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ANGÉLICA PAULILLO FERRONI
COSMOLOGIA E ASTROLOGIA NA OBRA ASTRONOMICA DE
MARCUS MANILIUS
Mestrado em História da Ciência
PUC-SP
São Paulo
2007
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ANGÉLICA PAULILLO FERRONI
COSMOLOGIA E ASTROLOGIA NA OBRA ASTRONOMICA DE
MARCUS MANILIUS
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para
obtenção do título de MESTRE em
História da Ciência, sob a orientação
do Prof. Dr. Roberto de Andrade
Martins.
PUC-SP
São Paulo
2007
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BANCA EXAMINADORA
À minha mãe, Rosana Paulillo
(in memoriam)
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Roberto de Andrade Martins, pela
imensa sabedoria e reconhecida competência como orientador: sem ele esta
dissertação não teria sido possível. E também por me mostrar que pesquisar
sobre a história da astrologia não é um tema “menor” dentro da História da
Ciência; o que faz com maestria. Certamente um exemplo no qual me inspirei.
Ao Programa de Estudos Pós Graduados em História da Ciência, e a
todos os professores que o compõe, em especial à Profa. Dra. Luciana
Zaterka, pelas sugestões e orientações inclusive “extra” sala de aula.
Ao CNPq, pela bolsa concedida, possibilitando-me dedicação exclusiva
à pesquisa.
À minha família, pelo apoio que nunca falta.
Aos meus amigos, sempre presentes e tão preciosos.
Ao Carlos Fini, por me mostrar a riqueza de elementos e
desdobramentos da astrologia ao longo da história do conhecimento, o que me
motivou a seguir esse caminho na pesquisa acadêmica.
À Academia Celeste, pelas ricas discussões que nos estimulam a seguir
pesquisando sobre astrologia.
Ao Gonzalo, pelo apoio pleno e presente, de perto ou de longe.
Ao Maicol, tão importante nos momentos finais, cuja presença, leituras e
sugestões foram fundamentais.
RESUMO
No século I d.C. a compreensão astrológica do mundo oferecia uma
base ontológica a partir da qual os fenômenos eram entendidos. Considerada
como verdade em Roma e no mundo helenístico, a astrologia adquiriu status
de ciência devido, em parte, à sua associação com o Império romano e ao uso
que os imperadores dela fizeram para validar sua posição política.
O propósito desta dissertação é analisar a cosmologia e a compreensão
astrológica do mundo presentes na obra Astronomica, de Marcus Manilius, um
poema astrológico romano escrito no século I d.C., momento em que o Império
romano havia se consolidado e em que a astrologia ganhava cada vez mais
força enquanto um saber.
Se os imperadores elegeram a astrologia para validar sua posição
política, foi porque ela havia se introduzido na cultura romana. Assim, a
primeira parte deste trabalho discute como o saber astrológico foi incorporado
pela cultura romana, e quais os possíveis elementos que contribuíram para que
ele ocupasse o lugar que ocupou com a constituição do Império, identificando a
filosofia estóica e os modelos literários gregos entre os principais. A segunda
parte analisa a compreensão de mundo presente na obra Astronomica,
identificando os traços do pensamento estóico a ela relacionados e, por fim,
discute a relação entre esse poema astrológico e elementos do contexto em
que ele foi escrito.
ABSTRACT
In the first century a.D., the astrological understanding of the world
offered an ontological basis from which the natural and social phenomena were
understood. Regarded as truth in Rome and the hellenistic world, astrology
acquired a scientific status, mainly due to its association with the Roman empire
and to its use by the emperors, as a way of validating their own political
position.
The purpose of this dissertation is to analyze the cosmology and the
astrological understanding of the universe present in the treatise Astronomica,
by Marcus Manilius, a roman astrological poem written in the first century of
a.D., a time when the roman Empire had already been consolidated and
astrology was gaining more and more power as a form of knowledge.
The emperors had chosen astrology to validate their political positions,
due to the previous introduction of astrology in the roman culture. So, at first,
this dissertation discusses how the astrological knowledge was incorporated by
the roman culture and which elements contributed to establish its role in the
establishment of the Empire constitution, considering the Stoic philosophy and
the Greek literary model as the main elements. At a second moment, this
dissertation analyzes the comprehension of the world presented in
Astronomica, by identifying characteristics of stoic thinking related to it. Finally,
this research discusses the relation between the astrological poem and
elements of the context in which it was written.
SUMÁRIO
Introdução ...................................................................................................... 01
Capítulo 1 – Astrologia e helenismo ............................................................ 04
1.1. O lugar da astrologia no Império romano ................................... 04
1.1.1. A adivinhação em Roma .............................................................09
1.1.2. Astrologia e política .................................................................... 14
1.2. Os primórdios da astrologia ocidental ....................................... 20
1.2.1. O Estoicismo .............................................................................. 27
1.3. Como a astrologia chegou a Roma .......................................... 30
1.3.1. As Geórgicas, de Virgílio............................................................ 36
1.3.2. Incorporação e aceitação da astrologia .................................... 44
1.4. A astrologia enquanto lei universal da natureza ........................ 45
1.5. Conclusão ...................................................................................52
Capítulo 2 - A Astronomica, de Marcus Manilius ....................................... 54
2.1. Sobre o autor e a obra ................................................................54
2.2. Análise da obra ...........................................................................57
2.2.1. A estrutura do universo .............................................................. 58
2.2.2. O princípio ordenador .................................................................64
2.2.3. O céu como causa ......................................................................73
2.2.4. Sobre o destino ...........................................................................80
2.2.5. O lugar da adivinhação ...............................................................84
2.2.6. Astrologia: um sistema ordenado ...............................................92
2.2.7. A questão do vazio ...................................................................102
2.2.8. Outras influências .....................................................................106
2.3. Conclusão .................................................................................114
3. Conclusão final .........................................................................................117
Bibliografia ....................................................................................................123
INTRODUÇÃO
A proposta desta dissertação é analisar a cosmologia e a compreensão
astrológica do mundo presentes na obra Astronomica, de Marcus Manilius
1
,
através da identificação e discussão da relação entre o saber astrológico e a
filosofia estóica ao longo dos versos desse poema romano, escrito no século I
d.C.
Para isso, mostra-se fundamental levantar os elementos de contexto do
período em que esse tratado astrológico foi escrito, assim como caracterizar o
lugar e o status da astrologia nesse momento histórico.
O pressuposto que orienta nossa pesquisa é a tese defendida por
Thorndike no artigo intitulado “The true place of astrology in the history of
science”
2
, escrito em 1955. Nesse texto, Thorndike argumenta que a astrologia
se configurou, na Antigüidade, como uma das bases sobre as quais a cultura
ocidental desenvolveu seu conhecimento, e se manteve como tal até o século
XVII. Esse artigo de Thorndike se insere na discussão sobre o que seria ciência
e como ela se desenvolveria, que teve lugar no decorrer do século XX,
questionando a corrente historiográfica positivista, que vigorava até então. Um
dos aspectos principais dessa discussão foi a problematização da categoria de
ciência como algo epistemologicamente demarcado, em oposição àquilo que
era considerado não-ciência, ou pseudociência. Ao argumentar que o saber
astrológico oferecia um estatuto ontológico e epistemológico, Thorndike
questionou, juntamente com outros pesquisadores, a categoria da astrologia
como pseudociência, e promoveu uma discussão que redimensionou não o
1
Poeta latino do início do século I d.C. Cf D. Pingree, “Manilius, Marcus”, in C. C. Gillispie, org.,
Dictionary of Scientific Biography, vol. 9, p. 79.
lugar desse saber na história do conhecimento, mas a própria historiografia da
ciência, ou seja, o modo como o desenvolvimento do conhecimento ao longo
dos séculos e entre diferentes culturas é entendido.
3
Independente do que seja reconhecido como ciência em uma época, é a
sua leitura do mundo que a maioria considerará como verdade, e será a partir
dela que compreenderá os fenômenos que a rodeiam. Ao partirmos do
pressuposto de que a astrologia proporcionou uma compreensão coerente do
mundo e, com isso, orientou a relação do Homem com a natureza, dedicamos
o capítulo 1 ao entendimento de como esse saber adquiriu tal status e passou
a ser reconhecido como ciência.
Demonstraremos que a associação entre astrologia e poder, através da
utilização desse saber pelos imperadores romanos, contribuiu para que a
astrologia aumentasse sua importância política e imprimisse sua forma de
compreender o mundo na cultura romana e, conseqüentemente, no mundo
helenístico do século I d.C. em diante. Porém, consideramos que, se os
imperadores elegeram a astrologia para validar sua posição política e, se essa
associação favoreceu a disseminação e aceitação da compreensão astrológica
como verdade, foi porque a astrologia havia se introduzido na cultura
romana. Dessa forma, mapeamos alguns aspectos relacionados a como a
astrologia chegou a Roma, e quais os elementos envolvidos nesse processo,
identificando a filosofia e os modelos literários gregos como dois dos elementos
principais.
2
L. Torndike, “The true place of astrology in the history of science”, Isis, 46, pp. 273-78.
3
Para maiores detalhes sobre as tendências historiografias em história da ciência ao longo do
século XX, vide A. G. Debus, A. “A ciência e as humanidades: a função renovadora da
indagação histórica”, Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, 5, pp. 3-13.; A. M.
Alfonso-goldfarb et alii, A historiografia contemporânea e as ciências da matéria: uma longa
Com isso, oferecemos uma compreensão detalhada do momento em
que a Astronomica foi escrita para, ao longo do capítulo 2, desenvolvermos
uma análise pormenorizada da obra de Manilius, e da cosmologia na qual ele
se baseia para apresentar o saber astrológico. A opção por identificar
especificamente os traços do pensamento estóico presentes na obra se
justifica pois o estoicismo foi uma das principais correntes de pensamento que
ofereceram uma rede teórica na qual a astrologia pôde se reconfigurar e, por
isso, contribuiu para a formação e disseminação da astrologia ocidental,
durante o período helenístico
4
. Buscamos, assim, oferecer uma leitura mais
abrangente desse poema astrológico, estabelecendo um diálogo entre a
Astronomica e os aspectos que envolveram o status e o alcance que a
astrologia possuía no momento em que a obra foi escrita.
Por fim, após procurarmos entender a obra em seu contexto,
relacionando a discussão desenvolvida tanto no capítulo 1 quanto no capítulo
2, concluímos sugerindo uma outra forma de perceber a relação entre
astrologia e estoicismo
5
nos primeiros momentos do Império romano,
baseando-nos no status de ciência que a astrologia passou a ter no final da
República e início do Império.
rota cheia de percalços”, in A. M. Alfonso-Goldfarb; M. Beltran, orgs., Escrevendo a História da
Ciência: tendências, propostas e discussões, pp. 49-73.
4
O período helenístico vai, aproximadamente, da época após as grandes conquistas de
Alexandre Magno, até o início da Idade Média. Cf. A. J. Toynbee, Helenismo história de uma
civilização, p. 15.
5
Diferente, em alguns aspectos, da forma proposta por pesquisadores do início do século XX,
como Franz Cumont, e que, de certa maneira, é a que se mantém ainda hoje entre
historiadores da ciência e da filosofia.
Capítulo 1. ASTROLOGIA E HELENISMO
Este capítulo abordará o lugar que a astrologia ocupou no mundo
ocidental durante o período helenístico. Para isso será feita uma breve
apresentação sobre as origens e o desenvolvimento da astrologia até o século I
d.C., e sobre as diferentes contribuições culturais que tiveram lugar nesse
processo. Porém, optamos por iniciar esse percurso retratando o lugar da
astrologia nos momentos iniciais do Império Romano, para então voltarmos
no tempo, com o intuito de esboçarmos uma compreensão sobre como o saber
astrológico foi incorporado pela cultura romana e quais os possíveis motivos
que contribuíram para que ele ocupasse o lugar que ocupou. Essa opção se
justifica pois foi no século I d.C. que Marcus Manilius escreveu a Astronomica,
obra que é o eixo central desta dissertação.
1.1. O LUGAR DA ASTROLOGIA NO IMPÉRIO ROMANO
uma íntima relação entre a consolidação do Império romano e o
aumento da importância política do saber astrológico, o que possibilitou que a
astrologia imprimisse sua forma de compreender o mundo na cultura romana.
O marco histórico dessa associação foi a utilização, feita por Augusto
6
,
do simbolismo astrológico durante seu reinado. Ao gravar seu signo de
nascimento em moedas que circulariam por todo o império, Augusto contribuiu
6
Otávio Augusto foi o primeiro imperador romano. Desde que assumiu o poder com o Segundo
Triunvirato, após a morte de César (44 a.C), Otávio aumentou seu poder pessoal e se voltou
contra Lépido e Marco Antonio, derrotando-os. Consolidado no poder, controlou politicamente o
Senado e dele recebeu vários títulos, como o de Augusto, em 27 a.C., o que afirmava seu
caráter sagrado e divino, que essa denominação era reservada apenas aos deuses. Isso
indicava, portanto, que possuía uma autoridade superior a do Senado. O governo de Otávio
para o processo que fez com que a astrologia ganhasse um maior destaque e,
com isso, adquirisse um novo e superior status.
7
Um dado interessante e bastante significativo da difusão do simbolismo
astral na Antigüidade tardia é o fato de Augusto ter optado pelo signo de
Capricórnio para representá-lo, e não o de Libra, que era o seu signo. Diversos
autores especularam sobre o por quê de tal decisão, porém, Barton sugere que
o fato do solstício de inverno se dar sob o signo de Capricórnio tenha um valor
especial nessa especulação.
8
O solstício de inverno marca exatamente o
momento em que o Sol voltará a permanecer mais tempo acima do horizonte,
ou seja, os dias passarão a ter sua duração aumentada gradativamente, até o
solstício de verão, seis meses depois, que marca o dia mais longo do ano e,
conseqüentemente, o inicio do processo em que, gradualmente, os dias
diminuirão de duração até chegar, mais uma vez, ao solstício de inverno. Ou
seja, o simbolismo astral fala de um período de renascimento, de expansão,
marcado pelo retorno do Sol, onde a luz se sobressairá à escuridão.
9
Essa hipótese ganha mais força quando confrontada com a tese de
Cumont, que aponta que, dada a influência cada vez mais proeminente da
cultura e da religiosidade oriental no mundo greco-romano, o culto oriental do
Sol Invictus passou a ser utilizado pelos imperadores romanos.
Augusto marca a transição da República para o Império, onde o poder se centralizaria em uma
única figura. Cf. M. C. Giordani, História de Roma, pp. 60-2.
7
O primeiro aparecimento de Capricórnio nas moedas de Augusto foi em 28 a.C; cf. T. Barton,
Power and knowledge, p. 42.
8
Sobre os possíveis motivos que levaram Augusto à essa escolha, vide: Ibid, pp. 40-1.
9
O que corresponde ao momento histórico, onde o uso desse simbolismo astral indicaria que
se anunciava, com a ascensão da figura de Augusto, um novo momento de paz após as
guerras civis. Cf. T. Barton, Ancient Astrology, p. 40.
Sol Invictus é um culto persa associado ao Mitraísmo
10
e significa
“invencível” e “eterno”. Em Roma, o imperador passou a ser a imagem do Sol
na Terra: eles estariam unidos pela mesma natureza, que a alma do
governante, ao descer à Terra, receberia do Sol seu poder soberano e, ao
morrer, retornaria ao céu por intermédio da mesma estrela. Portanto, a figura
do imperador, como divindade e representante natural do poder absoluto, se
baseou em cultos orientais e no simbolismo astral.
11
“O Cesarismo, ao ir transformando-se mais e mais em uma
monarquia absoluta, foi paralelamente apoiando-se no clero oriental.
Estes sacerdotes [...] predicavam doutrinas que tendiam a elevar os
soberanos acima da Humanidade, e proporcionavam aos imperadores
uma justificativa dogmática de seu despotismo.”
12
Sétimo Severo se auto-denominou Invictus em moedas que veiculavam
sua imagem
13
e, em 274 d.C, Aureliano oficializou o culto ao Sol Invictus,
protetor dos soberanos e do Império, oferecendo jogos para celebrá-lo a cada
quatro anos.
14
Segundo Barton, talvez não seja coincidência o fato de que o culto ao
deus-Sol tenha se destacado quando a figura de um único e soberano
governante se sobressaiu no cenário romano.
15
Augusto explorava sua
associação com Apolo, o deus greco-romano ligado ao Sol
16
, e passou a
utilizar a astrologia ao veicular sua imagem. Vemos, portanto, uma
10
Sobre o Mitraísmo e sua incorporação na cultura romana, vide T. Barton, Ancient Astrology,
pp. 197-206.; R. H. Barrow, Los romanos, p. 135.; A. Aymard, Roma e seu Império v.1, p. 205.
11
F. Cumont, Astrologia y religión en el mundo grecorromano, pp. 76-9.
12
Ibid., p. 77.
13
Sobre o uso que diferentes imperadores fizeram do culto ao Sol Invictus, vide T. Barton,
Ancient Astrology, pp. 203-5.
14
F. Cumont, op. cit., pp. 78-9.
15
T. Barton, Ancient Astrology, p. 203.
sobreposição do simbolismo especificamente astrológico com o simbolismo
astral, presente no culto ao Sol.
Outro dado a favor da força exercida pelo simbolismo solar na cultura
romana é encontrado no Livro II da Historia Natural, de Plínio, o Velho (23 - 79
d.C.). Autor que sistematizou diversos saberes em 37 livros escritos no século I
d.C., Plínio, ao longo do Livro II, discorre sobre cosmologia e a estrutura do
mundo. Ao abordar o Sol, seu lugar e função no universo, diz que esse astro é:
“[...] de um tamanho e poder extraordinários, regente das
estações e das terras, dos próprios astros e do céu. Considerando suas
obras, somos obrigados a acreditar que ele é a alma ou, simplesmente,
a mente de todo o universo, o árbitro ou divindade primordial da
natureza. Ele proporciona luz às coisas e afasta as sombras, [...], é o
mais resplandecente, o excepcional, o que tudo vê, inclusive o que tudo
ouve [...]”
17
E, ao falar sobre deus, Plínio não o distingue da natureza e diz que “é
todo ele percepção, todo ele visão, todo ele audição, todo ele alma, todo ele
inteligência, todo ele o absoluto.”
18
Podemos perceber que o autor quase o
distingue o Sol de deus; apresenta o Sol com características divinas e descreve
deus com atributos anteriormente associados ao Sol.
19
uma diferença entre o simbolismo astral e a astrologia enquanto um
saber. A distinção entre esses dois termos se mostra fundamental para o
desenvolvimento das idéias que serão apresentadas ao longo desta
dissertação. O simbolismo astral está intimamente associado à cosmologia que
16
Lambrechts apud T. Barton, Ancient Astrology, p. 203.
17
Plínio, el Viejo, Historia Natural II, p. 341.
18
Ibid., p. 342.
entende que os fenômenos terrestres estão em relação com o céu e dele
sofrem influência. Essa cosmologia é compartilhada por grande parte das
culturas antigas, e proporcionou a marcação do tempo basicamente a partir do
ciclo anual do Sol, das fases da Lua e do aparecimento de determinada estrela
ou constelação, assim como a observação de como esses ciclos estavam
relacionados às alterações climáticas, às mudanças na natureza, ao
aparecimento e desaparecimento de determinados fenômenos naturais, e de
que forma esse processo interferia na vida social. Essas relações o a base
do simbolismo astral.
A astrologia enquanto um saber delimitado, por sua vez, começa a ser
desenvolvida na Mesopotâmia, e se baseia nessa cosmologia e no simbolismo
astral a ela relacionado, mas se diferencia na medida em que desenvolve
conceitos, técnicas e métodos para calcular e prever o movimento dos
planetas, assim como regras para interpretá-los, com o intuito de estabelecer
não as relações com os fenômenos naturais, mas também fazer previsões
mais detalhadas para a vida social e para os indivíduos.
20
No inicio do império romano, o saber astrológico (ou astrologia) havia
se difundido na cultura romana, e a apropriação do simbolismo astral feito por
Augusto (que serviu, basicamente, para construir sua figura política e legitimar-
se enquanto tal), aproximou o saber astrológico do cenário político romano,
onde passou a ocupar cada vez mais espaço. Conforme expôs Barton, “O
signo de nascimento de Augusto foi um importante aspecto de sua
19
T. Barton afirma que a escolha, por parte da Igreja Cristã, do dia 25 de dezembro para
celebrar o seu deus (ou seja, alguns dias após o solstício de inverno), teve no culto solar, tão
difundido na cultura romana, sua principal causa. Cf. T. Barton, Ancient Astrology, pp. 205-6.
20
O surgimento e desenvolvimento da astrologia enquanto um saber será abordado mais
detalhadamente na seção 1.2. deste capítulo, intitulada “Os primórdios da astrologia ocidental”.
apresentação pública por todo o Império, mostrando-o como destinado a seu
papapaepr t ér inando- 571sr oa
desta com a cosmologia grega, ao entrar em contato com a cultura helênica,
tem na física aristotélica sua principal base.
22
A idéia de determinismo astral oferecida pela astrologia serviu à
necessidade gerada pelo jogo político do final da República e início do Império.
“Não foi coincidência o fato de que o momento de ascensão da
astrologia em Roma tenha se dado exatamente quando a antiga
república oligárquica cedeu espaço à monarquia; a astrologia ocupou um
papel político preponderante neste processo, o de estar em conexão
com o monarca”
23
Essa transição, que redefine o lugar da astrologia na Antigüidade tardia
em paralelo com as transformações políticas, pode ser ilustrada com as
mudanças pelas quais passou a adivinhação em Roma e pela alteração do
status dos adivinhos na política romana.
Durante a República romana, a adivinhação não possuía um caráter
privado ou particular. Sua função era estabelecer e manter a paz entre os
deuses e a cidade (pax deorum) e estava, portanto, intimamente associada à
política e submetida ao Senado.
24
Apesar de não ser possível identificar com precisão a diferença de status
entre eles, havia alguns grupos de adivinhos e formas de adivinhação em
Roma, antes do Império. Um deles era o colégio de áugures. Os áugures, ou
22
Os pressupostos teóricos do pensamento aristotélico, nos quais a astrologia helenística se
fundamentou, são: 1. O céu e os corpos celestes são incorruptíveis; 2. Seu movimento é
regular, eterno, circular e perfeito; 3. O universo se divide em mundo supralunar e sublunar; 4.
uma diferença qualitativa entre esses mundos, inferior e superior; 5. O mundo supralunar
(dos céus e dos corpos celestes) governa o mundo sublunar (a terra); 6. O mundo sublunar é o
mundo da geração e da corrupção, ou seja, do eterno devir. Cf L. Thorndike, The true place of
astrology in the history of science, pp. 273-8.; P. Rossi, A ciência e a filosofia dos modernos, p.
29-31.
23
T Barton, Ancient Astrology, p. 62.
24
Idem, Power and knowledge, pp. 34-6.; A. Aymard, Roma e seu império v.1, p. 196.
adivinhos, obtinham os auspícios através da interpretação dos movimentos e
sons emitidos pelos pássaros, e reconheciam, através desses presságios, a
disposição favorável ou desfavorável dos deuses. Os auspícios deviam ser
obtidos antes ou durante todas as ações públicas, o que conferia a estes
adivinhos uma responsabilidade particular quanto aos aspectos religiosos das
assembléias populares. Outro grupo de adivinhos era aquele que consultava os
Livros Sibilinos um grupo de poemas em grego supostamente trazido por
uma profetisa através do último rei de Roma. Eram consultados menos
freqüentemente, em geral respondendo a uma solicitação do senado para
saber sobre a introdução de novos cultos e ritos. O terceiro grupo, mais difícil
de ser definido, eram os haruspices; associados à tradição etrusca,
interpretavam tanto prodígios (eventos sobrenaturais) quanto as entranhas de
animais sacrificiais.
25
A vida política e religiosa estavam intimamente associadas na Roma
republicana. Uma característica significativa da adivinhação romana nesse
período, principalmente a o final do século III a.C, é que os prodígios
assinalavam uma alteração no curso normal dos acontecimentos (como raios e
inundações, por exemplo) e indicavam, com isso, a cólera divina. A função dos
adivinhos era, basicamente, identificar os motivos de tal descontentamento e
prescrever as cerimônias de purificação adequadas para, com isso,
restabelecer a paz entre os deuses e a cidade. Portanto, os prodígios eram
entendidos basicamente como algo que pautava e orientava a comunicação
com os deuses.
26
25
T. Barton, Power and knowledge, pp. 33-4.; A. Aymard, Roma e seu Império v.1., pp.193-7.
26
A. Aymard, Roma e seu Império v.1., pp. 196-7.
A partir do século III a.C. a influência helenística atua diretamente na
cultura romana, deixando suas marcas não só nas formas de adivinhação, mas
no alcance que esta passou a ter na cultura e religiosidade como um todo.
27
Weinstock diz que os haruspices etruscos eram mais inclinados à
interpretação no modo como entendiam os presságios devido à influência que
sofreram da astrologia horoscópica grega, durante o período helenístico.
28
De
acordo com essa idéia, temos a afirmação do pesquisador Raymond Bloch, de
que a adivinhação romana começa a mudar em função das influências gregas,
que se deram principalmente no final do século II a.C e no século I a.C, em
decorrência da Segunda Guerra Púnica (218-201 a.C.). Tais influências
alteraram a antiga concepção romana de prodígio (evento sobrenatural) como
um sinal terrível e inevitável da ruptura da paz com os deuses, para algo que
poderia significar um presságio do futuro, bom ou mal.
29
No século I a.C, a astrologia havia entrado na sociedade romana e se
incorporado às artes adivinhatórias, alterando o modo com eram feitas até
então. A presença da astrologia na cultura romana no século I a.C é
evidenciada pelo tratado De divinatione, de Cícero. Do mesmo momento
histórico, o tratado aborda as diferentes formas de adivinhação, dentre elas a
astrologia.
30
O contato com a astrologia introduziu uma interpretação mais sofisticada
do que as respostas do tipo sim/não, como as que eram obtidas através das
aves sagradas. Os haruspices eram adivinhos que passaram a incorporar as
técnicas astrológicas e a fazer predições individuais. A incorporação de
27
Cf. Idem, Roma e seu Império v.2., p 199. e R. H Barrow, Los romanos, p. 132.
28
T. Barton, Power and knowledge, p. 35.
29
Ibid., p. 35.
elementos astrológicos por parte dos haruspices em seu trabalho tinha a
função de complementá-lo e modernizá-lo com aspectos desse novo saber, a
astrologia, que ganhava cada vez mais espaço e gerava cada vez mais
interesse na população. Isso fez com que, a partir do culo I a.C., os
haruspices se destacassem em relação às outras formas antigas de
adivinhação. Porém, essa incorporação também abriu o caminho para que a
figura do astrólogo, como representante de um saber estrangeiro, portanto,
novo e com menos tradição na cultura romana, passasse a ocupar um lugar
cada vez mais central no cenário político.
31
Quando a imagem de um governante começa a se sobressair em
oposição ao Senado, aparece a figura do adivinho como alguém poderoso.
Essa figura surge com o declínio do uso de prodígios públicos e com o
crescimento dos adivinhos pessoais, ligados aos militares (no final da
República) e depois aos imperadores.
32
Um exemplo é Caio Graco, político
romano do século II a.C, que tinha como fiel amigo Herennius Siculus, seu
haruspex pessoal.
33
Nesse contexto político, onde a necessidade de um método mais
personalizado para servir de base às decisões e ao cenário político ganha
destaque, a astrologia se mostra apta a supri-la, os astrólogos passam a
ocupar funções de importância, e esse saber começa a ganhar novos adeptos.
É o caso de Publius Nigidius Figulus, astrólogo, senador e aliado político de
30
Cicero, De la adivinación. Trad. Esp. J. P. Álvarez. México, Universidad Nacional Autónoma
de México, 1988.
31
Para maiores detalhes sobre a distinção entre haruspices e astrólogos, vide T. Barton, Power
and knowledge, pp. 37-8.
32
T. Barton, Power and knowledge, p. 36.
33
Ibid., p. 37.
Cícero; e também do cônsul Otávio (século I a.C), aristocrata e potico
associado à astrologia.
34
Até o culo I a.C. tanto astrólogos quanto haruspices eram igualmente
solicitados, o que fazia com que, entre eles, houvesse certa rivalidade
35
. Essa
rivalidade mostrava a situação social que se instalou com a chegada da
astrologia em Roma, onde o astrólogo não pertencia às categorias tradicionais
e instituídas de adivinhação e, ganhando espaço e poder, ameaçava o status
das antigas formas tradicionais de adivinhação. Se a distinção entre os dois
tipos de adivinhos por parte daqueles que solicitavam seus serviços não era
clara, a figura do astrólogo se sobressaiu principalmente com o surgimento do
Império Romano, onde a utilização do simbolismo astral por parte de Augusto
na construção da sua figura política abriu o caminho para que o crescimento da
astrologia, que já vinha acontecendo, se intensificasse.
1.1.2. Astrologia e política
A astrologia foi usada para legitimar o lugar do imperador, cuja liderança
na Terra era confirmada pelo céu. Porém, na mesma medida em que o
governante se destacava através dessa associação, destacava-se também a
figura do adivinho como alguém poderoso. Pois, se ele sabia ler a mensagem
contida no movimento dos astros, e se sabia desvendar os caminhos do
destino, possuía poder e era porta-voz da verdade.
A crença na astrologia era uma realidade, e o uso que dela faziam não
era meramente político e estratégico, visando somente a legitimação do poder.
34
Ibid., p. 38.
Thorndike, ao analisar a maneira como a cultura ocidental entendia o universo
desde a Antigüidade até a substituição do sistema aristotélico pelo sistema
copernicano (tendo como ápice dessa transformação a concepção de universo
proposta por Newton, no século XVII), reconhece a existência de uma lei
universal da natureza segundo a qual todos os fenômenos eram
compreendidos. Essa lei pressupunha uma relação de causalidade entre o céu
e a Terra, baseada na separação espacial e qualitativa entre esses dois
mundos
36
. Nesse sentido, todas as operações do mundo inferior eram
compreendidas como algo que surgia e era controlado pelo movimento eterno
e incorruptível dos corpos celestes. E o homem, ao pertencer ao mundo
natural, também estava sob a influência dessas regras.
37
A incorporação da astrologia babilônica no pensamento grego e,
posteriormente, a ampla difusão da astrologia no mundo romano, ocorreram
também pelo fato de seus pressupostos teóricos básicos estarem de acordo
com essa compreensão do mundo e de seus fenômenos.
38
O saber astrológico
se desenvolveu em um momento em que o universo era entendido como um
todo ordenado, onde os acontecimentos na Terra não eram aleatórios, e sua
ordem era dada pelos céus. Os astrólogos eram vistos como aqueles que
detinham o saber que conferia acesso a essa ordem e a essa lógica, reguladas
pelo movimento dos planetas.
39
35
Para maiores informações sobre a relação entre haruspices e astrólogos e o lugar que
ocupavam na final da Republica romana, vide T. Barton, Power and Knowledge, pp. 38-40.
36
Sobre o sistema aristotélico de compreensão do universo, vide nota 22.
37
L. Thorndike, op. cit., pp. 273-8
38
Por isso Thorndike afirma que a visão astrológica do mundo era considerada coerente até o
século XVII, e mesmo quem criticava a astrologia nu
administração, a cobrança de impostos, a navegação, a complexa rede de
estradas e o poderio lico), mas se davam também a partir de uma
compreensão do mundo que, ao mistificar a figura dos imperadores, elevava a
esfera política acima da vida diária.
42
Augusto se valeu da astrologia para legitimar-se como imperador.
Porém, exatamente por ser poderoso, esse recurso se voltou contra Augusto
como um perigo: ele não exercia controle sobre a astrologia, que era um saber
que anunciava a ordem e o destino de todas as coisas na Terra. “[...] a pax
astrologica foi mais difícil de manter do que a pax deorum, que a legitimação
astral não era monopólio imperial”.
43
O poder astrológico não dependia do poder imperial, era quase um
poder paralelo. Era contra a verdade astrológica que os imperadores deviam se
defender caso esta anunciasse sua queda, sua incompetência ou sua morte.
Consciente do risco que corria, em 11 d.C. Augusto proibiu consultas
astrológicas que procurassem descobrir o momento da morte e também que as
consultas ocorressem na ausência de testemunhas. Era uma medida para
conter o poder da astrologia sobre o poder do imperador. Tal era a força que
uma predição astrológica exercia, que proibições como esta foram repetidas
também por outros imperadores.
44
A predição da morte dos imperadores havia se tornado prática comum,
apesar de ter sido considerada crime de alta traição. Na tentativa de
resguardar-se e o possibilitar que astrólogos, juntamente ou a mando
daqueles que queriam derrubá-lo, calculassem o momento de sua morte,
42
Ibid., p. 56.
43
Ibid., p. 54.
44
Ibid., p. 54.; V. S. DeNardis, Ratio omnia vincit: Cosmological, Political and Poetical Power in
the Astronomica of Manilius, p. 56.
Sétimo Severo, que governou Roma de 193-211 d.C., não divulgou seu signo
ascendente. Na verdade, o ascendente foi colocado em lugares diferentes em
cada representação feita de seu horóscopo, no teto dos aposentos de seu
palácio. Isso impossibilitava que outras pessoas, além dele mesmo,
soubessem as informações completas de sua carta astral e, com isso,
procurassem saber mais sobre seu destino.
45
Caracala, que governou Roma de 211-217 d.C., vasculhou o território
romano atrás de astrólogos que lhe ajudassem a encontrar os traidores que ele
temia estarem próximos e tramando contra seu governo, e também para que
lhe informassem quando e como morreria.
46
Ao mesmo tempo em que se proibia esse tipo de previsão – pois a figura
do imperador e seu governo ficariam fragilizados era importante para o
imperador obter esses dados, que fazia parte de uma melhor preparação
para a disputa política saber quem poderia ser um traidor e quando isso
poderia ocorrer, assim como o momento e o motivo de sua morte.
Um exemplo interessante, que ilustra o status que a astrologia possuía
no mundo romano, é a forma como os historiadores romanos se valeram desse
saber para contar a história do Império, através da vida dos imperadores.
Dio Cassius (c.155-235 d.C.), historiador e senador romano, escreveu
sobre a história de Roma. Dele há um relato sobre o nascimento de Augusto e
sua predestinação para ocupar o lugar de imperador:
“Assim que a criança tinha nascido, o senador Nigidius Figulus
imediatamente previu reinado absoluto para ele. Ele discerniu melhor
que os outros à sua volta o arranjo do céu e a distinção das estrelas, o
45
T. Barton, Power and knowledge, p. 57.; T. Barton, Ancient astrology, p. 46.
46
Idem, Ancient astrology, p. 44.
quanto elas se misturavam em grupos ou separadas, e por causa disso
ele levou a culpa de exercer atos proibidos. E então, naquele momento
este homem falou a Octavius, que o encontrou, quando ele [Octavius]
estava deveras atrasado para o senado por causa do nascimento de seu
filho (pois o senado ocasionou o encontro deles), pelo fato de que ele
estava atrasado, e sabendo da razão gritou “você produziu nosso
governante”, e Nigidius deteve Octavius, que ele ficou alarmado com
isso e queria destruir a criança, dizendo que não era possível para uma
criança suportar tal coisa.”
47
Suetonius (c. 69-141 d.C.), afirmou que o destino de Augusto estava
marcado em seu corpo; que havia em seu peito e abdômen a forma da
constelação da Ursa Maior, ou seja, a constelação em torno da qual todas as
outras giravam em torno.
48
Estes depoimentos históricos nos revelam como a compreensão
astrológica dos fenômenos era, como disse Thorndike, uma característica da
cultura ocidental nesse momento, o que se mostra evidente na forma como os
romanos contavam sua própria história: a história oficial era legitimada pela
verdade astrológica. Essas passagens sobre o nascimento do primeiro
imperador romano mostram, mais uma vez, a íntima relação entre astrologia e
poder: foi o senador e astrólogo Publius Nigidius Figulus quem previu,
corretamente, seu futuro grandioso.
Dio Cassius e Suetonius relatam uma série de eventos envolvendo
predições astrológicas na vida política romana que se concretizaram.
Independente do fato dessas anedotas serem verdadeiras ou falsas, o que
importa é o fato de elas terem sido contadas e registradas por aqueles que
47
Dio Cassius apud V. S. DeNardis, op. cit., p. 54.
48
T. Barton, Power and knowledge, p. 56.
escreviam a historia romana, enfatizando a legitimidade e veracidade da
astrologia.
49
Dado a consideração que se tinha por esse saber, podemos constatar
que a prática astrológica era tida como infalível se praticada corretamente, o
que evidencia o perigo que o potencial dessa arte exercia.
50
Se o determinismo astrológico serviu para legitimação política, seu uso
pelos imperadores também reforçou a idéia de infalibilidade da astrologia, o
que contribuiu para sua difusão e aceitação como verdade. A associação entre
astrologia e poder esteve diretamente ligada à construção política da astrologia
como conhecimento. Isso contribuiu para que a astrologia, que era aceita
pelas massas, reforçasse sua condição de base ontológica.
51
Portanto, a inclusão do saber astrológico como fator legitimador no jogo
de forças político conferiu a ele maior poder. Porém, se o primeiro imperador
de Roma elegeu exatamente a astrologia para validar o lugar que passava a
ocupar, é porque esse saber gozava de ampla difusão e aceitação pelo
mundo helenístico. Temos, portanto, um duplo reforço: tanto da política para
com a astrologia, quanto da astrologia para com a política.
“Astrologia, como nós podemos ver, ocupou uma posição muito
mais central em qualquer configuração plausível de corpos de
conhecimento no mundo antigo, do que qualquer um poderia prever a
partir de uma perspectiva moderna.”
52
49
Ibid., p. 58.
50
Ibid., p. 58.
51
Provavelmente, a associação entre astrologia e poder (conferindo, dessa forma, maior
importância política a esse saber), tenha contribuído para a consolidação daquilo que
Thorndike se refere como a abordagem astrológica enquanto base ontológica e epistemológica
de grande parte do conhecimento que foi produzido até o século XVII. Cf. L. Thorndike, op. cit.,
p. 273-8.; P. Rossi, op. cit., p. 29-37.
52
T. Barton, Power and knowledge, p. 33.
Quais fatores teriam contribuído para essa prévia difusão dos conceitos
básicos e dos pressupostos fundamentais da astrologia, centrais para a rápida
e vertiginosa ascensão que ela sofreu com o surgimento do Império?
Para isso vamos abordar o percurso desse saber e sua incorporação na
cultura romana.
1. 2. OS PRIMÓRDIOS DA ASTROLOGIA OCIDENTAL
A astrologia é um saber que pressupõe a inter-relação entre o que
acontece na Terra e as configurações celestes. Os fenômenos naturais e
sociais são interpretados a partir do movimento dos planetas, do lugar que
ocupam, e das relações e proporções que estabelecem entre si no céu.
Desenvolvida inicialmente na Mesopotâmia, pelos babilônicos, se expandiu
pelo oriente próximo e, em contato com outros saberes e culturas
principalmente a grega e a egípcia – se transformou naquilo que é chamado de
astrologia ocidental.
53
havia na cultura e religião da Mesopotâmia a reverência a um céu
com características divinas, onde as estrelas e planetas eram considerados
divindades capazes de influenciar acontecimentos terrestres. Um texto
encontrado em Nippur, que se supõe ser de 1500-1250 a.C., pode ser
considerado como a evidência da mais antiga tentativa de mapeamento do céu,
53
Algumas considerações sobre as diferentes contribuições culturais nas origens históricas da
astrologia ocidental serão feitas nos próximos parágrafos. Para uma informação mais detalhada
sobre esse processo, vide T. Barton, Ancient Astrology, pp. 9-31.; J. Tester, Historia de la
astrologia occidental, pp. 23-44.; F. Cumont; Astrología y religión en el mundo grecorromano,
pp. 15-80.; L. Ness, Astrology and Judaism in Late Antiquity, pp. 6-110.; D. Pingree.
“Hellenophilia versus the History of Science”. Isis, 83, pp. 554-563.
que parece medir a distância entre oito constelações, no sentido de
responder a questão: “quão além está um deus (estrela) de outro deus?”.
54
Segundo Pingree, o interesse pelas estrelas e planetas enquanto
presságios, e o reconhecimento de sua periodicidade, surgiu na Mesopotâmia
depois de 2000 a.C., e começou a se desenvolver rumo a uma astronomia
matemática em 1200 a.C. Porém, o desenvolvimento, por parte dos
babilônicos, de um modelo matemático útil para a predição dos fenômenos
celestes com algum grau de precisão se deu somente por volta de 500 a.C.
55
A adivinhação astral babilônica é uma explicação sistemática dos
fenômenos baseada na teoria de que alguns deles são sinais enviados pelos
deuses para avisar, aqueles capazes de interpretá-los, sobre os eventos
futuros.
56
Foi essa crença, a de que os céus influenciavam fenômenos que
ocorriam na Terra, que fez com que os babilônicos o estudassem de forma
atenta e rigorosa, no sentido de estreitar sua comunicação com os deuses.
Observaram-no e anotavam os fenômenos naturais e acontecimentos políticos
e sociais que acompanhavam cada aspecto do céu no sentido de verificar as
repetições. Assim construíram suas tabelas, usando fases da Lua, localização
e conjunção dos planetas, eclipses e cometas; ou seja, fenômenos
astronômicos e meteorológicos nos quais baseavam suas previsões.
57
A série de tabletes cuneiformes, conhecida como Enuma Anu Enlil
58
,
talvez seja a mais representativa do desenvolvimento da astrologia, e também
de outras formas de adivinhação, pelos babilônicos. Identificadas como sendo
54
T. Barton, Ancient Astrology, p. 11.
55
D. Pingree, op. cit., p. 556.
56
Ibid., p. 560.
57
F. Cumont, op. cit., p. 27.
de aproximadamente 600 a.C., nelas estavam descritas as regras para a
interpretação dos presságios, relacionando os sinais celestes e os terrestres.
59
Para isso consideravam o lugar, a posição, o tamanho, a cor e o brilho das
estrelas e planetas, além de presságios meteorológicos. E é também onde
foram encontradas as mais antigas observações detalhadas dos movimentos
planetários e as predições a eles relacionadas de que se tem notícia.
60
A especificidade da astrologia que passou a ser elaborada na
Mesopotâmia se caracteriza pelo desenvolvimento de cálculos para a previsão
do movimento dos planetas, visando à previsão mais detalhada dos fenômenos
e dos fatos da vida dos indivíduos, e regras para a interpretação dos dados
encontrados. As técnicas e métodos desenvolvidos nesse processo
começaram a configurar o saber astrológico (ou astrologia), com seus
conceitos e enfoque pprios. Isso se diferencia, conforme já apontado no início
deste capítulo, das antigas formas genéricas de astrologia como expressão do
principio cosmológico e do simbolismo astral que estabelecem relações entre o
céu e a Terra (onde o movimento do Sol, as fases da Lua, e as estrelas e
constelações são marcadores das estações do ano ou períodos climáticos
específicos).
61
58
É uma compilação de aproximadamente 70 tabletes formados por 7.000 presságios e
predições correspondentes, encontrado nos arquivos de Nínive. Foi inscrito em 600 a.C.,
embora tenha incorporado material muito mais antigo. Cf. T. Barton, Ancient Astrology, p. 12.
59
D. Pingree, op. cit., p. 560.
60
T. Barton, Ancient Astrology, p. 12.
61
Um exemplo a favor da afirmação de que a cosmologia que estabelece a relação entre o céu
e a Terra, e o simbolismo astral a ela associado, são anteriores à astrologia enquanto um
saber, é o poema grego Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, escrito no século VIII a.C. Nele, a
relação entre o céu e a Terra já é explorada, e os fenômenos naturais e as atividades agrícolas
são descritas em relação ao céu. Por haver sido escrito no século VIII a.C., indica que essa
forma de compreender o mundo e os fenômenos fazia parte da cultura grega antes desta entrar
em contato direto com a astrologia mesopotâmica, com suas técnicas e métodos próprios, em
torno do século IV a.C.
O zodíaco começa a ser desenvolvido em torno de 700 a.C., a partir da
identificação e listagem das constelações próximas à faixa na qual os planetas
corriam (que era, para os mesopotâmicos, a trajetória dos deuses). Dezessete
constelações ao longo da eclíptica são marcadas e, “embora existam vários
grupos de estrelas pouco familiares, a origem do zodíaco moderno está
claramente aqui.”
62
Com a invenção do zodíaco, são dadas as condições para produção de
horóscopos individuais na Mesopotâmia, o que acontece nos séculos V ou
início do IV a.C. Nos textos dessa época predições para o que acontece
com a vida daquele que nasce quando cada planeta está visível no céu.
63
Costuma-se afirmar que foi durante o período helenístico, iniciado após
as conquistas de Alexandre Magno (334-323 a.C.), que o diálogo entre
diferentes povos e culturas se intensificou, gerando, como conseqüência, a
abertura do ocidente grego às influências do Oriente (principalmente quanto a
seus aspectos místicos e religiosos), assim como a ampliação da cultura grega
aos diferentes povos e culturas do oriente próximo.
64
Os principais reinos que
se formaram no Egito, na Síria, na Macedônia e em Pérgamo, após o império
de Alexandre, possuíam, em diferentes graus, uma mistura da cultura grega e
da oriental. O helenismo, nova cultura que se desenvolveu dessa mistura, se
estendeu por todo o mundo conhecido.
65
É, portanto, a partir do final de século IV a.C., que os dados e métodos
em astrologia e astronomia desenvolvidos pelos babilônicos são absorvidos
mais intensamente pelos gregos, que os transformam na medida em que os
62
T. Barton, Ancient Astrology, p. 13.
63
Ibid., pp. 14-6.
64
G. Reale, História da filosofia antiga, pp. 6, 9-10.
65
R. H. Barrow, op. cit., pp. 35-6, 74.
inserem em suas concepções racionais e filosóficas acerca do universo e seu
funcionamento.
66
Antes de Alexandre, os gregos e outras culturas
estabeleciam relações entre o céu e a Terra e conviviam com o simbolismo
astral, por isso também que o saber astrológico pôde ser incorporado, pois
compartilhava dessa mesma base comum.
Como exemplo do aumento da migração de indivíduos e da circulação
de idéias, que ocorreu no oriente próximo após as conquistas de Alexandre e
da colonização grega na Mesopotâmia, podemos citar os astrólogos Berosus e
Sudines, babilônios que se estabeleceram na Grécia no século III a.C., e que
contribuíram para aproximar a astrologia babilônica do pensamento grego.
67
O período helenístico ocupou um lugar central no desenvolvimento de
novas correntes filosófico-religiosas, que expressavam o sincretismo greco-
oriental. Esse momento, assim como as correntes teóricas a ele relacionadas,
foi crucial para o surgimento da astrologia ocidental. A principal estrutura da
teoria astrológica ocidental é certamente helenística.
68
Os princípios básicos da astrologia ocidental teriam surgido, em um
primeiro momento, da união de aspectos da elaborada adivinhação astral
babilônica, com os fundamentos da física aristotélica. O resultado foi a criação
de um modelo causal do cosmos, no qual as rotações eternamente repetidas
dos corpos celestes, juntamente com suas variadas (mas periodicamente
recorrentes) inter-relações, produziam todas as mudanças no mundo sublunar
dos quatro elementos, sujeito à geração e à corrupção.
69
66
O que se confirma com a colocação de G. Reale, de que a filosofia do período helenístico é
aberta à cultura oriental, a qual absorve e, com isso, a recompõe. Cf. G. Reale, op. cit., p. 470.
67
T. Barton, Ancient Astrology, p. 23.; F. Cumont, op. cit., p. 52.
68
Tester, op. cit., p. 24.
69
D. Pingree, op. cit., p. 560. Segundo F. Cumont, apesar de os gregos terem entrado em
contato direto com a astrologia como um saber somente após as conquistas de Alexandre
A contribuição egípcia parece ter sido secundária, até o século II a.C. A
imagem do Egito como o lugar de origem da astrologia, enquanto um saber,
está ligado ao Egito helenizado dos Ptolomeus, mais especificamente à
Alexandria
70
, nos séculos III e II a.C. Na metade do século I a.C. o Egito tinha
adquirido a reputação de beo da astrologia, e as maiores autoridades da
astrologia helenística lá tiveram seu lugar.
71
Os tratados herméticos
72
exerceram um papel fundamental na difusão
dessa idéia: muitos textos astrológicos herméticos são atribuídos a Nechepso e
a Petosiris o que a princípio significaria uma contribuição da antiga cultura
egípcia. Porém, Barton diz que esses textos, que se supõe serem do século I
a.C., parecem ser versões egípcias da literatura de presságios mesopotamica.
Ou seja, a influência babilônica é bastante presente na produção de
conhecimento do Egito helenizado. Uma lista de planetas e signos zodiacais do
século II a.C. é claramente baseada em figuras babilônicas. Além disso, as
Magno, no século IV a.C., eles haviam sido influenciados pelos princípios dessa teologia
astral babilônica. O início da especulação filosófica grega seria a prova disso, já que, para
Cumont, não duvidas de que a tentativa dos gregos de reformar as antigas especulações
cosmológicas com idéias relacionadas ao céu e aos movimentos planetários teve influência da
cultura babilônica. Cf. F. Cumont, op. cit., pp. 42-3. De acordo com essa idéia, T. Barton afirma
que o diálogo entre gregos e babilônicos já se dava antes do período helenístico, e foi
intensificado no século V a.C., devido talvez às guerras persas. Foi por isso que, segundo a
autora, somente após o século V a.C. que o conhecimento dos gregos sobre o céu foi
aprimorado, e que eles passaram a distinguir os planetas (“estrelas errantes”) das estrelas
fixas. Da mesma forma, a reforma do calendário de Atenas, feito por Meton e Euctemon, no
século V a.C., se deu com base nos métodos babilônicos. Cf. T Barton, Ancient Astrology, p.
21.
70
Alexandria (cidade egípcia fundada por Alexandre Magno), devido à sua posição geográfica
extremamente favorecida, proporcionou o encontro das correntes filosófico-religiosas do oriente
com o pensamento grego e se tornou, portanto, o centro cultural de novos estudos científicos,
literários e filosóficos durante o helenismo. A nova cultura elaborada pelos seus círculos
intelectuais foi denominada cultura alexandrina. Cf R. H. Barrow, op. cit., p. 35.; G. Reale, op.
cit., p. 10.
71
T Barton, Ancient Astrology, p. 22-3.
72
Grupo de trabalhos técnicos e filosóficos escritos em grego, que tratam de magia, astrologia
e alquimia, cuja autoria é atribuída a Hermes Trismegistro ou a Asclépio e seu círculo. A
literatura hermética é considerada uma fusão entre o pensamento grego, egípcio e babilônico
(entre outros), sendo, portanto, fruto da Antigüidade tardia. Cf. Ibid., p. 26.
Tábuas Eternas, atribuídas aos egípcios a partir do século I d.C., foram
compiladas dos almanaques babilônicos.
73
Não nos resta dúvidas de que a literatura astrológica hermética
74
foi uma
das principais correntes filosófico-religiosas na formação e consolidação da
astrologia ocidental. Porém, debruçar-se sobre suas características e
influências contidas na produção astrológica da Antigüidade tardia (mais
especificamente, na Astronomica de Manilius) seria uma tarefa de outro nível
de exigência, em se tratando da proposta desta dissertação de mestrado,
que o hermetismo é uma vertente cuja ênfase recai sobre os aspectos mágicos
e de manipulação do real, e não na previsão dos acontecimentos a partir do
conhecimento do funcionamento da ordem e da natureza do céu. Sua
consideração foge, portanto, ao escopo deste trabalho.
1.2.1. O Estoicismo
Cumont afirma que o papel exercido pelo estoicismo na sistematização e
difusão da astrologia no mundo helênico foi preponderante em relação àquele
exercido pela literatura hermética. Segundo o autor, o estoicismo justificou os
cultos populares, a narrativa sagrada e as religiões orientais dentro de uma
73
Ibid., pp. 24-5.
74
Os tratados herméticos representaram uma das mais antigas sínteses teórico-prática das
doutrinas astrológicas, o que lhes conferiu um lugar central no início da astrologia helenística.
Barton o apresenta em 4 grupos, segundo os temas que abordam. Para maiores detalhes
sobre o conteúdo dos tratados, vide Ibid., pp. 25-8. Segundo Cumont, esses tratados se
tornaram a grande autoridade no que diz respeito à astrologia, durante a Antigüidade tardia. Cf.
F. Cumont, op. cit., p. 65.
filosofia racional e foi, portanto, a principal via de incorporação da astrologia na
cosmologia grega e romana.
75
O estoicismo é uma escola filosófica fundada por Zenão, em Atenas, em
torno do século III a.C. Os principais conceitos filosóficos estóicos foram
desenvolvidos no estoicismo antigo, primeiro século dessa escola. Mas foi no
período denominado Médio estoicismo (séculos II e I a.C.), através da
contribuição de Posidônio (135 51 a.C.), que o pensamento estóico se abriu
ainda mais aos ensinamentos de outras escolas filosóficas, inclusive as do
Oriente, integrando-as e alterando alguns dogmas estóicos.
76
De forma geral, os conceitos estóicos sobre o universo e seu
funcionamento fundamentam muito bem a astrologia e sua prática.
Selecionaremos alguns deles para esclarecer, de forma breve, como isso se
dá, já que através da análise da Astronomica, desenvolvida no capítulo 2 desta
dissertação, os conceitos estóicos serão cuidadosamente discutidos, em
comparação com a concepção astrologica do mundo apresentada por Manilius.
Talvez o conceito mais importante nessa relação entre o estoicismo e as
artes adivinhatórias seja o de que o universo é um todo ordenado, onde suas
partes se relacionam de forma harmônica, conferindo unidade ao cosmo.
77
Essa mútua interação entre todos os elementos é expressão da presença da
mente divina, que se estende por todo o universo e atua de forma intencional e
lógica, garantindo o funcionamento do cosmo.
78
Assim, o cosmo é entendido
75
O fato de alguns dos principais filósofos estóicos terem sido sírios ou babilônicos, como
Posidônio e Diógenes, respectivamente, é um forte argumento, segundo Cumont, a favor dessa
tese. Cf. F. Cumont, op. cit., pp. 68-9.
76
Cf. G. Reale, op. cit., p. 377.
77
Os elementos que compõem o universo existem em co-existência dinâmica com o resto.
Essa co-existência, que compõe o todo de forma harmônica, é chamada pelos estóicos de
simpatia cósmica (sympatheia). Cf. S. Sambursky, Physic of the Stoics, p. 9.
78
Segundo a filosofia estóica, Deus é o principio da coesão e da simpatia entre todos os
elementos do universo. É razão, lógos, ordenador das coisas da natureza e autor do universo.
como um organismo vivo que é e se manifesta de acordo com um logos, com
uma intenção; e tudo que nele ocorre possui um sentido e revela essa ordem
segundo a qual os fenômenos se dão. Essa ordem se manifesta, portanto,
através da idéia que nexo causal, necessário e inviolável, determinado pelo
logos divino
79
. Por isso é possível, e teoricamente justificado, que alguns
signos anunciem determinados fenômenos, que tudo que acontece se dá
segundo leis fixas que se repetem continuamente. Assim, identificar a repetição
dessa ordem e quais signos estão associados a tais fenômenos, possibilita a
compreensão da lógica segundo a qual a natureza está ordenada.
80
Segundo Crisipo (280 - 210 a.C.), um dos principais pensadores
estóicos, nada ocorre ao acaso, que “[...] nada pode acontecer sem uma
causa; nem ocorre nada que não possa acontecer [...]”.
81
Ou seja, 4.33117(o)-4.1.87(ó)-i5-4.33117( )-TJ/R9 12 Tf.80439( )-1523117( )-TJi
mundo, que o mundo como um todo exprime uma disposição imutável na
ordem das coisas, e essa disposição é inviolável.
84
A astrologia, saber que pressupõe que o céu com seu movimento
cíclico e com suas repetidas configurações reflete uma ordem cósmica
(baseada na relação entre o céu e a Terra) e expressa a vontade dos deuses
(ao causar os fenômenos e acontecimentos), encontrou, no estoicismo, um
eco.
Vemos, através da exposição de algumas das suas idéias, que o
estoicismo exerceu um importante papel ao oferecer uma rede teórica e
conceitual na qual a astrologia pudesse se reconfigurar e, assim, entrar na
sociedade romana como parte da filosofia grega. Essa corrente filosófica foi,
portanto, um dos fatores que contribuíram para a difusão de conceitos básicos
e de pressupostos fundamentais da astrologia, centrais para a rápida e
vertiginosa ascensão que ela sofreu com o surgimento do Império. Mas não o
único.
Vamos, agora, levantar outros dos principais aspectos que levaram à
incorporação da astrologia em Roma.
1.3. COMO A ASTROLOGIA CHEGOU A ROMA
No decorrer de seus dois últimos séculos, com as campanhas cada vez
mais freqüentes ao oriente, a República romana gerou um ambiente propício
para a incorporação da astrologia na sua cultura, na medida em que
84
Ibid., p. 56.
incrementou a troca cultural e a circulação de pessoas que acontecia no
mundo antigo.
85
A conquista de um vasto império alterou a sociedade romana. A ampla
rede de estradas romanas facilitava o transporte de mercadorias e a circulação
de pessoas.
“O ir e vir de pessoas era o intenso quanto o ir e vir de
mercadorias. Soldados e mercadores, funcionários e empregados,
turistas, estudantes, filósofos e retóricos ambulantes, comerciantes, os
correios da correspondência imperial e dos bancos, as companhias de
navegação e outros tantos, congestionavam as estradas e as rotas
marítimas.”
86
A população das grandes cidades era cosmopolita, dado que eram
formadas por pessoas das mais diversas origens, que traziam consigo suas
crenças, costumes e valores. As religiões orientais teriam, dessa forma, se
estendido até o ocidente, onde foram absorvidas e adaptadas pela cultura
romana.
87
Além disso, a escravidão também foi uma das causas da mistura de
raças e culturas durante a expansão romana tanto no ocidente quanto no
oriente, porque aqueles que se tornavam escravos eram parte da população
dos diversos reinos e cidades conquistadas. E, deslocados através do Império,
85
Após vencer definitivamente os cartagineses, em 146 a.C., Roma investiu contra a
Macedônia e a Grécia. Depois de ocuparem a península Balcânica, os romanos se dirigiram à
Ásia Menor: derrotaram o reino da Síria em 190 a.C. e, com isso, iniciaram as conquistas no
Oriente. Em 30 a.C. o Egito foi derrotado e, no final do século I a.C., o Mediterrâneo havia sido
transformado no mar romano. Cf. M. C. Giordani, op. cit., pp. 40-50.
86
R. H. Barrow, op. cit., p. 91.
87
Ibid., pp. 91-2.
compunham grande parte da população tanto em Roma como nos seus
domínios.
88
O exército também contribuiu para a criação desse ambiente propiciador
onde os cultos estrangeiros eram introduzidos e incorporados pela cultura
romana. Como sua função era, dentre outras, manter a segurança nas
fronteiras, através da convivência com a população local acabou exercendo
sua influência e, de forma análoga, foi influenciado. Além disso, aqueles que
serviam como auxiliares às empresas militares (geralmente homens das
províncias locais, aquelas que compunham a fronteira nas quais as legiões
romanas se posicionavam para garantir a segurança) podiam, após alguns
anos de serviço, obter a cidadania romana para si e para seus filhos.
89
“Como, também, opor-se ao contágio, quando então os romanos
se encontravam no Oriente e, ao menos por meio dos escravos, o
Oriente se encontrava em Roma?
90
É provável que, ao menos em um primeiro momento, o Mitraísmo, com
seu culto ao deus-Sol, tenha chegado a Roma devido às campanhas militares
(após as campanhas orientais de Pompeu), que Mitra era, sobretudo, o deus
dos soldados.
91
Apesar dos registros de proibições de cultos e religiões que não a oficial,
e a conseqüente perseguição e expulsão daqueles que os praticavam
92
, o
88
Ibid., pp. 92-3.
89
Ibid., p. 84.
90
A. Aymard, Roma e seu Império v.1, p. 204.
91
Cf. R. H. Barrow, op. cit., p. 135.; A. Aymard, Roma e seu Império v.1, p. 205.
92
Como, por exemplo, os momentos em que o Senado romano decretava a expulsão dos
astrólogos (a primeira ocorreu em 139 a.C.), ou proibia a consulta astrológica, em função das
disputas políticas que envolviam tais previsões. Sobre esses momentos, vide T. Barton, Ancient
astrology, pp. 32, 44-51. Ou também alguns episódios em que houve uma intensa perseguição
Império romano adotou uma atitude de tolerância religiosa, em função da
diversidade cultural de seus cidadãos. Ou seja, o Império havia se constituído
agregando diferentes povos e culturas; fazia parte, portanto, de sua
organização social, o fato de diferentes comunidades ou grupos étnicos
cultuarem diferentes deuses.
93
A astrologia não fazia parte da cultura e da religião romana; era um
saber oriental que havia sido incorporado e incrementado pela filosofia grega.
Foi incorporado na cultura romana assim como o foram outros saberes
estrangeiros.
94
Sua inserção na cultura romana se deu, em um primeiro momento,
através da aproximação com o mundo grego, e é possível dizer que a historia
da astrologia em Roma é parte do processo de como o conhecimento grego foi
adotado pelos romanos.
95
“A astrologia, junto com as idéias filosóficas e os modelos
literários gregos, chegou a Roma no inicio do século II a.C., tempo em
que pela primeira vez os romanos invadiram militarmente as cidades
gregas do sul da Itália e entraram em contato com a civilização da
Grécia helenística.”
96
Os romanos conquistaram a Grécia no período que vai de 229 a 146
a.C. Porém, a astrologia não se estabeleceu desde essa época; foi sendo
introduzida na medida em que os romanos passaram a basear sua formação
dos cristãos, como no ano 177 ou em meados do século III. Para maiores detalhes, vide A.
Toynbee, op. cit., pp. 210-11.
93
Cf. A. Toynbee, op. cit., pp. 204-5.; R. H. Barrow, op. cit., p. 40.
94
J. Tester, op.cit., p. 67.
95
T. Barton, Ancient Astrology, p. 33.
96
J. Tester, op.cit., p. 67.
intelectual na cultura grega.
97
E parte desse processo se deu com a chegada
de gregos a Roma, ou como escravos ou à procura de mecenas dentre a elite
romana, para os quais pudessem trabalhar, educando seus pupilos e
transmitindo sua cultura natal.
98
No inicio a astrologia despertou suspeitas, por ser um saber estrangeiro.
Durante momentos de instabilidades e conflitos, era sobre os “orientais” e
estrangeiros que recaiam as suspeitas, o que, muitas vezes, terminava com
sua expulsão. A primeira grande expulsão dos astrólogos ocorreu em 139 a.C.,
após uma considerável agitação entre a população escrava e de imigrantes.
99
Aos poucos a sociedade romana e o Senado foram reconhecendo
oficialmente várias formas de adivinhação orientais.
100
E, no final do século I
a.C., grande parte da nobreza romana havia aceitado e incorporado a
astrologia na sua maneira de entender e compreender a vida.
101
Ou seja,
quando Augusto, ao longo de seu governo, faz uma utilização potica da
astrologia, no sentido de validar seu lugar como imperador, ele
estrategicamente opta pelo simbolismo de um saber que havia se
popularizado, posto que era aceito e difundido como verdade tanto pelas
massas quanto pela elite.
97
Barrow faz uma ressalva sobre o que se deve entender como a influência do pensamento e
do modo de vida dos gregos sobre a sociedade romana. Segundo o pesquisador, por “grego”
não se deve entender somente a expressão da cultura helênica, que teve em Atenas do século
V e IV a.C. seu ponto mais alto, mas também a cultura que se difundiu por todo o Mediterrâneo
oriental e que, com isso, adquiriu novos traços e contornos. Cf. R. H. Barrow, op. cit., p. 55.
98
T. Barton, Ancient Astrology, p. 34.
99
J. Tester, op.cit., pp. 67-8.
100
R. H. Barrow, op. cit., p. 131.
101
J. Tester, op.cit., p. 68.
Embora pouco se saiba sobre como a população comum acolheu a
astrologia, é possível mapear alguns elementos que contribuíram para a
incorporação da astrologia, na sua versão erudita, pela sociedade romana.
102
Conforme vimos na seção 1.2, “Os primórdios da astrologia ocidental”, o
estoicismo, através dos ensinamentos de Posidônio (c.135-50 a.C.), foi um dos
aspectos que contribuíram para a introdução da astrologia nas classes altas e
cultas. A influência das idéias estóicas sobre a elite romana era considerável, e
foram elas que serviram de base teórica à astrologia.
103
Um exemplo seria o
conceito de harmonia cósmica, conferindo unidade ao céu e a Terra. Ele se
tornou um dos axiomas fundamentais da astrologia helenística, e pode ser
claramente identificado ao longo da teoria astrológica proposta por Manilius,
104
como veremos no capítulo II.
Cícero se ocupou dos escritos de Posidônio por volta de 80 a.C., e a
noção de destino que é apresentada na sua obra De divinatione, através dos
argumentos de Quintus, corresponde à concepção defendida por esse filósofo,
tão importante na popularização das concepções estóicas sobre destino.
105
Porém, apesar do suporte que o estoicismo ofereceu à astrologia, sua
influência sobre a elite romana não deve ser vista como o único fator que levou
à aceitação da compreensão astrológica do mundo. Segundo Barton, além da
filosofia estóica, outro elemento de igual importância que também contribuiu
nesse processo. Esse elemento foi a educação aristocrática, que oferecia um
“conhecimento básico das estrelas, seus mitos e associações meteorológicas,
102
T. Barton, Ancient Astrology, p. 62.
103
Cf. Ibid., p. 34-5.; T. Barton, Power and knowledge, p. 38.
104
T. Barton, Power and knowledge, p. 38.
105
Idem, Ancient Astrology, p. 35.
graças talvez à poesia alexandrina”.
106
O modelo oferecido pela poesia
alexandrina para os que abordavam o céu, suas características e sua influência
sobre a terra, foi o poema astronômico de Aratus de Solis
107
, escrito no século
III a.C.
O poema astronômico de Aratus, o Phaenomena, era considerado, pela
maioria dos romanos, como a principal fonte de conhecimento sobre o céu.
Traduzido para o latim por Cícero e outros, foi, certamente, uma das influências
que preparou a cultura romana para a assimilação da astrologia.
108
Sabemos que a educação durante a Antigüidade se valia tanto de textos
de literatura (como os poemas, didáticos ou não), como os de filosofia e os que
tratavam dos saberes exatos, conferindo a eles igual importância no papel de
transmissores de saberes e conhecimento.
109
Dessa forma, ao considerarmos que a literatura (e não a filosofia
estóica) exerceu um papel central na criação de uma atmosfera onde os
conceitos básicos para a incorporação do saber astrológico circulavam, será
feita uma análise do poema Geórgicas, de Virgílio, com o intuito de observar
como tais conceitos eram transmitidos e/ou introduzidos na cultura romana.
A análise das Geórgicas se mostra oportuna pois possibilitará, através
de um olhar comparativo, uma compreensão mais ampla do estilo e da
contribuição que a Astronomica, de Manilius, ofereceu à consolidação do saber
astrológico na cultura romana. Sabemos que Manilius seguiu a tradição grega
de escrever em verso, e tinha no Phaenomena, de Aratus, um de seus
principais modelos; porém, “o poema didático de Virgílio sobre agricultura, as
106
Idem, Power and knowledge, p. 38.
107
Aratus de Soli (ca. 315-240 a.C.)
108
T. Barton, Ancient Astrology, p. 37.
109
M. de Asúa, Ciência e literatura– um relato histórico, p. 34.
Geórgicas, escrito para o círculo literário centrado na nova corte imperial, foi
provavelmente seu predecessor mais significativo.”
110
1.3.1. As Geórgicas, de Virgílio
Publius Virgilius Maro, poeta latino nascido em 70 a.C, havia
composto alguns poemas quando escreveu as Bucólicas, obra que marcou o
início de seu reconhecimento como um dos grandes poetas latinos, condição
esta que se consagrou com as Geórgicas e, finalmente, com a Eneida. Morre
em 19 a.C, quando iniciava uma viagem pelos lugares da Grécia que havia
descrito na Eneida.
As Geórgicas (iniciada em 39-38 a.C.) é um poema didático
111
composto
em quatro livros, que versa sobre a vida campestre. O primeiro livro é dedicado
à agricultura e sua relação com o clima, com as estações do ano e,
conseqüentemente, com o céu. O livro II versa sobre as vinhas; o terceiro,
sobre criação dos animais e, o último, sobre as abelhas.
Durante a Antigüidade, os poetas eram vistos como fonte de sabedoria,
que, inspirados pelas musas, anunciavam a verdade. Virgilio nos mostra
sobre qual verdade versa quando, no Livro II, diz:
“A mim, que apaixonado às musas sacrifico,
e as amo sobretudo, e a nada mais me aplico,
hajam-me elas por seu: descubram-me o mistério
de tanto astro a vagar por esse espaço etéreo:
como se obumbra o Sol? como se eclipsa a Lua?
110
T. Barton, Power and knowledge, p. 41.
donde à Terra o tremer? no mar que força actua?
quando se ergue medonho e nada lhe resiste,
ou quando abate e jaz? onde o motivo existe
que obriga os sois do inverno a mergulhar tão cedo,
tão tarde os do verão?”
112
No livro I, ao descrever as atividades agrícolas (como o momento de
arar e colher, por exemplo), Virgílio aconselha seu leitor a organizar tais
atividades subordinando-as às alterações na natureza que, segundo o poeta,
são anunciadas e marcadas pelos céus. Ao versar sobre a boa colheita, atenta
para o perigo da degeneração do que foi plantado. E como orientação, afirma:
“Por tudo há-de atentar o agrícola prudente:
notar nos céus o Arcturo, os Cabros, a Serpente,
como os nota quem vem pelos ventosos mares
saudoso demandando a terra e os pátrios lares,
e da ostrífera Abido aboca o bravo estreito.
Quando o fiel da Libra aponta aos céus direito,
Pesando por igual horas ao sono e ao dia,
Meio orbe à quente luz, e meio à treva fria,
Sus, valentes do campo! Arar para as cevadas!
Andai co’os bois, andai, te que entrem as chuvadas do tratável
inverno.”
113
O aparecimento de determinadas constelações no céu pautavam e
orientavam a atividade agrícola. Conforme Virgilio pontua, aquele que trabalha
111
O poema didático, bastante popular durante a Antigüidade, era considerado como
transmissor de conhecimentos sobre a natureza. Cf. M. de Asua, op. cit., p. 31.
112
Virgílio, Geórgicas. Eneida, p. 44.
113
Ibid., pg 11.
no campo deve se guiar por tais referências celestes, como a da constelação
de Libra que, ao anunciar o equinócio
114
de outono, marca o momento de arar
a terra para a cevada, antes das chuvas do inverno.
A vida campestre é retratada como estando em íntima relação com as
estações do ano: como a natureza se apresenta em cada uma delas, as
variações climáticas, em quais momentos plantar (o que e como), e como os
hábitos e vida dos camponeses também estão em sintonia com essas
variações da natureza.
Porém, essa íntima relação entre a terra, o homem que vive da terra e
em contato direto com a natureza, e os ciclos anuais decorrentes dos
movimentos das esferas celestes, é cantada, versada e anunciada por diversos
poetas e filósofos durante a Antigüidade. Em alguns trechos das Geórgicas,
Virgílio afirma que somente reconhecer e respeitar os ciclos naturais não é
suficiente; é necessário, também, entender a lógica celeste.
“Cautela pois, cautela, amados camponeses!
não basta conhecer as estações e os meses:
é mister atentar no livro das estrelas,
sabê-las distinguir, e saber entende-las;
por exemplo: a que signo o frígido Saturno
vai procurar asilo? O resplendor nocturno
do cilenio Mercúrio, em que órbita viaja?”
115
Para se compreender os conceitos veiculados pela poesia de Virgílio,
devemos voltar ao século III a.C, momento em que o poeta Aratus de Solis
114
Equinócio é um fenômeno astronômico em que a duração do dia é igual a da noite
(“pesando por igual horas ao sono e ao dia”) , e acontece duas vezes ao ano, na primavera e
no outono.
compôs o Phaenomena, que parece ter se baseado nos tratados astronômicos
de Eudoxo. O poema descreve o céu e seu funcionamento, localizando as
constelações e descrevendo os círculos das esferas planetárias.
116
Este poema
foi o principal modelo alexandrino para os que escreviam sobre as estrelas, e
se manteve como referência também na época de Augusto
117
. Porém, os
poetas latinos aos poucos foram modificando esse modelo ao introduzirem
novas idéias sobre a influência celeste, que refletiam a difusão e a aceitação
cada vez mais rápida que a astrologia vinha ganhando. Segundo Montanari
Caldini, a tradução que o poeta Germanicus fez desse famoso poema de
Aratus para o latim incluiu algumas alterações, no sentido de contemplar as
idéias astrológicas contemporâneas.
118
“Os poetas da época de Augusto escreveram baseados em temas
literários tradicionais da Alexandria, mas davam a eles uma nova
ênfase.”
119
É sob essa perspectiva que entendemos algumas passagens das
Geórgicas. Em grande parte do poema em questão, Virgílio ilustra e faz
referência às estrelas e aos signos como marcadores das estações, e de que
forma isso interfere na agricultura ou na vida campesina de forma geral. Essa
forma de se referir aos céus não difere de como era feito até então, e apenas
confirma as concepções vigentes a respeito da influência celeste sobre a vida
na Terra. O trecho abaixo, extraído do Livro III, ilustra tal estilo:
115
Virgílio, op. cit., p. 16.
116
M. de Asua, op. cit., p. 31.
117
Cícero traduziu o poema de Aratus para o latim, contribuindo para que esse gênero se
mantivesse presente e se apresentasse como referência no século I a.C.
118
T. Barton, Power and knowledge, p. 48.
119
Ibid., p. 48.
“Não somenos cuidado às cabras me consagra:
regala-as no curral, enquanto o frio dura,
com verde medronheiro,
e a água fluvial bem pura.
O Cabril abrigado e exposto ao meio dia,
receba os sois de inverno, até que a urna fria de Aquário espalhe ao ano
os últimos chuveiros.
120
Ou seja, o signo de Aquário, que era freqüentemente simbolizado por
uma urna ou vaso (às vezes segurado por uma pessoa) derramando água,
anuncia uma época de chuva. Essa mudança de fase pontua os tipos de
cuidado que se deve ter com as cabras. Porém, atentemos para um detalhe
significativo: mesmo o se referindo à astrologia propriamente dita, Virgílio
sinaliza o papel que o simbolismo astral exercia no mundo greco-romano: a
época das chuvas é anunciada pelo signo de Aquário.
121
Conceitos astronômicos também eram transmitidos ao longo dos versos
de tal poema, como ilustram os exemplos que se seguem:
“para isso é que o Sol, que doura essa atmosfera,
de signo em signo corre, e nos perlustra a esfera.”
122
Aqui se faz referência ao movimento do Sol pela esfera celeste, que
estava dividida em 12 signos zodiacais. No verso seguinte, Virgílio segue com
120
Virgílio, op. cit., p. 63.
121
O signo de Aquário corresponde aos meses de janeiro e fevereiro e, portanto, está
associado ao inverno no hemisfério norte
122
Virgílio, op. cit., p. 12.
este tema; tendo comentado sobre os céus e sua divisão em zonas, conclui
descrevendo mais uma vez o movimento oblíquo do Sol pelo zodíaco:
“Transversa via as corta, oblíqua vai por ela
dos signos zodiacais a lúcida seqüela.”
123
. São trechos, portanto, que veiculam didaticamente conceitos
astronômicos / astrológicos. Mesmo em se tratando de concepções aceitas
sobre a natureza e o movimento das esferas celestes, sua difusão e validação
através do poema contribuiu para que, cada vez mais, os romanos se
familiarizassem com os conceitos sobre os quais a astrologia ocidental estava
se erguendo. Ou seja, a astrologia se inseria em uma cosmologia existente,
para então formular uma nova leitura. Essa nova leitura do mundo timidamente
se anuncia em alguns trechos das Geórgicas.
No Livro III, depois de abordar o tema das serpentes, seus hábitos,
comportamentos, e o mal que causam, Virgílio comenta:
“O céu não me dê nunca a tentação funesta
de adormecer ao ar, na lomba da floresta,
sobre uma cama de erva, ao tempo em que a serpente
muda as roupas, remoça, e vaga refulgente;
[...]”
124
Aqui vemos, ao menos indiretamente, a idéia de que as tendências e
comportamentos humanos estão sujeitos à influência celeste, tão central à
123
Ibid., p. 12.
124
Ibid., p. 67.
astrologia. Ou seja, o céu não mais influi somente nos fenômenos naturais, e
as estrelas não são simplesmente marcadores das estações do ano, mas
direcionam as tendências e comportamentos humanos. Essa é uma concepção
claramente astrológica.
No Livro I Virgílio diz:
“Assim quem lê nos céus, para a ignorância escuros,
faz que sirva ao presente o anuncio dos futuros:
o prazo de colher, e o de semear conhece;
[...] Não pois em vão se nota de cada vário signo ocaso e nascimento,
e das quadras o turno, e do ano o regimento.”
125
Mais adiante se refere de forma direta ao aspecto de adivinhação do
saber astrológico:
“quem dirá que o Sol mente?! O Sol te nos descerra
os tumultos por vir, e as fraudes, e se a guerra
fermenta ocultamente.”
126
Aqui o Sol não é retratado no seu caminhar oblíquo pelo zodíaco, nem
como marcador das estações ao atravessar ciclicamente cada signo, mas
como um astro que anuncia o futuro, os fatos e o destino dos Homens.
Concluída a análise do poema em questão, uma comparação pode ser
feita entre a introdução de conceitos astrológicos nos versos das Geórgicas,
feita por Virgílio no século I a.C, e o tratado astrológico escrito em versos por
Marcus Manilius, no século I d.C. Manilius escreveu o Astronomica, um poema
didático, abordando o saber astrológico em si, seus pressupostos, conceitos e
técnicas. Produzido no interior do Império romano consolidado, a
Astronomica versa sobre um saber cuja aceitação havia sido fortalecida, em
função da importância política que passou a ter ao ser utilizado como
legitimação política pelo imperador.
Enquanto Manilius escreve um poema explicitamente e inteiramente
astronômico/astrológico
127
, contribuindo, dessa forma, para a consolidação da
astrologia como saber, Virgílio introduz conceitos astrológicos gerais, mais
ligados ao simbolismo astral e aos princípios cosmológicos que pressupõe a
influência dos céus sobre a Terra.
128
Através dos versos das Geórgicas, que abordavam a vida e as
atividades agrícolas em relação aos céus, Virgílio contribuiu para a instrução
dos romanos sobre conceitos astronômicos. Mas apresentava também,
como alguns poetas latinos, a idéia de que os astros determinavam a vida dos
homens, fazendo referência implícita ao saber astrológico que cada vez mais
ganhava espaço e status na sociedade romana.
Manilius, por sua vez, escreveu um poema didático considerando as
novas idéias astrológicas e a cosmologia que se remodelava a partir daí,
propondo, então, um outro modelo.
129
A cosmologia que serviu de base para a
apresentação da concepção astrológica do universo, proposta por Manilius, é o
que vamos ver no capítulo II deste trabalho, a partir da análise da Astronomica.
1.3.2. Incorporação e aceitação da astrologia
125
Ibid., p. 13.
126
Ibid., p. 21.
127
Sobre a astrologia proposta por Manilius na Astronomica, vide: J. Tester, op. cit., pp. 45-61.
128
T. Barton, Power and knowledge, p. 48.
Vimos, portanto, que a astrologia chegou a Roma associada à
astronomia, filosofia e literatura, e como parte da cultura grega, cultura essa
valorizada pelos romanos, que se esforçaram para assimilá-la. Porém, se o
interesse dos círculos cultos e nobres da sociedade romana pela astrologia
adoração conveniente a seus interesses, assim como uma justificativa
de suas pretensões autocratas.”
130
1.4. A ASTROLOGIA ENQUANTO LEI UNIVERSAL DA NATUREZA
A tese de que a astrologia antiga se configurou enquanto lei universal da
natureza foi proposta por Thorndike, em 1955, e afirma que a astrologia
ofereceu uma teoria geral e sistemática para a compreensão do mundo e seus
fenômenos. Essa lei pressupunha uma relação de causalidade entre o céu e a
Terra, baseada na separação espacial e qualitativa entre esses dois mundos.
Nesse sentido, todas as operações do mundo inferior eram compreendidas
como algo que s2.80414.33117(o)17( )-222.294(m)-7.494 33056(m)-7.49588(o)5.id.3305aos mundos.
influência do céu sobre a Terra, se tornou uma das principais referências para
operar no mundo e entendê-lo, ou seja, para produzir conhecimento.
Quando Augusto se apropria do processo de utilização política da
astrologia, ele estrategicamente opta por um saber que havia se
popularizado, posto que era aceito e difundido como verdade tanto pelas
massas quanto pela elite. Porém, como afirma Barton, uma íntima relação
entre poder e conhecimento, o que faz com que essa pesquisadora defenda a
tese de que o lugar ocupado pela astrologia no mundo romano seja resultado
de uma interdeterminação entre o saber astrológico aceito e reconhecido
como tal, e a aproximação dos imperadores a ele. Essa dinâmica reflete o que
Barton caracterizou como uma relação circular dos sistemas de poder, onde a
verdade cria o poder na mesma medida em que o poder a redefine como
verdade.
131
Nesse sentido, a aproximação política entre a astrologia e o
Império romano reiterou e fortaleceu as técnicas e procedimentos astrológicos
como meios de se obter a verdade. Dessa forma, partindo de Thorndike e se
baseando na pesquisa desenvolvida por Barton, podemos dizer que o status da
astrologia como lei universal da natureza atingiu um de seus pontos mais altos
quando se destacou no cenário político romano.
Barton afirma, portanto, que a astrologia antiga foi uma “ciênciaem seu
momento e contexto, ou seja, respondia questões e conferia uma explicação
convincente dos fenômenos, aceita pela grande maioria.
132
“A astrologia, na sua interpretação estrita, foi a mais abrangente
modelos matemáticos apropriados, predições de todas as mudanças que
ocorriam em um mundo de causa e efeito [...].”
133
Porém, a aceitação da astrologia como verdade não era unânime.
Cícero, em seu tratado De divinatione, escrito no século I a.C., apontou
algumas críticas a esse saber, que serão relacionadas a seguir. Entretanto, um
dado curioso e significativo da presença da astrologia na cultura romana é que,
antes de criticá-la, Cícero apresenta seus pressupostos básicos, dizendo que,
segundo a astrologia, o zodíaco, e a posição dos planetas em relação a ele,
provocam mudanças no mundo e modulam a índole, os costumes, o corpo e o
destino das crianças que nascem.
134
Isso indica, portanto, que a astrologia, além de ser uma das formas de
adivinhação da cultura romana no século I a.C. (pois está dentre os saberes
que foram abordados nesse tratado), não era um saber marginal. Cícero
conhecia seus conceitos e métodos e dedicou um espaço no seu texto para
questioná-los.
A natureza de sua primeira crítica aos astrólogos fala a favor das idéias
apresentadas acima. Cícero atenta para o fato de que o horizonte é diferente
em cada lugar, o que faz com que o nascimento e o pôr dos astros se em
tempos diferentes em cada cidade. Mas os astrólogos consideram somente a
hora e não calculam essa diferença, produzindo horóscopos errados
135
. Ou
seja, Cícero aponta uma imprecisão técnica do método e/ou a desqualificação
dos astrólogos para aquilo a que se propõem. De qualquer maneira, para
apontar essa crítica é necessário ter um conhecimento prévio da astrologia.
133
D. Pingree, op. cit., p. 560.
134
Cícero, De divinatione II, § 89.
135
Ibid., § 92.
Algumas das críticas apontadas por Cícero são: 1) se o tempo, os
ventos, e as variações atmosféricas, que estão muito mais próximas dos
Homens, não interferem no nascimento, porque os planetas influenciariam? 2)
O fato de que pessoas nascidas no mesmo instantes têm vidas e destinos
diferentes, e de que as crianças herdam os costumes, as atitudes e os traços
físicos dos pais, porque dizer que o céu do momento do nascimento interfere
nessas questões? 3) Pessoas que morreram na mesma batalha estavam todas
sob a influência do mesmo astro? 4) Inúmeras previsões foram feitas sobre a
vida e o destino de César, mas estavam erradas.
Entretanto, apesar de Cícero não aceitar uma forma da astrologia, não
nega a influência dos astros sobre a Terra:
“Como, pelo avanço e retrocesso dos astros, ocorre grande
variedade e mudança das estações e da temperatura, e como o poder
do Sol produz resultados que vemos, eles [os astrólogos] acreditam que
é não apenas provável, mas seguro, que assim como a temperatura do
ar é regulada por essa força celeste, também as crianças em seu
nascimento são influenciadas em alma e espírito e, por essa força, são
determinados suas mentes, modos, disposição, condição smo67474(7( )-382.373(o)5.67474(,)-2.16436( )-82.262.16436(o)-4.33117(r)2.80439(ç)-0.29558)-292.33633117(,)-2.3.353(s)-0.298027(e)-4.32873(u)556.002]TJ-307-20.76 Td[(d)-4.3311795(s)9.71032(m)7474(t)-21
Plínio, no Livro II da História Natural, escrito no século I d.C., também
reconhece que os fenômenos terrestres estão submetidos ao movimento dos
astros e ao funcionamento do céu. Ao abordar especificamente a astrologia,
Plínio diz que “tanto as pessoas instruídas quanto as incultas vão nesta
direção”
138
, o que, segundo ele, seria um sinal de que essa teoria começava a
consolidar-se. Porém, faz uma crítica à astrologia na qual sugere que a relação
entre a vida humana e as estrelas não era tão direta nem tão estreita como
pontuava esse saber:
“As estrelas [...] não estão designadas a cada um de nós, como
se acredita vulgarmente, nem são brilhantes para os ricos, menores para
os pobres, escuras para os desafortunados, nem reluzem segundo a
sorte de cada qual, que o nascem e morrem com a pessoa
correspondente, nem quando declinam significa que alguém esteja se
extinguindo.”
139
Ou seja, diferente de Cícero, Plínio não faz uma crítica tão extensa e
minuciosa à astrologia. E, logo em seguida, afirma: ”afeta fundamentalmente a
Terra a influência das estrelas”.
140
Devido à natureza da obra produzida por Plínio, que sistematizou em 37
livros grande parte do conhecimento e das concepções acerca dos mais
diferentes assuntos e áreas do saber da Antigüidade tardia, o Livro II pode ser
utilizado como uma referência sobre a cosmologia e o funcionamento do
mundo, aceitos nesse momento histórico.
138
Plinio, el Viejo, Historia Natural II, p. 345.
139
Ibid., p. 347.
140
Ibid., p. 348.
Em uma determinada passagem desse Livro, Plínio diz que é verdade
que os signos zodiacais exercem uma influência que provoca alterações no
clima, no campo e no corpo.
141
“Há pessoas que se mostram afetadas pela influência da
constelação, outras sofrem, em determinados momentos, perturbações
do intestino, músculos, cabeça e mente [...] A menta floresce no mesmo
dia do solstício de inverno [...] a influência da Lua aumenta e logo
diminui o tamanho das ostras, moluscos e das conchas; inclusive os
lóbulos do fígado dos ratos do campo respondem ao ciclo da Lua [...].”
142
Plínio, assim como Cícero, não nega a influência dos astros sobre a
natureza e sobre os animais, o que se remete à aceitação dos pressupostos
básicos da cosmologia segundo a qual o mundo e seus fenômenos eram
compreendidos. Ele também reconhece que o corpo humano é influenciado
pelo céu e diz, logo em seguida, que as constelações emanam eflúvios e
vapores que influem na saúde das pessoas, gerando perturbações.
143
A concepção astrológica do mundo era a maneira de compreender e
explicar os fenômenos. Uma mesma cosmologia oferecia as bases
epistemológicas para o desenvolvimento dos diferentes saberes; e talvez a
medicina astrológica tenha sido uma das mais populares associações da
astrologia com outro saber.
144
141
Ibid., p. 389.
142
Ibid., pp. 389-390.
143
Ibid., p. 389.
144
Medicina astrológica (ou Iatromatemática) é a relação entre saúde, doença e astrologia,
assim como a associação entre signos e planetas com as partes do corpo (denominada
melothesia), e com a composição e preparação de medicamentos.. Cf T. Barton, Power and
knowledge, p. 179.; M. Battistini, Astrología, magia e alquimia, pp. 112-5.; L. Thorndike, op. cit.,
p. 273.
A cosmologia astrológica criou as condições para que a astrologia se
ramificasse e se ocupasse com diferentes áreas do saber. Existia, por exemplo,
a astrologia horoscópica, voltada para a interpretação de horóscopos
individuais, a partir do céu no momento do nascimento. Havia, também, o que
pode ser denominado de astrologia etnográfica, ou seja, o estudo do efeito do
céu e dos planetas sobre pessoas e culturas que vivem nas diferentes regiões
da Terra. Outra vertente da astrologia era a astrologia meteorológica, que se
ocupava de entender as variações climáticas em função do funcionamento do
céu. Existiam, portanto, várias correntes astrológicas, que se baseavam em um
mesmo corpo teórico fundamental, mas cada uma desenvolveu um campo de
pesquisa e atuação diferentes. Era possível, dessa forma, defender a verdade
de um ramo e criticar a do outro.
145
Como a cosmologia se associava intimamente com os princípios
astrológicos, grande parte dos saberes desenvolvidos necessariamente
referiam-se à astrologia, seja de forma direta ou indireta. Por isso que
Thorndike a denominou de lei universal da natureza e, com relação a isso,
disse:
“Natividade
146
era somente um único ramo ou departamento da
astrologia num sentido amplo, e sua validade dependeu da forte
suposição de que todo o mundo natural era governado e dirigido pelo
movimento dos céus e dos corpos celestes.”
147
Conclusão
145
T. Barton, Power and knowledge, p. 32.
146
Natividade se refere à astrologia horoscópica, que se ocupa da interpretação do horóscopo
do momento do nascimento de um indivíduo.
147
L. Thorndike, op. cit., p. 273.
O que procuramos desenvolver ao longo deste capítulo foi a
identificação dos principais elementos de contexto que fizeram com que o
saber astrológico se instituísse e ganhasse tanta aceitação. Porém, não basta
considerarmos apenas o contexto histórico para entendermos a força que uma
determinada teoria imprimiu na maneira que uma época e cultura compreendeu
o mundo e seus fenômenos, como se as crenças (e a ciência) pudessem ser
explicadas apenas por forças sociais. É necessário também que nos
debrucemos sobre a cosmologia propriamente dita, para entendermos a
penetração da astrologia a partir das bases ontológicas deste saber.
Por isso, no próximo capítulo vamos analisar a obra Astronomica, de
Marcus Manilius, buscando identificar a compreensão astrológica do mundo, e
os traços da cosmologia estóica presentes nessa teoria.
Capítulo 2. A ASTRONOMICA, DE MARCUS MANILIUS
2.1. SOBRE O AUTOR E A OBRA
Nada se sabe sobre a vida de Manilius. Nem sobre sua origem é
possível afirmar nada certo, mas tende-se a considerá-lo de origem itálica.
148
Sua obra, a Astronomica, é um poema latino composto de cinco livros
que versa sobre astrologia, mas parece estar incompleto, que no Livro II
Manilius anuncia que apresentará a natureza e influência dos planetas, mas a
o final do Livro V não retoma esse assunto.
149
Não consenso entre os estudiosos da Astronomica sobre o período
exato em que a obra foi escrita. Se, por um lado, é reconhecido e aceito que
Manilius tenha iniciado sua obra em torno do ano 9 d.C., quando Augusto era o
imperador, há, por outro, um intenso debate em torno do ano em que ela teria
sido terminada ou, ao menos, em que o Livro V teria sido concluído - se
durante o reinado de Augusto, ou após a morte deste, sob o governo de
Tibério.
150
O maior problema que se coloca com essa questão é saber a qual
imperador Manilius se refere em diferentes momentos dos Livros I, II e IV.
151
A tese de Housman, apresentada em 1903 e adotada por outros
estudiosos, é que a Astronomica teria sido escrita entre 9 d.C. e 22 d.C., ou
seja, que os três primeiros livros teriam sido escritos sob o governo de Augusto
e, os dois últimos, sob o de Tibério. Porém, E. Flores publicou um trabalho em
1961 onde defendeu a tese de que a Astronomica foi escrita inteiramente sob o
148
Cf. F. Calero, “Introducción”, in Manilio, Astrología, p. 9.
149
D. Pingree, “Manilius, Marcus”, in C. C. Gillispie, org., Dictionary of Scientific Biography, vol.
9, p. 79.
150
Ibid., p. 79.
governo de Augusto. Tese que Herrmann, em 1962, também defende.
152
Goold, por sua vez, afirma que os Livros I e II foram escritos enquanto Augusto
reinava; o Livro III, por sua vez, não oferece pistas conclusivas a esse respeito.
o Livro IV, ao exaltar o signo de Libra, e não mais o de Capricórnio, quando
se refere ao imperador, indica que esse Livro foi escrito sob o governo de
Tibério, dado que era ao signo de Libra que ele se associava.
153
Em nossa
análise constatamos que no trecho 770-780 do Livro IV, Manilius realmente
exalta as qualidades do signo de Libra, identificando-o como regente de Roma
e associando-o ao imperador.
154
Segundo E. Romano, a obra se estrutura da seguinte maneira: o Livro I
expõe os conhecimentos astronômicos básicos, que remetem à síntese feita
por Aratus de Soli (ca. 315-240 a.C)
155
. Os Livros II, III, IV abordam o poema
astrológico propriamente dito. E o Livro V seria um adicional ao plano inicial do
poema, dedicado a paranatellonta.
156
Costuma-se afirmar que o conteúdo astrológico do poema é rudimentar
e, por isso, ele não se mostra adequado para aquilo a que se propõe: a
instrução de estudantes no saber astrológico.
157
Segundo Barton, como a
audiência de Manilius era a nobreza, o poema foi escrito em versos e, na
realidade, não estava destinado à formação de pupilos o que se confirma
151
Cf. F. Calero, op. cit., p. 10.
152
Cf. Ibid., pp. 9-19.
153
G. P. Goold, “Introduction”, in Manilius, Astronomica, p. xii.
154
Para maiores detalhes sobre a análise dessa passagem do Livro IV, vide a seção 2.2.6.
“Astrologia: um sistema ordenado”.
155
O poema astronômico de Aratus, o Phaenomena, era considerado, pela maioria dos
romanos, como a principal fonte de conhecimento sobre o céu. Traduzido para o latim por
Cícero e outros, foi, certamente, uma das influências que preparou a cultura romana para a
assimilação da astrologia. Cf. T. Barton, Ancient Astrology, p. 37.
156
Cf. F. Calero, op. cit., p. 21. Paranatellonta é a relação das constelações extrazodiacais que
ascendem e se põem ao mesmo tempo que as constelações zodiacais. Cf. F. Calero, op. cit., p.
33.
pela ausência de exemplos e horóscopos ilustrativos. Assim, alguns autores
tendem a não considerar a Astronomica um manual astrológico, pois não seria
possível fazer ou interpretar um horóscopo a partir dela.
158
Entretanto, Goold
afirma que a produção de um poema didático é uma tarefa complexa e, por
isso mesmo, é possível que um texto seja didático mas não contemple tudo a
respeito do saber sobre o qual se dedica. Este seria, para Goold, o caso da
Astronomica, que se mostra como um manual astrológico, mas não
completo.
159
O Livro I faz um breve relato das especulações cosmológicas; trata da
esfera, das constelações (zodiacais ou não), dos grandes círculos, e termina
com uma discussão sobre os cometas. O Livro II trata dos signos do zodíaco e
suas características, classificações, relações geométricas e subdivisões;
estabelece a relação entre os signos e as partes do corpo humano; apresenta o
conceito de dodecatemoria
160
, zodiacal ou planetária; fala sobre os pontos
cardeais e expõe o sistema de doze ou oito casas. O Livro III apresenta as
doze sortes
161
; o cálculo do horóscopo, ou o surgimento dos signos no
horizonte; explica o conceito de cronocratoria
162
; expõe um método para
calcular a duração de uma vida, e descreve os signos trópicos (Áries, Câncer,
Libra e Capricórnio). O Livro IV faz uma descrição dos efeitos dos signos
zodiacais nos que nascem sob sua influência; apresenta o conceito de
157
Um dos pesquisadores que faz essa afirmação é D. Pingree; para maiores informações,
vide: D. Pingree, “Manilius, Marcus”, in C. C. Gillispie, org., Dictionary of Scientific Biography,
vol. 9, p. 79.
158
Cf. T. Barton, Ancient astrology, p. 138.
159
Cf. G. P. Goold, op. cit., p. xiv.
160
Este conceito será explicado na seção 2.2.6. “Astrologia: um sistema ordenado”.
161
As sortes, também denominadas “partes”, lugares” e “trabalho”, são um sistema de
previsão astrológica, mas o fato de serem de doze tipos não estabelece relação com o sistema
das doze casas. Cf. Manilio, Astrología, p. 157.
162
Este conceito será explicado na seção 2.2.6. “Astrologia: um sistema ordenado”.
decano
163
; identifica os graus malignos de cada signo; trata de astrologia
geográfica, apresentando um mapa do mundo com os regentes zodiacais de
cada parte, e termina com uma discussão dos efeitos dos eclipses em
diferentes signos. O Livro V fala basicamente sobre o tema das paranatellonta,
e a influência que a combinação de diferentes constelações exerce no
temperamento e na vida das pessoas.
2.2. ANÁLISE DA OBRA
O objetivo desta análise é identificar qual a concepção de mundo
presente na Astronomica, enfatizando especificamente os traços do
pensamento estóico na cosmologia e nos pressupostos teóricos que serviram
de base ao sistema astrológico proposto por Manilius. Assim, não será
analisado o sistema astrológico em si, seus conceitos e técnicas próprias
164
,
mas o quanto ele reflete da cosmologia na qual se baseia.
As seções segundo as quais a análise da obra será feita foram definidas
a partir da leitura da Astronomica; assim, os conceitos e pressupostos da
filosofia estóica serão apresentados em função do material selecionado da
obra. Ou seja, não se pretende fazer uma apresentação detalhada dessa
escola de pensamento, mas sim relacioná-la com os trechos da Astronomica
que foram escolhidos, estabelecendo assim um diálogo que servirá de base
para a análise.
163
Este conceito será explicado na seção 2.2.6. “Astrologia: um sistema ordenado”.
164
Para uma breve análise da astrologia desenvolvida por Manilius, vide: J. Tester, op. cit., pp.
45-75., e a introdução da tradução espanhola da Astronomica, escrita por F. Calero: Manilio,
Astrología, pp. 28-41.
Para isso serão usadas basicamente duas das principais fontes
primárias do Médio estoicismo
165
: a obra De divinatione, escrita por Cícero, e a
obra De mundo, escrita por Posidônio.
166
cero (106 - 43 a.C.) não era
estóico, mas é considerado como uma das principais fontes de informação
sobre o estoicismo, por haver sistematizado, de forma crítica, seus preceitos.
167
Posidônio (c.a.135 - 51 a.C.) foi um dos principais representantes do dio
estoicismo, cujas idéias e contribuões à escola estóica no século I a.C. se
mostraram centrais para entender o desenvolvimento do saber astrológico
desse período histórico.
As passagens da Astronomica em que Manilius estabelece uma relação
entre astrologia e poder não foram destacadas em uma seção própria. Essa
opção se justifica pois o objetivo deste capítulo é analisar especificamente os
traços do pensamento estóico presentes na concepção de mundo que sustenta
o sistema astrológico apresentado por Manilius. Entretanto, como essa
associação é estrutural para se entender o lugar que a astrologia passou a
ocupar no Império romano, conforme vimos no capítulo 1, alguns trechos da
Astronomica que fazem referência a essa associação serão pontuados ao
longo da análise.
168
2.2.1. A estrutura do universo
165
Período de desenvolvimento da escola estóica que se deu entre os séculos II e I a.C.
166
Embora tenha chegado até nós como uma obra escrita por Aristóteles, é um consenso entre
muitos pesquisadores especializados que o autor do tratado De mundo é Posidônio.
[POSIDÔNIO]. “De mundo”. In: Aristóteles. The works of Aristotle translated into English. Trad.
Ingl. W. D Ross. Oxford, Clarendon, 1931, 12 vols., vol. 3.
167
Cf. J. Brun, O estoicismo, p. 10.
168
DeNardis propõe como discussão em sua tese de doutorado uma análise dos diferentes
níveis de poder presentes na Astronomica. Segundo a pesquisadora, esses veis de poder
são estruturais ao próprio poema e se apresentam em três eixos: o poder do cosmo; o do
imperador; e o do próprio poeta. Para uma análise mais detalhada sobre a relação entre
astrologia e poder político presente na Astronomica, vide: V. S DeNardis, op. cit., pp. 129-217.
O modo como o mundo está formado e disposto no espaço é abordado
por Manilius basicamente ao longo do Livro I, onde o autor se ocupou em
apresentar algumas noções básicas de astronomia aos seus leitores.
Por se tratar de uma obra escrita em Roma, no século I d.C., é de se
esperar que o universo seja compreendido do ponto de vista geocêntrico: a
Terra se encontra no centro e se afasta de forma eqüidistante dos extremos do
universo.
169
Ao lidar com a idéia de que há extremos no universo, a concepção
de um universo finito é confirmada. Os limites do universo são formados pelas
estrelas fixas e, acima delas, não nada.
170
Em nenhum momento de sua
obra Manilius faz referência à concepção estóica da existência do vazio que
envolve o universo finito. O autor apenas indica que a esfera das estrelas fixas
é a ultima e que ela encerra o universo.
171
A Terra é estática, o que se move é o u. O céu é composto pelas
estrelas fixas e planetas, porém, enquanto o céu se movimenta em uma
direção, fazendo girar as constelações nele dispostas de forma fixa, os
planetas circulam na direção contrária a ele, obedecendo, cada qual, sua
esfera e órbita determinadas. A ordem em que estão dispostos no espaço, é:
Saturno (o mais distante da Terra e mais próximo das estrelas fixas), Júpiter,
Marte, Sol, Mercúrio, Vênus e Lua (a mais próxima do centro e da Terra).
172
169
Manilius, Astronomica I, § 200-205. Utilizamos duas traduções diferentes da Astronomica.
Porém, as referências pontuadas ao longo desta dissertação estão de acordo com a
numeração dos versos do texto original em latim.
170
Ibid., § 532-539.
171
Para os estóicos, o universo é finito e coeso. Porém, está inserido em um vazio infinito, com
o qual não interage, que sua coesão o mantém uno e coerente em si mesmo. Cf. S.
Sambursky, op. cit., pp. 110-113.
172
Manilius, Astronomica I, § 532-539.
A Terra, e tudo que a ela pertence, está sujeito à mudança. As coisas
terrestres nascem, crescem e morrem, necessariamente. O céu, por sua vez,
permanece imutável, conserva todas as suas partes, e é eterno.
173
Segundo Manilius, a Terra, o Sol e os planetas são esféricos, que
imitam a forma do universo que, em função de seu movimento circular, adquiriu
o formato esférico. O formato do universo, por sua vez, reflete a forma dos
deuses (esférica) e sua natureza, não possuindo nem princípio nem fim.
174
Uma prova da esfericidade da Terra é o fato de não ser possível ver
sempre as mesmas constelações de qualquer parte do globo terrestre. Como
aquilo que é visto no céu depende do local em que se está na Terra, sua forma
é redonda. Outro argumento apresentado por Manilius é que, se ao invés de
redonda a Terra fosse plana, o brilho da Lua não a iluminaria gradualmente,
primeiro em algumas regiões para, aos poucos, se estender às demais, e sim
se daria de uma vez só.
175
Manilius afirma que o universo está suspenso, e não se apóia em
nenhuma base, o que é evidente pelo fato de mover-se, assim como pelo seu
movimento circular, observado pelo aparecimento regular das constelações e
pelo caminhar previsível do Sol por elas.
176
A Terra, assim como o universo, também está suspensa no centro
177
e
nele permanece estável, graças ao equilíbrio de forças entre os elementos que
compõem o universo. É esse equilíbrio que mantém a ordem de todo o
universo, assim como o movimento cíclico e regular dos astros.
178
173
Ibid., § 510-525.
174
Ibid., § 210-215.
175
Ibid., § 215-230.
176
Ibid., § 195-200.
177
Ibid., § 195-200.
178
Ibid., § 173-180.
Ao falar sobre os elementos e sua participação na formação do universo,
Manilius diz que: “o fogo alado elevou-se às regiões mais altas e, abraçando os
pontos mais altos do céu estrelado, formou uma defesa de chamas para a
proteção do universo”.
179
Em seguida, referindo-se ao fogo Manilius diz que
“[...] o sopro desceu até a região das brisas sutis”, ou seja, a região ocupada
pelo ar. É possível notar, nessa frase, a íntima relação entre a cosmologia
apresentada por Manilius e as idéias estóicas
180
, através da idéia de um sopro.
Para os estóicos, o sopro pode tanto ser refencia ao pneuma - definido como
um sopro quente ou espírito que se estende por todo o cosmo - quanto ao fogo
artífice, um sopro ígneo e artesão, associado á geração do cosmo. Como
Manilius, no texto original em latim, usa o termo spiritus, não temos vida de
que ele está se referindo ao pneuma.
181
Ao seguir seu raciocínio, Manilius diz que o ar, encontrando-se abaixo
dos astros, é o que alimenta o fogo. O terceiro elemento é a água. Quando a
água se evapora, expele a brisa sutil e alimenta o ar. A Terra, por sua vez, foi a
ultima a assentar-se.
182
Há, na totalidade dessa passagem, uma seqüência que alude à
cosmologia estóica, segundo a qual existe um primeiro movimento gerador do
universo que parte do fogo, passa pelo ar e pela água, e chega na terra.
183
Os
elementos são quatro: fogo e ar, os agentes ativos do universo, cuja
179
Ibid., § 145-155.
180
Conforme será explicado nos parágrafos que se seguem.
181
Segundo Reale, para os estóicos, deus, que é ao mesmo tempo physis e logos, foi
identificado tanto com o fogo artífice quanto com o pneuma, o que mostra uma certa
sobreposição desses dois conceitos. Porém, seria do logos-fogo que os quatro elementos se
formariam: fogo e ar primeiro, que juntos formam o pneuma (espírito), e depois a água e terra.
combinação gera o pneuma, e água e terra, os passivos e mais pesados e, por
isso, se encontram no centro do universo.
184
Manilius, ao discorrer sobre o por quê dos cometas, diz que todo o
universo está permeado por fogo, por isso é natural que às vezes apareçam no
céu esses rastros de fogo e que o ar resplandeça iluminado por essas chamas
brilhantes. O que nos chama a atenção aqui é o pressuposto de que o fogo
está presente em toda a natureza, o que é parte fundamental das idéias
estóicas. Segundo Manilius:
“[...] o fogo está presente em todas as partes: habita nas nuvens
carregadas que dão origem aos raios, penetra na Terra, ameaça o céu
com as chamas do Etna, esquenta as águas nas suas próprias fontes e
se encontra na dura pedra e na casca verde quando a madeira, ao
esfregar-se consigo mesma, se queima; até tal ponto o fogo é abundante
em toda natureza [...]”.
185
Segundo a escola estóica, a “natureza é um fogo trabalhando
artisticamente, seguindo seu caminho para a criação”.
186
De acordo com Reale,
o fogo é o Princípio que tudo transforma e penetra.
187
Um aspecto da relação entre astrologia e poder é abordado por Manilius
na discussão sobre a estrutura e composição do universo. Ao se referir à
batalha do Accio, após a qual Augusto se afirma como único governante de
Roma, Manilius o designa como “dono do u” e como “deus na Terra”
184
Cf. S. Sambursky, op. cit., p. 4.
185
Manilius, Astronomica I, § 850-860.
186
Cf. Diogenes Laertius apud Sambursky, op. cit., pp. 3-4.
187
G. Reale, op. cit., p. 308.
associando seu lugar de governante do mundo com o de governante ou
regente do universo.
188
Em outro trecho da Astronomica, ao falar sobre as regiões da Terra de
onde é possível observar outras constelações, diferentes das conhecidas pelos
romanos, Manilius diz que o céu, assim como a luz do Sol, é igual para todos,
mas essas outras regiões somente são superadas por Roma em relação a um
astro: “Augusto, que deu sorte a nosso hemisfério: agora o maior legislador na
Terra, depois do céu”.
189
DeNardis afirma que Manilius, ao se referir à figura do imperador como
parte do cosmo e, portanto, como expressão natural do poder do universo,
confere ao governante poderes divinos e autoriza-o a exercê-lo sobre a
Terra.
190
Vemos que, ao longo de seu poema, Manilius se esforça para
reverenciar o imperador, sustentado por conceitos e referências astrológicas.
Com isso, alimentava a proximidade entre astrologia e política, característica
do final da República e início do Império romano.
Em uma determinada passagem do Livro I, Manilius expõe diversas
teorias sobre a origem e formação do universo, com as quais não se
compromete.
191
Mas, ao começar a apresentar a concepção de mundo na qual
se baseará, afirma: “[...] qualquer que seja sua origem, o aspecto externo do
mesmo tem harmonia, e sua estrutura está disposta segundo uma ordem
188
Manilius, Astronomica I, § 915-925.
189
Ibid., § 385-390.
190
Cf. V. S. DeNardis, op. cit., pp. 162-3. Para maiores informações sobre a associação entre o
poder do cosmo e o poder do imperador, vide: V. S. DeNardis, op. cit., p. 162-202.
191
A apresentação das diversas teorias está em: Manilius, Astronomica I, § 120-149. Cf. G. P.
Goold, op. cit., p. xviii.
precisa”.
192
Ou seja, Manilius atenta para a harmonia e a ordem constituintes
do universo. Esse é o tema que abordaremos na próxima seção.
2.2.2. O princípio ordenador
Se a proposta é analisar as influências estóicas na obra de Manilius,
nada mais adequado do que iniciar a discussão com um trecho extraído do
inicio do livro II, no qual o autor anuncia sobre o que versará:
“Cantarei, de fato, a deus que com silencioso desígnio governa a
natureza, que está no interior do céu, da Terra e do mar, e dirige o
imenso universo com leis constantes; cantarei como todo o universo
subsiste graças à concórdia de suas partes e é movido pelo impulso da
razão, pois um único espírito habita em todas as suas partes e impregna
o universo percorrendo-o todo e configurando-o como um ser vivo”.
193
Adequado, porque esse verso expressa, do início ao fim, que Manilius se
baseia na física estóica para compreender o universo e, da maneira como
apresenta o tema de sua obra, o autor anuncia claramente seu posicionamento
teórico.
Dentre os pressupostos básicos com os quais trabalha, está a idéia de
que o universo é um todo ordenado, que respeita leis fixas e constantes em
seu funcionamento. Isso se deve pelo governo da mente divina ou deus, que
De acordo com o pensamento estóico, deus é um ser imortal, sem forma
definida, responsável pela geração e ordenação do cosmo, que é razão e
inteligência. Está em todos os elementos do universo, pois, como um espírito,
se espalha por tudo e perpassa toda a matéria, unindo-se a ela e mantendo o
universo coeso e unido.
194
Como principio ativo, é inseparável da matéria,
portanto, “deus está em tudo e deus é tudo. Deus coincide com o cosmo”
195
, ou
seja, é múltiplo e uno ao mesmo tempo.
Segundo Reale, o conceito de deus é o eixo em torno do qual a física
estóica se organiza. Deus é identificado com a physis: “para os estóicos, physis
implica matéria, mas implica também o
princípio intrínseco agente que é, que
e que se torna forma de todas as coisas, isto é, o princípio que faz tudo
nascer, crescer e ser”.
196
Assim, deus é physis mas é também logos, ou seja,
principio de inteligência e racionalidade, imanente à matéria.
O conceito de pneuma, por sua vez, também é estrutural no pensamento
estóico, e se define como uma substância muito rarefeita que a tudo permeia,
preenchendo o cosmo como um todo.
197
Sua função básica é a geração e a
coesão da matéria, assim como o contato entre todas as partes do cosmo
198
.
Sambursky afirma que: “a matéria passiva e sem forma é o primeiro substrato
do cosmo e, dessa forma, sem qualquer qualidade. É o pneuma que a tudo
perpassa que, totalmente misturado com a matéria, a imbui com todas suas
qualidades”.
199
Dessa forma, o pneuma se apresenta como o agente
responsável pela unificação da matéria, o que se confirma pelas palavras de
193
Idem, Astronomica II, § 60-65.
194
J. Brun, op. cit., p. 58.
195
G. Reale, op. cit., p. 303.
196
Ibid., p. 307.
197
S. Sambursky, op. cit., p. 16.
198
Ibid., p. 1.
Sextus Empiricus, ao dizer que “há um só espírito (pneuma) que se espalha por
todo o universo, como uma alma, e nos faz um com ele”.
200
Manilius está se referindo ao pneuma quando diz que “um único espírito
habita em todas as suas partes e impregna o universo percorrendo-o todo”
201
,
garantindo, assim, sua harmonia e coesão.
Entretanto, embora os estóicos acreditassem na natureza corpórea do
pneuma, eles não consideravam que era semelhante à matéria, mas sim à
força. Foi a concepção de um poder interpenetrando a matéria e se espalhando
pelo espaço e, com isso, causando os fenômenos físicos, que formou a idéia
central de pneuma.
202
Dessa forma, pneuma se tornou sinônimo de deus, e uma noção se
define pela outra, já que pneuma, enquanto força natural capaz de dar forma às
coisas e causar mudanças no mundo físico, é expressão da razão divina. E
deus, ao ser entendido como algo totalmente misturado com a matéria, foi
identificado com o pneuma que a tudo permeia.
203
Assim, a razão divina foi
definida como pneuma corporal, e ambos se constituem como o princípio
ordenador do universo.
Se o pneuma, através de sua ação, faz da natureza uma unidade
coerente de característica dinâmica, é o conceito estóico de simpatia
(sympatheia), ao pressupor que todos os elementos do universo subsistem em
co-existência numa matéria contínua onde o vazio, que faz do cosmo um
único corpo, com uma estrutura harmônica e unificada.
204
199
Ibid., p. 18.
200
Sextus Empiricus apud S. Sambursky, op. cit., p. 2.
201
Manilius, Astronomica II, § 60-65.
202
Cf. S. Sambursky, op. cit., p. 36.
203
Ibid., pp. 36-7.
204
Ibid., p. 41.
Manilius faz referência ao conceito de simpatia universal no verso que se
segue:
“Esta obra, formada com a matéria do imenso universo, assim como as
diversas partes da natureza, constituídas em distinta proporção pelo ar,
pelo fogo, pela terra e pela água nivelada, são dirigidas pela força divina
de uma alma, para a qual contribui a divindade com seu sagrado
movimento, que governa com uma norma secreta, estabelecendo
mútuos vínculos entre todas as partes, a fim de que cada uma
disponibilize suas forças para as demais e receba o mesmo das outras
partes, e faça com que o conjunto permaneça unido através de suas
diversas formas”.
205
Com base nesse verso, podemos dizer que Manilius considera a
existência da simpatia universal que, por meio da interdependência entre as
partes, garante a coesão e unidade do todo.
Um dado interessante, e que reforça a tese de que Manilius se baseia
predominantemente na filosofia estóica, pode ser observado no trecho em que
o autor critica aquele que ensinou que “o edifício do universo estava formado
por átomos e que neles se desfaria”.
206
Ao se contrapor ao Epicurismo de
forma explícita, Manilius posiciona-se de um dos lados da disputa filosófica
travada entre as escolas atomista e estóica, comum durante a Antigüidade
tardia.
Uma das principais diferenças entre as duas escolas pode ser percebida
no posicionamento de cada uma em relação à teoria da matéria. Enquanto o
estoicismo propunha a teoria de um continuum dinâmico, composto pela
205
Manilius, Astronomica I, § 247-254. Grifo meu.
206
Ibid., § 487-489
matéria (sem forma) juntamente com a ação do pneuma (conferindo, de
maneira sensível e inteligente, forma e coerência a ela), o atomismo trabalhava
com os conceitos de átomos e de vazio, onde o universo era composto por
átomos, pequenas estruturas completas em si mesmas, e pelo vazio, espaço
onde não havia corpos - formados, sem a ação de um logos ou intenção divina,
por átomos.
207
Dessa forma, os atomistas admitiam a interação por contato
direto. Já os estóicos, ao considerarem que não havia vazio no universo,
falavam de interação em um continuum dinâmico, e em um poder que tudo
envolvia.
208
Manilius afirma:
“Parece-me que não nenhum outro argumento tão forte, pelo qual
resulte evidente que o universo gira graças a um poder divino, que ele
mesmo é deus e que não se formou sob a direção do acaso [..]”.
209
Ou seja, ele considera que as coisas não se dão por acaso e sim pela
ação inteligente de um princípio ordenador. E continua criticando as
concepções epicuristas ao questionar que os corpos sejam formados por
átomos e sem a intervenção da divindade. A favor da idéia de que há a
intervenção divina no cosmo, e contra a idéia de acaso, Manilius afirma:
“Por quê vemos que as constelações saem sucessiva e regularmente,
seguem as órbitas que lhes foram designadas, como que por uma lei, e
que nenhuma se atrasa porque nenhuma se adianta?”
210
207
Cf. S. Sambursky, op. cit., p. 44.
208
Ibid., p. 46.
209
Manilius, Astronomica I, § 483-487.
Manilius conclui seu raciocínio dizendo que se não houvesse a harmonia
(ou simpatia) entre todas as partes que compõem o universo, e se essa
estrutura como um todo não obedecesse à mente divina, que a governa com
inteligência e sabedoria, o universo não existiria, pois não haveria ordem e sim
caos.
211
um verso, no Livro III, que apresenta de forma bastante completa e
esclarecedora os conceitos com os quais Manilius compreende o universo e
seu funcionamento:
“A natureza, causa e salvaguarda das coisas secretas, ao erigir coisas
imensas e de grande proporção por entre as muralhas do universo, ao
colocar astros esparsos ao redor da Terra, que ficou suspensa no
centro, ao unir com leis imutáveis membros diversos em um corpo, e
ao ordenar ao ar, à terra, ao fogo e à água oferecer recíproco alimento
alternativamente, a fim de que a concórdia regesse tantos princípios em
luta, e o universo, unido por uma lei eterna, mantivesse sua estabilidade,
a fim de que nada permanecesse excluído da suprema ordem racional e
a fim de que aquilo que era do universo fosse governado pelo universo
mesmo, também fez depender o destino e a vida dos homens dos
astros, os quais defenderiam o mais elevado dos atos, a honra e a
glória, o renome, e girariam sem se cansarem jamais”.
212
Vamos analisá-lo por partes: quando Manilius diz, “A natureza, causa e
salvaguarda das coisas secretas [...]”, está pressupondo que ela encerra em si
os segredos do universo, sua ordem e os princípios de seu funcionamento.
Como demonstraremos no final dessa análise, há, nesse verso, a identificação
210
Ibid., § 495-505.
211
Cf. Manilius, Astronomica II, § 65-80.
212
Idem, Astronomica III, § 48-60.
da natureza com o conceito de deus, logos e mente divina, própria da escola
estóica.
213
No trecho que diz “[...] ao erigir coisas imensas e de grande proporção
por entre as muralhas do universo, ao colocar astros esparsos ao redor da
Terra, que ficou suspensa no centro [...]”, Manilius está se referindo à estrutura
do universo, entendido como finito e delimitado por contornos ou “muralhas”; e,
espalhados dentro desse espaço delimitado astros, que giram ao redor da
Terra que, por sua vez, está suspensa no centro do universo.
“[...] ao unir com leis imutáveis membros diversos em um corpo [...]”,
vemos, nesse trecho, inclusive em função dos termos empregados (“membros”
e “corpo”), que o universo é entendido como um organismo vivo
214
, cuja
unidade é ordenada e articulada por leis gerais e imutáveis que se estendem
por todas as suas partes.
Ao dizer que “[a natureza] ao ordenar ao ar, à terra, ao fogo e à água
oferecer recíproco alimento alternativamente, a fim de que a concórdia regesse
tantos princípios em luta [...]”, Manilius afirma que todos os elementos que
compõe o universo se retro-alimentam e se relacionam equilibradamente,
mantendo uma coerência entre si.
Essa idéia se relaciona diretamente com o pensamento estóico, que
entende que o cosmos é uma entidade orgânica, cujo equilíbrio dinâmico -
dentro do vazio que o envolve - se pelos pesos iguais na mistura dos quatro
elementos. Se fosse mais pesado, se moveria para baixo, se fosse mais leve,
para cima.
215
213
Para os estóicos, natureza e deus são termos sinônimos. Cf. J. Brun, op. cit., p. 48.
214
Para o estoicismo, o mundo, que compreende o céu, a terra e os seres que nele se
encontram, é considerado um organismo vivo. Cf. J. Brun, op. cit., p. 48.
215
Cf. S. Sambursky, op. cit., p. 110.
Tanto no verso acima citado, quanto na cosmologia estóica, a idéia
de que o cosmo tende ao equilíbrio, à harmonia. Ou seja, a natureza, ao
ordenar os quatro elementos, buscou, com isso, que a mistura coerente entre
eles regesse os princípios conflitantes e o embate que existe entre as coisas,
para que, com isso, o universo se mantivesse em equilíbrio.
216
Essa concepção
é expressa por Posidônio, que diz que o universo é ordenado por um único
poder que se estende através de tudo, o qual, por sua vez:
“[...] criou todo o universo com elementos diferentes e separados
(ar, terra, fogo e água), envolvendo tudo com uma superfície esférica e
forçando as naturezas contrárias a viver em acordo, o que produz a
permanência do todo”.
217
Seguindo em nossa análise, há o trecho que diz: “[...] e o universo, unido
por uma lei eterna, mantivesse sua estabilidade, a fim de que nada
permanecesse excluído da suprema ordem racional [...]”. Aqui a idéia de
que o universo se mantém unido por uma lei eterna, o que garante sua
estabilidade, e faz com que tudo que o componha participe da suprema ordem
racional, ou seja, do logos ou mente divina.
218
No último trecho do verso, que diz: “[...] e a fim de que aquilo que era do
universo fosse governado pelo universo mesmo, também fez depender o
destino e a vida dos homens dos astros, os quais defenderiam o mais elevado
216
O cosmos se auto-sustenta porque nele está contido tudo que precisa. Suas partes estão
em constante troca entre si, por isso o cosmo em sua totalidade é um corpo perfeito e
harmônico. Cf. S. Sambursky, op. cit., p. 114.
217
Cf. Posidônio, De mundo, 396
b
30. Utilizamos a seguinte tradução em inglês: [POSIDÔNIO].
“De mundo”. In: Aristóteles. The works of Aristotle translated into English. Trad. Ingl. W. D
Ross. Oxford, Clarendon, 1931, 12 vols., vol. 3.
218
Segundo DeNardis, a existência de um plano divino que confere ordem e coesão ao
universo é um dos mais evidentes níveis de poder com que Manilius lida na Astronomica. Para
dos atos, a honra e a glória, o renome, e girariam sem se cansarem jamais”,
está presente a idéia de que a natureza (enquanto deus ou mente divina), ao
imprimir o princípio de que tudo que compõe o universo participa da “suprema
ordem racional”, fez com que o universo se auto-regulasse e governasse a si
mesmo.
Ao final da análise detalhada do verso acima selecionado, podemos
definir o conceito de natureza com o qual Manilius trabalha. A natureza: 1)
erigiu o que compõe e se insere no universo, como os astros e a Terra; 2)
conferiu as leis imutáveis que geraram e mantém o universo; 3) é responsável
pela coerência e união de tudo que compõem o universo; 4) ordenou os quatro
elementos de modo que a mistura entre eles conferisse estabilidade ao
funcionamento do universo; 5) fez que tudo que compõe o universo fosse
governado pelo próprio universo, de modo que nada permanecesse excluído
da suprema ordem racional a ele inerente; 6) fez com que o destino e a vida
dos homens dependesse dos astros.
Ou seja, a natureza é entendida como sendo inteligente, que age de
forma coerente e segundo princípios lógicos, e tem como finalidade manter a
ordem e o funcionamento harmônico do universo, criado por ela. Nota-se,
portanto, a clara sobreposição dos conceitos de natureza e de deus, própria do
pensamento estóico.
A última frase do verso que acabamos de analisar que os astros giram
sem se cansarem jamais contém em si a referência ao movimento regular,
cíclico e repetido dos astros, como expressão da ordem e da eternidade do
a pesquisadora, Manilius “[...] descreve o cosmo todo poderoso como uma combinação do
poder de deus e do logos [...]”. Cf. V. S. DeNardis, op. cit., p. 146.
universo.
219
Em outra passagem da Astronomica, localizada no Livro I, Manilius
apresenta essa mesma relação:
“E não há nada mais admirável nesse universo imenso que seu
desígnio, e o fato de que tudo obedece a leis fixas. Em nenhuma parte
causa perturbação o elevado número de estrelas, e em nenhuma parte
nenhuma anda errante nem gira em uma órbita mais ampla ou mais
estreita ou segundo uma ordem alterada.”
220
2.2.3. O céu como causa
Por se tratar de uma obra astrológica, não é de se surpreender que a
Astronomica estabeleça uma relação causal do céu para com a Terra. Algumas
passagens da obra ilustram essa concepção, como a que se segue, onde
Manilius fala sobre a constelação do Cão maior, e diz que ele é: “[...] o mais
violento dos astros para a Terra quando sai e o mais prejudicial quando se põe.
Quando se levanta está rígido pelo frio e, quando deixa o radiante céu, este se
encontra aberto ao calor do Sol: dessa forma, move o universo em ambos os
sentidos, produzindo efeitos contrários.”
221
Nas primeiras linhas da citação,
parece que a idéia apresentada é a de que quando a constelação surgia no
céu, estava associada ao frio do inverno, nos princípios de janeiro; e quando
desaparecia, no inicio de maio, anunciava o calor do verão que se aproximava.
Se assim o fosse, Manilius não se distanciaria da antiga visão baseada no
simbolismo astral, que entendia as constelações como marcadoras de eventos
219
Para a escola estóica, o cosmo, embora sujeito a contínuo metabolismo, nunca morre. E
sua imortalidade é expressão da extensão infinita do tempo, cujo fluxo está associado aos
ciclos planetários e à sucessão de eventos que nunca cessa. Cf. S. Sambursky, op. cit., pp.
106-7.
220
Manilius, Astronomica I, § 475-482.
atmosféricos e variações climáticas, de forma semelhante como Virgílio o fez
nas Geórgicas
222
. Porém, a concepção segundo a qual Manilius compreende
os fenômenos é esclarecida de forma categórica com a última frase: “dessa
forma, move o universo em ambos os sentidos, produzindo efeitos contrários.”
A constelação, portanto, produz efeitos, e não só os sinaliza.
Essa relação pela qual o céu produz e causa efeitos e eventos na Terra
aparece por toda a Astronomica. Outro exemplo é quando a constelação de
Touro aparece no céu: “ele [o Touro] causa guerras e volta a trazer a paz, ao
regressar de distintas formas, move o mundo segundo sua visão, e o governa
com seu olhar.”
223
Segundo Manilius, os signos trópicos (definidos por ele como sendo
Câncer, Capricórnio, Áries e Libra), “fazem mudar todo o universo [...] e
introduzem novas formas nos trabalhos e na natureza”
224
, que são eles que
produzem a mudança das estações. Ao discorrer sobre os efeitos que o signo
de Áries produz, afirma: “Então pela primeira vez o mar fica calmo com ondas
suaves, e a terra se atreve a produzir variadas flores; então nas pastagens os
rebanhos risonhos e as aves dão-se ao amor e à procriação, todo o bosque
ressoa com vozes harmoniosas e se põe verde toda a folhagem; tanto muda a
natureza com as forças desse signo.”
225
também versos dedicados a descrever o tipo de influência que o céu
exerce no temperamento dos homens, como a longa seqüência presente no
221
Ibid., § 395-405.
222
Vide seção 1.3.1. “As Geórgicas, de Virgílio”, no capítulo 1 desta dissertação.
223
Manilius, Astronomica I, § 400-410. Manilius confere o poder de influência dessa
constelação à sua cor e ao brilho de seu fogo, já que se trata de Sírio, a estrela mais brilhante
do céu.
224
Idem, Astronomica III, § 618-624.
225
Ibid., § 650-658. Grifo meu.
Livro IV, do verso 122 ao 293, que aborda as características e habilidades que
os signos concedem àqueles que nascem sob seu domínio.
É imensa a quantidade de trechos que estabelece uma relação direta e
causal entre os signos, constelações e planetas com as mudanças na natureza
e interferência na vida humana; essas foram somente algumas amostras. Um
dos pontos que se mostra interessante para a análise é comparação dessa
relação de causalidade, explicitamente apresentada por Manilius, e a
concepção de que as estrelas apenas sinalizam ou acompanham as mudanças
meteorológicas, como vimos nas Geórgicas, de Virgílio.
Nesse poema, Virgílio ilustra e faz referência às estrelas e aos signos
como marcadores das estações, e de que forma isso interfere na agricultura ou
na vida campesina de forma geral. Essa forma de se referir aos céus não
diferia de como era feito a então, e apenas confirmava as concepções
vigentes a respeito da influência celeste sobre a vida na Terra, baseadas no
simbolismo astral.
226
Em contraposição a essa compreensão de mundo, temos a concepção
astrológica, representada por Manilius na Astronomica, onde um dos eixos
principais é a relação de causalidade entre o céu e a Terra, que se expressa na
idéia de que as tendências e comportamentos humanos estão sujeitos à
influência celeste. Ou seja, quando a concepção astrológica do mundo se
afirma, as estrelas não são simplesmente marcadoras das estações do ano, e
a posição do céu não somente está associada aos fenômenos naturais, mas os
produzem e direcionam, assim como o fazem com as tendências e
comportamentos humanos.
226
Essa discussão foi desenvolvida na seção 1.3.1. “As Geórgicas, de Virgílio”, no capítulo 1
desta dissertação.
Seguindo seu raciocínio astrológico, Manilius afirma que graças às
constelações zodiacais e aos planetas é possível conhecer todo o plano do
destino, o que os justifica como os elementos mais importantes do universo.
Isso porque o destino, seqüência inevitável de acontecimentos, é derivado do
céu.
227
Mas antes de entrarmos no conceito de destino, vale abordarmos
alguns aspectos da teoria da causalidade segundo o pensamento estóico, para
tentarmos compreender com base em que pressupostos teóricos Manilius
considera o céu como causa.
Segundo Sambursky, a existência de um nexo causal no mundo é uma
verdade axiomática da escola estóica.
228
Porém, para que o nexo causal entre
tudo que compõe o universo seja possível, a teoria da causalidade deve se
sustentar na concepção de que há uma simpatia universal entre todos os
elementos do universo, mantendo-o único e coeso.
“A continuidade da natureza, esta presença dos corpos num
mundo de espaço ocupado que ignora o vazio, esta assimilação de Deus
e do cosmos, permitem-nos dizer que o todo está em simpatia consigo
mesmo, que tudo conspira, que existe uma simpatia universal das coisas
e dos seres”.
229
A concepção de um universo que se manifesta como um continuum de
matéria está associada ao conceito de pneuma, uma força que perpassa o
mundo todo, conferindo coerência e coesão à matéria, ao misturar-se com ela.
O conceito de pneuma tornou-se sinônimo de deus, que encerra em si a
227
Manilius, Astronomica I, § 255-262.
228
S. Sambursky, op. cit., p. 66.
229
J. Brun, op. cit., p. 53.
idéia de uma força inteligente ou razão divina que a tudo permeia. Dessa
forma, Sambursky afirma que o pneuma tem um lugar central na física estóica
porque possui um duplo significado: é poder divino que confere à matéria um
estado definido, e é o nexo causal que liga os sucessivos estados da matéria.
E, nesses dois aspectos, se revela espacialmente e temporalmente como um
agente contínuo.
230
A propagação se dá, portanto, em um único continuum material. Desse
modo, o universo assume um aspecto corpóreo, onde não vazio: “para os
estóicos, o ar não é composto de partículas, mas é um contínuo que não
possui espaço vazio”.
231
Condição necessária para que a propagação se
estenda, se constituindo como um nexo causal.
A simpatia universal, ou seja, o cosmo como um único organismo, com
uma estrutura unificada, coesa e ordenada, onde suas partes interagem, é
possível graças a ação do pneuma. Segundo Sambursky, uma das provas da
existência da simpatia é, para os estóicos, a influência do céu sobre a Terra,
onde o exemplo da relação entre a Lua e a ma é um dos mais usados,
aparecendo inclusive no tratado De divinatione, de Cícero, que faz referência
aos ensinamentos de Posidônio.
232
Afirma Cícero:
“Para que falar também dos braços de mar ou das agitações
marinhas? Seus fluxos e refluxos são governados pelo movimento da
Lua. Seiscentos exemplos dessa mesma natureza podem ser citados
para que se veja a relação natural de coisas distantes.”
233
230
S. Sambursky, op. cit., pp. 28-37.
231
Ibid., p. 23.
232
Ibid., pp. 41-2.
233
Cícero, De divinatione II, § 34.
A conexão causal que se estende por todas as coisas assim o faz
através do tempo e do espaço, cuja influência é transmitida por contato direto
ou pela ação do pneuma.
234
Assim, um corpo transmite sua influência a outro, e
aquele que a sofreu pode ser a causa de outros efeitos, na medida em que
também transmite sua influência. Esse é o nexo causal, uma cadeia de causas
que se estende continuamente no tempo e no espaço, formando, em sua
totalidade, o curso do universo.
235
Um exemplo bastante significativo para o tema com o qual estamos
tratando é o das estações do ano. Elas representam o ar em determinados
estados termais. Ou seja, a natureza e a influência de cada estação do ano
está em uma relação de dependência causal com a posição do Sol.
236
Assim, se o céu é entendido como causa por Manilius e para a astrologia
de forma geral, é com o seu movimento que altera os corpos que estão
próximos e, como em uma relação causal, estes transmitem sua influência
através do espaço, até entrarem em contato com a Terra e gerarem as
alterações específicas.
Manilius não apresenta um raciocínio teórico para explicar como se daria
a influência do céu sobre a Terra, mas buscamos nos conceitos fundamentais
da física estóica e, como se verá a seguir, nas particularidades do pensamento
de Posidônio, os argumentos que justificam suas idéias.
Para Posidônio, deus ocupa o primeiro e mais alto lugar no céu, de onde
exerce sua influência sobre os corpos celestes, desde o mais próximo a ele até
234
S. Sambursky, op. cit., p. 53.
235
Ibid., pp. 56-7.
236
Ibid., pp. 83-4. Vale lembrar que, no universo estóico, o ar se encontra no espaço, acima da
Terra e da água. Por isso o Sol, que está localizado em determinada posição no céu e no
espaço, com seu movimento, aquece e desaquece o ar, gerando as diferentes estações do
ano, cuja influência recai sobre a vida na Terra.
a Terra. Assim, deus “[...] exerce um poder que nunca se desgasta, por meio
do qual ele impera mesmo nas coisas que parecem estar distantes dele [...]”.
237
A identificação e localização de deus no céu, e não em todas as partes do
universo, é uma especificidade do pensamento de Posidônio em relação à
escola estóica. Porém, se deus está no céu, ele se estende por todas as coisas
através do contato, em um meio contínuo. Assim, o céu é entendido como
aquele que, dentre todos os elementos do universo, melhor e mais claramente
manifesta a mente divina, que, segundo Posidônio, as coisas recebem mais
ou menos o benefício divino de acordo com sua maior ou menor proximidade a
deus.
238
Manilius, ao pressupor que o céu causa os fenômenos na Terra e,
através de seu movimento, produz todas as coisas de acordo com a vontade
divina, se aproxima dos conceitos desenvolvidos por Posidônio, que diz que:
“[...] a natureza divina, através de um simples movimento, imprime
seu poder naquilo que está mais próximo a ela, que o estende para o
que está em seguida e, assim sucessivamente, até estendê-la sobre
todas as coisas”.
239
O que está implícito nesse raciocínio sobre a disseminação da influência
divina, que se em uma relação causal, atravessando as esferas celestes, é
o conceito da matéria como um continuum, que pressupõe a não existência de
vazio no universo, e do pneuma como força dinâmica que mantém o universo
coeso e em inter-relação. Ou seja, conceitos fundamentais da física estóica,
apresentados anteriormente.
237
Posidônio, De mundo, § 397
b
20-25.
238
Ibid., § 397
b
25-30.
239
Ibid., § 398
b
19-22.
Deus é entendido como uma causa, a causa primeira que produz todos
os fenômenos que envolvem na Terra, interferindo, assim, em seu
funcionamento.
240
É ele que governa o universo:
“A partir do sinal dado desde o alto por aquele que pode ser
considerado o líder do coro, as estrelas e o céu como um todo sempre
se movem, e o Sol, que ilumina todas as coisas e caminha em frente em
seu duplo curso, com o qual ele divide o dia e a noite, com seu
nascimento e ocaso, também traz as quatro estações do ano [...]”.
241
2.2.4. Sobre o destino
Segundo Manilius, “[...] todos os acontecimentos dependem da vontade
e do aspecto do céu, já que os astros mudam o destino segundo suas diversas
posições”.
242
A imutável ordem do destino é entendida como algo que é
desencadeado pelo movimento do céu, como vimos na seção anterior. Porém,
quando diz que “[...] os astros, confidentes do destino, que mudam as diversas
vicissitudes dos homens, e que são obra de uma razão celestial [...]”
243
,
Manilius submete os astros e o movimento do céu à deus ou à mente divina
enquanto causa primeira, exatamente como o faz Posidônio. Dessa forma, os
astros refletiriam o logos divino, não agindo por si só; essa idéia é evidenciada
no verso que se segue, onde Manilius, referindo-se aos planetas, ao Sol, à Lua
e às estrelas, diz:
240
Ibid., § 399
a
27-30.
241
Ibid., § 399
a
19-25.
242
Manilius, Astronomica I, § 108-112.
243
Ibid., § 1-5.
“[...] a natureza lhes concedeu o governo, a cada um lhe atribuiu de
forma sagrada sua própria incumbência, e ratificou inviolavelmente o
conjunto formado por todas as partes, a fim de que o sistema do destino
estivesse, de todas as formas, submetido à unidade.”
244
A natureza
245
, intencionalmente teria atribuído ao céu, planetas,
constelações, Sol e Lua, seus respectivos poderes de influência sobre os
acontecimentos e sobre a vida humana, colocando, dessa forma, o destino dos
homens sob a ordem imutável dos astros, que, por sua vez, refletem a mente
divina. Assim:
“[...] qualquer tipo de coisa, qualquer tipo de trabalho, qualquer atividade
e disciplina e qualquer vicissitude que ocorra na vida humana, através
de todas as suas circunstâncias, foram englobadas pela natureza sob o
destino”.
246
Segundo o pensamento estóico, os acontecimentos “obedecem às leis
do destino que se reduzem a um entrelaçamento de causas providenciais”.
247
O
destino (heimarméne) seria, portanto, uma realidade natural, que se inscreve
na estrutura do mundo, já que o mundo como um todo exprime uma disposição
imutável na ordem das coisas, e essa disposição é inviolável.
248
Assim, o destino é o nexo causal de um universo pré-determinado, cuja
ordem e conexão jamais poderão ser forçadas ou transgredidas. Segundo
Reale, o destino é:
244
Manilius, Astronomica III, § 60-70.
245
Entendida por Manilius como sinônimo de deus ou mente divina, conforme demonstrado na
seção 2.2.2. “O princípio ordenador”.
246
Manilius, Astronomica III, § 65-75.
247
J. Brun, op. cit., p. 53.
“a série irreversível das causas, a ordem natural e necessária de
todas as coisas, o indissolúvel nó que liga todos os seres, o logos
segundo o qual as coisas passadas aconteceram, as presentes
acontecem e as futuras acontecerão. E dado que tudo depende do logos
imanente, tudo é necessário, mesmo o evento mais insignificante”.
249
Para os estóicos, o destino é entendido como algo que está submetido à
mente divina, na medida em que ele é a expressão da providência, que, por
sua vez, “exprime o fato de todas as coisas (mesmo as menores) terem sido
feitas pelo logos, como se deve e como é melhor que sejam. É uma
providência [...] que coincide com o artífice imanente, com a alma do mundo
[...]”.
250
Dessa forma, todos os acontecimentos estariam determinados
previamente, conforme afirma Cícero:
“Todas as coisas existem, mas estão ausentes por aquilo que
respeita o tempo. E assim como dentro das sementes está o germe das
coisas que dela se produzem, nas causas estão contidas as coisas que
vão acontecer [...]”.
251
Os acontecimentos são as causas desdobradas no tempo. E como o
tempo está relacionado ao movimento cíclico e ordenado do céu e dos
planetas
252
, mapear seu curso e posicionamento, assim como interpretar
248
Ibid., p. 56.
249
G. Reale, op. cit., p. 316.
250
Ibid., p. 314.
251
Cícero, De divinatione I, § 128-134.
252
Dado que o tempo era entendido como essencialmente cíclico e periódico, a escola estóica
recorrentemente fazia alusão ao movimento do cosmo ao definir seu conceito de tempo,
apontando os ciclos diários, anuais e a revolução dos planetas, assim como o período cósmico
do grande ano. Cf. S. Sambursky, op. cit., p. 106.
corretamente o que anunciam, permite aos homens desvendar os caminhos do
destino.
Porém, a questão moral fica comprometida em um mundo onde todo
acontecimento é previamente determinado, onde inclusive as ações humanas
dependem da inalterável e necessária serie de causas, o que leva à idéia de
que os homens não podem ser julgados pelos seus atos.
253
Assim como não podem ser julgados pelo que fazem, o que acontece
em suas vidas não está em relação com a forma como a conduzem (com seus
valores morais e princípios éticos). Segundo Manilius: “A Fortuna não examina
os litígios para favorecer aqueles que o merecem, mas sim caminha errante
entre todos os homens sem nenhuma distinção”.
254
Porém, esboça uma
solução para o problema moral que se apresenta a partir da noção de destino
com a qual trabalha:
“E, entretanto, tal raciocínio não chega a justificar o crime [...]. De fato,
ninguém odiamenos as ervas venenosas porque não nascem por sua
própria vontade, mas sim de uma semente determinada, nem é
concedido um reconhecimento menor aos alimentos agradáveis pelo fato
de procederem da natureza e o de uma decisão livre.[...]. Da mesma
forma se deveria dar aos méritos dos homens uma glória maior por
dever sua excelência ao céu e, por sua vez, odiaremos mais os
malvados, por terem sido criados para a culpa e o castigo. E não importa
de onde vem o crime: como tal há de ser reconhecido”.
255
Ou seja, as ações praticadas pelos homens, sejam elas virtuosas ou
condenáveis, são decorrentes do céu e das inúmeras combinações que ele
253
G. Reale, op. cit., p. 318.
254
Manilius, Astronomica IV, § 95-100.
255
Ibid., §110-120.
pode apresentar. Nas palavras de Manilius: “o destino outorga aos humanos
suas habilidades e características, seus defeitos e méritos, suas perdas e
ganhos”.
256
Porém, isso não isenta aquele que praticou um crime de responder
por ele, dado que tudo que acontece no mundo é decorrente de uma
combinação de causas predeterminadas, e essa é a condição natural de tudo
que é. “Ninguém pode renunciar àquilo que lhe foi dado nem ter aquilo que lhe
foi negado; ninguém pode, com suas preces, apoderar-se da fortuna contra a
vontade desta, nem escapar dela quando acossa: cada um tem que suportar
sua própria sorte”.
257
Nesse sentido, no raciocínio de Manilius está implícito o
posicionamento adotado pela escola estóica diante dessa questão, que pode
ser resumido pelas palavras de Reale:
“A verdadeira liberdade do sábio está em conformar os próprios
quereres aos do Destino, em querer com o Destino o que o Destino
quer. E esta é liberdade enquanto racional aceitação do Destino, que é
racionalidade: de fato, o Destino é o lógos e, por isso, querer os
quereres do Destino é querer os quereres do lógos. Liberdade, portanto,
é levar a vida em total sintonia com o lógos”.
258
Vemos, com isso, a tênue fronteira entre a física e a ética estóica: agir
de acordo com a lei moral significa agir de acordo com a natureza universal,
com a ordem segundo a qual ela opera.
259
2.2.5. O lugar da adivinhação
256
Ibid., § 15-25.
257
Ibid., § 20-25. Segundo DeNardis, esse tema é mais um dos exemplos que evidencia que a
idéia de poder é central no cosmo apresentado por Manilius, na medida em que deus ou o
logos, através da fortuna, age conforme suas próprias leis, que independem da ação dos
homens. Cf. V. S. DeNardis, op. cit., p. 152.
258
G. Reale, op. cit.
Em um universo ordenado, onde seu funcionamento respeita leis fixas, e
onde essa estrutura lógica seja resultado de um logos ou mente divina que
assim a organize, conferindo sentido a seus movimentos, a adivinhação, ou,
em outras palavras, a previsão ou antecipação dos acontecimentos, é não
possível, mas necessária.
A adivinhação é a capacidade de prever antecipadamente um evento ou
fenômeno que ainda não aconteceu, mas que acontecerá, dado que “o mundo
está organizado de tal forma que existe uma harmonia pré-estabelecida entre
um acontecimento futuro e o sinal que o anuncia.”
260
Ela é possível, portanto,
por meio da interpretação dos sinais que anunciam algo a que, de alguma
maneira, estão necessariamente ligados.
Cícero, no tratado De divinatione, diz que nem sempre é possível saber
como e por quê um sinal ou signo está associado a um acontecimento:
“[...] por que a estrela de Júpiter ou a de Vênus, quando estão em
conjunção com a Lua, são saudáveis para os nascimentos das crianças
e, um efeito contrário, possuem a de Saturno ou a de Marte?”
261
Mesmo que às vezes seja difícil saber o por quê, a adivinhação
enquanto tal não é invalidada, que é inegável que existe um nexo causal no
universo, segundo a qual os fenômenos se dão. De acordo com Cícero, a
adivinhação é possível pois é um fato que: “[...] os deuses existem, e que o
universo é governado por sua providência, e que eles mesmos velam pelas
260
J. Brun., op. cit., p. 61.
261
Cícero, De divinatione I, § 85.
coisas humanas [...].”
262
E, por isso, “necessariamente os deuses revelam aos
homens as coisas futuras por meio de signos.”
263
Baseado em conceitos estóicos, Cícero afirma que é próprio do
funcionamento do universo que determinados acontecimentos precedam
determinados signos, respeitando uma ordem coerente
264
. Por isso, aqueles
que freqüentemente observam tais signos não se enganam. Se os signos não
são compreendidos, e a partir deles é feita uma previsão que não se efetiva, é
por má interpretação e ignorância dos interpretes, e não por defeito das coisas,
que seu funcionamento respeita uma ordem lógica e imutável, dado que
“[há] certa força inteligente que está infundida em todo o universo”
265
, fazendo
com que a natureza atue de forma inteligente e intencional.
De acordo com o que vimos nas seções anteriores, dedicadas a
demonstrar a concepção cosmológica na qual Manilius se baseia - que inclui a
idéia de que um princípio ordenador no universo, uma relação causal entre
o u e a Terra, e a existência de um encadeamento pré-determinado de
causas, gerando um destino irrevogável – podemos dizer que Manilius também
respeita os pressupostos a que Cícero se refere, ambos próprios do
pensamento estóico.
Manilius, referindo-se à astrologia, também afirma a verdade da
adivinhação por ser algo permitido por deus e pela natureza: “O próprio
universo convida nossos espíritos em direção às estrelas, e não consente, ao
não ocultá-las, que suas leis fiquem na escuridão”.
266
. Além de a adivinhação
ser possível porque é permitida por deus aos homens, também o é porque a
262
Ibid., § 117.
263
Ibid., § 117.
264
Cf. Ibid., § 118-119.
265
Ibid., § 118.
origem da mente humana é a mente divina, o que lhe capacita compreender a
lógica do universo e acessar a verdade.
“Quem poderia conhecer o céu se não for por um dom do mesmo céu, e
encontrar a deus, se não aquele que, em si mesmo, seja parte da
divindade?”
267
No universo estóico, todos os elementos que o compõem participam da
divindade, que deus está em todas as partes. Dentro dessa idéia uma
nuance, desenvolvida tanto por Manilius quanto por Cícero: a de que a alma,
ou mente humana, se deriva da mente divina
268
. Segundo Cícero, foi da:
“[...] natureza dos deuses, da qual, segundo os mais doutos e
sábios, tiramos e bebemos nossas almas; e como tudo está cheio e
repleto da inteligência eterna e mente divina, necessariamente as almas
humanas são influídas por seu contacto com as almas divinas.”
269
Dado que a alma do homem descende da divindade
270
, ela lhe concedeu
dons:
“[por quê] privar-se de bens que nem sequer a própria divindade com
maus olhos, assim como renunciar aos olhos da mente que a natureza
nos deu? Podemos contemplar o céu, porque não também conhecer
seus dons [...]?”.
271
266
Manilius, Astronomica IV, § 920-925.
267
Idem, Astronomica II, § 110-115.
268
De acordo com o pensamento estóico, a alma inteligente que o homem possui é uma
parcela do sopro divino penetrado no corpo humano. Cf. J. Brun, op. cit., p. 63.
269
Cicero, De divinatione I, § 110.
270
Cf. Manilius, Astronomica II, § 105-110.
271
Idem, Astronomica IV, § 870-880.
Na Astronomica, o u aparece como intermediário para acessar a
mente divina:
“Por isso deus mesmo não nega à Terra a contemplação do céu, mas
sim revela seu aspecto e seu ser por meio de sua contínua revolução,
mostrando-se a si mesmo uma e outra vez para poder ser
verdadeiramente conhecido, ensinar sobre sua natureza aos que o
vêem, assim como para obrigá-los a observar suas leis.”
272
Essa idéia, a de que o u estaria mais próximo da mente divina e por
isso melhor a refletiria, aparece de fo(r)2.80561(e04 Tf0.999122(g)5.67474(á15(.)-2.13117(c)9.26 (s)9.71276(e)-4.32873(r)3)5.674729553117(a)-4.33117(r)e)-4.32873(r)3r ,x63.2187(a)-4.33133117(rl)1.87(e)-4.33117(t)-2.161
estoicismo de Posidônio
276
, é apresentada e ganha força dentro da escola
estóica paralelamente ao aumento da importância e prestígio do saber
astrológico na cultura romana, passando, por isso, a se destacar dentre as
diversas formas de adivinhação. Como esses dois eventos se desenvolveram
concomitantemente (o Médio estoicismo de Posidônio se deu no século I a.C.,
e a astrologia ganhou mais poder e destaque no decorrer desse mesmo
século), alguns pesquisadores, como Franz Cumont, estabeleceram uma
relação em que o estoicismo, ao incorporar algumas idéias das artes
divinatórias, contribuiu para validá-las teoricamente
277
. Apesar de nos parecer
coerente tal afirmação, pensamos que talvez o inverso também seja
verdadeiro: que as artes divinatórias contribuíram para o desenvolvimento da
especificidade e contribuição do Médio estoicismo. Entretanto, é necessário
um estudo mais aprofundado para estabelecer as nuances dessa relação, e
não considerar que as artes divinatórias e as correntes filosófico-religiosas
do oriente próximo que teriam se beneficiado dessa aproximação com o
debate filosófico teórico.
Curiosamente, uma passagem do Livro IV que ilustra o processo de
introdução da astrologia junto às formas tradicionais de adivinhação da cultura
romana
278
. Nela, Manilius, ao referir-se ao saber astrológico, tema sobre o qual
versa, dirige-se ao seu leitor, e diz:
“[...] peço a confiança que com freqüência recebem as aves e as
entranhas que tremem no peito dos animais. Acaso é menos importante
275
Ibid., § 400
a
– 5.
276
É uma especificidade do pensamento de Posidônio a identificação de deus com o céu,
que a escola estóica afirma que deus faz um todo com o mundo, estando em todas as partes, e
não localizado no céu. Cf. Reale, op. cit., p. 379.; J. Brun, op. cit., p. 58.
277
F. Cumont, op. cit., pp. 63-80.
278
Descrito na seção 1.1.1. “A adivinhação em Roma”, do Capítulo 1 desta dissertação.
encontrar a explicação das coisas por meio dos signos sagrados, do que
faze-lo com a morte dos animais ou com o canto das aves?”
279
É interessante observar como, através da Astronomica, obtemos
informações a respeito de um episódio que marcou a cultura romana nos
últimos séculos antes de Cristo: a introdução de saberes estrangeiros nas
antigas formas romanas de adivinhação. Esse tema foi abordado com base em
fontes secundárias no Capítulo 1 desta dissertação, e agora aparece de forma
indireta em uma obra primária que versa sobre astrologia e adivinhação. O que
percebemos é que, apesar do destaque que a astrologia passou a ganhar em
torno do século I a.C., gerando disputas com os adivinhos que praticavam os
cultos e saberes tradicionais, ainda no século I d.C., apesar de ter
conquistado um lugar de destaque na cultura romana, o embate entre
astrólogos e outros adivinhos romanos talvez ainda fosse presente.
Através da Astronomica, Manilius propõe seu sistema astrológico em um
cosmos que encerra em si uma lógica que se oculta sob os segredos da
natureza, lógica essa que, segundo o autor, escapa aos olhos e à percepção
humana em um primeiro momento, e se mantém encoberta caso os homens
não se proponham a investigar as leis segundo as quais a natureza opera. Por
isso, aconselha seu leitor a prestar atenção ao assunto por ele abordado,
que a astrologia “pode proporcionar-te importantes serviços e oferecer-te
dentro de nossa arte caminhos seguros para ver o destino [...].”
280
Dessa forma, vemos como a astrologia passa a se apresentar como uma
excelente e importante ferramenta em um universo que funciona segundo leis
estóicas. Este saber permite que os homens entendam a mente divina e seus
279
Manilius, Astronomica IV, § 910-920.
desígnios, e se ajustem a ela, aceitando seu destino. Por isso, Manilius afirma:
“Não estranhe os graves desastres com as coisas e com os homens, pois com
freqüência a culpa está em nós: não sabemos confiar no céu.
281
Os céus se mostram, portanto, como anunciadores do destino,
revelando o que está por vir. Se os homens se surpreendem com seu destino,
é porque não souberam decifrar e compreender esses sinais.
A astrologia, além de fornecer uma compreensão de mundo e uma base
ontológica segundo a qual os fenômenos eram compreendidos, se apresentava
também como uma técnica ou ferramenta para conhecer e se relacionar com o
cosmo e seus segredos, produzindo conhecimento e mediando a relação entre
o homem e a natureza. O lugar da adivinhação dentro da cosmologia estóica
possuía essa função, e o saber astrológico, ao se constituir segundo as regras
de racionalidade vigentes, se apresentava de acordo com os critérios de
funcionalidade e eficiência, se mostrando, portanto, um dos mais apropriados
métodos para operar dentro dessa cosmologia.
conhecimento antecipado das leis internas pelas quais o destino operava e, a
partir da identificação de suas causas, permitia que eles se colocassem de
acordo com os quereres do destino, desenvolvendo, de forma virtuosa, uma
postura sábia diante da vida.
2.2.6. Astrologia: um sistema ordenado
Manilius, ao longo de sua obra, desenvolve uma série de conceitos que
compõem o sistema astrológico por ele proposto. Não é nosso objetivo
apresentar cada um deles, oferecendo um panorama completo da astrologia
maniliana, mas sim apenas aqueles que nos pareceram melhor ilustrar os
pressupostos da cosmologia estóica.
No Livro II, Manilius expõe uma série de combinações e classificações
entre os signos
283
, como, por exemplo, a divisão entre aqueles que seriam
masculinos e femininos, e o estabelecimento de relações geométricas entre
eles, marcadas por trígonos, quadraturas, sextis e oposições. Essa
apresentação é acompanhada pela descrição dos afetos e desafetos que tais
relações gerariam entre os diferentes signos. Como essas relações são fixas e
inatas ao padrão zodiacal, e se efetivam através do movimento eterno e
inalterável do zodíaco
284
, estendem-se também aos homens, que eles
“recebem seu caráter dos signos que deram origem a seu nascimento”.
285
Manilius, falando sobre as afinidades e dissidências entre os signos, afirma
que:
282
Sêneca apud G. Reale, op. cit., p. 320.
283
Manilius, Astronomica II, § 150-432.
284
Cf. G. P. Goold, op. cit., p. li.
285
Manilius, Astronomica II, § 482-484.
“os nascidos sob estes signos mostram sentimentos semelhantes entre
si [...], se guiam pelo ódio a uns, pelo amor a outros, a uns preparam
enganos, e se deixam cativar por outros.”
286
Após apontar algumas das relações existentes entre os signos, dadas a
eles pela natureza
287
, Manilius diz que “[...] em todo o conjunto uma ordem
verdadeira e concorde”.
288
Ou seja, essas relações não se dão por acaso, mas
de acordo com uma ordem que há na natureza. E, a partir do trecho abaixo
selecionado, podemos afirmar que essa ordem da natureza é expressão de
deus, já que: “[...] deus, ao formar todo o universo segundo algumas leis,
distribuiu também os afetos entre os variados astros [...]”.
289
Baseando-se na relação causal entre o céu e a Terra, Manilius explica o
mal e a discórdia que existem na Terra em função das inimizades entre os
signos:
“Na verdade, posto que em muitos signos os homens nascem em
discórdia, a paz desapareceu da Terra, os laços de amizade são raros e
concedidos a poucos; assim como o céu está em desacordo consigo
mesmo, também o está a Terra, e as nações do gênero humano são
arrastadas por um destino que as faz inimigas.”
290
Vemos, nos trechos acima selecionados, a presença de alguns
conceitos estóicos, como a existência de uma ordem implícita que se estende a
tudo, e o fato dessa ordem ser a manifestação da mente divina, o que faz com
286
Ibid., § 515-519.
287
Ibid., § 515-520.
288
Ibid., § 528-532.
289
Ibid., § 470-480.
290
Ibid., § 600-608.
que todos os fenômenos que se dão no universo possuam sentido, que não
são obra do acaso, e sim de uma natureza inteligente e intencional.
Enquanto aborda a caractestica dos signos e suas relações, Manilius
diz que “não se deve desviar a atenção nem dos menores detalhes, nada está
desprovido de razão nem foi criado em vão”.
291
Desse modo, o autor faz
referência a um universo onde não acaso, e sim uma rede causal lógica,
responsável pelo seu funcionamento. Esse pressuposto leva, portanto, a uma
astrologia minuciosa, onde cada detalhe possui sentido e função. Esse traço da
astrologia proposta na Astronomica pode claramente ser constatada em alguns
conceitos abordados por Manilius, que serão apresentados a seguir.
O primeiro deles é o de dodecatemoria, que divide cada um dos doze
signos do zodíaco, que possuem trinta graus, em 12 partes iguais de dois
graus e meio. Cada dodecatemoria está dedicada a um signo, e a ordem dos
signos que ocupam cada dodecatemoria é igual à ordem dos signos zodiacais.
Assim, o signo da primeira dodecatemoria em um determinado signo, repete o
signo no qual está inserida, e as dodecatemorias seguintes seguem a ordem
zodiacal.
Esse esquema que subdivide os signos confere mais elementos ao
astrólogo para interpretar a lógica celeste, que “cada um dos signos varia
segundo as partes em que está dividido, e distribui suas próprias influências de
acordo com as dodecatemorias”.
292
Manilius justifica a verdade e a importância das dodecatemorias dizendo
que:
291
Ibid., § 234-236.
292
Ibid., § 708-712.
“[...] o grande construtor do universo as atribuiu aos signos que brilham
em igual número, para que estes estivessem reunidos alternativamente,
e para que o universo fosse semelhante a si mesmo e todos os signos
estivessem em todos, de forma que com sua mistura a concórdia
governasse o sistema e houvesse uma proteção recíproca devido ao
interesse comum.”
293
Podemos observar que essas passagens falam da constante
combinação e mistura das partes que compõem o todo, e de como isso reflete
o fato de o todo estar em suas partes, e da intenção divina que fez com que as
partes se inter-relacionassem de forma harmônica, visando a integridade e a
harmonia do todo. Ou seja, a validade dos conceitos astrológicos é justificada,
mais uma vez, com base na cosmologia estóica.
Nos versos 738-748 do Livro II, Manilius ainda propõe outro tipo de
dodecatemoria, mais uma subdivisão dentro dos dois e graus e meio de cada
dodecatemoria. Nela, cada meio grau é destinado a cada um dos cinco
planetas.
Assim como a ordem impera no universo, ela também está presente no
sistema astrológico, cuja precisão reflete a regularidade do movimento do céu e
dos planetas, que constelações, signos e planetas se combinam e se
sobrepõem para compor e ditar o destino e os acontecimentos. Essa idéia é
bastante visível na forma como Manilius apresenta o tema das cronocratorias,
presente no Livro III.
293
Ibid., § 701-708.
Através do conceito de cronocratoria
294
, Manilius buscou relacionar
todas as estruturas de tempo (hora, dia, mês e ano) com o sistema astrológico
(constelações, signos e graus), para assim justificar os acontecimentos.
Nenhuma fração do tempo, composto pelos ciclos que se relacionam e se
combinam, fica “solta”, assim como nenhum acontecimento se dá ao acaso, por
mais variados que sejam. Tudo estaria, portanto, li
depois de doze revoluções solares. É difícil que todos os períodos
coincidam no mesmo tempo, de forma que o mês e o ano sejam do
mesmo signo; assim acontecerá que quem tenha um ano de signo
favorável tenha um mês de signo bastante difícil; se o mês cai em um
signo bastante benigno, o signo do dia poderia ser funesto; se a fortuna
favorece o dia, a hora poderia ser bastante adversa”.
296
Essa combinação das frações e períodos de tempo com o sistema
astrológico é bastante minuciosa, e entende que todos os instantes são regidos
por uma influência específica, que levaria a uma determinada sorte de
experiências e acontecimentos. Segundo Manilius, por mais que tudo pareça
incerto e caótico, principalmente por aqueles que desconhecem o logos divino
que tudo permeia e orienta, esse sistema composto por diferentes ciclos é
ordenado e lógico.
Tudo é tão ordenado, as causas estão de tal forma encadeadas para
gerarem os fatos, que até a duração de uma vida (que também está
predeterminada) pode ser descoberta; para isso basta apenas dominar os
cálculos e o saber adequado para desvelar esse dado:
“E não é suficiente conhecer os anos exatos dos signos para que não
escape o cálculo aos que buscam a duração da vida: também os
templos e as partes do céu tem seus dons, e outorgam suas próprias
quantidades com uma gradação precisa, quando se estabeleceu bem a
ordem dos planetas.”
297
295
Manilius, Astronomica III, § 520-530.
296
Ibid., § 545-550.
297
Ibid., § 581-587.
E, logo em seguida, Manilius acrescenta: “[...] quando esse tema ficar bem
conhecido não haverá perturbação pela interpolação de elementos de
nenhuma parte.”
298
Ou seja, desvelar os mistérios da natureza é uma questão de domínio da
técnica, técnica essa que possibilita a melhor adaptação a um universo
ordenado e predeterminado.
299
Porém, sua ordenação e predeterminação se
dão em uma rede dinâmica de complexas inter-relações. Por isso também a
necessidade de um sistema que compreenda seu funcionamento.
A partir desse raciocínio podemos perceber que dentro dessa concepção
de mundo não acaso nem probabilidade, ou seja, o universo é entendido
como um sistema fechado e articulado previamente, que funciona de forma
complexa, porém ordenada, respeitando leis fixas entre seus componentes. Se
sua lógica é compreendida, domina-se seu funcionamento e é possível prever
seus movimentos e os eventos que nele se inscrevem, através da identificação
das causas. Esse pressuposto teórico é claramente estóico, e é nele que
Manilius se baseia para versar sobre a astrologia, saber que é apresentado,
portanto, como um sistema lógico e ordenado, com traços marcadamente
determinísticos, onde suas constantes subdivisões estão a serviço do
refinamento da técnica e da identificação da combinação de causas que geram
os fenômenos e eventos.
No Livro IV a apresentação de outro conceito, o de decanos, que
complementa a complexa rede de inter-relações cósmicas proposta por
Manilius. O decano é a divisão de cada signo de 30
o
em três partes iguais de
298
Ibid., § 590-592
299
Conforme raciocínio desenvolvido na seção 2.2.5. “O lugar da adivinhação”.
10
o
cada, fazendo com que cada signo contenha em si outros três signos.
Segundo as palavras de Manilius:
“Esse sistema desvela a forças ocultas do universo, dividindo o céu em
muitas formas e em nomes repetidos e estabelecendo no círculo
melhores associações que as habituais.”
300
Para resumir as minuciosas divisões e relações do sistema astrológico
proposto, temos: em um signo de 30
o
do circulo zodiacal a subdivisão em
três partes de 10
o
graus, denominada decano, que é sobreposta por outra
subdivisão, onde os mesmos 30
o
são divididos em 12 partes de dois graus e
meio cada, denominada dodecatemoria; cada decano e cada dodecatemoria é
ocupada por um signo. E os dois graus e meio de cada dodecatemoria, por sua
vez, são distribuídos para cada um dos cinco planetas. É uma constante
subdivisão, que faz com que um ciclo se componha com outro, e/ou se insira
em um maior. Essa sobreposição de subdivisões se repete em cada signo do
zodíaco e, todas juntas, dependendo da combinação que formam - decorrente
do movimento do céu e dos planetas - interferem na
em que nascem [...]. Evidentemente os signos, constituídos por diversas
partes, formam associações e suportam leis distintas sob seu próprio
nome.”
compreensão dos fenômenos, indica a validade dos argumentos por nós
defendidos.
Sobre astrologia geográfica, astrologia etnográfica ou astrologia mundial,
Manilius diz que:
“[...] a divindade dividiu o universo em partes, distribuindo-as entre as
constelações e atribuindo a proteção particular de cada uma a cada
reino da Terra e seus habitantes, ao que se somou às elevadas cidades,
onde os signos manifestariam suas poderosas influências. E, da mesma
forma que o corpo humano se encontra repartido entre os signos, e na
divisão dos membros cada signo corresponde a uma parte [...], assim
também cada constelação reivindica para si umas terras.”
304
O interessante é observar como Manilius apresenta esses
conhecimentos sob a perspectiva estóica, através da idéia de intencionalidade
divina.
A relação de causalidade do céu para com a Terra, fundamental à
compreensão astrológica do mundo, justifica as bases da astrologia geográfica,
etnográfica ou mundial, na medida em que “[...] as constelações brilham
distribuídas por regiões determinadas e impregnam com sua atmosfera os
povos que estão abaixo”,
305
determinando o as características físicas dos
lugares, mas das pessoas que neles vivem. A diversidade de línguas,
costumes, frutos, climas e animais, que existe nos diferentes lugares da Terra,
é desse modo explicada por Manilius nos versos 711-817 do Livro IV.
“Desta forma se encontra dividida a Terra entre todas as constelações,
cujas leis hão de ser aplicadas aos territórios por elas dominados, pois
304
Manilius, Astronomica IV, § 696- 710.
Conforme vimos na seção 2.2.3. “O céu como causa”, para a cosmologia
estóica o há vazio no universo, que possui todo seu espaço ocupado por
matéria. Essa concepção de matéria sustenta a idéia de influência através do
espaço, tão cara à astrologia e, sem dúvida, um dos pressupostos teóricos
fundamentais nos quais Manilius se baseia ao versar sobre esse saber.
Entretanto, o termo “vazio” aparece várias vezes ao longo da Astronomica.
Seguem aqui algumas passagens onde esse termo aparece:
Após abordar a questão da suspensão da Terra no centro do universo,
Manilius diz que:
“Posto que o universo está [suspenso] e não se apóia em nenhuma
base, o que se manifesta tanto pelo fato de mover-se quanto por sua
marcha circular, posto que o Sol se move em suspensão e com agilidade
faz girar seu carro ora em uma direção, ora em outra, mantendo no alto
céu os pontos de volta, e posto que a Lua e as estrelas voam pelo vazio
do universo, também a Terra, seguindo as leis espaciais, ficou
suspensa.”
310
Em uma passagem que versa sobre o eixo do universo, considerado
imperceptível, Manilius afirma que:
“Em torno desse eixo central gira a esfera estrelada, que faz rodar as
órbitas etéreas, mas ele, imutável, através do vazio do grande universo,
e através inclusive do globo terrestre, se mantém fixo em direção às
duas Ursas.”
311
309
Sobre essa associação, vide: V. S. DeNardis, op. cit., p. 192.
310
Manilius, Astronomica I, § 194-214. Grifo meu.
311
Ibid., § 275-293. Grifo meu.
Essas passagens levantam dúvidas quanto ao consenso, dentre os
pesquisadores que se dedicaram à análise das influências filosóficas na
Astronomica, de que é baseado predominantemente no pensamento estóico
que Manilius desenvolve seu sistema astrológico. Essa dúvida se apresenta
devido à centralidade, para a filosofia estóica, da idéia de ausência de vazio no
universo.
Se houvesse vazio no cosmo, a coerência do universo seria destruída, já
que a simpatia de suas partes, mantidas pela ação do pneuma que se estende
em um meio contínuo por todas as suas partes, se interromperia.
312
Por isso o
estoicismo considera o universo como um continuum de matéria. Esse
pressuposto é fundamental para a noção de influência do céu sobre a Terra,
que seria através do contato entre todos os corpos que compõem o universo
que a ação dos planetas e das estrelas chegaria à Terra.
Por isso a presença de versos em que Manilius fala sobre o vazio do
universo nos é intrigante, e faz com que busquemos identificar em que sentido
o autor faz essas afirmações. No Livro II um verso que nos parece
esclarecedor quanto a essa questão:
“Este é o tema que eu desejaria elevar aos astros com a inspiração
divina. o comporei meu poema nem entre a multidão e nem para ela,
mas sozinho, como levado ao redor de um circuito vazio, conduzirei
livremente meu carro sem que nenhum outro cruze meu caminho e
venha ao meu encontro, nem siga uma marcha paralela a minha por um
caminho comum [...].”
313
312
Cf. S. Sambursky, op. cit., p. 110.
313
Manilius, Astronomica II, § 136-149. Grifo meu.
Manilius inicia esse verso falando sobre o que cantará. Porém, o que
nos parece significativo neste trecho é o contexto em que o termo “vazioé
usado, o que se mostra esclarecedor sobre o sentido que assume na
Astronomica. Ao dizer como irá compor seu poema, Manilius compara-se aos
astros que, movendo-se em um espaço amplo, se encontram espalhados e não
comprimidos em uma multidão, o que lhes garante que completem seus ciclos
sem que nenhum outro se coloque em seu trajeto, atrapalhando-os. Assim,
“vazio” teria o sentido de amplidão do espaço, e não de vácuo e ausência de
matéria, como afirmavam os atomistas.
No Livro I há outra passagem que reforça o argumento acima
desenvolvido:
“E se o peso da Terra não estivesse equilibrado, o Sol não conduziria
seu carro desde o poente, ao aparecerem as estrelas do céu, e não
voltaria nunca ao seu nascer, nem a Lua, submersa no espaço vazio,
regeria sua marcha [...]. Posto que a Terra não se encontra abaixo, no
mais profundo, mas sim permanece suspensa no centro, por todas as
partes comunicação: por onde o céu cai e desaparece e por onde, de
novo, se levanta.”
314
A imagem que Manilius utiliza aqui é a seguinte: se a Terra não
estivesse suspensa no centro do universo e sim localizada nos (ou próximo
aos) limites do mesmo, ela certamente atrapalharia o movimento circular dos
astros e das estrelas, já que poderia se colocar no caminho de um deles, como
no do Sol, que dessa forma “não conduziria seu carro desde o poente [...] e não
voltaria nunca ao seu nascer”, ou no da Lua. Entretanto, como a Terra
314
Idem, Astronomica I, § 173-193.
“permanece suspensa no centro”, interação e comunicação entre os
elementos que compõem o universo, e seu funcionamento ocorre de forma
harmônica, como é possível observar no caso da Lua que, ao estar “submersa
no espaço vazio”, desimpedido, marcha pelo amplo espaço do céu, livre de
outros astros em seu caminho que pudessem atrapalhar seu curso.
Outro argumento a favor de que Manilius não se refere ao vácuo é o
conjunto de sua obra, cujos conceitos e idéias se baseiam explicita ou
implicitamente nos pressupostos da cosmologia estóica, de maneira
predominante. É pouco provável, portanto, que o autor esteja lidando com a
idéia de que há vazio no universo, o que o contradiria de tal forma, que
comprometeria quase por completo sua obra.
Dessa forma, baseando-nos na argumentação acima desenvolvida,
poderíamos dizer que o termo “vazio”, nos trechos aqui selecionados, poderia
ser substituído por “amplo espaço” ou “desimpedido” (no caso da expressão
“circuito vazio”), o que o levaria a compreendê-lo no sentido de “sem astros”, e
não como ausência de matéria.
315
Entretanto, não consideramos que a
discussão que desenvolvemos sobre essa questão seja conclusiva, deixando
espaço aberto para maiores investigações a esse respeito.
2.2.8. Outras influências
Apesar de termos verificado, ao longo da análise desenvolvida até aqui,
que Manilius se baseia claramente no pensamento estóico para propor seu
sistema astrológico e apresentar sua concepção de mundo, a influência dessa
escola de pensamento não é exclusiva. Os parágrafos que se seguem
apresentarão algumas passagens da Astronomica em que foi possível
identificar a presença ou a referência a outras escolas de pensamento.
No trecho 122-144 do Livro I, Manilius lista uma série de teorias sobre a
origem e natureza do universo, muitas das quais são excludentes entre si. Um
exemplo seria a idéia de que o universo não teve um nascimento, “[...] mas sim,
sempre existiu e sempre existirá [...]”
316
, a qual remonta a Xenófanes; essa
idéia é seguida por outra, que a contradiz: “[...] o caos, em certo momento,
gerou o universo, mediante a separação dos princípios das coisas [...]”
317
,
concepção sobre a origem do universo que remonta a Hesíodo. Outro exemplo,
presente nesse mesmo trecho do livro I, é que “[...] o fogo gerou o universo
[...]”,
318
uma referência ao pensamento de Heráclito; seguida pela idéia de
Tales, que “[...] a água gerou o universo [...]”,
319
e, logo na seqüência, fazendo
referência a Empédocles, Manilius apresenta a possibilidade de que “[...] nem a
terra, nem o fogo, nem o ar, nem a água conhecem um princípio, mas esses
quatro elementos constituem a divindade e formaram a abóbada do
universo.”
320
Conforme apontou Goold, Manilius, nessa passagem, está apenas
apresentando diversas concepções cosmológicas, o que demonstra que o
autor está informado sobre as diferentes correntes filosóficas em voga no seu
momento histórico. Dessa forma, as concepções presentes nesse trecho do
Livro I não poderiam ser consideradas exatamente como outras influências ao
315
A proposta de substituição de termos ou expressões é feita como um exercício de
aproximação daquilo que consideramos o sentido mais próximo ao que o autor quis dar, e não
como uma sugestão de alteração desses termos nas traduções da Astronomica.
316
Manilius, Astronomica I, §122-144.
317
Ibid, §122-144.
318
Ibid, §122-144.
pensamento de Manilius, já que ele não se compromete com elas, apenas as
apresenta. Contudo, pelo simples fato de havê-las apresentado, o autor
estabelece um diálogo com elas, o que, indiretamente, faz com que elas se
relacionem com seu pensamento e se insiram em seu raciocínio, nem que seja
como contraposição.
Ao longo de sua obra, Manilius se utiliza de conceitos básicos do
pensamento aristotélico, os quais, de forma geral, não se contrapõem ao
pensamento estóico mas, pelo contrário, foram úteis para o desenvolvimento
dessa escola filosófica. Abaixo temos como exemplo uma passagem que se
refere aos pressupostos aristotélicos com os quais o estoicismo não se
contrapõe:
“Tudo que foi criado com a condição de morrer está sujeito à mudança
[...] entretanto, o céu permanece imutável e conserva todas as suas
partes [...] sempre será o mesmo porque sempre foi o mesmo [...]”
321
É evidente que as idéias desse trecho estão de acordo com o
pensamento aristotélico, onde a separação qualitativa do universo entre o
mundo sublunar, sujeito à mudança, e o mundo supralunar, eterno e
incorruptível. Entretanto, nesse mesmo verso, dando continuidade à definição e
caracterização do que seria o céu, Manilius logo em seguida afirma que ele
“[...] é deus, que não muda com o tempo”.
322
Aqui vemos o rompimento com o
pensamento aristotélico, na medida em que coloca deus dentro do universo e o
identifica com o céu. Mas, na mesma medida em que se distancia do
319
Ibid, §122-144.
320
Cf. G. P. Goold, op. cit., pp. xviii.
321
Manilius, Astronomica I, § 515-530.
322
Ibid., § 515-530.
aristotelismo, também se aproxima das idéias do estóico Posidônio, que, ao
identificar deus com o céu e, mais ainda, localizá-lo no céu
323
, confere uma
especificidade ao próprio pensamento estóico, cuja idéia predominante é a de
que deus é todo o universo, está presente em todos os seus elementos de
maneira uniforme e indiferenciada, não sendo apenas o céu. Ou seja, mesmo
dentro do estoicismo (sua referência predominante), é possível verificar que,
nessa passagem, Manilius se remete às contribuições específicas de um dos
representantes dessa escola, que oferece uma variação da idéia de deus que é
apresentada, de forma geral, pelo estoicismo.
Ao seguir esse verso, Manilius se refere ao universo como um todo e
diz:
“Não pode ser obra do acaso, e sim plano de uma grande divindade que
o Sol nunca se desvie [...] que a Lua não saia das órbitas luminosas
estabelecidas, mas guarde a regularidade em seu crescer e
decrescer”.
324
Aqui podemos notar a referência a um dos pressupostos básicos
centrais que é estrutural no pensamento da escola estóica: a idéia de que não
acaso. O que mostra que o autor iniciou seu raciocínio baseando-se em
pressupostos aristotélicos e o terminou utilizando-se de conceitos
cosmológicos estóicos.
A identificação de traços do pensamento aristotélico na Astronomica não
se mostra como algo surpreendente, enquanto uma outra influência ao
323
Segundo Posidônio, “deus preserva a harmonia e a permanência de todas as coisas; porém
seu lugar não é no centro, onde a terra e nosso problemático mundo se encontram, mas por
ser puro está na região pura: o céu, no limite mais distante do mundo superior [...]”. Cf.
Posidônio, op. cit., § 400
a
5.
324
Manilius, Astronomica I, § 515-530.
pensamento de Manilius, que, além de o estoicismo o se contrapor aos
pressupostos básicos do aristotelismo, estes se constituíram como uma
referência central para o pensamento antigo ocidental, após Aristóteles.
325
É
natural, portanto, que identifiquemos sua influência nas idéias apresentadas
por Manilius. O que se mostra interessante na análise acima desenvolvida é a
identificação dos pontos de aproximação e afastamento entre as escolas
estóica e aristotélica, a partir do trecho selecionado, e a percepção das
nuances que no diálogo entre essas duas escolas de pensamento,
dependendo do posicionamento do filósofo em questão – no caso, Posidônio.
Manilius, provavelmente pelo fato de versar sobre astrologia, se
aproxima indiretamente do posicionamento teórico de Posidônio, ao dizer que o
céu e sua ordem estão mais próximos da mente divina, e são a expressão
máxima de sua intenção (a providência divina), que é através de seu
movimento que o destino é engendrado.
326
Ainda no Livro I podemos identificar outra influência ao pensamento de
Manilius que não a da escola estóica. É a idéia da que há uma relação de
correspondência e simultaneidade entre o céu e a Terra. Essa forma de
perceber e interpretar os fenômenos, própria do pensamento antigo, não se
associa necessariamente a nenhuma escola filosófica, e se manifestava da
seguinte maneira: quando algo extraordinário ocorria na Terra, o céu,
simultaneamente e em correspondência a esse evento, também era alterado.
325
O fato de o tratado De mundo, de Posidônio, ter sido considerado durante muito tempo
como sendo de Aristóteles, reforça a afirmação de que o estoicismo possui muitos elementos
em comum com o pensamento aristotélico.
326
Conforme já discutimos nas seções: 2.2.3. “O céu como causa”, e 2.2.5. “O lugar da
adivinhação”.
A citação que se segue faz parte dos versos em que Manilius analisa a
formação, o significado e a influência dos cometas
327
. Algumas teorias são
apresentadas e uma delas descreve os cometas como um fogo, ou fenômeno
celeste, que se apresenta como um sinal que anuncia um acontecimento
terrestre. Porém, após descrever e exemplificar essa característica dos
cometas, afirmando que “[...] as mortes chegam com seus resplendores [...]”,
328
e que “[...] estes fogos anunciam guerras, repentinas perturbações e armas
empunhadas por causa de enganos ocultos [...]”
329
, Manilius segue seu
raciocínio da seguinte maneira:
“[...] quando, rompido o pacto, a selvagem Germânia nos tirou nosso
general Varo e manchou os campos com o sangue de três legiões,
brilharam luminárias ameaçantes por todo o céu, a própria natureza fez
a guerra por meio de seus fogos [...]”.
330
Há, nessa passagem, uma relação de simultaneidade e de analogia,
que quando ocorreu um evento extraordinário na Terra, manifestaram-se, no
céu, fenômenos semelhantes ou correspondentes; ou seja, eles não se deram
antes, mas sim quando o evento terrestre se manifestou.
Segue outro trecho onde o que acontece na Terra, também se passa, de
forma análoga, no céu. Essa relação pode ser sugerida que Manilius fala de
batalhas e de como os fogos no céu se intensificaram quando elas se deram:
no momento em que se deram, e não antes, como anúncio.
327
Manilius, Astronomica I, § 809-925.
328
Ibid., § 890-898.
329
Ibid., § 890-898.
330
Ibid., § 898-905.
“[...] em nenhuma outra ocasião o céu suportou tantas chamas como
quando os generais, manchados de sangue, encheram as planícies de
Filipos com seus exércitos posicionados em formação de combate,
quando os soldados romanos na areia seca há pouco tempo tiveram que
passar por cima dos ossos dos guerreiros e de membros antes
despedaçados [...]”.
331
E segue com uma lista de outras batalhas romanas.
Devido às variações dentro dos versos abordados, não é possível
identificar e definir com certeza, e de forma exclusiva, qual o tipo de relação
que Manilius estabelece, se é a do céu influenciando os eventos terrestres, se
o que ocorreu na Terra provocou um fenômeno no céu, ou se os dois eventos –
o que se deu na Terra e o que ocorreu no céu se manifestaram no mesmo
momento. É possível que essas três relações estejam contempladas em
diferentes momentos dos versos em questão. Isso sugere, portanto, a presença
de outros traços do pensamento antigo nessas passagens da Astronomica,
que a cosmologia estóica estabelece uma relação de causalidade do céu para
com a Terra.
Outra influência que podemos identificar no pensamento de Manilius é a
do hermetismo. No Livro I, verso 25-65, Manilius discorre sobre a origem do
conhecimento astrológico, seus iniciadores e o aspecto de revelação ligado a
esse processo, onde, segundo o autor, teria sido a natureza que permitiu e
autorizou alguns a desvendá-la. Entretanto, a referência ao hermetismo é vaga
e indireta, como pode ser observado nas passagens mais significativas, como a
que se segue: “Você, Cilenio, foi o iniciador e inspirador desse conhecimento
331
Ibid., § 905-915.
sagrado tão importante [...]”
332
. Goold, o tradutor da versão inglesa da
Astronomica, afirma que o nome “Cilenio” é sinônimo de Mercúrio, o que nos
leva a supor que, segundo esse pesquisador, é uma referência à Hermes.
para Calero e Echarte, tradutores da versão em espanhol, “Cilenio é uma
alusão ao deus Hermes, por ele haver nascido no monte Cileno.
uma outra passagem em que Manilius se refere aos sacerdotes, e
ambos os tradutores afirmam que é uma alusão a Nechepso e Petosiris
333
:
“Então, os sacerdotes, que habitaram sempre os templos para as
cerimônias sagradas, eleitos para realizar os votos públicos aos deuses,
ganharam a divindade com seus serviços; a presença autêntica do deus
poderoso lhes inflamou sua mente pura, e deus levou seus serventes ao
conhecimento dos céus e lhes mostrou seus segredos.”
334
Ou seja, a referência a Hermes e ao hermetismo, nessas passagens do
texto original, é indireta; por meio de interpretação, os tradutores inferiram que
se trata de termos associados ao pensamento hermético, o que, mesmo
parecendo estar correto, não é possível afirmar com certeza.
Porém, uma outra passagem que é especialmente ilustrativa, que
nela há claramente a referência a um principio hermético:
“Acaso se pode duvidar que deus habita em nosso peito, que as almas
voltam ao céu de que procedem [...]? O que há de estranho que os
homens possam conhecer o céu, se o céu está neles mesmos, sendo
cada um uma imagem de deus em pequena representação?”
332
Ibid., § 30.
333
Para algumas considerações sobre a relação desses sacerdotes com o hermetismo, vide T.
Barton, Ancient astrology, pp. 25-7.
Aqui, através da concepção do homem como microcosmo,
335
podemos
identificar seguramente uma influência do pensamento hermético.
336
Pom,
mesmo se tratando de outra corrente filosófico-religiosa, essas idéias não se
contrapõem ao estoicismo, já que este, por sua vez, considera o universo como
uma unidade cósmica cujas partes se inter-relacionam e se mantêm unidas e
coesas graças à simpatia universal, e deus é entendido como um princípio
imanente, presente em todas as coisas.
Essa relação que é estabelecida entre o micro e o macro contém
também a idéia de correspondência e de simultaneidade, que, como
pontuamos acima, aparece em algumas passagens da Astronomica, mas
apenas de uma forma geral, como característica do pensamento antigo – e não
especificamente ligada às concepções herméticas de compreensão do mundo.
2.3. CONCLUSÃO
Conforme constatamos ao longo desta análise, Manilius se baseia
predominantemente no pensamento estóico para entender o cosmo e para
justificar o saber astrológico que, segundo tais concepções, estaria de acordo
com seu funcionamento. Mas vimos também que, apesar dos conceitos
estóicos serem o eixo do raciocínio de Manilius, há outras influências presentes
em alguns momentos da obra.
334
Manilius, Astronomica I, § 40-55.
335
O homem como imagem e espelho do universo expressa uma relação de analogia e
correspondência entre a parte e o todo, o que reflete a idéia de que o universo é uma unidade.
Cf. M. Battistini, op. cit., p. 112.
336
Calero afirma que esses versos se associam à concepção do Homem como microcosmo,
cuja origem remonta ao pensamento pitagórico e platônico. Cf. F. Calero, op. cit., p. 35.
Ao longo do capítulo 1 desta dissertação, vimos que a astrologia chegou
a Roma como parte da cultura grega, associada às idéias filosóficas estóicas e
aos modelos literários gregos. Discutimos, também, como o Estoicismo,
através das idéias de Posidônio, contribuiu para a introdução da astrologia nas
classes altas e cultas, e como a influência das idéias estóicas sobre a elite
romana era considerável, proporcionando uma base teórica à astrologia e
facilitando, assim, sua difusão nessa camada da sociedade romana.
337
Um
exemplo citado foi o conceito de simpatia cósmica, conferindo unidade ao céu e
a Terra, que se tornou um dos axiomas fundamentais da astrologia helenística.
Este capítulo, por sua vez, foi dedicado à análise da Astronomica, uma
obra destinada à nobreza, escrita em versos, cujo tema é a astrologia. O fato
da Astronomica se utilizar basicamente do pensamento estóico para
compreender e justificar a verdade desse saber astrológico, ilustra esses
elementos de contexto discutidos no capítulo 1 e retomados acima.
Outro aspecto significativo que abordamos no primeiro momento desta
dissertação foi a função educativa e formadora que os poemas possuíam entre
a elite romana, o que proporciona um olhar mais amplo sobre o lugar ocupado
pela Astronomica: podemos dizer que, através de sua obra, Manilius procurou
esclarecer os círculos romanos nobres e cultos sobre a astrologia, suas
concepções e seus conceitos, baseando-se, predominantemente, na escola
filosófica estóica.
338
Reconhecemos que o estoicismo forneceu uma base teórica, filosófica e
racional, na qual a astrologia pôde se reconfigurar e assumir traços da cultura
grega e helenística, contribuindo, dessa forma, que a compreensão astrológica
337
Cf. T. Barton, Ancient Astrology, pp. 34-5.; T. Barton, Power and knowledge, p. 38.
338
Cf. Idem, Ancient astrology, p. 138.
do mundo se afirmasse e se difundisse no período helenístico.
339
Como
afirmado por inúmeros pesquisadores, a cosmologia estóica justificou de forma
muito coerente e convincente a verdade do saber astrológico. Através da
associação com o estoicismo, a astrologia, além de incorporada à cultura
helenística, podia ser explicada teoricamente.
339
Sabemos da relevante contribuição do pensamento hermético. Para uma compreensão mais
ampla do desenvolvimento da astrologia no período helenístico, consideramos fundamental
também um estudo sobre as contribuições herméticas.
3. CONCLUSÃO FINAL
Conforme constatamos através da análise da Astronomica, as bases
teóricas nela presentes são predominantemente estóicas. Entretanto, afirmar
que uma obra astrológica, escrita no culo I d.C., se baseou em conceitos da
filosofia estóica para justificar sua validade enquanto compreensão do mundo
é, de certa forma, esperado, que pesquisadores do inicio do século XX,
como Franz Cumont, esforçaram-se para demonstrar como essa corrente
filosófica, ao entrar em contato com outras correntes filosófico-religiosas do
oriente próximo e incorporá-las em seu pensamento, contribuiu para que cultos
e saberes que envolviam a adivinhação fossem respaldados teoricamente e,
com isso, ganhassem maior aceitação e respeitabilidade.
340
Dessa forma, o que nos parece interessante levantar como discussão no
encerramento desta dissertação, é a possibilidade de enfocar essa relação
entre estoicismo e astrologia sob um outro ângulo: a importância do
fortalecimento da astrologia enquanto um saber para o desenvolvimento do
Médio estoicismo. Essa relação normalmente não é destacada, e sim
considerada de forma indireta quando se afirma sobre a especificidade das
contribuições do Médio estoicismo para o desenvolvimento da escola estóica,
em função da origem oriental de seus pensadores
341
, e de como isso teria
gerado a alteração de alguns dogmas e incorporação de outras idéias à
escola.
342
340
Cf. F. Cumont, op. cit., pp. 68-9.
341
Como Posidônio e Diógenes, que eram, respectivamente, sírio e babilônico. Cf. F. Cumont,
op. cit., pp. 68-9.
342
Segundo Reale, a contribuição de Posidônio ao pensamento estóico foi a abertura aos
ensinamentos de outras escolas filosóficas, inclusive as do Oriente, integrando-as e alterando
alguns dogmas estóicos. Por ser natural de Apaméia, na Síria, esse filosofo estóico do século I
Porém, alguns argumentos podem ser levantados para pensarmos na
possibilidade dessa outra relação entre estoicismo e astrologia. Um deles seria
o dado de que Posidônio usava a relação entre as fases da Lua e o movimento
da ma para exemplificar o conceito de simpatia cósmica.
343
Assim, um
conceito que existia no pensamento estóico passou a ser compreendido,
exemplificado e a incrementado com um dos argumentos mais usados a
favor da verdade da astrologia.
344
O outro argumento é desenvolvido por Sambursky, que diz que, dada a
escassez de experimentos que provassem que tudo o que ocorria no universo
se dava em decorrência de um nexo causal, estabelecendo a ligação entre os
fenômenos, os estóicos incorporaram o vasto campo da adivinhação a favor da
tese que propunham: como ilustração do princípio de indução e como prova da
lei da causalidade. Foi, portanto, para justificar alguns de seus pressupostos
teóricos fundamentais, que a base empírica da adivinhação ou seja, a
adivinhação como um conhecimento que foi estabelecido através de contínua e
repetida observação dos signos foi cada vez mais enfatizada pela escola
estóica.
345
a.C. cresceu em uma cidade que se situava em um ponto de confluência de duas civilizações.
Como o intenso diálogo entre saberes do oriente próximo foi um traço do saber produzido no
período helenístico, isso se manifestou também na postura de Posidônio em relação ao
pensamento estóico e sua interação com outros saberes, já que essa característica o
acompanhou desde sua cidade natal até as viagens que fez tanto ao Oriente quanto ao
Ocidente, passando pela Ásia Menor, Palestina, Egito, Itália, dentre outros lugares. Cf. G.
Reale, op. cit., p. 377. O pesquisador Pohlenz, considerando a característica do período
helenístico de apropriar-se de idéias orientais e helenizá-las, sugere que a idéia estóica de
destino (heimarméne) poderia ser um eco de correntes filosófico-religiosas orientais, que
essa concepção de destino parece não ter relação direta com o pensamento grego. Cf G.
Reale, op. cit., p. 317.
343
Cf. S. Sambursky, op. cit., pp. 41-2.
344
Esse argumento aparece em Cícero, como reconhecimento da influência dos astros sobre a
Terra. Cf. Cícero, De divinatione II, § 34. E está presente também em Plínio, o Velho, como
prova da verdade da astrologia. Cf. Plinio, el Viejo, Historia Natural II, pp. 389-390.
345
Cf. S. Sambursky, op. cit., pp. 66-7.
Segundo Cícero, Crisipo (c.a. 280-210 a.C.) explicou em dois livros toda
a teoria da adivinhação.
346
Ou seja, desde o século III, os estóicos a
incorporavam.
Assim, Sambursky afirma que, ao incorporarem a adivinhação em uma
doutrina estritamente determinista, os estóicos negaram qualquer diferença
metódica entre inferência científica e adivinhação indutiva.
347
Entretanto, o que não é destacado por Sambursky em sua tese é que a
astrologia, ao mapear as repetidas combinações que os planetas
continuamente apresentavam, através de seu movimento cíclico, servia bem ao
interesse da escola estóica em comprovar seus pressupostos, que, para
Posidônio, o céu refletia, melhor do que qualquer outro fenômeno, a ordem e a
predeterminação estrutural do universo. A astrologia, ao basear suas pesquisas
no movimento do céu, conferiria ao estoicismo mais força argumentativa na sua
discussão teórica.
Em outro momento de sua obra, Cícero diz que Posidônio pesquisava
especificamente um gênero de adivinhação, a astrologia.
348
Então, se desde o
século III a.C. os estóicos se aproximavam teoricamente da adivinhação, no
século I a.C. é provável que tenha havido, através da figura de Posidônio, uma
aproximação especificamente à astrologia.
Dessa forma, enquanto Sambursky afirma que os estóicos legitimaram a
adivinhação, considerando-a como ciência, e que a maioria dos estóicos a
aceitava como uma verdade
349
, sugerimos uma outra relação: além dos
estóicos legitimarem a adivinhação, pois ela lhes servia para justificar seus
346
Cf. Cícero, De divinatione I, § 6.
347
Cf. S. Sambursky, op. cit., p. 67.
348
Cf. Cícero, De divinatione I, § 130.
349
Cf. S. Sambursky, op. cit., p. 68.
pressupostos teóricos, provavelmente em torno do século I a.C. se
aproximaram especialmente da astrologia para tal fim, também porque nesse
momento o saber astrológico se configurava cada vez mais enquanto base
ontológica na cultura romana, o que conferiria mais força ao posicionamento
teórico da escola estóica.
“O problema total da adivinhação ocupou os Estóicos não tanto
por razões práticas, mas foi primeiramente um interesse teórico e
científico, pelo fato de que eles tinham que aceitar a validade da
adivinhação em um mundo determinístico e, ao mesmo tempo, viam na
adivinhação a confirmação do determinismo por inferência indutiva”.
350
Ou seja, Sambursky esboça aqui a relação de duplo reforço entre
estoicismo e adivinhação, a mesma que estamos propondo, mas não entra na
questão do possível lugar de destaque que a astrologia ocupava nessa relação,
até porque ele não especifica a que momento histórico está se referindo.
Reale diz que “talvez a maior originalidade filosófica de Posidônio
consista, exatamente, em ter querido pôr a doutrina estóica em dia com o
progresso pelas ciências depois da fundação do Pórtico”,
351
contribuindo, por
exemplo, para o desenvolvimento da meteorologia e da geografia. Partindo
dessa afirmação de Reale, podemos dizer que talvez Posidônio tenha se
aproximado da astrologia, já que a compreensão astrológica do mundo oferecia
uma base ontológica que era amplamente aceita, e desenvolvia, inclusive, uma
astrologia geográfica e explicações meteorológicas.
Há, dentro da história da ciência, evidências da declarada associação de
Posidônio com a astrologia, afirmado tanto por Cícero, no De divinatione,
quanto por Santo Agostinho, na A Cidade de Deus
352
. Então, talvez o fato de
Posidônio ter identificado deus na parte mais alta do céu, fazendo do céu
expressão mais clara da mente divina, tenha sido influência da compreensão
astrológica do mundo
353
, que cada vez mais ganhava espaço e poder.
O objetivo dessa discussão é, em um primeiro momento, ressaltar a
importância e o alcance ontológico da astrologia no
inclusive as relações da astrologia e do estoicismo com as esferas de poder).
Por isso, apenas lançamos essa discussão, sem fazer afirmações conclusivas,
deixando-a em aberto para futuras pesquisas.
353
Conforme sugerimos vagamente na seção 2.2.5. “O lugar da adivinhação”.
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