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Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geram a poesia. O imitar é
congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele
o mais imitador e, por imitação, apreende as primeiras noções), e os homens
se comprazem no imitado [...] Sendo, pois, a imitação própria de nossa
natureza (e a harmonia e o ritmo, porque é evidente que os metros são partes
do ritmo), os que ao princípio foram mais naturalmente propensos para tais
coisas, pouco a pouco, deram origem à poesia, procedendo desde os mais
toscos improvisos (ARISTÓTELES, 1994, p. 106-107).
Marysson Siqueira Borges (2001), ao refletir sobre a vinculação entre arte e máscara,
também cita Aristóteles, assim como vários nomes que seguiram a mesma linha de raciocínio
do pensador grego. Entre eles, o pesquisador destaca Erich Auerbach com suas reflexões
propostas no epílogo de Mimeses, as quais permitem inferir que a verossimilhança, conforme
já mencionamos, consolida a concepção da obra literária enquanto imitação, sendo que o
fingimento é o próprio objetivo almejado pela arte. Para sustentar sua argumentação, Borges
ampara-se, ainda, na etimologia do termo “ficção” que, derivado do latim fingere, associa-se
às idéias de dissimulação, imaginação e composição, o que nos faz concluir que o ato de
criação artística está, de fato, relacionado aos conceitos de invenção e fingimento.
“Corações solitários”, conto escolhido para esta investigação, tem como ingrediente
essencial o ato de fingir. A perspectiva enganosa perpassa toda a trama. Tal narrativa conta a
história de um jornalista, ex-repórter de polícia, que, após ser dispensado de seu antigo
emprego, consegue trabalho no jornal Mulher, uma publicação de baixo conceito: “formato
tablóide, manchetes em azul, algumas fotos fora de foco. Fotonovela, horóscopo, entrevistas
com artistas de televisão, corte-e-costura” (FONSECA, 1993, p.26).
A ironia e a dissimulação já são postas à mostra nas primeiras linhas do conto quando
o jornalista, que é também o narrador do texto, conta ao editor do jornal que só perdeu o
antigo emprego porque a sociedade andava muito pacata, sem crime algum, de modo que ele,
como repórter policial, não tinha assunto para as suas matérias:
Eu trabalhava em um jornal popular como repórter de polícia. Há muito
tempo não acontecia na cidade um crime interessante envolvendo uma
rica e
linda
jovem da sociedade, mortes, desaparecimentos, corrupção, mentiras,
sexo, ambição, dinheiro, violência, escândalo.
Crime assim nem em Roma, Paris, Nova York, dizia o editor do jornal,
estamos numa fase ruim. Mas daqui a pouco isso vira. A coisa é cíclica,
quando a gente menos espera estoura um daqueles escândalos que dá matéria
para um ano. Está tudo podre, no ponto, é só esperar.
Antes de estourar me mandaram embora (FONSECA, 1993, p.25).