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MÁRCIO ROBERTO DO PRADO
VÉSPER
Exercício de Filosofia da Literatura
ANTÍTESE DE DOUTORADO
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1
MÁRCIO ROBERTO DO PRADO
VÉSPER
Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos Literários da
Faculdade de Ciências e Letras
Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção
do título de Doutor em Estudos Literários.
Linha de pesquisa: 
Orientadora: Profª. Drª. Karin Volobuef
Co-orientador: Prof. Dr. Adalberto Luís Vicente
Bolsa: CAPES
ARARAQUARA
SÃO
PAULO.
2007
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2
Prado, Márcio Roberto do
Vésper / Márcio Roberto do Prado – 2007
347 f. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Estudos Literários) –
Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e
Letras, Campus de Araraquara
Orientador: Karin Volobuef
l.Literatura. 2. Literatura -- Filosofia.
3. Literatura -- História e crítica. 4. Epistemologia.
5. Análise do discurso. I. Título.
3
MÁRCIO ROBERTO DO PRADO
VÉSPER
Tese de Doutorado, apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Estudos Literários da
Faculdade de Ciências e Letras
Unesp/Araraquara, como requisito para
obtenção do título de Doutor em Estudos
Literários.
Linha de pesquisa: 
Orientadora: Profª. Drª. Karin Volobuef
Co-orientador: Prof. Dr. Adalberto Luís Vicente
Bolsa: CAPES
Data de aprovação: 26/02/2007
M
EMBROS COMPONENTES DA
B
ANCA
E
XAMINADORA
:
Presidente e Orientador: Profª. Drª. Karin Volobuef
Departamento de Letras Modernas/UNESP/FCLAr.
Membro Titular: Prof. Dr. Sidney Barbosa
Departamento de Letras Modernas/UNESP/FCLAr.
Membro Titular: Prof. Dr. José Pedro Antunes
Departamento de Letras Modernas/UNESP/FCLAr.
Membro Titular: Prof. Dr. Tristan Guillermo Torriani
Departamento de Música/UNICAMP/Instituto de Artes.
Membro Titular: Profª. Drª. Leila de Aguiar Costa
Departamento de Artes/PUC-São Paulo.
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
4
PRADO, Márcio Roberto do. Vésper. 2007. 347 f. Tese de Doutorado em Estudos
Literários Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista,
Araraquara, 2007.
RESUMO
O presente estudo configura-se segundo uma dupla articulação, cabendo a ele,
portanto, dois momentos distintos. Em um dos casos, defende-se uma tese a
respeito do gênio em quatro literaturas européias (inglesa, alemã, francesa e
portuguesa), por meio de alguns autores paradigmáticos (John Milton, William Blake,
Johann Wolfgang von Goethe, Thomas Mann, François Rabelais, Michel de
Montaigne, René Descartes, Voltaire, Denis Diderot, Jean-Jacques Rousseau, Victor
Hugo, Gérard de Nerval, Arthur Rimbaud, Luís de Camões e Fernando Pessoa),
pensando a idéia de gênio a partir de um interpretante específico, a saber, a figura
diabólica, em uma postura que permite entrever uma perspectiva de genialidade
eminentemente agônica. No outro caso, partindo-se desta tese específica,
estabelece-se uma reflexão a respeito dos limites do pensamento científico, em
especial o literário, através de um movimento antitético que busca ampliar as
possibilidades das teses a respeito da Literatura, dos atos intelectuais que nela se
embasam, em suma, da própria Literatura.
Palavras-chave:
Filosofia da Literatura. Teoria da Literatura. Crítica da Literatura.
Epistemologia. Gênio. Diabo.
5
RÉSUMÉ
Cette étude présente une double articulation, c’est-à-dire, deux moments distincts.
Dans un premier moment, on soutient une thèse à propos du génie dans quatre
littératures européennes (l’anglaise, l’allemande, la française et la portugaise)
étudiées à partir de quelques auteurs paradigmatiques (John Milton, William Blake,
Johann Wolfgang von Goethe, Thomas Mann, François Rabelais, Michel de
Montaigne, René Descartes, Voltaire, Denis Diderot, Jean-Jacques Rousseau, Victor
Hugo, Gérard de Nerval, Arthur Rimbaud, Luís de Camões e Fernando Pessoa).
Dans cette thèse on travaille une idée de génie à partir d’un interprétant spécifique :
la figure diabolique dont la nature montre une perspective de la génialité surtout
agonique. Dans le deuxième moment, on part de cette thèse spécifique pour établir
une réflexion sur les limites de la pensée scientifique (spécialement la pensée
scientifique littéraire) avec un mouvement antithétique qui vise explorer les
possibilités des thèses sur la Littérature et des actes intellectuels qui naissent de
cette source. En somme, de la Littérature elle-même.
Mots-clés : Philosophie de la Littérature. Théorie de la Littérature. Critique de la
Littérature. Epistémologie. Génie. Diable.
6
SUMÁRIO
O VELHO NOVO TESTAMENTO
EYEH ASHER EYEH..............................................................................................p. 08
 :
in principio erat... (prelúdio de uma teoria dogmática do Ser)
…...…...p. 12
Marginália: uma teoria dogmática da literatura......................................................p. 27
Decálogo................................................................................................................p. 42
O NOVO VELHO TESTAMENTO
Lúcifer: um estudo de uma idéia de gênio.............................................................p. 48
PARA AQUÉM DOS TESTAMENTOS, PARA ALÉM DOS TESTAMENTOS
Renovando a Lei..………………………………………………..…………………….p. 315
Quebrando as tábuas da Lei................................................................................p. 318
Filosofia da Literatura...........................................................................................p. 330
A guisa de bibliografia: Ta biblia..........................................................................p. 345
7
O VELHO NOVO TESTAMENTO
8
EYEH ASHER EYEH
Refletir a respeito de livros nos oferece, muitas vezes, profícuas instigações
que nos apontam trilhas que não apenas temos temor de percorrer, mas que, muitas
vezes, julgamos nem sequer existir. A Bíblia, por exemplo. Sem a considerarmos
como texto sagrado inspirado diretamente pelo poder de um deus onipotente, temos
uma junção desigual de textos que, em suas escrituras, leituras, censuras e re-
escrituras, atravessaram séculos. Autores muito diferentes contribuiram para sua
composição, sem, contudo, estabelecerem um diálogo direto que apontasse para um
pensamento orgânico ordenado. Entretanto, desde as primeiras tentativas relevantes
de organização revisionista como a da academia de Esdras, por exemplo
vislumbrou-se, no todo, a promessa do uno e, através da História, passando pela
mudança de língua e de deus, chegou-se a um livro que, ironicamente, manteve o
grego ta biblia, os livros.
Um livro que é os livros, os livros que são um livro: um ultrapassar do oxímoro
que se faz pela revolução na apresentação. o que a Bíblia esteja sozinha em tão
privilegiada posição. Apenas para nos restringirmos a um específico arco geográfico,
podemos lembrar os Upanishads, os Vedas ou o Mahabharata como muitos livros
e muitas vozes tornados um por um princípio mais que humano. Todavia, em
nenhum dos casos temos uma apresentação realmente similar ao livro fundamental
do cristianismo, a não ser que nos reportemos a seu pai primevo em suas diversas
faces: Antigo Testamento, as Tanakh, a Torah. Na Bíblia, a univocidade não se dá
pela adoção de uma voz aglutinante geradora de uma obra igualmente aglutinante:
as vozes Moisés, Isaías, Davi, entre outros tornam-se uma voz que subjaz a
todas as outras e as transcende, sem, contudo, anulá-las. Diante deste painel, a
impossibilidade de verificação da “real” autoria não constitui um problema, uma vez
que, se Moisés não escreveu o Pentateuco, a adoção deliberada de mais uma voz
distinta além e aquém da voz una da divindade é ainda mais sintomática. Como na
Cabala, aqui, a forma é o conteúdo presentificado em termos físicos; a apresentação
é a Ordem para além de todo o Caos, a mão direta do deus que se faz fazendo.
Este exercício de Filosofia da Literatura busca assimilar a lição bíblica para
resolver um problema prático que, apesar de sua evidência, ainda representa uma
dificuldade considerável: como transcender a forma cristalizada do discurso
9
científico em especial aquele encontrado em dissertações de mestrado e teses de
doutorado que embasa os processos analíticos, críticos e teóricos que são a base
dos comentários eruditos em geral e das reflexões sobre Literatura em particular.
Conforme se verá nas páginas seguintes, esses atos judicativos até mesmo a
mera esperança judicativa serão não questionados, mas negados, para, em
seguida encontrarem possibilidades de existência da dinâmica das trocas
discursivas e subjetivas. Este trabalho, a princípio discurso da ciência literária,
colocar-se-á diametralmente oposto a esta própria ciência, desafiando seus limites
para, não obstante, buscar ampliá-los. Assim, um dizer que destrói as próprias leis
que, aparentemente, garantiam sua subsistência, não poderia manter sua antiga
forma, sob pena de anular-se na coerência essencial. Novamente aqui, uma lição
bíblica: naquele livro que, na posição final, representa definitivamente um fim, o
Apocalipse, após o fim do fim temos um novo começo que é representado na nova
apresentação daquilo que é, um “eis que faço novas todas as coisas” instaurador da
promessa do futuro. E, para estas páginas, essa é a lição mais importante.
Este exercício, portanto, começa, de antemão, com um problema, um
problema de Darstellung. E este problema se em duas frentes. Em primeiro
lugar, há o problema da escolha da forma de composição propriamente dita. Afinal,
quando se flerta com o novo, com o insondado, em contraposição às perspectivas
quase ilimitadas que se oferecem, temos também a insegurança diante do
desconhecido e a incerteza da correção das escolhas. Contudo, este temor é fruto
de toda uma história no seio de uma tradição normativa que, em seus piores
momentos, sempre acenou com a punição impiedosa a todo engano e desvio. Para
isso, esta normatização teve de instaurar o erro como pressuposto factual, além de
negativizar fortemente o desvio. Se se propõe questionar esta normatização, então o
medo não deve servir de desculpa para que não se ouse. Deste modo, estas
páginas encontrarão seu caminho percorrendo-o.
E qual será este caminho? Em um primeiro momento, serão tecidas reflexões
especulativas sobre a própria reflexão, enfocando-se o Ser e a perpecpção da
Literatura. Para tanto, será feito um ensaio sobre uma “teoria dogmática do Ser”,
seguido de uma aplicação prática da teoria em um exemplo casual de estudo
literário capaz de servir de introdução a uma “perpspectiva dogmática da literatura”.
Neste primeiro momento, será diretamente criticada a idéia de possibilidade
10
desmistificatória em todo ato judicativo, não importando para qual objeto esteja este
ato direcionado. Sempre em função de uma adequação de Darstellung, a linguagem
utilizada também se desviará daquela habitualmente encontrada em tratados
científicos, adotando uma dicção que, conforme discorrer-se-á posteriormente,
propõe-se poiética, mesclando o procedimento discursivo literário e o arsenal
especulativo do discurso filosófico em uma apropriação livre capaz de ampliar as
possibilidades de ambos. Além disso, a citação separada do texto e a referência
bibliográfica, base da ilusão erudita, não serão utilizadas, evitando-se, assim, a
forma enciclopédica. Tal postura se justifica no seguinte princípio: caso o
enciclopedismo fosse essencial por si só, bastaria ao leitor ir até os autores citados.
Ou seja, a tese seria apenas uma bibliografia. Tal posição é, sem dúvida, polêmica,
mas também se ancora na perpcepção de que a criação de um trabalho original,
assemelha-se, em um exemplo vulgar, à criação de uma nova receita de bolo. Neste
caso, ter de dar as referências, é comparável a ter de dar informações sobre a
farinha, o açúcar ou o sal: e não apenas sobre as marcas utilizadas, mas sobre seus
invisíveis inventores, perdidos no tempo, na ilusão historiográfica da própria História.
Neste ponto, estabelece-se uma ramificação fundamental deste primeiro
problema: este trabalho é apresentado com o intuito de se obter um tulo
acadêmico, no caso o de doutor em Estudos Literários. Para que se atinja este
objetivo, poder-se-ia exigir uma determinada forma de trabalho e uma determinada
dicção que se apresentasse de modo impessoal e científico, adotando um severo
rigor de citações de fontes. Partindo-se do clichê atualíssimo segundo o qual “regras
são regras”, seria difícil escapar de tal necessidade, a despeito de qualquer
discussão acerca da arbitrariedade dogmática de tal norma. Além disso, qualquer
trabalho que busque questionar as possibilidades desmistificatórias da Teoria e da
Crítica literárias o pode se furtar ao desafio de encarar frontalmente as formas
discursivas da dissertação ou da tese. Assim, este trabalho soluciona esta variação
do primeiro problema por meio do seguinte subterfúgio: uma tese “tradicional” é
incorporada à discussão no intuito de ser criticada por meio de um contra-discurso.
Após a negação das possibilidades da desmistificação iluminadora a que todo
trabalho científico se propõe, utilizar-se-á o exemplo de uma “verdadeira” tese
(precedida de seus dogmas iniciais que a sustentarão) que, em seguida, tem seus
mecanismos de convencimento retóricos desnudados em um processo capaz de
corroborar uma perspectiva dogmática da literatura. Deste modo, ao mesmo tempo
11
em que se mantém a proposta inovadora de forma e dicção, também se oferece ao
julgamento da banca e dos leitores uma tese capaz de demonstrar proficiência
científica e domínio da linguagem acadêmica, nos moldes tradicionais.
E, aqui, chegamos ao segundo problema que pode ser verificado, este, sem
dúvida, mais ligeiro: uma introdução explicativa como esta se afasta
consideravelmente da proposta deste primeiro momento do trabalho, seja por sua
forma de pretenso didatismo, seja por sua dicção impessoal. Traição da traição,
ironicamente coerente golpe em mise-en-abyme antecipador dos sedutores perigos
de tal empreitada. Mas basta, é tempo de passar da projeção à ação, pois, para
além de todo aviso e explicação, o Ser do texto e sua reflexão, a nossa e a dele.
No fim, este exercício será o que deve ser, será o que será. Afinal, ele não pode ser
mais. E não ousa ser menos.
12
 : 
in principio erat...
(prelúdio de uma teoria dogmática do Ser)
Disse Moisés a YHWH: “Perdão, meu Senhor, eu
não sou um homem de falar, nem de ontem nem
de anteontem, nem depois que falaste a teu servo;
pois tenho a boca pesada, e pesada a língua”.
Respondeu-lhe YHWH: “Quem dotou o homem de
uma boca? Ou quem faz o mudo ou o surdo, o que
vê ou o cego? Não sou eu, YHWH? Vai, pois,
agora, e eu estarei em tua boca, e te indicarei o
que hás de falar”.
Êxodo, IV, 10-12
É hora do banquete dos vermes. Cada forma vermicular de nossa fauna
intestinal, caso as tivesse, estaria esfregando as mãos carniceiras diante da
iminência da lauta refeição. De nossos ventres pútridos, inchados exageradamente
em função do acúmulo dos gases mal-cheirosos, ver-se-ia os túneis que os convivas
do festim diabólico abririam até a luz pardacenta de um sol de eterno crepúsculo.
Nossos olhos, fixando inertes o lugar-nenhum, serviriam de quitutes para as aves de
rapina que estraçalhariam com seus bicos essas iguarias já não tão tenras,
ligeiramente endurecidas pelo avançado da situação. E nossos membros, pernas e
braços que deliraram poder ir além, tocar e conter além, jazem rijos e ressequidos,
como um defeito de nascença que perdura até agora, que antecipa o presente de
outrora dos abortos de véspera. Nada nos esperou, espera ou esperará, nenhuma
esperança acena no horizonte do mundo. Nem mesmo a expectação, imoral e
desumana, permite-se um breve sinal que seja. Diante de nosso ocaso, não
sequer espaço para choro e ranger de dentes: somente o domínio do o, do
Nada. É hora da Morte, também com letra maiúscula, é hora da desexistência. É
hora do banquete dos vermes.
13
E por que essa crudelíssima sentença? Por que nos cabe o destino dos fetos
indesejados, dos membros mutilados e gangrenados, dos órgãos cancerígenos? A
resposta pode nos fazer suar frio, mas se mostra facilmente ao toque da mais suave
reflexão: o ser humano, este sonho pueril de toda a humanidade, chegou ao fim.
Assim como o primeiro ser unicelular, fruto do capricho do Acaso, teve seu momento
e este passou, da mesma maneira nós tivemos nosso momento, que também se
perdeu. E por que seria diferente? Se os gigantescos urios do passado feriram a
Terra em sua titanomaquia sem concorrência e depois seguiram seu caminho rumo
ao Vazio, teríamos nós, em nossa fraqueza desprezível, direito de exigir mais? De
nada adiantaria, pois, afinal, o fluxo contínuo e inexorável do universo não deteria
seu curso em função de um ansioso acúmulo de hidrocarbonetos que definem a
escolha do terceiro planeta na órbita de uma estrela de quinta grandeza. Assim, em
nossa insignificância, podemos ao menos ter um fim semelhante aos colossos de
outrora, espelhando nossa alegria possível no sorriso dos fósseis de milhões de
anos.
O paradoxo irônico encontra-se nas causas de nossa desventura. Perecemos
por nossa evolução, morremos por meio da adaptação constante ao meio ambiente
hostil em fuga da Morte. Quando descemos das árvores e nos tornamos
progressivamente sedentários, quando passamos a dominar o fogo da
transformação, ou quando nos colocamos acima de qualquer ser vivo da natureza,
estávamos apenas rumando a toque de caixa para nosso fim. E este fim se fez fato
por meio daquilo que garantiu a apoteose do humano no mundo: o pensamento.
Na aurora de nossa aventura, foi o pensamento que nos fez. Por meio dele,
pudemos recortar o mundo, uma vez que ele abriu espaço para nossa fatal
aquisição da comunicação simbólica, a linguagem fundante da existência, ontogonia
que se mostrou, ao fim, verbal, em uma metalepse que colocou este verbo no
princípio de todas as coisas. E, mais importante, recortamo-nos deste mundo,
colocando-nos em destaque, presidindo sobre todas as forças. Pudemos, por essa
ocasional combinação de linguagem e pensamento, tornarmo-nos humanos, homo
sapiens, o pináculo da evolução. Mais ainda, ao cunhar termos como inteligência,
dominação, superioridade, bom, certo, sagrado e tantos outros, pudemos nos
colocar qualitativamente frente ao mundo, justificando nossa existência e criando
aquilo que nos criou: as categorias constitutivas da humanidade.
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Muito além de qualquer sonho de Freud, somos filhos de nossos filhos, pais
de nossos pais. E esse híbrido ascendente-descendente é constituído pelas
categorias definidoras do humano no mundo. Categorias como Bem e Mal, Certo e
Errado, e tantas outras, a despeito das diferenças de nuances (insignificantes) que
podemos perceber entre as diversas ditas “culturas”, constituem o cerne do humano
que, apesar de dessemelhanças tão injustificadamente alardeadas, mostrou-se,
assustadora e implacavelmente, homogêneo. Caos de ordem suprema, esta
homogeneidade existencial de nós mesmos permitiu-nos trabalhar para uma
também homogeneização do pensamento.
Tal pasteurização de diferenças inexistentes abriu caminho para a inversão
metaléptica do ethos categórico. De construto humano, a categoria passa a ser
essência e criadora da humanidade, que se define a partir de suas categorias de
eleição. À primeira vista, poderíamos pensar que, por intrincados processos
evolutivos de natureza sócio-cultural, algo de intrinsecamente “bom” ou “certo
passaria a formar os valores positivos de cada ser humano, com respeito às
particularidades de cada caso. Ledo engano. Em primeiro lugar, as ditas
particularidades nunca existiram, sendo antes semitons fenotípicos de uma realidade
que, genotipicamente, mostra-se de uma constância incômoda. E o que incomoda é
justamente o fato de que, ao suprimirmos a diferença fundada na pressuposta
“riqueza interior” de cada homo sapiens da Terra, descemos ao status dos irmãos
irracionais que, nunca podendo ser como nós, jamais poderiam elevar-se para além
de sua condição de grupo indistinto. Os cães são cães, a menos que o ser humano
o eleve e o distinga com o nome, retirado das profundezas do poder da linguagem,
nossa. Rex, Fido, diferenças generosas na indistinção essencial. Porém, não
nada de essencialmente diferente entre homo sapiens e canis familiaris, tampouco
entre estes e amoeba proteus.
Assim, o que poderia justificar a crença nas diferenças redentoras de cada um
de nós? A própria crença, sem dúvida. Antes do logos, havia a crença no logos, no
Christos, que funda onticamente o divino e, antes dele, a necessidade do divino no
mundo. Do mesmo modo, nossa crença na bondade cria as coisas boas da vida,
sejam elas o que forem. Para que tais categorias possam também se elevar à
15
condição de valores, mostra-se imperioso que o questionamento seja banido de seu
universo. O valor é despótico, é autoritário e arbitrário. Sua manifestação, portanto,
pode ser idiossincrática e sujeita a contradições, como as pessoas que matam
para preservar a vida, valor universalmente aceito como “bom”. Para que tal
paradoxo se mantenha firme e sem ataques, é preciso que a crença assuma formas
mais radicais e poderosas, passando pelo espectro diáfano e asséptico da até
atingir a avassaladora constituição de dogma. E é o dogma que garante a vitória
deste ethos humano injustificado que, apesar de sua natureza, faz-se “correto” e
“bom”.
Mas o que significa “bom”? Nada, a menos que decidamos, dogmaticamente,
preencher este conceito de suposto sentido, direcionando-o rumo àquilo que nos
convém. Nosso ser-no-mundo assemelha-se à discussão sobre a validade do aborto
em casos de estupro: para os que são contra, trata-se de vida, e a vida deve ser
preservada a todo custo; para os que são a favor, o destaque recai sobre a violência
do violador sobre a violada, a dor que pode ser perpetuada ad infinitum no retrato de
cinqüenta por cento do código genético proveniente do estuprador que é o filho
desta violência. Com a razão, ninguém. Se a violência fosse justificativa para o
assassinato, por que não matarmos cada pai ou mãe que abusa sexualmente de
seus filhos indefesos? Mais, por que não matarmos cada um dos dirigentes que,
violentamente, promovem a devastação de bilhões de vidas por meio de corrupção
que, apesar de amplamente divulgada, teimamos em aceitar como cordeiros? Mais,
mais ainda: por que não nos matarmos, uma vez que sabemos que, por omissão,
contribuímos para a manutenção da situação de desigualdade no mundo, enchendo
nossas inúteis e pré-decompostas barrigadas enquanto bombas mutilam esperanças
em guerras sem sentido, enquanto crianças o obrigadas a se prostituir por
migalhas, enquanto mães agonizantes por inanição devem amamentar com o
próprio sangue o leite nunca existente nem pôde secar nas tetas cadavéricas
suas crias famélicas de olhos vidrados na morte iminente? O mundo está ferido, por
cada um de nós, violentos pais, filhos e irmãos. Todavia, preferimos lamber a ferida,
confundindo o pus amarelo e solidificado com o creme que recheia um sonho
saboroso, lambemos os beiços e cravamos os dentes nas vísceras de nossos
próprios cadáveres, enquanto bradamos contra a violência, matando violentamente
se preciso for para que a violência não mais esteja em nosso seio. Santos
pecadores, abortos que andam, somos todos assim...
16
E aqueles que defendem a vida? Também são vítimas de sua ignorância
servil e tola. Se a vida é valor absoluto, como permitem que um único animal seja
sacrificado para servir de repasto para alguém? Se vegetarianos, como ignorar a
vida vegetal que deve ser extinta na colheita de um simples pé de alface? Não, não
é a vida que se faz valor absoluto: no fundo, é a sobrevivência do humano que
ressalta os muros da moral e dança, nua e suada, lambendo nossas virilhas
falsamente tímidas. Não que isso baste para justificar os paladinos da vida, pois,
como pode um defensor da vida deitar sua cabeça no travesseiro após uma noite de
sexo e dormir sabendo que, a qualquer instante, alguém é sumariamente
assassinado pelo Crime, pelo Estado, pela Igreja? Preferem fingir não saber que sua
tranqüilidade é comprada pelo preço de muito sangue e muita dor, pelo preço de
infinitas vidas, culpadas ou inocentes? Pecadores santos, cadáveres adiados que
procriam, somos todos assim...
A categoria é, portanto, arbitrária. Fruto de nossa conveniência, uma suprema
bienséance capaz de garantir a continuidade do Grande Teatro do Mundo, no qual a
maioria dos atores não ensaiou bem o papel. Contudo, como a farsa pode nos
parecer tão perfeita se estamos em terreno tão precário? Simples, neste jogo,
mesmo a pior companhia possui seus gênios, enfants terribles que garantem a
trupe. E, como a platéia aceita plenamente a falsidade afinal, a platéia é a
companhia a ilusão dramática é perfeita, e uma comédie digestive pode alçar-se
ao status de Arte Suprema, o próprio Jogo da Vida cuja única regra é: sigam as
categoriai
17
O dogma nos sustenta. Faz-nos ser o que somos e garante a pertinência
deste ser. Em tempos como os nossos, valores ridículos em sua contradição
essencial fundamentam o rigor analítico daqueles que se debruçam, aparentemente
de modo severo, sobre a fenomenologia do espírito humano. Vozes que bradam no
deserto da desconciência alimentam-se de suas crenças tal como se fossem os
gafanhotos que, de antemão, tivessem devorado em seu afã todo e qualquer
espectro de irracionalidade e mistificação. Mas não é isso que ocorre. A crença,
mesmo a crença na capacidade humana de recor7 0 Td(h)Tj6.3722 0 Td(u)Tj6.13174h97 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td( )Tj-42763d(h)Tj6.3722 0 Td(u)Tj6.13174hT 0 Td(s)Tj5.65082 Td(a)Tj6.25197 0 Td(l)Tj2.5.65082 0 Td(i)Tj2.4046 0 Td(a)Tj.65082 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td(l)Tj2.4046 0 Td(a)Tj6.13174 0 Td(r)Tj3.84737 0 Td(e)Tj672714 0 Td(7 0 Td49819 0 Td(e)Tj6.13174 0 Td(s)Tj5..65082 0 Td(a)Tj625197 0 Td(l)Tj2.52483 0 Td( )Tj3.72714 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td( )Tj5.4103 0 Td8d( )Tj3.48668 0 Td(d)Tj25197 0 Td(l)Tj2. -19.44 Td(m)Tj9.49819 0 Td(e)Tj6.13174 0 Td(ç)Tj5.77105 .13174 0 Td(m)Tj9.49819 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(v)Tj5.97335 0 Td(q)Tj625197 0 Td( )Tj3.72714 0 Td(r)Tj3..49819 0 Td(e)Tj652483 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td( )Tj3.84737 0 Td(q)Tj652483 0 Td(s)Tj5..3722 0 Td(h)Tj6.25197 0 Td(o)Tj6..3722 0 Td(d)Tj6.13174 0 Td(o)Tj6..3722 0 Td(b)Tj6.25197 00 Td(m)Tj9.49819 0 Td(e)Tj6"49819 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ser ou ao menos do sentido de nosso ser que põe em xeque uma série de
categorias constitutivas que, sob tal postura demolidora, passam a se configurar de
modo pejorativo como "preconceitos", explodidos, por seu turno, a partir de seus
componentes lingüísticos, em pré-conceitos, sub-conceitos, não-conceitos. Assim,
cremo-nos capazes de fugir de nós mesmos, deixando nossa constituição dogmática
escondida como os incômodos esqueletos no armário, mas, claro, esperamos que
jamais viessem nos assombrar. Tal crença (realizando mais um arbitrário recorte)
pode ser facilmente sentida na linha sucessória da mais influente filosofia alemã, de
Kant ao próprio Heidegger, passando pela dialética de Hegel, a lucidez pessimista
de Schopenhauer e o inclemente martelo de Nietzsche. Do dogmatismo kantiano ao
desvelamento da Verdade de Heidegger temos, sim, uma tentativa de fugir deste
dogma inconveniente para nossas aspirações de autonomia, mas é irônico que, de
um dogmatismo próximo ao discurso religioso, cheguemos a um desvelamento que
é alethea, o que equivale a ser não platônico, mas, mais primitivo, hesiódico. Houve
"evolução" real neste trajeto(r).82 0 Td(v)Tj5.771053.12599 0 T19 0 Td(o)Tj6.131e
19
Por isso, embora pensemos que podemos prescindir de tudo além de nós
mesmos, vemos que não podemos prescindir do dogma. Aliás, prescindir do dogma
é prescindir de nós mesmos, uma vez que nada mais somos senão a crença
absurda em nossa constituição ôntica. Instauramos ontogonia na ontologia para,
após, invertermos o processo de acordo com nossas necessidades e conveniências.
Rimo-nos das crianças que ainda acreditam em coelhos da Páscoa e papais noéis,
bem como franzimos o cenho e torcemos o nariz, indignados, frente a um extremista
religioso que, em função de sua fé, explode-se levando consigo, na maior parte das
vezes, inocentes que são pegos no fogo cruzado da intolerância humana. Mas não
riamos, não nos enfureçamos, pois nossos dogmas, em essência, não diferem
destes outros que, para nós, soam sempre como algo entre o ignorante e o ingênuo.
Não estamos tão longe de observar obsoletas chaminés na espera do bom velhinho
ou de esperar ovos de chocolate junto de sorrisos de leporinos lábios. Tampouco (e
isto talvez seja o mais difícil de aceitar) estamos a uma distância segura de praticar
atos terroristas em função do que acreditamos. Bastaria uma situação-limite para
que chegássemos a este ponto: entre um membro da jihad islâmica e nós, a
diferença é de grau, não de natureza.
Seguimos, assim, nossa sina dogmática, saindo da crença injustificada,
vivendo uma vida injustificada apenas porque nela cremos em suas categorias de
sustentação, e rumamos para uma morte igualmente injustificada, salvo pelos
dogmas que a enternecem como passagem ou como parte de um enorme plano
universal, dourando a amarga pílula que temos de tomar. Mas não devemos pensar
que este é o supremo castigo; ou melhor, agradeçamos caso seja, pois, nesse caso,
será ao menos alguma coisa. Pois, caso ousássemos nos rebelar contra a nossa
sina dogmática, teríamos diante de nós algo que talvez nos parecesse ainda mais
terrível, ainda mais medonho, ainda mais desesperador: sem o dogma, o que nos
resta é o Nada, o Vazio, o Não.
a
Falar sobre o Nada, nos termos em que está sendo proposto, é, de antemão,
uma empresa fadada ao fracasso, pois falar do Vazio, do Não, por meio de um
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discurso constituído por qualquer forma de linguagem humana, é impossível. Para
podermos realmente "tocar" o Não, precisaríamos nos consubstanciar com o
oxímoro e o paradoxo,Tj6.25197 0 Td(s)Tj5.6.72714 0 Td(a)Tj6Td(s3.36645 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(s3.36645 99 0 Td(o)Tj6.2510 Td(c)Tj5.65082 0 T2.52483 0 Td(m)Tj9.49819 0 Td(p)Tj6.7 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td( )Tj7.81496 0 Td(r0Td(e)Tj6.3722 0 Td(j6.7 0 Td(s)Tj5.6508Q99 0 Td(o)Tj6.2510 Td(c)Tj5.650865082 0 Td(72714 0 Td( )Tj4.65082 0 Td( )Tj7.81496 0 Td(197 0 Td(s)Tj5.65082 008T)Tj7.9733a)Tj6Td(s3.36645 0 Td(e)819 0 T(a0)Tj6.25483 0 Td(m)Tj9.49819 0 Tz83 0 T5305)Tj5.65082 008d(,)Tj3.12599 0 Td( )Tj4.68082 00865082 0 Td(722 0 Td(o)Tj6.13174 0 TTd(737 0 Td(e)Tj6.25197 0 T Td(")Tj3.9676 0 Td( )Tj7.81496 0 Td( )Tj7.81496 0à7 0 Td(s)Tj5.6.72714 4.0879 0 Td(op97 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td(t)Tj3.24174 0 Td( )Tj4.6197 0 Td(s)Tj5.65082 0 T99 0 Td(o082 0 Td(t)Tj3.245197 0 Td( )Tj3.32714 4.0879 0 Td(o483 0 Td(m)Tj9.4999 0 Td(o)Tj6.2510 Td(c)Tj49819 0 Td(e)Tj6.819 0 Td( )Tj4.56875 0 Td(h)Tj6.25197 0 T20806Tj3.12599 0 Td( )Tj4.68082 04.0879 0 Td(oq99 0 Td( )Tj4.68ã4622 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td( )Tj3082 04.0879 0 Td(o082 0 T.36645 0 Td(p)Tj649819 0 Td(e)Tj6.197 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(r)Tj3.723174 0 Td(e)Tj6.3722 0 Td(r)Tj3.72714 00 Td(")Tj3.197 0 Td(m)Tj9.49819 0 T20806Tj3.12722 0 Td(r)Tj3.72714 00 Td(")Tj3.i19 0 T(a0)Tj6.25é25197 0 Td( )Tj3i19 0 T(a0)Tj6.25722 0 Td(r)Tj3.72714 0 T0879 0 Td(o.36645 645 0 Td(o)Tj6.13174 0 T0879 0 Td(o72714 0 Td( )Tj4..52483 0 Td(n)Tj6.3722 00879 0 Td(oQ99 0 Td(o)Tj6.2510 Td(c)Tj5.65082 0 T65082 0 Td( )Tj7.81496 0 Td(197 0 Td(s)Tj5.65082 0 00879 0 Td(oA82 07.574(a)Tj6.25197 0d(o)Tj6.13174 0 Td( )Tj4.6197 0 Td(m)Tj9.49819 0 T Td( )Tj4.819 0 Td(o)Tj6.25875 0 Td(h)Tj6.25197 0 T20806Tj3.12197 0 Td(m)Tj9.49082 0 00879 0 Td(o65082 0 Td(722 0 Td(o)Tj6.13174 0 00879(p)Tj649819 0 Td(e)Tj6.197 0 TTd(e)Tj6.25197 0 737 0 Td(e)Tj6.25819 0 Td( )Tj4.56875 0 Td(h)Tj6.25197 00 Td( )Tj7.24 6)Tj5.65082 0 T.25197 0 Td( )Tj3082 0 Td(i)Tj2.52483 0 Td(s)Tj5.65 97 0 TTd(e)Tj6.24046 0 Td(t)Tj3.24622 0 Td(u)Tj6.0 Td(a)Tj6.25197 0 Td(rd(r)Tj3.84737 TTd(e)Tj6.24046 0 d(r)Tj3.72714 0 Td(m)Tj9.49197 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(r)Tj3.725.65082 0 T0 Td(r)Tj3.72714 0 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21
vislumbrar o cenário, também podemos abrir a cabeça da criança com marteladas
violentas, devorando, em seguida, os pedaços de seu pequeno cérebro tal qual se
fossem uma iguaria refinada. Sem esquecer, é claro, de torturá-la antes, revelando
que a vida foi, é e será dor; ela começa com a dor do parto e termina com a dor da
morte.
Mas estamos preparados para isso? Não, não podemos fazê-lo, pois não
estamos prontos, a despeito de qualquer delírio sartreano, para a liberdade a que
estamos condenados. Se o fizéssemos, poderíamos realizar a máxima aspiração
psicanalítica, absorvendo o pai primevo, antecedendo a cena primária. Afinal,
construímos nossas existências a partir de um substrato que nos oferece uma
organização universal no microcosmo familiar, dando-nos uma ordem segura, capaz
de nos acenar com a mais terna promessa de proteção. Assim, quando buscamos
os traumas que nos fizeram tão imperfeitamente nós mesmos, estamos buscando os
elementos que conseguiram abalar sensivelmente a Ordem que nos protege. É
como se nosso pai primevo fosse um rei severo e justo, capaz de ditar aquilo que
nós (eternos vassalos do espírito) temos de fazer. Cada pequena rebelião, cada
pequena desobediência, tem em vista provocar este pai, levando-o a nos castigar,
fazendo dele mais ele e de nós mais nós mesmos. Os traumas, fundadores de
nossa personalidade reprimida, são as tentativas reais de rebelião, momentos em
que conduzimos o rei até o cadafalso; por isso nos traumatizam. Não queremos a
liberdade: formamo-nos a partir de uma tenra idade, sem consciência intelectual de
nossas conseqüências. Depois, criamos um imenso castelo fortificado que possui,
em sua base, os traumas inevitáveis que atuam como debilitadores da
superestrutura. Às vezes, conseguimos levá-los até a superfície, podendo expurgá-
los sem desmoronar, mas é difícil. É difícil porque, caso façamos tal coisa, não
teremos como evitar o questionamento sobre a validade do próprio castelo,
perguntando-nos se não valeria mais a pena desconstruí-lo para, em seguida,
refazermos o trabalho sem a ingenuidade e a inocência da primeira infância. É a
tomada de responsabilidade, a libertação total, o não-dogma, mas também o Vazio,
o Nada, o Não.
Assim, sobrevivemos precariamente por meio de um remédio contraditório
que, ao mesmo tempo em que permite a temerária manutenção de nossas vidas,
também impede-nos a cura, como se fôssemos diabéticos que necessitassem de
doses cavalares de açúcar para sobreviver. Fazemos, então, do Nada, uma
22
subcategoria binomial, previamente anulada pela sua contraparte, em um compósito
"nada-tudo". Deste modo, passamos de um assustador Néant para um seguro rien,
com o qual podemos lidar. Saber que nossas existências são coisas absolutamente
sem sentido, frivolidades do Acaso caprichoso, não é algo alentador. Além disso, tal
consciência anula toda e qualquer motivação de atuação humana, amesmo este
texto, em sua escritura e em sua leitura. Se eu me permitisse a aniquilação analítica
do mundo, poderia desejar, àquele que chegou até aqui, meus pêsames pelo
desperdício de ler, e pelo desperdício de viver. Do mesmo modo, o leitor poderia
desejar-me o mesmo, por escrever e por viver. Mas não podemos fazer isso. Não
podemos aceitar que não há diferenças fundamentais entre nós e um simples bigato.
Não admitiremos jamais que nosso destino é a extinção, como cabe a tudo no
universo. Não, precisamos nos crer únicos e insubstituíveis, valiosos e necessários
para a Criação. Não queremos morrer, temos medo de viver de verdade e
precisamos nos justificar de modo a não parecer, para nós mesmos, ridículos,
contraditórios e sem sentido. podemos conseguir este prodígio por meio de uma
crença inquestionável em alguns pressupostos fundamentais que possam servir de
alicerce para nossas idiossincrasias valorativas. Em suma, precisamos do dogma.
Para uma pessoa que esteja disposta a viver sem se questionar, este painel
jamais será problema, pois, das profundezas de sua ignorância, virá a perniciosa
paz de espírito dos humanos que aceitam viver como feras brutas a nascer, fornicar,
comer, proteger-se das intempéries e morrer. Todavia, para aqueles que não podem
evitar a reflexão, negando-se a caminhar de quatro e a voltar para as árvores, como
desatar o górdio que se nos apresenta? Tal angústia atinge particularmente o
discurso científico, sempre paladino da visão crítica em contraposição com a
dogmática. Será possível a um homem de ciência (não apenas o de laboratório, mas
de todo domínio do conhecimento humano) fazer algo, escrever algo, sem se
perceber uma nojenta fraude? Como combater o dogmatismo e a superstição, já que
ambos nos fundam e sustentam, fundando e sustentando também nosso próprio
discurso e, portanto, até mesmo o combate que fazemos contra ambos? Como se
fôssemos titãs rebeldes que, para combater os deuses, fizessem-se igualmente
deuses, temos de assimilar e conter o discurso dogmático, de modo a utilizá-lo em
nosso favor, instaurando a era de um dogmatismo consciente, sob a égide de uma
perspectiva dogmática de nosso Ser.
23
... ... z...
Uma perspectiva dogmática do Ser roça acintosamente o limite frágil entre a
genialidade e a idiotia. Ao mesmo tempo em que surge como uma obviedade aos
olhos de muitos, sustentando-se em verificações amplamente discutidas (afinal,
em nossa tradição ocidental, encontramos sistemáticas discussões acerca dos
limites da Verdade e do Pensamento ao menos desde os silogismos aristotélicos),
essa perspectiva também exige a coragem das grandes inovações, uma vez que
torna imperiosa uma mudança radical em nosso paradigma existencial, uma
alteração rigorosa do ethos humano. Ao adotarmos o dogmatismo, o dogmatismo
consciente, devemos abrir mão de todas as nossas falsas muletas analíticas em
favor do irracionalismo apriorístico, lembrando sempre que este não admite
refutação. Uma vez estabelecido o moto perpetuo do pensamento humano,
podemos eleger arbitrariamente nossos dogmas, edificando, a partir deles, nossas
verdades possíveis que, por meio deste processo, tornam-se absolutas. Além disso,
algo é necessário, de modo que não tenhamos diante de nós um mero retorno a um
medievalismo simplista, tal como se podia encontrar junto a um intelecto médio da
"Idade das Trevas". Esse algo é a consciência do processo.
E, aqui, faz-se necessário esclarecer duas idéias: a de "irracionalismo
apriorístico" do dogma e a de "consciência" do processo dogmático. No que diz
respeito ao "irracionalismo", devemos entendê-lo o como a busca da negação da
razão tal processo continuaria a ter por base a própria razão , mas antes a
verificação de que qualquer racionalização é de antemão impossível. Devendo a
razão partir de relações de causa e efeito verdadeiras, a ausência de uma "verdade
inquestionável" impede-nos de um processo seqüencial de verificação lógica de
fatos. Para tornar este ponto menos abstrato, devemos nos remeter não aos
grandes representantes do racionalismo como Descartes ou Leibniz, mas antes ao
cerne do empirismo inglês, nos moldes de Locke, Hume e, em especial, Berkeley.
Se a base empirista clássica não nos permite sequer dizer que existe o papel no
qual estão grafadas estas letras, sendo apenas possível a afirmação de que nossos
sentidos o percebem, uma radicalização nos moldes de Berkeley não nos permite
sequer afirmar a nossa própria existência (ou ao menos não nos permite afirmar a
existência de nada fora de nós mesmos). Sendo assim, como podemos empreender
24
o raciocínio lógico se as coisas e seus fatos e feitos não podem ser atestados, e se
a idéia de "Razão" e a de "Lógica" são ainda mais abstratas e inquantificáveis? Eis
porque o "irracionalismo" deve ser uma condição apriorística para qualquer
afirmação humana.
Por outro lado, a "consciência" do processo dogmático também merece
discussão mais detida. Pode parecer, à primeira vista, que a idéia de consciência e a
de dogma não são passíveis de associação. Contudo, ao menos dois fatores de
suma importância permitem-nos a associação dos termos díspares. Em primeiro
lugar, um posicionamento dogmático pode perfeitamente aceitar o dogma
(inquestionável, por sua natureza) segundo o qual "consciência" e "dogmatismo" não
são termos antagônicos. Em segundo lugar, podemos empreender um dogmatismo
consciente mesmo sem a primeira prerrogativa: basta que tenhamos a consciência
da falência de qualquer anseio humano de uma verdade analítica e aceitemos,
também conscientemente, abrir mão de toda e qualquer postura desmistificadora em
prol de uma crença. Uma vez adotada essa posição, a metalepse se instaura,
levando a crença, ou melhor, o objeto de crença, ao cerne inicial do processo
reflexivo que, em uma expansão de identidade etimológica, torna-se especulativo.
É providencial que se tenha mencionado a idéia de expansão, pois essa idéia
constitui um dos principais elementos, se não o principal, de uma perspectiva
dogmática. Ao se estabelecer o dogma inicial, cria-se, conforme já foi dito, a base de
sustentação para toda e qualquer discussão posterior. Contudo, uma vez que se
configura uma condição apriorística de existência, podemos, a partir dela,
estabelecer também uma visão de mundo que cria nossa idéia do que "está lá". Aqui
se lança um problema cuja resposta constitui a própria essência da idéia de
"expansão": sendo a crença dogmática uma experiência pessoal e intransferível,
como poderia haver qualquer esperança de comunicabilidade no universo da
reflexão (ou especulação) humana? A solução mais simplória e óbvia seria a da
agregação de pares símiles no que tange às configurações dogmáticas, em um
processo auto-afirmativo sectário e de pouca perspectiva fecundante. A outra
solução que se apresenta é a de, a partir da consideração do dogma alheio ou do
próprio, especular livremente no intuito de instaurar micro-universos de verdade
ôntica e pessoalmente constituída. Neste caso, a idiossincrasia da nova realidade
dogmática deve ser agregada não no sentido de complementar um quadro mental in
progress (em um quadro mental dogmático tal complementaridade é impossível),
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mas no intuito de suplementá-lo, agregando elementos que o levem além de si
mesmo, sem, contudo, alterá-lo essencialmente. Deste modo, tanto o quadro
dogmático pessoal quanto o objeto da especulação podem passar por um processo
de expansão capaz de transcender qualquer paradoxo ou incoerência que, não
obstante, já estariam previamente anulados pela perspectiva dogmática do Ser.
Caso buscássemos um exemplo desta expansão, poderíamos escolher até a própria
explicação da própria idéia de expansão como modelo. Sendo mais exato, a idéia de
expansão corrobora um princípio segundo o qual o ser humano, ao adotar uma
postura dogmática consciente e expandi-la, expande-se a si próprio, uma vez que
nós todos, sem exceção, somos aquilo que nossos dogmas fazem de nós. Ao nos
expandirmos, rompemos com os limites do humano, libertando-nos da análise
limitadora de nossas possibilidades existenciais. Ao nos afirmarmos em nossas
próprias crenças, afirmamo-nos em nós mesmos, como mônadas titânicas de
pensamento dogmático puro. Assim, fazemo-nos à revelia e apesar de toda e
qualquer coisa, sendo aquilo que somos. Uma postura luciferina que, por sua própria
justificativa dogmática, faz-se, milagrosamente, divina.
Essa chamada à carga de novos deuses não se sem razão. Para
escaparmos do Não, é necessário que os deuses (tal qual sonhava Vico) voltem a
pisar a Terra, erodindo-a com sua fúria e suas paixões. Não se trata de termos uma
sensação do divino junto a nós (ou mesmo uma percepção do divino): temos de ter o
contato com o divino, contato físico capaz de gerar, uma vez que se trata do divino,
a certeza unívoca justificadora de nosso ser. Como os deuses homéricos, que
lutavam com os homens no campo de batalha, como o Deus hebraico, que tomava
um ar no Éden e tentava matar Moisés por capricho. Mas como será possível? De
que modo poderia se dar tal fenômeno? Como, das profundezas da desilusão do ser
humano poderia ocorrer esta segunda vinda? O único meio, ao mesmo tempo
sublime e terrível, seria o de algum ser humano, de sua abismal miséria, ousar
aceitar a suprema glória e o supremo fardo: nossa única esperança é que algum ser
humano decida ser deus. E se esta besta selvagem puder se arrastar até Belém
para nascer, suportará ela as cruzes muito maiores e muito mais dolorosas que a
esperam com seus cravos sedentos de sangue inocente?
A resposta de tal questão essencial encontra-se no dogma de cada um,
situada na face deste dogma que, oblíqua como o Pecado e vendada como a
Justiça, chamamos de . em nós mesmos e naquilo que, juntos, representamos
26
nestes dias de descrença e desesperança: um Messias redivivo e nunca morto, a
possibilidade de redenção e a crença na eternidade. Se cremos em algo, este algo
é, além de todo delírio e ilusão. E se temos fé em algo, este algo pode permitir que
nossas aspirações transformem a metáfora do Esperado em mais do que metáfora,
de modo que podemos, sem que esperemos, surpreender-nos ao olhar para a praia
no fim da tarde, ao ver uma frágil embarcação que se aproxima da costa após
vencer os oceanos de angústias e incertezas. E então poderemos saudar aquele
que nela veio, no término do fim e no princípio do começo, com a mais amorosa e
milagrosa canção de boas-vindas.
27
MARGINÁLIA: UMA TEORIA DOGMÁTICA DA
LITERATURA
Conta um velho manuscrito beneditino que o
Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma
igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos
e grandes, sentia-se humilhado com o papel
avulso que exercia desde
28
Ao me arriscar em tal empreitada, visei, sobretudo, vencer os desafios que se
apresentam aos estudos literários nos dias atuais. Afinal, vivemos em uma era de
transitoriedade de valores. Em todos os campos de atuação humana para os quais
nos voltarmos, encontraremos a violenta presença do trans-, legando-nos o
transformista, o transmeável, o transparente, o transtornado. A
pseudodemocratização da cultura humana, daqueles valores que, candidamente,
chamamos de “humanísticos”, transmutou o chão em que se firmava toda nossa
reflexão sobre nós mesmos e sobre nossa ação no mundo. A liberação dos
conceitos levou a uma liberação das categorias constitutivas de nosso próprio ethos,
dissolvendo-as não na sua negação, mas na hiper-realização de suas generalidades
e de suas idiossincrasias. Está instaurado o tempo da questão fundamental de Jean
Baudrillard: o que fazer após a orgia?
A resposta é sempre impossível. Contudo, continuamos rumo à dissolução
por ultra-referencialidade em todos os sentidos e domínios. O discurso de plena
democracia estadunidense traveste-se, com a justificativa da defesa dessa mesma
democracia, em totalitarismo intransigente e intolerante. O ideal de igualdade racial,
sempre carregado com o ônus de séculos de opressão, transmuta-se em micro-
discursos contraditoriamente opressivos. E a Arte, a própria Arte, transcende sua
natureza de fruição estética para dissolver suas moléculas no vazio do pensamento
analítico. A infinitude de possibilidades que sempre quisemos encontrar na Arte em
geral nunca deixou de flertar com o terrível paradoxo: se tudo é, nada é. A
radicalização de possibilidades é a ausência de possibilidades; o Sim supremo que é
a promessa da Arte tem em seu outro extremo um Não o absoluto que, à
semelhança de um buraco negro, suga toda e qualquer possibilidade com que
acenamos.
Todavia, por incrível que possa parecer, justamente no momento em que a
dissolução transuntiva mais nos ameaça, agarramo-nos à crença nas expectativas
geradas pelo próprio Vazio, desde que devidamente mascarado em pseudo-
estruturas manipuláveis. Centrando o foco na Arte, mais ainda, centrando o foco em
um aspecto específico da Arte como a Literatura, podemos visualizar melhor o
problema. Na medida em que o discurso crítico sobre o fenômeno literário libertava-
se de um dito “achismo” arbitrário, gradativamente substituiu-se a especulação por
uma crença em estruturas discerníveis capazes de justificar o estabelecimento de
valores. Sem nos importarmos com o fato de que a crença em estruturas é, antes de
29
mais nada, crença, seguimos rumo a um ideal de cientificidade capaz de sanar
nosso complexo frente aos domínios do intelecto humano mais exatos”, e, portanto,
mais “científicos”. E o fato de hoje estarmos subjugados pela necessidade de
recursos financeiros no âmbito acadêmico intensifica o processo, levando-nos
cada vez mais e indiscriminadamente rumo a um cientificismo utilitário capaz
de responder ao “imperativo do dia”.
Tal aspecto pragmático responde a um impulso filosófico, uma filosofia da
ciência que determina a essência da mesma. Não estamos mais no universo da
ética científica, mas do próprio ethos científico, o característico-distintivo que resume
o ser. E, aqui, a ciência literária claudica e cai. A espantosa verificação de que, no
termo das possibilidades, o gosto é o que tudo determina em se tratando de
reflexão sobre Literatura, não pode subsistir no universo ordenado e preciso da
cientificidade reflexiva. Para além da idiossincrasia de cada leitor, o intrínseco
valorativo, capaz de determinar hierarquias. As dissonâncias de julgamento se
fundariam, assim, na maior ou menor competência do avaliador, de modo que um
“melhor” crítico pode analisar com mais precisão o que é canônico ou o que não é.
Esquecendo-se de que, entre o sentido primário de canon como parâmetro de
medida e o atual o-que-é-bom”, o sentido dogmático-religioso do sagrado e
santificado, a ciência literária espera poder justificar seu valor por meio do valor da
literatura canônica. Porém, a incompreensão do Tristram Shandy por parte do
doutor Johnson, ou a negação da obra de Kafka por Edmund Wilson revelam como
inclusive nos “melhores” analistas da Literatura podemos encontrar particularidades
que, no mínimo, relativizam os jogos de valor.
Mas a ciência literária não se rende tão facilmente à verificação dos fatos, ela
que se pretende verificadora de fatos. Desta maneira, os estudos sobre Literatura
desta quimera estranha chamada pós-modernidade buscam questionar os valores
antigos, as verdades sagradas que, como tudo o que é sagrado, pertencem ao
âmbito da fé, espaço este que não se coaduna com o ideal da exatidão da ciência.
Para nos atermos a um exemplo, lembremos da perspectiva desconstrutivista nos
moldes derridianos, na qual os valores arcaicos perdem o seu centro nada mais
que um construto , em uma dissolução do “logocentrismo” capaz de gerar estes
valores por binomia opositiva. Desatando os nós de tais construções culturais, esta
perspectiva analítica põe a nu a arbitrariedade dos julgamentos de valor,
30
distanciando-se, aparentemente, de todo e qualquer dogmatismo, mas
aparentemente. Caso o valor de seu pensamento seja procedente, o
desconstrutivismo deveria poder voltar-se sobre si mesmo, desvelando seus
próprios nós e arbitrariedades, seus próprios construtos culturais que lhe dão
sustentação. Todavia, caso o faça, este discurso se dissolve, dissolvendo a
anulação que levara a cabo com relação ao dogmatismo desmistificado”. Anulação
da anulação, o Nada, o Vazio.
Eis-nos, então, diante do paradoxo essencial, o górdio que nos desafia,
alheio a qualquer golpe alexandrino: como realizar plenamente um ideal analítico
que, ao voltar-se sobre si mesmo, não se desfaça? O princípio na análise é
decompositor por essência lingüística e filosófica, não podendo sobreviver ao seu
próprio veneno. A solução encontra-se na ousadia titânica de um salto considerável
no atual momento dos estudos literários: devemos assumir a crença, a fé, mas com
uma consciência severa de sua natureza de dogma. Chegamos, assim, em oposição
a uma visão analítica da Literatura, a uma perspectiva dogmática da Literatura,
capaz de nos proporcionar a livre especulação e o processo de convencimento
retórico que nos oferecem a possibilidade de insuflar um ar novo na ciência literária,
de modo que esta possa evoluir naturalmente, em seu fluxo (capaz de englobar as
dualidades irmanadas) de reflexão especulativa, para uma Filosofia da Literatura
e, posteriormente, para uma Teologia da Literatura, domínios no qual, entre outras
coisas, o paradoxo é assimilado como constituinte básico do discurso reflexivo. Não
se trata, evidentemente, de um simples retrocesso em direção a um neo-
medievalismo tacanho e simplista injustiça, por sinal, para com a própria Idade
Média –, mas um processo consciente de sua essência e de quais são suas reais
possibilidades. Em suma, reagimos à ameaça do Não, do Vazio, com uma afirmação
avassaladora do Tudo, vitalismo heróico de um Sim que vai muito além dos sonhos
de qualquer Molly Bloom, intuição profética que, à semelhança de outro vitalista
irlandês, levamos conosco em nossa odisséia.
Podemos perceber as possibilidades desta perspectiva dogmática da
Literatura por meio da reflexão acerca de autores que não sejam considerados, pelo
discurso “oficial” acadêmico, canônicos. Tendo, muitas vezes, sua “inferioridade”
determinada por meio de análises das estruturas “simplórias” de suas produções,
estes autores poderiam perfeitamente fazer parte de um cânone oficial em caso de
mudança do dogma dominante. Tal mudança, por seu turno, pode ser operada pelo
31
processo de convencimento retórico que utiliza, para obter seu melhor efeito, todos
os recursos necessários, até mesmo a análise
1
. Assim sendo, podemos assumir
uma posição dogmática frente a determinados autores, seja para fazê-los bons, seja
para fazê-los ruins. Tomemos, então, como exemplo, dois compositores que, em
meio à intelectualidade brasileira, não figuram como exemplos primorosos de técnica
composicional, em especial no que tange às letras das canções: Roberto e Erasmo
Carlos. Contudo, a despeito das restrições da crítica especializada, suas canções
sobretudo na interpretação de Roberto obtêm grande aceitação por parte do
ouvinte médio. Poderíamos nos perguntar, portanto, em função de tal sucesso, se
não haveria alguma qualidade que tivesse passado despercebida pelo discurso
crítico oficialmente aceito. Porém, mais do que este questionamento, seria
interessante verificar como um discurso retórico solidamente assentado poderia
instaurar esta qualidade, abrindo espaço para o dogmatismo, a despeito de sua
“existência real”. Vejamos, assim, aquela que talvez seja a canção mais famosa de
Roberto e Erasmo Carlos, “Detalhes”:
1 -Não adianta nem tentar
2 - Me esquecer
3 - Durante muito tempo em sua vida
4 - Eu vou viver
5 - Detalhes tão pequenos
6 - De nós dois
7 - São coisas muito grandes
8 - Pra esquecer
9 - E a toda hora vão estar presentes
10 - Você vai ver
11 - Se um outro cabeludo aparecer
12 - Na sua rua
13 - E isto lhe trouxer saudades minhas
14 - A culpa é sua
15 - O ronco barulhento
16 - Do seu carro
1
A utilização da análise textual não é, em uma perspectiva dogmática da literatura, uma contradição, uma vez
que se trata de mais um dos recursos de convencimento retórico. Todavia, ainda que fosse contraditória, tal
posição não seria empecilho em um posicionamento reflexivo que pressupõe a contradição e o paradoxo.
32
17 - A velha calça desbotada
18 - Ou coisa assim
19 - Imediatamente você vai
20 - Lembrar de mim
21 - Eu sei que um outro deve estar falando
22 - Ao seu ouvido
23 - Palavras de amor como eu falei
24 - Mas eu duvido
25 - Duvido que ele tenha
26 - Tanto amor
27 - E até os erros
28 - Do meu português ruim
29 - E nessa hora você vai
30 - Lembrar de mim
31 - À noite envolvida no silêncio
32 - Do seu quarto
33 - Antes de dormir você procura
34 - O meu retrato
35 - Mas da moldura não sou eu
36 - Quem lhe sorri
37 - Mas você vê o meu sorriso
38 - Mesmo assim
39 - E tudo isto vai fazer você
40 - Lembrar de mim
41 - Se alguém tocar seu corpo como eu
42 - Não diga nada
43 - Não vá dizer meu nome sem querer
44 - À pessoa errada
45 - Pensando ter amor
46 - Neste momento
47 - Desesperada você tenta
48 - Até o fim
49 - E até nesse momento você vai
50 - Lembrar de mim
51 - Eu sei que esses detalhes vão sumir
52 - Na longa estrada
33
53 - Do tempo que transforma todo amor
54 - Em quase nada
55 - Mas quase também é
56 - Mais um detalhe
57 - Um grande amor não vai
58 - Morrer assim
59 - Por isso de vez em quando você vai
60 - Lembrar de 2.76528 0 Td(a)Tj5#j53987 0 Td(i)
34
Vale ressaltar que, se procedermos, a uma divisão versificacional como a proposta,
cada estrofe pode ter dez versos, instaurando uma nova simetria ligada a um
número de completude, o dez. Entretanto, a dissonância entre o que se pretende e o
que se obtém, o cerne mesmo do jogo presença-ausência, instaura a tensão
dialética que moverá o texto.
2 – Os grupos temáticos se organizam através da seguinte estrutura:
Primeira estrofe Leitmotiv (a própria “mensagem” do texto: os “detalhes”
permanecerão, a lembrança será maior que o tempo, etc.)
Segunda estrofe espacialidade (“rua”) e elementos da lembrança (“o ronco
barulhento do seu carro”, “a velha calça desbotada”); tensão dialógica e dialética eu
x ela (”mim”, “minhas” x “você”, “sua”).
Terceira estrofe - o Verbo (“falando”, “palavras”, “falei”, “português ruim”); a
incerteza e a dúvida (“duvido”); o Tempo (“e nessa hora”);
Quarta estrofe espacialidade (“quarto”) e elementos da lembrança (“moldura”,
“retrato”); tensão dialógica e dialética eu x ela (“eu”, “meu”, “mim” x “você”, “lhe
“seu”) .
Quinta estrofe - o Verbo (“diga”, “dizer”); a incerteza e a dúvida (“pensando”); o
Tempo (“momento”, “fim”, “nesse momento”);
Sexta estrofe - Leitmotiv (a própria “mensagem” do texto: os “detalhes”
permanecerão, a lembrança será maior que o tempo, etc.)
Como em um grande “Teatro do Mundo”, temos palco, figurino e cenografia, atores,
texto, tensão dramática que leva à ação e o Tempo em que o drama se desenrola.
Este Tempo, por sua vez, é o grande a ser desatado, a grande questão humana,
sempre ligada à finitude inescapável (medo da Morte, medo do Tempo). Não sem
razão, a estrutura temática se faz em 1-2-3 2-3-1, de modo que o tema do Leitmotif,
o da permanência, circunda todos os outros n22 0 Td(”)Tj3.7276.25197 0 Td( )Tj/R37 11( )Tj4.08783 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td( )Tj3.rli t
35
1-2-3 1-2-3 ([“não” - “se” - “eu”] [“à noite” - “se” - “eu”])
Tal estrutura mescla seqüência e repetição, ou seja, representa o intercâmbio entre
os eixos sintagmático e paradigmático. Tal relação dialógica entre os eixos é marca
típica do discurso poético, em um de seus efeitos mais característicos: a libertação
frente à ditadura do Tempo (representado pela seqüencialidade sintagmática) por
meio da permanência paradigmática. Portanto, temos um procedimento em perfeita
consonância com o tema do texto.
4 – Primeira estrofe:
A lembrança será eterna, pois os detalhes (que pertencem naturalmente ao
domínio semântico da “pequenez”), pleonástica e tautologicamente “tão” pequenos,
são coisas muito grandes (paradoxo que também gera a tensão dialética que
movimenta o texto apresentado logo de início). Logo, estarão presentes” (tempo
verbal do agora e da permanência) a “toda hora” (expressão que indica perenidade).
Além do jogo dialético que percebemos entre grandes” e “pequenos”, a primeira
estrofe oferece-nos também tensão entre lembrança (que, embora evidente, está
ausente, quanto à sua representação vocabular) e o esquecimento (que, a despeito
de sua negação Não adianta...” aparece duas vezes na forma do verbo
“esquecer”)
5 – Segunda estrofe:
Instaura-se o espaço (“na sua rua”), mas trata-se de um espaço externo (de pouca
intimidade) que cabe ao “outro”. Instaura-se também outra relação dialética (eu x
ela), sendo as “saudades” (aspecto positivo) relativas ao “eu” e a “culpa” (aspecto
negativo) relativa a “ela”; instauram-se, ainda, os elementos da recordação com
coisas que não correspondem ao ser-em-si (roupas, veículos).
É importante atentar para o advérbio “assim”, significando “qualquer coisa”
(genérico). Este vocábulo, somado ao espaço de exterioridade, bem como aos
36
elementos de lembranças que não representam a essência dos participantes do jogo
amoroso, demonstram a forte permanência dos “detalhes”, presença ausente
dialética.
6 – Terceira estrofe:
Surge o domínio das palavras, do Verbo (cabendo ao “eu” e ao “outro”), que
deveriam marcar as certezas (“eu sei”). Contudo, o que se revela é justamente a
incerteza em função do sentimento dominante do ser humano, o Amor (“eu duvido”),
mais um contraste dialético. Tudo sob o jugo do tempo, estendido na forma longa
“hora”.
O Tempo é o grande vilão da lembrança, o adversário a ser batido. A partir de sua
penetração no corpo textual, o poder de recordação dos “detalhes” é abalado
sensivelmente, conforme o demonstram as estrofes subseqüentes.
7 – Quarta estrofe:
Instaura-se outro espaço (“do seu quarto”), mas um espaço interno (de muita
intimidade) que agora cabe ao “outro”. Mantém-se a relação dialética eu x ela, sendo
“ela” a pessoa que procura (que sente falta) e eu” o procurado (o que completa)
simbolizado platonicamente na fotografia. Embora os “detalhes” percam espaço
frente à ação do tempo, temos uma palinódia a partir dos elementos de lembrança: a
moldura (que contém a idealização, receptáculo da “imagem”) e o sorriso
(idealização da idealização). Destaque-se, em especial, a palinódia da palinódia,
marcada pela seqüência de duas adversativas idênticas (“mas”), intensificando a
tensão dialética.
A escolha dos vocábulos é preciosa para a manutenção da tensão dialética. Nesta
estrofe, além da adversativa “mas”, temos o advérbio “assim”, significando
“exatamente esta coisa” (específico), em mais um jogo dialético em relação à
segunda estrofe.
8 – Quinta estrofe:
37
Novamente o domínio do Verbo, neste ponto negativizado (jogo dialético) e
cabendo a ela, agora. E, a despeito da metodologia diferente (agora se nega a
esfera verbal com “não diga nada” e “não dizer”), continua a dúvida (“Pensando”)
em função do mesmo Amor, repetindo o vocábulo-chave da terceira estrofe em mais
uma simetria. Esse processo de “tensão simétrica” gera efeitos poderosos na
batalha contra o esquecimento: ainda se mantém o jugo do Tempo, mas agora sob o
signo da concessividade (“até”), e sob uma forma agora semanticamente curta como
“momento” .
O Tempo pode surgir sob ressalvas em função da manutenção da lembrança
(memória = destruidora do Tempo tirânico, do esquecimento) nas estrofes
anteriores.
9 – Sexta estrofe:
Tem-se, aqui, a certeza (“eu sei”) de que a lembrança não será eterna, pois os
detalhes (naturalmente pequenos) somem na LONGA estrada do TEMPO (grande)
que transforma TODO amor em quase NADA (jogo dialético com o aspecto
grandioso anterior). Cria-se, entretanto, a palinódia final, na qual este aspecto
inexorável e grandioso se faz também pequeno, podendo ser esquecido e
permitindo a lembrança nas concessões do Tempo (“de vez em quando”).
Ainda com relação à escolha vocabular, é importante que se destaque o uso do
advérbio quase”, em dois versos em seqüência (54-55), mas explodindo
semanticamente em dois posicionamentos diametralmente opostos.
10 – Interpretação e expansão:
O texto também se articula a partir de uma estrutura binária complexa e
assimétrica (opondo-se à simetria do início e instaurando o superjogo dialético) que
o divide entre o início da primeira estrofe e o quarto verso da última, fechando o
texto em um ciclo de negatividade (“não”-“nada”), e os seis versos finais. É neste
38
circuito que se o jogo dialético entre a lembrança que quer permanecer e o
Tempo que a quer devorar. A Memória conta com um aliado importante neste
confronto: o Amor, capaz de traçar profundas marcas no coração e na mente dos
seres humanos. Assim, na seqüencialidade temporal marcada pelo “outro” (ele vem
depois do eu, do primeiro relacionamento), o “eu”, pelo Amor, sempre volta, obtendo
a vitória possível frente ao Tempo. Deste modo, os pequenos detalhes permanecem,
mas, frente à grandeza do Tempo, tendem a sumir, pois sua vitória é parcial: nada
volta, tudo muda, o Tempo não pára. Eis o sentido dos cinqüenta e quatro primeiros
versos. Mas, na palinódia final dos últimos seis versos, temos a trapaça” sublime:
assim como o Amor é uma categoria humana fadada, como o Homem ao “nada”
(verso 54), o Tempo também o é, tendo, assim, o mesmo destino, sendo, assim,
QUASE mais um detalhe, podendo ser esquecido. O QUASE, aqui, é importante,
pois separa o Tempo (grande) dos outros detalhes (pequenos) e isto faz toda a
diferença: são as pequenas coisas, insignificantes, que podem passar
despercebidas pelo Tempo, ao contrário das grandes que chamam atenção (como
em uma relação amorosa fracassada: procura-se não ver a própria pessoa e
esquece-se de pequenos “detalhes” que podem trazer a lembrança: uma jóia, um
filme, uma música, um fio de cabelo no paletó...). Por isso, a primeira parte (grande,
com 54 versos), que contém a afirmação contraditória da primeira estrofe (“detalhes
tão pequenos são coisas muito grandes”), está presa entre o não” e o “nada”. A
segunda parte, (pequena, com 6 versos) pode realizar o milagre das mínimas coisas
que permanecem apesar do Tempo. O Tempo, por sinal, por ser grande, deixa
escapar este pequeno, mas significativo milagre, permitindo uma concessão (“de vez
em quando”) que o anula, pois, se lembrança, escapa-se do Tempo. É a
continuidade que se faz, apesar do fim (do relacionamento, da própria canção),
marcada no fade out e nas seis estrofes que, em oposição ao número de
completude sete, mostram que ainda algo por vir, número seis que se espelha
nos seis versos finais, os mais importantes, e que realizam o milagre que o próprio
seis simboliza (além, é claro, da seqüência dos inícios das estrofes em 1-2-3 1-2-3,
do “lembrar de mim” que se repete em cinco estrofes, etc.). Um enorme jogo
dialético que marca a suprema dialética: a existência humana, sempre em um
conflito apaixonante entre o efêmero e o eterno, o desejo de viver e o medo de
morrer, entre o eu e o outro, entre eu e ela, entre o ódio e o amor. E tudo isso é
um detalhe, tão pequeno, que, definitivamente, é coisa muito grande pra esquecer.
39
Após esse breve passeio esquemático pela letra da canção, podemos retomar
a pergunta: teria sido a crítica especializada injusta com Roberto e Erasmo Carlos
ao considerá-los, em muitas ocasiões, “bregas”, “simplórios”, ou qualquer outra das
definições pejorativas a que já foram submetidos? Se um dos parâmetros para se
medir uma grande obra de arte, tal como ocorre ao menos desde Aristóteles, é a
perfeita conjunção entre forma e conteúdo em uma unidade harmônica, ainda que
dissonante, a análise da estrutura mostraria que sim: houve injustiça. Neste caso,
teríamos que nos perguntar, a cada instante, se outras injustiças não estariam sendo
cometidas, com outros artistas “menores”, “ruins”, “não-canônicos”. O fato de o
próprio Petrarca julgar seu Canzoniere uma obra menor, ou de Voltaire preferir suas
peças clássicas a textos como o Candide, apontam para essa possibilidade, mas,
neste caso, teríamos que desconfiar eternamente de toda e qualquer valoração
artística. Em semelhante circunstância, a perspectiva analítica da ciência literária
não pode nos ajudar, uma vez que o questionamento analítico sempre deverá, se for
coerente com sua postura desmistificadora, levantar um “porém” a qualquer valor
estabelecido. Ignorar os jogos de valor, como pretendem alguns, leva-nos à
encruzilhada do próprio estatuto do literário, de modo que a dissolução de seus
limites desintegra o próprio objeto em questão. Neste caso, com a dissolução da
Literatura, como espera a ciência literária permanecer?
Eis o espaço pelo qual se esgueira a perspectiva dogmática da Literatura.
Preparada para trabalhar com contradições, ela pode prescindir dos
questionamentos para se lançar, a partir de um juízo preestabelecido, às
especulações reflexivas que mais instiguem o espírito humano, utilizando, para
tanto, até mesmo os recursos da ciência literária tradicional, tal como a análise de
estruturas. Todavia, em se tratando de estruturas, é importante que se questione
também sua validade, uma vez que, elas representaram a mais singela crença da
ciência literária, o Estruturalismo que, como um cadáver teimoso, arrasta-se até
nossos dias por meio de sutis transformações anacrônicas. Se a estrutura primorosa
de “Detalhes” não é normalmente percebida pela crítica especializada, tal fenômeno
se pelo fato de que tal estrutura não existe, a não ser que se creia nela (o que
pode ser estendido a toda noção de estrutura, não a da canção). Adiantaria eu
lançar mão da primeira pessoa do discurso para tomar uma posição e assumir que
eu não creio na estrutura da letra da canção demonstrada anteriormente? Ou
40
afirmar que se tratava apenas de um simples recurso retórico de convencimento?
Para os que crêem na estrutura, provavelmente não, pois não se trata de um ato
lógico. É um ato de que está presente em todo e qualquer sistema que crê em
sua própria validade, mesmo que ele não se pretenda mistificador e sim o contrário
disto. É por meio da fé que esta estrutura pode ganhar existência palpável, pois,
para que exista o sistema, é necessário que a estrutura inexistente seja fato, de
modo que ela se torna estrutura premente e, de tal natureza e pela boa-fé daqueles
que nela crêem, torna-se, por conseguinte, estrutura presente, estrutura evidente.
Se isso é algo grave para uma perspectiva de reflexão literária que se
pretenda analítica e desmistificadora, não o é para uma que se proponha dogmática.
No caso desta última, pode-se prescindir da angústia filosófica do dogmatismo e
mergulhar naquilo que este posicionamento frente ao universo literário tem de
melhor: a expansão interpretativa, capaz de ampliar não as possibilidades do
texto, mas da própria Literatura e daquele que se debruça sobre ela. Assim, pouco
importa se, antes da reflexão sobre “Detalhes”, tudo aquilo estava lá: agora está,
agora é. O texto expandiu-se em múltiplas possibilidades, arquiliteratura infinita
como uma rosa mística.
Em tempos sombrios como estes que marcam o início do século XXI, não um
mero retorno, mas uma evolução de volta, um ricorso rumo a uma nova era de
deuses, deixando para trás o caos que seguiu a última idade dos homens, tal como
previu em pleno século XVIII Giambattista Vico, pode justificar a ação humana no
mundo. Em tempos nos quais inúmeras crianças inocentes morrem em função tanto
do terrorismo quanto do combate a ele, a possibilidade de uma nova Idade de Ouro
é sempre grata, ainda que seja apenas, e nada mais que apenas, fruto de nossa fé.
Quanto a nós, “cientistas” que se debruçam sobre o fenômeno literário, que
saibamos também fundar nossa “scienza nuova”, explorando todas as possibilidades
que se nos apresentam, sem deixar que um rancor complexado frente à “exatidão”
de outros domínios cerceie nossos vôos, especialmente quando sabemos que nem
mesmo as ciências “exatas” professam tal assepsia lógica. Deste modo, mesmo em
meio à ditadura do trans- de nossa era, poderemos sonhar com algo mais,
transformando nosso futuro e, como bem ensinou Dante, transumanando nossas
existências por meio da Fé e do Amor que pode, caso acreditemos, continuar a
mover o Sol e as outras estre
41
que, como sabemos e acreditamos, são, a despeito de seu tamanho de grão de
mostarda, “coisas muito grandes pra esquecer”...
*
* *
Eis, portanto, um exemplo de como uma perspectiva dogmática da Literatura
pode não só assimilar o discurso analítico tradicional como também pode pôr a nu
todas as contradições e pontos fracos deste discurso. Além disso (e isto talvez seja
o mais importante), uma perspectiva dogmática da Literatura pode também levar a
ciência literária tradicional até a redenção, libertando-a das amarras nas quais ela
própria se prendeu, acenando-lhe com um futuro que, se está ligado de alguma
forma ao passado, não o está porque seja contraditório, mas porque aspira a algo
além do futuro e do passado: o presente eterno, a Eternidade.
Deste modo, podemos passar à discussão sobre o gênio na Literatura, de
acordo com os parâmetros acertados anteriormente. Contudo, a cada momento de
leitura, devemos ter em mente o dogma ou dogmas que embasam a
especulação. Serão justamente os dogmas de uma Teoria Dogmática da Literatura
que, dada sua importância, seguem adiante na forma de um decálogo.
42
DECÁLOGO
Antes de expor os dogmas fundamentais das discussões subseqüentes, é
necessário esclarecer um conceito que será de fundamental importância para as
discussões subseqüentes: o conceito de dogmema. Este dogmema, retirado das
profundezas de nosso procedimento arbitrário, atua como dogma-base de qualquer
construção analítico-crítica, como os piparotes divinos da ponte que vai de
Aristóteles ao pensamento tomista. A partir de um dogmema de eleição, tanto
podemos trabalhar com outros dogmas declarados (Deus existe; logo, Deus pode
realizar milagres, criar ou destruir o universo, etc.) quanto com discursos que se
pretendam desmistificadores (Existe boa e Arte; logo, podemos encontrar
elementos que determinem o “bom” e o “ruim”, como a conjunção perfeita de forma e
conteúdo, etc.). Contudo, uma afirmação como “esta obra de arte é boa”, ou mesmo
“a Arte existe”, mostram-se tão inverificáveis quanto “Deus existe”, de modo que
apenas a crença idiossincrática e incomunicável em essência pode dar conta de
instaurar o dogmema de eleição inicial. Caso queiramos uma opção à nossa
natureza dogmática, devemos estar dispostos a lidar com a anulação em termos
absolutos, o grande Não, o supremo Vazio, o Nada.
Uma vez esclarecido o conceito de dogmema, eis os dogmas inquestionáveis
que darão sustentação a este trabalho:
I - A Arte existe.
II - Existe Literatura, a arte que se faz com palavras, e ela se distingue de outras
manifestações, artísticas ou não, que eventualmente utilizem a palavra.
III - Existem categorias binomiais, opostas e equivalentes que fundamentam a
existência, tais como Bom e Mau, Certo e Errado, Belo e Feio, e tais categorias
podem ser aplicadas por meio de juízos de valor.
IV - No domínio da Arte em geral (e da Literatura, em particular) pode-se fazer e
emitir juízos valorativos, categorizando o todo de um objeto artístico ou suas partes.
43
V - Existe a expansão, processo pelo qual um todo auto-sustentado pode
transcender seus limites sem alterar sua essência.
VI - EU existo.
VII - EU posso verificar as categorias binomiais2483 0 Td(a)Tj6.2519174 0 Td(r0105 0 Td(ê)Tj6.2514(r)Tj3.72714 0 Tdúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúú.760 Td(s)Tj5.65082 0 Td.24622 0 Td(a)Tj6.2519 11.28 Tf7.69473 0 Td(19174 0 Td(r0105 0úúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúú(i)Tj2.524 Td(s)Tj5.65082 0714 0 Td(a)Tj6.25/R37 11.28 Tf8.53635 0 Td(E)Tj7.57Td(r0105 712599 0 Td( )Tj-72.1381 - Td.24622 0 Td(a)Tj6.2519 11.28 Tf797 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td( )Tj8.65655 0 f/R37 11.28 Tf8.53j6.2519 11.28 Tf7714 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td(n)Tj6.13a7 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td( )Tj7.69 Td(s)Tj5.65082 0714 0 Td(a)Tj6.25/R37 11.28 Tf8.53a7 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td( )Tj3.1297 0 Td(r)Tj3.72714 0 Td( )Tj3.246x0 Td(r0105 0úúúúú622 0 Td(E)Tj7.5745 0 Td(U)Tj8.05543 0 Td( )Tj3.246ê7 0 Td(s)Tj5.6597 0 Td( )Tj3.12599 0 Td(e)Tj6.25197 0 Tdd(b)Tj6.25197 0 Td(i)Tj2.64(-)Tj/R12 11.28 Tf3.7271d( )Tj3.1297 0 Td(r)Tj3.727a7 0 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)Tj3.1297 0 Td6069)Tj8.6583 0 Td(i)Tj2.52483 0 Td(c)Tj5.650082 0 Td(2483 0 Tdá7 0 Td(s)Tj5.65097 0 Td6069)Tj8.6597 0 Td(,)Tj3.12599 0 Td( )Tj8.656773 0 Td( )Tj3.2482 0 Tdf3.12599 0 /R37 1( )Tj8.65"7 0 Td967 sbs e li
44
II - Existe Literatura, a arte que se faz com palavras, e ela se distingue de outras
manifestações, artísticas ou não, que eventualmente utilizem a palavra.
Uma vez possibilitada a existência da Arte, abre-se espaço para uma variação
constitutiva da manifestação artística. Seja em termos de percepção sensorial, seja
em termos de relação espaço-temporal, a Arte pode ramificar-se em diversos
aspectos, desde que cada um deles também possa ter sua existência fundamentada
no dogmema inicial.
III - Existem categorias binomiais, opostas e equivalentes que fundamentam a
existência, tais como Bom e Mau, Certo e Errado, Belo e Feio, e tais categorias
podem ser aplicadas por meio de juízos de valor.
Não se trata, aqui, de um mero ato constatativo do Ser da Arte. Como se pressupõe
uma atitude analítica e crítica perante o objeto estético, é necessário um fundamento
ontológico de parâmetros judicativos. Daí a necessidade do embasamento
categorial.
IV - No domínio da Arte em geral (e da Literatura, em particular) pode-se fazer e
emitir juízos valorativos, categorizando o todo de um objeto artístico ou suas partes.
Este dogma decorre de modo direto do precedente, pois, uma vez lançadas as
bases para os atos judicativos e, destes, para o próprio julgamento de valor, deve-se
afirmar a possibilidade concreta e necessária dos juízos de valor. Para tanto,a
apropriação das categorias metalepticamente fundantes do Ser atuam sobre o
objeto estético, fornecendo bases para sua aprensão e julgamento intelectual.
V - Existe a expansão, processo pelo qual um todo auto-sustentado pode
transcender seus limites sem alterar sua essência.
Para ampliar as possibilidades da reflexão estética, acrescenta-se, aqui, um dogma
adicional que, consciente de sua própria realidade dogmática, pode justificar novas
45
possibilidades de interpretação transcendente da obra enfocada e do próprio ato
interpretativo.
VI - EU existo.
Para a efetivação do ato judicativo e do juízo valorativo, é necessária a efetivação da
realidade intelectual na qual atos e juízos se estabelecem. Disto decorre também a
necessidade de um Eu cuja existência se torna, assim, um dogmema de importância
equivalente ao da existência da própria Arte. Além disso, uma vez estabelecido
dogmaticamente, este Eu será origem e parâmetro do juízo e do valor.
VII - EU posso verificar as categorias binomiais opostas e equivalentes que
fundamentam a existência e agregá-las a juízos valorativos.
Decorrência do dogmema anterior, este dogma garante a competência do Eu na
assimilação e utilização das categorias constituintes, em termos metalépticos, do
Ser do Eu, destacando sua importância. O mesmo se dá em relação aos juízos
valorativos.
VIII - EU posso emitir juízos valorativos a respeito das coisas, em geral, e da Arte,
em particular, categorizando-as e promovendo sua expansão por meio da
especulação dogmática.
Ao assumir sua natureza dogmática, o Eu se abre às suas possibilidades. Assim,
apropriando-se dos níveis categoriais, judicativos e valorativos, o Eu pode aplicá-los
ao mundo interior e ao exterior ao Eu. Com relação à Arte, essa dupla articulação
interior e exterior permite que o Eu interfira no fenômeno estético, expandindo-o.
IX - Meus juízos de valor e minhas especulações expansivas não podem ser
questionados.
O mais polêmico dos dez dogmas, juntamente com o último, explica-se em função
deste: o questionamento, baseado na desmistificação analítica, não tem espaço em
um esfera dogmática que não a pressuponha.
46
X - Não se poderá dizer, das páginas que se seguem, "isto está certo" ou "isto está
errado"; poder-se-á apenas dizer: "creio" ou "não creio".
Ligando-se intimamente ao anterior, este dogma coloca o interlocutor do discurso
dogmático diante de um problema: a impossibilidade de um ato judicativo ou de um
juízo valorativo que se situem fora da esfera deste decálogo. Afinal, as bases
metalépticas categoriais que servem de fundamento para a construção essencial do
próprio texto são construídas dogmaticamente em função do Eu e da Arte, cuja
existência configura os dois dogmemas de eleição. Assim, para a utilização de tais
juízos valorativos faz-se necessária a visão interna, que implica na crença no
sistema dogmático idiossincrático do Eu e da Arte de eleição. E, no momento em
que se apropria da possibilidade do juízo, este interlocutor já se alinhou na esfera da
crença. Caso contrário, o “não creio” afasta até mesmo a possibilidade da
interlocução, restando, no caso, o silêncio.
Deve-se, sem dúvida, enxergar além de uma aparente excentricidade frívola
que poderia ser sentida de imediato. Caso encarados sob a ótica certa (a sua
própria), esses dogmas (não se trata de "mandamentos", uma vez que nem todos
têm caráter normativo no que tange ao comportamento) mostrar-se-ão essenciais
para a sustentação das páginas que virão a seguir. No mais, cabe ao leitor crer ou
não nestas e em todas as outras palavras deste volume, sejam anteriores, ou as que
ainda virão. Conforme já reafirmei à exaustão, é tudo uma questão de fé.
47
O NOVO VELHO TESTAMENTO
48
MÁRCIO ROBERTO DO PRADO
LÚCIFER
Um estudo de uma idéia de gênio
TESE DE DOUTORADO
49
MÁRCIO ROBERTO DO PRADO
LÚCIFER
Um estudo de uma idéia de gênio
Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos Literários da
Faculdade de Ciências e Letras
Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção
do título de Doutor em Estudos Literários.
Linha de pesquisa: 
Orientadora: Profª. Drª. Karin Volobuef
Co-orientador: Prof. Dr. Adalberto Luís Vicente
Bolsa: CAPES
ARARAQUARA
SÃO
PAULO.
2007
50
Aos que souberam, quiseram, ousaram e não calaram.
51
AGRADECIMENTOS
À CAPES, pelo auxílio financeiro;
E a todos aqueles, inumeráveis, que contribuíram fortemente para aquilo que este
trabalho tem de melhor já que aquilo que tem de pior eu consegui fazer
sozinho. Para evitar as inevitáveis injustiças, silencio sobre os nomes; a ajuda fica
mais pura e o agradecimento, mais verdadeiro.
52
Heráclito
53
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
Bereshit..................................................................................................................p. 57
Das coisas da origem e das origens da coisa.............................................p. 57
A guisa de suporte teórico: Bloom, Gênio e Demonização.........................p. 61
Primordia rerum......................................................................................................p. 66
Diabo… Satã… Lúcifer.………………………………………………………....p. 66
O daímon, o genius e o ingenium................................................................p. 71
Um caso limite: Apuleio e o genial demônio socrático................................p. 75
Gênio, Demônio......................................................................................................p. 79
Gênio, Demônio e Romantismo: imitação e criação....................................p. 79
Gênio, Demônio e Romantismo: crime e loucura........................................p. 85
PRIMEIRA PARTE
IN NOMINE PATRIS: England
Blake: a Poem in Two Books..................................................................................p. 96
O Satan de Milton………………………………………........……….………....p. 96
O Milton de Satan……………………………………………..........….………p. 109
54
SEGUNDA PARTE
IN NOMINE FILII: Deutschland
Doktor Mann: eine Tragödie.................................................................................p. 121
Prólogo no Inferno.....................................................................................p. 121
O pacto com Goethe..................................................................................p. 123
Schwere Stunde........................................................................................p. 133
"Sou um homem de riquezas e bom-gosto..."...........................................p. 149
"Vi veri veniversum vivus vici"....................................................................p. 158
TERCEIRA PARTE
ET SPIRITUS SANCTI: France
Ceux qui donnerent l’âme aux enfins de Satan....................................................p. 162
Règles pour la direction du génie…………………….………………………p. 162
Ensaiando para as chamas………………………………….……………..…p. 174
Gigantomaquia genial……………………………………………….………...p. 184
Lumières, Lux, Lucifer: Voltaire………………………………………….…...p. 192
Lumières, Lux, Lucifer: Diderot……………………………………….………p. 198
Lumières, Lux, Lucifer: Rousseau…………………………………..………..p. 205
O vidente de Charleville……..……………………………………………..….p. 212
O filho do fogo………………………………………………………..…………p. 226
Le début de Satan…………………………………………………………..….p. 232
55
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O gênio: um balanço diabólico.............................................................................p. 243
Gênio e ética…………………………………..………………………………..p. 243
À guisa de conclusão: quando ELE cobra o contrato................................p. 247
CODA
UM ENSAIO PESSOAL
A mensagem das grandes navegações e a pessoa genial..................................p. 251
REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA
Referências bibliográficas....................................................................................p. 271
Bibliografia consultada….......................................................................................p.281
ANEXOS
Anexo I: The Marriage of Heaven and Hell……………………..…….…………..p. 291
Anexo II: Milton: a Poem in Two Books…………………..……………………….p. 299
56
INTRODUÇÃO
57
BERESHIT
Das coisas da origem e das origens da coisa
Ao serem iniciadas as presentes reflexões sobre as idéias de gênio e
genialidade, automaticamente se apontou para autores que representavam, para
não poucos julgamentos, o paradigma do ser humano genial. O formidável poder de
criação, a inventividade com promessas do original, capazes de transcender a
tensão entre a mímesis e a poíesis, enfim, uma certa aura de, ousar-se-ia dizer,
divino. Assim, foram definidos de antemão aqueles que haveriam de constituir o
corpus deste trabalho. Mas nunca é demasiado o cuidado em explicitar os motivos
de uma escolha que se pretende tão grave.
Assim, na literatura alemã, foi escolhido Goethe; na inglesa, Milton; na
francesa Rabelais, Montaigne e Descartes. Sem dúvida trata-se de uma lista
respeitável, e, com relação ao caso específico deste Lúcifer, aliava-se a um desejo
de continuar uma tradição de algo que ultrapassa os limites da Crítica e da Teoria
literárias. Cabe aqui uma explicação. Desde antes de sua concepção, este trabalho
moldou-se (com respeito e admiração) a partir da proposta que iluminou as obras
de certos autores que, hoje, o chamados, pelos meios acadêmicos, de
ultrapassados. Homens como Eric Auerbach ou Ernst Robert Curtius, amantes da
Literatura que ensejaram, em suas obras titânicas, dar um outro estatuto aos seus
trabalhos e ao próprio fenômeno literário. o sem razão. Observando os exemplos
citados, podemos encontrar algo que sem dúvida vai muito além do caráter
convencional, burocrático e utilitário que domina hoje a quase totalidade das
produções acadêmicas. No caso de Curtius, já no prefácio de seu Europäische
Literatur und lateinisches Mittelalter, escrito em 1947, descreve seu intuito com
uma singeleza e, para utilizarmos um termo do autor do Peri Ypsous, também com
uma inegável megalophrosyne. Reproduzo, aqui, a íntegra do prefácio:
Os trabalhos preparatórios para este livro começaram em 1932.
Sobre sua origem, informei em 1945, na revista “Die Wandlung” de
58
Heidelberg. Não repito estas linhas, porque o livro foi reformado nos anos
de 1946/47. O que tenho agora a acrescentar, está no capítulo 18.
Quando comecei as pesquisas, publicava um panfleto Deutscher
Geist in Gefahr (1932). Ele foi dirigido contra o abandono internacional da
educação alemã, contra o ódio cultural e seus fundamentos político-
soliológicos. O presente livro nasceu do desejo de servir à compreensão da
tradição ocidental, na medida em que ela se documenta pela literatura. o
se dirige apenas ao entendido em literatura, mas também aos que se
interessam pela literatura como literatura.
Pesquisas especiais encontram-se nos “Excursos”.
A literatura científica estrangeira dos anos da guerra e do pós-guerra,
não me era acessível, salvo exceções insignificantes. Também a Biblioteca
Universitária de Bonn está, desde 1914, em parte inutilizável, em parte
destruída pelo fogo, em conseqüência de um ataque aéreo. Por este motivo,
não me era possível comparar certas citações e verificar alguma fonte. Mas,
se a literatura é “Fragmento de Fragmentos” (Goethe), deve uma tentativa,
como a presente, ainda mais, ter as características do fragmentário.
(CURTIUS, 1957, s/p)
O ideal de preservar a cultura ocidental, um ideal humanista contra uma
barbárie destruidora que permeou as longas páginas de Der Zauberberg de
Thomas Mann, está patente também no prefácio de Curtius, e aponta para a
tendência de uma geração de intelectuais incomuns que, tendo vivido os danos
culturais da Primeira Guerra Mundial, temiam que a fina flor do espírito humano não
sobrevivesse aos horrores de uma segunda. João Alexandre Barbosa, em seu A
biblioteca imaginária, já apontava este fato, unindo às figuras de Curtius e
Auerbach (com seu Mimesis) o nome injustamente hoje obscuro de Gilbert Highet e
sua prodigiosa obra The Classical Tradition. Entretanto, mais do que o anelo de
preservar em suas obras uma tradição que jamais, vale repetir, jamais poderia
figurar em um único livro (ainda que de fôlego), estes autores desejavam algo de
mais sublime. E o resumo deste anseio está no prefácio de outro trabalho
representativo, o Fearful Symmetry, do canadense Northrop Frye, que tantas vezes
me foi útil na confecção desta tese. Ao falar de Blake, Frye fala também de um ideal
de resistência do espírito humano, nos raros aspectos que este tem de mais
elevados, frente à insanidade da destruição mútua e despropositada. Diz Frye:
59
I wrote Fearful Symmetry during the Second World War, and hideous
as that time was, it provided some parallels with Blake’s time which were
useful for understanding Blake’s attitude to the world. Today, now that
reactionary and radical forces alike are once more in the grip of the nihilistic
psychosis that Blake described so powerfully in Jerusalem, one of the most
hopeful signs is the immensely increased sense of the urgency and
immediacy of what Blake had to say. (FRYE, 1969, s/p)
Hoje a natureza das guerras mudou, e a constante promessa de holocausto
total e absoluto que o poderio atômico anuncia impede-nos de ver um conflito como
os da época Frye. Entretanto, a sobrevivência cultural da humanidade, em especial
no que se refere à Literatura, raramente correu um perigo tão evidente. Eis pois a
tradição à qual este Lúcifer desejou se alinhar. Uma tradição que, embora hoje seja
denominada de “ultrapassada” parece, antes, “fora de moda”, não merecendo mais,
em tempos tão high tech, a consideração devida por parte do universo acadêmico.
Entretanto, havia o gênio em primeiro lugar e, com isto, as motivações nas
escolhas dos autores deveriam passar sob o crivo de uma adequação e coerência
de trabalho. E, a partir disto, foram levantadas interrogações sobre a melhor maneira
de fazer jus ao tema. Logo de início, decidiu-se por à prova as convicções prévias,
contrastando as conclusões obtidas com os autores centrais com as posições de
outros autores posteriores que, por um processo de aproximação ou afastamento
ratificariam ou retificariam o paradigma genial estabelecido pTj6.25197 0 Td(c)Tj5483 0 Td(m)Tj9.49817 0 Td(r)Tj3.727(u)d(b)Tj6.3722 0 Td(a)Tj6.25197 0d( )Tj3.12599 0 Td(o)Tj6.2f i
60
gigantes que, à luz de seus precursores, poderiam ser chamados de epígonos, foi se
desvelando como, invariavelmente, podia-se perceber, nas obras dos autores
posteriores, paralelos com mitos de resistência e insubordinação que, em uma
tradição ocidental essencialmente judaico-cristã, encontravam-se encarnados na
figura de Satã, tardiamente identificado, antes de sua queda, à figura daquele que
seria o mais belos dos anjos, Lúcifer, a resplandecente estrela da manhã. Este
paralelo mostrou-se não só constante, mas também iluminou um fato inusitado para
a compreensão da idéia de gênio nas literaturas européias em questão: a idéia de
gênio tal qual era perseguida como exemplo cabal de um indivíduo
poderosamente criativo, capaz de alterar drasticamente o panorama da existência
humana encontra sua forma mais bem acabada em um contexto pós-iluminista,
de modo que se estabelece, geralmente, após as vidas dos autores-deuses. Assim,
é partir dos “epígonos” que podemos encontrar a melhor discussão da idéia, de
maneira que mesmo a escolha dos precursores deveu muito a este fato.
É por isso que não deve causar espanto o fato de a literatura inglesa não
trazer a figura de William Shakespeare. Shakespeare, ainda que constitua o centro
da literatura de seu país (e mesmo da literatura ocidental), não é o melhor exemplo
para a demonstração das relações de aproximação e afastamento que determinam a
idéia de gênio. Não que sua influência não seja sentida; ao contrário, é a figura que
mais proporciona ecos, mas ele não é aquele que se tornou alvo dos confrontos
mais duros, até mesmo em função de sua estatura incomparável. Não é sem razão
que Goethe em seu Dichtung und Wahrheit, identifica o bardo inglês com uma
estrela, frente à qual jamais deveríamos fazer comparações, restando-nos apenas o
consolo de admirá-la à distância. Seu caráter hors concours”, aliado à sua
apreensão universal capaz de torná-lo fonte de conflito em todas as literaturas mais
influentes, equivale à reafirmação do estratagema de fuga de Goethe, de modo que
sua presença infinita aproxima-se da ausência. Todo mundo e nínguém, como
propôs Borges. Desta maneira, na literatura inglesa, em um juízo no qual sigo
Bloom, a figura que mais se faz sentir em termos de influência é John Milton,
agonista como seu Sansão, e a quem o Diabo tudo deve, como bem lembrou
Shelley.
É fato sem dúvida curioso que o estudo de uma idéia o elitista como o
conceito de gênio deva sua compreensão em especial a gigantes menores, ainda
que gigantes. Isto talvez só venha provar que, em se tratando de gênio e
61
genialidade, continua valendo
62
mecanismo que procura ampliar a força do precursor e transformá-la numa regra
maior do que a do próprio efebo, mas pragmaticamente fará do filho um daímon
mais demoníaco ainda e do precursor um homem mais humano” (BLOOM, 1991a, p.
145). Assim, o poeta tardio, ao efetuar uma maior divinização do precursor, pode
conseguir alguma prioridade sobre o mesmo, que é ele, o “efebo”, quem,
demoniacamente, realiza a elevação no precursor.
Deste modo, a demonização bloomiana consiste em um “contra-sublime” do
poeta tardio que pode atuar de maneira vigorosa frente ao “sublime” do precursor.
Essa postura crítica vem ao encontro dos interesses deste trabalho e serve como
um importante instrumento para o estudo das relações que grandes autores
estabelecem com seus principais precursores. Além disso, por intermédio de Bloom,
podemos contemplar a figura demoníaca como um dos principais elementos das
relações metaliterárias que podemos encontrar nestes autores.
Todavia, mesmo este conceito de demonização bloomiano não é adotado de
modo exato, uma vez que a tentativa de Bloom de estabelecer um funcional “mapa
de desleitura” cai, muitas vezes, em um reducionismo que pode ser tudo, menos
funcional. A título de ilustração, podemos reproduzir, aqui, o mapa tal qual proposto
por Bloom:
DIALÉTICA DO
REVISIONISMO
IMAGENS NO
POEMA
TROPOS
RETÓRICOS
DEFESA
PSÍQUICA
RAZÃO
REVISIONÁRIA
Limitação
Substituição
Representação
Presença
E
Ausência
Parte pelo Todo
Ou
Todo pela Parte
Ironia
Sinédoque
Formação
Reativa
Desvio
Contra o Eu.
Inversão
Clinamen
Tessera
Limitação
Substituição
Representação
Plenitude
E
Vazio
Alto
E
Baixo
Metonímia
Hipérbole
Litotes
Decomposição,
Isolamento,
Regressão
Repressão
Kenosis
Demonização
Limitação
Substituição
Representação
Dentro
E
Fora
Anterior
E
Posterior
Metáfora
Metalepse
Sublimação
Introjeção,
Projeção
Askesis
Apophrades
(BLOOM, 1995b, p. 94)
63
Deste modo, para uma visão demoníaca do gênio, interessaria, em termos de
imagens no poema, perspectivas de alto e baixo, utilizando como figuras retóricas a
hipérbole e a litotes, e tendo, como método de defesa psíquica, a repressão.
Contudo, embora Bloom não proponha a aplicação do mapa de modo unívoco e
segmentado, o mero fato de não podermos assimilar, no processo de demonização,
a ironia, a metáfora e a metalepse como figuras atuantes, aponta para o caráter
questionável da proposta bloomiana.
Além da idéia de demonização, um outro fato poderia colocar Bloom como um
suporte teórico a ser utilizado diretamente na presente discussão: o fato de o autor
ter escrito, recentemente, um extenso volume intitulado Genius. Aqui, cabe um
comentário mais severo sobre a produção de Bloom. Sua obra apresenta ao menos
dois momentos distintos. Após um primeiro momento de provocativa análise dos
mecanismos da influência literária, período produtivo que nos legou a instigante
tetralogia da influência, seguiu-se a contraditória fase de aclamado crítico pop
defensor da dita Alta Literatura. Deste segundo momento fazem parte obras
questionáveis, capazes de oferecer verdadeiros enlatados de verniz cultural, como O
cânone ocidental, Como e porque ler e o citado Genius.
Com a intenção de definir a noção de gênio more precisely than has yet been
done” (BLOOM, p. 7, 2002), bem como a de defender a noção de gênio, este livro de
Bloom põe a nu, de modo marcante, as deficiências desta última fase de sua
produção intelectual. Através de uma insinuante divisão de cem grandes nomes de
mentes criativas exemplares que, a despeito do subtítulo da tradução brasileira,
não seriam necessariamente os melhores em dez grupos correspondentes às
Sefirot da tradição cabalística judaica, cada uma dividida, por seu turno, em dois
lustros, Bloom nos oferece um mosaico de autores representativos que impressiona,
em um primeiro momento, por seu fôlego de erudição e agudeza analítica.
Entretanto, um exame mais minucioso pode nos mostrar uma realidade distinta que
se manifesta ao longo das centenas de páginas.
Um ponto importante é a diferença gritante de domínio, por parte de Bloom,
das várias literaturas e de seus respectivos autores. É inegável a mestria bloomiana
no que se refere à literatura inglesa, o que lhe valeu a crítica de privilegiar em
demasia os autores de expressão anglofônica posição esta corroborada em
64
Genius através da eleição de uma imensa maioria de autores que publicaram em
inglês. Além disso, a excelência de Bloom evidencia-se em especial em dois
pontos: o Romantismo (recuperado por Bloom desde seus primeiros trabalhos) e a
obra de Shakespeare, tendo esta última motivado o volume de fôlego intitulado
Shakespeare: a invenção do humano. Todavia, caso tomemos por base a
literatura francesa, por exemplo, verificamos leituras bem menos vigorosas. Na sexta
Sefirah, Tiferet, o segundo lustro nos apresenta cinco nomes desta literatura: Victor
Hugo, Gérard de Nerval, Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud e Paul Valéry. O que
se verifica é um discurso sem a mesma segurança que verificamos em ensaios
como aqueles que versam sobre autores da predileção de Bloom, com
procedimentos analíticos que, caso não cheguemos ao ponto de considerar
tendenciosos, ao menos se adequam muito convenientemente ao arcabouço
místico-crítico que o estudioso escolheu para fundamentar seu trabalho, no caso a
Cabala, a Gnose e o Hermetismo alexandrino, além, é claro, do velho jogo de
influências e defesas que motivaria cada um dos autores em uma intrincada rede.
Tal posicionamento nos oferece, para nos determos em um único exemplo, um
Rimbaud bastante mistificado em um gnosticismo questionável, além de uma idéia
segundo a qual ele, Rimbaud, teria abandonado a Literatura in considerable
disgust(BLOOM, 2002, p. 455), idéia hoje amplamente sabida como fruto de um
apaixonado “mito de Rimbaud” . Some-se a isto alguns equívocos com relação à
natureza e composição de certos textos, bem como um desconhecimento dos
fundamentos da principal forma de expressão empregada por Rimbaud, o poema em
prosa, o que leva a mais equívocos com relação ao papel de renovação da dicção
poética que o adolescente de Charleville representa.
É importante destacar que o dinamismo fundamental das Sefirot, a partir do
qual cada autor estudado poderia também ser encarado sob a luz de outro conceito
de emanação divina, esconde não a arbitrariedade das escolhas bloomianas, mas a
inadequação potencial da classificação. Tal “relaxamento” no rigor abre espaço para
um problema mais grave se levamos em conta a intenção primordial do livro (atingir
uma definição de gênio precisa como nenhuma outra): simplificações e imprecisões
acabam por impedir a definição do conceito. Como exemplo das simplificações,
podemos destacar o próprio termo latino originário da idéia moderna de gênio,
genius, que Bloom liga às noções de poder gerador, divindade tutelar e alter ego
65
sem muitos critérios, além, é claro, de ignorar a idéia limítrofe ingenium, igualmente
importante para o desenvolvimento do conceito.
Tais problemas tornam-se ainda mais impressionantes quando Bloom
promete uma definição estritamente pessoal do gênio. Após resvalar por idéias
pertinentes, porém óbvias, como capacidade de absorção, autoridade, grandeza,
sublime, capacidade criativa, entre outras, Bloom finalmente opta por uma imprecisa
“originalidade arrebatadora” que, coadunada ao “Deus interior” emersoniano,
desemboca na idéia de “consciência”, que, segundo Bloom, define o gênio. Claro,
trata-se de uma maneira de ligar o gênio à Gnose, porém, trata-se também de um
modo de ligar o gênio à figura de William Shakespeare que, em uma curiosa fusão
com o personagem Hamlet, representa para Bloom o ápice da consciência humana.
Semelhante empreitada é pouco animadora por dois motivos: em primeiro lugar, ela
serve de justificativa para o dogma anglófilo de Bloom que coloca Shakespeare
como divindade secular por meio de um procedimento que, para os leigos a quem
este livro na realidade se destina, pode parecer alicerçado em um extremo rigor
analítico. Em segundo lugar, a “definição estritamente pessoal” de Bloom mostra-se
precariamente original, não só pelo débito com Ralph Waldo Emerson, mas pelo fato
de que a identificação do gênio com uma “consciência” capaz de atingir a
onisciência divina e assimilar a própria Natureza aponta para uma definição do
genial que remonta aos primórdios das reflexões sobre o tema, seja no Sturm und
Drang alemão, com autores como Hamann e o primeiro Goethe, seja no pré-
romantismo inglês, com Edward Young e suas Conjectures on Original
Composition.
Em função de tais fatos, Bloom não será utilizado, aqui, de modo sistemático.
Contudo, ele estará sempre presente, seja por meio da dicção textual empregada,
seja por meio de certos termos, tão caros a ele, como agón”, “supremacia estética”,
“poema e (des)leitura forte”, entre outros vocábulos hiperbólicos. Além é claro, da
idéia de “demonização” que, todavia, afastar-se-á consideravelmente da concepção
bloomiana, sendo utilizada em sentido lato e em considerada em termos de
equivalência com os vocábulos “diabólico”, “satânico”, “luciferino e outras idéias
afins. Porém, para um defensor das desleituras criativas de precursores com os
quais não se pode manter jamais uma relação bem resolvida, poderia haver elogio
maior?
66
PRIMORDIA RERUM
Diabo… Satã… Lúcifer
Considerar as aproximações entre o gênio e a tradição místico-religiosa que
engendrou a figura complexa do Adversário é algo importante, sobretudo devido ao
fato de que o mito do grande oponente do Deus judaico-cristão sobretudo cristão,
na relidade não possui uma continuidade histórica unívoca. Embora seja uma idéia
bastante difundida atualmente vale lembrar que a religião dos hebreus, na base
mítica do judaísmo tardio e do cristianismo, não apresentava, a partir de seus textos
sagrados, a figura do Diabo tal como o conhecemos hoje. Na verdade, uma série de
elementos reconhecidos pelo cristianismo como pertencentes à esfera do Diabo não
o eram a princípio. A serpente do Éden, o Satã do livro de Jó, a Estrela da Manhã do
livro de Isaías, assim como a figura do Dragão de antigos mitos de confronto entre
Caos e Ordem ou deuses ctônios de povos inimigos, nada era a princípio parte de
um mito complexo e tardio (mas de evidente força).
Se recuarmos para os princípios de YHWH como Deus de seu povo eleito,
teremos uma divindade que agrega em si tanto o Bem quanto o Mal. Movimento
interessante de construção do divino como sujeito, YHWH, a princípio, seria uma
entre tantas divindades presentes em um universo politeísta, talvez até mesmo um
deus guerreiro menor que, em determinado momento, passou a fazer do universo
mítico egípcio. Ao passar a fazer parte da religião de um povo como Deus principal,
caminha gradativamente para a centralização do poder que, a princípio, coloca-o
como o mais poderoso dos deuses (aqui, sua natureza de deus guerreiro é
particularmente útil). Isso não nos impede a percepção plural da divindade, seja pela
apropriação, por parte da escritura, da forma plural elohim como um dos nomes de
YHWH, seja pela manutenção, agônica, como seria de se esperar, de outras
divindades vizinhas. Ainda não poderíamos falar em “demônios” nesse contexto,
mas mitos sombrios do deserto aproximam-se bastante disso em termos de
negatividade. Daí a espantosa passagem em “Levítico”, 16, 8-10, a respeito do dia
da expiação:
67
Lançará a sorte sobre […] dois bodes, atribuindo uma sorte a YHWH e
outra a Azazel. Aarão oferecerá o bode sobre o qual caiu a sorte ‘De IHWH’
e fará com ele um sacrifício pelo pecado. Quanto ao bode sobre o qual caiu
a sorte ‘De Azazel’, será colocado vivo diante de IHWH, para se fazer com
ele o rito de expiação, a fim de ser enviado a Azazel, no deserto. (BÍBLIA
DE JERUSALÉM, 2003, p. 183)
Mesmo que pensemos Azazel segundo a interpretação relativamente tardia
de um demônio do deserto tanto hebreu quanto cananeu, o procedimento sacrificial
mostra o quanto ainda tínhamos fronteiras nebulosas no caminho para o
monoteísmo posterior. Asmodeu, Lilith, Baal, em suma, manifestações às vezes
sombrias do divino que posteriormente passariam a fazer parte de um panteão
diabólico, disputam espaço textual com YHWH e apontam para uma necessidade de
existência de antagonistas. Afinal, a passagem para uma visão realmente
monoteísta que tornará YHWH onipotente, lança um importante problema teológico
que pode ser considerado sob a ótica literária do gênio agônico e demoníaco: se
Deus é onipotente, como considerá-lo infinitamente bom e ao mesmo tempo admitir
a existência do Mal? O oxímoro teologal é de Tj6.25197 0 Td(r)Tj3.72714 0 Td(a)d(l)Tj2.4046 0 Td( )Tj4.92944 0 Td(é)Tj6.2519 0 Td(o)Tj6.3722 0Td(t)Tj3.24622 0 Td(e)T0921 0 Td(d)Tj6.25197 0 Td(e)Tj6.2516.01151 0 Td(p)Tj0 Td(e)Tj6.(i)Tj2.52483 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td(t)Tj3.24622 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td( )Tj4.20806 0 Td(l)Tj2.13174 0 Td(x)Tj5.25197 0 Td( )Tj424622 0 Td(i)Tj2.4046 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td(m)Tj9.49819 0 Td(e)Tj6.13174 0 Td(n)Tj6.13174 0 Td(t)Tj3.36645 0 Td(e)Tj6.13174 0 Td(,)Tj3.24622 0 Td( )Tj3.72714 0 Td(c)Tj3.24622 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(s)Tj5.65083 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td(o)Tj6.3722 0 Td( )Tj3..80921 0 Td(Tj6.25197 0 Td(r )Tj9.61842 0 Td(v)Tj(a)Tj6.13174 0 Td(u)Tj6.25197 0 Tdr)Tj3.72714 0 Td(d)Tj6.25197 0 Td(i)Tj2.52483 0 Td(r)Tj3.72714 0 Td( )Tj-427.058 -19.44 Td6.25197 0 Td(i)Tj2.52483 0 Td( )Tj4.80921 0 Td(d)Tj6.25197 0 Td(i)Tj2.52483 0 Td(n)Tj6.25197 0 Td(ã)Tj6.25197 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td( )Tj9.61842 0 Td(r)Tj6.25194 0 Td(m)Tj9.25197 0 Td( )Tj3.9676 0 Td(u)Tj6.25197 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td( )Tj6.01151 0 Td(p)Tj6.25197 0 Td(i)Tj2.52483 0 Td(,)Tj3.24622 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td( )Tj3.9676 0 Td(é)Tj3.24622 0 Tdue p oo t d rodamioo
68
Diabo, essa influência permeou a literatura bíblica de então e permitiu que se
estabelecesse bases para o futuro Satanás.
Com relação à serpente do paraíso, cuja matriz negativa remonta, em termos
literários, aos primeiros séculos do segundo milênio a. C., com a Epopéia de
Gilgamesh, e outros deuses-demônios animalizados como Leviatã ou Behemot,
temos ainda a memória das origens belicosas de YHWH. No lendário Livro das
batalhas de YHWH, segundo as menções que se salvaram, teríamos justamente
um confronto entre o futuro todo-poderoso hebreu e a grande serpente aquática,
símbolo do caos e do feminino. Ecoam ainda, aqui, elementos de influência que se
sedimentaram após o exílio, como o mito babilônico de Marduk vencedor da Tiamat,
dentre outros. Todavia, a multiplicidade mítica não contribuiu para a criação de um
mito malévolo unificado, e seria necessário a revisão cristã do Antigo Testamento
para propor versículos sintetizadores como em “Apocalipse”, 12, 9, a respeito da
batalha celeste que determinou a queda do Diabo: “Foi expulso o grande Dragão, a
antiga Serpente, o chamado Diabo ou Satanás” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p.
2154). Ao juntar esses epítetos para o Adversário, o “Apocalipse” unifica a serpente
edênica, a bestialogia dos demônios-deuses estrangeiros, e o Satã do “Livro de Jó”,
mediados pelo grego diabolos, o agente desagregador. Por sinal, a figura de Satã no
Antigo Testamento deve ser discutida.
Satã, na literatura pré-cristã da Bíblia, seria o termo para designar um
obstáculo a ser ultrapassado, derivando daí a idéia de “Adversário”. Apresentado
junto ao artigo, Satã surge tanto em “Jó” quanto em “Zacarias” (3, 1-2), mas será
algo próximo de um nome próprio apenas no “Primeiro Livro das Crônicas”, 21, 1:
“[O] Satã levantou-se contra Israel e induziu Davi a fazer o recenseamento de Israel”
(BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p. 574). Além do caráter pouco personalizado de
Satã no Antigo Testamento, é importante destacar que o personagem do “Livro de
Jó” é apenas mais um bene ha-elohim, um dos “filhos do Senhor” que ecoam o
princípio politeísta anterior, e, fiel à etimologia de Satan em hebraico (“opor”,
“acusar”), atua sobretudo como uma espécie de promotor blico da corte celestial.
Assim, aproxima-se de um aspecto do próprio YHWH, como se fosse um mal’ak
YHWH, que, mais que um emissário ou mensageiro de Deus, é mesmo um aspecto
da presença divina. Isso nos traz instigantes reflexões sobre a construção da
identidade tanto de YHWH quanto de Satã, e, se lembrarmos que a ocorrência mais
personalizada de Satã em “Crônicasespelha o “Segundo Livro de Samuel”, 24, 1
69
(“A ira de YHWH se acendeu contra Israel e incitou Davi contra eles: “Vai”, disse ele,
“e faze o recenseamento de Israel e de Judá” [BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p.
466]), chegamos a um ponto perturbador no qual figura de Satã como sujeito funda-
se na identificação com aspectos negativos do ethos divino. Essa alteridade
semelhante demais para ser confortável, interfere nas opções de escritura. Elaine
Pagels, em clássico estudo intitulado As origens de Satanás, aponta com argúcia
que a utilização negativa de Satã a partir do Novo Testamento (que sob a forma em
grego aproxima-se de nosso “Satanás”) estava ligada à representação de
adversários judeus do cristianismo nascente. Assim, Satã passa a representar mais
que o Adversário, passa a ser o “inimigo íntimo”, o Outro que também é Eu. Isso terá
influências na vasta tipologia de máscaras do demoníaco após o estabelecimento do
Diabo na Idade Média, como no caso do judeu como sinônimo de satânico, ou como
bem aponta Pagels: “à medida que o movimento cristão se tornava cada vez mais
gentio no século II e daí em diante, a identificação de Satanás sobretudo com os
inimigos judeus de Jesus, mantida na tradição cristã ao longo dos séculos,
alimentaria o fogo do anti-semitismo” (PAGELS, 1996, p. 59).
Seria válido ainda um breve comentário a respeito de uma das máscaras do
Diabo que não encontram justificativa bíblica direta. Trata-se da visão de Satã antes
da queda como Lúcifer, primeiro e mais belo entre os anjos. Essa visão de
grandiosidade (ainda que perdida) do Diabo teve de esperar para ser consolidada,
sobretudo porque, no início do cristianismo, o antagonista de Deus teve pouco
destaque efetivo. Em seu livro Uma história do diabo, no qual analisa o tema do
século XII ao XX, Robert Muchembled aponta para essa situação: “O diabo mostrou-
se discreto durante o primeiro milênio cristão” (MUCHEMBLED, 2001, p. 19). Isso
sobretudo no espaço da Arte, pois conforme continua Muchembled: “Teólogos e
moralistas interessavam-se por ele, sem dúvida, mas a arte quase não lhe dava
espaço, o que era um indício, entre outros, de ausência de uma grande obsessão
demoníaca no centro mesmo da sociedade” (MUCHEMBLED, 2001, p. 19). Assim, o
mito do maior entre os caídos expressão na qual se destaca “o maior” deveria
ainda ser trabalhado para dar origem a Lúcifer.
Na Bíblia, o Diabo nunca é apresentado como Lúcifer. As menções à estrela
matutina são antes referências ao Cordeiro triunfante, como em “Apocalipse” 2, 26-
28 (“Ao vencedor, ao que observar a minha conduta até o fim,/ conceder-lhe-ei
autoridade sobre as nações;/ com cetro de ferro as apascentará,/ como se quebram
70
os vasos de argila / conforme também eu recebi de meu Pai. Dar-lhe-ei ainda a
Estrela da Manhã” [BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p. 2145]). Mas a tradução da
Vulgata para um famoso trecho de “Isaías” (14,12), transformou o epíteto do rei da
Babilônia, Helel ben-shahar (“Estrela d’Alva, filha da Aurora”), cuja queda estava
sendo profetizada, em “Lúcifer”, de modo que os comentadores puderam
estabelecer um paralelo entre a Estrela da Manhã e um elemento disfórico. Assim, a
queda do rei babilônico assumiu ares de queda fundamental após a terrível batalha
no Céu. Para que isso pudesse renovar definitivamente o mito diabólico foi
fundamental o sucesso do Adversário com o passar da Idade Média. Se de início
sua atuação fora dos rculos eminentemente religiosos tinha sido discreta, a
passagem do milênio e a aproximação do Renascimento foram vantajosos para o
Diabo. Comentando esse período, afirma Muchembled:
O Ocidente dos quatro últimos culos da Idade dia é, antes de tudo,
cristão, o que à religião lugar primordial na explicação [do Mal]. No
entanto, a esfera religiosa não está circunscrita a si mesma. Ela coincide
com os fenômenos políticos, sociais, intelectuais e culturais confirmando-
os. O aumento do poder de Lúcifer não é conseqüência unicamente de
mutações religiosas. Ele traduz um movimento de conjunto da civilização
ocidental, uma germinação de poderosos símbolos constitutivos de uma
identidade coletiva nova. (MUCHEMBLED, 2001, p. 32)
Desta maneira, o aprimoramento da identidade do Diabo acompanha uma
mudança na própria identidade social, colocando o demoníaco, assim como havia
ocorrido com o divino, em contato com a esfera política, se não com a ética. Na
passagem do século XV para o XVI, o papel de destaque do Diabo durante a
Reforma luterana contribuiu para o desenvolvimento do mito, e mesmo o
Renascimento artístico contemporâneo da Reforma foi tocado pela invenção
mitologizante do Diabo e do Inferno levada a cabo no início do século XIV por Dante
e sua Commedia. Abria-se, assim, espaço para revitalização do Diabo como
oponente titânico de Deus, papel em que seria tomado como modelo para o gênio
romântico. E, literariamente, embora grandes nomes o tivessem assimilado de uma
forma ou de outra, o Diabo teve de esperar o século XVII e o advento de John Milton
para atingir sua apoteose no Paradise Lost. Satã, com muito da glória do Lúcifer de
71
antes da queda, muda seu estatuto ao passar do âmbito teológico para o artístico,
ou, como destaca Luther Link em O Diabo, a máscara sem rosto:
Embora nas obras dos teólogos ele possa ser o oponente de Deus, o Diabo
assemelha-se a um inseto impotente, salvo quando é investido do poder
que Milton lhe confere para abalar o trono de Deus ou da cólera que o
poeta saxão lhe empresta para rebelar-se contra a injustiça divina. (LINK,
1998, p. 202)
Citando um outro estudioso clássico do tema, Mario Praz, poderíamos ainda
acrescentar que:
Avec Milton, le Malin prend définitivement un aspect de beauté déchue, de
splendeur voilée de tristesse et de mort; il est majestueux dans sa chute”.
L’Adversaire devient étrangement beau, non pas à la manière des
magiciennes sœurs d’Alcine et de Lamia, dont l’apparence charmante est
une œuvre de sorcellerie, une vaine illusion qui tombe en cendres comme
les fruits de Sodome. La beauté maudite est un attribut permanent de
Satan ; le tonnerre et la puanteur de l’Etna, vestiges de la sombre figure du
démon médiéval, ont disparu. (PRAZ, 1998, p. 73)
Estava preparado o palco para o ato transubjetivo que faria do gênio um
demônio. Por sinal, intencionalmente, a máscara do Diabo como demônio foi
deixada de lado até esse momento. Isso se deu devido ao fato de justamente a idéia
de demônio ser a re4505 0 Td(i)Tj2.0439 02483 0 Td(o)Tj6.251316.925 -16.2 Td(d)Tj5.16987 0 Td(é)Tj5.41033 0 Td(m)T(d)Tj6.13174 0 Td25197 0 Td( )Tj5.2 0 Td(o)Tj6.13174 0 Td( )Tj3.36645 0 T(4505 0 Tdj5.16987 0 Td(é)T4505 .2901 0 Td(s)Tj4.(d)Tj6.13174 0 Td25105 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td(d)Tj6.15 -16.2mu(d)Tj6.15 -16.2mu(d)Tj6022 0 T)Tj6.25197 0 Td(m)Tj9.45197 0 Td(o)Tj6.3722 0 Td( )Tj6.25197 0 Td(r3174 0 Td25197 0 Td( )Tj5.2 0 Td(o))Tj5.77105 0 Td(aç Td(d)Tj5.16987 ãTj3.36645 0 Td(a)Tj6.Tj4.(d)Tj6.13174 0 Td25105 0( )Tj5.2 0 Td(o))Tj5.65082 0 Td(i)Tj2.52483 0 Td(ngTj3.36645 0 Td(ü)Tj6.Tj4.(d)Tj Td(a)Tj6.25197 0)Tj3.12596 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td(t)Tj3.12599 0 Td(i)Tj2.52483 0 Td(c)Tj3.84737 0 Td(a)Tj6.13174 0 Td( )Tj5.65082 0 Td(e)Tj6.5197 0 Td(u)Tj6.25197 0 Td(t)Tj3.15197 0 Td(r3174 0 Td25197 0 Td)Tj6.13174 0 Td( )Tj5.8Tj4.(d)Tj6.13174 0 Td25105 0Diabde o gênio.
72
sobretudo no mito das cinco raças descrito em Os trabalhos e os dias. Nesse
poema didático, Hesíodo expõe o mito segundo o qual teriam se tornado daímones
tanto os homens da Raça de Ouro (“depois que a terra esta raça cobriu/ eles são,
por desígnios do poderoso Zeus, [daímones]/ corajosos, ctônios, curadores dos
homens mortais” [Hesíodo, 1996, p. 31]), quanto os da Raça de Prata, embora
estes, de estirpe inferior em relação aos precedentes, pecassem” por sua hybris.
Cabe aqui nova pergunta: seriam esses daímones deuses? Embora sensivelmente
diferentes dos homens comuns, eles não são theoí. São antes intermediários entre o
divino e o humano, apontando, muitas vezes, não para uma classe específica de
seres, mas para um modo de ação específico.
Assim, a atuação do daímon aponta para um princípio ético que desempenha
papel fundamental na formação do homem grego. Justamente tratando dessa
formação, Werner Jaeger, em seu Paideia, destaca a dimensão ética do daímon, a
partir do exemplo socrático:
[…] a ética é a expressão da natureza humana bem entendida. Esta
distingue-se radicalmente da existência animal pelos dotes racionais do
Homem, que são os que tornam o ethos possível. E a formação da alma
neste ethos é precisamente o caminho natural do Homem, o caminho pelo
qual este pode chegar a uma venturosa harmonia com a natureza do
universo ou, para dizer em grego, à eudemonia. (JAEGER, 1979, p. 497)
Aqui chegamos a uma distinção marcante do daímon que, ligado ao ethos e
determinando o quinhão que a cada um cabe, tem de ser tipificado em termos tanto
positivos quanto negativos tendo em vista a diferenciação de fortuna entre a espécie
humana. Se o indivíduo pode ser agraciado no nascimento com um bom destino, um
eudaímon, que irá determinar uma existência eticamente harmônica, pode ter,
também, como guardião, um dysdaímon, um kakodaímon que lhe legará uma vida
de dificuldades. Assim, o daímon passa a fazer parte do pensamento religioso grego
de modo privilegiado.
Para a idéia de Diabo, essa potencialização de daímones foi importante,
sobretudo devido à sua presença muito mais próxima do cotidiano das pessoas que
os deuses. Quando do início do cristianismo, a nova religião encontrou, no universo
de expressão grega, um mundo povoado por demônios que ainda não haviam sido
“demonizados”. Mas Paulo, a ponta-de-lança doutrinária do cristianismo, tratou de
73
impiedosamente fazê-lo. Dessa maneira, o movimento de demonização de
divindades rivais atingiu os intermediários habitantes do éter, abrindo caminho para
a imagem moderna do demônio como uma das faces do Diabo. Em seu livro sobre
Les croyances religieuses de la Grèce Antique, Martin Nilssom comenta essa
tendência :
Parce que les dieux avaient été repoussés de leurs sièges élevés par l’idée
d’un dieu unique, suprême et tout-puissant, ils s’étaient dangereusement
approchés des mons. Le christianisme en déduisit la conséquence
logique en transformant les dieux du paganisme en mauvais mons.
(NILSSON, 1955, p. 195-6
)
Sem dúvida alguma, tal demonização negativa teve conseqüências diretas na
percepção ética daqueles para quem o daímon estava intimamente ligado com o
destino. Afinal, essa mudança de valores, sobretudo sobre uma entidade que atuava
no sentido de uma internalização desses valores, tocava intimamente cada um
naquilo que o fazia indivíduo, naquilo que o fazia sujeito. Assim, vemos como o
processo tocava a areté possível de cada um, interferindo na percepção da
excelência que seria um dos avatares do gênio antes desse assumir seu posto como
idéia, como noção, conceito e mesmo palavra.
Com relação ao gênio, tal interferência teria, além da base em idéias
próximas, alguma justificativa lingüística? Etimologicamente, temos uma situação
que pode nos pregar algumas peças. Nas línguas neolatinas e mesmo em algumas
que fogem dessa família, o vocábulo moderno para gênio vem do latim genius”.
Segundo o Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina (1987, p. 246),
aparentemente, teríamos uma aproximação com o daímon, pois, dentro da religião
romana, o genius era um numen, um espírito que, vivendo junto do homem ao qual
estava ligado, dava-lhe poder gerador, ligando-se ao lectus genialis, o leito
matrimonial. Tal sentido expandiu-se com o tempo, passando a representar toda a
potência da força masculina, posteriormente ligando-se a uma família pelo patriarca
e chegando mesmo, na Roma antiga, a ser utilizado em expressões como Genius
Populi Romani ou Genius Urbis Romae. Sem dúvida, no momento em que chega a
indicar a divindade tutelar de cada indivíduo, aproxima-se do daímon, mas, para que
se aproximasse do gênio demoníaco aqui proposto, teria de assumir alguns de seus
74
aspectos, algo que, aparentemente, o genius no uso clássico palavra não fazia. Para
designar as habilidades inatas do indivíduo, o termo usado era ingenium, que,
embora tenha derivado posteriormente nossos termos “engenho” e “engenhosidade”,
foi, ainda por essa derivação, o vocábulo utilizado através dos tempos. Em um
estudo que busca considerar a noção de gênio da Antigüidade à Renascença, Edgar
Zilsel, passando por vários conceitos próximos que, na ausência do gênio
propriamente dito, assumiram o manto da excelência artística (como a fama ou a
gloria pré-renascentistas e renascentistas, por exemplo), também lida com os três
termos, daímon, genius e ingenium para, em um primeiro momento, reforçar as
diferenças entre a noção moderna de gênio (próxima ao ingenium) e o genius e o
daímon:
On constate donc que, contrairement au génie moderne, le genius antique
ne qualifie jamais une intelligence supérieure ou un talent inné – ingenium
, à moins d’en forcer le sens. Il incarne la force vitale et l’âme humaine
(masculine) sous forme d’un serpent séparable du corps, devient ensuite
l’individualité vivante d’une chose au sens animiste,
75
Quand et comment s’est réalisé cet amalgame entre l’ingenium, l’inspiration
divine et le genius, qui produit le génie selon Scaliger? Un premier repère
chronologique important est In calumniatorem Platonis (1469) du cardinal
Bessarion. Il distingue le “divin” Platon du “démoniaqueAristote, adjectif
dérivé des démons que Cicéron appelle les lares et Apulée lares ou genii,
précisant qu’ils étaient très respectés dans l’Antiquité et n’avaient pas le
sens du démon chrétien, mais que le qualitatif “divinest supérieur, comme
Dieu est supérieur aux choses naturelles. (ZILSEL, 1993, p. 347)
Encontrar as razões de tal identificação à primeira vista indevida apenas no
século precedente é um meio de pensar o fenômeno de modo mais confortável, pois
o recorte amplo de Zilsel o obrigaria, se realmente se propusesse a tal revisão
diacrônica, a repensar seu estudo na totalidade. Assim, ele perde a chance de
perseguir uma pista que estava diante de seus olhos, na menção quase incidental a
Apuleio. Muito mais famoso por sua prodigiosa narrativa de metamorfoses e mitos
de restauração de O asno de ouro, ele também foi um dos precursores do
pensamento neoplatônico, e, ao falar sobre o daímon de Sócrates, abriu uma porta
inestimável para o estabelecimento do gênio demoníaco.
Um caso limite: Apuleio e o genial demônio socrático
Apuleio viveu no século II d. C. e, portanto, um século antes do florescimento
do neoplatonismo sobretudo com Plotino. Mas suas interpretações de Platão
encontraram eco, sobretudo sua visão do daímon socrático descrito por Platão. Para
um rastreamento de possíveis cruzamentos etimológicos entre o gênio e o demônio
por meio de seus ancestrais genius e daímon, o texto De deo Socratis é
excepcionalmente proveitoso. Neste texto, Apuleio traça um painel do daímon, seu
papel como intermediário entre o humano e o divino e termina por ilustrar sua
exposição com o elogio de Sócrates e de seu daímon em particular. Definindo o
termo, Apuleio afirma:
Caeterum sunt quaedam divinae mediae potestates, inter summum
aethera, et infimas terras, in isto intersitae aeris spatio, per quas et
76
desideria nostra et merita ad deos commeant; hos Graeci nomine 
nuncupant.
2
(APULÉE, s/d, p. 276)
O papel do daímon como intermediário entre as esferas e entre as instâncias
divina e humana não é novidade, mas chama atenção o fato de Apuleio utilizar
caracteres gregos para apresentar o daímon, sobretudo porque, no decorrer do
texto, irá transliterar a palavra extensivamente sob a forma daemon”. Tal fato, em
um texto no qual a clareza por meio da expressão em língua latina é destacada mais
de uma vez, torna-se significativo e nos oferece uma via de entrada não apenas no
texto, mas na visão particular do par genius/daímon.
Um dos maiores problemas para identificar o genius (bem como o daímon) à
nossa noção moderna de gênio encontra-se no fato de ambos não se mesclarem
com aqueles a que se ligam gerando uma indistinção entre ambos nos termos atuais
(como na dupla possibilidade de expressão em “um gênio” ou “um homem de
gênio”). Outro problema é que nossa visão das duas entidades tende a aproximá-las
e mesmo igualá-las; todavia, as referências textuais que nos permitam confirmar tal
visão na Antigüidade não são tão volumosas. O texto de Apuleio oferece um ponto
de intersecção em ambos os aspectos. Afirmando que os deuses não devem ser
suscetíveis à todo espectro de emoções humanas (como o ódio ou amor, por
exemplo), Apuleio concede que, no entanto, tais emoções convém aos daímones:
Sed et haec cuncta, et id genus caetera, daemonum mediocritati rite
congruunt. Sunt enim inter nos ac deos, ut loco regionis, ita ingenio mentis
intersiti, habentes communem cum Superis immortalitatem, cum inferis
passionem. Nam, proinde ut nos, pati possunt omnia animorum placamenta
uel incitamenta, ut et ira incitentur, et misericordia flectantur, et donis
inuitentur, et precibus leniantur, et contumeliis exasperentur, et honoribus
mulceantur, aliisque omnibus ad similem nobis modum uarientur.
3
(APULÉE, s/d, p. 284-6)
2
De resto, certas potências divinas intermediárias, cuja morada é este espaço aéreo que se estende
entre o éter superior e nossa humilde terra, tem por função fazer os deuses tomarem conhecimento
de nossos votos, nossos méritos. Tais potências dos gregos o nome de  (daímones)”.
Tradução “de serviço” cotejada com versão francesa de Henri Clouard para a edição citada.As
demais traduções deste texto de Apuleio seguem o mesmo princípio.
3
“Mas todas essas emoções e aquelas do mesmo gênero convém de modo significativo ao estado
intermediário dos daímones. Com efeito, eles se encontram entre os deuses e nós pela região onde
habitam, pela natureza de seu engenho mental, tendo em comum com os deuses superiores a
imortalidade, e em comum conosco as paixões. Pois eles conhecem, como nós, todos os movimentos
por meio dos quais a alma se acalma se excita: a lera que irrita, a piedade que (co) move, os dons
77
Aproveitando-se da mesma imortalidade que os deuses, os daímones
justificam sua posição intermediária nos planos da existência ao prover as paixões
humanas. E, na expressão ita ingenio mentis intersiti”, em que pese o ingenium
como o inato característico, temos sua aproximação ética com o daímon. Para
justificar terminologicamente a junção dos três termos propostos de início, falta,
ainda, uma menção textual ao genius como sinônimo de daímon. Felizmente, o texto
de Apuleio é generoso até mesmo nesse sentido, pois, retomando os caracteres
gregos e pensando a particularidade do latim (o que reforça a transubjetividade
lingüística), diz:
Id potius praestiterit latine dissertare, uarias species daemonum a
philosophis perhiberi, quo liquidius et plenius de praesagio Socratis, deque
eius amico numine cognoscatis.
Nam quodam significatu et animus humanus, etiam nunc in corpore
situs,  nuncupatur:
[…]
Igitur et bona cupido animi, bonus deus est. Unde nonnulli arbitrantur,
ut iam prius dictum est,  dici beatos, quorum daemon bonus, id
est, animus uirtute perfectus est. Eum nostra lingua, ut ego interpretor,
haud sciam an bono, certe quidem meo periculo, poteris Genium uocare,
quod is deus, qui est animus sui cuique, quamquam sit inmortalis, tamen
quodam modo cum homine gignitur, ut eae preces, quibus Genium et
Genitam precamur, coniunctionem nostram nexumque uideantur mihi
obtestari, corpus atque animum duobus nominibus comprehendentes,
quorum communio et copulatio sumus.
4
(APULÉE, s/d, p. 288)
Destacando a necessidade de dissertar em latim em nome da clareza,
finalmente Apuleio deixa de lado a transliteração para afirmar a respeito da tradução
que seduzem, as preces que enternecem, os ultrajes que exasperam, as homenagens que
desarmam… enfim, toda a gama de nossas emoções”.
4
“É preferível dissertar em latim sobre as variadas espécies de daímones citadas pelos filósofos e
chegar assim a um conhecimento mais claro e completo do sentido do pressentimento que possuía
Sócrates e do númen que ele tinha por amigo./ Em certo sentido, a alma humana, mesmo prisioneira
do corpo, chama-se  (daímon)./ Um bom desejo da alma é um bom deus. Disso provém,
segundo pretendem alguns, o nome  (eudaímones) dado aos afortunados que possuem
um bom daímon, isto é, uma alma perfeitamente virtuosa. Em nossa língua, não sei se existe um
termo equivalente, mas me arriscaria a empregar a palavra genius. Pois o deus, que é nossa alma,
por mais que seja imortal, nasce (gignitur), contudo, por assim dizer, conosco. De modo que as
preces endereçadas ao Genius e à Genita me parecem testemunhar nossa dupla natureza,
encerrando nesses dois termos o corpo e a alma cuja semelhança e união nos compõem”.
78
de daímon (sobretudo o eudaímon): Eum nostra lingua, ut ego interpretor, haud
sciam an bono, certe quidem meo periculo, poteris Genium uocare”.
Etimologicamente, pod
79
GÊNIO, DEMÔNIO
Gênio, Demônio e Romantismo: imitação e criação
Apesar de as relações que aproximam o conceito de gênio tanto ao de
demônio quanto a outros congêneres terem sua origem em um passado clássico
greco-latino, é com o advento do Romantismo que a figura do gênio, nos termos em
que este estudo se propõe a estudá-lo, configura-se de modo mais acabado. Na
verdade, a partir do Romantismo e de seus antecedentes mais diretos, o nio
passa a constituir uma verdadeira instância do próprio processo artístico, uma vez
que ele, o gênio, surge de modo a desequilibrar a balança que sustinha o princípio
mimético e o poiético na arte em geral. Afinal, o gênio representa, no pensamento
romântico (mas não apenas nele), o próprio poder criador, capaz de igualar e
superar corretivamente a própria Natureza. Tal condição explica muitos dos motivos
pelos quais o gênio obteve tamanho destaque no pensamento romântico, afinal, “a
concepção do gênio [no Romantismo] desloca o centro gravitacional da análise
estética: o que importa não é tanto a obra e a sua apreciação; é agora, bem mais,
o poeta e criador” (ROSENFELD, 1992, p. 14).
Mas o fato de maior importância para a aproximação genial-diabólica é
justamente a ênfase no poder criador. Ao ligar irremediavelmente o artista ao ato
criacional, o pensamento romântico europeu, uma vez que, em termos místicos,
situa-se em uma sociedade basicamente judaico-cristã, aproxima o artista do
principal arquétipo de criador, a própria figura do Deus bíblico. Ainda que (em uma
postura particularmente demoníaca!) buscassem outras fontes míticas de
identificação, os artistas românticos não poderiam jamais se furtar ao universo sócio-
cultural no qual estavam inscritos, de modo que as relações com o mythos bíblico
não podem ser desconsideradas, merecendo, antes, papel de destaque.
Assim, um olhar sobre a natureza da criação artística pode mostrar o quanto
temos de demonismo agônico e atuante no papel do gênio. E tal postura pode ser
encontrada, no universo que chamamos de “ocidental”, desde os primórdios das
reflexões sobre o tema, na polêmica entre Platão e Aristóteles. Ao condenar a arte e
torná-la eticamente mimética em termos negativos, Platão afasta o artista de
qualquer poder preponderante no universo. Na verdade, em termos de confrontação,
80
a própria idéia do Demiurgo, criador da realidade sensível cópia do mundo das
idéias , já aponta para uma demonização do ato criacional que se coloque em
disputa com alguma relidade (não importa de qual natureza) precedente, e, não sem
motivos, a oscilação entre o neo-platonismo plotiniano e o pensamento gnóstico
pôde produzir um Ialdabaoth tão “diabólico”. No caso da criação artística, cópia em
terceiro grau, cópia de cópia, o afastamento da verdade ideal negação do filosofar
platônico é negativizado em termos incisivos. No livro X da República, a fala de
Sócrates a Glauco dá a dimensão de tal processo negativizador:
Sócrates - Era a esta conclusão que queria conduzir-vos quando dizia que
a pintura, e costumeiramente toda espécie de imitação, realiza a sua obra
longe da verdade, que se relaciona com um elemento de s mesmos que
se encontra afastado da sabedoria e não se propõe, com essa ligação e
amizade, nada de saudável nem de real. (PLATÃO, 1999, p. 331-2)
O julgamento socrático permite que se entreveja algumas implicações das
idéias platônicas e, embora não seja possível, devido ao recorte deste comentário,
considerar todas, podemos nos ater às mais importantes. Em uma delas, temos uma
implicação ética: o homem deve aspirar à verdade e, portanto, afastar-se da
mímesis. Aristóteles, por seu turno, afasta-se do mestre e redime eticamente o ato
mimético, ligando-o ao ser humano, por meio justamente daquilo que gerará, no
futuro, uma tensão produtiva no Romantismo, a poíesis:
Duas causas naturais parecem dar origem à poesia. Ao homem é
natural imitar desde a infância e nisso difere ele dos outros seres, por ser
capaz da imitação e por aprender, por meio da imitação, os primeiros
conhecimentos ; e todos os homens sentem prazer em imitar.
(ARISTÓTELES, 1999, p. 40)
Este o é o caso de propor Aristóteles como um romântico avant la lettre
(embora o estagirita possa, ainda hoje, ser considerado precursor de muitas de
nossas perspectivas reflexivas), mas apenas de lembrar como a tensão entre esses
dois pólos do processo artístico está presente desde o início do pensamento sobre o
81
fenômeno literário. Ainda lembrando a Poética aristotélica, encontramos a redenção
da arte frente à verdade por meio de sua relativização sob a forma do verossímil.
Não se trata mais da imitação do que “é”, mas a representação daquilo que “poderia
ser”. o é sem motivo que o pensamento aristotélico (ainda que distorcido) seria
fundamental para o Renascimento, período no qual se inicia a apoteose do indivíduo
que atingiria seu pleno desenvolvimento no Romantismo. Aristóteles lança, sim,
bases para a a exaltação de um criador capaz de corrigir a criação natural
(comumente identificada com a divina). Se, na República, Platão faz Sócrates
afirmar:
Sócrates está! No meu modo de ver, o que se 0 Td(.)Tj3.24622 0 Td( )Tj Tm(S)Tj6.25194 Td(e)Tj5.16987 0 ( )Tj/R15 11.28 Tf197 0 Td( )Tj7.45427 0 Td(d)Tj6.ó5 0 Td(e)Tj5.2901 0 TdSar e0 Td(.)Tj3.24622 0 Td( )87 0 Td( )Tj3.72718 0 Td(t)Tj2.52487 0 Td(u)Tj5.29d7 0 Td(u)Tj5.2987 0 Td(o)Tj5.16987 0 -31Td25-36.083.36645 0 Td0439Tj5.2901 0 TdStoood
82
a tentativa de identificação com a essência do ethos universal (ser como Deus,
poderíamos dizer), e, no caso de Aristóteles, de aspiração a corrigir o mundo
sensível, alterando-o criativamente (ser como Lúcifer, também poderíamos dizer).
Assim, a identificação posterior entre gênio e demônio (tanto em termos de
procedimento quanto de figuratização mítica) encontra um de seus principais
fundamentos (se não o principal) no princípio poiético, a criação artística original e
corretiva. A importância da criação original na concepção do gênio a partir do
Romantismo (embora suas raízes se estendam para um período ainda anterior)
pode ser sentida em todos os comentários sobre o tema. A título de exemplo,
podemos lembrar Winsatt Jr. e Brooks, que, no capítulo catorze de seu Literary
Criticism, intitulado Genius, Emotion, and Association”, utilizam Dryden para
destacar a importância da originalidade para a concepção do gênio criador:
Dryden, in his elegantly blunt way, had once said of the Elizabethan
writers:
Fame then was cheap, and the first comer sped;
And they have kept it since, by being dead.
This gross mistake had at least the merit os proceeding on the
assumption that literary worth was something that might suffer by
comparaison with superior worth. On the new theory, of genius and
originality, the only way to be sure of having any worth (a kind of
inescapable and hence unmeritorious worth) was to be in on the threshold
of literary history, to get there first, even if with the least. For all
improvements on the beginning would inescapably suffer the handicap of
not being first. Thus literary creators were accorded in effect that variety of
honor, in most cases necessarily sentimental and archaic, wich the world
can afford for its inventors
na Archimedes, a Fulton, a Watt, the brothers
Wright
athletes who died in good time, runners whom renown did not
outrun. Why would not Homer’s poems, on Edward Youngs view, be sibject
to the same discount in the value as the first steamboat or the first airplane
if put into competition with the machines of 1950? Simply because of the
peculiar fiat, the confusion in critical thinking between poet and poem, by
wich during this period in critical history the first became equivalent with the
best. (WINSATT JR., BROOKS, 1970, p. 290)
83
Essa imperativa necessidade de originalidade foi constante desde os
antecedentes do Romantismo, de modo que autores que estiveram ligados ao
movimento de alguma forma sempre destacaram sua importância, fosse por meio do
elogio direto do gênio e da criação original, fosse por meio de seus avatares como a
imaginação ou o onírico. William Hazlitt, no ensaio “On Genius and Common Sense”,
conclui seu raciocínio sobre o tema com uma sentença eloqüente: Good nature and
common sense are required from all people; but one proud distiction is enough for
any one individual to posses or to aspire to” (HAZLITT, s/d., p. 71). Esta alta
distinção do artista original, hipertrofiando a relevância do fruto do trabalho do
gênio, em um universo místico e religioso que já apresentava um pensamento
judaico-cristão estabelecido (após a apoteose do Diabo no pensamento medieval e
na subseqüente reforma luterana), permitiu uma identificação ainda mais forte entre
o gênio e o demoníaco, em função, também, do papel ativo e agônico do artista
genial frente à “criação divina”. Não sem razão, um dos autores de maior influência
na constituição do paradigma genial romântico, o inglês Edward Young, em
Conjectures on Original Composition, de 1759, identifica o gênio ao próprio
processo natural de criação. Sobre Young, Márcio Suzuki, em seu O gênio
romântico, afirma:
É provável que um dos momentos mais representativos da discussão
sobre o gênio no século XVIII se encontre nas Conjecturas sobre a
Composição Original, de Edward Young, que tiveram na Alemanha do
Sturm und Drang uma repercussão maior do que na própria Inglaterra. O
texto, como bem se sabe, representa uma mudança profunda na maneira
de de
84
The mind of a man of Genius is a fertile and pleasant field, pleasant as
Elysium, and fertile as Tempe; it enjoys a perpetual Spring. Of that Spring,
Originals are the fairest Flowers: Imitations are of quicker growth, but fainter
bloom. Imitations are of two kinds; one of Nature, one of Authors: The First
we call Originals, and confine the term Imitation to the second. (YOUNG,
1966, p. 9)
É necessário, aqui, fazer uma ressalva a respeito do fim da passagem citada.
Por vezes, os comentadores de Young cons..64505 0 Td(m)Tj7.93515 0 Td(i)Tj1.92367 014 0 Td( )Tj3.6066.25197 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td( d(o)Tj6.25197 0 T..64505 0 Td(m)Tj7.93j3.96758 0 Td(c)Tj4.56873 0 TTd(i)Tj2.52483 0 T0 Td( )Tj4.92944 0 Td(Y)2 0 Td( )Tj-427(e)Tj6.25197 0 Td(n)Tj6.Td(m)Tj9.49819 0 Td( )Tj3.48668 0 Td Td(o5.77105 0 Td(a)Tj5.2901 0 TdTj3.12597 0 Td( )Tj/R123.12597 0 Td( )Tj/R123.12597 0 Td5 0 Td(m)Tj7.93515 0 Td(i)Tj1.92368d Td( )Tj3.9676.25197 0 T5 0 Td(a)Tj5.2901 d(e)Tj6.13174 0 Td(s)Tj5.65082 0 Tç( )Tj3.6066.25197ã(s)Tj5.65082 0 Td( )Tj9.49819 0 Td( )T0 Td5 0 Td(m)Tj7.935.65082 0 T(d)Tj6.275197 0 Td(d)Tj6.25197 0 T5 0 Td(a)Tj5.2901 d(..64505 0 Td(m) 0 Td( )Tj/R123.12597 d( )Tj4.92944 0 Td(a)Tj6.13174 0 TdTj7.93515 0 Td(i)d(t)Tj3.24622 0 T( )T0 2.64722 0 Td(i)Tj2.4046 0 Td(m)Tj9.49819 0 Tdd(d)Tj6.3722 0 Tdd(t)Tj3.24622 0 T( )T0 2.64722 0 Tdd(r)Tj3.84737 0 Tj3.9676.25197 0 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0 TTd(m)T.13174 0 Td(n)TTd(1)9197 0 Td(s)Tj5.65082 0 T 0 Td( )Tj/R123.12597 Tj-31482 0 Td6.32 8.1756682 0 Tdd( )Tj9.49819 0 Td(o)Tj368d Td( )Td(r)Tj6.13174 0 Tdd(z)Tj6.25197 0 Td(e)Tj5.65082 0 Td(u)Tj5.04967 0 T( )Tj5.6Td(n)Tj2597 Tj-31482 0 TdTd(m)Tj7.93j3.96758 0 T377439 0 Td(f)Td( )Tj4.92985 00 Td(o)Tj6.13174 0 Tdd(z)Tj6.25197 0 Td( )Tj4.92944 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td(f)Tj5.65082 0 Td(u)Tj5.04967 0 T(a)Tj6.25197 0 T5 0 Td6.25197 0 T( )T0 5.04967 0 Td( )Tj.13174 0 Tdb(o)Tj6.13174 0 Tdd(z)Tj6.25197 0 T 0 Td( )Tj/R123.1d(t)Tj4.92944 0 Td(Y)Tj4.92944 0 Tdd(s)Tj5.65082 0 Td(i)Tj2.52481 0 T
85
Wer sucht, wird zweifeln. Das Genie sagt aber so dreist und sicher, was es
in sich vorgehn sieht, weil es nicht in seiner Darstellung und also auch die
Darstellung nicht in ihm befangen ist, sondern seine Betrachtung und das
Betrachtete frei zusammenzustimmen, zu einem Werke frei sich zu
vereinigen scheinen
6
(apud SCHLEGEL, 1994, p. 104-6)
Contudo, ao se colocar como medida de todas as coisas, o gênio propõe-se a
ocupar um espaço devidamente preenchido pela figura judaico-cristã de Deus,
sobretudo a cristã. Ao fazê-lo, abria espaço para uma nova identificação que servirá
como matriz para gênio romântico e todas as outras reflexões subseqüentes sobre o
tema: a figura do Diabo, sistematizada a partir do mito tardio de Lúcifer caído e
potencializado graças à leitura fortemente original de Milton no Paradise Lost. Aqui,
por sinal, seria interessante um enfoque em mais um elemento importante na leitura
demoníaca do gênio: o elemento marginal, o outsider, o louco, o criminoso. Portanto,
é hora do gênio transgressor, pois o Inferno está próximo.
Gênio, Demônio e Romantismo: crime e loucura
Para entendermos a identificação do gênio com figuras de marginalidade
como o louco ou criminoso, devemos retroceder até os primórdios das reflexões
poéticas na Grécia clássica e lembrar como a figura do artista, em geral, e do poeta,
em particular, estava comumente ligada à idéia da possessão divina. A figura do
poeta entusiasmado, literalmente tomado pelo deus ou pelas musas atuava como
um substituto para os conceitos ainda não presentes de imaginação e genialidade.
Como bem lembram René Wellek e Austin Warren em sua Teoria literaria:
La natureleza del genio literario siempre sido atractivo tema de
especulación, y ya en tiempo de los griegos se entendió como
emparentada com la “locura” (que debe entenderse como el campo que
media entre la neurosis y la psicosis). El poeta es el poseso”: es distinto a
los demás hombres, s y menos al próprio tiempo; y el fondo
inconsciente desde el cual habla se considera infrarracional y
suprarracional a un mismo tiempo. (WELLEK, WARREN, 1959, p. 97)
6
Quem busca, duvida. O gênio, porém, diz de maneira tão segura e atrevida o que ele que lhe
passa por dentro porque sua descrição não é parcial; sua observação e seu objeto parecem se
harmonizar livremente, e livremente se unificar em uma obra” (p. 105)
86
Não devemos, contudo, esquecer que esta visão do poeta como um
“possuído” não descarta, necessariamente, um preço a se pagar diante dos dons
concedidos. Na verdade, em consonância com outros mitos sobre aquisição do
conhecimento, o conhecimento poético, analéptico, bem como o profético,
proléptico, é obtido através de um pagamento habitualmente físico, sobretudo ligado
à visão. Novamente com Wellek e Warren:
Otra concepción también antigua y duradera es la que entiende los “dones”
del poeta como compensación: la Musa arrebató la vsta de los ojos de
Demódoco, pero le otorgó el don amable de la canción (Odisea), como al
ciego Tiresias le concedieron los dioses la visión profética. Impedimento y
compensación no siempre son, desde luego, tan directamente correlativos;
y la dolencia o deformidad puede ser psicológica o social en vez de física.
(WELLEK, WARREN, 1959, p. 97-8)
Esta constatação de que o pagamento de dano pelo dom pode ser também
psicológico ou social é especialmente importante para a apropriação romântica e
pós-romântica do entusiasmo poético por meio do gênio. Ao destacar o caráter
original do gênio, com destaque para sua insubordinação perante as regras e
colocação fora dos limites de contenção social, o Romantismo lançou novos
fundamentos para a aproximação entre o gênio e a figura demoníaca. E, como
mediador ou avatar do gênio demoníaco, temos as figuras marginais em geral, tais
como os já citados criminosos ou loucos.
Para uma melhor compreensão do modo pelo qual as reflexões sobre o gênio
estabeleceram um paralelo deste com figuras marginais, podemos determinar um
recorte preciso e levar em consideração o pensamento psicológico e científico do
século XIX ou de momentos do século XX que encontravam sua base no século
precedente. A opção por um recorte aprentemente tão extravagante explica-se não
pelo fato de este século XIX receber de modo acabado as diversas teorias do
gênio dos fins do século XVIII, mas também por contribuir fortemente, a despeito da
desmistificação posterior, para uma justificação dita “científica” do gênio como
desajustado. Tal fato não deixa de despertar curiosidade quando lembramos que as
aspirações cientificistas do século XIX (determinismo, positivismo, evolucionismo,
87
entre outros) apontavam para um desejo humano de apreensão e antecipação do
destino humano através do Tempo, com a esperança, claro, da evolução.
Lembrando da figura de Giovanni Bovio, controvertido intelectual italiano, temos uma
definição do indivíduo genial que aponta para tal aspecto. Criticando a visão de
Lombroso e de seu Genio e degenerazione, Bovio propõe uma leitura da evolução
do gênio por meio de uma perspectiva extremamente agônica frente à sociedade à
qual o gênio não pode se adaptar. Afirma Bovio:
Por eso el desarollo del genio, como el de todas las grandes
energías, procede impetuoso por contrastes rápidos, los cuales implican
muchas involuciones, en el sentido de que bajo una misma dirección,
mientras un órgano nuevo se forma, outro órgano viejo se atrofia.
De modo que desarollo e involución se equilibran bajo su vista,
produciendo un tercer término; y así como en la natureleza, dos forzas
contrarias
atracción y repulsión
dan un tercer término, la gravitación,
así también en la biologia la involución e el desarollo producen la
epigénesis.
La evolución, pues, efectuada por el genio, es evolutiva, y éste es
conservador en cuanto es progressivo, semejante a Júpiter, que era
gobernante en tanto era impulsor. (BOVIO, 1943, p. 22)
Em consonância com o elogio de Bovio do gênio, temos também Max Nordau,
que, em sua Psico-fisiologia del genio y del talento, define ambos nos seguintes
termos:
[...] un talento es un sér que realiza actividades general o frecuentemente
practicadas, mejor que la mayoría de los que han tratado de adquirir la
misma aptitud: un genio es un hombre que imagina actividades nuevas n
que practica actividades conocidas según un método completamente
proprio y personal. (NORDAU, s/d., p. 42)
Nordau aproxima-se de Bovio quanto à percepção evolutiva do gênio, mas é
mais incisivo quanto ao afastamento do gênio com relação a uma figura marginal,
em especial o louco, novamente por meio de um desvio das idéias de Lombroso.
Continuando sua exposição, o pensador austríaco afirma a este respeito:
88
Si nada digo acerca de las causas que producen el genio, porque
estas causas son aún desconocidas, dedicaré, sin embargo, aquí, algunas
palabras a las relaciones entre el genio y la locura; se querido asimilar
estos dos términos; en opinión de un gran mero de alienistas, el genio es
una neurosis: mi ilustre maestro Lombroso precisa: el genio es una forma
de epilepsia; luego, pues, siempre patológico, siempre degenerativo. Yo
creo que éste es un error que tiene su punto de partida sobre todo en una
aplicación tradicional, pero inexacta, de la palabra genio; se llama así, com
una deplorable facilidad, a cualquier imbécil extático que se las echa de
profeta o de artista y que deslumbra por su extravagancia absurda a esa
porción, la más repulsiva del ejército de los filisteos: los snobs que
blasonan de estetismo. (NORDAU, s/d., p. 69-70)
Tais idéias, hoje ultrapassadas em suas aspirações de ciência, serviram,
inclusive, para nefastas mistificações de evolução racial que tão lamentáveis
resultados apresentaram no século XX. Contudo são ilustrativas de uma posição
contrária à maioria das percepções acerca da sanidade ou não do homem de gênio
desde a consolidação do conceito de genialidade nas antecâmaras do Romantismo.
Apenas para lembrarmos como a reflexão literária tratou o tema, podemos citar o
ensaio de Charles Lamb intitulado Sanity of True Genius”. Aproximando as idéias
de gênio e “wit”, afirma Lamb:
So far from the position holding true, that great wit (or genius, in our
modern way of speaking) has a necessary alliance with insanity, the
greatest wits, on the contrary, will ever be found to be the sanest writers. It
is impossible for the mind to conceive a mad Shakespeare. The greatness
of wit, by wich the poetic talent is here chiefly to be understood, manifests
itself in the admirable balance of all the faculties. Madness is the
disproportionate straining or excess of any one of them. (LAMB, s/d., p.
219)
Apenas para citarmos mais um exemplo da questão no domínio literário (a
discussão mais extensiva sobre o tema será desenvolvida nos capítulos
subseqüentes, com destaque para a obra de Thomas Mann), podemos lembrar a
discussão proposta por Nedd Willard em seu livro Le nie et la folie au dix-
huitième siècle. Utilizando Diderot como paradigma do homem genial do século
XVIII, Willard define o gênio nos seguintes termos: Le génie, c’est la capacité de
89
mieux comprendre et de mieux faire que les autres hommes. [...]. On ne peut pas le
faire naître mais, si le terrain est favorable, on peut le diriger dans le sens voulu par
la societé. Il n’a rien à voir avec la situation sociale des parents (WILLARD, 1963, p.
27). Acenando com a possibilidade de contenção do gênio por meio da condução do
mesmo no sentido pretendido pela sociedade, Willard, abre também espaço para
uma melhor assimilação do mesmo neste meio social. A partir disto, não causa
espanto que sua visão das relações entre nio e loucura seja de total afastamento.
Sobre isso, afirma Willard (com uma citação textual de Diderot) :
Le génie se trouve donc inévitablement opposé à la folie. Le nie est
toujours pourchasdans la société qui est l’oeuvre des gens sensibles,
d’où l’idée de Diderot que les fous sont les plus nombreux dans le monde.
Le génie est persécuté et haï par tpus les gens sensibles. Les poètes, les
prêtres, les fous de toute espàce, ont peur du nie et voulent l’éxiler ou le
détruire. En revanche, le génie, avec as raison, montre impitoyablement la
sottise humaine et révèle la folie des préjugés. Le génie est le juge et le
fouet des sots. Ses moyens d’expression, comme le théâtre, sont “la verge
dont l’homme de génie se sert pour chêtier les méchants et les fous”. Le
génie agit ainsi en vertu de sa raison. Il fait une chirurgie délicate et
dangereuse sur les maladies mentales et sociales de ses concitoyens.
(WILLARD, 1963, p. 30)
Uma consideração apressada sobre a passagem acima poderia apontar em
um sentido contrário a uma demoníaca identificação do gênio com o outsider.
Todavia, algumas considerações sobre as idéias de Willard sobre Diderot e do
próprio Diderot, mostram o algo diverso. Diderot considerava o gênio menos um
criador do que um descobridor de segredos escondidos da Natureza e, conforme
veremos, em suas produções literárias, estabeleceu um limite muito mais ambíguo
entre o gênio e o louco. De qualquer modo, ao utilizar Diderot como exemplo de
gênio, Willard, a despeito de todo o hiperbólico discurso sobre o gênio e seu papel
de juiz, abre espaço para uma visão mais afastada da concepção romântica do
mesmo. Assim, embora Diderot tenha sido, bem como Rousseau ou Voltaire, um
modelo iluminista do gênio romântico francês, suas particularidades o afastam
(enquanto personagem”) consideravelmente do modelo marginal, com a promessa
de equilíbrio, a despeito da confrontação social mencionada (basta que lembremos a
oposição proposta entre gênio, de um lado, e os poetas alinhados aos sacerdotes
90
e aos loucos , de outro). Este equilíbrio do verdadeiro gênio seria também
assimilado por outros pensadores da literatura, mas como esperar que o gênio,
extraordinário por sua própria definição, possa se adequar a qualquer forma de
regra, ainda que seja ligada aos princípios de sanidade? Ao menos podemos
esperar que a expansão genial leve a uma redefinição dos limites do saudável, seja
em termos físicos ou psicológicos. Por isso, quando Karl Jaspers utilizar Strindberg
para refletir sobre as relações entre gênio e loucura, ele o fará nos seguintes termos:
Sea cual sea el concepto en que, al correr de los tiempos, se le pueda
tener, tanto si se le considera como un autor de moda, al que pronto se
olvida, como si se le reputa un gran poeta, cuyo recuerdo siempre
perdurará, o si se piensa que no constituye sino un síntoma, muy
característico de una época, pero sin importancia sustantiva, siempre
quedará el hecho de que Strindberg presenta a la psicopatología el caso de
un enfermo excepcionalmente instructivo, porque nos há dejado un cuadro
completísimo y lleno de sugerencias donde se recogen, com una prolijidad
sin precedentes, todos los detalles y recovecos de su psicosis. (JASPERS,
1961, p. 27-8)
O que chama atenção nesta passagem de Jaspers é o julgamento sem
brechas para o questionamento do caráter psicopático do gênio. Em um texto
similar, intitulado Genialidad y psicopatologia, José M. Sacristán principia por
considerar apenas o caráter extraordinário do gênio: Cuantos se han ocupado
modernamente del problema del genio admiten la existencia de una causa primaria;
esto es, una disposición psíquica total desviada del tipo medio de natureleza
hereditaria (SACRISTÁN, s/d., p. 15). Todavia, aproximando-se das posições de
Jaspers e de Ernst Kretschmer, Sacristán termina por aproximar o gênio da doença
mental: Hay una correlación biológica evidente entre el genio y el accidente
psicopático degenerativo(idem, p. 18). Antes de iniciar suas análises de uma série
de indivíduos geniais, Sacristán faz uma ressalva que os autores precedentes
também fizeram, e que nos abre caminho para uma curiosa constatação: Pero
sería insensato forzar el argumento y concluir, como quería Lombroso, que el genio
es locura(idem, p. 19). Aqui, cabe a seguinte questão: por que tamanha implicação
com o pensamento de Cesare Lombroso? A decadência da frenologia, sem dúvida,
aponta alguns motivos, contudo, em meio a tantas mistificações cientificistas, ela
91
não basta. Um dos motivos mais fortes está na implicação lombrosiana que ao
gênio um caráter marginal sem possibilidades de escape. Ao fazê-lo, estabelecemos
um problema ético, pois ligamos os criadores geniais das principais realizações
humanas a um aspecto de negatividade, como a loucura e algumas de suas
decorrências, como o crime, por exemplo. Tal postura pode não ser tão agradável à
primeira vista, mas liga-se de modo perfeito com o princípio agônico do gênio
criador, em especial sob uma roupagem demoníaca.
Por sinal vale lembrar, aqui, as posições de Kretschmer com relação ao
gênio. Em seu Geniale Menschen, a primeira parte diz respeito às leis do nio,
com o destaque de um subcaptítulo inteiro dedicado ao demoníaco como tema.
Recuperando a aspecto criativo do daímon socrático e aproximando-o da psicopatia,
Kretschmer oferece uma concepção do gênio capaz de unir o conceito à
transgressão criativa que, cada vez mais, revelou-se demoníaca:
De la comapración de un copioso material parece deducirse que el
momento más favorable para la aparición de genios en el marco
hereditario de [...] familias, entroncadas desde muy antiguo, se presenta
precisamente cuando empiezam a mostrar síntomas de degeneración. A la
simple aptitud debe sumarse en el genio el daimónion, el cual parece que
tiene mucho que ver interiormente com el elemento psicopático. Tal factor
92
modo, Henry T. –F. Rhodes, comentando as relações entre gênio e crime, faz o
elogio do agón ético de modo a redimir o gênio, o criminoso e, assim, o próprio gênio
criminoso:
[...] Les ennemis de la société [...] sont peut-être le seul antidote qui reste à
l’homme contre la paix de l’esprit; ils le tiennent en alerte, toujours sur ses
gardes et prêt à toute éventualité. C’est peut-être un bien sous les
apparences d’un mal. Nos criminels sont peut-être nécessaires.
Il en va de même pour le génie. L’individu, même s’il n’est pas un
agent libre, au sens théologique et traditionnel, influe profondément sur la
marche de l’humanité. L’interprétation de l’histoire, si strictement
scientifique soit-elle, ne permet pas de s’arrêter à une autre conclusion. Le
génie entre en lutte avec la société et la société triomphe, mais en ce
faisant, elle est obligée de changer de terrain; ou au contraire, le nie
triomphe de la société et elle est reconstruite sur de nouvelles bases. Dans
les deux cas, il y a changement, évolution, avenir. (RHODES, 1936, p. 220)
Em que pese um evolucionismo colocado em termos um tanto quanto fora de
moda, temos um processo curioso serve de base para o estabelecimento de um
gênio eticamente demoníaco. Considerando que a idéia de “demonização” é
habitualmente utilizada no sentido de negativizar alguém ou alguma coisa, podemos
fazer a distinção entre dois processos demonizadores, utilizando, para o caso do
gênio, em oposição à “demonização negativa” tradicional, uma “demonização
positiva” do gênio. Mantendo ainda em vista a proximidade entre genialidade e
loucura, é importante ressaltar que não foram apenas nomes polêmicos e
questionáveis que estabeleceram o paralelo. Longe de ser insensível aos apelos da
frenologia e de outras perspectivas que buscaram cientifizar a reflexão a respeito do
gênio, um nome consagrado como Arthur Schopenhauer aproveita a relação entre o
gênio e o louco para se permitir uma leitura que se abra para a recuperação de
ambos:
Vendo assim o louco reconhecer o presente individual, também
muito do passado individual, de modo correto, sem fazê-lo, contudo com a
conexão, as relações, agindo e falando então de maneira adoidada;
percebemos neste o seu ponto de contato com o indivíduo genial: pois
também este, abandonando o conhecimento das relações, que é conforme
ao princípio de razão, para ver nas coisas apenas suas idéias, e procurar
93
apreender sua essência apresentada intuitivamente, a cujo respeito uma
coisa representa o conjunto da sua espécie, fazendo, nas palavras de
Goethe, um caso valer mil, também o homem de gênio negligencia o
conhecimento das relações das doisas: o objeto individual de sua
contemplação ou o presente por ele apreendido com demasiada vivacidade
se revelam numa luminosidade tal, que as outras articulações da cadeia a
que pertencem são obsurecidas, no que resultam fenômenos que possuem
semelhança de há muito reconhecida com os da loucura.
(SCHOPENHAUER, 1999, p. 44-5)
Nesta passagem de Der Welt als Wille und Vorstellung, a visão do nio
como anomalia (tal como Schopenhauer o descreve) está presente, mas, por
raciocínio inverso, ao mesmo tempo de “enlouquece” o gênio, “genializa” o louco,
mostrando, talvez inadvertidamente, como o outsider pode tirar poder de sua
miséria. Apenas para lembrarmos mais um exemplo significativo de nio
demoníaco definitivamente outsider, utilizemos a figura de Henry Miller. Norman
Mailer, em um livro entusiasmado sobre o colega maldito intitulado Genius and
Lust, afirma que um dos motivos da relevância de Miller encontra-se justamente em
sua genialidade demoníaca: Everybody would have wanted to meet this poet-
gangster, barbarian-genius. He would have been the American and heterosexual
equivalent of Jean Genet(MAILER, 1977, p. 10). E o próprio Miller, em um curioso
estudo sobre seu ancestral maldito ainda mais genial e ainda mais demoníaco Arthur
Rimbaud, exalta de modo inquestionável o lado marginal do gênio: “O mundo
detesta a originalidade; ama o conformismo, quer escravos e mais escravos. O
lugar do nio é na sarjeta, cavando valas, ou nas minas ou pedreiras, uma toca
qualquer onde seus talentos não sejam utilizados” (MILLER, 2003, p. 63). Mas Miller,
em sua demonização positiva, vai além e identifica o artista genial, criador original,
ao próprio ícone máximo de rebeldia no Ocidente judaico-cristão: Lúcifer caído,
Satã, o Diabo:
É que o Diabo deve ter entrado em cena. Podem-se imaginar as
palavras que escolheu... Continua deste jeito e você acaba no hospício.
Pensa que pode matar os mortos? Deixa isso para mim, os mortos são
meu pasto. De mais a mais, você nem sequer começou a viver. Com o
talento que tem, basta pedir que o mundo será teu. O que te torna superior
é falta de coração. Para que perder tempo com cadáveres putrefatos,
94
ambulantes?” ao que Rimbaud decerto respondeu: “D’accord!”. (MILLER,
2003, p. 130)
Após este verdadeiro pacto, podemos deixar as ultrapassadas e eloqüentes
defesas do gênio louco e criminoso que, contudo, para além de sua validade como
“ciência” (devidamente questionáveis), apontam para uma constatação sintomática:
o gênio é demoníaco, diabólico, satânico. As reflexões sobre o gênio apontaram
sempre para este aspecto, mas a melhor fonte para esta constatação está nas obras
dos verdadeiros atores da aventura do intelecto humano: os artistas. Assim, façamos
um mergulho na Arte junto dos artistas, pelo recorte da Literatura. Um mergulho até
os infernos, é verdade, mas, como ninguém poderia negar, genial.
95
IN NOMINE PATRIS:
England
96
BLAKE: A POEM IN TWO BOOKS
As I was walking among the fires of
Hell, delighted with the enjoyments
of Genius, wich to Angels look like
torment and insanity, I collected
some of their Proverbs […].
William Blake, The Marriage of
Heaven and Hell
O Satan de Milton
Um estudo que se proponha a abordar o gênio a partir de uma identificação
com o Diabo em termos agonistas, não pode se desviar da obra daquele a quem,
segundo Shelley, esse Diabo tudo deve: John Milton. Atravessando quase três
quartos do século XVII, sendo o grande colosso intelectual ligado ao governo de
Cromwell na Inglaterra (e colhendo disso o melhor e quase o pior), passando boa
parte da vida cego como um Homero moderno, Milton é o responsável pela criação
do personagem que simboliza poderosamente o gênio demoníaco: o Satan do
Paradise Lost. Ao traçar o mais apaixonante retrato do Grande Adversário, Milton
não apenas criou um modelo ficcional capaz de congregar em si as aspirações de
artistas posteriores; indo além, Milton, quase consubstanciando-se com sua criação,
tornou-se a grande influência literária em língua inglesa nas gerações subseqüentes.
Se hoje sua presença parece ser cada vez mais discreta, isso se pela dificuldade
de se lidar com a mais perturbadora e necessária metáfora do que significa duelar
no território da Arte, e, como um subterfúgio de defesa, criadores recentes preferem
tentar fugir, desesperada e inutilmente, da sombra de Milton, adotando, com cautela,
falsos precursores que ostentem uma natureza epigonal diante do deus severo que
os observa do alto, sem se importar em serem epígonos de epígonos. Assim como
seu satânico personagem, Milton exige altas apostas e o pagamento é sempre à
vista.
Entretanto, quando olhamos para o cenário da literatura inglesa, verificamos
que, antes de Milton, um outro autor havia estabelecido parâmetros de excelência
tão altos que causaria espanto o fato de Milton ser a grande influência das gerações
97
posteriores. Afinal, William Shakespeare, morreu quando Milton tinha menos de oito
anos, mas sua influência, desde então, não fez senão crescer. Mesmo Milton teve
de senti-la, de modo que seu Satan necessariamente apresenta ares de Iago, do
casal Macbeth e de Ricardo III, entre outros, em maior ou menor escala. Como,
então, explicar esse peculiar fenômeno de transferência de influência? Harold
Bloom, vigoroso crítico de ambos os poetas, em sua fase mais instigante, separava
sempre Shakespeare dos demais atores do jogo da influência. Tentando justificar
sua posição, em seu célebre estudo A angústia da influência, propõe o seguinte
argumento: “Shakespeare pertence à gigantesca idade antes das águas, antes da
angústia da influência tornar-se um componente central da consciência poética”
(BLOOM, 1991a, p. 39). Assim, o bardo elizabetano não entraria no jogo, assumindo
uma posição de hors concours. Todavia, o fato de Shakespeare (segundo acreditava
Bloom no momento da publicação de seu livro, na década de setenta do século XX)
não ser vulnerável à presença de precursores não o impediria, em absoluto, de se
tornar como realmente se tornou uma divindade secular capaz de fazer sentir
sua presença por toda parte. O que talvez ocorra, considerando a presença
recorrente de Milton na literatura inglesa como influência, é o fato de Shakespeare,
servindo de paradigma do escritor por toda parte, ter se tornado tão universal que
deixa de ser essencialmente inglês, à semelhança de seu gêmeo canônico Dante na
Itália (país onde o autor da Commedia deixa espaço para Petrarca e Boccaccio).
Assim, a presença de Milton seria justificada sem que se tivesse de negligenciar a
força do precursor. De qualquer modo, Bloom não tem dúvidas quanto ao papel de
Milton como sombra angustiante da literatura anglófona, chegando mesmo a afirmar:
Se examinarmos as dez ou doze principais influências poéticas no período
anterior ao nosso século, descobriremos rapidamente quem, dentre elas,
atinge a estatura do grande Inibidor, da Esfinge capaz de estrangular no
berço até a imaginação mais forte: Milton. O lema da poesia inglesa a partir
de Milton foi sintetizado por Keats: ‘Vida para ele é Morte para mim’. Esta
vitalidade mórbida em Milton é a expressão de seu estado de Satan[…].
(BLOOM, 1991a, p. 65).
Na passagem citada, Bloom insinua um importante elemento constitutivo da
força poética de Milton: a maneira como ele se identifica com o anjo caído do
Paradise Lost. Afinal, depurando um pouco a afirmação de Bloom, poderíamos até
98
mesmo radicalizar e defender a posição de que Milton se faz presente a cada
instante porque criou, no seio de seu poema, o poeta como poeta, seja para a
tradição de seus descendentes agônicos, seja para ele mesmo. Se adotarmos essa
posição, perceberemos facilmente que a compreensão de Satan corresponde a um
ponto essencial das reflexões sobre Literatura, e, sem medo da hipérbole, Thomas
N. Corns, em seu livro Regaining Paradise Lost, não tem pudores de afirmar:
Interpreting Milton’s representation of Satan probably poses the major critical
problem for the late-twentieth-century reader” (CORNS, 1994, p. 44).
Talvez haja aqui um tanto de exagero, mas o fato é que o Satã de Milton,
gerando um espaço crítico no discurso literário, colocou permanentemente em crise
todos os discursos subseqüentes a seu respeito no âmbito da Teoria e da Crítica
que, em essência, também o isso, discurso literário. Assim, não causa espanto
que bons intelectuais tenham caído em tentação e permitido que suas crenças
religiosas particulares os conduzissem em seu confronto com Milton como autor.
Sob um signo cristão, nomes como C. S. Lewis, tendem a julgar negativamente
Satan, corroborando, assim, um velho mito religioso que serve de base metafísica
para suas vidas. Sem entrar no mérito religioso, é curioso ver a posição de B. A.
Wright em Milton’s “Paradise Lost”, ao afirmar, pensando na potência
argumentativa de Satan: In Hell, Satan had made a virtue of pride and ambition,
hatred and despair, with a confident air that deluded himself and his followers, and
still deludes many readers” (WRIGHT, 1962, p. 127). É do ardiloso enganador cristão
que Wright fala, mas, poderíamos nos perguntar: corresponde essa descrição ao
Satan do Paradise Lost? A pergunta é pertinente, pois, citando no caso o mesmo
Wright, podemos ver como determinadas ousadias miltonianas abriam considerável
espaço para controvérsias. Um exemplo, no outro extremo de Satan, é o Messias de
Milton. Ao partir para a batalha na merkaváh, a carruagem que é ao mesmo tempo
trono e tropo de presença do divino, o Messias alia-se a uma simbologia que pode
gerar desconforto nos mais desavisados. Nesse sentido, comenta Wright:
This version reveals it as a phallic chariot, omnipotent genitalia with which
the Son is ‘girt’. Milton has made the mistake of confusing spiritual vitality
move-creative genius for life, with sheer potency and hence with a
masculine eroto-motive force that is naturally as blindly destructive as
creative. (WRIGHT, 1962, p. 232)
99
Adiantaria lembrar que o Messias, com a Vitória à sua direita e com o arco na
mão, atualiza seus ancestrais míticos, sobretudo Apolo, outra divindade solar que
representa o princípio luminoso, masculino e racional? Provavelmente não, pois para
isso, seria necessário compreender o que emerge do caldeirão puritano e erudito da
mente de Milton, sem que se possa permitir preconceitos e estereótipos. Felizmente,
críticos que são capazes de ir além dos medos de seus tempos e propor uma
visão mais vivificante. É o caso daquele que talvez seja o melhor crítico de Milton,
William Empson, que, em seu Milton’s God, tem um momento particularmente feliz
ao considerar os críticos anti-Satan: when C. S. Lewis blames Satan for always
talking about himself it is fair to remember that is what his readers always want him
to talk about(EMPSON, 1961, p. 65-61
100
torcer”. Utilizando uma definição situacional mais técnica, vemos que Satan oscila
em sua condição de antagonista para aquela de protagonista. Entretanto, ao fazê-lo,
encontra essa posição ocupada por Deus e seu Messias (metáfora da principal
intriga do poema e símbolo da relação entre poetas). Desse modo, sem poder
retornar à sua condição de partida e sem poder deslocar os oponentes, Satan passa
à condição de agonista, perpetuando e distorcendo a relação herói/vilão assim como
a de precursor/sucessor em matéria de influência poética. Ainda citando o lúcido
texto de Carey:
The function of the speech within the poem’s argument is to justify God;
even Satan, we are meant to see, admits god was right. But paradoxically
this admission redeems Satan in the reader’s eyes, so that the response
elicited is, as usual with Satan, ambivalent. (CAREY, 1989, p. 134)
Satan ao admitir o acerto divino, não admite seu próprio erro. O que ele faz é
assumir-se titanicamente como agonista e tardio, oferecendo não a verdade que
subjaz ao erro, mas a sua própria verdade em franca oposição à verdade divina. Ao
transpor isso para o nível poético, vemos que Satan é o avatar do gênio criador que
se confronta com uma natureza divinizada pela prioridade de sua invenção como
representação possível e aprimorada.
Mas espaço para o gênio no Paradise Lost? Em termos da palavra em si,
não. Como seria de se esperar em um poema publicado em 1667 (as Conjectures
on Original Composition de Young, por exemplo, datam de 1759), o gênio no
sentido moderno não está presente. apenas três expressões que contém a raiz
do vocábulo, e são genial Angel (MILTON, 1950, p. 186), genial moisture
(MILTON, 1950, p. 255) e genial Bed(MILTON, 1950, p. 282), as três ligadas ao
sentido de poder gerador em consonância com a idéia latina de genius e ligam-
se, pela cadeia prosódica, a termos recorrentes no poema como Progenie e
Progenitor”.
Por outro lado, uma prodigalidade, como é óbvio, do elemento que serve
de base para o estabelecimento agônico do gênio: Satan, que, em certa medida, é o
personagem principal da Queda proposta pelo poema. Isso, sem dúvida, é passível
de questionamento, pois, os versos iniciais do Paradise Lost são claros a respeito
de qual seria a Queda em questão:
101
Of Mans First Disobedience, and the Fruit
Of that Forbidden Tree, whose mortal tast
Brought Death into the World, and all our woe,
With loss of Eden, till one greater Man
Restore us, and regain the blissful Seat,
Sing Heav'nly Muse […].
(MILTON, 1950, p. 91-2)
Mas, se o argumento do poema aponta para a Queda do Homem, o
primeiro livro do poema é o livro dos caídos, mas não Adam e Eve, e sim os
derrotados da Batalha no Céu. E é essa queda que realmente interessa, e é
justamente Satã como caído que nos interessa também, tal como apontou William
Empson. Em função disso, Milton constrói um poema com uma arquitetura sutil, nem
sempre notada mesmo por bons comentadores. No quinto e no sexto livro, temos a
narração da Batalha no Céu para Adam, levada a cabo por Raphael. Na verdade, o
demônio interior de Milton faz com que uma conversa doutrinária para reforçar a
obediência do primeiro homem deslize para a narrativa formidável daqueles que
ousaram desafiar o Todo-poderoso. Por sinal, a obediência, o submeter-se a Deus é
o ponto de partida para o poema dentro do poema, pois, quando Raphael, no quinto
livro, admoesta Adam nesse sentido, este retruca:
But say,
What meant that caution joind, if ye be found
obedient? can wee want obedience then
To him, or possibly his love desert
Who formd us from the dust, and plac'd us here
Full to the utmost measure of what bliss
Human desires can seek or apprehend?
(MILTON, 1950, p. 210)
A retórica de Adam é um tanto quanto escorregadia, o que equivale dizer
que a retórica aparentemente pia da voz autoral do Paradise Lost também o é. A
pergunta, aparentemente, aponta para a glória de Deus e seu transbordamento
sobre aqueles que o obedecem, mas, no contexto de Queda e Guerra em que
poema se apóia, aponta com mais precisão para o fato de que alguém ousou ir
102
contra a ordem estabelecida. Em seguida, para justificar tão particular curiosidade,
Adam continua a deslizar argumentativamente:
[…] though what thou tellst
Hath past in Heav'n, som doubt within me move,
But more desire to hear, if thou consent,
The full relation, which must needs be strange,
Worthy of Sacred silence to be heard […].
(MILTON, 1950, p. 211)
A palavra-chave da passagem é doubt e, tendo surgido a partir do
discurso de Raphael, aponta para uma transgressão curiosa: a Queda do Homem
começa a partir não da ação de Satã no decorrer do poema, mas com a dúvida
que a própria Batalha, narrada inadvertidamente por um Raphael feito aedo
inesperado. Dessa maneira, uma vez tendo iniciado sua narrativa, Raphael tem de
continuá-la, e com minúcias, o que significa contar como a querela começou. E, ao
fazê-lo, temos espaço para uma inversão curiosa a respeito da culpa e dos culpados
pela confrontação:
Hear all ye Angels, Progenie of Light,
Thrones, Dominations, Princedoms, Vertues, Powers,
Hear my Decree, which unrevok't shall stand.
This day I have begot whom I declare
My onely Son, and on this holy Hill
Him have anointed, whom ye now behold
At my right hand; your Head I him appoint;
And by my Self have sworn to him shall bow
All knees in Heav'n, and shall confess him Lord:
Under his great Vice-gerent Reign abide
United as one individual Soule
For ever happie: him who disobeyes
Mee disobeyes, breaks union, and that day
Cast out from God and blessed vision, falls
Into utter darkness, deep ingulft, his place
Ordaind without redemption, without end.
(MILTON, 1950, p. 212)
103
Embora perfeitamente de acordo com o desenvolvimento hierárquico cristão
da corte celeste causa espanto a reiteração de Deus na necessária submissão e
inegável inferioridade das hostes angélicas diante de seu recém-nascido Filho.
Todavia, algo ainda mais grave é percebido e vai além da sensação de mérito ferido
que poderia afetar Satan, alijado de sua posição de destaque que gozava até então:
trata-se da negação dos anjos como filhos de Deus. Ao afirmar This day I have
begot whom I declare/ My onely Son”, Deus retira de todos os demais a
familiaridade aproximativa em nome de uma divisão hierárquica mais severa. Pode
parecer apenas fortuito, mas, diante da inaudita rebelião levada a cabo por Satan,
ao “animar suas tropas” para a batalha, Deus, no sexto livro, convenientemente volta
a constituir a grande família celeste:
Goe Michael of Celestial Armies Prince,
And thou in Military prowess next
Gabriel, lead forth to Battel these my Sons
Invincible, lead forth my armed Saints
By Thousands and by Millions rang'd for fight;
Equal in number to that Godless crew
Rebellious, them with Fire and hostile Arms
Fearless assault, and to the brow of Heav'n
Pursuing drive them out from God and bliss,
Into thir place of punishment, the Gulf
Of Tartarus, which ready opens wide
His fiery Chaos to receave thir fall.
(MILTON, 1950, p. 222-3)
A imprecação do Todo-poderoso a Gabriel, aquele cujo nome significa
justamente “o poder de Deus”, é explícita: lead forth to Battel these my Sons”. E
não se trata de um ato falho isolado, pois, na proclamação da natividade celestial do
Messias, o chamado também apontava para algo curioso: “Hear all ye Angels,
Progenie of Light,/ Thrones, Dominations, Princedoms, Vertues, Powers”. Ao
interpelar Tronos, Dominações, Principados, Virtudes e Poderes, Deus deixa de fora
as duas hierarquias angelicais mais altas (Serafins e Querubins), assim como a
segunda mais baixa (Arcanjos). Essa organização hierárquica estabelecida, em
104
termos de cânone católico, a partir de Tomás de Aquino, deveu-se sobretudo à
Hierarquia celeste, que Aquino provavelmente creditava a Dionísio Aeropagita, um
dos poucos em Atenas a serem convertidos por Paulo em “Atos dos apóstolos”
7
. O
que Tomás de Aquino não sabia e de que Milton, por outro lado, certamente estava
ciente, é de que a Hierarquia fora escrita cinco séculos após a presumida época da
conversão de Dionísio, sendo seu autor, portanto, um pseudo-Dionísio, de
orientação neoplatônica, o que confere à ordem hierárquica dos anjos não apenas
ares de Proclus em função de suas tríades (em ordem decrescente, teríamos:
Serafins, Querubins e Tronos; Dominações, Virtudes e Poderes; Principados,
Arcanjos e Anjos), mas uma orientação daimônica, ou, como se interpretava na
época de Milton, demoníaca. Retomando a passagem do nascimento e
apresentação do Messias, a convocação divina não atingiria Satan de maneira
alguma, pois sua condição, no Paradise Lost, é a de arcanjo. Mesmo apontado
para tradições que o apresentam como Serafim ou Querubim, ainda neste caso ele
não faria parte da convocação. A noção hierárquica aqui é muito importante, pois,
além de apontar para uma brecha em termos de razão e direito para a rebelião de
Satan, também reitera a natureza agônica do anjo caído, ao propor como agente da
revolta um anjo de menor hierarquia. Porém, Milton não era católico (embora
partilhasse da visão de hierarquia angélica), e isso abria espaço para tornar mais
maleável a posição de cada um dos envolvidos. Assim, quando Raphael descreve
Satan e o seu sentimento de inveja em relação ao Messias, ele o faz nos seguintes
termos:
[…] but not so wak'd
Satan, so call him now, his former name
Is heard no more Heav'n; he of the first,
If not the first Arch-Angel, great in Power,
In favour and praeeminence, yet fraught
With envie against the Son of God, that day
Honourd by his great Father, and proclaimd
Messiah King anointed, could not beare
Through pride that sight, and thought himself impaird.
7
Para uma descrição breve e de agradável leitura do tema, merece ser indicada a obra de Harold
Bloom que serviu de base para a exposição a respeito da hierarquia angélica aqui apresentada:
BLOOM, H. Presságios do milênio: anjos, sonhos e imortalidade. Trad. Marcos Santarrita. Rio de
Janeiro: Objetiva, 1996.
105
Deep malice thence conceiving & disdain,
Soon as midnight brought on the duskie houre
Friendliest to sleep and silence, he resolv'd
With all his Legions to dislodge, and leave
Unworshipt, unobey'd the Throne supream
Contemptuous […].
(MILTON, 1950, p. 214)
O que aponta para um agonismo vitalista do arcanjo, capaz de colocá-lo em
posição de destaque, de natureza intrínseca. E a própria natureza dos envolvidos na
Batalha descrita por Raphael é sintomática quando é descrita a reação do Messias
frente à rebelião:
Mightie Father, thou thy foes
Justly hast in derision, and secure
Laugh'st at thir vain designes and tumult52482 0 Td(t)Tj2.76528 0 Td(h)Tj5.dislhh u
106
To know ye right, or if ye know your selves
Natives and Sons of Heav'n possest before
By none, and if not equal all, yet free,
Equally free; for Orders and Degrees
Jarr not with liberty, but well consist.
Who can in reason then or right assume
Monarchie over such as live by right
His equals, if in power and splendor less,
In freedome equal? or can introduce
Law and Edict on us, who without law
Erre not, much less for this to be our Lord,
And look for adoration to th' abuse
Of those Imperial Titles which assert
Our being ordain'd to govern, not to serve?
(MILTON, 1950, p. 217-8)
É impossível não se entusiasmar pela eloqüência de Satan, e seu brado por
justiça (ao menos de acordo com seus parâmetros) funda-se em um princípio
democrático: “if not equal all, yet free,/ Equally free”. Isso se torna ainda mais
relevante se considerarmos a exclusão das hostes angélicas como bene ha-elohim,
como filhos do Senhor, e, sobretudo, a ausência dos Arcanjos na convocação de
Deus. Essa ausência parece ter tocado Milton, a ponto de este dedicar considerável
espaço para o combate verbal entre Satan e Abdiel no livro quinto. Abdiel, como
serafim, representa ao mesmo tempo uma classe de anjos não expressa na
convocação e a mais alta hierarquia celeste possível. Deste modo, seu
posicionamento espontâneo ganha muita força. Todavia, ele não é páreo para
Satan, e este confronta o catecismo carola do serafim com uma auto-afirmação
titânica:
That we were formd then saist thou? & the work
Of secondarie hands, by task transferd
From Father to his Son? strange point and new!
Doctrin which we would know whence learnt: who saw
When this creation was? rememberst thou
Thy making, while the Maker gave thee being?
We know no time when we were not as now;
Know none before us, self-begot, self-rais'd
By our own quick'ning power, when fatal course
107
Had circl'd his full Orbe, the birth mature
Of this our native Heav'n, Ethereal Sons.
Our puissance is our own, our own rig.73286 0 Td(n)Tj5.41033 Td(n)Tj5.41033 Tj4.68896 0 Td(.)Tj2.5.52482 0 Td(o)Tj5.2.52482 0 Td(o)Tj5.2.52482 0 Td(o)Tj5.2.524826 0 Td( )Tj2.52482 0 Túúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúú1 0 Td(u)Tj5.1696.73286 0 Td(n)Tj5.16987 0 Td(,)Tj2.76528 0 Td( )T(i)Tj2.164.33401 0 Td(u)Tj5Td( )Tj2.52482 0 0 Td(.)Tj2.52482 0 Td( )Tj-179.5 0 Td( )Tj2.64505 0 Td(t)Tj2.5248t 0 Td(t)Tj2.52480 Td(s)Tj4.68896 0 Td(.)Tj2.524820 Td( )Tj2.52482 Td( )Tj2.52482 0 03 -16.2 Td(O)Tj7u12597 0 Td( )Tj2.64505nosa
108
What matter where, if I be still the same,
And what I should be, all but less then hee
Whom Thunder hath made greater? Here at least
We shall be free; th' Almighty hath not built
Here for his envy, will not drive us hence:
Here we may reign secure, and in my choyce
To reign is worth ambition though in Hell:
Better to reign in Hell, then serve in Heav'n.
(MILTON, 1950, p. 98-9)
Ao preferir reinar no Inferno a ser lacaio no Céu, Satã cria o Gênio Poético,
e a invenção capaz de fazer do Céu um Inferno e do Inferno um Céu certamente é
das mais poderosas. Ao afirmar-se contra Deus, o supremo e primordial precursor,
ele lança o modelo que funda o gênio orgânico que desafia a Natureza como criação
tanto nos primórdios do romantismo inglês quanto no Sturm und Drang,
desenvolvendo-se nos romantismos subseqüentes e atingindo outras literaturas
pelas trocas de influências. Quanto a esse papel de Satan, Harold Bloom vai além e
propõe, ousadamente:
Vamos atentar, agora, o experimento (aparentemente frívolo) de ler o
Paraíso Perdido como uma alegoria do dilema do poeta moderno, em sua
força máxima. Satan é o poeta moderno, enquanto que Deus é seu
precursor morto; uma presença perturbadoramente poderosao seu poeta
ancestral. Adão é o leitor moderno, potencialmente forte, mas em seu
momento mais fraco, à procura, ainda, de uma voz. […]
Por que chamar Satan de poeta moderno? Porque projeta, em escala
gigantesca, uma preocupação no cerne de Milton e Pope, uma dor que
purifica pela alienação em Collins e Gray, em Smart e Cowper, e que
virá de todo claramente à tona em Wordsworth, que é o Poeta Moderno
exemplar, o Poeta propriamente dito. A encarnação da Personalidade
Poética em Satan começa onde começa, verdadeiramente, a estória de
Milton, com a Encarnação do Filho de Deus e a rejeição de Satan daquela
encarnação. A poesia moderna começa com duas declarações de Satan:
We know no time when we were not as now”, (“não sei de tempo em que
não fora como agora sou”) To be weak is miserable, doing or suffering
(“regendo ou regido, ser fraco é uma miséria”). (BLOOM, 1991a, p. 50-1)
109
Satan não é o modelo do poeta genial; ele é o primeiro poeta, pai de si
mesmo que plasma seus filhos para repetirem, ad infinitum e mesmo contra ele, sua
rebelião. No espaço temporal em que se situa o Paradise Lost, anunciando o nio
como um novo e demoníaco messias, põe por terra a ars em nome do ingenium,
sabendo que, ao fazer isso, em função da deriva morfológica e semântica, celebra o
satanismo poético: “com a paixão pós-iluminista pelo Sublime e pelo Gênio viria
também a angústia, pois a arte ficava, agora, além do trabalho duro” (BLOOM,
1991a, p. 59). Como é possível que Milton tenha chegado tão antes, não com quase
um século em relação a Young e seus contemporâneos, mas antes de todos nós,
até os dias de hoje? A resposta é óbvia, mas vale dar novamente a palavra a Bloom:
“o gênio é forte, sua época é fraca. E sua força exaure, não a si mesmo, mas aos
que vêm na sua esteira. Ele os inunda e, em troca disso […] os seguidores deslêem
o benfeitor” (BLOOM, 1991a, p. 85)
Desleitura, aqui, é confronto agônico com o precursor, precursor este que,
após Milton, tornou-se o próprio Milton e suas emanações, suas máscaras e
epígonos que fazem dele um universo. A um poeta que se pretenda gênio, que se
pretenda forte, cabe tomar não o Céu de assalto, mas o Inferno. Bloom, quando fala
de Milton, está certo em quase tudo, mas se equivoca em um ponto: a declaração
que funda a poesia moderna é: “Better to reign in Hell, then serve in Heav'n”.
Que isso seja eminentemente uma questão da esfera genial, Bloom
também o sabia, ao afirmar, em Cabala e crítica: o problema da existência ou não
de um gênio original em qualquer esfera intelectual, depois de uma certa data […],
se situa sempre nos princípios aparentemente opostos de continuidade e
descontinuidade” (BLOOM, 1991b, p. 48). Como continuar um processo iniciado pelo
precursor, ainda que de agônica rebeldia, sem que com isso se faça dele uma
presença asfixiante? Atualizando a tradição de rupturas de Octavio Paz, como
continuar a descontinuidade? Percebendo a diabólica genialidade do processo,
William Blake nos dá a resposta.
O Milton de Satan
Através dos anos, o problema fundamental colocado pelo Satan de Milton
gerou ambivalências também entre escritores que sentiram sua influência, contudo,
110
estes, mais do que os críticos (talvez por estarem no cerne confesso da disputa pela
prioridade poética), souberam aproveitar, em muitos casos, as portas que a grande
criação miltoniana abria. Passou-se assim, por um processo de demonização
positiva do Satan do Paradise Lost, em uma tendência que mostra muito em termos
de influência poética e desenvolvimento do gênio demoníaco, e, conforme lembra
com correção M. H. Abrams em um estudo consagrado a respeito do Romantismo,
The Mirror and the Lamp, this process reached its culmination in William Blake
(ABRAMS, 1953, p. 251). Blake, um dos mais originais poetas de todos os tempos,
capaz de uma inventividade o radical que muitas vezes passou por loucura, era,
no entanto um artista precoce, tanto na poesia quanto na pintura, e de raro gênio.
Um vitalismo heróico, aliado a um profundo senso de composição, fizeram de sua
obra o palco de novas e particulares Guerras no Céu. Entretanto, após o Paradise
Lost, para um escritor que tentasse impor sua voz poética, havia um inferno
povoado demais, e, o que era mais grave, com a presença esmagadora de um
Satan que agora tinha outro nome: Milton. Assim, para Blake, o ponto de partida da
reflexão e correção inventiva pela poesia não se situava mais na declaração pouco
prudente de Deus ao entronizar o Messias: ele agora situava-se na Queda
arquetípica do poeta como gênio e como demônio, situava-se na derrota de Satan.
Sempre sensível a essas questões, bem como à sua interferência no vitalismo de
Blake, Abrams destaca: In Blake’s reading, the defeat of Satan is construed as a
lamentable and pestilence-breeding victory of repressive reason over man’s passion
and desire, that ‘Energy’ which ‘is Eternal Delight’(ABRAMS, 1953,M D
111
of human life seen in the framework of fall and redemption outlined by the
poets. (FRYE, 1969, p. 323)
Se considerarmos Golgonooza, a cidade de Los, que impõe uma forma
definida ao universo (o que aponta para uma atitude eminentemente poética como
forma, invenção e invenção da forma), como o espaço do poeta, teríamos, a partir
da evolução proposta por Frye, uma perspectiva capaz de pensar o jogo de
influências estabelecido a partir da obra de Milton em um movimento de expansão
criativa do Sujeito Poético não apenas em termos de presença e ausência, mas em
uma postura que pudesse pensar as relações entre o poeta tardio e seus
precursores como uma verdadeira dinâmca. The fight between Devils and Angels is
a fight between the two opposed principles of self-development and Selfhood
(FRYE, 1969, p. 71). A identidade poética se torna, ela também, dinâmica, sobretudo
se a pensarmos a partir do nio e de seu paralelo satânico. Construindo-se no
confronto nunca resolvido o poeta genial define seu ser pelo estar, não no
sentido do apagamento ou da volatividade em termos éticos, mas da construção de
um sujeito em constante devir. Um poeta poético, ou melhor, poiético, se o
pleonasmo puder ser deixado momentaneamente de lado em prol dessa dinâmica.
Dessa forma, o Adversário (tanto o Satan do Paradise Lost quanto o tropo
poético que Milton representa) surge, na obra, em uma ambigüidade radical capaz
de promover a dinâmica: para seus sucessores, ele é a divindade tutelar. Assim, não
causa espanto que, em uma obra ambiciosa, o épico Milton: a Poem in Two
Books, Blake tenha esboçado uma figura central tão ambígua quanto o Satan de
Milton ao mitologizar o próprio Milton. Unindo em si aspectos demoníacos e
messiânicos, Milton volta à Terra cem anos após sua morte, sob o signo do princípio
de criação e da imaginação que é representado, na obra de Blake, por Los,
confronta-se com sucesso tanto com Satã (ambigüizado ao extremo em seu papel)
quanto com Deus, representado em Urizen, a razão castradora. Ao aproximar
também as identidades poéticas de Milton e a sua própria (em Milton, esse
movimento transubjetivo é importante, pois o destino e o percurso do Poetao
112
gênio demoníaco em Blake, sobretudo por introjetar o precursor criativamente.
Contudo, embora o tema do gênio fosse caro a Blake, surgindo com destaque ora
quantitativo, ora qualitativo em obras como All Religions are One ou Jerusalem,
por exemplo, além de inúmeras referências esparsas pela produção blakeana, Milton
é um texto no qual as referências o extremamente reduzidas, com duas
referências a “Genii” e apenas uma a “Genius”.
No caso das duas primeiras, a forma latinizada aponta para a idéia de
espíritos da natureza. No caso da primeira ocorrência, não fosse por Los, a
imaginação criativa, clamar: Ye Genii of the Mills! the Sun is on high, / Your labours
call you(BLAKE, 1988, p. 383), não teríamos muito além das aproximações entre
genius, ingenium e daímon para buscar o processo recorrente do estabelecimento
genial. Na segunda ocorrência de “Genii”, temos algo mais concreto:
And all the Living Creatures of the Four Elements, wail'd
With bitter wailing: these in the aggregate are named Satan
And Rahab: they know not of Regeneration, but only of Generation:
The Fairies, Nymphs, Gnomes & Genii of the Four Elements
Unforgiving & unalterable: these cannot be Regenerated
But must be Created, for they know only of Generation
These are the Gods of the Kingdoms of the Earth: in contrarious
And cruel opposition: Element against Element […].
(BLAKE, 1988, p. 416)
A pulsão criativa, aliada ao satanismo agônico garantem alguma proximidade
com gênio demoníaco, mas impressionam, ainda, as poucas referências ao tema.
Na verdade, mais do que o princípio agônico, Geniiaponta para o poder gerador,
sobretudo se lembrarmos que, no poema, as únicas palavras que compartilham a
raiz lingüística do termo são (sem contar a distinção entre maiúsculas e minúsculas)
generation”, generations”, generate”, generated”, regeneratione regenerated”,
além da única ocorrência de “genius”. Essa última ocorrência, devemos concordar, é
significativa, pois faz menção ao Poeta como messias Milton/Blake:
The Bard replied: “I am Inspired! I know it is TruthA6 0 Td(l)Tj2.52483 0 Td(t)Tj3.125.12599 0 Td(c)T5.65082 0 13174 0 Td(s)Tj5.650j5.16987 0B36(P)Tj7.574568 0 Td(d)Tj6.25197 0 Td(e)Tj6.251(p)Tj5.2901 0 Td(l)Tj2.0439 0 Td(i)T7 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td( )Tj3.24622 5.6987 0 Td(o)Tj5.16987 0 Td(w)Tj6.973(h)Tj5.2901 0 T4505 0 Td(T)Tj5.65079 0 Td(r)Tj 0 Td(s)Tj2.4046 0 Td(c)Tj5.77107 0 Td(t)Tj2.64505 Td(e)Tj6210 Td( )T505 0 Td(k)Tj4.68896 0 T98122 0 Td(n)Tj6.25197 0 Td(i)Tj2.4046 0 Td622 0 Td( )Tj-338.686.25197 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(v)TjTr
113
“To whom be Glory & Power & Dominion Evermore. Amen
(BLAKE, 1988, p. 390)
Na única referência ao gênio poético, embora não tenhamos a referência
direta ao Diabo, surge uma radical transgressão demoníaca ao se aproximar o gênio
a um princípio de divindade humano em substituição ao Deus cristão, marcada pela
injunção Glory & Power & Dominion Evermore”. Mas esse poema não é a melhor
via de entrada para o gênio demoníaco em Blake (o que equivale dizer “gênio
miltoniano” em Blake). Apesar de portar no título e no tema referências diretas ao
precursor, não temos, necessariamente, a melhor perspectiva de diálogo. Pensando
justamente nas sutilezas das relações de influência, Harold Bloom, em Um mapa da
desleitura, lembra-nos que:
A influência poética, no sentido que dou ao termo, não tem quase
nada a ver com as semelhanças verbais entre um poeta e outro. Hardy, na
superfície, dificilmente lembra Shelley, seu precursor original; por outro
lado Browning, que lembra Shelley ainda menos, era um efebo dele ainda
mais consumado que Hardy. A mesma observação pode ser feita sobre
Swinburne e Yeats em relação a Shelley. O que Blake chamava de Forma
Espiritual, ao mesmo tempo o eu poético primitivo e o Verdadeiro Sujeito, é
o que o efebo está tão perigosamente grato ao precursor por possuir. Os
poetas não precisam se parecer com seus pais, e a angústia da influência
na maioria das vezes é bem distinta da angústia de estilo. (BLOOM, 1995b,
p. 31)
E, poderíamos acrescentar, não é nas referências evidentes que esse pai
Primevo surge com mais força, mas naquelas que parecem, à primeira vista, menos
significantes. Normalmente tende-se a achar que o grande confronto estético entre
Blake e Milton se daria no poema que porta o nome do precursor, até mesmo devido
ao projeto inicial de Blake de um poema composto de doze livros. Mas isso seria a
reiteração do precursor na forma poética, e Blake poderia povoar o universo com
seus novos e vigorosos mitos sem, ao fim, chegar à força necessária para a vitória
possível e parcial em termos de influência.
Mas Blake era, sem dúvida, um poeta forte. Por isso, mais de dez anos
antes de Milton, produziu um verdadeiro desafio à divindade tutelar que o
assombrava: The Marriage of Heaven and Hell, cuja gravação, iniciada em 1790,
114
adquire forma final, com a anexação de A Song of Libertyencerrando o livro, em
1793
8
. Com uma particular estrutura, composta de “The Argument”, “The voice of the
Devil”, A Memorable Fancy”, Proverbs of Hell”, mais quatro seções A Memorable
Fancye, por fim, A Song of Liberty”, temos a opção não pelo número de totalidade
doze, mas para o significativo e neoplatônico e portanto, daimônico/demoníaco
nove, representando a tríade de tríades (a intenção de Blake a esse respeito é
reiterada pelo fato de o poeta anexar em 1792 a última seção do livro). Nesse livro,
Blake se apropria do princípio de ambigüidade do Satan de Milton para criar uma
relação transubjetiva capaz de alterar a prioridade poética. Trata-se de algo próximo
à razão revisionária bloomiana apophrades, mas não é. Não temos a abertura
titânica frente ao precursor, mas uma mútua criação de identidade capaz de
proporcionar, em seguida, uma mútua criação do valor poético.
De qualquer forma, o texto é ardiloso, e pode nos apontar uma visão
tradicional do gênio. Nos Proverbs of Hell, encontramos uma visão do gênio que
reitera o caráter elevado por meio da metáfora espacial e animal direta: When thou
seest an eagle, thou seest a portion of Genius; lift up thy head!(BLAKE, 1958, p.
252). Mas, na mesma seção, temos um indício da ambigüidade identitária ao se
propor a seguinte idéia: Improvement makes straight roads; but the crooked roads
without improvement are the roads of Genius(BLAKE, 1958, p. 252). Além de situar
o gênio como princípio contrário ao normativo e utilitário, detacando seu caráter
desafiador e indômito, Blake o faz oscilar vertiginosamente na estrutura espacial
(“eagle”, o elevado, em oposição a roads”, o chão), espelhando a ambigüidade da
própria oscilação do gênio entre divino e demoníaco. Evidentemente, conforme foi
dito, a aspiração ao divino, em termos de processo, é também demoníaca, e, na
visão orgânica de The Marriage of Heaven and Hell, os Proverbs são a
celebração infernal do gênio. E antes dos Proverbs”, na primeira seção A
Memorable Fancy”, encontramos:
8
Seria importante, relembrar aqui que tanto Milton quanto The Marriage of Heaven and Hell são
livros iluminados”, ou seja, sua composição mescla o texto verbal e o visual. Efetivamente, uma
análise de ambos deve levar em conta essa junção, mesmo que isso desloque ambas as obras da
esfera da Literatura. Na discussão aqui levada a cabo, todavia, sendo o foco o gênio demoníaco,
privilegiou-se o texto verbal, não sem algum risco, é inevitável concordar. Mas todo trabalho
intelectual incorre em riscos semelhantes em seus processos de triagem. Como paliativo, segue em
anexo, após a bibliografia, as reproduções dos dois livros em sua totalidade orgânica.
115
As I was walking among the fires of Hell, delighted with the
enjoyments of Genius, wich to Angels look like torment and insanity, I
collected some of their Proverbs; thinking that as the sayings used in a
nation mark its character, so the Proverbs of Hell show the nature of
Infernal wisdom better than any description of buildings or garments.
(BLAKE, 1958, p. 249)
Apresentar os Proverbs como modelaridade ética do Inferno aponta para
uma construção identitária discursiva que já é ousada, mas Blake vai além ao
reiterar que é a percepção angélica que aproxima o gênio da loucura, o que indica
uma leitura na qual o demôniaco é criado pelo divino em função da desleitura
daquele por este. , claro, muito de paródia no processo, mas essa paralelização
criativa da poesia de Blake e de seu precursor está ligada à própria metodologia
blakeana, em um mecanismo defensivo que distorce as prioridades e inverte causa
e feito em termos de influência. Em Poesia e repressão: o revisionismo de Blake
a Stevens, último livro da tetralogia da influência de Bloom, o crítico nos lembra que
“tal qual Nietzsche e todo outro autor revisionário, Blake sempre desejou manter tão
afastadas quanto possível a origem e o fim, a fonte e o propósito” (BLOOM, 1994, p.
53), para, a partir de sua leitura do famoso poema The Tyger”, concluir: “[o fato] é
que Blake, mais até do que Nietzsche, é um mestre da paródia criativa, e está
parodiando um tipo de grandiosidade que ele ama e admira, mas à qual
veementemente não deseja estar ligado” (BLOOM, 1994, p. 55).
A última afirmação de Bloom soa problemática, pois não se pode afirmar
categoricamente que Blake não desejava estar ligado a essa grandiosidade que, de
uma forma ou de outra, serve de base à sua mitologia pessoal. Temos, com Blake,
uma reinterpretação da tradição, e não sua negação; contudo essa reinterpretação
pode ser ainda mais radical em termos de afastamento do modelo original.
Encerrando os “Proverbs of Hell”, a seguinte passagem:
The ancient Poets animated all sensible objects with Gods or
Geniuses, calling them by the names and adorning them with the
properties of woods, rivers, mountains, lakes, cities, nations, and whatever
their enlarged and numerous senses could perceive.
And particularly they studied the Genius of each city and country,
placing it under its Mental Deity;
116
Till a System was formed, which some took advantage of, and
enslav’d the vulgar by attempting to realise or abstract the Mental Deities
from their objects
thus began Priesthood;
Choosing forms of worship from poetic tales.
And at length they pronounc’d that the Gods had order’d such things.
Thus men forgot that All Deities reside in the Human breast. (BLAKE,
1958, p. 253)
A oposição fundamental, aqui, se entre Gods”, por um lado, e Genius e
Mental Deities”, por outro. Ao optar pela forma Geniusesno lugar da utilizada
(em Milton, por exemplo) Genii”, com seus ecos latinizantes, Blake aponta
realmente para o nio poético, tornado demoníaco pela oposição ao divino, como
seria de se esperar. O inesperado é derivar desse demonismo genial a
internalização do divino, ainda que transgressor, pela forma Mental Deities”, que,
intensificando o processo, deixa a esfera da mente (que poderia apontar para a
razão castradora) e realiza-se plenamente no coração humano, sede do sentimento
intuitivo e imaginativo – genial, portanto. Colocar o gênio poético como um substituto
(com vantagens) de Deus é recorrente em Blake, sobretudo quando lembramos que
a idéia de Deus, em sua obra, remete-nos ao cerceador Urizen. Em outra
Memorable Fancy”, Blake revisita o Antigo Testamento:
Then Ezekiel said. The philosophy of the east taught the first principles of
human perception some nations held one principle for the origin & some
another, we of Israel taught that the Poetic Genius (as you now call it) was
the first principle and all the others merely derivative […] (BLAKE, 1958, p.
253)
Não se trata de apenas retomar a dupla articulação do poeta como profeta,
como a menção a um outro precursor de Blake, embora não tão presente, no caso,
Ezequiel. Na verdade, sem nenhuma menção à escatologia, temos o processo
contrário ao revisitarmos as origens, o que insinua, antes, o profeta como poeta. E
sendo a voz da Musa o próprio nio, temos a colocação do mesmo no princípio
gerador de todas as coisas, como o logos neotestamentário que o discurso poético
atualiza.
117
Essa mobilidade entre poesia e profecia, assim como entre demoníaco e
divino, indica com precisão a maneira pela qual Blake dinamiza a identidade
transubjetivamente. Em mais uma “Memorable Fancy”, propõe:
Without Contraries is no progression. Attraction and Repulsion,
Reason and Energy, Love and Hate, are necessary to Human existence.
From these contraries spring what the religious call Good and Evil.
Good is the passive that obeys Reason. Evil is the active springing from
Energy.
Good is Heaven. Evil is Hell. (BLAKE, 1958, p. 248)
A afirmação da necessidade dos contrários mostra como Blake não caía
jamais na inversão simplista de substituição de uma divindade por outra. Apesar de
disfórico, Urizen, a razão, é o necessário quanto Luvah, a emoção; Assim como
em sua relação com Milton, é a tensão nunca resolvida que permite a permanência
do jogo poético, sua progressão. Não que com isso a metodologia blakeana perca
seu agonismo essencial, afinal, embora seja levado em consideração, o princípio
racional, masculino, solar é encarado em termos críticos, o que equivale a uma
crítica do precursor por parte de Blake. Ou, conforme colocado de maneira mais
adequada por Harold Bloom em Blake’s Apocalypse:
The Miltonic division between heat and light, the casting out of desire by
reason, has in Blake’s reading of history a prime responsibility for the
natural religion of eighteenth-century culture, its rejection of imagination and
embrace of abstract reasoning in the religious sphere.
Yet Blake has progressed beyond this kind of criticism of Milton, which
in any case had been developed as far as it could go in The Marriage of
Heaven and Hell. (BLOOM, 1963, p. 308)
O fato de essa discussão basear-se justamente em The Marriage of Heaven
and Hell é sintomático, pois a obra mostra o caráter de interação de contrários
desde seu título. Mas Blake não apenas tenta emular Emanuel Swedenborg ao fazê-
lo, pois, aqui, vai-se além do princípio analógico, e chega-se a uma trasposição que
atinge o nível do sujeito. Em The Voice of Devil”, essa transubjetivação atinge seu
extremo:
118
Those who restrain Desire, do so because theirs is weak enough to
be restrained; and the restrainer or Reason usurps its place and governs
the unwilling.
And being restrained, it by degrees becomes passive, till it is only
the shadow of Desire.
The history of this is written in Paradise Lost. And the Governor or
Reason is call'd Messiah.
And the original Archangel or possessor of the command of the
Heavenly Host, is cal’d the Devil or Satan, and his children are call'd Sin
and Death.
But in the Book of Job, Milton’s Messiah is call'd Satan. (BLAKE,
1958, p. 248-9)
O repúdio à fraqueza, como a citação direta do poema de Milton indica, é o
eco ao titanismo de Satan. Mas o que chama atenção é a possibilidade de troca de
identidade entre o Adversário e o Messias. Podemos pensar, aqui, que essa troca
justifica-se nas particularidades do Paradise Lost e do “Livro de Jó”, mas, estando
ambos plasmados pela demoníaca voz do poema blakeano, temos uma instância
outra na qual os discursos antagônicos tornam-se parte do novo discurso, anulando,
assim, sua distinção inicial. O resultado é a trasposição subjetiva entre Milton e o
autor do livro blico, bem como a transposição poética entre o Paradise Lost e o
“Livro de Jó”, e ainda a transposição genial entre Satan e , positivados, e o
Messias e Satan, negativizados. É fundamental o perder de vista o fato e ser
justamente Satan o ponto de articulação a participar das duas instâncias, reforçando
a natureza demoníaca do método de Blake e antecipando a última transposição: a
de Blake e The Marriage of Heaven and Hell e seus precursores em vias de serem
deslidos.
Isso, conforme já vimos, coloca o gênio poético no centro de todas as coisas,
e permite até mesmo a alteração nos parâmetros valorativos. Ao recuperar o desejo
e a energia como constituintes da postura genial, Blake inverte o princípio cristão da
humildade e na diabólica exceção do gênio a manifestação do divino na Terra. A
última “Memorable Fancy” é ilustrativa quanto a isso:
Once I saw a Devil in a flame of fire, who arose before an Angel
that sat on a cloud, and the Devil utter’d these words:
119
‘The worship of God is: Honouring his gifts in other men, each
according to his genius, and loving the greatest men best: those who envy
or calumniate great men hate God; for there is no other God. (MILTON,
1958, p. 259)
A caracterização dos interlocutores (um anjo e um demônio) remete-nos ao
casamento entre Céu e Inferno, à consubstanciação dos contrários. Mas o fato de o
gênio ser defendido demoniacamente pela argumentação direta exige uma
interpretação não apenas discursiva desse gênio, mas sobretudo literária. Assim
como da voz demoníaca que atravessa o poema de Blake. Que voz é essa, em
suma? Bloom, sempre ousado, o hesita em afirmar: “The Devil is the artist William
Blake, at work engraving the Marriage, and the corroding fires refer metaphorically
both to his engraving technique and the satiric function of the Marriage” (BLOOM,
1963, p. 83). E, ao se assumir como gênio, Blake se assume como demônio, e, em
função disso, por um lado, também se assume como Satan, e como Milton. Por
outro lado, sabendo bem das conseqüências da transposição do sujeito, termina por
se assumir também como messias (mesmo que poético) e, por fim como deus. O
que não causa espanto e sequer aponta para a contradição. Afinal, no fim, o
encontro é com John Milton, ao mesmo tempo demônio e divindade tutelar do nio
inglês. No lugar da contradição, os contrários: atração e repulsão, razão e energia,
ódio e amor; e também Céu e Inferno, Bem e Mal, Messias e Satan, Deus e o Diabo.
Um organismo cósmico, reflexo da organicidade fundamental do gênio.
Mas o devemos nos iludir quanto ao demonismo desse gênio. Afinal, Blake
foi muito eloqüente ao tecer o comentário definitivo da identidade poética genial, ao
pensar a respeito de um fato que mesmo os críticos cristãos de Milton não podem
negar: a inspiração muito maior do poeta para pintar as aquarelas infernais, em
detrimento das celestes. Blake que, se quisermos acreditar em seu testemunho,
além de profetas, fantasmas, anjos e demônios também conversava com o espírito
de Milton, resolve a questão de modo simples e objetivo, através de uma nota que
encerra The Voice of Devil”: The reason Milton wrote in fetters when he wrote of
Angels and God, and at liberty when of Devils and Hell, is because he was a true
Poet, and of the Devils party without knowing it” (BLAKE, 1958, p. 249).
120
IN NOMINE FILII:
Deutschland
121
DOKTOR MANN: EINE TRAGÖDIE
Genie ist eine in der Krankheit tief
erfahrene, aus ihr schöpfende und
durch sie schöpferische Form der
Lebenskraft.
Thomas Mann, Doktor Faustus
Prólogo no Inferno
O estudo do conceito de nio na literatura alemã é uma excelente
oportunidade para que se verifique como a identificação com o paradigma
demoníaco é determinante para a construção da idéia de gênio e genialidade. Em
um primeiro momento, porque é a partir do pré-romantismo alemão que o conceito
começa a ganhar corpo na forma definitiva como é abordada neste trabalho, em um
segundo, porém não menos importante, porque, durante o período do final da
Aufklärung, do Sturm und Drang e do próprio Romantismo como um todo, a figura do
gênio esteve sempre em destaque como uma das principais características da
literatura pós-iluminista. Sobre este aspecto, Anatol Rosenfeld afirma com correção:
O que talvez mais caracteriza o movimento [Sturm und Drang] é o
culto do ‘‘gênio original’’, particularmente estimulado por dois ingleses:
Edward Young (Conjectures on Original Composition, 1759) e Robert Wood
(Essay on The Original Genius and Writings of Homer, 1769). De tal forma o
movimento ressaltava o gênio, como arquétipo do grande homem,
particularmente do poeta dotado de força criadora, que se chegou a chamar
essa fase da literatura aledo ‘‘período dos gênios’’ (ROSENFELD, 1992,
p.13)
Tal passagem faz parte da introdução que Anatol Rosenfeld faz para a edição
brasileira dos Autores pré-românticos alemães; em seguida a tal passagem,
Rosenfeld faz uma tentativa de sintetizar e explicar o próprio conceito de gênio:
O conceito [de gênio] reúne todas as idéias e aspirações do movimento: a
revolta contra as regras tradicionais e contra todas as autoridades; a
exaltação de Shakespeare, como criador supostamente ‘‘inconsciente’’ e
122
‘‘primitivo’’; a glorificação do elementar e da ‘‘verdade’’ enquanto expressão
imediata, espontânea e o raciocinada e filtrada da alma. O gênio é bardo
e vidente, porta-voz de esferas mais altas; mensageiro divino, herói
colossal, mediador do infinito no ‘‘medium’’ da finitude. o imita a
divindade e a natureza; é, antes, criador como Deus e a natureza. Ligado às
fontes puras do povo e da nação, despreza os nones eruditos que são
muletas para os inválidos. Obedecendo à inspiração subjetiva e ao impulso
expressivo, produz obras originais, talvez imperfeitas no que se refere à
forma exterior, mas dotadas de unidade íntima, de ‘‘forma interna’’ e de
força característica, como tais bem mais importantes do que o ideal da
beleza [...]. A originalidade conceito sem grande importância na época do
classicismo torna-se critério do valor da obra-de-arte. (1992, p. 13-14)
Com suas habituais sensibilidade e segurança, Anatol Rosenfeld traça um
belo esboço do que pudesse ter sido o conceito de gênio na literatura alemã da
época referente ao tema. Entretanto, um detalhe de suma importância foi deixado de
fora, detalhe este tão importante que concentra todas as idéias expostas por
Rosenfeld e as transcende: trata-se da assombrosa identificação do nio com a
figura de Satã, o anjo caído. No trecho citado anteriormente, esta idéia é quase
tocada quando Rosenfeld afirma que o gênio ‘‘não imita a divindade e a natureza; é,
antes, criador como Deus e a natureza’’. Este confronto, entre blasfemo e sublime,
com a divindade, a tônica atemporal do que seja o conceito de gênio não em
seu surgimento explícito no Sturm und Drang, mas podendo ser estendido a Píndaro
roubando imortalidade pela força de seus versos ou a Joyce, recriando imortalidade
em seu Finnegans Wake. A idéia de uma obra eventualmente ‘‘imperfeita’’, ainda
que externamente, é impensável na arte grega da antigüidade clássica. A idéia de
expressão espontânea e não raciocinada não se encaixa ao work in progress
joyciano. Porém, a terrível luta entre o mais belo dos anjos em seu desejo de ir além,
de se superar, no insensato e sublime confronto com a divindade, atravessa toda a
Literatura (talvez mesmo todas as artes), ainda que autores como Homero, Sófocles
ou Píndaro não tivessem conhecido a influência da mitologia judaico-cristã
9
,
influência esta que se mostrou avassaladora no romantismo, sendo sentida ainda
em nossos dias.
9
Evidentemente, o próprio processo mitologizante do cristianismo não se furtou à influência helênica,
de modo que o confronto com a divindade superior encontra-se bem destacado no Prometeu
acorrentado de Ésquilo.
123
No que diz respeito à literatura alemã, as relações luciferinas na arte são
especialmente evidentes, principalmente quando consideramos sua obra máxima, o
Faust de Goethe. Obra totêmica de um autor totêmico, ela será objeto do confronto
pela supremacia canônica empreendido pelo maior prosador alemão do século XX:
Thomas Mann, com seu Doktor Faustus. Mann viveu como poucos a tensão
luciferina do confronto com o gigantesco anti-deus da literatura germânica,
personificado no titã de Weimar, Goethe. Em tal confronto, Mann, ainda que tenha
lutado com brilhantismo, acabou por submergir. Todavia, deste mesmo confronto,
emergiu o ideal do gênio, do artista maior, além da beleza e da canonicidade. De tal
forma, pode-se ousar a afirmação de que, da definição de gênio em Mann, podemos
encontrar a definição de um gênio alemão atemporal e absoluto. Talvez seja
superestimar o papel do próprio autor de Literatura em geral, em especial em uma
época na qual sua morte foi, em certas ocasioões, até mesmo decretada. Porém,
como bem lembra Anatol Rosenfeld, a ‘‘concepção do gênio desloca o centro
gravitacional da análise estética: o que importa não é tanto a obra e sua
apreciação; é agora, bem mais, o poeta e criador’’ (1992, p.14). Semelhante ousadia
corre o risco de ser demasiado diabólica, e talvez possa encontrar opositores tão
ferrenhos que não causaria surpresa se alguém, esquecendo os limites entre
perspectivas de enfoque e a boa educação, quisesse mandá-la (bem como o autor
da proeza) para o inferno. Mas é possível que tal risco valha a pena. Mefistófeles,
com um sorriso malicioso nos lábios, concordaria. Goethe e Mann também.
O pacto com Goethe
Muito já foi dito sobre como Thomas Mann seria um herdeiro e continuador de
Goethe no século XX, afinal, o próprio Mann contribuiu para solidificar tal imagem.
Todavia, seria mais interessante ver as relações entre Goethe e Mann como um
terrível confronto de supremacia estética e poética. Confronto, este, do qual Mann
não fugiu em nenhum momento. Na verdade, ele o procurou. Harold Bloom, em O
cânone ocidental (BLOOM, 1995, p. 202) aponta com correção para as relações
que podemos notar entre as obras de Goethe e Mann. Assim, Tonio Kröger
relaciona-se diretamente (e, portanto, disputa) com Werther; Der Zauberberg com
Wilhelm Meister; e, claro, Doktor Faustus com Faust. Bloom, a princípio, comete
124
apenas um pequeno erro ao identificar Felix Krull com o Diwan; talvez, aqui, uma
comparação com Der Tod in Venedig ou até mesmo com Die vertauschten Köpfe:
Eine indische Legende fosse mais adequada. Além disso, há também a demoníaca
provocação de Lotte in Weimar, na qual Mann realiza a sublime e ousada
transgressão de transformar o precursor em personagem, e tentar contê-lo. Assim
sendo, o gênio goethiano deveria fornecer a chave para o gênio de Thomas Mann.
Mas o que seria afinal o gênio de Goethe?
O conceito de gênio em Goethe tem sua raiz no pensamento do Sturm und
Drang. O jovem Goethe foi profundamente influenciado por Herder, que, em 1773,
fazia circular o texto Von deutscher Art und Kunst. Nas páginas que compõem
esta obra, Herder manifestava um pensamento que fornecia uma idéia da dimensão
titânica do artista: o artista, tal como Deus é maior que a Criação, é maior que sua
obra de arte. A conseqüência lógica é que, quanto maior a obra, maior o criador.
Este é apenas um dos vários exemplos de demonização do artista que podemos
encontrar na obra de Herder, e que, de modo direto, constituíram uma poderosa
fonte inspiracional para a visão do artista em Goethe. E, por intermédio de Herder,
veio a Goethe a influência de Johann Georg Hamann. O “mago do norte”, em seus
momentos de maior expansão reflexiva, podia radicalizar a expressão de suas idéias
ao afirmar categoricamente que “Deus se revela... O criador do mundo é um escritor”
(apud ROSENFELD, 1992, p. 27). Diante de tal afirmação, está aberto o caminho
para uma significativa definição do gênio por Hamann:
Certa vez, um anjo desceu ao lago Bethesda, movimentando suas águas,
em cujas cinco termas estavam deitados muitos doentes, cegos, paralíticos,
estéreis, esperando que as águas se movimentassem. Da mesma forma o
gênio deverá descer para abalar as regras, senão elas permanecerão água;
e, se quisermos experimentar a ação e a força das regras deveremos ser os
primeiros a entrar no lago, logo que se movimentem suas águas. (apud
ROSENFELD, 1992, p. 27)
Este pensamento iria atingir todo o Sturm und Drang. A metáfora das águas,
inclusive, é retomada em Werther, quando o protagonista identifica-se não com o
anjo a descer, mas com as próprias águas. Feito maré e correnteza, muito mais do
que lago, Werther deve até se conter para não devastar a tudo e a todos. Entretanto,
há um preço a pagar por toda esta grandiosidade pessoal, e Werther o paga através
125
de sua Weltschmertz e de sua impossibilidade de inserção que vem culminar em sua
tragédia amorosa com Charlotte. Mann, em Tonio Kröger, também trabalha o
assunto ao destacar a maldição do artista fadado a viver à margem da vida, de
maneira que possa captá-la e eternizá-la em sua arte. Em uma carta do personagem
principal que dá nome à novela à sua amiga (e artista) Lisavieta, Tonio faz a
seguinte afirmação sobre sua condição marginal no mundo, aliada ao seu espírito
eminentemente burguês:
Mein Vater, wissen Sie, war ein nordisches Temperament:
betrachtsam, gründlich, korrekt aus Puritanismus und zur Wehmut geneigt;
meine Mutter von unbestimmt exotischem Blut, schön, sinnlich, naiv,
zugleich fahrlässig und leidenschaftlich und von einer impulsiven
Liederlichkeit. Ganz ohne Zweifel war dies eine Mischung, die
ausserordentliche Möglichkeiten
und ausserordentliche Gefahren in sich
schloss. Was herauskam, war dies: ein Bürger, der sich in die Kunst verirrte,
ein Bohemien mit Heimweh nach der guten Kinderstube, ein Künstler mit
schlechtem Gewissen. Denn mein bürgerliches Gewissen ist es ja, was nich
in allem Künstlertum, aller Ausserordentlichkeit und allem Genie etwas tief
Zweideutiges, tief Anrüchiges, tief Zweifelhaftes erblicken lässt, was mich
mit dieser verliebten Schwäche für das Simple, Treuherzige und Angenehm-
Normale, das Ungeniale und Anständige erfüllt.
Ich stehe zwischen zwei Welten, bin in keiner daheim und habe es
infolgedessen ein wenig schwer. [...]
Ich bewundere die Stolzen und Kalten, die auf den Pfaden der
grossen, der monischen Schönheit abenteuern und den ‘Menschen’
verachten,
aber ich beneide sie nicht.
10
(MANN, 1967b, p. 255)
10
“Meu pai, você sabe, era um temperamento rdico: ensimesmado, metódico, correto por
puritanismo, e propenso à melancolia; minha mãe, de sangue algo exótico, bela, sensual, ingênua, ao
mesmo tempo inconseqüente e passional. Sem sombra de dúvida, essa era uma mistura que
encerrava em si possibilidades extraordinárias e extraordinários perigos. O que daí resultou foi: um
burguês que se extraviou na arte, um boêmio com saudades do bom berço, um artista de consciência
pesada. Pois é minha consciência burguesa o que me faz ver em toda atividade artística, em tudo o
que é extraordinário e genial, algo profundamente ambíguo, profundamente suspeito, altamente
duvidoso, e que me enche dessa amorosa fraqueza pelo que é simples, singelo e agradavelmente
normal, não-genial e decente.
Encontro-me entre dois mundos, não me sinto à vontade em nenhum deles, e por isso a vida
é um pouco difícil para mim. [...]
Admiro os orgulhosos e frios que se aventuram nas sendas da beleza absoluta e demoníaca
e desprezam o ‘homem’ mas não os invejo” (MANN, p. 195-196). Tradução de Eloísa Ferreira
Araújo Silva, para a edição do Círculo do Livro, São Paulo, 1987.
126
A ilusão de uma vida alegre e despreocupada, que traz em si a promessa da
realização plena do amor, não passa de um fantasma tentador e inalcançável. A Arte
é oposta à Vida e o isolamento em meio à multidão é o preço a pagar pela
genialidade. Sentir-se alijado de algo que parece ser posse legítima de quem está
nessa posição desfavorável é, por si só, elemento identificador do mythos cristão
pós-medievo do diabo; passando por ancestrais de procedimento semelhante (como
o Iago de Othelo), é a partir desta sensação de mérito ferido que Milton comporá
seu Satan e justificará sua rebeldia e sua vontade de vingança. Além disso, os
paralelos entre o genial e o demoníaco poderiam abrir já a discussão sobre a
identificação entre os dois conceitos, mas esta terá de ser retomada posteriormente.
Por hora, fiquemos com a tragédia do artista que, para expor o grande quadro da
vida, é condenado a observá-la de fora. Tal condição poderia nos induzir a pensar
que a arte genial pode ser meramente mimética. É fácil cairmos na armadilha
hamletiana do artista que estende um espelho frente à Natureza, mas, se o gênio
carrega em si uma aspiração à força criativa, esse confronto entre mímesis e poíesis
deve ser olhado com mais cuidado.
O artista de Mann paga, sim, o preço de ser um observador marginal ainda
que minucioso da vida, mas a exposição resultante da observação minuciosa não
basta. É preciso criar. Aqui, Mann mostra o quanto dialoga com a percepção estética
do romantismo alemão, seja em termos teóricos ou críticos. Tal diálogo não causa
espanto quando o autor em questão coloca a discussão sobre o gênio em posição
de destaque em suas reflexões sobre a arte. Ao fazê-lo, aproxima-se da concepção
romântica do gênio como potencializador da tensão mimético-poiética. Ou como
afirma Novalis:
Quando falamos do mundo exterior, quando descrevemos objetos
efetivos, então procedemos como o gênio. Assim é, portanto, o gênio, a
faculdade de tratar de objetos imaginados como se se tratasse de objetos
efetivos, e também de tratá-los como a estes, o talento para expor, observar
com precisão descrever finalisticamente a observação é portanto
diferente do gênio. Sem esse talento vê-se somente pela metade e se é
somente um meio gênio pode-se ter uma disposição genial, que na falta
daquele talento nunca chega ao desenvolvimento.
Sem genialidade todos nós simplesmente não existiríamos. nio é
necessário para tudo. (1988, p.49)
127
Neste trecho, Novalis destaca vigorosamente a necessidade da criação como
condição sine qua non do gênio. Esta idéia pode ser percebida na Kritik der
Urteilskraft de Immanuel Kant, obra na qual a necessidade de originalidade em
oposição à imitação surge como característica da genialidade. Kant, aliás, liga a
idéia do gênio à figura do artista ao afirmar que a arte bela é por excelência a arte do
gênio. A arte bela, tal como o indivíduo genial, não pode seguir regras
preestabelecidas. Sobre isto, afirma Kant: Der Begriff der schönen Kunst aber
verstattet nicht, dass das Urteil über die Schönheit ihres Produkts von irgend einer
Regel abgeleitet werde, die einen Begriff zum Bestimmungsgrunde habe, mithin
einen Begriff von der Art, wie es möglich sei, zum Grunde lege“
11
(KANT, 1957, p.
406). Não podendo se submeter às regras existentes, a arte bela alinha-se à
natureza do indivíduo que a produz. Tal indivíduo, portanto, para produzir arte bela,
também não pode se submeter às regras existentes, devendo seguir antes suas
próprias regras. O único indivíduo capaz de fazer suas próprias regras é o gênio. Daí
a conclusão de Kant de que die schöne Kunst ist
128
artistas do período. Em especial, agradava a Goethe a idéia de transpor para o
teatro o mesmo poder que se fazia presente em seu aclamadíssimo romance
stürmer. De todas as suas tentativas, a mais bem sucedida foi certamente o Götz
von Berlichingen; contudo, se atentarmos para outras tentatvas de dramas da
juventude de Goethe, poderemos encontrar alguns indícios de sua complexa
evolução rumo a uma complexa visão de mundo e arte.
Buscando uma figura tão forte quanto o personagem Werther, Goethe
experimentou, entre outros um Mahomet, e um Prometheus, este último chegando
mesmo a três atos incompletos. O Prometeu goethiano, pleno de rebeldia e
inconformismo (bem ao gosto do Sturm und Drang), era capaz de proferir discursos
de desafio frente a Zeus como o que se segue:
PROMETHEUS (in seiner Werkstatt).
Bedecke deinen Himmel, Zeus,
Mit Wolkendunst,
Und übe, dem Knaben gleich,
Der Disteln köpft,
An Eichen dich und Bergeshöhn;
Musst mir meine Erde
Doch Lassen stehn,
Und meine Hütte, die du nicht gebaut,
Und meinen Herd,
Um dessen Glut
Du mich beneidest.
13
(1929, p. 15)
Mas este não é o único aspecto prometeico que se faz sentir. Mas, para
entendermos o porque dos outros aspectos que se verificarão na leitura do drama de
Goethe, é preciso recuar até às origens do grande teatro clássico grego, chegando
àquele que traçou os parâmetros a partir dos quais a posteridade encarou o
apaixonante mito de Prometeu: Ésquilo e seu Prometeu acorrentado. Na peça de
13
“Cobre teu céu, Zeus,/ Com o vapor das nuvens,/ E como a criança/ Que decapita cardos,/
Experimenta tua força sobre os carvalhos e sobre os cimos dos montes;/ É preciso, entretanto,/ Que
tu me deixes minha terra,/ E minha cabana que tu não construíste,/ E minha lareira/ Cuja chama/
Causa-te inveja” (Devido à falta de traduções do texto de Goethe em questão, são apresentadas,
novamente, “traduções de serviço”).
129
Ésquilo, temos também um Prometeu que, por dotar o Homem de razão, se faz
também mestre deste em todas as suas conquistas mentais:
Prometeu: Eles [os homens] ignoravam as casas de tijolos ensolaradas,
eles ignoravam o trabalho na madeira; eles viviam sob a terra, como ágeis
formigas, nas profundezas de grutas fechadas para o sol. [...] eles faziam
tudo sem recorrer à razão, até o momento em que eu lhes ensinei a ciência
árdua no nascer e do pôr dos astros. Depois, foi a vez do número, a
primeira de todas, que eu inventei para eles, bem como as letras reunidas,
memória de todas as coisas, labor que cria as artes. (p. 177)
14
O texto goethiano, por seu turno, não ignora o fato:
(Ein Mann mit abgehauenen jungen Bäumen tritt zu Prometheus.)
Mann: Sieh hier die Bäume
Wie du sie verlangtest.
Prometheus: Wie brachtest du
Sie von dem Boden?
Mann: Mit diesem scharfen Steine hab’ ich sie
Glatt an der Wurzel weggerissen.
Prometheus: Erst ab die Aeste!
Dann ramme diesen
Schräg in den Boden hier
Und diesen hier, so gegenüber;
Und oben verbinde sie!
Dann wieder zwei hier hinten hin
Und oben einen quer darüber.
Nun die Aeste herab von oben
Bis Zur Erde,
Verbunden und verschlungen die,
Und Rasen rings umher,
14
Para este trabalho, foi utilizada a edição Les Belles Lettres das obras de Ésquilo, de 1969, sob os
cuidados de Paul Mazon. Devido a problemas relativos às fontes utilizadas no computador, impôs-se
a necessidade de se trabalhar com uma tradução para o português. Essas traduções para o
português tomaram por base a tradução francesa, cotejando-a com o original. Todas as citações
posteriores da peça referem-se a esta edição.
130
Und Aeste drüber, mehr,
Bis dass kein Sonnenlicht
Kein Regen, Wind durchdringe.
Hier, lieber Sohn, ein Schutz und eine Hütte!
Mann: Dank, teurer Vater, tausend Dank!
15
(1929, p. 9-10)
Prometeu, aqui, atua como mestre iniciador de toda a Humanidade. Seja no
texto de Goethe, seja no texto de Ésquilo. No caso deste último, este caráter
iniciático transparece através das atividades práticas por meio da ciência astrológica,
ainda hoje ligada a um universo místico, e dos números, que o pitagorismo levará às
últimas conseqüências. Este caráter benfeitor de Prometeu para com a humanidade
é, sem dúvida, um dos fatores que garantem sua permanência e encanto, porém, o
elemento mais marcante é mesmo sua rebeldia. Deste modo, o titã de Ésquilo, ainda
que enfrente o mais formidável dos adversários, Zeus, não se rebaixa, crente na
derrocada do inimigo, conhecedor que é das sutilezas das Moiras e das Erínias,
governantes da Necessidade:
Corifeu: o vá, para obrigar os homens até além do que convém,
desdenhar sua própria desgraça. Eu tenho a esperança que um dia, livre
destas correntes, você possa tratar com Zeus de igual para igual.
Prometeu: Não, para isso, a hora fixada pela Moira que tudo encerra ainda
não chegou: somente após ter sofrido mil dores, mil calamidades, eu
escaparei de meus grilhões. A destreza é muito mais fraca que a
Necessidade.
Corifeu: E quem governa a Necessidade?
Prometeu: As três Moiras e as Erínias de implacável memória.
Corifeu: O poder delas ultrapassa o de Zeus?
15
“(Um homem carregado de jovens árvores cortadas vem até Prometeu) Homem: Eis as árvores/
Como tu mas pediste./ Prom: Como tu fizeste/ para arrancá-las da terra?/ Homem: Com esta pedra
afiada eu as arranquei/ Na base da raiz./ Prom: Primeiro corta os ramos!/ Depois crave este lá/ Em pé
na terra,/ E este outro aqui, em frente;/ No alto amarre-os./ Depois mais dois, cá, atrás./ Um outro por
cima, de permeio,/ Agora, liga os ramos de alto a baixo/ Até a terra,/ Liga e entrelaça-os;/ e relva
em volta/ e mais ramos,/ Até que nem sol/ nem chuva nem vento possam penetrar através./ Eis, meu
querido filho, um abrigo, uma cabana!/ Homem: Obrigado, pai querido, mil vezes obrigado!”.
131
Prometeu: Ele não saberia escapar a seu destino.
Corifeu: E qual é o destino de Zeus, senão o de reinar para sempre?
Prometeu: A respeito disto, não me interrogue mais: não insista.
Corifeu: Deve ser um segredo bem grave, para que você o oculte assim.
Prometeu: Falem de outra coisa: ainda não é tempo de proclamar este
segredo; é preciso escondê-lo na sombra mais espessa: é conservando-o
que eu escaparei um dia destes grilhões e destes tormentos infames.
(1969, p. 178-179)
Nesta passagem, podemos tirar algumas conclusões da fala de Prometeu. Se
até mesmo Zeus está sujeito ao destino simbolizado nas Moiras e nas Erínias, e se
Prometeu, por sua previdência do mundo, tem alguma prioridade, alguma forma de
ascendência sobre elas, ele, no fim, terá alguma vantagem sobre Zeus, justificando
o início da passagem citada, na qual Prometeu fala de uma hora que ainda não
chegou, a hora de tratar com Zeus de igual para igual. E é curioso que Prometeu,
dono de um orgulho inquebrantável, possa ainda assim criticar a soberba de Zeus,
sua hybris, seu descomedimento:
Hermes: São entretanto estes modos obstinados que conduziram você a
este ancoradouro de dores.
Prometeu: Saiba bem, eu não trocaria minha desgraça por uma servidão
semelhante à sua. Eu prefiro, e disto estou certo, estar preso a este
rochedo a me ver como um fiel mensageiro de Zeus, pai dos deuses! É
assim que convém mostrar aos orgulhosos seu orgulho! (1969, p. 194-195)
Vê-se, assim, claramente, o porqda escolha de Goethe de um semelhante
personagem para sua peça teatral: literalmente um titã, símbolo eterno e matriz para
todos os revoltados posteriores na literatuta subseqüente. Entretanto, é importante
que se destaque o modo pelo qual, além da simples rebeldia destrutiva, um aspecto
construtivo se faz presente. Através de sua obra, Goethe deixou arrefecer as
labaredas incontroláveis da juventude artística em prol de uma chama mais estável e
duradoura, de modo que obras como Die Wahlverwandtschaften ou Wilhelm
132
Meisters Lehrjahre já nos permitem ver claramente essa tendência que as peças
clássicas de Goethe consolidarão em definitivo, com especial destaque para a
Iphigenie. E, aqui, poderíamos nos perguntar se essa contenção clássica não
poderia atuar como um atenuador também para a idéia de gênio e sua identificação
demoníaca. Quanto à questão do gênio, o fato de obras posteriores, como o
Wilhelm Meister e até mesmo produções mais maduras como Dichtung und
Wahrheit darem-lhe destaque mostra como o gênio não foi negligenciado no
decorrer da produção goethiana. com relação à figura diabólica, basta que
lembremos da obra maior de Goethe, na qual ele trabalhou durante toda sua vida,
Faust, para verificar que as relações do senhor conselheiro com o Diabo também
não arrefeceram com o tempo.
Deste modo, o que se nos apresenta, em Goethe, é uma figura do gênio que
traz consigo, sem dúvida, muito de rebeldia, mas que acaba por subordinar tal
aspecto em prol de uma propensão ao progresso da humanidade por meio de seus
poderes de criação. Em tal processo, o titanismo se transforma e evolui rumo a uma
necessidade de conter e assimilar que beira não mais o conhecimento diabólico que
exige a Queda, mas uma espécie de onisciência divina, visando o Todo, o Absoluto.
Mas, ainda assim, mesmo no equilíbrio e na aspiração da ordem divinizante, o
confronto com o Supremo Criador, identificado com a Natureza (que Goethe tenta
conter com obras como a Doutrina das cores, por exemplo) ainda se faz presente,
estabelecendo, dessa maneira, um paradigma genial orgulhoso e ambicioso, capaz
de se identificar com a prórpia Criação, em todos os sentidos. Assim, em uma das
"Votivtafeln" compostas com Schiller, podemos encontrar a seguinte definição de
"Genialische Kraft":
Alle Schöpfung ist Werke der Natur. Von Jupiters Throne
Zuckt der allmächtige Strahl, nährt und erschüttert die Welt.
Pflanzet über die Häuser die leitenden Spitzen und Ketten
Über die ganze Natur wirkt die allmächtige Kraft.
16
(SCHILLER, 1945, p.
421)
16
Toda a Criação é obra da Natureza. Do trono de Júpiter/ estremece o todo-poderoso raio, nutre e
(co) move o mundo./ Planta sobre as casas preponderantes cumes e elos –/ Sobre toda Natureza age
o todo-poderoso poder”.
133
Não se pode negar, aqui, os ecos prometeanos que embalam o gênio alemão,
ao mesmo tempo divino e diabólico, ao mesmo tempo acolhedor e espantoso. É esta
matriz que Mann recebeu como legado, e foi a partir dela que ele teve de trabalhar
para se justificar frente ao mundo da arte. Contudo, neste momento crucial, seria útil
fazer um interlúdio que pudesse fornecer elementos para responder às seguintes
perguntas: É Thomas Mann, como pode fazer parecer sua relação agônica com o
maior dos escritores alemães, um mero catador de farelos deixados por Goethe?
Como explicar os desvios do “herdeiro e continuador de Goethe” em relação ao
mestre? Por que diferenças tão radicais entre o personagem Faust e Adrian
Leverkühn? Se não for somente Goethe, qual seria o outro grande elemento do
conceito de gênio de Mann?
A citação do parceiro de Goethe nas "Votivtafeln", anteriormente, é
especialmente valiosa. É hora de chamarmos ao palco Johann Christoph Friedrich
von Schiller.
Schwere Stunde
Diante das fortíssimas relações que notamos entre Goethe e Mann, não
causa surpresa que boa parte da crítica não destaque o papel fundamental que
desempenha Schiller na constituição não apenas do conceito de nio de Thomas
Mann como também de sua própria concepção de arte. Mann, em seu ensaio de
1922, "Goethe und Tolstoi, Fragmente zum Problem der Humanität", compara
Goethe a Tolstoi na mesma medida em que contrasta ambos a outro par que
representa sua contraparte: Schiller e Dostoievski. O mais importante para a
discussão de Mann da concepção do gênio, com base naquele contraste, é a
oposição que ele faz, na parte do ensaio intitulada "Liberdade e distinção", entre
dom "concedido" e dádiva "conquistada". A idéia de que "aquele é um talento, esta
um mérito pessoal" (MANN, 1988, p. 87) que Mann tomou emprestada de Schiller
insinua a influência avassaladora de Goethe que deve ser combatida por meio
de um artifício igualmente avassalador: o trabalho artístico levando a uma conquista
consciente da grande Obra. Tal filosofia já está presente em um poderoso ensaio do
qual o texto de Mann é o filho agônico. Trata-se da tese de Schiller "Über naive und
sentimentalische Dichtung". Neste ensaio, escrito em 1795, Schiller opõe dois tipos
134
de artistas: aqueles cujas obras são produzidas espontaneamente por meio da
imaginação criadora, no caso os "ingênuos"; e aqueles cuja produção é realizada
com minúcias de perfeição no acabamento, por meio de esforços conscientes de
vontade, os "sentimentais".
Goethe und Tolstoi é uma tentativa, por si só, de emular o ensaio de
Schiller. De nada adiantaria fugir de uma influência forte (no caso, a de Goethe), e
tornar-se prisioneiro de outra, ainda que conscientemente. Deste modo, devemos
encarar com cautela também a aproximação deliberada de Mann com relação a
Schiller (no grupo dos “sentimentais”), conforme poderia se nos afigurar em um
primeiro momento. Mann critica Nietzsche quando o filósofo, escarnecendo do "und"
utilizado na expressão "Goethe und Schiller", diz temer que, um dia, a expressão se
torne "Schiller und Goethe". Mais do que uma tentativa de elevar Schiller, a crítica
de Mann a Nietzsche é um esforço consciente no sentido de derrubar os tabus
impostos pela figura totêmica de Goethe, e, desta forma, preparar caminho para o
derradeiro confronto estético que teria lugar no penúltimo dos romances de Mann,
Doktor Faustus, de 1947 (por sinal, o último a ser realmente concluído, pois
Bekenntnisse des Hochstaplers Felix Krull, surgido em 1922, foi retrabalhado em
1937 e 1954, caracterizando-se como uma inacabada).
O confronto com Schiller, por sua vez, no que diz respeito às dificuldades de
superação do precursor, ocorreu muito mais no campo das idéias do que na
realização artística. Podemos ver Mann tendo várias dificuldades (e, por vezes,
sucumbindo) quando comparamos "Goethe und Tolstoi" com "Naive und
sentimentalische Dichtung", o que não deixa de trazer em seu bojo uma forte agonia,
já que o subtítulo do texto de Mann ("Fragmente zum Problem der Humanität") deixa
claro o quão ambicioso era o projeto de escritura. Aqui, em sua citada réplica a
Nietzsche, Mann defende Schiller com um discurso que, por fim, destaca a
eminência intelectual do ensaio precedente:
No que se refere a Goethe e Schiller, uma aversão excepcionalmente
subjetiva de Nietzsche ao teatralismo e ao moralismo de ambos não devia
conduzi-lo a negar uma fraternidade que, através do antagonismo exemplar
a ela inerente, não sofre qualquer dano, e encontrou, na pretensa parte
ofendida, o seu melhor protetor. Foi uma precipitação e uma arbitrariedade
não-justificada de Nietzsche proclamar com seu escárnio daquele "e" uma
hierarquia, ou impor como indiscutível o duvidoso, até o que é e podia
135
continuar sendo a coisa mais duvidosa do mundo. Precipitação em decidir
justamente sobre esta questão, em geral, não é da natureza alemã.
Justamente nisso o alemão evita, por instinto, se comprometer
unilateralmente; antes prefere uma "política da mão livre", para cuja
observância estrita as seguintes considerações proporcionarão o motivo e
em cuja observância estrita as seguintes considerações proporcionarão o
motivo e em cuja glorificação elas serão especialmente empregadas. Nada
mais do que justamente esta política é o sentido da cópula na ligação
"Goethe e Schiller", na qual ela opõe mutuamente no nosso consciente o
que ela liga. Nunca se devia ter tocado no pensamento dos clássicos e
abrangentes ensaios dos alemães, que, com efeito, inclui em si e torna
supérfluo todo o restante refiro-me à tese de Schiller sobre a poesia
ingênua e sentimental para não achar este "e" profundamente antitético.
(MANN, 1988, p. 61)
A passagem acima reproduzida revela-nos, de um lado, a sutil e mordaz
crítica a Nietzsche que se torna patente na configuração ensaístico-filosófica do
pensamento alemão como uma espécie de nada auto-suficiente (o que tanto
critica a percepção nietzscheana como também justifica o pensamento schilleriano).
Por outro lado, traz-nos a auto-afirmação filosófica do próprio Mann, por meio de seu
"Goethe und Tolstoi", em seu confronto direto com o influente texto de Schiller,
confronto este que se evidencia na percepção antitética do "und" problemático. E,
aqui, justamente a figura do gênio pode nos oferecer um exemplo mais palpável do
confronto filosófico entre Mann e Schiller. Afinal, ao levar a cabo sua tese, o
propósito de Schiller foi o de se justificar dissertando com argúcia a respeito não
apenas da natureza da arte e de sua produção, mas também estabelecer critérios
valorativos de excelência artística. A possibilidade de configuração de atos
judicativos vem, claro, de Kant, que abre caminho para o procedimento em sua
terceira crítica, cuja edição original é de 1790, cinco anos antes do ensaio de
Schiller. Com relação ao juízo de gosto, afirma Kant:
Das Geschmacksurteil ist also kein Erkenntnisurteil, mithin nicht logisch,
sondern ästhetisch, worunter man dasjenige versteht, dessen
Bestimmungsgrund nicht anders als subjektiv sein kann. Alle Beziehung der
Vorstellungen, selbst die der Empfindungen, aber kann objektiv sein (und da
bedeutet sie das Reale einer empirischen Vorstellung); nur nicht die auf das
Gefühl der Lust und Unlust, wodurch gar nichts im Objekte bezeichnet wird,
136
sondern in der das Subjekt, wie es durch die Vorstellung affiziert wird, sich
selbst fühlt.
17
(KANT, 1957, p. 279).
A despeito da discussão posterior relacionada à complacência e às suas
relações com o interesse deliberado a partir do juízo de gosto e das idéias de
agradável e bom (que refletem a impiedosa sistematicidade do rigor crítico kantiano,
o que, por sinal, se anuncia na passagem citada, com relação à "referência das
representações"), destaque-se, aqui, o caráter subjetivo que se mostra no processo
judicativo do gosto, eminentemente estético. Deste modo, abre-se espaço para o
subjetivo também no jogo dos critérios de valor, que, em consonância com o
caráter intuitivo do conhecimento kantiano (e também em suas implicações
dogmáticas), podemos perceber que o filtro de um "Eu" (retomado, posteriormente,
com força pelo pensamento romântico, em especial a partir de Fichte) atua com
destaque no processo. Assim, o "Eu" mais poderoso em Arte, ou seja, o gênio, deve
contribuir decisivamente no estabelecimento dos critérios de valor, já que, para Kant,
este gênio, conforme foi apontado anteriormente, determina as regras do processo
artístico. A partir desta inferência, a explicação do Belo artístico que Kant depreende
a partir do segundo momento do juízo de gosto, segundo a qual "Schön ist das, was
ohne Begriff allgemein gefällt"
18
(KANT, 1957, p. 298), permite-nos não considerar
tão extravagante o ideal de universalidade se este for regrado e determinado pelo
subjetivismo do artista genial. Daí a identificação do Belo com um ideal em suma
longiniano do Sublime, uma vez que, para Kant, "Das Schöne kommt darin mit dem
Erhabenen überein, dass beides für sich selbst gefällt. Ferner darin, dass beides kein
Sinnes-noch ein logisch-bestimmendes, sondern ein Reflexionsurteil
voraussetzt"
19
(KANT, 1957, p. 328).
Assim, Kant pode partir para uma definição mais sistemática do gênio através
da já sabida ligação etimológica da palavra definidora do conceito em alemão
17
“O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim
estético, pelo qual se entende aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo.
Toda referência das representações, mesmo a das sensações, pode, porém, ser objetiva (e ela
significa então o real de uma representação empírica); somente não pode sê-lo a referência ao
sentimento de prazer e desprazer, pelo qual não é designado absolutamente nada no objeto, mas no
qual o sujeito sente-se a si próprio no modo como ele é afetado pela sensação.” (KANT, 1995, p. 48).
18
"Belo é o que apraz universalmente sem conceito" (KANT, 1995, p. 64)
19
"o belo concorda com o sublime no fato de que ambos aprazem por si próprios; ulteriormente, no
fato de que ambos não pressupõem nenhum juízo dos sentidos, nem um juízo lógico determinante,
mas um juízo de reflexão" (KANT, 1995, p. 89)
137
("Genie") com os termos latinos "genius" e "ingenium". Com relação a esse paralelo
lingüístico, Kant destaca quatro tópicos definidores da idéia de nio, citando
mesmo, no terceiro deles, o termo latino "genius":
Man sieht hieraus, dass Genie 1) ein Talent sei, dasjenige, wozu sich
keine bestimmte Regel geben lässt, hervorzubringen: nicht
Geschicklichkeitsanlage zu dem, was nach irgend einer Regel gelernt
werden kann; folglich dass Originalität seine erste Eigenschaft sein müsse.
2) Dass, da es auch originalen Unsinn geben kann, seine Produkte zugleich
Muster, d. i. Exemplarisch sein müssen; mithin, selbst nicht durch
Nachahmung entsprugen, anderen doch dazu, d. i. zum Richtmasse oder
Regel der Beurteilung, dienem müssen. 3) Dass es, wie es sein Produkt zu
Stande bringe, selbst nicht beschreiben, oder wissenschaftlich anzeigen
könne, sondern dass es als Natur die Regel gebe; und daher der Urheber
eines Produkts, welches er seinem Genie verdankt, selbst nicht weiss, wie
sich in ihm die Ideen dazu herbein finden, auch es nicht in seiner Gewalt
hat, dergleichen nach Belieben oder planmässig auszudenken, und anderen
in solchen Vorschriften mitzuteilen, die sie in Stand setzen, gleichmässige
Produkte hervorzubringen. (Daher denn auch vermutlich das Wort Genie
von genius, dem eigentümlichen einem Menschen bei der Geburt
mitgegebenen schützenden und leitendem Geist, von dessen Eingebung
jene originale Ideen herrührten, abgeleitet ist. 4) Dass die Natur durch das
Genie nicht der Wissenschaft, sondern der Kunst die Regel vorschreibe; und
auch dieses nur, in sofern diese letztere schöne Kunst sein soll.
20
(KANT,
1957, p. 406-7)
Originalidade, exemplaridade, impossibilidade de explicação científica de seu
modus operandi, e, por fim, regração natural da Arte e não da Ciência, ou seja,
20
“Disso se que o gênio 1) é um talento para produzir aquilo para o qual não se pode fornecer
nenhuma regra determinada, e não uma disposição de habilidade para o que possa ser aprendido
segundo qualquer regra; conseqüentemente, originalidade tem de ser sua primeira propriedade; 2)
que, visto que também pode haver uma extravagância original, seus produtos têm que ser ao mesmo
tempo modelos, isto é, exemplares, por conseguinte, eles próprios o surgiram por imitação e, pois,
têm de servir a outros como padrão de medida ou regra de ajuizamento; 3) que ele próprio não pode
descrever ou indicar cientificamente como ele realiza sua produção, mas que ela como natureza
fornece a regra; e por isso o próprio autor de um produto, que ele deve a seu gênio, não sabe como
as idéias para tanto encontram-se nele e tampouco tem em seu poder imaginá-las arbitrária ou
planejadamente e comunicá-las a outros em tais prescrições, que as ponham em condição de
produzir produtos homogêneos. (eis porque presumivelmente a palavra gênio” foi derivada de
genius, o espírito peculiar, protetor e guia, dado conjuntamente a um homem por ocasião do
nascimento, e de cuja inspiração aquelas idéias originais procedem); 4) que a natureza através do
gênio prescreve a regra não à ciência, mas à arte, e isto também somente na medida em que esta
última deve ser arte bela.” (KANT, 1995, p. 153-4)
138
separação entre "artes científicas" e "belas artes". Eis uma tentativa de definição do
gênio que traz em si idéias que serão caras ao Romantismo que estava por vir, com
destaque para a originalidade como imperativo categórico. E também para a
aproximação com o "genius" latino que abrirá espaço para a percepção do gênio
como um ser sobre-humano, amálgama de divino e demoníaco. Antes, porém, em
uma primeira tentativa de definir exatamente a idéia de gênio, Kant aproxima-a do
conceito de "ingenium", destacando o caráter natural da genialidade:
Genie ist das Talent (Naturgabe), welches der Kunst die Regel gibt.
Da das Talent, als angebornes produktives Vermögen des Künstlers, selbst
zur Natur gehört, so könnte man sich auch so ausdrücken: Genie ist die
angeborne Gemütsanlage (ingenium), durch welche die Natur der Kunst die
Regel gibt.
21
(KANT, 1957, p. 405-6)
Eis, portanto, a matriz que Schiller utilizará para traçar o perfil do artista
ingênuo
22
. Esse perfil, ligado à imagem que Schiller fazia do amigo Goethe, retrata-
nos um criador genial que, identificando-se com a Natureza pelo seu dom inato,
assume a aparência de um deus. Porém, o mais curioso, aqui, é a identificação do
artista genial com a própria idéia de gênio. De acordo com Schiller:
Naiv muss jedes wahre Genie sein, oder es ist keines. Seine Naivheit
allein macht es zum Genie, und was es im Intellektuellen und Ästhetischen
ist, kann es im Moralischen nicht verleugnen. Unbekannt mit den Regeln,
den Krücken der Schwachheit und den Zuchtmeistern der Verkehrtheit,
bloss von der Natur oder dem Instinkt, seinem schützenden Engel, geleitet,
geht es ruhig und sicher durch alle Schlingen des falschen Geschmackes, in
welchen, wenn es nicht so klug ist, sie schon von weiten zu vermeiden, das
Nichtgenie unausbleiblich verstrickt wird. Nur dem Genie ist es gegeben,
ausserhalb des Bekannten noch immer zu Hause zu sein und die Natur zu
erweitern, ohne über sie hinauszugehen. Zwar begegnet letzteres zuweilen
auch den grössten Genies, aber nur, weil auch diese ihre phantastischen
21
Gênio é o talento (dom natural) que a regra à arte. Já que o próprio talento enquanto faculdade
produtiva inata do artista pertence à natureza, também se poderia expressar assim: Gênio é a inata
disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá a regra à arte.” (KANT, 1995, p. 153)
22
Embora a língua alemã tenha selecionado um vocábulo de outra raiz para transmitir a idéia de
"ingênuo" ("Naive"), é sintomático o parentesco etimológico entre "ingenium" e ingênuo quando
consideramos não uma língua anglo-germânica como o alemão, mas uma língua neo-latina como o
português. Embora esta discussão não caiba neste momento, ela será retomada na coda posterior
que trata do gênio na literatura portuguesa.
139
Augenblicke haben, wo die schützende Natur sie verlässt, weil die Macht
des Beispiels sie hinreisst oder der verderbte Geschmack ihrer Zeit sie
verleitet.
Die verwickelsten Aufgaben muss das Genie mit anspruchsloser
Simplizität und Leichtigkeit lösen; das Ei des Kolumbus gilt von jeder
genialischen Entscheidung. Dadurch allein legitimiert es sich als Genie, dass
es durch Einfalt über die verwickelte Kunst triumphiert. Es verfährt nicht
nach anerkannten Prinzipien, sondern nach Einfällen und Gefühlen; aber
seine Einfälle sind Eingebungen eines Gottes (alles, was die gesnde Natur
tut, ist göttlich) seine Gefühle sind Gesetze für alle Zeiten und für alle
Geschlechter der Menschen.
23
(SCHILLER, 1951, p. 470-1)
Se Schiller pretendia, com este ensaio, defender-se, conforme afirma Goethe
a Eckermann (ECKERMANN, s/d., p. 83), do próprio Goethe, a apoteose aparente
do titã de Weimar como uma espécie de divindade secular poderia intensificar o
problema. Contudo, a apropriação do pensamento kantiano por parte de Schiller é
mais sutil, e ele pode encontrar nessa filosofia idealista o antídoto para o problema.
Na verdade, mesmo identificando o gênio ao artista ingênuo, Schiller cria
oportunidade para a crítica deste criador natural, ao levantar a possibilidade de ele ir
além da Natureza, sem apenas ampliá-la. Com isso, Schiller propõe uma crítica aos
arroubos fantasiosos do ingênuo, de modo que abre espaço para seu principal tropo
de defesa frente ao poder criativo assombroso de Goethe: a capacidade de controle
consciente do processo poético por parte do artista sentimental. Por meio desse
processo, Schiller pode chamar para si o privilégio de dominar completamente sua
arte, aspirando a uma maturidade filosófica do fazer artístico que não estaria
presente no artista ingênuo em quem Schiller chega mesmo a identificar um
23
“Todo verdadeiro gênio tem de ser ingênuo, ou não é gênio. Apenas sua ingenuidade o torna gênio,
e ele não pode negar no plano moral aquilo que é no plano intelectual e estético. Ignorando as regras,
essas muletas da fraqueza e mentoras do erro, e orientado apenas pela natureza ou pelo instinto, o
seu anjo da guarda, caminha com tranqüilidade e segurança por todas as ciladas do falso gosto, nas
quais o não-gênio é infalivelmente envolvido, se não for bastante prudente para evitá-las de longe.
Apenas ao gênio é dado estar sempre em casa fora do que é conhecido e ampliar a natureza sem ir
além dela. Decerto, mesmo os maiores gênios por vezes vão além dela, mas apenas porque também
têm seus momentos fantasiosos, em que a natureza protetora os abandona, quer porque o poder do
exemplo os arrebata, quer porque o gosto corrompido do tempo os desencaminha.
O gênio tem de solucionar as tarefas mais complexas com despretenciosa simplicidade e
desembaraço; o ovo de Colombo vale para toda decisão genial. Legitima-se como gênio somente por
triunfar com simplicidade sobre a arte complexa. Não procede segundo princípios conhecidos, mas
segundo inspirações e sentimentos; suas inspirações, porém, são estros de um deus (tudo o que a
natureza sadia faz é divino), e seus sentimentos o leis para todos os tempos e todas as estirpes
humanas” (SCHILLER, 1991, p. 51). Tradução de Márcio Suzuki para a edição da editora Iluminuras,
São Paulo, 1991.
140
"kindlichen Charakter" (SCHILLER, 1951, p. 471). Assim, a apropriação do discurso
kantiano mostra-se preciosa, uma vez que o próprio Kant ressaltara este aspecto
da percepção do gênio:
Da nun die Originalität des Talents ein (aber nicht das einzige) wesentliches
Stück vom Charakter des Genies ausmacht: so glauben seichte Köpfe, dass
sie nicht besser zeigen können, sie wären aufblühende Genies, als wenn sie
sich vom Schulzwange aller Regeln lossagen, und glauben, man paradiere
besser auf einem kollerichten Pferde, als auf einem Schulpferde. Das Genie
kann nur reichen Stoff zu Produkten der schönen Kunst hergeben; die
Verarbeitung desselben und die Form erfordet ein durch die Schule
gebildetes Talent, um einen Gebrauch davon zu machen, der vor der
Urteilskraft bestehen kann. Wenn aber jemand sogar in Sachen der
sorgfältigsten Vernunftuntersuchung wie ein Genie spricht und entscheidet,
so ist es vollends lächerlich; man weiss nicht recht, ob man mehr über den
Gaukler, der um sich so viel Dunst verbreitet, wobei man nichts deutlich
beurteilen, aber desto mehr sich einbilden kann, oder mehr über das
Publikum lachen soll, welches sich treuherzig einbildet, das sein
Unvermögen, das Meisterstüd( )Tj5.89125 0 Td(d)Tj5.2901 0 Td(e)T8896 0 Td(e)Tj5.2901 0 Td(i)Tj2. Td(h)T87 0 Td(d( 12597 0 Td( )Tj6.20 Td(i)Tj2.0439 0 Td(n)Tj5.2901 0 Td1698Td( )Tj3.00574 0 Td(n)Tj5.16987 0 Td(i)Tj2.16413 0 Td(c)Tj4.80918 0 Td(e)Tj5.29007 0 Td(l)Tj2.0439 0 Td(c)Tj4.4505 0 Td(r)Tj3.6413 0 Td(c)Tj4.82901 0 Td(e)Tj5.16987 0 Td( )Tj4.68896 0 Td(n)Tj5.16987 0 Td(i)Tj2.6987 0 Td(d( )Tj2597 0 Td( )Tj5.89125 0 Td(d)Tj5.2901 0 Td(l)Tj2.6987 0 Td( )Tj3.60689 0 Td(G)Tj7.56873 0 Td(h)Tj5.2901 0 Td(ö)Tj5.2901 0 Td(d)Tj5.16987 7 0 Td(e)Tj5.2901 0 Td(G)Tj7.56873 0 Td(h)Tj560689 0 Td(u)Tj5.16980 Td(d( )Tj.2901 0 Td(u)Tj5.4505 0 Td( )Tj3.00574 0 Td(D)Tj6.25768 0 Td(d)Tj5.16987 0 Td(c)Tj4.68896 0 Td(h)Tj56987 7 0 Td(e)Tj516987 0 Td(n)Tj5.2901 0 Td( )Tj6.011480 Td(i)Tj2.16413 0 Td(e)Tj5.16987 80918 0 Td(c)Tj4.56873 Td(G)Tj7.56873 0 Td(h)Tj5.2901 0 Td(ö)Tj5.2901 0 Td(a)Tj5.16987 0 Td(n)Tj5.16987 0492h)Tj5.16987 0 Td(t)Tj2.64505 0 Td( )Tj3.48666 0 Td(m)Tj7.5194 0 Td(o)Tj5.16987 0 Td(d)Tj5.16987 0 Td(m)Tj7.6528 0 Td(ü)Tj5.16987 0 Td( )Tj3.60689 0Td(s)Tj4.52901 0 Td(r)Tj3.12597 0 Td( )Tj6.216987 0 Td(n)Tj5.16987 0492h)Tj5.16413 0 Td(s)Tj4.56873 0 Td((i)Tj2.0439 0 Td(n)Tj5.2901 0 Td(b)Tj5.16987 0 Td(m)Tj7.597 0 Td( )Tj6.28666 0 Td(m)Tj7.64505 0 Td( )Tj6.0114 0492h)Tj5.1.89125 0 Td(e)Tj5.2901 0 Td(i)Tj22901 0 Td( )Tj6.16987 0 Td(u)Tj5.41033 0 Td(m)Tj7.W901 0 01d(n)Tj6.4505 0 Td( )Tj3.48666 0 0 Td(e)T8896 0 Td(e)Tj5.290h987 0 Td(,)Tj2.62597 0 Td(b)Tj5.16987 0 Td(r)Tj3.36643 0 Td(e)Tj5.16987 0Td(l)Tj2.16413 0 Td(d)Tj5.16987 0 Td(m)Tj7.597 0 Td( )Tj6.26413 0 Td(d)Tj5.16987 0 492h)Tj5.19355 0 Td(s)Tj4.80918 0 Td(o)Tj5..00574 0 Td(e)Tj5.2901 0 Td(i)Tj26528 0 Td(e)Tj5.16987 0 Td(h)Tj5.16987 492h)Tj5.1M4505 0 Td6sobesdei f ,
141
destaque os dois lados complementares do fenômeno artístico (no caso o ingênuo e
o sentimental), permite-se, de início sutilmente, mas, depois, de modo direto,
colocar-se, na sua condição de poeta sentimental, em posição privilegiada frente ao
ingênuo, cujo arquétipo é justamente Goethe. Deste modo, o rigor metódico assume
ares de indício valorativo e, em seguida, torna-se tropo de excelência capaz de
conceder vantagens relevantes àquele que ocupa seu lugar nas fileiras sentimentais:
Aber wenn es der naive Dichter dem sentimentalischen auf der einen
Seite an Realität abgewinnt und dasjenige zur wirklichen Existenz bringt,
wonach dieser nur einen lebendigen Trieb erwecken kann, so hat letzterer
wieder den grossen Vorteil über den ersteren, dass er dem Trieb einen
grösseren Gegenstand zu geben imstande ist, als jener geleistet hat und
leisten konnte. Alle Wirklichkeit, wissen wir, bleibt hinter dem Ideale zurück;
alles Existierende hat seine Schranken, aber der Gedanke ist grenzenlos.
Durch diese Einsschränkung, der alles Sinnliche unterworfen ist, leidet also
auch der naive Dichter, da hingegen die unbedingte Freiheit des
Ideenvermögens dem sentimentalischen zu statten kommt. Jener erfüllt
zwar also seine Aufgabe, aber die Aufgabe selbst ist etwas Begrenztes;
dieser erfüllt zwar die seinige nicht ganz, aber die Aufgabe ist ein
Unendliches. Auch hierüber kann einen jeden seine eigene Erfahrung
belehren. Von dem naiven Dichter wendet man sich mit Leichtigkeit und Lust
zu der lebendigen Gegenwart; der sentimentalische wird immer auf einige
Augenblicke für das wirkliche Leben verstimmen. Das macht, unser Gemüt
ist hier durch das Unendliche der Idee gleichsam über seinen natürlichen
Durchmesser ausgedehnt worden, dass nichts Vorhandenes es mehr
ausfüllen kann. Wir versinken lieber betrachtend in uns selbst, wo wir für den
aufgeregten Trieb in der Ideenwelt Nahrung finden; anstatt dass wir dort aus
uns heraus nach sinnlichen Gegenständen streben. Die sentimentalische
Dichtung ist die Geburt der Abgezogenheit und Stille, und dazu ladet sie
auch ein: die naive ist das Kind des Lebens, und in das Lebenhrt sie auch
zurück.
25
(SCHILLER, 1951, p. 493-4)
25
No entanto, se o poeta ingênuo excede o sentimental em realidade e traz à existência real aquilo
para o qual o último pode despertar um vivo impulso, este, por sua vez, tem sobre o primeiro a
grande vantagem de ser capaz de dar ao impulso um objeto maior do que aquele que foi e pôde ser
produzido pelo primeiro. Toda realidade, sabemos, permanece aquém do Ideal; todo existente tem
seus limites, mas o pensamento é ilimitado. O poeta ingênuo, poetanto, também padece dessa
limitação à qual todo sensível está sujeito, ao passo que a liberdade incondicionada da faculdade de
Idéias vem em auxílio do poeta sentimental. Assim, aquele cumpre, decerto, sua tarefa, mas a própria
tarefa é algo limitado; este, decerto, não cumpre de todo a sua, mas a tarefa é um infinito. Também
sobre isso cada um pode ser instruído por experiência própria. Do poeta ingênuo, volta-se com
desenvoltura e prazer ao presente vivo; o poeta sentimental sempre destoará da vida real em certos
momentos. Isso porque, nossa mente tendo sido como que estendida para além de seu diâmetro
142
Com esta engenhosa defesa, Schiller não apenas justifica a validade de sua
ars face ao poder gerador de Goethe como também procura atrair a discussão sobre
a excelência até o modo de vida de cada um, deixando para o poeta ingênuo uma
unidade natural que beira o diletantismo, uma vez que, para este, não
necessidade de esforço consciente e severo, rigor espartano rumo à perfeição e ao
infinito. Ao reclamar "Abgezogenheit und Stille" como premissas para o trabalho
artístico sentimental, Schiller coloca-se como uma espécie de beneditino rigoroso
frente à religião da arte maior, preso, por sua condição de aspirante infinito das
idéias igualmente infinitas, à margem da vida. Com isto, pode contra-atacar seu
amigo genial de dimensões titânicas por meio de uma auto-justificação inversa, de
modo que, se realmente Goethe pode ser encarado como um deus ingênuo, o
Schiller sentimental encarna o papel de um Lúcifer rebelde e astuto, justificando sua
existência em sua própria tragédia, definindo-se como o contrário daquele que
enfrenta. Assim, a maldição de sua situação marginal é diluída em sua demoníaca
ousadia, e, se ele é um amaldiçoado, é ao mesmo tempo um amaldiçoado e um
artista, ao mesmo tempo um amaldiçoado e um herói.
Semelhante estratégia de defesa frente ao gênio tutelar da literatura alemã
não poderia ser negligenciada por um sucessor do porte de Mann que, diante do
desafio do autor de Faust, preferiu usar os mesmos ardis do autor de Die Räuber.
Recuperando ainda mais a estatura de Schiller, como artista, sem dúvida, mas
especialmente como pensador estético, Mann abre, argumentativamente, uma
brecha preciosa da fortificação poética de Goethe. Porém, ao realizar tal proeza,
Mann parece piorar (e muito) sua situação, uma vez que o confronto de "Goethe und
Tolstoi" com "Naive und sentimentalische Dichtung" não o coloca em situação
favorável. Contudo, essa piora é apenas aparente, pois Mann, assim como Goethe e
Schiller, era, acima de tudo, um artista, um homem da Literatura, e, se algum
confronto decisivo deveria ocorrer neste terreno, este dar-se-ia sem dúvida no
campo da Arte. Assim, embora Schiller tenha tido um sucesso relativamente fácil no
âmbito das idéias, no campo artístico, entretanto, o combate também foi breve e
natural mediante o infinito da Idéia, nada mais de subistente pode preenchê-la. Preferimos mergulhar
contemplativamente em nós mesmos, onde encontramos alimento para o impulso despertado no
mundo das Idéias, a empenharmo-nos para fora, em direção a objetos sensíveis. A poesia
sentimental é o fruto do retraimento e do silêncio, e também a eles convida; a poesia ingênua é a
criança da vida, também conduzindo de volta à vida. (SCHILLER, 1991, p. 89)
143
Mann, se não aniquilou o oponente, ao menos também não saiu gravemente ferido.
em 1903, era publicada a novela Tonio Kröeger, na qual o protagonista, Tonio,
confessa sua emoção diante da peça Don Carlos, de Schiller. Poderíamos esperar
uma relação de amor e ódio tremendamente combativa, com um confronto direto
entre o autor tutelar e seu admirador insubordinado; todavia, a disputa direta com o
autor de Maria Stuart só se anuncia, de modo que o que encontramos, na realidade,
é uma guerra incisiva com o Werther de Goethe.
A verdadeira disputa artística com Schiller ocorreria dois anos depois, em
1905, no conto "Schwere Stunde". Este conto precioso nem sempre recebe o devido
destaque entre os comentadores (ao menos os brasileiros) de Mann, de modo que
merece menção a reprodução e o comentário competente levado a cabo por Marion
Fleischer em um volume intitulado Textos e estudos de literatura alemã, cabendo
a ela o capítulo "Introdução à obra de Thomas Mann". Argutamente, Fleischer
compreende este conto como "um estudo breve, porém extremamente perspicaz da
vida interior do poeta sentimental" (FLEISCHER, 1968, p. 23). Embora a figura
torturada que representa este poeta o seja nomeada, podemos facilmente
reconhecê-la como sendo Schiller. O poeta surge como um verdadeiro mártir da
arte, trabalhando no limite de suas forças debilitadas pela doença com o intuito de
terminar um trabalho artístico. Assim, temos um cântico agônico do artista que
procura no controle rigoroso e intelectual de sua produção a justificativa de sua
própria existência. Fleischer propõe outra leitura correta desta situação, de modo
que o Schiller de Mann, em coerência com os pressupostos teóricos de "Naive und
sentimentalische Dichtung", assumiria ares de um "artista que sofre com a
preponderância do intelecto e da sensibilidade sobre a força vital, que, às custas da
vitalidade, concentrou e consumiu todas as energias na produção, na atividade
criadora" (FLEISCHER, 1968, p. 23). Sem vida alguma, esta relação entre arte e
doença está presente em toda a produção thomasmanniana, e o leitor familiarizado
com sua obra certamente lembrar-se-á ao menos de Der Zauberberg, romance no
qual o protagonista Hans Castorp considera, várias vezes, a hipótese de a doença
ter uma relação direta com a genialidade.
Assim, não deve causar espanto que, juntamente com estes aspectos
doentios, o elemento diabólico desempenhe um papel primordial. Neste sentido, a
atuação do Diabo com estimulador da arte e do gênio encontra-se canonizado na
literatura alemã desde o Mefistófeles do Faust de Goethe ( e não sem razão Mann
144
produziu seu Doktor Faustus). É sintomática, portanto, a forma de atuação do
mestre diabólico de Hans em Der Zauberberg, o ex-jesuíta Naphta. Em uma
passagem em que Naphta comunica a Hans o fato de Settembrini ser maçom, e, ao
comentar os aspectos estruturais e as diversas ordens e graus das sociedades
secretas de iniciação, ele traz à tona a sedução da morte com um discurso diabólico:
“[…] Die Strikte Observanz [diz Naphta] war gleichbedeutend mit einer
Vertiefung und Erweiterung der Überlieferungen des Ordens, mit einer
Zurückverlegung seiner historischen Ursprünge in die Geheimniswelt, die
sogenannte Finsternis des Mittelalters. Die Hochmeistergrade der Logen waren
Eingeweihte der physica mystica, Träger magischen Naturwissens, in der
Hauptsache grosse Alchimisten...
Jetzt muss ich mich aus allen Kräften zu besinnen suchen, was es mit der
Alchimie im Grossen ganzen noch ungefähr auf sich hatte. Alchimie, das ist also
Goldmacherei, Stein der Weisen, Aurum potabile...
Ja, populär gesprochen. Etwas gelehrter gesprochen ist sie Läuterung,
Stoffverwandlung und Stoffveredlung, Transsubstantiation, und zwar zum
Höheren, Steigerung also
der lapis philosophorum, das mann-weibliche Produkt
aus Sulfur und Merkur, die res bina, die zweigeschlechtige prima materia war
nichts weiter, nichts Geringeres als das Prinzip der Steigerung, der Hinauftreibung,
durch äussere Einwirkungen
magische Pädagogik, wenn Sie Wollen.
Hans Castorp schwieg. Er blickte augenblinzelnd schräg empor.
Ein Symbol alchimistischer Transmutation<<, fuhr Naphta fort, >>war vor
allem die Gruft.
Das Grab?
26
(MANN, 1958, p. 466)
Sem dúvida, ao mesmo tempo em que tece seus comentários sobre a
natureza do universo místico-iniciático no qual se encontra Settembrini, Naphta
26
A estrita observância equivalia a um aprofundamento e a uma ampliação das tradições da ordem.
Fazia remontar as suas origens históricas ao mundo dos mistérios, às chamadas trevas da Idade
Média. O grau de grão-mestre pertencia nas lojas a pessoas iniciadas na physica mystica,
aportadores do conhecimento mágico da natureza, e na maior parte a grandes alquimistas...
Agora tenho que fazer um esforço brutal para lembrar-me mais ou menos bem das
finalidades da alquimia. Acho que alquimia significa fazer ouro, a pedra filosofal, aurum potabile...
sim, senhor, em termos populares. Numa linguagem mais erudita, porém, trata-se de
purificação, transformação e refinamento da matéria, de transubstanciação, e isso para uma forma
mais elevada, mais sublime. O lapis philosophorum, o produto hermafrodita de enxofre e mercúrio, a
res bina, a prima materia bissexual, nada mais era senão o princípio da sublimação, do impulso para
o alto, dado por meio de agentes exteriores. É pedagogia mágica, se assim quiser.
Hans Castorp permaneceu calado.
Sobretudo a sepultura prosseguiu Naphta era símbolo da transmutação alquimística.
O túmulo?” (MANN, 1982b, p. 615-6) Tradução de Herbert Caro para a edição do Círculo
do Livro, São Paulo, 1982.
145
também inicia Hans em suas próprias verdades diabólicas. Exerce, por assim dizer,
sua própria magische Pädagogik”, por meio da qual revela a Hans a sedução da
morte, produto final da doença. A doença, por sinal, é a “senha de entrada” para o
universo do sanatório. E, aqui, vemos novamente que o elemento doentio e o genial
estão intimamente ligados, pois o universo intelectual do sanatório parece genial a
Hans devido à sua proximidade com a doença.
Qual seria, portanto, a saída para escapar disto? Paradoxalmente, para fugir
da sedução diabólica, é necessário que Hans se aproprie da força demoníaca para,
além de todo e qualquer mestre, dar, por si seus novos passos de uma espécie
de auto-iniciação. Ou, ao menos, saber diferenciar com propriedade o “bom”
demônio do “mal”, tal qual Settembrini o fez por ocasião de seu primeiro encontro
com Hans. Vale lembrar que, no mundo grego, havia a crença de que a felicidade ou
a infelicidade do homem não dependia dele, mas antes de ele possuir um eudaímon
ou um kakodaímon, um dysdaímon. E, se Hans tem, por um lado, um kakodaímon
com Naphta, por outro ele encontra seu eudaímon em Settembrini (vale lembrar que
o capítulo no qual Settembrini faz sua aparição chama-se Satana”). Temos,
portanto, um demonismo atuante capaz de, por esforços próprios, superar seus
limites, transcendendo até mesmo a doença. Esta temática estará presente de modo
incisivo em Mann. Inclusive em “Schwere Stunde
Em Schwere Stunde, o narrador desenvolve um raciocínio que, em muitos
aspectos, é exatamente o mesmo do Schiller de "Naive und sentimentalische
Dichtung" o que é obviamente compreensível. Trata-se de verificar, ainda que de
maneira velada, uma certa superioridade do poeta sentimental frente ao ingênuo. No
conto de Mann, a grande Arte é aquela obtida com sofrimento. A produção fácil, sem
pressão ou disciplina, é própria de charlatães e diletantes. Até aqui, teríamos
apenas uma derrota estética e poética flagorosa de Mann frente à sua suposta
Musa, Schiller. Porém, Mann utiliza um artifício engenhoso e faz vir à mente do
sentimental Schiller a lembrança de um titânico "diletante", Goethe. A imagem
daquele criador poderoso, cuja inconsciência se dá em função de sua quase
identificação com o divino, consegue abalar as certezas do personagem Schiller. E,
ao que tudo indica, tal confronto interior deu-se também na vida real, pois Goethe,
conforme já foi dito, afirmava que Schiller escrevera o ensaio sobre "Naive und
sentimentalische Dichtung" para defender-se dele. Schiller, por seu turno, em carta,
146
afirma que mais cedo ou mais tarde teria de se medir com Goethe, e, de tal
confronto, ele reconhecia que não poderia sair como vencedor.
Entretanto, em Schwere Stunde”, essa constatação não impede que Mann
construa um Schiller capaz de uma auto-sustentação de identificação demoníaca.
Esta identificação se dá, em um primeiro momento, através da representação
imagética de elementos que, pop6645 0 Td(c)Tj5.65082 0 Td(h)Tjcesp6640 Td(n44 0 Td(n)Tj6.3722 0n44 0 Td(n)Tj6.372213174 0 Td5197 0 Td(,)Tj3.12599 0 .13174 0 Td(f)Tj3.36640 Td(h)Tjc)Tj5.65082 j3.72714 0 Td(e)Tj6.131745.65082 j3.7271487Td(d)Tj6.13174 0 Td(e)Tj6.372Td(o)Tj6.25197 0 Td(p)Tj097 0 Td(t)Tj3.12599 0 Td(o)Tj6.25197 0 Tdd(h)Tjce
147
Dessa maneira, Schiller acaba por se definir no próprio combate, que, quanto
mais difícil, mais genial. Ao lembrar das dificuldades de construção de seu Don
Carlos, o personagem de Mann reafirma, através do amigo Körner, seu gênio e sua
glória:
Gut, es war also aus. Eine Niederlage. Ein verfehltes Unternehmen.
Bankerott. Er wollte es Körnern schreiben, dem gutten Körner, der an ihn
glaubte, der in kindischem Vertrauen seinem Genius anhing. Er würde
höhnen, flehen, poltern
der Freund; würd ihn an den Carlos gemahnen,
der auch aus Zweifeln ond Mühen und Wandlungen hervorgegangen und
sich am Ende, nach aller Qual, als ein weithin Vortreffliches, eine ruhvolle
Tat erwiesen hat.
29
(MANN, 1973, p. 192)
Mas Mann não permite a apoteose fácil do poeta sentimental. Conforme foi
destacado, a apropriação de Schiller não visa a exaltá-lo, mas, sim, enfrentar
Goethe. Todavia, para enfrentar semelhante adversário, Mann necessitaria de um
tropo suficientemente forte, de modo que seu Schiller ainda alça vôos pretensiosos,
tendo, em sua rebeldia frente à sua condição, sua vingança: "Und rächte es sich, so
wollte er den Göttern trotzen, die Schuld schickten und dann Strafe verhängten"
30
(MANN, 1973, p. 192). Este orgulho e esta ousadia luciferinos têm seu ponto mais
alto na forte aspiração da imortalidade literária: "Grösse! Ausserordentlichkeit!
Welteroberung und Unsterblichkeit des Namens!"
31
(MANN, 1973, p. 194). E tudo
isso conquistado com dor e sofrimento, a justificativa do poeta sentimental, seu
talento: "Das Talent selbst
war es nicht Schmerz?"
32
(MANN, 1973, p. 193).
Quando tudo concorre para a vitória definitiva de Schiller sobre o "Outro", vem
a verdadeira hora difícil, diante da constatação de Goethe ser capaz de produzir
obras tão boas ou mesmo melhores sem o ônus do sofrimento. Neste
momento vem a dúvida: será o outro maior por poder criar à semelhança de um ser
divino? A mera aproximação de Goethe com um ser divino basta para demonstrar o
29
“Bem, então, estava acabado. Derrota. Empreendiemnto fracassado. Falência. Quis escrever isso a
Körner, o bom Körner que acreditava nele, que devotava ao seu gênio uma confiança infantil. O
amigo haveria de zombar, suplicar, espernear; lembrar-lhe-ia o seu Carlos, que nascera entre
dúvidas, sofrimentos e tentativas refeitas, e por fim, depois de todo aquele tormento, acabara
glorioso” (MANN, 1982a, p. 191).
30
“Vingava-se mas ele queria desafiar os deuses que decretavam culpa e impunham penas” (MANN,
1982a, p. 192).
31
“Grandeza! O extraordinário! Conquistar o mundo, ter um nome imortal!’(MANN, 1982a, p. 193).
32
“O próprio talento... não era dor?” (MANN, 1982a, p. 192).
148
diabolismo do agón do Schiller de Mann, mas não é suficiente para fornecer-lhe a
vitória possível. O elemento paliativo vem da matriz mais óbvia para o pensamento
estético de Mann: o ensaio de Schiller concernente à poesia ingênua e sentimental.
Aqui, o personagem Schiller definitivamente justifica-se em sua miséria e encontra
nisso, em sua pequenez, os motivos de sua grandeza heróica. Afinal, Goethe, o
divino de Weimar, grande por si só, tem por obrigação criar coisas grandiosas e
divinas. Mas Schiller, de sua dor e ameaça de esterilidade, pode perseverar e
compreender sua condição transcendendo-a através da criação consciente: "Aber
war Schaffen göttlich, so war Erkenntnis Heldentum, und beides war der, ein Gott
und ein Held, welcher erkennend schuf!"
33
(MANN, 1973, p. 195). Assim, se o
Schiller de Mann é derrotado no fim, trata-se de uma derrota gloriosa, de modo que
é realmente difícil precisar quem é o vencedor ou o perdedor.
É importante destacar que o Goethe de Schwere Stunde” é, ainda que
poderosa, uma figura criada por Mann, o podendo derrotar Schiller por si só.
Mann deve deslocar Schiller por suas próprias forças, e ele o faz por meio de uma
tentativa de engolfar Schiller em si, mesclando-o com Goethe, sintetizando algo de
novo e poderoso: o epígono que se transcende na prioridade estética, o próprio
Mann. Sobre esse aspecto, Marion Fleischer, no estudo já citado, define
corretamente tal procedimento:
[...] o poeta de talento exuberante, despreocupado, o "diletante", portanto, é
aqui representado por Goethe; o poeta sentimental e o ingênuo defrontam-
se subitamente, ambos igualmente grandes na sua arte. Com isto, a
antítese "vida-espírito" torna-se insustentável: pois a arte pertence agora às
duas esferas, ao espírito e à vida. Esta compreensão significaria o caminho
para uma ntese. É verdade que, embora reconhecendo que "o outro" seja
"talvez um deus", Thomas Mann ainda assegura a superioridade moral, o
heroísmo, ao poeta que luta pela arte, que a cria "do Nada, das profundezas
de sua alma"; mas certamente expressa [em Schwere Stunde] uma nova
tentativa (a primeira ocorrera no Tonio Kröger) de encontrar uma conciliação
das antíteses. (FLEISCHER, 1968, p. 25)
Fleischer, todavia, não destaca dois aspectos que têm suma importância para
a compreensão do conto. O primeiro diz respeito ao diabolismo da empreitada do
33
“Mas, se criar era divino, conhecer era um heroísmo, e quem criasse com conhecimento seria a um
tempo deus e herói!” (MANN, 1982a, p. 194).
149
personagem Schiller de Mann; afinal, ao ombrear-se com Goethe tendo por base um
dom criativo que não reconhecia em si mesmo, esta personagem acaba por colocar
em xeque a própria criação e o próprio criador. Tal como Lúcifer, o Schiller de Mann
desautoriza o inquestionável, e se justifica nesta ousadia. O segundo aspecto, por
seu turno, é justamente a essência do conto de Mann: a tentativa de ntese se
para que se crie um poderoso tropo de defesa capaz de rechaçar não só a influência
de Schiller o que é óbvio no conto , mas também a de Goethe. Por meio do
artifício da síntese, Mann pôde enfrentar Schiller ao mesmo tempo em que
encontrava armas para o confronto final com Goethe. Em sua batalha literária, Mann
jamais cometeria o suicídio de se alinhar somente com o lado sentimental, com o
qual talvez tivesse um pouco mais de afinidade. Nestes termos, ele realizou sua
batalha com o ingênuo irmão Heinrich, batalha da qual facilmente saiu vencedor.
Para enfrentar o poderoso Schiller, foi necessária a ajuda de um titã. Para enfrentar
este titã, porém, talvez nem mesmo uma hecatombe sentimental fosse o suficiente.
De qualquer forma, as contas com Schiller estavam acertadas. Restava agora
Goethe.
"Sou um homem de riquezas e bom-gosto..."
Um brasileiro, ainda que seja um leitor perspicaz, pode encontrar dificuldades
para imaginar o significado de Faust na literatura alemã. Possuímos aqui obras
poderosas e admiráveis como Grande sertão: veredas, mas a obra de João
Guimarães Rosa não assume uma posição tão nuclear de maneira a atingir toda
literatura contemporânea, posterior e, espantosamente, anterior. No caso do grande
poema dramático de Goethe, temos a impressão de que estamos diante de um
oceano no qual toda a produção literária germânica flutua e, na maioria das vezes,
naufraga. Thomas Mann, em seu derradeiro esforço estético romanesco que chegou
a uma forma acabada, reservou para si um gran finale apoteótico e decidiu realizar a
proeza de desafiar Goethe em seu território. Nascia assim o mais germânico dos
romances: Doktor Faustus.
Contudo, antes de entrarmos nesta verdadeira disputa fáustica em todos
os sentidos seria interessante lembrar um outro romance de Mann, o saboroso e
provocativo Lotte in Weimar. Neste romance, temos a figura de Charlotte, mulher
150
que inspirara a personagem homônima de Werther, que volta a Weimar para
reencontrar Goethe. Em meio a diversos retratos do poeta pintados por diversas
personagens com destaque para a ambivalente e instigante análise de seu
secretário Riemer temos, em um sétimo capítulo quase legendário, um mergulho
nos pensamentos do próprio Goethe, à semelhança do que Mann fizera com Schiller
em Schwere Stunde”. Se a visão dos outros a respeito do "grande homem" sempre
oscilara entre o divino e o demoníaco mas sempre genial , a visão do próprio
Goethe acerca de si em particular e do poeta em geral também permite essa leitura.
O curioso é que, neste capítulo do livro de Mann, uma outra figura que perpassa
toda a narrativa, gerando uma espécie de contraparte à figura de Goethe, e esta
figura é justamente Schiller. Tal como ocorrera no conto, Goethe se percebe distinto
de seu rival, amando-o, assim como era amado, com uma "terna inimizade". Mas,
apesar disso, o Goethe de Mann tem por Schiller um profundo respeito, baseado no
conhecimento que o amigo tem do mundo, da alma humana e da Arte, e em sua
fecunda amizade por si só.
Tais aproximações deveriam, talvez, causar espanto, uma vez que, em
ambos os textos em questão (“Schwere Stundee Lotte in Weimar), encontramos
posições diametralmente opostas. Apenas para tomarmos um exemplo breve, porém
representativo, observemos a questão do diletantismo. No conto sobre Schiller, o
diletantismo é encarado como um defeito imperdoável do poeta que faz jus a este
nome. no romance sobre Goethe, ele pode ser encarado em termos elogiosos,
ligados diretamente ao gênio e ao seu modelo fundador, o elemento demoníaco. Diz
o Goethe de Mann:
Das macht, sie haben Sinn für Dilettantism, die Herren. Liebhaberei ist
nobel, und wer vornehm ein Liebhaber. Dagegen gemein ist alles, was Gilde
und Fach und Berufsstand. Dilettantism! Über euch Philister! Ahndete euchs
wohl je, dass Dilettantism ganz nah verwandt dem Dämonischen und dem
Genie, weil er ungebunden ist und geschaffen, ein Ding zu sehen mit
frischen Aug, das Object in seiner Reinheit, wies ist, nicht aber wie
Herkomen will, dass mans sehe, und nicht wie der Tross es sieht, der von
den Dingen, den physischen und den moralischen, immer nur ein Bild hat
aus zweiter Hand?
34
(MANN, 1967a, p. 198)
34
“É que os senhores compreendem o diletantismo. O diletantismo é nobre, e quem é nobre é
diletante. Em contrapartida, é vulgar tudo que significa
151
Sendo as posições tão distintas, qual é o elemento capaz de dar aos amigos
rivais um ponto de encontro e equilíbrio? É justamente o elemento demoníaco,
matriz de suas concepções sobre o artista e o genial. Para verificar mais um
exemplo deste fenômeno podemos lembrar que o Schiller de Mann faz um elogio da
doença, elemento de dor capaz de aumentar o caráter heróico do artista. o
Goethe de Lotte in Weimar prefere a saúde e a longevidade, uma vez que o tempo
é de suma importância para o artista que deseja tudo abarcar. Mas, mesmo ao tecer
conjecturas sobre o tempo, este poeta não pode furtar-se da aproximação
demonizante. Em uma passagem significativa na qual suas afinidades com o tão
diverso Schiller se fazem presentes, lemos:
Zeit muss man haben. Zeit ist Gnade, unheroisch und gütig, wenn
man sie nur ehrt und sie emsig erfüllt; sie besorgt es im Stillen, sie bringt die
dämonische Intervention... Ich harre, mich umkreist die Zeit. Täte aber das
Ihre allenfalls schneller, wär er noch da. Ja, mit wem sprech ich über
“Faust”, seitdem der Mann aus der Zeit ist?
35
(MANN, 1967a, p. 193-4)
Eis como podemos encontrar um ponto de contato poderoso entre o Goethe e
o Schiller de Mann, a ponto de o primeiro lamentar a ausência do segundo nos
momentos em que quer discutir o processo de formação de sua obra maior.
Contudo, aqui, podemos encontrar ainda uma curiosa analogia a ser feita a partir da
relação tempo-demonização: afinal, é o tempo que traz a intervenção demoníaca; se
Schiller está fora do tempo uma vez que está morto , não participa mais da
dimensão demoníaca, não podendo, assim, ser um elemento ativo na questão
fáustica. Mais ainda, é tentador ver nesta passagem uma alusão ao próprio Thomas
Mann, uma vez que Schiller não é nomeado, sendo designado pela expressão "der
Mann".
Diletantismo! Malditos filisteus! Sequer suspeitam que o diletantismo tem estreito parentesco com o
demoníaco e com o gênio, pois não se acha ligado e não está criado; ver uma coisa com os olhos
frescos, o onjeto em sua pureza, tal como é, e não como quer a tradição que ele seja visto, e não
como o a chusma, que de todas as coisas, tanto físicas quanto morais, tem somente uma imagem
de Segunda mão?” (MANN, 1984a, p. 250). Tradução de Vera Mourão para a edição da editora Nova
Fronteira, Rio de Janeiro, 1984.
35
“Tem-se de dar tempo. O tempo é uma graça anti-heróica e bondosa, se o honramos e o enchemos
com diligência; obra em segredo, traz a intervenção demoníaca... Eu espero; o tempo me ronda.
Porém, se ele vivesse ainda, talvez o tempo atuasse mais depressa. Sim; com quem posso falar
sobre o Fausto, desde que esse homem saiu do tempo?” (MANN, 1984a, p. 243).
152
Tal liberdade interpretativa não deve ser descartada aprioristicamente, uma
vez que esse princípio genial-demoníaco embasa tanto a obra magna de Goethe
quanto a de Mann. No poema goethiano, podemos encontrar provas convincentes
da aproximação entre o gênio e a figura do demônio. Logo de início, no "Vorspiel auf
dem Theater", a figura do poeta formula uma pergunta cuja resposta é sintomática:
"Wer sichert den Olymp? Vereinet Götter?/ Des Menschen Kraft, im Dichter
offenbart"
36
(GOETHE, s/d., p. 7). A imagem prometeica do gênio, representada aqui
pelo poder humano, que aqui se vangloria da ousadia de poder tanto sustentar
quanto conter os deuses, é por si bastante demonizada, porém, esse nio
passará por uma etapa intermediária antes de se identificar plenamente com a figura
demoníaca. Trata-se do momento em que Fausto invoca o Espírito
37
da Terra.
Fausto coloca-se como igual frente à entidade, chegando a afirmar: "Ich bin's, bin
Faust, bin deinesgleichen"
38
(GOETHE, s/d., p. 17). Ou, ainda: "Der du die weite
Welt umschweifst,/Geschäftiger Geist, wie nah fühl' ich mich dir!"
39
(idem, ibdem). A
resposta do Espírito adquire contornos de ambivalência, através da afirmação: "Du
gleichst dem Geist, den du begreifst,/ Nicht mir!"
40
(idem, ibdem). É magnífica a
maneira como Goethe joga com o campo semântico da idéia de gênio (aproximada,
aqui, à palavra "Geist")
41
, de maneira que a figura do homem extraordinariamente
dotado aproxima-se da entidade mágica e poderosamente capaz. Entretanto, para
Fausto (assim como para Goethe), tal identificação não é suficiente. Deste modo, no
momento em que Mefistófeles se apresenta a Fausto, ele se define como o Espírito
(Geist) que sempre nega. Novamente Goethe joga com as expansões semânticas
capazes de aproximar "Geist" e a idéia de gênio, de modo que, da aproximação
Fausto-Mefistófeles, ou seja, da aproximação genial-demoníaca, temos a
formalização do pacto diabólico e o conseguinte desenrolar de todo o poema
dramático. Fausto e Mefistófeles inter-relacionam-se de tal modo que, em Faust II, o
36
“Quem firma o Olimpo, à união os deuses chama?/ O gênio humano, que no poeta se revela
(GOETHE, 1997, p. 32). Tradução de Jenny Klabin Segall para a edição Itatiaia, Belo Horizonte,
1997.
37
No original alemão, o termo utilizado é "Geist" que, em se tratando do universo goethiano, não é
estranho ao campo semântico do genial. Em suas Gespräche mit Goethe, Eckermann afirma que
este ao comentar a tradução de "Geist" para o francês como "esprit", propõe justamente o termo
"génie".
38
“Sou eu, sou Fausto, o teu igual!” (GOETHE, 1997, p. 45).
39
“Tu, que o infinito mundo rondas,/ Gênio da Ação, sinto-me um só contigo!”(GOETHE, 1997, p. 45).
40
“És um, com o gênio que em ti sondas;/ Mas não comigo!” (GOETHE, 1997, p. 45).
41
É importante lembrar que, na língua portuguesa, a tradução usual para tal tipo de entidade seria
justamente "gênio", o que corrobora ainda mais a aproximação. Apenas evitei tal tradução para fugir
de qualquer confusão semântica.
153
diabólico personagem toma vigorosamente a fala, assumindo um papel de maior
destaque ainda.
Mas Goethe é um artista poderoso demais para se contentar com o óbvio. Ao
fim do poema, quando todos esperamos o destino inevitável do pactário (embora, no
"Prolog im Himmel", sua salvação seja anunciada), Goethe vai contra toda a tradição
fáustica, seja a do Volksbuch, com suas raízes populares, ou a de Marlowe, na qual
o personagem apresenta alguns anseios de absoluto, e salva a alma do
protagonista, com direito ao umheimlich de uma legião de nádegas apetitosas que
seduzem Mefistófeles. Que ninguém veja nisto um manifesto religioso de uma alma
penitente salva pela Virgem Maria. Como bem destaca Harold Bloom (1995, p. 227-
8), a salvação de Fausto não se nos moldes cristãos. Ele, na verdade,
praticamente engana o Diabo, de maneira que a identificação de seu gênio com o
diabólico atinge a transcendência, adquirindo contornos divinizantes.
Tudo isto é sublime em moldes longinianos, e, portanto, universal. o
universal que corre o risco de não ser intrinsecamente germânico. A partir deste
mote, Thomas Mann (que sempre cultivou reflexões sobre o que é "ser alemão")
busca corrigir o texto goethiano ao nos oferecer "Das Leben des deutschen
Tonsetzers Adrian Leverkühn, erzählt von einen Freunde"
42
(MANN, 1947, p. 5), tal
como se lê no subtítulo do Doktor Faustus, romance publicado em 1947. Ao criar a
figura de Adrian, Mann nos brinda com um gênio também inconformado com seus
limites, e que busca, por meio do pacto demoníaco, ir além deles. Entretanto, o
inevitável aroma universalizante do Faust de Goethe é substituído, antes, por um
austero tom eminentemente germânico em Mann. Serenus Zeitblom, narrador do
romance e amigo de Leverkühn, ao falar de um dos vários momentos de recaída de
saúde do protagonista, faz um comentário significativo:
So wenig es möglich war, das Absinken seiner Gesundheit mit dem
vaterländischen Unglück in gemüthafte Verbindung zu bringen,
meine
Neigung, das eine mit dem andern in objektivem Zusammenhang,
symbolischer Paralele zu sehen, diese Neigung, die eben nur durch die
Tatsache der Gleichzeitigkeit mir eingegeben sein mochte, war unbesieglich
durch seine Ferne von den äusseren Dingen, mochte ich den Gedanken
42
“A vida do compositor alemão Adrian Leverkühn narrada por um amigo” (MANN, 1984b, p. 3).
Tradução de Herbert Caro para a edição Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984.
154
auch sorgsam bei mir verschliessen und mich wohl ten, ihn vor ihm auch
nur andeutungsweise zur Sprache zu bringen.
43
(MANN, 1947, p. 524)
A desgraça da pátria em questão é a ascensão nazista na Alemanha,
símbolo, na "vida real", da tragicidade fáustica. Mais do que uma mera aproximação,
podemos ver na catástrofe do nazismo a concretização, para o mal, da aproximação
entre o gênio artístico e o caráter demoníaco. Peter Cohen, cineasta dimamarquês
de origem judia, produziu um monumental documentário intitulado A arquitetura da
destruição. Neste precioso momento do cinema, Cohen propõe uma tese segundo
a qual a tragédia nazista seria fruto de um ideal estético e de frustrações artísticas
dos principais nomes do terceiro Reich. Em nenhum momento Cohen faz apologia
de Hitler e seus aliados (o cineasta, inclusive, teve de fugir da Alemanha devido às
perseguições decorrentes de suas origens judias), mas trata com sensibilidade as
agruras daqueles que vendem suas almas por um ideal estético.
Mann também soube captar esta tragédia, mesmo porque o autor não passou
incólume com relação a este fato marcante da história mundial. Betrachtungen
eines Unpolitischen (texto que lhe rendeu severas críticas do irmão Heinrich) e, em
especial Bruder Hitler, dão mostras do quanto Mann esteve próximo de se fazer
personagem de suas próprias tragédias. Assim, sua obra maior, Doktor Faustus,
trata do tema com raras profundidade e agudeza, marcando este momento crucial
o do pacto demoníaco no capítulo XXV. Neste capítulo, o enfrentamento paródico
de Mann com relação a Goethe chega ao extremo da utilização gráfica da forma
dramática para ilustrar o diálogo entre Adrian (representado por um "Ich") e o diabo
(representado por um "Er"). De tal pacto, Leverkühn obtém poderes criativos para
amplificar seus brilhantes dons musicais, rumo a uma originalidade arcana e
assutadora. Mas o elemento infernal agarra-se encarniçadamente ao gênio que, em
uma das falas desse "Ele" ("Er"), vem representado por seu ancestral etimológico:
"Hat die Sonne bessres Feuer, als die Küche? Und heile Grösse! Wenn ich davon
43
Por menos que fosse possível estabelecer um contato psíquico entre o declínio de sua saúde e a
desgraça da pátria, não pude inibir-me de descobrir em ambos um nexo objetivo, um paralelo
simbólico. Essa inclinação talvez tivesse sua origem no mero fato da simultaneidade, mas nem
sequer a distância que Adrian mantinha das coisas exteriores lograva superá-la. Escondi, porém,
cuidadosamente esses pensamentos e me abstive de mencioná-los nem de longe em sua presença”
(MANN, 1984b, p. 463).
155
nur höre! Glaubst du an sowas, an ein Ingenium, das garnichts mit der Höllen zu tun
hat?"
44
(MANN, 1947, p. 366).
Este gênio demoníaco de Mann mantém estrei2 0 Td(t)Tj3.12599 0 Td(í)Tj3.12599 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td(c)Tj5.77(e)Tj6.25197
156
Assim, além de fazer de Goethe personagem em seu Lotte in Weimar, Mann
também se traveste em Adrian, uma vez que a obra mais radical do músico será
uma "lamentação do Doutor Fausto". Trata-se de mais um recurso engenhoso que
redimensiona esta mise-en-abyme paródica, expandindo o campo de batalha
estético para o domínio musical. Desse modo, além do confronto com Goethe,
Adrian, este nio alemão, define-se no confronto com outro gigante da arte na
Alemanha: Ludwig van Beethoven. Encontrar a figura de Beethoven no Doktor
Faustus não é estranho, uma vez que Adrian Leverkühn é um compositor. Além
disso, as relações entre Goethe e Schiller, em especial seu aspecto mais titânico, e
Beethoven, são algo evidente, e ao menos um historiador da música o afirma
diretamente, conforme exemplifica Massimo Mila em sua Breve storia della
musica:
Il titanismo prometeico, che Goethe e Schiller giovani avevano
promosso, aizzando l'individuo in lotta contro la società ingiusta e contro la
stessa divinitá, fu vissuto da Beethoven con intensità senza pari,
nell'impegno preso con se stesso di reagire coraggiosamente contro le
avversità della sua infelicissima vita. (MILA, 1993, p. 195)
Assim sendo, Beethoven avulta como o Goethe da música (ou seria Goethe o
Beethoven da literatura?). O que é indiscutível é o fato de que a produção
beethoveniana surge no Doktor Faustus como um ideal de germanidade; contudo
este ideal não pode se realizar, pois, sendo muito próximo das alturas divinas, não
se coaduna com os cantos lamentosos de um gênio que se identifica com um Lúcifer
expulso do Céu:
Es gab Jahre, in denen wir Kinder des Kerkers uns ein Jubellied, den
"Fidélio", die Neunte Symphonie, als Morgenfeier der Befreiung
Deutschlands
seiner Selbstbefreiung
erträumten. Nun kann nur dieses
uns frommen, und dieses nur wird uns aus der Seele gesungen sein: die
Klage des Höllensohns, die furchtbarste Menschen
und Gottesklage, die,
ausgehend vom Subjekt, aber stets weiter sich ausbreitend und gleichsam
den Kosmos ergreifend, auf Erden je angestimmt worden ist.
47
(MANN,
1947, p. 735-6)
47
“Anos houve em que nós, filhos do cárcere, sonhávamos com o canto jubiloso, o Fidélio, a Nona
Sinfonia, para festejarmos a aurora da libertação da Alemanha, da liberdade obtida por suas próprias
157
Disto decorre que o pacto una Leverkühn à figura do anjo caído e é por meio
da tortura seguida de morte de um inocente anjo de glória, representado no romance
pelo seu jovem sobrinho Nepomuk, que Adrian é impelido à sua maior criação, a
"Lamentação do doutor Fausto". Não como negar a força deste ponto culminante
do romance, em que o diálogo entre Adrian e Serenus, durante a horrível agonia da
criança, atinge um pathos terrível:
Ich habe gefunden, sagte er,
es soll nicht sein.
Was, Adrian, soll nicht sein?
Das Gute und Edle, antwortete er mir,
was man das
Menschliche nennt, obwohl es gut ist und edel. Um was die Menschen
gekämpf, wofür sie Zwingburgen gestürmt, und was die Erfüllten jubelnd
verkündigt haben, das soll nicht sein. Es wird zurückgenommen, ich will es
zurücknehmen.
Ich verstehe dich, Lieber, nicht ganz. Was willst du zurücknehmen?
Die Neunte Symphonie, erwiderte er. Und dann kam nichts mehr,
wie ich auch wartete.
48
(MANN, 1947, p. 725-6)
Este momento marca a anulação da primazia de Beethoven e da divina
Neunte Symphonie em benefício da demoníaca "Lamentação" de Adrian. Conforme
pudemos depreender das relações entre Beethoven e os dois gênios do classicismo
alemão, a revogação da obra mais famosa de Beethoven apresenta-se como uma
tentativa, por parte de Mann, de desdizer Schiller (vale lembrar que o coro final da
sinfonia de Beethoven utiliza a ode "An die Freude" schilleriana) e principalmente
Goethe, cujo supremo texto literário é espelhado, em termos de equivalência
estética, no supremo texto musical.
forças. Neste momento, porém, uma única sica pode servir-nos, somente ela corresponderá a
nossas almas, a saber: a lamentação do filho do Inferno, a lamentação humana e divina, que,
partindo do indivíduo, mas ampliando-se cada vez mais e, em certo sentido, apoderando-se do
cosmo, há de ser a mais horrenda que jamais tenha sido entoada na terra” (MANN, 1984b, p. 653).
48
Achei a solução: aquilo não deve existir.
O que não deve existir, Adrian?
O bom e o nobre respondeu , aquilo que qualificamos de humano, embora seja bom e
nobre. Aquilo por cuja causa os homens têm lutado e têm tomado bastilhas de assalto; aquilo cuja
glória os extáticos proclamaram jubilosamente; aquilo o deve existir. Se revogado. Eu o
revogarei.
Não te compreendo inteiramente, meu amigo. Que é que vais revogar?
A Nona Sinfonia replicou, sem acrescentar mais nenhuma palavra, por mais que eu
ansiasse ouvi-la” (MANN, 1984b, p. 644).
158
Ao fim desta tragédia, Adrian Leverkühn paga o preço por sua ousadia,3Rd(s)Tj5.77105 0  Td(e)Tj6.13174 3 Td(o2.52483 0 Td(a)Tj6.25190 Td(i)Tj2.64500 Td(n)47Rd(s)Tj5.77105 0 714 0 Td( )Tj4.80921 0 Td(s)Tj5.77105 0 Td(u)Tj6.3722 0 01151j3.12599 0 Td(3 97 0 Td(,)Tj3.125 714 0 Td( )Tj4.8197 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td(t)Tj3.12599 0 T37796u)Tj6.3722 0 01151j3.125197 0 Td(o)Tj6.25197 0 T(,)Tj3.12544 0 Td(p)Tj6.25197 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td(r)Tj3.7297 0 Td(s)Tj5.650197 0 T(,)Tj3.1252.52483 0 Td(a)Tjt97 0 Td(s)Tj5.65Rd(s)Tj5.771001151j3.12599 0 Td(3082 0 Td(t)Tj3.12599 0 Td(a)Tj6.25b2 0 Td(a)Tj6.13174 0 Tdd(r)Tj3.72l7 0 Td(r)Tj3.727082 0 Td(t)Tj3.12c9 0 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159
Este gênio, que desde os primórdios do Sturm und Drang não aceita
quaisquer limitações, almejando o infinito, entra em choque com este perfil de
alemão típico. Desta maneira, o conceito de gênio alemão surge realmente ligado,
ainda que paradoxalmente, a uma espécie de mediocridade inconformada que deve
atingir a grandeza por seus próprios esforços.
Mas a que preço? Voltando aos primórdios da literatura alemã,
surpreendemo-nos, entre intrigados e encantados, com a figura de Hagen em Das
Nibelungenlied. Ele é um herói ou um vilão? Quando mata o heróico e carismático
Sigfried à traição, é um vil assassino. Porém, quando vem à nossa mente sua
imagem no castelo de Etzel, sentado com a espada Balmung ao colo, em meio a
inimigos sedentos e esperando seu destino cruel e inevitável, somos obrigados a
nos render à sua magia estética. Herói? Vilão? Nem um, nem outro. Ou talvez os
dois. Na verdade, Hagen é uma variação deste gênio alemão, buscando no inferno
escadas que cheguem ao céu. Ao fim, nova queda rumo às profundezas, pois as
asas da escuridão não sustentam vôos na luminosidade acima das nuvens. Ao fim, é
uma morte sem glória nas mãos de Criemhild.
Este é também o caso de Adrian Leverkühn, mas seria também o de Thomas
Mann? Ao fim do Doktor Faustus, não temos a apoteose celestial do Faust. Esta
apoteose é pica de um autor que transcendeu até mesmo sua condição de gênio
alemão para se aproximar de um ideal de gênio universal. Mann, o mais germânico
dos autores, no mais germânico dos romances, apenas intuiu tal glória no fio de
esperança que Serenus sonha estar presente no fim da "Lamentação" de Leverkühn.
No fim das contas, Doktor Faustus é a tragédia da germanidade, do nio alemão,
e também do gênio de Mann. Mas se que no extremo desta germanidade não
encontraremos algo de universal? Melhor não arriscar uma resposta categórica. É
preferível apenas sorrir com a ironia da expressão "a tragédia de Mann", se
considerarmos o significado do nome do autor.
Encerrando este breve percurso junto a Thomas Mann e o gênio na literatura
alemã, seria particularmente curioso deixar no ar uma singela provocação: qual o
papel do Doktor Faustus na tragédia pessoal de Mann? Se nos permitirmos a
liberdade, poderíamos lembrar que Mann lutou ferozmente com uma doença grave
enquanto escrevia o seu Fausto, vindo a falecer pouco mais de sete anos após a
publicação do livro. O que será que isso significa? Feliz ou infelizmente, o
160
necessidade de procurar ao redor um sutil cheiro de enxofre. Talvez isto apenas
signifique que Mefistófeles estava certo, em sua suprema transgressão demoníaca
frente ao ato criacional e a todos os criadores inclusive o supremo , ao partir
para a noite de Walpurgis clássica, dizendo a seus interlocutores:
Nun zum Peneios frisch hinab!
Herr Vetter ist nicht zu verachten.
Para depois, estraçalhando a quarta parede, concluir para os espectadores:
Am Ende hängen wir doch ab
Von Kreaturen, die wir machten.
52
(GOETHE, s/d., p. 72)
52
“Bem, ao Peneu, ora, baixemos,/ não se despreze o primo! Vamos!/ No fim tão sempre
dependemos/ Das criaturas que criamos” (GOETHE, 1997, p. 283).
161
ET SPIRITUS SANCTI:
France
162
CEUX QUI DONNERENT L'ÂME AUX ENFINS DE
SATAN
Les génies sont une dynastie. Il n’y a
même pas d’autre. Ils portent toutes
les couronnes, y compris celles
d’épines.
Victor Hugo, William Shakespeare
Règles pour la direction du génie
O gênio na literatura francesa é luminoso. E não apenas no sentido de
radiância intelectual modelar, como um dos "faróis" do pensamento humano. Esse
gênio é luminoso também quanto ao paradigma da própria idéia de gênio. o sem
razão, essa idéia floresce, no caso específico da literatura francesa, durante o
século XVIII, no período conhecido como Les Lumières, "As Luzes". Sob a égide do
panteão dos grandes iluministas como Rousseau, Voltaire e Diderot, dentre outros,
Filosofia e Literatura, tomadas como conceitos, conjugaram-se com rara felicidade
de modo a cumprir a missão prometeana de esclarecer o mundo. Os fatores que
contribuíram para tanto são vários e não seria possível, aqui, levantar senão os mais
importantes para a discussão proposta. Em termos políticos, em momento
imediatamente anterior, foi de fundamental importância o apogeu do reino de Luís
XIV, não sem razão conhecido pela significativa alcunha de "Rei Sol". Considerado
em termos amplos, o grand siècle da França criou condições para o
desenvolvimento intelectual, em geral, e artístico, em particular, sobretudo no
tocante à Literatura. Além do impulso gerado pelas relações do poder real com
autores como Corneille, Racine e Molière, a adoção do francês como língua
diplomática contribuiu decisivamente para assegurar a superação do latim como
idioma científico e cultural. Outro fator, diretamente decorrente deste, foi o caráter
programático de grupos como a Pléiade que levaram a cabo uma reflexão intensa
acerca da natureza e das possibilidades da própria literatura francesa, seja por meio
de seus pressupostos teóricos relacionados à sua natureza estética e poética, seja
163
por meio de uma práxis metódica relacionada à expansão do próprio idioma. Além
disso, o movimento progressivo no sentido de um Estado laico (que talvez tenha
encontrado um marco no fim da influência do cardeal Richelieu sobre o já citado Luís
XIV) garantiu a liberdade de pensamento necessária para esse desenvolvimento
prodigioso, que pôde mesmo se dar ao luxo de se garantir um ícone, um monumento
ao pensamento humano: a Encyclopédie. Mas essa liberdade possui um limite, ou,
ao menos, um elemento norteador de inegável importância, e esse elemento é a
Razão.
A ligação do pensamento francês (tanto o científico-filosófico quanto o
artístico) com a ratio tem seu fundamento na obra de René Descartes. Nascido em
1596, Descartes marcará decisivamente o século subseqüente com sua filosofia e,
embora nem sempre algo destacado devidamente, com sua escritura. Além disso,
embora não chegue a trabalhar diretamente sobre o tema, sefundamental para a
idéia de um gênio francês, não apenas por simbolizar, para as gerações
subseqüentes, um exemplo consumado de "homem de gênio", mas por refletir sobre
outros elementos que contribuíram para o estabelecimento da idéia. Sobre a
modelaridade de Descartes para a França, o livro hiperbólico de André Glucksmann,
publicado em 1987 uma idéia por seu título: Descartes, c'est la France, no qual
o cartesianismo é tomado como um verdadeiro valor nacional.
Mas qual o papel e o aspecto que essa ratio assume no cartesianismo e em
que sentido ele se liga com a discussão estabelecida até aqui? Com relação ao
papel da razão no pensamento de Descartes, ela é o fiel da balança na distinção do
conhecimento falso do verdadeiro, cerne de sua filosofia e de seu método.
Atualizando, à sua maneira, a busca filosófica da Verdade, Descartes adota a dúvida
como meio de pôr à prova todas as idéias e conhecimentos de modo que aqueles
que não passem pelo teste devam ser descartados como base para a reflexão
enquanto pressupostos. Para um julgamento válido nesse sentido, na concepção de
Descartes, as paixões seriam algo a ser superado, uma vez que seriam obstáculo
nesse processo de esclarecimento, e a opção a esse pathos dificultador seria
justamente a razão. E, quanto à aplicação de seu método, Descartes é
extremamente rigoroso, chegando mesmo a afirmar que seria preferível jamais
buscar a verdade se, para tanto, devêssemos fazê-lo sem método (DESCARTES,
1999, p. 46). Mas não devemos confundir esse rigor com a idéia de limitação
redutora, uma vez que Descartes é, na verdade, um defensor justamente da
164
liberdade de pensar, sendo seu rigor, antes, o cuidado extremo no intuito de garantir
essa liberdade. Afinal, é apenas por meio dessa liberdade que o ser humano pode
aspirar a "ver claramente" (metáfora "luminosa" interessante não apenas por sua
importância com relação às Luzes, mas para a discussão do gênio "luciferino"). E,
em sua obra mais conhecida, o Discours de la méthode, de 1637, Descartes
exprime aquilo que seria a base de todo seu pensamento: "Et i'auois toujours vn
extreme desir d'apprendre à distinguer le vray d'auec le faux, pour voir clair en mes
actions, & marcher auec assurance en cete vie"
53
(DESCARTES, 1973, p. 10).
Ainda sobre a questão da liberdade e do rigor, vale ressaltar que ela é
realmente de suma importância face à discussão a propósito do gênio, uma vez que
a idéia de genialidade é, independentemente das particularidades da cultura e da
literatura francesa, relacionada justamente aos princípios de liberdade e poder de
criação, em franca oposição a quaisquer restrições ou princípios norteadores pré-
estabelecidos. Argutamente, nesse sentido, Jérome Vérain, em um texto chamado
"La Raison joyeuse", lembra:
Loin de refuser les éclairs du génie, il [Descartes] réhabilite les vertus de
l'intuition: c'est même la recherche d'une évidence indémontrable, mais
incontestable, qui suscite le fameux cogito. Loin de le couper du monde, sa
démarche manifeste, en me temps qu'elle lui donne les outils d'analyse
adéquats, une curiosité pratiquement sans limites. Des tourbillons aux
flocons de neige, des avalanches aux aberrations téorologiques, rien qui
ne l'intéresse. Ciel, terre, intérieur des corps: il voulut tout observer par lui-
même, sans a priori. L'un des adversaires qu'il se donna pour che de
combattre - car il en eut un autre - était ce savoir aristotélicien sclérosé,
accumulé dans la poussière des livres, dont se nourrissait sans critique,
depuis des siècles, le radotage scolastique. L'extraordinaire remise en
cause - une véritable "table rase" - des connaissances acquises au collège
de La Flèche, qui ouvre le Discours, n'a pas d'autre sens: le savoir n'est rien
sans la raison. Mais celle-ci, "instrument universel" peut nous "rendre
comme maîtres et possesseurs de la nature". Un jour qu'un visiteur lui
demandait la faveur d'admirer ses livres, tel un pèlerin désireux d'approcher
la source mystérieuse et sacrée de sa religion, Descartes l'entraîna dans sa
cuisine, et lui désigna le cadavre d'un veau préparé pour la dissection:
53
Respeitou-se, nas citações do Discours, a ortografia do texto de 1637 de acordo com a edição fac-
similar sob os cuidados de Charles Adam e Paul Tannery (Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1973)
.
165
"Voilà, dit-il, toute ma bibliothèque" (VERAIN, 2000, p. 78)
Nessa passagem podemos perceber dois elementos de suma importância:
Um, a despeito de Descartes ainda não usar o termo, é o destaque da idéia de gênio
no pensamento cartesiano. Outro, ligado a este, é o papel do intelecto livre pela
razão como um deus de seu universo. Com relação a este último aspecto, em um
mundo no qual se sente a forte mão dos poderes estabelecidos da igreja cristã (seja
a católica na França ou a protestante de orientação calvinista da Holanda), não
podemos deixar de pensar em uma espécie de "gênio diabólico" confrontando o Céu
por meio de seu poderoso intelecto. Com relação ao gênio, considerado aqui como
avatar dos poderes de criação do artista, Descartes, na quinta parte do Discours, ao
falar de seu método de reflexão a respeito do mundo exterior ao Eu, compõe seu
texto de modo muito interessante:
I'ay eu dessein d'y comprendre tout ce que ie pensois sçavoir, auant que de
l'ecrire touchant la Nature des choses Matérielles. Mais, tout de mesme que
les peintres, ne pouuant esgalement bien representer dans vn tableau plat
toutes les diuerses faces d'vn cors solide, en choisissent vne des
principales, qu'ils mettent seule vers le iour, & ombrageant les autres, ne les
font paroistre, qu'en tant qu'on les peut voir en la regardant : ainsi, craignant
de ne pouuoir mettre en mon discours tout ce que i'auois en la pensée,
i'entrepris seulement d'y exposer bien amplement ce que ie conceuois de la
Lumiere; puis, a son occasion, d'y adiouster quelque chose du Soleil & des
Estoiles fixes, a cause qu'elle en procede presque toute; des Cieux, à cause
qu'ils la transmettent; des Planetes, des Cometes, & de la Terre, à cause
qu'elles la font refleschir; & en particulier de tous les Cors qui sont sur la
terre, à cause qu'ils sont ou colorez, ou transparens, ou lumineux; & enfin de
l'Homme, à cause qu'il en est le spectateur. Mesme, pour ombrager vn peu
toutes ces choses, & pouuoir dire plus librement ce que i'en iugeois, sans
estre obligé de suiure ny de refuter les opinions qui sont receuës entre les
doctes, ie me resolu de laisser tout ce Monde icy à leurs disputes, & de
parler seulement de ce qui arriueroit dans vn nouueau, si Dieu creoit
maintenant quelque part, dans les Espaces Imaginaires, assez de matiere
pour le composer, & qu'il agitast diuersement & sans ordre les diuerses
parties de cete matiere, en sorte qu'il en composast vn Chaos aussy confus
que les Poetes en puisse feindre, & que, par apres, il ne fist autre chose que
prester son concours ordinaire a la Nature, & la laisser agir suiuant les Loix
qu'il a establies. (DESCARTES, 1973, p. 41-42)
166
De início, salta aos olhos que o laboratório no qual a reflexão cartesiana a
respeito de tudo que é exterior ao Eu poderia se desenvolver não é o mundo
apreendido pelos (duvidosos, vale lembrar, segundo Descartes) sentidos, mas um
"outro", criado no âmbito da imaginação. Ao fazê-lo, Descartes se aproxima do
arquétipo do gênio criador que tem como paradigma e adversário, em um mundo
cortado pelo mythos judaico-cristão, a própria figura de Deus. Abrir espaço para um
aparente "ato de desagravo" frente à prioridade divina do supremo criador ("si Dieu
creoit maintenant quelque part") não esconde o fato de que Descartes inverte as
prioridades por meio de uma concepção poética ou antes poiética da organização
ordenada do caos pelo ato criador. Afinal, os limites imaginativos da ausência de
ordem nesse caos, para Descartes, não são a imaginação divina, mas a do poeta.
Falando da quinta parte do Discours de la méthode e, mais especificamente, dos
comentários de Descartes a respeito do corpo, Gérard Dessons justamente esse
embate entre caos e cosmos, no qual o último, espiritualizado, parece corroborar a
visão do artista enquanto criador de ordem:
Le corps vérifie, dans l’évidence de sa matérialité, la transcendance du
logos comme mise en sens du monde. La rationalité du corps, sa
cohérence logique, sont l’effet d’un discours qui énumère des entités, décrit
des fonctionnements. Le spectacle anatomique est, en réalité, moins celui
du corps, exposé dans son étrangeté, que celui de sa rationalisation
progressive. Chez Descartes, […] ce qui est montré, c’est le chaos charnel
transformé en cosmos spirituel. Le corps « tenu » par l’esprit. (DESSONS,
2006, p. 43)
Contudo, aqui, se atentamos para o texto de Descartes, sem que o espectro
da razão conduza a leitura compondo o todo a partir de seu princípio, começamos a
notar certos elementos que, transparecendo por meio da própria escritura
cartesiana, lembram-nos a visão do gênio proposta até aqui: demoníaca. Pois, ao
ligar o poeta com a idéia de caos, Descartes poderia incorrer em uma contradição
conceitual, uma vez que o poeta é representante do princípio de cosmos no universo
da criação, que a ordem existente por meio seja de regras de composição, seja
das opções do autor espelha esse princípio de organização. Mas, ao escolher esse
exemplo, Descartes não estava apenas "enfeitando" seu texto com uma
167
flexibilização do rigor de raciocínio (o que iria de encontro ao seu próprio
pensamento), mas conjugando mito e poesia para criar uma visão agônica do
criador poético em relação a Deus. A expressão escolhida, "aussy confus que les
Poetes en puisse feindre", sobretudo pela utilização do verbo "feindre", aponta para
a natureza da própria ficcionalidade da criação poética que, aqui, serve, por inversão
metaléptica, de parâmetro imaginativo às possibilidades de criação divina. Tal
postura bastaria para uma visão do poeta demoníaco, mas outro elemento da
escritura cartesiana vem corroborar a tendência: a junção da figura do poeta com o
caos. Sendo, conforme já foi dito, ligado ao cosmos, o poeta, ao figurar como agente
do caos, liga-se, miticamente às figuras que representam essa idéia e que sempre
foram configuradas como adversários do poder divino estabelecido ou a se
estabelecer. Esse é o caso da babilônica Tiamat, símbolo do caos contra a ordem de
Marduk no Enuma Elish, ou mesmo da figura de Leviatã no perdido Livro das
batalhas de YHWH, em oposição ao Deus hebreu. Em ambos os casos, temos
ancestrais da figura do Diabo tal como será estabelecida após o advento do
cristianismo e, sobretudo após a Idade Média. Talvez se possa ver em tal
abordagem da escritura cartesiana um exagero, uma vez que, sendo enfocado
costumeiramente como filósofo, pensa-se, não raro, que isso o excluiria da posição
de escritor. Bastaria a lembrança de nomes como Nietzsche ou, no contexto francês,
Rousseau, para mostrar como tal cisma é improcedente, mas o texto cartesiano
basta para tanto. Lembremos que uma das metáforas fundamentais de Descartes
para o objetivo da ação intelectual humana é a da "luz". Na passagem citada,
podemos identificar como os vocábulos ligados ao campo semântico luminoso, seja
por aproximação ou afastamento, abundam no fluxo discursivo ("iour", "ombrageant",
"voir" "en [...] regardant", "Lumiere", "Soleil", "Estoiles", "colorez", "transparens" e
"lumineux"), e isso em apenas um período. O caráter da seleção poética da escritura
mostra-se patente até mesmo em sutilezas como a expressão "Estoiles fixes", que
poderia, por seu caráter genérico, fugir do campo semântico da luz, mas que,
surgindo em contraste com "Planetes", "Cometes" e "Terre", aponta para sua
natureza cada vez mais ligada à emissão de luz. E mesmo o avatar do artista criador
que abre a passagem é ligado à esfera da luminosodade, uma vez que é o pintor, e
não o poeta, que surge como elemento identificador. E, considerando-se tais
aspectos, podemos verificar o quanto é significativa a repetição do verbo "ombrager"
em tão curto espaço e, mais, significando o procedimento da reflexão cartesiana
168
quanto ao aspecto seletivo de temas. Tal precisão vocabular cria um texto no qual
um jogo de espelhos reproduz elementos a princípio distintos que se aproximam e
se alteram. Em uma instância mais particular, relembra a oposição no espectro
luminoso que faz referência a outras obras de Descartes como Monde ou Traité de
la lumière.
169
cette faculté purement humaine et relative la partie supérieure de
l’intelligence, ou même d’y réduire celle-ci tout entière ; c’est ce qui
constitue le “rationalisme”, dont le véritable fondateur fut Descartes.
(GUÉNON, 2005, p. 105)
E Guénon continua nesse sentido, destacando a suposta maneira pela qual o
racionalismo cartesiano (“cette limitation de l’intelligence[GUÉNON, 2005, p. 105]),
poderia matar a especulação e a intuição estabelecendo um “naturalismo” capaz de
acabar com a metafísica. Analisando tal ataque, é fácil notar a ironia da ressalva
sans entrer dans tous les détails”: caso o fizesse, Guénon não poderia negar que a
razão cartesiana não está apenas no fundamento de um universo intelectual laico
que será sempre tão caro ao pensamento francês, mas age como interpretante da
própria atividade intelectual, sob a forma de escritura. E, ao fazê-lo, e dessa forma,
potencializa o escritor enquanto criador de um modo que não nega o princípio de
inteligência divina, mas a utiliza em termos litotéticos para afirmar aquela de um titã
do ato reflexivo humano em um processo que tem menos na razão e mais no totem
incontornável Descartes seu titã. Esse titanismo do Eu, conforme foi visto, não
está de modo algum ausente do pensamento cartesiano, e mesmo sua escritura,
conforme se pode notar cada vez mais, aponta para isso. Em uma célebre
passagem da parte imediatamente anterior do Discours, a quarta, na qual
determina seu cogito, Descartes, falando a respeito da possibilidade de que todo o
mundo seja uma ilusão dos sentidos, uma falsidade na qual o próprio Eu seria
abarcado, reage à ameaça do kenoma por meio de uma seqüência verbal
prodigiosamente construída e autocentrada:
Mais, aussitost après, i’e pris garde que, pendant que ie voulois ainsi penser
que tout estoit faux, il falloit necessairement que moy, qui le pensois fusse
quelque chose. Et remarquant que cete verité, ie pense, donc ie suis, estoit
si ferme & si assurée, que toutes les plus extrauagantes suppositions des
Sceptiques n'estoient pas capables de l'esbransler, ie iugay que ie pouuois
la receuoir, sans scrupule, pour le premier principe de la Philosophie, que ie
cherchois. (DESCARTES, 1973, p. 32)
Por meio de tal raciocínio, Descartes, claro, determina a existência da alma
em oposição ao corpo sensual, mas o faz por meio da reafirmação do Eu em termos
170
não apenas conceptuais, mas textuais. Em que pese as particularidades da língua
francesa e a necessidade do sujeito verbal expresso, a repetição de oito pronomes
de primeira pessoa do singular, dos quais sete o "je", em tão curta passagem, é
muito significativa. Trata-se do pronome sujeito, do Eu que asume o verbo, que
enuncia e se coloca no interior do texto. O Eu está na medida de todas as coisas,
aqui, no pensamento cartesiano. E mesmo a demonstração subseqüente da
existência e Deus se dá a partir desse Eu:
Pour ce qui est des pensées que i'auois de plusieurs autres choses hors de
moy, comme du ciel, de la terre, de la lumiere, de la chaleur, & de mille
autres, ie n'estois point tant en peine de sçavoir d'elles venoient, a cause
que, ne remarquant rien en elles qui me semblast les rendre superieures a
moy, ie pouuois croyre que, si elles estoient vrayes, c'estoient des
dependances de ma nature, en tant qu'elle auoit quelque perfection ; & si
elles ne l'estoient pas, que ie les tenois du neant, c'est-à-dire, qu'elles
estoient en moy, pourceque i'auois du defaut. Mais ce ne pouuoit estre le
mesme de l'idée d'vn estre plus parfait que le mien : car, de la tenir du
neant, c'estoit chose manifestement impossible; et pourcequ'il n'y a pas
moins de repugnance que le plus parfait soit vne suite & vne dependance du
moins parfait, qu'il y en a que de rien procede quelque chose, ie ne la
pouuois tenir non plus de moy mesme. De façon qu'il restoit qu'elle eust esté
mise en moy par vne nature qui fust veritablement plus parfaite que ie
n'estois, & mesme qui eust en soi toutes les perfections dont ie pouuois
auoir quelque idée, c'est a dire, pour m'expliquer en vn mot, qui fust Dieu.
(DESCARTES, 1973, p. 34)
Ainda não se havia chegado a Fichte, mas a idéia geral de Deus expressa por
Descartes na passagem acima aproxima-se bastante de um princípio de não-Eu
frente a um Eu absoluto que serve de parâmetro reflexivo. Evidentemente, poder-se-
ia ver aqui uma distorção de raciocínio que utiliza particularidades da escritura
cartesiana para conduzir a argumentação. Mas, ao se olhar o painel exposto sem
olhos cerceados pelo preconceito de velhos paradigmas de pensamento podemos
encarar a questão a partir de dois pontos de vista que não a reduzem a uma
"supercherie". Por um lado, o fluxo do intercâmbio de idéias humano, fundado no
discurso, em seu pleno dinamismo, permite que o encaremos não apenas em um
sentido do Tempo, mas em uma direção, mais abrangente, capaz de permitir que
171
vejamos na antecipação uma transposição das impossíveis dificuldades desse
diálogo. Por outro lado, esse mais interessante, podemos, sim, focar a reflexão na
escritura cartesiana uma vez que é por meio dela que se desvela relações nem
sempre evidentes. Partindo dessa constatação, é interessante a constatação de
Gérard Dessons a propósito dessa escritura:
Ce qui frappe dans les phrases de Descartes, c’est précisément ce
sentiment d’un continu, d’une parole sans fin qui toujours se relance. La
syntaxe y est un emboîtement de subordonnées qui, tout à la fois, rend
compte de la complexité d’un mécanisme, nomme et décrit les pièces qui
entrent dans sa composition, et expose le fonctionnement de ce système en
montrant la multiplicité et la simultanéité de ses mouvements. (DESSONS,
2006, p. 44-5)
Se adotarmos essa última posição (de uma poética cartesiana determinante
para seu pensamento filosófico), podemos encontrar mesmo em texto latinos de
Descartes possibilidades ocultas em sua seleção verbal. Em suas Méditations
métaphysiques, Descartes, pensando ainda no problema do erro a que pudesse
ser induzido pela captação sensorial de um mundo questionável, acena com uma
possibilidade audaciosa para alguém inserido em um mythos cristão: a possibilidade
de que fosse induzido ao erro por um "mauvais génie" enganador:
Supponam igitur non optimum Deum, fontem veritatis, sed genium aliquem
malignum, eundemque summepotentem & callidum, omnem suam
industriam in eo posuisse, ut me falleret : putabo caelum, aerem, terram,
colores, figuras, sonos, cunctaque externa nihil aluid esse quam
ludificationes somniorum, quibus insidias credulitati meae tetendit:
considerabo meipsum tanquam manus non habentem, non oculos, sed haec
omnia me habere falso opinantem: manebo obstinte in hac meditatione
defixus, atque ita, siquidem non in potestate mea sit aliquid cognoscere, at
certe hoc quod imme est, ne falsis assentiar, nec mihi quidquam iste
deceptor, quantumvis potens, quantumvis callidus, possit imponere,
obfirmata mente cavebo.
Sed laboriosum est hoc institutum & desidia quaedam ad consuetudinem
vitae reducit. Nec aliter quam captivus, qui forte imaginaria libertate
fruebatur in somnis, quum postea suspicari incipit se dormire, timet excitari,
blandisque illusionibus lente connivet: sic sponte relabor in veteres
172
opiniones, vereorque expergisci, ne placidae quieti laboriosa vigília
succedens, non in aliqua luce, sed inter inextricabiles jam motarum
difficultatum tenebras, in posterum sit degenda. (DESCARTES, 1979, p. 66
e 68)
Como elemento de comparação, seria interessante verificar como tal
fragmento é re-enunciado pela tradução francesa, sobretudo pela tradução de
genius malignus” por “mauvais génie”:
Je supposerai donc qu'il y a, non point un vrai Dieu, qui est la souveraine
source de vérité, mais un certain mauvais génie, non moins rusé et trompeur
que puissant qui a employé toute son industrie à me tromper. Je penserai
que le ciel, l'air, la terre, les couleurs, les figures, les sons et toutes les
choses extérieures que nous voyons, ne sont que des illusions et
tromperies, dont il se sert pour surprendre ma crédulité. Je me considérerai
moi-même comme n'ayant point de mains, point d'yeux, point de chair, point
de sang, comme n'ayant aucuns sens, mais croyant faussement avoir toutes
ces choses. Je demeurerai obstinément attaché à cette pensée ; et si, par
ce moyen, il n'est pas en mon pouvoir de parvenir à la connaissance
d'aucune vérité, à tout le moins il est en ma puissance de suspendre mon
jugement. C'est pourquoi je prendrai garde soigneusement de ne point
recevoir en ma croyance aucune fausseté, et préparerai si bien mon esprit à
toutes les ruses de ce grand trompeur, que, pour puissant et rusé qu'il soit, il
ne pourra jamais rien imposer. Mais ce dessein est pénible et laborieux, et
une certaine paresse m'entraîne insensiblement dans le train de ma vie
ordinaire. Et tout de même qu'un esclave qui jouissait dans le sommeil d'une
liberté imaginaire, lorsqu'il commence à soupçonner que sa liberté n'est
qu'un songe, craint d'être réveillé, et conspire avec ces illusions agréables
pour en être plus longuement abusé, ainsi je retombe insensiblement de
moi-même dans mes anciennes opinions, et j'appréhende de me réveiller de
cet assoupissement, de peur que les veilles laborieuses qui succéderaient à
la tranquillité de ce repos, au lieu de m'apporter quelque jour et quelque
lumière dans la connaissance de la vérité, ne fussent pas suffisantes pour
éclaircir les ténèbres des difficultés qui viennent d'être agitées.
(DESCARTES, 1979, p. 67 e 69)
Um princípio lingüístico difícil de ser refutado assegura que, em língua, não
existem sinônimos. Assim, podemos mesmo inferir os instigantes problemas que
nascem a partir da escolha cartesiana pelo termo genius. Conforme vimos
173
anteriormente, esse termo latino que se encontra na origem etimológica da idéia de
gênio, liga-se estreitamente com o grego daímon. Daí a opção de tradução freqüente
por "démon", quando em língua francesa. No caso da argumentação cartesiana, a
oposição feita entre esse genius enganador a figura surgida do mythos judaico-
cristão de "Deus" corroboraria ainda mais a seleção de um termo ligado à esfera
semântica do diabólico. E, se pensarmos na configuração textual, no tocante à
exemplificação metafórica, veremos como esse mauvais génie está para o ser
pensante assim como, na célebre representação da tentação de Jesus nos
evangelhos, está a figura de Satanás, como se verifica a partir da linha
argumentativa de "Et tout de même qu'un esclave qui jouissait dans le sommeil
d'une liberté imaginaire, lorsqu'il commence à soupçonner que sa liberté n'est
qu'un songe, craint d'être réveillé, et conspire avec ces illusions agréables pour en
être plus longuement abusé [...]". O engano, a astúcia, a sedução do "tentador"...
tudo contribuiria para uma percepção lingüística do termo como um "demônio". Mas,
no caso de Descartes, um duplo elemento problematizador se apresenta. Em termos
de pensamento, o ser pensante cartesiano deixa pouco espaço para uma ontologia
teologal da reflexão, razão pela qual o Deus enganador cartesiano é substituído com
folgas pelo seu mauvais génie. E, em termos tanto de linguagem quanto de língua
propriamente dita, a escritura cartesiana impõe-se de modo a dirigir as seleções
tradutórias futuras. Tal como sabemos desde Apuleio, a atualização latina do próprio
vocábulo grego daímon seria possível, mas Descartes opta por genius.
Considerando-se que o termo havia sido introduzido na língua francesa por Rabelais
no século precedente, tal escolha carrega-se ainda mais de significado, mesmo que
génie não correspondesse, ainda à nossa moderna idéia de gênio. Carrega-se de
significado por estar prenhe de uma idéia de um gênio demoníaco que o futuro
corroborará, mesmo que, na meditação cartesiana, essa entidade enganadora seja
mais um aspecto intelectual do que uma identidade do próprio ser pensante (a
expressão "homme de génie" consagrará futuramente esta aparente cisão).
Aqui, nota-se a importância capital da escritura cartesiana para "instituição
nacional" que se tornaria o cartesianismo. Assim, considerando-se a obra capital
deste pensamento, o Discours de la méthode, é igualmente significativa a decisão
de Descartes de escrevê-lo em língua francesa. Ao seu modo, essa opção referenda
a língua como possibilidade intelectual, iniciando o deslocamento em relação ao
latim que terá seu movimento decisivo no reinado de Luís XIV, tendo uma
174
importância equivalente à escolha de Dante de escrever sua Commedia no dialeto
de Florença, base do italiano standart atual. A partir da opção cartesiana, lançam-se
os fundamentos lingüísticos (e não apenas filosóficos) do gênio a surgir,
contaminando, nesse sentido, mesmo sua escritura em língua latina. E é sempre
uma doce ironia que a mais famosa sentença do cartesianismo, repetida à exaustão
e com pouco rigor de conhecimento, tenha passado à posteridade sob a forma
"cogito ergo sum". Sendo um ser de escritura, Descartes lança a pedra angular de
seu racionalismo através de um "je pense, donc je suis", que, conforme vimos, não
visava apenas atingir um blico mais amplo (sobretudo se pensamos no que seria
um público leitor à época de Descartes). Insistindo no ponto, esse enfoque na
escritura cartesiana e suas implicações para o gênio por sua maneira de tratar de
idéias e temas correlatos não é, de maneira alguma, uma divagação inconseqüente.
Especialmente se lembramos que, no século de nascimento de Descartes, o XVI,
dois autores fundamentais haviam feito algo nesse sentido. Um recuo se faz agora
necessário. Chega a hora de gigantes de grande apetite capazes de desnudar o
mundo pelo riso, bem como de ensaios de humildade titânica para se compreender
o universo através do Eu. François Rabelais e Michel de Montaigne exigem a
palavra.
Ensaiando para as chamas
O grande século na França chega com certo atraso. Ao passo que a Itália
tenha visto todo o fulgor do Renascimento na passagem do século XV para o XVI, e,
no caso específico da Literatura, tenha visto suas tre corone a partir da passagem
do duecento para o trecento, a França teve de esperar (também aqui) o reinado do
Rei Sol para encontrar um apogeu. A literatura francesa tem seu grande momento
com seu Classicismo, o que equivale dizer Corneille, Molière e, sobretudo, Racine.
Mas, anteriormente ao século XVII, não se encontravam apenas as caudalosas
águas do caos primordial da escritura francesa. Ou melhor, encontravam-se, sim,
mas, nessas águas, Leviatãs navegavam com uma desenvoltura que o futuro seria
obrigado a reconhecer. Vimos como o século XVII apresentou, nesse sentido, o
episódio fundador de Descartes, mas, antes, a França produziu dois dos maiores
prosadores da literatura universal: Rabelais e Montaigne. Tanto o primeiro, com
175
Pantagruel, Gargantua e seus outros livros sobre os gigantes do riso arrasador,
quanto segundo com seus Essais, seriam essenciais não apenas para o
desenvolvimento da literatura subseqüente como também para o estabelecimento do
gênio demoníaco, ainda que, bem como Descartes (e situados em um momento por
sinal mais recuado), não tivessem o conceito plenamente estabelecido. Mas não
estiveram surdos, cegos e, principalmente, mudos para zonas limítrofes, nem se
furtaram ao desafio de construírem seus monumentos literários em língua francesa.
Deste modo, podemos entender, com esse recuo, algumas das implicações
lingüísticas, no âmbito da escritura, que teriam em Descartes um terreno mais
propício para seu desenvolvimento. Para tanto, podemos selecionar duas idéias
respectivamente para cada um dos escritores. Em Montaigne, reflitamos sobre as
idéias de “glória” e “grandeza” para, depois, em Rabelais, chegarmos na
“inteligência”.
Os Essais de Montaigne têm um papel fundador não apenas no âmbito
literário francês, mas também com relação ao gênero propriamente dito. Aquilo que
hoje concebemos como “ensaio”, enquanto experiência de escritura, nasce com ele.
Isso bastaria para ressaltar um certo caráter demiúrgico na figura de Michel de
Montaigne, o que o credenciaria a figurar como um dos avatares ancestrais do
génio. Mas um outro elemento vem juntar-se a esse para tal identificação,
justamente o titanismo do Eu que surge nos Essais desde sua concepção
declarada, tal como podemos notar no aviso “Au lecteur” que abre o primeiro livro:
C'EST icy un livre de bonne foy, lecteur. Il t'advertit dés l'entree, que je ne
m'y suis proposé aucune fin, que domestique et privee : je n'y ay eu nulle
consideration de ton service, ny de ma gloire : mes forces ne sont pas
capables d'un tel dessein. Je l'ay voüé à la commodité particuliere de mes
parens et amis: à ce que m'ayans perdu (ce qu'ils ont à faire bien tost) ils y
puissent retrouver aucuns traicts de mes conditions et humeurs, et que par
ce moyen ils nourrissent plus entiere et plus vifve, la connoissance qu'ils ont
eu de moy. Si c'eust esté pour rechercher la faveur du monde, je me fusse
paré de beautez empruntees. Je veux qu'on m'y voye en ma façon simple,
naturelle et ordinaire, sans estude et artifice : car c'est moy que je peins.
Mes defauts s'y liront au vif, mes imperfections et ma forme naïfve, autant
que la reverence publique me l'a permis. Que si j'eusse esté parmy ces
nations qu'on dit vivre encore souz la douce liberté des premieres loix de
nature, je t'asseure que je m'y fusse tres-volontiers peint tout entier, Et tout
176
nud. Ainsi, Lecteur, je suis moy-mesme la matiere de mon livre : ce n'est pas
raison que tu employes ton loisir en un subject si frivole et si vain. A Dieu
donq ; De Montaigne, ce premier de Mars mille cinq cens quatre ving.
(MONTAIGNE, 1964a, p. 03)
Cento e trinta e dois anos antes do nascimento de Jean-Jacques Rousseau,
temos um projeto de escritura que se consagra a uma escritura do Eu. Em nome da
“boa fé”, o autor destaca desde o início o caráter “doméstico e privado” dos Essais,
no que se refere a seus fins. Ora, nessa dimensão teleológica, começamos a
perceber a natureza da escritura de Montaigne e as armadilhas às quais nos
arriscamos diante dela. Poderíamos, sim, se fugirmos de uma idealização utilitária
de mercado, pensar em um livro escrito unicamente para uso pessoal, ainda que o
simples ato de publicação de tal livro nos leve a olhar tal posição com reservas.
Porém, no caso dos Essais, um elemento da própria escritura, na economia interna
da obra, coloca tal projeto em uma aporia teleológica: a afirmação é destinada “ao
leitor”. Essa “mentira”, em um aviso que faz propaganda da “verdade” da matéria de
vida a ser exposta pela escritura, nos coloca de antemão em posição de defesa
diante das afirmações a serem feitas, ou ao menos deveriam fazê-lo. A posição
privilegiada do Eu em tão curta passagem é evidente, já que, entre pronomes
pessoais, adjetivos possessivos e assinatura, temos vinte e nove marcas de um Je
que fala. Porém, a intenção discursiva também é verificada, pois entre vocativos,
pronomes e adjetivos, temos oito marcas de um Tuteleologicamente determinante
para o projeto de escritura (quantidade mais modesta, mas ainda assim
emblemática), um “Tuque é o leitor.
Destacar essa consciência discursiva em Montaigne tem uma razão muito
importante. Embora possa ser capaz de construções autistas capazes de fazer
frente ao citado genebrino (como je suis moy-mesmes la matiere de mon livre”),
Montaigne não perde jamais de vista aquele a quem suas palavras são
endereçadas. E isso fará uma diferença imensa quando enfocarmos uma temática
cara a Montaigne: a questão da grandeza e da glória. Os Essais são aparentemente
duros com a eterna busca humana de glória. Sempre colocada em termos
declaradamente disfóricos, a glória não poderia ser o fim de nenhuma empreitada do
ser humano, muito menos dos Essais. Logo de início, o aviso ao leitor é claro e
destaca que o autor não busca a glória pessoal. Mas é interessante notar como tal
177
afirmação encontra realização enquanto escritura, no par Je n’y ay eu nulle
consqúúúúúúúúúúúúúúúúú6 0 Td(r)Tj3.72714(ç)Tj5.65082 0 Td(ã)T7 0 Td(o)T2.645Lc
178
rendre glorieux de ce qu'ils ont mesprisé la gloire. (MONTAIGNE, 1964a, p.
320-1)
Segue-se, como se vê, uma hábil argumentação com seus exemplos de
defesa e sua conclusão. Em termos retóricos (ainda que no âmbito de uma retórica
pessoal de Montaigne), tudo procede e se encaixa. Contudo, em termos de escritura
e, também, de leitura, as coisas apontam para uma construção velada que desdiz a
linha argumentativa. A citação de Tasso (que o sem razão será um dos modelos
de escritor genial através de uma tradição que pode ser sentida tanto em um Goethe
quanto em um Leopardi) é emblemática, pois traz a crítica da fama, por meio da
referência a um escritor que, justamente por seu renome, tem peso argumentativo: a
glória garante autoridade. E a própria conclusão do texto aponta para a principal
abertura de leitura a ser feita: através de um novo exemplo de renome, desta vez
Cícero, ele aponta para o “erro” daqueles que buscam tornar glorioso exatamente
seu desprezo pela glória. E, o mais importante, ilustrando isso por meio da idéia da
“assinatura”, da marca autoral, da qual não escapou a seu modo Cícero, da qual não
escapou Tasso, e da qual, nem mesmo no humilde aviso ao leitor, escapou
Montaigne. Tal ambivalência no tratamento do tema, que, também aqui, espelha o
princípio dualista do gênio demoníaco, leva Montaigne a atos de defesa no nível
escritural. Chegando, mesmo, a partir de uma cisão linguística entre o nome e a
coisa para seu principal ataque à glória, o grande ensaio do segundo livro, o capítulo
XVI, "De la gloire":
Il y a le nom et la chose : le nom, c'est une voix qui remerque et signifie la
chose : le nom, ce n'est pas une partie de la chose, ny de la substance :
c'est une piece estrangere joincte à la chose, et hors d'elle.
Dieu qui est en soy toute plenitude, et le comble de toute perfection, il ne
peut s'augmenter et accroistre au dedans : mais son nom se peut
augmenter et accroistre, par la benediction et loüange, que nous donnons à
ses ouvrages exterieurs. Laquelle loüange, puis que nous ne la pouvons
incorporer en luy, d'autant qu'il n'y peut avoir accession de bien, nous
l'attribuons à son nom, qui est la piece hors de luy, la plus voisine. Voylà
comment c'est à Dieu seul, à qui gloire et honneur appartient : Et n'est rien
si esloigné de raison, que de nous en mettre en queste pour nous : car
estans indigens et necessiteux au dedans, nostre essence estant
imparfaicte, et ayant continuellement besoing d'amelioration, c'est là, à quoy
179
nous nous devons travailler. Nous sommes tous creux et vuides : ce n'est
pas de vent et de voix que nous avons à nous remplir : il nous faut de la
subst482 0 Td(a)Tj5.úúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúúú65t
180
que isso, o que temos o potencializações do texto de Montaigne que são
vislumbradas através do ato dialógico da escritura e da leitura. Sobre o caso
específico deste ensaio, James Supple, partindo da conclusão do texto, faz uma
interessante constatação, com implicações curiosas a respeito das relações entre
Montaigne e a idéia de Deus:
Au moment il encourage les femmes à opposer un refus aux poursuites
des hommes, Montaigne fait appel à la religion : « l’offence et envers Dieu et
en la conscience seroit aussi grande de le desirer que de l’effectuer ». Il
termine ainsi son essai de la même façon qu’il a commencé en invoquant
l’autorité de Dieu. Cela est d’autant plus remarquable qu’il a rarement
recours à ce genre de symétrie. On pourrait être tenté de penser qu’il tient à
souligner le fait qu’il présente ses idées sur les dangers moraux de la gloire
sous le signe de la Religion. Il faut se rappeler, cependant, qu’au moment de
passer de considérations d’ordre religieux à des considérations profanes sur
la gloire, il adopte un ton plutôt désinvolte : « La Theologie traicte plus
amplement et plus pertinemment ce subject, mais, je n’y suis guiere versé ».
Exemple de la modestie qui lui est si familière ? Ou clin d’œil au lecteur qui
saura celer une intention un peu plus hardie ? On ne saurait jamais en
être sûr. Mais la façon dont Montaigne aborde la question religieuse plus
tard dans l’essai ne laisse pas de soulever de sérieuses questions.
(SUPPLE, 2000, p. 55)
Infelizmente, Supple não desenvolve mais sua discussão a propósito dessa
marca dialógica na escritura de Montaigne capaz de colocar o leitor como co-autor
do texto, mas, ao menos, destaca a particularidade das relações textuais de
Montaigne com a divindade, ainda que reforçando o lado eminentemente teologal. E
a preocupação de Montaigne de continuar com seu hábil jogo desdobra-se em
termos correlatos, como podemos ver no capítulo XXIV do segundo livro dos Essais,
"De la grandeur romaine"
Marcus Antonius disoit que la grandeur du peuple Romain ne se montroit
pas tant, par ce qu'il prenoit, que par ce qu'il donnoit. Si en avoit il quelque
siecle avant Antonius, esté un entre autres, d'authorité si merveilleuse, qu'en
toute son histoire, je ne sçache marque, qui porte plus haut le nom de son
credit. Antiochus possedoit toute l'Ægypte, et estoit apres à conquerir Cypre,
et autres demeurants de cet empire. Sur le progrez de ses victoires, C.
181
Popilius arriva à luy de la part du Senat : et d'abordée, refusa de luy toucher
à la main, qu'il n'eust premierement leu les lettres qu'il luy apportoit. Le Roy
les ayant leuës, et dict, qu'il en delibereroit : Popilius circonscrit la place où il
estoit avec sa baguette, en luy disant : Ren moy responce, que je puisse
rapporter au Senat, avant que tu partes de ce cercle. Antiochus estonde
la rudesse d'un si pressant commandement, apres y avoir un peu songé : Je
feray (dit-il) ce que le Senat me commande. Lors le salüa Popilius, comme
amy du peuple Romain. Avoir renoncé à une si grande Monarchie, et cours
d'une si fortunée prosperité, par l'impression de trois traits d'escriture ! Il eut
vrayement raison, comme il fit, d'envoyer depuis dire au Senat par ses
ambassadeurs, qu'il avoit receu leur ordonnance, de mesme respect, que si
elle fust venuë des Dieux immortels. (MONTAIGNE, 1964b, p. 522)
Essa passagem é modelar por suas sutilezas. Aparentemente, temos a
reafirmação do valor da humildade, traço da vertu segundo Montaigne. E isso por
meio de uma construção em oxímoro: O exemplo de descaso com relação à glória é
justamente o maior império visto até então, Roma. O procedimento de contradição é
ligado de modo íntimo ao processo de escritura da passagem, pois está na base da
linha geral de argumentação: Roma é uma grande potência conquistadora não
porque toma, mas porque dá. Porém, se pensamos no procedimento ligado à própria
escritura, então também podemos notar como essa escritura realiza-se na absorção
da contradição e da ambigüidade, devendo estas serem aqui entendidas como
sugestões que a escritura deixa para a leitura, fios soltos através dos quais o leitor
pode se guiar no labirinto da co-autoria. Nada é deixado de modo leviano, e a
afirmação a respeito de Antíoco, de avoir renoncé à une si grande Monarchie, et
cours d’une si fortunée prosperité, par l’impression de trois trais d’escriture !”, torna-
se, aqui, ainda mais carregada de sentido, uma vez que contrapõe a glória militar e
expansionista (ainda sob a imagem dominante de Roma) à própria escritura, com
vantagem exclamativa para esta. Afinal; a escritura, aqui neste exemplo específico,
é avatar do Senado, graças à escolha vocabular de Montaigne, escolha essa que a
liga, por intermédio desse Senado, ao princípio da divindade.
O tema da grandeza, expresso abertamente desde o título seria retomado no
terceiro e último livro dos Essais. Por sinal, o capítulo VII, De l'incommodité de la
grandeur”, ocupa uma posição interessante na composição geral do terceiro livro.
Com apenas treze textos diferentes, o terceiro livro é composto por longos ensaios,
como aquele que fecha o volume, “De l’expérience”. Contudo, o capítulo VII destaca-
182
se justamente por sua brevidade, ocupando, na edição utilizada aqui, pouco menos
de seis páginas completas (“De l’expérience”, por exemplo, na mesma edição, ocupa
mais de setenta páginas). E se trata justamente do texto consagrado à grandeza.
Mais uma mostra do quão sutil e ardilosa é a escritura de Montaigne, e de como ela
deve ser lida com cuidado para que se apreenda suas possibilidades. Neste texto,
Montaigne lança suas armadilhas textuais através das quais lança um véu de
aparências capazes de conduzir o leitor passivo a uma constatação redutora com
relação ao tema da grandeza. Com afirmações como “J'ay ainsi l'ame poltrone, que
je ne mesure pas la bonne fortune selon sa hauteur, je la mesure selon sa facilité
(MONTAIGNE, 1965, p. 166), poderíamos esperar não apenas a crítica da busca
humana pela grandeza (e, por conseguinte, da glória), mas mesmo um
esquecimento de todo o ideal de vertu proposto como opção a essa busca e que
embasa, na superfície do raciocínio, os textos precedentes. Mas são apenas
armadilhas, pois Montaigne, conhecedor dos atalhos do texto, abre esse ensaio com
um parágrafo revelador:
Puisque nous ne la pouvons aveindre, vengeons nous à en mesdire : Si
n'est-ce pas entierement mesdire de quelque chose, d'y trouver des
deffauts: il s'en trouve en toutes choses, pour belles et desirables qu'elles
soyent. En general, elle a cet evident avantage, qu'elle se ravalle quand il
luy plaist, et qu'à peu pres, elle a le choix, de l'une et l'autre condition. Car
on ne tombe pas de toute hauteur, il en est plus, desquelles on peut
descendre, sans tomber. Bien me semble-il, que nous la faisons trop valoir :
et trop valoir aussi la resolution de ceux que nous avons ou veu ou ouy dire,
l'avoir mesprisee, ou s'en estre desmis, de leur propre dessein. Son
essence n'est pas si evidemment commode, qu'on ne la puisse refuser sans
miracle. Je trouve l'effort bien difficile à la souffrance des maux, mais au
contentement d'une mediocre mesure de fortune, et fuite de la grandeur, j'y
trouve fort peu d'affaire. C'est une vertu, ce me semble, moy, qui ne suis
qu'un oyson, arriverois sans beaucoup de contention. Que doivent faire
ceux, qui mettroient encores en consideration, la gloire qui accompagne ce
refus, auquel il peut escheoir plus d'ambition, qu'au desir mesme et
jouyssance de la grandeur ; d'autant que l'ambition ne se conduit jamais
mieux selon soy, que par une voye esgaree et inusitee ? (MONTAIGNE,
1965, p. 165-6)
O primeiro período é um primor de construção, capaz de colocar Montaigne
183
realmente como um dos grandes prosadores da língua francesa. A oscilação da
valoração amplia a potencialidade das ambigüidades, uma vez que, embora
tentados a ler no primeiro la uma referência dêitica à grandeza, a omissão do
termo, em conjunto com o desenvolvimento do parágrafo, amplia o espectro da
crítica tanto à falta de grandeza quanto à uma espécie de “falsa grandeza” como se
verá a seguir. Mais, o uso do argumento relativizador quanto à possibilidade ou não
de se falar mal de alguma coisa apenas apontando suas falhas, por bela ou
desejável que essa coisa seja, apenas contribui para que a idéia de grandeza e não
apenas seus termos correlatos, mas todas as instâncias a ela ligadas, sejam
tocadas pelo impreciso. Mesmo o suposto elogio da mediocridade em relação às
dificuldades da grandeza deve ser visto com ressalvas, uma vez que o recorrente
ato de auto-humilhação de Montaigne expresso em seguida é, conforme se pôde
perceber pelos exemplos citados, uma marca textual que aponta litoteticamente
para seu contrário. O texto, por sinal, continua com tais afirmações desviantes, tais
como sobre a sedução do fácil citada acima ou esta: Le plus aspre et difficile
mestier du monde, à mon gré, c’est faire dignement le Roy(MONTAIGNE, 1965, p.
167). Aparentemente, temos um conselho sobre a sabedoria de buscar um meio-
termo diante da Fortuna, uma espécie de aurea mediocritas existencial.
Mas, novamente, Montaigne trabalha em cima de um desmascaramento de
falsas aparências no tocante à temática da grandeza e da glória. Afinal, o jogo da
grandeza declarada, da grandeza “oficial” de conquistas retumbantes e títulos cheios
de glamour, apenas serve para esvaziar conceptualmente essa identificação do
nome do discurso efémero, porque humano, com a essencialidade do valor. Daí uma
constatação capaz de relativizar de modo demolidor os julgamentos superficiais a
respeito da questão: La superiorité et inferiorité, la maistrise et la subjection, sont
obligees à une naturelle envie et contestation : il faut qu'elles s'entrepillent
perpetuellement. Je ne crois ny l'une ny l'autre, des droicts de sa compagne :
laissons en dire à la raison, qui est inflexible et impassible, quand nous en pourrons
finer.” (MONTAIGNE, 1965, p. 168). E, sintomaticamente, Montaigne lança aqui,
textualmente, um elemento capaz de servir de parâmetro mais seguro em um mundo
de aparências enganadoras diante do realmente poderia ser considerado grande e
digno de renome: a razão. E essa razão não é debatida conceptualmente em termos
extensivos, mas demonstrada por meio não de uma vida exemplar, mas pela
escritura dessa vida. Da vida que se anuncia por meio dos Essais, do próprio
184
Montaigne, o seu Eu empírico, mas seu Eu de escritura, que assina de
Montaigneno aviso ao leitor e que assume a voz através dos textos que mostram
como uma “vida ordinária” pode ser a chave para o extraordinário e as lições que daí
pudessem ser apreendidas. Assim, os Essais sublimam a experiência de vida para
se tornarem escritura de sabedoria, a verdadeira medida da grandeza, a única glória
a que se poderia aspirar. O encerramento de De l’incommodité de la grandeuré
eloquente por si só:
Mais pour achever par j'ay commencé : Adrian l'Empereur debatant avec
le Philosophe Favorinus de l'interpretation de quelque mot : Favorinus luy en
quitta bien tost la victoire, ses amys se plaignans à luy : Vous vous moquez,
fit-il, voudriez vous qu'il ne fust pas plus sçavant que moy, luy qui
commande à trente legions ? Auguste escrivit des vers contre Asinius Pollio
: Et moy, dit Pollio, je me tais : ce n'est pas sagesse d'escrire à l'envy de
celuy, qui peut proscrire : Et avoient raison. Car Dionysius pour ne pouvoir
esgaller Philoxenus en la poësie, et Platon en discours : en condamna l'un
aux carrieres, et envoya vendre l'autre esclave en l'isle d'Ægine.
(MONTAIGNE, 1965, p. 170-1)
Ao sábio, basta saber, inclusive com relação à sua própria sabedoria. E, sob o
julgamento da razão, não valeria a pena colher dissabores diante de um
enfrentamento desnecessário diante da grandeza pretensiosa. Razão que servirá,
posteriormente, de base escritural e reflexiva para Descartes, mostrando, assim, que
o autor do Discours de la méthode foi precedido em seu diabolismo genial em
termos igualmente emblemáticos. E, caso pudesse ser vista, aqui, alguma sombra
de discurso tendencioso no que tange o aspecto agônico com relação à divindade
em Montaigne, basta que voltemos, como sempre, à sua escritura, para perceber, na
passagem citada acima, uma gradação no agón do valor que passa de Adriano,
imperador modelar, a Augusto, imperador-deus, para terminar em Dioniso, Deus
ambíguo não sem motivo ligado à arte da palavra. Gigantesca empresa levada a
cabo, mas que não se apresentava solitária, sobretudo se falarmos em termos de
gigantes.
Gigantomaquia genial
185
O caráter diabólico na literatura que precede Descartes não está limitado às
sutilezas de Montaigne. De modo muito mais aberto, François Rabelais apropriou-se
do tema para compor seus míticos livros sobre os gigantes que, através do riso,
poderiam ter o mesmo papel desmistificador que a exemplaridade de vida escrita de
Montaigne. A título de exemplo podemos focar apenas um dos livros de Rabelais,
aquele que talvez seja o mais famoso, Gargantua. Propondo o riso como elemento
natural do ser humano (“Pource que rire est le propre de l’homme [RABELAIS,
1996, p. 45]), Rabelais estabelece o modus operandi de sua escritura como uma
manifestação do ethos. Assim, ainda que distorcida pelo riso, uma manifestação da
idéia de inteligência deveria também se circunscrever na esfera ética, de modo a
demonstrar sua exemplaridade. Um dos termos que, na época de Rabelais, poderia
ser utilizado para exprimir essa ideia é esperitque, evoluindo para forma esprit”,
significará, na língua francesa, não apenas a inteligência, mas o conjunto das
faculdades intelectuais, a mente enfim. Mas também, vale lembrar, significará, em
expressões como esprit d’une époque”, o conjunto de idéias e sentimentos que
orienta a ão de uma coletividade, ligando-se curiosamente a um dos usos de
génie” (“génie d’une époque”). E, no caso de Gargantua, o termo surge em um dos
títulos que resumem cada um dos capítulos: Comment Grandgousier congneut
l’esperit merveilleux de Gargantua à l’invention d’un torchecul”, no capítulo XIII.
Apesar do tema escatológico, é uma das mais sublimes páginas da literatura
francesa, na qual o jovem Gargantua descreve para o pai, Grandgousier, as diversas
maneiras de tão particular higienização. A paródia referente ao modo de
argumentação e a uma certa retórica vigentes na época é evidente, mas, em um
momento específico de seu discurso, Gargantua se põe a versejar, o que
impressiona ainda mais seu pai que estava deslumbrado com a argúcia mental do
filho. Essa referência ao poema é importante, pois, além de estabelecer mais uma
ácida crítica paródica, também aponta para uma construção metaliterária no corpo
de escritura de Gargantua, na qual o personagem reproduz o método do próprio
texto. Tal consciência de construção auto-referente abriga-nos a atentar ainda mais
para qualquer detalhe nesta escritura. Na conclusão deste capítulo temos :
Mais, concluent, je dys et mantiens qu'il n'y a tel torchecul que d'un oyzon
bien dumeté, pourveu qu'on luy tienne la teste entre les jambes. Et m'en
186
croyez sus mon honneur. Car vous sentez au trou du cul une volupté
mirificque, tant par la doulceur d'icelluy dumet que par la chaleur temperée
de l'oizon, laquelle facilement est communicquée au boyau culier et aultres
intestines, jusques à venir à la region du cueur et du cerveau. Et ne pensez
que la beatitude des heroes et semidieux, qui sont par les Champs Elysiens,
soit en leur asphodele, ou ambrosie, ou nectar, comme disent ces vieilles
ycy. Elle est (scelon mon opinion) en ce qu'ilz se torchent le cul d'un Oyzon,
et telle est l'opinion de Maistre Jehan d'Escosse .” (RABELAIS, 1996, p.
138-140)
Dois elementos chamam atenção. O primeiro, o caráter transgressor que
pode ser notado ao aproximar um tema literalmente tão “intestino” com a esfera do
divino e, portanto, do sagrado, o que por si é indício de um procedimento
diabólico em sentido largo. O segundo elemento vem justamente do subterfúgio
usado para dar autoridade à opinião de Gargantua, a citação do teólogo medieval
Duns Scot. Conforme bem aponta Guy Demerson em nota referente à passagem na
edição de Gargantua aqui utilizada (p. 140), esta citação não estava presente na
primeira edição de Gargantua. Demerson nisso uma maneira de intensificar a
crítica a uma pedagogia humanista que se pretende séria, além de servir de
passagem ao capítulo seguinte. Sim, pode-se interpretar dessa maneira, mas
também se deve notar que isso aponta para o desenvolvimento de uma retórica
interna de Gargantua, paródica ou não, fundada em atos conscientes de escritura
que visam justamente a atividade dialógica da leitura através deles, processo no
qual o leitor se representado, na passagem em questão, por Grandgousier. O
processo põe-se em movimento no capítulo seguinte que aproveita a deixa apontada
por Demerson. Diante da explanação do filho, Grandgousier afirma:
Philippe , roy de Macedone, congneut le bon sens de son filz Alexandre à
manier dextrement un cheval, car ledict cheval estoit si terrible et efrené que
nul ne ausoit monter dessus, parce que à tous ses chevaucheurs il bailloit la
saccade, a l'un rompant le coul, à l'aultre les jambes, à l'aultre la cervelle, à
l'aultre les mandibules. Ce que considerant Alexandre en l'hippodrome (qui
estoit le lieu l'on pourmenoit et voultigeoit les chevaulx), advisa que la
fureur du cheval ne venoit que de frayeur qu'il prenoit à son umbre. Dont,
montant dessus, le feist courir encontre le soleil, si que l'umbre tumboit par
derriere, et par ce moien rendit le cheval doulx à son vouloir. A quoy
congneut son pere le divin entendement qui en luy estoit, et le feist très bien
187
endoctriner par Aristoteles, qui pour lors estoit estimé sus tous philosophes
de Grece.
“Mais je vous diz qu'en ce seul propos que j'ay presentement davant vous
tenu à mon filz Gargantua, je congnois que son entendement participe de
quelque divinité, tant je le voy agu, subtil, profund et serain, et parviendra à
degré souverain de sapience, s'il est bien institué. Pour tant, je veulx le
bailler à quelque homme sçavant pour l'endoctriner selon sa capacité, et n'y
veulx rien espargner. “ (RABELAIS, 1996, p. 140-2)
Novamente, duas coisas merecem destaque. Uma é uma questão
terminológica, uma vez que temos um outro termo relacionado à inteligência,
entendement”, que não apenas é citado, mas circunscrito no âmbito de uma
espécie de estabelecimento do valor intelectual através de um rol de suas
qualidades: agu”, subtil”, profund”, serain e a mais significativa, o fato de que
participe de quelque divinité”. Essa última característica, mais uma vez, assinala o
caráter transgressor, com relação ao divino, da idéia de inteligência em Rabelais.
Mas, conforme está sendo destacado à exaustão, uma retórica interna da
obra que carrega significativa qualquer opção de escritura, de modo que a referência
a Alexandre da Macedônia como paradigma de inteligência e capacidade não pode
ser negligenciada. Especialmente porque, em um capítulo anterior, o X, outro
Alexandre é utilizado nos mesmos termos, desta vez Alexandre Afrodísio,
comentador de Aristóteles que, no fim do século II, estabeleceu um catálogo de
problemas insolúveis, o que bastaria para que se fizesse referência à inteligência
pela menção de semelhante desafio intelectual. Contudo, na passagem em questão,
é mais significativo ainda que o vocábulo intelligence” surja, ainda que ligado à idéia
de compreensão: “Moyennant laquelle intelligence povez resouldre un probleme,
lequel Alexandre Aphrodise a reputé insolube : «Pourquoy le leon, qui de son seul
cry et rugissement espovante tous animaulx, seulement crainct et revere le coq
blanc? »(RABELAIS, 1996, p. 116). No capítulo, a inteligência é posta à prova a
partir da reafirmação das cores que Gargantua utilizaria em seu vestuário (o azul e o
branco), tema recorrente nos capítulos precedentes, VIII e IX. É interessante notar
que justamente no capítulo de introdução do tema, temos um reforço na
figuratização de Gargantua como gigante (“pour sa chemise, furent levées neuf cens
aulnes de toille de Chasteleraud et deux cens pour les coussons en sorte de
carreaulx, lesquelz on mist soubz les esselles[RABELAIS, 1996, p. 96]), o que o
188
alinha na tradição cristã dos correlatos diabólicos, uma vez que os gigantes,
“homens de renome” no Antigo Testamento, seriam demonizados especialmente a
partir do cristianismo e da visão da luxúria dos “filhos de Deus” como causa da
queda em textos apócrifos como o Livro de Enoch que, não obstante, gozavam de
considerável influência no início do cristianismo. A respeito desta questão, é
interessante o livro de Monique Cusset, Mythe & Histoire, le pouvoir & la
trangression dans l’oeuvre de Rabelais. Em competente trabalho, Cusset, na
segunda parte de seu livro, dedica um capítulo a analisar tanto o mito adâmico
quanto o mito da Queda nos cinco livros de Rabelais. Mas o mais interessante para
a discussão aqui proposta é o quinto capítulo desta segunda parte, no qual, partindo
da aproximação de mito e linguagem ela analisa o Diabo enquanto figura e termo e
sua utilização na obra de Rabelais.
Problematizando a questão da “língua rabelaisiana”, ela destaca: “[…] il ne
faut pas oublier que si Rabelais appartient encore au moyen Age avec son culte du
mot auquel conduit nécessairement une culture dominée par l’oralité, il n’en est pás
moins influencé par l’humanisme renaissant(CUSSET, 1992, p. 323). Vendo nessa
posição limítrofe um texto no qual o Saber mescla-se à própria escritura, Cusset
aproxima-se de algo ao propor que ce savoir s’insinue chez le lecteur de Rabelais
grâce à l’imagerie populaire, d’une part; d’autre part, c’est aussi grâce au recours à
la rhétorique et au savoir classique (CUSSET, 1992, p. 323), vendo essa última
característica manifestada no texto por meio da diversidade das metáforas que
circundam a imagem do demônio. Ambos os elementos o interessantes, mas falta
a Cusset ousar ir adiante e notar no recurso à retórica não apenas um meio de
construção textual no mais das vezes paródica, mas sim um indício de um poética
própria que se revela na própria escritura de Rabelais, sendo que a questão da
diversidade metafórica encaixar-se-ia perfeitamente nesse caso. Todavia, isso não
impede Cusset de atingir interessantes constatações acerca da ideia de Diabo, tão
central na obra de Rabelais. Discorrendo a respeito do personagem Gymnaste, ela
afirma:
Le pouvoir de Gymnaste est en un mot : fascination. Gymnaste en profite
alors pour se faire passer pour un diable. C’est donc pourquoi les hommes
de Picrochole, ayant vu Gymnaste à l’œuvre, ont cru que les diables les
attaquaient et que, pensant avoir à faire à plus fort qu’eux, ont été pris de
189
panique et finalement vaincus. D’autre part, Gymnaste, par sa prouesse,
nous introduit, nous lecteurs, dans le monde du merveilleux. Comme le dit
Aude d’Achon dans son livre : Jérôme Bosch par-delà l’envers et l’endroit :
“C’est l’aisance affichée qui constitue de ce point de vue le merveilleux :
exercer sans difficulté des prouesses jusqu’à l’impossible défi des lois de
l’équilibre”. (CUSSET, 1992, p. 332)
A menção à idéia de fascinação como atributo diabólico estava presente de
modo forte desde os primórdios do cristianismo e apenas intensificou-se na Idade
Média, sobretudo na esfera sexual e ligada às figuras femininas. Porém, aqui, o mais
curioso não é destacar o lado fascinante de uma figura masculina, mas apresentar
seu diabolismo em termos positivos o que, considerando o ano de publicação da
primeira edição de Gargantua, entre 1534 e 1535, o que o coloca com mais de cem
anos de vantagem com relação ao texto capital para esse processo, o Paradise
Lost, de Milton, de 1667. Sendo ainda mais incisiva Cusset, percebe com correção
as implicações éticas de tal positivação do demoníaco:
Chez les démons, les images du corps et des sens sont exaltées. Ainsi : “le
diable hurle horrificquement”, il sent “ les clistères”. Les diables sont
“paillards”, et d’une force peu commune. Constitués en légions, ils sont tout
à fait imbattables. Gymnaste qui lui-me avait été pris pour un diable
dit, par exemple, à Gargantua à propos du courage des guerriers français :
“Seigneur, telle est la nature et complexion des françoys qu’ilz ne valent que
à la première poincte. Lors ils sont pires que diables, mais s’ilz séjournent ils
sont moins que femmes”. Le démon peut donc être considéré comme un
“surhomme”. (CUSSET, 1992, p. 334)
A visão de demoníaco como sobre-humano aproxima-se, por sua vez de uma
visão do gênio diabólico se pensamos nessa potência humana sobrenatural ligada à
esfera da inteligência e da criação. E, aqui, novamente vemos como Cusset não
chega aos extremos de sua reflexão sobre a escritura rabelaisiana e as implicações
éticas, estéticas e poéticas da mesma. Se o fizesse, poderia destacar como o
exemplo de le diable hurle horrificquement é significativo para a visão do
diabolismo interno de Gargantua uma vez que o título completo do livro é La vie
treshorrificque du Grand Gargantua pere de Pantagruel. O texto rabelaiseano
está não apenas ligado a esse caráter exaltado do demoníaco, mas chega a
190
intensificá-lo por meio de sua poética própria. Aproveitando o exemplo do
personagem Gymnaste, podemos destacar o fim do capítulo XXXIV para notar o
refinamento na utilização terminológica do termo diable”. Em diálogo entre
Gymnaste e o capitão Tripet, lemos:
- Quoy, dist Tripet, ce gaustier icy se guabele de nous! Qui es tu?
- Je suis (dist Gymnaste) pauvre Diable.
- Ha! (dist Tripet) puisque tu est pauvre Diable, c'est raison que passes
oultre, car tout pauvre Diable passe partout sans peage ny gabelle; mais ce
n'est de coustume que pauvres Diables soient si bien monstez. Pour tant,
monsieur le Diable, descendez que je aye le roussin, et, si bien il ne me
porte, vous, maistre Diable, me porterez, car j'ayme fort q'un Diable tel
m'emporte. (RABELAIS, 1996, p. 262)
O jogo verbal é estupendo através da variação do termo em nuances
eufóricos e disfóricos. No primeiro caso, o termo pauvre Diableusado em sentido
genérico (em que pese a astúcia de Gymnaste) é negativo, como algo a dar pena.
Contudo, a partir da tomada de palavra do capitão (e de sua verificação da montaria
do interlocutor), o movimento semântico do termo é frenético, passando a uma
reiteração do pronunciado (“puisque tu est pauvre Diable”), a uma intensificação
deste caráter que, pela inferência discursiva positiviza circunstancialmente a
condição (“tout pauvre Diable passe partout sans peage ny gabelle”), em seguida a
uma palinódia argumentativa (“mais ce n’est pas coustume que pauvres Diables
soient si bien monstez”) que novamente traz o caráter disfórico por meio do reforço
das manifestações anteriores. Passamos, depois, a uma sequência na qual a
gradação positiva da “titulação diabólica” aumenta (monsieur le Diablee maistre
Diable”, em seguida), com a personalização do termo por sua função vocativa, na
mesma proporção em que a situação de Gymnaste piora (sua montaria passaria ao
capitão ou o próprio Gymnaste teria de levar Tripet). Por fim, o jogo verbal
desemboca na utilização da expressão popular, e geral, com um elemento
particularizador graças à escritura de Rabelais (“car j’ayme fort q’un Diable tel
m’emporte”), processo pelo qual a máxima identificação com o Diabo “oficial” da
expressão popular (e não o termo atenuado de pauvre Diable”), catalizador eufórico
em termos de potência, por meio da auto-referencialização do discurso paródico,
torna-se o ápice disfórico do fragmento. Isso só é possível dentro da economia
191
interna da poética rabelaiseana, no caso específico de Gargantua. Nesta poética,
cada escolha terminológica é relevante e se encaixa em uma função dentro da
retórica particular do texto, muitas vezes com função especular. Assim, a passagem
que encerra o texto, na qual Gargantua e o monge debatem o possível significado
do enigma profético sob a forma poética que se encontrava na abadia dos telemitas,
certos vocábulos se destacam, prenhes de significação:
Le Moyne dist : “Que pensez vous, en vostre entendement, estre par cest
enigme designé et signifié?
- Quoy? (dist Gargantua). Le decours et maintien de verité divine.
- Par sainct Goderan (dist le moyne), telle n'est mon exposition; le stille est
de Merlin le Prophète. Donnez y allegories et intelligences tant graves que
vouldrez, et y ravassez, vous et tout le monde, ainsy que vouldrez. De ma
part, je n'y pense aultre sens enclous q'une description du jeu de paulme
soubz obscures parolles. Les suborneurs de gens sont les faiseurs de
parties, qui sont ordinairement amys, et, après les deux chasses faictes,
sont hors le jeu celluy qui y estoyt et l'aultre y entre. On croyt le premier qui
dict si l'esteuf est sus ou soubs la chorde. Les eaulx sont les sueurs; les
chordes des raquestes sont faictes de boyaux de moutons ou de chevres; la
machine ronde est la pelote ou l'esteuf. Après le jeu, on se refraischit devant
un clair feu, et change l'on de chemise, et voluntiers bancquete l'on, mais
plus joyeusement ceulx qui ont guaingné. Et grand chere!” (RABELAIS,
1996, p. 384-386)
Pensando na questão do gênio em geral e em suas antecipações
terminológicas no texto rabelaiseano, ambos os aspectos considerados sob uma
ótica do diabolismo, a passagem é fortemente ilustrativa. Temos logo de início o
termo entendement”, que nos remete ao discurso de Grandgousier após a
explanação de Gargantua a respeito do torchecul”. Tal termo é seguido pela
menção à verité divine”, ecoando o caráter divino da inteligência de Gargantua no
mesmo discurso de Grandgousier. A menção seguinte a intelligences”, ecoa os
problemas insolúveis de Alexandre Afrodísio e, por conseguinte, Alexandre da
Macedônia, ainda na fala do pai de Gargantua, de modo que o circuito de
modelaridade da excelência intelectual humana fecha-se nesse final, trazendo
consigo todo um ar de transgressões diabólicas e de um efetivo gênio demoníaco
que se esgueira por meio dos meandros de uma relação conceitual ainda não
192
fundada. Talvez, repetindo uma ressalva que vai se fazendo presente em todo esse
comentário a respeito do nio, tal leitura possa parecer por demais extravagante
Mas, novamente aqui, podemos recorrer à poética de Gargantua e suas relações de
criação transubjetiva entre a voz da escritura e a voz da leitura, para lembrar que tal
interpretação o é mais ousada que a do monge com relação ao enigma, na qual
podemos encontrar uma espécie de orientação de leitura do próprio Gargantua:
Donnez y allegories et intelligences tant graves que vouldrez, et y ravassez, vous et
tout le monde, ainsy que vouldrez”. Não é sem razão que a grande regra da abadia
dos telemitas fosse justamente FAY CE QUE VOULDRAS (RABELAIS, 1996, p.
374), em caixa alta capaz de relembrar a subordinação da tão comentada oralidade
rabelaiseana à sua escritura e à sua poética particular. Tampouco é sem razão que
a última figura capaz de reproduzir a retórica interna do livro no tocante às citações,
aqui realmente ligada ao empréstimo que serve de base ao enigma, seja Mellin de
Saint-Gelais, poeta-profeta da passagem do século XV para o XVI que é atualizado
pelo monge sob a forma Merlin le prophete”. A identificação com a figura do Merlin
das lendas arturianas também não é fortuita, bem como o fato de o mago da távola
redonda ter nascido com o conhecimento de todas as coisas. Apenas para não
abusar da sorte de leitura, creditemos à ironia do Destino o fato de Merlin ter tais
características coincidentemente pelo fato de ser filho do Diabo.
Assim, pudemos ver como a própria literatura francesa havia tratado de abrir
espaço para considerações que aproximassem o gênio do demoníaco no século
anterior às obras cartesianas. O século XVII, cuja primeira metade seria marcada
pela figura e obra de Descartes, veria em sua segunda parte o florescer do reino do
Roi Soleil e o surgimento das obras de Molière e Racine, consumação do que até
então foi estabelecido em termos de escritura. Mas o próximo e decisivo passo para
o estabelecimento do gênio francês foi dado no século seguinte, na antemanhã da
Revolução. E, se o gênio é luciferino, sem dúvida poderia sentir-se à vontade
com a chegada das Luzes.
Lumières, Lux, Lucifer: Voltaire
Articulando as obras de Rabelais, Montaigne e Descartes com as Luzes,
temos o áureo período do classicismo francês, no qual habitualmente tendemos a
193
esperar o império da razão ordenadora e do trabalho diligente em detrimento da
inspiração e do gênio. Contudo, o pensamento clássico de modo geral não foi alheio
ao tema e às suas possibilidades, tampouco o nio não foi usado como parâmetro
valorativo. A esse respeito é interessante lembrar a menção que René Bray, em seu
livro sobre La formation de la doctrine classique en France, faz a respeito do fato
de que le XVIIe siècle a considéré le génie comme la première qualité du poète
(BRAY, 1961, p. 90). Evidentemente, a idéia de art”, o trabalho metódico, é
igualmente considerada (“L’art est en effet le deuxième élément qui forme le poète,
et presque toute l’ère classique est d’accord là-dessus[BRAY, 1961, p. 90]), mas é
fundamental lembrar que o lado potencialmente obscuro do intelecto humano
lançava constantemente suas sombras em um universo francês progressivamente
rumo ao esclarecimento programado e programático.
Mesmo se ainda nos detêssemos no século precedente ao das Luzes
encontraríamos diversos exemplos capazes de nos mostrar que o principal ponto de
discordância para o estabelecimento pleno de uma visão do gênio era ainda
terminológico teríamos de esperar o culo XVIII para que o vocábulo génie
assentasse sua esfera semântica e encontrasse mentes ao mesmo tempo capazes
e receptivas às suas possibilidades. Todavia, conforme vimos, os grandes
precursores estabeleceram as bases tanto da noção quanto do conceito de gênio na
língua e na literatura francesa, podendo, eles, servirem de parâmetro para uma
visão de gênio nacional. Assim, mesmo um epígono de Montaigne como Pascal
pode assumir ares de gênio tutelar. Jacques Attali, em um livro chamado Blaise
Pascal ou le génie français encontra no autor analisado um modelo perfeitamente
acabado de gênio nacional: Un génie particulièrement français dans toutes ses
dimensions: l’intellectuel, le marginal, le journaliste, le polémiste, le rebelle, l’homme
d’action, soucieux d’universel, certes, mais aussi le délateur, l’arrogant, le jaloux, le
menteur…” (ATTALI, 2000, p. 13).
É tentador encontrar de modo imediato um gênio abertamente demoníaco já
no século XVII, sobretudo se pensarmos em marginalou rebelle”, por exemplo.
Todavia, essa é a visão da tardividade, devidamente demonizada, de seus
antecessores nas guerras do Céu. Até então, a demonização do gênio, embora real,
ainda se estabelecia por meio de sutilezas e mediações. O século XVIII tratará de
levar tal processo adiante, sobretudo por meio de seus mais representativos nomes.
Um desses é justamente o de François-Marie Arouet, o polêmico Voltaire. Por sua
194
natureza, Voltaire, quase tanto quanto Rousseau, poderia ser pensado a partir de
seu agonismo social, artístico e intelectual exacerbado, embora o primeiro não
enxergasse aparentemente um maligno complô em cada controvérsia, tal como
fazia o genebrino. Tal posição lega a Voltaire um lugar como um dos grandes
demônios do pensamento humano, assim como o habitual papel de gênio
paradigmático. E, em termos de aproximação dos termos, Voltaire desempenhou
com habilidade seu papel, aproveitando a base convenientemente oscilante de
Rabelais ao introduzir o vocábulo na ngua e derivar da aproximação entre genius e
daimon a junção entre génie e mon:
Le daimon ou démon de Socrate avait tant de réputation, qu’Apulée, l’auteur
de l’Âne d’or, qui d’ailleurs était magicien de bonne foi, dit dans son Traité
sur ce génie de Socrate, qu’il faut être sans religion pour le nier. Vous voyez
qu’Apulée raisonnait précisément comme frère Garasse et frère Berthier.
“Tu ne crois pas ce que je crois, tu es donc sans religion”. Et les jansénistes
en ont dit autant à frère Berthier, et le reste du monde n’en sait rien. Ces
démons, dit le très religieux et très ordurier Apulée, sont des puissances
intermédiaires entre l’éther et notre basse région. Ils vivent dans notre
atmosphère, ils portent nos prières et nos mérites aux dieux. Ils en
rapportent les secours et les bienfaits, comme des interprètes et des
ambassadeurs. C’est par leur ministère, comme dit Platon, que s’opèrent les
révélations, les présages, les miracles des magiciens. (VOLTAIRE, 2007,
s/p)
Embora com base etimológica tradicional, as sutilezas da tradução fazem com
que Voltaire aproxime-se do cerne das relações entre o gênio e o princípio
demoníaco em geral. Seja por meio do caráter antagônico na visão exterior da
religião dominante do daímon desde o exemplo socrático, seja por seu caráter de
mediador entre o humano e o divino, e, principalmente, por ligar-se à natureza
profética e miraculosa, o duplo génie/démon de Voltaire lança bases que serão
muito bem aproveitadas no futuro. À primeira vista, tal reflexão a partir de uma
questão terminológica pode parecer um tanto quanto excessiva, mas era em tal nível
que ela ocupava o pensamento de Voltaire, pois, em outra passagem, temos:
Chez les Romains on ne se servait point du mot genius, pour
exprimer, comme nous faisons, un rare talent; c’était ingenium. Nous
195
employons indifféremment le mot génie quand nous parlons du démon qui
avait une ville de l’antiquité sous sa garde, ou d’un machiniste, ou d’un
musicien.
Ce terme de génie semble devoir désigner, non pas indistinctement
les grands talents, mais ceux dans lesquels il entre de l’invention. C’est
surtout cette invention qui paraissait un don des dieux, cet ingenium quasi
ingenitum, une espèce d’inspiration divine. Or, un artiste, quelque parfait
qu’il soit dans son genre, s’il n’a point d’invention, s’il n’est point original,
n’est point réputé nie; il ne passera pour avoir éinspiré que par les
artistes ses prédécesseurs, quand même il les surpasserait. (idem, ibdem)
Perceber de modo inteligente as armadilhas da indistinção da palavra génie
em língua francesa uma real medida das implicações da aproximação dela com
démon”. E isso especificamente na relação agônica com a tradição e com seus
predecessores divinos. Daí a necessidade da invenção, da originalidade genial que,
plenamente desenvolvida, acaba por fazer do artista posterior membro de um
panteão poderoso. Mas, entre os artistas, tal passagem raramente se de modo
pacífico, sobretudo entre aqueles que mais força possuem, de modo que assumir
essa força significa não assentar-se junto aos gigantes do passado mas, antes,
deitá-los por terra instaurando uma nova e pessoal dinastia. Ciente disso e da
dimensão da sombra de seus precursores, sobretudo de Descartes, o deus ex
machina por trás das Luzes, Voltaire busca minimizar o jogo da influência através de
uma habilidosa argumentação:
Lequel vaut le mieux de posséder sans maître le génie de son art, ou
d’atteindre à la perfection en imitant et en surpassant ses maîtres?
Si vous faites cette question aux artistes, ils seront peut-être
partagés: si vous la faites au public, il n’hésitera pas. Aimez-vous mieux une
belle tapisserie des Gobelins qu’une tapisserie faite en Flandre dans les
commencements de l’art? préférez-vous les chefs-d’oeuvre modernes en
estampes aux premières gravures en bois? la musique d’aujourd’hui aux
premiers airs qui ressemblaient au chant grégorien? l’artillerie d’aujourd’hui
au génie qui inventa les premiers canons? tout le monde vous répondra: «
Oui. » Tous les acheteurs vous diront: « J’avoue que l’inventeur de la
navette avait plus de génie que le manufacturier qui a fait mon drap; mais
mon drap vaut mieux que celui de l’inventeur. »
Enfin, chacun avouera, pour peu qu’on ait de conscience, que nous
respectons les génies qui ont ébauché les arts, et que les esprits qui les ont
196
perfectionnés sont plus à notre usage. (idem, ibdem)
Contra a invenção, o aprimoramento; contra a angústia de ter chegado tarde
demais, a visão de ser a presentificação do futuro, o próximo passo na evolução, o
homem do amanhã. Uma tentativa de domar o gênio, por natureza indomável. Como
subterfúgio, Voltaire se volta para o esprit”, o poder intelectual que, na ngua e no
pensamento francês, fundados totemicamente por Descartes a despeito das
representações anteriores, permite uma interpretação no sentido de uma razão
capaz de dosar, com refinamento e maturidade, o ímpeto do furor genial. Em texto
que desenvolve o artigo “Esprit faux” do Dictionnaire philosophique, Voltaire
define o “esprit” a partir dos seguintes termos:
Le mot esprit, quand il signifie une qualité de l’âme est un de ces37 9.3624 Tf5.16987 0 sgo
197
surtout dans la poésie sublime. L’enthousiasme raisonnable est le partage
des grands poètes.
Cet enthousiasme raisonnable est la perfection de leur art ; c’est ce
qui fit croire autrefois qu’ils étaient inspirés des dieux, et c’est ce qu’on n’a
jamais dit des autres artistes. (VOLTAIRE, 1961, p. 182)
E Voltaire continua. Tomando o exemplo de Safo, ele aproveita o mito criado
em torno da poetisa para expor os possíveis malefícios do entusiasmo não
controlado: Sapho exprimait l’enthousiasme de cette passion ; et s’il est vrai qu’elle
lui coûta la vie, c’est que l’enthousiasme chez elle devint démence (VOLTAIRE,
1961, p. 181). A demência, aqui, permite que se desça um novo degrau qualitativo
no poder genial além de qualquer controle, ampliando sua margem disfórica e
metamorfoseando a possessão divina na demoníaca, que, aqui, apenas pode ser
vista em termos negativos e em tom de galhofa. Na entrada Démoniaquesde suas
Questions sur l’Encyclopédie (onde encontramos as expansões do Dictionnaire
aqui citadas), Voltaire afirma:
Les vaporeux, les épileptiques, les femmes travaillées de l’utérus, passèrent
toujours pour être les victimes des esprits malins, des mons malfaisants,
des vengeances des dieux. Nous avons vu que ce mal s’appelait le mal
sacré, et que les prêtres de l’antiquité s’emparèrent partout de ces maladies,
attendu que les médecins étaient de grands ignorants. (VOLTAIRE, 2007,
s/p)
Transformando o “furor sagrado” do entusiasmo genial em mal sacré dos
“démoniaques”, Voltaire visa conter o gênio demoníaco que, sem ser plenamente
nomeado, animava seus precursores totêmicos. Contudo, o estilo sobretudo do
Voltaire artista ecoava a invenção do ensaio em Montaigne; o diabolismo inesperado
da tentativa de desautorizar os gigantes do passado trazia à tona Rabelais e, por
fim, com máxima força, o amparo na razão mostra o quanto Descartes estava
presente. Sendo os três o arquétipo compósito do gênio francês, inclusive em seu
caráter demoníaco, vemos como Voltaire o pôde negar sua influência. Uma pena,
pois sua inteligência aguda e sua verve satânica o teriam tornado um perfeito avatar
desse mesmo nio. Todavia, em meio às Luzes, um outro titã teria de ser
198
responsável por levar adiante o discurso sobre o gênio: Denis Diderot.
Lumières, Lux, Lucifer: Diderot
Diderot é o grande responsável pelo estabelecimento do conceito de gênio
em seu tempo, contribuindo, assim, de modo igualmente decisivo para a noção
trans-histórica do mesmo. Para tanto, foram igualmente importantes suas
intervenções filosóficas e artísticas, embora essas últimas, como seria de se
esperar, tenham desempenhado o papel mais importante no processo. Entretanto,
antes de mergulharmos na visão diderotiana do gênio, é preciso que se faça um
esclarecimento que torne menos inusitada a sombria presença da matriz demoníaca
no resplandecente gênio das Luzes francesas. Doze anos antes da morte de
Diderot, um ano antes da publicação de Jacques, le fataliste, em 1772, Jacques
Cazotte publica seu Le diable amoureux, talvez a máxima expressão, na literatura
francesa, da corrente illuministe”, contrária às Luzes. Assim, meio à celebração da
razão que teve seu monumento máximo na Encyclopédie, houve também um culto
do sombrio e do sobrenatural. Assim, é em meio a esse universo potencialmente
dualista que o conceito de gênio em Diderot será construído.
Como via de entrada, seria interessante começar pela visão do gênio
defendida pela Encyclopédie, sobretudo se ainda fosse corrente a idéia de que
Diderot era o responsável pela mesma. Especialistas apontaram o fato de a autoria
do artigo Génieda Encyclopédie ser de Saint-Lambert, mas o fato de o mesmo
artigo apresentar diferenças na edição da obras de Saint-Lambert aponta para a
possibilidade de Diderot ter tido alguma influência em sua forma final na
Encyclopédie
54
. O artigo em questão trata amplamente do termo génie”, mas nos
interessa, aqui, sobretudo a passagem em que se considera os aspectos filosóficos
e literários do mesmo:
Génie, (Philosophie & Littér.) L'étendue de l'esprit, la force de l'imagination,
& l'activité de l'ame, voilà le génie. De la maniere dont on reçoit ses idées
dépend celle dont on se les rappelle. L'homme jetté dans l'univers reçoit
avec des sensations plus ou moins vives, les idées de tous les êtres. La
plûpart des hommes n'éprouvent de sensations vives que par l'impression
54
A esse respeito, ver: VENTURI, Franco. Jeunesse de Diderot (1713-1753). Genève: Slatkine
Reprints, 1967, p. 344-6)
199
des objets qui ont un rapport immédiat à leurs besoins, à leur goût, &c. Tout
ce qui est étranger à leurs passions, tout ce qui est sans analogie à leur
maniere d'exister, ou n'est point apperçû par eux, ou n'en est vû qu'un
instant sans être senti, & pour être à jamais oublié.
L'homme de génie est celui dont l'ame plus étendue frappée par les
sensations de tous les êtres, intéressée à tout ce qui est dans la nature, ne
reçoit pas une idée qu'elle n'éveille un sentiment, tout l'anime & tout s'y
conserve. (DIDEROT, D’ALEMBERT, 1969, p. 166)
Além do caráter evidentemente universal do gênio do artigo, é curioso como o
gênio, aqui, aproxima-se da reminiscência platônica, compartilhando seu princípio de
intelecção. Ao fazê-lo, aproxima-se também do daimon socrático e participa da
deriva semântica que o torna demoníaco. Aliás, a própria continuidade do artigo da
Encyclopédie permite essa demonização relativa do gênio ao destacar seu
potencial obscuro:
[…] tantôt les êtres se dépouillent de leurs imperfections; il ne se place
dans ses tableaux que le sublime, l'agréable; alors le génie peint en beau:
tantôt elle ne voit dans les évenemens les plus tragiques que les
circonstances les plus terribles; & le génie répand dans ce moment les
couleurs les plus sombres, les expressions énergiques de la plainte & de la
douleur. (DIDEROT, D’ALEMBERT, 1969, p. 166)
Essa aproximação com o sombrio está presente também na obra
notadamente assinada por Diderot, e demonstra como o autor pode concentrar em si
as mais diversas tendências de seu tempo, mesmo aquelas que animavam
antípodas como as Luzes e o Illuminisme. Assim, por um lado, o gênio de Diderot
será aquele desbravador dos segredos da natureza conforme aponta Jacques
Chouillet, em La Formation des idées esthétiques de Diderot (1973). Mas por
outro, será o ser de exceção, flertando com o irracionalismo e a loucura. Com
relação ao caráter de exceção, uma passagem de Le neveu de Rameau é
ilustrativa: c'est qu'il faut qu'il y ait un grand nombre d'hommes qui s'y appliquent,
pour faire sortir l'homme de génie. Il est un dans la multitude(DIDEROT, 1962, p.
21). Fazendo parte (ainda que de modo excepcional) do espetáculo da natureza, o
gênio espelha o jogo de excesso e falta que se estabelece entre os limites do ser
200
humano e imensidão dessa mesma natureza desafiadora. Em suas Pensées sur
l’interprétation de la nature, afirma Diderot:
VI
Quand on vient à comparer la multitude infinie des phénomènes de la
nature avec les bornes de notre entendement et la faiblesse de nos
organes, peut-on jamais attendre autre chose de la lenteur de nos travaux,
de leurs longues et fréquentes interruptions et de la rareté des génies
créateurs, que quelques pièces rompues et séparées de la grande chaîne
qui lie toutes choses ? (DIDEROT, 2005, p. 64-5)
A aparente humildade da passagem não deve nos enganar, pois por trás dela
esconde-se um titã capaz de domar pela força de seu intelecto o infinito natural. A
própria reiteração do caráter excepcional do gênio nos demonstra o fenômeno, de
modo que os génies créateurs”, tão raros, são justamente o contrário das limitações
humanas. Diderot, contudo, reforça o caráter luminoso do gênio, responsável pelo
esclarecimento do espírito humano:
XIV
Je me représente la vaste enceinte des sciences, comme un grand
terrain parsemé de places obscures et de places éclairées. Nos travaux
doivent avoir pour but, ou d'étendre les limites des places éclairées, ou de
multiplier sur le terrain les centres de lumières. L'un appartient au génie qui
crée; L'autre à la sagacité qui perfectionne.
XV
Nous avons trois moyens principaux: L'observation de la nature, la
réflexion et l'expérience. L'observation recueille les faits, la réflexion les
combine, L'expérience vérifie le résultat de la combinaison. Il faut que
l'observation de la nature soit assidue, que la réflexion soit profonde, et
que l'expérience soit exacte. On voit rarement ces moyens réunis. Aussi
les génies créateurs ne sont-ils pas communs. (DIDEROT, 2005, p. 70)
E o caráter incomum do gênio continua a ser destacado. Mais do que
conjugar teoria e prática na reflexão a respeito da natureza, o que torna o homem
genial um ser de exceção é o fato de ele representar um desafio ao princípio deísta
(tão caro a algumas das mentes mais brilhantes do século XVIII) como avatar
201
intelectual da máquina do mundo em sua totalidade, assumindo os ares de um
divindade possível. Assim, a despeito do seu papel de desvelador, o gênio pode se
dar ao luxo de abrir mão de sua ars intelectual fiando-se em seu ingenium, graças a
essa identificação natural: Les génies lisent peu, pratiquent beaucoup, et se font
d'eux-mêmes(DIDEROT, 1962, p. 62). Essa concepção de um gênio que se faz e,
com isso, se basta, retoma o princípio do gênio que faz suas próprias leis e, ao fazê-
las, estabelece um padrão qualitativo tão alto que não pode ser menos que
excelente. Assim, a sociedade deve ter a abertura necessária para o
desenvolvimento desse gênio, para, assim, não incorrer no equívoco de violentá-lo
enquadrando-o em seus limites medíocres: Une société ne devrait point avoir de
mauvaises lois; et si elle n'en avait que de bonnes, elle ne serait jamais dans le cas
de persécuter un homme de génie” (DIDEROT, 1962, p. 24).
Todavia, em Diderot, a temática do gênio é terreno propício para uma tensão
constante que espelha o agonismo fundamental do gênio demoníaco. Afinal, embora
possa constituir-se como ser de exceção capaz de sobrepor seu ethos ao ethos
social, o gênio de Diderot, no âmbito a722 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(s)Tj5.65622 0 Td(d)Tj6.37Tj3.12599 0 Td(,)Tj(o)Tj6.25197 0 Td( )Tj4.92944 0.4046 0 Td(d)Tj6.3Tj2.52483 0 Td(o)Tj65197 0 Td(s)Tj5.65622 0 Td3.84737 0 Td(o)Tj6.13174 0 Td(p)Tj6.25197 0 Td197 0 Td(n)Tj6.3722 0 Td(t(o)Tj6.13174 0 Td(p)h7 0 Td(s)Tj5.65082 0 TdTj5.65622 0 Td3.8470 Td(a)Tj6.25197 0 Td(p)Tj0 Td(o)Tj6.25197197 0 Td( )Tj3.24622co)Tj6.251972 0 Td3.84737 0 j6.25197 00 Td(â)Tj6.13174 7 0 Td(d)Tj6.1317 Td(t)Tj3.12599 0 Td(,)Tj3.24622 0 Td( )Tj3.72714 0 Td(a) g
202
s’y dissolvent en des geste vides. […] Le problème esthétique et moral se
pose non seulement au niveau de l’art, mais au niveau d’un individu et
d’une société en voie de dégradation. (FICOT, 1969, p. 217-8)
Desse modo, a questão da moralidade – política, por excelência em relação
com a artisticidade depende muito das sutilezas do julgamento de valor do artista
enquanto artista, de modo que a relativização da moral em Le neveau de Rameau
pode o ser declaradamente agônica em virtude de uma presentificação do artista
como génie raté”. Sobre os gênios fracassados, Pierre Laubriet, analisando
L’intelligence de l’art chez Balzac, em capítulo dedicado à figura do artista, tece
uma tipologia dos ratésna qual um determinado tipo (aquele que, sem ser artista,
quer sê-lo) pode, por meio do esforço, ascender no âmbito da moralidade artística
pelo trabalho diligente:
[o gênio fracassado diligente] a toutes les qualités morales indispensable au
génie, mai il lui manque le don créateur, par suite de l’inexistence de son
imagination. Cependant il parvient, par le seul travail et la seule volonté, par
une discipline stricte de vie, à se hausser quelque peu dans la connaissance
de son art, et à y éprouver quelques joies et quelques réussites. C’est là une
preuve de l’importance primordiale des qualités morales chez l’artiste,
particulièrement du dévouement à son art, qui se traduit par le travail et la
volonté. Sans qu’elles puisent faire naître le génie, elles sont capables
néanmoins de donner à qui les possède l’illusion de la création ; elles
élèvent l’homme au-dessus de lui-même. (LAUBRIET, 1961, p. 202-3)
Assim, temos uma harmonização entre expectativa moral e de arte. Mas
devemos sempre lembrar que este é o caso do gênio fracassado que, embora possa
ter sua parcela de maldição diabólica, no fracasso anula-se justamente como gênio.
Assim, voltando ao caso específico de Diderot, a tensão que a idéia ampla de gênio
apresenta frente ao âmbito moral continua vigente, afinal, como bem lembra Yvon
Belaval ao tratar justamente dos problemas de estética em Diderot, no caso da visão
desse último, au génie seul il appartient de remonter aux sources de la création de
nature(BELAVAL, 1973, p. 150). Eis o ponto conflitante: sendo o gênio verdadeiro
capaz de se identificar à criação natural e mesmo emulá-la não poderia ele ser a
fonte de uma moral natural igualmente válida a despeito de eventuais
descompassos com relação àquela da pólis? Afinal, em termos de regras artísticas,
203
o caso é sempre resolvido no sentido que kantiano de um gênio que cria as regras
por seu próprio poder criativo. Nesse sentido, Belaval, ainda sobre onio em
Diderot, acrescenta:
Le génie est un inspiré. Diderot ne croit plus que ce soient les dieux qui
l’inspirent. Sans doute, il ne tiendrait qu’à nous de nous y tromper, comme
Socrate” et d’appeler “un démon familier”, ce pressentiment “qui a le
caractère de l’inspiration”. N’invoquons que l’expérience, la conformation de
tête, le don, ou ce que l’on voudra, car le génie demeure pour nous un
mystère. Mais ce mystère est de nature. C’est pourquoi le génie ne
s’enseigne pas. Il dépasse les déterminations qu’on tente de lui imposer.
(BELAVAL, 1973, p. 151)
Esse mistério que Belaval como inerente ao gênio deve-se justamente ao
fato de que o caráter criativo e original determina um sistema de regras pessoal não
apenas na esfera moral, mas também na ética. Não se determina a essência do
gênio a o ser de dentro. Isso abre um espaço crítico no qual o gênio pode, de
modo demoníaco, criticar a esfera coletiva e plasmar uma nova ordem, o seu cosmo
pessoal que inverte prioridades e relega qualquer outro tipo de ordem à esfera do
caos. A esse respeito, apontando similitudes entre o pensamento de Diderot e o
mais forte dos grandes precursores em língua francesa, Descartes, Aram Vartanian
afirma: Pour Diderot, comme pour Descartes, le chaos était un état entièrement
indéterminé de la matière, susceptible d’innombrables formes (apud PROUST,
1974, p. 125). E, aceitando o confronto com o predecessor, Diderot, titanicamente,
reproduz o ato de escritura ordenador do caos cartesiano, menos no âmbito sintático
e mais na asp(o)Tj6.25197 0 Td(r)Tj3.36645 0 Td(d)Tj6.0(r)Tj3.84737 0 Td(m)Tj9.3722 0 Td(o)Tj6.13174 0V622 0 Td(u)Tj6.25197 0 Td(d)Tj6.3V622 0 Td(u)Tj6.251970 Td1Tj6.25194 0 Td(s)Tj5.65Td( )Tj5.04967 0 Td(d)Tj6.0(r)Tj35.772j4.56873 0 Td(e)Tj5.2901 0 Td(,)Tj2.52482 0 Td0 Td(e)Tj5.2901 0 Td
204
trataram do mesmo assunto. Apenas para ficarmos com os nomes mais conhecidos,
da Antigüidade Clássica greco-latina encontramos a lista de Anacreonte, Suetônio,
Catulo, Marcial, Horácio, Petrônio ou Sêneca. No universo da letras francesas,
temos contemporâneos de Diderot como Voltaire e Rousseau e predecessores
consideráveis como La Fontaine e Molière e os significativos nomes de Montaigne e
Rabelais. Rabelais, p
205
e sons de Rabelais, a celebração do Baco da embriaguez divina, claro, mas também
a lembrança do bouc”, o bode símbolo do sacrifício em nome de Diana, a
consagração da Deusa, e do obscuro lunar e, posteriormente, do diabo, de Satã. O
quase mantra profano entoado no fim da passagem (“O dive Bacbuc! ô gourde
sacrée! ô divinité de Jacques! Revenez au milieu de nous!”) coloca Diderot em
confronto demoníaco com a divindade religiosa, como foi dito, mas também com a
divindade secular, Rabelais, ao mesmo tempo o deus anterior adversário da
passagem citada e demônio pai da mesma. A Diderot, gênio intermediário e, assim,
tardio, resta o máximo da demonização agônica, a demonização da demonização; a
celebração, em seu próprio Templo de Salomão, de Dionísio, de Satã de seu
poder transgressor.
São bases dos procedimentos luciferinos das Luzes francesas, e são bases
poderosas. Porém, algo ainda deve ser dito a respeito de outro gigante do século
XVIII que, lutando contra um paranóico complô da parte do Homem e de Deus,
lançou as bases do Romantismo.
Lumières, Lux, Lucifer: Rousseau
O complô que animou o agonismo de Rousseau era de ordem titânica. Diante
da incompreensão de seus contemporâneos, que atinge o ponto máximo com a
lapidação de sua casa em 1765, Rousseau desenvolveu uma idéia de perseguição
que atingiu as raias do patológico. Abrindo Les veries du promeneur solitaire,
Rousseau escreve: Me voici donc seul sur la terre, n'ayant plus de frère, de
prochain, d'ami, de société que moi-même. Le plus sociable et le plus aimant des
humains en a été proscrit par un accord unanime(ROUSSEAU, 1997, p. 55). Obra
ousada de construção de um Eu ficcional, Les rêveries representam um dos últimos
senão o último grande esforço intelectual de Rousseau, e o faz por meio de um
revisionismo com relação ao coletivo, à autobiografia como gênero e, em última
instância, face à sua própria obra. Com relação ao coletivo, o egocentrismo de Les
rêveries, apontando de modo contumaz para a cisão entre o “Eu” e “Eles”, levando-
se em conta a positiva do “Eu”, cria uma imagem negativizada de tudo que for
externo a esse princípio individual. Sendo a sensibilidade rousseauniana capaz de
promover uma integração entre o Eu e a Natureza, o elemento externo disfórico é
206
marcadamente a sociedade corruptora e injusta contra a qual a voz artística de
Rousseau se levanta. com relação ao gênero autobiográfico, Rousseau, apenas
confirmando uma tendência que pode ser vista em Santo Agostinho, Goethe e tantos
outros, ultrapassa o pretenso compromisso com uma verdade unívoca que por
vezes permeia a idéia do gênero. Contudo, no caso de Rousseau, a ficcionalização
do Eu atinge níveis poderosos e faz com que o personagem Rousseau aponte para
fora da esfera da autobiografia, tornando-se paradigma de uma postura ética do
homem e do artista que será adotada de modo definitivo no Romantismo. Por fim,
com relação à revisão levada a cabo por Rousseau face às suas próprias
produções, cumpre lembrar que Les rêveries inscrevem-se em um metadiscurso
que inclui os Dialogues de Rousseau juge de Jean-Jacques e, claro, as
Confessions.
Essas duas outras obras dão uma idéia do agonismo de Rousseau e de suas
implicações para a sua visão particular do gênio. Com relação aos Dialogues, é
famoso o episódio no qual Rousseau teria, em 24 de fevereiro de 1776, tentado
depositar o manuscrito no altar de Notre-Dame. Encontrando a grade do coro
fechada, Rousseau teria visto nisso um sinal de “má-vontade” divina, praticamente
colocando Deus como parte do complô que todos estariam movendo contra ele.
Evidentemente, um episódio externo ao fenômeno literário deveria ser tratado com
muito cuidado na percepção do gênio por parte de um artista enquanto artista, mas o
procedimento de auto-ficcionalização levado a cabo por Rousseau, bem como as
referências textuais ao episódio permitem-nos considerá-lo de modo coerente.
Discorrendo a respeito do ocorrido em Les rêveries, Rousseau afirma:
[…] je comptais encore sur l’avenir, et j'espérais qu'une génération
meilleure, examinant mieux et les jugements portés par celle-ci sur mon
compte et sa conduite avec moi, démêlerait aisément l'artifice de ceux qui
la dirigent et me verrait encore tel que je suis. C'est cet espoir qui m'a fait
écrire mes Dialogues, et qui m'a suggéré mille folles tentatives pour les
faire passer à la postérité. (ROUSSEAU, 1997, p. 59)
Ou seja, a empreitada estava ligada a um ato de perpetuação. Tal motivação,
em estreita ligação com o espaço sagrado e com a figura divina, mostra como
Rousseau constrói um procedimento demoníaco em uma articulação não apenas
poética e estética, mas também ética. A permanência, aqui, aponta para a vaidade e
207
o orgulho, componentes essenciais do mito tardio de Lúcifer-Satã, e a queda
fundamental que acompanha o personagem Rousseau nas autobiografias aponta
menos para um Adão expulso do Éden do que para a tragédia da Estrela da Manhã.
Que não se trata de um procedimento fortuito e, sim, algo que sinaliza a dimensão
ética, a proposta das Confessions de mostrar um homem dans toute la vérité de la
nature”(ROUSSEAU, 1972, p. 5) evidencia claramente. Assim podemos interrogar
mais a obra rousseauniana em busca da idéia de gênio que é nela construída, e um
olhar sobre outras passagens das Confessions pode ser elucidativo nesse sentido.
Em um trecho exemplar, Rousseau, por ocasião de uma crítica do famoso musicista
Rameau a uma ópera de sua autoria, descreve a cena da seguinte maneira no livro
sétimo das Confessions:
Rameau commença, dès l’ouverture, à faire entendre, par ses éloges
outrés, qu’elle [l’opéra] ne pouvait être de moi. Il ne laissa passer aucun
morceau sans donner des signes d’impatience ; mais à un air de haute-
contre, dont le chant était mâle et sonore et l’accompagnement très
brillant, il ne put plus se contenir ; il m’apostropha avec une brutalité qui
scandalisa tout le monde, soutenant qu’une partie de ce qu’il venait
d’entendre était d’un homme consommé dans l’art, et le reste d’un ignorant
qui ne savait pas me la musique ; et il est vrai que mon travail, inégal et
sans règle, était tantôt sublime et tantôt très plat, comme doit être celui de
quiconque ne s’élève que par quelques élans de nie, et que la science
ne soutient point. (ROUSSEAU, 1972, p. 21-2)
Um pouco antes de tal passagem, Rousseau cita, significativamente, que
Rameau ironiza o fato de a obra musical em questão ter sido fruto do trabalho de
alguém que se iniciara nos mistérios da música sozinho. Assim, Rousseau, por meio
da manipulação discursiva, permite que venha à baila a idéia de nie”, em franca
oposição ao academicismo carola de Rameau. Os termos utilizados não deixam
margem para dúvidas sobre a instauração da litotes a provocar a inversão valorativa.
Afinal, Rameau destaca o fato de uma parte da obra musical ter sido fruto do
trabalho de um homem consommé dans l’art”, o que traz, no domínio textual, a
presença de um dos avatares do artista genial, declaradamente identificado ao
personagem Rousseau pelo fato de este ser alguém que ne s’élève que par
quelques élans de génie, et que la science ne soutient point”. Um dos pontos de
destaque presentes nas mais influentes teorias do gênio, conforme se destacou
208
diversas vezes aqui, sempre foi uma prioridade da inspiração ou da sensibilidade
sobre o conhecimento prático ou o academicismo ditador de regras, perfeitamente
aplicado à personagem Rousseau, portanto.
Esta identificação Rousseau/gênio, capaz de estabelecer parâmetros
valorativos para o artista e para aquilo que este produz, assume ares ainda mais
consistentes em Confessions quando o que está em questão é a diluição entre os
limites de realidade e ficção. Um aspecto bastante conhecido da biografia
rousseauniana trata das diversas dificuldades de ordem material pelas quais passou
o artista. Assim, em Confessions, o tema não está presente como também é
utilizado de maneira a fortalecer ainda mais o mito do gênio incorporado pela
personagem Rousseau. Tratando de uma das chances de amenizar suas
dificuldades de ordem material, por meio de uma produção escrita capaz de agradar
a um grande público, isto é, capaz de representar um sucesso editorial, escreve
Rousseau no livro nove das Confessions:
J’aurais pu me jeter tout à fait du côté le plus lucratif, et, au lieu d’asservir
ma plume à la copie, la dévouer entière à des écrits qui, du vol que j’avais
pris et que je me sentais en état de soutenir, pouvaient me faire vivre dans
l’abondance et même dans l’opulence, pour peu que j’eusse voulu joindre
des manœuvres d’auteur au soin de publier de bons livres. Mais je sentais
qu’écrire pour avoir du pain eût bientôt étouffé mon génie et tué mon talent,
qui était moins dans ma plume que dans mon cœur, et uniquement
d’une façon de penser élevée et fière, qui seule pouvait le nourrir. Rien de
vigoureux, rien de grand ne peut partir d’une plume vénale. (ROUSSEAU,
1972, p. 119)
Contrariando a tentação de ceder ao impulso da satisfação de uma vida
confortável, a personagem Rousseau prefere manter a integridade artística e a
pureza de suas obras. Assim, desenha-se com vivas cores um dos principais
modelos do gênio: aquele do artista marginalizado não em função da
incompreensão da sociedade, mas por um posicionamento próprio e por uma opção
de vida que, por fim, visa um devotamento à obra capaz de transformar o artista em
uma espécie de mártir, um santo. É interessante o quanto esta representação do
gênio “marginal por opção” passa, a partir de então, a ser utilizada de modo
sistemático, em especial, novamente, a partir do Romantismo, mas indo ainda além
209
da escola. Afinal, se notamos o fenômeno em um Victor Hugo rico e consagrado a
assumir o papel de mártir exilado, também o notamos no dândi Baudelaire, no
vagabundo Rimbaud ou, até mesmo, no inofensivo Mallarmé, aprisionado em um
ofício de professor de inglês que dizia detestar.
Rousseau trabalha decisivamente para a concepção de um gênio que não
pode ser contido por nenhuma forma de regra, seja ela artística ou de ordem social,
pois, em uma passagem do livro décimo das Confessions, ao falar da possibilidade
de um trabalho regular bastante ameno no Journal des Sçavans, oportunidade
novamente recusada, afirma Rousseau: Je savais que tout mon talent ne venait que
d’une certaine chaleur d’âme sur les matières que j’avais à traiter, et qu’il n’y avait
que l’amour du grand, du vrai, du beau, qui pût animer mon nie(ROUSSEAU,
1972, p. 275). Assim, ligando-se às idéias de grand”, vrai e beau este gênio
marginal passa a encontrar nesta marginalidade a distinção que lhe parece devida à
sua estirpe superior. Tal, procedimento, inclusive, servirá de tropo substitutivo para
os artistas que, à semelhança do citado Baudelaire, encontrarão no dandismo
uma espécie de alternativa à vulgarização burguesa de uma arte mercadológica, a
aristocracia possível do vagabundo ou do pária.
Além disso, a passagem faz menção a algo importante: a definição do gênio.
Como diversas vezes foi dito, certas idéias são recorrentes no conceito, como
originalidade, poder de criação, sensibilidade acentuada, mediação entre o divino e
o humano, apenas para citarmos algumas das mais produtivas. Contudo duas idéias
merecem destaque aqui. Em primeiro lugar, uma derivação do papel do gênio como
mediador entre o plano humano e o divino: a figura do artista entusiasmado.
Intimamente ligada a conceitos precursores do gênio (como a possessão), a idéia de
entusiasmo remete-nos, inclusive etimologicamente, ao deus interior, ao homem
tomado pelo divino. A chamada das Musas, no início de um poema como a
Odisséia ou Os trabalhos e os dias, permite que o poeta, à semelhança do que
ocorria com os profetas em relação ao futuro, veja o passado tico e sirva de
instrumento, de veículo para as divindades que o possuem. Com o advento do
Romantismo, mas, já antes, em suas fontes como Rousseau, este papel passa a ser
de inteira responsabilidade do artista que, tomado unicamente por seu gênio, pode
realizar esta empresa sobre-humana. No caso do ambiente artístico-cultural em que
Rousseau estava situado, notadamente o ambiente francês, a idéia de entusiasmo
não passou despercebida nem mesmo durante os rígidos anos de formação da
210
doutrina clássica na França. Contudo, em termos literários, uma arte que havia
encontrado seu apogeu nas peças de Racine não poderia deixar de relativizar o
papel do gênio entusiasmado, e, em pleno século XVIII, a posição de Voltaire,
conforme apontada anteriormente, é eloqüente por si só.
No caso de Rousseau, na sensibilidade capaz de gerar os arroubos líricos
como os de Les rêveries du promeneur solitaire, com total identificação com a
divindade Natureza, o entusiasmo assume papel preponderante. Não que Rousseau
fosse insensível ao controlado entusiasmo genial da afiada verve de Voltaire, por
exemplo. Afinal, mesmo após romper relações com o autor de Candide, Rousseau
pôde ainda afirmar, segundo o descrito no livro dez das Confessions, o seguinte,
em uma carta endereçada ao desafeto: De tous les sentiments dont mon cœur était
pénétré pour vous, il n’y reste que l’admiration qu’on ne peut refuser à votre beau
génie, et l’amour de vos écrits” (ROUSSEAU, 1972, p. 315). Percebemos que,
mesmo controlando o entusiasmo pelo uso da razão, o gênio de Voltaire, para
Rousseau, era sobretudo gênio. Mas jamais poderia Rousseau concordar com
Voltaire quando este afirmava, segundo uma passagem mencionada aqui: Ss do
exprimait l’entdousiasme detcette passiontt ett ’iltest vrai qu’elle luitcoeta laívie,t ’est
quezl’entdousiasmezcnezcellezdevintzdémencs”.cSe se tratazde demência,zé uma
santa demência da qual Rousseau partildou ao colocar
211
aux cœurs faits pour le sentir. Mais las ! il ne sait rien dire à ceux son
germe n’est pas, et ses prodiges sont peu sensibles à qui ne les peut imiter.
Veut-tu donc savoir si quelque étincelle de ce feu dévorant t’anime ? Cours,
vole à Naples écouter les chefs-d’œuvre de Leo, de Durante, de Jommelli,
de Pergolèse. Si tes yeux s’emplissent de larmes, si tu sens ton cœur
palpiter, si des tressaillements t’agitent, si l’oppression te suffoque dans tes
transports, prend le Métastase et travaille ; son Génie échauffera le tien ; tu
créeras à son exemple : c’est ce que fait le Génie, et d’autres yeux te
rendront bientôt les pleurs que tes Maîtres t’on fait verser. Mais si les
charmes de ce grand Art te laissent tranquille, si tu n’as ni délire ni
ravissement, si tu ne trouves que beau ce qui transporte, oses-tu demander
ce qu’est le Génie ? Homme vulgaire, ne profane point ce nom sublime.
Que t’importerait de le connaître ? tu ne saurais le sentir : fais de la
Musique Française. (ROUSSEAU, 1995, p. 837-8)
É a culminância do deus interior, transfigurado no gênio criativo, próprio do
artista, incomunicável e intransferível: En as-tu : tu le sens en toi-même. N’en as-tu
pas : tu ne le connaîtras jamais”. Submetendo todo o universo à sua arte maior, este
gênio está também, em perfeita harmonia com o que vimos nas Confessions,
condenado à marginalidade, ainda que voluntária, pois il ne sait rien dire à ceux
son germe n’est pas, et ses prodiges sont peu sensibles à qui ne les peut imiter”.
Contudo, se o gênio alija o artista dos demais, ele o faz porque eleva seu eleito a
alturas inimagináveis, a transbordamentos de emoção proibidos aos outros. Na
verdade, a afirmação grandiloqüente do fim do verbete (“si les charmes de ce grand
Art te laissent tranquille, si tu n’as ni délire ni ravissement, si tu ne trouves que beau
ce qui transporte, oses-tu demander ce quest le Génie ? Homme vulgaire, ne
profane point ce nom sublime”) mostra claramente que marginalização, em termos
geniais, é realmente eleição, possibilitando a ferina acidez do conselho àquele que,
no domínio da música, não faz parte da confraria genial: fais de la Musique
Française”. Revanche ambivalente do artista incomum, ecoando na fina ironia de
Verlaine afirmando que apenas seu canto sugestivo, e que todo o resto é apenas
literatura.
Rousseau, portanto, não apenas trabalha nas fundações de um arquétipo
genial, mas, ao colocar-se como personagem titânico de si mesmo, identifica-se com
o próprio arquétipo, torna-se o próprio arquétipo. Assim, da definição rousseauniana
de gênio, podemos a mesmo encontrar a matriz de três dos gênios marginais
212
citados aqui: Verlaine (“Il peint tous les tableaux par des Sons ”), Mallarmé (il fait
parler le silence même ”) e Rimbaud (“il brûle sans cesse et ne se consume jamais”).
Rousseau subverte as regras do jogo, cria de suas misérias sucessos inimagináveis,
e, de seus sucessos, realizações prometeicas, sobre-humanas, divinas mas
metodologicamente demoníacas, de modo a forçar sua entrada entre os colossos do
pensamento e da Arte de sua tradição lingüística e mesmo de fora dela. Assim, não
causa espanto que, certas vezes, mesmo seus críticos tenham de dar o braço a
torcer, reconhecendo em Rousseau, para além daquilo que puder ser considerado
defeito ou falha, um gênio inquestionável, incontornável e, o que é ainda mais
sublime, necessário. Dando a palavra a Gustave Lanson:
Enfin je suis tout à fait de l’avis de M. Faguet, qu’à de certains
moments, dans les civilisations avancées, riches de chefs-d’œuvre
littéraires, la meilleure maxime de pédagogie qu’on puisse donner, c’est
d’écarter les livres. Fatalement l’acquisition du « savoir » tend à prendre
dans l’éducation la place que doit tenir la formation du jugement et du
caractère : il est bon qu’un Montaigne et un Rousseau nous remettent sous
les yeux les fins essentielles de l’éducation. Nous finissons par oublier
d’habituer l’enfant à penser, à force d’étaler devant lui les pensées des
autres ; nous l’écœurons de littérature, et nous n’en faisons me pas un
lettré. (LANSON, 1898, 786)
A aproximação entre Rousseau e Montaigne não é fortuita, sobretudo
segundo a percepção historicista da Literatura de Lanson que, inevitavelmente,
pensa em termos de canonização. Rousseau, apesar dos “complôs”, imaginários ou
não, prepara o nio que acabava de se assentar como termo para o ponto máximo
de sua potencialização: o Romantismo. A maneira como os românticos se
apropriaram do gênio demoníaco teria conseqüências profundas para o próprio
ethos da literatura francesa e de seus artistas. Dentre eles, alguns merecem
destaque por sua contribuição decisiva nos jogos infernais da excelência artística.
Comecemos com uma temporada no Inferno em companhia de Rimbaud.
O vidente de Charleville
Jean-Nicolas Arthur Rimbaud representa um desafio para a História da
213
Literatura. Além de revolucionar de modo extremo a poesia entre os dezesseis e os
dezenove anos, teve uma vida tão incomum, com viagens, escândalos e aventuras,
que o resultado poderia ser a criação daquilo que nomeia uma obra fundamental
de René Étiemble: Le mythe de Rimbaud (1952). Mas, no caso de Rimbaud, o mito
se torna mistificação, e o abandono da poesia quando ele não tinha ainda vinte anos
serviu para preencher esse ato das mais diversas interpretações, dentre as quais
tem especial recorrência a de que Rimbaud, após testar os limites da linguagem
poética, teria optado pelo silêncio como passo final de sua aventura artística. Não
elementos que sustentem tal tese, contudo, é interessante como ela contribui para a
visão de um gênio consumido por sua arte e ansioso pelo impossível. Partindo de
uma oposição ao gênio fracassado, Laubriet define o génie ambitieux nos
seguintes termos:
En face de ces ratés, de ces insuffisants, combien plus grands et plus
lumineux apparaissent [os nios ambiciosos]. Pourtant, eux aussi se
verront voués à l’échec, mais cette fois par un phénomène inverse, par
une sorte de trop grande plénitude de dons et par suite d’un abandon
exclusif à leur démon créateur. Ils apparaissent comme des chercheurs
d’impossible. (LAUBRIET, 1961, p. 216)
Esta poderia ser uma referência ao Rimbaud mistificado que animou o
discurso literário tornando-se praticamente um tropo artístico. Assim, qualquer
interpretação de Rimbaud no sentido de uma definição do gênio seria de profunda
influência na literatura posterior contaminando até mesmo a literatura precedente. O
problema, claro, é retirar as camadas de discursos que criam, a partir de Rimbaud,
algo sem dúvida atraente mas que não é, em última instância, realmente Rimbaud. E
isso sem que se perca de vista o fato de que a mistificação, embora não contribua
para uma especificação de Rimbaud como “escritura”, é de suma importância para
Rimbaud como “leitura”. Fernand Destaing, por exemplo, em livro sobre La
soufrance et le génie, destaca a condição de Rimbaud como “adolescent sourdoué
(DESTAING, 1980, p. 205), para celebrá-lo como peut-être le génie à l’état pur
(DESTAING, 1980, p. 213). Mas como chegar a tal conclusão sem ceder à tentação
de um biografismo sensacionalista? Destaing, embora recaia por vezes no fait
divers, tenta uma análise do fenômeno Rimbaud a partir de seus textos e, se não
logra um êxito completo de isenção, isso se pelo fato de utilizar o texto
214
rimbaldiano para provar uma interpretação psicanalítica e não o contrário. O
resultado, ao submergir completamente diante do poder verbal de Rimbaud, é mais
uma celebração da divindade antediluviana de Charleville do que uma iluminação de
sua obra:
Mais l’artisan se fait artiste. Il met dans son immense dérèglement une
rigueur sans faille. Il ajuste le débridement de ses idées avec une précision
d’horloger. Il ajoute à une alchimie du verbe une chimie rigoureuse, une
logique parfaite. Il met au point, minutieusement, une véritable science du
désordre. Et c’est ainsi qu’avec un bric-à-brac enfantin, en somme, des
mots magiques trouvés dans ses dictionnaires, mais aussi une syntaxe
merveilleuse qui lui vient de ses humanités, il fait des vers sublimes.
L’alchimiste a cidément du génie, il transforme en or le plomb des mots.
(DESTAING, 1980, p. 211)
E o gênio de Rimbaud consubstancia-se com sua produção e com as
imagens presentes na mesma (“dérèglementou alchimie du verbe”, apenas para
citar as duas mais paradigmáticas). Neste ponto, cabe uma importante ressalva:
seria possível uma outra abordagem? Ou o único meio de penetrar na parade
sauvage rimbaldiana é segundo suas leis que, embora anárquicas, são
rigorosíssimas? Especificamente com relação ao gênio em Rimbaud, o problema é
particularmente difícil, em função das duas referências mais marcantes ao termo
encontradas no grande livro de Rimbaud, Illuminations. Em Une saison en enfer,
no qual a postura demoníaca avulta desde o título infernal, não encontramos o
termo, contudo, no trabalho definitivo de Rimbaud, os poemas em prosa de Conte
e Géniesão talvez os melhores e mais problemáticos exemplos do gênio em sua
obra. Melhores porque em ambos o termo “génie” está presente de modo destacado;
problemáticos porque, também em ambos, a dificuldade do texto e as sutilezas
semânticas de utilização da palavra lançam uma nuvem que desvia os nossos olhos
da questão.
Aparentemente, devido ao fato de estar presente desde o título, o poema
Géniedeveria ser o mais indicativo do nio em Rimbaud. Todavia, uma rápida
leitura basta para mostrar como as indicações, se existem, são imprecisas:
GÉNIE
215
Il est l'affection et le présent, puisqu'il a fait la maison ouverte à
l'hiver écumeux et à la rumeur de l'été, lui qui a purifié les boissons et les
aliments, lui qui est le charme des lieux fuyants et le délice surhumain des
stations. Il est l'affection et l'avenir, la force et l'amour que nous, debout
dans les rages et les ennuis, nous voyons passer dans le ciel de tempête et
les drapeaux d'extase.
Il est l'amour, mesure parfaite et réinventée, raison merveilleuse et
imprévue, et l'éternité : machine aimée des qualités fatales. Nous avons tous
eu l'épouvante de sa concession et de la nôtre : ô jouissance de notre santé,
élan de nos facultés, affection égoïste et passion pour lui, lui qui nous aime
pour sa vie infinie...
Et nous nous le rappelons, et il voyage... Et si l'Adoration s'en va,
sonne, sa promesse sonne : "Arrière ces superstitions, ces anciens corps,
ces ménages et ces âges. C'est cette époque-ci qui a sombré !"
Il ne s'en ira pas, il ne redescendra pas d'un ciel, il n'accomplira pas
la rédemption des colères de femmes et des gaîtés des hommes et de tout
ce péché : car c'est fait, lui étant, et étant aimé.
O ses souffles, ses têtes, ses courses ; la terrible lérité de la
perfection des formes et de l'action.
O fécondité de l'esprit et immensité de l'univers.
Son corps ! Le dégagement rêvé, le brisement de la grâce croisée
de violence nouvelle !
Sa vue, sa vue ! tous les agenouillages anciens et les peines relevés
à sa suite.
Son jour ! l'abolition de toutes souffrances sonores et mouvantes
dans la musique plus intense.
Son pas ! les migrations plus énormes que les anciennes invasions.
O lui et nous ! l'orgueil plus bienveillant que les charités perdues.
O monde ! et le chant clair des malheurs nouveaux !
Il nous a connus tous et nous a tous aimés. Sachons, cette nuit
d'hiver, de cap en cap, du pôle tumultueux au château, de la foule à la
plage, de regards en regards, forces et sentiments las, le héler et le voir, et
le renvoyer, et sous les marées et au haut des déserts de neige, suivre ses
vues, ses souffles, son corps, son jour. (RIMBAUD, 1989a, p. 108-9)
Canto lírico de celebração do amor e da liberdade redentora, esse poema nos
apresenta um problema justamente pelo destaque identificador do gênio como
amour”. Ao apresentá-lo como Il est l'amour, mesure parfaite et réinventée, raison
216
merveilleuse et imprévue, et l'éternité : machine aimée des qualités fatales”,
Rimbaud inscreve seu gênio na tradição platônica. Tal procedimento o afasta de sua
percepção como um poderoso poder criador original aproximando-o da divindade
pessoal socrática, mas, por outro lado, conforme foi dito, essa memória lingüística
pensa o gênio como daímon, o que o demoniza etimologicamente e, além disso, o
aproxima da grande metáfora do personagem de Sócrates para seu poder mental
seu gênio podemos sempre dizer. Sua dose de demonização se apresenta em suas
“qualidades fatais”, o que corrobora o agonismo sutil com relação à palavra-chave
cartesiana de “razão maravilhosa e imprevista”, que aponta para o trabalho racional
tornado invenção progressiva (“medida perfeita e reinventada”) e seu papel
eternizador (“eternidade”). Mas o que talvez o que mais problematize o texto seja
justamente a voz lírica que transborda a primeira pessoa do singular e implica o
leitor em um nous”. As relações de construção do sujeito apontam, assim para um
indício do papel ético do gênio, que repercute nos dois poemas em questão de
Rimbaud. Vejamos o outro:
CONTE
Un prince était vexé de ne s'être emplojamais qu'à la perfection
des générosités vulgaires. Il prévoyait d'étonnantes révolutions de l'amour,
et soupçonnait ses femmes de pouvoir mieux que cette complaisance
agrémentée de ciel et de luxe. Il voulait voir la vérité, l'heure du désir et de
la satisfaction essentiels. Que ce t ou non une aberration de piété, il
voulut. Il possédait au moins un assez large pouvoir humain.
Toutes les femmes qui l'avaient connu furent assassinées : quel
saccage du jardin de la beauté ! Sous le sabre, elles le bénirent. Il n'en
commanda point de nouvelles. - Les femmes réapparurent.
Il tua tous ceux qui le suivaient, après la chasse ou les libations. -
Tous le suivaient.
Il s'amusa à égorger les bêtes de luxe. Il fit flamber les palais. Il se
ruait sur les gens et les taillait en pièces. - La foule, les toits d'or, les belles
bêtes existaient encore.
Peut-on s'extasier dans la destruction, se rajeunir par la cruauté !
Le peuple ne murmura pas. Personne n'offrit le concours de ses vues.
Un soir, il galopait fièrement. Un Génie apparut, d'une beauté
ineffable, inavouable même. De sa physionomie et de son maintien
ressortait la promesse d'un amour multiple et complexe ! d'un bonheur
217
indicible, insupportable me ! Le Prince et le nie s'anéantirent
probablement dans la santé essentielle. Comment n'auraient-ils pas pu en
mourir ? Ensemble donc ils moururent.
Mais ce Prince décéda, dans son palais, à un âge ordinaire. Le
Prince était le Génie. Le Génie était le Prince.
La musique savante manque à notre désir. (RIMBAUD, 1989a, p.
58-9)
A ciclicidade desafiadora da gica de causa e efeito é o principal elemento
dificultador do poema que, apropriando-se da tradição do conto maravilhoso que
repercute por seu título, frustra nossa expectativa de epos pela seqüencialidade no
tempo. A chave obscura do parágrafo final que nos permite entrever a utilização, por
parte de Rimbaud, de uma poética musical capaz de nos permitir temas e contra-
temas, bem como uma retomada dos mesmos na progressão de uma estrutura
sinfônica, ajuda-nos a não naufragar na estranheza, mas não resolve de modo
definitivo a questão fundamental para uma análise do nio em Rimbaud: como
encarar o transubjetivismo do par Génie/Prince? Roger Munier, em um texto
impregnado pela magia verbal de Rimbaud, intitulado “Génie” de Rimbaud, busca
resolver a questão articulando ambos os poemas:
Qu’était donc ce “Génie”? Rien d’autre que l’image du sir, de
l’appel, de la “promesse” d’un autre amour. “Le Prince était le Génie. Le
Génie était le Prince”. Et cela nous ramène au poème que nous
interrogeons.
Où le Génie n’est plus que “Génie” justement, sans article. Ce
“Génie”, qui est élan, qui est appel, est nôtre aussi bien : notre possible,
notre impossible. (MUNIER, 1988 p. 26)
O ponto mais importante da passagem de Munier é justamente a primeira
pessoa do plural que a permeia. Reconhecendo sua natureza de questionamento
ético, Munier pensa o gênio rimbaldiano para além da ética textual particular e atinge
a ética humana como um todo. Assim, atingimos uma visão ampla do gênio partindo
de Rimbaud que, de acordo com a tradição de demonização positiva na qual se
insere, torna-se celebração do impulso, das pulsões humanas que nos obrigam ao
querer mais. A ética infernal (ainda que seja, é bom que se repita, positivada) é bem
percebida por Munier, sobretudo quando este aproxima os textos rimbaldianos sobre
218
o nio em Illuminations de Délires I”, de Une saison en enfer. O texto prima por
um satanismo selvagem, e um excerto basta para termos uma idéia:
DELIRES
I
VIERGE FOLLE
L’EPOUX INFERNAL
Ecoutons la confession d'un compagnon d'enfer :
[…]
"Je suis esclave de l'Epoux infernal, celui qui a perdu les vierges
folles. C'est bien ce démon-là. Ce n'est pas un spectre, ce n'est pas un
fantôme. Mais moi qui ai perdu la sagesse, qui suis damnée et morte au
monde, - on ne me tuera pas ! - Comment vous le décrire ! Je ne sais même
plus parler. Je suis en deuil, je pleure, j'ai peur. Un peu de fraîcheur,
Seigneur, si vous voulez, si vous voulez bien !
"Je suis veuve... - J'étais veuve... - mais oui, j'ai été bien sérieuse
jadis, et je ne suis pas née pour devenir squelette !... - Lui était presque un
enfant... Ses délicatesses mystérieuses m'avaient duite. J'ai oublié tout
mon devoir humain pour le suivre. Quelle vie ! La vraie vie est absente.
Nous ne sommes pas au monde. Je sais il va, il le faut. Et souvent il
s'emporte contre moi, moi, la pauvre âme. Le Démon ! - c'est un Démon,
vous savez, ce n'est pas un homme.
"Il dit : "Je n'aime pas les femmes. L'amour est à réinventer, on le
sait. Elles ne peuvent plus que vouloir une position assurée. La position
gagnée, coeur et beauté sont mis de côté : il ne reste que froid dédain,
l'aliment du mariage aujourd'hui. Ou bien je vois des femmes, avec les
signes du bonheur, dont, moi, j'aurai pu faire de bonnes camarades
dévorées tout d'abord par des brutes sensibles comme des bûchers... "
"Je l'écoute faisant de l'infamie une gloire, de la cruauun charme.
"Je suis de race lointaine : mes pères étaient Scandinaves : ils se perçaient
les côtes, buvaient leur sang. - Je me ferai des entailles partout le corps, je
me tatouerai, je veux devenir hideux comme un Mongol : tu verras, je
hurlerai dans les rues. Je veux devenir bien fou de rage. Ne me montre
jamais de bijoux, je ramperais et me tordrais sur le tapis. Ma richesse, je la
voudrais tachée de sang partout. Jamais je ne travaillerai... " Plusieurs nuits,
son démon me saisissant, nous nous roulions, je luttais avec lui ! - Les nuits,
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souvent, ivre, il se poste dans des rues ou dans des maisons, pour
m'épouvanter mortellement. - "On me coupera vraiment le cou ; ce sera
dégoûtant." Oh ! ces jours où il veut marcher avec l'air du crime !
(RIMBAUD, 1989c, p. 119-21)
Demoníaco, escravizador, cruel, criminoso: o Époux infernalé a expressão
radical do satanismo. Mas representa antes a face sombria do gênio que não pode
ser contida por regras, tão cara ao Romantismo. Na verdade, temos uma zona
problemática, pois, se realmente se tratasse de uma anulação das regras, a
dimensão do crime, por exemplo, seria extinta: sem leis não transgressão.
Contudo o nio existe não apenas contra as regras, mas igualmente apesar das
regras. Na série de cartas que entram na composição do volume Racine e
Shakespeare, Stendhal, na longa polêmica com Auger, representante de uma visão
classicista, faz um interessante comentário com relação ao assunto:
Si Aristote ou l’abd’Aubignac avaient imposé à la tragédie française la
règle de ne faire parler ses personnages que par monosyllabes, si tout mot
qui a plus d’une syllabe était banni du théâtre français et du style poétique
[…] ; eh bien ! malgré cette règle absurde, les tragédies faites par des
hommes de génie plairaient encore. Pourquoi ? c’est qu’en dépit de la règle
du monosyllabe, pas plus étonnante que tant d’autres, l’homme de génie
aurait trouvé le secret d’accumuler dans sa pièce d( )Tj-320.292 -16.2 Td(r)Tj3 0 Td(é)Tj5.2901 0 TdL(c)Tj4.68896 0 Td(e)Tj5.2901 0 Td(t)Tj2.5248Td(e)Tj5.56873 0 Td( )Tj4.h901 0 Td(e)Tj5.16987 0Td(s)Tj4.68896 0 Td( )Tj3.68896 0 Td(e)Tj5.16987 0 Td( )Tj4.20804 0 Td(d)Tj5.41033 0Td(e)Tj5.16987 0 Td( )Tj3.2462 0 Td(p)Tj5.2901 0 0 Td(é)Tj5.2901 0 TdL(c)Tj2901 0 Td0(s)Tj4.80918 0 Td(é)Tj5.2901 0 Td( )Tj4.2901 0 Td(s)Tj4.56873 0 Td(t)Tj2.64505 0 Td( )Tj-320.292 -16.2 Td(q)Tj5.-320.292 -16.2 Td(r)Tj3 0 Td(é)Tj5.2901 0 TdL(c)Tj4.689.858(a)Tj6.251970 Td(b)Tj5.16987 0 Td(e)Tj5.2901 0 Td(n)Tj5.2901 0 Td(e)Tj5.16987 0 Td(a)Tj5.16987 0 Td(n)Tj5.16987 0 Td( )Tj2.68896 0 Td(e)Tj5.2901 0 Td(t)Tj2.4.689.738(d)Tj5.16987 0 Td(e)Tj5.16987 0 Td(h)Tj5.4.689.858(a)Tj6.68896 0 Td(e)Tj5.2901 0 Td(s)Tj4.16987 0 Td(t)Tj2.64505 0 Td( )Tj4.16413 0 Td(m)Tj7.6947 0 Td(e)Tj5.2901 0 Td(n)Tj5.16987 0 Td(t)Tj2.76528 0 Td( )Tj4.56873 0 Td( )Tj4.328279.979(o)Tj6.16987 0 Td(u)Tj5.2901 0 Td(’)Tj2.0439 0 Td( )Tj2.645059.858(a)Tj6.2901 0 Td(o)Tj5.2901 0 Td(s)Tj4.2901 0 Td(s)Tj4.80918 0 Td( )Tj4.328279.979(o)Tj6.68896 0 Td(e)Tj5.16987 0 Td(i)Tj2.16413 0 Td(e)Tj5.68896 0 Td(i)Tj2.0439 0 Td( )Tj3.80918 0 Td(a)Tj5.56873 0 Td(e)Tj5.2901 0 Td(c)Tj4.2901 0 Td(t)Tj2.52482 0 Td(.)Tj2.645059.858(a)Tj6.2901 0 Td(’)Tj2.0439 0 Td(A)Tj6.251970 Td(b)Tj5.16987 0 Td(e)Tj5.2901 0 Td(n)Tj5.12597 0 Td(d)Tj5.169873624 Tf5.16987 0 Td4 o
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‘lui qui nous aime…’) serait au ‘Génie ce que la ‘vierge folle de Délires I est à
‘l’Epoux infernal’ dans l’aventure personnelle de Rimbaud (MUNIER, 1988 p. 28).
Indo além, e lembrando de Conte”, poderíamos mesmo afirmar: ‘Le Prince était le
Génie. Le Génie était le Prince’, on pourrait dire : la vierge folle était l’Epoux infernal
l’Epoux infernal, la vierge folle, soit une part de Rimbaud en lutte avec l’autre :
Rimbaud en lutte avec lui-même” (MUNIER, 1988 p. 28).
Mas Munier não chega diretamente ao ponto mais importante : a visão do
gênio em Rimbaud também leva a uma invenção que se apropria da alteridade, uma
poética do Outro. Essa alteridade radical da invenção rimbaldiana é um dos
elementos dificultadores para a intelecção de sua obra. Assim, ao leitor, resta a
necessidade de se iniciar nos mistérios da alquimia verbal do vidente de Charleville;
mas como fazê-lo? Felizmente, Rimbaud legou à posteridade um livro de rituais
elucidativo, uma carta na qual os passos iniciáticos a serem dados são traçados com
precisão. Devido à grande extensão da carta, o que impede sua reprodução na
totalidade, façamos uma seleção de seus momentos mais importantes para a
reflexão proposta:
Car JE est un autre. Si le cuivre s’éveille clairon, il n’y a rien de sa
faute, cela m’est évident: j’assiste à l’éclosion de ma pensée: je la regarde,
je l’écoute: je lance un coup d’archet: la symphonie fait son remuement
dans les profondeurs, ou vient d’un bord sur la scène
[…]
Je dis qu’il faut être ‘voyant’, se faire ‘voyant’.
Le Poète se fait ‘voyant’ par un long, immense et raisonné
‘dérèglement’ de ‘tous les sens’. Toutes les formes d’amour, de souffrance,
de folie; il cherche lui-même, il épuise en lui tous les poisons, pour n’en
garder que les quintessences. Ineffable torture il a besoin de toute la
foi, de toute la force surhumaine, il devient entre tous le grand malade,
le grand criminel, le grand maudit,
et le suprême Savant!
Car il arrive
à l’‘inconnu’! Puisqu’il a cultivé son âme, déjà riche, plus qu’aucun! Il arrive
à l’inconnu, et quand, affolé, il finirait par perdre l’intelligence de ses
visions, ils les a vues! Qu’il crève dans son bondissement par les choses
inouïs et innommables : viendront d’autres horribles travailleurs ; ils
commenceront par les horizons où l’autre s’est affaissé !
[…]
221
Je reprends :
Donc le poète est vraiment voleur de feu.
Il est chargé de l’humanité, des animaux même ; il devra faire
sentir, palper, écouter ses inventions ; si ce qu’il rapporte ‘de là-bas’ a
forme, il donne forme ; si c’est informe, il donne de l’informe. Trouver une
langue ;
Du reste, toute parole étant idée, le temps d’un langage
universel viendra !
[…]
Cette langue sera de l’âme pour l’âme, résumant tout, parfums,
sons, couleurs, de la pensée accrochant la pensée et tirant. Le poète
définirait la quantité d’inconnu s’éveillant en son temps dans l’âme
universelle : il donnerait plus que la formule de sa pensée, que la
notation ‘de sa marche au Progrès’. Enormité devenant norme, absorbée
par tous, il serait vraiment ‘un multiplicateur de progrès’ !
[...]
En attendant, demandons aux ‘poètes’ du ‘nouveau’, - idées et
formes. Tous les habiles croiraient bientôt avoir satisfait à cette demande :
- ce n'est pas cela !
Les premiers romantiques ont été ‘voyants’ sans trop bien s'en rendre
compte : la culture de leurs âmes s'est commencée aux accidents :
locomotives abandonnées, mais brûlantes, que prennent quelque temps
les rails. - Lamartine est quelquefois voyant, mais étranglé par la forme
vieille. - Hugo, ‘trop cabochard’, a bien du Vu dans les derniers volumes :
Les Misérables sont un vrai ‘poème’. J'ai Les Châtiments sous main ;
‘Stella’ donne à peu près la mesure de la vue de Hugo. Trop de Belmontet
et de Lamennais, de Jehovahs et de colonnes, vieilles énormités crevées.
Musset est quatorze fois exécrable pour nous, générations
douloureuses et prises de visions, - que sa paresse d'ange a insultées ! O !
les contes et les proverbes fadasses ! O les Nuits ! O Rolla ! ô Namouna !
ô la Coupe ! tout est français, c'est-à-dire haïssable au suprême degré ;
français, pas parisien ! Encore une œuvre de cet odieux génie qui a inspiré
Rabelais, Voltaire, Jean La Fontaine, commenté par M. Taine !
[…]
Les seconds romantiques sont très ‘voyants’ : Th. Gautier,
Lec[onte] de Lisle, Th. De Banville. Mais inspecter l’invisible et entendre
l’inouï étant autre chose que reprendre l’esprit des choses mortes,
Baudelaire est le premier voyant, roi des poètes, ‘un vrai Dieu’. Encore a-t-
il vécu dans un milieu trop artiste ; et la forme si vantée en lui est
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mesquine : les inventions d’inconnu clament des formes nouvelles.
(RIMBAUD, 1989b, p. 142-147)
Eis alguns trechos da carta enviada por Rimbaud a Paul Demeny em 15 de
maio de 1871, conhecida, como outras da mesma natureza, pelo sugestivo nome de
Lettre du Voyant, Carta do Vidente. Nesta carta, Rimbaud compõe praticamente uma
mini-poética capaz de dar conta da poesia futura, que ele inicia a carta com a
seguinte afirmação: J’ai résolu de vous donner une heure de littérature nouvelle; je
commence de suite par un psaume d’actualité (RIMBAUD, 1989b, p.140). Em
seguida, ele expõe seu próprio poema Chant de guerre Parisien para depois
afirmar: Voici de la prose sur l’avenir de la poesie(RIMBAUD, 1989b, p.141). Sem
dúvida um exemplo excelente do ideal de renovação lingüística da lírica moderna em
suas raízes.
Normalmente, considerada como texto doutrinário, a Carta do Vidente pode
ser perfeitamente considerada como literatura, ainda que tal abordagem tenha seu
toque de provocação. E, transpondo então certos limites, podemos até mesmo
considerar que o lado programático da carta adquire um novo estatuto, como uma
espécie de percurso iniciático capaz de conduzir leitor e artista rumo ao novo, ao
inconnu”. Sem perder de vista o agonismo demoníaco de uma iniciação (ainda que
positivado em todas as sociedades secretas nas quais se torna metodologia),
separemos quatro passos dados no percurso do trecho citado e vejamos este
aspecto de Rimbaud a partir de quatro afirmações da Carta do Vidente.
Car JE est un autre
Ao estabelecer esta alteridade radical capaz de provocar uma forte
estranheza, Rimbaud alia com perfeição o conteúdo à forma ao propor uma
construção muito inusual em língua francesa. Seria de se esperar algo do tipo Car
je suis un autre”, ou (o que já seria suficientemente estranho) Car j’ est un autre”.
Entretanto, ele prefere uma forma ainda mais extrema, capaz de produzir uma
alteridade na própria linguagem. Com isso, ele antecipa, através do tom explicativo
da conjunção car o caráter didático de seu texto. Ao exprimir sua condição de
outro, remete-nos a um eu-profundo de caráter iniciático. E, por fim, ao expandir as
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possibilidades da língua francesa, também antecipa a “Nova Língua” das Palavras
de Poder dos iniciados. Em seguida, ele desenvolve cada um destes temas.
Je dis qu’il faut être ‘voyant’, se faire ‘voyant
A partir desta afirmação, Rimbaud
224
français como “encore une œuvre de cet odieux génie qui a inspiré Rabelais,
Voltaire, Jean La Fontaine”; a referência a génie”, aqui, não é fortuita. Com a
transgressão, todavia, vem a posibilidade de aprimorar os iniciados por meio do
estabelecilmento do cânone outro, com Gautier, Lisle e Banville, mas, sobretudo,
com Charles Baudelaire, de cujo poema final de Les fleurs du mal nasce o
inconnude Rimbaud, Baudelaire que é o premier voyant, roi des poètes, un vrai
Dieu’”. Esta identificação com um elemento transgressor capaz de apontar para um
aprimoramento do iniciado e, através deste, poder ser a esperança de redenção de
toda a humanidade, está presente nas doutrinas de diversas sociedades de cunho
iniciático. Assim, após sua iniciação, o poeta pode realmente se tornar um
multiplicateur de progrès”. Mas, para isso, ele deverá transmitir a outros o inconnu
que ele tem o privilégio de ver. Para isso, são necessárias Palavras de Poder.
Trouver une langue
Aqui surge a necessidade de uma Nova Língua capaz de dar conta de uma
supra-realidade igualmente nova. Não sem razão, Rimbaud afirma que les
inventions dinconnu réclament des formes nouvelles”. E qual é a forma nova que
Rimbaud utilizará para descrever o indescritível? O poema em prosa, manifestação
artística utilizada nas Illuminations, sua obra maior. Ao abolir os limites entre poesia
e prosa, o Vidente pode também abolir os limites entre a realidade ordinária na qual
sobrevive e o “inconnu”. Em tal processo, o poeta pode expandir sua graça e
comunicar sua verdade ao mundo revitalizando e renovando suas palavras-
mercadoria em Palavras de Poder. Embora essas formas novas possam causar
estranheza de início, elas certamente poderão comunicar sua mensagem, pois, ao
atingir seu máximo poder, elas recuperarão seu estatuto de Logos, palavra-idéia que
o “Evangelho de João”, com aspectos gnósticos, identificará ao próprio Cristo, Deus-
Palavra-Idéia a se fazer carne e a habitar entre nós. Ao atingirem este apogeu, as
novas formas deixarão sua estranheza de lado e passarão a comunicar, ensinar e
iniciar em um nível jamais visto. Ou, como afirma a Carta do Vidente, Du reste,
toute parole étant idée, le temps d’un langage universel viendra!”.
Este transcendentalismo metafísico é difícil e hermético, sem dúvida. Mas não
é, em absoluto, inacessível ao mundo. Nas Illuminations, o poema Vies”, dividido
em três partes, apresenta na segunda a seguinte afirmação: Je suis un inventeur
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bien autrement méritant que tous ceux qui m’ont précédé; un muscien même, qui ai
trouvé quelque chose comme la clef de l’amour(RIMBAUD, 1989a, p.64). O grande
mérito de encontrar alguma coisa como a “chave do amor”, talvez esteja muito mais
no ato de encontrar do que necessariamente no próprio objeto a ser encontrado.
Afinal, na própria linearidade sucessiva da frase, o fato de o eu-lírico ser um inventor
e a idéia de mérito surgem antes da chave encontrada. E, em um outro poema das
Illuminations, Parade”, encontramos a seguinte afirmação, à primeira vista
desanimadora: J’ai seul la clef de cette parade sauvage(RIMBAUD, 1989a, p. 60).
Mas ela é desanimadora somente à primeira vista, pois as Verdades rimbaldianas
não devem ser compreendidas através de um percepção ordinária tão manca quanto
a realidade (também) ordinária a que se relaciona. Ao falar de seu mérito, o eu-lírico
identificou-se com um musicista, de modo que a nova ngua, assim como a música,
pode comunicar também além das palavras, ocupando os vazios assustadores e
inacessíveis entre uma palavra e outra. É, sem dúvida, uma dura batalha, mas assim
como encontramos no poema Guerre”, paradoxalmente C’est aussi simple qu’une
phrase musicale(RIMBAUD, 1989a, p. 98). Que isso seja a principal via de entrada
dos jogos subjetivos de um poema-chave para o gênio em Rimbaud como é o caso
de “Conte”, é mais do que uma feliz coincidência: é uma revelação.
Eis a iniciação rimbaldiana. É uma iniciação severa, ao fim da qual corremos
o risco de nos tornar grandes doentes, grandes criminosos, grandes malditos. Mas a
promessa de infinito é maior, as alturas do desconhecido valem todos os riscos. E
nós podemos participar de tudo isto. Eis, também, o nosso desafio, a nossa
tentação, a nossa glória. Talvez tenhamos forçado um pouco além da conta os
limites entre a literatura e a vida, mas isso ocorre a todo momento, das mais
diversas maneiras. Como ocorreu em 21 de Janeiro de 1998, quando o astrônomo
E. West divisou no céu noturno um pequeno planeta, o 4635. West deu-lhe o nome
de Rimbaud, em função desta passagem: J’ai tendu des cordes de clocher à
clocher; des guirlandes de fenêtre à fenêtre ; des chaînes d’or d’étoile à étoile, et je
danse (RIMBAUD, 1989a, p. 71). Justificação quase teologal de um movimento
ascendente que reabilita o Lúcifer caído, Rimbaud, no cume da verdadeira
irmandade romântica francesa (mais do que como um dos grandes precursores do
Simbolismo, que também foi), inicia, por meio das chaves do seu gênio, o leitor, o
Outro, em um novo patamar da percepção humana. O Adversário, aqui, aproxima-se
tanto de nós mesmos que se torna quase um amigo, quase um irmão: a
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transcendência do Outro no Eu. Deus e o Diabo, em tal cenário, também começam a
se fundir, divinizando o gênio demoníaco a apontando para a essência do humano e
para além. Mas, Rimbaud, desbravador de territórios insondados na literatura de sua
vida e na vida de sua literatura, não foi o único nome do século XIX a articular os
elementos. Talvez ele, corrigindo o Deus bíblico, tenha não dado alma aos filhos do
barro, mas ajudado a formar a alma dos filhos do fogo. E, se Rimbaud assim o fez,
antes dele alguém já havia criado esses rebentos das chamas.
O filho do fogo
A menção ao nome de Gérard de Nerval a essa altura da discussão
representa um certo risco. Afinal, o autor não foi pródigo em exemplos a respeito da
temática do gênio e, se pensarmos em termos do que se declara, tampouco do
diabo, especificamente falando. Em seu monumental estudo sobre Le diable dans
la littérature française, Max Milner aponta com correção o problema ao afirmar :
Nous avons quelque peu hésité à inscrire le nom de Gérard de Nerval dans le
prolongement d’un chapitre consacà la habilitation de Satan. Le diable occupe,
dans la vaste e multiforme mythologie de Gérard, une place apparemment fort
restreinte (MILNER, 1971, p. 275). Todavia, por trás dos ritos de restauração e
perpetuação que a mitologia nervaliana, atualizada em seu ato poético, promove,
muito de transgressão demonizante, e o próprio Milner, em seguida à sua ressalva,
concorda que de nombreux textes épars montrent que cette question revêtait pour
Gérard autant ou plus d’importance que pour beaucoup de ses contemporains
(MILNER, 1971, p. 275).
Mas, e quanto ao gênio em particular? elementos que também justifiquem
a inclusão de Nerval nessa confraria ao mesmo tempo genial e diabólica? Se
considerarmos quantitativamente, não; felizmente, em matéria de discurso literário, é
em termos qualitativos que devemos sempre nos pautar. Assim, em uma passagem
discreta de La main enchantée, encontramos o seguinte trecho:
Il est des gens qui ont plus de sympathie pour telle ou telle grande qualité,
telle ou telle vertu singulière. L'un fait plus d'estime de la magnanimité et du
courage guerrier, et ne se plaît qu'au récit des beaux faits d’armes; une
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autre place au-dessus de tout le génie et les inventions des arts, des lettres
ou de la science ; d'autres sont plus touchés de la générosité et des actions
vertueuses par l'on secourt ses semblables et l'on se dévoue pour leur
salut, chacun suivant sa pente naturelle. (NERVAL, 1935, p. 12)
Quase despercebida em meio a um exercício de aparente tolerância com
relação aos procedimentos valorativos do ser humano, encontramos uma das raras
menções diretas de Nerval ao gênio, ligado ao caráter de invenção, seja nas artes
em geral, seja no caso específico das letras ou mesmo da ciência, fazendo do gênio
um demiurgo. No caso de Nerval, isso basta para aproximar o gênio do princípio
demoníaco. Em um trabalho seminal a respeito de escritor, Gérard de Nerval,
expérience et création, Jean Richer destaca exatamente tal aspecto ao lembrar
que souvent, Gérard identifiera le diable ou le personnage démoniaque au
Démiurge, ou bien encore il en fera la figure de la Raison triomphante de
l’obscurantisme religieux(RICHER, 1970, p. 140). A menção à razão, eterno eco à
divindade tutelar representada por Descartes, deve ser aqui vista com certo cuidado,
pois equilibra-se, na obra de Nerval em uma delgada corda que ata o princípio
luminoso da razão com um certo lado obscuro místico que, ao iluminar, tende a fazê-
lo com suas próprias e satânicas luzes. Assim conforme fará posteriormente
Rimbaud, Nerval abre espaço para o poeta prometeico, ladrão de fogo e ancestral
mítico de Lúcifer-Satã. Assim lembrando ainda Richer, é importante destacar que
les personnages de Caïn et de Prométhée prirent aux yeux du poète une
importance particulière: ce sont l’un et l’autre des ‘voleurs d’étincelle’ (RICHER,
1970, p. 146), ou ainda, mergulhando mais verticalmente na questão : Le
personnage romantique chez Nerval, en proie de la tentation de la chair et de l’esprit,
victime de lui-même, des dieux,du démon ou du destin s’identifie tantôt à
Prométhée,tantôt à Lucifer-Satan, tantôt à Caïn” (RICHER, 1970, p, 139).
Esse satanismo potencial de Nerval estará presente de modo marcante em
sua mitologia particular, mesmo que o poderoso sincretismo mascare a referência
direta. Em um dos poemas mais intrigantes de Les chimères, “Antéros”, temos a
presença demoníaca por toda parte:
ANTÉROS
228
Tu demandes pourquoi j'ai tant de rage au coeur
Et sur un col flexible une tête indomptée;
C'est que je suis issu de la race d'Antée,
Je retourne les dards contre le dieu vainqueur.
Oui, je suis de ceux-là qu'inspire le Vengeur,
Il m'a marqué le front de sa lèvre irritée,
Sous la pâleur d'Abel, hélas! ensanglantée,
J'ai parfois de Caïn l'implacable rougeur!
Jéhovah! le dernier, vaincu par ton génie,
Qui, du fond des enfers, criait : " Ô tyrannie! "
C'est mon aïeul Bélus ou mon père Dagon...
Ils m'ont plongé trois fois dans les eaux du Cocyte,
Et, protégeant tout seul ma mère Amalécyte,
Je ressème à ses pieds les dents du vieux dragon.
(NERVAL, 1972, p. 180)
Poderíamos justificar o demonismo nervaliano por meio do panteão satânico
que ele apresenta, com Caïn, Bélus ou Dagon, por exemplo, mas dois aspectos
merecem o devido destaque. O primeiro é a construção do eu-lírico em termos de
titanismo agonista do Eu, conforme encontramos na primeira estrofe. Reclamando
para si a invencibilidade indômita de Anteu, ele pode justificar seu belicismo frente
ao poder estabelecido, conforme se vê em expressões como “tête indomptéeou “Je
retourne les dards contre le dieu vainqueur”. O segundo é derivado do primeiro:
assim como Anteu é derrotado por Héracles, também os demais são subjugados em
última instância, pelo deus vencedor cristão; como pode um Eu se firmar em termos
agônicos diante da derrota? Ora, Assim como o Caim que surge no poema não é o
estigmatizado em termos negativos, e sim o vingador, pelo sangue de Abel, dos
caprichos de seu Deus, e, talvez, o anúncio do mestre do fogo e da forja construtor
de cidades, o deus vencedor está longe do princípio de agape da primeira epístola
de João, sendo antes o deus guerreiro do tetragrammaton, YHWH, senhor da
montanha de fogo. Isso basta para notarmos as sutilezas de transposição de
identidade no poema de Nerval, e o verso nove (“Jéhovah! le dernier, vaincu par ton
génie,”), na mesma medida em que celebra o Senhor da Guerra de uma época
desprovida de um
Y sh
229
agonismo emtermos de um confronto de gênios.
Essa confrontação que revisa o divino como poder e criação encontra na obra
de Nerval um eco ainda mais importante. No grupo de sonetos de Les Chimères
intitulado “Le Christ aux oliviers”, o desespero do Messias antes de sua morte
transborda por meio de um esvaziamento do u através da morte de Deus.
Entretanto, conforme seria de se esperar em um gênio inscrito em uma tradição
francesa de titãs equiparados que torna fluidos tanto a divindade quanto o
satanismo, o grupo de Le Christ aux oliviers se encerra de maneira ambígua,
percebendo o potencial de ressureição do mito cristão e circunscrevendo-o em um
processo de superação com relação aos mitos precedentes:
V
C'était bien lui, ce fou, cet insensé sublime...
Cet Icare oublié qui remontait les cieux,
Ce Phaéton perdu sous la foudre des dieux,
Ce bel Atys meurtri que Cybèle ranime!
L'augure interrogeait le flanc de la victime,
La terre s'enivrait de ce sang précieux...
L'univers étourdi penchait sur ses essieux,
Et l'Olympe un instant chancela vers l'abîme.
"Réponds! criait César à Jupiter Ammon,
Quel est ce nouveau dieu qu'on impose à la terre?
Et si ce n'est un dieu, c'est au moins un démon..."
Mais l'oracle invoqué pour jamais dut se taire;
Un seul pouvait au monde expliquer ce mystère:
- Celui qui donna l'âme aux enfants du limon.
(NERVAL, 1972, p. 187)
Aproximando o mito do Cristo com aqueles de Ícaro (o Humano que busca o
Sol) e Faetonte (o Sol que busca o Humano), bem como de Atis e Cibele (destruição
e restauração pelo princípio divino), Nerval indica a ambigüidade fundamental do
Cristo que ele constrói. Sua vitória por meio da ambigüidade da derrota, simbolizada
no desesperado César interrogando o oráculo, explode os limites entre o divino e o
230
demoníaco com o verso Et si ce n'est un dieu, c'est au moins un mon...”. Eis um
mistério que desnuda o agonismo que serve de base do diabólico em Nerval e que
também serve de base para seu gênio. Mas é um mistério auto-centrado, e o único
que pode explicá-lo encontra-se no famoso verso que encerra o poema: - Celui qui
donna l'âme aux enfants du limon”. O YHWH guerreiro do início do Antigo
Testamento, criando Adão da junção da água e da terra o barro, o limon e
acrescentando-lhe um terceiro elemento: ruah, o sopro divino que pairava sobre
as águas o ar. Nerval, com a totalidade de sua obra, aproveita-se da oscilação de
identidade de deus-demônio-gênio e, assumindo seu papel prometeico acaba
dando, por sua vez, alma a Les filles du feu. Através da consagração do Eterno-
Feminino que poderia atualizar o ato de ressurreição do mito cristão em princípio
amplo de restauração e volta à Idade de Ouro, Nerval aprimora sua idéia de gênio,
realizando de modo definitivo algo que já se insinuava em sua obra. Citada de
maneira providencial por Jean Richer, podemos lembrar de uma carta de Nerval a
Jules Janin na qual comenta aspectos de seu Fausto pessoal, L’imagier de Harlem,
no qual liga o diabo à descoberta e invenção dos meios de impressão. Em uma
passagem, falando das personagens femininas da obra, Nerval faz a seguinte
observação:
L’inventeur a auprès de lui deux femmes: la femme bourgeoise qui ne le
comprend pas et le fait souffrir, mais qui le sauve par le sentiment
religieux; et la femme idéale, son rêve, le rêve éternel du génie dominé par
l’amour propre et que l’auteur de Faust avait symbolisé par Hélene, ici
c’est Alilah, c’est-à-dire Lilith la femme éternellement condamnée de la
tradition arabe, et dont le mon se sert pour séduire tous les grands
hommes et leur faire manquer leur but. (apud RICHER, 1970, p. 138)
Buscando ampliar o mito fáustico (cuja versão de Goethe Nerval traduziu
brilhantemente em sua primeira parte), o poeta cria uma visão do feminino que serve
de força motriz e destrutiva do gênio. Isso, por sinal, liga-se de modo especialmente
forte com o princípio genial em Nerval, e é Max Milner que ressalta: Son drame
n’est donc pas celui de l’homme de nie livré au mal, mais celui de la tentation de
l’home de génie par la sensualité, le désespoir, et la réussite terrestre (MILNER,
1971, p. 283). A mulher, aqui, não é, claro, mero substituto do mal, disforizada ao
extremo. É um princípio feminino que ecoa textos apócrifos que, antes do Concílio
231
de Nicéia, ainda faziam parte do cânone, como o primeiro Livro de Enoch, no qual
os anjos caídos, antes de terem sua queda creditada ao orgulho por Agostinho,
caíam por luxúria, presas da sedução das belas filhas dos homens.
São celebrações dos aspectos primitivos do ser humano, em toda a potência
de sua ambigüidade que coloca em xeque o princípio ético não para negá-lo, mas
para repensá-lo e reinterpretá-lo. São, também, celebrações do lado direito do
cérebro, contra a razão e a lógica, e mecanismos de defesa em última instância para
influência cartesiana que, não obstante, também é retrabalhada por Nerval. Mas se
nos lembramos do primeiro verso do quinto poema de Le Christ aux oliviers”, no
qual lemos C'était bien lui, ce fou, cet insensé sublime...”, encontramos a passagem
para uma visão do gênio em Nerval que ultrapassa o autor e toca o homem
empírico: a loucura. Embora os distúrbios mentais sérios tenham levado Nerval
ao suicídio, trata-se um caso específico de loucura: o delírio sagrado. Assimilando
ao Cristo e, por conseguinte, ao demoníaco e ao genial, Nerval const Td(n)Tj6.13174 0 TdTd(l)Tj2.4046 0 Td( )Tj3.24622 0 Td(c)Tj5.7710(c)Tj5.77105 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td(n)TV al on onsé o atimrts a o
232
da Manhã.
Le début de Satan
Hugo poderia ser facilmente classificado como o poeta do gênio. Um dos
motivos é o fato de Hugo ser um dos mais ciclópicos autores da Literatura, com uma
produção oceânica que toca os mais diversos neros literários. E, se pensamos
individualmente em algumas de suas obras, como Les misérables, Notre-Dame de
Paris ou La légende des siècles, vemos como o folêgo das obras é um indício de
quão ambicioso era o projeto literário hugoano. Mas outro motivo deve ser lembrado
para justificar a alcunha de Hugo como poeta do gênio, e esse é particularmente
interessante para a discussão aqui estabelecida: Hugo trabalhou de modo
privilegiado o gênio em suas obras. Assim, abre-se um enorme leque de opções de
abordagem da temática em sua produção; todavia, devido ao já citado caráter
oceânico da mesma, devemos ser cuidadosos para evitar o afogamento diante das
possibilidades. Novamente em função do recorte proposto, seria interessante lançar
um olhar sobre os momentos em que o gênio em Hugo mais nos permite avaliar as
implicações de seu demonismo essencial. A primeira obra que nos vem à mente é
justamente o inacabado poema La fin de Satan, por razões óbvias, seguida da
longa reflexão a respeito do nio representada por Willam Shakespeare, na qual o
bardo inglês assume o manto de avatar da genialidade poética. Dessa maneira,
guiemo-nos sobretudo a partir dessas obras.
Publicado postumamente em 1886, La fin de Satan, por sua natureza
inacabada, coloca-nos diversos problemas. Com relação ao próprio papel de Satan
no poema, teríamos a narração de sua queda, sua ira, rebeldia e sentimento de
vingança e, por outro lado, seu aparente arrependimento e, por fim, sua redenção.
Satan assumiria, desse modo, o papel do gênio romântico que impulsiona a
humanidade adiante, a despeito de sua situação (momentânea, nesse sentido) de
caído essencialmente mau. A este respeito, é ilustrativa a posição de Gérard
Dessons e Henri Meschonnic que, analisando o poema hugoano a partir de sua
forma como invenção – o verdadeiro princípio da poeticidade – vêem em seu caráter
inconcluso um indício de uma poética do inacabado com reflexos no jogo de
233
sentidos do texto. Segundo os autores: Ce poème est une contre-création du
monde, le commencement est si loin qu’il n’y a plus de commencement, de début
radical, la chute du damné (vers 29) est à la fois l’épopée du Mal et le
commencement invisible de sa rédemption, à contre-orthodoxie (DESSONS,
MESCHONNIC, 2003, p. 194). Tendo isso em vista, que tipo que gênio é construído
aqui?
Essa tendência ao contra-movimento leva-nos a pensar com cuidado a
respeito de qualquer idéia expressa pelo poema, incluindo, assim, o gênio. Em La
fin de Satan, a palavra niesurge apenas duas vezes, mas de modo precioso.
Na primeira ocorrência, temos Satan na seção Hors de la Terre III”, no qual o anjo
caído já mostras de perder sua força combativa inicial. Todavia, de início, temos
ainda um Satan indomável, capaz de auto-afirmações vigorosamente contrárias ao
universo divino:
J'ai fait mieux que la Haine; ô vide! ô cécité!
J'ai fait l'Envie. En vain ce Dieu bon multiplie
Ces colosses dont l'âme est de rayons remplie,
Le génie et l'amour et l'héroïsme; moi
Par la négation je fais ronger la foi;
Je suis Zoïle; autour des Socrates j'excite
Anitus, et je mets sur Achille Thersite,
Et tout pleure, et j'égale, à force de venins,
A l'éclat des géants le g(s)Tj5.65082 0 Td(t)Tj3.24619 0 Td Td(n)Tj5.2901 0 T6528 0 Td(l)Tj2.0439 0 Td(e)T2.0439 0 Td(e)Tj5.16987 0 Td( )Td(i)Tj2.64506 0 Td(a)Tj6.13174 0 Td(7 0 Td )Tj2.52482 0 Td(t)Tj2.6.25197 0 Td(l)Tj2.52483 0 Td6987 0ï2.52483 0 Td6987 0ï0 Td(l)Tj2.52483 0 Td6987 0ï2.5248339 0 Td(e)T2.0439 0 Td(e)Tj5.16987 77105 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td( )Tj3.12599 0 TdTj6138.9-191.285 -16.0 Td(()Tj3.12597 0 Td(H)Tj6.73286 U Td(H)Tj6.85309 GT2.04
234
levará até a cicuta) e “Thersite” (exemplo de traidor invejoso na Ilíada), gritam a todo
instante a palavra mediocridade, ou seja, nada próximo ao titanismo orgulhoso de
Satan. É justamente o contrário dos exemplos de excelência com Homero, Sócrates
e Aquiles, representantes do gênio que, por contra-corrente, identifica-se com Satan
mesmo na queda. Dessa maneira, de modo hábil, Hugo aproxima-se seu Satan da
genialidade.
Mais evidente é a segunda ocorrência da palavra:
L'antique patient de l'éternel supplice,
Pour souffrir à jamais à jamais rajeuni,
Lui, l'immense oeil de tigre ouvert sur l'infini,
Satan, le mal, l'horreur condensée en génie,
L'anxiété, le guet, la douleur, l'insomnie,
Dormait.
(HUGO, 2002, p. 229)
Situado na seção L’ange Liberté”, Satan, aqui, encontra-se próximo da
redenção que lhe restituirá a condição de Lúcifer, em um contra-movimento da
própria queda primordial. Mas, apesar das boas perspectivas que se oferecem, no
momento em que Satan é diretamente ligado ao gênio, sendo ele, ainda em sua
condição de caído, horreur condensée en génie”, temos o agonismo voltando com
total força. Satan é apresentado também como l'anxiété”, le guet, la douleur e
l'insomnie”; seu poderoso vitalismo demoníaco e ressaltado pelo fato de que, a
despeito da dor e da angústia, ele dormia, mas a ambigüidade entre o positivo e o
negativo, entre o divino e o demoníaco, em suma, o agón primordial que define o
gênio, está presente.
E, se temos oscilação transubjetiva aqui, isso significa que, especificamente
no caso de Satã, ele tende ao divino, com implicações sérias para o artista genial
que é seu avatar na Terra. O próprio papel do anjo Liberté é um forte indício nesse
sentido. Max Milner, citando o feliz paralelo que Auguste Viatte estabelece entre La
fin de Satan e Le Testament de la Liberté, do abbé Constant oferece um
interessante ponto de reflexão. O abbé Constant, muito mais conhecido pelo nome
que representou um dos expoentes do ocultismo no século XIX, Eliphas Lévi, traça
uma interessa relação de parentesco entre Lúcifer e o anjo Liberté, com direito a um
235
outro e importante membro da família: “Quand la lumière se fut affranchie, ele donna
naissance à deux files, la Poésie et la Liberté. La Liberté, fille de l’Intelligence, sortit
du front de Lucifer ; et la Poésie, fille de la Contemplation, sortit de son cœur avec
ses premiers sanglots (apud MILNER, 1971, p. 410). Trata-se de uma liberdade
difícil, nascida como uma belicosa Atena da fronte de Zeus, e igualmente difícil é
poesia, fruto do choro e ranger de dentes. A ascendência da contemplação apenas
torna mais heróica a resistência diante da condição adversa. Ainda pensando no
paralelo com o texto de Lévi, a menção ao gênio, aqui, embora beba em sua origem
etimológica latina é sintomática: L’esprit d’amour empruntera leurs traits pour
soumettre et sauver l’ange rebelle, et il viendra aimer et féconder les deux nobles
sœurs, sous les traits glorieux du génie régénéré (apud MILNER, 1971, p, 410).
Melhor dizendo, o eco etimológico, na passagem, é especialmente importante nos
jogos transubjetivos do gênio de Hugo, pois, ao permitir a regeneração do gênio (o
paralelo das “filhas do fogo” luciferinas com as de Nerval é impressionante) pode
nos levar diretamente à regeneração do demônio, apontando justamente para o
divino.
A dificuldade da empreitada é mais do que óbvia, mas contribui para um
prodigioso titanismo genial não apenas em La fin de Satan, mas do Hugo enquanto
artista. Paul Zumthor, em livro intitulado Victor Hugo, poète de Satan, chega a
canonizar Hugo como gênio mártir, cuja grandeza se constrói a partir justamente do
desvelamento de Satan: Le génie, au sens que lui donne Hugo, et qui ne convient
bien qu’à lui seul, est une vocation de terreur. On ne la réalise pas sans héroïsme :
‘On souffre dans la lumière… Brûler sans cesser de voler, c’est le prodige du
génie’. Hugo se sacrifie” (ZUMTHOR, 1973, p. 128). Com um outro movimento
sublime, Hugo, ao cantar e tornar eticamente do gênio as misérias de Satan, permite
uma brecha na qual o ser humano como um todo, também tima das mesmas
misérias, possa identificar-se com a Estrela da Manhã que despenca dos céus, em
seguida com o gênio e, por fim, com a própria divindade. A esse respeito, Zumthor
lembra com acerto:
Le génie de Hugo est de saisir l’apparence de ce qui échappe à toute
description, de ce que la structure du langage défendrait de nommer dans
un autre style que le sien, - et d’y déchiffrer un monstrueux tétragramme
qui est Deus parce qu’il est Homo. C’est le nie des mages. (ZUMTHOR,
236
1973, p. 118)
Uma iniciação rumo ao divino nos moldes de Rimbaud, pela invenção de uma
língua própria, como a poética hugoana do inacabado. Ao fazê-lo, propõe uma
pedagogia da leitura que leva seus interlocutores a participarem de sua iniciação. E,
o que mais impressiona, utilizando as misérias como ponto de partida para a
redenção, positivando o disfórico, divinizando o demoníaco. Hugo roça as raias do
incomunicável, em um canto tão inefável quanto o nome secreto de Deus. E, ainda
espantosamente, não precisa adotar uma postura reducionista para fazê-lo. Como
afirma Claude Rétat em X, ou le divin dans la poésie de Victor Hugo à partir de
l’exil:
Le divin selon Hugo se perçoit certainement dans une conception de Dieu,
que dans un abandon de la conception pour une recherche de la prise de
force : dans un rétablissement effectué sur l’impalpable, dans
l’émerveillement même de faire servir ce qui échappe, et donc de le
maîtriser, sans pourtant le réduire. (RÉTAT, 1999, p. 119)
Tornar-se, diabolicamente, uno com a divindade. Sob tal égide, teríamos o
mais radical exercício de transubjetivação, capaz de, sem negar o sujeito, levá-lo
além de seus limites que ele julgava pré-estabelecidos. Um exercício do “Eu”, a
partir do qual buscamos apreendê-lo
Mas como apreender o “Eu”? Ou, apresentando a questão de outra maneira:
como estabelecer os limites do ethos sem limitá-lo ou deformá-lo de modo a perder
o sentido do característico distintivo que deveria ser instaurado por si, mesmo em
uma dinâmica cultural e social? As questões sobre a natureza subjetiva,
normalmente, caem na armadilha do deslocamento de visão, de modo que o ético
normalmente é definido a partir do político, com o indivíduo sendo medido pelo valor
consensual da pólis. Contudo, a dinâmica política articula-se não na igualdade
absoluta, mas, antes, nos comprometimentos e jogos de poder da casta privilegiada,
de modo que o político normalmente significa o aristocrático. Por ironia, percebemos
que a memória lingüística que acompanha a estrutura social aponta justamente para
o princípio de distinção no que se refere ao “Eu”. Os aristoi, mesmo quando
mascarados em pseudo-estruturas democratizantes, trazem consigo a exigência da
excelência, o que apontaria para um ideal igualmente excelente em teoria, claro.
237
Falta sempre, uma vez que se trata de um transbordamento político, precisar a partir
de quais parâmetros tal excelência sedeterminada. Habitualmente, o resultado é
excludente e apoiado em um princípio sectário. O mais incrível é que tal tendência
possa reclamar para si a aura de tolerante, gregária e democrática. Em meio a tal
mistificação tendenciosa, o “Eu” não pode senão naufragar.
Uma outra maneira de pensar o “Eu”, sobretudo a partir da questão
controversa do valor, passa por um exercício de escuta. E, de início, essa escuta
afasta-se do coletivo e mergulha no “Eu” de modo vertiginoso. Despido dos
penduricalhos das convenções, o indivíduo pode se pensar de modo ao mesmo
tempo severo e sem preconceitos. Pode, assim, construir a noção de si mesmo e a
noção de valor de modo solidário, engajando seu Ser em frentes de combate que
nascem justamente no sujeito consciente de sua existência. Contudo, tal
posicionamento não exclui de maneira alguma o “Outro”. Apesar de iniciar-se no
“Eu” para uma afirmação do indivíduo, quase imediatamente passa-se à esfera da
alteridade radical, uma vez que a própria instauração do indivíduo como realidade
consistente inicia o processo de instauração do “Outro”, por relações não de
continuidade, mas de contigüidade. Desse modo, o valor que se estabelece é fruto
não dos comprometimentos das relações inter-humanas fundadas na falsa igualdade
demagógica e estranguladora sempre mais fácil negar a diferença do que
repensar o valor na diferença), mas, antes, do equilíbrio do juízo que enfoca a
dinâmica da epifania ética do indivíduo em contato com o seu semelhante. E uma
maneira de ilustrar tal fenômeno consiste exatamente em utilizar a idéia de gênio,
uma vez que ela articula (mesmo quando transmudada em noção ou, mais ainda,
conceito) valor e indivíduo.
Eis porque é paradigmático o caso de Victor Hugo que sempre articulou em
sua obra a questão do gênio que, em seu íntimo, reconhecia em si. A anedota
segundo a qual certa vez, nu, diante do filho, teria dito: “veja, isso é um gênio”,
ilustra o quanto a idéia de genialidade ligou-se ao autor Victor Hugo a ponto de
contaminar o homem empírico. Tal tendência aponta, por um lado, para o titanismo
do “Eu” que transborda a ponto de confrontar-se com os poderes da Natureza
avatar do divino sob o signo demonizante, tal como se pode notar no Anjo Caído
promotor do progresso em La fin de Satan. Mas, por outro, leva a um exercício de
escuta do “Eu” que exige, em sua universalidade, a escuta do “Outro”. Mais uma
anedota, esta da frase escrita em um caderno aos quinze anos (“serei
238
Chateaubriand ou nada!”), mostra-nos um aspecto pouco mencionado da visão
hugoana do “Eu” enquanto gênio e, portanto, enquanto valor. O gênio, em Hugo,
articula o sujeito e sua alteridade. Não por meio da convenção político-social (o
dínamo contra o status quo que foi o escritor jamais o permitiria), mas por uma
identificação entre “Eu” e “Outro” que se dá apesar da diferença; mais, que se dá em
função da diferença fundamental.
Todavia, essa diferença, na esfera do valor, não impede que se reconheça no
“Outro” a possibilidade do seu devir. Ao contrário, ela pressupõe a dinâmica em
crescimento orgânico do indivíduo de modo a ver no próximo uma possibilidade
concreta do meu ontem e do meu hoje. Assim, como negar a comunicação entre o
“Eu” e o “Outro” no hoje para a discussão do valor? O gênio, assim, embora
transgressor em função da ordem estabelecida anuladora da diferença, cria outra
ordem, fundamentada na consciência de si e da alteridade. Não se trata de pensar a
tradição em termos de um fiel da balança fossilizado, mas como uma dinâmica
discursiva capaz de, por sua vez, dinamizar a própria genialidade. Ao escrever sua
grande obra sobre o gênio, Hugo exercitou sua escuta e transformou-a em um
estudo sobre William Shakespeare. Shakespeare representa para Hugo a perfeita
expressão do poeta como profeta e sacerdote, ou utilizando justamente a expressão
de Hugo: le poète est prêtre. Il ya ici-bas un pontife, c’est le génie(HUGO, 2003, p.
75)
55
. Assim, o titã francês utilizava o Bardo para plasmar uma visão particular de
uma comunidade genial capaz de transcender a historicidade pelo discurso da arte
(“Le grand Art, à employer ce mot dans son sens absolu, c’est la région des Égaux
[HUGO, 2003, p. 75]). No segundo livro da primeira parte de sua obra sobre
Shakespeare, em um capítulo intitulado justamente Les génies”, Hugo expõe sua
visão sobre o tema nos seguintes termos:
Homère, Job, Eschyle, Isaïe, Ézéchiel, Lucrèce, Juvénal, Tacite, saint
Jean, saint Paul, Dante, Rabelais, Cervantès, Shakespeare.
Ceci est l’avenue des immobiles géants de l’esprit humain.
Les génies sont une dynastie. Il n’y en a même pas d’autre. Ils portent
toutes les couronnes, y compris celle d’épines. (HUGO, 2003, p. 111)
55
Ou ainda, no poema Les mages de Les contemplations, em que referência direta a
Shakespeare: “Génie! Ô tiare de l’ombre!/ Pontificat de l’infini!” (HUGO, 1990, p. 464).
239
Chamam atenção pelo menos três elementos principais. O primeiro é a visão
à primeira vista aristocratizante do gênio como membro de uma dinastia. Seu caráter
nobre, simbolizado na coroa, eleva-se ao estatuto divino por meio da aproximação
com o Cristo. O segundo elemento também corroboraria uma visão menos dinâmica
e discursiva do gênio, ao falar de immobiles géants”. Todavia, tais considerações
apontam menos para uma reafirmação do estabelecido do que para a transgressão
indomável. A aproximação com o Cristo se não em termos pios, mas por uma
quase blasfêmia de extensão da divindade. Em “immobiles géants”, o titanismo
pantagruélico (a menção a Rabelais o é gratuita, sobretudo da parte de um
escritor francês) conjuga-se não com um caráter séssil, mas, ao contrário, com uma
natureza irredutível capaz de fazer frente ao infinito. Isso nos leva ao terceiro e mais
importante elemento da passagem: a percepção da construção do gênio através de
um diálogo trans-histórico. Em que pese a dificuldade de datação e mesmo a falta
de certeza quanto à existência de al b
240
Se na primeira passagem citada tínhamos saint Jeane saint Paul”, nessa
temos, respectivamente, Jean de Patmose Paul de Damas”. A figura do primeiro,
do discípulo que Jesus amava, passa, miticamente, do poeta do Evangelho” para o
profeta do “Apocalipse”, unindo, aqui, duas facetas do artista que já serviam de
avatar do valor muito antes do termo “gênio” surgir com essa conotação. Já no caso
de Paulo, a mudança é ainda mais impressionante, pois traz a menção à sua própria
transformação no caminho para Damasco. Tal transformação aponta para a
capacidade de evolução do próprio gênio e mostra como o d(ç)Tj5.77105 0 Td.29589 0 Td(D)Tj8.17566 0 Td(a)Tj6.25197  Td(o)Tj6.13174 0 9 0 0 1 518.8691 0 Td(A)Tj7.5745 0d(o)Tj6.13174 0 9 0 0 1 Td(a)Tj6.13174 0 Tdmenae
241
mediada por um outro sentido. É um ato de escuta, de autorização do discurso do
“Outro”, validado como sujeito. Como se no novo Paulo de Damasco, Estevão
tivesse voz constante, a salvo da anulação simplificadora do Saulo emudecedor, a
salvo das pedras da intolerância e da hipocrisia.
Hugo realiza um verdadeiro exercício de transubjetividade e determina sua
existência como sujeito e gênio, ou seja seu próprio valor, no “Outro”. É sintomático
que, em uma Europa am
242
CONSIDERAÇÕES FINAIS
243
O GÊNIO : UM BALANÇO DIABÓLICO
Gênio e Ética
A visão específica do gênio depreendida das Vorlesungen über die Ästhetik
de Hegel é, em linhas gerais, uma reiteração da visão geral: o gênio seria “aquele
que tem o poder geral da criação artística bem como a energia necessária para
exercer tal poder com o máximo de eficácia” (HEGEL, 1999, p. 276). Junte-se a isso
sua natureza inata e facilidade decorrente do engenho para determinadas produções
e temos um gênio que, devido ao poder que tem dentro de si, pode, quer e ousa ser
genial. Enfim, mais uma reiteração do vitalismo e do titanismo demoníacos.
Contudo, chama atenção o fato de Hegel exprimir diretamente uma visão do gênio
que, desde o início, gerou polêmicas: a idéia de gênio nacional:
[…] diferentes artes dependem do gênio nacional e das naturais
disposições de um povo. Os italianos, por exemplo, possuem o dom natural
do canto e da melodia, mas nos povos nórdicos a sica e a ópera,
embora hajam sido cultivadas com êxito, não constituem um produto do
gênio nacional tal como as suas terras não se prestam para o cultivo das
laranjeiras. […] Pode-se, assim, falar de um nexo entre a arte e, por um
lado, o seu modo de produção, por outro lado, o gênio nacional de um
povo. (HEGEL, 1999, p. 276-7)
Que a idéia de gênio nacional serviu para reforçar animosidades entre países
e justificar intolerâncias étnicas, isso é inegável. Todavia, aponta para um elemento
fundamental que nem sempre é visto como deveria. A própria idéia de “gênio
nacional” aponta para a Ética. Hegel discorre a respeito do ethos da arte e, assim, o
ethos de uma arte em determinado país deveria corresponder ao ethos da própria
nação, justificando, assim, expressões como “literatura francesa”, “música italiana”
ou “filosofia alemã”. O rigor da tipologia das artes hegeliano talvez simplifique
demasiado a questão, e, além disso, não mergulha no ponto mais interessante da
mesma: pode a Arte desvelar o ethos?
244
Se sim, podemos também nos perguntar se esse ethos deve ou merece ser
desvelado. Através da História, a identidade foi utilizada como brecha para
momentos de pura barbárie, o que nos leva a duas perguntas: deveríamos permitir
que esse ethos (distorcido ou o) nos levasse à barbárie? E, mais, muito mais
grave: seria essa barbárie ética? Que o é moral, de acordo com a maioria das
perspectivas políticas, poucos ousariam questionar. Mas as regras da pólis
raramente condizem com as do indivíduo. E assim voltamos ao problema da Arte
como motor de tal processo. Afinal, em Arte, nio é valor; na Literatura, por
exemplo, praticamente corresponde à literaridade. Sendo a manifestação da areté
de um povo, o gênio nacional mostraria a excelência justamente daquilo que faz de
um povo aquilo que é, isto é, seu ethos. A Arte, através do gênio, fundaria, assim, a
identidade e, se pode promover sectarismo e intolerância, também possui o
importante papel de nos ensinar a respeito de nós mesmos, o que é imprescindível
para a construção do ser humano como sujeito. Joyce, em The portrait of the artist
as a young man, tece por meio de Stephen Dedalus um modelo ético do artista, e
mais: do artista genial e luciferino. Contudo, após sua Bildung, Stephen parte de sua
terra Natal, a Irlanda, com um projeto: forge in the smithy of my soul the uncreated
conscience of my race(JOYCE, 1980, p. 228). O gênio nacional pode ser também
um projeto libertador, no intuito de responder ao desafio do oráculo de Delfos
levando-nos a conhecermos a nós mesmos.
Mas seria possível ainda falar em identidade e gênio nesses termos no início
do século XXI? Afinal, até mesmo em função da demonização negativa pela qual
passou a idéia de nação, bem como o sintomático envilecimento da idéia de gênio,
parece por vezes um anacronismo insistir nesse ponto. Mas o nio não pode ser
confrontado na lição das formigas de força nos números: o gênio é força e apenas o
discurso genial destrói o discurso genial, o que corresponde a perpetuá-lo. com
relação à idéia de nação, uma Weltliteratur nos moldes goethianos nos mostra como
a pátria do gênio não se deixa fixar por fronteiras políticas. Essas são as questões
que realmente importam: o que é ethos? O que é Raça? O que é identidade?
Jacques Attali, que buscou em Pascal uma possibilidade de gênio nacional da
França, exprime sua angústia diante da questão e sua proposta de solução:
Aujourd’hui, le génie d’une nation est de plus en plus difficile à cerner et à
définir : la mondialisation, le métissage, les progrès dans les technologies
245
de la communication, la demande d’autonomie des collectivités et des
individus, le nomadisme réel et virtuel dissolvent les identités nationales et
les réinventent sans cesse. Le génie ne réside plus dans un mode de vie, ni
dans un système politique, encore moins dans une “race”, mais dans l’art
d’organiser une collectivité solidaire parlant une même langue, partageant
des valeurs, un passé, et peut-être un avenir. (ATTALI, 2000, p. 12)
A idéia é tocante e talvez Attali não perceba a ironia de ser ele, um francês
(inserido em um contexto no qual a figura de um deus tutelar, ausente, explode em
uma miríade de titãs de um modo que não é visto em nenhuma outra literatura), a
esclarecer a verdadeira pátria do gênio, ao menos o literário: a pátria é a língua. E,
nesse caso, sendo ela compartilhada por nios de todas as artes, confere ao gênio
da língua aquela potencialidade semântica que o nio nacional de Hegel, no fundo,
apresentava. É o gênio voltando ao genius, tendo passado pelo daímon e pelo
ingenium. Por isso optou-se, nesse trabalho, por abordar cada literatura em
separado, quando teria sido igualmente ou mais enriquecedor contrastá-las a cada
instante. Contudo, se fosse assim feito, perderíamos o diálogo de Milton e Blake em
suas sutilezas terminológicas; perderíamos a tragédia fáustica que levou Thomas
Mann, após se apropriar da ngua de Goethe, a escrever o mais germânico dos
romances; perderíamos, enfim, Descartes fundando sua pátria verbal ao decidir
escrever o Discours de la méthode em francês, e não em latim e não teríamos o
gênio francês cujo nome, na verdade, é Legião.
Mas agora, ao colocá-los juntos após a separação, verificamos como, em
todos os casos, desceu-se ao Inferno em busca do gênio para, no fim, cada
aventureiro encontrar-se a si mesmo. Cada um deles encontrou o Eu, porque cada
um deles encontrou o Outro. O gênio demoníaco assume-se como tal encarnando o
Outro, o Esquerdo, aquele que é diferente. Suas roupagens sob a forma de maldito,
criminoso e louco apenas intensificam o processo e nos colocam diante de um
considerável poético, estético, sociológico, antropológico e, sempre e sobretudo,
ético. Se o gênio é aparentado do louco, porque celebra-se o primeiro e encarcera-
se o segundo? Pensando a literatura em termos transubjetivos, Gérard Dessons
propõe uma visão da alteridade na arte que se encaminha nesse sentido:
En art le jugement de folie a une fonction: s’opposer à la dilution du
sujet transcendantal, modèle de l’individuation. Confronté au passage des
246
sujets que constitue toute œuvre d’art, il interprète ce mouvement d’altérité
comme une aliénation, c’est-à-dire comme une altération d’identité. Jouant
littéralement le rôle de garde-fou, le discours alors confond l’activité critique
avec l’expérience narcissique. L’œuvre mente, c’est d’abord l’œuvre que
je ne peux pas accepter comme ayant quelque chose à me dire. Si elle ne
me dit rien merci, ce pas pour moi –, c’est aussi qu’elle a beaucoup a me
dire d’un moi dont elle témoigne que je l’excède infiniment, puisque la
relation artistique m’identifie par-dessus le paradigme de mes valeurs, de
ces valeurs que je reconnais comme m’y reconnaissant. C’est toute la
problématique de la transsubjectivité qui se trouve alors en jeu. Il en va de
la validité de la conscience comme modèle de la subjectivité, et de celle de
l’individualisme comme conception de l’individuation. (DESSONS, 2004, p.
189-90)
Perceber no Outro uma outra possibilidade do Eu, nosso porvir, o momento
em que nossos limites explodem e vamos além do que nós somos. No caso dos
doentes mentais, que, ao atuarem como interpretantes do gênio, abrem espaço para
que a genialidade seja também um interpretante da loucura, temos um exercício da
tolerância que não se funda no subterfúgio simplista e facilitador da negação das
diferenças. Ao contrário. Devemos fazer do Outro sujeito, com suas idiossincrasias,
com sua diferença radical que tão difíceis são de suportar. Mas encontramos a
verdadeira lição do gênio, em todo seu caráter demoníaco. Assim como os
precursores, divindades tutelares, estabelecem os parâmetros da excelência e, por
negação, do desvio, aqueles que os sucedem, demônios igualmente tutelares,
assumem o desvio e, em sua busca de espaço, por vezes o desvio do desvio. Mas,
no fim, o pai poético estava lá, esperando, ainda que o filho o negue. O mesmo filho
que o pai esperava, amoroso e ansioso, mesmo que minta para si mesmo fingindo
que não era assim. Isso porque ambos estão presos em uma situação de mútua
dependência, presos eticamente na solidariedade. o nos tornamos sujeitos a não
ser quando fazemos do Outro sujeito, eis um novo ditado que passou por vários
textos e rias bocas, devendo permanecer desse jeito, infinitamente enunciado por
infinitos enunciadores. Individuação sem individualismo. O Inferno um pouquinho
mais perto do Céu.
247
A guisa de conclusão: quando ELE cobra o contrato
Depois de atravessarmos o rio de vozes que nos acompanharam nessa visita
ao gênio demoníaco, podemos nos perguntar se houve algum risco. Afinal,
estivemos tratando com o Diabo e suas artimanhas, bem como com Deus e seus
desígnios igualmente perigosos. Eis aqui um dos riscos evidentes, o de se deixar
levar discursivamente, demoniacamente, entrar no fluxo lingüístico da Arte e nele
naufragar. Citando uma última vez Harold Bloom, que, sabendo que a crítica forte
corresponde à poesia forte, sempre buscou a voz poética na voz crítica, ao se deixar
levar pela empolgação em um comentário sobre Wordsworth, modera o tom ao
brincar com toda seriedade: “Deixem-me reduzir minhas próprias hipérboles, que
parecem pouco aceitáveis para minha profissão de estudioso da tradição poética”
(BLOOM, 1994, p. 67). Quase não precisamos lembrar de que hipérbole, juntamente
com a litotes, é justamente um dos tropos retóricos da demonização para
entendermos o risco que corremos. O risco fundado no fato de que a Crítica e a
Teoria são os efebos da Poesia, a doce e severa precursora.
Quando um crítico ou um teórico constrói um discurso a partir da Poesia, ele
busca assimilar um pouco de sua força geradora, até mesmo como um recurso para
tentar apreendê-la. É um movimento ao mesmo tempo de sedução e infiltração,
equivale a pedir para se apresentar, sem, no entanto, realmente pedir. Como um
discurso que se insinuasse, a princípio de modo evidente, destacado, para, depois,
ressurgir sob camadas que, no entanto, mais revelam que escondem. Por isso o
teórico e o crítico nunca apreendem a Poesia e o Gênio que a representa. Apenas
aprendem com eles, e nunca o bastante. Pois a Poesia caminha no sentido inverso,
hermética primeiramente, abre-se ao toque exegético apenas para ocultar-se em
sua nudez.
Daí o risco da sedução diabólica da melodia inventiva na voz crítica; nunca se
está afinado o bastante. Mas, é importante ressaltar, o crítico e o teórico, demônios
que são, participam da relação transubjetiva com a Poesia, no espaço do poema, no
espaço da narrativa, no espaço da peça teatral. E, como em um palco, encontra-se o
prazer de poder ser outro, ser o Outro. O prazer que se pode ter no encontro com o
Outro, no reconhecer-se nesse Outro, equivale, aqui, à esperança de que se
248
adivinhe o próprio nome, entendido, aqui, como ethos textual. O Eu que é no Você; o
Você que sou no Eu.
Tudo isso intriga e confunde, mas o que nos intriga e confunde é
precisamente a natureza do jogo, do meu jogo, do seu jogo, do nosso. Um jogo no
qual as regras dependem de muitos fatores, dos percursores, dos sucessores, dos
filhos e dos pais. Um jogo que se realiza na discursividade através da História e dos
sujeitos que a compõem. Algo como o jogo do “Livro de Tobias”, cujo original
semítico se perdeu, levando Jerônimo a utilizar um texto aramaico para a Vulgata,
que também se perdeu. Um texto cujas outras versões diferem consideravelmente
entre si e com relação ao texto em latim. Um livro sobre um exilado, como o próprio
livro, deuterocanônico, encontra-se exilado tanto da blia hebraica quanto da
protestante, e mesmo em sua pátria, a religião católica, foi aceito com hesitação e
reserva. A história de Tobit, pai de Tobias, cego no exílio, como Milton na
Restauração. De Sara, filha de Raguel, que, à semelhança de Fausto, tem uma
relação com um demônio, Asmodeu, que infelizmente, custa-lhe sete maridos
mortos nas noites de núpcias. E do próprio Tobias que, da mesma maneira que os
infinitos titãs da literatura francesa, faz do problema solução, casando-se com Sara e
curando a cegueira do pai. Mas, apesar do final feliz e edificante, fica sempre o
risco, o leve odor de enxofre que leva os filhos a pagarem pelos pecados dos pais e,
talvez, até mesmo os pais a pagarem pelos pecados dos filhos. Como na voz de um
pai, exposta no livro do filho: a prece lamentosa de Tobit, que resume nossa
aspiração e nosso medo diante de tudo que foi dito:
Tu és justo, Senhor,
e justas são todas as tuas obras.
Todos os teus caminhos são graça e verdade,
e tu és o Juiz do universo.
E agora, Senhor,
lembra-te de mim, olha para mim.
Não me castigues por meus pecados,
nem por minhas inadvertências,
nem pelas de meus pais.
Pois pecamos em tua presença
e desobedecemos a teus mandamentos;
e nos entregaste ao saque,
ao cativeiro e à morte,
249
ao escárnio, à zombaria e ao vitupério
de todos os povos entre os quais nos dispersaste.
E agora, todas as tuas sentenças são verdadeiras,
quando me tratas segundo minhas faltas
e as de meus pais.
(BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p. 666)
250
CODA:
Um ensaio pessoal
251
A MENSAGEM DAS GRANDES NAVEGAÇÕES E A
PESSOA GENIAL
Cantando espalharey por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e a arte. (CAMÕES, s/d, p. 84)
A celebridade dos dois versos que encerram a segunda oitava do primeiro
canto d’Os lusíadas torna desnecessárias maiores apresentações. É a celebração
mítica do povo português naquela que seria sua maior realização: a conquista
simbólica do mar na época das grandes navegações. Todavia, esses dois versos
encerram muito mais, e um percurso detalhado por seus elementos constituintes
revela outras facetas do papel de Camões para a literatura portuguesa.
A primeira palavra citada inscreve Os lusíadas em sua natureza
eminentemente literária: “cantando”. O poema é canto, e, ao se colocar como tal,
aponta para uma tradição que vai além do cânone de autores que usaram a palavra
para se expressar artisticamente. Quando opta pela forma “cantando”, Camões
apresenta a si em uma instância que transcende as palavras inscritas no papel e
toca o nível performático. Ao fazê-lo, recupera o poema e a poesia como celebração,
ligando-se, em termos de tradição, a uma ascendência órfica. Tal procedimento se
mostra necessário sobretudo pela articulação do sublime em termos longinianos que
se opera pela proposta: em toda parte, em todo tempo. E esse caráter atemporal é
traduzido no texto pelo gerúndio, estendendo o canto em um presente que se dilui
sem perder a consistência e que anuncia a palavra seguinte.
Espalhar é um verbo ardiloso que, na memória lingüística, nem sempre pode
ser utilizado sem um tom disfórico. Quando Camões opta por “espalharey” e o por
“divulgarei”, “proclamarei”, ou algo do gênero, arrisca-se a evocar o princípio de
diáspora e o caráter raleado que não seriam condizentes com o ideal de
perpetuação proposto na passagem. Aqui, uma leitura atenta mostra como o grande
épico português ultrapassa as procelas das sutilezas da língua e reforça seu
processo de mitologização da raça. Espalhar se torna ato mítico de doação,
sparágmos ritual por meio do qual o sacrifício e a dor dos navegantes portugueses
legam à humanidade um infinito um pouco mais amplo pela conquista do mar.
252
Disjecta membra que nunca perdem a unidade, passagem transgressora e auto-
afirmadora do humano ao divino.
A expressão seguinte merece ser considerada em conjunto: “por toda parte”.
Assim como o tempo mítico fora do Tempo estava presente em “cantando”, o
espaço para além do Espaço está presente aqui. Tal prodígio vence quaisquer
limites de paradoxo que possam ser inferidos pelo absoluto buscado e atingido por
um ser limitado espacial e temporalmente, por um ser humano. A noção de
amplitude e de voracidade geográfica é construída por meio da aproximação de
“toda” e “parte”. Opostos lingüísticos que, em comunhão, são mais que mera soma.
São a promessa do “mais”, do “além”, conforme as promessas que, vindas do mar,
chegavam, quase sussurro, às margens do Tejo.
No verso seguinte, temos, a despeito da magnitude da empreitada, a
lembrança das limitações humanas, expressas pela conjunção condicional “se”. É a
marca do Acaso, cujo reflexo é o mar, e ao qual se deve resistir. Contudo, sua
natureza de hipótese ressalta a possibilidade concreta da tragédia e do fracasso,
Adamastores de antes da dobra do cabo. Não poderia ser diferente, uma vez que as
conquistas cantadas nOs lusíadas, se realizadas por deuses, nada seriam. Mas,
realizadas por homens, e a despeito dos deuses, são milagres que se fazem
canção.
O “a tantoaqui presente reitera o contraponto entre o humano e o divino. O
objetivo inicial se cristaliza na palavra que se separa da preposição e faz brilhar a
dimensão da empreitada, “tanto. É o eco da dimensão infinita do mar no horizonte,
é a consciência de que se deve bebê-lo embora não seja isso possível. A noção do
ciclópico, do titânico que é exigido pelo oceano de Atlas. Conquistar o mar também é
suportar o céu nos ombros, o espelho pesa tanto, tanto quanto.
O vocábulo seguinte apresenta uma voz que vai se sobrepor àquela marítima.
É a voz do Autor, que não é o homem empírico. Embora esse homem empírico em
questão pudesse perfeitamente fazer parte do canto, e não apenas como cantor,
dados seus fatos e seus mitos. Mas não se trata disso, é um eu e uma voz que se
realizam no texto e, nele, apagam-se parcialmente para melhor transparecer. Por
isso um me” que se dissimula, átono, e se insinua, de primeira e singular pessoa. É
a voz do gênio da língua, e da Raça, porque da língua.
Esse gênio é citado, diretamente, na expressão que circunscreve e precisa o
“ajudar”, pois esse gênio se realiza com “o engenho e a arte”. Continuando a
253
latinidade, herança e legado no verbo, o canto que eterniza é ingenium e é ars. Com
este último, é trabalho, duro labor, é o confronto com o Acaso cruel, a tentativa de
fugir da condição humana, ainda que se seja o gênio. É a constatação de quão triste
estado tem quem se fia da ventura. Mas, uma vez que também se com muito
trabalho comprar arrependimento, está ali “o engenho”, aquilo que, de tão
essencialmente alheio ao Homem torna-se eticamente ligado a ele por aqueles que
o celebram. Esse engenho, do homem engenhoso que, para além do Barroco, é
genial, cria um espaço de consagração de todos os instantes a serem criados,
cantados e celebrados. E, quando se entra em tal espaço, ali se tão profundo
mistério na suma Alteza, que, vencida a Natureza, os maiores faustos do mundo
poderiam ser julgados por maior baixeza. E Camões, sutilmente, opta por um dos
elementos. Essa opção é percebida na opção de concordância, perfeitamente
possível, que apresenta “me ajudar o engenho e a arte em lugar de “me ajudarem
engenho e arte. Ainda que se levem em conta as sutilezas da métrica e do ritmo, a
escolha – que sempre é escolha atrai o verbo ao “engenho”, afastando-o da arte”.
É o pacto do gênio com o Gênio, aquele que o ajuda, além das condições do Acaso
e das dificuldades de superar Tempo e Espaço ao se doar em sacrifício e benefício
da Raça os amorosos membrm
254
perfeitamente bilíngüe. Porém, ao ver confirmada sua vocação poética, a despeito
de belos poemas escritos em inglês, Pessoa volta-se para sua única pátria
verdadeira, a língua portuguesa. Entretanto, ao voltar para sua casa poética,
encontrou a incontornável presença de Luís de Camões. Seria necessário um
confronto.
Se aceitamos a condição camoniana de divindade secular, qualquer
movimento antagônico com relação a ele como figura ou discurso seria
automaticamente uma empresa demoníaca. No caso de Pessoa, esse satanismo
ativo estava presente desde a juventude, de modo que um manuscrito datado de
1907, assinado por um programático Alexander Search, dá um bom exemplo do que
buscava Pessoa:
Compromisso assumido entre Alexandre Busca, residente no Inferno, em
Parte Alguma, e Jacó Satanás, senhor, embora não rei, do mesmo lugar.
1. Nunca desistir nem recuar do propósito de fazer bem à humanidade.
2. Nunca escrever coisas sensuais ou de qualquer modo s, que possa
servir de detrimento ou prejudicar aos que lerem.
3. Nunca esquecer, ao atacar a religião em nome da verdade, que a
religião pode dificilmente ser substituída e a pobre criatura humana está
chorando nas trevas.
4. Nunca esquecer o sofrimento e as dores humanas.
† A marca de Satanás. (PESSOA, 1974, p. 33)
Em que pese o lado humanitário e altruísta da proposta, em consonância com
certas doutrinas que permeavam o pensamento esotérico de Pessoa, chama
atenção o declarado satanismo assumido. Assim, o percurso poético decorrente de
tal programa será feito sob o signo de “Jacó Satanás”, que faz menção a uma das
mais problemáticas figuras do Antigo Testamento, o astuto irmão de Esaú que, pelo
engodo, rouba a prerrogativa do primogênito do irmão mais velho e a benção de seu
pai Isaac; o homem cuja esposa engana o próprio pai em favor do marido; o
indomável patriarca que, em uma longa madrugada, luta com e resiste frente ao
próprio YHWH. Fazendo um balanço de tais apontamentos, destaca-se, assim, um
princípio de excelência agônico, que acaba por permear a própria visão pessoana do
gênio. Em um texto provavelmente de 1924, Pessoa escreve:
255
Em Arte tudo é lícito, desde que seja superior. Não é permitido ao homem
vulgar ser antipatriota, porque não tem mentalidade acima da espécie, a
não pode ter pois acima da espécie imediata, que é a nação a que
pertence. Ao gênio é permitido. Sucede, por ironia, que os grandes gênios
são em geral conformes com os sentimentos normais: Shakespeare era
intensamente, até excessivamente, patriota. (PESSOA, 1974, p. 268)
É evidente, aqui, uma visão do gênio que remonta tanto aos primórdios do
estabelecimento do termo nos ditos pré-romantismos inglês e alemão quanto ao
refinamento da idéia na visão kantiana do juízo estético: o gênio cria suas próprias
regras, não podendo, assim, ser julgado a partir de critérios exteriores a si. O
produto de tal postura e visão é insubmissão e rebeldia. Todavia, chama atenção
que, para exemplificar o fenômeno, Pessoa opte por uma conservadora noção de
patriotismo e utilize como modelo do gênio que a ele faz concessão a figura de
William Shakespeare. Sem dúvida, o bardo inglês sempre foi presença constante na
reflexão pessoana, mas, aqui, ele é um meio de fuga a um outro grande poeta, que,
na língua de eleição de Pessoa, forjou patrioticamente sua Raça. A sombra é de
Camões, a forja são Os lusíadas. O gênio modelar, aqui, era a divindade a ser
destronada.
Daí a necessidade pessoana de desautorizar textualmente Camões. Sempre
recorrente como tema do qual não podia fugir, o épico totêmico surge em afirmações
que visam escapar à sua influência. Em um sintomático pós-escrito de uma carta
enviada a João Gaspar Simões em 1931, Pessoa afirma:
Uma grande admiração não implica uma grande influência, ou, até,
qualquer influência. Tenho uma grande admiração por Camões (o épico,
não o lírico), mas não sei de elemento algum camoniano que tenha tido
influência em mim, influenciável como sou. […] É que o que Camões
poderia me ensinar, me fora ensinado por outros. A exaltação e
sublimação do instinto de pátria são fenômenos inensináveis em
substância: ou temos a capacidade de exaltar e sublimar os nossos
sentimentos, ou a o temos. […] E a construção e amplitude do poema
épico, tem-as Milton (que li antes de ler os Lusíadas), em maior grau que
Camões. (PESSOA, 1974, p. 67)
256
Seria ingenuidade da parte de alguém o arguto quanto Pessoa ignorar que
o patriotismo português é em grande medida camoniano por excelência. A viagem
de Vasco da Gama às Índias é o mito fundador da nação lusitana e espelha as
viagens do ancestral topônimo de Lisboa. Tampouco basta a auto-negação da
influência de Camões coroada pela menção a Milton. De Milton, Pessoa tomou o
paradigma fundamental do gênio agônico com o Satan do Paradise Lost. Tal
paradigma combativo surge de modo explícito nos momentos em que Pessoa
aproxima o gênio artístico sobretudo literário do gênio militar. A inventividade ou
a intuição quase mediúnica, filtrada pela inteligência, estaria presente em ambos: “O
homem de gênio é um intuitivo que se serve da inteligência para exprimir as suas
intuições. A obra de gênio seja um poema ou uma batalha é a transmutação em
termos de inteligência de uma operação superintelectual” (PESSOA, 1974, p. 269).
Trata-se de um princípio que aspira a uma ética do fazer artístico que poderia, ao
radicalizar o agonismo, negar até mesmo o adversário. É exatamente o que faz
Pessoa ao discorrer a respeito dos precursores artísticos em geral em um de seus
textos mais ambiciosos que, apesar de sua organicidade teórica, mantém caráter de
escritura bastante fragmentário. O texto em questão é “Heróstrato”, e, aproveitando-
se da desafortunada personagem que lhe nome, discorre a respeito da
permanência e impermanência das obras literárias. Aproximando as idéias nem
sempre concomitantes de celebridade e gênio, Pessoa apresenta um painel que diz
muito a seu respeito. Com relação à já citada negação do precursor, o texto afirma
que:
Quase não ou não mesmo, grande artista no mundo para o qual
possa ser encontrado um definido precursor. Cada artista tem um estilo
típico; contudo em quase todo caso, se não em todos, esse estilo típico
fora esboçado em um artista anterior sem importância. Se houve uma vaga
influência nas correntes subterrâneas da época, que o primeiro colheu
vagamente e o segundo claramente; se houve inspiração de caso, como
coisa externa no primeiro, que o segundo, por contacto direto, despertou no
seu cérebro temperamental para uma definida inspiração interior; se os
dois casos foram consubstanciais, nenhuma das hipóteses importa,
exceto historicamente. O gênio será o produto final e será tão final depois
como antes. (PESSOA, 1974, p. 498)
257
Amparando essa visão, pouco antes, Pessoa afirmava a respeito da mesma
questão:
O fato central a respeito da verdadeira grandeza dos gênios é que eles não
são precursores. O próprio exemplo que a palavra sugere define o caso:
que João Batista foi o precursor de Cristo significa que ele carecia de
importância em comparação com Cristo. (PESSOA, 1974, p. 498)
A lógica busca mascarar um fato inegável e que, conforme já apontava
amplamente Harold Bloom através de toda sua obra, está no cerne da relação entre
um artista e seu precursor: o temor angustiante de possivelmente ter chegado tarde
demais, o medo de que não haja mais nada para ser dito. No caso de Pessoa, isso
se mostrava de modo evidente na insistência na negação e fazia transparecer uma
aspiração à celebridade que força perigosamente os limites entre o homem empírico
e o autor que se realiza pelo texto. Unificando ambos e transcendendo-os, surge o
gênio que, sendo avatar do valor e, assim, da excelência, permanência e
canonicidade, tem por destino o de ser célebre. Mas, no caso de Pessoa, o relativo
silêncio a respeito de sua obra entre seus contemporâneos apontava, por um lado,
para a dimensão dolorosa e sombria do gênio e, por outro, para o risco de ter sua
genialidade em posição desfavorável na balança da Arte frente ao seu imenso
precursor. Com relação ao primeiro aspecto, forma-se, então, um modelo de gênio
maldito e incompreendido, atingindo até mesmo o princípio da loucura. Tal fato não
causa espanto em um gênio demoníaco, uma vez que o mesmo é intimamente
próximo de tais aspectos e o caso de Pessoa não é exceção. Assim, ainda em 1913,
Pessoa já havia antecipado sua visão do tema:
O gênio, o crime e a loucura provêm, por igual, de uma anormalidade,
representam, de diferentes maneiras, uma inadaptação ao meio. Se
repousam, porém, sobre um igual fundo degenerativo, se o nio constitui,
de por si, uma espécie mef m r ç
de io c e d 251Tj5.2901 0 Td(ç)Tj4.68896 0 Td(ã)Tj5.6987 0 Td(r)Tj3.12597 0 Td( )Tj5.16987 0 Td( )TTj4.568730
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258
A pretensão cientificista exalta a proximidade de gênio e loucura pelo viés da
excepcionalidade, e Pessoa chega mesmo a afirmar que “a base do gênio lírico é a
histeria” (PESSOA, 1974, p. 310). E mesmo quando relativiza sua postura como ao
afirmar que “o gênio é a insanidade tornada pela diluição no abstrato, como um
veneno convertido em remédio mediante mistura (PESSOA, 1974, p. 476), ainda
temos um gênio essencialmente ligado ao distúrbio mental. Mas, para que se tenha
real medida desta problemática em Pessoa, é preciso destacar ainda mais o peso
pretendido pelo autor com relação à sua obra. É por demais evidente que o autor a
tinha em alta conta, como paradigma da produção genial, mas, de modo ainda mais
incisivo, em franco diálogo com seu tempo, Pessoa chega a afirmar:
De todos os lados ouvimos o clamor de que o nosso tempo necessita de
um grande poeta. O vazio central de todas as modernas realizações é
uma coisa mais para se sentir do que para ser falada. Se o grande poeta
tivesse de aparecer, quem estaria presente para descobri-lo? Quem pode
dizer se ele não apareceu? O público ledor vê nos jornais notícias das
obras daqueles homens cuja influência e camaradagens tornaram-nos
conhecidos, ou cuja secundariedade fez que fossem aceitos pela multidão.
O grande poeta pode ter aparecido; sua obra teria sido noticiada em
umas poucas palavras de vien-de-paraître em algum sumário bibliográfico
de um jornal de crítica. (PESSOA, 1974, p. 285)
Esse “grande poeta” assume mesmo ares messiânicos. É amplamente
conhecida a visão de Pessoa quanto ao mito do retorno de Dom Sebastião e suas
implicações redentoras para Portugal, bem como o reflexo de tal postura em poemas
como “Mensagem” ou “Quinto Império”. Contudo, mais do que o cantor do Quinto
Império, mais que sacerdote a celebrar os ritos do Encoberto, Pessoa, como poeta,
assume até mesmo o manto de Dom Sebastião. Em texto de 1925, Pessoa insinua
tal fato, amparado por uma interpretação de datas a partir de uma trova do
sapateiro-profeta Bandarra:
A manhã de nevoeiro. Por manhã entenda-se o princípio de qualquer coisa
época, fase, ou coisa semelhante. Por nevoeiro entenda-se que o
Desejado virá “Encoberto”; que, chegando ou chegado, se não perceberá
que chegou. A primeira vinda, 1640, mostra isto bem: a data marca o
259
princípio de uma dinastia, e a vinda de D. Sebastião foi “encoberta”, foi
através do nevoeiro, pois julgando todos em virtude da sua simbologia
primitiva que o Encoberto era D. João IV, em verdade o Encoberto era o
facto abstracto da Independência, como aqui se viu. Na segunda vinda, em
1888, por pouco que possamos compreender, compreendemos contudo
que a pre
260
época. Enquanto que em cada época um princípio a ela subjacente,
ou parece assim ser, a crítica desse único princípio é variada e tem em
comum apenas o fato de ser a crítica da mesma coisa. Opondo-se à sua
época, o homem de gênio implicitamente critica-a, e assim implicitamente
pertence a uma ou outra das correntes críticas da época imediata.
(PESSOA, 1974, p. 485)
Aqui, começamos a nuançar com mais precisão a maneira pela qual o
messianismo auto-centrado de Pessoa é um espelho de sua condição como escritor.
O gênio, Messias da invenção, é também crítico e revisa a tradição, de modo a
tentar fazer valer sua voz poética. Ao fazê-lo, reescreve o none propondo um
Novíssimo Testamento, o que apenas reforça o princípio messiânico. Afinal, o tom
das invectivas pessoanas a respeito de seu papel como artista assume483 0 Td(s.0 Td( )Tj4.80921 0 Td(s)Tj797 0 Td(a)Tj6.3722 0 Td(p)Tj6.25197 m)Tj9.49819 0 Td(e)Tj.84737 0 Td68j797 0 Td(a)Tj6.37 Td(e)Tj6.25197 0 Td(483 0 Td(s.0 TdTj6.25197 0 Td(m)Tj9, Td(e)Tj6.25197 0 Td68j797 0 Td(a)Tj )Tj4.80921 0 Td(s)Tj797 0 Td(a)Tj6.3722 0 Td(p-x0 Td( )Tj2.76528 0)Tj5.65082 0 Td(t)Tj3.246 Td(,)Tj3.12599 .49819 0 Td( )Tj-43 0 Td(s)Tj6.25197 0 Td(m)Tj9, TdTj6.3722 0 Td(s)Tj55197 0 Td(s)Tj5.65087 0 Td(s)Tj5.65087 05197 0 Td(483 0 Td(s Td( )Tj-43 0 Td(s)Tj6.25197Td(t)Tj3.246 Td(,)Tj3.8 0 Td(o)Tj6.25197 0000000000000000000000061 0 Td(s)Tj797 0 Td(10 Td(l)Tj2.52483 0 Td-139.946.37 T1 0 Td 0 Td()) 0 8.33333 0 0 cm BT/R12 5.8 44(o0.9980D0000008e)T2.52482 0 Td(8)Tj5.16987 0 Td((-)Tj3.2462 0 Td(s)Tj4.68896 0 Tda)Tj5.16987 0 Tdd)Tj5.16987 0 Td(a)Tj5.16987 0 Td(a)Tj5.16987 0 Td(t)Tj2.64503 0 Td(e)Tj5.2901 0 Td(a)Tj5.1698 0 Td( )Tj2.52482 0 Td(t)Tj2.64503 0 Td(e)Tj5.29017 0 Td( )Tj3.2462 0 Td(a)Tj5.1698 0 Td(o)Tj5.16987 0 Td(m)Tj7.93515 0 Td(r)Tj3.12597 0 Td(i)Tj2.04397 0 Td(i)Tj2.0439 0 Td(o)Tj5.1698 0 Td(u)Tj5.1698 0 Td(r)Tj3.12597 0 Td(r)Tj3.1259 0 Td((-)Tj3.2462 0 Td(t)Tj2.76528 0 Td(e)Tj5.16987 0 Td(a)Tj5.1698 0 Td(é)Tj5.16987 0 Td(p)Tj5.2901 0 Td(c)Tj4.5687 0 Td(í)Tj2.645057 0 Td( )Tj3.2462 0 Td(e)Tj5.16982 0 Td(a)Tj5.2901 0 Td(t)Tj2.64505 0 Td(e)Tj5.16987 0 Td(a)Tj5.1698 0 Td(i)Tj2.16413 0 Tdt)Tj2.64505 0 Td(r)Tj3.2462 0 Td( )Tj4.08781 0 Tdu)Tj5.1698 0 Td(r)Tj3.12597 0 Td(r)Tj3.12599 0 Td(i)Tj2.0439 0 Td1 )T3j6.13174 0 Tdd(i)Tj2.0439 0 Td(p)Tj5.16987 0 Td(e)Tj5.290 0 Td(í)Tj2.64505 0 Td(i)Tj2.16413 0 Tdt)Tj2.64507 0 Td(n)Tj5.2901 0 Td(d)Tj5.16987 0 Td(o)Tj2.16413 0 Td((n)Tj5.2901 0 Td( )Tj3.60689 0 Td(d)Tj5.2901 0 Td(a)Tj5.16987 0 Td(d)Tj5.16987 0 Td(o)Tj2.16413 0 Td(a)Tj5.16987 0 Td(m)Tj42.16413 0 Td((n)Tj5.2901 0 Td(c)Tj4.5687 0 Td(m)Tj7.81493 0 Td(e)Tj5.2901 0 Td(i)Tj2.16413 0 T-313.679.64505 0 Td 0 Td(a)Tj5.16987 0 Td(d)Tj5.2901 0 Td(r)Tj3.125977 0 Td(e)Tj5.290 0 Td(i)Tj2.1641 0 Td(a)Tj5.16987 0 Td(s)Tj4.688967 0 Td(d)Tj5.2901 0 Td(r)Tj3.12597 0 Td(t)Tj2.64505 0 Tdi)Tj2.1641ç0 Td(s)Tj4.688967 0 Td(d)Tj5.2901 0 Td(e)Tj5.16987 0 Td(r)Tj3.12597 0 Td(r)Tj3.1259 0 Td(e)Tj5.16987 0 Td(r)Tj3.12597 0 Td(i)Tj2.1641 0 Td( )Tj6.7328 0 Td(i)Tj2.16413 0 Td( )Tj3.606897 0 Td(e)Tj5.29017 0 Td(n)Tj5.2901 0 Td(i)Tj2.16413 0 Tdt)Tj2.6450 0 Td(í)Tj2.64505 0 Td(t)Tj2.52483 0 Td(e)Tj5.29017 0 Tdte(e)Tj5.29017 0 Tdt
261
precisamente por isso que mais concluível se nos afigura o próximo
aparecer de um supra-Camões na nossa terra. (PESSOA, 1974, p. 366-7)
Os “poetas supremos” que podem dividir com Pessoa o pedestal têm nome,
mas não são Mário de Sá-Carneiro ou Almada Negreiros. São Alberto Caeiro,
Ricardo Reis e Álvaro de Campos, pessoas geniais que formam com o ortônimo um
panteão de um homem só. Contudo, o paradigma ainda é Camões. Ao “Grande
Poeta” vindouro, abre-se a necessidade de deslocá-lo do centro valorativo da
literatura portuguesa, o que, ainda em caso de sucesso, significaria definir-se,
positivamente, a partir de Camões. Diante disso desnuda-se uma relação intrincada
com a própria fama e permanência, avatares do gênio, de um modo tal que as
palavras de Pessoa assumem ares muito além de meras “lamentações”.
Retomando, aqui, o segundo aspecto da falta de celebridade de Pessoa em
seu tempo apontado acima, aquele da presença do precursor, vale ainda ressaltar
um pouco mais a posição expressa no sentido de se definir a partir de um confronto
com Shakespeare ou Milton. À primeira vista, tal fato se em função das várias
tipologizações do intelecto humano que Pessoa estabelece no sentido de diferenciar
“gênio”, “talento” e “espírito”. Mesmo sem um aprofundamento nas definições
particulares de Pessoa com relação aos três termos (que, por sinal, são
constantemente retomadas de modo muita vezes contraditório e nem sempre
fugindo da abstração imprecisa), é patente que ele as utilize como mecanismos de
defesa capazes de conter a influência dos pretensos precursores. De tal
procedimento, surgem afirmações como as seguintes, retiradas do já citado
“Heróstrato”: “Shakespeare é o exemplo do grande nio e do grande espírito
ligados à insuficiência de talento” (PESSOA, 1974, p. 476), ou Milton é o exemplo
da união do grande gênio e do grande talento. […] Não tem espirituosidade”
(PESSOA, 1974, p. 476). Assim, quando afirmava “encontro-me agora de plena
posse das leis fundamentais da arte literária. Shakespeare não pode mais ensinar-
me a ser sutil, nem Milton a ser completo” (PESSOA, 1974, p. 76), Pessoa
amparava-se na redução de precursores escolhidos de modo preciso que, não
obstante, seriam formidáveis.
Mas a verdadeira razão da escolha está presente em uma questão lingüística.
A sombra do precursor projeta-se através de um mesmo código. É claro que o
bilingüismo de Pessoa o colocava em diálogo com a literatura inglesa. Todavia, as
262
relações de influência e o agón delas provenientes partem daquele que tenta
emular. Portanto, o foco, aqui, não é a ngua de leitura, mas, sim, a língua de
ebTd( )Tj5.77105 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td( (í)T80Td(e)Tj6.25197 0 Td( )Tj-427.05(,)Tj3.12599 0 Td( )Tj5.77105 0 Td(a)Td( c7(w9 0 Td(a)Tj6.25197 0 0 Td( )Tj-427.05785312 0 Td(p)Tj6.25197 00 Td(a)Td( c7(w9 0 Td(a)e)Tj6.25197 0 Td)Tj5.77105 0 Td33 0 0 cm BT/R18 11.28 Tf0.9980857857857857 0 Td(l)Tj2.52483 0 Td(e)Tj6.25197 0 T54 0 0 Td( )Tj-427.05a)Tj6.25192 0 Td77105 0 Td(a)zTj6.224659(,)Tj3.0.9980857857 0 Td( (í)T80Td(eu)Tj6.25192 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td( )Tj/25192 0 Tdo )Tj/25192 0 Tdb857.49819 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td857( )Tj5.65082 0 Td(s)Tj5.65082 0 Tda)Tj6.25197 0 Td857 0 Td(l)Tj2.52857(a)Tj6.25197 0 Td(q)Tj6.65082 0 TdTj2.52857)Tj5.65082 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td( )Tj5.197 0 T54 0 de og ,
263
porque têm uma aceitação exterior, tendo, portanto, um equilíbrio. A esse
desvio equilibrado chamar-se-á nio quando é sintético, talento quando é
analítico; gênio quando resulta da fusão original de vários elementos,
talento quando procede do isolamento original de um elemento.
(PESSOA, 1974, p. 356)
São as lições de Poe tão caro a Pessoa com relação à necessidade de
formas breves, bem como uma resposta ao modelo baudelaireano de Les fleurs du
mal, mas é muito, muito mais. Ao exigir, para o gênio, síntese e fusão de vários
elementos, relegando ao talento a análise e o isolamento de apenas um elemento,
Pessoa tenta conferir autoridade e prioridade à Mensagem, tão sintética quanto
múltipla, estabelecendo uma revisão considerável com relação ao modelo tradicional
de epopéia representado em e por Os lusíadas. Ao revisar seu verdadeiro precursor
em tais termos, Pessoa pode até mesmo aspirar a uma libertação com relação à sua
esmagadora influência. Assim, reclamando uma irônica “sinceridade” (sobretudo no
caso específico do fingidor Pessoa), o filho pode reclamar para si sua própria
paternidade, substituindo Camões por uma de suas máscaras, tão reais:
Quando um poeta inferior sente, sente sempre por caderno de
encargos. Pode ser sincero na emoção: o que importa, se o não é na
poesia? Há poetas que atiram com o que sentem para o verso; nunca
verificaram que o não sentiram. Chora Camões a perda da alma sua
gentil; e afinal quem chora é Petrarca. Se Camões tivesse tido a emoção
sinceramente sua, teria encontrado uma forma nova, palavras novas
tudo menos o soneto e o verso de dez sílabas. Mas não: usou o soneto
em decassílabos como usaria luto na vida.
O meu mestre Caeiro foi o único poeta inteiramente sincero do
mundo. (PESSOA, 1974, p. 270)
A crítica à forma supostamente inadequada de Camões, forma essa que se
desautoriza como afirmação subjugada da influência petrarquiana, é, litoteticamente,
o elogio da forma da poesia de Pessoa, sobretudo no caso da Mensagem. Na
composição do poema, por sua épica composta de lírica, Pessoa emularia a
mímesis passiva de Camões tanto com relação à lírica de Petrarca quanto com a
forma épica de Virgílio e Homero. Mas desejar força, sobretudo poética, embora seja
um começo, não basta para obtê-la. Os lusíadas, negados que fossem, ainda são o
264
parâmetro pelo qual se mede a Mensagem. Desse modo, uma vez que a
especificidade do tema, seu caráter nacionalista e suas pretensões para com a Raça
impedem que Pessoa busque precTd(r)Tj3.72714 0 Tdtanaae
265
dinastia de Bragança, vilipendiado por um ultimato inglês, o poema de Junqueiro é a
resposta tardia assumindo-se assim ao povo e à terra fundados pelo poema de
Camões. Derivando seu título da epígrafe que acompanha o livro (“Esta é a ditosa
pátria minha amada”), verso justamente d’Os lusíadas, Junqueira celebra e
reconhece a força do precursor, o que apenas torna mais singular a disposição de
Pessoa em adotá-lo como vicário no jogo da influência. Sobretudo quando se tem
em mente o papel fundamental do poema de Camões na Pátria. Portugal,
representado por um Doido em farrapos, carrega, como uma última tábua de
salvação um livro igualmente roto, Os lusíadas. Além de ligar miticamente o destino
da nação ao livro que a define, Junqueiro vai além e oferece a mais bela justificativa
externa dessa “lira d’oiro” que se tem em termos poéticos. Em um momento de
recuperada sanidade, brada o Doido, brada Portugal:
E contudo, alma infame e libertina,
Em teu horror, esquálido e sangrento,
Uma luz existiu, que era divina!
Uma luz existiu, que num momento
Fez o dia mais claro e mais jucundo,
Pôs mais cêrca da terra o firmamento!
Ó lira d’oiro que abalaste o mundo!
Sonho d’astros!... ó fúlgida epopeia!
Canta, dá vida nova ao moribundo!
Da cólera do Eterno a maré cheia,
Naus, barbacãs, palácios, de improviso
Levou tudo nas ondas, como areia…
Levou tudo nas ondas… ficou isto!
Ficou na mão exangue a lira d’oiro,
E é por ela existir que eu inda existo!...
(JUNQUEIRO, s/d, p. 178)
Por que essa escolha de autor, então, por parte de Pessoa, para defender-se
de Camões? Talvez porque, em termos de procedimento, o rebaixamento recíproco
de forças deixasse o caminho aberto para o “supra-Camões”. Talvez porque tal
266
eleição, por parte de Pessoa, fosse um meio de celebrar o poeta tardio, condição do
próprio Pessoa, em termos ainda mais exasperantes. Ou, talvez, apenas talvez, tal
fato deva-se a algo aparentemente mais banal, mas que pudesse explicar outras
idiossincrasias do universo pessoano, tal como a inacreditável ausência de Camões
na Mensagem. Para tal fenômeno, um outro grande escritor a dialogar tanto com
Pessoa quanto com Camões, José Saramago, imaginando certa reflexão de Pessoa
sentado à sombra da estátua do precursor na praça Luís de Camões, tem uma
resposta mordaz:
Quis Fernando Pessoa, na ocasião, recitar mentalmente aquele poema da
Mensagem que está dedicado a Camões, e levou tempo a perceber que
não na Mensagem nenhum poema dedicado a Camões, parece
impossível, indo ver se acredita, de Ulisses a Sebastião não lhe
escapou um, nem dos profetas se esqueceu, Bandarra e Vieira, e o teve
uma palavrinha, uma só, para o Zarolho, esta falta, omissão, ausência,
fazem tremer as mãos de Fernando Pessoa, a consciência perguntou-lhe,
Porquê, o inconsciente o sabe que resposta dar, então Luís de Camões
sorri, a sua boca de bronze tem o sorriso inteligente de quem morreu
mais tempo, e diz, Foi inveja, meu querido Pessoa […]. (SARAMAGO,
2005, p. 360)
Saramago é, provavelmente, rigoroso demais com Pessoa em O ano da
morte de Ricardo Reis, e, de certo modo, também tem contas a acertar com
relação aos seus predecessores. Afinal, Pessoa, gênio demoníaco, tem, como todos
seus infernais irmãos através da História da Literatura, uma suprema aspiração:
tomar o Céu de assalto, sentar-se em um trono ocupado em demasia. Sua miséria
vem justamente de sua grandeza e sua condição de gênio é a garantia da angústia e
da dor: “Em certos casos, quanto mais nobre o gênio, menos nobre o destino. Um
pequeno gênio ganha fama, um grande gênio ganha descrédito, um gênio ainda
maior ganha desespero; um deus ganha crucificação” (PESSOA, 1974, p. 487).
Demônio, Diabo, Satã… Pessoa. Pessoa demais, humano demais, gênio demais
para evitar, apesar de sua natureza luciferina, um último e delirante sonho:
transmudar-se em Vésper, voltar ao Céu e divinizar-se. Louco sonho, mas sublime,
capaz de desnudar a excelência em Arte, sua areté, o gênio. E, por essa excelência,
267
desvela-se o ethos da arte: um eterno confronto com o deus do momento, um eterno
desejo de poder, de saber, querer, ousar e falar.
O que se cala, não raras vezes, possui uma eloqüência muito maior do que
aquilo que é sabidamente dito. As interdições possuem a força da real maestria no
uso do verbo; anunciam, pelo mero fato de justificarem o calar, poderes impensados,
ameaças, até aqui, invisíveis. Uma dupla articulação preenche as frestas de tal
cenário, sendo, a primeira, óbvia e, por isso, prenhe de negatividade típica daquilo
que de tão visto, boa coisa não pode ser: deve-se ou, ao menos, pode-se recuperar,
do profundo e gélido ostracismo do silêncio, o interdito, relativizando seu mal que o
levou ao próprio silêncio ou, ainda, revisando este mal em bem, mudando o
paradigma da percepção, trocando campos, castelos, quinas, coroa e timbre do
brasão do certo, do bom, do desejável. Óbvio, portanto.
O que se nos anuncia de segundo é mais sutil, emula e transcende a primeira
constatação. Trata-se da percepção aguda de que o silêncio, na verdade, nunca se
deixa contaminar pelo ruído. No domínio da interdição, o apocalipse sempre se
novamente em meio a som e fúria. Quando calamos, matamos. O falar hamletiano
de Nietzsche sobre aquilo que está morto em nossos corações esconde a
ambigüidade da vida e da morte que está contida tanto no ato de silêncio quanto no
seu antípoda. A recuperação do dito silenciado assume, assim, ares de miraculosa
ressurreição. Não é pouco, certo é. Destarte, uma vez interdito, realmente interdito
(pois é sabido que se pode ocultar tão bem como matar, o mesmo valendo para a
morte das palavras), uma vez proibido, um tema passa por um processo no qual
uma camada obnubilante termina por alterar não apenas a aparência do que se vê,
mas a essência, o significado, do signo que se revela no que se lê. Como em
tempos antigos, a sentença do silêncio, uma vez proferida, uma vez iniciada pela
ironia do pronunciamento
seja este vocal ou escrito
determina destinos, aponta
rumos. Alterá-los equipara-se às gigantomaquias de antanho, assemelha-se a uma
nova guerra no céu. E, se o fazemos hoje, temos rias dificuldades a vencer, uma
vez que os tempos não são de gigantes, deuses ou mesmo céus.
268
Quanto restringimos o olhar para a literatura, o que se mostra é o mesmo,
seja na literatura propriamente referida, seja nos múltiplos discursos que sobre a
pedra angular
por vezes retornada à condição de encosto
encontram pretensa
base. Sobre este último valem, ainda, duas ou três palavras, pois, se algo no seu
universo o condiz com o poder estabelecido reinante, logo é relegado ao exílio
inclemente da pólis na qual se constituiu, sob a alegação contraditória de não fazer
parte da mesma. Curioso, sem dúvida, uma vez que, entre os gregos, o ostracismo,
embora nem todos concordem com tal simplificação desajeitada, expulsava da
cidade aqueles que contra ela atentavam, sem, contudo, apagar a ligação essencial
que ligava o réu à sua comunidade (sem o que a punição o teria efeito, anulando
a ausência com a presença). No discurso da ciência literária, ao contrário, o
ostracismo não é de condição, é de essência, e os banidos não adquirem apenas a
condição lingüística moderna de periferia (tais espaços tem moradores de
pequeno clero), sendo, antes, sujeitados a uma anulação de seu próprio ser: “Vocês
nunca fizeram parte daqui.
Contudo, como ladinos Alcibíades do pensamento, poderíamos nos esgueirar
nas já citadas frestas das muralhas deste discurso a recuperar o que não se foi,
mesmo que o digam nunca ter sido: a reflexão livre e sua gêmea, a especulação
instigante. Ao fazê-lo, uma de suas muitas benesses seria justamente a de poder
não apenas resgatar o silenciado, mas realmente preencher o vazio daquilo que
ainda não é. Mise-en-abyme de Dédalo, poderíamos, por exemplo, sonhar sobre os
porquês do silêncio na própria literatura. Como no caso de Fernando Pessoa e sua
magnífica especulação Mensagem. Muito foi dito aqui sobre o que se declara e
sobre o que se cala na produção pessoana, mas é possível insistir em um ponto
específico: o silêncio, na Mensagem, a respeito de Camões. Silêncio de antemão
relativizado, uma vez que Mensagem é o grande adversário, como poema nacional,
d’Os lusíadas. Tal condição, que Pessoa não apenas não ignorava como até
mesmo buscou, já comunica e cita, já afasta o silêncio. Contudo, em um poema que
exalta, diretamente, vários vultos da história portuguesa, não encontrarmos citação
direta de Camões significa, sem dúvida, algo. Em especial quando lembramos que o
padre António Vieira é lembrado como imperador da língua portuguesa em “Os
avisos”, segunda subdivisão da terceira parte do poema, “O Encoberto”. Porém,
justamente em “Os avisos”, compostos de três poemas cujos dois primeiros têm no
título o Bandarra e o padre Vieira (respectivamente chamados “Primeiro e
269
“Segundo”), Pessoa termina com um poema intitulado simplesmente “Terceiro”, sem
menção direta a figura alguma:
Screvo meu livro à beira-magua (PESSOA, 1972, p. 86)
Eis o verso que abre o poema. E, nele, o velho jogo de espelhos. “Screvo
ecoa o “Cantando” dos célebres versos camonianos, é a presentificação do ato
literário, que, canto ritual em essência, passa a escritura, profana e sagrada ao
mesmo tempo. Em seguida, passa a algo mais, a inscritura e, assim sulca mais que
o papel: sulca a aventura humana sobre a face da Terra.Screvo é isso e é mais. É
um Eu que fala, que se anuncia e enuncia. Uma primeira Pessoa do singular.
Assim como o “meu”. A tomada de posse do discurso, o possessivo que
inspira respeito e autoridade. Seguindo a escritura, inscreve voz que se faz ouvir,
ausente como pronome, presente como Verbo; ausente como sujeito estanque e
abstrato, presente como sujeito actancial.
Em seguida ele, o “livro”. O livro representa novamente a própria Literatura,
mas espelha ainda mais. Espelha a Mensagem, presente na materialidade, ausente
em seu sparágmos essencial por quarenta e três poemas. E espelha Os lusíadas,
ausente pela timidez do discurso que enumera todos os outros, presente pela
eloqüência do silêncio que o anuncia. O “Screvo e o meu” passam, desse modo, a
ser voz de Camões, que se esgueira sob a forma de outra Pessoa, de outro pessoa.
Transubjetivação, deus e o diabo na dança eterna.
Por fim “à beira-magua”. O espaço da escritura é espaço da saudade do que
foi. Mas traz em seu bojo a “águaque a “mágoa” contém no momento em que a
escritura volta a ser canto, em voz alta e confiante. À beira da água, à beira do mar,
tão português, de sal e mágoas de uma Raça que se fez por Grandes Navegações e
Grandes Celebrações de tal navegar. Um jogo de espelhos partidos e
reconfigurados, lúdicos como se fossem comboios de corda a girar, entretendo a
Razão.
No fim, Camões está, sim, presente na Mensagem. Está presente como
Pessoa está presente, está presente porque Pessoa está presente. Está ausente
demais para não estar ali. Escreve uma mensagem à beira-maguacom Pessoa;
não poderia este, assim, aspirar a ter rabiscado algo, já muito tempo, também
com Camões? Delírio, talvez; talvez mentira. Mas grandiosas mentiras que são, à
270
semelhança dos mentirosos, geniais. Invenções, criações que são, após o Nevoeiro,
os beijos merecidos da Verdade.
271
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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290
ANEXOS
291
ANEXO I
The Marriage of Heaven and Hell
292
293
294
295
296
297
298
Fonte: http://www.blakearchive.org/blake/ (09/01/2007)
299
ANEXO II
Milton: a Poem in Two Books
300
301
302
303
304
305
306
307
308
309
310
311
312
Fonte: http://www.blakearchive.org/blake/ (09/01/2007)
313
314
PARA AQUÉM DOS TESTAMENTOS,
PARA ALÉM DOS TESTAMENTOS
315
RENOVANDO A LEI
Antes de iniciar esse segundo momento da antítese que aqui se apresenta,
algo pode e deve ser dito com relação à última parte imediatamente anterior à tese
Lúcifer. Embora a proposta de inserção de um “Decálogo”, nas circunstâncias em
que ela se deu, possa parecer ainda extravagante, é importante que se esclareça
alguns pontos que podem ser mais problemáticos. Em primeiro lugar, o
procedimento paródico fundamental que embasou tal proposta aponta para uma
ficcionalização geral da escritura que, ao mesmo tempo em que se justifica por meio
de seus próprios dogmas, serve de opção interpretativa para o mesmo fenômeno, de
modo a assumir mesmo o centro teleológico do conjunto textual de antítese e tese.
Em segundo lugar, em termos de valor de verdade, ao se consubstanciar com o
procedimento que expõe e utiliza como interpretante da Literatura, este caso
particular e específico de escritura constrói suas próprias leis em função de uma
tautologia de tema e performance, de modo que até os comentários sobre
determinados pocessos de construção textual podem utilizar os artifícios que
descrevem. Eles dizem respeito às duas próximas partes do trabalho e podem ser
resumidos a partir de duas indicações – que são, em última instância, dogmas que
simplificam sua natureza:
I – Tudo tende à Obra.
II – A Obra é soberana, de modo que suas leis e a apreensão de tais leis identificam-
se a partir do cosmos que esta Obra organiza.
Assim como o Decálogo” apresentou um breve comentário às suas
proposições, este “Renovando a Lei” pede uma metodologia semelhante. Uma
explicação dos dois dogmas apresentados seria até mesmo mais importante, uma
vez que sua extrema concisão pode deixar espaço para dúvidas perfeitamente
compreensíveis. E, novamente, vejamos cada uma delas:
316
I – Tudo tende à Obra.
Ao parafrasear Mallarmé, proponho um enfoque que permita amenizar a severidade
da constatação dogmática. Ao instituir a Obra como fim de qualquer ato de escritura,
não anulamos, em absoluto, a possibilidade de existência de uma ciência literária.
Ao contrário do que ocorre na confrontação simples de posturas analíticas e
dogmáticas, a interpretação da ciência literária a partir da ficção, bem como a
posterior interpretação da Literatura a partir de uma ciência devidamente
ficcionalizada não interfere na possibilidade de nenhuma das duas, atuando, antes,
na mútua expansão que pode ser levada a cabo. Ambas as frentes (a literária e a de
sua interpretação) devem, obviamente, assumir sua condição transubjetiva. E, aqui,
é importante que se faça uma ressalva. A Literatura saiu na frente em tal
procedimento, de modo que o necessitamos de uma enumeração exaustiva de
casos nos quais verificamos o “engodo” da ficção que se passa por ciência. Bastaria
pensar em um caso exemplar como o de Jorge Luis Borges para nos dar uma idéia
das possibilidades de tal postura. Contudo, no caso da ciência literária, os pudores
parecem ainda fortes, de modo que nem a evidente subjetivação da Verdade em
todo e qualquer texto escrito é suficiente para que se leve tal proposta realmente a
sério.
II – A Obra é soberana, de modo que suas leis e a apreensão de tais leis identificam-
se a partir do cosmos que esta Obra organiza.
Esse dogma – que, após o dogmema inicial, passa a “procedimento de escritura” – é
quase inteiramente esclarecido por si. Em essência, propõe que não há meios
exógenos de abordagens de uma Obra. A natureza caótica da potencialidade infinita
do uso da palavra torna qualquer manifestação de organização em cosmos textual
absolutamente particular. Não se trata aqui de repetir a anedota de Derrida e Apel e
negar a possibilidade de comunicação, mas, sim, de propor um exercício de
conhecimento do Outro, deixando-o falar e sendo a via dessa comunicação. A
Literatura, a despeito das proximidades óbvias, é a alteridade radical da ciência
literária, e, em função disso, o discurso científico a respeito da Literatura busca a
todo instante subjugar o discurso do Outro a fim de fazer valer a sua voz. Todavia,
ao adotar tal procedimento ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, depende
317
da Literatura enquanto valor para se justificar, a ciência literária apenas ressalta a
despeito de sua arrogância a natureza solidária do discurso. A interdependência,
aqui, aponta para a necessidade de uma visão na qual a cientificidade possível a ser
aplicada a uma Obra está em seu próprio interior, na mesma medida em que sua
literaridade transparece e se transfigura por meio de seu eco em um comentário
interpretativo. Pretensões de estabelecimento de limites precisos entre Literatura e
ciência literária resumem-se na tautologia da palavra: pretensão. Não resistem a
uma única página de Octávio Paz ou Roland Barthes. Assim, aprendamos a ouvir a
voz do Outro como uma possibilidade concreta de nosso próprio discurso. Pois o
diálogo também se constrói no silêncio da escuta e não foi, não é, nem será sinal
inequívoco de submissão.
As duas propostas aqui apresentadas servem não apenas de base para os
capítulos subseqüentes, mas atuam retroativamente, significando uma revisão de
tudo que foi escrito anteriormente tanto na tese quanto na antítese, inclusive e
sobretudo no “Decálogo”. Ao fazê-lo, modifica a própria perspectiva dogmática na
qual se embasa, alterando drasticamente qualquer utilização da palavra “dogma” e
de seus derivados. Que tais propostas por sinal chamadas de “dogma” ou
“dogmema” dependam do dogmatismo para alterá-lo, não constitui um paradoxo,
ao menos o um paradoxo indesejável. Tal fenômeno indica novamente a
solidariedade discursiva, como o velho caminho que se faz no percurso. E que o
procedimento como um todo nos remeta a algo por demais conhecido, como um
déjà vu, um assez vu, não determina nem plágio, tampouco má-fé. É, quando muito,
mais um dos casos de mentiras inofensivas à maneira de Rousseau. Apenas, e
simplesmente, ficção.
318
QUEBRANDO AS TÁBUAS DA LEI
Não penseis que vim revogar a Lei ou os
Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes
pleno cumprimento, porque em verdade vos digo
que, até que passem o céu e a terra, não será
omitido nem um i, uma vírgula da Lei, sem
que tudo seja realizado.
Evangelho segundo Mateus, V, 17-18
A forma tese
Quando pensamos na forma tese, recuperamos inadvertidamente a memória
da palavra utilizada. A palavra grega , remete-nos ao ato de colocar, de
adequar no espaço e, o mais importante para a idéia atual, o de dispor em
determinada posição, sendo, portanto, a própria posição. Assim, etimologicamente,
a idéia de tese pressupõe o engajamento da palavra, o compromisso ético. Pelo viés
latino da thesis, chegamos à idéia de proposição, de tema que desemboca em
nossa noção atual em língua portuguesa que tanto se comunica com a conclusão do
teorema ou de suas partes na Matemática quanto com a idéia de proposição a ser
defendida, seja em termos de abstração discursiva ou mesmo diante de bancas no
caso de teses acadêmicas. Em todo caso, o recorte, a idéia dele derivada, o
posicionamento frente à ela e, conseqüentemente, a defesa dessa idéia. Vista em
termos mais largos, a tese se torna não um exercício excludente de refinamento
argumentativo, tampouco criptografia reservada a iniciados. A tese, por sua memória
lingüística, torna-se parte do universo intelectual humano, parte de seus
constituintes básicos, procedimento-padrão do pensar.
A tese é, portanto tão dinâmica quanto o ato pensante e, sobretudo pela
dinamização do processo dialético a partir de Hegel, a idéia de tese surge
imediatamente ligada a seu oposto, a antítese. Dessa maneira, se há a possibilida9819 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td( )Tj5.77105 Td(d)Tj6.3722 0 TS3.72714 0 Td(.)Tj3.1225197 0 Td( )Tj5.77105 T722 0 TS3.72714 0 Td(.)Tj3.1225197 0 Td( )Tj5.77105 T.25197 0 Td(,)Tj3.13174 0 Td(05 0 Td(a)Tj6.25197 0 id(h)Tj6.25197 0 Td(á)Tj1225197 0 Td( )Tj5.77105 T72d(i)Tj2.4046 0 Td(g)Tj6.3722 0 Td(u)Tj6.3722 0 Td(a)Tj6.13174 0 Td(l)Tj2.52483 0 Td( )Tj6.25197 0 id(e)Tj6.25197 0 Td( )Tj6.25197 0 i.)Tj3.1225197 0 Td(u)Tj6.13174 0 Td(t)Tj3.24622 0 Td(o)Tj6.13174 0 Td(m)Tj9.49819 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td(t)Tj3.12599 0 Td(i)Tj2.52483 0 Td(c)Tj5.77105 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td(m)Tj9.49819 0 Td(e)Tj6.13174 0 Td(n)Tj6.25197 0 Td(t)Tj3.24622 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td( )Tj6.25197 0 i. possibilidade ambém da antítese. Porémd
319
lições de Heráclito, mostra a dinâmica mutuamente enriquecedora dos contrários. E,
mais: a visão hegeliana da História aponta para o capital fato de que em uma
relação dialética, nunca temos uma real parte “vencida”. Assim como a Grécia
existia na base intelectual, religiosa, artística e filosófica do vencedor romano, o
elemento negado no confronto de teses permanece como substrato da afirmação do
elemento preponderante, ainda que seja por sua própria negação. A própria ntese
se faz litoteticamente, negação da negação, a única afirmação, o único “sim”
possível.
Deste modo, a forma tese constrói-se a partir de uma problemática discursiva
que deve levar em contra a alteridade do próprio pensamento fundante, o que
aparentemente poderia, em sua relativização, anular a natureza propositiva da tese.
Mas isso se pela herança de uma linha argumentativa e filosófica cartesiana,
fundada em um sujeito completo e uno. A herança francesa da forma tese, fundada
na estrutura ternária de proposta-argumento-conclusão e seus desdobramentos,
sobretudo em um país importador de produção intelectual como o Brasil, leva a
certas prescrições de escritura que, embora felizmente relaxadas com o passar dos
anos, continua a tolher iniciativas e propostas de renovação. Poderíamos mesmo
nos questionar se um romance, a despeito de sua alteridade formal e,
aparentemente, teleológica, não poderia ser uma tese sobre a forma romanesca.
Ainda seria ousadia dizer que sim, ao menos se ele fosse apresentado
simplesmente por si. Todavia, uma infinitude de teorização e crítica romanesca
em uma obra como o Ulysses de James Joyce, fato que apenas mostra como o
problema continua em aberto.
Tais constatações o trabalham no sentido de localizar e datar o presente
trabalho (restringindo seu alcance), atuando, antes, na especificação de sua
historicidade inevitável, levando-se em conta a humanização e a subjetivação da
História que o processo exige. Assim, pensando em tal especificidade, vale lembrar
que a tese Lúcifer apresentada liga-se a um determinado programa de pós-
graduação, no caso o de Estudos Literários da Faculdade de Ciência e Letras da
UNESP de Araraquara. Assim, a forma tese tradicional exposta está impregnada de
utilitarismo visando a obtenção do título. Mas, aqui, encontramos um gancho
precioso: a partir das regras internas que determinam o processo burocrático que
levaria à escritura particular de tal forma tese, o que encontramos como motivação?
Ou melhor, qual é a base argumentativa na qual a própria forma se apóia? O
320
regimento do programa de pós-graduação em questão fala na exigência de uma
investigação original que represente uma contribuição significativa para o
conhecimento do tema tratado. Eis um magnífico exemplo de como a únivoca
objetividade se trai em idiossincrasias que transparecem pelo discurso: como
mensurar a significação de um texto? Medir, aqui, é julgar a partir de um valor pré-
existente e pré-determinado, é algo que se situa no campo dogmático. Mesmo a
aspiração à originalidade é questionável, seja pelo número cada vez maior de teses
que não se engajam em uma verdadeira posição a ser defendida (algo como “vamos
por aqui e ver onde chegamos”) e que são, mesmo assim, aprovadas, seja pela real
impossibilidade de verificação do caráter original. Podemos compreender como seria
difícil desmascarar uma fraude simples representada pela apresentação da tradução
de uma tese competente, porém desconhecida, escrita originalmente em polonês.
Na verdade, mesmo traduções de teses escritas em alemão, francês ou inglês,
desde que situadas nas mesmas condições, apresentariam o mesmo problema.
Estou sendo generoso: como poderia ser verificada, em primeira instância, a cópia
direta (com as devidas adequações de termos) de uma tese sem repercursão
internacional escrita uma década em Portugal? Que a fraude, em caso de
divulgação posterior do trabalho, pudesse levar à comprovação do crime não
invalida o fato de que, por intermédio da função mágica da palavra concedida à
banca no caso específico da defesa, teríamos uma aprovação.
Não se trata de exigir uma fiscalização que, no atual estágio dos recursos de
verificação, mostra-se humanamente impossível. O que devemos destacar de tudo
isso é o fato de que de nada adianta esconder-se nas malhas confortáveis de uma
ilusão de rigor. E, se não devemos incentivar a fraude, uma vez constatada a
falibilidade do sistema, por que não relativizá-lo, abrindo-se espaço para outras
abordagens, propostas e formas de apresentação? Sobretudo quando nos
lembramos de ,os ess
321
Procedimentos de escritura: escolha de tema, autores e da tese a
ser defendida
Na verdade, selecionar tais elementos como componentes de um
procedimento de escritura, não é algo que possa ser feito sem que se abra espaço
para a polêmica. O que determina a escritura? Ao colocar a questão em tal nível de
abrangência, enfocamos não apenas a escritura de uma tese específica, mas a
escritura em geral. O que garante a escritura? A visão barthesiana do fenômeno é
um bom ponto de partida, uma vez que o pensador francês é o pai por trás da
utilização (ainda que desviante, como no presente caso) moderna do termo. A
escritura deve ser pensada a partir de sua dinâmica funcional, a articulação entre o
ato de invenção e a sociedade na qual se insere, em plena solidariedade histórica.
Assim, o escritor não pode se dar ao luxo de desconsiderar a alteridade que atua no
estabelecimento de sua escritura bem como seria igualmente absurdo
desconsiderar a idiossincrasia inventiva da contribuição estritamente subjetiva.
Mas a idéia de Barthes de escritura não responde a questão tal como foi
proposta: o que garante a escritura? Difícil responder, pois a resposta seria
justamente a definição do escritural na escritura o que, aplicado à escritura artística,
corresponderia à própria literaridade. No caso específico de Lúcifer, expor e
sistematizar tais elementos corresponderiam não apenas a um desvelamento dos
procedimentos de escritura derivados da base dogmática da tese (o que seria
desejável), mas também a uma indesejável condução da leitura. Explicar não é uma
idéia desprovida de problemas a serem considerados. Explicre, em latim, tem um
sentido a princípio físico de desenrolar”, “desdobrar”, “estender”; aplicado ao ato
discursivo, atinge as conotações de “explicar”, “esclarecer”, “interpretar”. Mas, nos
caprichos da palavra, mantém o potencial semântico de narrar” ou “contar”. Assim,
se temos o espectro de uma verdade que subjaz ao discurso, um princípio dialógico
do qual não se pode escapar nos remete à discursividade da verdade, o que a
relativiza e nos mostra as armadilhas da pretensão hermenêutica. Assim, torna-se
mais interessante lançar pistas de leitura que desmistifiquem o cientifismo árido da
tese em prol de uma dinâmica escritural que tende ao literário; poiética, portanto. O
apontamento exemplar de três procedimentos de escritura que dão idéia da maneira
como a tese foi construída.
322
Sendo uma tese de Estudos Literários, a meta de contribuição direcionou-se
para uma esfera que pudesse atingir o espectro mais amplo possível do fenômeno.
Assim o primeiro procedimento a ser aqui destacado é justamente o da escolha
temática. A opção por um tema como “A Literatura” seria, por sobreposição
tautológica, o mais amplo possível, mas apresentaria o problema de sua vastidão
rumo ao infinito. Passar para a questão mais específica da literaridade seria uma
depuração interessante, mas manteria, em menor grau a vastidão inicial. Contudo,
sabendo que a literaridade discursiva liga-se diretamente à questão do discurso
enquanto valor, optei por uma abordagem desse valor através de um de seus
avatares mais presentes e, contudo, pouco sistematizado em nosso contexto
particular brasileiro de estudos sobre a Literatura: o gênio. Ao abordar o gênio, fugi
do risco de diluição e tive a possibilidade de estabelecer recortes precisos não
apenas com relação aos autores a serem estudados, mas de sua manifestação
particular no âmbito de suas obras.
Esse é o segundo procedimento que merece destaque: a escolha dos
autores. Sendo o gênio um avatar da excelência e do valor em Literatura, nada mais
óbvio do que abordar os autores que assumam o papel de centro valorativo das
literaturas em questão. No caso da literatura alemã, conforme foi dito, a opção por
Goethe foi a mais fácil de ser realizada (assim como a escolha de Camões na
Coda). Contudo, a troca, na literatura inglesa, de Shakespeare por Milton e,
sobretudo, a opção por um precursor compósito na literatura francesa explicitaram o
problema da idiossincrasia de todo ato de juízo valorativo. Sem uma figura central
acima da polêmica, como escolher? No caso dos autores franceses, o papel
preponderante de Descartes tanto em termos filosóficos como escriturais permitiu
que, aliando tal fato à proximidade cronológica, chegássemos a Montaigne e, ainda
antes, Rabelais. Como o salto entre o mais antigo deles e a tradição romântica
francesa constituía um empecilho argumentativo, optei por um intermezzo com três
autores exemplares das Luzes, que tornou o hiato temporal menos grave. no
caso da Shekespeare, sua influência e recorrência sem par na literatura do Ocidente
renovavam o problema da vastidão temática. Por isso, foi de fundamental
importância o terceiro procedimento a ser aqui abordado, no caso, a própria escolha
da proposição a ser defendida, a tese-idéia da tese enquanto forma.
Restringir sem ser reducionista é uma metologia argumentativa que facilita o
estabelecimento de um discurso como cientificidade rigorosa. Deste modo, a
323
maneira como se deveria abordar a questão do gênio era crucial. No sentido de
manter o alcance considerável da proposta inicial, optei por pensar não no conceito
de gênio, particular em sua historicidade, nem mesmo por pensar a noção de gênio,
que permitiria a abordagem trans-histórica. A opção pela idéia de gênio seria a que
permitiria a maior liberdade reflexiva, capaz de articular autores díspares de
contextos igualmente díspares. Mas, para equilibrar essa nova tentação de
amplitude incontrolável, cheguei a “uma idéia de gênio”. Além de insinuar a eterna
possibilidade de outras idéias a respeito do mesmo tema, tal solução aponta para a
subjetividade inerente da proposta de trabalho, bem como o engajamento
necessário para levá-la a cabo. Assim, cheguei à “tese da tese”, uma visão do gênio
a partir de uma identificação com uma matriz demoníaca. Essa adoção do diabólico
como interpretante do genial apoiava-se na depuração empreendida em termos
temáticos, bem como na possibilidade que abria para pensar o gênio a partir de uma
idéia pessoal de processo transubjetivo. Pelo viés da demonização, foram
deslocados os autores fundamentais em prol dos sucessores demoníacos, o que
possibilitou, por exemplo, o desvio frente ao desafio apresentado por Shakespeare a
partir da escolha de Blake e a conseqüente opção por Milton retroativamente.
Aqui, uma voz que buscasse manter a ilusão de desvelamento unívoco via
ciência literária poderia afirmar que partir dos sucessores não invalida o método
analítico-crítico normalmente levado a cabo. Adiantaria destacar a maneira pela qual
optei conscientemente pelos autores não por sua exemplaridade e sim por sua
conveniência para a discussão a ser elaborada? Se mantivesse os deuses literários
como ponto de partida, seria difícil sustentar tal confissão, uma vez que o caráter
paradigmático de um Goethe é por demais evidente. Mas, fundando a discussão nos
demônios e em sua transgressão, abriu-se um leque considerável que atingiu os
próprios precursores (a troca de Shakespeare por Milton é emblemática).
Não se trata de emular, aqui, com outra matéria-prima, o Poe de The Poetic
Principle ou de The Philosophy of Composition”, mas a menção ao caráter,
poderíamos dizer, tendencioso da construção artística não é fortuito. Ao se assumir
poética (ou poiética, conforme dito), a tese assume os riscos e as potencialidades
do discurso literário, devendo, assim, ter sua composição pensada como Obra. Ao
se estruturar de tal maneira, a tese passa a encarar não apenas a problemática de
sua escritura, mas de sua nova condição de marca textual passível de gerar
resíduos, capaz de sulcar indelevelmente o papel. Por isso, além dos procedimentos
324
de escitura, são de suma importância os procedimentos que garantem os preciosos
dejetos do discurso que se assume como aventura e processo, os procedimentos de
inscritura.
Procedimentos de inscritura: elementos paratextuais, formas de
citação e arquitetura da obra
O escrever como abstração é fundamental para que se pense o texto, de
modo que a escritura lança novas perspectivas para a utilização da palavra no
papel, independentemente de sua natureza teleológica. Porém, quando passamos à
esfera poética (sempre pensada como invenção), caímos naturalmente na questão
do valor e, portanto, do potencial de permanência canônica desse discurso-valor.
Neste ponto, a escritura passa a inscrição contra o Tempo, contra o Ser para a
Morte, torna-se inscritura, o que poderia ser entendido como um dos veículos da
idéia de literaridade. Portanto, os procedimentos de inscritura são aqueles que
destacam não somente a ficcionalização potencial de todo discurso verbal, mas,
também, de seus engajamentos poéticos, de sua própria invenção. Com sua
invenção, o texto não apenas se inventa, mas inventa seu público e mesmo sua
verdade, o que representa ao mesmo tempo o mais forte golpe na aspiração
cientificista dos estudos literários e sua principal possibilidade de redenção.
Nenhum elemento do texto escapa ao toque poético. Portanto, quaisquer
procedimentos de inscritura que optássemos por destacar seriam igualmente
ilustrativos. Podemos, desta feita, começar por elementos que nem sempre são
enfocados com a devida atenção e destacar o paratexto como um todo. Em Lúcifer,
eles são representados especialmente pela dedicatória, pelos títulos e pelas
epígrafes. A função paratextual, aqui, não se restringe a tornar o texto presente em
termos genettianos, garantindo sua receptividade por parte do leitor. De modo mais
profundo, os elementos paratextuais, adotando o leque de posibilidades que se abre
para o texto artístico, convidam o leitor a expandir a verdade que se deveria
apresentar por meio das leituras que se permitem. No caso da dedicatória, a
reprodução com uma pequena e fundamental alteração da famosa divisa mística
aponta para uma natureza potencialmente especulativa da discussão, destacando a
aventura que representa o ato de comunicar os saberes que se ousa querer. Os
325
títulos, por seu turno, com a clara paródia místico-religiosa cristã e católica,
dimensionam a perspectiva dogmática que embasa o texto, ecoando tal perspectiva
pela atmosfera que evoca, alterando por transbordamento semântico os elementos
em teoria apenas literários (mas que nunca seriam apenas isso, uma vez que o
gênio, em Literatura, é pensado a partir da relação transubjetiva do par Deus/Diabo).
No caso específico das relações no interior de cada literatura, a paródia de títulos ou
passagens importantes para a discussão estabelecida remete-nos sempre para a
transubjetividade discursiva, que é destacada nas epígrafes que sintetizam o
demonismo genial a partir das especificidades construídas em cada literatura. E,
pairando acima de todas as epígrafes, está a primeira, de Heráclito, fundamental
para as considerações finais de Lúcifer com relação à ética e, conforme se verá,
para o todo que a tese e esta antítese especificamente representam. Mas a
principal implicação de inscritura representada pelas epígrafes está ligada a um
outro procedimento: a forma de citação utilizada.
Citar, em um trabalho científico, representa, em teoria, o tributo que se paga à
tradição. Partindo do preceito de que nada provém do nada, todo discurso científico
deveria dialogar com a fortuna crítica e teórica precedente que tivesse tratado do
tema a ser estudado. Mas, na prática, as citações passam a ser a presença da voz
que é valor a referendar o texto-neófito, livrando-o do peso de buscar seu espaço
ao inventar seu público sozinho. Isso é sobretudo verificado na citação que reproduz
com extidão o texto citado, especialmente aquelas que surgem em recuo, com
destaque para o nome do autor. As citações em paráfrase, por seu turno, ao tornar
indistintos os limites entre o texto citado e o texto que cita, permitem mascarar a
pobreza de pensamento por meio da presença de argumentos já consagrados que,
por esse subterfúgio são falsamente re-enunciados. Citar, por um procedimento
poético, não significa mendigar autoridade, mas, sim, tornar o todo multivocal, e,
sendo a voz do texto sua própria escritura e inscritura, sua própria invenção, torná-lo
ricamente transubjetivo, em um processo do qual a voz do leitor obviamente
participa. Assim, essas vozes são incorporadas ao texto em verdadeira re-
enunciação, de modo que passam a responder e a obedecer às regras internas da
invenção específica que se manifesta. Por isso a preferência, ao contrário do que
me propus na antítese, pela citação direta em detrimento da paráfrase; visei sempre
a apropriação do discurso alheio como meu, alterando-o sutil mas decisivamente por
deslocamentos de contexto, como se sempre tivessem sido por mim enunciados.
326
Disso decorre a necessidade um olhar realmente cuidadoso para cada citação. Não
apenas para a mensagem verbal que elas comportam, mas para o nome do autor, a
página, o ano. Por isso não hesitei em utilizar citações nas considerações finais; o
processo se explica, exemplifica-se e se justifica do primeiro ao último caso. Que no
caso das citações a poética se sobrepôs à modelaridade de comentário é algo por
demais evidente para que se tente negar aqui.
Por fim um último procedimento de inscritura deve ser comentado. Trata-se
da própria estrutura de Lúcifer, sua arquitetura. Alguns números simbólicos
presidiram a distribuição dos capítulos e subcapítulos, tais como o dois, o três e o
cinco, e seus derivados. Mais do que preciosismo, tal procedimento buscou criar o
máximo de relações especulares possíveis, intento cuja motivação será
desenvolvida no capítulo seguinte desta antítese, “Filosofia da Literatura”. Apenas
como antecipação, lembremos que o capítulo “Marginália” constitui um espelho
paródico da própria tese, assim como esse “Quebrando as tábuas da Lei” torna-se o
espelho do espelho, configurando na materialidade do espaço textual o mais simples
e perfeito labirinto, o labirinto do reflexo que se olha.
Mas, a título de exemplo, se tomarmos o número três e aprofundarmos os
procedimentos de inscrição que dele decorrem, podemos lembrar a maneira como
sua relação com a trindade cristã-católica permite a contaminação do rito de benção
que preside à distribuição das literaturas inglesa, alemã e francesa. Todavia, não se
trata de um procedimento desprovido de conseqüências, e nem poderia ser
diferente. A justaposição de espelhos em termos de procedimentos de inscritura
arboresce constantemente o sentido, de modo que se percebe facilmente a
transposição paródica levada a cabo em outro nível. No capítulo feito “em nome do
Pai”, a estrutura reproduz a obra do “filho”, pois a bipartição ecoa a que encontramos
no poema Milton, de Bake. No capítulo que se faz em nome do Filho”, temos o
oposto, pois é a obra do “pai” que é espelhada no nível da estrutura, com as cinco
partes correspondentes à divisão de cada Faust de Goethe. Por fim, no capítulo
dedicado à emanação do poder e da benção, ao “Espírito Santo”, na ausência de um
“pai” e de “um filho”, reproduziu-se a estrutura ternária da escritura científica
francesa, tributo ao cartesianismo do pensamento, mas reencontro, ao fim, com o
Proclus neoplatônico fundamental na articulação textual do gênio demoníaco levada
a cabo.
327
Poderíamos acrescentar inúmeros outros exemplos, mas, parodiando
novamente Mallarmé, isso tiraria três quartos do prazer que o leitor poderia
encontrar ao descobrir por si só as camadas e relações que o texto apresenta. Mais
ainda: esgotar as possibilidades nesse sentido seria um pernicioso ato de pretensão
e egoísmo, pois negaria ao leitor justamente seu papel ativo como co-enunciador do
texto. Se a Obra inventa seu público, o público também inventa sua Obra. Diante de
tal dinamismo, o que concluir? Concluir, realmente, talvez nada, pois isso seria
ceder à ilusão do fechamento discursivo. Contudo, isso não significa de maneira
alguma que não se tenha nada a dizer. No fim, sempre temos novas considerações
a fazer.
Considerações finais e o fim das conclusões
No espaço reservado à conclusão de uma tese, espera-se que finalmente
tome espaço a criatividade através de sua manifestação por meio das opiniões do
autor. Espera-se, mas não é o que se verifica normalmente. Emparedados pelo
modus operandi em que se inserem, esses pretensos autores tendem a reafirmar
sucintamente o que se procurou demonstrar através de longas páginas, de modo
que o ato de criação do leitor é novamente solapado por meio de um estreitamento
de suas possibilidades. O pouco que poderia ser oferecido é, novamente e de modo
decisivo, tomado: tem-se não o óbvio de uma verdade, mas a verdade do óbvio.
Tudo isso visando a facilidade do molde, não a renovação da fórmula pelo ato de
criação, mas a sua reiteração mumificadora, apontando para uma eternidade que se
realizaria no paradoxo da imobilidade esvaziada da morte.
Daí a proposta de assumir o o caráter definitivo de “conclusão”, mas a
abertura dialógica das “Considerações finais”. Ao escolher tal expressão, mantenho
em aberto a possibilidade de que o leitor acrescente algo, considerando a forma de
apresentação. Além disso, pelo modelo adotado, se pensarmos em modelar como
exemplar, é induzido, aqui, o modelo do texto em constante expansão potencial: não
me furto ao conclusivo para que outro o faça, mas aponto, antes, para que outra voz
assuma o texto e, com isso, expanda-o de modo a permitir que outras vozes o façam
também. Evidentemente, poderíamos pensar em um “dogma do concluso”, o que
sempre seria uma possibilidade. Mas, nesse caso, o sectarismo de método
328
pressupõe um monadismo auto-sustentado do texto a ser feito, e cabe ao leitor-
escritor criar meios para tanto, bem como arcar com as consequências desse
fechamento à expansão.
Como a proposta, aqui, foi a de permitir o diálogo, a re-assimilação do
exposto anteriormente o se propõe sob a forma de resumo ordenador; ao menos
não apenas como tal. Partindo da desculpa” do texto que as precede, essas
considerações apontam, antes, para a manutenção do movimento expansivo,
preferindo, ao arremate unificador, a abertura progressiva. Fazendo isso, a tese
suspende sua locução a cada ato de leitura por uma justificativa-demonstração de
suas possibilidades através de seu corpo, sua própria manifestação apontando para
a perspectiva de uma alteração criativa da leitura feito escritura, não apenas por
meio das “Considerações finais” que fazem isso com tudo que as precede, mas
também pelo fato de que essas considerações, na realidade seqüencial da obra,
serão ainda postas em questão pela “Coda” que garante a esse momento do texto
seu caráter privilegiado: escritura da leitura com relação à tese, leitura da escritura
com relação à coda. E tudo isso por meio de procedimentos de inscritura que
estabelecem um jogo especular entre a forma e o conteúdo, duplicando a
demonstratio, o que permite ir além das possibilidades do academicismo e,
especialmente, do cientificismo, sem “danos”.
A utilização das passagens de letra dos Rolling Stones é um exemplo prático
de como podemos perfeitamente ir além das possibilidades de um texto acadêmico
crítico ou teórico e, ainda assim, chegar às mesmas possibilidades a que
aspirávamos desde o início. Afinal, a passagem destacada no quarto subtítulo do
capítulo dedicado ao gênio alemão entra novamente na própria tessitura textual das
“Considerações finais”, ainda que evocado na continuação da letra da canção por
meio de outras passagens, de modo a mascarar sua presença, mas o tanto.
Passagens como equivale a pedir para se apresentar, sem, no entanto, realmente
pedir”, “o prazer que se pode ter no encontro com o outro, no reconhecer-se
equivale, aqui, à esperança de que se adivinhe o próprio nome, entendido, aqui,
como ethos textual”, ou, ainda, “o que nos intriga e confunde é precisamente a
natureza do jogo”, tornando as citações parte do contexto argumentativo, o, aqui,
muito mais do que vazão lúdica frente à aridez possível do discurso utilizado,
pensado, claro, em termos de especialização e aplicação. Tal procedimento é,
antes, uma mostra das possibilidades de uma escritura da leitura em termos
329
realmente poiéticos, de modo a permitir, por sua natureza, a utilização de “recursos
proibidos” não apenas para promover sua expansão e a deles, mas (e isso deve ser
realmente destacado) também porque, fundamentado em seus dogmemas,
quaisquer interdições que pudessem ser vislumbradas revelam-se não-atuantes.
Mas, aproveitando o ensejo, é bom destacar que o outro sentido da reflexão também
é válido: pelos mesmos motivos, toda leitura e, assim, toda escritura, apresentam-
se como possibilidades. Seus limites, se esses passam a existir, estão ligados à
logopoíesis da mão que cria, dependem dos outros limites, estes míticos e místicos,
autodefinidos nas possibilidades de demiurgia do criador. E, claro, encontram sua
pertinência nas leis internas dessa criação a partir do ato que faz da escritura
inscrição de um código capaz de regrar e regular o criado. No caso específico de
meu texto, a assimilação das citações visava a consubstanciação das propostas da
temática de acordo com um procedimento que pudesse, aos olhos externos à
logopoíesis do texto, reproduzir tanto a transgressão quanto a subversão que são
propostas pelo paradigma diabólico adotado. Assimilar uma canção de rock como
discurso de transubjetivação textual, fazer com que a palavra seja não apenas re-
enunciada, mas que ela realmente mude seu estatuto por meio de sua manutenção
em essência justamente por sua adulteração enquanto realidade textual discernível:
o inverso da citação acadêmica.
Por fim, cabe aqui um último ato que, ainda que não se caracterize como um
mea culpa, faz ainda parte do confiteor: o próprio texto que desnuda o qusnu próí
330
FILOSOFIA DA LITERATURA
A reflexão conduz o homem à verdade?
Pressuponho, é claro, um cérebro cido e
exercitado. Sem isto, pensar é como fazer
avançar um carro sem governo: sempre
desastroso o resultado. Mas, ainda que eu
possua o instrumento e o tenha provido de
ciência, estarei a salvo do erro? Não. Se
imagino, entretanto, nunca me engano: o
imaginário é autônomo e plana sobre as
mudanças. Para Anaximandro de Mileto, o vento,
encerrado numa nuvem como o vinho num odre,
rompe-a com violência durante a tempestade e
este rompimento é que produz o relâmpago e o
trovão. O raciocínio de Anaximandro leva-o a
este absurdo. Mas o absurdo deixa de existir se
saliento a real natureza da hipótese.
Concentrando no problema a sua mente ágil e
poderosa, colheu o pensador milésio, certo de
ouvir outras vozes, uma resposta da imaginação
e tão duradoura que não nos custa aceitar, ainda
hoje, grandes sementes de ar rompendo as
nuvens, com estrondos e clarões.
Osman Lins, A rainha dos cárceres da Grécia
“Especular” e refletir” são idéias irmãs. Ambas provêm de um princípio de
reprodutibilidade de um objeto de atenção. O jogo de espelhos, a mise-en-abyme do
pensamento que arboresce a intelecção humana frente ao mundo. A apreensão dos
recortes elucidativos da existência. Apreender o aprender, na mesma medida em
que se aprende a apreender, é um justo tributo ao espelho mental no qual o intelecto
comemora suas potencialidades. O velho jogo de espelhos que, não obstante, ainda
é capaz de realizar com assombro o impossível: reproduzir o infinito.
Infinito, o reproduzir tece possibilidades advindas de um fato inescapável: a
impossibilidade da cópia perfeita. No caso dos recortes intelectuais do mundo, o que
se são imagens distorcidas que ora aumentam, ora diminuem a perspectiva dos
331
fatos e dos feitos. Contudo, neste singular defeito encontra-se a pedra angular de
suas próprias perspectivas, o arborescer do feito pelo refeito, a refacção do perfeito,
a recuperação etimológica do todo realizado. Tal fato se permite por meio da mais
antiga metáfora direta da reprodução exata e equívoca, da perfeição invertida; o
espelho. E, do espelho, partem as duas idéias irmãs: “refletir” e “especular”.
E, como nas mais míticas percepções da irmandade, um dos lados assume a
posição referendada do “Eu”, ao passo que o lado restante toma os ares interditos
do “Outro”. Receosos da esquizofrenia, permitimo-nos, freqüentemente, considerar a
alteridade com cautela, sem, contudo, aceitá-la. Disso provem nosso apreço pela
reflexão em detrimento da especulação. Na suprema coerência da incoerência
essencial do ser humano, um dos lados da moeda é inserido arquetipicamente na
órbita do sim, na mesma medida em que o outro gravita em torno do não. A moeda,
por sua vez, o todo conciliado, suplementar na complementaridade, é relegada ao
vácuo do não-dito, do não-pensado, abolida tanto da esfera da especulação quanto
da reflexão. Proibida de se olhar no espelho.
Mas, se não apenas a ela, mas a todos nós, fosse permitido olhar para o
espelho, teríamos ainda a permissão adicional, a temerária, a perigosa? Teríamos a
permissão de sonhar com esse mundo de Alice, cujas regras pudessem ser até
mesmo invertidas, segundo uma lógica tão igualmente invertida que, aos nossos
olhos direitos, o esquerdo parecesse absolutamente alheio ao gêmeo que o define
ao definir-se a partir do reflexo? E, podendo, ousaríamos fazê-lo?
Esse tipo de desafio desconfortável é o que se apresenta diante de todo
aquele que ousar entrar no fenômeno literário a partir de uma via especulativa.
Como se buscasse emergir uma Atlândida precedente a toda Teoria e toda Crítica
literárias, assumiria não o caráter antediluviano do precursor esquecido, mas, antes,
do excêntrico que aponta para o louco marginal que não tem espaço no universo da
norma, normal e normativo.
Mas, por outro lado, o quadro seria encarado de modo diverso se considerado
sob a perspectiva de uma Filosofia da Literatura. E, para tanto, nem mesmo
precisaríamos utilizar o subterfúgio do dogmatismo literário, uma vez que o filosofar,
a despeito do engessamento reducionista que também o assola atualmente nos
meios acadêmicos, contém em si tanto a reflexão quanto a especulação, e a
verdade a ser buscada é sempre uma projeção da verdade, seja por sua natureza
programática e teleológica, seja por representar a projeção das verdades que
332
sustentam e são criadas e defendidas pelo intelecto do filósofo. Nos territórios
movediços da idéia, seja através de Platão e de seu mito de Er, seja através da
pseudociência frenológica em Schopenhauer, sem nem mesmo lembrarmos das
nuvens prenhes de som e fúria pensadas em Mileto, há, sim, espaço para a
especulação, e isso, longe de constituir um dano à verdade, significa uma expansão
da mesma, apoiada nas forças da imaginação humana, a correção da natureza, a
poíesis da mímesis. E a busca da verdade, em termos de Filosofia, Literatura ou
mesmo Filosofia da Literatura, o constitui uma eterna repetição através dos
tempos em função das idiossincrasias dos buscadores, em função da marca pessoal
que cada um deles imprimiu na abstração da Verdade, em função da invenção de
cada um dessa verdade.
Assim, não devemos temer o questionar. Não falo, aqui, do questionar do
Outro, sempre fácil, mas do questionar do Eu, entendido como um questionamento
dos valores que nos compõem, que nos sustentam, que fazem de cada um de nós
aquilo que somos. Não se trata de algo fácil, uma vez que colocar em questão
nossas verdades, em um primeiro momento, parece nos ameaçar eticamente. Nada
mais distante dessa verdade particular. Questionar o ethos, em um ser pensante, é
também corroborá-lo, fazê-lo valer pelo que é.
E isso, na aplicação direta na Literatura, leva-nos a repensar nossa relação
com a mesma, atingindo a nossa percepção sensível do fenômeno literário, nossa
visão particular de suas possíveis estruturas e leis, e, ainda, nosso próprio
pensamento a respeito dessa forma de arte. Por isso, se nos arriscamos nessa via,
se embarcamos na aventura que ela representa, devemos estar preparados para
passar por diversos reflexos de nosso Eu antes de chegarmos de volta ao ponto de
partida, justamente esse Eu, a aspiração inicial do reflexo, do speculum. Em outras
palavras, pensando em um recorte mínimo, teríamos, diante de nós, ao menos
quatro esferas a serem percorridas: a estética, a poética, a teorética e a ética. A
elas, portanto.
Estética
Se a Estética como domínio filosófico é herança de Alexander Baumgarten e
de seu sonho de racionalização científica do Belo, nossa visão atual deve muito à
333
imterpretação kantiana da idéia. E isso não se dá sem razão, uma vez que o
pensamento de Kant articula o sensível com a capacidade e a possibilidade da
representação. Ao fazê-lo, Kant estabelece um laço capaz de ligar de modo
poderoso a Estética ao fenômeno literário. Claro, poderíamos afirmar, “também ao
literário”, uma vez que o desafio da representação estende-se às outras artes;
porém, se pensarmos a Vorstellung como uma reproblematização da mímesis, então
podemos perfeitamente circunscrevê-la em uma tradição filosófica fortemente
relacionada com a Literatura.
E aqui, independentemente da tradição filosófica posterior (que, em certa
medida, pensou sob a sombra de Kant e sua estética transcendental), encontramos
a articulação-chave para a especulação estética em Literatura, realmente. Não basta
pensarmos na esfera do sensível, tampouco da representação, mas também da
representação do sensível e, mais importante, a sensibilidade frente a essa
representação, o que não corresponde, em termos identitários, com a sensibilidade
inicial que gera a representação.
É de suma importância que se destaque esse circuito fechado do sensível,
pois, ao fazê-lo, podemos ter em mente que, a despeito da suposta sensibilidade em
forma pura kantiana (desconhecida em sua origem, por sinal), o princípio do sensível
depende da idiossincrasia daquele que sente. Quando estendemos essa
particularidade à idéia de Belo, fundamental na reflexão e na especulação artísticas,
então percebemos como o terreno pode se tornar movediço, sobretudo quando
aproximamos a idéia de Belo de uma outra idéia que lhe é correlata, em termos de
pensamento estético, desde seu surgimento em Baumgartem: o gosto. A zombaria
de Wittgenstein a esse respeito, reforçando a impossibilidade de uma objetivação do
gosto, indica o sentido que podemos seguir para pensar nas ramificações
decorrentes do problema. Sendo impossível objetivar o gosto, seria realmente
possível objetivar conceitos e reflexões decorrentes desta idiossincrasia? E, se tais
conceitos e reflexões deles decorrentes forem essenciais para a percepção estética
da Literatura, como repensar as “verdades” que derivamos do processo?
Um primeiro elemento a ser levado em conta neste recorte específico é a
idéia de Belo. A beleza, em termos de classe de palavra, é um substantivo abstrato,
caracterizando-se, a partir de tal classificação, por depender de uma visão particular
para ter existência conceitual. Todavia, no discurso artístico (sem que se lembre
que, antes de ser “artístico”, é “discurso”, com suas sutilezas de construção),
334
encontramos o termo “Belo” utilizado como se fosse uma categoria apriorística
capaz de servir de base para o pensamento sobre a arte, em geral, e a Literatura,
em particular. Mas o Belo, tal como denuncia sua catalogação nas classes de
palavras, é uma abstração, não apenas inquantificável, mas, em última instância,
indefinível em termos práticos. Se ligarmos a idéia de Belo à de Sublime, e
recuarmos o conceito até sua roupagem longiniana, poderíamos pensá-lo a partir de
uma generalização na qual o Belo (como o Sublime), seria aquilo que agradasse a
todos em todos os momentos. Mas isso esbarraria logo nas dificuldades da diacronia
e da diatopia, de modo que não poderíamos pensar em nada que fosse belo em
toda parte e em todo tempo, especialmente porque semelhante juízo dependeria da
anulação das diferenças de percepção dos objetos do juízo a serem ou não
considerados belos (e bastaria pensarmos nas diferenças de percepção de uma
nevasca entre um morador do Alasca e outro da Libéria para termos uma idéia da
variabilidade perceptiva nesse sentido). Assim, o Belo continua a corroborar o clichê,
preso nos olhos de quem vê, tornando realmente problemática sua utlização na
reflexão literária.
Poderíamos contornar o problema fugindo da variação de tempo e espaço,
propondo um recorte preciso. Mesmo a principal objeção a esta proposta (a
consciência de que, na mesma época e no mesmo lugar podemos encontrar
indivíduos com percepções fortemente diversas), poderia ser, a princípio, superada
com mais um recorte. Assim, um determinado Eu, em um determinado momento e
preso a um determinado contexto, teria uma visão do Belo que poderia ser
apreendida. Até isso poderia ser questionado, uma vez que tal apreensão deve
passar pela interpretação de outros indivíduos, o que nos relança no problema, mas
o mais importante a ser depreendido de tal fato é que o Belo, aliando-se ao
idiossincrático, atinge a esfera do valor.
E seria o valor comunicável e, partir disso, passível de reflexão? Se o Belo
pode ser a aspiração da busca intelectual humana desde Platão, ele configura-se
como valor, e sua natureza cambiante transborda sobre os juízos valorativos.
Considerar algo “bom” ou “ruimdepende de um universo de particularidades que
não apenas variam de um indivíduo para outro (sequer lembremos da questão do
tempo e do espaço por si), mas que podem variar em um mesmo indivíduo em
circunstâncias específicas. Podemos derivar disso algo que atenda aos requisitos da
cientificidade? Evidentemente, a resposta depende do que consideramos ciência,
335
uma vez que a especulação pode trabalhar em cima de tais imprecisões
trascendendo suas dificuldades iniciais. Desse modo, a aliança da reflexão e de sua
idéia-irmã abrem possibilidades não apenas como alternativa à idéia de
cientificidade tradicional, mas mesmo como expansão do pensamento centífico
considerado estritamente.
No caso da Literatura, ter a esfera estética considerada nesses termos,
pensando-a a partir do Belo e do valor dele depreendido, remete-nos ao cerne inicial
de toda reflexão e especulação a respeito do fenômeno literário, uma vez que o
valor (assim como seus avatares mais recorrentes, como, no caso, o gênio)
corresponde à própria literaridade, outro conceito inquantificável e impreciso. Aqui,
se aceitarmos a linha de pensamento que se desenrola, encontraríamos uma
conclusão no mínimo problemática: a própria existência da Literatura estaria
condicionada à idiossincrasia dos indivíduos que a esse respeito pensassem. Mas,
se colocamos a existência da Literatura como possibilidade, uma visão possível é
justamente a de que a Literatura não existe. Para aquele que se propõe a pensá-la,
ao configurá-la como elemento de pensamento, ela passa, evidentemente, a ser,
ainda que em nível puramente intelectual. Contudo, se nos propomos a pensá-la e a
comunicar esse pensamento, então devemos considerá-la necessariamente em
termos que não sejam absolutamente idiossincráticos, de modo que possa haver a
comunicação. Portanto, necessitamos de elementos discerníveis que possam ser
compartilhados por todos os que se colocam no discurso geral sobre a Literatura, e
disto decorre a necessidade de se pensar a esfera poética.
Poética
A Poética como campo filosófico é vista costumeiramente como algo que
nasce com Aristóteles e seu texto conhecido homonimamente. Mas tal
ancestralidade aristotélica, que é praticamente justificada pelas palavras que abrem
suas notas, “sobre a própria poética”, deve muito à visão pós-renascentista da obra
de Aristóteles e, sobretudo, à sistematização de seu pensamento pelo discurso
clássico francês, cujo grande propagandista é Boileau. A partir de tal visão, o termo
“poética” passa a ter realmente a possibilidade de interpretação como arte poética”
e, com isso, perde o caráter descritivo que era preponderante em Aristóteles e passa
336
a significar algo próximo de um conjunto de regras para o bem escrever, ou seja,
assume um caráter prescritivo. Seria necessário esperar até os alvoresceres dos
romantismos alemão e inglês para que tal herança fosse questionada em termos
decisivos.
Todavia, quando falamos em preponderância da descrição da natureza
literária (ainda que tenhamos basicamente, no caso de Aristóteles, comentários
sobre a tragédia), isso também quer dizer que mesmo no pensamento aristotélico
temos espaço para estabelecimentos de juízos de valor e de alguma prescrição
deles decorrentes, mesmo que seja via o exemplo da produção artística de Sófocles.
Isso mostra como o o pensador estagirita alinhava-se, apesar do ato emulador, na
tradição de seu mestre, Platão. No livro dez da República, verdadeiro pai textual da
reflexão literária no Ocidente, percebemos que a tradição da Poética como
pensamento a respeito da Literatura parte da problematização do valor dessa
Literatura tanto na esfera artística quanto na esfera política e, ao fim, ética. E, mais,
sabendo que a idéia de “poética” deriva do verbo poiein e de seu termo derivado
poíesis, soa como uma fina ironia que no texto platônico e também no aristotélico, a
idéia central seja a de mímesis. A Poética, para nós, é, na verdade, uma Mimética.
Ter em mente a idéia de uma Mimética é importante não apenas por colocar
no âmago do pensamento artístico a problemática da representação, mas,
sobretudo, para nos mostrar que pensar a Literatura a partir de sua esfera poética
afasta-se tanto da questão valorativa quanto da questão normativa que atuavam no
questionamento da representação literária seja em Platão, seja em Aristóteles.
Pensar a Literatura poeticamente é pensá-la a partir de sua invenção. Aqui, assume
papel de destaque o romantismo alemão e seus pensadores-poetas dentre os quais
merecem menção Novalis e os irmãos Schlegel. Permeados, filosoficamente, pelas
visões de Fichte e Schelling (sem escapar da antiga sombra de Kant), e tendo
sempre presente a ambígua influência literária de Goethe, esses homens souberam
pensar dialogicamente o ato artístico e o ato filosófico de modo a obter uma visão ao
mesmo tempo simples e revolucionária: a crítica da poesia deve ser uma crítica
poética. Não se trata, obviamente, de uma crítica “lírica” ou subjetiva, tampouco
“poesia”, aqui, deve ser entendida como “poema”. Reformulando a proposição,
poderíamos afirmar que apenas a invenção pode pensar a invenção.
Todavia, o fato de esses autores do romantismo alemão terem sido realmente
poetas (não necessariamente como autores de poemas, mas como inventores cuja
337
matéria-prima foi a palavra), poderia nos conduzir ao erro inicial por uma confusão
de causa e efeito com relação à criação literária e sua aplicação no ato crítico. Ela
não se faz como poesia e, assim, adquire o direito à crítica. A invenção, aplicada a
outra invenção, arboresce o diálogo e gera suplementaridade, ampliando o corpus
da Literatura, permitindo que se veja o literário onde antes não se via e, assim,
conferindo à crítica poética tal estatuto. Que tal processo pode ser proposto na via
inversa não dúvida, mas, antes de falar a respeito disso, é necessário destacar
algo mais com relação à esfera propriamente poética da reflexão e da especulação
literárias.
O ato poético é idiossincrático por natureza e excelência, uma vez que propõe
o novo em sua radicalidade, mesmo quando dialoga com a tradição e trabalha temas
recorrentes. Ao fazê-lo, torna-se automaticamente irredutível a toda sistematização e
a todo estabelecimento de regras precedentes e externas. Como por um ato mágico,
a complementação de uma obra de arte cria a súmula de suas leis; em Literatura, o
momento em que o rascunho passa a Obra representa essa epifania autocentrada e
aponta os caminhos a serem percorridos por todos aqueles que pretendam desvelar
os segredos do poema, da narrativa ou da peça de teatro. Torna-se necessário,
pois, um exercício de escuta, um esforço de sensibilidade para se colocar dentro do
fenômeno poético em toda sua particularidade e dexá-lo falar. E, ao ouvir a voz da
poesia, em toda a exuberância de sua invenção, não devemos pensar em termos de
“certo” ou “errado” (postura que sempre parte de uma normatização anterior), mas
em termos de uma possibilidade de dicção plenamente justificada no micro-universo
que ela representa. Pode parecer óbvia tal postura depois que tanto foi, ao menos
na aparência, desmistificado no âmbito da ciência literária, mas a existência de
juízos e afirmações que referendam alguns autores e desautorizam outros mostra
que o óbvio raramente corresponde ao fácil, ou ao menos ao desejável.
Que corremos o risco de anular a própria idéia de Literatura ao conferir
potencialmente o estatuto de Arte a todo ato de elocução que se pretenda poético é
não só verdade como a possibilidade concreta dessa anulação não é nenhum
disparate, por mais que nos doa admiti-lo. Mas uma verdadeira Poética deve
reposicionar o fenômeno literário a partir do diálogo criativo desviante, portanto
que representa, colocando-o em crise. Ao fazê-lo, percebemos que não apenas a
verdadeira Poética corresponde a uma crítica, mas toda verdadeira Crítica
corresponde a uma poética. Assim, a Poética permite que transcendamos o papel da
338
Crítica, habitualmente subordinada ao juízo de valor no interior do qual se situa: ela
passa de discurso de valor para discurso-valor, adquirindo justificativa em si mesma
e tornando-se independente de quaisquer fatores externos. Apenas mantém
relações com o fenômeno literário, não porque esse seja um f 0 Td(d)Tj6.37228Tj5.65082 0 Td(t)Tj Td(o)Tj6.3722 0 Td( )Tj3.84737 0 Td(q714 0 Td( )Tj8.77681 0 Td(e)Tj6.13174 0 Td(m)Tj9.49082 0 Td(79j Td(o)Tj6.d(é)Tj6.25197 0 Td(r)Tj3.72714 0 Td(n)Tj6.25197 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td( )Tj3.84737 0-19.44 Td(r)TjE.13174 0 Td(x)Tj5.65082 0 Td(t)Tj3.36082 0 Td(o)Tj6.1322 0 Td(p)Tj6.25197 0 Td(e)Tj6.25082 0 Td(o)Tj6.13483 0 Td(o)Tj6.13174 0 Td(n)Tj6.3722 0 Td(o)Tj6.13174 0 Td(l)Tj2.52483 0 Td(o)Tj6.37;)Tj6.d(é)Tj6.25 05 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td( )Tj-427.058 5.891280 Td(q714 0 Td( )Tj8.77197 0 Td(l)Tj2.52483 0 Td(a)Tj6.3722 0 Tdd(ç)Tj5.65082 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(o)Tj6.3722 0 Tdd(o)Tj6.37599 0 Td( )Tj3.72714 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td( )Tj8.41105 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td( )Tj8.53635 05.891280 Td(qú97 0 Td(l)Tj2.52483 0 Td(a)Tj6.37599 0 Td(i)Tj2.52483 0 Td(f)Tj3.24819 0 Td( )Tj8.17174 0 Td( )Tj8.41612 0 Td(e)Tj6.25082 0 Td(a)Tj6.13174 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td(-)Tj3.72622 0 Td( )Tj8.41612 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td(m)Tj9.49 82 0 Td(o)Tj6.13483 0 Td(o)Tj6.13197 0 Td(t)Tj3.24622 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td( )Tj8.65714 0 Td( )Tj8.77197 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td(n)Tj6.37599 0 Td( )Tj3.72714 0 Td(e)Tj6.25p2 0 Td(o)Tj6.13174 0 Td(i)Tj2.4046 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td(q)Tj6.37635 05.891280 Td(q197 0 Td( )Tj-427.058 5.d(e)Tj6.25C66 0 Td(f 0 Td(d714 0 Td(í)Tj3.24622 0 Td(t)Tj3.12599 0 Td(i)Tj2.52483 0 Td(c)Tj5.65082 0 Td(a)Tj6.13174 0 Td( )Tj-427.058 5.d(e)Tj6.25197 0 Td(a)Tj6.3722 0 Tdd(s)Tj5.65082 0 Td( )Tj8.41105 0 Td(a)Tj6.13174 0 Td( )Tj-427.058 5.d(e)Tj6.25194 0 Td(n)Tj6.25.058 5.d(e)Tj6.25082 0 Td(e)Tj6.3722 0 Td(j)Tj2.52714 0 Td(s)Tj5.65737 0-19.44 Td(r)3j5.65L74 0 Td( )Tj8.41483 0 Td(t)Tj3.12599 0 Td(u)Tj6.3722 0 Td(j)Tj2.52714 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td(d)Tj6.37622 0 Td(u)Tj6.25197 0 Td(a)Tj6.25714 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td( )Tj8.41622 0 Td( )Tj8.65658 0-50.(n)2d(r)TjE.13714 0 .3703)Tj7.5745 0 Td(p)Tj6.25082 0 Td( )Tj8.41105 0 Td(a)Tj6.13483 0 Td(f)Tj3.24819 0 Td(e)Tj6.25622 0 Td( )Tj8.41612 0Td(a)Tj6.25197 0 Td(i)Tj2.40612 0Td4924)Tj2.4046 0 Td(t)Tj3.24197 0 Td(e)Tj6.37197 0 Td(m)Tj9.49483 0 Td(f)Tj3.24197 0 Td(i)Tj2.40612 0Td(e)6)Tj3.24197 0 Td(e)Tj6.3722 0 Tdd(i)Tj2.40612 0Td4924)Tj2.40P5 0 Td(p)Tj6.25174 0 Td(i)Tj2.40197 0 Td(m)Tj9.49599 0 Td(i)Tj2.52483 0 Td(c)Tj5.65082 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td( )Tj-427.058 Td(a)Tj6.25g058 Td(a)Tj6.25174 0 Td(r)Tj3.84737 0 Td(n)Tj6.25197 0 Td(i)Tj2.40612 0Td(e)6)Tj3.24174 0 Td(r)Tj3.72819 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td( )Tj-427.058 Td4924)Tj2.40l6 0 Td(t)Tj3.24483 0 Td(t)Tj3.12599 0 Td(u)Tj6.3722 0 Td(j)Tj2.52714 0 Td(n)Tj6.25197 0 Td(i)Tj2.40714 0 Td(i)Tj2.52483 0 Td(o)Tj6.13197 0 Td(e)Tj6.3722 0 Td(d)Tj6.13174 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td( )Tj8.41612 0Td(a)Tj6.25174 0 Td(m)Tj9.49819 0 Td( )Tj8.17566 0Td4924e ari m oma79j Td(o)Tj6.d(é)Tj6.2522 0 Td(d)Tj6.13197 0 Td(t)Tj3.12599 0 Td(é)Tj6.25197 0 Td( )Tj8.41612 0-19.44 Td(p)Tj6.13174 0 Td(a)Tj6.25714 0 Td(n)Tj6.25174 0 Td(i)Tj2.40g97 0 Td(i)Tj2.40714 0 Td(e)Tj6.13174 0 Td(s)Tj5.65082 0 Td( )Tj8.77082 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td(o)Tj6.3722 0 Tdd(o)Tj6.37622 0 Td( )Tj8.65658 0 Td( )Tj8.65Q66 0 Td(m)Tj9.4922 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td(i)Tj2.40197 0 Td(d)Tj6.25197 0 Td(e)Tj6.3722 0 Td( )Tj3.84737 0 T7228Tj5.650p2 0 Td(o)Tj6.13174 0 Td(n)Tj6.25197 0 Td(t)Tj3.24105 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td( )Tj3.72819 0 Td( )Tj8.17174 0 Td( )Tj8.41082 0 Td(q)Tj6.37635 03.48668Tj6.25197 0 Td(o)Tj6.3722 0 Td(-)Tj3.72658 0 Td( )Tj8.65819 0 Td( )Tj8.17174 0 Td( )Tj3.72819 0 Td( )Tj8.17174 0 Td(n)Tj6.25197 0 Td(t)Tj3.24622 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td( )Tj3.72714 0 T7228Tj5.650z82 0 Td(e)Tj6.3722 0 Tdd(i)Tj2.40714 0 Td(e)Tj6.13197 0 Td( )Tj3.72714 0 T7228Tj5.650197 0 Td(e)Tj6.3722 0 Tdd( )Tj3.72714 0 Td(e)Tj6.25483 0 Td(i)Tj2.4046 0 Tdd(t)Tj3.12599 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(r)Tj3.72714 0 Td(á)Tj6.3722 0 Tdd(i)Tj2.40714 0 Td(i)Tj2.52483 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td(r)Tj3.72714 0 T7228Tj5.650–97 0 Td(r)Tj3.72714 0 T7228Tj5.65022 0 Tdd( )Tj3.72714 0 Td(e)Tj6.25819 0 Td( )Tj8.17174 0 Td( )Tj3.72819 0 Td(e)Tj6.25194 0 Td(s)Tj2.40197 0 Td(d)Tj6.25622 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td( )Tj3.72714 0 T7228Tj5.650197 0 Td(m)Tj9.49819 0 Td( )Tj3.60691 0 Td(e)Tj6.2522 0 Td(u1)Tj6.25197 0 Td(e)Tj6.3722 0 Td( )Tj3.60691 0 Td(e)Tj6.25197 0 T( )Tj-427.058 -19.44 Td(p)Tj6.13714 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td( )Tj8.41082 0 Td(c)Tj5.77105 0 Td(u)Tj6.13174 0 Td(n)Tj6.3722 0 Td(o)Tj6.13h97 0 Td(o)Tj6.3722 0 Td(-)Tj3.72658 04.9294aisa ia
339
apenas com a tragédia mais famosa de Shakespeare. muito de crítica do teatro
tanto em Eurípides quanto em Samuel Beckett; da narrativa tanto em Homero
quanto em James Joyce; do poema, seja em Horácio ou em T. S. Eliot. Para
pensarmos em termos mais atuais, basta que lembremos de um artista como Peter
Handke. Ao problematizar quase até à anulação o fenômeno teatral como um todo,
Handke realiza, de dent6.3722 0 Td( )Tj-427.0587 Td(c)Tj5.65082 0 T082 0 Td(t)Tj3.12599 0 Tj5.65082 0 819 0 Td(b)Tj6.13174 0 Td(z)Tj5.657105 0 Td( )Tj3.9197 0 Td(e)Tj6.2737 0 Td(d)Tj6.25x83 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(n)Tj6.3722 0 Td(b)Tj6.135197 0 Td( )Tj3.9745 0 Td(u)Tj6.25197 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(t)Tj3.24197 0 Td(t)Tj3.244622 0 Td(i)Tj2.4046 0 TTd(n)Tj6.3722 0 Td(r)Tj3.72714 0 Td(r)Tj3.84105 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td( )Tj3.72714 0 TTd(b)Tj6.3722 0 Td(a)Tj6.25714 0 Td(í)Tj3.12714 0 TTd(b)Tj6.3819 0 Td(u)Tj6.13174 0 Td(n)Tj6.13174 0 Td(t)Tj3.24622 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td( )Tj6.61266 0 Td(d)Tj6.13174 0 Td(r)Tj3.72714 0 Td(r)Tj3.844737 0 Td(a)Tj6.3722 0 TTd( )Tj3.9676 0 Td(t)Tj3.24197 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td( )Tj3.844737 0 Td(a)Tj6.3174 0 Td(J)Tj5.65082 0 Td(a)Tj6.25á97 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(n)Tj6.25197 0 Td(t)Tj3.244622 0 Td(i)Tj2.4046 0 Td(r)Tj3.84105 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(l)Tj2.52483 0 Td(e6Tj3.24197 0 Td(e)Tj6.25q676 0 Td(a)Tj6.3722 0 Td(n)Tj6.25676 0 Td(d)Tj6.25197 Td(r)Tj3.72714 0 046 0 TTd(n)Tj6.3722 0 TTd( )Tj3.9197 0 Td(k)Tj5.65082 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(í)Tj3.12714 0 TTd(b)Tj6.34622 0 Td(i)Tj2.4722 0 Td(n)Tj6.25197 0 Td(l)Tj2.52046 0 TTd(n)Tj6.3483 0 Td(a)Tj6.25197 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td(d)Tj6.3722 0 T48668Tj3.84737 0 Td(d)Tj6.25197 0 Td(r)Tj3.84737 0 TTd( )Tj3.9676 0 Td(c)Tj5.77197 0 Td(e)Tj6.25197 0 TTd( )Tj3.9197 0 Td(r)Tj3.72714 0 Td(r)Tj3.84722 0 TTd( )Tj3.95197 0 Td(d)Tj6.3722 0 TTd( )Tj3.9599 0 Td(i)Tj2.52197 0 Td(t)Tj3.245197 0 Td(g)Tj6.35197 0 Td(i)Tj2.4046 0 TTd( )Tj3.9599 0 Td(o)Tj6.2714 0 Td(r)Tj3.84722 0 TTd( )Tj3.95197 0 Td( )Tj3.9676 0 Td(c)Tj5.65197 0 Td(d)Tj6.25197 0 Td(i)Tj2.52ç37 0 TTd( )Tj3.9197 0 Td(ç)Tj5.65082 0 TTd(n)Tj6.3722 0 T60691Tj6.25197 0 Td( )Tj6.61266 0 Td(t)Tj3.12599 0 d(r)Tj3.72714 0 Td(r)Tj3.84722 0 TTd( )Tj3.9622 0 Td( )Tj6.13174 0 Td(r)Tj3.84722 0 TTd( )Tj3.95082 0 Td(e)Tj6.3722 0 Td(n)Tj6.25599 0 Td(i)Tj2.52483 0 Td(s)Tj5.65197 0 Td(d)Tj6.255197 0 Td( )Tj3.9197 0 Td(t)Tj3.244622 0 Td(i)Tj2.4046 0 Td(r)Tj3.84676 0 Td(c)Tj5.65105 0 Td(e)Tj6.25197 0 TTd( )Tj3.92599 0 Td( )Tj3.722 0 TTd( )Tj3.9197 0 Td(k)Tj5.65x83 0 Td(a)Tj6.2514.84 Tm(a)Tj6.1819 0 Td(b)Tj6.13174 0 Td(r)Tj3.72599 0 Td(i)Tj2.52599 0 Td(i)Tj2.52197 0 Td(ç)Tj5.65082 0 Td(ã)Tj6.25197 0 TTd( )Tj3.9“97 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(q)Tj6.13174 0 Td(n)Tj6.3722 0 TTd( )Tj3.95197 0 Td(i)Tj2.4046 0 Td(n)Tj6.3197 0 Td(e)Tj6.25197 0 Td(n)Tj6.25197 0 Td(p)Tj6.13174 0 Td(r)Tj3.84”19 0 Td(b)Tj6.13722 0 Td(o)Tj6.25197 0 Td(,)Tj3.13722 0 3174 0 Td(n)Tj6.3599 0 Td(i)Tj2.525197 0 Td( )Tj3.9676 0 Td(c)Tj5.65197 0 Td(d)Tj6.25197 0 TTd( )Tj3.9714 0 Td(r)Tj3.84722 07.935a)Tj6.25197 0 Td(e)Tj6.2722 0 Td(p)Tj6.1737 0 Td(a)Tj6.2082 0 TTd(n)Tj6.3722 07.935arádemaeen rdm e cac moronido
340
Se pensamos a esfera teorética como aquela que privilegia de modo mais
intenso o pensamento, concluimos facilmente que a Teoria é o terreno mais propício
para a reflexão e a especulação em Literatura. o é sem motivo que diálogos dos
mais profícuos em termos literários ocorreram no âmbito teorético em um íntimo
diálogo com a Filosofia e, apenas para ficarmos com exemplos mais recentes e
consagrados, poderíamos lembrar dos nomes de Roland Barthes, Jacques Derrida e
do Harold Bloom da tetralogia da influência. No universo brasileiro (por vezes é fácil
e cômodo esquecer que esta minha reflexão se insere neste contexto específico
também), o inexplicável medo da Teoria, não como proposta de comentário a
respeito, mas como proposta de realização, não nos permite ver florescer muitas
iniciativas nesse sentido. Contudo, obras como a de Luiz Costa Lima são a prova de
que mesmo nestas paragens a identificação filosófica da Teoria é verificável (a
posição de Costa Lima como um verdadeiro interlocutor de Erich Auerbach, e a
conseguinte problematização fundamental e fundante da dialética da poíesis e da
mímesis apenas reforçam o exemplo).
Com isso, novamente caímos na questão da invenção. No fluxo das sutilezas
da deriva terminológica, em termos do discurso da Verdade, “invenção” não é uma
palavra completamente desprovida de negatividade. É preciso recuperá-la
totalmente, sem deixar de dessacralizar a outra, “verdade”. Percebendo tanto a
verdade da invenção quanto a invenção da verdade, podemos nos deslocar com
mais desenvoltura no âmago da invenção da própria Literatura, seu poder de
criação, a poíesis. Não perder isso de vista é fundamental para que se possa
articular todas esferas necessárias para uma Filosofia da Literatura, invenção de
invenção em myse-en-abyme, jogo de espelhos, como sempre.
Esse fechamento de circuito que se verifica desde o início aponta para uma
outra constatação importante, a da autonomia da Teoria. Na esfera teorética, a
reflexão e a especulação literária encontram sua maior liberdade de atuação, uma
vez que, ainda que não se perceba tal fato, o momento teorético, em termos de
poíesis, antecede imediatamente e se sobrepõe ao momento genesíaco da obra de
arte. A ilusão de uma atuação a posteriori da esfera teorética deve-se ao citado
complexo do qual padece a Teoria que, deste modo, sofre com a necessidade de
um lastro-verdade que poderia ser obtido através da observação e verificação
empíricas. Neste caso, não se trata sequer da necessidade de se refutar o
procedimento, uma vez que é o conceito que apresenta problemas. Não temos aqui
341
a Teoria. Tal procedimento de verificação, se ocorre, encontra-se próximo da esfera
da Poética e, se formos realmente proceder com o devido rigor, concluiremos que
ele, se não puder se construir como invenção, também não se constrói como Poética
e, conseqüentemente, tampouco como Crítica. Estaríamos, quando muito, na esfera
da paráfrase elaborada.
Enfim, trata-se de uma questão de posicionamento do teórico em
consonância com seus objetivos. Mas, é sempre importante lembrar que a esfera
teorética, se mantém sua autonomia com relação às demais para simplesmente ser,
para ser enquanto discurso deve se constituir como dinâmica dialógica, não
podendo deixar de levar em consideração seu Outro que, em termos de
procedimento, é a esfera da Poética-Crítica e, em termos de objetivo, é a obra de
arte. Que as três instâncias, como processo, identifiquem-se como invenção, é uma
depuração de perspectiva à distância que não deve apagar a depuração de
perspectiva próxima, através da qual entramos em contato com a solidariedade das
forças envolvidas. A metáfora do posicionamento físico, com sua característica não
múltipla e, portanto, esquizofrênica –, mas, antes, plural sendo, assim, dialógica
e transubjetiva –, apontae r
342
deve ser justamente o que vai além do Homem, e a simplificação de tal proposição
teve conseqüências no pensamento da Literatura. A visão nietzscheana prima não
pela opressão do fraco, mas pela exaltação e estímulo da força, o que, em termos
éticos, significa voltar a ligar o ethos à areté. Evidentemente, para que possamos
falar em excelência, precisamos ter em mente a essência daquilo que se propõe a
essa excelência, no caso, uma atividade intelectual ética. Mas o Ser não é um
estado séssil, sendo antes, uma dinâmica, o que nos obriga uma constante e
progressiva reflexão a respeito daquilo que somos. O mesmo vale para as reflexões
e especulações a respeito da Literatura, nas quais deve sempre estar presente não
apenas o pensamento a respeito do Ser da Literatura, mas também a respeito do
Ser do próprio pensamento e daquele que pensa. Porém, prefere-se com freqüência
a diluição da lição de Nietzsche, aspirando-se à grandeza sem que se tenha noção
exata da própria pequenez, fechando-se para uma visão da vida como processo que
permitiria, entre outras coisas, o aprimoramento e o crescimento. A isso está ligada
a arrogância crítica que, sem se propor a uma verdadeira escuta da voz da obra de e
343
crítica. Neste caso, não se busca diminuir o Outro como indivíduo e valor, mas
simplesmente se ignora a alteridade como se o silêncio e a ignorância bastassem
para que o Eu constituisse um universo auto-suficiente, a despeito de sua
insegurança, de seus medos e de sua solidão povoada por incômodos fantasmas
mudos e invisíveis.
Mas mesmo a Teoria, em toda sua autonomia, não prescinde de seu Outro,
em última instância a Literatura. Pois, conforme se viu, negar esse Outro
corresponde a negar esse Eu, ainda que seja como potencialidade do Eu. Todavia,
em uma esfera ética em pleno devir, o potencial, o possível, o porvir são elementos
de suma importância para o ethos, não podendo ser desconsiderados. Negar
qualquer uma das esferas que a constituem significa negar a Filosofia da Literatura,
assim como negar a especulação significa negar a reflexão. Atingir plenamente o
ideal de uma Filosofia da Literatura não significa citar Adorno no lugar de Saint-
Beuve; o se trata de uma mudança de nichos, sobretudo quando esses nichos
são questionáveis. Tampouco significa escrever segundo o estilo de Husserl e não
no de Leopardi visando uma sistematização fenomenológica acima de qualquer
suspeita; não se trata de mera troca de fenótipo de discurso que, por sinal, se
inventa na invenção, Proteu que é. Filosofia da Literatura é, antes de qualquer coisa,
uma postura ética perante o texto como voz de uma alteridade que, ainda que
radicalmente diversa de mim, tem o mesmo peso em termos de valor. Desse modo,
faz-se necessário, para que se reserve a esse discurso a autorização que lhe é
devida, um atento ato de olhar para o Eu contra o egoísmo, o desrespeito e a
intolerância. Um ato altruísta que, sem o medo da pieguice, poderíamos derivar em
ato de amor, de amor do texto, de amor da escritura, de amor da leitura. Amor
apenas possível, de acordo com a profunda simplicidade stico-religiosa, quando
se conhece o objeto amado. Por isso, a Filosofia da Literatura é, irredutivelmente, o
conhecer do Eu pelo Outro, do Outro pelo Eu; a velha lição das linhas paralelas e de
seu encontro no infinito.
Por isso a necessidade de, em caso de se precisar de gênios tutelares
filosóficos para tal postura, recuar até o século V antes de Cristo e progredir
lentamente, entre Eléia e Efésio, entre Parmênides e Heráclito. Da velha oposição
que se faz entre os dois, derivamos o essencial do que aqui tentou ser dito. O ato
ético fundamental, perante a Literatura, a Arte, a Aventura intelectual humana ou
mesmo a Vida consiste em se afastar do Ser unívoco e imutável de Parmênides e,
344
sem temer a ilusão, mas, antes, enfrentando-a, aproximar-se da visão de Heráclito
(que talvez apenas agora tenha esclarecida sua posição fundamental nesta minha
longa e intrincada especulação): seguir rumo à visão de um Ser que, apesar da
alteridade, apesar da tensão entre contrários que animou tanto o arco quanto a lira
de Octavio Paz, encontra, em sua dinâmica, a unidade. É a transcendência do agón,
da chama humana que corresponde ao pyr transensível de onde tudo veio e para
onde tudo, um dia, voltará. Que muito disso senão tudo dependa da crença
pessoal não é algo a ser negado, uma vez que esse engajamento ético (nunca a
facilidade do mero comprometimento) começou com a proclamação do dogma como
a base de todas as coisas. Mas, partindo desse subterfúgio, porque não esperar que
nosso pensamento, inclusive aquele que mergulha na Literatura, possa alçar vôos
cada vez mais altos? Por que não aspirar não apenas a uma real Filosofia da
Literatura, mas a uma nova etapa, na qual a consciência do Eu e do Outro que a
Literatura proporciona àquele que se dispõe a ouvi-la, a verdadeira Consciência,
poderá nos colocar em contato com os velhos deuses, perdidos nas brumas, com
os amigos e os amores que se foram mas que estão sempre aqui, Outros que fazem
parte do Eu. Por que não aspirar a uma Teologia da Literatura, como anunciada na
religião secular de Harold Bloom, a bardolatria shakespeareana, que, por ser tão
diferente de mim, tão distante daquilo que normalmente aceito, é justamente aquilo
que devo me esforçar por ouvir, considerar e respeitar.
Nessa parte do trabalho, que, conforme tinha sido anunciado, evitou-se a
citação acadêmica em prol da paráfrase transubjetiva, talvez não seja ousadia
demais encerrar as especulações repetindo uma lição apócrifa, que um mestre de
estudo e de vida ensinou-me após tê-la aprendido de outro mestre de estudo e de
vida. A lição de que nós só podemos ser realmente sujeitos quando fazemos do
Outro sujeito. Lição esta que ecoa em uma frase surpreendente que ouvi de minha
avó materna, em toda a sua sabedoria desprovida de instrução: “Deus fez a Terra
para eu andar e, acima, colocou o Céu. Mas é nas pessoas que encontro que eu
faço meu caminho”. Poxa, acabo de perceber que não encerrei o discurso na lição
do professor, como prometido. Mas quem disse que o discurso um dia acaba?
345
A GUISA DE BIBLIOGRAFIA:TA BIBLIA
Uma reflexão, não importa sobre qual tema, assenta-se, em termos de bases
bibliográficas, em fontes que vão muito além daquelas que se convencionou citar em
trabalhos científicos. Afinal, além das obras diretamentes citadas e daquelas que se
relacionam diretamente com o tema da discussão, há aquelas que serviram de base,
de substrato fundante para o pensamento do autor de quaisquer ginas
eventualmente escritas sobre não importa qual tema. São pensamentos de eleição,
que apontam para irmandades de pensamento que, muitas vezes, perdem-se nos
desvãos textuais, mas, quando refletimos sobre os porquês das escolhas, mostram-
se, não obstante, presentes na ausência, presentes pela ausência. Por isso, no fim
deste trabalho, seria inevitável prestar este tributo àqueles que são os credores
generosos e severos. Generosos por ofertarem sempre, ainda que não devidamente
reconhecidos. Severos, por outro lado, por imporem sua presença mesmo quando
não os queremos presentes, filhos inevitáveis de pais inescapáveis.
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