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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
SABRINA MARIA DE AMORIM
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ARARAQUARA
SP.
2007
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SABRINA
MARIA
DE
AMORIM
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SABRINA MARIA DE AMORIM
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Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação da Faculdade
de Ciências e Letras Unesp/Araraquara,
como requisito para obtenção do título de
Mestre em Letras.
Linha de pesquisa: Teorias e crítica da
narrativa.
Data de aprovação: 15/02/2007
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EMBROS COMPONENTES DA
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ANCA
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XAMINADORA
:
Presidente e Orientadora:
Profª Drª Sylvia Helena Telarolli de Almeida Leite
Depto. de Literatura – FCL – UNESP – Araraquara
Membro Titular: Profª Drª Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan
Depto. de Literatura – FCL – UNESP – Araraquara
Membro Titular:
3
À minha mãe por sempre permitir que eu
colocasse os estudos em primeiro lugar;
Ao meu pai que, de de cima, olha por
mim;
À minha irmã pelo apoio afetivo e
incansável assistência;
Ao meu irmão por mostrar-me o quão
importante é trabalhar com aquilo de
que gostamos.
4
AGRADECIMENTOS
A Deus.
À minha orientadora pela confiança, presteza e subsídio intelectual.
Às amigas do curso de Letras e do PPG em Estudos Literários pelo
companheirismo em todos os momentos.
À minha família pelo incentivo e amor, ingredientes essenciais para a
realização deste estudo.
5
“Catar feijão”
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.
(MELO NETO, J. C. de, 1975, p.18-19)
6
RESUMO
Esta pesquisa investiga como se dá a elaboração metatextual na produção contística de Rubem
Fonseca e qual a função da utilização deste recurso dentro do conjunto da obra do autor. Nos
textos em estudo, um questionamento acerca do exercício literário, da tradição artística e
do papel do escritor na sociedade contemporânea inserido nas entrelinhas das narrativas, e os
contos, ao proporem este tipo de reflexão da arte sobre si mesma, acabam sendo objetos de
pelo menos duas leituras: a ficcional e a da crítica sobre essa ficção. A metatextualidade,
portanto, faz com que o texto literário absorva o discurso crítico e, para isso, recorre a
diversos procedimentos, tais como: a intertextualidade, a paródia e a ironia, recursos estes que
exploram a duplicidade de sentidos, tão proveitosa ao trabalho metatextual. O debate sobre a
literatura elaborado dentro do texto literário é, pois, portador de uma interação de múltiplas
vozes, de cruzamentos de textos e de uma série de interpretações, a ponto de diversos sentidos
críticos coabitarem com um significado aparente do texto, isto é, um significado superficial,
depreendido de uma leitura mais ingênua da narrativa. Essa multiplicidade de sentidos torna o
texto uma espécie de labirinto, no qual o leitor escolhe o trajeto a seguir, ou melhor, o sentido
a dar ao texto, de acordo com algumas marcas indicadas nos enredos, com seu próprio
repertório cultural e sua bagagem de leituras. A produção de Rubem Fonseca é pensada nesses
termos, de maneira que, por meio das artimanhas do texto, poderemos mostrar que a obra
fonsequiana é muito rica em reflexões sobre o universo literário e sobre a condição da arte no
contexto atual.
Palavras-chave: Rubem Fonseca. Metatextualidade. Intertextualidade. Paródia. Ironia.
7
ABSTRACT
This research investigates how the metatextual elaboration happens in Rubem Fonseca’s
short-story production, and what is the function of the utilization of this resource inside the
author’s work. In the texts studied, there is a questioning on the literary exercise, on the
artistic tradition and on the role of the writer in the contemporary society indirectly inserted in
the narrative, and the short-stories, when proposing this kind of reflection of the art on itself,
turn out to become objects of at least two readings: the fictional reading and the one from the
critic about this fiction. The metatextuality, hence, makes the literary text absorbs the critical
discourse and, in order to achieve it, draws on several procedures as: the intertextuality, the
parody and the irony, resources that exploit the duplicity of meanings, so beneficial to the
metatextual work. The debate about literature built inside the literary text is the bearer of an
interaction of multiple voices, crossings of texts and an array of interpretations so that several
critical meanings can co-inhabit with an apparent meaning of the text, or a superficial
meaning taken from a naiver reading of the narrative. This multiplicity of meanings makes the
text a kind of maze in which the reader chooses the way to be followed or the meaning that
will be given to the text according to some impressions indicated in the plots, with his/her
own cultural repertory and reading history. Rubem Fonseca’s production is thought in these
terms, so that, because of the dodges of the text, we will be able to show that the work of
Fonseca is very rich in reflections about the literary universe and the condition of art in the
present context.
Key-Words: Rubem Fonseca. Metatextuality. Intertextuality. Parody. Irony.
8
SUMÁRIO
1 Apresentação...............................................................................................................9
2 No rastro do autor....................................................................................................12
3 Percorrendo o labirinto do texto.............................................................................28
3.1 A intertextualidade.................................................................................................32
3.2 A paródia................................................................................................................36
3.3 A ironia..... .............................................................................................................41
4 Antropofagia: ritual histórico e criação literária..................................................46
5 O mundo às avessas à maneira de Fonseca: Godard e Shakespeare
revisitados....................................................................................................................54
6 Corações solitários, corações dissimulados: a arte do fingimento.......................64
7 Ler a cidade, ler o texto: o submundo tornado palavra na narrativa de
Fonseca.........................................................................................................................75
8 Um olhar sobre o texto de ficção: a literatura no espelho....................................89
9 Intestino grosso: “a verdade é aquilo em que se acredita”...................................98
10 Considerações finais.............................................................................................107
REFERÊNCIAS........................................................................................................113
9
1 Apresentação
Seguindo uma tendência dos autores de sua geração de espelhar a realidade em suas
narrativas, Rubem Fonseca trabalha constantemente com a problemática social, trazendo
como temas centrais de seus contos a violência, as perversões sexuais e os distúrbios dos
grandes centros urbanos. A questão da brutalidade e dos conflitos mundanos fazem, de fato,
parte da poética fonsequiana e estão explicitados nas narrativas do autor. Em vista disso,
uma vertente da crítica literária que tem se dedicado predominantemente à investigação desse
aspecto na obra de Rubem Fonseca, no entanto, a produção literária do autor suscita inúmeras
reflexões que extrapolam esse recorte temático.
Com o intuito de contribuir para o alargamento dos estudos críticos sobre a produção
de Rubem Fonseca, o nosso interesse maior neste trabalho é explorar os aspectos ligados à
criação artística do autor e evidenciar que, ao lado de um debate sobre o homem e as mazelas
da sociedade contemporânea, é possível atentar para as perspectivas estéticas que o próprio
texto literário revela por meio do seu questionamento, encoberto nas entrelinhas dos enredos,
acerca do universo artístico. Nesse sentido, esta dissertação de mestrado propõe rastrear a
produção contística de Fonseca sob o recorte da metatextualidade processo que estabelece
uma reflexão crítica sobre o fazer literário inserida na própria escritura do texto ficcional.
Com efeito, Rubem Fonseca é representante de uma atual inclinação da arte literária
de elaborar uma discussão sobre a literatura conjugada à própria história narrada,
evidenciando, no espaço textual, tanto um enredo aparentemente ingênuo quanto uma
avaliação crítica sobre ele, de modo que, dessa forma, a qualidade estética de seu texto não se
confunde com a história contada, a qual pode apresentar um enredo que, muitas vezes, parece
ser banal.
Rubem Fonseca joga com o leitor menos avisado; a ilusão de que seus contos são
superficiais, porém, a construção dos enredos convida para uma leitura mais atenta. Destarte,
o texto se apresenta como um labirinto em que vários sentidos podem ser escolhidos, sendo
que alguns dos recursos que muito propriamente dão vida a essa multiplicidade significativa
são a intertextualidade, a paródia e a ironia, desdobramentos da prática metatextual.
No que toca à intertextualidade, é bom lembrar que a literatura se concretiza num
constante diálogo entre textos, temas e estilos e, quando uma obra presentifica um discurso
alheio em seu próprio discurso, ela acaba emitindo um olhar crítico sobre este discurso e
sobre si própria, promovendo, portanto, a auto-reflexividade. A paródia, por sua vez, também
se define no diálogo intertextual e, ao confrontar textos para lhes modificar o sentido original,
10
ela, da mesma forma, também está refletindo criticamente sobre as suas maneiras de
interpretação e construção. a ironia, com sua duplicidade de sentidos, sempre ecoa de
textos que fazem uso da metatextualidade, na medida em que esse procedimento, por
caracterizar-se pela ambigüidade, recusa uma leitura ingênua e linear do texto literário.
Pensando nessas questões, o nosso trabalho se encaminha no sentido de mostrarmos a
astúcia, a destreza, as artimanhas do texto literário, a sua habilidade de disfarçar sentidos mais
profundos nas “brechas” das narrativas, o que é feito por meio da reflexão metatextual. Para
tanto, a pesquisa está dividida em dez capítulos: o primeiro é justamente esta “Apresentação”;
o segundo traz considerações a respeito da trajetória profissional e literária de Rubem Fonseca
e faz um levantamento dos temas mais freqüentes na produção do autor; o terceiro contém o
aparato teórico que dá sustentação às nossas reflexões; do quarto ao nono capítulo são
sugeridas possíveis leituras para os seis contos (“Nau Catrineta”, “À maneira de Godard”,
“Corações solitários”, “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, “Olhare “Intestino
grosso”) que compõem o corpus deste trabalho, sendo que, cada conto, apesar de apresentar
um tema específico, tem a reflexão metatextual como o elemento que norteia a sua construção
e o décimo capítulo refere-se à conclusão de nossos estudos.
Ressaltamos que são apenas sugestões de leitura, visto que cada um é livre para seguir
o seu caminho nesse labirinto de sentidos que é o texto literário. Nossa proposta é antes
chamar a atenção do leitor de Rubem Fonseca para a multiplicidade de leituras que os textos
ficcionais inspiram, de forma que ele fique atento com relação aos enredos, a priori,
simplificados. Um dos nossos enfoques será, portanto, o questionamento acerca do ato de ler
que é muitas vezes abordado dentro dos próprios contos de Rubem Fonseca, os quais deixam
sempre resplandecer a noção de que a leitura dinamiza o sentido das obras literárias, como
propriamente argumenta o crítico Roger Chartier (1999, p.9), em A Ordem dos Livros:
As obras mesmo as maiores, ou sobretudo, as maiores não m sentido
estático, universal, fixo. Elas estão investidas de significações plurais e
móveis, que se constroem no encontro de uma proposição com uma
recepção. Os sentidos atribuídos às suas formas e aos seus motivos
dependem das competências ou das expectativas dos diferentes públicos que
delas se apropriam. Certamente, os criadores, os poderes ou os experts
sempre querem fixar um sentido e enunciar a interpretação correta que deve
impor limites à leitura (ou ao olhar). Todavia, a recepção também inventa,
desloca e distorce.
11
A leitura dá, pois, nova vida ao texto ficcional, sendo que cabe ao leitor decodificá-lo,
ou seja, interpretá-lo. Entretanto, quando utilizamos o termo “decodificar”, não estamos
considerando que o texto seja uma espécie de “código cifrado” e, portanto, inatingível e
obscuro, mas defendemos a idéia de que ele possui certas marcas, pistas de leitura que podem
e devem ser seguidas para um entendimento mais profundo da narrativa.
Ademais, a reflexão metatextual, ao desvelar o processo de escritura e, como
conseqüência, mostrar que por trás do enredo diversos questionamentos referentes à
literatura, colabora para que seja exposta a sobreposição de sentidos existente em determinada
obra literária. Por isso, o texto que, nesse sentido, é objeto artístico e, ao mesmo tempo, crítica
sobre esse objeto revela-se plenamente ao leitor como tendo uma gama imensa de
significações que vão além das que estão num nível mais explícito das narrativas.
Assim, com este trabalho, centrado nas manifestações da metatextualidade,
pretendemos mostrar como a obra fonsequiana possibilita, ao se percorrer suas camadas mais
internas, que seja depreendida uma criteriosa investigação sobre o universo artístico e acerca
do papel desempenhado pela literatura, pelo escritor e pelo leitor no contexto da
contemporaneidade, ou seja, os contos selecionados não apenas desvendam o fazer literário,
mas também refletem sobre a função da arte na atual sociedade moderna.
Dessa forma, procuramos colaborar para a ampliação dos estudos analíticos e críticos
sobre a produção de Fonseca que não possuem como ponto de partida apenas uma
investigação histórico-sociológica para a compreensão da obra fonsequiana, mas
evidenciaremos que, a partir do texto ficcional, é possível abordar questões referentes à
própria literatura. Além disso, uma vez que constatamos que grande parte da bibliografia
referente ao autor versa sobre o modo como a violência e o erotismo estão presentes em suas
criações, propomos com esta dissertação fornecer um outro olhar sobre a ficção fonsequiana,
no sentido de trazermos à baila aspectos estéticos, relativos à elaboração textual, como um
ponto importante para a compreensão do conjunto da produção de Rubem Fonseca.
Por fim, visto que queremos incitar um debate sobre a obra do autor, a qual esteve
freqüentemente rotulada pela crítica como uma literatura fácil e voltada a um público pouco
exigente, nosso estudo está direcionado para o texto ficcional em si e seu processo de
construção, pois é dele que são geradas as diversas leituras que, ao serem exploradas, podem
diluir uma possível visão restrita acerca da produção fonsequiana. Por isso, tomamos como
um dos principais pontos de referência à própria ficção e dela extraímos o teor crítico que
deve ser levado em conta quando se estuda qualquer narrativa do escritor Rubem Fonseca.
12
2 No rastro do autor
José Rubem Fonseca, conhecido como Rubem Fonseca, é escritor mineiro nascido em
meados da década de 1920, cuja personalidade pouco se conhece. Trata-se, talvez, do
primeiro “embaraço” com que nos deparamos ao iniciar esta pesquisa, visto que, embora não
nos preocupemos com aspectos biográficos do autor para a compreensão de seus textos, é
natural, e até mesmo pertinente, arrolarmos informações a respeito da figura cujas obras nos
propomos a investigar. O que se sabe é que Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora (MG) e
mora no Rio de Janeiro desde os oito anos de idade, cidade onde se formou em Direito e na
qual exerceu diversas profissões antes de dedicar-se à carreira de escritor, tais como:
entregador de uma oficina de couro, policial de rua, executivo da Light e diretor do Ipes
(Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais).
Em reportagem publicada na Folha de S. Paulo do dia 07 de maio de 2005, na
semana em que Fonseca completaria 80 anos, tivemos acesso a alguns fatos pouco divulgados
sobre a vida particular do autor, como sua rotina (Fonseca acorda por volta das 5 horas da
manhã e divide seu tempo entre a leitura de notícias na Internet, a caminhada pelo Calçadão, a
companhia constante de livros e filmes, bem como a de seus filhos e amigos, e a escrita,
diária, de muitas palavras no seu computador), suas manias e sua preferência pelo anonimato.
Inclusive, tal matéria, que tem como título “José, 80” e subtítulo “O escritor Rubem Fonseca
chega a oito décadas de idade querendo ser um ‘José comum’ ”, tem como destaque mostrar
justamente essa tendência mais reservada que o autor tem seguido durante os anos de sua
carreira como escritor.
Rubem Fonseca é, de fato, pouco afeito a expor sua vida pessoal e a conceder
entrevistas a qualquer órgão de comunicação (nem mesmo nos momentos de maior polêmica,
quando da censura, pelos agentes ditatoriais, de seu livro Feliz Ano Novo (1975), da Editora
Artenova, Fonseca se pronunciou ao seu público e à crítica). Talvez, a referência mais
explícita da vida de Rubem Fonseca encontra-se no site do escritor, o Portal Literal, com uma
narrativa autobiográfica intitulada: “José Uma História em Cinco Capítulos”, texto este que
cobre apenas a infância do autor – quando ele se mudou de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro
devido à falência da loja que era de propriedade de seu pai e parte da sua adolescência, fase
marcada por uma enorme paixão pelos livros.
Fonseca mora atualmente no centro do Rio de Janeiro, e suas andanças pelos bairros
cariocas o fizeram quase um perito nos assuntos relacionados às grandes metrópoles. Ele
observa a cidade e escreve sobre ela, refletindo muito em seus enredos sobre o seu momento
13
histórico, sobre as mazelas da sociedade de consumo de uma forma geral e sobre o próprio
homem como ser social que é. Todavia, o escritor não adere simplesmente e superficialmente
à dinamicidade externa e a inscreve em suas criações, mas organiza esta realidade de forma
tão orgânica dentro de suas narrativas de maneira que esta postura possibilita uma série de
reflexões sobre o modo como o texto literário se apropria desse material extra-literário para
construir-se enquanto objeto ficcional.
Rubem Fonseca não utiliza a realidade como uma espécie de substância bruta que
serve para a elaboração de suas histórias, substância esta sobre a qual é dado o estatuto de
algo ficcional (e não de cópia), como também se preocupa com os outros textos que rodeiam
os seus, isto é, o autor elege o diálogo com obras, escritores e personagens como um recurso
propício para a criação de seus enredos, formando um todo que, ao mesmo tempo que olha
para o exterior (ou seja, para a realidade e para as outras produções) é, ao mesmo tempo,
concatenado e internamente coerente.
O fato é que, talvez, este capítulo se tornaria desnecessário, uma vez que a melhor
maneira de conhecer o escritor Rubem Fonseca é voltar a nossa atenção diretamente para as
suas criações literárias e, por meio delas, tentar compreender os motivos, as escolhas de
Rubem Fonseca e, por que não, até um pouco da sua maneira de pensar. Entretanto, se nosso
objetivo neste momento é seguir o rastro do autor José Rubem Fonseca, a maneira mais eficaz
para atingirmos nossa proposta é (além da investigação direta de seus livros) seguir o rastro da
trajetória profissional do autor e a da evolução de sua obra, tanto com relação ao
desenvolvimento de suas temáticas preferidas quanto no que concerne à recepção de sua
produção junto ao público e à crítica especializada. Nesse sentido, o presente capítulo se
justificaria.
Assim sendo, sabe-se que hoje Rubem Fonseca é reconhecido no âmbito cultural como
um dos mais renomados escritores da literatura contemporânea, tendo recebido, em 2004, na
Espanha, o Prêmio “Rosalia de Castro” e, em 2003, o Prêmio “Luís de Camões”, o qual fora
concedido pelos governos do Brasil e de Portugal, além do Prêmio de Literatura Latino-
americana e do Caribe “Juan Rulfo”, este último das mãos de Gabriel Garcia Márquez. Com
relação ao “Prêmio Luís de Camões”, considerado o Nobel da nossa literatura, Zuenir
Ventura, um dos jurados que deu a vitória ao brasileiro, afirmou que a escolha do ganhador
foi a mais rápida entre a realizada. Porém, o nome de Rubem Fonseca ao prêmio foi
indicado não por brasileiros, mas pelos portugueses e africanos, e o autor foi bastante
elogiado pelo seu experimentalismo com a linguagem e pelo crescimento constante do
14
interesse pela sua obra, tanto entre o público (inclusive o público jovem), quanto entre a
crítica.
Com o lançamento da antologia 64 Contos, de Rubem Fonseca, em novembro de
2004, abriu-se novamente o debate sobre a literatura do autor. Em artigo publicado em
fevereiro de 2005 no jornal Folha de S. Paulo, Adriano Schwartz, pesquisador da USP,
ressaltou a influência que Fonseca exerce nos escritores de hoje e o considerou uma grande
referência da literatura brasileira:
Com seus textos cue 5585( )-18.-2.4623i2scx c 5511.38-18.-2.4623i216.6752( )a1.91977(x)n8.-2.4623i2c1.91977(x)-1.91977(x)-2.53846( )-0.1465869 ccxxe 5585( )--4.77687(o)10.576(s)2997(e)3.7-500.448(c)f( 5511.38-18.-2.4623i2i( 5585( )--500.448(c)aTJ271.3.8 0 Td[(a)10.576(s)-2.53846( )-500.448(c)-0.2955739o)-0.2955739o)u0.2955739o c
15
e abarcar os problemas trazidos pela dependência cultural e econômica, pela violência e pela
marginalidade que assola os grandes centros urbanos do nosso país. Incluímos nesta segunda
fase as narrativas fonsequianas de cunho policial. Sabe-se que antes de integrar-se ao ramo
das
letras, Fonseca foi investigador de polícia e que teve formação em Direito, fatos estes que
o autorizaram, em certo sentido, a escrever com alguma “veracidade” sobre o mundo do crime
e da crueldade que domina este mundo.
Além dessas duas tendências bem definidas a que apresenta um maior lirismo e
subjetividade e a outra que abarca o banditismo e o mundo da violência, Silviano Santiago,
em artigo também publicado na Folha de S. Paulo de maio de 2005, denomina uma terceira
fase da ficção fonsequiana iniciada, segundo ele, com o livro A Confraria dos Espadas (1998):
uma fase notadamente marcada por nonsenses. A argumentação do crítico é que Fonseca
propõe denunciar o senso comum, que se baseia em escrever histórias que simplesmente
narram fatos e criam personagens, legado pela tradição literária, para alimentar enredos
niilistas, que evidenciam a atual condição do universo e do ser humano de serem cada vez
mais, eles próprios, desprovidos de significação.
É possível estabelecer ainda uma outra fase cujos traços são observados até mesmo
antes da Confraria e que, na verdade, vem sendo estudada na Academia algum tempo,
mas que mereceria um estatuto mais
bem definido como uma das vertentes da poética
fonsequiana: a que se presta à metaficção, à reflexão crítica sobre a arte e sobre a cultura de
um modo geral depreendida da própria história narrada. Tais fases, convém ressaltar, não são
de modo algum estanques, uma vez que, por vezes, elas se interpenetram (Fonseca cria, por
exemplo, uma narrativa policial que, utilizando da metaficção, aborda em seu interior o
próprio fazer literário).
Ao lado de um movimento progressivo, ou evolutivo, das idéias, dos temas e até da
linguagem das narrativas, nota-se também uma mudança na postura do narrador dos contos,
que se torna mais objetivo e até mesmo mais irônico. Na vertente da produção fonsequiana
que estamos estudando, mais especificamente, esse narrador é sempre um escritor ou um
jornalista, enfim, um intelectual, um homem das letras que reflete criticamente sobre a sua
função na sociedade. É, em diversas ocasiões, um ente debochado, que dialoga implicitamente
com o leitor, fazendo com que este estabeleça inúmeros questionamentos e participe na
própria construção do sentido dos enredos; ainda, tal narrador exige desse leitor um repertório
cultural, necessário para mobilizar, no momento propício, os mais variados campos da arte e
da literatura.
16
Fonseca um tratamento peculiar aos seus narradores e chega, em inúmeras
histórias, a contrariar a definição de narrador pós-moderno, definição esta que pode ser vista,
por exemplo, no muito citado artigo “O narrador pós-moderno” (1989), de Silviano Santiago.
O estudioso considera como narrador característico do nosso tempo aquele que narra de fora
dos acontecimentos, isto é, aquele que não está inserido diretamente na ação, mas pode contá-
la a partir da sua observação:
Tento uma primeira hipótese de trabalho: o narrador pós-moderno é aquele
que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter
ou de um espectador. Ele narra a ão enquanto espetáculo a que se assiste
(literalmente ou não) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala
de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante (SANTIAGO, 1989,
p.38).
A segunda hipótese proposta por Santiago tem uma estreita relação com a questão da
verossimilhança de determinada criação e com a própria construção ficcional, conforme pode
ser averiguado no excerto a seguir:
Tento uma segunda hipótese de trabalho: o narrador pós-moderno é o que
transmite uma ‘sabedoria’ que é decorrência da observação de uma vivência
alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da
sua existência. Nesse sentido, ele é o puro ficcionista, pois tem de dar
‘autenticidade’ a uma ação que, por não ter o respaldo da vivência, estaria
desprovida de autenticidade. Esta advém da verossimilhança que é produto
da lógica interna do relato. O narrador pós-moderno sabe que o ‘real’ e o
‘autêntico’ são construções da linguagem (SANTIAGO, 1989, p.40).
Para o crítico, o narrador pós-moderno narra os acontecimentos não a partir de sua
vivência mas, sim, da sua observação. Trata-se, portanto, de um narrador mais contemplativo,
contudo, nem por isso menos prestigiado; pelo contrário, seu valor está no trabalho em
fornecer legitimidade a um fato que é conhecido por meio de seus olhos, ou melhor, de
suas palavras. A figuração deste tipo de narrador dificulta, pois, uma correspondência direta
entre ficção e realidade.
No caso da produção de Rubem Fonseca vemos que nem sempre esses atributos do
narrador pós-moderno, sugeridos por Silviano Santiago, são seguidos à risca. Analisando os
contos selecionados no corpus desta pesquisa, por exemplo, é possível constatar que apenas
“A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro” traz a figura do narrador que não participa da
17
ação, mas a observa de fora. Nos demais textos, os narradores são atuantes, os acontecimentos
são vividos por eles e, a partir de então, conta-se uma experiência própria, particular. No
conjunto da obra do autor, o que se verifica é que algumas vezes os contos são narrados em
primeira pessoa e outras em terceira pessoa, sendo que a opção por um narrador autodiegético
é a que predomina na maior parte dos textos do escritor.
A focalização interna e o fato de a história ser contada pelo protagonista têm um efeito
especial nos seus contos, uma vez que tal escolha ao texto um ar de suspense: o leitor está
sempre a espera de saber o que aconteceu com a personagem, mas o narrador conduz a
narrativa à sua maneira, a seu tempo e, na sua posição de “dono” da narrativa, pode provocar,
propositadamente, essa maior expectativa no leitor, levando, conseqüentemente, a uma dose
de ironia e de humor.
O narrador de Fonseca não fala com grandiloqüência; seu discurso não é pomposo e
não uma preocupação com o bem-falar. É essa atitude muito distinta do narrador
culto
tradicional que torna o texto quase a-literário, já que não existe a ânsia pela beleza no
escrever. Além disso, o se verifica o juízo crítico sobre o que está sendo contado, não
quem emita julgamentos, quem diga se a personagem agiu ou não corretamente.
Ainda, quando se estuda a questão do narrador fonsequiano, por algumas vezes
esbarra-se na confusão entre autor empírico e personagem, acreditando que as personagens
são porta-vozes do autor. Isso acontece justamente porque nas narrativas em primeira pessoa
os limites entre enunciado e enunciação são mais tênues, contudo, não se pode esquecer que
estamos tratando unicamente do plano da ficção, portanto, qualquer identificação superficial
entre autor empírico e personagem é ilusão.
Neste estudo interessa-nos, principalmente, a figura dos narradores-escritores. São eles
que tornam mais produtiva a expressão da metatextualidade nos contos de Rubem Fonseca,
isso por debaterem, dentro do próprio enredo e diante do leitor, o perfil do escritor na
atualidade. A função do escritor e seu papel na sociedade contemporânea são, pois,
freqüentemente discutidos em diversos textos que trazem como protagonista um intelectual,
um autor de livros ou jornalista. Para citar apenas alguns exemplos disso, temos a figura do
escritor que se deixa dominar pelos ditames do mercado cultural, sendo capaz de qualquer ato
para atingir o almejado sucesso, como ocorre em “Agruras de um jovem escritor”, do livro
Feliz Ano Novo (1975) ou, ainda, a figura do jornalista de “Corações solitários”, conto
também pertencente a Feliz Ano Novo, que aceita se submeter a uma publicação de baixo
conceito, o jornal Mulher, o qual redige fotonovelas e possui um falso consultório
sentimental, para poder sobreviver na sua carreira.
18
Como um autor que debate sobre questões do seu tempo, Fonseca chama a atenção
para a atual situação do escritor, o qual precisa se inserir no mercado para poder ser lido por
um grande público consumidor, que precisa incluir-se num sistema maior chamado indústria
cultural.
Todavia, para depreendermos o sentido Da metatextualidade nos textos fonsequianos
não basta direcionar os olhos somente para o narrador. É preciso mergulhar nas configurações
discursivas além deste ente ficcional, entrando na narrativa, procurando as marcas do discurso
metatextual e buscando desvendar os diálogos entre textos, os quais o escritor explora com
tanta maturidade. E, pensando num diálogo interno, isto é, entre seus próprios textos, verifica-
se que a obra de Rubem Fonseca é marcada por uma espécie de “confinamento”, no qual estão
presos personagens e ambientes; em outras palavras, observa-se na totalidade da produção
fonsequiana um microcosmo em que tudo se conecta: algumas vezes, um mesmo personagem,
por exemplo, aparece em contos diferentes (o mais famoso deles é, sem dúvida, Mandrake,
personagem que surgiu pela primeira vez no romance A Grande Arte (1983) e povoou
diversas narrativas), outras vezes repeJ-261.rs ds ive95585(t)-2.16558(e)3.74(m)-2.e85(a)3.74(ç)3.74(ã)3.75(o)-0.295585( -0.295585(a74122(s)-1.22997(c)3.74(r)2.80561(i)-2.16558(t)-2.16558(o)-0.95585(t)-2.16558(e.1537(E)-9.36588(,)-0.1j0561(i)-2.16558(t)-2.16558(o)-0.6.2659(r)2.16558(r)-75585(b)-0.295585(l)-2.-0.294974(a)3.74(s)-1.22997(t)-2.16558(e.1537(E)-9.36588(,)-0.13.74( )-0.146571(p)-0.29)-12.1703(a)3.74(l)-2.r)2.80439(e)3.74(c.1879(m)-2.45995(az)-6.2659(e)3.74(s)-1.2312(,)-0.13.74(n)-0.295585(d)3.74(n)-0.295585(tt52.80424(e53571( )]TJ252.389 0v2997( )-150.236(p)-0.)-2.45995(a)3.74(s.147792( )-80.195(o)-0.29s)-1.2312(e)3.74( 293142(e)3.74244(r)2.45995( )-10.1537(mf)2.80439(i)-2.1)3.74(m)-2.45995(o)-0.295585(s)-1.)-2.45995(a)3.74(s-0.–195(o)-0.29s)-1.2312(e.3015(t)-2.164365295585(l)-2.1á2312( )-110.212(é)3.75(o)-0.295585( .1537(mf)2.80439(i)-2.195585(i)-2.16436(d)-0.295(s)-1.2312(,)-0.146571( )-10.1525(u)-0.23.74(n)-0.2955820.1584(p)-0.295585 )-130.223(a)3.10.212(c)3.74244(o)-0.2293142(r)2d74244(ã)33142(n)-0.274244(s)-1124(e535)250]TJ-368.377 -20.76 -0.294974(ã)3.737(E)-9.33.74(n)-0.29552997(o)-0.29á4122(s)-1.22997(c)3.74(r)2.6571(n)-0.295585(o)61(a)3.795( )-10.1537(d5585(o)61(a))3.74( )-260.301(s)-1.22.805(s)-1.22997(a)3.5(o)61(a).22997( )-80.195(n)-0.295585(a)-6.2659(r)2.80561(r)2.80561(a)3.564(r1-1.22997()-11.2.805(s)-1.22997(a)3.5(o)61(a)45995( )-260.301(q)-0.295585(u)-0.295(901d)-0.295585(e))-2.16558(a)3.74(n)-0.147792(é)3.74( )-0.146585( .1537(mf)2.6571(p)-0.295585(o)-0.295585(r)2.8295585( )-60.182(p)-60.3(A)1.574(n)-0.295585(t3015(o)-0.293142(,)485(80439(s)]T45873( )-110.2s)-1.2312(o)s)-1.)-2.45995(r)2.80439(a)3.74(t)-2.)3.74( )-10.1525(t)-2.1)3.74(t)-2.295585(r)2.83.74(n)-0.147792(é)3.74( )-0.15585(d)3.74(n)-0.21525(p)-0.295585(r)2.80439(ó)-0.296571(p)-0.29)-12.1703(a6571(d)-0.295585(e)6.2659(r)2.804293142(e)3.74564(r)2.c)3.74(r)2.80561(o)r)2.804.0.295585(a)3.(s)-1104.9613
19
Prisioneiros, em 1963, o período posterior à proibição de Feliz Ano Novo colocou o autor
numa posição de destaque em nosso âmbito literário.
De acordo com Deonísio da Silva (1983, p.13), os anos 60, nos quais Rubem Fonseca
começou a se dedicar à escrita, tinham um modelo para a boa literatura: seria considerada
obra de boa qualidade aquela que fosse “bem comportada”, ou seja, a que se submetesse aos
padrões literários da época, dentro, é claro, do contexto de repressão política e cultural que
crescia ano a ano. A estréia de Fonseca naqueles difíceis anos 60 foi até bastante prestigiada
pela crítica, pois o escritor trouxe à cena diversas inovações, tanto na estrutura, com o
domínio absoluto do diálogo, quanto no desenvolvimento de suas histórias e na invenção de
suas personagens, conforme considera Assis Brasil:
Rubem Fonseca, com Os Prisioneiros, saía para uma concepção do mundo
muito particular, em nível criador, tirando do limbo alguns personagens que
até então não haviam sido bem registrados na galeria de personagens da
literatura brasileira: os halterofilistas, os notívagos, os vagabundos, os
conquistadores, as ninfo-maníacas, etc. (BRASIL, 1975, p.115).
Durante este período de novidades que marcaram a estréia do autor até a interdição de
Feliz Ano Novo, intervalo que denominamos como sendo a primeira parte da trajetória
profissional de Rubem Fonseca, o autor publica mais dois livros de contos, A Coleira do Cão
(1965) e Lúcia McCartney (1967), uma antologia intitulada O homem de fevereiro ou março
(1973) e um romance: O Caso Morel (1973). Apenas dois anos depois, é publicado o “divisor
de águas”: Feliz Ano Novo, uma obra que, por esta qualidade singular, merece um destaque
neste momento de nossos estudos.
Trata-se do livro mais polêmico de Fonseca, como já mencionamos, pois mostra
diretamente a violência, a brutalidade e a crueldade registrada na contemporaneidade. É
possível observar tal agressividade principalmente no conto que dá título ao livro, o qual narra
a história de bandidos que assaltam uma residência em plena época de uma passagem de ano e
acabam impunes, vitoriosos. O conto termina com os marginais brindando com alegria o
sucesso do crime cometido.
A repercussão do livro no momento em que foi lançado talvez não pudesse ter sido
diferente: a obra foi censurada, uma vez que o lado estético do texto (que não tinha a intenção
de apoiar a violência mas, simplesmente, mostrar que ela está por toda a parte) não foi
considerado. A questão da sexualidade, também presente de modo bastante incisivo neste
livro e que, paradoxalmente, já havia feito parte da prosa naturalista da ficção brasileira, foi
20
ainda tida como outro agravante para o seu veto, que este tema foi considerado
inapropriado para fazer parte de uma obra literária.
A violência presente em Feliz Ano Novo e em outros livros (O Cobrador foi,
ironicamente, ainda mais violento do que seu antecessor) trouxe a Fonseca o título de
disseminador da “estética da brutalidade” e fez com que por muito tempo os críticos literários
se detivessem à análise deste aspecto no conjunto de sua obra. Trata-se, sem dúvida, de um
tema muito recorrente na produção do autor, juntamente com a questão do erotismo, o qual
tem percorrido até mesmo seus textos mais recentes. Contudo, este estilo fonsequiano não
impede que a obra do autor seja investigada de acordo com várias outras perspectivas.
Após a censura de Feliz Ano Novo, percebeu-se um salto na vida artística de Rubem
Fonseca, de modo que os anos que seguiram foram marcados por publicações que se tornaram
best-sellers, como foi o caso do romance A Grande Arte (1983), o qual ultrapassou a marca
dos 10 mil exemplares vendidos (sabe-se, também, que o sucesso de vendas de seus livros foi
maior quando a Companhia das Letras tornou-se a editora de Rubem Fonseca), viu-se a
adaptação para o cinema dos romances A Grande Arte (1983) e Bufo & Spallanzani (1986) e
houve, ainda, a importante publicação do seu romance Agosto, em 1990, livro este que se
tornou mini-série na maior rede de televisão brasileira, a Rede Globo, o que aumentou ainda
mais a popularidade do autor. Atualmente, a emissora de televisão GNT apresenta o seriado
Mandrake, o qual traz como protagonista o detetive Mandrake, um dos mais famosos
personagens fonsequianos.
Esses exemplos foram apenas alguns que se mostraram nessa bem sucedida carreira
como escritor e, juntando-se as duas partes da sua trajetória profissional, somam-se mais de
40 anos de uma produção que supera o número de 20 títulos, entre livros de contos e de
romances, sem falar nos trabalhos de Fonseca como roteirista de cinema. É uma produção
constante e que tem feito com que o escritor desfrute de certo prestígio entre o público e a
Academia, apesar das críticas que o autor ainda recebe.
Esse agrado tanto aos leitores comuns como aos leitores mais especializados tem
colocado Rubem Fonseca numa posição intermediária: seus textos não são nem simplificados
demais, como exige o mercado, nem são sofisticados ao extremo, a ponto de dificultar a
leitura ao público leigo. O autor possui artefatos para atrair o leitorr eda5995(o)-0.2955874(m)-2.45995( )-40.1702(s)-10 Td[(í)7.84154(t)-2.195585(t)-2.16558(a)3.74(n)-0.295585(d)m-s omãs os a
21
O conjunto de toda a sua produção possui, de fato, certas orientações que se tornam
regulares, de modo que, seja para satisfazer o gosto daquele público que não percebe tanto a
veia crítica existente em suas publicações, seja para contentar o público mais elevado,
percebe-se que a temática dessas obras não apresentou tantas inovações no decorrer dessas
mais de 4 décadas de carreira, o que, como mencionamos, não desmerece a qualidade
literária dessas criações. Seja como for, convém expor quais são esses pontos que se tornaram
uma espécie de “obsessão” para o autor.
A questão da violência, a qual foi abordada rapidamente neste estudo, pode ser
eleita como a mais representativa da produção de Fonseca. Grande parte da bibliografia
referente ao autor versa sobre esse tema. Aqui, para evitarmos um prolongamento que poderia
ser repetitivo, citamos apenas a opinião de alguns críticos a respeito desse assunto, a começar
pelo estudioso que é, talvez, um dos maiores “defensores” da escrita fonsequiana: o
pesquisador Deonísio da Silva. Para o crítico, “Rubem Fonseca não inventou a violência. Ela
está por aí. O que ele inventou foi um modo violento de narrar essa violência que lhe serviu
de matéria-prima” (SILVA, 1979, p.52). Deonísio da Silva ainda completa: “[...] em literatura
interessa muito mais o modo de narrar que o que é narrado” (SILVA, 1979, p.53).
É fato que as cidades estão ficando cada vez mais perigosas devido à tanta
desigualdade social e tanta falta de oportunidades; o que Rubem Fonseca faz é incorporar essa
situação em suas narrativas por meio de um modo de escrever muito peculiar. Essa sociedade
em que a força bruta, muitas vezes, impera como a forma mais rápida de vencer os conflitos
sociais é mostrada de dentro da narrativa, de modo que Fonseca não se preocupa
simplesmente em descrever uma realidade cruel por meio de seus enredos, mas faz com que
essa violência, que está a nossa volta, seja incorporada na estrutura da narrativa, o que é feito
com o auxílio de certos recursos, tais como: um estilo áspero e direto e um vocabulário
rebaixado, recursos estes que fazem com que a própria narrativa se torne violenta.
outros estudiosos, como é o caso de Lafetá (2000, p.131), que acreditam que a
violência nos enredos fonsequianos ultrapassa a questão das diferenças entre as classes
sociais, sendo que qualquer ser humano, independente do seu nível social e econômico, pode
desenvolver sua disposição para a crueldade, a qual estaria intrínseca à condição humana.
Justamente por esse motivo, não se vê nas narrativas fonsequianas personagens bons e
personagens maus; todos são iguais, todos têm defeitos e podem praticar atos de violência.
Nesse sentido, qualquer maniqueísmo se anularia. Ao lado dessa ausência da dicotomia
bom/mau também a questão da atual inexistência de julgamentos, da falta de critérios que
possam definir, com precisão, o que é certo e o que é errado, conforme atesta Vera Lúcia
22
Foullain de Figueiredo (2003, p.20). Nos dizeres da estudiosa, as personagens fonsequianas
são, também, o reflexo de uma sociedade com “valores esvaziados”, como esta que tem se
constituído na contemporaneidade.
Ainda com relação à personagem fonsequiana, uma espécie de trivialidade que a
caracteriza, como constata Fábio Lucas em seu artigo “Os anti-heróis de Rubem Fonseca”, de
1971. Esse anti-heroísmo, presente no título do artigo, não reduz a personagem a um simples
vilão, a alguém que cria empecilhos aos projetos do protagonista, como poderia se pensar. No
caso de Rubem Fonseca, o anti-herói que povoa seus enredos é aquele indivíduo impotente
perante os obstáculos, desencantado com o mundo e com a vida; é um ser frustrado, sem um
objetivo concreto. É, acima de tudo, um indivíduo comum, sem grandes predicados.
Novamente no que diz respeito à agressividade na obra fonsequiana, Vera Lúcia F.
Figueiredo explora o vínculo entre violência/sociedade e violência/indivíduo, e aponta
rapidamente para a inserção da violência no discurso, isto é, na tecitura ficcional da produção
fonsequiana:
Focalizada de diferentes ângulos e em suas nuances mais sutis, a violência,
no universo ficcional do autor, é vista como uma constante histórica,
disseminando-se pelas mais diversas dimensões do comportamento humano,
podendo, por isto mesmo, ser sempre justificada, explicada, em nome da
sobrevivência do indivíduo ou da sociedade, em nome do processo
civilizatório, dos costumes, dos direitos, ou mesmo da busca do
conhecimento. É, então, indissociável do discurso que lhe dá fundamento e a
perpetua [...] (FIGUEIREDO, 2003, p.19).
Em certo sentido, Vera Lúcia Figueiredo compartilha com Deonísio da Silva a opinião
de que o espaço textual, o discurso, o modo como são narrados os acontecimentos são de
capital importância para a compreensão dos textos fonsequianos e para a compreensão da
própria violência neles apresentada. Tal violência, existente principalmente nos contos iniciais
do autor, poderia ser entendida como uma estratégia narrativa, uma opção estilística cujo
objetivo seria subverter a expectativa dos leitores da época, que estavam mais acostumados
com um padrão mais elevado de escrita literária, conforme propõe Luciana Paiva Coronel
(2000), mas, independente da sua relação com os aspectos sociais e políticos, a violência está
inserida no projeto artístico escolhido por Rubem Fonseca para a criação de seu mundo
ficcional, de forma que, no texto e pelo texto, tudo é permitido e tudo se justifica.
O mundo do crime e do banditismo é visto por vários estudiosos dentro da óptica dos
problemas enfrentados pela população nos grandes centros urbanos, centros estes
deteriorados, que oprimem o indivíduo e que abrigam os mais diversos tipos de marginais. É,
23
pois, a cidade outro tema muito freqüente na produção literária de Rubem Fonseca. Ela é o
cenário para a alienação do indivíduo moderno, para a incomunicabilidade e para a
desumanização; é nela que os conflitos sociais tornam-se mais latentes; é nas grandes
metrópoles que se vê com mais nitidez o esvaziamento de sentido no relacionamento entre os
indivíduos, principalmente na relação homem-mulher.
Chega-se, neste momento, a uma outra constante da produção fonsequiana: o erotismo.
As relações entre o homem e a mulher são, freqüentemente, mundanas, frias, baseadas no
apego carnal. Não espaço para romantismos e a mulher, muitas vezes, é retratada como
puro objeto de divertimento e prazer. É como se, num mundo em que os valores estão
dissociados e onde as leis que regem são as leis do mercado, do dinheiro e da troca, o sexo
surge como uma tentativa de se atingir alguma essência, alguma sensação boa e concreta que
o afaste de suas mazelas, mesmo que temporariamente.
O erotismo nos textos de Rubem Fonseca tem também uma veia transgressora. A sua
expressão priva o texto de uma linguagem repleta de eufemismos, quebrando o tabu do bem-
escrever que se instaurou na tradição literária. A quebra de tabus vai ainda mais longe: ela
significa a desvalorização de uma importante instituição social – o casamento, o qual é
substituído por relações efêmeras, cheias de erotismo e com pouco ou nenhum amor. Também
se quebra o tabu da posição em que o corpo e os prazeres carnais eram colocados quando
comparados ao espírito, ou seja, eram sempre rebaixados. Nos textos fonsequianos eleva-se o
corpo e o sexo, os quais são colocados num patamar superior ou igual a tudo o que é
espiritual.
As partes do corpo o freqüentemente descritas do modo mais repulsivo, beirando
mesmo o grotesco, o qual, por sua vez, pode ser considerado não como um tema propriamente
dito, mas como um aspecto notório na produção fonsequiana. O grotesco é mais um artifício
de transgressão, por ir de encontro à valorização do belo que esteve presente não apenas na
literatura mas, também, na cultura e na filosofia tradicionais. O grotesco é, ainda, o símbolo
da degradação de valores e da deterioração da sociedade e do próprio indivíduo
contemporâneo.
Esse indivíduo que estamos tratando está, sim, entre as maiores “inquietações” de
Rubem Fonseca, sendo constantemente objeto de reflexões nas obras do autor. Hélio Pólvora
(1971, p.41), ao discorrer sobre os livros Lúcia McCartney, Os Prisioneiros e A Coleira do
Cão (e seus questionamentos podem estender-se a muitas outras produções fonsequianas),
o homem como o grande centro das preocupações de Rubem Fonseca; o homem
24
contemporâneo, com suas dores e angústias, um produto da coletividade, um “ser
contraditoriamente civilizado”, abatido pelas modificações políticas, econômicas e sociais.
Por tudo isso, é possível perceber um compromisso do autor em abordar temas atuais,
referentes à humanidade e ao meio em que ela está inserida. Com esse intuito, Rubem
Fonseca torna-se o autor que fala da condição humana, do caos urbano, do corpo, do sexo,
fala de atribulações e de desejos frustrados.
Entre esses temas da contemporaneidade um outro, evidente em vários livros do
autor, que foi eleito como o grande recorte para a investigação da obra contística de Rubem
Fonseca neste estudo o tema da escrita, da arte de escrever e seus desdobramentos, tais
como: a função do artista na atual sociedade e o papel da literatura no decorrer dos séculos,
por exemplo. Por meio, principalmente, de personagens-escritores revela-se a atenção dada
pelo autor aos rumos da arte na sociedade moderna, e a atitude metatextual, de investigação
do exercício literário, traduz com propriedade essa preocupação no interior da própria
narrativa. Sem contar que a auto-reflexão não deixa de ser, ela própria, muito produtiva nos
textos da modernidade. A capacidade da obra literária de colocar em discussão o seu estatuto
tem sido um tema constantemente trabalhado na literatura, o que mostra como Rubem
Fonseca está, mais uma vez, em sintonia com o seu tempo e refletindo de perto e criticamente
sobre ele.
Apenas alguns exemplos de contos que se encaixam nesta perspectiva são: “Corações
solitários”, “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, “*** (Asteriscos)”, “Agruras de um
jovem escritor”, “À maneira de Godard”, “Intestino grosso”, “Olhar”, “Romance negro”,
“Artes e ofícios” e vários outros que, juntos, somam uma parcela considerável de narrativas
que se voltam para o fazer literário, sendo que há, também, um clássico exemplo de romance
que se apropria da reflexão metalingüística: o livro A Grande Arte. Mas, apesar de termos
reduzido nosso estudo à análise de seis textos, sabe-se que a maioria dos contos que reflete
criticamente sobre a literatura acaba por evidenciar a posição do escritor moderno perante as
transformações sociais ocorridas a partir do final do século XIX.
É sob esse ângulo que Maryson Siqueira Borges (2001, p.220) disserta ao tratar do
ofício do escritor nos contos de Rubem Fonseca. Para o pesquisador, as modificações, nesse
período, nas relações de trabalho e produção afetaram as condições de trabalho do artista, o
qual passou a refletir sobre seu ofício na sociedade capitalista. Luciana Paiva Coronel (2004)
também opta por estudar a metaficção em Rubem Fonseca (juntamente com a
intertextualidade) sob esse viés, refletindo sobre a situação do artista no cenário da indústria
cultural.
25
Contudo, as obras de Fonseca que podem ser lidas pela vertente da metatextualidade
não apenas mostram o impacto da modernização, da industrialização e da cultura de massa na
atividade dos escritores mas, muitas delas, deixam de lado este aspecto externo, da realidade
social e voltam-se unicamente para o próprio texto (e também para os outros que os rodeiam)
e para a arte da escrita, desvendando, de forma mais ou menos explícita, o modo como esses
textos são elaborados. Assim, tais produções convidam o leitor a destrinçar-lhes
minuciosamente, camada a camada; a retirar o u que os encobre e a construir sentidos que
se escondem nas “brechas” de cada narrativa.
A reflexão crítica sobre a literatura evidencia um capricho, um apuro técnico na escrita
fonsequiana, embora tais aspectos também serem notados mesmo naqueles textos cujo tema é
a violência que, nesses casos, o autor cria uma linguagem própria para ser o reflexo da
brutalidade, seja por meio do vocabulário, da estrutura do texto que, muitas vezes, simula
golpes, dos cortes bruscos na seqüência narrativa, etc. Aliás, nem mesmo os best-sellers
escaparam a esse “preparo” com a escrita, e os ditames do mercado cultural não impuseram
um estilo extremamente simplificado e desprovido de inventividade nas narrativas do autor.
Rubem Fonseca optou por uma linguagem dinâmica (há exceções, como ocorre em “A
arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”), o convencional, nova; linguagem esta que
transformou a estrutura do próprio gênero contístico. Essa postura inovadora faz com que
Wendel Santos (1978, p.110) afirme categoricamente que “Rubem Fonseca não é escritor
vazio de criatividade”, como alguns poderiam considerá-lo, e que tal atitude o coloca numa
posição de destaque entre os escritores de seu tempo e entre aqueles que se consolidaram no
decorrer da nossa história literária. A respeito dessa prática inovadora de Fonseca, Santos
argumenta:
Não é necessário, entretanto, concluir afoitamente que a novidade de
construção é um valor literário indiscutível. Não obstante, a Crítica atribui
pelo menos um valor histórico ao escritor que inova: aquele que
simplesmente repete o passado, mesmo que de modo ótimo, terá de
demonstrar um valor exclusivamente literário (SANTOS, 1978, p.110, grifo
do autor).
Essa busca por uma nova forma foi mais patente e chocante em Lúcia McCartney
(1969), livro cuja linguagem é veloz, sintética e que faz uso da técnica da “montagem”, isto é,
são dados fragmentos de textos e o próprio leitor constrói o enredo em sua mente. As suas
produções subseqüentes, todavia, recuperaram uma certa linearidade narrativa e até outras
26
formas tradicionais de escritura que haviam sido rompidas com tal obra, embora tais textos
não tivessem absolutamente desistido da criatividade e originalidade na sua construção.
A quebra de convenções formais proposta por Fonseca é bem resumida por Fábio
Lucas (1971, p.118) em um ensaio referente a Lúcia McCartney, a terceira obra da produção
fonsequiana. De acordo com o estudioso, “Rubem Fonseca aplica com rara eficácia os
parênteses da memória, retrata a consciência pluridimensional, emprega a redundância
expressiva, intensificadora da emoção”. Ele afirma, ainda, que tal rompimento com o
convencional tem como propósito traduzir a própria humanidade, que é cindida, contraditória,
problemática.
Sobre a renovação artística em Lúcia McCartney também é relevante as considerações
de Hélio Pólvora (1971, p.43-45), o qual divide os aspectos novos em dois planos: o plano do
27
sua inserção nas narrativas significaria uma espécie de reação à linguagem dominante na
cultura. De qualquer forma, não se trata, sem dúvida, de obscenidades gratuitas e, no plano da
construção artística, elas também vêm a serviço de uma melhor caracterização das suas
personagens, caracterização esta que acompanha uma certa quantidade de gírias cariocas que
se estendem no decorrer dos textos.
A escolha do vocabulário misto, a novidade e o experimentalismo com a linguagem
que percorrem a produção fonsequiana revelam, eles próprios, a denúncia da construção
ficcional. O leitor pode perceber o trabalho com o procedimento da escrita e, mesmo quando
os textos mais se aproximam de alguma espécie de realismo, o cuidado com a linguagem,
com a estrutura, com a expressão do conteúdo, com o visual, com a escolha das palavras, com
a criação de imagens fazem com que o leitor se atente ao fato de estar diante de uma obra
de ficção.
Além disso, ao ler um conto de Rubem Fonseca, é impossível deixar de fazer conexões
entre outras obras (algumas vezes do próprio autor), entre personagens, entre idéias que se
consolidaram na cultura universal, de modo que, ler Rubem Fonseca é, também, refletir sobre
a própria arte da leitura, pois quando lemos estamos fazendo, mesmo sem darmos conta,
relações com algo já lido algum dia, com os conhecimentos que possuímos, com o que vemos
e ouvimos a todo instante. E Fonseca nos chama a atenção para isso, já que ele incita o leitor a
fazer, com uma certa consciência, diversas associações que seriam feitas automaticamente.
Assim, ao debruçar sobre uma obra fonsequiana é possível pensar sobre o fazer
literário e, também, sobre o ato de ler, de um modo geral. E para evidenciarmos com mais
clareza como isso ocorre na produção de contos de Fonseca, partimos, após termos seguido
brevemente o “rastro do autor”, para a discussão do aparato teórico que fornecerá as bases
para desvendarmos os mais variados procedimentos metatextuais que buscamos na obra
contística de Rubem Fonseca.
28
3 Percorrendo o labirinto do texto
Ler um texto literário é percorrer um fascinante labirinto. E não estamos falando de
uma estrutura que almeja desorientar aqueles que se propõem a percorrer seus caminhos, pelo
contrário, trata-se de uma construção que desafia a nossa capacidade para a interpretação, que
nos coloca diante de diversos trajetos pelos quais podemos trilhar no intuito de desvendar os
sentidos de uma determinada ficção. Assim como Teseu, que teve que escolher, dentre os
vários caminhos, aqueles que o levariam até o Minotauro, nós, leitores e estudiosos de
literatura, deparamo-nos com a escolha das muitas maneiras de se ler uma narrativa, e é esse o
principal desafio que somos levados a enfrentar quando optamos por percorrer o labirinto do
texto literário.
Nesse sentido, vê-se claramente que o leitor do texto ocupa uma posição ativa: é o
responsável pela escolha do trajeto no labirinto. Tal importância do leitor advém de mudanças
nas concepções acerca da produção e recepção do texto que ocorreram nos estudos literários;
não temos mais a valorização apenas do autor como o único produtor de sentido de uma obra,
como queria a estética romântica, nem uma centralização exacerbada no texto, conforme
propunha a estética formalista. O sentido de uma obra de ficção manifesta-se por meio de uma
construção dialógica, pela interação entre produtor e receptor, interação esta que compõe o ato
de enunciação, e pela observação dos sinais, das pistas deixadas pelo próprio texto (daí a
importância de uma técnica de construção textual) para que se possa desvendá-lo.
O estudo da metatextualidade, juntamente com seus desdobramentos a
intertextualidade, a paródia e a ironia nos faz pensar a respeito da criação do texto literário
enquanto uma espécie de labirinto, no qual os diversos sentidos que se revelam por meio
dessas práticas de elaboração textual seriam justamente os trajetos, os percursos possíveis de
serem percorridos dentro dessa “construção labiríntica”. E para começarmos a examinar o
recurso metatextual, que será o suporte para as análises que serão elaboradas dos contos de
Rubem Fonseca, fizemos uma pesquisa a respeito dos significados do prefixo –meta, que
forma o termo metatextualidade. Conforme constatamos no Novo Aurélio século XXI
(1999), tal prefixo, de origem grega, significa “mudança”, “posteridade”, “além”,
“transcendência”, “reflexão crítica sobre”. Estas definições são importantes pois, de início,
inserem-nos no mundo da transcendência de significados aparentes e da reflexão crítica que
caracterizam o procedimento metatextual.
29
30
Tais considerações nos colocam dois pontos importantes: o primeiro é o trabalho
com os mecanismos discursivos que fazem com que um texto chame a atenção do leitor para
o seu artefato, e o segundo é o fato de estes textos, apesar de se voltarem sobre si mesmos e
sobre seu processo de construção, não excluírem as suas múltiplas possibilidades de
interpretação. Pelo contrário, quando há uma reflexão da linguagem sobre a linguagem o texto
se abre para que o leitor conceba outros sentidos que estavam escondidos pela aparente
superficialidade do enredo.
Os contos de Rubem Fonseca que foram selecionados nesta pesquisa são metatextos:
eles se ocupam do desnudamento do ato de criação literária. Contudo, a metatextualidade não
se restringe a essa descrição do fazer artístico; seu alcance é muito mais amplo: com estes
procedimentos os textos olham não apenas para eles próprios, mas dirigem-se também aos
outros textos que compõem nosso acervo literário mundial sendo que, por meio dessa prática,
é possível discutir de modo mais abrangente sobre a própria literatura. Além disso, a
elaboração metatextual permite a investigação não somente do código em si, mas também
possibilita o questionamento acerca da função da arte e do escritor, tudo isso feito na própria
estrutura da narrativa.
Vê-se, pois, que as linguagens que compõem o texto literário se comunicam: uma
encontra a outra no espaço textual. As linguagens são os canais, as paredes que formam o
labirinto do texto e que se entrecruzam incessantemente, de modo que a história contada
sempre se depara com caminhos que levam a reflexões mais profundas referentes ao universo
literário.
Em momentos extremos, a metatextualidade faz com que os textos, sejam eles
contos, romances, poemas ou até textos dramáticos, admitam um caráter ensaístico, debatendo
no espaço textual tanto o fazer literário quanto fazendo reflexões sobre a teoria literária, sobre
outros escritores e formas literárias e sobre a cultura de modo geral, de maneira que, nesses
casos, chega a ser tênue a fronteira entre a ficção e a crítica literária. Entretanto, no caso
específico da produção de Rubem Fonseca, a metatextualidade, mesmo valendo-se do texto,
essencialmente, como objeto, não impede um olhar também para o exterior do texto, visto que
em suas obras a confluência de linguagens de diferentes naturezas: linguagem ficcional,
crítica, social, entre outras, de modo que o autor também utiliza sua ficção não só para discutir
sobre a literatura como também para refletir sobre o seu tempo e sua sociedade.
É possível pensar que a linguagem é o elemento que sentido à realidade; o mundo
não é percebido como uma massa informe e sem definições graças a ela; é por meio da
linguagem que o homem se conscientiza do mundo que o cerca. Assim, em uma época de
31
desreferencialização, em que os simulacros estão tomando o lugar do real, como já falava
Jean Baudrillard, uma grande dificuldade de se ter um acesso direto a esse real. Nesse
sentido, a literatura ou, mais especialmente, os textos metaficcionais têm um papel
fundamental: eles dão conta da criação de “mundos” pela linguagem, mundos estes que são
elaborados a partir de elementos do conhecimento do leitor, como outras narrativas, por
exemplo.
Se estamos vivendo em um período de crise de representação do real, em que
chegamos a ele pela linguagem, a metatextualidade permite também que se debruce sobre os
códigos de representação da realidade, por isso acreditamos que há ocasiões em que a
metatextualidade não impede que se depreenda do texto também uma crítica social. É o que
ocorre, muitas vezes, nos textos de Rubem Fonseca em que, ao lado da reflexão sobre a
literatura, também um questionamento acerca da sociedade contemporânea e seus
problemas, o que colabora para o enriquecimento de suas narrativas.
De qualquer forma, o que é evidente na prática metatextual é que ela joga sempre com
uma duplicidade de sentidos, com leituras múltiplas do texto e, pensando nisso, é possível
argumentar que a metatextualidade apóia-se em relações intertextuais. Dois estudiosos que
discutem a relação entre intertextualidade e metatextualidade são Samira Chalhub (1988) e
Wellington Santos (1995). Para a primeira, “a intertextualidade é uma forma de
metalinguagem onde se toma como referência uma linguagem anterior” (CHALHUB, 1988,
p.52); Wellington Santos considera as marcas da intertextualidade num texto como “um
embrião de metanarrativa”, e também atenta para a questão da visão crítica que existe na
apropriação de determinado texto. São suas palavras:
[...] toda vez em que se puderem localizar marcas alheias num texto
ficcional haverá, em grau maior ou menor, intertextualidade, e, com isso, um
embrião de metanarrativa. Explicando de outra maneira, toda referência feita
a determinado discurso implica numa visão crítica do texto apropriado, seja
para afirmá-lo, seja para negá-lo (SANTOS, 1995, p. 588).
Apenas uma ressalva nas considerações de Santos: outros efeitos que podem ser
atingidos por meio da apropriação de textos, ou seja, diálogos que visam não apenas
afirmar ou negar, como coloca o crítico, pois existem várias formas de conexão entre os
textos, como por complementariedade, por exemplo. Mas para melhor esclarecer como se
esse trabalho de diálogo entre as narrativas, é pertinente, neste momento, percorrermos mais
32
detalhadamente o âmbito da intertextualidade, a qual é deveras produtiva nos contos de
Rubem Fonseca estudados neste trabalho.
3.1 A intertextualidade
O termo “intertextualidade” foi cunhado pela estudiosa Julia Kristeva, na década de
1960, ao estudar a noção de dialogismo, proposta pelo teórico russo Mikhail Bakhtin. A
composição intertextual tem como fundamento básico o diálogo existente entre diferentes
textos e discursos, que compõe nossa tradição literária.
A idéia de dialogismo foi entendida por Bakhtin no âmbito da lingüística; para ele, a
língua é um fato social e é definida pela relação dialógica de um “eu” com um “outro”, de
modo que ela não pertence a um único sujeito nem existe de maneira independente do
indivíduo. Ainda na concepção bakhtiniana, tudo o que enunciamos já foi enunciado por
alguém numa outra situação comunicativa, e o nosso discurso sempre se constrói por meio da
intervenção do discurso de um outro. Transpondo a idéia de dialogismo para os estudos
literários, cumpre afirmar que “o sentido de uma obra literária é fruto de uma construção
dialógica” (LOPES, 1994, p.70).
Na obra Problemas da poética de Dostoiévski (1929), Bakhtin expõe sua teoria sobre o
“romance polifônico”. O autor defende que num texto literário (o romance moderno, mais
especificamente), duas ou mais vozes podem se manifestar e dialogar, de forma que vários
sentidos sejam ecoados por meio de sua leitura. Essa pluralidade de vozes opõe-se à idéia de
que, num segmento textual literário, uma única voz seria ouvida e ainda conduziria
autoritariamente a narrativa, idéia essa presente nos “romances monológicos”. Com as noções
de dialogismo e polifonia, Bakhtin abriu caminhos para os estudos sobre a intertextualidade,
a qual passou a ser entendida como um princípio que consiste na coexistência de diálogos
entre textos e na interação de várias vozes.
Retomando os estudos de Mikhail Bakhtin, Kristeva põe em destaque que no processo
de construção intertextual cria-se um texto novo partindo da captura de certos elementos
textuais e da transformação dos mesmos: “todo texto se constrói como um mosaico de
citações, todo texto é absorção e transformação de textos” (KRISTEVA, 1969 apud
PERRONE-MOISÉS, 1990, p.94).
Entendemos a intertextualidade como um recurso altamente produtivo, que não apenas
sobrepõe vários sentidos mas, principalmente, modifica-os criticamente, de modo que o novo
texto não tenha necessidade de possuir um nculo estreito com os sentidos primeiros
33
estabelecidos no texto do qual ele se apropriou. Cada obra, ao se confrontar com discursos
anteriores, emite um significado novo; além disso, uma obra literária, de acordo com a teoria
da intertextualidade, pouco provavelmente pode ser considerada como um objeto “acabado”,
uma vez que ela está constantemente aberta ao diálogo com novos textos.
O estudioso Laurent Jenny (1979) é ainda mais incisivo em seus argumentos referentes
à intertextualidade, chegando a defender que o procedimento intertextual define o texto
literário, pois sem considerarmos o constante diálogo entre os textos, uma obra literária seria
pouco compreendida. Nesse sentido, seria impossível pensar uma obra isoladamente, já que
todo e qualquer texto literário remete de forma implícita para uma série de outros textos. É
nessa primazia do texto que Diana Barros (1994, p.4) também coloca, categoricamente, que “a
intertextualidade não é mais uma dimensão derivada mas, ao contrário, a dimensão primeira
de que o texto deriva”.
Ainda segundo Jenny (1979, p.14), a intertextualidade não é sinônimo de “uma soma
confusa e misteriosa de influências”, isto é, na construção intertextual não se pode permitir
que haja um mero amontoado de fragmentos literários dentro de um outro texto. A simples
repetição de elementos textuais destrói a função crítica que, para ele, está atrelada ao trabalho
intertextual. Assim, quando um autor assimila o discurso de outrem ele o enuncia novamente
num contexto diferente e, ao fazer isso, está pensando criticamente sobre o texto primeiro e
sobre as formas de transformação desse texto e de construção de um texto segundo. Por isso,
além do aspecto crítico existente na análise intertextual, tal recurso ainda pode ser estudado
no âmbito da metatextualidade.
A literatura, de um modo geral, nasce da própria literatura; ela se produz pelo
incessante diálogo entre obras anteriores, temas abordados, estilos já existentes. Na medida
em que uma obra presentifica o discurso alheio em seu próprio discurso, ela acaba emitindo
seu olhar crítico sobre ele e sobre si própria, promovendo uma auto-reflexividade. Nesse jogo
intertextual, a obra confessa ser uma obra de ficção, que foi construída por meio da absorção e
transformação de discursos, recusando a construção do mundo como mera mímeses. A
metaficção, no seu incansável uso da intertextualidade, tornou-se uma forma de escritura
muito constante dentro do contexto da literatura contemporânea.
Além disso, nos estudos literários, a intertextualidade não pode ser pensada apenas no
plano conteudístico, pois ela também é bastante produtiva quando se trata do plano formal.
Essa consideração é um dos pontos mais relevantes das argumentações de Laurent Jenny
(1979). Para o crítico, podemos falar de intertextualidade entre uma certa obra literária e
determinado gênero, por exemplo; isso porque os arquétipos de gênero, apesar de sua
34
abstração, são “estruturas textuais, sempre presentes no espírito daquele que escreve”
(JENNY, 1979, p.17). Com essas observações, o autor alarga consideravelmente as fronteiras
dos estudos da intertextualidade.
Uma outra estudiosa que se dedica aos estudos do intertexto é Leyla Perrone-Moisés
(1978). A autora denomina o trabalho intertextual como “intercomunicação de discursos” e,
segundo ela, não se trata de uma prática recente na literatura, contudo, o tratamento
dispensado a ele a partir do século XIX é algo novo: os escritores vêm se apropriando de
textos alheios de maneira sistemática e assumindo essa atitude implicitamente, sem se
preocuparem em imitar fielmente um texto ou contestá-lo simplesmente. A importância agora
é criar uma arte literária, paradoxalmente, por meio de uma “réplica original”, isto é,
exercitando a apropriação de determinado texto, mas ultrapassando qualquer significado
manifestado por ele.
Uma idéia semelhante a essa ecoa nas argumentações presentes no livro
Intertextualidades teoria e prática (1995), de Paulino, Walty e Cury. Os estudiosos
investigam a intertextualidade, num primeiro momento, em seu sentido mais abrangente, isto
é, considerando os aspectos culturais e as “produções humanas” (como a arte, a culinária, a
moda, por exemplo) como textos em contínuo entrecruzamento e transformação e, nesse
sentido, exemplificam como a intertextualidade permite essa espécie de “réplica original” por
meio da seguinte comparação:
35
leituras, de modo que “a leitura linear é substituída por uma leitura em travessias e
correlações, em que a página escrita não é mais do que o ponto de intersecção de extratos
provindos de múltiplos horizontes” (TOPIA, 1979, p.171).
Além dessa função de “abrir” o texto, revelando-o em seu aspecto multiforme e
ambígüo, no contexto da literatura atual, no qual a produção de Rubem Fonseca se encontra, a
intertextualidade tem o papel de revisitar o passado (seja ele histórico ou artístico-cultural)
sem negá-lo totalmente, mas avaliando-o criticamente e tornando-o presente numa nova
situação discursiva, como constata Linda Hutcheon:
[...] a intertextualidade pós-moderna é uma manifestação formal de um
desejo de se reduzir a distância entre o passado e o presente do leitor e
36
3.2 A paródia
Assim como a intertextualidade não é um fenômeno novo, a paródia também não é;
sua origem remonta à Antigüidade Clássica. Em Sant’anna (1985) constata-se que Aristóteles
(384 a.C - 322 a.C.), em sua Poética, atribui a origem do termo “paródia” a Hegemon de
Thaso (século 5 a.C.) pois, ao adotar o estilo épico para representar homens como inferiores
(e não superiores, cotejados com os deuses) promoveu uma inversão de sentidos, o que, para
ele, seria o primeiro uso deste recurso. controvérsias sobre isto, porém, na medida em que
Hipponax de Éfeso (século 6 a.C.) é considerado o “pai da paródia” por alguns estudiosos.
Seja como for, vê-se que nos seus primórdios a paródia era o símbolo de uma alteração de
sentidos.
Nas teorias posteriores referentes à paródia que seguiram essa linha de pensamento
clássico, a subversão da estrutura e do sentido de determinado segmento textual serviria como
reflexo da visão “carnavalizada” do mundo (usando um termo bakhtiniano) e a paródia seria
“um canto que desafina o tom elogioso, bem comportado, conservador das práticas
discursivas hegemônicas” (PAULINO; WALTY; CURY, 1995, p.40). Essa diferença
categórica entre o texto parodiado e o novo texto também é abordada por Affonso Romano de
Sant’Anna (1985), que considera como um dos aspectos do recurso parodístico o “desvio
total” em relação ao texto primeiro. Para ele,
[A paródia] é o texto ou o filho rebelde, que quer negar a sua paternidade e
quer autonomia e maioridade [...]. Sendo uma rebelião, a paródia é parricida.
Ela mata o texto-pai em busca da diferença. É o gosto inaugural
da autoria e
da individualidade (SANT’ANNA, 1985, p.32).
Bella Josef, no artigo “O espaço da paródia, o problema da intertextualidade e a
carnavalização” (1980), também ressalta o aspecto de ruptura e rejeição do texto primeiro
quando se trata de elaboração paródica e constata que, com essa atitude, o desvendamento
do próprio ato de escritura de um texto:
Na tentativa de descongelar o lugar-comum, a paródia põe em confronto
uma multiplicidade de visões apresentando o processo de produção do texto.
Como escrita de ruptura procura um corte com os modelos anteriores,
realizando uma inversão e um deslocamento. Ela retoma a linguagem
37
anterior, de maneira invertida, revelando a ideologia subjacente, destruindo
para construir (JOSEF, 1980, p.54).
Josef considera que, pela paródia, dá-se a retomada de uma linguagem anterior e, com
isso, a possibilidade de uma reflexão tanto sobre o texto primeiro quanto sobre aquele que
foi construído a partir da inversão deste texto. Assim, vê-se uma relação entre recurso
parodístico e metaficção. Contudo, acreditamos que essa associação sempre pode ser
estabelecida, independente se o intuito da paródia é apenas romper bruscamente com o texto
modelo; o recurso paródico se define no diálogo intertextual, ele se fundamenta numa atitude
especular de volta sobre si mesmo e, ao confrontar textos, ele está refletindo criticamente
sobre as suas próprias formas de interpretação e construção.
a autora canadense Linda Hutcheon (1985; 1991), estudando a arte do século XX,
propõe uma nova conceitualização para a paródia, abstraindo o aspecto ridicularizador que
esteve presente nas teorias anteriores. Suas argumentações têm como premissa o fato de a
paródia ser sempre textual e, conseqüentemente, ser entendida na relação entre textos. Além
disso, para defender que o intuito da paródia não é apenas rebaixar o texto primeiro, a autora
ampara-se na etimologia do termo: o vocábulo paródia tem origem grega: odos significa
“canto”, o que mostra o caráter discursivo da paródia, e para significa “contra” e também “ao
longo de”. Isto quer dizer que, se analisarmos o prefixo para, vemos que a retomada de um
texto pelo recurso paródico pode sofrer um desvio do sentido original do texto parodiado, mas
também pode revelar, ao invés de contrastes, uma intimidade entre os textos.
De acordo com a teoria de Hutcheon, a paródia instala-se no paradoxo “continuidade
com mudança”, pois tal prática incorpora o texto modelo (continuidade) e ao mesmo tempo o
“desafia”, distorce seu sentido original (mudança). Ainda, quando uma obra traz em seu cerne
um discurso anterior, mesmo que este esteja totalmente corrompido em seu sentido primeiro,
o fato de se presentificar novamente em um outro texto pode ser considerado uma espécie
de homenagem prestada ao discurso inicial.
A paródia é, pois, capaz de sacralizar o passado e ao mesmo tempo questioná-lo, olhar
criticamente para ele. Pensando nessa sua função crítica, Linda Hutcheon (1991, p.47)
considera a paródia como “uma repetição com distância crítica que permite a indicação
irônica da diferença no próprio âmago da semelhança”.
Adentramos nesse momento num ponto importante das reflexões da autora: a questão
da ironia. A paródia é uma forma irônica de intertextualidade, sendo que a ironia é a sua
38
principal estratégia retórica. O trabalho paródico consiste numa imitação textual caracterizada
por uma inversão irônica, a qual nem sempre cumpre a função ridicularizadora. Trata-se
apenas, nas palavras de Linda Hutcheon, de uma repetição “transcontextualizada”.
Há uma certa dificuldade em se conciliar teorias quando o assunto é paródia. Enquanto
muitos autores consideram o procedimento como rejeição total de determinado modelo,
outros olham o mecanismo como uma forma respeitosa de se referenci74(i)-12.1785(a)3.74(m)-2.455é295585(c)3.74(i)-12247(r )-10.1525(t)-2.164368(r)-7.2959(t)-2.16436(e)3.7noelooia-280.245 -20.64 Td[(o)2(i)-2.16558(a)3.75585( )-170.248(m)-s a-0.295585(i)-2.122(m)-2, aecmcldm 71032(i)-2.1653.74(t)-ee Liefa éaaa parznt mi
39
Provavelmente, na literatura mundial não são poucas as obras de cujo caráter
paródico nós hoje nem suspeitamos. Na literatura mundial, os discursos
pronunciados de forma totalmente incondicional e puramente monovocal
são, sem dúvida, muito poucos (BAKHTIN, 2002, p.170).
Tais romances, ao darem voz ao discurso paródico, introduzem em seu interior a
“autocrítica do discurso literário”, nas palavras de Bakhtin. Essa idéia, presente nas
argumentações do crítico, vem confirmar a nossa concepção de que a paródia está relacionada
à reflexão metatextual e, embora Bakhtin tenha se voltado mais especificamente sobre o
gênero romanesco, suas considerações aplicam-se ao nosso estudo do conto fonsequiano.
Sobre essa “autocrítica do discurso”, o teórico explica:
Em contraposição à categoria da literaturidade, o romance da segunda linha
apresenta a crítica do discurso literário enquanto tal e, sobretudo a crítica do
discurso romanesco. Essa autocrítica do discurso é a particularidade
essencial do gênero romanesco. O discurso é criticado na sua relação com a
realidade: nas suas pretensões de refleti-la fielmente, governá-la e remanejá-
la (pretensões utópicas do discurso), substituí-la como seu sucedâneo (o
sonho e a invenção substituindo a vida) (BAKHTIN, 2002, p.202, grifo do
autor).
Se esse caráter autocrítico, metalingüístico da paródia é mais facilmente aceito pelos
estudiosos, os obstáculos encontrados quando se propõe a mergulhar no universo da paródia
não estão, de forma alguma, esgotados. Além da controvérsia na distinção entre “canto
paralelo” e “canto ridicularizador”, evidenciados, também um outro par que desafia
aqueles que se dedicam ao estudo do assunto; trata-se da diferença, muitas vezes tênue, entre
a paródia e o pastiche. Tais recursos caracterizam-se, indistintamente, pela imitação textual
declarada, isto é, eles se afastam do mero plágio, o qual procura esconder suas fontes, e,
ainda, dão pistas para que seja possível identificá-los enquanto procedimentos de apropriação
textual.
Seria possível discriminá-los com mais facilidade caso a paródia fosse considerada
apenas em sua função de ridicularizar o texto-modelo. Nesse sentido, poderíamos dizer que a
paródia seria mais “debochada”, enquanto o pastiche seria mais sério, mais respeitoso.
Todavia, visto o alargamento que o conceito de paródia vem admitindo nos últimos tempos,
esse tipo de discriminação não possui tanta validade.
Encontramos, porém, alguns elementos plausíveis para o estabelecimento da diferença
entre paródia e pastiche nas considerações de Linda Hutcheon (1985, p.53). Para a estudiosa,
40
a paródia é uma “imitação com diferença crítica”, de modo que, enquanto ela opera mais em
termos de diferença (em virtude de sua aresta irônica), o pastiche, por sua vez, procura mais a
semelhança, a correspondência. Assim, o pastiche se por meio de uma cópia insistente,
sendo que é até por esse motivo que ele, freqüentemente, permanece dentro do mesmo gênero
que o seu modelo, enquanto a paródia, ao contrário, é mais flexível, mais susceptível à
adaptação.
É possível, ainda, tentar outra distinção quando se verifica como a paródia e o pastiche
se comportam na sua relação com a tradição literária. A paródia, muitas vezes, está atrelada à
idéia de ser um elemento escarnecedor dessa tradição, afastando-se, nesse sentido, do
pastiche, conforme comenta Silviano Santiago (1989, p.115): “[...] eu não diria que o pastiche
reverencia o passado, mas diria que o pastiche endossa o passado, ao contrário da paródia, que
sempre ridiculariza o passado”. Contudo, como temos evidenciado, a paródia nem sempre se
realiza nessa função ridicularizadora (no sentido de ridicularizar seu modelo ou até o passado
histórico-literário); ela promove um questionamento, uma avaliação crítica sobre o passado
sem precisar romper totalmente com ele. Cumpre notar, portanto, que mesmo encontrando
alguns pontos que os distanciam, logo esbarramos em algum aspecto que impede uma
caracterização mais precisa dos dois expedientes.
Pensando, então, em dois momentos da história literária em que muito se fala sobre
esses procedimentos o Modernismo e o Pós-Modernismo chegamos às seguintes
reflexões: ao defenderem que a paródia possuía maior efeito no período do Modernismo, visto
ter sido este, de fato, um tempo de ruptura de modelos, muitos teóricos que se dedicam às
questões pós-modernas afirmam que a arte, hoje, não se presta mais a tal rompimento, por
isso, o pastiche apareceria como o substituto do recurso parodístico. Há, entretanto, estudiosos
que não recusam o termo paródia, mesmo em se tratando de literatura pós-moderna.
Neste trabalho, por estarmos nos pautando, essencialmente, nas considerações teóricas
de Linda Hutcheon (1985), optamos por manter o uso do termo paródia em nossas
considerações, visto que é deste modo que procede a autora. Além disso, os contos de Rubem
Fonseca que primam pela reflexão metatextual são, por excelência, textos irônicos, e a ironia
é mais marcante na paródia do que no pastiche. É, portanto, exatamente sobre a ironia que nos
debruçaremos a partir deste momento de nossa pesquisa.
41
3.3 A ironia
Wellington Santos, em seu artigo “Considerações metodológicas sobre metanarrativa”
(1985, p. 586), ressaltava que a auto-reflexão nos textos literários pode se manifestar por
um processo direto, ou seja, no qual se expõe de maneira explícita a reflexão sobre a arte
dentro da obra literária, ou por um processo indireto, em que “o comentário da criação fica
implícito e envolve diferentes mecanismos, desde os mais simples até os mais sofisticados,
nem sempre fáceis de detectar ou de descrever”. Dentre estes mecanismos, o autor considera o
método intertextual como o mais adequado quando se trata de um texto metanarrativo
indireto; além disso, é possível acrescentar que a ironia é muito mais intensa nestes textos em
que a reflexão sobre a literatura se de modo velado, indireto, no nível do que é apenas
proposto ao leitor, e não mostrado abertamente.
Ao afirmar que “ironia e paródia tornam-se os meios mais importantes de criar novos
níveis de sentido e ilusão” (HUTCHEON, 1985, p.46), Linda Hutcheon dá-nos também
ensejo para relacionarmos os textos metanarrativos com o procedimento irônico. A proposta
da obra literária de se mostrar reveladora do seu fazer literário parte do princípio de uma
construção e posterior demolição da ilusão ficcional, e essa postura é extremamente
contrastante e, por isso, aproxima-se da ironia. Além disso, a reflexão metatextual valendo-se,
principalmente, da intertextualidade e da paródia, existe na coexistência de diálogos entre
textos, de modo a suscitar sempre uma gama de leituras e interpretações. Nesse sentido, a
ironia, com sua duplicidade significativa, tem a capacidade de construir sentidos segundos,
que se disfarçam num significado aparente do texto. Por tudo isso, podemos dizer que a
metatextualidade tem a propriedade de causar um efeito irônico.
Dessa forma, os “novos veis de sentido” criados pela ironia relacionam-se utilmente
à concepção de texto como uma estrutura labiríntica, conforme propomos neste trabalho. De
acordo com Muecke (1995, p.48), “a ironia consiste em dizer alguma coisa de forma que ative
não uma, mas uma série infindável de interpretações subversivas”, ou seja, o texto que se vale
da ironia é composto por, no mínimo, dois trajetos neste labirinto textual: o do que é dito e o
daquilo que se distancia deste dizer ou, pelo menos, se diferencia de alguma forma dele.
Sendo assim, o texto abre-se para revelar sentidos (caminhos) diferentes, os quais vão desde
os mais ingênuos e aparentes até os mais complexos e escondidos, provocando, portanto,
leituras dúplices e interpretações diversas.
A ironia é recorrente e ocupa uma posição de destaque no conjunto da arte da
modernidade, como destaca Arthur Nestrovski:
42
Exemplos de linguagem irônica podem ser encontrados em virtualmente
cada texto, para não dizer cada página, parágrafo ou linha escrita nos últimos
duzentos anos. Basta voltar a atenção para o que é uma palavra e todo autor
desliza para os abismos da indeterminação e da ambigüidade
(NESTROVSKI, 1996, p.9).
O estudioso também menciona a questão da “palavra” que, pela polissemia, deixa,
muitas vezes, de ser transmissora de um sentido único e passa a evocar ambigüidades. Numa
obra literária, a ambigüidade provocada pela ironia amplia-se e desconcerta, em certo sentido,
o leitor, deixando-o até desconfortável, na medida em que ele desconfia do sentido
“verdadeiro” do texto. Mas, na realidade, o texto não possui essa verdade tantas vezes
almejada, e o leitor acaba ficando sem a certeza da significação da obra ficcional que tem
diante de si.
É perceptível, ainda, com tais considerações, que a ironia está, de forma acentuada,
relacionada à própria literatura, como também comenta Nestrovski, páginas antes:
Na medida em que a ironia é uma qualidade de toda linguagem, quando se
como tal, um perpétuo deslocamento que define a própria linguagem da
arte, pode-se dizer que a literatura toda literatura é ironia. Mas na
modernidade esse reconhecimento passa a ser o tema por excelência da arte,
a
43
uma corrente filosófica centralizada no homem e que acabava com a ilusão do mundo
imaginário, conforme aponta Beth Brait (1996). Este recurso surge para colocar a literatura
como representação da realidade em xeque. Nos dizeres de Walty e Cury,
[...] a este mecanismo, de que a própria obra se utiliza para afirmar sua
consciência de jogo, buscando a cumplicidade do leitor, dá-se o nome de
ironia romântica. O texto se auto-examina e se autoconstrói (WALTY;
CURY, 1999, p.56).
A ironia romântica desmistifica a linguagem destruindo a ilusão da construção
ficcional como obra divina, e estabelece uma comunicação entre o autor do texto e o leitor.
Tal tipo de ironia vê a obra literária como um instrumento criador da realidade, e não imitador
dela; por meio deste expediente, a ficção é mostrada como uma complexa arte do disfarce,
que faz questão de exibir o seu fingimento e revelar o seu caráter fictício. Por isso, a ironia
romântica é crítica e evidencia o início de um pensamento acerca da criação literária baseado
num exercício da linguagem empreendido pelo criador da obra, pensamento este que destrói a
espontaneidade que se julgava estar atrelada à criação artística. O leitor percebe que o texto
foi produzido, elaborado por meio de um trabalho árduo com a linguagem.
A literatura que surgiu posteriormente ao período do Romantismo assimilou essa
forma de ironia de maneira bastante acentuada, sendo que ela está muito presente, mesmo que
com algumas variações, em diversos textos da era moderna e pós-moderna. Contudo, para que
a ironia tenha esse efeito de desvelar a ilusão ficcional de forma a não camuflar os
procedimentos de feitura de um texto (e até mesmo quando a ironia estiver relacionada a
outros recursos diferentes), é preciso que o autor da obra queira, propositadamente, ser
irônico, oferecendo marcas textuais para que o destinatário a perceba e a reconheça. Assim, é
imprescindível a existência de uma comunicação entre autor e leitor para que a ironia seja
decodificada, de modo que, sozinha, ela não se realiza.
A ironia, assim como a paródia, necessita do reconhecimento de sua sobreposição de
sentidos o mais epidérmico e o mais profundo para que ela seja percebida como tal. E,
ainda, a ironia acontece no cerne do dialogismo, ou seja, na interação dialogal entre um eu,
produtor do texto, e um outro, receptor do texto. Muecke evidencia a importância dessa
comunicação entre autor e leitor para o entendimento da ironia:
O ironista, em seu papel de ingênuo, propõe um texto, mas de tal maneira ou
em tal contexto que estimulará o leitor a rejeitar o seu significado literal
44
expresso, em favor de um significado ‘transliteral’ não expresso de
significação contrastante (MUECKE, 1995, p.58).
O termo “contexto” é de grande relevância no estudo da ironia. Para percebê-la, é
necessário um contexto sociocultural em comum, partilhado entre o produtor e o receptor da
ironia, sendo que, por parte do receptor, ter uma memória literária e cultural é essencial para
distinguir o segundo sentido proposto pelo produtor. Segundo Muecke (1995), o efeito irônico
se dá, portanto, quando o autor tem a intenção de ser irônico e emite alguns sinais para que o
leitor a decifre. Estes sinais podem ser um contexto em comum auxiliado pelo conhecimento
de mundo do leitor, de forma que sua bagagem de leituras anteriores, a qual mobiliza
intertextos, permite que ele faça várias analogias.
Muitos teóricos têm investigado a ironia relacionada à noção de contexto, ou
enquadrando-a em uma situação discursiva. Beth Brait, por exemplo, é uma estudiosa que
analisa a ironia do ponto de vista da enunciação, como uma estratégia discursiva, ou melhor,
entendendo-a como uma forma particular de interdiscursos. Em seu livro Ironia em
perspectiva polifônica (1996), a autora fornece algumas abordagens a respeito do conceito
segundo vários filósofos e críticos e, depois, constrói suas próprias reflexões sobre o termo.
Brait fala em “não-sinceridade” do discurso irônico por ele dizer exatamente o contrário do
que se pretendia dizer; faz, também, observações acerca das “pistas” que o autor deve dar ao
leitor para que este compreenda a ironia, e afirma que o procedimento irônico tem seu efeito
no entrecruzamento de discursos.
Beth Brait comenta também que a ironia é uma contradição que diz respeito a uma
argumentação. Ela afirma: “a ironia se produz porque o mesmo enunciado entra ao mesmo
tempo em duas classes, a saber, a dos argumentos favoráveis e a dos argumentos
desfavoráveis a uma mesma proposição” (BRAIT, 1996, p.89). Ainda para a pesquisadora, a
ironia é uma linguagem indireta que contrapõe o sentido literal e o figurado, o qual é
percebido por meio de inferências. Brait leva em consideração
[...] a idéia de que a literalidade e a figuratividade são elementos cuja relação
num discurso irônico caracterizam a ambigüidade fundadora que tem como
característica o fato de que o enunciador, ao mesmo tempo que simula,
referencializa essa simulação no próprio discurso (BRAIT, 1996, p.84).
45
Essa afirmação elucida a nossa concepção de associação entre metatextualidade e
ironia, sendo que da sobreposição do que é literal com o que é figurado emerge o tom irônico
existente dentro de uma obra metatextual, ou seja, daquela obra que ao mesmo tempo que é
ficção (ou simulação) revela criticamente sua farsa, isto é, o seu modo de produção ou
escritura.
O conceito de ironia carrega, ainda, uma carga muito pesada da noção de “oposição”,
mesmo em teorias mais recentes. Contudo, embora seja, muitas vezes, apenas um
procedimento que “diz o contrário”, a ironia, hoje, adquire um alcance muito mais amplo; está
relacionada a uma suspensão do sentido, como sugere, brevemente, Arthur Nestrovski (1996).
Tal procedimento opta, por diversas vezes, por deixar o sentido pendente, pairando no ar, o
que gera, ao invés de contrários, ambigüidades. Entretanto, esse “estar por cima” da ironia,
essa sua neutralidade não deixa de ser, também, um fingimento, na medida em que ela possui,
sim, um juízo de valor. A aresta avaliadora, para Linda Hutcheon (2000), é justamente o que a
diferencia de outros recursos que poderiam jogar com a duplicidade de sentidos, como a
metáfora ou a alegoria, por exemplo.
O juízo crítico que vem à tona por meio da ironia é essencial para o estudo da obra
contística de Rubem Fonseca que propomos neste trabalho. O discurso irônico, dialeticamente
articulado e que gira em torno de uma não sinceridade, relaciona-se ao procedimento
metatextual, conforme tentamos evidenciar; além disso, a própria ironia é metarreflexiva, pois
ela mesma tematiza a diferença entre o dito e o não dito. Cumpre notar ainda que o
desvendamento da ironia está associado ao próprio desvendamento dos sentidos do texto
ficcional, de modo que reconhecer a ironia significa também perceber que o texto permite
uma leitura, pelo menos, dúplice. Pela decifração da ironia, e também da paródia e da
intertextualidade, é possível escolher os vários trajetos de sentidos presentes numa ficção, isto
é, os trajetos desse instigante labirinto que é o texto literário.
46
4 Antropofagia: ritual histórico e criação literária
Um dos aspectos mais discutidos por dezenas de críticos quando se trata das questões
de intertextualidade é o fato de a obra literária não ser considerada um objeto artístico imóvel;
ela desfruta permanentemente de mudanças, de transformações, as quais são sentidas a cada
nova leitura. A literatura é, por si própria, algo em movimento, pois ela abriga marcas
discursivas variadas, de modo que cada obra específica traz em seu interior vozes que
existiam antes mesmo de sua criação e que vão, por sua vez, dialogar com outras que nascerão
posteriormente. O texto literário assume, pois, como postura básica, a absorção de discursos, e
essa característica fundamentada tão claramente nas teorias da intertextualidade é
metaforizada no enredo de “Nau Catrineta”, texto inserido no livro Feliz Ano Novo, por meio
do ato de “comer”, “devorar” um Outro.
O conto traz a história de um jovem escritor que estava predestinado, de acordo com
uma prática transmitida por gerações, a devorar, literalmente, a sua amada, num cerimonial
que o faria o chefe da família. Ao escrever uma história que se baseia numa tradição familiar,
Rubem Fonseca pretende revisitar e questionar uma outra tradição: a que faz parte da cultura
lusitana. Para isso, ele opta pelo diálogo intertextual com uma lenda portuguesa, a qual pode
ser conhecida, por exemplo, pelo poema a seguir, intitulado “A Nau Catrineta”, de autoria
desconhecida:
“A nau Catrineta”
Lá vem a nau Catrineta
Que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.
Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.
Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija
Que a não puderam tragar.
Deitaram sorte à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general.
47
Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal.
"Não vejo terras de Espanha,
Nem praias de Portugal;
Vejo sete espadas nuas
Que estão para te matar".
Acima, acima gajeiro,
Acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal
"Alvíssaras, capitão,
Meu capitão general!
Já vejo terra de Espanha,
Areias de Portugal.
Mais enxergo três meninas
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar".
- Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar.
"A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar".
- Dar-te-ei tanto dinheiro,
Que o não possas contar.
"Não quero o vosso dinheiro,
pois vos custou a ganhar!
- Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual.
"Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar".
- Dar-te-ei a nau Catrineta
Para nela navegar.
"Não quero a nau Catrineta
Que a não sei governar".
- Que queres tu, meu gajeiro,
Que alvíssaras te hei-de dar?
48
"Capitão, quero a tua alma
Para comigo a levar".
Renego de ti, demónio,
Que me estavas a atentar!
A minha alma é só de Deus,
O corpo dou eu ao mar.
Tomou-o um anjo nos braços,
Não o deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;
E à noite a nau Catrineta
Estava em terra a varar.
Diz a lenda que os marinheiros que não foram sorteados para servirem como alimento
para os demais tripulantes e que, portanto, chegaram vivos em terra firme, continuaram a
praticar a antropofagia. E é justamente essa prática que servirá como mote para a história de
Rubem Fonseca, que o conto inicia-se com a declamação de parte desse texto poético: o
protagonista, um jovem poeta de nome José (a personagem tem o prenome José, como o
escritor José Rubem Fonseca), ouve Olímpia, uma de suas quatro tias, recitar o poema e
lembra-se que está completando vinte e um anos. Não é, de forma alguma, uma data qualquer:
trata-se do dia em que a personagem passaria, de fato, da adolescência para a idade adulta, o
que implicava que ela se sujeitasse a um ritual de iniciação que simbolizasse o alcance da sua
maturidade, ritual este sugerido pela figura marítima, presente no poema português, uma vez
que o mar, por ser representativo de um lugar de descobrimentos e de aventuras, pode ser o
símbolo de uma espécie de “jornada de iniciação” do homem.
As tias, que cuidavam do único sobrinho varão com todo o zelo e mimo, estavam
aguardando o momento tão esperado de concretização do cerimonial que aconteceria naquela
noite. De repente, uma delas – a tia Helena – interrompe a recitação do poema para contestar a
validade daquelas palavras que estavam sendo declamadas:
É tudo mentira, disse tia Helena, nem o demônio estourou, nem anjo algum
salvou o capitão; a verdade está toda no velho Diário de bordo, escrito pelo
nosso avô antigo Manuel de Matos, que tu leste, e neste outro livro, o
Decálogo Secreto do tio Jacinto, que vais ler hoje pela primeira vez
(FONSECA, 1993, p.127-128).
49
Helena julga que não é preciso ter unicamente como válidos aqueles discursos em que
a maioria das pessoas acredita mas, numa atitude que atinge o pleno conservadorismo, a
personagem considera que a Verdade está com os seus consangüíneos, mostrando-se, assim,
excessivamente apegada à tradição familiar. Ainda, se atentarmos ao seu nome Helena
notamos uma referência à cultura helênica, berço da tradição ocidental, fato este que nos leva
a crer que a personagem é, juntamente com as suas irmãs, porta-voz da tradição. Seguindo
essa linha de pensamento, evidencia-se que os nomes das demais tias também nos remetem a
alguma forma de soberania e de vínculos com algum aspecto da tradição; as personagens
chamam-se: Regina, que significa “rainha”; Julieta, uma referência ao cânone literário devido
à famosa personagem de Shakespeare, e Olímpia, nome derivado de Olímpo que, pela
tradição mitológica, é a morada dos deuses, seres superiores aos homens.
O Decálogo a que se refere tia Helena (o qual, ironicamente, nos lembra os Dez
Mandamentos da Lei de Deus) impunha como lei soberana uma certa missão da qual não se
poderia fugir, pois fazia parte da tradição da Família; uma missão ligada não à bondade e ao
amor, mas relacionada ao esquartejamento, à morte. As tradições transmitidas por essa
espécie de revés do “Livro Sagrado” atingem toda a família: era costume, por exemplo, que as
mulheres nunca cortassem os seus cabelos, o que nos faz imaginar que as tias tinham uma
figura, no mínimo, estranha e, com o desenvolver da narrativa, vemos que elas moram num
local também, de certa forma, diferente, misterioso.
Quando a namorada do protagonista, a “doce Ermelinda” (a escolha do adjetivo não
pode passar desapercebida, pois indica o sabor da carne desta personagem que logo se
devorada) vai visitá-lo, ela sente uma sensação esquisita, um frio interior, e chega a comentar
que aquela casa lhe inspira medo. O clima sinistro e a atmosfera macabra são sugeridos até
mesmo por algumas expressões relacionadas ao campo semântico de uma natureza sombria,
tais como: “lua cheia”, brisa da noite”, “som do vento”, ou frases do tipo: “a sala pareceu
escurecer e uma lufada de inesperado ar frio entrou pela janela, balançando as cortinas
(FONSECA, 1993, p.132).
As quatro tutoras de José recebem, então, Ermê (essa é a maneira como Ermelinda
passa a ser chamada) dentro de uma sala, e lá conversam sobre as aventuras dos parentes
antigos. Nesse instante é revelado ao leitor, por meio das palavras de tia Helena, a chave para
decifrar o sentido metalingüístico do conto fonsequiano. Ela afirma: “todos os primogênitos
eram e são obrigatoriamente artistas e carnívoros e, sempre que possível, caçam, matam e
comem a presa” (FONSECA, 1993, p.129).
50
Há, nessa passagem, uma insinuante relação entre ser artista e ser carnívoro: ser
escritor é, metaforicamente, ser devorador, visto que escrever é, de acordo com a teoria da
intertextualidade, “devorar” textos. Contudo, o jovem poeta é mais do que um carnívoro, ele é
um antropófago sua missão é justamente comer da carne humana, conforme a tal lei do
Decálogo e a antropofagia, por sua vez, pode ser uma metáfora para se referir à prática
intertextual.
Desde Oswald de Andrade, com seu Manifesto antropofágico, pensa-se na
antropofagia cultural, isto é, na devoração do que havia de melhor na cultura estrangeira, sem
que se perdesse a identidade cultural brasileira. Essa sugestão oswaldiana tem alguns pontos
em comum com a teoria da intertextualidade. Como argumenta Leyla Perrone-Moisés (1990,
p.95), “a Antropofagia é antes de tudo o desejo do Outro, a abertura e a receptividade para o
alheio, desembocando na devoração e absorção da alteridade”, e essa “devoração e absorção
da alteridade”, no caso, de um outro texto, é justamente o fundamento do trabalho
intertextual.
Dfa
51
no Brasil Colônia: a própria escolha pela intertextualidade com uma lenda lusitana que mostra
naus que se aventuram mar adentro reforça a ironia fonsequiana e nos faz pensar na relação
histórica entre esses dois territórios na época dos Descobrimentos.
Para solidificar essa idéia, é necessário observar atentamente como a descrição que
José faz de Ermelinda aproxima-se do modo entusiasmado como os portugueses descreviam
as belezas da terra recém-descoberta; assim, Ermê, cujo corpo “tinha a solidez e o odor de
uma árv.67 lhW nq8.333271.24 0 Td[(a)3.74(r)2.8041.333271eqrezrdbéóssrirod -0.29314271( )--2.1”1( )--2.1éi iz, liapt , Ers
52
para atrair e devorar sua amada e, assim, cumprir a missão determinada pela tradição de seus
antepassados. Ermelinda não resiste às palavras de seu galanteador e toma, então, o
champanhe, morrendo no mesmo instante.
Nas entrelinhas do texto, é possível entender que E
53
que usara para representar a École des femmes, de Molière, peça em que o dramaturgo, em
um dos atos, apresenta uma crítica à moral que considera pecado todo o contato físico entre
um homem e uma mulher que não acontecesse no casamento. Já no instante da cerimônia, ela
veste a sua roupa favorita, usada em ocasiões especiais, isto é, a mesma que ela usara ao
representar Fedra, e sabe-se que o mito grego aborda questões relativas ao amor e aos códigos
matrimoniais. Todos esses fatos indicam que a ironia fonsequiana está, de fato, relacionada ao
casamento e à união estabelecida com a tradição literária, uma vez que essas duas peças
também estão no repertório da tradição teatral.
É por meio desse cerimonial que o ato de comer desdobra-se, pelo menos, em três
vertentes: comer no sentido de saciar a fome; comer como sinônimo vulgar de realização do
ato sexual (José concretiza o ato com Ermelinda antes de matá-la); e comer como metáfora do
procedimento intertextual. De forma semelhante, o gesto ritualístico adquire uma gama
significativa: relaciona-se à “jornada de iniciação” do homem, a qual havia sido sugerida,
inicialmente, pela simbologia do mar, figurado no poema “A Nau Catrineta” (pode ser,
também, o momento da iniciação sexual de José); a apresentação da namorada à família do
namorado também é um ritual, muito comum na nossa sociedade; o casamento em si, com
suas regras próprias, é uma espécie de rito; a antropofagia é, acima de tudo, um ritual
histórico e, ainda, a prática ritualística tem a ver com o próprio ato de escrever: a escritura é
também um ritual de iniciação – é preciso matar o “texto-pai” (o modelo) para escrever por si
próprio e passar a ser o fundador de uma nova tradição literária.
Por tudo isso, a intertextualidade no conto “A Nau Catrineta”, existindo como um
desdobramento da prática metatextual, possibilitou a criação de um texto que, apesar de curto,
é muito denso em termos de reflexões, questionamentos e alusões. Foi produzida uma ficção
que “devorou” discursos da tradição, da história lusitana e brasileira, que trouxe a
“devoração” como tema de seu enredo e que, ao mesmo tempo, serviu como arena para um
debate sobre a arte de “devorar” textos, própria do procedimento inter2.16436(e)3.74(x)-10.3015(t)-2.. pmrtm oofoela.80439(a)-6.26346( )4( )-404(a)3.74244(.71093(n)-0.294974(e )250]TJ-26d)-0.294363(e)3.74
54
5 O mundo às avessas à maneira de Fonseca: Godard e Shakespeare revisitados
Romeu e Julieta, o casal mais apaixonado da história da literatura ocidental. Mas será
que todo Romeu e toda Julieta têm que ser eternamente símbolos de um amor transcendental,
que supera até mesmo a morte? Não para Rubem Fonseca e para a reescritura que ele tece do
clássico de Shakespeare. Numa mescla entre sério e cômico, Fonseca conjuga em sua
narrativa a seriedade com o riso num efeito que, apesar de contrastante, suscita uma criteriosa
reflexão sobre a profundidade dos sentimentos humanos, sobre o relacionamento entre o
homem e a mulher, ao mesmo tempo em que nos presenteia com um texto rico em debates
sobre o universo literário, teatral e cinematográfico.
O conto em que tudo isso aparece é “À maneira de Godard”, pertencente à obra A
confraria dos Espadas. Trata-se de uma narrativa em forma de texto teatral que permite uma
série de questionamentos acerca da arte, além de fazer uma leitura muito peculiar do drama
inglês Romeu e Julieta por meio da paródia. O texto também discute, em suas entrelinhas, o
modo de construção de uma peça de teatro e, ainda, coloca em pauta uma reflexão a respeito
do conceito de carnavalização, de Mikhail Bakhtin, atualizando o debate referente ao “mundo
às avessas”.
A leitura do conto é exemplar para refletirmos sobre o quanto as narrativas de Fonseca
não se esgotam em enredos superficiais mas, pelo contrário, são um valioso material que
possibilita problematizar o universo artístico. Nesse texto, temos a história de amor e ódio,
atração e repulsa entre um homem chamado Romeu e uma mulher de nome Julieta, duas
personagens cultas, bem sucedidas na vida profissional, mas que enfrentam uma patologia:
ambas não conseguem contemplar a genitália do sexo oposto.
de início, pelos nomes das personagens, remetemos instantaneamente à tragédia
shakespeariana, contudo, apesar do tom grave, sério, suscitado por esta referência, logo somos
transportados a um tom mais leve, humorístico, advindo da situação constrangedora em que se
encontram o Romeu e a Julieta fonsequianos. Além disso, constatamos na apresentação inicial
dessas personagens psicologicamente doentes uma reflexão crítica sobre a sociedade
contemporânea, em que os indivíduos sentem-se cada vez mais cindidos, oprimidos por
doenças que dizem respeito não apenas ao físico como também à mente (vê-se, por exemplo,
que o stress e a depressão foram considerados os maiores males do século). Ainda, se
pensarmos que a condição pós-moderna, arrebatada pelas conseqüências do capitalismo
tardio, é reveladora de um caos, deixando evidente a dificuldade do indivíduo em meio a
tantas tecnologias e informações rápidas, superficiais e fragmentárias em se enxergar e
55
representar o mundo de maneira totalizadora e unitária, percebemos que a heterogenitofobia,
nesse contexto, apesar de admitir uma certa feição cômica, suscita um riso amargo, que vem a
serviço de uma grande ironia direcionada às neuroses do homem na sociedade atual.
O pós-modernismo que é, em si, um fenômeno contraditório, é revelado não apenas
nas angústias e no caos interior que toma conta das personagens Romeu e Julieta, mas
também na própria estrutura da narrativa de Rubem Fonseca, que mistura conto com peça
teatral. Essa mescla de formas é um fenômeno típico da contemporaneidade, confirmando a
tendência que a arte pós-moderna possui de ser sempre uma soma de alternativas ou, como
argumenta Maria Lucia Guelfi, o
[...] hibridismo de gêneros e ecletismo de estilos acentuam o caráter artificial
dos jogos de linguagem que dão forma às narrativas, o tema obsessivo da
pós-modernidade. A coexistência de gêneros heterogêneos e a multiplicidade
de discursos na mesma obra histórico, literário, teológico-filosófico,
popular embaralham os limites entre ficção e não ficção, entre arte e vida,
entre imaginação e razão (GUELFI, 1994, p.190).
A combinação de elementos de diferentes naturezas (no caso, a narrativa e a
dramaturgia) permite que se reflita sobre a condição da linguagem enquanto tal e as
possibilidades que ela encerra em termos de construção textual. Ao permitir essa reflexão, o
texto acaba por confessar seu caráter ficcional, por isso podemos associar esse hibridismo de
estilos, neste texto de Fonseca, como um colaborador para se pensar na prática metatextual.
Ademais, o hibridismo ainda avança ao nível do conteúdo da narrativa, que mistura aspectos
da alta cultura, como a referência ao clássico da literatura inglesa e universal, com um assunto
de baixo nível para as artes literárias, como é a figuração do erotismo e da confrontação
despudorada com as genitálias das personagens.
O texto inicia-se com a fala do Mestre-de-Cerimônias se apresentando ao público e
alertando-o sobre o que os espectadores verão em cena nos próximos momentos. Suas
primeiras palavras são:
MESTRE-DE-CERIMÔNIAS
Eu sou o Mestre-de-Cerimônias e vou logo advertindo que vocês devem
prestar muita atenção em tudo o que vai ser mostrado e dito aqui, do
contrário terão a falsa impressão, em certos momentos, de que estão
assistindo a ardilosos jogos de palavras, a estapafúrdios
exercícios verbais,
ou então cochilarão ou, mais lamentável ainda, sairão no meio do
espetáculo (FONSECA, 1998, p.73).
56
Esse diálogo com o espectador, em que o Mestre-de-Cerimônias chama a atenção do
público para o funcionamento da peça, já a caracteriza como um metateatro e, nesse sentido, a
intertextualidade com a produção de Luigi Pirandello é quase imediata: o escritor italiano foi
um dos grandes dramaturgos a explorar os efeitos do metateatro em sua peça Seis
personagens à procura de um autor (1921), na qual se relata um ensaio de teatro em que
diretor e personagens, discutindo, constróem uma contenda a respeito das formas de se fazer
teatro, de modo que o texto de Pirandello promove uma análise filosófica e metalingüística
sobre a arte teatral.
De forma semelhante, as falas do Mestre-de-Cerimônias, no texto de Fonseca,
sugerem que também estamos diante de um ensaio de teatro realizado, contraditoriamente, na
frente dos espectadores. E ele, como uma espécie de contra-regra, maneja os equipamentos,
coordena a entrada e a saída dos atores em cena e, ainda, dirige-se ao blico numa atitude
metalingüística de evidenciar quais os rumos a serem seguidos num teatro para se conseguir
uma boa representação e, principalmente, para não entediar o público:
MESTRE-DE-CERIMÔNIAS
Permitam que eu saia daqui desta cadeira para fazer uma pequena
observação. Nós estamos num teatro, e se no teatro as palavras são
importantes, o movimento também o é. Ninguém agüentaria apenas ler estas
palavras, seria um texto muito chato, e daqui a pouco ficará ainda mais
aborrecido. Como estamos num teatro, uma cama vai aparecer, Romeu vai se
deitar nela, Julieta entrará em cena, e tudo o que Romeu disser vai ser visto
por vocês. Pode entrar, Julieta. Pronto, eis Julieta. Vocês a imaginavam
assim? Desapareça, Wilson. Creio que podemos começar nossa cena, que
antes era apenas narrada por Romeu (FONSECA, 1998, p.83).
O fato de o conto de Rubem Fonseca remeter à peça de Pirandello reforça a idéia de
que realmente devemos ler o texto fonsequiano procurando os índices da metatextualidade
nele presentes, ou seja, buscando as marcas da paródia, da intertextualidade e da grande ironia
que ecoa desse conto ao descontextualizar a criação shakespeariana. Além disso, a função do
Mestre-de-Cerimônias como um contra-regra, como ele nos é apresentado, aproxima, em
certo sentido, o teatro do cinema, arte que necessita de uma pessoa encarregada dos efeitos
sonoros, de cuidar dos cenários, de indicar a entrada dos atores, etc. Sabe-se que Rubem
Fonseca tem um grande apreço pela arte cinematográfica, que ele foi roteirista de cinema e
57
que este conto, em específico, dialoga com a produção do cineasta Jean-Luc Godard, fato este
a ser retomado em momento oportuno.
O Mestre-de-Cerimônias, antes de passar a palavra às personagens que logo iniciarão
no palco uma conversa, remete-nos a um diálogo entre Sócrates e Protarco presente no Fileto,
de Platão, no qual se discute que o prazer não é o primeiro dos bens, mas, sim, o belo, a
simetria, o perfeito. A sabedoria, a ciência e as artes também viriam antes do prazer, segundo
a filosofia. No decorrer da paródia de Rubem Fonseca, após a apresentação de cenas eróticas,
esses conceitos serão desvalorizados em prol dos prazeres sexuais.
Após a apresentação do Mestre-de-Cerimônias ao público e depois de ele dar algumas
explicações referentes à encenação, as personagens entram, de fato, em cena. Entre elas está
Wilson, amigo e interlocutor de Romeu. E, assim como o Romeu e a Julieta de Rubem
Fonseca reportam-se às figuras de Shakespeare, o Wilson fonsequiano também possui uma
referência: a famosa personagem de Edgar Allan Poe, William Wilson, do conto homônimo
do escritor norte-americano.
A narrativa de Poe relata os acontecimentos passados com William Wilson, o narrador
da história, quando este descobre que um colega de classe, além de possuir o mesmo nome
que o seu, ainda compartilha com ele o mesmo tipo físico, o mesmo estilo de roupa e tem até
a mesma voz. As duas personagens entram em conflito durante toda a trama e o medo que o
narrador sente de perder sua identidade faz com que ele assassine seu oponente; contudo, esse
crime acarreta a sua própria morte.
“William Wilson”, além de trazer à cena a questão da identidade, explora a temática
do sujeito duplo e a estreita relação entre o amor e o ódio: o narrador, por mais que rejeite o
seu rival, não consegue viver sem ele, pois a morte de um implica, necessariamente, o
falecimento do outro. Portanto, Poe sugere que a rejeição ou a repressão de vários
sentimentos, como o ódio de um rival, por exemplo, pode indicar o quão importante esses
sentimentos são para a própria constituição do eu.
O conto fonsequiano estabelece um diálogo intertextual com essa narrativa não apenas
por remeter ao nome das personagens de “William Wilson”, mas por suscitar reflexões
semelhantes às do texto de Poe. O amor e o ódio que permeiam a relação entre o narrador de
“William Wilson” e o seu duplo também envolvem o relacionamento do Romeu e da Julieta
de Rubem Fonseca, de modo que fica sugerida, em ambas as narrativas, a inseparabilidade
dessas duas disposições que podem simplesmente ser duas formas de uma mesma (e talvez a
mais intensa) forma de emoção humana. Assim, ao lado da comicidade do enredo
fonsequiano, é possível depreender profundas reflexões a respeito da complexidade desses
58
sentimentos supostamente opostos mas que estão estreitamente unidos, como alerta o próprio
Wilson a Romeu quando este lhe conta dos seus desafetos com Julieta: “Cuidado. O ódio é
uma forma de dependência tão forte quanto o amor” (FONSECA, 1998, p.87).
Mais um fato que nos permite aproximar o Wilson de Rubem Fonseca do William
Wilson de Poe relaciona-se à função desse personagem na trama fonsequiana, ou melhor, à
aparente falta de uma função mais definida para ele além de ser um mero interlocutor de
Romeu. O Mestre-de-Cerimônias chega a ordenar que Wilson saia de cena “Desapareça,
Wilson” (FONSECA, 1998, p.83) –, mas o personagem insiste em permanecer ali. Ele apenas
fica em cena para ouvir a versão do amigo Romeu a respeito de seus desagradáveis encontros
com Julieta, sendo que suas falas são extremamente curtas, algumas vezes compostas de uma
única palavra. Assim, é como se Wilson fosse uma espécie de alter-ego, ou duplo, do
protagonista e sua presença em cena sugere que Romeu está conversando com sua própria
consciência: é por meio do diálogo entre eles que o leitor/espectador tem conhecimento do
que Romeu pensa e sente.
É dessa forma, por exemplo, que ficamos sabendo como foi o primeiro encontro entre
Romeu e Julieta em um seminário de pesquisa: uma série de palavras grosseiras e de
desaforos despejados. E é Wilson quem, ironicamente, chama a atenção para o nome das duas
personagens dizendo: “Romeu e Julieta, muita coincidência...(FONSECA, 1998, p.77), ou
seja, Wilson deixa para o leitor/espectador fazer a associação com o clássico de Shakespeare.
Romeu continua contando ao amigo Wilson, ou falando com sua própria consciência,
como Julieta apareceu em sua vida. Após discutir ferozmente com a pesquisadora durante o
seminário, Romeu pega um táxi e vai para sua casa, ficando três ou quatro dias trancado no
quarto. O fato de Romeu ficar exatamente neste cômodo da casa poderia sugerir alguma
atmosfera sentimental ou remeter, mesmo que sutilmente, a um clima romântico, caso os
leitores/espectadores acreditassem que Julieta apareceria em seu quarto para que eles se
entendessem e tivessem, finalmente, uma bonita história de amor. Pelo contrário, o clima
daquele quarto torna-se ainda mais pesado quando, ao invés de surgir uma cotovia na janela,
como na peça shakespeariana, aparece uma coruja, sinal de mau agouro, anunciando a
chegada de Julieta, a quem Romeu observa com receio por temer que ela tenha em mãos uma
tesoura para assassiná-lo. Romeu não titubeia ao derramar sobre Julieta não os elogios e juras
de amor da peça original, mas uma série de ofensas irônicas e repulsivas, tais como: “você é o
vibrião da cólera, um rato preto infestado de pulgas errantes, você é a xistossomose, o mal de
Chagas” (Fonseca, 1998, p. 80), ressaltando, portanto, o tom paródico e dessacralizador do
texto de Fonseca.
59
Compartilhando da mesma patologia que Romeu, Julieta resolve procurá-lo para
tentarem, juntos, uma cura para a doença que os perturba. A solução para os dois é encontrada
através de um jogo chamado “Jogo da Arte e Ciência do Partejar”, que consiste em pronunciar
uma seqüência discursiva qualquer juntamente com alguns eróticos movimentos desinibidores
que não podem ser interrompidos. Romeu e Julieta começam, pois, a discursar
incansavelmente; é como se eles revivessem, a seu modo e, portanto, ironicamente, o diálogo
entre Sócrates e Protarco, sendo que o discurso é eleito como o principal elemento para
solucionar o problema que eles enfrentam.
É, portanto, com a ajuda das palavras que Romeu e Julieta conseguem se curar, e
então entregam-se definitivamente ao amor. A peça termina, ironicamente, de maneira
romântica; as personagens, que antes se odiavam, agora chamam um ao outro de “meu amor”.
O fim trágico dos amantes de Shakespeare não ocorre; pelo contrário, o fim da história de
Fonseca, apesar de tudo, é a união feliz entre Romeu e Julieta, encontrada no prazer.
A vitória é, pois, do erotismo, dos prazeres carnais, e não da simetria, da medida e do
belo; o inferior se enaltece nesta peça-conto de Rubem Fonseca. Essa alternância de valores,
proposta pelo escritor, nos lembra o conceito bakhtiniano de carnavalização. Em A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento: o conceito de François Rabelais (1987), Bakhtin
estuda a cultura popular na obra de Rabelais, principalmente a sua obra cômica, e, na
“Introdução” do livro, expõe a sua concepção de “mundo carnavalizado”, a qual tem sido
muito útil a diversos críticos literários atuais.
O conceito reporta-se à expressão temporária de diversas formas e manifestações do
riso que se opunham à cultura oficial, e séria, do mundo feudal. Dentre elas, destacam-se as
festas carnavalescas nas praças públicas, os ritos cômicos, as paródias, as obras cômicas orais
e escritas, o vocabulário familiar, composto por insultos, juramentos, palavras de baixo calão,
entre outras. Os festejos carnavalescos eram uma espécie de “segunda vida” do povo, e eram a
própria quebra de hierarquias, tabus e regras propagados no universo medieval, de modo que
instauravam uma nova visão de mundo baseada no “avesso”. Tais festas mostravam, como
afirma Bakhtin, uma
[...] visão de mundo, do homem, e das relações humanas totalmente
diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado;
pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e
uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média pertenciam em
maior ou menor proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões
determinadas. Isso criva uma espécie de dualidade do mundo e cremos que,
sem levá-la em consideração, não se poderia compreender nem a consciência
60
cultural da Idade dia nem a civilização renascentista (BAKHTIN, 1987,
p.4-5, grifo do autor).
Bakhtin também viu na obra de Rabelais o que ele chamou de “princípio da vida
material e corporal”, ou seja, a exibição de imagens do corpo, da satisfação das necessidades
naturais, da vida sexual, assim como da bebida e da comida. Imagens estas que, apesar de não
possuírem um valor pejorativo, eram sempre exageradas e hipertrofiadas” e se encaixaram
no que Bakhtin chamou de realismo grotesco:
O traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a
transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo, na sua
indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato
(BAKHTIN, 1987, p.17, grifo do autor).
No conto de Rubem Fonseca também se nota, em certo sentido, uma forma de
rebaixamento do que é elevado, valorizando, ao contrário, aquilo que é próprio do corpo, da
matéria. Propõe-se, pois, uma inversão de valores que é próxima dos conceitos bakhtinianos
de realismo grotesco” e “carnavalização”. Tal inversão se dá de maneira bastante eficaz por
meio da realização de uma paródia, de um texto que transforma o texto modelo e novo
sentido ao texto original.
Para ampliar o sentido da paródia nesse texto de Rubem Fonseca temos que lembrar
ainda quem foi Godard, que a peça foi escrita de acordo com o estilo dele, e na razão de
Shakespeare ter sido escolhido para ser revisitado. Com relação ao dramaturgo inglês, além de
ele ser autor de uma peça teatral canonizada Romeu e Julieta (e Fonseca prima pela
reavaliação da tradição artística e cultural), Shakespeare representa ainda um marco da
modernidade. Ele subverteu os elementos da tragédia clássica, como as três unidades,
renovando o teatro de sua época. Assim, faz todo o sentido apropriar-se de alguém tão
“ousado” em sua época quando se quer criar uma arte que vai além do lugar-comum e da
convenção.
no que diz respeito a Godard, trata-se do cineasta Jean-Luc Godard, representante
do movimento do cinema francês Nouvelle Vague, iniciado no final dos anos 50. A expressão
Nouvelle Vague surgiu pela primeira vez na revista francesa L’Express, em 1958 e, a
princípio, serviu para definir um estado de espírito contestatório comum a todos os gêneros de
manifestações artísticas, mas logo o termo passou a ser aplicado exclusivamente ao cinema.
61
Os adeptos do movimento reagem contra o academicismo das produções francesas e criticam
o cinema de estúdio e as formas narrativas convencionais; eles defendem a realização de
obras com baixo custo, privilegiam as câmeras portáteis, as pequenas equipes e as filmagens
nas ruas, características que influenciam o cinema novo brasileiro.
Godard revolucionou o cinema rompendo com muitos convencionalismos tradicionais,
como aconteceu logo com seu filme de estréia À Bout de Souffle (1959). Sua carreira foi
marcada por avanços, de modo que o cineasta foi considerado um perfeito vanguardista,
chegando até mesmo a revisar ironicamente os gêneros clássicos em filmes como Une Femme
Est une Femme (1961), Vivre as Vie (1962), Les Carabines (1963), Pierrot le Fou (1965),
entre outros. Esse espírito inovador é exatamente o que Fonseca busca em suas produções,
negando regras e revendo a tradição.
Godard também ficou conhecido por subverter o estilo do cinema americano, fazendo
de suas criações uma mistura de gêneros, incorporando pedaços de literatura, história em
quadrinhos, música de alto padrão e artes plásticas. Da mesma forma, Rubem Fonseca
misturou estilos, criando um conto em formato de peça teatral, e deixou-nos evidente que suas
produções têm, mesmo que implicitamente, em meio a erotismo e linguagem popular, um
caráter avaliativo do universo artístico e literário.
O mundo às avessas de Fonseca que, nesse momento, nos mostra Shakespeare e
Godard, é aquele que subverte, que transforma as formas de escrita tradicionais, dando uma
nova feição e função ao texto literário. Sem camuflar a linguagem e utilizando a paródia e a
metatextualidade, o autor traz à cena, como atores principais, tudo aquilo que pelos séculos de
tradição artística e cultural foi digno de desprezo: o corpo, o terreno e os prazeres, fazendo
com que, à luz da idéia de carnavalização, tais imagens ocupem um lugar de destaque numa
obra de ficção.
A importância que a referência a Godard possui no conto fonsequiano extrapola,
contudo, as questões de hibridismo e de ruptura com a escrita tradicional. O próprio tulo do
enredo de Fonseca, em termos de elaboração metatextual, remete a um modo de escrever, a
um processo de escritura desse texto, o qual segue o estilo do cineasta. Se a
metatextualidade tem um espaço bem marcado logo no título dessa peça-conto (a qual, por
sua vez, explica como se constrói uma peça), ela se expande e mostra suas artimanhas ao
constatarmos que o texto fonsequiano dialoga com o Le Mépris (1963), filme de Jean-Luc
Godard que faz uma reflexão sobre o cinema, sobre como se faz cinema.
A metalinguagem é nítida no conteúdo do filme: um estúdio de cinema e um filme
sendo rodado são os elementos iniciais da história. Paul, o roteirista, recebe como encomenda
62
reescrever a Odisséia, de Homero. (Le Mépris também foi encomendado a Godard por Carlo
Ponti). Ele aceita o serviço e, paralelamente à feitura do novo enredo, o espectador entra em
contato com a intimidade do casal Paul e Camille, que enfrenta uma grave crise no casamento.
A crise nos relacionamentos, aliás, é tema constante na narrativa fonsequiana, sendo aqui
posta em discussão por meio da irônica incompatibilidade entre Romeu e Julieta, casal
canonicamente símbolo do amor e da união.
No filme, Camille mostra desinteresse pelo marido, demonstra que perdeu a atração
física por ele (e a repulsão que o Romeu fonsequiano sente pela genitália feminina pode
indicar, mesmo que seja devido a um tipo de doença, uma falta de atração pelo seu suposto
par, Julieta), e que perdeu também a afinidade, a identificação que antes tinha com Paul (de
forma semelhante, o Romeu e a Julieta de Rubem Fonseca não conseguem, a princípio, se
entender, ter afinidades, o que se esperava, principalmente, por tratar-se de um casal de nome
Romeu e Julieta). Por fim, Camille abandona o marido e vai embora com o produtor Prokosh.
Todo esse confronto repercute na forma como Paul reescreve a Odisséia, pois ele questiona a
própria relação entre Penélope e Ulisses e imagina um possível desprezo deste pela amante.
No conto fonsequiano, por duas vezes o Mestre-de-Cerimônias fornece dicas para
compararmos a peça que ele coordena com um filme de cinema. Na primeira pista ele afirma:
“o palco escureceu, dois ou três espectadores tossiram na platéia. Engraçado, no cinema
ninguém tosse, talvez por falta de oportunidade, pois a ação é contínua, mas no teatro, nos
concertos, qualquer intervalo é invadido por esses ruídos” (FONSECA, 1993, p.83). E, na
segunda: “mais uma vez, a luz vai apagar e acender. Isso pode parecer esquisito num teatro,
mas no cinema acontece a todo instante” (FONSECA, 1993, p.110).
Seguindo a dica do Mestre-de-Cerimônias e buscando uma possível aproximação entre
o espetáculo teatral e o filme, é possível pensar, novamente, em como semelhanças entre a
peça-conto de Fonseca e o filme de Godard. A cena em que as personagens fonsequianas
estão movimentando-se eroticamente faz lembrar a cena do filme que mostra os movimentos,
as insinuações, os olhares sensuais de Camille, de forma que o filme mais sexual de toda a
Nouvelle Vague é apropriado por Fonseca na escritura de uma narrativa que coloca lado a lado
63
meio da exposição das genitálias das personagens. Desse modo, não , em nenhum dos
enredos, espaço para qualquer tratamento rebaixado das partes corporais.
Devido a essas semelhanças, é possível afirmar que Rubem Fonseca, de fato,
apropriou-se da história godardiana para escrever o seu conto, fato que ele não esconde, uma
vez que o tulo de seu enredo evidencia alguma forma de apropriação. Além disso, outra
associação entre o trabalho do escritor e do cineasta pode ser estabelecida: o nome do filme de
Godard, Le Mépris, foi traduzido como O Desprezo, pois trata do desprezo que Camille sente
por Paul. Mas é, também, o desprezo que inicialmente o Romeu fonsequiano direciona a
Julieta e é, ainda, o desprezo que a figuração do corpo recebeu pela cultura literária
tradicional. Assim, o tema do desdém inscrito no filme perpassa também o conto de forma
que, revisitando Godard e Shakespeare e promovendo uma reflexão metatextual, Rubem
Fonseca, à sua maneira, isto é, por meio da sua peculiar ironia, encena” um enredo que
coloca o prazer, o carnal e o baixo, que foram por muito tempo depreciados nas manifestações
literárias, no centro do diálogo tanto com um texto da alta literatura quanto com a tão
valorizada sétima arte.
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6 Corações solitários, corações dissimulados: a arte do fingimento
A criação artística e, de modo especial, a elaboração literária vinculam-se facilmente à
idéia de fingimento. Criar é dar existência a um universo que independe da realidade, embora,
na maioria das vezes, esteja pautado nela. E o artista, grande artífice da criação e, portanto, do
logro, busca, pelo exercício da verossimilhança, fingir que o impossível, o irracional, o
ilógico e o que não tem fundamento na vida real podem acontecer, caso estejam de acordo
com uma lógica interna por ele arquitetada dentro da obra de ficção. Nesse sentido, ao se
produzir um texto literário, a realidade perde forças e ganham espaço a dissimulação, a ilusão
e, conseqüentemente, o jogo com a linguagem.
No conto “Corações solitários”, inserido no livro Feliz Ano Novo, Rubem Fonseca
aborda como um dos temas centrais justamente o ato de fingir, o qual está na gênese da
própria escritura de uma obra literária, uma vez que a literatura é, por si só, conforme constata
Lélia Parreira Duarte (1994, p.54), um “campo propício para o fingimento e, portanto, para a
ironia e o humor”. O fingimento é, pois, tema desse enredo e, ao mesmo tempo, objeto que
permite a reflexão metatextual. Ainda, ao lado do questionamento sobre a criação artística que
o termo instiga, pode-se também avaliar, por meio deste vocábulo, o alcance da ironia que,
além de estar presente nas falas das personagens, na estrutura do texto e no conteúdo do
enredo, ela própria é tida como um discurso fingido e que, mesmo temporariamente, esconde
sentidos para, num segundo momento, revelar a sua dissimulação.
E não são apenas o fingimento e a ironia recursos expressivos no conto fonsequiano
mas, também, o humor (elemento mencionado por Duarte) faz parte da narrativa e tem um
sentido especial relacionado à metatextualidade: a arte, de maneira lúdica, explica-se e torna-
se espaço propício para o debate acerca da construção textual, como confirmamos,
novamente, nos estudos de Duarte:
Na perspectiva do humor, o fingimento será reduplicado: além de usar
máscara e representação, o texto exibirá os artifícios que usa. Nesse caso
abrem-se os bastidores da criação, pelo menos para os leitores atentos,
revelando-se as artimanhas da construção textual, [...] (DUARTE, 1994,
p.67).
O entendimento estético-estrutural de uma obra literária passa, de alguma forma, pela
estreita relação entre criar e fingir. Aristóteles, em sua Poética, apontava para este fato ao
argumentar que a arte nasce da “imitação”, a qual é, essencialmente, fingimento:
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Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geram a poesia. O imitar é
congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele
o mais imitador e, por imitação, apreende as primeiras noções), e os homens
se comprazem no imitado [...] Sendo, pois, a imitação própria de nossa
natureza (e a harmonia e o ritmo, porque é evidente que os metros são partes
do ritmo), os que ao princípio foram mais naturalmente propensos para tais
coisas, pouco a pouco, deram origem à poesia, procedendo desde os mais
toscos improvisos (ARISTÓTELES, 1994, p. 106-107).
Marysson Siqueira Borges (2001), ao refletir sobre a vinculação entre arte e máscara,
também cita Aristóteles, assim como vários nomes que seguiram a mesma linha de raciocínio
do pensador grego. Entre eles, o pesquisador destaca Erich Auerbach com suas reflexões
propostas no epílogo de Mimeses, as quais permitem inferir que a verossimilhança, conforme
mencionamos, consolida a concepção da obra literária enquanto imitação, sendo que o
fingimento é o próprio objetivo almejado pela arte. Para sustentar sua argumentação, Borges
ampara-se, ainda, na etimologia do termo “ficção” que, derivado do latim fingere, associa-se
às idéias de dissimulação, imaginação e composição, o que nos faz concluir que o ato de
criação artística está, de fato, relacionado aos conceitos de invenção e fingimento.
“Corações solitários”, conto escolhido para esta investigação, tem como ingrediente
essencial o ato de fingir. A perspectiva enganosa perpassa toda a trama. Tal narrativa conta a
história de um jornalista, ex-repórter de polícia, que, após ser dispensado de seu antigo
emprego, consegue trabalho no jornal Mulher, uma publicação de baixo conceito: “formato
tablóide, manchetes em azul, algumas fotos fora de foco. Fotonovela, horóscopo, entrevistas
com artistas de televisão, corte-e-costura” (FONSECA, 1993, p.26).
A ironia e a dissimulação são postas à mostra nas primeiras linhas do conto quando
o jornalista, que é também o narrador do texto, conta ao editor do jornal que perdeu o
antigo emprego porque a sociedade andava muito pacata, sem crime algum, de modo que ele,
como repórter policial, não tinha assunto para as suas matérias:
Eu trabalhava em um jornal popular como repórter de polícia. muito
tempo não acontecia na cidade um crime interessante envolvendo uma
rica e
linda
jovem da sociedade, mortes, desaparecimentos, corrupção, mentiras,
sexo, ambição, dinheiro, violência, escândalo.
Crime assim nem em Roma, Paris, Nova York, dizia o editor do jornal,
estamos numa fase ruim. Mas daqui a pouco isso vira. A coisa é cíclica,
quando a gente menos espera estoura um daqueles escândalos que dá matéria
para um ano. Está tudo podre, no ponto, é só esperar.
Antes de estourar me mandaram embora (FONSECA, 1993, p.25).
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Acentua-se o sentido irônico do trecho quando, por meio da auto-intertextualidade,
recorremos às muitas narrativas de Rubem Fonseca que abordam justamente o crime e a
violência como os maiores males da atual sociedade, estando presentes por toda a parte. É
contraditório, ou enganoso, pensar que a personagem perdeu o emprego pelo fato de estarmos
vivendo um período de paz e tranqüilidade, por isso, teríamos aí, provavelmente, um primeiro
indício de fingimento nessa narrativa.
Contudo, mesmo se verdadeiramente a realidade não oferecesse a matéria que o
jornalista tanto necessita, é possível manipular, moldar essa realidade. É exatamente essa a
proposta do jornal Mulher (um periódico feito para a
mulher da classe C, segundo explica o
editor-proprietário) no qual, na sua seção “De mulher para mulher” uma espécie de
consultório sentimental inventam-se cartas de possíveis leitoras, assim como criam-se as
respostas às cartas que, na verdade, nunca existiram.
A invenção das correspondências, que estará entre as funções do narrador-personagem
dentro do jornal, deve, ainda, ser assinada por um pseudônimo feminino. Essa outra faceta do
fingimento é uma peculiaridade da publicação de Mulher. Até mesmo o dono do periódico
não usa seu nome verdadeiro ou qualquer pseudônimo masculino; seu nome é Maria de
Lourdes. Peçanha, o tal editor-proprietário, fica, inclusive, extremamente enfurecido quando o
jornalista-narrador lhe diz que, para prestar duas homenagens, quer usar o nome Nathanael
Lessa para assinar a seção. Enjuriado e de modo grosseiro Peçanha o rechaça:
Primeiro, não é um nome como outro qualquer. Segundo, não é nome da
classe C. Aqui usamos nomes do agrado da classe C, nomes bonitos.
Terceiro, o jornal homenageia quem eu quero e eu não conheço nenhum
Nathanael Lessa, e finalmente a irritação de Peçanha aumentara
gradativamente, como se ele estivesse tirando um certo proveito dela – aqui,
ninguém, nem mesmo eu, usa pseudônimo masculino. Meu nome é Maria de
Lourdes! (FONSECA, 1993, p.26).
A escolha pelo nome Nathanael Lessa a primeira homenagem insere-se na
proposta de construção do texto fonsequiano pela perspectiva irônica, isso devido às relações
entre “Corações solitários” e o romance Miss Lonelyhearts, do escritor norte-americano
Nathanael West. Por meio do procedimento intertextual, Fonseca apropria-se de alguns
elementos da obra de West dando a eles um significado novo, de modo que uma história
originalmente de cunho subjetivo e que traz conflitos de ordem existencial é utilizada para a
67
elaboração de um enredo cômico, irônico e construído sob o enfoque do disfarce, do
fingimento.
O primeiro aspecto que aproxima as duas narrativas situa-se nos títulos, que
lonelyhearts é traduzido para o português como “corações solitários”. As tramas também são
semelhantes, como é possível perceber com o seguinte trecho do texto inglês:
Um homem é contratado para dar conselhos aos leitores de um jornal. O
emprego é um atraso de vida, e o jornal inteiro o considera uma piada. Ele
aceita o emprego porque poderia levar a uma coluna de fofocas e, de
qualquer forma, está cansado de ser repórter. Também considera o emprego
uma piada mas, depois de vários meses, a piada começa a perder a graça.
Percebe que a maioria das cartas são súplicas profundamente humildes por
conselhos morais e espirituais, expressões inarticuladas de um sofrimento
genuíno. Descobre também que seus correspondentes o levam a sério. Pela
primeira vez na vida é obrigado a examinar os valores
que governam sua
vida. Esse exame lhe mostra que é a vítima da piada, e não seu perpetrador
(WEST, 1994, p.55 apud BORGES, 2001, p.176).
Em ambos os enredos um jornalista, responsável pelo consultório sentimental de
um periódico, que se encontra em conflito com a tarefa que deve exercer. No romance de
West, entretanto, as correspondências recebidas são verdadeiras e revelam os sofrimentos e as
angústias dos leitores da publicação, diferentemente da ficção fonsequiana em que o
profissional fabula as aflições dos seus correspondentes, fato este que dá maior sustentação ao
discurso irônico do conto.
Quanto à segunda homenagem, trata-se de Ivan Lessa, escritor brasileiro que, na
década de 1970, inventava correspondências numa espécie de consultório sentimental do
jornal Pasquim. Outras homenagens ainda serão propostas pelo narrador tão logo ele obtenha
outras funções dentro do jornal. O emprego, aliás, foi conseguido quase à revelia do próprio
dono da publicação, o qual, provavelmente, permitiu a entrada desse novo membro por
saber que ele era primo de um sujeito que trabalhava no Banco do Brasil, para o qual o jornal
devia dinheiro. Foi dessa forma, portanto, que o jornalista passou a ser integrante de Mulher,
podendo ser o único a usar um pseudônimo masculino, com direito até à titulação de doutor:
Dr. Nathanael Lessa.
As primeiras cartas inventadas por Nathanael Lessa são desastrosas, uma vez que as
respostas são, ironicamente, muito verdadeiras, demasiadamente realistas e, portanto, em
desacordo com as estratégias de Mulher:
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Prezado dr. Nathanael Lessa. Eu arranjei uma bolsa de estudos para minha
filha de dez anos, numa escola grã-fina da zona sul. Todas as coleguinhas
dela vão ao cabeleleiro, pelo menos uma vez por semana. Nós não temos
dinheiro para isso, meu marido é motorista de ônibus da linha Jacaré – Caju,
mas disse que vai trabalhar extraordinário para mandar Tânia Sandra, a
nossa filhinha, ao cabeleireiro. O senhor não acha que os filhos merecem
todos os sacrifícios? Mãe dedicada. Vila Kennedy.
Resposta: Lave a cabeça da sua filhinha com sabão de coco e coloque
papelotes nela. Fica igual ao cabeleireiro. De qualquer maneira, sua filha não
nasceu para ser bonequinha. Aliás, nem a filha de ninguém. Pega o dinheiro
do extraordinário e compra outra coisa mais útil.
Comida, por exemplo
(FONSECA, 1993, p.28).
Por não gostar da maneira como o jornalista estava conduzindo o consultório, Peçanha
a ele algumas diretrizes, tais como: “ponha alegria, esperança, tranqüilidade nas cartas, é
isso que eu quero” (FONSECA, 1993, p.29). Desse modo, fica nítida a proposta do jornal de
proporcionar a evasão dos problemas aos seus leitores, criando um mundo fantasiosamente
artificial no qual, com algumas palavras de consolo e por meio de alguns conselhos, é possível
escapar dos conflitos cotidianos. Essa criação de mundos, que sobrevive graças ao fingimento
que está na base da publicação do jornal, também serve como pano de fundo para reflexões
acerca do próprio contexto histórico e cultural da época.
Sabe-se que em meados da década de 1970 o Brasil encontrava-se submisso à ditadura
militar e que, ao lado de muitas represálias no âmbito cultural, criou-se uma “Política
Nacional de Cultura” que tinha o objetivo de incentivar as produções artísticas que seguissem
um ideário nacionalista, o qual se tornou o padrão estético-ideológico exigido. A arte deveria,
portanto, estimular o patriotismo e engrandecer a nação. Destarte, quando, no conto
fonsequiano, o editor pede que as cartas sejam mais otimistas, mascarando a dureza da
realidade, é possível perceber uma crítica aos dizeres ufanistas propagados no período. De um
outro ponto de vista, também se pode pensar que as intervenções do editor do jornal na
escritura das cartas simbolizam a própria intervenção do Estado no período da repressão
militar, o qual recheava os editoriais e as revistas com conteúdos supérfluos no intuito de
desviar a atenção da população sobre os assuntos sociais e políticos do país.
De qualquer forma, as palavras de Peçanha, requerendo uma boa dose de esperança ao
discurso realista do jornalista-narrador, revelam o tom paródico e dessacralizador que permeia
toda a narrativa fonsequiana pois, por meio do espaço textual da ficção, discute-se o
panorama político e cultural em que o conto foi escrito. A paródia também se estende ao
discurso presente nas revistas destinadas ao público feminino, muitas vezes repletas de
69
sentimentalismo, de modo que as perguntas e as respostas inventadas possuem uma
linguagem exagerada e pomposa, chegando a mesmo a beirar a caricatura, de tão
melodramáticas que são:
Dr. Nathanael Lessa. Meu marido morreu e me deixou uma pensão muito
pequena, mas o que me preocupa é estar só, aos cinqüenta e cinco anos de
idade. Pobre, feia, velha e morando longe, tenho medo do que me espera.
Solitária de Santa Cruz.
Resposta: Grave isto em seu coração, Solitária de Santa Cruz: nem dinheiro,
nem beleza, nem mocidade, nem um bom endereço dão felicidade. Quantos
jovens ricos e belos se matam ou se perdem nos horrores do vício? A
felicidade está dentro de nós, em nossos corações. Se formos justos e bons,
encontraremos a felicidade. Seja boa, seja justa, ame o próximo como a si
mesma, sorria para o tesoureiro do INPS, quando for receber a sua pensão
(FONSECA, 1993, p.29).
A invenção de um mundo melhor compreende mais uma face da dissimulação e do
disfarce que recheiam a narrativa
e, ainda, incita uma discussão muito atual a respeito de um
tipo de texto que, apesar de não ter possuído um espaço tão significativo na época de escritura
desse conto, hoje tem sido muito questionado e até criticado: o texto de auto-ajuda. É
engraçado e, ao mesmo tempo, irônico o modo como Fonseca aborda a influência que escritos
dessa natureza exercem sobre grande parte da população – leitores que acreditam numa
solução eficaz, simples e até imediata para os seus problemas. Contudo, a ironia no conto
torna-se maior ao pensarmos que esses textos são, ao cabo, discursos fictícios, no sentido de
serem criados, independente de proporcionarem ou não alguma ajuda. Ademais, ao
constatarmos que, de acordo com o Correio Brasiliense, em 2003 foram produzidos 855
títulos e 4,6 milhões de exemplares pertencentes a esta categoria que já está entre as sete mais
compradas, torna-se nítido como a narrativa de Fonseca, embora tenha sido escrita na década
de 1970, proporciona aguçadas reflexões acerca dessa produção tão divulgada neste princípio
do século XXI.
Em “Corações solitários”, o otimismo que, agora, parece ter agradado Peçanha faz
com que este delegue ao jornalista-narrador outra função: a de escrever a fotonovela. A tarefa
é aceita e um novo pseudônimo é criado; desta vez, Clarice Simone, mais duas homenagens,
como declara o narrador. Trata-se, provavelmente, das escritoras Clarice Lispector e Simone
de Beauvoir; a primeira, apesar de nunca ter aceitado o rótulo de escritora feminista, traz em
muitas de suas obras personagens femininas como protagonistas, e a segunda foi, de fato, um
ícone feminista, tendo passado, por muito tempo, a imagem de uma mulher dura e com ideais
70
muito bem definidos, conforme constatamos em artigo publicado pela Folha de S. Paulo, em
maio de 2006. As referências a esses dois nomes aumentam o sentido dessacralizador do
conto que, como já mencionamos, está parodiando os discursos feministas.
A nova incumbência do jornalista deveria ser concluída em minutos e, como não havia
tempo para elaborar uma história totalmente original (exigiu-se que a novela fosse escrita em
apenas quinze minutos), o narrador recorre a uma “fórmula”, isto é, ele apropria-se de enredos
pertencentes à literatura universal dando a eles uma feição de acordo com a realidade atual do
Rio de Janeiro ou de qualquer metrópole nacional. Mais uma vez, a cópia, a imitação e o
disfarce tornam-se visíveis no enredo de “Corações solitários”, como elucida o excerto:
Tésio, bancário, morador na Boca do Mato, em Lins de Vasconcelos, casado
em segundas núpcias com Frederica, tem um filho, Hipólito, do primeiro
matrimônio. Frederica se apaixona por Hipólito. Tésio descobre o amor
pecaminoso entre os dois: Frederica se enforca no pé de manga do quintal da
casa. Hipólito pede perdão ao pai, foge de casa e vagueia desesperado pelas
ruas da cidade cruel até ser atropelado e morto na avenida Brasil
(FONSECA, 1993, p.34).
Esse enredo, que tem como ingrediente “Eurípedes, pecado e morte” (FONSECA,
1993, p. 34), como afirma o jornalista, é apenas um exemplo das muitas criações feitas pelo
personagem. Contudo, essa tarefa é intercalada com a invenção das correspondências, e uma
carta em especial acentua a ironia que se instaurou desde o início da narrativa; o consulente é
verdadeiro, ele realmente escreve para o consultório pedindo conselhos para o seu drama: o
fato de ele ser homossexual e sofrer por ser tão enrustido, não conseguindo revelar a sua
opção sexual para a sociedade.
O fato mais “desconcertante” é que o sujeito que vive esse conflito e que assina as
correspondências verídicas como Pedro Redgrave, na verdade, é Peçanha, o editor-
proprietário do jornal Mulher, como se descobre com certa surpresa no final da narrativa. Era
ele quem precisava de palavras de esperança e de otimismo, por isso sempre exigia do
jornalista que este escrevesse com entusiasmo e com dizeres de . Ironicamente, quando o
jornalista mostra a Peçanha a carta de Pedro Redgrave sem saber, ainda, que se tratava da
mesma pessoa, o editor cinicamente pede: “acrescente na sua carta uma frase animadora,
como, por exemplo, escreva sempre” (FONSECA, 1993, p.32). O jornalista acata o pedido e
Pedro/Peçanha escreve mais três cartas.
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A farsa de Peçanha começará a ser descoberta com a chegada de Pontecorvo, um
pesquisador motivacional que vem revelar que os leitores do periódico Mulher não são
mulheres da classe C, mas, homens da classe B, como o próprio Peçanha, por exemplo. O
leitor do texto fonsequiano é, pois, convidado, cada vez mais, a desvendar o fingimento
maquinado pelo editor e, conseqüentemente, as ironias do conto. Ele é surpreendido com a
revelação da identidade do consulente verdadeiro e é levado a retomar a narrativa procurando
os indícios de que, desde o início, o homossexual que pedia conselhos a respeito de como
lidar com um amor que, por ser secreto, estava fazendo-o sofrer, era o proprietário do jornal.
E, ao atentarmos para as atitudes de Peçanha, podemos perceber que todas aquelas mulheres
da classe C que ele havia inventado como sendo o público consumidor de sua publicação são,
na realidade, ele próprio.
Um forte indício de que Peçanha está sendo dissimulado é, por exemplo, a reação
(descrita de forma grotesca e cômica) do editor quando Pontecorvo desmascara, por meio de
pesquisas, que os leitores de Mulher são homens:
Primeiro Peçanha ficou pálido. Depois foi ficando vermelho, e depois
arroxeado, como se estivesse sendo estrangulado, a boca aberta, os olhos
arregalados, e levantou-se da sua cadeira e caminhou cambaleante, os braços
abertos, como um gorila doido em direção a Pontecorvo. Uma visão
chocante, até mesmo para um homem de aço, como Pontecorvo, até mesmo
para um ex-repórter de polícia. Pontecorvo recuou ante o avanço de Peçanha
até que, com as costas na parede, disse, tentando manter a calma e a
compostura: Talvez os nossos técnicos tenham se enganado.
Peçanha, que estava a um centímetro de Pontecorvo, teve um violento tremor
e, ao contrário do que eu esperava, não se atirou sobre o outro como um cão
danado. Agarrou os próprios cabelos com força e começou a arrancá-los,
enquanto gritava farsantes, vigaristas, ladrões, aproveitadores, mentirosos,
canalhas. Pontecorvo, agilmente, escapuliu em direção à porta. Peçanha
correu atrás dele atirando-lhe os tufos de cabelo que arrancara da própria
cabeça. Homens! Classe B!, rosnava Peçanha com ar aloprado (FONSECA,
1993, p.38-39).
Após ter expulsado Pontecorvo, Peçanha levanta calúnias contra os pesquisadores de
um modo geral, chamando-os de “manipuladores de estatísticas”, “falsificadores de
informações”, concretizando uma completa inversão no horizonte da narrativa, na medida em
que se finge que as pesquisas, os dados constatados são falsos, ao mesmo tempo em que a
verdade está, ironicamente, nas cartas inventadas, nos pseudônimos criados, nos conselhos
fabulados. Assim, o que é verdadeiro torna-se falso e o que, a princípio, é falso encobre a
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mais pura realidade. Todo esse panorama de fingimento é possível graças à ambigüidade, à
polifonia e aos duplos sentidos suscitados pelo discurso irônico que percorre toda a narrativa.
Nesse conto, além de evidenciar a discordância entre as ações narradas e o que pode
ser lido implicitamente, isto é, por detrás dessas ações, a ironia propõe uma leitura mais atenta
da narrativa, a qual se vale da dúvida, da imprecisão e conta com o leitor para “desmascará-
la”, ou seja, para desvendar os sentidos até então escondidos. O discurso irônico também
auxilia a reflexão acerca da literatura entendida como arte do fingimento. Quando Duarte
afirma:
Ironia e literatura têm, portanto, uma estrutura comunicativa; ambas
dependem de um receptor para que possam existir realmente. A ironia
depende de um receptor para ser compreendida ou até para existir; o texto
deseja o leitor e usa artifícios para conquistá-lo e prendê-lo, sendo o
fingimento da ironia um dos aspectos utilizados para isso (DUARTE, 1994,
p.65),
é possível, ao pensar nos mecanismos irônicos, refletir também sobre a própria escritura de
uma obra literária, a qual utiliza certos artifícios, muitas vezes baseados na ironia, para atrair a
atenção do leitor. Assim, na medida em que o conto fonsequiano incita um proveitoso debate
sobre a ironia, conseqüentemente, ele colabora para uma reflexão metatextual, ainda mais se
levarmos em conta que toda criação artística é fingimento e que uma das funções da literatura
é, ironicamente, inventar o real sem perder a ilusão da realidade.
O fingimento que está, pois, na gênese de toda criação artística e que é tema de
“Corações solitários” atualiza-se pela figura da máscara; por um lado, o ato de escrever
permite uma série de mascaramentos” (representados, principalmente, pelas ironias) e, por
outro, o conto em si apresenta as relações humanas revestidas pelas máscaras impostas pelo
convívio social, de forma que o conflito entre a essência e a aparência, a mentira e a não
sinceridade quanto à própria personalidade possuem presença marcante na narrativa.
A máscara simboliza uma espécie de regra que deve ser seguida e que oprime a
individualidade do sujeito, o qual passa a se comportar segundo certas convenções que
sufocam o seu verdadeiro modo de ser e fazem com que ele viva como se tivesse sido
eternamente rotulado. É o que vemos com as personagens do conto, nitidamente com suas
identidades violadas e agindo de modo artificial. No caso de Peçanha, por exemplo, a criação
de todo aquele “esquema” que compõe o jornal Mulher, baseado num mundo artificialmente
feminino, serve para encobrir a sua personalidade que é, também, feminina. Ele fantasia e cria
73
uma outra realidade e, para poder conviver sem constrangimentos perante a sociedade, tem
que vestir a máscara da heterossexualidade.
O narrador também sofre pelos convencionalismos sociais. Ele acredita que seu
passado como repórter de polícia pode minimizar sua capacidade intelectual perante os
colegas do jornal, por isso, veste a máscara de homem culto, citando diversos livros e
defendendo-se o tempo todo contra certos ataques que recebe. Por pelo menos três vezes,
percebe-se como o personagem está sufocado pela máscara que incorporou de indivíduo
instruído, fato este que o leva, constantemente, a entrar em conflito consigo mesmo. Na
primeira, quando Agnaldo/Mônica Tutsi, o fotógrafo, pede que o jornalista escreva a
fotonovela mais rápido, como fazia o antigo funcionário, ele derrama sua ira em seus próprios
pensamentos:
Esse fotógrafo idiota pensava o quê? Só porque tinha sido repórter de polícia
isso não significava que eu era um bestalhão. Se Norma Virgínia, ou qual
fosse o nome dele, escrevia uma novela em quinze minutos, eu também
escreveria. Afinal li todos os trágicos gregos, os ibsens, os o’neals, os
becketts, os tchekhovs, os shakespeares, as four hundred best television
plays. Era chupar uma idéia aqui, outra ali, e pronto (FONSECA, 1993,
p.30).
Na segunda vez, ao ser acusado de plagiar um filme italiano, o jornalista fica mais
enraivecido ainda, porém, num primeiro momento, finge passividade. Mas, quando o autor da
acusação afasta-se, ele desabafa: “Canalhas, cia de babões, porque eu fui repórter de
polícia estão me chamando de plagiário” (FONSECA, 1993, p.32). Numa outra peleja com o
fotógrafo das fotonovelas, o narrador não agüenta e, finalmente, dirige-se a ele, explicando:
Cito os clássicos apenas para mostrar o meu conhecimento. Como fui
repórter de polícia, se não fizer isso os cretinos não me respeitam. Li
milhares de livros. Quantos livros você acha que o Peçanha leu?
(FONSECA, 1993, p. 35).
Com esses exemplos, verificamos que o uso de máscaras que vem a serviço do
falseamento da identidade afeta as personagens do conto, aumentando o teor irônico e a
perspectiva do fingimento que atravessa a história. As questões relacionadas à aparência, à
mentira e à dissimulação que regem o comportamento delas também é observado no conteúdo
das cartas inventadas e das fotonovelas escritas. É o que se vê, por exemplo, na
74
correspondência da Mãe Dedicada que, prezando a aparência, quer que sua filhinha pobre
fique parecida com as colegas ricas; também a carta da Doméstica Resignada que sabe que
é enganada pelos vendedores da feira, mas acredita que Deus irá castigar os mentirosos; ou,
ainda, a da Virgem Louca da Parada de Lucas que questiona a sinceridade do namorado que
quer “experimentá-la” antes de casar; a Solitária de Santa Cruz, por sua vez, preocupa-se por
achar que os homens apenas dão valor às aparências, tendo medo de ficar só por ser velha,
feia e por morar longe e, finalmente, Odontos Silva compartilha com o conselheiro
sentimental a sua decepção por ter sido abandonado por uma namorada também apegada às
aparências certa vez ele teve uma enorme “vontade de ser verdadeiro” e revelou a ela que
usava dentaduras. A moça o largou imediatamente.
No caso das fotonovelas, o tema da farsa se mantém: é na mescla de Romeu e Julieta
com Édipo Rei, por exemplo, que temos a história de dois jovens apaixonados que passaram a
vida sem saber de uma verdade: o fato de eles serem irmãos. Já a falsa personalidade é o dado
que norteia a história de Roberto, personagem que descobre que sua noiva, Betty, (que ele
julgava ser virgem) é, na verdade, uma prostituta. Em ambas as novelas, a frustração e a dor
são as conseqüências sofridas por aqueles que desvendam a mentira.
É perceptível, por tudo o que foi exposto, que não qualquer elemento de “Corações
solitários” que não esteja envolto pelo conceito de fingimento e de seus desdobramentos, tais
como: o logro, a mentira, a dissimulação, a invenção, a máscara, e outros. O conto expõe,
constantemente, fingimentos que se desenvolvem sob inúmeras perspectivas: na falsa paz que
vigora na sociedade, nos pseudônimos das personagens, na fabulação das cartas e das
fotonovelas, na construção de uma imagem favorável da nação, na invenção do tipo de leitor
do jornal, na sexualidade disfarçada do editor, na elaboração de uma linguagem irônica e
exagerada, etc.
A narrativa também sugere, à luz de uma reflexão metatextual, que o texto literário em
que se discutem as facetas da dissimulação é, ele próprio, construído utilizando artifícios do
fingimento, sendo que a ironia é o principal recurso utilizado. O conto confirma a idéia
inicialmente argumentada de que criar ficção é fingir; a arte em si é imitação e imitação é, por
sua vez, fingimento. A metatextualidade, ainda, é a maior colaboradora para o
desmascaramento da “falsidade” que recobre a criação artística e para o desnudamento, diante
do leitor, do exercício artístico. E, no momento em que a arte é desvelada e que se percebe
que a função da ironia presente na narrativa é justamente mascarar a realidade do discurso,
entra-se nas camadas mais profundas do texto e constata-se que tudo o que foi arquitetado
pelo artista foi possível graças a uma fascinante e laboriosa arte do fingimento.
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7 Ler a cidade, ler o texto: o submundo tornado palavra na narrativa de Fonseca
De um lado, o texto, o leitor, o escritor, a leitura e a literatura são freqüentemente
tematizados na obra de Rubem Fonseca. De outro, a metrópole, a vida moderna, o espaço
urbano, enfim, a cidade, constituem inquietações constantes na produção do autor. Por que
não conjugar esses dois aspectos num conto que considera o perambular pelos centros
cariocas como uma arte, como um método eficaz para recolher material que servirá para a
escritura de um livro? É essa comunhão entre andar pela urbe e escrever que aparece no conto
“A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, do livro Romance negro e outras histórias.
Diversos escritores tomaram a rua como cenário e tema de seus enredos, dentre eles
destacam-se: Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, Machado de Assis, Lima Barreto,
João do Rio e muitos outros que, juntos, estabeleceram a tradição da narrativa urbana na
literatura brasileira. O conto de Fonseca insere-se nessa tradição, a qual se solidificou a partir
de 1852 com a obra Memórias de um sargento de milícias, de Macedo, livro este com o qual a
narrativa fonsequiana dialoga. Além dessa intertextualidade, a história de Rubem Fonseca
também faz sutis referências à narrativa picaresca, oriunda da Espanha nos séculos XV e XVI.
de início, podemos distinguir três núcleos no título do conto, arte, andar e Rio de
Janeiro, dos quais depreendemos três pontos essenciais presentes nesse texto: a palavra “arte”
está relacionada ao nosso aparato teórico (o da metatextualidade, com a sua arte de escrever e
de refletir sobre essa escritura dentro da narrativa); a palavra “andar” nos remete a obras
pertencentes ao gênero picaresco, considerando o caráter “andarilho” tanto do protagonista
fonsequiano quanto do pícaro e, por fim, o termo “Rio de Janeiro” vem nos trazer o tema da
vida urbana, consagrado em nossa cultura literária.
O enredo da narrativa, resumidamente, trata da história do escritor Augusto,
pseudônimo de Epifânio, um funcionário público que trabalhava na companhia de águas e
esgotos mas que, após ganhar um prêmio numa loteria, larga o emprego para se dedicar
exclusivamente à elaboração de um romance sobre a cidade em que vive, o Rio de Janeiro,
livro este que recebe o mesmo título do conto de Rubem Fonseca: A arte de andar nas ruas do
Rio de Janeiro. O assunto do romance é, pois, as ruas da cidade carioca e as pessoas que nelas
transitam, e para recolher material para sua criação o escritor adota como procedimento
básico a peregrinação pela cidade, observando tudo minuciosamente: carros, praças, lojas,
igrejas, viadutos. O personagem-escritor vagueia sem cansar pela urbe e se depara com
marginais, mendigos, prostitutas, indivíduos que constróem uma paisagem que não é retratada
nos famosos cartões postais da Cidade Maravilhosa.
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É pintado o retrato da sujeira, da pobreza, da cruel desigualdade social que gera
histórias de miséria, violência, prostituição, melancolia e nostalgia. A decadência da cidade
é configurada desde o começo pela epígrafe da narrativa: “Em uma palavra, a desmoralização
era geral. Clero, nobreza e povo estavam todos pervertidos” (MACEDO, 1991, p.121). Além
disso, pelo uso, como epígrafe, de um trecho da obra de Joaquim Manuel de Macedo vê-se
que tanto este quanto Fonseca elegem o “passeio” pela cidade carioca como forma de
perscrutar a sociedade, numa postura crítica que permite o desvelamento das instituições
sociais, sejam elas representadas pelos ícones: clero, nobreza e povo, de Macedo, sejam elas
reveladas pela ironia lançada contra as igrejas evangélicas, pelo descaso das classes
dominantes em relação aos miseráveis que lotam as cidades, pela apresentação de indivíduos
marginais que usam todos os recursos para sobreviver numa cidade atropelada pelo processo
de urbanização e modernização, como nos mostra Rubem Fonseca.
A representação do sujeito errante, que caminha ociosamente pela cidade, é muito cara
no universo literário. Além de ela nos remeter, em certo sentido, às andanças do pícaro, sua
presença no conto também evidencia um diálogo com a figura do flâneur, vista em muitas
criações de Baudelaire, por exemplo. O flâneur é aquele indivíduo que anda por todos os
cantos da cidade e tudo observa; ele desfila pela urbe, registrando os costumes, os hábitos das
pessoas, as festas, os trabalhos, o lazer...
Além do poeta francês e dos já citados escritores brasileiros que se dedicaram a
escrever sobre a cidade, lembramos outros autores da literatura mundial que trataram desse
assunto. James Joyce, por exemplo, na série de narrativas curtas que compõe o Dublinenses,
escolhe a cidade de Dublin para falar da história de seu país. Edgar Allan Poe também se
propõe a fazer retratos da cidade; basta lembrar de O homem da multidão”, conto no qual
vemos um indivíduo desconhecido que caminha exaustivamente pelas ruas de Londres, sendo
este personagem, inclusive, o próprio flâneur de que fala Baudelaire.
No caso do conto de Rubem Fonseca, assim como em obras de Manuel Antônio de
Almeida, é nítida a construção de uma “crônica às avessas”, isto é, com uma perspectiva de
enfoque pelo seu lado negativo. Esses escritores não fazem apologias à cidade, que é o
material descrito, mas, pelo contrário, trazem o próprio Rio de Janeiro visto “pelo avesso”, o
Rio marginal. Em “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro” pinta-se justamente uma
metrópole beirando a decadência total, um lugar que não é o procurado por turistas, mas que é
revelador das contrariedades e da negatividade próprias de uma cidade desigual, que impede a
ascensão social e que oprime os sujeitos mais desprovidos de recursos.
77
Tratando especificamente de Memórias de um sargento de milícias, tal narrativa se
passa durante a estada de D. João VI e a família real portuguesa no Brasil. Contudo, Manuel
Antônio de Almeida escreve seu texto em meados do século XIX, no Segundo Império e,
portanto, olha para o passado da cidade, observando as suas transformações. Em “A arte de
andar nas ruas do Rio de Janeiro” mostra-se o presente da cidade e o protagonista observa
como as transformações ocorridas com o decorrer dos anos contribuíram para uma maior
pobreza da população e dilaceramento das aspirações pessoais do homem. Ele adota uma
postura nostálgica, sempre relembrando como eram, outrora, as ruas, as lojas, as casas, numa
época em que não havia tanta poluição, tanto barulho de automóveis, tanto movimento.
Sabemos que a intertextualidade não é um recurso que se faz apenas pelas
semelhanças, mas ela opera também nas diferenças. Assim, em oposição à obra de Almeida,
no conto de Rubem Fonseca não se aquele mesmo dinamismo e aquela agilidade da
narração. A narrativa fonsequiana flui num ritmo mais vagaroso, o conto é longo e ocorrem
poucas ações. Também não o mesmo humor que existe na obra de Manuel Antônio de
Almeida (embora haja alguns lances de comicidade na narrativa de Fonseca), já que o riso que
permeia o conto fonsequiano é mais camuflado, menos espontâneo.
Entretanto, é fato que ecos de Memórias de um sargento de milícias (principalmente
no que diz respeito ao motivo urbano) percorrem a narrativa de Rubem Fonseca, assim como
é possível notar uma referência, agora mais explícita, à produção artística de Joaquim Manuel
de Macedo, como mostra o trecho a seguir, quando o narrador revela que o escritor Epifânio-
Augusto não quer escrever seu livro tão à moda desse autor:
Também toma cautela para que o livro não se torne um pretexto, à maneira
de Macedo, para arrolar descrições históricas sobre potentados e instituições,
ainda que, tal como o romancista das donzelas, ele às vezes se entregue a
divagações prolixas. Nem será um guia arquitetônico do Rio antigo ou
compêndio de arquitetura urbana; Augusto quer encontrar uma arte e uma
filosofia peripatéticas que o ajudem a estabelecer uma melhor comunhão
com a cidade. Solvitur ambulando (FONSECA, 1998, p.19).
Essa passagem da narrativa soa como irônica, já que o conto de Fonseca recebe
justamente como epígrafe um trecho da obra de Macedo, porém, de acordo com o narrador, o
livro de Augusto não possui os mesmos objetivos da obra do “romancista das donzelas”.
Além desse toque irônico, a própria produção de Macedo é mencionada com um certo ar
trocista nesse excerto. Vemos, ainda, que a referida comunhão com a cidade está relacionada
78
a um projeto pessoal de Augusto, diferente do que ocorre nas narrativas de Macedo a que se
refere o narrador. No conto de Fonseca, o escritor quer, além de escrever seu livro, reconstruir
sua própria identidade por meio do passeio pelas ruas cariocas. A necessidade de escrever está
intimamente ligada à busca da sua individualidade, de modo que o descobrimento do mundo
exterior reflete o
descobrimento de si mesmo; a própria falência da urbe está em plena
harmonia com a decadência e com o conflito interior vividos pelo
personagem, de modo que
o passeio pela cidade pode ser uma metáfora do passeio que o protagonista faz em sua própria
interioridade. Essa temática da identidade também é trabalhada no citado “O homem da
multidão”, de Poe: o desconhecido, o sujeito que aparece sem nome e sem qualquer marca de
caráter, sai multidão adentro em busca de alguém parecido com ele; o personagem caminha
pelo mundo urbano plural, mas sua busca pela identidade acaba falhando.
No conto de Fonseca, a trajetória de Augusto pelas ruas cariocas visa, entre outras
coisas, a reconstrução de sua autonomia, perdida no turbilhão de modificações pelas quais a
cidade passou, e a literatura é, para ele, um caminho, uma solução na tentativa de se afirmar
novamente enquanto sujeito. Epifânio-Augusto escreve para encontrar sua identidade e, como
esta está intrinsecamente associada à cidade, nada melhor do que escrever um livro sobre ela;
é nesse instante que o escritor sente a necessidade de perambular por aquelas ruas paras
solucionar um problema de ordem subjetiva, e daí adotar como uma espécie de lema o
solvitur ambulando que, de acordo com consulta ao Dicionário Latino-Espãnol, de Agustín
Blánquez Fraile, solvitur, palavra de origem latina derivada de solvere, significa “explicar”,
“resolver”, “solucionar” (uma questão, por exemplo) e ambulando, também de origem latina,
derivada de ambulatio, significa “passear ao ar livre”.
Essa crise de identidade é expressa pelo próprio nome do escritor, que se divide em
Epifânio e Augusto, ou seja, os dois nomes por ele adotados apontam para uma dificuldade do
personagem de se auto-definir, tornando-se, por isso, um indivíduo duplo. Contudo, visando
encontrar-se enquanto sujeito, o escritor-andarilho início a sua caminhada, com a qual fica
patente o seu deslumbramento com as coisas corriqueiras que observa, as quais serão
aproveitadas em seu romance:
Em suas andanças pela cidade, desde que começou a escrever o livro,
Augusto olha com atenção tudo o que pode ser visto, fachadas, telhados,
portas, janelas, cartazes pregados nas paredes, letreiros comerciais luminosos
ou não, buracos nas calçadas, latas de lixo, bueiros, o chão que pisa,
passarinhos bebendo águas nas poças, veículos e principalmente pessoas
(FONSECA, 1998, p.12).
79
Observamos também nessa passagem certas semelhanças entre o relato das andanças
de Epifânio-Augusto e as caminhadas do flâneur, descritas por Walter Benjamim:
A rua se torna moradia para o flâneur que, entre as fachadas dos prédios,
sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele,
os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão
bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a
escrivaninha onde apóia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas
bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho,
observa o ambiente (BENJAMIN, 1991, p.35).
Vê-se que, em ambas as descrições, a rua é a grande fonte de observação. Pelos olhos
do personagem de Fonseca, que é também um flâneur, tudo é registrado, e é gratificante para
ele olhar com particularidade cada objeto, cada lugar, cada parede que se coloca a sua frente,
pois são esses pormenores que enriquecerão o seu romance. Augusto a cidade enquanto
nós, leitores, lemos o conto fonsequiano, o qual é, por sua vez, escrito na medida em que o
próprio personagem escreve seu romance. E todos esses detalhes vistos por Augusto fazem
com que a cidade se apresente a ele como polifônica, assim como é o texto literário, sendo
que ambos necessitam ser investigados, interpretados, lidos.
A ânsia por percorrer os espaços do Rio de Janeiro leva Augusto a negar a
modernidade que se desenha diante de seus olhos e todas as chagas que a acompanham.
Aquele centro histórico que o escritor perpassa é a tradução de um processo de transformação
de um país quase agrário para um país altamente urbanizado. Essa avassaladora modernização
acabou por oprimir o indivíduo diante do meio circundante. Por conta disso, Epifânio-
Augusto opta por mostrar um mundo marginal, sendo que tal opção desemboca em duas
situações básicas: primeira, a identificação do personagem com tudo o que se refere a essa
marginalidade (por isso, alegoricamente, Augusto se tão bem com os ratos, bichos
repelidos pela maior parte das pessoas, e também se infiltra no meio dos mendigos, dos
“amalucados” como o personagem Hermegildo e das prostitutas, todos indivíduos
marginais à sociedade); e, segunda, a valorização idealizada do passado da cidade, este
representado pelo próprio passado de Augusto, o qual ele insiste em reconstruir em sua
lembrança:
[...] Augusto tem um destino naquele dia, como aliás em todos os dias que
sai de casa; ainda que pareça deambular, nunca anda exatamente ao léu. Pára
na rua do Teatro e olha para o sobrado onde sua avó morava, em cima do
que agora é uma loja que vende incenso, velas, colares, charutos e outros
materiais de macumba, mas que ainda outro dia era uma loja que vendia
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retalhos de tecidos baratos. Sempre que passa por ali lembra-se de um
parente a avó, o avô, três tias, um tio postiço, uma prima (FONSECA,
1998, p.23).
As andanças de Augusto contribuem para que ele remonte às suas origens, mas não
apenas isso. O solvitur ambulando relaciona-se também a uma tentativa de se refletir sobre o
lugar do artista na sociedade contemporânea. É nesse momento do conto que as relações do
escritor moderno com o mercado são vistas com alentada ironia: por meio de uma espécie de
narrativa alegórica sobre a vida de João, um escritor amigo de Augusto, Rubem Fonseca
explora o mito do artista romântico, aquele que deve doar-se inteiramente em nome da arte.
Todavia, no atual cenário da cultura, o ensinamento que essa pequena história expõe soa
como desconcertante, estranha e, por conseqüência, irônica:
No tempo em que trabalhava na companhia de águas e esgotos ele [Augusto]
pensou em abandonar tudo para viver de escrever. Mas João, um amigo que
havia publicado um livro de poesia e outro de contos e estava escrevendo um
romance de seiscentas páginas, lhe disse que o verdadeiro escritor não devia
viver do que escrevia, era obsceno, não se podia servir à arte e a Mammon
ao mesmo tempo, portanto era melhor que Epifânio ganhasse o pão de cada
dia na companhia de águas e esgotos, e escrevesse à noite. Seu amigo era
casado com uma mulher que sofria dos rins, pai de um filho asmático e
hospedeiro de uma sogra bil mental e mesmo assim cumpria suas
obrigações para com a literatura. Augusto voltava para casa e não conseguia
se livrar dos problemas da companhia de águas e esgotos; uma cidade grande
gasta muita água e produz muito excremento. João dizia que havia um ônus
a pagar pelo ideal artístico, pobreza, embriaguez, loucura, escárnio dos tolos,
agressão dos invejosos, incompreensão dos amigos, solidão, fracasso. E
provou que tinha razão morrendo de uma doença causada pelo cansaço e
pela tristeza, antes de acabar seu romance de seiscentas páginas. Que a viúva
jogou no lixo, junto com outros papéis velhos. O fracasso de João não tirou a
coragem de Epifânio. Ao ganhar um prêmio numa das muitas loterias da
cidade, pediu demissão da companhia de águas e esgotos para dedicar-se ao
trabalho de escrever, e adotou o nome de Augusto (FONSECA, 1998, p.11-
12).
Além disso, a
passagem transcrita, ao mesmo tempo que serve como uma apresentação
ao leitor do personagem central do enredo, aponta a curiosa mudança de nome do escritor:
quando era ainda um funcionário público, ele se chamava Epifânio, nome derivado de
epifania, que significa “manifestação divina”, expressão que adequadamente sugere a
grandiosidade do romântico projeto que o personagem tinha de largar tudo para viver de
escrever. Entretanto, quando recebe o prêmio da loteria, passa a atender pelo nome de
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Augusto, que significa aquele que é venerável”, ou seja, é como se o escritor se sentisse
agora poderoso, respeitável, afinal, vai poder abandonar o emprego e ser unicamente artista. A
arte, aliás, não é vista por ele como mercadoria, situação ironicamente avessa às condições
enfrentadas pelos escritores na atual sociedade. (O nome Augusto também pode ser uma
referência ao personagem do livro A moreninha (1884), de Joaquim Manuel de Macedo, que
costumava recitar sonetos em festas).
Entretanto, ironicamente, o “poderoso” Augusto passa a morar numa casa abandonada,
velha, deteriorada, que tem ratos e que parece mais uma toca. Trata-se de um sobrado que, por
um contraste que acentua essa ironia, pertencera, anteriormente, a um conde, a um indivíduo
de status nobre, embora se situasse na antiga rua do Cano, a qual recebera esse nome porque
nela passava o encanamento de água para o chafariz do largo do Paço; ou seja, mesmo
morando nesse local, a princípio, ilustre, Augusto não consegue se afastar de vez do mundo
subterrâneo, dos canos de esgoto que fizeram parte da sua vida. De forma semelhante, os ratos
também sempre o acompanharam: quando era funcionário público, Epifânio ganhava a vida
trabalhando por baixo da cidade, num lugar sujo, desprestigiado e infestado por esses bichos.
E essa proximidade com os ratos e com a sujeira, tanto nos tempos de Epifânio quanto agora,
como Augusto, remete, simbolicamente, ao próprio submundo que Rubem Fonseca quer
retratar em seu conto, o Rio marginal.
Quando não está nesse sobrado velho e imundo escrevendo, Augusto percorre a urbe
carioca e, em uma de suas andanças, passa pelo cinema-templo do pastor Raimundo, no qual
um cartaz com os dizeres: Igreja de Jesus Salvador das Almas das 8 às 11 diariamente”,
como se Jesus “trabalhasse” só na hora marcada. Na realidade, a Igreja só funciona no período
da manhã porque das duas da tarde até à noite exibe-se nesse local filmes pornográficos.
Aqui, uma certa isotopia entre dia e noite pode ser uma imagem oportuna para destacar
aspectos do antagonismo entre mundo e submundo, explorados a todo instante na narrativa.
Por exemplo, quando Epifânio trabalhava com as canalizações da cidade, fazia isso no
período diurno e, no noturno, dedicava-se à escrita, sendo que o dia remete àquilo que as
pessoas vêem, ou seja, o Rio de Janeiro maravilhoso, com todas as suas belezas naturais, e a
noite sugere aquilo que está escondido, ou melhor, que não está à mostra nos cartões postais:
uma metrópole com problemas de violência e com uma grande população vivendo
miseravelmente nas ruas.
Já no que diz respeito à religião, esta não escapa aos olhos críticos de Rubem Fonseca.
Na figura do pastor Raimundo, preocupado porque os fiéis estão parando de fazer doações, e
do bispo que argumenta: “e jóias? Nenhum deles tem uma jóia? Uma aliança de ouro? [...]
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São para Jesus” (FONSECA, 1998, p.40), vê-se uma crítica ao mercantilismo que envolve os
procedimentos litúrgicos, principalmente pela arrecadação cada vez maior do dízimo. Além
disso, a instituição é
desmoralizada, uma vez que o templo divide seu espaço entre cultos e
pornografia. A fé, portanto, mistura-se com fatores econômicos e
administrativos, o que é
avaliado de modo debochado e incisivo por Fonseca
Vale lembrar que o clero também foi alvo de severas críticas em Memórias de um
sargento de milícias. No romance de Almeida, o padrinho de Leonardo queria a todo o custo
que o afilhado fosse clérigo, e não porque este era vocacionado, mas pelo dinheiro que obteria
se fosse padre. A comadre, por sua vez, foi retratada de forma ridicularizadora por meio da
caricatura de uma beata. O padre era um devasso; foi pego de ceroulas na casa da cigana com
quem estava amasiado, sem contar a ferrenha crítica ao excesso de luxo das procissões
religiosas.
Certa manhã, Augusto entra no cinema-templo. Os fiéis estavam cantando uma música
para afastar o demônio, e o narrador afirma categoricamente: “Satanás é uma palavra que o
atrai” (FONSECA, 1998, p.13). Satanás é a mais pura manifestação de tudo o que de
negativo, de ruim, e Augusto sente-se atraído por esta palavra (e não por este ser) porque ela
remete à negatividade que ele próprio explora em seu livro o lado negro, obscuro do Rio de
Janeiro. A canção que ele ouve, por sua vez, traz-lhe recordações pesarosas de sua infância,
da época em que ele ia à Igreja na Sexta-feira da Paixão e via pessoas tristes. Lembra-se,
ainda, da morte da sua mãe, e todas essas reminiscências apresentam-se em sua mente por
meio da cor roxa.
Simbolicamente, o roxo é utilizado na liturgia católica durante a Quaresma, período de
penitência e de tristeza pela morte de Cristo. Por isso Augusto associa tal cor diretamente ao
próprio Salvador ao dizer: “Jesus é roxo, a religião está ligada ao roxo” (FONSECA, 1998,
p.13). Ainda, o solvitur ambulando de Augusto pode sugerir, além da constante busca por sua
identidade e da tentativa de solucionar os problemas do artista na sociedade moderna, uma
espécie de penitência do próprio personagem, que as suas andanças pela cidade facilmente
nos lembram as peregrinações de fiéis, isto é, as idas em romarias por lugares santos, que a
“santidade”, o sagrado, hoje, talvez se encontre no submundo, no mundo subterrâneo.
“Mas não nada de roxo naquele templo-cinema” (FONSECA, 1998, p.13), conclui
o narrador, e isto faz com que Augusto saia de seus devaneios e atente à figura do condutor
daquela cerimônia, o qual também fixa os olhos no escritor. Nesse instante, somos
transportados para a interioridade do pastor, e uma pergunta nos inquieta: quem é esse
Raimundo? Um indivíduo que saiu do Ceará e instalou-se no Rio de Janeiro, que fugia da
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seca, da fome, que era camelô e, aos vinte e seis a
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Quando tinha oito anos, conseguiu uma lente que servia para examinar fibras
de tecidos na loja do seu pai, essa mesma lente que usa neste momento.
Deitado, naquele ano distante, olhou pela lente a lâmpada no teto da casa
onde morava, que era também um sobrado ali no cento da cidade, e cuja
fachada foi destruída para dar lugar a uma imensa placa luminosa de acrílico
de uma loja de eletrodomésticos; no s-do-chão seu pai tinha uma loja e
conversava com as mulheres fumando o seu cigarrinho fino, e ria, e as
mulheres riam, seu pai era outro homem na loja, mais interessante, rindo
para aquelas mulheres. Augusto lembra-se daquela noite, em que ficou
olhando para a lâmpada no teto e através da lente viu seres cheios de garras,
patas, hastes ameaçadoras, e imaginou, assustado, o que poderia acontecer se
uma coisa daquelas descesse do teto; os bichos ora apareciam, ora
desapareciam, e o deixavam amedrontado e fascinado. Afinal descobriu,
quando o dia amanhecia, que os bichos eram as suas pestanas; quando
piscava, o mostro aparecia na lente, quando abria os olhos, o monstro sumia.
Depois de observar, no sobrado com clarabóia, os monstros na lâmpada do
grande salão ainda tem pestanas longas e ainda tem a lente de ver tecidos
–, Augusto volta a escrever sobre a arte de andar nas ruas do Rio
(FONSECA, 1998, p.18).
É comum a associação entre tecido e texto. A lente que outrora examinava tecidos
agora mostra o texto literário; lente esta que é símbolo de um modo de ver: é a maneira como
enxergamos, como lemos o texto ficcional. Com o auxílio desse instrumento, é visto um
monstro que remete, ironicamente, ao lado “monstruoso” do Rio de Janeiro, aquele que todos
temem, de que todos querem se afastar o Rio marginal. É com essa lente, com esse olhar,
que o escritor mostra a cidade em palavras, isto é, o texto que fala da urbe e que fala de si
próprio.
Esse monstro aparece e desaparece sendo que, novamente, vemos um par que reporta
ao mundo carioca aquilo que aparece aos turistas e ao submundo dessa cidade o que
acaba desaparecendo diante desses estrangeiros. O bicho também amedronta e fascina o
personagem na medida em que suas pestanas abrem e fecham, de dia e de noite. Essa
seqüência de oposições vem à tona de modo até exaustivo para marcar o antagonismo entre o
lado bonito do Rio de Janeiro e o lado feio que essa “crônica às avessas” quer revelar. Por
fim, a lente, o olhar, a pestana são todas imagens metafóricas que remetem ao jeito de ver a
cidade e, conseqüentemente, a maneira de se ler o texto literário.
Quer dizer, o Rio de Janeiro pode ser “lido” de diversas maneiras; caso suas belas
paisagens estejam em destaque, ele será visto unicamente como um verdadeiro paraíso
natural. Contudo, da mesma forma que o texto literário esconde sentidos nas suas entrelinhas,
a cidade carioca também possui vários sentidos que muitas vezes se pretende esconder: o Rio
das muitas favelas, da criminalidade, da pobreza. Nesse sentido, a cidade e o texto se
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equiparam: ambos revelam um contraste entre aquilo que está mais à mostra e aquilo que se
oculta, que se disfarça, tudo dependendo, portanto, da maneira como a urbe e o texto literário
são compreendidos.
Depois de um tempo contemplando a lâmpada no teto do sobrado e lembrando dos
monstros que via (bichos estes que são, também, símbolos dos monstros presentes no ser-
humano, isto é, os nossos medos, as nossas imperfeições, nossas degradações), Augusto
decide voltar a escrever sobre a arte de andar no Rio de Janeiro. Estando o personagem
preocupado com a escritura de seu romance, é natural também que ele esteja inquieto com
relação ao tipo de leitor de sua obra vindoura. Sendo assim, o escritor-andarilho início a
um processo de alfabetização das prostitutas que andam pelas ruas, chegando até mesmo a
oferecer dinheiro às moças para que elas aceitem aprender a ler e a escrever corretamente. E
entre as vinte e oito moças que Augusto ensina em apenas quinze dias está Kelly, personagem
que foi absorvida pelo pragmatismo da vida moderna e que, a princípio, não se interessa por
um universo novo, como o da cultura, por exemplo, que o escritor quer lhe ensinar:
Chegaram ao sebo. Kelly olha da rua, desconfiada, as estantes no interior da
loja cheias de livros. “Existe gente no mundo para ler tantos livros?”.
Augusto quer comprar um livro para Kelly, mas ela se recusa a entrar no
sebo. Vão até a rua São José, dali à rua Graça Aranha, avenida Beira Mar,
Obelisco, Passeio Público. (FONSECA, 1998, p.36).
No início, Kelly recusa a proposta do “professor” de ser alfabetizada, mas quando a
prostituta decide realmente aprender, Augusto resolve presenteá-la com uma ametista,
contudo, a moça não recebe bem o mimo: “você pensa que eu sou um cachorro de circo?
Estou aprendendo a ler porque eu quero. Não preciso de agradinhos” (FONSECA, 1998,
p.47). A pedra que Augusto oferece, aliás, tem a cor roxa, remetendo, mais uma vez, a alguma
forma de penitência ou sacralização do personagem. É como se Augusto estivesse cumprindo
uma missão salvadora que expiasse seus pecados ao se propor a educar tantas e tantas
prostitutas. Além disso, a ametista não é uma pedra preciosa, mas semi-preciosa e, por isso,
“adequada” como presente a uma prostituta, residindo mais uma das ironias presentes no
texto.
Mas a preocupação de Augusto não se dirige apenas a essas mulheres; o escritor
também corrige os erros na escrita dos pichadores de muros. Quando, ao passar pelo Teatro
Municipal, Augusto dois jovens que escreveram nas paredes do teatro: “Nós os sádicos do
Cachembi tiramos o cabasso do Municipal Grafiteros unidos jamais serão vensidos”, ele não
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hesita e diz: “Hei [...] cabaço é com cê-cedilha, vencidos não é com s, e falta um i no
grafiteiros” (FONSECA, 1998, p.19).
Além de corrigir tais erros de ortografia encontrados nos muros da cidade e de gastar
parte de seu tempo alfabetizando as prostitutas, Augusto também quer saber se os mendigos
são capazes de ler. Todas essas preocupações, juntas, formam um quadro um tanto insólito no
conto, de forma que, nesse sentido, o texto acaba explorando situações próximas ao absurdo e,
por isso, também cômicas e irônicas. São, ainda, exemplos de situações um pouco distantes da
realidade a rapidez com que o escritor consegue ensinar tantas moças – vinte e oito em apenas
quinze dias, conforme já mencionamos –; o fato de a casa de Augusto ser tão velha e
danificada apesar de ele ter ganhado um prêmio na loteria; a existência de um templo
religioso que à noite torna-se um cinema que exibe filmes pornográficos; a insistência de
Augusto em educar a todos que cruzam o seu caminho e, ainda, a cômica e improvável
associação dos mendigos a UDD, União dos Desabrigados e Descamisados que visa
chocar as classes mais privilegiadas.
Entretanto, talvez a situação mais absurda de todas seja a do final da narrativa quando
Augusto, no momento em que deveria estar escrevendo seu livro (eram três horas da
madrugada, horário em que ele costumava sentar-se sob a clarabóia para escrever), vai ao cais
Pharoux, lugar que não existe mais no Rio de Janeiro de hoje. Nesse local, o escritor coloca-se
de frente para o mar poluído e mal cheiroso, constituindo uma paisagem feia e que reflete a
sujeira e a degradação do submundo carioca evidenciados ao longo de toda a história. Além
disso, Epifânio-Augusto não quer voltar para casa e não chega a terminar o seu livro, pois viu
ser difícil criar uma narrativa totalizante, que conta de abarcar toda a pluralidade e
complexidade do mundo moderno e daquela cidade que ele percorreu. E, como conseqüência
de não ter acabado seu romance, a busca do personagem por sua identidade e por seu espaço
enquanto escritor também é prejudicada.
A exploração de situações absurdas no conto também está associada a uma reflexão
sobre a literatura brasileira nos tempos atuais: o Brasil é um país subdesenvolvido, repleto de
carências sociais e dependente econômica e culturalmente das nações de primeiro mundo;
nesse sentido, é destoante ou, até mesmo, um tanto absurdo criar uma literatura que cante
apenas as belezas pitorescas de nosso país, camuflando o atraso e todas as debilidades que
ainda são salientes aqui.
A metatextualidade mistura-se com um certo ar cômico devido a esses fatos
disparatados que percorrem a trama, porém, um aguçado questionamento sobre o papel da
literatura, a qual não pode mais servir como mascaramento da realidade. A arte literária
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esteve associada ao belo, ao equilíbrio, ao harmônico (durante o período clássico), foi a
exaltação mitológica do índio e da natureza (no período romântico), se fechou contra o
mundo, num reflexo da “arte pela arte” (no Parnasianismo), mas agora ela pode ser uma fonte
rica de reflexão acerca dos problemas que envolvem a própria arte e o homem moderno.
Assim, Rubem Fonseca rompe com qualquer “aura” que possa recobrir a literatura na medida
em que seu conto sugere que a criação artística no Brasil deva ser a expressão das condições
do nosso país, ou seja, se vivemos ainda em um submundo, a arte pode exprimir esse contexto
e questioná-lo.
Muitas questões referentes aos compromissos da literatura nas nações
subdesenvolvidas são abordadas nesse conto de Fonseca, tais como: o analfabetismo ainda
expressivo, o baixo número de leitores de textos literários, as precariedades de nosso sistema
educacional, entre outras, de forma que o conto reflete sobre como grande parte da população
mais carente (como os mendigos, as prostitutas analfabetas, os grafiteiros que não sabem
escrever corretamente) permanece distante da cultura erudita.
Esse cenário de precariedades pintado por Fonseca é, pois, expresso pelo próprio
fracasso do escritor-andarilho, que não consegue concluir seu romance. Todavia, apesar desse
mau resultado, fica para o leitor da narrativa de Rubem Fonseca um conto de apurado teor
crítico e de múltiplos sentidos e interpretações. Por exemplo, as andanças de Augusto nos
levam a promover uma leitura das várias vozes que se entrelaçam naquele centro carioca, as
quais se presentificam por meio de inúmeros mbolos alguns já identificados por Viegas
(2006a) –, tais como: a efemeridade da vida (representada, por exemplo, pela mudança de
nomes das ruas); o sonho (referido na expectativa depositada nas casas lotéricas e no jogo do
bicho, este último, por sua vez, feito ironicamente num banco escolar, evidenciando que, para
várias pessoas, a escola não traz muitas esperanças); a passagem do tempo (vista pelas
diversas referências ao relógio, presentes em toda a narrativa); o apego ao que é duradouro
(sugerido pelo apreço de Augusto às árvores, principalmente as com raízes firmes, que ficam
infincadas na terra); o saber (na figura da clarabóia); a missão salvadora (inferida, entre outras
coisas, pelo interesse de Augusto pelo prédio do Corpo de Bombeiros) e muitos outros.
Os vários signos evocados pela cidade são também signos do texto literário. Tanto a
urbe quanto a ficção são polifônicos, sendo difícil que esses símbolos sejam lidos da mesma
forma tanto pelos personagens que dialogam com Epifânio-Augusto quanto pelos leitores do
conto de Rubem Fonseca. E essa pluralidade de leituras torna-se mais evidente graças à
reflexão metatextual presente no conto; por meio desse procedimento, assim como pela
utilização da ironia e das intertextualidades, é possível depreender com mais clareza os
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diversos veis de sentido da narrativa, isto é, os que estão mais à vista (simbolicamente, os
que estão tão à mostra quanto as belezas do Rio de Janeiro) e aqueles que estão nas
entrelinhas do texto (isto é, os que estão tão escondidos quanto o lado negativo da cidade
carioca). Assim, ao percorrermos o nível implícito do conto fonsequiano e ao nos depararmos
com todo um emaranhado de significações que ele suscita, chegamos também a uma reflexão
sobre a “literatura do submundo”, ou seja, sobre o lugar ocupado pela arte literária num país
onde ainda analfabetismo e uma parcela da população sem qualquer contato com o
universo da cultura. Pelo procedimento metatextual, é possível, ainda, refletir acerca do texto
ficcional em si que, sem se recobrir de encantamentos artificiais, passa a ser, ele próprio, a
expressão artística desse cenário deplorável, tornando-se, portanto, o próprio submundo em
palavras.
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8 Um olhar sobre o texto de ficção: a literatura no espelho
“Um olhar pode mudar a vida de um homem? Não falo do olhar do poeta, que depois
de contemplar uma urna grega pensou em mudar de vida. Refiro-me a transformações muito
mais terríveis” (FONSECA, 1998, p.61). É com essas palavras e com esse foco sobre como
um olhar pode modificar a realidade que se inicia mais um conto de Rubem Fonseca narrado
por um personagem-escritor. Desta vez, em “Olhar”, narrativa pertencente ao livro Romance
negro e outras histórias, o protagonista conta-nos sobre a mudança de seu gosto gastronômico
que, por sua vez, acabou influenciando o seu modo de pensar, de agir e de lidar com a criação
artística. Essa alteração em seu paladar foi possível graças ao contato que o personagem
passou a ter com os olhos dos animais que lhe serviam de alimento, de forma que todas as
inusitadas transformações que surgiram em sua vida a partir desse fato iniciaram-se por um,
aparentemente simples, “olho no olho”.
Esse olhar que transforma e que faz com que o narrador renove seus hábitos
alimentares e renuncie a uma certa maneira de viver muito tempo determinada, a uma
rotina e a princípios é o grande pilar que sustenta essa narrativa e, paralelo a isso, desenvolve-
se a metáfora maior do olhar como sendo o “modo de ver”, isto é, a perspectiva sob a qual um
objeto é entendido. Assim, como constatamos em “A arte de andar nas ruas do Rio de
Janeiro”, o uso de tal tropo é, mais uma vez, propício ao estudo da metatextualidade, no
sentido de que, também nós buscamos sempre um “olhar alternativo” para o texto literário, ou
seja, tentamos continuamente mostrar os sentidos que podem passar despercebidos numa
leitura menos atenta da ficção.
O enredo sobre o qual agora nos debruçamos apresenta a história de um escritor
clássico, celibatário, misantropo e vegetariano que costumava dizer que os prazeres da mesa
não o atraíam; de fato, nem os da mesa, tampouco os do corpo. O único alimento de que sente
falta é o do espírito, ou seja, música, literatura e arte, sendo que, para se sustentar, basta
apenas um suflê de espinafre servido diariamente pela empregada. Um dia, por inanição, o
escritor sofre um desmaio e seu médico convence-o a se alimentar melhor, dizendo que “arte
é fome”. Mesmo sem entender essa expressão, o personagem acaba tomando gosto por comer,
contudo, apenas se alimenta de animais que ele mesmo possa escolher enquanto ainda estão
vivos, procurando sempre aquele que possui o olhar mais inteligente e atrativo.
Além desse ascetismo vegetariano que o caracteriza no início da narrativa, o escritor
também é pouco flexível acerca de suas preferências literárias: aprecia e eleva sobremaneira
os poetas clássicos e rejeita, com todas as suas forças, a produção de seu tempo,
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considerando-a inferior e ruim. É, ainda, avesso a qualquer tipo de modernidade; não utiliza
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Amor! E a satiríase sedenta,
Rugindo, enquanto as almas confrangem,
Todas as danações sexuais que abrangem
A apolínica besta famulenta!
Ambos assim, tragando a ambiência vasta,
No desembestamento que os arrasta,
Superexcitadíssimos, os dois
Representam, no ardor dos seus assomos
A alegoria do que outrora fomos
E a imagem bronca do que inda hoje sois!
(ANJOS, 1997, p.97-98).
Nesse poema, Augusto dos Anjos fala da fome e do amor em sua dimensão instintiva,
numa alegoria sobre o passado de nossa condição humana e acerca do presente de um
indivíduo rude, “bronco”, atrasado. Em “Olhar”, Rubem Fonseca também fala da fome num
aspecto um tanto animalesco; seu personagem devora os animais com crueldade, tendo prazer
em vê-los sendo mortos para lhes servir de alimento. Ainda, esse narrador age como um
autêntico predador quer “caçar”, ou seja, escolher, ele próprio, a presa que será morta,
estripada e ingerida. Além disso, o amor sugerido no conto também é manifestado em seu
aspecto instintivo, pois está ligado ao sexo.
O tema do erotismo, aliás, perpassa toda a narrativa de modo velado, implícito. A
sedução é insinuada, a princípio, por meio de uma troca de olhares: no restaurante, o escritor
olha insistentemente para uma truta no aquário que, por sua vez, também o mira. É como se a
sedução entre um homem e uma mulher, iniciada com um fitar de olhos, estivesse
simbolizada por essa atração do narrador-personagem pelos olhos daquele peixe. A truta
também é descrita como se fosse humana, mais especificamente, como se fosse uma mulher
que deixa o homem encantado pelo magnetismo de seu olhar:
Lembrei-me das diferenças de sabor entre a truta que haviam posto no meu
prato, sem que a tivesse visto antes (e ela visto a mim), e aquelas que eu
escolhia, após demorada contemplação mútua. Trutas que eu selecionava
após olhar e perceber tudo o que elas significavam, objetiva e
subjetivamente, cor, movimento, e, mais do que tudo, o furtivo e sutil olhar
de resposta – sim a truta olhava de volta, sub-repticiamente, uma coisa
tímida e ao mesmo tempo matreira, astuta, que procurava estabelecer comigo
uma comunhão dissimulada, secreta, sedutora (FONSECA, 1998, p.70).
Quando o personagem está prestes a comer a truta, entra em uma alegria profunda,
numa espécie de êxtase que remete ao prazer sexual:
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Desta vez entrei mais confiante. Escolhi, entre as várias que nadavam
nervosamente no aquário, uma truta parecida com a primeira na cor, na
elegância dos movimentos e, mais que tudo, no brilho significativo do olhar.
Quando a colocaram no prato senti um frisson tão forte que temi que os
ocupantes das mesas vizinhas o tivessem percebido. Ao comê-la, tive a
alegria de poder confirmar que seu gosto era deliciosamente igual ao da
primeira (FONSECA, 1998, p.68).
Há, inclusive, na narrativa, muitas palavras pertencentes ao campo semântico do gesto
sexual, tais como: “nu”, “gozo”, “prazer”, entre outras, que confirmam a idéia de que o ato de
comer o animal sugere, no nível implícito da narrativa, tanto a sedução quanto a própria
relação sexual, isso se levarmos em consideração que o escritor vive sozinho, recluso em sua
casa e que aquela satisfação incomum que sente ao degustar o salmonídeo pode muito bem
estar compensando a ausência de um tipo de relacionamento que ele certamente não tem.
O agora ex-vegetariano sente, de fato, prazer em ver o animal vivo, primeiramente, e
depois morto, em seu prato; ele se deleita lembrando desse ritual sádico “pensava na truta
[...]; na estranha sensação que tivera ao abrir a truta com a faca, como um cirurgião, seguindo
instruções de Goldblum (....)” (FONSECA, 1998, p.67). Ao mesmo tempo em que retoma os
passos desse ritual, vem a sua mente profundas meditações literárias, indicando-nos que
um elo entre o ato de matar e comer o animal e o de escrever. Inclusive, o leitor do conto é
levado a fazer uma correspondência entre a alimentação e a escritura no momento em que o
narrador-escritor -0.295585(2.45995(e)3.74(n)-0.295585(t)-5585(e)3.74(t)-2.1.74(d)-0.2985(t)-2.164377(e)3.74(n)-5(a)3.74(n)-0.295585(t)-2.16436(o)-0.2955855( )-30.1643(c)3.74244(o)-04377(e)35(,)-0.146571( )-70.1879uc)3.74244(o)-04377(e.74(r)2.80439(e)3.74(v)-10.36436(a)3.74(c)-60.146571( )-30.1643-70.1879(n(i)-2.16436(n)-0377(e.7i)-2.16436(m)-2.45995(e)35585( )-.16436(r)2.80439(a)3.74(ã)7.4320.295585(t2.80439(u)-0.295585(n)-0377(e.7i)-2.16436(m)-2.45995(0.294974(i)-2.1938(n)-0.29( )-20.1584(au)-0.295585(n)-0377(e.7.295585(a)3.74(r)-.16436(r)2.80439(a293142(a)-6.26346.80561(F)-2.80439(O)1.57584(aF)4489285(-4.33117(E)0.640026(C)-3.39556(A)1.57493(,)-0.146571( )-60.3217(i)-2.16436(n)-0.74(r)-1(i)-2.1938(9(i)-2.1938(9(i)-2.1938(8(i)-2.1938(s)-1.2312.72 Td[(a)-1.7.43204(a)3.74(s)-1.22997(s)-1(”)3.74( )-66.22997(s)-12.22997(s)-10.1832((“)3.74(p)-10.306.267871( )-70.1879uc)3.74244(o)-006.26787.295585( )-80.195(j0561( )-30.1655(e(“)3.74(p)-10.306.26787.295187( )-30.1655.295585(u)-6.26787n)-0.29( )-20.159(s)-1.22875(p)3.74(r)-7..16436(87.7.295585(a)-6.26787n)95585(a)-6.26787.16436(r)2.80439(a293142(a)-6.26346(a)-6.2676-2.16436(a)3.74.2659( )-20.1584(a)326346(a)-6.2676-74(r)2.80561(i)7174(v)-10.3015(e)3.74(r)2.80439(.)-0.147593( )-40.1702(a)-6.267)-0.295585(f)2.80439(m0.3015(c)3.74(e)3.(u)-0.295585(m)-6.2676-.1938(r)2.80439(i)-2-6.2676-)326346(a)-74(d825(a)3.74(d)-0.)]TJ263.796 0(a)-6.2659( )-70.1891(c)3439(a293142(a)-.295585(t)-2.TJ231.376 06.2676-2.16436(a)3.74)3.74(d)-0.)]TJ)326346(a)-6.2676-.45995(o)-0.295585(n)-0.931422(t)-2.16436ç)-10.299( -0.293142(-70.1879(n(i)-2.16436(n)-06.2676-2.16436]TJ-231.376 -20.a)-6.2659( )-d[(s)-1.22997(e)33.74(r)2.294974(a)3.74(l)-0.183(q)-0.29(l)-21.22997(s)-1( )-30.1655(e)3.74(195(e)3.74(m)-2.459163.742-2.45995(e)3.74(r)2.80439( )-30459163.742-.295585(a)363.742-5585(t)-5585(e)3.74(t)-f2359(c)3.74(r)2..1653(o)-0.295585.16436(u)-0295585( )-.295585(a)363.742-5(e)3.74( )-100.206(s)-11.2371(e)3.74(m)-2.459163.742-30.1643(a)3.74(b)-0.29163.7415(d)-0.295585(i)-2.164360.146571( )-é.217(l)-2.16436(i)-263.7415100.206(m)-2.46239(u)-073.747-2.45995(e)3.74(r)2.o)-0.295585(e)3.74(r)2.n)-0.2931474)3.74(d)-0.)]TJi)-263.7415)-4.15868.71439( )-70)-2.16436(i)-263.7415i)-2.16436(m)-2.45995(.295585(,)-0.146571( )-70.1879)-2.16436(i)-263.7415e295585(a)363.74171( )-70.1879)-2.16436(i)-263.741574(õ)-0.295585(e)3o)-0.295585h0439(.)-0.147593( )-40.17020.217(l)-2.16436(i)-263.7415e29558580439( )-30459163.741-.1938(r)2.8043930026( )-70.1879(i)-263.7415100.206217(h)-0.293142( )-80.1938((e)3.74(r)2.80439(]TJ-23133 -20.76 Td[(n)-68.7143(e)3.74(v)-0.294974(a)3( )-50.1773()3.74(o92.45995(o)-0.295(e)3.74(m)-2.459.74(m)-2.4( )-70.1891 )-80.195(m)-2.45995(oi)-2.16436(mõ0439(.)-0.147593(459.74(m)-2.585(d)-0.29558)3.74(z)-6.2659(e558(o)-0.295585585(d)-5(,)-0.146571( )-50.1761.2659(ã)-6.26.74(n)-0.295585(t)-2.16436(e)3.74m)-2.(r)2.80561(147593(459.74(m)-2.( )-50.1773(s)-1.22997(i)-2.16436(r)-7.20151(.74(l)-2.16436(e)3.1(d)-0.295585(e)3.74( )-.295585(t)-ó(i)-2.164360.146571( )-.295187( )-30.1385(e)3.74( )-0.223(m)-2.45995(e)3..2312.7f)-6.2659( (e)3.74(r)2.o)-0.29558510.576(52f0.995(e)3.74(n)-0)-2.45995(e)3)3.74( )-0.146571(r)-7.20151(e)3.74(l)-22.16436(a)3.74)3.740.295585(s)-11.2359e)3.74( )-30.13.74(l)-274(e)3.74(r)2.8043a.20151(e)3.74(l)-2a)13.7483( )250]T(m)-2.45995(e)3.02.80439(t)-2.a)-2.16436(a)]TJ5(s)-11.23590.1584(c)3.74(o)-0.29)3.74( )-0.223(m(i)-2.16436(c)3.74(o)-0.295585( )-)3.74(o)-0-0.293142((I)12.8103(n)-[(a)-1.2f0.9(H)1.57442(á)3.74(,)-0.)3.74(g)9.decr147593((a)3.74(l)-(r)2.80561( -0.295585(25.837 5585(a)3.74( )-.294974(a)3o)-0.295585(r)2.80561(74(r)2..1653(o)-0á4(r)2..1653(o)-0ir)2.80561( -0.295585(25.-0.295187(e)653(c)3.229 0 Td[( )-5995(a)3.74(t)-25(e)3.74( )-10029(e)3.74(,)-1)250]TJ-25.1938(r)2.80439(i)-2.74(i)-2.16436(t)-2.16436((r)-7.20151(a)3.74(n)-0.2)-0.)]TJ)326346(a).74(i)-2(a)]TJ5(s)-11.23593.74( )-80.1938(r)2.80439(i)-2.74(i)-2(d)-0.295585(i)-2.16436)3.74(r)-7.20151( )-100.206(3.74(m)73(d81.74(ç)3.74(õ)-0.29574(,)-1)250]TJ-25.1938(r)2.80.1938(e)3.74( )-80.15585(i)-2.164365(e)3.74(l)-2.16558(a)3.74( )-100.207()-30.1643(a)3.74(o)-0.295585( )-5(e)3.74( )-100.206(s)-11.2371(e)3.74(i)-2(d)-0.295585(i)-2.16436)3.74(29558147593( )-40.17020..74(n)-0.295585(t)-(a).74(i)-2(a)]TJ93142(g)9.71276(e)3.74244(s)t)-2.1653(e)3.74244(,)-2.16436(o)-0.2931422( )250]TJ-231.376 -20.76 Td[(i)-73(d81.(e)3.74(v)-0.147593( )-120.219)3.74(o92.( )-30.1655(e)3.74(l)-274( )-100.207(q)-0a)3.74(n)-0.295585(h)-0.295585(a)3.74( )-çã2.45995(e)3a ese tqn..]; e ran
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em música e no próximo animal de que irá se alimentar, o que sugere uma ligação entre arte e
fome.
A associação entre a escrita e a nutrição também nos leva a refletir sobre a literatura
em seu aspecto transformador: ela tem o poder de transformar, a princípio, qualquer assunto
em material literário e, ao mesmo tempo, age sobre o leitor, que se modifica a cada nova
leitura, isto é, a cada novo “olhar” direcionado a uma obra de ficção. O próprio texto se
transforma à medida que é atualizado pela leitura. Ademais, a insistência do narrador em
comer um animal de olhos inteligentes pode ser associado a sua função enquanto escritor: é
como se, num primitivo ritual antropofágico, ele esperasse “captar” a inteligência daquele
animal para si próprio e, assim, poderia melhorar sua capacidade criativa.
O olhar que tanto atrai o personagem possui uma diversidade significativa nesse conto
de Rubem Fonseca: ele é metáfora para o ponto de vista, isto é, para a maneira de se ler um
texto literário e para o modo de se encarar a vida; é a porta de entrada para se penetrar na
essência do ser humano (os olhos, como dizem, são o espelho da alma); é, também, o acesso
ao intelecto, ao espírito, além de servir como instrumento de sedução. Nesse sentido, quando
o escritor se alimenta de um animal cuidadosamente escolhido pelo olhar, ele acaba nutrindo,
ao mesmo tempo, o corpo e o espírito, de forma que, em tom irônico, dois aspectos que pouco
provavelmente teriam o mesmo valor dentro de uma obra de ficção, como o corporal e o
espiritual, acabam sendo colocados lado a lado. É desfeita, portanto, a dicotomia entre algo
considerado de alto valor literário e aquilo que é tido como rebaixado, fato perceptível
quando, também por ironia, esse escritor estritamente clássico e refinado, como é o narrador-
personagem, escreve um poema de assunto inferior e que causa até mesmo certo asco,
conforme já pudemos notar.
Destarte, não apenas os olhos são estimados, mas também outras partes do corpo
passam a ser apreciadas por esse ex-vegetariano narrador:
Alguns [restaurantes] tinham também lagostas e lagostins, que outrossim
passei a comer, com grande prazer, conquanto esses animais tivessem olhos
miúdos e opacos. Mas a força vital que se desprendia da carne sólida deles
compensava a falta de um olhar sensível e inteligente. Sentia-me atraído pela
robusta assimetria arcaica, pela monstruosa estrutura pré-histórica desses
crustáceos (FONSECA, 1998, p.68).
O personagem começa a ter prazer ao ingerir animais de olhos pouco atrativos, pois
também o corpo deles o atrai, conforme comprovamos ao ver que o escritor elogia, com
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entusiasmo, a “força da carne” das lagostas e dos lagostins, sentindo-se seduzido pela
estrutura corpórea desses crustáceos, a qual ele considera vigorosa, sólida e que esbanja
vitalidade.
Mesclando, pois, a nutrição do corpo e da mente e, em meio a prazeres e descobertas
proporcionadas pelo olhar, o narrador passa a fazer de suas refeições um verdadeiro ritual em
que mataria a fome do estômago, a sexual e a artística. Para ele, escrever exigia alguns
gestos ritualísticos, como o cuidadoso preparo da mesa; de forma semelhante, matar e comer
os animais também se tornam atos repletos de cerimônias, parte dos quais passa a ocorrer,
estranhamente, dentro de uma banheira: o escritor, em primeiro lugar, fita o animal (um
coelho); depois dá-lhe vários golpes para matá-lo; em seguida fica nu, entra com o bicho em
sua banheira e, com uma faca afiada, arranca-lhe a pele e as vísceras. Quando está limpo e
temperado, o animal é degustado com intenso prazer e ao som de Mozart:
Comecei a saboreá-lo delicadamente, em pequenas porções. Ah!, que prazer
excelso! Foi uma lenta refeição, que durou a Júpiter, de Mozart, inteira.
Mozart não se incomodaria de eu ter usado sua música como mera
tafelmusik, se soubesse do gozo que senti (FONSECA, 1998, p. 73, grifo do
autor).
A presença da música nesse momento do ritual é significativa no conto de Fonseca. O
elemento artístico por ela representado une-se à cruenta cerimônia de alimentação preparada
pelo escritor, de forma que arte e fome não se dissociam e, mais ainda, são, para o
personagem, parte do mesmo gesto de matar e comer. Ademais, Mozart, além de ser um
compositor erudito, o que coloca em xeque, ironicamente, a própria erudição de que o
protagonista tanto se vangloria, visto que uma arte tão requintada é pano de fundo para o cruel
gesto de matança do animal, o músico é também considerado um grande gênio criador.
Assim, o ato de se alimentar torna-se símbolo da própria arte de criar, de escrever.
A música, que sempre era ouvida quando o personagem escrevia seus textos, agora é
citada mais explicitamente, de forma que o prazer artístico alcançado pelo narrador atinge,
nesse instante, o seu auge dentro da narrativa. E, associado a essa forma de prazer, está
também o prazer de comer, o qual é, de fato, manifestado no escritor quando começam a
lhe fazer sentido as palavras do médico no momento em que este dizia que “arte é fome” e
que “comer era a coisa mais criativa que o escritor poderia fazer”, de forma que fica evidente
para o escritor-personagem que, para criar, é preciso ter fome de conhecimento, de saber e,
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para escrever um texto literário, é necessário alimentar-se de muitos outros textos, não
repudiando, por exemplo, aqueles que não se encaixam na denominada arte clássica.
O personagem deixa de ser vegetariano porque associa a arte com a avidez e porque a
palavra fome” torna-se, para ele, uma fonte inesgotável de significados, ou seja, o escritor,
numa ânsia pelo sentido, transforma a alimentação em um gesto simbólico, de maneira que
comer não significa mais simplesmente ingerir o alimento diariamente para manter o corpo
em funcionamento; comer torna-se uma atividade plena de simbologias e significados, assim
como escrever um texto literário.
Na medida em que a nutrição deixa de ser uma atividade rotineira com o fim exclusivo
da sustentação e passa a ser um exercício ligado à criação artística, o escritor-personagem
um sentido novo para a alimentação, a qual fica recoberta de símbolos. Algo semelhante
ocorre nas obras de ficção, também repletas de simbologias, imagens, figuras, metáforas e
ambigüidades que as tornam plurisignificativas, desautomatizando uma possível
superficialidade de seu enredo e enriquecendo o prazer proporcionado pela leitura.
O narrador-personagem busca, portanto, um sentido não corriqueiro para a
alimentação, por isso sua relação com o animal a ser ingerido também não é a mais comum.
De forma análoga, um texto literário é escrito para ser compreendido não apenas em seu
sentido mais trivial, ou melhor, no nível explícito dos acontecimentos narrados. O leitor deve
atentar-se aos sentidos escondidos, fazer analogias, procurar as ironias e as simbologias que
revestem o texto.
Além disso, a sedução que perpassa o conto fonsequiano é símbolo da urdidura que os
escritores de obras ficcionais elaboram para conquistar o leitor e prender a sua atenção. o
prazer, indicado tantas vezes na narrativa, é também metáfora do próprio prazer que temos
com a leitura de uma obra literária e, mais especificamente, de um conto como “Olhar”.
Assim, todas as alusões que podem ser feitas nesse texto de Rubem Fonseca desembocam
numa reflexão metatextual, sendo que, mais uma vez, o autor escolhe um narrador-escritor no
intuito de melhor explorar a temática da escrita.
Os últimos acontecimentos da história reforçam o tom sarcástico e irônico que se
desenvolveu ao longo da narrativa; o protagonista se coloca diante de um espelho, momento
em que faz uma maliciosa reflexão sobre quem serão os próximos seres a entrar com ele na
banheira:
Depois fui escovar os dentes. Contemplei, através do espelho, pensativo, a
banheira. Quem fora mesmo que me dissera que os cabritos tinham um olhar
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ao mesmo tempo meigo e perverso, uma mistura de pureza e devassidão? E
o olhar dos seres humanos? Hum... Aquela banheira era pequena. Precisava
comprar uma maior. Talvez uma jacuzzi, das grandes, com jatos
estimulantes (FONSECA, 1998, p.73).
Esse trecho é repleto de ironia porque sugere que o personagem rendeu-se a tentações
alimentares muito mais maléficas do que a pura ingestão de animais. A afirmativa do
narrador-personagem, ao iniciar a história, de que um olhar pode provocar transformações
terríveis na vida de um homem faz sentido agora, que ela sugere que, provavelmente, o
escritor se tornou ou se tornará um assassino, um sujeito que tem relações sexuais com
mulheres e, depois, as mata, ou até mesmo as mata antes da relação.
Além disso, o escritor olha-se, fixamente, para o espelho (até a disposição do
parágrafo final do conto, formado por duas frases repetidas “O Olhar. O Olhar”
(FONSECA, 1998, p.73) sugere a imagem do personagem diante dessa superfície refletora),
sendo que esse acontecimento é bastante significativo, pois indica que o próprio texto, ao se
auto-referenciar, ao falar sobre o ato de escrever, é colocado, também, diante de um espelho,
de forma que a literatura volta-se sobre si mesma.
O olhar que direcionamos à narrativa fonsequiana reflete a maneira como lidamos com
o objeto ficcional e como o interpretamos, de modo que, embora à primeira vista o leitor
possa se deparar com uma simples história sobre os hábitos alimentares de um excêntrico
escritor vegetariano, um olhar sob o ponto de vista metatextual a literatura no espelho
revela reflexões acerca do fazer literário, do papel do leitor e da função da própria crítica
literária, a qual deve estar sempre aberta a novos “olhares”.
Todo esse questionamento a respeito da literatura que o conto encerra desemboca
numa reflexão sobre o que é escrever um texto ficcional. A metatextualidade depreendida da
narrativa sugere que escrever é emitir um olhar transformador sobre as palavras, de forma a
modificar seu significado usual em prol de novos e metafóricos sentidos, uma vez que a
criação literária instaura o novo, o diferente e transforma, na palavra, o sentido dicionarizado
em sentido simbólico. Também se depreende da narrativa que escrever é se alimentar de
cultura, de outros textos e, assim como o protagonista descobre diversos sabores de comida
(saindo do suflê de espinafre e passando a conhecer a truta, a lagosta e o coelho), criar é
descobrir novos sentidos para as palavras; e ler, por sua vez, é descobrir inúmeros
significados para o texto. Fazendo essas reflexões, o leitor coloca-se, também, numa atitude
especular, no sentido de conseguir examinar o objeto artístico de forma crítica. Assim, além
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de se deleitar pelo prazer que a literatura proporciona, ele passará a lançar um olhar
transformador e avaliativo sobre a obra de ficção e será capaz de “saborear” os sentidos
irônicos disfarçados nas entrelinhas da narrativa.
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9 Intestino grosso: “a verdade é aquilo em que se acredita”
Não é sem propósito, tampouco por um mero acaso, que deixamos para concluir a
seqüência de análises que compõem esta Dissertação investigando o conto “Intestino grosso”,
narrativa pertencente ao livro Feliz Ano Novo, que revela a metatextualidade em seu ponto
máximo. Essa culminância da reflexão sobre a literatura é mencionada com propriedade por
Ariovaldo José Vidal (2000, p.154), o qual chega a afirmar que esse texto “rompe quase
totalmente a situação ficcional para falar em tom de urgência ao leitor”. De fato, temos uma
história em que a matéria narrada praticamente se resume à discussão de projetos artísticos e
ao questionamento acerca do papel do escritor na sociedade contemporânea, sendo, portanto,
exemplar, dentro de toda a produção contística de Rubem Fonseca, para explorarmos a
perspectiva fonsequiana de refletir sobre a arte dentro de um texto ficcional.
O seu enredo é, a priori, bastante simples: baseia-se em uma entrevista concedida por
um polêmico escritor brasileiro (não nomeado) que faz revelações referentes aos rumos da
literatura no cenário nacional, às relações estabelecidas entre a arte moderna e a sociedade
tecnocrata e, acima de tudo, discorre sobre a incoerência dos rótulos que sua produção tem
recebido, se preocupando, portanto, em deixar bem definida a sua proposta literária. Com
essas características, Intestino grosso” tem sido considerado como uma espécie de conto-
poética, tamanho o teor metalingüístico da narrativa, porém, cabe ressaltar que não
identificamos diretamente o autor que fornece a entrevista com o próprio Rubem Fonseca
(como consideram alguns críticos), embora concordemos que o conto fornece uma direção
para o entendimento da obra fonsequiana.
Rubem Fonseca cria, em sua narrativa, uma persona que pensa abertamente sobre a
sua atuação enquanto escritor, ao mesmo tempo em que nos faz refletir sobre a posição do
intelectual de um modo geral, inserido na atual realidade brasileira. A construção de um
personagem, de certo modo, tão “parecido” com o próprio Fonseca também fortalece uma
discussão a respeito da distância entre realidade e ficção e colabora para que, com uma grande
ironia, seja explorada a temática da escrita e das relações entre literatura e experiência, vida e
arte, realidade e imaginação.
A começar pelo título do conto, ele próprio indica que a narrativa deve ser lida pelo
viés metatextual, uma vez que a história de Rubem Fonseca tem o mesmo nome do livro que
o autor fictício está escrevendo e sobre o qual ele discorre em alguns momentos da entrevista.
É tomando justamente esse livro como exemplo que o personagem-escritor responde à
pergunta sobre o que é natureza humana, feita pelo entrevistador:
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O que é natureza humana?
No meu livro Intestino grosso eu digo que, para entender a natureza humana,
é preciso que todos os artistas desexcomunguem o corpo, investiguem, da
maneira que só nós sabemos fazer, ao contrário dos cientistas, as ainda
secretas e obscuras relações entre o corpo e a mente, esmiúcem o
funcionamento do animal em todas as suas interações. (FONSECA, 1993,
p.171, grifo do autor).
O título escolhido para o conto fonsequiano revela um paradoxo: ele se relaciona a um
aspecto corporal “baixo”, não combinando, a princípio, com um objeto artístico considerado
elevado, como é a literatura. Nesse sentido, sugerimos que, para esse escritor-personagem, a
arte literária deve se desvincular de encantamentos artificiais para servir como espaço para a
discussão sobre os problemas do homem, da sociedade e, também, sobre a própria arte de
escrever, a qual não mais se acredita advir de possíveis inspirações divinas mas, sim, do árduo
trabalho com a palavra.
Por outro lado, a menção a um órgão do aparelho digestivo, como o intestino grosso,
também funciona, nos dizeres de Malcolm Silverman (1981, p.267), como uma crítica ao
homem moderno: “em ‘Intestino grosso’, paródia de entrevista, por exemplo, o primitivismo
do título é intencional em sua alusão irônica (sarcástica?) ao homem urbano, suposta epítome
do decoro e da civilização”. Para o estudioso, Fonseca quer revelar uma certa igualdade entre
o homem da moderna sociedade e o indivíduo pré-histórico, aproximação irônica e altamente
crítica que nos lembra, mais uma vez, o poema “A fome e o amor”, de Augusto dos Anjos (já
citado em análise anterior), no qual uma irônica alegoria da condição primitiva do ser-
humano.
No que diz respeito à pergunta “o que é natureza humana?”, esta poderia muito bem
ser substituída por “o que é arte?”, vista a aproximação entre corpo e palavra sugerida pelo
escritor fictício; segundo ele, para se chegar à realidade, é necessário não “desexcomungar
o corpo” como também “desexcomungar” a palavra, isto é, não condená-la, não reprimi-la em
prol de eufemismos, metáforas e eruditismos. Além disso, o conhecimento das regras que
regem a criação literária passa, de acordo com essa perspectiva, pelo desnudamento dos véus
que recobrem a atividade artística, metaforizado pelo “esmiuçamento do funcionamento do
corpo do animal em todas as suas interações”.
A noção de arte defendida pelo personagem está, ainda, em estreita relação com tudo o
que de vivo, de original, de ruptura com os modelos estilísticos consagrados e se liga
àquilo que o autor fictício chama de “pornografia da vida”, isto é, a que remete às funções
fisiológicas do homem, possibilitando-lhe viver:
100
A pornografia está ligada aos órgãos de excreção e de reprodução, à vida, às
funções que caracterizam a resistência à morte alimentação e amor, e seus
exercícios e resultados: excremento, cópula, esperma, gravidez, parto,
crescimento. Esta é a nossa velha amiga, a pornografia da vida (FONSECA,
1993, p.171).
Essa pornografia que o personagem elege como sadia e indispensável tem uma função
semelhante a uma das funções da própria arte literária, que é consagrar a vida, uma vez que a
literatura revive e se renova a cada leitura. E, em oposição à pornografia da vida, o escritor-
personagem descreve a “pornografia da morte”, ou seja, aquela que reprime os instintos
naturais do homem e torna automático e repetitivo o uso de palavras de baixo calão:
Existe uma pornografia da morte [...]?
Sim, ela está se criando. À medida que o coro de menininhas entoa nos
estádios de futebol cantigas com palavrões da velha pornografia, vai sendo
escondida uma coisa cada vez menos mencionável, que é a morte como um
processo natural, resultante da decadência física, que é a morte pornográfica,
a morte na cama, pela doença e que se torna cada vez mais secreta, abjeta,
objecionável, obscena. A outra morte – dos crimes, das catástrofes, dos
conflitos, a morte violenta, esta faz parte da Fantasia Oferecida às Massas
pela Televisão hoje, como histórias de Joãozinho e Maria antigamente [...]
(FONSECA, 1993, p.171-172).
Numa aproximação entre pornografia e arte, a pornografia da morte, por seu turno,
também poderia ser aquela que não explora o poder das palavras, usando-as simplesmente em
seu sentido tradicional, ou seja, a palavra que, de certa forma, degradou-se pelo uso
corriqueiro; é, ainda, aquela que, dentro de uma obra literária, procura sempre se revestir de
adornos no intuito de não expressar, diretamente, um significado mais chocante ou
constrangedor.
De qualquer forma, seja tratando de pornografia da vida ou da morte, o que se destaca
é a relação que estas estabelecem com a criação artística. Ademais, o personagem quer
mostrar que os parâmetros para se julgar o que é ou não pornográfico devem ser outros,
diferentes da mera referência verbal às funções sexuais e às chamadas obscenidades. Para o
escritor entrevistado, a verdadeira pornografia está na desigualdade social, na violência, na
opressão que sofre grande parte da população brasileira. São pornográficas, por exemplo,
histórias aparentemente ingênuas como a de “João e Maria” que, segundo sua visão,
dissemina a crueldade de modo incisivo ao mostrar crianças e pais que cometem crimes. Essa
distinção proposta pelo personagem entre uma pornografia nociva e outra natural dialoga com
101
a produção literária do próprio Rubem Fonseca, o qual, assim como o autor fictício, também
foi rotulado como um escritor pornográfico.
Os textos de Fonseca possuem um teor semelhante ao dos livros do personagem;
quando o entrevistador do conto pergunta se o escritor é realmente pornográfico, como o
acusam, e ele responde: “sou, os meus livros estão cheios de miseráveis sem dentes”
(FONSECA, 1993, p.164), fica claro que tanto para Rubem Fonseca (que, de fato, cria
inúmeros personagens desdentados, símbolos da flagelação e da falta de recursos) quanto para
o escritor fictício, ser pornográfico é elaborar uma literatura que revela a miséria social e a
violência decorrente da desigualdade. Assim sendo, a teoria do autor-personagem sobre o que
realmente é pernicioso e indecente poderia, de maneira perfeita, servir de argumento para
defender a própria literatura fonsequiana, censurada por ter sido considerada contrária aos
princípios morais.
Ao pensar sobre todos esses problemas que a sociedade enfrenta, os artistas da época
atual desempenham um papel de grande importância: cabe a eles e a sua literatura assumir
certas funções sociais, isto é, refletir sobre os desequilíbrios da sociedade, a qual sofre pelo
acelerado processo de modernização. E a função da arte e da pornografia seria, nesses termos,
promover uma espécie de alívio emocional, pois o mundo precisa de artistas que criem novos
sentidos para a realidade, antes que tudo vire um caos:
Eu gostaria de poder dizer que a literatura é inútil, mas não é, num mundo
em que pululam cada vez mais técnicos. Para cada Central Nuclear é preciso
uma porção de poetas e artistas, do contrário estamos fudidos antes mesmo
da bomba explodir (FONSECA, 1993, p.173).
O artista, do ponto de vista desse escritor, é extremamente necessário no atual mundo
moderno: ele possui os meios, ou seja, as suas obras, para questionar e refletir sobre os
problemas nele disseminados; ao mesmo tempo, a literatura cumpre, nesse contexto, uma
espécie de função catártica, tornando um pouco mais amena a sensação de angústia que esse
ambiente proporciona ao homem. Além disso, essa reflexão promovida por Rubem Fonseca
em “Intestino grosso” sobre o papel do artista e de sua literatura em uma sociedade cada vez
mais técnica e capitalista enquadra-se numa crescente tendência que a arte vem admitindo de
se auto-analisar. É grande o número de escritores que buscam, por meio de suas criações,
investigar o seu papel enquanto artista e enquanto cidadão, essencialmente a partir do final do
102
século XIX e durante todo o século XX, período de profundas transformações econômicas e
sociais.
Esse foi o momento em que as grandes cidades, as que mais produziam e divulgavam
cultura, passaram por um processo de intensa industrialização e modernização, que afetou as
relações de trabalho e produção, sendo que o ofício do artista também foi modificado diante
dessa conjuntura. Se, antes disso, principalmente no auge do Romantismo, qualquer contato
com a realidade era considerado nocivo à criação artística, agora esse isolamento não faz mais
tanto sentido, pois o escritor reflete sobre a sua função dentro dessa sociedade em
transformação. Toda essa análise realizada dentro de uma obra de ficção soma-se à
preocupação com os rumos da profissão do artista, a qual se torna conteúdo e até mesmo tema
de muitas narrativas.
Principalmente a partir do final dos anos 60 e início dos anos 70, modificaram-se os
modos de produção e comercialização da arte, e o escritor, cada vez mais, teve que vender a
sua força de trabalho. Concomitantemente, ele passa a pensar de forma crítica sobre a sua
atuação frente a um mercado em constante crescimento, o qual exige que a obra seja uma
mercadoria e que o artista, por conseqüência, enfrente as severas leis desse mercado. E é com
bastante ironia e até certa jocosidade que essa situação é tratada por Rubem Fonseca em
muitos contos e romances que discutem essa faceta da profissionalização do escritor. Em
“Intestino grosso”, por exemplo, uma ilustração dessa reflexão sobre a escrita como fonte
de renda na negociação entre o entrevistador e o autor fictício, o qual só aceita conceder a
entrevista se for pago “por palavra”. A comercialização da entrevista atinge um tom sarcástico
e, ao mesmo tempo, cômico, principalmente no instante em que o escritor decide,
“generosamente”, oferecer ao jornalista sete palavras de graça.
O papel da arte nessa sociedade capitalista, que gira em torno do rendimento e do
lucro, é questionado por Fonseca a partir da atitude estética, proposta pela metatextualidade,
de promover uma reflexão crítica não apenas sobre o texto em si, mas também sobre todas as
camadas que envolvem a criação, produção, recepção e até mesmo a venda de uma obra
literária. Contudo, essa relação entre profissionalização do artista e a atividade metalingüística
não significa que os textos ficcionais que primam por uma abordagem metatextual trarão
saídas para os problemas enfrentados pelos artistas diante da crescente ampliação do mercado
editorial, conforme atesta Edu Teruki Otsuka:
[...] não causa espanto que os problemas ligados à profissionalização e à
nova situação do escritor diante do mercado passem a ser tema relativamente
103
freqüente da ficção, incorporando a reflexão metalingüística sobre os
próprios processos criativos no novo contexto de relações. Também não
admira que, dadas as dificuldades, muitas vezes as obras apresentem mais
indagações e perplexidades do que soluções sem traumas (OTSUKA, 2001,
p. 20).
A falta de solução tanto para os problemas mais diretamente relacionados à produção
artística quanto para a intensa desigualdade social e para a miséria que imperam nessa
sociedade em que o artista se insere são o foco de diversas histórias de Rubem Fonseca, fato
este que faz com que muitos de seus personagens-escritores se caracterizem como indivíduos,
de certa forma, marginais, ou até mesmo identificados com os “fora-da-lei”, numa tentativa de
demonstrar uma revolta contra as mazelas sociais, como sugere o próprio autor-personagem
de “Intestino grosso” ao responder à pergunta sobre o motivo pelo qual ele se tornou escritor:
“gente como nós ou vira santo ou maluco, ou revolucionário ou bandido. Como não havia
verdade no êxtase nem no poder, fiquei entre escritor e bandido” (FONSECA, 1993, p.164).
Em se tratando da produção fonsequiana, esse posicionamento crítico disseminado na
ficção sobre a arte e sobre os problemas do mundo moderno exige a cumplicidade de um
leitor também crítico, que saiba avaliar a narrativa além do enredo aparentemente simples e
além daquilo que seria, para muitos, uma pornografia gratuita. Nesse sentido, em mais um
viés da reflexão metatextual, nem mesmo a figura do leitor escapa a um irônico julgamento: o
personagem-escritor sabe que, na gama de leitores de suas ficções, existem, por exemplo, os
que se igualam àqueles que se deixam dominar pela influência dos media, a ponto até de
verem minar o seu senso crítico:
Você escreve os seus livros para um leitor imaginário?
Entre meus leitores existem também os que são tão idiotas quanto os
legumes humanos que passam todas as horas de lazer olhando televisão
(FONSECA, 1993, p.173).
Outro aspecto que observamos no conto de Rubem Fonseca dentro dessa perspectiva
metatextual é uma reflexão acerca da busca que o escritor empreende visando conquistar o
seu próprio espaço no âmbito cultural. Não bastasse a ânsia pelo reconhecimento por parte
dos editores, da crítica e do mercado, também é preciso lidar com o peso da tradição literária,
numa relação conflituosa que muitos dos novos escritores estão dispostos a enfrentar. Nesse
sentido, uma espécie de “angústia da influência” (BLOOM, 1995) perpassa vários momentos
da trama; em frases do tipo: “odeio Joyce. Odeio todos os meus antecessores e
104
contemporâneos” (FONSECA, 1993, p. 170), um certo desdém aflora da boca do autor
fictício, revelando até mesmo uma raiva com relação a este e outros representantes da herança
literária. O mesmo sentido de choque com a tradição é notado neste outro trecho do conto:
Quando foi que você foi publicado pela primeira vez? Demorou muito?
Demorou. Eles queriam que eu escrevesse igual ao Machado de Assis, e eu
não queria, ou não sabia.
Quem eram eles?
Os caras que editavam os livros, os suplementos literários, os jornais de
letras. Eles queriam os negrinhos do pastoureiro, os guaranis, os sertões da
vida. Eu morava num edifício de apartamentos no centro da cidade e da
janela do meu quarto via anúncios coloridos em gás néon e ouvia barulho de
motores de automóveis (FONSECA, 1993, p. 164).
As referências a Machado de Assis, Simões Lopes Neto, José de Alencar e Euclides da
Cunha são sintomáticas de que o personagem quer romper com os modelos literários
instituídos e fazer uma literatura que esteja em consonância com o seu tempo histórico. Esse
embate com a tradição ampara-se, inclusive, na estética da pornografia, criada pelo escritor
fictício, que seus livros adotam uma linguagem urbana e até mesmo chula mas que, apesar
disso, está de acordo com o seu universo, não sendo submissa a padrões estéticos que nada
têm a ver com a atual realidade. Além disso, essa submissão a determinados padrões artísticos
seria um dos principais obstáculos à elaboração de uma literatura nacional mais autêntica, isto
é, voltada para os reais problemas do nosso país, o que acarreta uma situação de grande
dependência:
Existe uma literatura latino-americana?
Não me faça rir. Não existe nem mesmo uma literatura brasileira, com
semelhanças de estrutura, estilo, caracterização, ou lá o que seja. Existem
pessoas escrevendo na mesma língua, em português, o que é muito e tudo.
Eu nada tenho a ver com Guimarães Rosa, estou escrevendo sobre pessoas
empilhadas na cidade enquanto os tecnocratas afiam o arame farpado. [...]
Não dá mais para Diadorim (FONSECA, 1993, p.173).
Vemos nessa passagem uma provocação que inspira uma revisão do cânone literário e
uma tentativa de se clamar por uma posição mais atualizada dos intelectuais, principalmente
dos escritores, no cenário do mundo moderno. Ainda, o excerto pode sugerir, implicitamente,
uma busca do próprio Rubem Fonseca por um espaço no âmbito da literatura brasileira
posterior a Guimarães Rosa, visto que, de acordo com Ana Cristina Coutinho Viegas (2006b),
105
quando Rosa publicou Grande Sertão Veredas, em 1956, pouco antes da estréia de Rubem
Fonseca no âmbito artístico, o cenário da literatura brasileira foi dominado por ele.
A pesquisadora ainda comenta que a questão da oposição entre linguagem culta e
linguagem popular, a qual, sabemos, é bastante falada quando se trata da produção
fonsequiana, foi também muito questionada na época de Guimarães Rosa, sendo que parte da
crítica que era desfavorável ao estilo rosiano apontava os neologismos, os jogos de palavras, o
trabalho com os sufixos e os prefixos como algo não compatível com a tradução do
sertanismo, proposta pelo autor, de modo que muitos condenavam a sua linguagem difícil e
não automatizada. Tal discussão se atualiza no conto de Rubem Fonseca ao notarmos que há,
a todo instante, um debate acerca do tipo de linguagem mais adequada para compor uma obra
literária e que possa, ao mesmo tempo, ser reflexo do mundo que abriga o artista.
O escritor-personagem elege o palavrão e a linguagem coloquial mais pertinentes para
compor seus livros, chegando a criticar o uso da metáfora que, além de ser símbolo do padrão
estético tradicional da arte literária, o qual o autor fictício combate sarcasticamente, ainda
serve como um artifício para encobrir o sentido de certas palavras consideradas vulgares:
[...] a metáfora surgiu por isso, para os nossos avós não terem de dizer
foder. Eles dormiam com, faziam o amor (às vezes em francês), praticavam
relações, congresso sexual, conjunção carnal, coito, cópula, fazia, tudo, só
não fodiam (FONSECA, 1993, p. 166, grifo do autor)
Ironicamente, o escritor entrevistado, apesar de se mostrar categoricamente adepto de
uma linguagem mais rebaixada, se revela também bastante culto, afirmando, no início da
entrevista, que possui uma biblioteca com cerca de cinco mil livros, quase todos lidos. Essa
flutuação entre ser um artista instruído e, concomitantemente, optar por uma linguagem
desprestigiada, está em consonância com o próprio posicionamento que Rubem Fonseca
adota: seus livros são recheados de palavras vulgares ao mesmo tempo em que são
preenchidos com as mais variadas citações e referências ao universo da cultura erudita.
Por essa e muitas outras comparações entre o autor fictício e o verdadeiro Rubem
Fonseca, costuma-se confundir o personagem com o escritor real, entretanto, essa técnica
escolhida por Fonseca em “Intestino grosso” colabora para aumentar o sentido irônico e
paródico da narrativa. As perguntas feitas pelo jornalista, por exemplo, são de um
brilhantismo incomum, tocando, propositalmente, nos pontos-chave da polêmica que reveste
106
tanto a obra do escritor fictício quanto a de Rubem Fonseca, e o resultado é uma história
cômica e que põe em destaque muitos clichês que recobrem a escrita fonsequiana.
Assim, em “Intestino grosso”, o que se pretende mostrar como uma entrevista verídica
(por meio dessa aproximação entre personagem e autor real) torna-se, paradoxalmente, um
virtuoso exercício da ficção, a qual, por sua vez, é descoberta, isto é, desvelada através do
próprio enredo da narrativa. Dessa forma, esse jogo entre realidade e ficção enriquece o
sentido metatextual do conto, evidenciando o primado da elaboração artística, do poder da
palavra literária de criar mundos, mesmo estes estando tão próximos da realidade.
Por fim, a metatextualidade nessa narrativa, enquanto explora o tema da escrita, dos
rumos da arte na sociedade moderna, da função do artista e do leitor e do peso da tradição
literária, também põe em xeque a própria literatura, ressaltando o valor da verossimilhança
para uma obra de ficção; afinal, conforme constata o escritor-personagem, “o que importa não
é a realidade, é a verdade, e a verdade é aquilo em que se acredita” (FONSECA, 1993, p.166),
e nós acrescentamos: a verdade é aquilo que a linguagem constrói e em que a ficção nos faz
acreditar.
107
10 Considerações finais
A produção contística de Rubem Fonseca explora, em dezenas de textos, o tema da
escrita e da criação artística. Além dos contos aqui investigados, outros como “Matéria do
sonho”, “Romance negro”, “*** (Asteriscos)”, “Artes e ofícios” e “Agruras de um jovem
escritor” são alguns exemplos de narrativas em que a própria ficção torna-se matéria-prima
para a elaboração dos enredos. Sob diversos ângulos, elas abordam questões referentes à arte
e ao fazer literário, possibilitando um estudo sobre a obra fonsequiana mais voltado para as
perspectivas estéticas dos textos do autor.
As narrativas analisadas durante esta pesquisa mostraram como Rubem Fonseca
apropria-se da metatextualidade, isto é, do procedimento de criação literária que reflete
criticamente sobre a arte nas entrelinhas dos enredos, para criar histórias nas quais a literatura
é, ela própria, revista simbolicamente. Lançando mão de recursos associados a essa prática e
que jogam com a duplicidade de sentidos, como a intertextualidade, a paródia e a ironia, o
autor elabora textos que olham para si mesmos e que evidenciam como inúmeras vozes se
entrelaçam dentro de um mesmo objeto ficcional.
Com a metatextualidade, o discurso crítico é absorvido pelo texto literário, pois a arte,
ao se construir, explicita como se essa construção. É como se a literatura estivesse diante
de um espelho – ela se volta sobre si mesma numa tentativa de se auto-analisar e, dessa forma,
acaba desmistificando a criação literária diante do leitor, o qual é também construtor dos
sentidos do texto, pois, a partir de seu conhecimento de mundo e de sua bagagem de leituras,
reconhecerá as marcas deixadas nas narrativas e fará a sua própria interpretação.
De acordo com a leitura que propusemos para alguns textos de Rubem Fonseca, a qual
foi norteada pela reflexão metatextual, pudemos constatar, no desenvolver das análises,
diversos elementos comuns às narrativas: todos os enredos, de forma mais ou menos explícita,
discutem o fazer artístico, dialogam com a tradição literária, centram-se na figura do
personagem-escritor (intelectual ou jornalista), são irônicos e, portanto, ambígüos, e jogam
com a expectativa dos leitores. Além disso, percebemos que alguns temas e certas figuras são
recorrentes em determinados contos: por exemplo, as metáforas da alimentação e da sedução
utilizadas, respectivamente, para se referir ao procedimento intertextual e aos artifícios que
o escritor usa para atrair e prender a atenção do leitor – são notadas em duas narrativas: “Nau
Catrineta” e “Olhar”; outro elemento comum a dois textos fonsequianos é a imagem dos olhos
como uma metáfora para o modo como vemos/lemos o texto literário, a qual aparece em “A
arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro” e, novamente, no conto “Olhar”; a função do
108
escritor está presente em cinco dos seis contos investigados, sendo que o único que se afasta
um pouco dessa questão é “À maneira de Godard”; temos, também, a paródia, bastante
acentuada em “Corações solitários”, “Intestino grosso” e, mais uma vez, em “À maneira de
Godard”; ainda, a reflexão acerca da função do leitor e, conseqüentemente, da leitura é
explorada em “Nau Catrineta”, “Olhar” e “Intestino grosso” e, finalmente, o fingimento como
metáfora para o fazer literário é marcante em “Corações solitários” e também tangencia o
conto “Intestino grosso”, com a criação da persona do autor entrevistado. Entretanto, é
necessário explicar que o agrupamento proposto pela análise de certas constantes presentes
em tais histórias não pode ser visto como algo rígido, estanque; apenas sublinhamos alguns
aspectos que mais se destacam em nossas leituras e que se repetem em, pelo menos, duas
delas.
Também é comum a todas as narrativas o contraste entre a superficialidade aparente
dos enredos e o teor reflexivo escondido nas entrelinhas dos contos. A comicidade, presente
em certos momentos, e o vigor das ações narradas podem camuflar uma leitura daquilo que
está escrito nas camadas mais profundas dos textos. Ademais, Rubem Fonseca, muitas vezes,
chega a banalizar o tema de suas histórias, contudo, preocupa-se, constantemente, com o
caráter crítico e com a construção de suas narrativas. O léxico, por exemplo, por ser bastante
simplificado, é uma das formas de expressão dessa banalização; ele facilita a leitura para um
leitor menos preparado, o qual acaba se deixando enganar pelas ironias dissolvidas na ficção.
Todavia, ao lado dessa facilidade promovida pelo uso de uma linguagem mais coloquial, os
textos fonsequianos são requintados, na medida em que emitem avaliações acerca da arte e, ao
mesmo tempo, fazem muitas referências ao universo da literatura e da cultura de um modo
geral, que pressupõem um leitor com alguma erudição, algum repertório.
A metatextualidade, porém, não é a responsável pelo fato de Rubem Fonseca ser um
grande e consagrado escritor; não é isso, ou melhor, apenas isso, que faz de Fonseca um
artista de alta categoria. Ele pode ser considerado um autor de importância no âmbito da
literatura brasileira contemporânea, entre outras coisas, porque tem um estilo próprio e por ter
um apuro técnico incontestável, conseguindo, assim, destacar-se entre seus pares.
Além disso, Rubem Fonseca distingue-se por uma de suas mais fortes marcas: a
aproximação, em sua ficção, de mundos bastante distintos, como o da cultura e o do crime,
por exemplo. O autor fala do submundo, mas escreve também sobre a arte, traz em suas
narrativas o tema da criminalidade, mas coloca a literatura como centro de várias criações,
refletindo tanto sobre o homem quanto sobre a arte de escrever, sendo que, muitas vezes, a
mescla entre esses dois universos causa uma espécie de efeito dissonante, isto é, contrastante
109
dentro dos próprios textos. E, apesar de estarmos cientes que a literatura fonsequiana oscila
entre esses dois pólos, esta pesquisa buscou investigar e explorar os textos de Fonseca que
fazem mais uma avaliação acerca do campo literário do que sobre o contexto sócio-histórico
(embora, por vezes, essa separação seja muito difícil) e, por isso, procuramos voltar nossa
atenção para as tendências metatextuais presentes nos contos do autor.
Sabemos, porém, que a metatextualidade não é característica exclusiva da obra
fonsequiana e que diversos artistas atuais têm se dedicado a explorar as várias facetas dessa
prática. Também é fato que a própria reflexão metatextual não é um fenômeno novo, ela
existia até mesmo nos remotos epigramas latinos. Contudo, no caso de Rubem Fonseca, além
de desmistificar o fazer artístico e de revelar uma consciência sobre a arte em construção, a
metatextualidade possui outras funções que também revelam a peculiaridade da utilização
desse recurso na obra do autor e na contemporaneidade, as quais queremos expor como parte
dessas considerações finais.
É possível que Fonseca sempre tenha querido agradar seu público escrevendo algo que
ele sabia que os seus leitores estavam esperando ler quando procuravam uma de suas
narrativas. É, talvez, até por esse motivo que sua produção possui certa regularidade temática
e estilística sendo, na maior parte, histórias de suspense e que “hipnotizam” os leitores. Essa
orientação que a obra fonsequiana seguiu no decorrer dos anos fez com que a crítica,
freqüentemente, rotulasse Rubem Fonseca como um escritor repetitivo e que escrevia
unicamente para um leitor médio, aquele que, sem ter um conhecimento mais apurado de sua
obra, não conseguia enxergar o caráter crítico existente nos seus textos. Diante dessa situação,
a metatextualidade, juntamente com uma dose de erudição proporcionada pelas constantes
referências ao universo da cultura, aparece nos seus contos (e também nos romances e nas
novelas) expondo um certo refinamento, servindo como uma espécie de resposta à crítica da
imprensa que, muitas vezes, fora impiedosa com o autor.
Assim, podemos dizer que uma das funções da metatextualidade na produção
fonsequiana e, mais especificamente, nas suas narrativas curtas, é retorquir as críticas
negativas que o escritor recebeu, principalmente na fase inicial de sua vida artística, sendo
que os trabalhos mais recentes do autor exploram, ainda mais, a temática da escrita. E, visto
que a obra de Rubem Fonseca carece, até então, de uma avaliação mais substancial (isso se
considerarmos a influência que o autor exerce sobre os novos escritores), acreditamos que
pesquisas vindouras sobre essa vertente metatextual possam contribuir para proliferar e
aprofundar os estudos sobre a ficção fonsequiana que não possuem como ponto de partida
apenas uma visão histórico-sociológica.
110
O papel que a reflexão metatextual desempenha no conjunto da obra de Rubem
Fonseca não se esgota, contudo, nessa resposta aos críticos que, de certa forma, depreciaram
as criações do autor. A metatextualidade na produção fonsequiana também deve ser entendida
dentro do contexto em que sua ficção foi elaborada, ou seja, precisamos refletir sobre o
processo metalingüístico de acordo com os meandros da literatura brasileira contemporânea
para, assim, compreendermos com mais profundidade o porquê da utilização dessa técnica de
construção textual na obra do autor.
A análise dos recursos metatextuais na ficção de Rubem Fonseca, bem como na obra
de muitos escritores de hoje, leva em consideração a enorme influência da Indústria Cultural e
o poderio dos mass-media, que afetam consideravelmente a atividade do escritor: os artistas
têm plena consciência de que a arte tornou-se uma mercadoria e que a relação entre eles e o
mercado editorial nem sempre é tranqüila; não bastasse isso, os escritores também estão
cientes da situação problemática por eles enfrentada, que seus textos concorrem (nem
sempre em de igualdade) com uma variedade de informações que nos são bombardeadas a
todo instante (via televisão, Internet, etc.) e que chegam a nós de forma fragmentada e
desconexa.
De fato, o mundo contemporâneo caracteriza-se pela propagação da informação rápida
e superficial e, curiosamente, a atual ficção capta essa variedade de fatos transmitidos
tornando-se, ela própria, plural, múltipla e que abrange significados diversos. Nesse sentido, a
narrativa contemporânea conduz o leitor a reconhecê-la como possuindo inúmeras
perspectivas, com vários modos de interpretá-la, de forma a não transmitir verdades
inquestionáveis e inabaláveis. Pensando nisso, a reflexão metatextual, com sua duplicidade de
sentidos, revela que a ficção contemporânea não é um complexo totalizante, mas, ao
contrário, é o espelhamento da própria multiplicidade que caracteriza a época moderna. Até
mesmo a globalização, fenômeno típico desse período, reflete-se na literatura por meio do uso
da intertextualidade (a qual une textos, autores e temas distintos) e da mescla de estilos (que
promove a integração entre gêneros híbridos dentro de um mesmo objeto artístico).
O que vemos, portanto, é que os escritores atuais, além de avaliarem o passado
artístico-cultural, também fazem a crítica de si mesmos e do contexto em que estão inseridos,
sendo que, para isso, a ironia que ecoa da reflexão metatextual é uma de suas mais fortes
aliadas. Ainda, uma vez que o crescimento do mercado de bens culturais promoveu a
profissionalização do artista, este passou a refletir em suas narrativas sobre o seu próprio
ofício, de modo que o foco da crítica metatextual na literatura brasileira contemporânea tem
111
sido, ao lado do desvelamento do fazer artístico, a reflexão sobre a própria situação do artista
na atual sociedade.
Assim, ao mesmo tempo em que a metatextualidade expõe as artimanhas da
construção do texto ficcional, ela se centra na discussão acerca dos rumos da cultura no
cenário artístico atual, sendo que Rubem Fonseca, especificamente, insere-se no conjunto dos
escritores que desmistificam o fazer literário enquanto refletem estilisticamente sobre a
contemporaneidade e sobre a arte moderna.
Além dessa estreita relação entre reflexão metatextual e mundo contemporâneo,
presente nos textos de Fonseca, consideramos que é, também, uma das atribuições essenciais
da metatextualidade na obra do autor mostrar o caminho percorrido pela literatura e aquele
que ela ainda de percorrer. Em outras palavras, os textos ficcionais, principalmente pelo
viés da intertextualidade, a qual está associada à reflexão sobre o fazer literário, dialogam
com a tradição artística colocando, em um mesmo plano, passado e presente e, ainda, abrindo
espaço para um diálogo com obras futuras. Nesse sentido, a literatura estaria percorrendo um
trajeto, estaria deslocando-se do passado para o momento atual, de forma que a
metatextualidade, junto com seus desdobramentos, colocaria em destaque esse percurso.
A própria paródia na acepção mais recente de “canto paralelo”, proposta por Linda
Hutcheon (1985), vem mostrar que os textos pertencentes a nossa herança cultural caminham
“ao lado” dos textos atuais, seguindo, juntos, pela mesma direção; eles se comunicam e fazem
com que a literatura seja algo dinâmico, em constante movimento. Por isso, nem sempre os
contos de Rubem Fonseca propõem destruir totalmente os estilos consagrados pela tradição
(apesar disso às vezes ocorrer, conforme constatamos em nossas análises), pois, em muitas
ocasiões, esse anseio pela ruptura espelha, na realidade, a idéia de deslocar o passado para o
presente, no intuito de estabelecer novos parâmetros que possam definir o valor da arte
literária atual.
Com efeito, a tradição e o presente são tratados por Rubem Fonseca, e a reflexão sobre
o fazer literário abarca esse questionamento relacionado ao patrimônio cultural e à arte
moderna. Além desse diálogo entre textos do passado e da atualidade, a metatextualidade
cumpre, ainda, outra importante função: a dica, uma vez que ela estabelece jogos entre os
sentidos situados no plano mais epidérmico dos textos e aqueles que se infiltram nas
“brechas” das narrativas, sendo que a ironia é a principal expressão desse contraste entre o
que é dito num nível aparente e o que está disfarçado na superfície mais visível das histórias.
Essa função lúdica serve como forma de incitar a participação, ou melhor, a parceria do leitor,
que percebe tais jogos, assim como identifica as referências a outras obras, inclusive as
112
consagradas pela tradição literária, de forma que, ao notar o diálogo de vozes existente em
cada texto, ele se torna cúmplice do autor na construção dos sentidos da narrativa.
Essas funções da metatextualidade até agora expostas giram em torno de três pontos
que consideramos os mais marcantes e que resumem, segundo o nosso ponto de vista, o
motivo pelo qual Rubem Fonseca recheia seus textos com alusões aos mais diversos trabalhos
literários, ao mesmo tempo em que reflete sobre a arte de escrever textos ficcionais e sobre o
papel do artista na sociedade: 1) a revelação do caráter crítico da produção do autor, a qual
não deve ser julgada como superficial, que trata apenas de temas ligados à violência e ao
erotismo e que atende às exigências do mercado editorial; 2) a tendência da literatura
contemporânea de refletir sobre si mesma dentro dos enredos; 3) o diálogo com a tradição, o
qual mostra o caminho que a arte percorre no sentido de a literatura do passado poder ser
sempre revista e atualizada no presente.
Convém também ressaltar nesta última parte de nossa pesquisa uma das funções deste
trabalho, lembrando que nosso objetivo foi apontar as manifestações da metatextualidade em
alguns contos de Fonseca e explorar o papel desempenhado por essa prática no conjunto da
obra do autor e da literatura contemporânea. Ao investigarmos a produção fonsequiana
seguindo as veredas da reflexão metatextual, quisemos atingir, principalmente, o leitor
fonsequiano, isto é, chamar a atenção desse narratário para que ele tenha um olhar mais atento
ao se deparar com uma ficção de Rubem Fonseca. É preciso, também, que esse leitor assuma,
em certo sentido, a figura metafórica do flâneur, de um indivíduo que percorre não a cidade,
mas, sim, o texto literário; alguém, entretanto, que não “perambule” ociosamente pela
narrativa, mas que siga as pistas que o próprio enredo indica, buscando as marcas implícitas
que são a chave para desvendar a destreza do texto e, por extensão, para depreender o
discurso crítico que ecoa das narrativas do autor.
Dando, pois, termo ao nosso trabalho, destacamos que as análises propostas no
decorrer desta pesquisao esgotam, absolutamente, as possibilidades de estudo sobre a
ficção fonsequiana que privilegiam a vertente metatextual. A obra contística de Rubem
Fonseca é rica e convida-nos constantemente a emitir novos olhares sobre os textos de ficção,
por isso, esperamos que nossas reflexões possam, de alguma forma, contribuir para o
surgimento de novos estudos que destaquem a habilidade artística de Fonseca e,
conseqüentemente, as artimanhas dos textos do autor.
113
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