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de significar desencaixe social. Para muita gente – e gente formadora de opinião, com alto poder
aquisitivo e boa bagagem cultural -, tatuagem pode ser apenas uma forma de arte e diversão. “Perdi
a conta de quantas vezes me perguntaram se eu vendo drogas. Infelizmente a tatuagem ainda é vista
como sinônimo de irresponsabilidade”, diz a analista de sistemas Kátia Marcolino, 32 anos, toda
tatuada.
Essa réstia de preconceito em relação a quem se tatua pode explicar a tremenda irritação que
análises psicológicas geram na maioria dos tatuados de hoje. Clubbers, roqueiros, skatistas, surfistas,
lutadores de jiu-jitsu, ou simplesmente aquela gatinha que tatuou uma flor de lótus no tornozelo, todos
eles detestam ser tratados como excêntricos ou anormais. “Não gosto que me rotulem porque não
sou lata de óleo nem vidro de maionese”, diz Kátia.
De todo modo, certamente uma das razões que conduzem à tatuagem hoje é o desejo de
aparecer em público com um visual inusitado. O motorista Luis Cláudio Marangoni, 32 anos, tatuado
da cabeça raspada aos dedos dos pés (“Inclusive lá”, afirma), com motivos que vão de mulheres nuas
à morcegos, passando por escrita japonesa, adora pôr uma sunga e sair por aí. Ao seu lado, acredite,
qualquer modelo de biquíni passaria despercebida.
“Por meio da tatuagem, as pessoas procuram ser valorizadas e consideradas bonitas pelo
grupo a que pertecem. Trata-se de uma necessidade de parecer igual e, ao mesmo tempo, diferente
em relação aos outros”, diz Sandro Caramaschi, professor do Departamento de Psicologia da USP.
“A necessidade de se destacar dentro de uma sociedade massificada como a nossa é cada vez
maior”, diz a antropóloga Mirela. “Todos queremos chamar a atenção. E cada um chama a atenção
da maneira que mais lhe parece positiva, ainda que isso possa escandalizar quem optou por outros
padrões de conduta e de afirmação”.
Fazer uma marca definitiva no corpo exige coragem para desafiar normas e encarar
preconceitos. Em profissões tradicionais, como advocacia e medicina, braços cheios de desenhos
não são vistos com bons olhos. Nem por chefes, nem por pares e nem pelos clientes da maioria das
empresas.
“Para cargos mais altos, não seleciono pessoas que têm tatuagem. Não soa bem. As
empresas sempre dão preferência aos perfis tradicionais”, diz Silvana Case, vice-presidente da
Catho, consultoria especializada em selecionar executivos. Em muitas empresas, funcionários
tatuados precisam usar roupas amplas e deselegantes para esconder o corpo marcado e preservar o
emprego. “No trabalho preciso usar blusas que cheguem até o cotovelo, cubram o pescoço e não
tenham decotes. Nas pernas sempre meias grossas”, afirma Kátia.
Mas é preciso coragem também para encarar a dor de uma série de agulhas perfurando 3
mm de pele durante horas. O mecânico Flávio Melanas, 28 anos, levou 15 anos para decidir tatuar
um dragão no braço. Sem camisa, no estúdio de Sérgio, disfarçava o incômodo de ver o sangue
escorrendo pelo braço, evento normalíssimo do pós-tatoo. “O desenho levou quatro horas para ficar
pronto. Arde um pouco. A sensação é a mesma de estar tomando uma série de beliscões
ininterruptamente.”
Para o tatuador Francisco Russo não há motivo para drama. “Quando se percebe que a vida
continua depois da tatuagem, o medo passa”, afirma Russo. E quando o garotão percebe que ter
tatuado nas costas o rosto Axl Rose, líder do Guns n’Roses, uma banda de rock que fez sucesso no
início dos anos 90, foi uma burrada? Segundo Caramaschi, a vontade de chamar a atenção é comum
na adolescência, mas isso muda. Depois de um certo tempo, o desenho feito no corpo pode perder o
significado: a banda deixa de existir, troca-se de namorada, pode-se até mudar de time. Com o
passar do tempo também se desenvolvem padrões pessoais, não mais grupais. E, então, pode bater
um arrependimento pesado. “Há uma fila de tatuados arrependidos esperando pelo tratamento de
remoção gratuito”, diz Lydia Massako Ferreira, chefe do Departamento de Cirurgia Plástica da Escola
Paulista de Medicina (EPM), em São Paulo.
Superinteressante, dezembro de 2000, p.66.