
vencido). Em outro acórdão proferido em São Paulo, em que o feto possuía a mesma
anomalia, o relator sustenta que o aborto evita “a amargura e o sofrimento físico e
psicológico, por cerca de quatro meses, no mínimo, à mãe que já sabe que o filho não tem
qualquer possibilidade de viver” (SÃO PAULO, 2004, p. 3).
No mesmo Estado, é salientado em outro julgado que a não autorização da interrupção
da gravidez imporá “intenso sofrimento físico, psicológico e inútil à gestante”. Também é
mencionada a situação angustiante da gestante e a possibilidade de acometimento da mesma
por doença psicológica. Por fim, o desembargador entende ser necessário autorizar a
interrupção do “sofrimento do casal”, bem como do “trauma por que passa a gestante, cujas
conseqüências ainda mais gravosas [...] são esperadas pós-parto” (SÃO PAULO, 2005a, p. 9 e
10). Outro desembargador paulista ressalta “os aspectos psicológicos a que se submeterá a
gestante”. Aduz que, “durante o período de gestação, já sabedora do resultado final, estará ela
acometida de grave depressão, impossível de ser medida”. Por fim, conclui que é necessário
“interromper o sofrimento do casal e, principalmente, o trauma por que passa a gestante, cujas
conseqüências gravosas são esperadas pós-parto” (SÃO PAULO, 2003, p. 4 e 5).
O relator David Haddad assevera que, com o procedimento médico de interrupção da
gestação, evita-se “a amargura e o sofrimento físico e psicológico, pro cerca de cinco meses,
no mínimo, à mãe que já sabe que o filho não tem qualquer possibilidade de viver” (SÃO
PAULO, 2000a, p. 3; 2000b, p. 2). O mesmo julgador, em outro processo, conclui que, nesses
casos, “devem ser garantidos os sentimentos familiares” (SÃO PAULO, 2000b, p. 2). Já o
desembargador Pires Neto menciona, em relação à gestante, “a angústia – agravada a cada dia
– de suportar, no âmbito familiar, a dor trazida pela gestação de um feto acometido de
anencefalia”. Posteriormente, relata que ela deseja, “com o esperado provimento judicial,
obter o conforto do atendimento médico a tempo de evitar a dolorosa conseqüência
antecipadamente conhecida de todos” (SÃO PAULO, 2005b, p. 4 e 13).
Por fim, o relator de voto vencido, na apreciação de mandado de segurança pelo
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro assevera que “a admoestação pretendida aos pais já foi
alcançada com a punição decorrente da notícia quanto à total incompatibilidade de vida, ao
fruto do amor deles”. Especificamente quanto à gestante, alude que, para esta, a gravidez
tornou-se “um tremendo tormento”. Adiciona que, para ela, “ver nascer o filho, sem a menor
possibilidade de viver, será um padecimento”. Afirma que caberia ao Poder Judiciário evitar
“essa dor” e assegurar “o bem-estar para quem necessita de uma proteção especial, em um
instante desolador de sua vida”. Por fim, relata que a decisão do tribunal, contrária à
autorização para o abortamento, revela a falta de “comiseração com aquela mãe, pessoa já
duramente castigada, com uma concepção inviável”. A resposta estatal, conforme o
magistrado, obriga a gestante a “conscientemente fazer de suas entranhas um esquife para um
feto sem qualquer condição de vida extra-uterina” (RIO DE JANEIRO, 2000, p. 2 e 3 do voto
vencido).
No julgamento de uma apelação crime pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
o julgador salienta que, ao negar o pedido de autorização judicial do aborto, estaria impondo
“árduo sofrimento” à gestante (RIO GRANDE DO SUL, 2003a, p. 8). Também em julgado
gaúcho, o relator demonstra captar o drama do casal, afirmando que eles “não merecem a
incompreensão; ao contrário, já foram penalizados por todo o drama vivido, agravado pela
espera de uma resposta favorável do Judiciário” (RIO GRANDE DO SUL, 2002, p. 11).
Em outro acórdão do mesmo Estado, é mencionado que, com o procedimento
abortivo, “evita-se o prolongamento do sofrimento físico, psíquico e emocional da mãe,
consciente ela de que traz no ventre não a vida querida e desejada, mas a morte inevitável”
(RIO GRANDE DO SUL, 2005a, p. 6 e 7). Já o desembargador Marcel Esquivel Hoppe, ao
relatar um acórdão, entende que “não se pode prolongar ainda mais sofrimento tão intenso e
profundo” à gestante (RIO GRANDE DO SUL, 2005b, p. 13). Outro desembargador rio-
grandense afirma, compreendendo a situação dos pais, que “deve ser uma tragédia na família
nascer uma criança que vai ter poucas horas de vida” (RIO GRANDE DO SUL, 2003d, p. 7).
Encontrou-se ainda a definição persuasiva riscos à vida e à saúde da gestante em doze
decisões judiciais. A idéia implícita aqui é a de que a gestação de um feto com grave anomalia
fetal pode imprimir à mulher riscos à sua vida e à sua saúde, sendo esta física ou psíquica.
Na declaração de voto vencedor, Segurado Braz, desembargador paulista, refere que a
persistência do estado de gravidez gera “riscos à saúde física ou psíquica da gestante”. No
mesmo julgado, no voto vencido, outro desembargador assevera que o sofrimento imposto à
gestante acarreta-lhe “inegável dano à sua saúde” e, posteriormente, reitera a presença, no
caso, de “risco à saúde da gestante” (SÃO PAULO, 2001, p. 4 do voto vencedor e p. 3 e 4 do
voto vencido). Outro desembargador paulista entende que o sofrimento imposto à gestante
acarreta-lhe “dano à saúde”. Salienta, também, que a gravidez é de risco, “já que com idade
superior a quarenta anos, em primeira gestação, e portadora de mioma, o que, como
enfatizado pelos médicos, poderia lhe trazer complicações com a persistência do estado de
gravidez”. Devido a isso, conclui que “não se pode concreta e serenamente também afastar
eventual risco à vida da gestante” (SÃO PAULO, 2005a, p. 8). Por fim, também outro
magistrado desse Estado, julgando um mandado de segurança em que o feto possui
anencefalia, entende o seguinte:
[...] é sempre iminente, nesses casos, o risco à vida da mãe, não só pela grave
perturbação da espera psicógena, que gera atitudes inconseqüentes e desorganização
familiar, com grande possibilidade de suicídio, como igualmente pelas complicações
de tal tipo de gestação (vômitos graves e incoercíveis) e do próprio parto (distócia
do desprendimento do ombro fetal, rotura uterina e choque hemorrágico) (SÃO
PAULO, 2000b, p. 3 e 4).
No único julgado carioca no qual tal definição foi encontrada, a desembargadora relata
que “com a ocorrência de anencefalia fetal, a gestação é freqüentemente complicada por
polidramnia, ocorrente nos três últimos meses, acarretando graves conseqüências para a saúde
da gestante” (RIO DE JANEIRO, 2005, p. 4).
Quanto aos riscos à saúde da gestante, um julgador gaúcho coloca a preservação da
saúde mental como fundamento para a autorização judicial: “a jurisprudência [...] tem feito
uma interpretação extensiva do disposto no art. 128, I, do estatuto repressivo, admitindo o
aborto, não só quando indispensável para salvar a vida da gestante, mas quando necessário
para preservar-lhe a saúde, inclusive psíquica”. No caso em questão, o casal já possuía um
filho portador de retardo mental e dificuldades motoras e ingressou com o pedido judicial por
ser o feto portador da Síndrome de Patau. O desembargador coloca também que, a sobrevida
da criança, que no caso dessa malformação genética poderia se estender por alguns meses,
poderia gerar uma “terrível desorganização da saúde mental” do casal (RIO GRANDE DO
SUL, 2003a, p. 5 e 8).
Também no Rio Grande do Sul, igualmente diante do diagnóstico de anencefalia, o
julgador afirma que o aborto “visa, em última análise, resguardar sim a integridade física da
gestante, melhor dizendo, salvar a sua vida”. Em outro momento, coloca que “do ponto de
vista psicológico, não podemos olvidar que com a interrupção precoce da gestação estar-se-á
preservando a saúde mental e emocional da gestante, já tão condoída, porquanto denota
fragilidade para enfrentar o lamentável calvário”. Por fim, conclui que, “se a gravidez da
autora alcançar o seu termo, a extração do feto será laboriosa e de alto risco, podendo causar a
morte da parturiente” (RIO GRANDE DO SUL, 2002, p. 8-10).
Em outro julgado desse mesmo Estado, o relator ressalta que a gravidez “gera risco à
vida da gestante, visto que o parto de um portador de acrania é difícil”, o que é baseado
também no parecer médico. Reitera, no final do seu voto, que, caso a gestação seja levada a
termo, “a retirada do feto será laboriosa e de alto risco para a gestante, que poderá morrer no
ato” (RIO GRANDE DO SUL, 2003b, p. 4 e 5). Por fim, o desembargador Marcel Esquivel
Hoppe, ao julgar um pedido de aborto em razão de anencefalia fetal, assevera que a gestação
“gera sério risco para a saúde mental da apelante” (RIO GRANDE DO SUL, 2005b, p. 13).
Outro julgador gaúcho, ao apreciar uma apelação crime, assegura que “quanto mais cedo for
interrompida a gravidez, menor o risco sofrido pela gestante, ante o afastamento dos fatores
que o agravariam no momento do parto” (RIO GRANDE DO SUL, 2003c, p. 5).
A definição direito à liberdade foi concebida em apenas três julgados e expressa que,
no imaginário dos magistrados que a utilizaram, faz-se clara a noção de que a mulher que
gesta um feto portador de grave anomalia fetal possui direito à liberdade, o qual lhe garantiria
a autorização judicial do procedimento de interrupção da gravidez. No único julgado sobre o
tema encontrado no Supremo Tribunal Federal, consta que “estamos diante de uma situação
peculiar em que estão em flagrante contraposição o direito à vida, num sentido amplo, e o
direito à liberdade, à intimidade e à autonomia privada da mulher, num sentido estrito”. Ao
referir-se à liberdade da gestante, assevera Joaquim Barbosa:
[...] ao proceder à ponderação entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida
extra-uterina inviável e a liberdade e autonomia privada da mulher, entendo que, no
caso em tela, deve prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de
liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa seus interesses pessoais,
suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal (BRASIL, 2004, p. 10,
14 e 15).
No mesmo julgado, o relator menciona que “a procriação, a gestação, enfim os direitos
reprodutivos, são componentes indissociáveis do direito fundamental à liberdade e do
princípio de autodeterminação pessoal, particularmente da mulher”. Ademais, ao comparar a
situação dos autos ao aborto quando a gravidez decorre de estupro, assevera que:
Seria um contra-senso chancelar a liberdade a autonomia privada da mulher no caso
do aborto sentimental, permitido nos casos de gravidez resultante de estupro, em que
o bem jurídico tutelado é a liberdade sexual da mulher, e vedar o direito a essa
liberdade nos casos de malformação fetal gravíssima, como a anencefalia [...]. Há,
na verdade, a legítima pretensão da mulher em ver respeitada sua vontade de dar
prosseguimento à gestação ou de interrompê-la, cabendo ao direito permitir essa
escolha, respeitando o princípio da liberdade, da intimidade e da autonomia privada
da mulher (BRASIL, 2004, p. 16 e 17).
Em acórdão julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a relatora compara o
caso dos autos a uma notícia jornalística, na qual constava o depoimento de uma mãe que
dizia ter permitido o nascimento de seu filho, embora o médico tivesse se prontificado a
realizar a antecipação do parto. Quanto a tal declaração, sustenta que “aquela mãe teve a
oportunidade de optar entre realizar a cesariana no sexto mês ou manter a gravidez até o final.
Tal direito de escolha está sendo retirado da ora Paciente”. Salienta, também, que “a decisão
final será da Paciente, na medida em que ao Judiciário caberá permitir a cirurgia, e não impor
a realização da mesma. Em outras palavras, o que se busca é, em última análise, o direito de
escolha” (RIO DE JANEIRO, 2003, p. 2 e 3). Em outro julgado do mesmo tribunal, o relator
do voto vencido, também comparando o caso relatado no processo ao de outra gestante, que
havia distribuído um depoimento escrito para cada julgador da sessão, salienta que “são
pessoas diferentes” e que “cabe à justiça ver essa diferença individual, para cumprir a sua
finalidade”, já que “cada pessoa sente o mesmo fenômeno de forma diferente” (RIO DE
JANEIRO, 2000, p. 3 do voto vencido).
3.2.1.2.4 A visão do Poder Judiciário acerca da gestante
O objetivo da análise de jurisprudência foi sobretudo o de verificar qual é a visão que
os julgadores têm acerca das mulheres que gestam um feto portador de grave anomalia fetal.
Busca-se, com isso, ver o que aquilo que é dito e explicitado pelos julgadores pode
representar. Procura-se, dessa forma, ir além, compreendendo também o que não é dito, o que
está implícito, perguntando-se pelos porquês desses silêncios e quais são as mensagens que
são transmitidas.
No que se refere à gestante, encontramos três definições persuasivas: sofrimento da
gestante, riscos à vida e à saúde da gestante e direito à liberdade. Na primeira definição, o que
é valorado é o sofrimento psíquico da mulher. Termos como dor, trauma e angústia são
utilizados na redefinição dos sentimentos da gestante. Para os julgadores, o sofrimento refere-
se ao período gestacional, diante do diagnóstico pré-natal, bem como ao pós-parto, caso a
gestação seja levada a termo, devido ao fato de a mulher vir a presenciar a morte de seu filho
pouco tempo após o nascimento. Também é ressaltada, em alguns julgados, a idéia da
inutilidade do sofrimento, já que ele em nada modifica as condições fetais, não trazendo
benefícios à gestante e prolongando-se até depois do parto. Por fim, é mencionada a
desestabilização psicológica causada à gestante e, por vezes, ao marido ou companheiro, ou
mesmo à família, a qual poderia causar, inclusive, o desenvolvimento de doença psíquica ou o
suicídio.
A definição persuasiva denominada riscos à vida e à saúde da gestante demonstra a
presença, no imaginário dos julgadores, dos riscos, sejam eles físicos ou psíquicos,
proporcionados pela gestação de um feto portador de grave anomalia fetal. No caso dos riscos
físicos, percebe-se o forte apoio em laudos médicos. Aqui são ressaltadas, por exemplo, as
dificuldades de realização do parto (especialmente nos casos de anencefalia) ou outros riscos
em virtude de especificidades da gestante, como o aumento da quantidade de líquido
amniótico ou a presença de mioma uterino, por exemplo. Tal definição, no que se refere aos
riscos psíquicos, relaciona-se com a definição anterior, pois também está baseada no
sofrimento emocional da mulher. Nesse caso, para os julgadores, o sofrimento imposto à
gestante gera também riscos à sua saúde psíquica, podendo ocorrer desorganização da saúde
mental.
No que tange aos riscos à vida e à saúde, eles são embasados sobretudo em laudos
médicos. Ou seja, a legitimidade do ato jurídico é baseada em indicações médicas, o que pode
denotar que esse movimento no sentido da ampliação das hipóteses de permissão do aborto no
Brasil não constituiria “verdadeiramente uma ampliação de escolhas reprodutivas para as
mulheres” (GUILAM, 2005, p. 175).
A última definição, direito à liberdade, traz, nos julgados em que foi encontrada, a
manifestação dos julgadores acerca da liberdade da gestante em optar ou não pela realização
do procedimento médico de interrupção da gravidez. Fala-se aqui em autonomia e em
autodeterminação pessoal. Há também a comparação com a autonomia que é conferida pelo
ordenamento jurídico quando a gestação é resultante de estupro. Entendem os julgadores,
nesses casos, que cabe ao Direito a preservação da singularidade de cada pessoa, permitindo
às gestantes o direito de escolha acerca da manutenção ou não da gestação, o qual seria
negado pela desautorização do aborto.
Percebe-se, do exposto, que os julgadores fazem referências às condições da gestante
nas suas fundamentações, no que se refere à autorização judicial para a realização de aborto
em decorrência de grave malformação fetal. Seu sofrimento psicológico é compreendido e são
explicitados os riscos que a gestação gera e/ou pode gerar à saúde física e/ou psíquica da
mulher. No entanto, somente em três dos trinta e seis acórdãos estudados há menção ao bem
jurídico liberdade. Logo, ainda que tanto o sofrimento da gestante, quanto os riscos à sua vida
e à sua saúde, digam, de forma indireta, respeito à autonomia, isso não é compreendido pelos
desembargadores e ministros nos julgados analisados.
Com base em seu sofrimento psicológico, a gestante opta por interromper a gestação
de feto portador de grave anomalia fetal. Da mesma forma, com base nos riscos que correm
sua vida e sua saúde, ela escolhe, dentre as alternativas possíveis e viáveis, realizar o aborto.
Dessa forma, é o direito à liberdade, é a possibilidade de escolha, o que fundamenta os
pedidos de autorização judicial. O sofrimento é suportável ou não dependendo daquilo que
cada ser humano entende como tolerável. A partir daí, a pessoa deliberadamente opta ou não
por cessar o sofrimento, quando isso é possível. Os riscos que a vida e a saúde correm
também são dimensionados por cada um, que, diante desses fatos, opta ou não por sofrê-los,
quando isso é possível.
Ao contrário das outras duas definições persuasivas, o direito à liberdade não parece
ser tão passível de legitimação. Com Ardaillon, é possível afirmar que, mesmo quando a
argumentação judicial tem a intenção de autorizar o aborto, sua fundamentação “não é
inspirada pelo reconhecimento às mulheres de um direito de decidir sobre o rumo de suas
vidas”. Ao contrário, a Justiça “tende a menorizar as mulheres, que devem ser protegidas ou
corrigidas” (1997, p. 379).
Conforme salientado anteriormente, por meio das definições persuasivas, busca-se a
concordância do receptor em relação aos valores que as informam. Sendo assim, demonstra-se
que é difícil um acordo quanto à proteção da autonomia reprodutiva da gestante. Não é fácil o
convencimento do interlocutor quando o embasamento da decisão é calcado no direito de
escolha. Assim, tem-se que o juízo valorativo no que tange à liberdade da gestante na maioria
das vezes não é um critério de relevância, sendo outros os critérios selecionados (sofrimento e
riscos à vida e à saúde) na busca de uma similitude axiológica com os valores dominantes.
Ao mesmo tempo, como, a partir das definições persuasivas, busca-se travestir juízos
de valor de definições empíricas, é mais difícil encobrir a definição do direito à liberdade com
uma roupagem descritiva. Isso é plenamente verificável nas outras duas definições. Na
primeira, são enumerados os sentimentos que constituem o sofrimento da gestante, tais como
dor, trauma e angústia. Os riscos à vida e à saúde são, por sua vez, baseados em laudos
médicos, com os quais busca-se comprovar empiricamente os danos que a continuidade da
gestação pode causar à mulher. Essa roupagem descritiva, em relação ao direito à liberdade,
pode ser visualizada, contudo, na comparação feita com as gestantes que decidiram levar a
termo sua gravidez, permitindo o nascimento de seu filho.
As poucas referências ao direito à liberdade demonstram a invisibilidade, nos
discursos judiciais, da autonomia reprodutiva. Tal aspecto, ao contrário das referências ao
sofrimento da gestante e aos riscos que a gravidez poderia provocar à vida e à saúde, é negado
na maioria dos acórdãos. Não consistindo essa autonomia um objeto de enunciação, figura
como inexistente, pertencente apenas ao plano do “inconsciente político da sociedade”, mas
não do imaginário social (WARAT, 1995, p. 111). A gestante, pelo menos nos acórdãos
coletados, parece operar muito mais como ser passivo, que passa por sofrimento psicológico,
que corre risco de vida e de danos à sua saúde, e não como sujeito autônomo, capaz de, diante
do quadro de gestação de um feto possuidor de grave malformação, decidir acerca da opção
ou não pelo aborto.
Os julgadores, então, não vão além, não considerando o direito à liberdade como
categoria fundante das suas decisões. Embasam-nas, ao contrário, em questões biológicas,
físicas ou psíquicas, empiricamente demonstráveis e de mais fácil legitimação. Dissimulam-se
os critérios valorativos nos quais se apóiam os julgados, restando como não dita, assim, a
autonomia reprodutiva, questão indispensável na discussão acerca do aborto em decorrência
de grave anomalia fetal.
3.2.2 A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54
A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) está prevista no
artigo 102, parágrafo 1º, da Constituição, tendo sido regulamentada pela Lei nº 9.882, de
1999. Os preceitos fundamentais, objeto da ação, englobam tanto os direitos e garantias
fundamentais previstos na Constituição, como os fundamentos e objetivos fundamentais da
República (A. MORAES, 2001, p. 17).
A ADPF é o instrumento que possibilita que questões referentes aos princípios
fundamentais, como dignidade humana, vida, igualdade e liberdade, sejam diretamente
apresentadas ao Supremo Tribunal Federal, explica Buglione. Essa ação tem efeito erga
omnes, vinculando os conflitos posteriores à sua decisão (2005, p. 98), o que está garantido no
artigo 10, parágrafo 3º, da Lei n.º 9.882/99.
De acordo com Streck, a ADPF “objetiva compelir o Poder Público a abster-se de
realizar um ato abusivo e violador do Estado”. Além disso, ela pode ser intentada também
preventivamente, com o objetivo de controle dos atos que possam violar preceitos
fundamentais da Constituição. Para o autor, o objeto da ação, ou seja, os preceitos
fundamentais, seriam os direitos “reconhecidos ou outorgados e protegidos pelo direito
constitucional interno de cada Estado” (2004, p. 816 e 831).
A ADPF nº 54 foi proposta em 16 de junho de 2004. A medida liminar foi concedida
pelo Ministro Marco Aurélio Mello no dia 1º de julho de 2004, autorizando a antecipação
terapêutica do parto nos casos de anencefalia, bem como suspendendo todos os processos no
país contra mulheres e profissionais de saúde que realizaram o procedimento. Sua revogação
se deu no dia 20 de outubro do mesmo ano.
Embora diversas anomalias tidas como incompatíveis com a vida fundamentem a
jurisprudência brasileira, a estimativa de que entre 55 e 65% dos casos correspondem à
anencefalia, além da inexistência de qualquer dúvida científica sobre a sua letalidade, fizeram
com que a ADPF versasse exclusivamente sobre essa patologia. Para Diniz, a restrição da
ação proposta no Supremo Tribunal Federal à anencefalia deveu-se a dois motivos: pelo fato
de ser uma malformação incompatível com a vida, havendo um consenso na literatura médica
internacional sobre o diagnóstico e a inviabilidade fetal,
36
bem como pelo fato de que a
anencefalia corresponde a no mínimo metade dos casos de grave malformação fetal já
julgados pelo Poder Judiciário do país (2005, p. 88).
Diniz, que cunhou a expressão antecipação terapêutica do parto, afirma que ela teria
surgido por meio do acompanhamento de mulheres grávidas de fetos portadores de anomalias
fetais consideradas letais em Brasília. Isso porque as gestantes nunca descreviam o
procedimento de interrupção da gestação como aborto, afirmando, ao contrário, que, como
não havia nada a ser feito, o melhor seria antecipar o sofrimento (2004b, p. 18, 22 e 23).
Na argumentação exposta na ADPF, passou-se ao largo da temática do aborto,
sustentando-se que a antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos não constitui
aborto. Não foi questionado, então, o tratamento conferido ao aborto pelo Direito positivo
brasileiro, que o caracteriza como crime contra a vida. A principal tese contida na ADPF,
conforme Diniz, é a de que a antecipação terapêutica do parto, nos casos de anencefalia fetal,
não é aborto, o que faz com que a exigência de uma autorização judicial para a realização de
um procedimento médico que não é considerado crime infrinja os preceitos fundamentais
relativos à dignidade da pessoa humana, à liberdade e à saúde. Portanto, a ADPF não
36
Ela salienta que a mais importante técnica de diagnóstico da anencefalia é a ecografia, um exame simples e
disponível no Sistema Único de Saúde e que a compreensão do diagnóstico e a tomada de decisão seriam mais
simples nesses casos, pois a imagem de um feto com anencefalia é nítida até para pessoas leigas (DINIZ, 2005,
p. 88).
enfrentou a questão do início da vida, partindo apenas do pressuposto da certeza da morte do
feto anencéfalo (DINIZ, 2004b, p. 30 e 32).
Acerca argumentação utilizada na peça processual encaminhada ao Supremo Tribunal
Federal, refere Diniz que se prescindiu de um acordo sobre o status moral do feto, a partir da
compreensão de que as discussões sobre o aborto paralisavam no conflito entre o direito à
vida do feto e a autonomia reprodutiva da mulher. Assim, o fundamento utilizado foi o de
que, diante da inevitabilidade da morte precoce do feto, a interrupção da gestação nesse caso
não se enquadraria na definição penal de aborto, já que o anencéfalo não possuiria a
potencialidade de se converter em uma pessoa.
37
Transferiu-se, dessa forma, o debate moral
do início para o fim da vida, o que vai ao encontro do critério utilizado em nosso país para
determinar a morte, que é o da ausência de atividade cerebral, a qual não pode ser verificada
nesses casos. Considerou-se o anencéfalo, então, como feto morto. Diante disso, modificou-se
também a terminologia, passando-se do aborto à antecipação terapêutica do parto, pois o
primeiro conceito seria aplicável somente à vida presente ou potencial (2005, p. 89 e 90).
Quanto ao feto, é mencionada a letalidade da anencefalia e a sua impossibilidade de
cura ou tratamento. No que tange à gestante, foram dispostos os riscos gerados à sua saúde,
principalmente em virtude do alto índice de mortalidade intra-uterina, o que faz com que o
procedimento médico possua indicação terapêutica, já que não há como reverter a
inviabilidade do feto. Também é ressaltado que não haveria o aborto tipificado penalmente,
pois a morte do feto não seria resultante dos meios abortivos, mas da malformação congênita.
É colocado na peça processual que, diante da ausência de potencialidade de vida extra-
uterina do feto, o foco da atenção volta-se ao estado da gestante. Assim, não haveria
ponderação de bens ou valores no conflito feto versus gestante, pois a opção pela antecipação
terapêutica do parto estaria protegida por preceitos fundamentais, quais sejam: o da dignidade
da pessoa humana, o da liberdade e o da saúde. É compreendido como uma violação à
dignidade da pessoa humana a imposição à gestante do dever de carregar durante nove meses
um feto que não sobreviverá, “causado-lhe dor, angústia e frustração”. É disposta também a
potencial ameaça à sua integridade física e os danos causados à sua integridade moral e
psicológica. Como violação ao direito à liberdade é mencionado que, já que a antecipação
37
Segundo Buglione, desloca-se a discussão da anencefalia para o fato da não-vida (2005, p. 96).
terapêutica do parto não está vedada pelo ordenamento jurídico, deve a autonomia da vontade
individual prevalecer. Por fim, como violação ao direito é saúde é referido que, como a
antecipação terapêutica do parto nos casos de anencefalia é o único procedimento médico
cabível para abreviar os riscos e o sofrimento causados à gestante, o impedimento de sua
realização acarreta danos à sua saúde.
O ministro relator da ADPF decidiu pela convocação de uma audiência pública, antes
da prolatação da decisão final pelo Supremo Tribunal Federal, colocam Oliveira et al. Foram
convocadas entidades que solicitaram participação na ação na qualidade de amicus curiae: a
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil; as Católicas pelo Direito de Decidir; a
Associação Nacional Pró-vida e Pró-família; a Associação de Desenvolvimento da Família; a
Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia; a Sociedade Brasileira de Genética Clínica;
a Sociedade Brasileira de Medicina Fetal; o Conselho Federal de Medicina; a Rede Nacional
Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos; a Escola de Gente; a Igreja
Universal; o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e o deputado Federal José
Pinotti, médico especialista na matéria. Essa audiência ainda não tem data marcada. Sendo
assim, a decisão final da ADPF consistirá na primeira oportunidade real de análise pelo
Supremo Tribunal Federal da dignidade da pessoa humana e do direito à vida, abrindo a
análise do Direito ao tema polêmico do aborto (OLIVEIRA et al., 2005, p. 88 e 89).
Foram analisadas questões legislativas, incluindo os dispositivos constitucionais
aplicáveis ao aborto por grave malformação fetal e os projetos de lei que tramitam sobre a
matéria, e judiciais, com a averiguação das tendências discursivas dos julgadores de três
Estados, além dos tribunais superiores, e da ADPF nº 54/2004. Num país de tradição romano-
germânica, a lei reveste-se de um caráter especial, o que pode ser demonstrado pelo número
considerável de projetos de lei sobre o aborto nesses casos, para os quais não há previsão
legal. Justamente em virtude disso, não seria possível ignorar a importância do Poder
Judiciário, que é o que tem respondido às demandas da população que busca uma legitimação
jurídica para a sua escolha. Passar-se-á, agora, ao estudo de questões específicas referentes às
mulheres, na tentativa de compreender, sobretudo no que tange às manifestações judiciais, o
porquê dessa desvalorização da escolha da gestante pelo Direito.
4 MULHER, MATERNIDADE E ABORTO POR GRAVE ANOMALIA FETAL
Na questão do aborto, é preciso considerar tanto o respeito pela vida fetal quanto a
preocupação com a mulher (JUNGES, 1999, p. 131). Ambas as questões são partes
fundamentais de um mesmo problema, não podendo nenhuma delas ser subestimada. Deduz-
se daí, portanto, que a liberdade da gestante é um problema fundamental,
38
mesmo para os
que sustentam que o feto é pessoa desde a concepção. Tratando-se da questão da gestante,
torna-se imprescindível analisar o conceito de gênero e sua vinculação com os ideais ou mitos
relativos à maternidade. A partir de então, compreendendo-se a maternidade como escolha,
faz-se preciso o estudo do reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos, que estão
sobremaneira conectados tanto com o gênero, quanto com a maternidade. Por fim, proceder-
se-á a uma análise do caráter ideológico do Direito, pretendendo-se demonstrar sua relação
com a reprodução dos discursos sobre aborto por grave malformação fetal.
4.1 MULHER, GÊNERO E DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS
4.1.1 Conceito de Gênero
Na chamada segunda onda do movimento feminista, verificada na década de 1960,
este se volta, além das preocupações sociais e políticas, para as construções teóricas. É no
âmbito do debate entre estudiosas e militantes com seus críticos que é engendrado e
problematizado o conceito de gênero. É nesse contexto que surgem os estudos da mulher, a
partir do momento em que militantes feministas participantes do mundo acadêmico trazem
para o interior das universidades e escolas as questões que as mobilizavam (LOURO, 1997, p.
15 e 16). A construção de uma teoria feminista vem a ocorrer posteriormente, na década de
1970, no meio acadêmico e no dos movimentos sociais.
O conceito de gênero tem origem na Psicologia e na Sexologia dos Estados Unidos
dos anos 1950, ressalta Stolke, no momento em que a postura médica em relação à
transexualidade e à intersexualidade foi modificada, efetuando-se, a partir de então, cirurgias
de mudança de sexo. Nesse contexto, o termo gênero foi adotado para distinguir o sexo social
do anatômico (2004, p. 84). Posteriormente, sobretudo após a intensa movimentação cultural
da década de sessenta, e mais especificamente a partir dos anos setenta, o termo gênero
passou a ser empregado em outros campos científicos, principalmente no das Ciências
Sociais. Sua nova concepção, que será analisada aqui, foi criada com o intuito de separar o
fato de alguém ser fêmea ou macho do trabalho de simbolização que a cultura realiza sobre
38
O uso do corpo alheio é uma questão explicitada por Thomson, quando a autora coloca a hipótese de uma
mulher que, sem consentir, tem seus rins conectados aos de um famoso violinista, procedimento que durará nove
meses, sendo que desconectá-lo significaria matá-lo. É referido também que, como o violinista é uma pessoa,
cortar essa ligação implica na morte de uma pessoa (1983, p. 11 e 12).
essa diferença sexual (HEILBORN, 1997, p. 51). O termo gênero é usado de duas formas
diferentes: em primeiro lugar, como referência à personalidade e ao comportamento, opondo-
se ao sexo e, em segundo lugar, como referência às construções sociais que tem a ver com a
distinção entre feminino e masculino, o que inclui as construções que separam os corpos
(NICHOLSON, 2000, p. 9).
Para contrapor o argumento da distinção biológica entre mulheres e homens como
fundamentadora das desigualdades, faz-se necessário demonstrar que não são propriamente as
características sexuais, mas a forma com que elas são representadas ou valorizadas que
constrói o feminino e o masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico.
Esse debate constitui-se através de uma nova linguagem, na qual gênero é um conceito
fundamental (LOURO, 1997, p. 21).
Vários aspectos do papel ou da identidade de gênero, que são construídos socialmente,
são tidos como biológicos.
39
A biologização ou naturalização das diferenças vem a legitimar
as desigualdades entre mulheres e homens, na medida em que as pode tornar invisíveis e
incontestáveis.
40
Portanto, por meio do termo gênero, utilizado ao invés de sexo, refuta-se o
argumento patriarcal da submissão natural das mulheres aos homens, indicando-se, ao
contrário, que a condição das mulheres não é determinada pelo sexo, sendo resultado de uma
invenção social e política (PATEMAN, 1993, p. 330).
De acordo com Safiotti e Almeida, uma
mesma cultura, sob a qual vivem mulheres e
homens, destina a cada um dos gêneros um
papel diverso nas relações sociais. Esses
papéis serão exercidos de diferentes formas, de
acordo com a cultura local e o período
histórico (1995, p. 15 e 17). Levando-se em
conta que existem diversos papéis de gênero
na sociedade, o que pode ser comprovado pelo
fato de eles serem variáveis de acordo com a
cultura, não podem os mesmos ser tidos como
inevitáveis (VANCE, 1995, p. 10).
39
Acerca da biologização das diferenças culturais, ver: CITELI, Maria Teresa. Fazendo diferenças: teorias sobre
gênero, corpo e comportamento. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n. 1, p. 131-145, jan./jun. 2001.
40
Strey et al. asseveram que “quando uma característica masculina ou feminina é vista como derivada ou
produto do biológico, apesar de ser culturalmente construída, isso terá uma importância muito maior do que se
fosse considerada somente como algo cultural. É mais fácil dizer que o estado de espírito de uma mulher é
conseqüência da menstruação, da gravidez ou da menopausa, do que da vivência de certos processos sociais,
interacionais ou culturais no transcorrer de sua vida diária” (1997, p. 85).
Para Scott, o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as
diferenças percebidas entre os sexos (GROSSI et al., 1998, p. 115). A autora fundamenta o
gênero em quatro elementos: os símbolos culturalmente disponíveis que evocam
representações simbólicas;
41
os conceitos normativos que põem em evidência as
interpretações do sentido dos símbolos, que se esforçam para limitar e conter suas
possibilidades metafóricas;
42
a noção de política e a referência às instituições e à organização
social
43
e a identidade subjetiva.
44
O gênero é, ainda, uma primeira maneira de dar significado
às relações de poder (1990, p. 16).
A formulação mais usual de gênero, conforme Heilborn, que o caracteriza como a
distinção entre os atributos culturais destinados a cada um dos sexos em contraste com
condições fisiológicas dos seres humanos, está sob ataque. Pergunta-se, sobretudo, se o sexo,
no qual o gênero se apoiaria, seria auto-evidente. Isso se dá principalmente quando é colocado
que a diferença entre os sexos é uma invenção,
45
o que ocorre no final do século XVIII. Por
meio de uma interpretação estruturalista do gênero, seria necessária, então, a admissão de uma
distinção entre natureza e cultura, afirma Heilborn, o que não significa que não se possa
reconhecer o sexo como categoria “historicamente datada”. De acordo com a autora, essa
interpretação não se contenta com a afirmação de que os gêneros possuem conteúdos
contrastantes e complementares, compreendendo também a lógica hierárquica
46
inerente ao
domínio do gênero (1998, passim).
Portanto, diante da consideração da invenção do sexo, ou seja, da tomada do sexo
como algo que, assim como o gênero, também é culturalmente construído, a conceituação do
gênero simplesmente como algo que se opõe ao sexo é insuficiente. A interpretação
estruturalista, embora não desconsidere a oposição entre natureza e cultura, leva em conta a
41
Como exemplo, temos Eva e Maria simbolizando a mulher, dentro da tradição cristã do Ocidente (SCOTT,
1990, p. 14).
42
Os conceitos normativos “estão expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou
jurídicas e tomam a forma típica de uma oposição binária, que afirma de maneira categórica e sem equívocos o
sentido do masculino e do feminino” (SCOTT, 1990, p. 14).
43
É necessária uma visão mais ampla do gênero, que não inclua somente o sistema de parentesco, mas também o
mercado de trabalho, a educação e o sistema político (SCOTT, 1990, p. 15).
44
Isso porque os homens e as mulheres reais não cumprem sempre os termos das prescrições da sua sociedade
ou das categorias de análise, tornando-se necessário o exame das maneiras pelas quais as identidades de gênero
são realmente construídas, relacionando-as com uma série de atividades, de organizações e representações
sociais historicamente situadas (SCOTT, 1990, p. 15).
45
Sobre o tema ver: LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 2001.
46
Heilborn refere que “as propriedades simbólicas particulares à constituição do masculino e do feminino são
fenômenos da relação hierárquica entre eles” (1998, p. 52).
construção cultural do sexo. Ademais, compreende que os gêneros feminino e masculino não
só são opostos (e complementares), mas hierarquicamente diferentes. Essa hierarquia, que
coloca o masculino como o pólo valorado, expressando relações de poder e produzindo
dominação, seria algo também inerente à estrutura de gênero.
A distinção entre sexo e gênero, segundo Butler, teria sido concebida para questionar o
destino biológico, atendendo à tese de que, ainda que o sexo possa parecer uma certeza
biológica, o gênero é um construto social, ou seja, “não é nem o resultado causal do sexo, nem
tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo”. Logo, enquanto significado cultural
assumido pelo corpo sexuado, o gênero não necessariamente decorre de um sexo, já que a
distinção sexo/gênero sugeriria uma separação total entre corpos sexuados e gêneros
construídos socialmente (2003, p. 24).
Apesar de sua grande diversidade, o pensamento feminista desenvolvido a partir dos
anos setenta coloca a questão das diferenças entre os sexos de forma política, ressalta Collin.
Parte ele da constatação de que há uma estrutura de poder nas relações entre homens e
mulheres, a qual assegura a dominação (1995, p. 342). Por isso, apesar de o gênero poder ser
conceituado na atualidade como uma categoria analítica, permitindo compreender ou
interpretar uma dinâmica social que hierarquiza as relações entre o masculino e o feminino
(ARILHA et al., 1998, p. 24), ele é também, segundo Weeks, uma relação de poder. Os
padrões de sexualidade feminina são tidos para o autor como um produto do poder dos
homens para definir o que é necessário e desejável, sendo tal poder historicamente enraizado
(2001, p. 56).
Heilborn salienta que, na classificação do que é masculino e feminino, há sempre um
vetor de assimetria, o qual estabelece o masculino como o pólo valorado e o feminino como o
pólo subordinado. Isso não implica, necessariamente, na associação do masculino a homens e
do feminino a mulheres, pois há a possibilidade de um certo deslocamento da condição sexual
anátomo-fisiológica e do gênero. A autora traz dois exemplos. O primeiro exemplo refere-se
aos travestis, por serem homens que transitam para um gênero feminino. O segundo exemplo
é trazido por uma sociedade africana de pastores do Sudão, na qual uma mulher infértil pode
comprar uma outra mulher, casar-se e ter filhos com ela, através de um escravo de uma outra
etnia. Não há qualquer tipo de contato sexual entre essas mulheres. Nesse caso, apesar de
biologicamente ser mulher, a identidade de gênero assumida por ela nessa sociedade é
masculina (HEILBORN, 1997, p. 52 e 53). A opressão de gênero, conforme Oliveira, diz
respeito à opressão dos indivíduos do sexo feminino, bem como ao questionamento dos
privilégios atribuídos aos indivíduos do sexo masculino “advindos das relações assimétricas
entre os gêneros e das relações de poder delas decorrentes” (2003, p. 350).
47
Louro argumenta que, ao dirigir o foco para o caráter “fundamentalmente social”, não
se pretende negar a biologia,
48
pois o gênero se constitui sobre corpos sexuados. Busca-se,
contudo, enfatizar a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas.
Recoloca-se o debate no campo do social, pois é nele que se constroem e se reproduzem as
relações desiguais entre os sujeitos (1997, p. 21 e 22). Marodin entende que são esperados
determinados comportamentos sociais das pessoas de determinado sexo. Tal expectativa é
denominada “papel de gênero”. Por esse papel, são prescritas pela sociedade diferentes
funções para as mulheres e para os homens, diferindo essas prescrições conforme a cultura, a
classe social e o período histórico (1997, p. 9).
Percebe-se, portanto, que, por meio do conceito de gênero, busca-se dissociar aquilo
que é naturalmente dado do que é culturalmente construído. Dessa forma, é a partir de uma
perspectiva de gênero que seria possível compreender o papel social destinado às mulheres
em nossa época e em nossa cultura, indo além do determinismo biológico. Logo, após essa
introdução, pode-se passar à análise específica da maternidade e da sua pertença à
constituição do gênero feminino.
4.1.2 A Maternidade como Constituinte do Gênero Feminino
Tratando-se da gestante, e partindo-se de uma perspectiva de gênero, não se poderia
deixar de considerar a questão da maternidade, já que esse processo é tido como uma das
constituintes do gênero feminino. Enquanto processo biológico que, até o presente momento,
é exclusivo das mulheres, é representado como um locus de domínio da natureza, o que
poderia engendrar sua significação como o centro da vida das mulheres, os sacrifícios por que
elas deveriam passar em prol do exercício desse destino, bem como denotar a idéia do aborto
como uma negação de todo o exposto e, conseqüentemente, do papel social de gênero
atribuído às mulheres.
Em primeiro lugar, cabe traduzir aqui a ideologia segundo a qual a maternidade, com
suas alegrias e seus sacrifícios, centralizaria a vida feminina. “Em vez de instinto, não seria
47
Acerca das desigualdades de gênero, instituídas por meio de uma dominação simbólica de um gênero sobre o
outro, ver: BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 3.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003 e
WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Revista Estudos
Feministas, Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 452-468, jul./dez. 2001.
48
Sobre a dicotomia construção social versus determinismo biológico, ver: VANCE, Carole S. A antropologia
redescobre a sexualidade: um comentário teórico. Physis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 7-31, 1995.
melhor falar de uma fabulosa pressão social para que a mulher só possa se realizar na
maternidade?” (BADINTER, 1985, p. 355).
49
Disso decorreriam todos os cuidados que a
mulher deveria ter durante a gestação, assim como toda a doação necessária aos filhos após o
seu nascimento. Cabe também mencionar a restrição ao domínio privado ou, o que ocorre a
partir do século XIX, conforme já exposto no item 2, como uma forma de inserção no âmbito
público, por meio da compreensão de que a maternidade não é algo circunscrito à mulher, mas
de interesse estatal. A reprodução do discurso da maternidade como característica central da
vida das mulheres foi identificada, ainda, “como a fonte de inúmeras dificuldades que as
mulheres tiveram de enfrentar para desenvolver suas várias capacidades como pessoas e ter
condições de exercer uma ampla gama de direitos humanos reconhecidos independentemente
do sexo dos indivíduos” (PEREA, 2003, p. 365).
Apesar desse caráter central na vida das mulheres, ou justamente devido a isso, a
experiência da gestação pode ser descrita com significações diferenciadas, que compreendem
os sentimentos opostos envolvidos, resultantes também da socialização desse processo. Sobre
a experiência da gestação, com sua significação ambígua, descreve Beauvoir:
[...] a gravidez é principalmente um drama que se desenrola na mulher entre si e si;
ela sente-o a um tempo como um enriquecimento e uma mutilação; o feto é uma
parte de seu corpo e um parasita que a explora; ela o possui e é por ele possuída; ele
resume todo o futuro e, carregando-o, ela sente-se ampla como o mundo; mas essa
própria riqueza a aniquila: tem a impressão de não ser mais nada. Uma existência
nova vai manifestar-se e justificar sua própria existência; disso ela se orgulha, mas
sente-se também o joguete de forças obscuras, sacudida, violentada. O que há de
singular na mulher grávida é que, no mesmo momento em que se transcende, seu
corpo é apreendido como imanente: encolhe-se em si mesmo, em suas náuseas e
seus incômodos; deixa de existir para si só e é quando se faz mais volumoso do que
nunca. [...] na futura mãe abole-se a oposição sujeito e objeto; ela forma, com esse
filho de que se acha prenhe, um casal equívoco que a vida submerge; presa às
malhas da Natureza, ela é planta e animal [...]; [...] ela é um ser humano, consciência
e liberdade, que se tornou um instrumento passivo da vida (1980a, p. 262 e 263).
Tem-se que, para Beauvoir, a gravidez é tida como um drama, com fortes traços de
ambivalência: o feto é parte da mulher e algo estranho a ela, o ventre está entre “a vastidão do
mundo e o nada, entre o ser e o não-ser”, afirma Joaquim. Por isso, a filósofa francesa teve
que enfrentar a questão de como romper com a visão predominante das mulheres como mães
(1999, p. 187, 188).
Essa visão das mulheres como mães tem origem na idéia da maternidade como um
destino natural. Sendo pertencente ao domínio do biológico, não se reconhece a maternidade
49
Badinter acrescenta que, transcorrido o percurso da história das atitudes maternas, fica-se convicto de que o
instinto materno é um mito, pois não há nenhuma conduta universal e necessária da mãe. Dessa forma, o amor
materno poderia ser tido como apenas um sentimento e, então, como algo contingente. “O amor materno não é
inerente às mulheres. É ‘adicional’” (1985, p. 367).
como escolha, como opção. Assim, negar a maternidade é negar a própria natureza feminina,
o que tem fortes implicações na questão do aborto.
A partir do momento em que a contracepção torna-se eficaz o destino feminino não
esteve mais circunscrito à maternidade, entende Badinter, fazendo com que os processos
fisiológicos não mais comandassem a vida das mulheres. Os índices de fecundidade que em
diversos países são inferiores a dois filhos por mulher demonstram que a maternidade é
apenas uma etapa da vida das mulheres. Essa diminuição do tempo da maternidade se dá por
duas razões: o aumento da expectativa de vida, o que faz com que o interesse das mulheres
não esteja mais centrado nos filhos, e a diminuição desse tempo da maternidade na vida diária
das mulheres, sobretudo devido à vida profissional (1986, p. 258 e 260).
50
De acordo com Beauvoir, a maternidade seria a vocação natural da mulher, integrando
seu destino fisiológico, já que seu organismo estaria voltado à perpetuação da espécie. No
entanto, ela ressalta que “a sociedade humana nunca é abandonada à natureza”, motivo pelo
qual a função reprodutora deixou de ser um acaso biológico, sendo controlada pela vontade
(1980a, p. 248). A filósofa adiantava que, por meio da inseminação artificial, teria fim a
evolução que permitiria à humanidade o controle da função reprodutora. Colocava, contudo,
que todas as formas de controle da concepção tinham uma importância fundamental para as
mulheres, pois, ao diminuir o número de gestações, permitira a sua integração racional à sua
vida, e não a sua escravatura diante dela. Assim, a libertação da natureza permitia que as
mulheres se tornassem donas dos seus corpos (1980b, p. 157).
Foi com o advento da modernidade, conforme preconiza Scavone, com seus avanços
tecnológicos no campo da contracepção e, mais recentemente, no da concepção, que as
mulheres passaram a ter uma maior possibilidade na escolha da maternidade, abrindo espaço
para a criação do “dilema de ser ou não ser mãe”. Nesse processo, a legalização do aborto,
ocorrida sobretudo em países do hemisfério norte, consiste num elemento importante, pois a
sua prática é uma possibilidade de escolha para a não-realização da maternidade, o que
reforça seu caráter social e enfraquece seu determinismo biológico (2004, p. 174 e 177).
Apesar de, por meio das tecnologias contraceptivas e conceptivas, a maternidade poder
ser cada vez mais vista como escolha, isso não diminui o caráter público adquirido por ela.
Meyer menciona essa politização contemporânea da maternidade, compreendendo que tal
processo refere-se a um contexto no qual “o corpo, os comportamentos, as habilidades e os
sentimentos maternos se tornam alvo principal de vigilância”. Portanto, continua-se a atribuir
especialmente à mãe a responsabilidade de gerar e criar seres humanos perfeitos (2005, p. 87).
50
A autora afirma, também, que esse desligamento das funções fisiológicas teria se tornado ainda mais evidente
com as novas tecnologias reprodutivas. Portanto, com o recuo desses “imperativos da natureza”, cada vez mais o
conceito de maternidade se aproxima do de paternidade (BADINTER, 1986, p. 261).
Acrescenta-se que, caso o ser humano gerado não seja perfeito, o que é verificado nos casos
de grave malformação fetal, esse fato não poderia fazer sanar o instinto materno, do qual
deriva o amor da mãe pelo seu filho, bem como a sua aceitação e assimilação, acima de toda e
qualquer circunstância.
Para ilustrar a questão do mito do amor materno, utiliza-se a obra de Badinter. Essa
autora, por meio de uma análise histórica, demonstra que o amor materno, tal como o
conhecemos hoje, é algo inventado, e não inerente à natureza, não podendo ser a maternidade
vista como instintiva. Segundo a autora, é apenas no final do século XVIII que a imagem da
mãe modifica-se substancialmente. Após 1760, diversas publicações recomendam que as
mães cuidem pessoalmente dos seus filhos e os amamentem, impondo às mulheres a
obrigação de serem mães antes de qualquer outra coisa. É dessa forma que se engendra o mito
do instinto materno ou do amor espontâneo da mãe sobre o filho, que continua vivo até a
atualidade. A associação das palavras amor e materno não só promove o sentimento, como
também a mulher, enquanto mãe. Ao assumir as tarefas maternas, as mulheres tornavam-se
respeitadas, indispensáveis à família e, com isso, poderiam atingir a felicidade e a igualdade,
já que tal tarefa os homens não podiam realizar (1985, p. 145-147).
Badinter refere que, a partir do século XVIII, desenha-se uma nova imagem da mãe,
que tem seus traços acentuados nos séculos seguintes. Com isso, o bebê e a criança passam a
ser objetos privilegiados da atenção materna, o que faz com a mulher aceite se sacrificar para
que seu filho viva e para que ele viva melhor, junto dela. A primeira demonstração de
mudança no comportamento materno é a vontade de amamentar exclusivamente os próprios
filhos. Abandona-se a faixa que aprisionava o bebê, restringindo-se a liberdade da mãe em
favor da maior liberdade do filho. A saúde dos filhos torna-se o objeto principal da
preocupação dos pais. Também a vigilância materna estende-se, cabendo à mãe o cuidado
carinhoso de seu filho em todos os momentos, sob pena de ser considerada negligente. “Não
amar os filhos tornou-se um crime sem perdão” (1985, passim).
A mãe do século XX, ressalta a autora, arcará ainda com a responsabilidade sobre o
inconsciente e os desejos do filho, sendo promovida, graças à psicanálise, como a grande
responsável pela felicidade dos filhos. Assim, a natureza feminina foi definida de forma a
implicar todas as características da boa mãe. No final do século XIX e nos primórdios do
século XX, coloca-se em voga a ideologia do devotamento e do sacrifício. O sofrimento da
mãe era a condição de felicidade do seu filho. Esse masoquismo
51
deixou, inclusive, de ser
natural, sendo substituído pela idéia de um masoquismo obrigatório (1985, passim).
Assim, torna-se mais claro o porquê, no que se refere à mulher, de o aborto ser visto
como um ato tão grave. Deixando-se de lado as questões relativas ao status fetal, tem-se que,
no que tange à gestante, ele significa a negação da maternidade, a negação do seu destino
natural e, conseqüentemente, a negação da própria feminilidade, já que a maternidade seria
uma forte constituinte do gênero feminino.
Como a decisão pelo aborto indica uma escolha pela não-maternidade, isso remete ao
significado subjetivo e social da maternidade, entende Scavone: “do ponto de vista social, fora
ou dentro da família, a maternidade representa, sobretudo, a responsabilidade feminina com a
procriação. Do ponto de vista subjetivo, a maternidade é uma relação de intensa afetividade,
particularmente pelo fato de que seu processo biológico é circunscrito ao corpo das mulheres,
estabelecendo desde o início da gestação um vínculo de pertença” (2004, p. 108 e 109).
No que se refere ao aborto, Beauvoir coloca-o como uma ultima ratio quando falham
os métodos anticoncepcionais, devido à proibição legal de sua comercialização ou de sua
rudimentaridade. Entende que esse tema é tratado de forma hipócrita pela “sociedade
burguesa” e nomina como absurdos os argumentos invocados para contrariar a
descriminalização desse ato. Compreende a autora que o feto “pertence à mulher que o traz no
ventre” e que a mesma sociedade que defende os direitos do não nascido desinteressa-se por
esse mesmo ser após o nascimento. Salienta, também, que, embora a autonomia do feto em
relação à mãe seja suscitada como forma de interditar o aborto, a sua pertença ao corpo
feminino é referida quando se trata de exaltar a maternidade (1980a, p. 248-250). Logo, em
Beauvoir a questão do aborto é colocada como sendo a face obscura da ideologia da
maternidade, segundo a qual a mulher sempre se realizaria no seu destino biológico
(JOAQUIM, 1999, p. 186 e 187).
Segundo Scavone, a escolha pela interrupção da gestação estabelece uma ruptura com
a natureza, ao mesmo tempo em que expressa o caráter cultural e social da maternidade. A
maternidade não pode ser pensada apenas como um dado biológico, pois, para compreender
os diversos aspectos que a implicam, bem como as possíveis variações desse fenômeno, é
preciso visualizá-la também como um dado sociológico. Ou seja, no que tange às questões
culturais e subjetivas que envolvem a face da negação da maternidade, por meio da
contracepção ou do aborto, é possível compreender que, com tais atos, constitui-se a
maternidade como escolha e direito, e não como “fato biológico irreversível” (SCAVONE,
2004, p. 123, 143 e 144).
51
Nunes salienta que o masoquismo feminino era desejável e aceito apenas dentro de limites bastante
específicos, quais sejam, no âmbito do casamento e da maternidade. Se extravazasse a esfera doméstica, devido à
sexualidade excessiva, ele se tornava uma ameaça. “Nesse sentido o masoquismo feminino, embora desejável,
deve ser também criteriosamente regulado” (1998, p. 229).
Do exposto, verifica-se que, se a questão do aborto não prescinde de um cuidado com
os interesses da mulher. Além disso, conclui-se que a maternidade, com seu caráter não só
biológico, mas também social e cultural, é o eixo central dessa consideração. A interdição ao
aborto em decorrência de malformação fetal letal também está fortemente ligada à
compreensão da maternidade enquanto destino biológico e, portanto, como algo que não pode
ser negado e muito menos fruto de escolha. Soma-se a isso o papel social ao qual as mulheres
devem se adequar para serem consideradas boas mães. A idéia do sacrifício e até do
masoquismo é algo que pode estar presente na consideração da gestação de um feto portador
de grave anomalia. Além disso, o aborto nesses casos nega, juntamente com a maternidade, o
amor instintivo da mãe sobre o filho, o qual estaria, justamente por ser natural, acima de
qualquer condição do filho e acima de qualquer sofrimento que sua gestação ou seu
nascimento pudesse acarretar para a mãe.
Viu-se, então, que essa análise da questão da maternidade torna-se algo extremamente
necessário para o estudo do aborto por grave malformação fetal, em virtude da biologização
dos seus caracteres culturais, tais como o mito do amor materno. É a partir, inclusive, da
consideração da maternidade como escolha, bem como da consideração dos diversos aspectos
socialmente construídos sobre esse processo biológico, que se torna possível pensar não só a
maternidade, mas diversos aspectos relativos a ela, como contracepção, acesso a novas
tecnologias reprodutivas, disponibilização de serviços de planejamento familiar, dentre
outros, como direitos, o que será averiguado a partir de agora.
4.2 O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS
Passar-se-á, a partir de então, à verificação do
processo de reconhecimento dos direitos
sexuais e reprodutivos no âmbito
internacional, bem como de seus reflexos no
Direito brasileiro. Tais direitos tem conexão
com o conceito de gênero, e, justamente por
isso, colocam a maternidade e a reprodução no
campo dos direitos, não mais os
compreendendo como deveres.
Conforme Villela, para a conquista dos direitos sexuais e reprodutivos é exigida a
desconstrução de que gênero, corpo e sexualidade são fatos dados, naturais e, portanto,
imutáveis. Isso porque se o sexo e a reprodução são tidos como algo instintivo, inscrito na
natureza, torna-se um desafio a construção da idéia de direitos sexuais e reprodutivos, já que
parece ilógica a regulamentação de um impulso (VILLELA, 2002, p. 83 e 84). Logo, a
inserção da noção de direitos sexuais e reprodutivos consiste num desafio, na medida em que
a sexualidade e a reprodução geralmente são tidas como pertencentes à ordem da natureza e,
portanto, são compreendidas como não-passíveis da aplicação da racionalidade do Direito
(CORRÊA; ÁVILA, 2003, p. 58).
A história da reivindicação do reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos está
vinculada aos movimentos sociais, sobretudo aos movimentos de mulheres e homossexual
(BUGLIONE, 2002, p. 128). Dessa forma, trata-se de direitos que emergem de novas
necessidades, sentidas pelos cidadãos e não contempladas pelo Direito estatal. Essa forma de
constituição do Direito está ligada à noção de pluralismo jurídico, trazida por Wolkmer. O
autor fala de um novo Direito, produzido pela comunidade, e não mais somente pelo Estado,
resultado de um projeto cultural pluralista e emancipatório. Para tanto, é necessária a
concepção de “novos sujeitos coletivos de juridicidade”,
52
dentre os quais se incluem as
mulheres (2001, p. 234, 265 e 239) e os homossexuais.
Os direitos sexuais e reprodutivos passam a ser reconhecidos no âmbito internacional a
partir da compreensão de que a proteção genérica dos direitos humanos não seria suficiente
para contemplar sujeitos com necessidades específicas, como as mulheres. A neutralidade do
discurso dos direitos humanos deve ser questionada, pois ela supõe que somos todos iguais,
não se questionando acerca do histórico de exclusões e desigualdades que impedem o
exercício de tais direitos (PEREA, 2003, p. 375).
Segundo Piovesan, a primeira fase de proteção dos direitos humanos, que tem início
com a Declaração Universal de 1948, foi marcada pela proteção geral,
53
com base na
igualdade formal. No entanto, esse tratamento do indivíduo de forma genérica e abstrata
revelou-se insuficiente. Compreendeu-se, posteriormente, que determinados sujeitos de
direitos ou determinadas violações de direitos necessitavam de uma resposta diferenciada. A
partir de então, passa-se ao paradigma da visibilidade de novos sujeitos, dentre eles as
52
Para o autor, “o ‘novo’ [...] não está mais numa totalidade universalista constituída por sujeitos soberanos,
centralizados e previamente arquitetados, mas no espaço de subjetividades cotidianas compostas por uma
pluralidade concreta de sujeitos diferentes e heterogêneos” (WOLKMER, 2001, p. 236).
53
Essa proteção geral é baseada no discurso iluminista, que, segundo Crampe-Casnabet é um discurso do gênero
humano, o que faz com que as distinções sexo sejam minimizadas. “Se o discurso iluminista se dirige a todos os
homens, ele só pode manter-se na dimensão do universal. Desta inevitável conseqüência surgem,
necessariamente, dificuldades – também elas inevitáveis – uma vez que, finalmente, quem tem direito ao
universal? [...] E, no entanto, forçoso é reconhecer que o universal é habitado por uma contradição interna.
Supõe-se que ele é válido para todos, mas, de facto, representa o privilégio de alguns” (1994, p. 370).
mulheres. Isso faz com que, no âmbito do sistema global de proteção dos direitos humanos,
passem a coexistir os sistemas geral e especial, enquanto complementares (2002, p. 67 e 68).
É no âmbito do sistema especial de proteção dos direitos humanos que os direitos sexuais e
reprodutivos serão reconhecidos.
4.2.1 Conceituando Direitos Sexuais e Reprodutivos
Até meados da década de 1980, era a noção de saúde integral da mulher o conceito
utilizado para articular questões relacionadas à sexualidade e à reprodução (CORRÊA;
ÁVILA, 2003, p. 19). Somente depois começou-se a perceber que esse conceito era
insuficiente para abarcar tais questões, sendo necessária uma concepção mais ampla. Os
direitos sexuais e reprodutivos estão vinculados com a liberdade, a integridade física, as
decisões sobre a sexualidade, a maternidade e o rechaço à qualquer forma de coerção
(MONTAÑO, 1996, p. 183). Tais direitos incluem:
a) o direito de adotar decisões relativas à reprodução sem sofrer discriminação,
coerção ou violência;
b) o direito de decidir livre e responsavelmente o número de filhos e o intervalo
entre seus nascimentos;
c) o direito de ter acesso a informações de métodos anticoncepcionais, meios
seguros (serviços), disponíveis, acessíveis e a toda a tecnologia disponível para ter
ou não ter filhos;
d) o direito de acesso ao mais elevado padrão de saúde reprodutiva;
e) a reprodução como direito de personalidade
54
(BUGLIONE, 2002, p. 142 e 143).
Conforme Corrêa e Ávila, o processo de legitimação dos direitos sexuais e
reprodutivos ocorreu paralelamente ao amadurecimento das noções de saúde sexual e
reprodutiva, advindas do campo institucional, e não dos movimentos sociais. O conceito de
saúde reprodutiva foi elaborado na segunda metade da década de 1980 no âmbito da
54
Os direitos da personalidade, conforme Sarmento, seriam uma das formas de proteção da pessoa humana no
Direito Privado, embora não se esgotem na tutela dos direitos tipificados em textos infraconstitucionais, a
exemplo do que ocorreu no Código Civil de 2002: “é certo que a tutela da personalidade humana deve ser dotada
de elasticidade, incidindo sobre todas as situações em que apareça alguma ameaça à sua dignidade, tipificada ou
não pelo legislador. Todo e qualquer comportamento, comissivo ou omissivo, que atente contra esta dignidade
deve ser coibido pela ordem jurídica” (2004, p. 122 e 129). Sobre o tema ver ainda: MORAES, Maria Celina
Bodin de. Recusa à realização do exame de DNA na investigação da paternidade e direitos da personalidade. In:
BARRETTO, Vicente de Paulo (org.). A nova família: problemas e perspectives. Rio de Janeiro: Renovar, 1997,
p. 169-194; PINTO, Paulo Mota. Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos
de personalidade no direito português. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). A constituição concretizada:
construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 61-83 e
TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002.
In: ________ (coord.). A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 2.ed. rev.
e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. XV-XXXIII.
Organização Mundial de Saúde. Já a noção de saúde sexual foi formulada na década de 1990,
especialmente devido ao impacto da AIDS (2003, p. 22).
Os direitos sexuais e reprodutivos “apresentam uma dimensão própria tanto dos
direitos civis (a não-discriminação; o espaço da autonomia e da autodeterminação no
exercício da sexualidade e reprodução), quanto dos direitos sociais (o direito à saúde,
mediante a implementação de políticas públicas positivas pelo Estado)”, ressalta Piovesan.
Eles tratam, de um lado, do direito de autodeterminação, privacidade, intimidade, liberdade e
autonomia individual, clamando-se pela não-interferência do Estado, bem como ao seu
exercício livre de discriminação, coerção e violência; de outro lado, a interferência estatal faz-
se essencial, pois é preciso a implementação de políticas públicas que assegurem a saúde
sexual e reprodutiva (2002, p. 71, 76 e 77).
Corrêa e Petchesky afirmam o teor ético dos direitos sexuais e reprodutivos,
compreendendo que eles estariam assentados em quatro princípios: integridade corporal,
autonomia pessoal, igualdade e diversidade. O princípio da integridade corporal inclui o
direito ao controle sobre o próprio corpo, estando na base da noção de liberdade sexual e
reprodutiva. O princípio da autonomia pessoal faz com que os indivíduos sejam tratados como
capazes de tomar decisões em assuntos relativos à sexualidade e reprodução (1996, p. 170,
171 e 173).
Ainda de acordo com as mesmas autoras, cabe ressaltar o princípio da igualdade,
aplicável aos direitos sexuais e reprodutivos tanto nas relações entre mulheres e homens
(sistema de gênero), quanto nas relações entre mulheres (condições de classe, etnia, idade
etc). Por fim, o princípio da diversidade
55
requer o respeito pelas diferenças entre os
indivíduos, sejam elas de cultura, religião, orientação sexual etc (CORRÊA; PETCHESKY,
1996, p. 75 e 77). Verificar-se-á, agora, o surgimento das noções de direitos reprodutivos e
direitos sexuais. Isso se dará de forma separada, já que esses conceitos têm origem em
momentos históricos distintos, bem como advêm de manifestações de grupos diferentes.
4.2.1.1 Surgimento da Noção de Direitos Reprodutivos
55
Aqui se revelam tanto a universalidade, quanto a especificidade dos direitos sexuais e reprodutivos, como
aqueles que não só devem ser aplicados de forma global, como também adquirindo sentidos diferentes de acordo
com os contextos sociais e culturais (CORRÊA; PETCHESKY, 1996, p. 78).
A formulação dos direitos reprodutivos foi fruto do movimento de mulheres, agregado
aos profissionais de saúde. Esses direitos foram compreendidos não somente em sua
concepção negativa, ou seja, no sentido de evitar violações estatais, mas sobretudo na sua
forma afirmativa, a qual exige uma intervenção por parte do Poder Público, a fim de permitir
a sua efetivação.
O termo direitos reprodutivos surgiu explicitamente apenas com a criação da Rede
Mundial de Defesa dos Direitos Reprodutivos das Mulheres, em 1979, salienta Perea. Com tal
definição, os direitos reprodutivos iriam além da decisão sobre a fertilidade e o momento de
exercê-la, “envolvendo ainda o questionamento da maternidade como projeto de vida
obrigatório para as mulheres” (2003, p. 366).
A formulação dos direitos reprodutivos tem início na luta pelos direitos à
anticoncepção e ao aborto nos países industrializados, ou seja, ela se dá predominantemente
num marco não-institucional (CORRÊA, 1999, p. 41). Foi a partir do final dos anos 1970 e do
início dos 1980 que os movimentos sociais que surgiram na esfera pública de vários países
latino-americanos trouxeram para o debate público temas relativos aos direitos reprodutivos,
antes tidos como próprios do espaço privado, em virtude da inserção das questões de gênero
(PITANGUY, 1999, p. 21).
56
O termo direitos reprodutivos, segundo Corrêa e Ávila, criado pelas feministas norte-
americanas, foi introduzido no Brasil em 1984, quando um grupo de feministas brasileiras
retornou do I Encontro Internacional de Saúde da Mulher, realizado em Amsterdã. Nesse
momento chegou-se a um consenso de que esse termo traduzia de forma mais adequada a
“ampla pauta de autodeterminação reprodutiva das mulheres” (2003, p. 19 e 20).
Esses direitos têm por base, ainda, o conceito de saúde reprodutiva, cuja formulação se
dá também no âmbito institucionalizado dos profissionais dessa área. Saúde reprodutiva
significa:
56
É durante os processos de democratização, verificados sobretudo ao longo da década de 1980 e no início dos
anos 1990, que são verificadas as primeiras políticas públicas com perspectiva de gênero, bem como o aumento
do número de mulheres nos Poderes Legislativo e Executivo, afirma a autora. Como exemplo de política pública,
cabe mencionar o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, divulgado em 1983 e resultado de uma
articulação entre o meio acadêmico, o movimento feminista e o Ministério da Saúde. Esse programa constitui-se
numa das “primeiras iniciativas governamentais de incorporação de princípios feministas em políticas públicas
de saúde”. Aqui se colocava o planejamento familiar na ótica da saúde, mas não foi incorporada a questão do
aborto, nem no que se refere ao cumprimento da legislação penal vigente (PITANGUY, 1999, p. 22 e 26).
a) que as pessoas tenham a habilidade de se reproduzir, assim como de regular sua
fertilidade com o maior conhecimento possível das conseqüências pessoais e sociais
de suas decisões e com acesso aos meios para implementá-las;
b) que as mulheres possam ter acesso à maternidade segura;
c) que a gravidez seja bem-sucedida quanto ao bem-estar e à sobrevivência materna
e da criança. Além disso, que os casais sejam capazes de ter relações sexuais sem
medo de gravidezes indesejadas e de contrair doenças (FATHALLA, 1988).
Perea refere que a publicização da discussão dos direitos reprodutivos traz importantes
implicações, já que a reprodução é geralmente definida como algo inerente à esfera privada,
“de espaços que se supõem pertencentes às mulheres e que, por conseguinte, merecem um
menor grau de direitos”. Ocorre que questões cotidianas, como a reprodução, foram
adquirindo importância, sendo a esfera privada ligada a esses novos direitos, “particularmente
como de uma reformulação do significado do corpo como objeto de atenção, de dignificação e
de autodeterminação em experiências nas áreas da sexualidade e da reprodução” (2003, p.
369).
4.2.1.2 Surgimento da Noção de Direitos Sexuais
O conceito de direitos sexuais, por sua vez, tem uma história mais breve, pois sua
formulação é verificada somente na década de 1990, no âmbito dos movimentos
homossexuais europeus e norte-americanos, sendo incorporado, posteriormente, ao
movimento feminista, que considerava a sexualidade “como domínio crucial para
compreender e transformar a desigualdade de gênero” (CORRÊA; ÁVILA, 2003, p. 20 e 21).
A idéia de direitos sexuais é importante para que os indivíduos, e sobretudo as mulheres,
sejam considerados não só seres reprodutivos, mas também sexuais (PETCHESKY, 1999, p.
21).
Assim como o verificado no conceito anterior, esse também tem por base a noção de
saúde sexual, a qual pode ser definida como
[...] a habilidade de mulheres e homens para desfrutar e expressar sua sexualidade,
sem riscos de doenças sexualmente transmissíveis, gestações não desejadas, coerção,
violência e discriminação. A saúde sexual possibilita experimentar uma vida sexual
informada, agradável e segura, baseada na auto-estima, que implica uma abordagem
positiva da sexualidade humana e o respeito mútuo nas relações sexuais. A saúde
sexual valoriza a vida, as relações pessoais e a expressão da identidade própria da
pessoa. Ela é enriquecedora, inclui o prazer e estimula a determinação pessoal, a
comunicação e as relações (HERA, 1999).
Tais direitos possuem tanto um caráter negativo, no sentido de evitar a interferência
estatal, quanto afirmativo, embora este último não seja tão exposto. A maior ênfase dada pelas
campanhas em favor dos direitos humanos das mulheres nas violações de direitos, como
mutilação genital e tráfico sexual, capitaliza a imagem das mulheres como vítimas, como
seres fracos e vulneráveis e, portanto, incapazes de reivindicarem direitos sexuais num sentido
afirmativo (PETCHESKY, 1999, p. 25 e 26).
57
Os direitos sexuais possuem, segundo Petchesky, um grupo de princípios éticos
específicos: a diversidade sexual, que implica a aceitação não só da tolerância dos diferentes
tipos de expressão sexual, mas também a visão de que eles consistem num aspecto positivo de
uma sociedade justa e pluralista; a diversidade habitacional, que traz em seu bojo o
reconhecimento de diversas formas de família; a saúde, assegurando-se o direito ao prazer
sexual como parte da saúde básica e do bem-estar humano e a autonomia, que coloca o direito
de as pessoas tomarem suas próprias decisões em assuntos relativos a seus corpos e à sua
saúde (1999, p. 27-29).
57
Petchesky aduz que “a ênfase dada a esses casos – apesar de horripilantes e importantes para chamar a atenção
dos meios de comunicação para a legitimidade dos direitos sexuais como parte dos direitos humanos -, na melhor
das hipóteses, nos leva a um nível de tolerância liberal” (1999, p. 27).
4.2.2 Instrumentos Internacionais de Proteção aos Direitos Sexuais e Reprodutivos
Verificar-se-á, neste momento, os
instrumentos internacionais que protegem os
direitos sexuais e reprodutivos. Percebe-se que
o Direito, ainda que de forma bastante
incipiente, e graças mais aos instrumentos
internacionais de proteção de direitos humanos
do que aos mecanismos jurídicos internos
(SIMIONI; CARLOS; SCHIOCCHET, 2003,
p. 12), já estabeleceu princípios e normas
mínimas de proteção a tais direitos.
Por meio da noção de direitos sexuais e reprodutivos, conclui-se que a necessidade de
proteção da saúde sexual e reprodutiva consiste numa questão de justiça social, podendo ser
tratada pela aplicação progressiva tanto dos direitos humanos previstos nas Constituições,
quanto dos tratados internacionais de direitos humanos (COOK, 2002, p. 13). “Conceber os
direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos significa compreender o exercício da
sexualidade e da reprodução como inerentes à condição humana” (BUGLIONE, 2002, p.
140).
4.2.2.1 Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres foi adotada, no âmbito da Organização das Nações Unidas, em 1979, e ratificada
pelo Brasil em 1984. Esse documento consagra tanto uma vertente repressivo-punitiva,
expressa na proibição da discriminação, quanto uma vertente positivo-promocional, relativa à
promoção da igualdade, afirma Piovesan. É no seu artigo 12 que podem ser verificadas as
primeiras linhas referentes aos direitos reprodutivos, enquanto aqueles que exigem dos
Estados um duplo papel: eliminar a discriminação contra a mulher na esfera da saúde e
assegurar o acesso a serviços de saúde, inclusive os relativos ao planejamento familiar (2002,
p. 69 e 71).
58
Ou seja, essa convenção enfrenta especificamente os direitos humanos relativos
58
“Art. 12. § 1. Os Estados Membros adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação
contra a mulher na esfera dos cuidados médicos, a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e
mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive referentes ao planejamento familiar.
§ 2. Sem prejuízo do disposto no parágrafo 1º, os Estados Membros garantirão à mulher assistência apropriada
em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando
assim for necessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a gravidez e a lactação”
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1979).
aos serviços de planejamento familiar e à informação e educação referentes à decisão sobre o
número e espaçamento de filhos (COOK, 2002, p. 17).
4.2.2.2 Segunda Conferência Internacional de Direitos Humanos
Na Segunda Conferência Internacional de Direitos Humanos, realizada em 1993, em
Viena, as mulheres mobilizavam-se para que as violações contra os seus direitos passassem a
ser tratadas como violações de direitos humanos (PITANGUY, 1999, p. 34). Essa
reivindicação foi acatada, já que, em seu parágrafo 18, consta que: “os direitos humanos das
mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integral e indivisível dos direitos
humanos universais”. Essa percepção dos direitos das mulheres como direitos humanos
pressupõe que as diferenças entre mulheres e homens não são sexuais, mas de gênero
(LAGARDE, 1996, p. 90). Ademais, a elevação dos direitos das mulheres ao patamar dos
direitos humanos coloca também os direitos sexuais e reprodutivos enquanto direitos
humanos.
4.2.2.3 Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a
Mulher
Também denominada Convenção de Belém do Pará, este documento, aprovado no
âmbito da Organização dos Estados Americanos em 1994 e ratificado pelo Brasil no ano
seguinte, afirma que a violência contra a mulher consiste numa violação de direitos humanos.
Isso se estende à violência sexual, expressamente contemplada nos artigos 1º e 2º.
59
Portanto,
aqui também se trata de uma forma de violação aos direitos sexuais e reprodutivos.
4.2.2.4 Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento
59
“Artigo 1º. Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou
conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto
no âmbito público como no privado.
Artigo 2º. Entender-se-á que violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica:
§ 1. Que tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação
interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que
compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual:
§ 2. Que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros,
violação, abuso sexual, tortura, maus tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e
assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou
qualquer outro lugar, e
§ 3. Que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.
Na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo,
em 1994, foram discutidas questões relativas a saúde e direitos reprodutivos, deslocando-se as
temáticas de população da esfera demográfica para a esfera dos direitos (PITANGUY, 1999,
p. 34). Aqui a expressão vida reprodutiva satisfatória e segura passou a estar presente. Foi
nessa conferência, portanto, que se adiantou substantivamente o processo de
institucionalização dos conceitos de direitos reprodutivos, conforme Montaño. No Cairo, o
tratamento dado ao tema foi somente o de direitos reprodutivos e de forma separada do
capítulo destinado à saúde, ainda que com ela tivesse conexão (1996, p. 176 e 177).
No Plano de Ação dessa conferência, os direitos reprodutivos foram reconhecidos,
pela primeira vez, como direitos humanos (PIOVESAN, 2002, p. 76). A Conferência do Cairo
foi importante porque chamou a atenção da comunidade internacional para a saúde sexual e
reprodutiva, coloca Galvão. Assim, em contrapartida às políticas públicas que desenvolviam
programas verticais de planejamento familiar, ou mesmo de controle da natalidade, a nova
agenda internacional incluiu três temas: direitos reprodutivos, empowerment das mulheres e
saúde sexual e reprodutiva. O consenso sobre as definições de saúde reprodutiva
60
e direitos
reprodutivos
61
também foi efetuado nessa oportunidade (1999, p. 171).
Conforme Barboza, foi após a Conferência Internacional do Cairo e a Conferência de
Pequim que se reconheceu pela primeira vez em sede oficial a denominação direitos
reprodutivos. A autora salienta ainda que no direito à escolha reprodutiva inclui-se o “como”
reproduzir-se, relacionado às técnicas de reprodução artificial (2004, p. 229). De acordo com
Galvão, a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo,
em 1994, foi a responsável por chamar a atenção da comunidade internacional para as
questões relacionadas às saúdes reprodutiva e sexual. Já a Conferência da Mulher, realizada
60
“A saúde reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, relacionado ao sistema
reprodutivo e a suas funções e seus processos. Ela implica que as pessoas têm a potencialidade de se
reproduzirem e a liberdade para decidir se, quando e com que freqüência fazê-lo. Está implícito nesse conceito o
direito dos homens e das mulheres à informação e ao acesso aos métodos seguros, eficazes e aceitáveis para o
planejamento familiar, bem como a outros métodos de sua escolha para o regulamento da fertilidade, que não
sejam contrários à lei, e o direito de acesso aos serviços de cuidado com a saúde durante a gravidez e o parto. O
cuidado da saúde reprodutiva inclui também a saúde sexual, cuja finalidade é a qualidade de vida e das relações
pessoais” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1994).
61
“Os direitos reprodutivos englobam determinadas direitos humanos que já são reconhecidos em leis nacionais
e em documentos internacionais de direitos humanos. Esses direitos têm por base o reconhecimento do direito
básico de todos os casais e indivíduos de decidir livre e responsavelmente o número, afastamento e freqüência de
seus filhos e de ter as informações e os meios para fazê-lo, e o direito de alcançar o padrão mais elevado de
saúde sexual e reprodutiva. Incluem também o direito de tomar decisões a respeito da reprodução livre de
discriminação, coerção e violência” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1994).
em Pequim, no ano posterior, enfatizou ainda mais o enfoque da igualdade de gênero,
reafirmando o foco nos direitos reprodutivos (1999, p. 171).
Especificamente quanto ao aborto, o Plano de Ação da Conferência do Cairo menciona
o tratamento que deve ser dispensado à questão pelos Estados. É ressaltado que ele nunca
deve ser utilizado como método de planejamento familiar e que o aborto inseguro deve ser
tratado como questão de saúde pública. Nos países em que o aborto é permitido, todos os
abortos devem ser realizados com segurança, enquanto que, nos locais em que ele é contrário
à legislação, deve ser garantido o tratamento das complicações decorrentes desse ato.
4.2.2.5 Quarta Conferência Mundial da Mulher
A IV Conferência Mundial sobre a Mulher foi realizada em Pequim, em 1995. Embora
na Conferência do Cairo a sexualidade já tenha aparecido como algo positivo,
62
é apenas na
Plataforma de Ação de Pequim que as mulheres são consideradas pela primeira vez seres
sexuais, além de seres reprodutivos, ou seja, detentoras de direitos humanos para decidir
livremente sobre sua sexualidade (PETCHESKY, 1999, p. 18, 19 e 21).
Essa conferência foi a ocasião de estabelecer os limites admissíveis pelos governos,
sendo o cenário de negociação de um sentido comum global acerca da reprodução e da
sexualidade, ressalta Montaño. Em sua Plataforma de Ação, foram ratificados os direitos das
mulheres como parte dos direitos humanos. Além disso, já no preâmbulo, é posto o direito das
mulheres ao controle de todos os aspectos de sua saúde, especialmente da sua própria
fecundidade (1996, p. 174 e 175).
Em Pequim, a questão da saúde sexual e reprodutiva passou a ser tratada como um
problema de direitos humanos, ressalta Montaño. Aqui não se verifica o divórcio entre
reprodução e sexualidade, produzido no Cairo, sendo afirmado que a saúde reprodutiva inclui
a saúde sexual, que tem por objetivo o desenvolvimento da vida e das relações pessoais, e não
apenas o assessoramento e a atenção relativos à reprodução e às doenças sexualmente
transmissíveis, já que a saúde possui um conceito mais amplo, que abarca a saúde reprodutiva
62
Petchesky critica a ênfase dada aos casos de violações dos direitos sexuais, em detrimento da busca da
afirmação de tais direitos. Para ela, centralizar o foco nos casos de violações, na melhor das hipóteses, nos
levaria a um nível de tolerância liberal, já que a proposta negativista e exclusivista dos direitos não pode, por si
mesma, auxiliar-nos a construir uma visão alternativa ou levar a transformações fundamentalmente estruturais,
sociais e culturais (1999, p. 27).
(1996, p. 176 e 177). Com isso, esse documento, além de confirmar os resultados obtidos no
Cairo, enfatizou ainda mais a igualdade de gênero, reafirmando o foco nos direitos sexuais e
reprodutivos (GALVÃO, 1999, p. 171).
A Conferência de Pequim, além de reforçar conquistas anteriores, também avançou em
relação à saúde reprodutiva, sendo um dos exemplos o tratamento destinado ao aborto: ele foi
compreendido como questão de saúde pública, sendo os governos conclamados a atenderem
às mulheres que solicitassem a interrupção da gestação nos casos previstos em lei e as
mulheres com problemas em decorrência da realização de abortos ilegais, além de ter sido
solicitado que os governos revissem as punições sobre mulheres submetidas ao aborto
voluntário (PITANGUY, 1999, p. 36 e 37). Isso significa que se verificou a flexibilização dos
governos no sentido de revisar sua legislação relativa ao tema (MONTAÑO, 1996, p. 179).
4.2.3 Proteção dos Direitos Sexuais e Reprodutivos no Direito Brasileiro
Ainda que a expressão direitos sexuais e reprodutivos não conste no Direito positivo
brasileiro, não é possível afirmar que eles não são pelo nosso ordenamento contemplados.
Eles estão implicitamente previstos tanto em normas constitucionais quanto
infraconstitucionais, sobretudo no que se refere ao planejamento familiar, que menciona
claramente o conteúdo desses direitos.
Pirotta e Piovesan enumeram as normas constitucionais que estão de acordo com a
noção de direitos sexuais e reprodutivos. Primeiramente, salientam a dignidade da pessoa
humana, a cidadania (artigo 1º)
63
e a promoção do bem de todos sem qualquer forma de
discriminação (artigo 3º).
64
No que tange aos direitos e deveres individuais e coletivos,
ressaltam a igualdade entre mulheres e homens (artigo 5º, inciso I),
65
a inviolabilidade da
intimidade, da vida privada, da honra e da imagem (inciso X),
66
a punição de discriminações
atentatórias dos direitos e liberdades fundamentais (inciso XLI),
67
a garantia às presidiárias da
63
“Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana [...].”
64
“Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] IV – promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
65
“I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.”
66
“X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
67
“XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.”
permanência com seus filhos durante a amamentação (inciso L),
68
bem como a inserção dos
tratados internacionais, nos quais nosso país figura como Estado-parte, no sistema jurídico
brasileiro (parágrafos 2º e 3º)
69
(2001, p. 159 e 160).
Também a previsão da saúde como direito de todos e dever do Estado (artigo 196),
70
a
proteção à maternidade e à gestante (artigo 201, inciso III)
71
e a previsão do planejamento
familiar (artigo 226, parágrafo 7º)
72
estão conforme os direitos sexuais e reprodutivos,
segundo os autores. Especialmente em relação ao último dispositivo, tem-se que ele eleva à
categoria de norma constitucional vários princípios correlacionados aos direitos reprodutivos
(PIROTTA; PIOVESAN, 2001, p. 161-163). É por meio da regulamentação constitucional do
planejamento familiar que foi concedida aos indivíduos a titularidade dos direitos sexuais e
reprodutivos (BRAUNER, 2001, p. 209).
No plano infraconstitucional, cabe mencionar primeiramente a Lei nº 9.263, de 1996,
que trata do planejamento familiar. Aqui se dá um avanço em relação ao texto constitucional,
colocando o planejamento familiar como direito dos indivíduos, e não dos casais (artigo 2º).
73
Além disso, verifica-se a proibição das ações relativas ao planejamento familiar como
controle demográfico (artigo 2º, parágrafo único).
74
Essa vedação coincide com a posição
mais moderna sobre o tema, já que as políticas que objetivam o aumento ou a diminuição da
natalidade são consideradas “contrárias aos princípios democráticos e aos direitos humanos”
(PIROTTA; PIOVESAN, 2001, p. 163).
68
“L – às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o
período de amamentação.”
69
“§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§ 3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais.”
70
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação.”
71
“Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de
filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos
da lei, a: [...] II – proteção à maternidade, especialmente à gestante; [...].”
72
“§ 7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento
familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o
exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.”
73
“Art. 2º. Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da
fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem
ou pelo casal.”
74
“Parágrafo único. É proibida a utilização das ações a que se refere o caput para qualquer tipo de controle
demográfico.”
Embora uma parte substancial da legislação brasileira esteja de acordo com os
princípios dos direitos reprodutivos, grande parte da legislação contrária a preceitos
constitucionais em conformidade com esses direitos não foi revogada, onde se insere a
questão do aborto. Por meio dos planos de ação do Cairo e de Pequim, a problemática do
aborto, considerada como questão de saúde pública, foi introduzida em documentos oficiais
da Organização das Nações Unidas, ainda que a normatividade internacional estivesse
submetida às leis nacionais (BARSTED, 2003, p. 86). No entanto, percebe-se que, diante da
criminalização do aborto pelo Direito brasileiro, não são contempladas as recomendações das
Conferências de Cairo e Pequim, pois o tema é tratado como questão criminal, e não como
questão de saúde pública (PIROTTA; PIOVESAN, 2001, p. 168).
Não é possível pensar em direitos sexuais e reprodutivos dissociando-os das questões
de gênero e do papel que a reprodução e a maternidade têm na constituição do gênero
feminino. Colocar esses dois processos como inscritos à natureza significa não poder
conceber a juridicização da sexualidade e da reprodução. No entanto, se a reprodução é
compreendida como escolha, tudo o que a envolve, como os atendimentos pré e pós-natal, o
acesso a métodos contraceptivos e, inclusive, ao aborto, pode, nessa perspectiva, ascender ao
plano dos direitos.
4.3 NOTAS SOBRE A VINCULAÇÃO ENTRE DIREITO E IDEOLOGIA
Tratar-se-á, então, de verificar se o Direito pode consistir num fenômeno ideológico.
Isso poderia explicar a reprodução das noções naturalizadas acerca da maternidade nos
discursos jurídicos versando sobre aborto, bem como a não-reprodução dos direitos sexuais e
reprodutivos no âmbito desses discursos. Entende-se que, ao reproduzir valores sociais
dominantes e perpetuar algumas desigualdades, o Direito está exercitando seu caráter
ideológico. Iniciar-se-á expondo o conceito de ideologia.
4.3.1 Conceituando Ideologia
Primeiramente, faz-se necessário conceituar ideologia. Serão trazidos aqui conceitos
de alguns autores, com vistas a compreender sua relação com o poder e, posteriormente, sua
vinculação com os fenômenos jurídicos. Marx foi o primeiro a desenvolver uma teoria da
ideologia. Para ele, a ideologia consiste numa falsa consciência, provocando uma inversão da
realidade (MARX, 1996, p. 15-19).
Chaui ressalta-nos que a ideologia não é um processo subjetivo consciente, mas um
fenômeno objetivo e subjetivo involuntário, produzido pelas condições objetivas da existência
social dos indivíduos (1994, p. 78). “‘Ideologia’ pode designar qualquer coisa, desde uma
atitude contemplativa que desconhece sua dependência em relação à realidade social, até um
conjunto de crenças voltado para a ação; desde o meio essencial em que os indivíduos
vivenciam suas relações com uma estrutura social até as idéias falsas que legitimam um poder
político dominante” (ŽIŽEK, 1996, p. 9).
Para Warat, a ideologia é concebida da seguinte forma:
por ideologia costuma-se entender o conjunto mais ou menos coerente de crenças
que o grupo social invoca para justificar seus atos e respaldar suas opiniões, isto é,
as crenças que funcionam como motivadoras ou racionalizadoras de determinados
comportamentos sociais. Por tal razão a ideologia constitui-se de representações
estritamente vinculadas ao exercício do poder social. Advirta-se que essa relação
entre crenças e poder é que comanda a produção das significações legitimáveis
(1994, p. 116).
Alerta Bourdieu que as ideologias são duplamente determinadas, já que “elas devem as
suas características mais específicas não só aos interesses das classes ou das fracções de
classe que elas exprimem [...], mas também aos interesses específicos daqueles que as
produzem e à lógica específica do campo de produção”. Com isso, evita-se a redução dos
produtos ideológicos aos interesses das classes a que servem sem, ao mesmo tempo, tratar as
produções ideológicas “como totalidades auto-suficientes e autogeradas” (1998, p. 13). Pode-
se dizer, com isso, que a função da ideologia na vida humana consiste basicamente na
constituição e modelação da forma com que os seres humanos vivem suas vidas como atores
conscientes e reflexivos em um mundo estruturado e significativo (THERBORN, 1989, p.
13).
O discurso dominante, no exercício de sua função ideológica, procura impor o
entendimento da ordem estabelecida como se fosse natural, a partir da imposição dissimulada
e, por isso, ignorada, de “sistemas de classificação e de estruturas mentais objectivamente
ajustadas às estruturas sociais”, assevera Bourdieu. Portanto, o efeito ideológico consiste na
imposição de sistemas de classificação que são políticos, como se fossem filosóficos,
religiosos, jurídicos etc (1998, p. 14). Semelhante opinião tem Villoro, para quem as crenças
compartilhadas por um grupo social são ideológicas se não estão suficientemente justificadas,
ou seja, se o conjunto de enunciados pelos quais se expressam não se fundam em razões
objetivamente suficientes, e se cumprem a função social de promover o poder político desse
grupo, quer dizer, se a aceitação dos enunciados favorece o acesso ou a conservação do poder
desse grupo (1985, p. 28 e 29).
Já Therborn entende que as ideologias ao mesmo tempo submetem e qualificam os
sujeitos,
75
relacionando-os com: a) o que existe ou não, ou seja, quem somos, como é o
mundo e a natureza, a sociedade, os homens e as mulheres, o que nos faz adquirir um sentido
de identidade e nos torna conscientes do que é verdadeiro e correto; b) o que é bom, correto,
justo, bonito e atraente, normalizando nossos desejos e c) o que é possível e impossível,
modelando nosso sentido da mutabilidade do nosso próprio ser e as conseqüências dessa
mudança, configurando nossas esperanças, ambições e temores (1989, p. 15 e 16).
De acordo com o autor, as ideologias que constituem a feminilidade podem ser
caracterizadas como de tipo posicional-existencial. Uma ideologia posicional submete e
qualifica alguém para uma determinada posição dentro do mundo a que pertence. Além disso,
os aspectos mais importantes da estrutura da existência humana são os efetuados pelas
distinções eu/outros e masculino/feminino. Por isso, essas ideologias nos dizem quem somos
em contraposição aos outros, ao que é bom e possível para ele (THERBORN, 1989, p. 21 e
22).
As ideologias consistem em representações do que somos, do que sustentamos e dos
nossos valores, sendo necessárias para a organização das práticas sociais de forma a servir aos
nossos interesses, impedindo que outros os danifiquem (VAN DIJK, 2000, p. 95). “Uma
ideologia opera atrás de nós mais do que a possuímos como um tema diante dos olhos. É a
partir dela que pensamos” (GILES, 1995, p. 73).
Não são as estruturas sociais (como os grupos ou as organizações) que diretamente
condicionam, influem ou restringem as práticas ideológicas, mas as formas com que os
membros sociais subjetivamente as representam, compreendem ou interpretam, compreende
75
Para o autor, a formação do seres humanos por parte de qualquer ideologia compreende um processo
simultâneo de submissão e qualificação. Ele exemplifica sua afirmação utilizando a criança, cujas múltiplas
possibilidades estão sujeitas a uma ordem que permite e favorece alguns impulsos e capacidades, ao mesmo
tempo em que proíbe ou desfavorece outros (THERBORN, 1989, p. 14 e 15).
Van Dijk. Logo, as ideologias não somente podem servir para legitimar o poder e a
desigualdade, como também podem servir aos grupos e seus membros na organização e
manejo de seus objetivos, e práticas sociais (2000, p. 177 e 178).
Villoro propõe um conceito interdisciplinar de ideologia, por compreender que as
noções puramente gnoseológica e sociológica são insuficientes (1985, p. 39). A ideologia,
segundo esse autor, pode ser tida como uma forma de ocultamento em que os interesses e
preferências próprios de um grupo social se disfarçam, fazendo-se passar por interesses e
valores universais e tornando-se assim aceitáveis por todos, ou como o conjunto de crenças
que manipula dos indivíduos, levando-os à prática de ações que promovem o poder político de
um determinado grupo ou uma determinada classe. Enquanto o primeiro conceito coloca os
enunciados como falsos, o segundo se refere a crenças determinadas socialmente, sem indicar
a sua veracidade ou falsidade, ou seja, aqui não há a definição da ideologia por sua relação
com o conhecimento, mas por suas causas ou conseqüências sociais (VILLORO, 1985, p. 18,
20 e 39).
Bourdieu, por sua vez, prefere o uso dos conceitos dominação simbólica, potência
simbólica e violência simbólica ao de ideologia. Ele usa, também, o conceito de doxa,
compreendendo que, a partir da ideologia, “aceitamos muitas coisas sem conhecê-las”
(BOURDIEU; EAGLETON, 1996, p. 266 e 268).
76
Em outro texto, o mesmo autor esclarece
que “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível, o qual só pode ser exercido com a
cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o
exercem”. Entende que, como o poder está em todos os lugares, seria preciso enxergá-lo
justamente aonde ele não é reconhecido. O poder simbólico é ainda o poder “de fazer ver e
fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a acção sobre o
mundo, portanto o mundo”. Por meio do poder simbólico, é possível a obtenção do que seria
obtido pela força, na medida em que ele é reconhecido (ou ignorado) como arbitrário. O poder
simbólico é definido numa relação entre os que exercem o poder e os que a ele estão sujeitos.
Por fim, o poder simbólico constitui-se num poder subordinado, por ser uma forma
“irreconhecível, transfigurada e legitimada” das outras formas de poder (1998, passim).
76
Ele utiliza o exemplo do questionamento acerca dos fatores de bom desempenho escolar, salientando que,
“quanto mais se desce na escala social, mais eles acreditam em talentos ou dons naturais, mais acreditam que os
que alcançam êxito são dotados de capacidades intelectuais inatas”. Trata-se de uma aceitação de sua própria
exclusão, o que não significa que os indivíduos dominados toleram tudo, mas que talvez aceitem mais do que
podemos supor (BOURDIEU; EAGLETON, 1996, p. 268 e 269).
Utilizar-se-á, aqui, a noção de ideologia com as advertências feitas por Foucault: a de
não opô-la à verdade, já que o substancial é a verificação da produção dos efeitos de verdade
no interior dos discursos (2002, p. 7) sobre aborto por grave malformação fetal e maternidade.
O filósofo utiliza o termo poder, compreendendo-o não só como repressão, o que seria
insuficiente para a sua obediência. “O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito
é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia,
produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (2002, p. 8). No caso do
tratamento jurídico dispensado ao aborto isso é visualizado. O dizer não referente ao aborto
por grave anomalia fetal não está, dessa forma, apenas na ausência de previsão legal para esse
tipo de procedimento, mas na reprodução do ideal da maternidade como constituinte do
gênero feminino e como algo pertencente à natureza, não sendo produzidos discursos acerca
da escolha efetuada pela gestante quando procura o Poder Judiciário solicitando uma
autorização.
Para Foucault o poder é algo que circula, que “só funciona em cadeia”. Ele é exercido
em rede: “nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de
exercer este poder e de sofrer sua ação”. Ou seja, o poder passa pelos indivíduos (2002, p.
183). Sobre a relação entre verdade e poder, ele escreve o seguinte:
[...] a verdade não existe fora do poder ou sem poder [...]. A verdade é deste mundo; ela é produzida nele
graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu
regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados
verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são
valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona
como verdadeiro (2002, p. 12).
É possível depreender que a ideologia consiste numa forma de dominação, numa
forma de exercício de poder. Contudo, esse exercício se faz de forma velada, oculta, por meio
de subterfúgios. É por meio da naturalização que isso também é possível. Assim, não se
questiona a produção do seu efeito de verdade, pois o enunciado é tido como algo pré-dado e
imutável. Isso é perceptível nos discursos acerca do aborto por grave anomalia fetal. A
vinculação da moralidade do aborto sobretudo à pessoalidade do feto, a desconsideração da
gestante como sujeito capaz de efetuar escolhas morais e a naturalização do papel social de
gênero feminino, bem como a vinculação da reprodução à natureza, não sendo passível da
aplicação da racionalidade, são formas ideológicas de tratamento da questão.
4.3.2 O Direito como Fenômeno Ideológico
Compreendido o que significa ideologia, torna-se possível verificar se o Direito pode
ser tido como um fenômeno ideológico. Dessa forma, objetiva-se visualizar se ele pode
consistir numa forma de produção de verdades, por meio dos seus discursos, sejam eles legais
ou jurisprudenciais e a relação que isso pode ter com os discursos jurídicos acerca do aborto
por grave malformação fetal.
O discurso do Direito constitui-se na formalização de uma parte da ideologia
(CORREAS, 1995, p. 34). De acordo com Wolkmer, devido a seu caráter ideológico, o
Direito estaria comprometido com uma concepção ilusória de mundo, a qual emerge das
relações concretas e antagônicas do social. O Direito seria, portanto, a projeção normativa que
instrumentaliza os princípios ideológicos e as formas de controle de poder de um determinado
grupo social. As estruturas jurídicas, dessa forma, reproduzem o jogo de forças sociais e
políticas, bem como os valores morais e culturais de uma dada organização social. Dessa
forma, o Direito deve ser compreendido não só como um valor cultural, mas, sobretudo, como
uma manifestação simbólica da convivência social em um determinado momento histórico
que, mediante um sistema de regulamentação normativa, garante a estabilidade e a ordenação
da sociedade, ou seja, o fenômeno jurídico expressa formalmente suas inerentes relações
estruturais de poder, segurança, controle e dominação (2003, p. 154, 155 e 180).
O Direito, segundo o autor, tem como função social a arbitragem do jogo de forças e
reivindicações em conflito, pois necessita proteger um interesse em face da postergação de
outro interesse, bem como reconhecer a legitimidade de dominação de um interesse sobre
outro interesse. Ele aduz que “o Direito, enquanto instrumentalização ideológica do poder,
pode ser visto como materialização da coerção, opressão e violência. O Direito tem
representado, historicamente, a ideologia da conservação do status quo e da manutenção de
um poder institucionalizado” (WOLKMER, 2003, p. 181 e 201).
Se o Direito reproduz os valores morais e culturais da sociedade na qual ele é
produzido e aplicado, tem-se que ele consiste num poderoso instrumento no sentido de
perpetuar os mitos relativos à maternidade, legitimando as crenças segundo as quais a
reprodução não pode ser passível de racionalização, bem como a afirmação de que o amor
materno é algo instintivo, acima de qualquer circunstância, o que justificaria o sofrimento
pelo qual passa a gestante cujo feto possui uma grave anomalia.
A maioria dos processos da linguagem jurídica objetiva a produção de dois efeitos
maiores: o de neutralização e o de universalização, afirma Bourdieu. Tais retóricas não seriam
apenas máscaras ideológicas, mas a própria expressão do funcionamento do campo jurídico.
Isso porque o espírito ou o sentido jurídicos consistem exatamente nessa postura neutralizante
e universalizante. “O direito é a forma por excelência do discurso actuante, capaz, por sua
própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a
condição de se não esquecer que ele é feito por este” (1998, p. 215, 216 e 237).
São esses efeitos de neutralização e universalização que poderão produzir a
legitimidade jurídica. Essa legitimidade se dará, inclusive, na medida em que os valores
sociais dominantes forem reproduzidos. A legitimidade do Direito está diretamente
relacionada à possibilidade de ocultação das relações de poder a ele subjacentes, o que faz
com que ele pareça um fim justo ou, no mínimo, racional (COELHO, 1992, p. 109). Esses
efeitos são prolatados, por exemplo, com os discursos acerca do aborto. Aqui, a
desconsideração do sofrimento da gestante funciona como uma forma de universalização,
pois, nos julgados, desconsidera-se a sua subjetividade. Isso, no entanto, reproduz o mito da
maternidade, o qual é contrário à autonomia corporal da gestante, que poderia legitimar o
aborto nesses casos.
O Direito consiste, ademais, num instrumento de dominação e normalização. As
instituições jurídicas contribuem universalmente para a imposição de uma representação da
normalidade, relativamente à qual as práticas diferentes aparecem como desviantes, o que faz
com o que o Direito seja um “instrumento de normalização por excelência” (BOURDIEU,
1998, p. 247 e 249). No caso do aborto por grave anomalia fetal, essa normalização é operada
por meio da regulação dos desejos maternais que contrariam a idéia, difundida socialmente,
de que o amor materno é algo biológico, intrínseco à condição feminina.
Para Foucault, o Direito põe em prática relações de dominação, as quais não se
restringem à dominação de um sobre outros, ou de um grupo sobre outro, mas abarca as
diversas formas de dominação que podem ser exercidas na sociedade. Por isso, o Direito deve
se visto como um procedimento de sujeição (2002, p. 181 e 182). No caso analisado neste
trabalho, a sujeição se dá por meio da ausência da possibilidade de escolha, não se
considerando a gestante como sujeito moral. Assim, somente o seu sofrimento, verificado por
um terceiro (o médico, o julgador ou ambos) justificaria a autorização da realização do aborto.
Disso depreende-se que o Direito consiste num instrumento de controle social (LUMIA, 1993,
p. 15).
O processo argumentativo, o qual está presente nas decisões judiciais, consiste num
discurso que recoloca um conjunto de signos informativos em função do poder. A partir de tal
processo, a mensagem lingüística é transformada em ideologia, assevera Warat. O argumento
é definido pelo autor como o que vincula persuasão e ideologia. O raciocínio argumentativo,
por sua vez, é uma reflexão processada a partir da ideologia (1994, p. 94 e 95).
De acordo com esse autor, o conteúdo ideológico do argumento provoca uma inversão
do real suficientemente intensa para obter a adesão dos receptores em relação ao
argumentado. Na argumentação, a dimensão ideológica permanece vinculada à dimensão
persuasiva, que, por sua vez, adquire valor político. As convicções que norteiam os discursos
argumentativos determinam e são resultado dos processos de socialização. Assim, são
realizadas formas específicas de controle social por meio da argumentação. As afirmações que
se pretende consolidar por um argumento cumprem com uma função socializadora, uma vez
que portam uma mensagem ideológica, sendo formas de reprodução dos valores estabelecidos
previamente (WARAT, 1994, p. 96 e 99).
No caso das decisões judiciais analisadas, verifica-se diversos argumentos ideológicos.
Seja para autorizar ou negar o abortamento, produz-se a adesão dos receptores da mensagem,
determinando-se os limites do Direito, delimitando-se até onde ele pode chegar. A liberdade
da gestante está além desses limites. Por isso, apenas o seu sofrimento, ou a inviabilidade
fetal, podem justificar o aborto.
A idéia de justiça, para Wolkmer, expressa valores político-ideológicos, estando
inegavelmente vinculada com as práticas sociais. Assim a jurisprudência deve ser tida como
autêntica fonte reprodutora da consciência e do interesse de um determinado momento,
77
77
O autor alega que tal fenômeno é verificável não apenas no sistema do Commom Law anglo-americano, como,
de forma crescente, nos países de Direito escrito, nos quais a invocação dos precedentes judiciais é uma
constante (WOLKMER, 2003, p. 184 e 185).
que as decisões judiciais seriam uma forma de praticar a justiça. Logo, podemos afirmar, com
Wolkmer, que o juiz possui um papel muito maior do que aquele que lhe é atribuído,
exercendo ideologicamente uma extraordinária e dinâmica atividade recriadora. A criação
judicial ou a interpretação e aplicação da lei definem, em cada caso, a orientação ideológica
de uma ordem jurídica comprometida com o sistema sociopolítico dominante (2003, passim).
Embora a situação judicial funcione como um lugar neutro (BOURDIEU, 1998, p.
227), a decisão judicial expressa valores pré-concebidos pelos julgadores. Para Correas, por
meio dos discursos sobre a jurisprudência postula-se identificar qual ou como é a ideologia
produzida pelos julgadores. Assim, a ideologia jurídica também existe no discurso produzido
pelas fundamentações dos juízes (1995, p. 121). Isso pode ser claramente percebido nas
definições persuasivas encontradas. Pode-se afirmar, ainda, que é a partir das decisões
judiciais que são mais bem demarcados os limites do Direito, exercitando-se seu caráter de
controle social. No caso do aborto por grave malformação fetal, sob a pretensa neutralidade
da verificação da viabilidade fetal, desqualifica-se o feto, o que é tido como a única forma de
conceder a autorização judicial, já que a liberdade da gestante não é passível de consideração.
Por fim, cabe enunciar o conceito de mito, sustentado por Warat, que também consiste
numa forma de manifestação ideológica verificada nos discursos jurídicos. O mito, visto
como categoria do pensamento, permite a compreensão de um certo tipo de incidência do
ideológico nos modos de produção do significado. O mito identifica-se com a ideologia
política, na medida em que o processo mitológico sempre coloca suas crenças a serviço de
uma ideologia (1994, p. 103 e 104). O mito é definido pelo autor como um produto
significativamente congelado de valores com função socializadora:
Em outras palavras, seria o mito um discurso cuja função é esvaziar o real e
pacificar as consciências, fazendo com que os homens se conformem com a situação
que lhes foi imposta socialmente, e que não só aceitem como venerem as formas de
poder que engendram essa situação (1994, p. 104 e 105).
Assim sendo, conforme o jurista, a função básica dos mitos seria a de criar a sensação
coletiva de despolarização e neutralidade, a qual permite a apresentação da força social em
termos de legalidade supraracional e apriorística. Através do mito é lograda a conciliação das
contradições sociais, a partir de sua projeção em uma dimensão harmoniosa de essências
puras, relações necessárias e esquemas ideais, aos quais devemos forçosamente aderir. O mito
deve ser pensado, portanto, como o processo simbólico pelo qual se pretende fixar critérios de
conformismo social.
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Qualquer elemento pode constituir um mito, desde que seja suscetível
de ser assumido como mensagem ideológica, entende Warat. Tal elemento deve poder ser
visto, portanto, como um lugar onde se articulem os efeitos de um certo tipo de poder ou
como uma engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber que reconduz e
reforça os efeitos do poder. O receptor das mensagens míticas não percebe o mito como um
sistema ideológico, pois sua função socializadora vem disfarçada de fato natural (1994, p.
105, 106 e 107).
O Direito, portanto, consiste num fenômeno ideológico, utilizado em conformidade
com os valores sociais dominantes. Ele trata, em geral, de reproduzir esses valores. Por isso,
em se tratando do aborto por grave anomalia fetal, é preciso descaracterizar a vida como feto,
por meio do argumento da inviabilidade fetal, para autorizar a realização do procedimento
médico. A inviabilidade fetal é um claro exemplo de mito que opera nos discursos jurídicos
sobre o tema. A naturalização desse conceito se dá sobretudo com base nos laudos médicos,
que atestam a extensão e as conseqüências da anomalia, bem como com fundamento na
proteção da vida efetuada pelo Direito, que não seria violada nesses casos. No que tange à
gestante, também os riscos à sua saúde e o seu sofrimento são mitificados, delimitando-se os
fundamentos dos pedidos de autorização judicial para abortamento e neutralizando o jogo de
forças entre feto e gestante presente no aborto, ocultando, ainda, que a valorização de um
depende necessariamente da desvalorização do outro.
4.3.3 Maternidade e Escolhas Reprodutivas
Viu-se que, com base na noção de gênero, é possível diferenciar os processos
biológicos daquilo que é construído socialmente e que passa por um processo (ideológico) de
naturalização que, perpassado por relações de poder, atinge fins de dominação. Os discursos
sobre a maternidade inserem-se no que foi agora afirmado, pois tratam de naturalizar o amor
materno, conferindo-o o caráter de amor incondicional, bem como limitam a reprodução ao
âmbito biológico, local em que a escolha não pode estar presente.
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Tais critérios de conformismo social são baseados em uma estrutura que se resolve pela manutenção do status
quo sob uma capa de neutralidade (WARAT, 1994, p. 106).
Segundo Mori, ao se admitir a licitude do aborto, reconhece-se que “a maternidade
não é mais um ‘fato natural’ ligado à fisiologia do corpo feminino, mas uma ‘escolha’ da
mulher, análoga a outras escolhas”. Portanto, a moralidade do aborto remete também ao papel
social da mulher, que até então era estabelecido pela natureza, “a qual parecia ter sancionado
que a mulher é antes mãe”. A mulher, de acordo com seu novo papel, não seria somente mãe e
depois, e eventualmente, uma pessoa, mas, assim como o homem, “uma pessoa com múltiplas
possibilidades e papéis, entre os quais também o de ser mãe (analogamente ao homem, que, às
vezes, é também pai)” (1997, p. 86 – grifos do autor).
Prossegue o autor, afirmando que a legitimação desse novo papel social coloca em
crise as identidades da mulher e do homem, o que faz com que o aborto seja concebido como
uma “decisão terrível”. Por isso, com a admissão da moralidade do aborto, “mata-se de fato
uma determinada ‘idéia de mulher’”, recolocando-se em discussão o sentido da maternidade,
a qual não seria mais aceita como destino natural feminino (MORI, 1997, p. 87).
Logo, tem-se que, em relação ao aborto por grave anomalia fetal, é questionado não
apenas o status do feto, mas também o status da gestante. Este, por sua vez, necessariamente
estará ligado ao papel social de gênero destinado às mulheres em uma determinada cultura e
em uma determinada época. Contudo, a partir da possibilidade de controle da própria
fecundidade, a maternidade deixa de ser destino, passando a ser escolha, projeto, ou seja, ela
passa a ter um sentido diferenciado. Mata-se, dessa forma, o mito do amor materno, enquanto
amor incondicional. Atenua-se, ainda, o ideal do sofrimento como algo intrínseco à
maternidade.
Isso tem conexões com o que Amorós caracteriza como percepção ideológica da
mulher como natureza. A autora trata das associações entre mulher e natureza e homem e
cultura, colocando que, no caso das mulheres, o conceito de natureza nunca é dado pela
própria natureza, sendo sempre social e ideologicamente construído a partir das definições
que a cultura dá a si mesma. Isso serve inclusive à associação entre mulher e natureza que
parece ter origem na reprodução, já que não é o fato de dar a vida que faz com que essa
conexão possa ser natural. Então, se a vinculação com a natureza faz com que a mulher seja
titular de direitos relativos à espécie, ela deveria ter uma posição de sujeito superior, já que
seus direitos são superiores aos dos indivíduos, ou, ao menos, digna. No entanto, a mulher é
considerada apenas como instrumento não consciente da astúcia da espécie, como se a
natureza instrumentalizasse a própria natureza (1991, p. 34, 49 e 123).
Por isso, é possível conceber, nos casos em que a gestante deseja interromper a
gestação de feto portador malformação considerada letal, uma desconsideração da sua
subjetividade. “Será que a partir da concepção o corpo da mulher torna-se um mero objeto,
uma incubadora para gestar uma nova vida?” (PRADO, 1986, p. 19). O fato de apenas uma
parto do corpo representar uma pessoa é um elemento de objetificação, afirma McLeod.
Somente isso não define a objetificação, a qual ocorrerá se a parte considerada consumar a
expressão da pessoa enquanto sujeito (2002, p. 221 e 222).
Dessa forma, considerar apenas o feto é objetificar a gestante, na medida em que ela é
concebida apenas a partir do seu útero, da sua função reprodutiva, sendo desconsiderados os
seus desejos, o que faz com que ela seja descaracterizada enquanto sujeito. Nos casos aqui
analisados, de grave malformação fetal, isso aparece de forma mais latente, sobretudo se
consideradas as condições fetais, diante da letalidade da enfermidade que o feto possui.
Assim, desconsiderar o desejo da gestante necessariamente significa não só tornar seu corpo
um mero objeto, mas instrumentalizar o seu ser. Significa não a considerar como sujeito, mas
como objeto: significa violar sua dignidade.
Segundo Menezes, a maternidade, e a leitura cultural desse fato, geram a idéia de um
corpo feminino que tem como sina dar espaço a outro corpo. O corpo feminino é solidário, na
medida em que a mulher vive para a espécie. É por isso que a mulher tem que ser
representada como sensível, emotiva e impulsiva, estando mais próxima do coração (e da
natureza) do que da razão (2002, p. 19). Essa representação da mulher enquanto emotiva e
impulsiva é visualizada nos acórdãos analisados, em que há menção ao sofrimento da
gestante, o que poderia ter como conseqüências, em alguns casos, inclusive práticas suicidas.
Parece que, “enquanto o homem mantém com a natureza relações mediatizadas, a
mulher mantém uma relação imediata” (VALLE, 2002, p. 74), por meio da atividade
reprodutiva e do exercício da maternidade. Dessa forma, é como se, nos termos da teoria
kantiana, a mulher restasse ao mundo sensível, não podendo acessar o mundo inteligível.
79
A
ela restaria a heteronomia, já que, estando apenas sob o domínio das leis da natureza, e não
79
Para Kant, “um ser racional deve considerar-se a si mesmo como inteligência (isto é, não pela parte de suas
forças inferiores), não como pertencendo ao mundo sensível, mas ao inteligível; ter, portanto, dois pontos de
vista dos quais pode considerar-se a si próprio e reconhecer leis do uso de suas forças e, por conseguinte, de
todas as suas ações: o primeiro, enquanto pertencente ao mundo sensível, sob leis naturais (heteronomia); o
segundo, como pertencente ao mundo inteligível sob o domínio de leis que, independentes da natureza, não são
empíricas, mas se fundamentam unicamente na razão” (2004, p. 85).
sob o domínio das leis que se fundamentam unicamente na razão, não pudesse exercer a
autonomia, não pudesse ser agente moral. No entanto, as mulheres são tão agentes morais
quanto os homens, pois, enquanto indivíduos, possuem as mesmas capacidades dos homens,
enquanto indivíduos (FRIEDMAN, 2000, p. 216). Contudo, no campo das escolhas morais
relativas à reprodução isso não é efetivado.
Essa desconsideração da mulher enquanto sujeito também pode ser verificada diante
da utilização do argumento da inviabilidade, nos casos de graves anomalias fetais. Para
Buglione, o deslocamento da discussão sobre o aborto nos casos de grave anomalia fetal para
o fato morte afasta o aborto. Não se discute, dessa forma, direito à vida, à liberdade e todas as
questões dessas decorrentes. Para a autora, isso representa um ganho, pois se afirma que
algumas questões seriam inconciliáveis na esfera pública, porque regidas pela subjetividade,
restringindo-se ao âmbito privado e à autonomia. Ela entende que, dessa forma, confere-se
destaque para o valor da liberdade como ponto central do debate (2005, p. 99).
No entanto, é possível afirmar que, ainda que o aborto possa ser afastado, falando-se
em antecipação do parto ou mesmo na ausência de vida a ser protegida, não é a liberdade que
ocupa o posto central, mas as considerações acerca do feto. Logo, o objetivo de colocar a
liberdade e, conseqüentemente, a gestante, no cerne da discussão não é atingido, já que a essa
liberdade só é assegurada se a vida do feto é desqualificada. É possível, com Therborn,
mencionar a restrição do discurso sobre aborto nesses casos, referida às restrições sociais
sobre quem pode falar e de que se pode falar (1989, p. 68). Assim, a abrangência da discussão
sobre o tema deveria ficar restrita à inviabilidade fetal, ou, no máximo, ao sofrimento da
gestante, mas não à sua liberdade ou ao seu direito de escolha.
Cabe ainda questionar aqui se seria correta essa colocação de feto e gestante como
pólos opostos e antagônicos de uma relação jurídica. Juridicamente, parece que a garantia do
direito de um necessariamente viola os direitos do outro. Assim, nos casos em que a gestante
não deseja prosseguir com a gestação, assegurar sua liberdade significaria tirar a vida do feto,
enquanto que manter a vida do feto implica violar sua liberdade.
Pitch discorre acerca da relação entre mulher e feto, comentando que ela não se
constrói em termos de propriedade, nem enquanto relação entre dois sujeitos autônomos, mas
como relação simbiótica, pois o desenvolvimento físico e psíquico de um está diretamente
ligado ao cuidado, ao desejo e ao imaginário do outro. Assim, a gestação configura-se numa
situação única, em que se é uma e dois ao mesmo tempo. Por isso, não seria possível,
conforme a autora, falar de tutela de um contra a vontade da outra, já que o ser humano vem
ao mundo graças ao desejo e ao cuidado de uma mulher. Só há pessoa por meio da mediação
feminina, a qual é indispensável. Dessa forma, o desconhecimento de tal realidade não só não
tutela o feto, como nega a plenitude moral do sujeito feminino, negando também à capacidade
geradora um estatuto ético e moral (2003, p. 97).
Colocando-se feto e gestante como sujeitos opostos, ignora-se, ainda, a
responsabilidade que pode ser inerente à gestação. Em termos de vida versus liberdade,
suprime-se que a vida está necessariamente vinculada à liberdade, pois o feto é oriundo do
desejo e da escolha de outras pessoas, incluindo a gestante. Logo, a liberdade não pode ser
tida, em se tratando da reprodução e da maternidade, como algo oposto à vida. Tampouco a
opção pela interrupção da gestação nos casos de grave malformação fetal pode ser tida como
egoísta, como algo que necessariamente desconsidera o feto, seja enquanto aquilo que ele já é,
seja, enquanto o que pode vir a ser. Isso porque o poder de gerar e de dar a vida, conferido ao
gênero feminino, implica responsabilidade, inicialmente frente ao feto, mas também frente ao
pai, à sociedade e à espécie humana (PITCH, 2003, p. 97).
Por fim, cabe mencionar que a contrariedade ao aborto é freqüentemente associada
com a defesa da vida, enquanto que os argumentos favoráveis geralmente se aliam ao direito à
escolha. Rosado-Nunes questiona tais ligações, compreendendo que é devido ao fato de a
gravidez e a maternidade serem vistas como resultados naturais de um processo biológico que
elas não são tidas como escolhas. Para ela, o aborto não pode ser desvinculado da maternidade
e ambas as situações envolvem decisões e escolhas, o que coloca as mulheres como agentes
morais. Da mesma forma, o aborto pode ser referido à afirmação do valor da vida, “de tal
forma que a continuidade de uma gravidez não signifique apenas a aceitação de uma
contingência biológica, mas a gestação amorosa de uma nova pessoa” (2006, p. 30-32).
No caso de malformações fetais letais, também é possível afirmar que a interrupção da
gestação não necessariamente consiste numa negação do valor da vida. Diante da
possibilidade de diagnóstico das anomalias, sabendo-se das complicações que a gestação pode
acarretar para a mulher e, em caso de opção pela realização do aborto, compreendendo-se o
sofrimento psicológico que essa gravidez gera não só à mulher, mas a todos os que a cercam
(companheiro, filhos, familiares etc.), a decisão pelo aborto pode ser feita com base na
responsabilidade frente a todas essas pessoas, bem como ao feto, abreviando-se também o seu
sofrimento.
Portanto, considerar a possibilidade de escolha pela interrupção da gestação nos casos
de grave malformação fetal significa compreender a mulher como sujeito moral, passível de
decisões no campo da reprodução. Assim, desloca-se a reprodução e a maternidade do campo
do destino biológico para o das escolhas, não impondo às mulheres o papel social de gênero
que coloca o ser mãe como objetivo central de vida. Assim, passa a ser possível a
compreensão do aborto nesses casos como um direito, contemplado pela noção de direitos
sexuais e reprodutivos, já que, em termos de autonomia reprodutiva, é possível afirmar não
ser razoável, no plano jurídico, sustentar a obrigatoriedade de se levar uma gestação de feto
portador de anomalia tida por letal a termo contra a vontade da gestante.
5 CONCLUSÃO
A questão do aborto por grave anomalia fetal apresenta diversos reflexos jurídicos. No
Direito brasileiro, diante da criminalização das práticas abortivas, questiona-se acerca da
necessidade de inserção de mais uma exceção legal, além das referentes aos casos de risco de
vida para a gestante ou gravidez decorrente de estupro, contemplando a possibilidade de
abortamento em decorrência do diagnóstico pré-natal. Diante da lacuna legislativa, cabe
socorrer-se da Constituição, que, com seus princípios e direitos fundamentais, poderia dar
uma resposta à questão.
Assim, critérios jurídicos como o princípio da dignidade da pessoa humana e os
direitos fundamentais à vida, à liberdade e à saúde entram em cena como norteadores. A
abertura conceitual propiciada por tais direitos permite a contemplação da situação da
gestante que deseja interromper a gestação de feto portador de grave anomalia. O início da
proteção estatal da vida não é explicitado na Constituição, o que faz com que seja possível
não considerar o bem vida fetal como algo absoluto, ou mesmo que o feto possa não ser tido
como sujeito do direito à vida. A liberdade, enquanto direito que protege a autonomia não só
corporal, como reprodutiva, também pode ser suscitada nesse caso. É a liberdade da gestante
também que é geralmente oposta à tutela da vida do feto. O direito à saúde também adquire
especial relevância, já que, a partir do diagnóstico da malformação fetal, é possível prever
diversas conseqüências à saúde física da gestante, sob a forma de danos ou riscos. Além disso,
contemplando-se a saúde como um estado de completo bem-estar, a saúde psicológica
também é por esse direito fundamental tutelada. É no âmbito da saúde psicológica que poderá
ser avaliado o sofrimento da gestante que deseja interromper a gravidez. Todos esses direitos
estão conectados com o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, para as mulheres
que desejam interromper a gestação de fetos portadores de anomalias letais, impedir a
realização do procedimento abortivo pode consistir numa violação à sua dignidade, já que há
uma instrumentalização dessa pessoa, a gestante, que passa a ser utilizada, contra seus
desejos, para a satisfação da vontade de terceiros.
Em consonância com tal interpretação, verifica-se a tramitação atualmente de cinco
projetos de lei, postulando a permissão da realização de abortos por grave anomalia fetal. A
partir da divulgação da ADPF nº 54/2004, o tema da anencefalia fetal ganha destaque, o que
se reflete também nos projetos de lei. Com isso, os deputados favoráveis ao aborto nos casos
de anencefalia buscam a aprovação de uma lei nesse sentido, caso a demanda seja rejeitada
pelo Supremo Tribunal Federal. É o caso da anencefalia fetal o que parece ter maior
aceitação, já que o projeto que tem sua tramitação mais adiantada restringiu-se, por meio de
uma emenda, aos fetos anencefálicos.
É justamente em virtude da ausência de regulamentação legislativa que as gestantes
e/ou os casais que desejam interromper a gravidez socorrem-se do Poder Judiciário, o que faz
com que os alvarás judiciais expedidos para garantir a realização do aborto nos casos de grave
malformação fetal consistam num verdadeiro fenômeno, verificado principalmente a partir
desta década. Por isso, uma análise dos julgados faz-se imprescindível para a verificação dos
valores considerados pelos magistrados, sejam eles referentes ao Direito, ao feto ou a
gestante. Embora na maioria dos acórdãos fosse verificada a expedição do alvará, o tema é
controvertido, ensejando os mais diversos posicionamentos e argumentos. Visualiza-se,
também, uma maior condescendência dos julgadores com os casos de anencefalia, anomalia
mais conhecida pelos leigos. Além disso, o caráter simbólico do feto anencefálico é bastante
forte, já que ele não possui o órgão que nos confere racionalidade, o que parece inclusive
retirar-lhe o status de humanidade.
As definições persuasivas referentes ao feto denotam a relevância da consideração do
seu status moral, o que poderá lhe conferir ou não o caráter de sujeito do direito à vida. Este é
aqui acrescido de considerações médicas, especialmente quando se trata de considerar a sua
inviabilidade. São, assim, as considerações acerca da anomalia e das suas conseqüências que
podem desqualificar não só o feto enquanto pessoa, tema sempre controvertido, mas enquanto
ser vivo. A desconsideração de qualquer status fetal, por meio da utilização do conceito de
inviabilidade, é o que dá espaço à consideração do sofrimento da gestante. Ou seja, é porque o
feto é desvalorizado, inclusive sendo considerado como morto, em alguns casos, que o
sofrimento da gestante é valorado, que seus sentimentos e seus desejos são passíveis de
consideração jurídica. Assim, feto e gestante são colocados em pólos opostos, não como
complementares, mas como excludentes, fazendo com que a tutela de um signifique
necessariamente a ausência de tutela do outro.
As considerações sobre os riscos à vida e à saúde da gestante são menos subjetivas, já
que podem se apoiar em laudos médicos. Dessa forma, a iminência do risco de vida, as
complicações anteriores e durante o parto são expressas e individualizadas. Termos jurídicos
dão lugar a jargões médicos, como aumento do líquido amniótico, desprendimento do ombro
fetal, hemorragia etc. Aqui se abre espaço à consideração dos danos à saúde psicológica,
geralmente nos termos da saúde mental, que poderia estar “desorganizada”, podendo levar,
inclusive, ao suicídio.
A liberdade, tida desde a década de 1960 como o direito que poderia garantir o aborto,
é pouco considerada nos julgados. Aqui ela é tida como a contemplação dos interesses
pessoais de cada um, cabendo ao Poder Judiciário a garantia do exercício da autonomia, por
vezes em comparação à possibilidade de interrupção da gestação que decorre de estupro.
Assim, embora a liberdade esteja implícita em todas as outras considerações sobre a gestante,
ela não é nominada. A autonomia da gestante não parece ser passível de legitimação, sendo a
consideração do seu sofrimento e dos riscos que corre mais aceitável. As mulheres são vistas,
aqui, como seres vulneráveis, que precisam ser protegidos, fazendo-se cessar, com a
autorização judicial, o seu sofrimento ou os danos ou riscos à sua saúde. A postulação do
pedido de aborto não é tida como escolha, não sendo a liberdade um critério de relevância.
O exame da ADPF nº 54/2004 permite-nos tirar conclusões semelhantes. Em primeiro
lugar, restringe-se aos casos de anencefalia, o qual possui maior aceitação. Além disso, utiliza
o subterfúgio da antecipação terapêutica do parto, opondo-a ao aborto. Isso é baseado na idéia
da inviabilidade fetal. Assim, se não há vida a ser protegida, não há aborto. Não só se
transfere o debate do início para o fim da vida, como não se considera devidamente o aborto
nesses casos como escolha reprodutiva. Ele é algo que derivaria apenas das condições de
inviabilidade fetal. A gestante só é passível de consideração porque a vida do feto é
desqualificada. Centra-se o discurso novamente no feto, relegando-se a gestante a segundo
plano.
Foi preciso, para compreender o porquê das considerações verificadas no item 3,
realizar uma análise mais aprofundada de questões referentes às mulheres e ao papel que o
Direito exerce na sociedade. É a partir da consideração do conceito de gênero que é possível
diferenciar o biológico daquilo que é moldado pela cultura, inclusive tendo por base o próprio
biológico. Assim, verifica-se que a cultura pode efetuar um processo de naturalização daquilo
que é socialmente construído, o que o legará ao local do não dito, do não questionado, do
desde sempre dado. Transpõe-se o determinismo biológico, passando-se à possibilidade de
compreensão e explicitação do papel social de gênero destinado às mulheres em uma
determinada cultura e em uma determinada época.
A maternidade insere-se aqui. Esse processo que, biologicamente, até o presente
momento, é tido como exclusivamente feminino, é representado como um local de domínio da
natureza, o que pode denotar a sua significação como o objeto central da vida das mulheres e
justificar os sacrifícios em prol do seu exercício. Além disso, se a maternidade é tida como
destino biológico, o aborto significa a negação da própria natureza e, conseqüentemente, de
um determinado papel de gênero feminino.
O aborto contraria, portanto, a idéia do instinto maternal. Ou seja, contraria os
cuidados que devem ser tidos durante a gestação, o cuidado com os filhos após o nascimento
e, sobretudo, o amor incondicional que toda mãe deveria ter por seus filhos, não como algo
que se constrói, mas como aquilo que é intrínseco ao seu ser. No entanto, no momento em que
passa a ser possível o controle da fecundidade, as mulheres podem dominar melhor sua
própria natureza. A interdição do aborto por grave anomalia fetal, portanto, também está
ligada ao ideal da maternidade enquanto destino biológico. Assim, a mulher que interrompe a
gestação devido à condição de seu feto não está exercitando a maternidade, não sendo
considerada uma boa mãe e não se inserindo nos padrões de feminilidade. Esses, no que se
refere à maternidade, incluem, ainda, o sacrifício ou até mesmo o masoquismo. Assim,
nenhum sofrimento poderia embasar a escolha pelo aborto. Postular o aborto é, portanto,
ressaltar o caráter cultural e social da maternidade, além de romper com o destino biológico. É
explicitar os componentes construídos culturalmente inseridos no ideal de maternidade, sob o
prisma do amor materno. É a partir disso que passa a ser possível conceber a maternidade (e
mesmo a sua negação, por meio do aborto), como direito.
A noção de direitos sexuais e reprodutivos, enquanto aqueles direitos que provêm de
grupos sociais, ou seja, que têm origem fora do âmbito estatal, trata de confrontar a noção da
sexualidade e da reprodução como inerentes ao âmbito biológico. Assim, tais processos
seriam passíveis da aplicação da racionalidade do Direito, especialmente sob o signo da
autonomia dos indivíduos. Não se restringem a isso, contudo, contemplando também a
necessidade de intervenção estatal, no sentido de garantir os meios para que essa autonomia
possa ser exercida. Trata-se de direitos complexos, que congregam tanto a noção de direitos
civis, quanto de direitos sociais. A partir de sua formulação, postula-se que sejam garantidos
os serviços necessários para que se possa efetivar o direito ao planejamento familiar, ao
acesso aos métodos contraceptivos, aos cuidados com a maternidade e ao aborto seguro. No
que tange à reprodução, esta não pode mais ser alvo, com base nessa nova noção de direitos,
de políticas verticais, como as que eram efetuadas com o objetivo de controlar a natalidade,
que desconsideram a autonomia reprodutiva dos cidadãos. Nesse contexto, verifica-se
diversos instrumentos internacionais, e inclusive alguns nacionais, que legitimam os direitos
sexuais e reprodutivos.
Apesar da noção de direitos sexuais e reprodutivos, que insere a sexualidade e a
reprodução no âmbito dos direitos, justamente por não concebê-las como algo restrito à
natureza, o Direito institucionalizado continua a reproduzir a visão contrária, o que pôde ser
visualizado sobretudo nas decisões judiciais e nos argumentos utilizados na ADPF nº
54/2004. Denota-se daí uma vinculação entre Direito e ideologia, concebendo-o como um
instrumento que permite a manutenção de um determinado status quo.
O Direito, entendido como fenômeno
ideológico, atua como uma forma de
dominação e de exercício de poder. No caso
em questão neste trabalho, ele delimita aquilo
que pode ser nominado, aquilo que pode ser
explicitado, inserindo e excluindo discursos,
dependendo da possibilidade ou não de
legitimação. Isso é ideológico porque se faz de
forma velada, porque esse poder não é
explicitado. Os discursos são naturalizados,
sendo tidos como pré-dados e imutáveis. Nos
discursos acerca do aborto por grave anomalia
fetal, a vinculação da moralidade do aborto
sobretudo à pessoalidade ou viabilidade do
feto, a desconsideração da gestante como
sujeito capaz de efetuar escolhas morais e a
naturalização do papel social de gênero
feminino e da reprodução como algo inerente à
natureza, não passível da aplicação da
racionalidade, consistem em formas
ideológicas de tratamento da questão.
O Direito opera aqui como um produtor de verdades. A viabilidade pode ser verdade.
Dela dependem as considerações sobre a gestante. Os riscos à sua vida podem ser verdades.
Os riscos à sua saúde, também. Até o seu sofrimento pode ser uma verdade, mas a liberdade,
não. A possibilidade de escolha, a elevação das mulheres à maioridade moral não consiste
numa verdade passível de legitimação pelo Direito. O Direito consiste, portanto, num
poderoso instrumento na perpetuação do papel social de gênero atribuído às mulheres,
inclusive no que tange aos mitos relativos à maternidade. Legitimam-se, assim, as crenças
segundo as quais a reprodução não pode ser passível de racionalização, segundo as quais o
amor materno é instintivo e incondicional. Normaliza-se aquilo que pode ser postulado pelas
mulheres, normalizando-se o que pode ser tido como de seu domínio: apenas o biológico, não
o racional. A reprodução faz parte do seu domínio, mas escolhas reprodutivas, não. Por isso, a
gestante, mesmo nos casos em que tem seu pedido atendido, é considerada como vítima da
fatalidade de ter gerado um ser portador de grave anomalia. Por isso, sua liberdade não pode
ser considerada.
É porque o Direito consiste num fenômeno ideológico que é preciso descaracterizar a
vida do feto, utilizando-se o argumento da inviabilidade fetal, para autorizar a realização do
aborto. Só a partir daí a gestante merecerá consideração jurídica, sendo os riscos à sua saúde e
o seu sofrimento valorados. Com isso, oculta-se essa colocação da gestante em segundo
plano, denotando-se a pretensa existência de um jogo de forças entre ela e o feto presente no
aborto, colocando-se a valorização de um como intrinsecamente dependente da
desvalorização do outro.
Conectando-se as questões ideológicas referentes ao Direito com o que já foi exposto
sobre gênero e maternidade, percebe-se que ele apenas reproduz concepções sociais. No caso
do aborto por grave anomalia fetal, é questionado não apenas o status do feto, mas também o
status da gestante, o qual está ligado ao papel social de gênero feminino tido por ideal.
Contudo, a partir da possibilidade de controle da própria fecundidade, o que é exacerbado
com o recurso ao aborto, a maternidade passa a ser escolha, adquirindo outro sentido. Se a
reprodução é tida como um processo eminentemente biológico, não é possível considerá-la
como sendo passível de escolhas. As mulheres, porque conectadas à reprodução, seu destino
natural, também não seriam seres passíveis de escolhas morais. Não é a gestante, dessa forma,
considerada como sujeito, mas como objeto, que será regulado pelos discursos médicos,
acerca dos riscos que corre e da possibilidade de vida extra-uterina do feto que carrega, ou
jurídicos, considerando-se que o direito à liberdade não é algo contemplado nesse caso.
Coloca-se, por fim, a gestante e o feto como pólos antagônicos e independentes. Por
isso seus interesses podem ser opostos, havendo um conflito entre a vida e a liberdade.
Juridicamente, isso é traduzido como se a garantia dos direitos de um violasse os direitos do
outro. No entanto, feto e gestante estão intrinsecamente, e não só biologicamente, ligados. O
feto só existe, e continua a existir, devido ao desejo (e à liberdade) da mulher. Por isso, a
liberdade não é oposta à vida, mas está à ela ligada. Até porque a vida não é um bem restrito
ao feto, mas antes pertencente à gestante que, por isso, pode conferir a vida a outro ser. Sendo
assim, a escolha pelo aborto não necessariamente transgride o valor da vida, podendo
inclusive, o afirmar. Isso porque as escolhas morais relativas à reprodução, feitas pelas
mulheres, não são necessariamente escolhas egoístas, estando também em conformidade com
a responsabilidade que o poder de gerar lhes confere frente à vida e, conseqüentemente, aos
outros seres. Isso faz com que as mulheres sejam colocadas como sujeitos morais, capazes de
tomar decisões no campo reprodutivo, incluindo a relativa ao aborto de feto portador de grave
anomalia. Dessa forma, sendo a reprodução uma escolha, pode o aborto nesses casos ser
afirmado como um direito, já que a maternidade passa a ser passível de racionalização.
5 CONCLUSÃO
Se a prática do aborto se perde na História, também não é possível verificar quando
tem início discussões a respeito de sua moralidade ou licitude no Ocidente. Diversos critérios
foram utilizados para justificá-lo ou não: a eugenia e o controle demográfico para os gregos, a
vontade do pai para os romanos ou a animação do feto para os medievais. Contudo, é
principalmente na Idade Moderna, na década de 60 e a partir dos anos 90 que encontramos
modificações mais substanciais na regulação das práticas abortivas.
No século XIX, é o processo de medicalização da saúde que traz maiores
modificações. Com ele, verifica-se também um maior desenvolvimento da ginecologia e da
obstetrícia. Assim, a mulher passa a ser objeto de estudo, fazendo, também, com que os
cuidados com a gestação passem das parteiras aos médicos. Dissolvem-se, dessa forma, redes
de solidariedade feminina, responsáveis, inclusive, pela informação e difusão de métodos
abortivos. O aborto adquire um status público, a saúde feminina passa ao domínio masculino,
exercido por meio da Medicina. É conferida especial atenção à saúde materna e a vigilância
da gestação tem por objetivo principal a proteção do feto. O discurso médico é de grande valia
para a delimitação do papel social atribuído às mulheres, legitimando a vocação materna.
Diante da lógica burguesa da família nuclear, com um número menor de filhos, o
aborto, a partir do século XIX, passa a ser muito utilizado como forma de controle da
fecundidade. Isso significa que, se antes era uma prática destinada às mulheres solteiras ou às
liberadas sexualmente, passa a ser utilizado no contexto conjugal. Como isso ocorre
paralelamente ao aumento do poder dos médicos, o aborto torna-se um assunto público, não
mais restrito às redes de solidariedade femininas, nas quais eram partilhados conhecimentos
sobre o funcionamento do próprio corpo. A perseguição do aborto ganha força nesse
momento justamente pelo seu uso pelos casais legítimos e como forma de controle da
fecundidade. Abalava, com isso, a prosperidade da nova ordem social, colocando em xeque,
ainda, a maternidade como destino biológico feminino.
O segundo momento histórico relevante é a partir da segunda metade do século XX,
em que é verificada a descriminalização do aborto nos Estados Unidos e em diversos países
europeus. Essa modificação legislativa insere-se num contexto de profundas modificações
sociais, caracterizada pela possibilidade de controle eficaz da fecundidade, por meio dos
novos métodos contraceptivos, e pela emergência da segunda onda do movimento feminista,
que reivindicava direitos sobre o próprio corpo, colocando na pauta os temas da sexualidade e
da reprodução.
O direito ao aborto passa a ser tido como uma das principais reivindicações da época,
inserindo-se na idéia de autonomia corporal. Consta-se, a partir da década de 60, a
descriminalização do aborto em diversos países, inclusive nos Estados Unidos e na França.
Nos Estados Unidos, a regulamentação se deu por meio do julgamento do caso Roe versus
Wade, que reconheceu o direito fundamental ao aborto. Na França, por sua vez, não se operou
uma descriminalização, mas uma tolerância, que não afetaria a proteção do direito à vida. No
Brasil, ainda que as modificações legislativas operadas nos Estados Unidos e na Europa
fizessem eco, ele se dá de forma diferenciada. Com o país imerso no regime ditatorial, as
principais manifestações eram em prol da instauração da democracia. Por isso, as
reivindicações relativas aos direitos das mulheres e ao aborto ficavam em segundo plano.
O terceiro momento histórico se dá com o advento das novas tecnologias de
diagnóstico pré-natal, gerando a discussão acerca do aborto por grave anomalia fetal. Além de
conduzir à exacerbação dos posicionamentos sobre aborto, nos casos de graves malformações
fetais a discussão complexifica-se ainda mais, com a inserção de conceitos como inviabilidade
fetal, eugenia e qualidade de vida. A possibilidade de diagnosticar intra-uterinamente
anomalias consideradas letais gera um novo capítulo no debate acerca do aborto, já que,
diante da impossibilidade de tratamento ou cura, a interrupção da gestação resta como a única
opção a ser oferecida à gestante ou ao casal.
Entra em cena o critério da viabilidade, considerado nos casos de impossibilidade de
manutenção de vida autônomo pelo feto, já que, fora do útero, com o nascimento, não mais
efetuando trocas metabólicas com a mãe, não apresenta mais condições de sobrevivência.
Passa a ser preciso, nesse momento, considerar não só a sacralidade da vida, mas também a
qualidade de vida, diante das patologias que o feto possui. O valor vida é acrescido da
dignidade. A idéia de qualidade de vida vem, portanto, conferir dignidade à vida. O conceito
de eugenia também é inserido nessa nova fase das discussões sobre o aborto, questionando-se
se é efetuada ou não uma seleção de quem mereceria viver, bem como os reflexos que o
aborto nesses casos poderia gerar para as pessoas portadoras de deficiências.
A questão do aborto por grave anomalia fetal também apresenta diversos reflexos
jurídicos. No Direito brasileiro, diante da criminalização das práticas abortivas, questiona-se
acerca da necessidade de inserção de mais uma exceção legal, além das referentes aos casos
de risco de vida para a gestante ou gravidez decorrente de estupro, contemplando a
possibilidade de abortamento em decorrência do diagnóstico pré-natal. Diante da lacuna
legislativa, cabe socorrer-se da Constituição, que, com seus princípios e direitos
fundamentais, poderia dar uma resposta ao à questão.
Assim, critérios jurídicos como o princípio da dignidade da pessoa humana e os
direitos fundamentais à vida, à liberdade e à saúde entram em cena como norteadores. A
abertura conceitual propiciada por tais direitos permite a contemplação da situação da
gestante que deseja interromper a gestação de feto portador de grave anomalia. O início da
proteção estatal da vida não é explicitado na Constituição, o que faz com que seja possível
não considerar o bem vida fetal como algo absoluto, ou mesmo que o feto possa não ser tido
como sujeito do direito à vida. A liberdade, enquanto direito que protege a autonomia não só
corporal, como reprodutiva, também pode ser suscitada nesse caso. É a liberdade da gestante
também que é geralmente oposta à tutela da vida do feto. O direito à saúde também adquire
especial relevância, já que a partir do diagnóstico da malformação fetal, é possível prever
diversas conseqüências à saúde física da gestante, sob a forma de danos ou riscos. Além disso,
contemplando-se a saúde como um estado de completo bem-estar, a saúde psicológica
também é por esse direito fundamental tutelada. É no âmbito da saúde psicológica que poderá
ser avaliado o sofrimento da gestante que deseja interromper a gravidez. Todos esses direitos
estão conectados com o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, para as mulheres
que desejam interromper a gestação de fetos portadores de anomalias letais, impedir a
realização do procedimento abortivo pode consistir numa violação à sua dignidade, já que há
uma instrumentalização dessa pessoa, a gestante, que passa a ser utilizada, contra seus
desejos, para a satisfação da vontade de terceiros.
Em consonância com tal interpretação, verifica-se a tramitação atualmente de cinco
projetos de lei, postulando a permissão da realização de abortos por grave anomalia fetal. A
partir da divulgação da ADPF nº 54/2004, o tema da anencefalia fetal ganha destaque, o que
se reflete também nos projetos de lei. Com isso, os deputados favoráveis ao aborto nos casos
de anencefalia buscavam a aprovação de uma lei nesse sentido, caso a demanda fosse
rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal. É o caso da anencefalia fetal o que parece ter maior
aceitação, já que o projeto que tem sua tramitação mais adiantada restringiu-se, por meio de
uma emenda, aos fetos anencéfalos.
É justamente em virtude da ausência de regulamentação legislativa que as gestantes e
ou os casais que desejam interromper a gravidez socorrem-se do Poder Judiciário, o que faz
com que os alvarás judiciais expedidos para garantir a realização do aborto nos casos de grave
malformação fetal consistam num verdadeiro fenômeno, verificado principalmente a partir
desta década. Por isso, uma análise dos julgados faz-se imprescindível para a verificação dos
valores considerados pelos magistrados, sejam eles referentes ao feto ou a gestante. Embora
na maioria dos acórdãos fosse verificada a expedição do alvará, o tema é controvertido,
ensejando os mais diversos posicionamentos e argumentos. Verifica-se, também, uma maior
condescendência dos julgadores com os casos de anencefalia, anomalia mais conhecida pelos
leigos. Além disso, o caráter simbólico do feto anencéfalo é bastante forte, já que ele não
possui o órgão que nos confere racionalidade, o que parece inclusive retirar-lhe o status de
humanidade.
As definições persuasivas referentes ao feto denotam a relevância da consideração do
seu status moral, o que poderá lhe conferir ou não o status de sujeito do direito à vida. Este é
aqui acrescido de considerações médicas, especialmente quando se trata de considerar a sua
inviabilidade. São, assim as considerações acerca da anomalia e das suas conseqüências que
podem desqualificar não só o feto enquanto pessoa, tema sempre controvertido, mas enquanto
ser vivo. A desconsideração de qualquer status fetal, por meio da utilização do conceito de
inviabilidade, é o que dá espaço à consideração do sofrimento da gestante. Ou seja, é porque o
feto é desvalorizado, inclusive sendo considerado como morto, em alguns casos, que o
sofrimento da gestante é valorado, que seus sentimentos e seus desejos são passíveis de
consideração jurídica. Assim, feto e gestante são colocados em pólos opostos, não como
complementares, mas como excludentes, fazendo com que a tutela de um signifique
necessariamente a ausência de tutela do outro.
As considerações sobre os riscos à vida e à saúde da gestante são menos subjetivas, já
que podem se apoiar em laudos médicos. Dessa forma, a iminência do risco de vida, as
complicações anteriores e durante o parto são expressadas e individualizadas. Termos
jurídicos dão lugar a jargões médicos, como aumento do líquido amniótico, desprendimento
do ombro fetal, hemorragia etc. Aqui se abre espaço à consideração dos danos à saúde
psicológica, geralmente nos termos da saúde mental, que poderia estar “desorganizada”,
podendo levar, inclusive ao suicídio.
A liberdade, tida desde a década de 60 como o direito que poderia garantir o aborto, é
pouco considerada nos julgados. Aqui ela é tida como a contemplação dos interesses pessoais
de cada um, cabendo ao Poder Judiciário a garantia do exercício da autonomia, por vezes em
comparação à possibilidade de interrupção da gestação que decorre de estupro. Assim,
embora a liberdade esteja implícita em todas as outras considerações sobre a gestante, ela não
é nominada. A autonomia da gestante não parece ser passível de legitimação, sendo a
consideração do seu sofrimento e dos riscos que corre mais aceitável. As mulheres são vistas,
aqui, como seres vulneráveis, que precisam ser protegidos, fazendo-se cessar, com a
autorização judicial, o seu sofrimento ou os danos ou riscos à sua saúde. A postulação do
pedido de aborto não é tida como escolha, não sendo a liberdade um critério de relevância.
O exame da ADPF nº 54/2004 permite-nos tirar conclusões semelhantes. Em primeiro
lugar, restringe-se aos casos de anencefalia, o que possui maior aceitação. Além disso, utiliza
o subterfúgio da antecipação terapêutica do parto, opondo-a ao aborto. Isso é baseado na idéia
da inviabilidade fetal. Assim, se não há vida a ser protegida, não há aborto. Não só se
transfere o debate do início para o fim da vida, como não se considera devidamente o aborto
nesses casos como escolha reprodutiva. Ele é algo que derivaria apenas das condições de
inviabilidade fetal. A gestante só é passível de consideração porque a vida do feto é
desqualificada. Centra-se o discurso novamente no feto, relegando-se a gestante a segundo
plano.
Foi preciso, para compreender o porquê das considerações verificadas no capítulo 2,
realizar uma análise mais aprofundada de questões referentes às mulheres e ao papel que o
Direito exerce na sociedade. É a partir da consideração do conceito de gênero que é possível
diferenciar o biológico daquilo que é moldado pela cultura, inclusive tendo por base o próprio
biológico. Assim, verifica-se que a cultura pode efetuar um processo de naturalização daquilo
que é socialmente construído, o que o legará ao local do não dito, do não questionado, do
desde já dado. Transpõe-se o determinismo biológico, passando-se à possibilidade de
compreensão e explicitação do papel social de gênero destinado às mulheres em uma
determinada cultura e em uma determinada época.
A maternidade insere-se aqui. Esse processo que, biologicamente, até o presente
momento, é tido como exclusivamente feminino, é representado como um local de domínio da
natureza, o que pode denotar a sua significação como o objeto central da vida das mulheres e
justificar os sacrifícios em prol do seu exercício. Além disso, se a maternidade é tida como
destino biológico, o aborto significa a negação da própria natureza e, conseqüentemente, de
um determinado papel de gênero feminino.
O aborto contraria, portanto, a idéia do instinto maternal. Ou seja, contraria os
cuidados que devem ser tidos durante a gestação, o cuidado com os filhos após o nascimento
e, sobretudo o amor incondicional que toda mãe deveria ter por seus filhos, não como algo
que se constrói, mas como aquilo que é intrínseco ao seu ser. No entanto, no momento em que
passa a ser possível o controle da fecundidade, as mulheres podem dominar melhor sua
própria natureza. A interdição do aborto por grave anomalia fetal, portanto, também está
ligada ao ideal da maternidade enquanto destino biológico. Assim, a mulher que interrompe a
gestação devido à condição de seu feto não está exercitando a maternidade, não sendo
considerada uma boa mãe e não se inserindo nos padrões de feminilidade. Esses, no que se
refere à maternidade, incluem, ainda, o sacrifício ou até mesmo o masoquismo. Assim,
nenhum sofrimento poderia embasar a escolha pelo aborto. Postular o aborto é, portanto,
ressaltar o caráter cultural e social da maternidade, além de romper com o destino biológico. É
explicitar os componentes construídos culturalmente inseridos no ideal de maternidade, sob o
prisma do amor materno. É a partir disso que passa a ser possível conceber a maternidade (e
mesmo a sua negação, por meio do aborto), como direito.
A noção de direitos sexuais e reprodutivos, enquanto aqueles direitos que provêm de
grupos sociais, ou seja, que têm origem fora do âmbito estatal, trata de confrontar a noção da
sexualidade e da reprodução como inerentes ao âmbito biológico. Assim, seriam passíveis da
aplicação da racionalidade do Direito, especialmente sob o signo da autonomia dos
indivíduos. Não se restringem a isso, contudo, contemplando também a necessidade de
intervenção estatal, no sentido de garantir os meios para que essa autonomia possa ser
exercida. Trata-se de direitos complexos, que congregam tanto a noção de direitos civis,
quanto de direitos sociais. A partir de sua formulação, postula-se que sejam garantidos os
serviços necessários para que se possa efetivar o direito ao planejamento familiar, ao acesso
aos métodos contraceptivos, aos cuidados com a maternidade e ao aborto seguro. No que
tange à reprodução, esta não pode mais ser alvo, com base nessa nova noção de direitos, de
políticas verticais, como as que eram efetuadas com o objetivo de controlar a natalidade, que
desconsideram a autonomia reprodutiva dos cidadãos. Nesse contexto, verifica-se diversos
instrumentos internacionais, e inclusive alguns nacionais, que legitimam os direitos sexuais e
reprodutivos.
Apesar da noção de direitos sexuais e reprodutivos, que insere a sexualidade e a
reprodução no âmbito dos direitos, justamente por não concebê-las como algo restrito à
natureza, o Direito institucionalizado continua a reproduzir a visão contrária, o que pôde ser
visualizado sobretudo nas decisões judiciais e nos argumentos utilizados na ADPF nº
54/2004. Denota-se daí, uma vinculação entre Direito e ideologia, concebendo-o como um
instrumento que permite a manutenção de um determinado status quo.
O Direito, concebido como fenômeno
ideológico, atua como forma de dominação e
de exercício de poder. No caso em questão
neste trabalho, ele delimita aquilo que pode ser
nominado, aquilo que pode ser explicitado,
inserindo e excluindo discursos, dependendo
da possibilidade ou não de legitimação. Isso é
ideológico porque se faz de forma velada,
porque esse poder não é explicitado. Os
discursos são naturalizados, sendo tidos como
pré-dados e imutáveis. Nos discursos acerca
do aborto por grave anomalia fetal, a
vinculação da moralidade do aborto sobretudo
à pessoalidade ou viabilidade do feto, a
desconsideração da gestante como sujeito
capaz de efetuar escolhas morais e a
naturalização do papel social de gênero
feminino e da reprodução como algo inerente à
natureza, não passível da aplicação da
racionalidade, consistem em formas
ideológicas de tratamento da questão.
O Direito opera aqui como um produtor de verdades. A viabilidade pode ser verdade.
Dela dependem as considerações sobre a gestante. Os riscos à sua vida podem ser verdades.
Os riscos à sua saúde, também. Até o seu sofrimento pode ser uma verdade, mas a liberdade,
não. A possibilidade de escolha, a elevação das mulheres à maioridade moral não consiste
numa verdade passível de legitimação pelo Direito. O Direito consiste, portanto, num
poderoso instrumento na perpetuação do papel social de gênero atribuído às mulheres,
inclusive no que tange aos mitos relativos à maternidade. Legitimam-se, assim, as crenças
segundo as quais a reprodução não pode ser possível de racionalização, segundo as quais o
amor materno é instintivo e incondicional. Normaliza-se aquilo que pode ser postulado pelas
mulheres, normalizando-se o que pode ser tido como de seu domínio: apenas o biológico, não
o racional. A reprodução faz parte do seu domínio, mas escolhas reprodutivas, não. Por isso, a
gestante, mesmo nos casos em que tem seu pedido atendido, é considerada como vítima da
fatalidade de ter gerado um ser portador de grave anomalia. Por isso sua liberdade não pode
ser considerada.
É porque o Direito consiste num fenômeno ideológico que é preciso descaracterizar a
vida do feto, utilizando-se o argumento da inviabilidade fetal, para autorizar a realização do
aborto. Só a partir daí a gestante merecerá consideração jurídica, sendo os riscos à sua saúde e
o seu sofrimento valorados. Com isso, oculta-se essa colocação da gestante em segundo
plano, denotando-se a pretensa existência de um jogo de forças entre feto e gestante presente
no aborto, colocando-se a valorização de um como intrinsecamente dependente da
desvalorização do outro.
Conectando-se as questões ideológicas referentes ao Direito com o que já foi exposto
sobre gênero e maternidade, percebe-se que ele apenas reproduz concepções sociais. No caso
do aborto por grave anomalia fetal, é questionado não apenas o status do feto, mas também o
status da gestante, o qual está ligado ao papel social de gênero feminino tido por ideal.
Contudo, a partir da possibilidade de controle da própria fecundidade, o que é exacerbado
com o recurso ao aborto, a maternidade passa a ser escolha, adquirindo outro sentido. Se a
reprodução é tida como um processo eminentemente biológico, não é possível considerá-la
como sendo passível de escolhas. As mulheres, porque conectadas à reprodução, seu destino
natural, também não seriam seres passíveis de escolhas morais. Não é a gestante, dessa forma,
considerada como sujeito, mas como objeto, que será regulado pelos discursos médicos,
acerca dos riscos que corre e da possibilidade de vida extra-uterina do feto que carrega, ou
jurídicos, considerando-se que o direito à liberdade não é algo contemplado nesse caso.
Coloca-se, por fim, a gestante e o feto como pólos antagônicos e independentes. Por
isso seus interesses podem ser opostos, havendo um conflito entre a vida e a liberdade.
Juridicamente, isso é traduzido como se a garantia dos direitos de um violasse os direitos do
outro. No entanto, feto e gestante estão intrinsecamente, e não só biologicamente, ligados. O
feto só existe, e continua a existir, devido ao desejo (e à liberdade) da mulher. Por isso, a
liberdade não é oposta à vida, mas está à ela ligada. Até porque a vida não é um bem restrito
ao feto, mas antes pertencente à gestante que, por isso, pode conferir a vida a outro ser. Por
isso, a escolha pelo aborto não necessariamente transgride o valor da vida, podendo inclusive,
o afirmar. Isso porque as escolhas morais relativas à reprodução, feitas pelas mulheres, não
são necessariamente escolhas egoístas, estando também em conformidade com a
responsabilidade que o poder de gerar lhes confere frente à vida e, conseqüentemente aos
outros seres. Isso faz com que as mulheres sejam colocadas como sujeitos morais, capazes de
tomar decisões no campo reprodutivo, incluindo a relativa ao aborto de feto portador de grave
anomalia. Dessa forma, sendo a reprodução uma escolha, pode o aborto nesses casos ser
afirmado como um direito, já que a maternidade passa a ser passível de racionalização.
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