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Universi da de de São Paul o
Inst i tuto de P s i c o l ogi a
Programa de Pós Graduação do Departame nto de Psicologia
da Aprendizagem e Desenvolvimento H umano
Dissertação de Mestrado
A Contratransferência a partir de Freud
Orientadora: Profª Dra. Marlene Guirado
Francisco Rodrigues Alves de Moura
Nível: Mestrado
São Paul o
1º Semestre de 2005
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Í
NDICE
I
NTRODUÇÃO
1
M
ÉTODO
6
A tran sf e rên ci a segund o F
REUD
17
A Cont rat rans ferên cia p ara F reud 2 5
P
AULA
H
EIMANN
39
J
ACQUES
L
ACAN
60
C
OMENTÁR IO DOS
C
ASOS
84
Primeiro Caso
T
HOMAS
O
GDEN
86
Comentários sobre o primeiro caso 93
Comentários sobre o segundo caso – L
UCIEN
I
SRAEL
135
C
ONSIDERAÇÕES
F
INAIS
159
R
EFERÊNCIAS
B
IBLI OGRÁ FICAS
177
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A
GRADEC IMENTOS
Ao reler as pri meiras linhas deste trabalho, percebi –
com muita surpresa – uma grande transformação presente no
texto.
No en tan to, a mud ança não f oi ap enas no con teúd o,
pa lav ra s e id éi as pres en te s. O qu e mudo u fora m as mãos qu e
o escreveram, foi o olhar.
Agradeço a cada um que possibilitou este percurso,
com ênfase nos professores desta Instituição. É fundamental
também agradecer às pessoas da Banca Examinadora, por
sua extrema gentileza em aceitar esta tarefa, e pela precisão
e adequação de suas contribuições e p ontuações.
Este é um trabalho escrito por várias mãos,
transformado intensamente pelo tempero de cada um que me
presente ou com suas opiniões.
Dev o aind a agra d ec i men t os es peci ais a tr ês p es so as:
A Jorge de Figueiredo Forbes, psicanalista;
A Marina Fibe De Cicco, talento;
A Marlene Guirado, orientadora e guia, que bancou
cada desafio.
No Man is na Iland, inti re of it s elfe;
every man is a Piece of the Continent, a part of the maine;
An y mans death dimini shes me,
because I am involved in Mankinde;
An d ther e fo re ne v er sen d to kno w for whom t h e bell tolls ;
it tolls for thee.
John D
ONNE
. XVII Meditation. In: “The Complete Poetry and Selected Prose of
John Donne” The Modern Library Edition, 1994. P. 441.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
1
“Qualquer idéia nova, Mahound, exige duas perguntas. A
primeira é feita quando ela é fraca: QUE TIPO DE IDÉIA É ESSA? É
do tipo que concede, negocia, acomoda-se à sociedade, quer encontrar
um nicho, sobreviver; ou é aquele tipo de idéia idiota, rígida,
insistente, maldita, que prefere partir-se a curvar-se com a brisa? – O
tipo de idéia que quase com certeza, noventa e nove por cento das
vezes, será esmagada, mas que, na centésima vez, transforma o
mundo.”
Salman Rushdie, Os Versos Satânicos
Este trabalho tenciona pesquisar, a partir da literatura, o desenvolvimento
do conceito da contratransferência desde sua formulação por Sigmund Freud e,
seguindo suas considerações, focalizar a diferença entre dois autores de diferentes
escolas de psicanálise frente à noção inaugural do conceito.
I
NTR ODUÇ ÃO
:
U
MA IDÉI A QUE TR AN SF ORM A
1
Inúmeros trabalhos recentes tratam da contratransferência e sua implicações.
Por que tamanho inte re sse em um conceito que, ao menos inicialmente, parecia
simples? Por que atribuir tanta nuance a algo que pode ser definido, com relativa
precisão, em uma frase?
Em 2000, iniciei no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo um
projeto de Inic iaç ão Científica. Neste ano e no seguinte, pesquisei, sob a orientação de
Marlene Guirado, a diferença de representação do corpo na fala de dois grupos
1
O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desen volvimento Tecnológico –
CNPq – Brasil.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
2
profissionais distintos – médicos e fisiculturistas. Tal trabalho trouxe como resultado
mais perguntas que respostas. Apesar de concluir a pe squisa, a questão principal que
havia me conduzido se mantinha: em que me dida a subjetividade do profissional pode
ser nociva ou bené fica para um tratamento? Como afetaria o tra tamento de um cliente?
O afeto influi no tratamento de maneira a subverter a técnica? Médicos que lidam com o
corpo são conduzidos a esvaziá-lo de seu significado afetivo? Apurando o foco destas
questões, decidi voltá-las para o campo da psicanálise. O conceito que parecia o melhor
para reunir estas reflexões era o de contratransferência.
A partir da leitura do Seminá rio do ano de 2001/2002, ministrado por Jacques-
Alain Miller (M
ILLER
, 2002), é possível perceber a contratransferência como um
conceito eminentemente histórico e ético. Histórico, pois o trabalho e as transformações
sofridas em sua leitura – essencialmente na Década de 1950 – transformaram a prática
da psicanálise, originando diferenças até hoje inconciliáveis. Ético, pois se trata de uma
reflexão que transforma a ação do psicanalista em sua sessão e, consequentemente, os
efeitos promovidos no analisando. Miller sublinha aspectos da relação entre os trabalhos
de Jacques Lacan e Paula Heimann, linha mestra de nossa pesquisa e análise.
Afinal, o que é contratransferência? Para uma definição sucinta, a
contratransferência é o conj unto de af etos e xperimentados pelo analista durante a sessão
analítica em reação aos efeitos da transferência no analisando. Não se trataria de
quaisquer afetos – ta l seria uma descrição um tanto leviana. A especificidade que marca
a contratransferência é uma gama de emoções rela tivas aos afetos provocados pelo
analisando, através de sua transferência. A questão essencial colocada é como o
profissional deveria lidar com estes afetos.
Freud se posiciona claramente a este respeito: o analista deve guardar para si
tais afetos e encaminhá-los à sua análise pessoal periódica. Contudo, autores posteriores
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
3
irão afirmar o caráter de compreensão inc onsciente do analisando carregado pelas
emoções experimentadas pelo profissional durante a sessão. Poder-se-ia c onferir aos
afetos e pensamentos do psicanalista uma legitimidade de interpretação do inconsciente
de s eu paci ent e ?
A posição contratransferencial nos conduz a um afeto que deve ser
essencialmente moral, dado regular aspectos da conduta entre analisando e analista. A
definição de moral que utilizamos foi estabelecida por Yves De La Taille, da
Universidade de São Paulo, e proferida em aula no dia 27 de agosto de 2003. Em sua
opinião, o termo m oral seria aplicado a um conjunto de regras sociais e stabelecidas
(exempl o: não mentir). O termo ética, complementa r ao anterior, seria re ferente a um
projeto de vida, voltado ao alcance da felicidade. Desta forma, a noção da
contrat ransferência para Freud – um a restrição ou contenção de afetos – seria
essencialmente moral, sem crítica alguma contida neste term o.
Desta forma, quando pensamos em c ontratransferência, pe nsamos em leituras
teóricas que preconizam uma determinada conduta em relação aos sentimentos
experimentados pelo analista. Uma reflexão possível seria sobre o lugar ocupado pelo
profissional na cena que constrói. O analista é um personagem, e, assim, ocupa uma
posição na relação com o paciente. Ele seria alguém marcado por sua escuta, que es
na posição de analista, mas não o é. Daí a importância de frisar a relação moral
estabelecida – os moderadores de sua atuação são ditados por sua subjetividade e
formação; e para Freud parece ser essencial haver um compromisso bem definido. Ao
menos para este autor, uma interconexã o se estabelece diretamente entre moral e
contratransferência.
Partindo da posição freudiana, podemos situar de ma neira crítica as
considerações sobre a prática clínica no que tange a relação contratransferencial na
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
4
situação de análise. A contratransferênc ia poderia ser vista como chave para a
compreensão de idéias posteriores como intersubjetividade, empatia, e outras de
essencial importância, dado que é um índice que orienta a postura do analista em sua
atuação. Por que posições tão diferentes convivem sob o mesmo nome, por mais que
sejam muitas vezes contrárias entre si? Por que alguns autores decidiram transformar o
conceito em sua prática, e que relações a nova idéia mantém com a formulação
freudiana?
A postura teórica frente à contra transferência toca o a nalista essencialmente em
seu ato. Sendo de tamanha responsabilidade, deve ser cauteloso (na medida do possível)
por parte de seu agente. Sua ação pode ser marcada por um excesso, uma superposição
da experiência pessoal do profissional à busca do particular do seu analisando.
Tomando de empréstimo uma idéia de Renato Janine Ribeiro (R
IBEIRO
, 2000. P. 69),
um profissional deve atentar pa ra que os condicionantes ou determinantes de uma ação
não e xcedam indevidamente seu resultado, tornando o projeto infecundo. Em outras
palavras, quando o re sultado de toda uma arquitetura é pouc o para o esforç o
depreendido – “A montanha pariu um rato”. Os psicanalistas devem tomar cuidado com
o ‘exce sso de teoria’. Caso c ontrário, a interpre tação analítica pode se tornar uma
sobreposição de sentido a um conteúdo a ser desconstruído, além de obstruir o
andamento do trata mento na tentativa de se aplicar modelos pré -estabe lecidos a uma
narrativa pessoal.
Em alguns momentos de sua obra, Freud parece recomendar ao analista ouvir o
conteúdo do analisando da maneira mais ingênua o possível. Além de sublinhar a
necessidade de uma escuta livre de preconceitos, o autor alerta contra o caráter falso da
contratransferência, leia-se até antianalítico, dado a psicanálise ser uma ‘busca pela
verdade’. Se a contratransferência é resultado da transferência e esta, por sua vez, é um
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
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engano movido pela fantasia inconsciente da paciente, também deriva de uma
motivação falsa. Um passo possível seria pensar na contratransferência como geradora
de um excesso de sentido, algo acrescentado que parte do analista, e não de seu
paciente. Se a psicanálise freudiana for uma busc a pela verdade inconsciente, uma
talking cure – a cura pela palavra dita no espaço da associação livre – ao analista cabe
combater uma prolixia desnecessária, que atra sa e enevoa o progresso do tratamento.
Caso ocorra com o próprio profissional, a recomendação é recorrer à retomada de sua
análise pessoal.
Para discutirmos o pe rcurso do conceito f ormulado por Freud, pretendemos
marcar a posição de alguns autores que seguiram as formulações psicana lítica s.
Iniciaremos a discussão com uma apresentação dos conceitos de transferência e
contratransferência para Sigmund Freud, que nos servirão como ponto de partida para
discussão. A seguir, será realizada uma leitura do conceito atra vés da obra de autores da
Escola Inglesa de psicanálise. A primeira autora a ser trabalhada será Paula Heimann,
por seu ca ráter de ruptura com o conceito freudiano. Em seguida, a discussão será
conduzida à Escola Francesa de psicanálise, com o estudo da obra de Jacques Lacan,
seguindo o caminho da discussão anterior.
Dois casos clínicos publicados servirão para promover o diálogo entre as
posturas diferentes dos autores. A met a será avaliar a posição do analista em relação à
sua contratransferência, assim como as implicações e conseqüê ncias desta. O último
capítulo será dedicado a considerações finais.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
6
M
ÉTODO
“Refleti que é lícito ver no Quixote ‘final’ uma espécie de
palimpsesto, no qual devem transluzir-se os rastos – tênues, mas não
indecifráveis – da “prévia” escrita de nosso amigo. Infelizmente,
apenas um segundo Pierre Menard, invertendo o trabalho do anterior,
poderia exumar e ressuscitar essas Tróias...
“Pensar, analisar, inventar” (escreveu-me também) “não são
atos anômalos, são a normal respiração da inteligência. Glorificar o
ocasional cumprimento dessa função, entesourar antigos e alheios
pensamentos, recordar com incrédulo estupor o que o doctor
universalis pensou, é confessar nossa languidez ou nossa barbárie.
Todo homem deve ser capaz de todas as idéias e suponho que no futuro
o será”.
Menard (talvez sem querê-lo) enriqueceu, mediante uma
técnica nova, a arte fixa e rudimentar da leitura: a técnica do
anacronismo deliberado e das atribuições errôneas. Essa técnica de
aplicação infinita nos leva a percorrer a Odisséia como se fosse
posterior à Eneida e o livro Le Jardin du Ce ntaure, de Madame Henri
Bachelier, como se fosse de Madame Henri Bachelier. Essa técnica
povoa de aventura os livros mais pacíficos”.
(B
ORGES
, 1939 / 2001. P. 63)
Nosso método consiste em realizar um comentário – segundo a definição de
Michel Foucault em sua obra ‘A Ordem do Discurso’ (1970) – de textos de
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
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Sigmund Freud, Paula Heimann e Jacques Lacan. A escolha dos textos será
realizada buscando abordar o pensamento dos autores sobre o conceito freudiano
da contratransferência, e, eventualmente, textos de outros autores poderão ser
incluídos em nossa pesquisa.
Desde a década de 1950, o tema da contratransferência ve m surgindo com
crescente incidência nas discussões e produção teórica em psicanálise. Inicialmente
surge como um tema pouco aborda do, e hoje aparece com variações sensíveis fre nte a
formulação freudiana original. Se, em sua base, tratava-se de um efeito a ser evitado
pelo psicanalista em se ssão, hoje pode mos encontrar uma série de autores defendendo
posições consistentes e bastante diversas, como o uso da empatia em sessão ou a
compreensão do inconsciente do paciente por meios que não se baseiam na fala.
Nossa intenção inicial seria mapear o momento de surgimento deste interesse,
tomando como base de pesquisa textos de Paula He imann e Jacques Lacan. Estes foram
escolhidos por representar parte essencial do pensamento desta época, na qual surgem
os primeiros trabalhos sobre o tema. Embora outros autores o tenham trabalhado
anteriormente (Fe renczi, Racker e outros), nos parece plausível afirmar que estes
escritos – quase simultâneos – exercera m influência sobre a produção posterior. Nossa
pesquisa parte da obra freudiana por seu caráter de gênese e primeiro desenvolvimento
do conceito, e busca desenvolver uma base para refletir.
Iniciaremos a discussão com uma apresentação dos conceitos de transferência e
contratransferência para Sigmund Freud, que nos servirão como ponto de partida para
discussão. A seguir, será re alizada uma leitura do conceito através da obra Paula
Heimann, por seu ca ráte r de ruptura com o conc eito f reud iano. Em se guida, a dis cussã o
será conduzida à Escola Francesa de psicanálise, com o estudo da obra de Jacques
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
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Lacan. Dois casos clínicos publicados servirão para promover o diálogo entre as
posturas diferentes dos autores. A me ta será mapear a posição do analista em relação à
sua contratransferência, e as impl icações e conseqüênc ias desta. O últim o capítulo será
dedicado às considerações finais.
Em “Pierre Menard, autor de Quixote”, J orge Luís Borges (B
ORGES
, 1939 /
2001) apresenta, sob a forma de ficção, um ponto bastante interessante. A partir de um
conto fantástico isomorfo a um texto técnico sobre a escrita, o autor põe em questão a
relação entre interpretação e texto. Pierre Menard, eminente escritor, é estudado - pelo
narrador - em sua intenção de reescrever a obra ‘Dom Quixote’, de Migue l de
Cervantes. Segundo o personagem relator do texto, a nova versão seria bastante superior
à antiga. Em certo ponto, este o demonstra pela comparação de dois trechos e ntre si. O
efeito cômico se dá no momento em que o leitor, surpreso, percebe ter l ido exatamente
as mesmas palavras, interpretadas de modo diferente pelo narrador. A segunda versão,
escrita por Mena rd, teria para este uma rique za textual em relação à original, e tal
discrepância geraria a discussão descrita no trecho citado. Nossa intenção, ao trazer este
extrato de te xto, é marcar a dimensã o do comentário como um espaço fecundo a novas
interpretação de um texto. O sentido do texto não é fechado, e o comentário seria um
método de exploração de textos clássicos sem – como no cômico de Borges –
transformá-lo a ponto de perder o conteúdo primeiro.
Para estabelecer o método de trabalho, recorremos ao conceito de comentário
defendido por Mic hel Foucault, em seu trabalho ‘A Ordem do Discurso’ (F
OUCAULT
,
1970 / 1998). O contexto em que surge o conceito do comentário é o momento em que
Foucault discorre sobre os procedimentos de controle e delimitação do discurso –
especificamente, dos e xercidos do e xterior deste. O autor aponta modalidades do
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
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discurso que põe em jogo elementos como o poder e o desejo. Have ria outros
procedimentos compostos por discursos em si, consequentemente recebendo o nome de
mecanismos internos. Não se t ratariam de controles exteriores, impostos, mas de
limitações e movimentos inerentes à sua formulação viva, em ato.
O primeiro destes mecanismos internos a ser mencionado por Foucault é o
comentário. Poder-se-ia resum ir tal idéia afirmando que o come ntário seria uma
repetição de um te xto que serviria para marcar ou realçar algo no primeiro. Repetição
que não produz o mesmo efeito, mas conjura o anterior e busca apresenta-lo em relação
a outro contexto. Se este novo recorte for seu próprio conteúdo, será tomado de outra
perspectiva. No entanto, o comentário, apesar de seu caráter de repetição, guarda uma
ameaça. Na repetição, elementos do texto são omitidos, e neste movimento o texto se
transforma.
A rigor, existe sempre uma dimensão de jogo de poder, de tensão na esfera do
discurso. Ao invés de corporificar ou materializar estes ele mentos de poder – dizendo de
outra maneira, atribuindo estas forças inerentes ao discurso a uma instituição, pessoa ou
re gime - Fouc a ult t raz para a nat ure za d isc ur siva es te mo vime nt o d e a utore gul a çã o. O
autor descreve ainda outros procedimentos de controle, como os princípios de
classificação, ordenação e distribuição do discurso. Destas formas de controle do
discurso, consideramos o comentário como um método adequado para manter a tensão
necessária em nossa pesquisa para explorar o trabalho destes autores, ao mesmo tempo
tentando manter suas proposta s originais.
Nesta aula inaugural do Collège de France, Foucault apresenta a categoria
discursiva do comentário m arcando a existência de um desnível, uma não-igualdade
entre os discursos. Sempre a partir da idéia de um j ogo de tensões, Foucault i ntroduz a
idéia do comentário tratando de um desnível entre o ‘transitório’ e o ‘original’:
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
10
“Em suma, pode-se supor que há, muito regularmente nas
sociedades, uma espécie de desnivelamento entre os discursos: os
discursos que “se dizem” no corre r dos dias e das troc as, e que passam
com o ato mesmo que os pronunciou; e os discursos que estão na
origem de certo número de atos novos de fala que os retomam, os
transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente,
para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda
por dizer.”. (F
OUC AULT
, 1970 / 1998 P. 22)
Há ao menos dois níveis distint os do discurso – um deles pontual, instantâneo
em sua repercussão, e nquanto o outro nível retorna, é capaz de reaparecer inserido em
novos discursos. Parece-nos uma maneira de se descrever a c riação, na me dida em que
repercute e ressurge em discursos posteriores. Até aqui, a possibilidade de aproximação
ao nosso tema é cla ra: esse ncialmente tentar isolar, na obra freudiana, as características
atribuídas pelo autor a este conceito um tanto tangencial em seu trabalho, a
contratransferência. Contudo, este discurso não foi efêmero; ressurgiu em outros
estudos posteriore s, espec ialmente na déc ada de 1950. Assim, nosso método se
encaixaria nesta categoria de discurso, em busca dos elementos no texto que
transbordam do mome nto de sua criação atingem outros discursos. Contudo, nosso
raciocínio ainda se mostra uma simplificaçã o; p ros si ga m o s na le itu ra de Fou ca ul t.
“É certo que esse deslocamento não é estável, nem constante,
nem absoluto. Não há, de um lado, a categoria dada uma vez por todas,
dos discursos fundamentais ou criadores; e, de outro, a massa daqueles
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
11
que repetem, glosam e comentam. Muitos textos maiores se confundem
e de sa pa rece m, e, por veze s, c ome ntá rio s vê m to m ar o pri me iro lu gar” .
(F
OUCAULT
, 1970 / 1998 P. 23)
Assim, nos parece uma definição sumária demais estabelecer categorias
estanque no discurso, dividindo-os entre criadores e efêmeros, assim como comentários
e texto original. O autor aponta o trânsito incessante entre as modalidades, e o
movimento é caracterizado por esse deslocamento entre ‘categorias’. Trata-se se um a
advertência importante para uma pesquisa que se vale do c omentário de textos de
autores clássicos da psicanálise, mas que se mantém como um horizonte. A escolha do
comentário como método se sustenta para explorar os textos respeitando suas posiçõe s.
Há o risco de transformar todos os textos em lentes para fenômenos semelhantes nos
casos estudados. De sta forma, o comentário, como uma das modalidades do discurso
parece se prestar ao estudo por manter a t ensão original sem ignorar o jogo de te nsões
necessário para preservar as diferenças entre as perspectivas teóricas, suportando a
multiplicidade do sentido, ou o desnível entre comentário e texto estudado, para usar um
termo do autor.
“Mas embora seus pontos de aplicação possam muda r, a funçã o
permanece; e o princ ípio de um deslocamento encontra-se sem cessar
reposto em jogo. O desaparecimento radical desse desnivelamento não
pode nunca ser senão um jogo, utopia ou angústia. Jogo, à moda de
Borges, de um comentário que não será outra coisa senão a reaparição,
palavra por palavra (mas desta vez solene e esperada), daquilo que ele
comenta; jogo, ainda, de uma c rítica que fa laria até o infinito de uma
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
12
obra que não existe. Sonho lírico de um discurso que renasce em cada
um dos seus pontos, absolutamente novo e inocente, e que reaparece
sem cessar, em todo seu frescor, a partir das coisas, dos sentimentos ou
dos pensamentos”. (F
OUC AULT
, 1970 / 1998 P. 23)
Foucault marca com precisão a natureza da repetição: não se trata de algo que
sirva para engessar o texto ou esgotá-lo. Trata-se da repetição como uma possibilidade
de produçã o de novos discursos, de atualizá-lo e colocá-lo frente a outras possibilidades
de leitura. Esta é a natureza do comentário – uma repetição que, ao mesmo tempo, é um
mecanismo de c ontrole do discurso (não se pode esquecer este aspecto) e uma
possibilidade de novas construções. Possibili dade, aliás, ‘aberta de falar’, como o põe o
próprio autor.
Há, então, uma repetição e specífica ao que o autor chama de comentário:
“Por ora, gostaria de me limitar a indicar que, no que se chama
globalmente um comentário, o desnível entre texto primeiro e texto
segundo desempenha dois papéis que são solidários. Por um lado
permite construir (e indefinidamente) novos discursos: o fato de o texto
primeiro pairar acima, sua permanência, seu estatuto de discurso
sempre reatualizável, o sentido múltiplo ou oculto de que passa por ser
detentor, a reticência e a riqueza essenciais que lhe atribuímos, tudo
isso funda uma possibilidade aberta de falar”. (F
OUC AULT
, 1970 / 1998
P. 25)
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
13
O desnível entre o discurso comentado e o comentário em si é o ponto de
origem da possibilidade de plura lizar este discurso, um meio de construção destes. Seu
texto sempre segue o rumo da multiplic idade, da transformação do se ntido a partir da
leitura, do contexto. O discurso não se fecha sobre uma verda de original, mas é
atravessado por novos discursos. E ainda assim, o come ntário guarda sua dimensão de
uma modalidade de abordagem de um texto consciente das limitações mesmas do
discurso.
A escolha do comentário como método se apóia nestas possibilidades de
multiplicar o sentido sem perder a originalidade das posições dos autores. Partindo dos
textos de Freud, referência fundamental aos estudos em psicanálise, pretendemos
utilizar estas marcas em seu trabalho para buscar as aproximações, diferenças e
reformulaç ões do conceito na produção teórica posterior a partir do comentário destes
textos. Este exercíc io deve manter a tensão original, sem aplainar as sutilezas de cada
leitura sobre a contratransferência, para permiti r a dive rsidade desta idéia. Com este
leque de visões, nos será possível alternar perspectivas diferentes e procurar as
transformações que cada leitura produz na sessã o analítica, estabelecendo as mudanças
na prá tica do profissional e m seu tratamento. Para retorna r a Foucault, o com entário
seria uma boa escolha por ser também limitado pelo sentido primeiro de c ada texto
estudado.
Retornando a uma idéia anterior, embora o comentário promova marcas no
texto, encontra seu limite em seu conteúdo. Foucault lembra que apesar de servir como
uma abertura no sentido original, funciona pela articulação de elementos que ali já
e st a vam . Nã o se t r a ta d e uma f un ção d e ac sci mo, m a s de ê nfa se, r ec upe raç ã o.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
14
“Mas, por outro lado, o comentário não tem outro papel, sejam
quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que
estava articulado silenciosamente no texto primeiro”. (F
OUC AULT
, 1970
/ 1998 P. 25)
O comentário tem uma função semelhante à de recuperar, através da repetição,
elementos do texto comentado. Assim, um estudo sobre a contratransferência
empregando este mé todo não se propõe de modo algum apont ar qual o meio correto ou
mais adequado de se conduzir uma sessão, e sim apontar as diferença s possíveis trazidas
por cada autor na interpre tação do que se pode chamar de fenômenos
contratransferenciais. No texto de Foucault são mencionada s articulações ‘silenciosas’ –
iremos tomá-lo como uma via para, a partir deste comentário que evita a inte rpretação,
atendo-se a situar e debater sobre os textos, buscar a intertextualidade entre os trabalhos,
levando em conta o contexto de sua produção. Assim, nossa leitura não será apenas um
destaque de pontos em comum, mas tentará buscar uma cadeia de elementos que
reapareçam e se articulem entre os três autores citados. As proposta s de Freud para o
(não) uso da contratransferência ressurgem no texto de Lacan e Heimann – como
articular estes elementos em uma rel ação que não seja de simples discordância? Como
apontar as diferenças sem distorcer o conceito?
Aqui, cabe uma pergunta: a final, se o comentário retoma certos aspectos e não
outros, ele não transforma a mensagem primeira? Se alguns ele mentos são apresentados,
certamente c orre-se o risco de se trazer uma visão particula r, inevitavelment e dife rente
da original. Assim como no texto de Borges, a própria repetição do texto pode, em si,
ser lida como difere nte da prim eira. Haveria como escapar deste m ovimento? Para
Foucault, parece que não:
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
15
“O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua
parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição
de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado. A
multiplicidade a berta, o acaso são transferidos, pelo princípio do
comentário, daquilo que arriscaria de ser dito, para o número, a forma,
a máscara, a circunstância da repetição. O novo não está no que é dito,
mas no acontecimento de sua volta”. (F
OUCAULT
, 1970 / 1998 P. 25 –
26)
Aparece um elemento novo no comentário, mesmo marcado pela repetição. Este
processo traz o novo, na volta do te xto; permite sua visibilidade para buscar corre lações
em torno da contratransferência. O conte údo do texto é repetido e comentado, mas na
medida em que é retomado, permite uma nova leitura em relaçã o a outros textos.
Nossa escolha na proposta de escolher a via do comentário se faz, também, no
sentido de buscar uma composição destes te xtos a menos interpretativa possível,
tomando como ‘i nterpretar’ o m ovimento de a tribuir um significado fixo a um dado
elemento do discurso. Por certo é inevitável, mas fica o alerta contra o congelamento de
uma interpretação em relação a out ras possíveis. A análise destes autores buscará gerar
estes três prismas de leitura sem necessidade da de fesa de um em detrimento a outro.
Assim, ao final, com estas três leituras possíveis, diferentes fenômenos se fariam
visíveis na análise da prática do psicanalista segundo sua orientação frente à
contratransferência.
No trabalho de James Phillips (P
HILLIP S
, 1991. P. 377), há uma menção ao
artigo de Sydney Pulver. Tal pesquisador public ou em 1987, na revista Psychoanalythic
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
16
Inquiry, um texto intitulado “How Theory Shapes Techique: Perspectives on a Clinical
Study”. Neste estudo, Pul ver convida diversos psicanalistas a comentarem um caso
clínico relatado por Martin Silverman naquele ano. Phillips comenta que o mais
interessante para o leitor de Pulver é perceber a grande diversidade de opiniões relativas
tanto a aspectos teóricos quanto aos elementos percebidos na própria sessão. Segundo
Phillips, “a influência da bagagem teórica de alguém é tão forte que afeta a percepção
mesma do que acontece no consultório, encaminhando Sydney Pulver a concluir: ‘fatos
em si não existem. A idéia mesma do que constitui dados e desta forma são válidos para
se tomar nota é determinada pela inclinação teórica do analista’.” (P
HIL LIP S
, 1991. P.
377 – tradução livre). O olhar molda o objeto.
Nossa proposta pode ser uma apropriação arriscada, uma vez que cada uma das
perspectivas estudadas será inevitavelmente atravessada por uma maneira pa rticular de
compreensã o do trabalho de autores ime nsamente complexos como Sigmund Freud,
Jacques Lacan e Paula Heimann. Contudo, parece trazer em si a possibilidade de
estabelecer uma intertextualidade fecunda à compreensão dos fenômenos
contratransferenciais. Ao menos, é nossa intenção – ao ler este s textos clássicos, poder
entrever relações de parentesco e distanciamento entre as idéias se m corre r o risc o de
opinar em favor ou contra uma ou outra posição teórica e metodológica.
Assim, a perspectiva central de nosso trabalho é a de buscar elementos para
pensar o tema da contratransferência a partir do ponto de vista de autores que dele
trataram em suas obras. Partindo das defi niçõe s de cada um e de suas elaborações,
verificar se é possível tomar os casos analisados no f inal e transformá-los como um jogo
de espelhos, mudando o ângulo de visão a cada leitura. Com a especificidade de cada
autor – Freud, Lacan, Heimann – é possível entre ver um caso novo, com eventos
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
18
A
T
RANSFERÊNCIA SEGUNDO
F
REUD
Através das diversas c orrentes da psicanálise é comum encontrarmos termos
semelha ntes para conceitos totalmente diversos. Ca da linha atribui sua particularidade
aos termos anteriores, e os traduz das mais diversas maneiras. Um bom exemplo entre
muitos pode ser o conceito de transferência. A tra nsferência reuniria os afetos que
emergem no analisando em relação a seu analista – afetos tomados de empréstimo de
outras figuras do inconsciente, transferidos de um a outro. Este analista condensaria –
como no sonho – afetos desligados de suas representações consc ientes, e tal
transmigração criaria o vínculo que possibilitaria ocorrer a análise.
É comum na teoria psicanalítica a noção da transferência como essencial à
análise, como caminho para o estabelecimento do vínculo e abertura para a associação
livre. O analista inaugura sua posição no imaginário de seu paciente através desta
associação particular. O analisando acredita ter no profissional um meio para resolve r
suas angústias e desvendar aspectos de sua personalidade inacessíveis para si, e este
laço pode ser importante para o ingresso no tratamento.
Contudo, tal elo pode carregar um risco. Caso o afeto torne-se de masiado
erótico, ou a a nálise se fixe neste ponto transferencial, é necessária a interpretação da
mesma. Sendo a transferência uma negação da realidade – uma vez que imbui de afeto
uma pessoa em substituição ou sobreposição à outra – torna-se, simultaneamente, uma
resistência ao processo.
Podemos, enfim, pensar na transferência como um motor para o ingresso do
paciente em análise, caso seja devidamente manejada pelo analista. Ao mesmo tempo,
se t orna um o bstáculo, uma form a de res istência ao tratament o. Para Freud, a psicanálise
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
19
seria baseada no amor à verdade, uma representação encobridora como a transferência
traz, em si, uma ameaça a essa busca.
Na obra de Freud o tema da t ransferência é tratado na grande maioria de seus
textos, transformando-se ao longo do estudo. Para introduzir o tema, faremos alguns
recortes que permitam recorta r o conceito em alguns de seus aspectos fundamentais do
contexto no qual o autor tratou da contratra nsferência. Um bom texto para apresentar
este recorte é “A Dinâmica da Transferência”, de 1912.
Se pudéssemos ensaia r um mape amento sobre a ‘origem’ da transferência, o
ponto no qual ela surgiria, partiríamos de algo semelhante a uma repetição de padrões
anteriores de laços amorosos. O autor desenha algo neste sentido em seu texto:
“Deve-se compreender que cada indivíduo, através da açã o
combinada de sua disposição inata e das influências sofridas durante os
primeiros anos, conseguiu um método específico próprio de conduzir-
se na vida erótica” (F
REU D
, 1912 / 1980).
Uma soma de “disposição inata” e “ influências sofridas nos primeiros anos”
configuram me ios específicos para cada indivíduo ingressar na vida erótica.
Encontramos um Freud di vidido entre influências genéticas ou inatas e externas, ou do
meio ambiente. O começo desta relação de amor seguiria um dado padrão, estabelecido
pela interação de diversos fatores. Parece surgir algo semelhante a uma tendê ncia
anterior à relação, a priori. A partir daí, como se estabeleceria a repetição que
configuraria uma ‘transferência’, algo conduzido de um lugar de origem a outro,
posterior?
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
20
“Se a necessidade que algué m t em de amar não é inteiramente
satisfeita pela rea lidade, ele está fadado a aproximar-se de cada nova
pessoa que encontra com idéias libidinais antecipa das.” (F
REUD
, 1912 /
1980)
Assim, já se fa z mais visível o que vai t omar a forma da transferência: a paixã o
da analisanda, que transfere um amor originalmente voltado ao pai para o profissional
em uma transposição de figuras inc onscientes. A partir de uma necessidade nã o
satisfeita (e, aqui, seria interessante perguntar ao autor se seria possível satisfazê-la um
dia!), uma pe ssoa se aproxima de outra com idéias libidinais antecipadas. Aliando esta
afirmação à anterior, está disposta a base para se pensar em um amor, emergindo de
representações do inconsciente.
Um esboço de transferência se faz perceber nesta disposição prévia a certo
funcionamento no amor. A pergunta seguinte ao autor é saber se este amor que surge é
favorável ou não à análise. Infeli zmente, a resposta não é sim ples. Em seu texto de
1912, intit ulado “A Dinâmica da Transferência”, Freud menciona a maneira pela qual a
transferência carrega em si a a mbigüidade entre motor da experiência analítica e
resistência. Para o autor, não só a transferência traria esta dualidade, como seria
encontrada com mais intensidade nos indivíduos neuróticos.
“Em primeiro lugar, não compreendemos por que a
transferência é tão mais inte nsa nos indivíduos neurótic os em a nálise
que em outras pessoas de sse tipo que não estão sendo analisadas. Em
segundo, permanece sendo um e nigma a razão por que, na análise, a
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
21
transferência surge como a resistência mais poderosa ao tratamento,
enquanto que, fora dela, deve ser encarada como veícul o de cura e
condição de sucesso”. (F
REUD
, 1912 / 1980)
É curioso pe rceber que o autor posiciona o neurótico em análise como ma is
suscetível aos efeitos transferenciais. Assim, poderíamos formular a hipótese de que o
surgimento da transferência está vinculado ao ingresso e m análise. Contudo, todas as
nossas afirmações ficam contidas em um espaço hipotético, dado que o autor marca
estas reflexões com o uma hipótese a ser considerada, e não como um efeito. Apesar
disto, a sua próxima interrogação nos conduz à ambigüidade presente na transferência
que será tratada ao longo de diversos textos posteriores. A transferência seria ao mesmo
tempo uma mola mestra do tratamento; o amor sentido pelo médico leva uma analisanda
a falar de si, de suas sensações e fantasias com mais afinco. Ao mesmo tempo, esta
relação, caso intensificada em demasia, leva à interrupção do trata mento.
Neste fragmento encontra-se colocado o probl ema – o restante do texto será
dedicado a explorar esta tensão presente na transferência. Por um lado, se configura
como a “mais poderosa” resistência ao tratamento: entre uma série possível de variações
da resistência do analisando. Por outro lado, se despida de seu caráter re sistente, a
transferência torna-se “veículo de cura e condição de sucesso”. Ainda não surge - a o
menos neste fragmento de texto - como algo essencial. Aparece, no entanto, como
instrumento do analista para conduzir o tratamento de maneira bem sucedida.
Em um se gundo momento do mesmo texto, o autor retorna ao tema da
resistência, e sofisti ca a relação.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
22
“Assim, a transferência, no tratamento analítico,
invariavelmente nos aparece, desde o iní cio, como a arma mais forte da
resistência, e podemos concluir que a intensidade e persistência da
transferência constituem efeito e expressão da resistência”. (F
REUD
,
1912 / 1980)
A transferência persiste durante o tratamento graças a seu caráter de resistência.
Em outros term os, apesar da interpretação do analista, haveria algo da transferência que
resiste a ser trazido à consciência, mantém sua representação inconsciente,
manifestando-se como afeto. No mesmo texto, Freud afirma tal pe rsistência como efeito
de uma catexia anterior que insiste em permanece r ligada a um objeto de amor (F
REUD
,
1912 / 1980). Desta f orma, a relação nova com a analista se escora em representações
afetivas anteriores, resistentes à interpretaçã o. Esta ambivalência não se dissolve em
toda obra f reudiana – e, em todo caso, não necessita de solução. Trata-se enfim, de um
ponto de te nsão essencial à dinâmica analítica, um meio de produzir o discurso em
sessão.
Podemos extrair destes trechos exemplos na obra freudiana em que a
transferência é descrita como aliada à resistência. Complementar a estas leituras, outros
autores posteriores enfocaram em seus trabalhos esta face da transferência. Para citar
um destes, lemos no texto de Joe l Birman de forma clara o momento em que a obra
freudiana compõe essa visão paradoxal da transferência:
“A partir de agora [O caso Dora], a transferência vai ocupar
uma posição central na teoria do proce sso analítico, oferecendo outro
campo de representações para a escuta do analista. Realiza-se, então, a
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
23
formulação princeps dessa posição, que a firma o papel ambíguo da
transferência: de maior obstáculo ao processo analítico, pois é o que se
contrapõe à rememoração, ela pode se transformar no seu auxiliar mais
poderoso, desde que pontualmente interpre tada pelo analista.
(B
IRMAN
, 1991. P. 178)
Birman traça uma hipótese, em seu trabalho “Freud e a Interpretação
psicanalítica”, sobre a maneira pela qual a t ransferência, para Freud, s e torna uma forma
de resistência:
“O campo representativo não se de svela totalmente, pois isso
acarretaria sofrimento mental. A remem oração é substituída pela
revivência, isto é, uma cena transforma-se em um ato. O paciente
monta, no presente, a mesma cena fantasmática do passado. Estabelece-
se uma equação simbólica entre a cena fantasmática e a ce na da relação
médico-paciente. O desvendamento da segunda é a condição da
possibilidade de se explicar a primeira, que pertence à história do
suje it o.” (B
IRMAN
, 1991. P. 174)
Pe te r Gay, em sua biografia de Sigmund Freud, demonstra o paradoxo
transferênc ia-resistência da seguinte forma:
“Não escapou à atenção de Freud que a transferência está
carregada de contradições. O caso de Dora demonstrara para ele que
o laço emocional que o pa ciente tenta impor ao a nalista, constituído por
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
24
pedaços e fragmentos em geral de antigos afetos apaixonados, é ao
mesmo tempo o obstá culo mais intratável à cura e seu agente mais
eficiente. (...) Esses papéis conflitantes nã o são mistérios dialétic os.
Freud distinguia três tipos de transferências que surgem na sit uação
psicanalítica: a negativa, a erótica e a sensata. A transferência negativa,
uma carga de sentimentos agressivos e hostis posta sobre o psicanalista,
e a transferência erótica, que converte o analista num objeto de amor
apaixonado, são a mbas guardiãs da resistência. Mas, felizmente,
também existe um terceiro tipo, o mais racional e menos distorcido de
todos, que vê o terapeuta como um benévolo aliado na luta contra a
neurose.” (G
AY
, 1989. P. 281)
Há uma aparente concordância na importância capital do Ca so Dora no trabalho
freudiano – parece ser este o momento em que a transferência assume seu caráter
central. Podemos ainda busca r um terceiro autor para escla rece r este ponto. Marlene
Guirado descreve o pensamento de Freud sobre a transferência da seguinte forma:
“Destaco aqueles [apontamentos sobre a transferência] que
me parecem os organizadores das idéias a respeito da transferência: (a)
fator de c ontrovertida, mas decisiva, interferência na análise ; (b) cas o
se anuncie prematuramente pode obscurecer o processo, mas é também
ocasião para que se lute com segurança contra as resistências; (c) o
analista deve estar atentamente voltado para as manifestações
transferenciais ou correr o risco de interrupção do processo; (d) o
analista precisa (e, portanto, pode) dominar a transferência do paciente
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
25
e fazê-lo no te mpo certo, ou melhor, em tempo hábil; (e) mas ele pode
(e n ão de veri a ) des c uida r- se de p roc
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
26
A
C
ONTRA TR ANSFE R ÊNCI A P AR A
F
REUD
“Contratransferência – resposta emocional do analista ao
processo de transferência do pacie nte, que envolve especialmente a
projeção de sentimentos inconscientes do analista sobre o paciente.”
(Dicioná rio H
OUAIS S
,
2001)
Embora não seja espec ializado no tema, a definição de contratransferência do
Dicionário Houaiss (Dicionário H
OUAISS
,
2001) a sinte tiza de maneira precisa. Trata-se
efetivamente de um conceito de simples descrição, a o menos se tomarmos a perspectiva
freudiana. Grosso modo, se analisarmos o significante em si, a idéia pode realmente ser
definida da forma acima, ou até mesmo por seu significado etimológico original.
‘Contra’, a partir da raiz latina, sendo “em oposição a, na via contrária de”.
Transferência – da raiz ‘-fer-‘ ou ‘ferere’, conduzir algo a‘. Tratar-se-ia exatamente da
resposta do a nalista a algo que o analisando dirige a si, essencialmente afetos com base
em representações inconscientes.
Uma moça c hega até o consultório de seu analista e narra a história do
rompime nto de seu noivado. Afirma tê-lo feito por estar apaixonada pelo profissional, e
pede que este a corresponda. Poderia seu analista – como no f ilme “Poderosa Afrodite”,
de W oody Alle n – atribuir alguma veracidade àquele afeto, mesmo que para exteriorizar
alguma correspondê ncia em si? Podemos complicar a questão: ao relatar o rompimento,
o analista se vê identificado com o papel do noivo abandonado, pois vivenc iara tal
situação no mês anterior, em seu próprio relacionamento. Até que ponto seria capaz de
intervir e interpreta r a analisanda sem colocar o sentido de suas próprias experiências
sobre o relato da paciente? Seria legítima alguma a tuação de sua parte que a
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
27
condenasse, mesmo que fosse pertinente à análise? Por outro lado, como lidar c om o
afeto que ec lode em tal situação – seria suprimi-lo a melhor alternativa, ou até mesmo
uma alternativa possível? Para Freud, a intervenção é clara. Ao analista caberia manter a
neutralidade analítica, descartar qualquer possibilidade de verdade neste amor e
conduzir os aspectos de identificação à sua análise pessoal. Daí o caráter de
transferência, de empréstimo ilegítimo de um amor dirigido a outrem à f igura do
analista.
Na obra de Sigmund Freud o conceito ‘contratransferência’ apare ce a penas em
quatro momentos, apesar da necessidade de se traba lhar com os sentimentos do
‘médic o’ durante a prática analítica surgir na maioria de se us te xtos refe rentes à
transferência. O termo em si surge, pela primeira vez, em 1910 (“As perspectivas
futuras da terapêutica psicanalítica” [Freud, 1910 / 1980]), na fala de abertura do
Congresso de Nuremberg da Associação Internacional Psicanalítica (IPA), o segundo
realizado por essa instituição. Reaparece ape nas em 1915 (“Observ ões sobre o amor
transferencial” [Freud, 1915 / 1980]), em duas partes do texto, sem ser mencionado em
nenhum m omento posterior de sua obra. Poderíamos questionar o motivo pelo qual
Freud abordou t ão pouco o tema. Alguns autores (com o Robert Young [Y
OUNG
, 2003],
por exempl o) preenchem tal lacuna a partir de trabalhos poste riores de Freud que
poderiam se relacionar ao te ma
2
.
No primeiro destes textos, “As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica”,
de 1910, podemos destacar o momento e m que surge o termo na obra freudiana:
2
O próprio Young, em se u texto “Analytic Space: Countertransference” (Y
OUNG
, 2003) propõe às
referências freudianas sobre o tema um terceiro tempo, marcado pela ênfase de Freud em marcar o
inconsciente do analista c omo alguma f orma de recept or ao inconsciente do analisando. Esta posição é
bastante comum na literatura, tendo sido iniciada por ps ica nalistas ingleses, como Paula Heimann e D. W.
Winnicott. Ret ornaremos à polêmica em outras seções do texto – neste ponto, só seria importante marcar
que tal visão cabe a u ma certa atribuição de sentido à obra freudiana, uma vez que o mesmo jamais
especificou que tal ‘recepção’ estaria de alguma forma ligada à contratransferência.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
28
“As outras inovações na técnic a relacionam-se com o próprio
médico. Tornamo-nos cientes da ‘contratransferência’, que, nele, surge
como resultado da influência do paciente sobre os seus sentimentos
inconscientes e estamos quase inclinados a insistir que ele reconhecerá
a contratransferência, em si mesmo, e a sobrepujará. Agora que um
considerável número de pessoas está praticando a psicanálise e,
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
29
prática freudiana: os afetos experimentados pelo analista são algo a ser trabalhado em
su a aná l ise pe s so al.
A autoanálise toma um peso determinante – caso o praticante não identifique
aspectos seus que interfiram no tra tamento, podem obstruir o tratamento. É esta belecida
a importância da atenção em pontos cegos do profissional, aspectos e complexos
inconscientes não tra tados. É freqüente no texto freudiano a ênfase na autoanálise do
profissional. Como autoanálise, poderíamos pensar na percepção que um profissional
tem de si e de seus afetos ao longo de sua prática. Embora os autores posteriores tenham
enfatizado o papel da supervisão clínica para esta situação, a idéia freudiana traz para o
momento da sessão a necessidade de atenção do profissional sobre seus afetos. Trata-se
de uma qualidade que melhora com o tempo de prática – Freud atenta para o aumento
de profundidade que tal característica recebe ao longo do tempo da prática analítica. Tal
desenvolvimento é fundamental à idéia de neutra lidade analítica. O profissional
experiente busca uma escuta mais ‘pura’, isenta de preconceitos. Tal posição será
reformulada posteriormente por uma série de autores, como Paula Heimann e Thomas
Ogden, mas poderia ser deduzida desta passagem inicial sobre a contratransferênc ia.
Marca-se uma diferença essencial entre Fre ud e as formulações posteriores
quanto à contratransferência. Embora não haja ainda a especificidade quanto à
interpretação, trata-se de uma posição de alerta frente aos afetos que surgem da relação
transferencial. Uma falha na identificação dos afetos contratransferenciais é motivo para
interrupção na análise – será que poderíamos sustentar que estes afetos em si poderiam
se r uti liz ad os n ão s ó par a co m pree n sã o, m a s pa r a a i n te rpr e ta ç ão me sm a do a na l i s an do?
Embora te nha sido uma m enção breve à contratransferência, o conceito o
perde, por isso, sua precisão. Freud marca e xatamente os pontos que confi guram a
‘obstrução’ resultante da contratransferência. A ênfase recai sobre os complexos
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
30
internos e resistências do analista, ou seja, elementos inerentes à história e organização
pessoal do a nalista emergindo como ef eito da influência do analisando. Trata-se da
imagem do analista eminentemente afeta do pela subjetividade de seu paciente,
vulnerável ao que lhe é atribuído de amor ou repul sa. O recurso é a autoa nálise, a
possibilidade de um e xame do profissional em identificar suas obstruções e a influência
de seus complexos na interpretação feita do relato do analisando. Por este aspecto
encontra-se toda a coerência na formulação original da contratransferência: se o analista
é permeado por afetos e se vale de certa medida de um e xame de seus proce ssos
internos para atuar, deve estar sempre atento pa ra o componente inconsciente em jogo.
É uma abertura que gerará as formulações de Paula Heimann e outros autores
posteriores, mas permanece para Freud ma rcado pelo caráter de resistência inerente ao
próprio conceito de transferência. A fala é o primeiro plano, e se presta à descoberta da
verdade inconsciente. Os processos internos do analista devem ser ajustados ao má ximo
para re cebe r esta verda de, ao invés de inte rpretá-las a pa rtir de seu desejo inconsciente
ou história pessoal.
Passemos ao próximo extrato, de “Observações sobre o amor transferencial”, de
1915:
“Para o médico, o fe nômeno [o enamoramento do paciente pelo
dico] significa um esclarecimento va lioso e uma advertência útil
contra qualquer tendência a uma contratransferência que pode estar
presente em sua própria mente. Ele deve reconhecer que o
enamoramento da paciente é induzido pela situação analítica e não deve
ser atribuído aos encantos de sua própria pessoa; de maneira que não
tem nenhum motivo para orgulhar-se de tal ‘conquista’, como seria
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
31
chamada fora da análise. E é sempre bom lembrar-se disto. Para a
paciente, contudo, há duas alterna tivas: abandonar o tratamento
psicanalítico ou aceitar e namorar-se de seu médico como um destino
inelutável.” (F
REUD
, 1915 / 1980)
Se anteriormente nos surgiu a possibili dade de ler a contratransferência como
uma re sistência do analista movida por um de sejo inconsciente próprio, perc ebemos sua
menção nesta formulação posterior de Freud. A contratransferência é descrita por Freud
como uma tendência perigosa e tentadora, algo o levando a tomar como verdadeiro o
amor substituto a si endereçado. A contratransferência pode ria ser vista aqui como um
desejo de amor da parte do profissional. Este argumento encaixaria com a idéia da
transferência como desejo de amar do analisando, ao projetar no médico um amor por
outrem, usualmente não correspondido. Tal desejo de amor removeria o profissional de
seu lugar fundamental de neutralidade, como o próximo trecho nos m ostrará. Tal
situação seria um erro analítico, uma vez que o ana lista deve ria, por princípio, deixar-se
neutro e apto a receber as associações em sua multiplicidade, sem priorizar um elemento
em relação a outro (por exemplo, algo que confirme o amor desejado ou afa ste um
empecilho a esta interpretação).
No contexto deste moment o do trabalho de Freud, a menção da
contratransferência parece uma reiteração da opinião expressa no trecho apresentado
anteri ormente. O autor adverte expressamente contra a atribuição de qualquer
autenticidade aos afetos contratransferenciais. Novamente, a contratransferência aparece
com caráter de ameaça ao tratamento analítico. Se a transferência fosse como um ‘mal
necessário’, a sua c ontrapartida seria algo a ser controla do, uma ‘tendência’ nociva,
impedimento ao tratamento. Trata-se da contratransferência como ponto cego, ilusão
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
32
frente à possibilidade do amor do paciente. Ao analista, cabe o lugar da neutralidade
profissional, de renúncia a tomar uma representação transferencial equivocada como
verdadeira.
Há uma particularidade neste extra to que merece ser sublinhada. Freud marca,
como em outras ocasiões e m sua obra, o caráter enganoso da transferência. O médico
não deve acreditar no amor que lhe é encaminhado. A menção à contratransferência
neste caso pode apontar a uma outra recomendação f reudiana. O profissional deve
desconfiar também de seus próprios afetos em relação ao analisando, uma vez serem de
natureza similar aos transferencia is e decorrência destes. A contratransferência aparece
a todo momento vinculada ao engodo, a um erro do prof issional em relação à postura a
ser assumida na condução do tratamento. Aqui, Freud nome ia exata mente o que pe nsa
ser a conseqüência da ‘falta’ contratransferencial: a interrupção possível da análise por
parte do paciente. Seu texto é claro em apontar a escolha necessária do paciente em
enamorar-se ou abandonar o processo.
A contratransferência carrega, então, esta face de estreitamento desde sua
primeira mençã o, e permanec e como difi culdade até o final. De fato é um conce ito que
não sofre transformações dentro da obra freudiana, e, por isso, podemos imaginar ser
este o mot ivo de sua ausência nos trabalhos posteriores. A definição é precisa e se
mantém idêntica e coerente ao longo de toda pesquisa. Retornando a Joel Birman, o
autor descreve na obra previamente citada o nascimento do conceito de
contratransferênc ia na obra freudiana – assim como a de licadeza da posição analítica -
da s egu i n te m a ne ira :
“Em 1910, o tema da contratransferência é formulado pela
primeira vez, indicando as aç ões que exerce sobre o inconsciente do
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
33
analista. Como esses efeitos fazem parte do campo transferencial, é
necessário que o analista os domine. (... ) A contrapartida é a demanda
de análise para o psicanalista. Para dominar suas próprias pulsões,
condição fundamental para receber a t ransferência dos analisandos e
manejá-la internamente, não lhe basta a razão, mas um domínio de
outra ordem sobre o seu funcionamento mental. (...) O psicanalista tem
que faze r análise para conseguir realizar sua função analítica. (...)
Ninguém detém um poder onipotente sobre o ca mpo do
inconsciente, que submete as figuras do analista e do analisando aos
seus ma is delicados efeitos; por isso, para experimentar e dominar a
transferência é preciso ser capaz de manejar a contratransferência, coisa
que, em princípio, não está mais assegurada ao analista que aos
analisandos.” (B
IRMAN
, 1991. P. 189, 190 e 191)
Percebemos nesta leitura do texto freudiano a ênfase na autopercepção do
analista, ilustrada na idéia de domínio. Ao analista caberia uma consciência de si, que o
impede de seguir certos impulsos que devem ser contidos, no analisando e em si.
Poderíamos pensar na delicadeza da posição analítica : ao mesmo tempo em que goza de
um privilégio, de uma possibilidade de conduzir a sessão, a situação pode exercer
efeitos em seu inconsciente, que devem ser contidos. Trata-se de uma primeira
formulação possível da contratransferência, a visão freudiana por excelência. É a
contratransferência como resultado da transferência, que posiciona o analista em uma
posição essencialmente desigual junto ao analisando – para o primeiro nã o são
permitidas a associação livre ou a liberdade de agir como quiser.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
34
Quando examinamos a terceira menção de Freud sobre a contratransferência,
percebemos que a ê nfase recai novamente sobre a neutralidade analítica. Para o aut or, a
contratransferência é um conceito essencialmente limitante, poderíamos até arriscar o
adjetivo superegóico. Na presença de uma reposta contratransferencial – pois se trata de
algo próprio à relação psicanalítica – o analista cala, ma ntendo sua posição neutra e
abstinente. Aqui se encontra amarrado o argume nto prévio da importância da
autopercepção do analista. A neutralidade do analista não é natural, ne m aparece como
algo fácil de ser sus tentado. O trabalho analítico parece um balanço de sintonia fina, em
que a sensibilidade e atenção seriam modula das a cada momento, no sentido de buscar o
equilíbrio entre a percepção dos processos internos e escuta do analisando. A escuta
parece deve r ser neutra para ca ptar as flutuações do discurso do analisando, inalteradas
pelas ênfases da e scuta do profissional. Desta forma, o analista s olicita o discurso ma is
livre possível e deve ser capaz de lidar com ele de maneira honesta, acolhendo a
diferença e dificuldade de compreensão. Há, inclusive, no texto freudiano uma marca
que orienta o praticante da análise a responsabil izar-se por esta transferência evocada.
“Instigar a paciente a suprimir, renunciar ou sublimar seus
instintos, no momento em que ela admitiu sua transferência erótica,
seria, não uma maneira analítica de lidar com eles, mas uma maneira
insensata. Seria exatamente como se, após invocar um espírito dos
infernos, mediante astutos encantamentos, devêssemos mandá-lo de
volta para baixo, sem lhe have r feito uma única pergunta. Ter-se-ia
trazido o reprimido à consciência, apenas para reprimi-lo mais uma vez,
um susto. Não devemos iludir-nos sobre o êxit o de qualquer
procedimento desse tipo. Como sabemos, as paixões pouco são afetadas
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
35
por discursos sublimes. A paciente sentirá apenas humilha ção e não
deixará de vingar-se por ela”. (F
REUD
, 1915 / 1980)
Neste ponto, a responsabilidade do prof issional é subli nhada como elemento
essencial. O analista é chamado a responsabilizar-se pelo que provoca com a
convocação dos afetos transferenciais. Caso não o faça, provoca efeitos negativos, uma
humilhação, no limite. Interessante marcar que, em momento a lgum, Freud deixa de
referir-se à transferência como algo distante de uma relação amorosa a ser manejada.
Transferência é amor – sobre isto, neste autor, não há duvida. E trata-se de um amor a
ser administrado, que apresenta riscos.
O autor dedica parte de seu texto a pensar nas possibilidades do analista aceitar
este amor como verdadeiro ou ne gociar com ele;
“Tampouco posso eu advogar um caminho intermediário, que a
certas pessoas se recomenda ria como especialmente engenhoso.
Consistiria em declarar que se ret ribuem os amorosos sentimentos da
paciente, ma s, ao mesmo tempo, em evitar qualquer complementação
física desta afeição, até que se possa orientar o relacionament o para
canais mais calmos e elevá-lo a um nível mais alto. Minha objeção a
este expediente é que o tratamento analítico se baseia na sinceridade, e
neste fato reside grande parte de seu efeito educativo e de seu valor
ético. É perigoso desviar-se deste fundame nto. Todo aque le que se
tenha embebido na técnica analítica não mais será capaz de fazer uso
das mentiras e fingimentos que um médico normalmente acha
inevitáveis; e se, com a melhor das intenções, tentar fazê-lo, é muito
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
36
provável que se traia. Visto exigirmos estrita sinceridade de nossos
pacientes, colocamos em perigo toda a nossa autoridade, se nos
deixarmos ser por eles apanhados num desvio da verdade. Além disso,
a experiência de se deixar levar um pouco por sentimentos ternos em
relação à paciente não é inteiramente sem perigo. Nosso controle sobre
nós mesmos não é tã o completo que não possamos subitamente, um
dia, ir mais além do que havíamos pretendido. Em minha opinião,
portanto, não de vemos abandonar a neutralidade para com a paciente,
que adquirimos por manter controlada a contratransferência.” (F
REUD
,
1915 / 1980)
Freud convida a refletir sobre o papel do a nalista frente os afetos dirigidos a si
pelo analisando. Como de ve proceder frente ao amor atribuído a si? Uma escolha se
estabelece – aceitar o amor sem o corresponder ou ignorar tais emoções. O autor coloca
uma terceira opção a esta dialética, sugerindo que ao profissional não caberia entrar
neste conflito, pois a tensão inevitavelmente traria más conseqüências. Ignorar o amor
provoca a humilhação e sofrimento do paciente, que se vê em um amor não
correspondido e, desta forma, doloroso. T al pólo levaria ao aba ndono do tratamento,
segundo argumentos anteriores de Freud. O outro pólo, fingir responder ao amor e
simultaneamente tentar amenizá-lo, seria considerado pouco moral. Visivelmente, o
analista mascarado se desfaz da sinceridade necessária para Freud à c ondição de
psicanalista. Importante perceber também a pontuação freudiana no sentido de mostrar a
fraqueza do profissional, sua inevitável hum anidade. Fingir indife rença seria, de certa
maneira, uma mentira para si; o amor ‘sob controle’ pareceria ser um simulacro, uma
tática frágil e suscetível à consumação física (ou em fantasia) deste amor transferencial.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
37
Desta maneira, a rec omendação de Freud aos analistas – uma vez que se trat a de
uma série de textos com e ste propósito – é a neutralidade. O analista não é imune aos
afetos dirigidos a si. Nem é um ator bom o suficiente para se afastar de seus próprios
sentimentos. É, enfim, humano e deve se lembrar como tal. O profissional deve procurar
estabelecer uma neutralidade a fim de minimizar os efeitos contratransferenciais, para
manter preservada sua capacidade de escuta e, assim, limitar uma possível mistura
entre a fala do ana lisando e seu desejo pessoal de ser amado. É um analista sensível,
vulnerável ao sofrimento e paixões de seu paciente, direcionado por uma ética precisa,
voltada a tentar ao máximo proteger o analisando da falibilidade do profissional.
O trecho citado nos abre diversas questões. A primeira é que confirma a posição
do ana lista ma rcada por um a moral, tratada no texto c omo “ético”, especificamente para
definir uma dada conduta. A posição freudiana é inquestionável neste ponto: o ana lista
deve permanecer neutro – na medida em que é possível – aos afetos que o analisando
lhe dirige. Outra marcação possível é que a restrição promovida pela contratransferência
é essencial à manutenção da neutralidade analítica, tomada por Freud como essencial à
psicanálise. A neutralidade oposta a uma contratransferência mal elaborada: surge um
par que pode chamar a atenção. Podemos hipotetizar que a relação entre estes elementos
seria uma oposição, o que nos daria uma visão clara da contratransferência como
perturbação no analista, a lgo que seria adicionado indevidamente à neutralidade.
Retomaríamos aqui a visão da contratransferência como um excesso nocivo, nã o
desejado como resultado de uma ação.
Retornando à relação da contratransferência e a moral, surgem mais elementos
no texto que confirmam esta relação. A posição do autor é escorada em princípios
morais para defender a evidência da necessidade de uma neutralidade analítica. Freud
discorre sobre as diferentes forma s de se lidar com os a fetos transferências, e entre
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
38
ceder a estes afetos e abandonar o tratamento, defende a hipótese de um controle sobre o
amor emergente.
“Há, sem dúvida, um terceiro desfecho concebível [em relação
a dois anteriores em que a analisanda se apaixona pelo médico; no
primeiro se casam, no segundo, se separam e abandonam o tratamento]
que até mesmo parece compatíve l com a continuação do trata mento. É
que eles iniciam um relacionamento amoroso ilícito e que não se
destina a durar para sempre. Mas esse caminho é impossível por ca usa
da moralidade convencional e dos padrões profissionais”. (F
REUD
,
1915 / 1980 – grifo nosso)
O autor já i nicia a reflexão sobre um relacionamento amoroso a partir da
impossibilidade, tomando como base para si a moralidade c onvencional e os padrões
profissionais. Não se faz, assim, como uma opção para o profi ssional ceder à
contrat ransferência. É ‘impossível’: o próprio termo marca a importância da baliza
moral na prática analítica, garantindo a neutralidade. Aliás, caso o profissional ousasse
este disparate, ainda assim, seria fadado ao fracasso. Ou seja, o analista freudiano não
conta com a possibilidade de ceder a este amor. Proibido pela moralidade e pela esfera
profissional, só lhe resta a conduta correta. Freud parece confirmar esta hipótese ao
reforçar a necessidade de renúncia. Afinal, o que significariam estes padrões de
moralidade?
“Ser-me-ia fácil enfati zar os padrões universalmente aceitos de
moralidade e insistir que o analista nunca deve, em quaisque r
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
39
circunstâncias aceitar ou retribuir os ternos sentimentos que lhe são
oferecidos; que, ao invés disso, deve ponderar que chegou sua vez de
apresentar à mulher que o ama as e xigências da moralidade social e a
necessidade de renúncia, conseguir fazê-las abandonar seus desejos e,
havendo dominado o lado animal de seu eu (self), prosseguir com o
trabalho da análise”. (F
REUD
, 1915 / 1980)
Aqui, aparece um elemento central – para renunciar a este amor, Freud postula
uma renúncia do analista ao seu lado animal, a fim de prosseguir com o trabalho de
análise. A moral f reudiana implic a em uma renúncia, assim como a ne utralidade
analítica. Embora fosse interessante nos conduzirmos por este caminho da relação entre
contratransferência e moral, basta estabelecer esta marca no t exto. Retornando à relação
entre a contratransferência e a neutralidade analítica – ponto de suma importância para o
a u tor – en co n tra m os a l go esp ec ífic o n o t ext o e m que st ã o.
“Nosso controle sobre nós mesmos não é tão complet o que não
possamos subitamente, um dia, ir mais além do que havíamos
pretendido. Em minha opinião, portanto, não devemos a bandonar a
neutralidade para com a paciente, que adquirimos por manter
controlada a contratransferência”. (F
REUD
, 1915 / 1980)
O nó que amarra a neutralidade analítica passa inevitavelmente pelo domínio da
contratransferência. A justificativa permanece vinculada à impossibilidade de controle
deste amor por parte do a nalista, reca indo em uma conduta moral. A neutra lidade é
definida como a possibilidade de controle c onstante dos afetos contratransferenciais.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
40
Para Fre ud, fal ar em c ontratransferê ncia esbarra inevitavelm ente na questão da
moralidade. Não surge aqui com a ênfase no e rro (Lacan) ou da c ompreensão
(Heimann); para Freud, a maré contratransferencial arrastaria o analista inexperiente à
sedução e, consequentemente, à imoralidade e rompimento dos padrõe s profissionais de
conduta. É uma regra a ser seguida – não amarás tua paciente (desde que, curiosamente,
não aceites casar com ela). É um olhar na afetividade freudiana – nos caminhos da
descoberta da psicanálise, seu autor principal se propõe a esta bele cer, a frisar a sanção
do não-envolvimento amoroso entre médic o e paciente. Em momento algum surge
sequer a possibilidade de um enlace entre pessoas do mesmo sexo, ou da
contratransferência como experiência de repulsa. Ao contrário, alude a uma cena cla ra e
específica, em que o profissional-médico rec usa o amor da paciente, amor valioso, em
nome de um princípio de tratá-la.
O a pel o à mora li dade surge re pe ti dam ent e no te xto, se nte nci an do um f ina l
prematuro de tratamento. Trata-se de um analista que pa ga por ceder à tentação do amor
com sua destituição da posição de analista. A neutralidade analítica, central para o
tratamento, é mantida pelo controle da contratransferência: repressão. Renúncia a um
caminho que, em suas palavras, seria impossível de sustentar em um tratamento.
Contratransferência, neutralidade e moral. Há uma c oerência essencial nas
formulações freudianas sobre os afetos experimenta dos pelo analista. Partamos para o
estudo de outros autore s a este respeito.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
41
P
AULA
H
EIM ANN
Nascida em 1889, a polonesa Paula Heimann exerceu sua influência na história
do movimento psicanalítico. Ingressou na Sociedade Psicanalítica de Berlin em 1928,
quando foi encaminhada para realizar sua análise didática com Theodore Reik. Muda-se
para Londres em 1933, fugindo do regime nazista, onde passa a ter bastante contato com
Melanie Klein, que se torna sua analista. No ano de 1949 é apresentado no Congresso
Internacional de Psicanálise de Zurique seu trabalho intitulado “On
Countertransference”, publicado em 1950. Este foi lançado à revelia de Melanie Klein,
e provocou c onseqüências drásticas para sua autora, afastando-a permanentemente de
sua analista (O
LIVEIR A
, 1994. P. 98).
O trabalho não é o primeiro a propor uma nova formula ção sobre a posição
freudiana em relação à contratransferência. Sandor Ferenczi já propunha uma nova
concepção do manejo da contratransferê ncia, à qual Freud recusou. Além dos trabalhos
de Ferenc zi, o pol onês Heinrich Racker escrevera um trabalho propondo o uso possível
dos afetos contratransfere nciais alguns anos ante s (R
AC KE R
, 1948 / 1982).
Embora Racker tenha apresentado seu trabalho dois anos antes da fala de Paula
Heimann no Congresso de Zurique, não há evidência de conflito entre os autore s.
Inclusive as formulações foram praticamente simultâneas, por mais que um autor não
tivesse contato direto com o tra balho do outro. Podemos afirmá-lo com base no texto de
R. Horácio Etchegoyen, bastante próximo de Racker então. Segundo Etc hegoyen,
Racker via com interesse as publicações de Heima nn. Embora as considerasse
semelhantes às suas, reconhecia a autonomia das duas posições (E
TCHE GOYE N
, 1987. P.
146).
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
42
Pa ra Heinrich Racker, a contratransferência poderia ser utilizada pelo analista
como instrumento de compreensão – de uma maneira bastante específica. O autor
descreve os processos de identificação oc orridos no ego do ana lista a ‘certas partes do
ego do paciente’, e acrescenta sua visão da forma pela qual tais afetos tornam-se
evidências para a compreensão do profissional.
“Como primeira questão - notadamente, a influência da
contratransferência sobre a compree nsão do analista - devemos lem brar
sobretudo quais processos dão base a esta compreensão. H. Deutsch
(1926) diferencia dois componentes: (a) a identificação do analista a
certas partes do ego do paciente (i.e. os impulsos e defesas) e (b) a
“atitude complementar” ou a identificação com as ima gens do paciente
(de acordo com as fantasias da transferência). Logo, se o analista reage,
por exemplo, com ressentimento oral à avareza de uma paciente, isto
não o previne de identificar-se intelectualmente com os mecanismos de
defesa e imagens objetais desta, e é capaz de compreender que ela é
avarenta pois, para si, o analista é um ladrão (no caso, sua mãe voraz).
Isso previne o analista de fazê-lo emocionalmente, pois para seus
sentimentos, é a a nalisanda que tem tais significados. Desta forma, a
contratransferência é instrumental ao trazer à sua atenção um fato
psicológico sobre o paciente, pois sua experiência de frustração e seu
insinuante ódio o tornam alerta da avareza da paciente
3
. Não obstante,
sua reação interna é neurótica; ele não é prevenido da compreensão,
mas de reagir de maneira compreensiva (reacting understandingly). O
3
Neste pont o, o a utor incl ui uma nota posterior (1953), afirmando que “é principalmente com este
aspecto (...) que Heimann lida em seu artigo ‘On Countertransference’”, de 1950.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
43
segundo será possível a si quando tiver anali sado e sobrepujado sua
situação e for capaz de identificar-se emocionalmente com o ego do
paciente.”(R
AC KE R
, 1948 /1982. P. 124)”.
Podemos identificar, na formulação de Racker, dois tipos distintos de
contratransferência. A maneira pela qual o analista as formula – e conseqüentemente
como podem se r utilizadas - é descrita por Etchegoyen de ma nei r a p re cisa :
“Preocupado pela sua fenomenologia e pelos seus dinamismos,
Racker classificou a contratransferência em vários tipos. Assim, em
primeiro lugar, distinguiu duas classes de contratransferência, segundo
a f orma d e i denti ficaçã o. Na c ontra tra nsferên ci a concordante, o
analista identifica seu ego com o e go do analisado e o mesmo em
relação às outras partes da pe rsonalidade, id e superego. Em outros
casos, o ego do analista se i dentifica com os objetos internos do
analisado, e a esse tipo de fenômeno Racker chama de
contratransferência complementar, seguindo a nomenclatura de Hel en
Deutsch (1926) para a s identificações.” (E
TCHE GOYE N
, 1987. P. 149).
Racker especifica dois modos de constituição da contratra nsferência no analista,
segundo a leitura de Et chegoyen. Ou seja, enquanto Heimann especifica um uso efetivo
para a contratransferê ncia, Racker, por sua ve z, busca identificar o meio pelo qual o
analista compreende algo sobre o inconsciente do analisando. Para este autor, o
mecanismo essencial seria o da identificação inconsciente. Isso não se dá sem
conseqüências – para Racker, a contratransferência mantém o e lemento de resistência,
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
44
como pode mos inferir pela ênfase deste no e studo da contratransferência neurótica.
Embora formule de maneira inédita o uso do conceito para compreensão, conserva a
posição freudiana da advertência frente a este. Em um novo artigo, o autor retorna a o
tema e discute a partir da leitura do texto de Pa ula Heimann, concordando com suas
proposições.
“Em outro artigo descrevi o uso de experiências
contratransferenciais para a compreensão de problemas psicológicos,
especialmente problemas transferenciais do analisando. Em meus
pontos principais concordei com Heimann (1950), e enfatizei as
segu inte s suge stõe s. (1) Re açõe s cont ratran sfere nci ais de gra nde
intensi dade, mesmo as patológicas, devem também servir de
ferramenta s. (2) A contratransferência é a expressão da identificação do
analista aos objetos internos do analisando, assim como o seu id e ego,
e pode ser utilizado como tal. (3) Reações contratransferencia is têm
características específicas (conteúdos específicos, ansieda des e
mecanismos) dos quais podemos extrair conclusões sobre o caráter
específico dos acontecimentos psicológicos no paciente”. (R
AC KE R
,
1953 /1982. P. 129)
É possível percebe r a concordância de a mbos, e Racker enfatiza o risco e propõe
o uso destes afetos, momento em que se a proxima de Paula Heimann. Embora as duas
proposições tenham sido semelhantes e praticamente simultâneas, cabe à polonesa a
repercussão transformadora sobre o c onceito na comunidade analítica. Seu t exto de
1949 inicia o trabalho de inúmeros autores em relação à contratransferência. Toda
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
45
formulação posterior sobre a intersubjetividade e o uso da empatia analítica podem ser
interpre tados a partir da influência de Heimann. Não por coi ncidência, esta teria feito
sua análise didática com Theodore Reik, analista e autor conhecido por seu trabalho
intitulado “Listening with the thrid ear”, hipotetizando o papel essencial da intuiçã o do
analista durante a condução da análise. Reik inaugura a noção de que em uma sessão
analítica haveria um "terceiro ouvido", interagindo na escuta graças à atenção
equiflutuante do analista. Por meio desse "terceiro ouvido" o ana lista receberia
mensagens em seu inconsciente enviadas pelo analisando.
"O analista ouve não apenas o que está nas palavras; ele ouve
também o que as palavras não dizem. Ouve com o ‘terceiro ouvido’,
ouvindo não só o que o pac iente fala mas também suas próprias vozes
interiores, aquilo que emerge das profundezas de seu próprio
inconsciente. É mais importante [para o analista] reconhecer o que a
fal a oc u l ta e o q ue o silê nc io r e vel a." (R
EIK
, 1948 P. 125-126)
O inconsciente funcionaria, para Reik, com o um receptor de mensagens do
inconsciente do a nalisando – posição defendida posteriormente por Heimann em seu
texto. Avançando em seu texto, é possível encontrar uma descrição do que seria um
mecanismo pela qual se daria esta compreensão:
"O que é essencial no processo psicológico que ocorre no
analista é (... ) que ele pode vibra r inconscientemente no ritmo do
impulso da outra pessoa e ainda ser capaz de entender isso como algo
fora dele mesmo e de compreendê-lo psicologicamente, compartilhar a
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
46
experiência do outro e ainda assim permanecer afastado." (R
EIK
, 1948
P. 468).
O conceito central em jogo é o inconsciente como receptor. Um ponto
interessante a ser percebido é a fina distinção feita por Reik em relação aos pensamentos
do profissional. Este atua a partir de uma distinção entre pensamentos seus, no sentido
de interpre tar conteúdos advindos de uma comunicação entre inconscientes. Nã o se trata
– embora não especificado no trec ho acima - de uma fala esporádica ou desorientada. O
processo descrito é de uma sintonia fina entre ambas as partes da sessão analítica,
‘permanecendo afastado’ e, ao mesmo tempo, próximo e compreensivo. Mesmo tendo
sido mencionado por Freud anteriormente, em 1912,
“[O analista] deve voltar seu próprio inconsciente, como um
órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente.
Deve ajustar-se ao paciente como um receptor telefônico se ajusta ao
microfone transmissor.” (F
REUD
, 1912 / 1980)
abre-se na obra de Re ik, uma via para a compreensão da posição do analista,
ampliando a e scuta. Cabe notar a suti leza da definiçã o freudiana – este não especifica
uma função receptiva do inc onsciente. Trata-se de algo que tende à metáfora, uma vez
não ter sido tratado com mais detalhe em momento posterior algum. A abertura do
analista às associações do analisando é recorrente em sua obra, e mbora o inconsciente-
receptor não receba menção ulterior. A metáfora do telefone a bre uma via para
pesquisa, a ser percorrida inicialmente por Reik e, um ano depois, reformulada por
Paula Heimann. Na própria obra freudiana, para aprofundarmos o tema, há esta idéia da
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
47
análise como uma abertura na compreensão do analista. Freud concebe o processo
analítico como algo que permite o praticante distinguir conteúdos seus aos
experimentados na sessão.
“Mas se o médico quiser estar em posição de utili zar seu
inconsciente desse modo, como instrumento da análise, deve ele
próprio preencher determina da condução psicológica em alto grau. Ele
não pode tole rar quaisquer re sistências em si própri o que oc ultem de
sua consciência o que foi percebido pelo inconsciente; de outra
maneira, introduziria na análise nova espécie de seleção e de formação
que seria muito mais prejudicial que a resultante da conce ntração da
atenção consciente. Não basta para isto que ele próprio seja uma pessoa
aproximadamente normal. Deve-se insistir, antes, que tenha passado
por uma purificação psicanalítica e ficado ciente daqueles complexos
seus que poderiam interferir na compreensão do que o paciente lhe diz.
Não pode haver dúvida sobre o efeito desqualificante de tais defeitos
no médico; toda repressão não solucionada ne le constitui o que foi
apropriadamente descrito por Stekel c omo um ‘ponto cego’ em sua
percepção analítica.” (F
RE UD
, 1912 / 1980)
Desta forma, percebemos a base freudiana do inc onsciente receptor . Embora não
tenha aprofundado esta idéia, a bria-se uma via. Paula Heimann parte desta possibilidade
a partir da noção contrat ransferencial. A autora se vale do conceito de
contratransferência para situar tal abertura inconsciente no analista, e teorizar um meio
com o qual o profissional compreenda os conteúdos não ditos do seu paciente.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
48
Em seu art igo de 1949, Paula Heimann desenvolve a tese da contratransferência
como pe rcepção do analista de elementos inconscientes do a nalisando, recuperando
neste conceito o papel da escuta inconsciente no profissional. Partindo da formulação
original de Freud sobre os afetos do analista, a autora aborda as possibilidades que
extrai da obra freudiana para chegar a um inconsciente receptor, semel hante ao descrito
na c o nhe c i d a m e tá f or a do te le f o ne .
Paula Heimann inicialmente define a contratransferência:
“Para os objetivos desse artigo, estou usando o termo
‘contratransferência’ para c obrir todos os sentimentos que o analista
exp eri me n ta em re la çã o a seu pac ie nte” . (H
EIMAN N
, 1949 /1989. P. 74)
Trata-se de uma leitura do texto freudiano, que define a contratransferência a
partir de uma posiç ão hipotética. Embora Freud não tenha especificado a natureza dos
afetos contratransferenciais senão por uma orientação de conduta – ao analista caberia
enviar seus afetos em relação ao analisando à sua análise – poderíam os extrair de seu
texto uma noção se melhante à encontrada por Heimann. A autora interpreta a obra
freudiana, e define tais sentimentos como o resultado no analista dos afetos do
analisando, sem abordar inicialmente os aspectos referentes ao comportamento do
analista frente aos mesmos.
Embora defina o conceito a part ir do que é experimentado pelo profissional,
Heimann questiona a leitura da cont ratransferência como uma transferência no analista.
Podemos perceber a proposta de Laca n discordante neste ponto. Se o psicanalista
francês aponta em seu texto de 1951 a contratransferência especificame nte como a
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
49
transferência no analista (L
ACAN
, 1951 / 1989), Heimann pede uma atenç ão adicional
ao prefixo ‘contra’:
"Pode-se argumentar que esse uso do termo nã o é corre to, e que
contratransferência significa simplesme nte a transferência por parte do
analista. No entanto, sugeriria que o pref ixo 'contra' implica em fatores
adicionais.” (H
EIMANN
, 1949 /1989. P.74)
A diferença concebida por Heimann e presente neste prefixo diz respeito à
atuação do analista – o que efetivamente faz com os afetos contratransferenciais. Esta
especificidade do texto da autora abre o papel do profissional, no sentido de se valer de
elementos até ent ão suprimidos durante a se ssão.
Podemos, no entanto, apontar os pontos de aproximação e ntre os profissionais.
O primeiro element o a ser destacado, é em relação à interpretação. Haveria algo em
comum nos textos de Freud e Heimann? Para am bos os autores, a interpretaçã o
funcionaria como uma fa la reflexiva, especular, em que os conteúdos ditos são
reencaminhados ao sujeito da enunciação. Em outros termos, a resposta buscada pelo
analisando encontra-se em sua fala, obscurecida por ênfases do cotidiano ou fórmulas
do senso comum. Freud o trabalha a partir de sua metáfora do espelho, em que propõe
ao profissional uma devolução de aspectos do analisando, ausente de contribuições de
sua vida pessoal.
“O médico deve ser opaco aos seus pacientes e, como um
espelho, não lhes mostrar nada, exceto o que lhe é mostrado.” (F
REUD
,
1912 / 1980)
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
50
Para Freud, a situação é clara. Ao analista não cabe senão mostrar o que lhe é
mostrado. Não há acréscimo por parte do profissional de elementos de sua experiência,
opiniões ou julgamentos adicionais. Suas emoções e opiniões permanecem confinadas
em seus pensamentos – a interpretação deve ser pontual e simples, respeitando as
barreira s colocada s pelo inconsciente. Poderíamos arriscar-nos a dizer que Freud
respeita a sanção do inconsciente; se há motivo para a repressã o, não caberia ao analista
antecipar o tempo de compreensão necessário ao cliente. Caso surja no profissional a
urgência em comunicar aspectos de si durante a sessão, poderia se tornar uma ameaça
ao processo, um retardo. Nas palavras do próprio aut or:
“Poder-se-ia esperar que seria inteiramente permissível e, na
verdade, útil, com vistas a superar as resistências do paciente,
conceder-lhe o médico um vislumbre de se us próprios defeitos e
conflitos mentais e, fornecendo-lhe informações íntimas sobre sua
própria vida, ca pacitá-lo a pôr-se ele próprio, paciente, em pé de
igualdade. (...) Mas esta técnica não consegue nada no sentido de
revelar o que é inconsciente ao paciente. Torna-o ainda mais incapaz de
superar suas re sistências mais profundas e, em casos mais graves,
invariavelmente fracassa, por incentivar o pacie nte a ser insaciável: ele
gostaria de inverter a situação, e acha a análise do médico mais
interessante que a sua. A solução da transferência, também — uma das
tarefas principais do tratamento —, é dificultada por uma atitude íntima
por parte do médico, de maneira que qualquer proveito que possa haver
no princípio é mais que superado ao final.” (F
RE UD
, 1912 / 1980)
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
51
Heimann concorda com a proposta freudiana do silêncio profissional quanto a
aspectos pessoais. Inc lusive, a metáfora do e spelho é retomada pela a utora em um texto
apresentado em 1960, o segundo sobre o tema da contratransferência.
“O analista, então, agindo como o espelho de seu paciente, a ge
como um ego suplementar para seu paciente. É esse o fator que, em
minha visão, fa z a repetição tornar-s e modificação.” (H
EIMANN
, 1959
/1989. P 160)
Até então, vemos inúmeros pontos de contato entre os dois textos. O analista
não fala de sua vida pessoal, pois isso afastaria o tratamento de seu propósito. Freud e
Heimann concordam com a recomendação do analista não falar de si. Assim, a
discordância repousaria especificamente na forma de inte rvenção do analista durante a
sessão. É especificamente na interpretação analítica que Heimann introduz sua novidade
em relação à utilização de afetos contratransferenciais. Se pa ra Freud a posição do
analista seria a de renunciar às ma nifestações contratransferenc iais e reenviar tais afetos
à sua análise, a autora propõe a leitura de tais afetos como perce pções inconscientes. No
texto de Freud – e Lacan, em seguida - a contratransferência significa uma obstrução ou
impedimento. Para Paula Heimann trata-se de uma adição à comunicação entre analista
e analisando:
"Minha tese é que as respostas emocionais do analista a seu
paciente dentro de uma situação analítica representam uma das
ferramentas mais importantes para seu traba lho. A contratransferência
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
52
do analista é um inst rumento de pesquisa do inconsciente do paciente.”
(H
EIMANN
, 1949 /1989. P 74)
Neste extrato poderia se condensar toda a tese revolucionária que Heimann
recupera do trabalho de Ferenczi e adiciona uma nova especificidade e precisão –
possivelmente com alguma influência das pesquisas de seu analista, Theodor Reik. O
uso das emoç ões vivenciadas em sessão coloca uma diferença radical entre a s propostas
de Heimann e Freud, assim como de uma gama de outros autores posteriores.
Para Heimann, os afetos contratransferenciais se riam um í ndice para o analista.
Se a escuta do analista seria uma compreensão consciente dos conteúdos emocionais do
paciente, haveria ainda outra modalidade de entendimento em jogo. O inconsciente do
analista compreende o inconsciente do a nalisando. O profissional, em contato com tais
emoções experimentadas durante a sessão, atingiria os com plexos inconscientes do
cliente de maneira dinâmica, descrita por Heimann como mais fácil e, sobretudo, mais
rápida que a compreensão consciente. A autora acrescenta, inc lusive, sua opinião sobre
o fato da percepção inconsciente servir para maior compreensão sobre o analisando – a
escuta analítica perde a supremacia dura nte a sessão.
“Eu sugeriria que o analista, além dessa atenção livre [freely
working attention], precisa de uma sensibilidade emocional li vre
[freely roused emotional sensibility] de modo a seguir os movimentos
emocionais e fantasias inconscientes do paciente. Nossa assunção
básica é que o inconsciente do analista compreende o do paciente. Essa
conexão num nível profundo chega à superfície na forma de
sentimentos que o analista percebe em resposta a seu paciente, em sua
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
53
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
54
primazia durante a sessão, uma vez se tornar o órgão pe rceptivo por exc elência –
inclusive, mais rápido em relação à escuta. Inaugura-se aí uma modalidade diferente de
psicanálise, em que a fala perde o primeiro plano. Diferentemente da talking cure
freudiana ou da hipótese lacaniana, baseada no significante e na letra
4
, abre-se a via par a
a psicanálise da empatia, da comunicação além das palavras. O silêncio do analista
ganha nova f orma, e suas emoções tornam-se compree nsã o. Caberia interrogar qual é o
papel da intuição, e como distinguir as emoções experimentadas. Se Lacan enfatizou o
papel do não comunicável como al go a ser tra balhado pelo analisando, revestido por
uma poesia pessoal, a via da comunicação inconsciente trilhou outro caminho. Heimann
propõe vencer a impossibilidade de comunicação através da compreensão do analista,
de uma construção de outra via de acesso inerente à relação ana lítica.
Afinal, por que Heimann prioriza a percepção inconsciente? Além dos motivos
apresenta dos pela autora em seu texto de 1959, adiciona um novo fa tor à comunicação
contratransferencial: o tempo da interpretação. Segundo esta, a interpretação baseada
nos afetos experime ntados seria mais rápida em re lação à consciente (que entende mos
como a escuta), e não utilizar tal meio poderia constituir um erro.
“Minha conclusão anterior [no artigo de 1949] foi que a
contratransferência representa um instrumento de pesquisa dos
processos inconscientes do paciente, e que as perturbações em meus
próprios sentimentos eram devido a uma defasagem tempora l (time lag)
4
Para uma noção rudimentar da diferença entre estes, poderíamos arriscar algo como o seguinte. O
significante f oi a base do ensino de Lacan até seu seminário XI – significante como a unidade
fundamental da lingua gem e da fala, baseado nos trabalho de Saussurre e Jakobson. A letra, cuja
definição clássica seria a de ‘suporte material do significante’, seria como uma parte do significante. A
letra como significante desprovido de sua intenção comunicativa, e sustenta do apenas por sua
mat er ial ida de, sua qua li da de de im age m. A letr a p oder ia ser inte rpr et ada com o o d ej eto, o re sto da
comunicação – a base real dos eleme ntos de significação. O estudo da letra é o estudo do Real, como
c once it o: h á al go a m d as men sa gen s, a m da c omu nic a çã o. O q ue res ta das pa lavr a s, da s his tór ia s,
carrega a força que anima o sintoma e a fantasia.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
55
entre compreensões conscientes e inconscientes. ” (H
EIMANN
, 1959
/1989. P 153)
Esta defasagem temporal havia sido marcada, inclusive, em seu texto anterior. A
rapidez inc onsciente se dá a partir de uma proximida de maior entre as emoções do
analista em relação ao conflito do analisando. A percepção consciente torna-se
imprecisa, lenta quando comparada à do inconsciente. Tal interpretação pode parecer
arriscada, mas no texto da autora encontramos:
“Freqüentemente as emoções geradas nele [o psicanalista] são
muito mais próximas do cerne da questão que seu ra ciocínio, ou,
colocando-o em outros termos, sua percepção inconsciente é mais
aguda e avançada que sua concepção consciente da situação.”
(H
EIMANN
, 1949 /1989. P.75)
Podemos perceber o rigor da formulação de Paula Heimann – haveria uma
especificidade ligada ao uso dos afetos experimentados durante a sessão analítica.
Contudo, poderia resta r uma dúvida qua nto à legitimidade do uso de tais afetos. Até que
ponto a situação contratransferencial seria efetivam ente um desdobrame nto da relaçã o
analítica? A autora trata desta que stão pela via da construção da relação analítica.
Heimann sublinha especificamente o caráter construído da situação cont ratransferencial.
O anali sta cuidadosamente estabelece o vínculo para possibilita r o complemento
necessário à comunicação – trata-se de um processo entre profissional e cliente, uma
experiência compartilhada e desenvolvida ao longo do processo a nalítico. Se a
contratransferência fosse uma criaçã o do a nalisando, tratar-se-ia de uma comunicação
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
56
deste, uma via comparável à palavra – desde que o profissional estivesse apto a captar
tal interação. Os afetos são uma construção em análise, poder-se-ia pensar em uma
analogia à própria linguagem. Embora ainda reste a polêmica em validar tal
equivalência, Heimann desc reve tal apropriação como um construto, uma parte da
personalida de do cliente.
"Do ponto de vista que eu estou enfatizando, a
contratransferência do analista não é apenas parte e parcela da relação
analítica, mas é uma criação do paciente, é parte da personalidade do
paciente.” (H
EIMANN
, 1949 /1989. P. 77)
Desta forma, Paula Heimann propõe o uso dos afetos contra transferenciais
durante a sessão. Comparando-se aos autores citados até então, podemos perceber que
para Freud a contratransferência é algo a se afastar da sessã o. No te xto de Lacan, o
profissional é influenciado por tais emoções, e re primi-las seria impossível ou inútil.
Podemos acrescentar mais um ponto de aproximação entre estes Lacan e Heimann até
então – ambos marcam o risco de se enfatizar um sentido a outro caso o analista não
esteja alerta aos afetos contratra nsferenciais. Cabe notar a semelhança entre esta posição
e a de Jacques Lacan a lguns anos depois (L
ACA N
, 1961 / 1992. P. 186 – 187). O analista
não é um asceta, isento de emoções ou opiniões. Ao contrári o, sua análise o
possibilitaria uma percepção maior destes afetos. O encaminhamento deles é o ponto de
maior divergência entre os autores – examinemos a posição de Heimann a este respeito:
"Nós sabemos que o analista pre cisa de uma atenção
igualmente flutuante [evenly hovering attention] para seguir as
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
57
associações livres do paciente, e que isso o capacita a ouvi-lo
simultaneamente em muitos níveis. Ele deve perc eber o sentido
manifesto e o sentido latente das palavras de seu paciente, as alusões e
implicações, as alusões a sessões a nteriores, as referências a situações
infantis por trás da descrição de relacionamentos atuais, e assim por
diante. Ouvindo dessa maneira o a nalista evita o perigo de se preoc upar
com qualquer tema específico e permanece receptivo para a
importância de mudanças nos temas e de seqüências e lacunas nas
associações do paciente.” (H
EIMANN
, 1949 /1989. P. 74 - 75)
Assim, existem pontos de contato até então na s concepções diversas sobre a
contratransferênc ia e sua utilização em sessão. O silêncio do profissional sobre sua vida
e opiniões pe ssoais, o alerta contra o privilégio de um sentido a outro. Os três autores
propõem o silêncio do analista sobre aspectos especifica mente seus. Contudo, é
delicada a linha traçada pela autora em relação à contratra nsfe rência – por um lado o
analista se vale dos afetos contratransferenciais e deve comunicá-los para o bom
andamento do tratamento. Por outro, de ve omitir aspectos seus, conforme as
recomendações freudi anas.
"Na minha visão, a exigência de Freud de que o analista deve
'reconhecer e dominar' sua contratransferência não leva à conclusão de
que a contratransferência é um fator perturbador e que o analista
deveria torna r-se insensível e afastado, mas que ele deve usar sua
resposta emocional como uma chave para o inconsc iente do paciente.
Isso irá protegê-lo de entrar como co-ator na cena que o paciente re-
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
58
atua na relação a nalítica e de explorar essa relação para suas próprias
necessidades. Ao mesmo tempo ele encontrará amplo estímulo para
questionar-se continuamente e pa ra seguir com a análise dos próprios
problemas. Isso, porém, é seu assunto pessoal, e não considero correto
o analista comunicar seus sentimentos para seu paciente. (...) isso leva
ao afastamento da análise.” (H
EIMAN N
, 1949 /1989. P. 77)
Trata-se de uma posição arriscada: o profissional não deve falar de si, como
recomenda Freud, mas deve ser ca paz de reconhecer e diferenciar – a partir de sua
experiência de análise – seus conteúdos pessoais daqueles necessários ao paciente. Em
outros termos, nos parece pouco claro em que medida o psicanalista diferencia os afetos
a serem ou não comunicados, uma vez que não parece haver nenhuma distinção quanto
à rele vância de suas opiniões. Aparentemente, todas suas impressões seriam frutos da
comunicação entre inconscientes. Como sepa rar o que deve ou nã o ser dito?
Tal dúvida pode ser parcialmente respondida no art igo publicado por Heimann
dez anos depois, em seu retorno ao tema da contratra nsferência. Este foi lido ante o 17º
Congresso Psicanalítico Internacional, em Amsterdã, 1951. Trata-se de um segundo
momento da discussão, no qual as repercussõe s do artigo de 1949 aparecem e revisam
algumas questões do trabalho original. Neste contexto podemos encontrar mais
informações sobre sua opinião a respeito da conduta do a nalista. Se no primeiro artigo,
não havia menção à distinção feita pelo profissional sobre o que deveria ou não
explicitar, neste Heimann afirma :
“Do ponto de vista do paciente, não é significativamente
decisivo de que fonte os sentimentos do analista emergem dado que o
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
59
analista não utilize defesas que comprometeriam sua percepção.”
(H
EIMANN
, 1959 /1989. P 156)
Est a f ras e pa rece pe ri gosa se t omada isoladamente, pois apontaria para uma não
preocupação em relação à fonte dos afe tos do profissional. Contudo, parece haver o
ponto importante da afirmação da necessidade do analista priorizar o tratamento do
analisando a suas defesas pessoais. Embora seja possível perguntar da fonte destes
afetos que orientariam a interpretação, para a autora, tal preocupação o parece
necessária – o inconsciente do profissional se coloca à disposição de se u paciente. Ao
contrário, sugere a suspensão das defesas. Se os afetos são benefícios ao analisando,
devem ser empregados ao máximo – não haveria contrai ndicações à contratransferência,
ou necessidade de depurar as emoções experimentadas. A proposta se apóia na análise
pessoal do praticante. A partir de sua experiência de análise, torna-se capaz de
subordinar seus sentimentos à tarefa de conduzir o tratamento. A aná lise pessoal garante
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
60
complexos não re solvidos que o impediriam de realizar a solução de estruturas
semelhantes no analisando. Já para Paula Heimann, a análise provoca uma mel hor
compreensã o, um efetivo conta to com o próprio inconsciente. Os pontos cegos, para
Freud, apenas descobertos e evitados, ganhariam a possibilidade de visão. O
inconsciente do analista é desvelado, e passa a funcionar positivamente – se antes
deveria agir com cautela e evitar tais obstáculos, a proposta de Heimann é a
possibilidade de se dissolver tais complexos.
Ainda assim, a contratransferência mantém algo de a rriscado, uma vez que
caberia ao profissional o manejo dos sentimentos – aposta em que a autora acredita ser
possível um controle. Entra em jogo a ênfase na análise pessoal do profissional. Para
Freud, era o local pa ra se conduzir os afetos contratransferenciais. Heimann marca a
importância desta na forma ção do analista como sensível a os conteúdos do analisando –
caso te nha atravessado uma análise, torna-se ca paz da dife renciação entre seus afetos e
aqueles despertados pelo analisando. Assim, re torna a imagem do analista c omo um
espelho límpido, só refletindo aquilo que o é mostrado. Na separação interna realizada
pelo a nalista haveria a gara ntia de não impingir ao anal isando significações ou emoções
excess ivas. A a utora retoma, em seu texto posterior, a metáfora do analista especular:
"O objetivo da análise pessoal do analista não é transformá-lo
num cérebro mecânic o que poderá produzir interpretações com base
num procedimento puramente intelectual, mas capacitá-lo a sustentar
os sentimentos que são provocados [stirred] nele, em oposição a
descarregá-los (como o faz o paciente), de modo a subordiná-los à
tarefa analítica na qual ele funciona como o reflexo especular do
paciente." (H
EIMANN
, 1949 /1989. P. 74)
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
61
Ao contrário da noção de que tudo deve ser dito – uma interpretação errônea da
comunicação interinconscientes entre analista e analisando – há a recomendação da
autora de moderação por parte do analista. Este não fala de si, somente comunicando
seus sentimentos em prol exclusivamente do tratamento, como citado anteriormente
(H
EIMANN
, 1949 /1989. P. 77). Ainda assim, o conteúdo dito é subordinado à reflexão
de elementos trazidos pelo analisa ndo. Tais recome ndaçõe s poderiam ser vista s como
um meio de evitar os excessos, pois podem ser perigosos à interpretação. Trata-se de
uma proposta interessante, desenvolvido pela autora ao questionar reações
desmesuradas por parte do analista, quando movido por uma intensidade incompatível:
“Entretanto, uma vez que emoções violentas de qualquer
espécie, de amor ou ódio, auxílio ou raiva, impelem em direção à ação
ao invés de contemplação e ofuscam a capacidade de uma pessoa de
observar e pesar a evidê ncia corretame nte, o resultado é que se a
resposta emocional do analista é intensa, irá derrotar seu objeto.”
(H
EIMANN
, 1949 /1989. P.75)
Desta forma, há um e quilíbrio proposto por Heimann. O psicanalista deve fala r
sobre suas emoções quando estas forem experimentadas em relação à transferênc ia.
Contudo, algumas restrições são c olocadas: não falar de aspectos pessoais nem se deixar
tomar por emoç ões ‘violentas’. O analista interpretaria sem base no amor ou ódio,
auxílio ou raiva – trata-se de uma sensibilidade fina, serena, por assim dizê-lo.
Na proposta de Paula Heima nn a interpretação psicanalítica é específica, e lança
suas bases nas experiências inconscientes do a nalista. O analisando suscita afetos
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
62
contratransferenc iais, e estes são a via mais rápida e precisa para o profissional
compreendê-lo. Por mais que ta l posição possa ser justificada, ainda resta algo a ser
questionado - o tem po da interpretação. Freud atesta a importância do tempo certo no
tratamento analítico em seu texto de 1937, “ Análise terminável e interm inável” (F
REUD
,
1937 / 1980). Com sua metáfora do salto do leão - que acontece apenas uma vez - Freud
aponta a importância do tempo correto da intervenção e o cálculo do analista em relação
ao estabelecimento do quadro t erapêutico. Poderíamos buscar no me smo texto suas
formulações em relação ao tempo da interpretação: caso seja prematura, falha e m se u
propósito e não causa efeitos. Cabe perguntar se o tempo da contratransferência seria
mais adequado ao analisa ndo, uma vez adiantado em comparação à percepção
consciente do profissional.
Será que de fato a percepção inconsciente atende me lhor ao tempo do
analisando? E qual seria o papel do analista munido deste saber? Se sua tarefa é
originalmente escutar, acolher a fala livre do cliente, qual é o papel de sua percepção no
enquadre analítico? São questões provoca tivas, suscitadas pela leitura dos dois textos de
Heimann – poderíamos arrisca r dizer que toda interpretação a nalítica é posta em cheque
pelo trabalho da a utora . Seria elevado ao li mite o saber do a nalista, transformado em um
ser sensível e hábil no manejo de tais sentimentos. Afinal, qual é o papel do analista
quando interpreta?
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
63
J
ACQUES
L
ACAN
Para se pensar na contratransferência no estudo lacaniano, é necessário transitar
por uma transformação no conceito de transferência em seu ensino. São poucos textos
em relação a outros temas, mas marcam uma posição precisa e coerente, e, não por isso,
menos incisiva em relação a outros autores de então.
Iniciemos pelo comentário do text o “Intervenção sobre a transferência”, de
1951. O contexto da discussão é uma fala e m congresso, um ano após a apresentação de
Paula Heimann sobre sua hipótese da contra transferência como c ompreensão
inconsciente. Lacan toma a palavra para falar sobre o ‘suj eito’, e comenta o ca so Dora
de Freud sob uma nova leitura. Trata-se de um texto publicado em seus ‘Escritos’, e um
dos mome ntos ma is importantes de seu trabalho no que tange à transferência e
contratransferência.
Para desenhar melhor e sta cena, tomemos al go do início de sua fala:
“Quanto à experiência psicanalítica, devemos compreender que
ela se desenrola inteira mente nessa relação de sujeito a sujeito,
expressando com isso preservar uma dime nsão irredutível a qualquer
psicologia considerada como uma objetivação de certas propriedades
do indivíduo.” (L
ACAN
, 1951 / 1998. P. 215)
A base da qual partimos é da relação sujeito a sujeito. Trata-se de uma
concepção de análise fundada na interação, na qual deve ser observada e pesada a
participação de cada elemento na construção. Mas, como esta construção se faz? Como
se constitui este sujeito na psicanálise?
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
64
“Numa psicanálise, com efeito, o sujeito propriamente dito
constitui-se por um discurso em que a simples presença do psicanalista
introduz, antes de qualquer intervenção, a dimensão do diálogo.”
(L
ACAN
, 1951 / 1998. P. 215)
Dois elementos saltam à vista: o diálogo, a sua dimensão anterior à experiência,
e o fato deste se estabelecer antes de qualquer técnica. Os lugares desta cena se definem
anteriormente às sessões concretas. O analista ocupa uma posição, e o ana lisando se
relaciona com es ta antes de qualquer intervenção. O sujeito é constituído neste espaç o
através de sua fala. Se para Heimann, o diálogo era uma adição à comunicação, aqui ela
toma o plano central. Inclusive, no texto da autora, é um me io ruim de tra nsmissão ou
comunicação; a compreensão inconsciente é mais rápida e eficaz. No trabalho de Lacan
o diálogo é consti tutivo, instaurado por este posicionamento. A presença do psicanalista
institui e sta dimensão de fala.
Desta forma, é montada uma imagem que fornece sustentação a uma psicanálise
Seu desenrolar é a partir da fala, não da comunicação inconsciente, e toda intervenção
se faz sob este pano de fundo. Trata-se se uma interação de dois sujeitos, uma relação
entre estes. Embora tenhamos destacado elementos que poderiam ser considerados
predomina ntemente ‘subjetivos’, até este momento de seu trabalho, a dimensão primeira
tratada pelo autor se ria a da dialética interna da experiência analítica. Em seus
‘Escritos’, em 1951 e 1956, uma psicanálise poderia ser pensada como esta seqüência
dialética, o olhar através do qual a transferência seria estudada.
Uma psicanálise, neste momento da obra lacaniana, é designada por uma série
de inversões dialéticas, em que o analista intervém pa ra “desfaz er nós”: a transferência e
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
65
contratransferência são essencialmente resistências ao processo, interrupções na cadeia.
A interpretação destes dois fenômenos daria ao analisando a possibilidade de prosseguir
em sua experiência analít ica, apresentando uma saída dia lética que signifique de
maneira nova uma questão anterior.
“Em síntese, a psicanálise é uma experiência dialética, e essa
noção deve prevalecer quando se formula a questão da natureza da
transferência.” (L
ACAN
, 1951 / 1998. P. 215)
O texto prossegue com um exemplo pa ra ilustrar estes conceitos. Trata-se de um
estudo do texto freudiano do ca so Dora, marco inicial para pensar a transfe rência. O
autor explica sua escolha:
“É impressionante que ninguém tenha acentuado, até o
momento, que o caso de Dora é exposto por Freu d sob a f orma de uma
série de inversões dialéticas. Não se trata ali de um artifício de
ordenação de um material cujo surgimento, como Freud formula de
maneira decisiva, fica entregue ao gosto do paciente. Trata-se de uma
escansão das estruturas em que, para o sujeito, a verdade se transmuta,
e que não tocam apenas em sua compreensão das coisas, mas em sua
própria posição como sujeito da qual seus “objetos” são função. Isto é,
o conceito da exposição é idêntico ao progresso do sujeito, isto é, à
realidade da análise.” (L
ACAN
, 1951 / 1998. P. 218)
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
66
Para Lacan, o processo analítico é marcado por este movimento dialético. Esta
dialética é orientada por algo que o autor aponta como ‘verdade’, esta verdade se
transmuta. A experiência a nalítica é esta transmutaçã o, na qual a compreensão do
analisando e suas posições de sujeito em relação aos objetos de sua existência se
transformam através da fala. As inversões dialéticas tratadas são um modelo do que
acontece em uma experiência analítica. Contudo, este movimento não acontece sem
resistência, e uma bastante específica. A esta obstrução no caminho da transformação,
seguindo as proposições de Freud, Lacan situa como transferência.
“Ora, essa é a primeira vez em que Freud f ornece o conceito do
obstáculo com o qual veio c hocar-se a análise, mediante o termo
transferência.” (L
ACAN
, 1951 / 1998. P. 217)
A transferência se a presenta como um obstáculo. Tal marca reaparece no texto
lacaniano: há outros momentos em sua obra em que o conceito ga nha esta face de
obstrução ou erro do analista. Para apontar um dos momentos nos quais Lacan a define
como fe chamento, é possível recorre r a um resumo seu sobre se u primeiro Seminário,
escrito pelo autor:
«L’ inconscient maintenu selon notre propos inaugural comme
effet de signifiant, et structuré comme un language, fut ic i repris
comme pulsation temporelle.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
67
Dans la répétition fut mise au jour la fonction de (tiché
5
) qui s’
abrite derrière son aspect d’ (automaton): le manque à la rencontre ici
s’ isole comme raport au rèel.
Le transfert comme temps de fermeture lié à la tromperie de
l’amour, s’integra it à cette pulsation.
De la pulsion nous donnâmes une théorie que, en cette mi-
année 65 où soudain l’on nous presse de livrer ce résumé, n’a pu encore
être dé marque é. » (L
ACAN
, 1965 / 2001 P. 187-188)
[O inconsciente mantido, segundo nossa proposta inicial, como efeito de
significante, e estruturado como uma linguagem, foi aqui retomado como
pulsação temporal].
[Na repetição, foi trazida à luz a função de tiché que se abriga por trás
de seu aspecto de automaton: a falta do encontro aqui se isola como relação ao
real.]
A transferência como tempo de fechamento ligado ao engano do amor,
se integrava a esta pulsação.
[Da pulsão formulamos uma teoria que, neste meio de ano de 65 em que
subitamente nos pressionam para lançar este resumo, não pôde ainda ser
demarcada.] (Tradução nossa
6
)
A transferência aparece como um fechamento, ligada a um engano. Além disto,
surge um elem ento muito importante no detalhe do texto: a transferência é descrita
como um tempo na pulsação analítica. Trata-se de um acontecimento, não de uma
5
Em grego, no ori ginal, assim como ‘autômato’, a seguir.
6
Na edição lançada em português dos ‘Outros Escritos’ de Jacques Lacan (2003), publicada pela Jorge
Zahar Editora, este trecho encontra-se nas páginas 195 e 196, com a tradução oficial.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
68
estrutura. Embora Lacan se refira a uma tra nsferência inicial, constituída previamente
pelo lugar que o analista ocupa na fantasia do anali sando, ela está marcada pelo t empo.
Para Lacan, em suas palavras, é um fechamento vinculado ao erro do amor. Nesta
proposta poderíamos entrever tanto o a mor da analisando pelo analista quanto sua
contrapartida.
Retornando ao texto “Intervenção sobre a transferência”, podemos encontrar
uma primeira descrição de Lacan sobre sua conce pção da contratransferê ncia. É
importante perceber que a idéia da pulsação temporal também aparece no texto – todo
ele é articulado em torno de ‘ciclos dialéticos’: há um tempo para a contratransferência.
“Foi por se haver coloc ado um pouco dem ais no lugar do Sr. K.
que Freud, dessa vez, não conseguiu comover o Aque ronte”.
“Em razão de sua contratransferência, Fre ud volta com
excessiva constância ao amor que o Sr. K. inspirava em Dora, e é
curioso ver como sempre interpreta no sentido de uma confissão as
respostas, embora variadíssimas, que Dora lhe opõe.” (L
ACAN
, 1951 /
1998. P. 223.)
Freud ‘volta’, ‘sempre’ – são marcas temporais. Não existe no texto uma
explicação sobre esta relação entre a contratransferência e o tempo da análise, mas a
referência aparece em alguns trechos. A contratransferência aparece ligada a um
movimento dia lético, que poderia ser pensado como o tempo da intervenção. Se Dora
apresenta respostas plurais, cheias de interpretações possíveis, seu analista as enxerga
através do mesmo prisma: a triangulação edípica. É e sta a a dvertência lacaniana em
relação à contratransferência: caso o prof issional se fec he a outras possibilidades de
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
69
sentidos, pode incorrer no erro de interpretar com base em conte údos prévios, e não da
fala de seu analisando. A contratra nsferência representaria, assim, um estreitamento ou
bloqueio da escuta. A crítica de Lacan não recai sobre um comportamento de Freud,
mas a uma ênfa se dada a um conteúdo em detrimento a outro. É por esta c aracterística
que nos é possível pensar na contratransferência como preconce ito, no sentido lite ral do
termo: na busca de um sentido ou compreensão pre viamente estabelecido por uma visão
teórica, o analista perderia de vist a os demais.
A base para tratar da contratransferência está lançada – suas premissas
estabelecidas. A transferência está presente desde o início, mas aflui em um dado
instante da dialética da sessão. O analista é atingido por este evento, e responde de uma
dada maneira, de acordo com a relação e stabelecida. O que Lacan traz como
contratransferênc ia é definido a partir desta concepção de obstáculo à análise.
“Que é pois, afinal, essa transfe rência cujo trabalho Freud diz,
em algum lugar, ser invisível por trás do progresso do tratamento, e
cujos efeitos, aliás, “escapam à demonstração”? Não nos será possível
considerá-la aqui como uma entidade inteiramente relativa à
contratransferência, definida como a soma dos preconceitos, das
paixões, dos embaraços e até mesmo da informação insuficiente do
analista num dado momento do proce sso dialético? Porventura o
próprio Freud não nos diz que Dora poderia te r transferido para ele o
personagem paterno, se ele fosse tolo o bastante para acreditar na
versão de coisas que lhe fora apresentada pelo pai?
“Em outras palavras, a transferência não é nada de real no
suj ei to s enã o o a pa reci me nt o, num m ome nt o de est agna çã o da di alé tic a
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
70
analítica, dos modos permanentes pelos quais e le constitui seus
objetos.” (L
ACAN
, 1951 / 1998. P. 224.)
Além de aprofundar a descrição da contratransferência, Lacan acrescenta que a
transferência contém algo além do que é relativo à anterior. A contratransferência, no
entanto, não seria senão um obstáculo, um impedimento, motivado por “preconceitos”,
“paixões”, “embara ços” e falta de informação do analista. Trata-se, inclusive , de uma
definição que não carece de maiores form ulações, assim como na obra do próprio
Freud. A visão da contratra nsferência como impedimento à análise não porta
am bi güi d a de na o bra de ste s au to re s.
A transferência não se resume à sua contrapartida – comentário análogo à
observação de Paula Heimann em 1950.
"Pode-se argumentar que esse uso do termo nã o é corre to, e que
contratransferência significa simplesme nte a transferência por parte do
analista. No entanto, sugeriria que o prefixo 'contra' implica em fatores
adicionais.” (H
EIMANN
, 1949 /1989. P.74)
Um ponto de encontro entre os dois pensadores, dos poucos presentes. Nenhum
dos dois autores estabelece uma simetria entre transferência e contratra nsferência; Para
Heimann, a contratransferência parece mais complexa que a transferência, por trazer em
seu cerne uma função de compreensão inconsciente. O prefixo ‘contra’ apontaria para
uma via de entendimento.
Para Lacan, ocorre o contrário. Se a transferência é central e sustenta todo o
fe nômeno da ação da fala (com o apa rece em 1961, no Se miná rio VIII), també m a ssume
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
71
o caráter de oposição e obstáculo. Já a contratransferência aparece até 1955
simplesmente como um preconceito, um engano do analista. Não parece ha ver
complexidade – sua definição parece ser estreita e apontar a um entendimento parcial,
viciado. Também seria um a compreensão do outro, mas como um erro comprometendo
a experiência analítica.
Retornando ao texto de 1951, o autor prossegue em sua precisão dos efeitos da
transferência.
“Assim, a transferência o resulta de nenhuma propriedade
misteriosa da afetividade e, mesmo quando se trai sob uma aparência
de emoção, esta só adquire sentido em função do momento dialético em
que se produz”.
“Mas, esse momento é pouco signifi cativo, já que com umente
traduz um erro do analista, nem que seja o de querer demais o bem do
paciente, cujo perigo o próprio Freud muitas vezes denunciou.”
(L
ACAN
, 1951 / 1998. P. 225)
Embora a transferência seja envolvida por uma representação afetiva, Lacan a
define a partir de sua ligação a uma estrutura dialética. Além disso, o autor situa o
fenômeno em relação a um momento e a um contexto. É algo que adquire um sentido
em função do momento no qua l se produz. Isto em si já parece bastante importante:
trata-se de uma construção vinculada à atuação do analista, assim como os fatores que o
analisando experimenta na cena analítica. A transferência não é uma construção passiva,
e não depende apenas de um desejo do analisando.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
72
A transferência se revela com uma definição ampla e precisa. Trata-se de um
fe nôm e no que oc o rre em u m t em p o de es ta gn a çã o na dia l éti ca ana l ít ic a , no qua l apa r ece
o modo perma nente utilizado pelo analisando para constituir seus objetos. Reprodução
de um passado – até então, ao contrário do que foi colocado no início do texto, os
termos parecem não priorizar a re lação entre analista e analisando.
No entanto, ocorre um erro do analista por querer demais o bem ou a cura de sua
paciente: Para Lacan, o ana lista deve tomar cuidado com o que quer durante a sessão.
Desde o envolvime nto amoroso do analista ou analisando até a ilusão do profissiona l
que poderia oferecer mais que a escuta, as emoções experi mentadas em sessão podem
produzir, para Lacan, um erro na condução do tratamento.
O elemento mais trabalhado é a dialética e, mesmo assim, o afeto e a relação
reaparecem como um engano. Transferência e contratransferência são e rros, e sua
conseqüência é a obstrução ou interrupção da escuta e, por conseguinte, da dialética
analítica. O sentido se congela, e resulta na parada do processo. Caso seja na
transferência – ou seja, para o analisando – este repete o modo pelo qual está
condicionado a constituir seus objetos (e relações) e interrompe a produção e
deslocamento de sentidos novos. Caso ocorra no analista, por e nvolvimento afeti vo
inadequado à sua posição na cena analítica, este interr ompe a experiência analítica por
apresentar uma e scuta viciada, fechando-se ao novo trazido pelo ana lisando e a
possibilidade de múltiplos sentidos em sua fala. Ambos tra zem o fechamento, o
engessamento do sentido.
Há outra menção à contratransferência em um texto dos próprios ‘Escritos’
(L
ACA N
, 1998). O autor trabalha o tema, principalmente no texto “Intervenções sobre a
transferência” (1951). Há uma breve menção em “Variantes sobre o tratamento-padrão”
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
73
(1955). Em a mbos, o tom dado sobre o conceito é o mesmo: a contratransferência é lida
como um engano, uma estagnação na dialética analítica.
Quando retoma esta discussão em seu texto “Variantes do tratamento padrão”
(1955), o conceito não é desenvolvido pelo autor, como em 1951, mas consolidado em
sua simplicidade. Não há muito espaço para negociar com este papel: Lacan, em 1955, a
define sumariamente como “A transferência no analista” – no original, la transfert
chez l’analyste” (L
ACA N
, 1955/1966 P. 339) Trata-se, enfim, de uma retomada de sua
discussão de 1951.
“Aqui, mais uma vez, procederemos assinalando que as
mesmas coisas e xigem um discurso diferente ao se rem aborda das e m
um outro contexto, e prepararemos nossas formulações lembrando que,
se prevaleceram sobre a famosa “comunicação dos inconscientes” (tida
numa fase anterior, não sem ra zão, como princípio da verdadei ra
interpretação) a conivência (Einfülung) e a estimativa (Abschätzung)
que S. Ferenczi (1928, p. 209) pretende que não provenham de outro
lugar senão do pré-consciente, é também de um efeito de retorno que se
trata na atual promoção dos efeitos inc luídos na categoria da
contratransferência. (neste ponto, Lacan acrescenta uma nota referente
à contratransferência, como sendo “a transferência no analista”).”
(L
ACAN
, 1955/ 1998, p. 341)
Lacan comenta sua opinião frente a algumas novas abordagens da psicanálise.
Neste ponto, há a referênci a a a utores como Paula Heimann pelo aspecto da
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
74
comunicação entre inconscientes. O autor se encaminha para pensar na relaçã o que o
analista deve estabelecer consigo durante sua atuação.
Convém, no entanto, dar um salto no t rabalho lacaniano. Embora a discussão se
estenda, a definição sobre sua visão da contratransferência se mantém fixa neste aspecto
de relação com uma transferência (e esta, por sua vez, em um engano). Quando retorna
ao tema da contratransferê ncia, em seu Seminário VIII, há uma evolução em rela ção à
formulação de ’50, embora se mantenham os aspectos fundamentais.
Em seu Seminário VIII, dedicado ao tema da transferência, Lacan realiza um
detalhado comentário sobre o “Banquete” de Platão, texto essencialmente voltado para
uma re flexão sobre o amor. É o pano de fundo para o autor transformar seu conceito de
transferência em relação aos trabalhos anteriores, em meio a um tempo turbulento de
rupturas em sua trajetória junto à Associação Internacional de Psicanálise (IPA). No
início do seminário, encontramos uma aproximação entre a contratransferência e o
amor. Em bora se insira em um comentário do texto de Ernest Jones sobre a biografia de
Fre u d, L a ca n me nci ona u ma ci t açã o na qual se fa z esta li gaçã o.
“Não basta dizer, nos termos deliciosamente contidos que são
os nossos, como faz o Sr. , Jones em certa página de seu primeiro
volume da biografia de Freud, que Breuer teria sido vítima do que se
chama – diz ele – uma contratransferência um pouco acentuada. É claro
que Breuer amou sua paciente.” (L
ACAN
, 1961 / 1992. P. 16)
Não poderíamos considerá-lo propria mente como uma definição, mas j á nos
aponta uma direção a seguir. A contratransferência tem algo a ver com o amor – neste
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
75
ponto, é difícil alcançar a precisão deste vínculo. Veremos que apesar de progredir na
definição e trabalho do conceito, Lac an mantém a posição freudiana fundamental da
contratransferência como fechamento. E, mais adiante chega a marcar os afetos
contratransferenciais como repulsivos. Em suma, a idéia da ligação entre
contratransferência e amor não retorna no texto
7
.
No início da discussão, Lacan se aproxima da transferência através de uma
definição desta como repetição:
“Sempre chamei a atenção de vocês que se deve partir do fato
de que a transferência, em última instância, é o automatismo da
repet içã o.” (L
ACAN
, 1961 / 1992. P. 173)
O ponto de partida é a transferência concebida como automatismo de repetição,
definida inclusive por uma terminologia muito específica, aludindo a um mecanismo
funcional neurótico. Se em 1951 a transferência é descrita por Laca n c omo obstáculo ou
estagnação dialética, neste mome nto percebe-se uma transformação: ela tornar-se-á o
sustentáculo da ação da fala, além de uma presença do passado. Em 1961, parece que
uma psicanálise se tec e entre dois pontos de tensão, como um jogo de forças. Em um
dos pólos, aparece a repetição como a volta do antigo, uma ação que reproduz modos
viciados de compreender e atuar no mundo. No outro, surge o e lemento da criação,
apontando para um novo. Este desdobramento do conceito surge a partir do momento
em que aparece a transferênc ia como ato criativo.
7
Ca be le mb ra r qu e e m di ve rsa s oca si ões po ster i ore s – no S e miná ri o XX , por exe m plo, o u e m seu ‘t ext o’
“Televisão” – Lacan explicitamente associa a transferência ao amor.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
76
“O fenômeno de transferência é ele próprio colocado em
posição de sustentáculo de ação da fala. Com efeito, ao mesmo tempo
em que se descobre a transferência, descobre-se que a fala se mantém,
como se manteve até que percebessem isso, é porque existe a
transferência.” (L
ACAN
, 1961 / 1992. P. 175)
A fala se mantém porque a transferê ncia existe. Neste ponto a oposição entre as
posições de ’51 e ’61 nos leva a ver a transferência em toda sua complexidade –
sustentáculo da fala e obstáculo à análise. Desde entã o se apresentaria uma dimensão de
ambigüidade na conceituação da transferência lacaniana. Ela é fechamento e, ao mesmo
tempo, suporte – nossa hipótese aqui seria a de que se trata de um jogo de tensão. A
experiência analítica seria vivida ent re estes dois pólos de ‘facilitação’ e obstrução
comporta dos pela dinâmica transfe rencial.
Lacan avança, e define a ‘natureza’ deste fenômeno, descrito como uma
presença na sessão.
“A presença do passado, pois, tal é a realidade da transferê ncia.
Não existe já alguma coisa que se impõe, e que nos permita uma
formulação mais completa? É uma presença um pouco mais que
presença – é uma presença em ato, e como os termos alemães o
indicam, uma reprodução”.
“O que não é evidenciado o bastante naquilo que se diz
comumente é em que essa reprodução se distingue de uma sim ples
apassivação do sujeito. Se a reprodução é uma reprodução em ato,
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
77
então existe na transferência algo de criador.” (L
ACAN
, 1961 / 1992. P.
176)
A realidade da transferência seria definida como uma presença do passado.
Como interpretar este termo preciso – ‘presença’ – repetido pelo autor? O termo
presença nos lança a algo que efetivamente surge e se ma terializa, se ‘impõe’. A
transferência se realiza (para brincar um pouco com a ambigüidade do term o) neste
retorno do passado – um retorno quase físico nos te rmos do texto. Então, na frase
seguinte, o passado se reproduz em um ato. Não falamos aqui de uma presença passiva,
mas de uma ação de retorno do passado. A transferência é repetição, mas, ao mesmo
tempo, se distingue de uma volta a um mesmo ponto. A reprodução se faz em um ato
criador. Aqui, atingimos um ponto central – o vínculo entre transferência e criação. A
relação entre analista e analisando parece se sobrepor à dialética do processo. O aspecto
fundamental passa a ser a transferência, como sustentáculo da ação da fala, algo
enraizado na relação entre sujeitos. Se até então Lacan parec ia ter como foco o
desenvolvimento lógico da experiência analítica, neste outro tempo a ênfase apareceria
sobre o vínculo.
Por sua natureza de ato, uma ação do sujeito, em uma cena: torna-se criação.
Lembra a idéia do homem sábio que nunca põe duas vezes o pé no mesmo rio – o rio, a
vez, o pé, todos se transforma m. É impossível repetir um mesmo fenômeno quando se
fala em uma dinâmica entre sujeitos. Se a repetição conduz à passividade, a
transferência conserva este a specto e o atualiza, produzindo um movimento de criação.
Este conceito do ato não apare ce com uma definição mais pontual do autor, mas em seu
texto prossegue a idéia de uma transfe rência criadora.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
78
Desta forma, o olhar de Lacan recai na relação entre analista e ana lisando.
Trata-se inclusive de uma retomada de elementos trabalhados em seu texto de 1958, ‘A
direção do tratamento e os princípios de seu poder’ (L
ACA N
, 1958 / 1998. P. 594-595),
no qual é trabalhada a idéia da relação a dois (ou dual). Ao tratar da transferência, este
autor sublinha o caráter relacional a ser estudados em uma psicanálise.
“Quanto ao manejo da transferência, minha liberdade, ao
contrário, vê-se alienada pelo desdobramento que nela sofre minha
pessoa, e ninguém ignora que é aí que se deve buscar o segredo da
análise. O que não impede que se creia estar progredindo nesta douta
afirmação: que a psicanálise deve ser estudada como uma relação a
dois”. (L
ACAN
, 1958 / 1998. P. 594)
O ponto da rel ação entre analista e analisando, ‘segredo da análise’ é explorado
por Lacan sob um olhar diferente de Paula Heimann. O autor estuda as ameaças e
advertências às quais o analista deve responder ou silenciar, sempre mantendo a
referência da continuidade da experiência analítica do paciente e sua possibilidade de
falar. Mesmo neste contexto da relação, surge no texto uma marca sobre a
inevitabilidade do conta to do analista com os afetos promovidos elo analisando.
“De fato, todo analista (...) sempre experimenta a transferê ncia,
no deslumbramento do efeito menos espe rado de uma relação a dois
que seria como as outras. Ele diz a si mesmo que, nesse aspecto, tem
que contemporizar com um fenômeno pelo qual não é responsá vel, e
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
79
sabemos com que insistência Freud enfatizou sua espontaneidade no
paciente”. (L
ACAN
, 1958 / 1998. P. 595)
Lacan ressalta esta inevitabilidade da experiência (contra) transferencial -“todo
analista” – e permite o estabelecimento de um laço importante entre as posturas
estudadas. Outro aspecto de aproximação a Freud também transparece no texto: à
transferência é atribuída mais uma vez o caráter de resistência. (L
ACAN
, 1958 / 1998. P.
598) Enfim, são elementos que retornam ao e studo lacaniano. A idéia da relação dual é
fundamental para os desenvolviment os que serão realizados em 1968, na medida em
que já derrubam a possibilidade do analista neutro, levando este autor a formul ar uma
proposta baseada em Freud, mas ciente desta limitação.
Assim, com o tema da relação dual entre analista e analisando, surge uma
transformação no estudo da contratransferência. Até 1958, seu foco pri ncipal parecia ser
o estudo do processo lógico da transferência. Neste segundo momento, os aspectos
dialéticos se sedimentam na relação afetiva, construída a cada interação entre os dois
sujeitos. O analista, que ocupava uma posição mais protegida na sessão, passa a esta r
mais intimamente implicado nos efeitos que provoca.
“Em outras palavras, parece-me impossível eliminar do
fenômeno da transferência o fato de que ela se manifesta na relação
com alguém a quem se fala. Este fato é constitutivo. Ele constitui uma
fronteira, e nos instrui, ao mesmo tempo, pa ra não engolfar o fenômeno
da transferê ncia na possibilidade geral de repetição que a própria
existência do inconsciente c onstitui.” (L
ACAN
, 1961 / 1992. P. 177)
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
80
É possível mapea r o que foi trazido até então: até então, a transferência era
apresenta da a partir de uma relação dialética. O fenômeno possui um aspecto central de
presença do passado, desta forma, contendo algo antigo. Neste ponto do texto, surge
uma fronteira marcada pelo próprio autor. Em oposição a este antigo, é introduzido o
elemento da criação, o novo. Estes dois aspectos se coagulam na idéia do ato cria tivo,
que conserva o antigo pela repetição de padrões nesta criação, e com isso o atualiza a
partir do envolvimento do a nalista no jo go.
Assim, o elemento fundamental para se falar em uma transferência em ato é
dizer de sua manifestação em relação a alguém - poderíamos avançar e pensar também
na relação com o outro. O f enômeno se faz na cena, junto àquele com quem se fala. Há
sempre um aspecto atual negociando com este retorno do passado. É um aspecto
constitutivo da transferência, na medida em que ao falar em repetição adiciona-se uma
encenação do passado no prese nte, uma reconstrução em sua manife stação em relação
ao analista.
Estas marcas nos fornecem um suporte seguro para refletir sobre a
contratransferência. Já se percebe que será necessário questionar o papel do analist a
nesta relação. Será possível manter a hipótese freudiana de isolar os sentimentos
contratransferenciais da sessão e conduzi-los à análise pessoal?
“Sobre a questão da contratransferência, existe, em primeiro
lugar, a opinião comum. É aquela de qualquer um que tenha abordado
um pouco o problema. É a prim eira idéia que se faz dela, primeira no
sentido de ser a idéia mais comum que se lhe é dada, mas também a
mais antiga abordagem da questão, pois a noção da contratransfe rência
sempre foi aprese ntada na análise. Muito cedo, de sde o c omeço da
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
81
elaboração da idéia da noção de transferência, tudo aquilo que, no
analista, representa seu inconsciente enquanto, digamos, não analisado,
foi considerado como nocivo para sua função e sua operação de
analista”.
“Na opinião que disso se faz, é na medida em que alguma c oisa
ali permaneceu à sombra que ela se torna a fonte de respostas não
controladas e, sobretudo, de respostas cegas.” (L
ACAN
, 1961 / 1992. P.
183)
Lacan começa por enunciar a primeira leitura feita sobre a contratransferência,
original do tra balho de Freud. Ela é descrita como um fechamento da escuta, motiva do
por um ponto cego do a nalista, resultado por algo não trabalhado em a nálise.
No texto surge uma delicadeza inicial no tratamento do tema: a transferê ncia
gera efeitos nocivos à operação analítica. Mais e specificamente, parte da idéia de
elementos não trabalhados da pessoa do analista retornando na sessão, originando
resposta s cegas. Até aqui, Lacan ainda não refuta a hipótese de impossi bilidade de uma
interpretação total do inconsciente. É importante marcar um ponto: em outro momento
deste Seminário, Lacan aborda especificame nte o fato de que haveria na transferência
um limite à interpre taç ão
8
(L
ACAN
, 1961 / 1992. P. 175). Cabe saber se este limite vai
ressurgir no trabalho da contratransferência, inva lidando esta possibilidade de um
analista provido desta ausência de pontos cegos.
O próximo passo do autor é justamente questionar em que medida seria possível
ao analista renunciar por completo a seus efeitos. Em outras palavras, é possível ao
8
“(...) A transferência, por mais interpretada que seja, guarda em si mesma como que uma espécie de
limite irre dutível.” (L
ACAN
, 1961 / 1992. P. 175).
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
82
profissional bloquear seus sentimentos em relação à transferê ncia? Embora seja um
fechamento ou estreiten t66ia8.2()6..3(4ch)11.7(6..3(4ccada )]TJ0co)11.7(t87. um66i)12 ]TJ6cha.len66ir66iE336TD03085 Tc0( )Tj17.2564 -3(E1 75D0.002 Tc0.00338 Tw[(1436.1(ec“O cami.4(r8(nh89( da ap9(a.35.26(o)6..3(6(a.35 )]TJ0est..3(6(ó)96 (i.4(r8(9.41(6(a912 )12.6(-129(ma.35nd9(aoo)e 89( )12.6(8(r)6(u9(j )18Do)6..3(6(t.4(r)-o permano)ç0 g10-3(E1 75D0.002 Tc0.00376 Tw[(9096.1(ecinsensívDl.4(r35 )]TJ0às)8(bl)-8.6(oseduDç )1s)6.õ).9(eot)-8(8(bl,(r)6( co)11.72t829(M)-]TJ0à )1s)6.)14.e)-1evDí.4(r35?)-14.7(as)6.)14.e)-evDentuai.4(r35)14.e)4(bl)des)14.e)es)6.)-]TJ0pD7s)6.quDeno0 g10T*0.00076 Tw[E336.1(ecoutro2 )12.8rde2 )12.8rf.4(r4t8D03(n)17t)-4(n)66.)na2 )12.8rmedid-]TJ4l)2.1( )12em )12.um o)e e2.1( )12.4(112.4(11e(bl) )12.8rpequ0D7( )1no0 12.6(out0.7(3(no)-12.1( )12f.4(r4t8D03(n)1.1( )122.4(11e(blm )12.umpD03(ne17t)-0 g10T*0.00176 Tw[0476.1(ectev1bl)sobre0 12.6(bl0.7(ble0 12.6()2.1( )10.7(blg1u)0Dm) )12.8rp pequ1bln( e) g1r)4()2.1( )1nd2.4(r ,) )12.8rp16(a)8o menos o2 )12.8rd.2(a)-2.4(r 2.2979 TD03085 Tc0.00168 Tw[(f426.1(ecestorv13(a2 )12.8rco)117(3( sua pre-8.6(o)8(r(e-8.6(o)n13(ç2.9(M12.5(t.-8.49( Se2 )12.8ro ana.2979.4527 re Tc0.00318 Tw[(f276.1(eclist..45(as)4)-1e afast..45(as)4)-des)e0 12.6(cs)4)aD07ora 3(gues 6(o)nho-13.1(,) )12.8rp- g10-.4527 rD0.002 Tc0.00356 Tw[E3126.1(ec8(r)9(e-8.612 ]TJ6cdi.4(r5(z)7(3(e-8.03(n)5bl)o)e ]TJ6ci.4(r5(8(r)9(so 8(r)9(e-8.03(10.7(3(4(n412 ]TJ6cpon)5bl) ]TJ6csi só, imputávD2l.4(r5l) ]TJ6ca algD2ur5l)11.74()2.1(3( insuD2f6..3(9(sco)(r5lênD2cia da)20-0 g10T*0.00168 Tw[6437f)-6.7(ieparação do an13(al11.74(ist..3M12.5(t enqua-8.6(o)n7( t12.5(tl?-8.6(o) A.7(6(b)TJ6csol..3Mu)TJ6ct11.74()2.D2(e-8.6(o)nte n13(ã2.D2o13(,-8.49( 12.6(6(o)(0 g10T*0.00018 Tw[(f57f)-6.7(iincí117(9(pio.7(8t.-85.8r”)6(o) (L g10.e9418 105.7(10962036 3645)6680 TwD0.071( )Tj17. CoC-8.47Con) 3(guN.2979.0 11.28 105.96 36228.72645)6680 Tw0.00098 Tw[(1)-8.6( C4(n)66.)-]TJ0196 12.6(1 /).35 .001 12.6(.))66.)P)24.7(.e)8.9.)-]TJ0185)186)0 g10-(r)382rD0.002 Tc0( )Tj17.2564 - TD03085 Tc0.00088 Tw[4748.6( CO66i)12 )12.6(‘pequ7ln( e)t0.7((i)o’,2 )12.6(o c7lontat0.7((io co)2 )12.6(a a7llr5ltD27lriD2dad7l)na7l)pre-8.3.8r)146)9(e-8.7lnD0)-137.6()2.3l) )12.8rdo-]TJ512 )12.6(outro )12.8(0 g10-3(E336TD0.002 Tc0.00376 Tw[0567f)-6.7co)(r6)nDvD7(6to)(r6)avD7(l.4(rbora 2e)e(c)-to)(r6)ot(0af)(tota o)-]TJ0psicot(a-8.6(1)nDal..35(eno)(r6)8(r)8(to)(r6)aot(: n( texto)(r6)oD7(,(r)3l)el..35(ee ‘)(to-8.6(1))14.5(to)(r6)on)5(vD7(a(c)’)5(,-8.4bl)-8.6(oé dD7(-8.6(1))1r)8(a-8.6(1)gD7(n)5(adávD7(-8.6(1)l..35(e.) )12.8rO0D)pr)5eno)(r6)ra 2e)eco)(r5lr)5eoD7(0 g10T*0.0016 Tw[E548.6( Cpo-to)9ro an) 3(gu22.4(46(eit2 )12.8rm)s)4)aD6(eitcado2 )12.8ré1r)8()o)e a)pre-8.3.5(8(0.1(t))0-137.8)aD6(ei) )12.8rdo e)-12.8rto)9rr)3.6(o (i)m117(9(ov)]TJ0e) )12.8refeco)93(em.4(5(.))66.) )12.8rA.7)8.2(ço)6á37.8)2.4(4,e)8.6.)ao2 )12.8rlong)12.8ro )12.8rdo g10T*0.00198 Tw[2818.6( CS)10.7eno2r6)nári-83(à tr12.6(st..3(3(e-8.09(s) ]TJ6cap16(a.6r)41(to66i8rcem alg1)6(u0(o)-9(a(o)8(r)3l)v1)6(e-8.09(z66i8re.68(r)3l) 12.6(c)m117l) 12.6(c)notaç66i8rão ruim,.4(7)-de66i8r a.6v1)6(e-6i8rr)41(tsão..4(7)-E-85.(t))009(t..3(3(ã-8.09(o1)6(4(9(0 g10T*0.00336.Tw[2477f)-6.7cs)2)aD05(b)13(e-80r5lr)5(o)6.-69(en612.bl)sab)13(e-80r5lr)5(o) s66i8re0(gu22.6i8res)2)r)5(o)6.4en612.bl)u)13(mo)(r6)a)-8.6(ofn612.bll.-69(eh).35n612.bl)nn612.bl)for)5(o)m)35nç612.blãs)2)o).35
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
83
se mantém como um erro, mas não decorrente de insuficiência de preparo do
profissional.
Lacan exime o analista da possibilidade ideal da não-reação. Não se trata, até
aqui, de estabelecer o papel do analista como asceta, impenetrável aos efeitos que,
inevitavelmente, provoca com sua presença. Embora o autor exemplifique através da
sedução do analisando, pode nos ser possível ampliar esta concepção a todo efeito
contratransferencial.
O autor acrescenta:
“Aceitem este estágio de meu pe rcurso. Isso não quer dizer que
alcancei o objetivo. Proponho a vocês, simplesmente, essa observação:
quanto ao re conhecimento do inconsciente, não temos como formular
que ele coloque, por si mesmo, o analista fora do alcance das paixões.”
(L
ACAN
, 1961 / 1992. P. 185)
O reconhecimento do inconsciente – e estes são seus termos - não parece se
tratar de um processo de eliminação de pontos cegos ou imunização aos afetos, mas de
uma formação de outra ordem. O profissional, mais uma vez, a parec e suje ito às paixões
e afetos. Então, qual seria o efeito da análise ne sta suscetibilidade do profissional?
“Quanto melhor o analista for ana lisado, mais será possível que
ele seja francamente amoroso, ou francamente tomado por um estado
de aversão, de repulsa, dos modos mais elementares da relação de
corpos entre si, com referência ao seu parceiro.” (L
ACA N
, 1961 / 1992.
P. 186)
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
84
Neste trecho, percebe-se a repulsa e aversão equilibrada pelo amor franco; ainda
assim, reaparece o elemento de incômodo. Para Lacan, a análise pessoal torna o
profissional mais sensível a estes ‘modos mais elementares de re laç ão entre os corpos’.
A experiência do inconsciente faz do a nalista uma presença sensível, em oposição à
figura ideal de um sujeito impermeável ao afeto causado pe la presença do outro. Ele é
parte ativa da relação, assim como o analista de Heimann.
A diferença vai ser marcada sob a utilização dest es sentimentos – a noção do
analista permeável aos afetos resultados dos efeitos transferenciais que causa é paralela
ao trabalho desta autora.
Ca be s abe r q u al a nat u re za des ta co nt ra t ra n sfe r ê nci a pa ra o a ut or :
“Aparentemente a contra transferê ncia é exatamente da mesma
natureza dessa outra fase da transferência sobre a qual pretendi, da
última vez, c entrar a questão, opondo-a à transferência concebida como
automatismo de repetição, a saber, a transferência enquant o se a diz
positiva ou negativa, e que todos entendem como os sentimentos
experimentados pelo analisado em re la ção ao ana lis ta. Poi s b em, a
contratransferência de que se trata (...) é feita de sentimentos
experimentados pelo analista na análise, e que são determinados a cada
instante por suas re lações com o analisado.” (L
ACA N
, 1961 / 1992.
P.190)
Aqui, podemos encontrar uma definição muito precisa de Lacan sobre a
contratransferência, retomando tudo que f oi dito até então em seu texto. A
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
85
contratransferên cia é ent endida como semelhante à transferência criativ a, marc ada como
sentimentos experimentados durante a sessão. Não se trata apenas de uma estrutura de
repetição, dos elementos antigos, mas també m de uma construção em ato constituída na
relaçã o a cada i ntervenção. Os elementos realçados são o tempo (‘a cada instante’) e os
afetos desta relação. A contratransferência não tem o tom dado através do ponto cego
resultante de uma insuficiência na análise didática do profissional, mas por um aspecto
inevitável da relação. A presença do analisando provocaria sentimentos no analista, e
isto seria inevitável. Cabe ao profissional lidar não a penas com sua s limi tações p essoais,
mas com o efe ito afetivo que o analisando causa com sua subjetividade.
A natureza desta contratransferência seria definida a partir de uma analogia à
transferência estabelecida como criação, sustentáculo da ação da fala. Lacan prossegue,
e marca um elemento que conduz à inevitabilidade da contratransferência.
“Mesmo que o sujeito não o saiba, apenas por suposição, direi,
objetiva da situação analítica, já é no outro que o pequeno a, o agalma,
funciona. Segue-se aquilo que se nos apresenta nessa ocasião como
contratransferência, normal ou não, não tem, realmente, qualquer razão
de ser especialmente qualificada como tal. Trata-se aí apenas de um
efeito irre dutíve l da situação de transfe rência, simplesmente, por si
mesma”.
“Pelo simples fato de haver transferência, estamos implicados
na posição de ser aquele que contém o agalma, o objeto fundamental de
que se trata na análise do sujeito, como ligado, condicionado por essa
relação de vacilação do sujeito que caracterizamos como o que
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
86
constitui a fantasia fundamental, como o que instaura o lugar onde o
sujeito pode se fixar como desejo.” (L
ACAN
, 1961 / 1992. P. 194)
O analista possui um objeto de desejo do outro – trata-se de um operador lógico,
este agalma. É representativo, aqui, de algo que causa efeitos no outro, no caso, o
analisando. Um efeito afetivo, resultado da situação de transfe rência. Contudo, aqui
surge um aspecto fundamental na postura de Lacan frente à contratransferência,
totalmente coerente com os trabalhos ante riores. Este conceito, jamais detalhado ou
tratado em um nível que excedesse um efeito decorrente da transferência no analista, é
devolvido a esta posição. A c ontratransferência é posicionada novamente como um
efeito irredutível da situação de transferência, implicação do analista ne sta. Esta
transferência insere o analista em uma posiçã o de ser c olocado como um lugar no qual o
sujeito pode se fixar como desej o. O analista contém, por um efeito transferencial, este
operador que pode dar suporte ao desejo, anterior à e xperiência de análise. A posição
inicial do analista na cena o situa como portador deste objeto de desejo que conduz à
transferênc ia e, conse quentemente, à fala.
A contratransferência, por sua vez, não apresenta qualquer característica de
compreensão, mas permanece neste lugar de fenômeno que sustenta a fala (e,
conse qüente mente, a m anutenção da dinâmica a nalítica). Em alguns trechos é
sublinhado um caráter ave rsivo, possivelmente provocado pela relação e pela fala,
sustentada pela tensão entre a transferência e a contratransferência. A cena do analista
lacaniano neste aspecto é de um profissional incomodado por este peso.
Até então, não existe a resposta lacaniana sobre como atuar frente a esta
contratransferência. Lacan prossegue:
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
87
“Este é um efeito legítimo da t ransferênc ia. Não é preciso fazer
intervir, pois, a contratransferência, como se tratasse de alguma coisa
que seria a parte própria, e bem mais ainda, a parte faltosa do analista.
Apenas, para reconhecê-la, é preciso que o analista saiba certas coisas.
É preciso que ele saiba, em particular, que o critério de sua posição
correta não é que ele compreenda ou não compreenda”.
“Não é, em absoluto, essencial que ele compreenda. Direi
mesmo que, até certo ponto, o fat o que ele não c ompreenda pode ser
preferível a uma confiança grande demais em sua compreensão. Em
outras palavras, ele deve sempre pôr em dúvida aquilo que
compreende, e dizer-se que aquilo que aquilo que procura alcançar é
justamente aquilo que, em princípio, não compreende.” (L
ACAN
, 1961 /
1992. P. 194-195)
O analista, até então ‘repelido’ pelos afetos contratransferenciais, se vê ma is
livre por não ter de intervir nesta situação. Se o anali sta de Heimann é aquele que sabe
de si e do outro, tem o understanding de seus se ntimentos e os diferenc ia daqueles
pertencentes ao paciente, o profissional desenhado por Lac an é o oposto. Ele também
experimenta o sentime nto - aliás, no texto, é algumas vezes aversivo. Por não ha ver um
meio eficaz de entendê-lo, ele duvidaria, e deveria buscar entender sua condição de
incompreensão.
Os dois analistas podem ser afetuosos, mas enquanto um compreende e
interpreta, outro de ve tomar cuidado com uma possível quebra na dinâmica da fala
9
.
9
Baseando-nos aqui na cadeia descrita: transferência, que sustenta a fala, que promove a
contratransferência. Caso o analista fixe esta posição tomando estas representações como sentimentos
dirigidos a si, arriscaria a continuidade da análise.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
88
É como se, para Lacan, a tensão do discurso em análise ficasse vinculado a este
cabo de guerra entre promover e sustentar a fala, mas não se render à sedução desta ou
aos eventuais desejos carregados por este caminho.
Resta saber o quanto isto é a rriscado, uma vez se r impossível não e xperimentar
estes efeitos.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
89
C
OME NT ÁRI OS DOS
C
ASO S
Voltemos a Borges:
“Constitui uma revelação c oteja r o Dom Quixote de Menard com o de
Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (Dom Quixote, primeira parte, nono
capítulo):
...a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações,
testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.
Redigida no século XVII, redigida pelo “engenho leigo” Cervantes, essa
enumeração é mero elogio retórico da história. Menard, em compensação,
escreve:
...a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações,
testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.
A história, mãe da verdade; a idéia é assombrosa. Menard, contemporâneo
de William James, não de fine a história como indagação da realidade, mas
como sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que aconteceu. As
cláusulas finais - exemplo e aviso do presente, advertência do futuro – são
descaradamente pragmáticas”.
(B
ORGES
, J. L., 1939 / 2001. P. 61-62)
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
90
Retornando ao texto de Borges, encontra-se um e xemplo genial da
multiplic idade de sentidos possível em leituras diversas. Além da magia literária e do
efeito cômico produzido pelo autor, o texto nos conduz a refletir sobre a interpre tação e
a análise de um texto, que pode variar segundo muitos critérios.
Escolhemos este texto c omo epígrafe desta nova parte do traba lho por
representar de maneira leve e precisa o exercício pretendido: analisar dois casos clínicos
sob três olhare s dife rentes entre si, evitando priorizar uma visão teóric a a outra.
Escolhendo praticamente a mesma escansão nos textos originais, tentaremos estabelecer
comentários coerentes com as três possibilidades teóricas discutidas até então a respeito
da contratransferência: a uma leitura inspirada no trabalho de Sigmund Freud, seguida
por uma leitura orientada pelos te xtos Paula Heimann e concluindo com uma análise
baseada no ensino de Jacques Lacan sobre o tema.
Para iniciar o trabalho, iremos aprese ntar o primeiro caso clínico a ser estudado:
trata-se de uma belíssima descrição de caso de Thomas Ogden, psicanalista e autor
californiano, com uma produção intensa e original no c ampo analítico. O texto original
foi publ icado em 2003 no International Journal of Psychoanalysys, sob o titulo.
“What´s true and whose idea was it? ” (O
GDEN
, 2003. P. 599 – 602.)
Mais uma vez, é essencial lembrar o re speito ne cessário ao estilo do autor.
Embora os comentários possam algumas vezes divergir do sentido proposto por Ogden,
trata-se de uma diferença calcada em opções teóric as e pressupostos diversos, e m nada
superiores uns aos outros. São versões diferentes de interpretações possíveis de
fenômenos inerentes a uma sessão analítica. Cada uma é legítima, e suas bases diferem,
mas não se opõe. A meta é exatamente explorar estas diferenças e estudá-las, uma em
relaç ão a outra.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
91
P
RIM EIRO
C
AS O
A
UT OR
:
T
HOMAS
O
GDEN
O Senhor V tel efonou-me solicitando uma consulta a respeito
de seu desejo de iniciar uma análise comigo. Marcamos uma hora para
nos encontrarmos e dei-lhe instruções detalhadas sobre como chegar à
sala de espera de meu consultório, localizado no térreo de minha casa.
Logo antes da hora marcada, ouvi uma pessoa (que assumi ser o senhor
V) abrindo a porta lateral de mi nha casa. Há um pequeno corredor entre
aquela porta e uma porta interior envidraçada, entrada da sala de
espera. Esperava escutar a porta da sala de espera se abrindo, mas ao
invés, ouvi a pessoa andar de volta à porta externa, seguido de um
período de quietude durando um minuto ou dois. Ele – seus passos
soavam masculinos – repetia este padrã o de andar à porta da sala de
espera a partir da porta exterior, na qual ficou pelos próximos minutos.
Achei seus movimentos perturbadores e intrusivos, mas
também intrigantes. Senhora M, a paciente que estava comigo em meu
consultório, comentou que alguém, provavelmente um novo paciente,
parecia estar caminhando pelo corredor. Imediatamente após a senhora
M deixar meu consultório - por uma porta que saía no me sm o corredor
em que o homem caminhava - ouvi passos inquietos, assim como a voz
de um homem murmurando um pedido de desculpas. Rapidamente fui
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
92
ver o que se passava, e pela primeira vez encontrei o senhor V, um
homem alto e atarracado, no início de seus quarenta anos. Disse:
“Senhor V, sou o Dr. Ogden” - diri gindo-me à porta envidraçada - “Por
favor sente-se na sala de espera.” Ele tinha um ar ingênuo (sheepish),
mas portava uma expressã o levemente estupefata enquanto eu falava.
Então, cerca de cinco minutos depois, quando chegou a hora de
sua sessão, fui à sala de espera e acompanhei-o à sala de meu
consultório. Uma vez acomodado em sua cadeira e eu em mi nha, o
senhor V começou a contar-me que havia pensado em iniciar sua
análise há algum tempo, mas uma coisa ou outra” o fazia protelar.
Começou a dizer como havia sido i ndicado a mim. Interrompi e disse
que já havia ocorrido muito durante a sessão; nos seria importante falar
sobre isso antes de podermos conversar significativamente sobre
qualquer outra coisa. Olhou-me com a me sma expressão de espanto
exibida no corredor. Prossegui dizendo ao senhor V que de todas as
maneiras possíveis com as quais poderia ter se apresentado a mim, a
forma escolhida se desenhou pelo oc orrido no corredor. Desta maneira,
parecia uma pena não levar a sério o que e stava tent ando dizer-me
sobre si naquela apresentação.
Houve uma pequena pausa após eu terminar minha fala na qual
tive uma memória passageira de um incidente de minha infância (na
forma de uma série em ocionalmente intensa de imagens estáticas). Um
amigo, R, e eu estávamos brincando em uma lagoa conge lada
imaginando sermos exploradores do Ártico – tínhamos a mbos cerca de
8 anos de ida de, então. Nós dois nos aventuramos perto demais de uma
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
93
área em que, sem sabermos, não estava congelada de maneira sólida. R
caiu através do gelo e me vi olhando de cima para meu amigo
debatendo-se na água gélida. Percebi que se me abaixasse e tentasse
puxá-lo, o gelo i ria provavelmente ce der sobre mim, e ambos
estaríamos na água, impossibilitados de sair. Corri a uma pequena ilha
no meio da l agoa para buscar um longo galho que havia visto ali.
Quando voltei a R, ele agarrou uma ponta do galho e fui capaz de içá-lo
da água.
No devaneio, nos vi (como se estivesse encarando intensamente
uma fotografia) silenciosamente em pé sobre o gelo, R entorpecido em
suas roupas frias e molhadas. Enquanto isto, senti uma c ombinação de
medo, culpa e vergonha em relação à sua queda através do gelo. A
lagoa ficava muito mais pe rto de minha casa, e senti que deveria sabe r
dos sinais de fraqueza do gelo e o protegido de sua queda. A vergonha
estava c onectada em parte com o fato de ter corrido dele (a realidade de
que estava correndo para buscar um ga lho com o qual o puxaria não
diminuiu a vergonha). Mas, pela primeira vez, ocorre u-me perce ber que
neste evento havia vergonha em ambos pelo fato dele estar encharcado,
como se houvesse urinado nas calças
10
.
Havia anos, talvez uma década, desde que pensara naquele
incidente. Enquanto recordava estes eventos na sessão com o senhor V,
senti tristeza em relação à imagem de R e eu tornando-nos tão
separados e sozinhos no medo e vergonha que imagino ter ele sentido -
10
No original, “about his bis being dripping wet as if he had wet his pants”. uma associação bastante
imediata entre dripping wet (e nc har ca d o, m uit o m ol had o) e wet his pants (urinar nas calças – ao pé da
letra, molhar as calças). Na traduçã o perde-se esta c onexão bastante importa nte em termos analíticos para
o ar gu me nt o d o a ut o o dNgn.-16.69 e o a-12.9(cT.-16.69 )
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
94
e sei que senti - após o acidente. Não havia sido uma aventura de Tom
Sawyer–Huck Finn. R (imagino) e eu experimentamos tanto nosso
medo quanto nossa vergonha separadamente: cada um sentiu-se
estúpido por ter caminhado na parte fracamente congelada daquela
lagoa e covardes por havermos sentido tanto medo. Nem uma vez
mencionamos o incidente entre nós doravante, nem jamais o relatei a
ninguém exceto minha mãe após o ocorrido. Tais pensamentos
passageiros e sentimentos ocupa ram apenas um momento, mas foram
uma presença emocional enquanto dizia a o senhor V que, a partir do
som de seu passos no corredor, suspeitei que estivesse tumultuado
enquanto se aproxima va de nosso primeiro encontro. (Mesmo enquanto
as pronunciava, tais palavras – particularme nte ‘tumult uado’ [‘t urmoil ’]
e ‘aproximava’ – pareceram-me rigidamente ‘terapê uticas’ e sem vida
para mim.).
O senhor V respondeu-me contando que em nossa conversa ao
telefone ele havia anotado as indicações que eu havia l he dado sobre
como chegar à sala de espera desde fora da casa, mas ao chegar
descobriu ter esquecido de trazer o pedaç o de papel no qual escrevera
as instruções. No corredor entre a porta externa e a porta para a sala de
espera, não estava certo se a porta envidraçada seria a sala de espera.
Lembrava vagamente minha menção sobre uma porta envidra çada, mas
havia outra porta (a saída de meu consultório). Assim, sem saber como
agir, voltou à porta e xterna. Esta tem uma abertura em sua parte
superior, dividida por tiras verticais com largos espaços entre si. O
senhor V disse que, enquanto estava no corredor espiando pa ra fora
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
95
através das “barras” da porta, a luz do dia parecia cegá-lo. Sentiu como
se estivesse em uma prisão na qual, após um grande período de tempo,
seus olhos haviam se tornado tão acostumados com o escuro que não
poderia suportar a l uz do dia. Virou-se então e foi de volta à porta de
vidro e ficou em pé defronte esta, incerto se deveria ent rar. Retornou à
porta externa e f icou em pé um pouc o mais, olhando através do que
parecia uma grande distância às pessoas do lado de fora, vive ndo de
maneiras que não poderia imaginar.
Disse ao senhor V pensar que ele não havia t ido um meio, afora
suas ações no corredor, de c onfiar-me como se sentia ao vir em meu
encontro. Sem palavras, afirmei, ele me contava quão sozinho sentia-se
na ‘terra de ninguém‘ do corredor. Sentiu-se barrado da possibilidade
de entrar para me ver e iniciar sua análise assim como de poder sair e
viver como imaginava que as pessoas de fora eram capazes. O paciente
respondeu em uma voz monótona e incisiva, ‘Sim, sinto-me como uma
visita e m t odo luga r, mesmo com minha família. Não sei c omo fazer ou
dizer aquilo que parece vir naturalmente às outras pessoas. Sou capaz
de manter isso em segredo em meu trabalho porque sou muito bom no
que faço [não havia uma nota de pretensã o em sua voz neste pont o]. As
pessoas me temem no trabalho. Penso que sej a por eu ser abrupto. Não
sei conversar’.
O paciente, na primeira parte da hora, tendia a generalizações
sobre experiências externas à sessão, enquanto eu periodicamente
dirigia sua atenção de volta ao que ocorrera e se dava durante a sessão.
Por volta da metade da hora, o senhor V pareceu se tornar intere ssado,
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
96
e menos amedrontado, em discutir o acontecimento bem no i nício da
sessão. Disse ter se sent ido surpreso, inicia lmente pela mulher e então
por mim, enquanto saíamos de meu consultório. ‘Senti-me apanhado
fazendo algo que não deveria. Não, não é i sso... Senti -me apanha do
sendo estranho, sem ter idéia do que o resto das pessoas sabe’.
Após uma breve pausa, o senhor V prosseguiu com a lgum afeto
em sua voz, ‘Aprendi a usar meu distanciamento das pessoas para
minha vantagem nos negócios porque posso ver as coisas de um ponto
de vista externo. Ser distante me permite ser cruel, pois digo e faço
coisas às pessoas não feitas por ninguém mais nos negócios. Ou eles
não pensam em fazê-lo ou não o querem... Não tenho certeza qual. Em
uma disputa, nunca sou o primeiro a amarelar’ (flinch). Disse ao
paciente em uma série de pe quenos comentários pensar que estava me
dizendo de seu medo de sua extraordinária capacidade de
distanciamento e crueldade tornarem impossível para si estar presente
em sua própri a análise. Além disto, disse que estava sugerindo uma
grande chance de e u estar assustado e repe lido por ele, a ponto de não
querer nada consigo.
Houve então outro silêncio de diversos minutos de duração, um
tempo longo em estágio tão inicial do trabalho. Mas não pareceu um
silêncio ansioso, então o deixei continuar. Durante este silêncio, minha
mente ‘retornou’ ao de vaneio a respeito do incidente de minha infância.
Desta vez expe rimentei a cena infantil de maneira diferente – ti ve uma
sensação muito maior de ver e e xperimentar as coisas de dentro de
ambos (R e eu). Esta experiência de devaneio não se tratava mais de
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
97
uma série de imagens estáticas, mas uma experiência vívida se
desdobrando. Senti muito mais do que havia sido para mim ser um
menino de 8 anos de idade naquela lagoa congelada no inverno. Era um
estado mental composto por uma combinação entre viver em uma
fantasia (da ydream) fe ita de sensações tão imediatas que não havia
espaço (ou desej o) de pensar. As coisas simplesmente aconteciam, uma
após a outra. Os e ventos na la goa agora tinham o im pacto emocional de
um balão explodindo – não apenas R havia caído através do gelo, mas
ambos éramos atingidos no rosto por uma lufada de realidade que
aniquilava o aspecto de sonho de explorar a lagoa congelada / Círculo
Ártico. Senti no devaneio que não teria outra e scolha se não tornar-me,
em um instante, alguém capaz de fazer o que deveria ser feito. R estava
na água. Eu tinha de me tornar al guém que tinha medo de não ser, mais
adulto que era então. Não me se nti minimamente heróico na
experiência constituinte deste (segundo) devaneio; senti -me um pouco
desconectado de mim, mas principalmente agudamente atento que
es ta va ba st an t e en vo l vi d o naq uil o.
Quando o senhor V quebrou o silêncio, começou a contar-me
sobre ter passado por uma terapia durante a faculdade. Não havia sido
capaz de fazer a migos e sentia muitas saudades de sua casa. O paciente
disse que havia sido um grande ‘aperto’ (stret ch) pa ra seus pa is
pagarem pela terapia. Após algum tempo, disse ao senhor V pensar que,
ao perceber no corredor ter esquecido suas anotações, sentiu-se
embaraçado como uma criança e, para ele, comportar-se ou ao menos
se sentir como uma criança seria algo bastante vergonhoso. O paciente
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
98
não disse nada em resposta a meu comentário, mas a tensão em se u
corpo visivelmente diminuiu. Sentamos calmamente por um tempo.
(Me parecia que o senhor V estava preocupado pelo fato de que estar
em análise seria um aperto para si – de diversas maneiras diferentes.)
Ele disse então, “Lá fora, sentia-me tão perdido”. Havia suavida de em
sua voz enquanto falava tais palavras, uma qualidade de voz que não
havia ouvido dele, uma suavida de que se mostraria uma raridade ao
longo dos próximos muitos anos de sua análise. (Eu ha via notado que a
sensação do paciente de que havia um ‘lá fora’ era também uma
sensação de que começava a ha ver um ‘aqui dentro’ – dentro do espaço
analítico, dentro da re lação comigo – no qual ele não se sentia tão
perdido).
(In: O
GDEN
, 2003. P. 599 – 602. Tradução nossa)
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
99
C
OMENTÁRIOS SOBRE O
P
RIMEI RO
C
AS O
O primeiro passo de nosso comentário será, então, uma leitura orientada pelo
material deixa do por Freud (F
RE UD
, 1910 / 1980, F
REUD
, 1915 / 1980) sobre sua
concepção de contratransferência. Trata-se de uma tentativa – arriscada, sem dúvida –
de construir um comentário apoia do nas formulações freudianas sobre o tema. Mesmo
com pouco material sobre o tema, parece possível realizar alguns apontamentos no caso
discutido. Um exemplo é apontar a limitaçã o dos sentidos possíveis na fala do paciente,
assim como o fat o do material do devaneio contratransferencial ser, conforme a
formulação de Freud, algo nunca tratado em análise pessoal. O ponto específico no qual
iniciaremos o comentário é o momento em que o analista inicia o primeiro contato com
seu paciente, o Sr. V: um ‘homem alto e atarracado, no início de seus quarenta anos’.
Trata-se de uma pri meira sessão, na qual o analisando busca Ogden pa ra iniciar seu
tratamento.
Já no início do texto percebe-se que parecia haver expectativas e percepções por
parte do analista desde antes do início da sessão em si. Toda ne utralidade analítica
compromete-se a partir do ponto em que o Sr. V atrapalha a sessão anterior e começa a
ser visto pelo analista como al guém invasivo. No próprio texto, o autor percebe a intriga
presente nesta percepção, embora não traga este aspecto ao analisando, optando por
buscar ao longo da sessão uma explicação sua para os barulhos e incômodos que
provocou.
Achei seus movimentos perturbadores e intrusivos, mas
também intrigantes. Senhora M, a paciente que estava comigo em meu
consultório, comentou que alguém, provavelmente um novo paciente,
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
100
parecia estar caminhando pelo corredor. Imediatamente após a se nhora
M deixar meu consultório - por uma porta que saía no mesmo corredor
em que o home m caminhava - ouvi passos inquietos, assim como a voz
de um homem murmurando um pe dido de desculpas.
Desde o início da sessão, o profissional irá encaminhar o analisando a discutir
sobre o episódio do corredor, inde pendente dos c aminhos que o paciente escolha tomar.
Este inicia sua fala trazendo hesitação e dúvida, mas o profissional o chama a fala r
sobre sua postura no corredor de espera.
Uma vez acomodado em sua cadeira e e u em minha, o senhor V
começou a contar-me que havia pensado em iniciar sua análise há
algum tempo, mas “uma coisa ou outra” o fazia protelar. Começou a
dizer como havia sido indicado a mim. Interrompi e disse que já havia
ocorrido muito durante a sessão; nos seria importante falar sobre isso
antes de podermos conversar significativamente sobre qualquer outra
coisa. Olhou-me c om a mesma expre ssão de espanto e xibida no
corredor. Prossegui dizendo ao senhor V que de toda s as maneiras
possíveis com as quais poderia ter se apresentado a mim, a forma
escolhida se desenhou pelo ocorrido no corredor.
O analis ta faz uma inte rpretaçã o ‘correti va’. O paciente parece percebe r a
necessidade interna de se justificar, explicar o que o levou ali. O profissional, no
entanto, o interrompe. Até a qui, nenhum traço da atenção eqüiflutuante – o analista
deliberadamente prioriza um sentido a outro, interrompe a a ssociação livre e convida a
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
101
retoma r algo deixado de lado. Há uma ordem de importância no episódio do corredor
que suplanta os demais temas. O Sr. V. recua, e se cala. O analista prossegue, com sua
própria interpretação sobre a verdade oculta na escolha do paciente em apresentar-se
daquele modo.
O silêncio do paciente prossegue, com sua associação interrompida no momento
em que diria os passos que o levara m a buscar o ana lista. O pedido de análise ainda não
é feito nem o c ontrato, e o silêncio se estende. Neste hiato, o autor mergulha em uma
série de imagens que define c omo uma memória passageira, um daydream, um sonho
diurno no qua l uma memória i nfantil nunca trabalhada em análise emerge. À medida
que sonha, a autoanálise deste devaneio pelo profissional em sessão fornece rá uma
c h a ve p el a q ua l i rá i nte rvi r e d a r s i gni fic a d os à f ala do Sr. V.
Houve uma pequena pausa a pós eu terminar minha fa la na qual
tive uma mem ória passageira de um incidente de minha i nfância (na
forma de uma série emocionalmente intensa de imagens estáticas). Um
amigo, R, e eu e stávam os brincando em uma lagoa congelada
imaginando sermos exploradores do Ártico – tínhamos ambos cerca de
8 anos de idade, então. Nós dois nos aventuramos perto de mais de uma
área em que, sem sabermos, não estava congelada de maneira sólida. R
caiu através do gelo e me vi olha ndo de cima para meu amigo
debatendo-se na água gélida. Percebi que se me abaixasse e tentasse
puxá-lo, o gelo iria provavelmente ceder sobre mim, e ambos
estaríamos na água, impossibilitados de sair. Corri a uma pequena ilha
no meio da lagoa para buscar um longo galho que havia visto ali.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
102
Quando voltei a R, ele agarrou uma ponta do galho e fui capaz de içá-lo
da água.
Durante uma pequena pausa na sessão, uma memória pa ssageira emerge
relacionada a um incidente da infância do analista, sob a forma de imagens estáticas. O
amigo de infância brincava com o autor de explorar uma lagoa. O excesso de aventura
conduz ambos a uma área insegura. O amigo cai no gelo, e o autor o vê se debatendo –
se tentar puxá-lo, cairá também. Sa i correndo a uma pequena ilha, busca um galho, e iça
o amigo da água.
Até aqui, a estrutura se assemelha bastante a um sonho. Há os dois personagens,
a lagoa explorada, prenhe de sentidos, a ameaça, a fuga e, ao final, o resgate heróico.
Todos estes elementos são relatados e percebidos pe lo analista, que, posteriorme nte,
trabalha estes pontos sem efetivamente interpretá-los.
No devaneio, nos vi (como se estivesse encarando intensamente
uma fotografia) silenciosa mente em pé sobre o gelo, R entorpecido em
suas roupas frias e molhadas. Enquanto isto, senti uma combinação de
medo, culpa e vergonha em relação à sua queda através do gelo. A
lagoa ficava muito mais pe rto de minha casa, e senti que de veria saber
dos sinais de fraqueza do gelo e o protegido de sua queda. A vergonha
estava c onectada em parte com o fato de ter corrido dele (a realidade de
que estava correndo para busca r um galho com o qual o puxaria não
diminuiu a vergonha). Mas, pela primeira vez, ocorreu-me perceber que
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
103
neste evento havia vergonha em ambos pelo fato dele estar encharcado,
como se houvesse urinado nas calças
11
.
Todo o sonho se faz ver como uma fotografia, sugerindo alguma exterioridade
ou estranhamento ao episódio. Ambos olham-se silenciosamente – assim como o Sr. V e
o analista dura nte a sessão – e o autor percebe-se culpado, com me do e envergonhado.
Convém sublinhar este aspecto da vergonha e do medo: ambos reaparecerão em
interpretaç ões nas quais o analista as projeta para traduzir a fala do analisando. Quando
surgem estes afetos, o autor se põe a interpretá-los. A culpa é fruto do fato que por
morar mais perto da lagoa deveria saber de sua fragilidade e de seus sina is – o autor
deve saber, ou algo ruim acontece. Primeiramente surge a vergonha de correr do amigo
no momento em que se afogava. Em seguida, é transferida ao amigo, encharcado, que
parecia como se tive sse urinado nas calças. O autor corre do amigo, envergonha-se de
uma suposta covardia, e desenha um amigo covarde, que urina nas calças. Toda uma
estrutura de defesa está montada, apoiada em elementos funda mentalmente
contratransferenciais.
É importante acrescentar aqui a nota a um elemento sine qua non da
contratransferência freudiana que se confirma no texto. Este episódio que emerge como
um devaneio era algo não tratado pelo analista, e jamais mencionado a ninguém exceto
sua mãe. Seria um exemplo de ponto cego no analista?
Nem uma vez mencionamos o incidente entre nós dora vante,
nem jamais o relatei a ninguém exceto minha mãe após o ocorrido.
11
No original, “about his bis being dripping wet as if he had wet his pants”. uma associação bastante
imediata entre dripping wet (e nc har ca d o, m uit o m ol had o) e wet his pants (urinar nas calças – ao pé da
letra, molhar as calças). Na traduçã o perde-se esta c onexão bastante importa nte em termos analíticos para
o ar gu me nt o d o a ut or . ( N. do T. )
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
104
Analista e analisando se encontram em uma situação de entrelace – as emoções
do senhor V at ingem seu analista e o encaminham de volta a uma memória infant il que
não houvera sido mencionada a ninguém anteriormente, à exce ção de sua mãe (é
importa nte frisar tal a specto, pois, para Freud, os elementos contratransferenciais
emergem justamente em pontos não analisados do profissional.
No texto já surge a menção ao fato que as interpretações são intensamente
influenciadas pela experiência do devaneio / sonho experimentados pelo analista. Trata-
se de início de um referencial diferente do freudiano, que dificulta a aproximação entre
as leituras. É um exemplo claro do uso contratransferencial que Freud escreve contra –
se naquele momento fosse possível a o ana lista ouvir uma multiplicidade de associações
na fala do Sr. V, ele optou por escutar uma única linha associativa, marcada por seus
sent ime ntos re lem b rados.
Tais pensamentos passageiros e sentimentos ocuparam apenas
um momento, mas foram uma presença emocional enquanto dizia ao
senhor V que, a pa rtir do som de seu passos no corredor, suspeitei que
estivesse tumultuado enquanto se aproximava de nosso primeiro
encontro. (Mesmo enquanto as pronunciava, tais palavras –
particularmente ‘tumultua do’ [‘turmoil’] e ‘aproximava’ – pare ceram-
me rigidamente ‘terapêuticas’ e sem vida para mim.).
A contratransferência e seu uso poderiam ser entrevistos nesta expre ssão de
‘presença emocional’ empregada no texto. Curiosamente, o próprio a utor critica sua
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
105
interpretação seguinte, qualificando as palavras empregadas como ri gidamente
terapêuticas e sem vida.
Ainda assim, a sessão prossegue com um retorno ao Sr. V a suas justificativas
so b re o tu m u lt o na sa la de es per a .
O senhor V respondeu-me contando que em nossa conversa ao
telefone ele havia anotado as indicações que eu havia lhe dado sobre
como chegar à sala de espera desde fora da casa, mas ao chegar
descobriu ter esquecido de trazer o pedaço de papel no qual escrevera
as instruções. No corredor entre a porta externa e a porta pa ra a sala de
espera, não estava certo se a porta envidraçada seria a sala de espera.
Lembrava vagamente minha menção sobre uma porta envidraçada, mas
havia outra porta (a saída de me u consultório). Assim, sem saber como
agir, voltou à porta exte rna. Esta tem uma abertura em sua parte
superior, dividida por tiras verticais com largos espaços entre si. O
senhor V disse que, enquanto estava no corredor espiando para fora
através das “barras” da porta, a luz do dia par ecia cegá-lo. Sentiu c omo
se estivesse em uma prisão na qual, após um grande perí odo de tempo,
seus olhos haviam se tornado tão acostumados com o escuro que não
poderia suportar a luz do dia. Virou-se então e foi de volta à porta de
vidro e ficou em pé defronte esta, incerto se deveria entrar. Retornou à
porta externa e ficou em pé um pouco mais, olhando através do que
parecia uma gra nde distância às pessoas do lado de fora, vivendo de
maneiras que não poderia imaginar.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
106
O analisando tece uma série de justificativas que falam de sua dúvida e
hesitação, mostrando algum sinal de resistência inconsciente ao contato com o analista
(com um ato falho ao esquecer o pa pel no qual anotou o endere ço, por exemplo).
Ingressa, então, em um relato que se aproxima da fantasia, com pensamentos de
incômodo f rente à luz externa - da rua - em relaçã o à escuridão suposta do corredor no
consultório. Projeta-se em uma reflexão sobre a vida das pessoas ‘de fora’, sobre seu
não saber sobre eles e a forma como vivem. Mais uma vez, o anal ista o conduz a falar
sobre sua chegada, atribuindo a estas hesitações e dúvidas o sentido de uma maneira de
apresentação.
Disse ao senhor V pe nsa r que ele nã o havia tido um meio, afora
suas ações no corredor, de confiar-me como se sentia ao vir em meu
encontro. Sem palavra s, afirmei, ele me contava quão sozinho sentia-se
na ‘terra de ninguém‘ do corredor. Sentiu-se barrado da possibi lidade
de entrar para me ver e iniciar sua análise assim como de poder sair e
viver como imaginava que as pessoas de fora eram capazes. O paciente
respondeu em uma voz monótona e incisiva, ‘Sim, sinto-me c omo uma
visita em todo lugar, mesmo com mi nha família. Não sei como fazer ou
dizer aquilo que parece vir naturalmente às outras pessoas. Sou capaz
de manter isso em segredo em meu trabalho porque sou muito bom no
que faço [não havia uma nota de pretensão em sua voz neste ponto]. As
pessoas me temem no trabalho. Penso que seja por eu ser abrupto. Não
sei conversar’.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
107
Neste ponto, a priorização de um sentido a outro se faz ver com bastante
precisão. O analisando faz uma longa de scrição sobre suas percepções e fantasias
durante o tempo em que ficou no corredor da sala de espera. O analista, então, não
investiga este conteúdo ou o vincula a alguma outra associação. Ao contrário,
interrompe a associação livre com uma interpretação baseada em suas percepções
dur a n t e o de van e i o.
Todo aquele conteúdo seria trazido como um meio para dizer c omo se sentia. O
autor adiciona em seguida um sentido adicional às palavras, trazendo à tona um
elemento de solidão. Parece haver uma sugestão em jogo – enquanto o a nalisando traz
elementos vagos, sem conexão com uma memória ou ancorado em algum episódio
pessoal, o profissional preenche as lacunas com elementos seus, manifestos pelo sonho
que e xperimenta durante a sessão. Seus desejos inconscientes não tratados, condensados
no devaneio, são o fio condutor de intervenções que parecem desviar do rumo que o
paciente tenta imprimir à sessão.
O anali sta interpreta todo o comportamento do corredor como a única forma de
apresentação possível de analisando. E a tribui aos gestos um sentido direto – ‘se m
palavras’ o Sr. V transmitiria significados. A palavra é um veículo descartado na sessão
– ele conta algo sem palavras. Aliás, é neste campo do ‘sem palavras’ que o autor
finalmente atribui ao paciente a solidão. T rata-se inteiramente de uma base de condução
da sessão na qual a a ssociação livre cede lugar a outras técnicas.
A resposta do analisando conduz a seu ambiente familiar e profissional. O
analisando diz ser bastante c ompetente no que faz – o que, aliás, c onvence o analista,
que o reforça em seu texto. No entanto, ser bom no que faz não o exime de se sentir
fracassado. Lembra-nos o binômio freudia no da felicidade a ser buscada: a capacidade
de tra balhar e amar. O Sr. V. se coloca como alguém que dese nvolveu a capacidade de
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
108
trabalhar apesar de seus sintomas de afastamento emocional, mas percebe seu impacto
na vida f amiliar. Não há exploração por parte do autor da i déia de ‘sentir-se visita ’, que
parece oferecer uma abertura a esta fala.
Outro ponto que poderia ser aborda do, mas que será apenas apontado, é a
presença de uma atuação na transferência neste momento da sessão. Ao mesmo tempo
em que o Sr. V diz de sua incapacidade em se expressar e sua qualidade de rudeza no
discurso, isto reaparece na própria sessão, apoiado na contratransfe rência. O analista
não intervém no sentido de apontar esta dureza na fala ou a repetição implicada neste
sentido de falar sobre sua chegada no consultório, mas o interpreta e dá um sentido a
pa rt ir de se us s ent i men t os pe s soa i s.
Sem a intervenção do analista, o Sr. V. continua e m seu relato sobre as
‘vantagens’ de seu distanciamento, ainda sem se colocar em questão ou associar algo à
sua história.
Após uma breve pausa, o senhor V prosseguiu com algum afeto
em sua voz, ‘Aprendi a usar meu distanciamento das pessoas pa ra
minha vantagem nos negócios porque posso ver as c oisas de um ponto
de vista externo. Ser distante me permite ser cruel, pois digo e faço
coisas às pessoas não feitas por ninguém mais nos negócios. Ou eles
não pensam em fazê-lo ou não o querem... Não tenho certeza qual. Em
uma disputa, nunca sou o primei ro a amarelar’ (flinch). Disse ao
paciente em uma série de pequenos comentários pensar que estava me
dizendo de seu medo de sua extraordinária capacidade de
distanciamento e crueldade tornarem impossível para si estar presente
em sua própria análise. Além disto, disse que estava sugerindo um a
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
109
grande chance de eu estar assustado e repelido por ele, a ponto de não
querer nada consigo.
O analisando faz um relato sobre as vantagens e os meios pelos quais se
beneficia de sua distância afetiva às pessoas ao redor. Surge uma dim ensão que poderia
ser lida como narc ísica em jogo, na qual o analista não intervém. O a nalisando, por sua
vez, pode ver as coisas de um ponto de vista externo, ser cruel e fazer o que quer
enquanto os outros não são capazes. Então, o analista fala da forma com a qual
interpreta este conteúdo – através de uma série de pequenos comentários. Todos estes
comentários estariam sendo dirigidos a si, no sentido de traduzirem um medo e
impossibilidade de fazer uma análise. E se coloca na mesma cena que o analisando,
enunciando um medo do Sr. V de não ser desejado como paciente pelo autor. Há uma
dimensão discreta, mas presente, de sedução contratransferencial na sessão: para o autor
do texto, o medo do Sr. V seria de não ser desejado pelo analista. – o desejo escorrega
para a cena analítica através de uma resistência
Esta interpretação promove um longo silêncio, no qual o analista – após lançar
mão da interpretação contratransferencial – experimenta outro devane io, reformulando o
primeiro.
Houve então outro silêncio de diversos minutos de duração, um
tempo longo em está gio tão inicial do trabalho. Mas não pareceu um
silêncio ansioso, então o deixei cont inuar. Durant e este silêncio, mi nha
mente ‘retornou’ ao devaneio a respeito do incidente de minha infância.
Desta vez experimentei a cena infantil de maneira diferente – ti ve uma
sensação muito maior de ver e experimentar as coisas de dentro de
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
110
ambos (R e eu). Esta experiência de devaneio não se tratava mais de
uma série de imagens estáticas, mas uma experiência vívida se
desdobrando. Senti muito mais do que havia sido para mi m ser um
menino de 8 anos de idade naquela la goa congelada no inverno. Era um
estado menta l composto por uma combinação entre viver em uma
fantasia (daydream) feita de sensações tão imedia tas que não havia
espaço (ou desejo) de pensar. As coisas simplesmente aconteciam, uma
após a outra. Os eventos na lagoa agora tinham o impacto emocional de
um balão explodindo – não apenas R havia caído através do gelo, mas
ambos éramos atingidos no rosto por uma l ufada de realidade que
aniquilava o aspecto de sonho de explorar a lagoa congelada / Círculo
Ártico. Senti no devaneio que não teria outra escolha senão t ornar-me,
em um instante, alguém capaz de fazer o que deveria ser feito. R estava
na água. Eu tinha de me tornar alguém que tinha medo de não ser, mais
adulto que era então. Não me senti mi nimamente heróico na
experiência constituinte deste (se gundo) devaneio; senti-me um pouco
desconectado de mim, mas principalmente, agudamente ate nto que
es ta va ba st an t e en vo l vi d o naq uil o.
O autor começa o relato atentando para algo de diferente no silêncio, percebido
como longo demais para aquele momento do tratamento. Continua dizendo não ter
achado aquele silêncio ansioso – ou seja, podemos imaginar que o analista não estava
ansioso. Durante o silêncio que ‘deixou continuar’, e aí uma dimensão de controle se faz
notar, ‘sua mente’ retorna ao devaneio. O motivo da distinção e atribuição à sua mente
da volta ao episódio não se encontra detalhado. E neste segundo momento, a cena é
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
111
montada e experimentada de maneira difere nte: desta vez, as experiências são
percebidas em um estado nomeado como ‘de dentro’ de si e do amigo. É importante
marcarmos este aspecto, uma vez que irá retornar durante a sessão. A fantasia retorna de
maneira vívida, sem a qualidade estática da primeira vez. O autor diz sentir o que havia
sido para si ser um menino na oca sião. Descreve este estado a pa rtir de uma combinação
na qual não haveria espaço ou desejo para pensar. É um momento da sessão em que o
desejo de pe nsar e até esta necessidade cede a a lgo diferente, permeando o silêncio após
a interpretação. Na cena descrita, não haveria a im plicação do sujeito nos
acontecimentos, assim como há uma atribuição da responsabilidade a uma ‘parte’ de si,
apontada no uso do te rmo mente (‘minha mente retornou’), em lugar de se posiciona r
por inteiro.
Todo o jogo inicial da exploração da lagoa e o conte xto são colocados em uma
menor im portância. O centro da lembrança é o momento posterior à que da, no qual o
autor do texto se vê olhando para o amigo em perigo – há dois sujeitos neste ponto, um
que vê a cena, e outro que assiste o a migo cair. No primeiro devaneio / sonho, há a
menção à covardia do gesto de correr, e a vergonha gerada pela culpa. Neste novo
devaneio, toda a racionalidade retorna e encobre a angústia do momento sob a forma de
uma não escolha, na qual o menino se torna capaz de fazer o que deveria ser feito. A
limitação e as dificuldades, como a covardia, o medo, desaparecem da cena, e surge o
adulto capaz. Há um exemplo clássico de negação na frase seguinte: ‘não me senti
heróico’. O heroísmo do menino-adulto é negado pelo autor, e se substitui a hesitação
por um envolvimento com a situação oposto a uma falta de conexão consigo. Ele se
desconecta de si (e aqui, mais uma vez há dois sujeitos), livra-se de seu medo, sua
insegurança, sua vergonha – enfim, se livra das emoções naturais de um menino em
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
112
uma situação de extrema emergência e perigo e torna-se um a dulto atento e envolvido,
embora desconectado.
A seqüência da sessão conduz a um ponto vago. Após a interpretação que gera o
silêncio e o segundo devanei o do analista, o Sr. V conta sobre uma terapia fei ta durante
sua juventude.
Quando o senhor V quebrou o silêncio, começou a contar-m e
sobre ter passado por uma te rapia dura nte a faculdade. Não havia sido
capaz de fazer amigos e sentia muitas saudades de sua casa. O paciente
disse que havia sido um grande ‘aperto’ (s tretch) pa ra seus pais
pagarem pela terapia. Após algum tempo, disse ao senhor V pensar
que, ao perc eber no corredor ter esquecido suas anotações, sentiu-se
embaraçado como uma criança e, pa ra ele, comportar-se ou ao menos
se sentir c omo uma criança seria algo bastante vergonhoso.
É possível identificar no texto elementos que apontam mais um a vez para uma
situação contratransferencial. Em frases como “senti-me um pouco desconectado de
mim”, percebe-se um analista em uma situação semelhante ao paciente, que se diz
distanciado. Ao mesmo tempo, o analista parece atribuir a seu paciente algo referente à
sua própria sensação na lagoa: “Após algum tempo, disse ao senhor V pe nsar que, ao
perceber no corredor ter esquecido suas anot
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
113
multiplicidade de aspectos diferentes. Tal paciente poderia ser ouvido de outro modo, e
abordar seu distanciamento a partir de uma análise da maneira pela qual, através de sua
história pessoal, teria constituído seus laços. Em momento algum o Sr. V. rela ta algo
vinculado à vergonha – ao contrário, seus silêncios poderiam conduzir a pensar sobre
algum estranhamento frente às interpretações oferecidas. Dentro do silêncio do
analisando, o analista encontraria em si complexos não tratados que o conduzem à
sensação de vergonha.
Retornando ao estreitamento das possibilidade s de sentido, a escolha de uma
maneira em luga r da outra seria pouco recomendável, para Freud, pois escapa à
neutralidade necessária ao analista para ‘recolher’ a diferença possível entre si e o
paciente. A escuta é atravessada pela experiência não analisada de Ogden referente à
sua sensação de impotência frente ao acidente de infância. Um contra argumento
possível é o da inevitabilidade deste atravessamento. Contudo, nos parece condizente
com a escrita freudiana pensar que ao analista caberia minimizar e tentar escapar desta
in fl uê nc ia, na bu s ca de um se nt i do ma r ca do pe la sub je ti vi da de d o p a cie n te.
O analista se vê invadido por imagens de sua infância, imagens que produzem
efeitos afetivos como angústia e impotência frente à situação. Assim, a interpretação
não visaria elucidar a fala do analisando, e sim aliviar a tensão interna do profissional.
Funcionaria de maneira análoga a uma sessão analítica do profissional, em que sua fala
tem a função de significar uma emoção recalcada referente à sua infânc ia. A busca pela
verdade analítica e a procura do desvelamento da motivação inconsciente associada a
uma lem brança perdi da seriam solapadas pela antecipação do ana lista em at ribuir àquilo
um sentido que, em verdade, seria seu.
Mais uma vez, após ter sua fala sobre a terapia anterior t olhida pelo retorno à
comparação com uma criança envergonhada, o analisando se cala. Então, há a
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
114
percepção de um relaxamento físic o por parte do a utor, em si e no Sr. V. O analista
esboça uma interpretação com base no comentário anterior do paciente, mas ao que o
texto indica não chega a fazê-la.
O paciente não disse nada em resposta a meu comentário, mas a
tensão em seu corpo visivelmente diminuiu. Sentamos calmamente por
um tempo. (Me pa recia que o senhor V e stava preocupa do pelo fato de
que estar em análise seria um aperto para si – de diversas maneiras
diferentes.) Ele di sse então, “Lá fora, sent ia-me tão perdido”. Havia
suavidade em sua voz enquanto falava tais palavras, uma qualidade de
voz que não havia ouvido dele, uma suavidade que se mostraria uma
raridade ao longo dos próximos muitos anos de sua análise. (Eu havia
notado que a sensação do paciente de que havia um ‘lá fora’ era
também uma sensaç ão de que começava a haver um ‘aqui dentro’ –
dentro do espaço analítico, dentro da relação comigo – no qual ele não
se s e nt i a t ã o pe rdi do ).
O Sr. V di z algo sobre sentir-se perdido, c om algo percebido c omo suavidade
pelo autor. E, enfim, a identificação se faz completa: sentir-se desconectado de si,
perdido (na exploração da lagoa / Ártico). O autor acolhe isso como uma conclusão
confirma ndo sua percepção da sessão, e conclui o relato.
Trata-se de uma leitura muito part icular, assentada sob refe renciais diferentes
dos freudianos. Apesar disso, a riqueza do relato permite perceber elementos bastante
coerentes com a produção freudiana sobre a contratransferência. Surge a insistência do
analista em um sentido específico – no caso, a identificação do paciente a uma criança
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
115
envergonhada – assim como o fato de ser um episódio não analisado do profissional,
ambas sugestões de um envolvimento contratransfe rencial nos padrões de Freud que,
segundo seus escritos, poderia ser prej udicial ao tratamento ou ocultar novas
interpre tações possíveis.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
116
Após uma tomarmos c omo base uma proposta freudiana, podemos trocar a lente
do prisma e buscar uma outra leitura da sessão – lembrando sempre não se tratar de uma
visão mais correta ou apropriada, mas uma outra perspectiva, fruto da escolha do
a n a lis t a e de s eus p re ss upo s to s téc n i co s.
Thomas Ogden, lido sob uma visão orientada pelas propostas de Heimann,
utilizaria sua técnica e seus afetos para a condução da sessão clínica, com base na
interpretação destes. O profissional dirige a sessão a partir de seus afetos. De acordo
com as propostas de Paula Heimann, as percepções do analista se prestam a esta
sintonia fina, na qual o desenvolvimento da análise pode ser realiza do através da
interpretação atenta de proce ssos internos. A dimensão principal a ser focalizada seria a
percepção inconsciente do psicanalista, tornada consciente como devaneio ou como
antecipação à compreensão do conflito inconsciente do senhor V. Isto se confirmaria
pelo desenvolvimento do caso sugerido pelo autor, assim como por sua própria
percepção de processos internos durante a sessão.
Para iniciarmos a leitura deste texto de outra maneira, é possível de stacar logo
no início do texto um conjunto de elementos que permeiam o discurso do autor.
Efetuando-se uma leitura perpassada por um referencial como o de Heimann, perceb e-se
que a se ssão se inicia antes mesmo do início formal do atendimento. Antes de ingressar
na sessão propriamente dita, o analisando experimenta algo semelhante a ansiedade em
relação ao analista e este, por sua vez, responde a estes afetos dirigidos a si.
Achei seus movimentos perturbadores e intrusivos, mas
também intrigantes. Senhora M, a paciente que estava comigo em meu
consultório, comentou que alguém, provavelmente um novo paciente,
parecia estar caminhando pelo corredor. Imediatamente após a senhora
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
117
M deixar meu consultório - por uma porta que saía no mesmo corredor
em que o home m caminhava - ouvi passos inquietos, assim como a voz
de um homem murmurando um pe dido de desculpas.
O analista, mesmo antes de qualquer contato visua l ou conversa em pessoa,
experimenta pe rturbação e int rusão. Nã o seria possível traduzi-lo ou inter pretá-lo, mas é
visível que alguma comunicação emocional se estabelece nestes gestos. Até aqui, tudo
acontece apenas nos ouvidos do analista – o analisando ainda não o dirige a palavra e,
ainda assim, já existe uma compreensão ou comunicação emergente. Há a sensação de
inquietude - que retornará posteri ormente na sessão – e a sensação de intrusão e intriga,
todos os elementos que são adiantados pela percepção do analista, e irão adquirir
sentido ao longo do relato.
A sessão se inic ia com um relato de trivialidades, ao qua l o analista incide e
interrompe, convidando-o a refleti r sobre o que já haveria acontecido até então. Esta
percepção parte do analista, que identifica elementos que deveriam ser abordados na
sessão.
Uma vez acomodado em sua cadeira e e u em minha, o senhor V
começou a contar-me que havia pensado em iniciar sua análise há
algum tempo, mas “uma coisa ou outra” o fazia protelar. Começou a
dizer como havia sido indicado a mim. Interrompi e disse que já havia
ocorrido muito durante a sessão; nos seria importante falar sobre isso
antes de podermos conversar significativamente sobre qualquer outra
coisa. Olhou-me c om a mesma expre ssão de espanto e xibida no
corredor. Prossegui dizendo ao senhor V que de toda s as maneiras
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
118
possíveis com as quais poderia ter se apresentado a mim, a forma
pder ias7.5( )-1067es s aprs7.5tar cmo noque( )10.7Heim drs7.5screr
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
119
caiu através do gelo e me vi olha ndo de cima para meu amigo
debatendo-se na água gélida. Percebi que se me abaixasse e tentasse
puxá-lo, o gelo iria provavelmente ceder sobre mim, e ambos
estaríamos na água, impossibilitados de sair. Corri a uma pequena ilha
no meio da lagoa para buscar um longo galho que havia visto ali.
Quando voltei a R, ele agarrou uma ponta do galho e fui capaz de içá-lo
da água.
No devaneio, nos vi (como se estivesse encarando intensamente
uma fotografia) silenciosa mente em pé sobre o gelo, R entorpecido em
suas roupas frias e molhadas. Enquanto isto, senti uma combinação de
medo, culpa e vergonha em relação à sua queda através do gelo. A
lagoa ficava muito mais pe rto de minha casa, e senti que de veria saber
dos sinais de fraqueza do gelo e o protegido de sua queda. A vergonha
estava c onectada em parte com o fato de ter corrido dele (a realidade de
que estava correndo para busca r um galho com o qual o puxaria não
diminuiu a vergonha). Mas, pela primeira vez, ocorreu-me perceber que
neste evento havia vergonha em ambos pelo fato dele estar encharcado,
como se houvesse urinado nas calças
12
.
De iníc io, a memória é descri ta como uma ‘série e mocionalmente intensa de
imagens estáticas’. Ou seja, não se trata de uma experiência de compreensão dedutiva,
mas de uma série de emoções percebidas que se articulam como imagens. Inicia-se no
texto o re lato desta memória, na qual o analista faz um percurso emocional e, atra vés
12
No original, “about his bis being dripping wet as if he had wet his pants”. uma associação bastante
imediata entre dripping wet (e nc har ca d o, m uit o m ol had o) e wet his pants (urinar nas calças – ao pé da
letra, molhar as calças). Na traduçã o perde-se esta c onexão bastante importa nte em termos analíticos para
o ar gu me nt o d o a ut or . ( N. do T. )
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
120
deste caminho, colhe elementos para pensar nos afetos experimentados
inconscientemente pelo Sr. V. Sentimentos de angústia, expressos inicialmente como
hesitação e ‘tumulto’ encontram sua expressão através das sensações no analista,
provocadas pelos sons de passos no corredor. A tradução das imagens, neste exe mplo,
ao menos, é atravessada por memórias que ganham sentido na relação entre analista e
analisando.
O analista é atravessado por um pensamento bastante semelhante à associação
livre, deixando seu inc onsciente livre e acompanhando, a um só tempo, suas percepções
internas e as do analisando. O ponto de diferenciação entre as abordagens parece
irrelevante, uma vez que ambos os movimentos inconscientes aparentam estar
intimame nte relacionados entre si, promovendo o efeito da comunicação. A vergonha
sentida / lembrada surge em resposta a re spostas ve rbais ou não da pa rte do paciente, e
encaminham o analista à compreensão destas. Ao mesmo tempo, um movimento de
autoanálise é empreendido incessantemente, acompanhando o passo da sessão.
No devaneio, o autor e mais uma pessoa – assim como na situação da sessão –
brincavam em uma lagoa conge lada. Trata-se de uma cena de insegurança, instabilidade
e frio, todas as sensações que são de possível atribuição a e sta imagem. El e e seu c olega
ultrapassam um limite de segurança e se percebem em uma situação na qual olhava seu
amigo debatendo-se na água gélida. Alguns segundos depois, é capaz de salvar o amigo
da água. Cabe, ainda, sublinhar o peso do olhar nesta lembrança. - a questão da imagem
recorre. O de vaneio é descrito como quem olha intensame nte uma fotografia, da mesma
intensidade das emoções descritas. Retoma-se o silêncio, elemento presente naquele
momento da sessão. Deste silêncio, emerge o sentimento de vergonha de si, aliado a
culpa por nã o saber como agir corretam ente à situação da lagoa, além da necessidade de
fugir durante o momento de maior tensão. Surge ainda uma associação entre a urina e o
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
121
fato de esta rem molhados, mas o analista não o retoma no texto ou sua interpretaçã o
posterior.
A cena imaginada, representante da dinâmica inconsciente mostra duas pessoas
envergonhadas. Ao mesmo tempo, um silêncio constrangedor se a bate sobre a sessão.
Dentro deste silêncio, o inc onsciente do analista teria interpretado vergonha de si, frente
o olhar do outro e seu próprio. Devemos notar o fato deste sentimento, percebido pela
primeira vez em relaç ão à cena infantil, se porta como um a construção emergindo em
conseqüência da dinâmica transferencial. Interpre tando pela ótica de Heimann,
poderíam os dizer de uma c ompree nsão que se precipita na sessão para tomar o lugar das
palavras ausentes. O analista retorna à cena do lago, e percebe, pela primeira vez, uma
vergonha até então encoberta. Inclusive, este sentime nto poderia ser lido como
conseqüência dos afetos sentidos pelo Sr. V.
É perceptível a ligação, até aqui, do devaneio do analista e os elementos
identificados no comportame nto do Sr. V: a surpresa do acidente, o silêncio, os passos
inseguros, o olhar. São elementos que não necessariame nte a presentam um sentido em
si, mas podem atuar na compreensão de algo congelado neste silêncio e olhar
experimentados tanto no devaneio como na sessão. O parentesco entre ambos pode não
ser direto, mas aponta em uma direção. No si ncio do analisando, o autor capta
vergonha e insegurança, algum sentido de ameaça, e outros aspectos a inda não
mencionados na fala, e passa a se orientar por eles para conduzir a sessão.
Tais pensamentos passageiros e sentimentos ocuparam apenas
um momento, mas foram uma presença emocional enquanto dizia ao
senhor V que, a pa rtir do som de seu passos no corredor, suspeitei que
estivesse tumultuado enquanto se aproximava de nosso primeiro
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
122
encontro. (Mesmo enquanto as pronunciava, tais palavras –
particularmente ‘tumultua do’ [‘turmoil’] e ‘aproximava’ – pare ceram-
me rigidamente ‘terapêuticas’ e sem vida para mim.).
O analista interpre ta a part ir das emoções experimentadas durante o devaneio.
Uma le itura inspirada em Heimann poderia identificar aqui não só a comunicação entre
inconscientes, mas a reação do analista a afetos [de insegurança, medo, etc] dirigidos a
si. Embora o próprio autor critique algo de sua interpretação, no mome nto de el aborar o
te xto, eme rge a lgo dest e si lê nc i o e xtra í d o de sua p erc e pç ão da s em o çõ e s do de van e i o.
O senhor V respondeu-me contando que em nossa conversa ao
telefone ele havia anotado as indicações que eu havia lhe dado sobre
como chegar à sala de espera desde fora da casa, mas ao chegar
descobriu ter esquecido de trazer o pedaço de papel no qual escrevera
as instruções. No corredor entre a porta externa e a porta pa ra a sala de
espera, não estava certo se a porta envidraçada seria a sala de espera.
Lembrava vagamente minha menção sobre uma porta envidraçada, mas
havia outra porta (a saída de me u consultório). Assim, sem saber como
agir, voltou à porta exte rna. Esta tem uma abertura em sua parte
superior, dividida por tiras verticais com largos espaç os entre si. O
senhor V disse que, enquanto estava no corredor espiando para fora
através das “barras” da porta, a luz do dia par ecia cegá-lo. Sentiu c omo
se estivesse em uma prisão na qual, após um grande perí odo de tempo,
seus olhos haviam se tornado tão acostumados com o e scuro que não
poderia suportar a luz do dia. Virou-se então e foi de volta à porta de
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
123
vidro e ficou em pé defronte esta, incerto se deveria entrar. Retornou à
porta externa e ficou em pé um pouco mais, olhando através do que
parecia uma gra nde distância às pessoas do lado de fora, vivendo de
maneiras que não poderia imaginar.
O analisando responde imediatamente contando um episódio pessoal de
insegurança. Sem saber como agir, caminhava de uma direção à outra, e, neste
movimento, percebia o mundo externo distante, incompreensível. A inte rpretação do
analista faz emergir um discurso de incerteza, dúvida e distanciamento. Surgem na
sessão elementos expe rimentados pelo analista que, até então, não haviam sido
abordados pelo analisando. A ruptura do silêncio pela interpretação prec ipita elementos
antecipados no devaneio, e algum vínculo já parece estar em processo de
estabelecimento.
Disse ao senhor V pe nsa r que ele nã o havia tido um meio, afora
suas ações no corredor, de confiar-me como se sentia ao vir em meu
encontro. Sem palavra s, afirmei, ele me contava quão sozinho sentia-se
na ‘terra de ninguém‘ do corredor. Sentiu-se barrado da possibi lidade
de entrar para me ver e iniciar sua análise assim como de poder sair e
viver como imaginava que as pessoas de fora eram capa ze s. O paciente
respondeu em uma voz monótona e incisiva, ‘Sim, sinto-me c omo uma
visita em todo lugar, mesmo com mi nha família. Não sei como fazer ou
dizer aquilo que parece vir naturalmente às outras pessoas. Sou capaz
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
124
pessoas me temem no trabalho. Penso que seja por eu ser abrupto. Não
sei conversar’.
O analista, mais uma vez, indica basear sua intervenção em sentimentos
experimentados no devaneio. Então, antecipa ao analisando uma sensação de solidão
que este não abordara. O paciente parece ocupar, neste momento, o papel do amigo que
cai na água, incapaz de sair do lugar sem alguma ajuda. Assim, c om o apoio da
interpretação ‘antecipatória’, o Sr. V avança e fala tanto de sua sensação de não
pertencimento como de sua dificulda de em comunicar-se adequadamente.
A sessão caminha no sentido de a bordar as dificuldades pessoais do Sr. V em
relaç ã o a o u t ras pe ssoa s.
Após uma breve pausa, o senhor V prosseguiu com algum afeto
em sua voz, ‘Aprendi a usar meu distanciamento das pessoas pa ra
minha vantagem nos negócios porque posso ver as coisas de um ponto
de vista externo. Ser distante me permite ser cruel, pois digo e faço
coisas às pessoas não feitas por ninguém mais nos negócios. Ou eles
não pensam em fazê-lo ou não o querem... Não tenho certeza qual. Em
uma disputa, nunca sou o primei ro a amarelar’ (flinch). Disse ao
paciente em uma série de pequenos comentários pensar que estava me
dizendo de seu medo de sua extraordinária capacidade de
distanciamento e crueldade tornarem impossível para si estar presente
em sua própria análise. Além disto, disse que estava sugerindo um a
grande chance de eu estar assustado e repelido por ele, a ponto de não
querer nada consigo.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
125
O vínculo se projeta ao primeiro plano da sessão, e o analista aponta na fala do
paciente sua solicitação de confirmação de que seria cuidado. Se o Sr. V insiste em sua
capacidade de distanciamento e frieza, o autor o conduz a percebe r sua inse gurança e
fragilidade, transformando sua suposta hesitação em um pedido de ajuda. A cena ainda
está montada – o analista resgata o amigo/pac iente do conge lamento, na imagem da
impossibilidade de ser resga tado desta situação de estática.
Após esta seqüência de intervenções, outro silêncio se instala, e o analista
retorna ao devaneio. Desta vez, há transformações na cena, possivelmente promovidas
por alterações na relação durante a sessão.
Houve então outro silêncio de diversos minutos de duração, um
tempo longo em está gio tão inicial do trabalho. Mas não pareceu um
silêncio ansioso, então o deixei cont inuar. Durant e este silêncio, mi nha
mente ‘retornou’ ao devaneio a respeito do incidente de minha infâ ncia.
Desta vez experimentei a cena infantil de maneira diferente – ti ve uma
sensação muito maior de ver e experimentar as coisas de dentro de
ambos (R e eu). Esta experiência de devaneio não se tratava mais de
uma série de imagens estáticas, mas uma experiência vívida se
desdobrando. Senti muito mais do que havia sido para mi m ser um
menino de 8 anos de idade naquela la goa congelada no inverno. Era um
estado menta l composto por uma combinação entre viver em uma
fantasia (daydream) feita de sensações tão imedia tas que não havia
espaço (ou desejo) de pensar. As coisas simplesmente aconteciam, uma
após a outra. Os eventos na lagoa agora tinham o impacto emocional de
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
126
um balão explodindo – não apenas R havia caído através do ge lo, mas
ambos éramos atingidos no rosto por uma l ufada de realidade que
aniquilava o aspecto de sonho de explorar a lagoa congelada / Círculo
Ártico. Senti no devaneio que não teria outra escolha senão t ornar-me,
em um instante, alguém capaz de fazer o que deveria ser feito. R estava
na água. Eu tinha de me tornar alguém que tinha medo de não ser, mais
adulto que era então. Não me senti mi nimamente heróico na
experiência constituinte deste (se gundo) devaneio; senti-me um pouco
desconectado de mim, mas principalmente, agudamente ate nto que
es ta va ba st an t e en vo l vi d o naq uil o.
Parece que o ponto de partida para a introspecção do analista é o silêncio do Sr.
V. Neste segundo silêncio, posterior à interpretação, o analista retorna à cena infa ntil –
ou melhor, a cena infantil retorna ao analista. É curioso que o analista, em seu te xto, faz
um julgamento após o qual permite que o silêncio prossiga por não percebê-lo como
ansioso. Neste re torno, experimenta as memórias ‘de dentro’ – na pr imeira vez,
encontrava-se distanciado, assim como o paciente, vendo o evento como uma fotografia.
Após a interpretação, a cena ganha vida, e o pensamento cede às sensações. Não havia
espaço ou desejo de pensar durante a cena. Cabe perceber o e stabelecimento deste ‘de
dentro’ do analista. Ao final da sessão, isto se estabelecerá no discurso do analisando,
exemplificando este efeito de a ntecipação inconsciente.
Retornado ao de vaneio, a fantasia se descostura após a queda do amigo, e f rente
ao perigo, o analista perde a capacidade de escolher. Nesta situação, vê-se obrigado a
fa zer o que deveria se r feit o, a tornar-se a dulto, é desc onectado de si e envolvido nos
acontecimentos do mom ento. Este trecho a ponta para o vínculo íntimo entre as
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
127
sensações do autor e de seu analisando, a um ponto no qual o primeiro passa a
experimentar, através de uma memória, aspectos relatados pelo paciente. Ambos
desconectados de si, obrigados a se envolverem com algo externo.
Quando o senhor V quebrou o silêncio, começou a contar-m e
sobre ter passado por uma te rapia dura nte a faculdade. Não havia sido
capaz de fazer amigos e sentia muitas saudades de sua casa. O paciente
disse que havia sido um grande ‘aperto’ (s tretch) pa ra seus pais
pagarem pela terapia. Após algum tempo, disse ao senhor V pensar
que, ao perc eber no corredor ter esquecido suas anotações, sentiu-se
embaraçado como uma criança e, pa ra ele, comportar-se ou ao menos
se sentir c omo uma criança seria algo bastante vergonhoso.
A sessão prossegue, mas o analista carrega a sensação – não a ima gem – de
elementos infantis de vergonha. Frente a um relato de seu analisando sobre aspectos
variados, o analista antecipa uma interpretação relacionando a vergonha expe rimentada
na infâ ncia a um sentimento de embaraço. Esta sensação traria o Sr. V ao mesmo lugar
de vergonha, e do ‘sentir-se criança’.
O analista traz elementos de “embaraço como uma criança” e de vergonha –
precisamente o que rela ta ter sentido no episódio da lagoa. É a posição defendida por
Heimann: o profissional atua a partir destes sentimentos que são resultado dos afetos
transferenciais inconscientes do a nalisando. Desta forma, toda a lembrança da lagoa
seria, enfim, uma maneira inconsciente da parte do analista para compreender os
elementos ainda não ditos trazidos pelo analisa ndo. Poderíamos arriscar-nos a dizer que
o comportamento ansioso e esquivo do Senhor V despertou algo em Ogden,
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
128
manifestando-se como uma lembrança, um sonho. Este devaneio foi, assim, interpreta do
prontame nte pel o ana lista durante o tem po d a se ssã o.
Claramente, o analista intervém a partir de um afeto experimentado durante a
sessão e, mais uma vez, abandona o relato de trivialidade trazido na afirmação sobre a
terapia anterior ou seu pagamento, e corta de volta para o episódio do corredor. Um
resultado surge a partir da intervenção, e produz imediatamente um efeito não verbal,
manifesto no corpo do senhor V, que relaxa.
O paciente não disse nada em resposta a meu comentário, mas a
tensão em seu corpo visivelmente diminuiu. Sentamos calmamente por
um tempo. (Me pa recia que o senhor V e stava preocupa do pelo fato de
que estar em análise seria um aperto para si – de diversas maneiras
diferentes.) Ele di sse então, “Lá fora, sent ia-me tão perdido”. Havia
suavidade em sua voz enquanto falava tais palavras, uma qualidade de
voz que não havia ouvido dele, uma suavidade que se mostraria uma
raridade ao longo dos próximos muitos anos de sua análise. (Eu havia
notado que a sensação do paciente de que havia um ‘lá fora’ era
também uma sensaç ão de que começava a haver um ‘aqui dentro’ –
dentro do espaço analítico, dentro da relação comigo – no qual ele não
se s e nt i a t ã o pe rdi do ).
Embora o Sr. V não responda, a intervenção promove um efeito também não
verbal, com a diminuição da tensão em seu corpo. O analista, então, retoma uma
reflexão sobre os comentários anteriores à sua interpre tação, mas não o exterioriza. Em
seguida, o analisando finalmente é capa z de falar sobre sua angústia no corredor, sua
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
129
sensação de estar perdido. Uma suavidade se instala em sua voz, acompanhando o
relaxamento do corpo, que parece preciosa ao analista – ele menciona a raridade deste
tom na seqüência da análise. A conclusão desta sessão é a do estabelecimento de um
espaço de análise, um encontro, e a construção de uma relação terapêutica.
Com o estabelecimento deste espaço do ‘dentro’ e da dissolução da tensão no Sr.
V, o autor encerra seu texto. Assim como em seu segundo devaneio, o analisando
encontra na sessão o sentimento de estar de ntro de algo – ao menos na interpretação do
analista. A desconexão frente o outro, experimentada por ambos, se desfaz frente à
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
130
Partimos, então, a uma leitura do texto inspirada pelas considerações de Jacques
Lacan. O ponto de partida será o mesmo que a leitura anterior: o analista encontra-se
sentado em sua cadeira, atendendo à Senhora M. Eis que, em meio à sua sessão, começa
a ouvir passos no corredor, e percebe um incômodo. Vê-se intrigado por estes passos, e
o barulho incomoda a sessão a tal ponto que a analisanda comenta sobre o acontecido.
Aqui, aparece um aspecto essencial da discussão que seguirá: o analista sugere, em seu
texto, que os passos do corredor o perturbara m, e atrapalharam a sessão em curso.
Achei seus movimentos perturbadores e intrusivos, mas
também intrigantes. Senhora M, a paciente que estava comigo em meu
consultório, comentou que alguém, provavelmente um novo paciente,
parecia estar caminhando pelo corredor. Imediatamente após a senhora
M deixar meu consultório - por uma porta que saía no mesmo corredor
em que o home m caminhava - ouvi passos inquietos, assim como a voz
de um homem murmurando um pe dido de desculpas.
Percebe-se nas pala vras do autor / analista que, desde antes do início da sessão,
já havia algo de perturbador no Sr. V. Em outras palavras, antes de inicia r a sessão
parecia haver o iníc io do estabelecimento de um sentido prioritário sobreposto aos
demais. Qualquer coisa que seguisse viria estampada por esta marca de um incôm odo
no analista, talvez uma irritação frente a um possível incômodo provocado pelo paciente
novo. Até a qui, todo o se ntido seria dado por parte do analista, que interpreta como
inquietos os passos que, em ve rdade, o inquietavam.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
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Uma vez ac omodado em sua cadeira e eu em minha, o senhor V
começou a contar-me que havia pensado em iniciar sua análise há
algum tempo, mas “uma coisa ou outra” o fazia protelar. Começou a
dizer como havia sido indicado a mim. Interrompi e disse que já havia
ocorrido muito durante a sessão; nos seria importante falar sobre isso
antes de podermos conversar significativamente sobre qualquer outra
coisa. Olhou-me c om a mesma expre ssão de espanto e xibida no
corredor. Prossegui dizendo ao senhor V que de toda s as maneiras
possíveis com as quais poderia ter se apresentado a mim, a forma
escolhida se desenhou pelo ocorrido no corredor.
Ao invés de deixar o analisando falar livremente, o analista o conduz a falar
sobre movimentos que chamaram sua atenção, para associar sobre algo que considera
importante. O analista interpreta os passos no corredor como uma apresentação , e insiste
em seguir por esta via – trata-se de uma escolha que afunila a fala, conduzindo-a a um
local relativo a um incômodo próprio. Se parecia haver um sentido anterior restringindo
a escuta do analista, neste ponto ela recai no analisando. Ao invés de se r deixado livre
para apresentar-se com suas hesitações ou a partir destas, o analista o conduz a falar
sobre uma inquietude, referente ao barulho provocado durante a sessão anterior. Ogden
adota uma perspectiva teóric a que parece diversa à associação livre, na medida em que
leva o analisando constantemente a retomar elementos que parecem importantes para si.
O analista prossegue, e traz um senti do à cena. Seus passos teriam sido uma
forma de apresentação de si; ne ste momento, o Sr. V se cala, apontando para algo que
poderia ser interpretado prec isamente como o efeito de interrupção dialética tratado por
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
132
Lacan em seus textos. Na incapacidade de escapar daquele sentido estabelecido, a
associação se interrompe e segue uma estagnação no discurso do analisando.
Cabe marcar que o analista, já neste primeiro contato, define uma ‘importância’
em re lação a outras possíveis. É importante falar sobre o i ncômodo que causou no
episódio do corredor, enquanto não importa falar sobre os caminhos que traçou até
chegar à sessão ou suas dificuldades em buscar uma análise. É evide nte que um
psicanalista eventualmente aborda um sentido e exclui outros, mas neste caso há
claramente uma prioridade, uma ‘importância’, que se justifica evocando a própria
maneira pela qual o ana lisando teria se apresentado. O analista f az uma escolha, e, logo
em seguida, aponta uma suposta esc olha do paciente, que o leva ao silêncio.
Imediatamente após este silêncio, o a nalista mergulha em uma fa ntasia, impelida
pela emergência de uma memória de um episódio de sua infância. Convém perceber o
elemento da ‘e moção intensa’ associada à memória. Falamos de afetos, não de
deduções. Eis que surge o episódio do lago, essencial ao analista em sua condução da
sessão. Cabe aqui perguntar: seria este re sultado de um ‘ponto cego’ do analista, a
emergência de um aspec to próprio não analisado?
Houve uma pequena pausa a pós eu terminar minha fa la na qual
tive uma mem ória passageira de um incidente de minha i nfância (na
forma de uma série emocionalmente intensa de imagens estáticas). Um
amigo, R, e eu e stávam os brincando em uma lagoa congelada
imaginando sermos exploradores do Ártico – tínhamos ambos cerca de
8 anos de idade, então. Nós dois nos aventuramos perto de mais de uma
área em que, sem sabermos, não estava congelada de maneira sólida. R
caiu através do gelo e me vi olha ndo de cima para meu amigo
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
133
debatendo-se na água gélida. Percebi que se me abaixasse e tentasse
puxá-lo, o gelo iria provavelmente ceder sobre mim, e ambos
estaríamos na água, impossibilitados de sair. Corri a uma pequena ilha
no meio da lagoa para buscar um longo galho que havia visto ali.
Quando voltei a R, ele agarrou uma ponta do galho e fui capaz de içá-lo
da água.
No devaneio, nos vi (como se estivesse encarando intensamente
uma fotografia) silenciosa mente em pé sobre o gelo, R entorpecido em
suas roupas frias e molhadas. Enquanto isto, senti uma combinação de
medo, culpa e vergonha em relação à sua queda através do gelo. A
lagoa ficava muito mais pe rto de minha casa, e senti que deveria saber
dos sinais de fraqueza do gelo e o protegido de sua queda. A vergonha
estava c onectada em parte com o fato de ter corrido dele (a realidade de
que estava correndo para busca r um galho com o qual o puxaria não
diminuiu a vergonha). Mas, pela primeira vez, ocorreu-me perceber que
neste evento havia vergonha em ambos pelo fato dele estar encharcado,
como se houvesse urinado nas calças
13
.
O analista, após uma intervenção que resulta em silêncio, experimenta um
devaneio no qual se vê impotente e em risco de perder alguém importante. O devaneio
não seria apenas uma lembrança, mas uma fantasia de salvação do out ro. Embora esta
posição seja a de fechamento, há um aspecto essencial – o analista toma para si a
responsabilidade do sofrimento de seu analisando. Em última medida, tal posição
13
No original, “about his bis being dripping wet as if he had wet his pants”. uma associação bastante
imediata entre dripping wet (e nc har ca d o, m uit o m ol had o) e wet his pants (urinar nas calças – ao pé da
letra, molhar as calças). Na traduçã o perde-se esta c onexão bastante importa nte em termos analíticos para
o ar gu me nt o d o a ut or . ( N. do T. )
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
134
pareceria inevitável. Entretanto, não cabe ao profissional assumir para si a salvação (ou
condenação) do analisa ndo, especialmente frente a uma identificação. Desta forma, a
contratransferência c onfigura efetivamente um fechamento e estagnação: ao pensar no
senhor V como alguém a ser salvo, perde-se a possibilidade de vê-lo de inúmeras
maneiras diferentes e simultâneas. O saber que o analista supõe possuir funciona como
filtro à m ultiplic idade de sentidos possíveis. E se sua visão do mundo externo não f osse
interpretada como uma dificuldade, e sim como desejo? Ou sua relação com o trabalho?
O psicanalista fecha sua escuta no momento em que opta por um sentido em detrimento
a outro.
O analista ‘retorna’ do devaneio, e começa uma interpretação baseada
exclusivamente em pensamentos seus. Enquanto o analisando se cala, o analista tece
considerações baseando-se em suas impressões quanto ao som dos passos que o
incomodaram, e em seu devaneio.
Tais pensamentos passageiros e sentimentos ocuparam apenas
um momento, mas foram uma presença emocional enquanto dizia ao
senhor V que, a pa rtir do som de seu passos no corredor, suspeitei que
estivesse tumultuado enquanto se aproximava de nosso primeiro
encontro. (Mesmo enquanto as pronunciava, tais palavras –
particularmente ‘tumultua do’ [‘turmoil’] e ‘aproximava’ – pare ceram-
me rigidamente ‘terapêuticas’ e sem vida para mim.).
O analista a tribui algum tumul to ao Sr. V. No momento exato em que pronuncia
esta interpretação, percebe algo de errado. Na falta de vida das palavras e sua função
terapêutica, o próprio autor vislumbra a presença de algo dissonante na dinâmica da
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
135
sessão. Entretanto, ele prossegue nesta interpretação e conduz o analisando a se
justificar pelos passos no corredor.
O senhor V respondeu-me contando que em nossa conversa ao
telefone ele havia anotado as indicações que eu havia lhe dado sobre
como chegar à sala de espera desde fora da casa, mas ao chegar
descobriu ter esquecido de trazer o pedaço de papel no qual escreve ra
as instruções. No corredor entre a porta externa e a porta pa ra a sala de
espera, não estava certo se a porta envidraçada seria a sala de espera.
Lembrava vagamente minha menção sobre uma porta envidraçada, mas
havia outra porta (a saída de meu consultório).
O Sr. V oferece uma justificativa evasiva, trivial. Frente à curiosidade do
analista, que insiste, o analisando oferece algo que poderia soar como artificial. Trata-se
de uma descrição ‘sem vida’, assim como a interpretação, que oferece para aplacar a
insistência das interrogações. Contudo, mesmo entre esta evasiva, surge algo ‘sentido’
pelo Sr. V. Sem qualquer continuidade, o analisando emenda ao relato trivial
sentimentos de confusão e pensamentos de questionamento em relação às ‘pessoas do
lado de fora’. O analisando traz esta oposiçã o entre as pessoas de fora e o consultório –
algo o incomoda ali. O autor prossegue na descrição da fala do Sr. V:
Assim, sem saber como agir, voltou à porta externa. Esta tem
uma abertura em sua parte superior, dividida por tiras verticais c om
largos espaços entre si. O senhor V disse que, enquanto estava no
corredor espiando para fora a través das “barras” da porta, a luz do dia
parecia cegá-lo. Sentiu como se estivesse em uma prisão na qual, após
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
136
um grande período de te mpo, seus olhos haviam se tornado tão
acostumados com o escuro que não poderia suportar a luz do dia.
Virou-se então e foi de volta à porta de vidro e ficou em pé defronte
esta, incerto se deveria entrar. Retornou à porta exte rna e ficou em pé
um pouco mais, olhando através do que parecia uma grande distância
às pessoas do lado de fora, vivendo de maneiras que não poderia
imaginar.
O analisando abandona a continuida de de sua descrição e, no momento em que
não sabe como agir, c omeça a fantasiar. Até então, sua fala havia tratado de aspectos
prátic os e funcionais sobre sua procura de uma análise. Então, subitamente, quando
atinge um ponto em que não sabe o que fazer, sua fala ingressa em out ra ‘m odalidade’,
tratando através de metáforas e considerações sobre uma categoria abstrata, as ‘pessoas
de fora’. Entra em um registro igualmente fantasioso (em relação ao devaneio), no qual
a luz o cega, o consultório é uma prisão, e as pessoas são incompreensíveis.
O analista intervém, conduzindo o analisando a falar sobre algo que não trouxe
espontaneamente. Retorna a o tema duas vezes, e o paciente é conduzido a falar sobre
sua chegada à aná lise, na qual experimenta estranhamento e dúvida. Então, frente a este
novo relato do Sr. V, o analista intervém, interpretando a partir de algo que leva a
pensar no uso das sensações no devaneio.
Disse ao senhor V pe nsa r que ele nã o havia tido um meio, afora
suas ações no corredor, de confiar-me como se sentia ao vir em meu
encontro. Sem palavra s, afirmei, ele me contava quão sozinho sentia-se
na ‘terra de ninguém‘ do corredor. Sentiu-se barrado da possibi lidade
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
137
de entrar para me ver e iniciar sua análise assim como de poder sair e
viver como imaginava que as pessoas de fora eram capazes. O paciente
respondeu em uma voz monótona e incisiva, ‘Sim, sinto-me c omo uma
visita em todo lugar, mesmo com mi nha família. Não sei como fazer ou
dizer aquilo que parece vir naturalmente às outras pessoas. Sou capaz
de manter isso em segredo em meu trabalho porque sou muito bom no
que faço [não havia uma nota de pretensão em sua voz neste ponto]. As
pessoas me temem no trabalho. Penso que seja por eu ser abrupto. Não
sei conversar’.
O analista dá um fechamento a toda dispersão da fala do Sr. V, interpretando sua
fala como ‘o único meio’ que ele teria encontrado de dizer o que s [(que fa(com )-17)0.4(n)10.0246 Tw[(v05)atoa Não
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
138
dirigia sua atenção de volta ao que ocorrera e se dava durante a sessão.
Por volta da meta de da hora, o senhor V pareceu se tornar interessado,
e menos amedrontado, em discutir o acontecimento bem no início da
sess ão.
O Sr. V insiste em seu desejo de falar de si e de sua vida, mas o analista descarta
este elementos como ‘generalizações’. Há um ec lipse no texto sobre quais seriam estas
generalizações, ganhando sentido apenas quando se trata de algo relacionado à situação
da sessão, mais especificamente seu ingresso no corredor.
Até então, o Sr. V aparece no texto como alguém que não sabe; ele duvida de
seu saber frente a situações de sua vida. No entanto, em seguida o analisando reage e
diz, afinal, sobre qual seria seu saber pessoal:
Após uma breve pausa, o senhor V prosseguiu com algum afeto
em sua voz, ‘Aprendi a usar meu distanciamento das pessoa s para
minha vantagem nos negócios porque posso ver as coisas de um ponto
de vista externo. Ser distante me permite ser cruel, pois digo e faço
coisas às pessoas não feitas por ninguém mais nos negócios. Ou eles
não pensam em fazê-lo ou não o querem... Não tenho certeza qual. Em
uma disputa, nunca sou o primei ro a amarelar’ (flinch). Disse ao
paciente em uma série de pequenos comentários pensar que estava me
dizendo de seu medo de sua extraordinária capacidade de
distanciamento e crueldade tornarem impossível para si estar presente
em sua própria análise. Além disto, disse que estava sugerindo um a
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
139
grande chance de eu estar assustado e repelido por ele, a ponto de nã3918tP4 746.4ãliunaontoig10.73u918tP6308308546.417.0112 -0.0106 .50294 746.43(A)-8.6(56..88(l>>B11.7)13.2um)-9chr etoer etoance 75(eec1.7)13.h(, co)11t11.7ae1.7alis etor eto ance 75afe( eto)o 74 746.48(A)-8.63Con v10.75,427(u)11.7( ( et5(gu15)1z .4(a8(li) g sab10.75)li) graance d)à et5(o)0 T4n10.75li7(u)11.7(atéu)11.7( est)174n10 T4( 7)13.ãi a8(aest)174b10.75udo10.75aes373e1.744r 7(– 075)iaance d 7t5(gu13to)11.74ance 75coET3.me1.7213.ntu13totode1.7213.ume1.7213..2(e)-12.5ma
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
140
ambos (R e eu). Esta experiência de devaneio não se tratava mais de
uma série de imagens estáticas, mas uma experiência vívida se
desdobrando.
O silêncio é reconhecido pelo analista como longo demais para este momento,
mas é interpretado como não ansioso. Este, inclusive, e mprega o termo ‘deixar
continuar’, mostrando uma dimensão de controle nesta situação. Nesta pausa, retorna ao
devaneio, experimentado com intensidade e vivacidade. O primeiro devaneio era
estático, com imagens, no qual o analista estaria distanciado, como o Sr. V; o segundo é
vívido e dinâmico. Uma cena se monta, com a e ntrada do analista no papel representado
por si no devaneio, sentindo-se como um menino.
Senti muito mai s do que havia sido para mim ser um m enino de
8 anos de idade naquela lagoa congelada no inverno. Era um estado
mental composto por uma combinação entre viver em uma fantasia
(daydream) feita de se nsações tão imediatas que não havia espaço (ou
desejo) de pensar. As coisas simplesmente aconteciam, uma após a
outra. Os eventos na lagoa agora tinham o impacto emocional de um
balão explodindo – não apenas R ha via caído atra vés do ge lo, mas
ambos éramos atingidos no rosto por uma l ufada de realidade que
aniquilava o aspecto de sonho de explorar a lagoa congelada / Círculo
Ártico. Senti no devaneio que não teria outra escolha senão t ornar-me,
em um instante, alguém capaz de fazer o que deveria ser feito. R estava
na água. Eu tinha de me tornar alguém que tinha medo de não ser, mais
adulto que era então. Não me senti mi nimamente heróico na
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
141
experiência constituinte deste (se gundo) devaneio; senti-me um pouco
desconectado de mim, mas principalmente, agudamente ate nto que
es ta va ba st an t e en vo l vi d o naq uil o.
Desta vez é o analista que nã o pensa, por não ter desejo ou espaço. Parece ser
sua vez de não saber. Experimenta, e ntão, uma seqüência de eventos de impacto
emocional intenso (“um balã o explodindo”). O a specto principal deste segundo
devaneio seria uma volta à realidade, oposição desenhada entre a fantasia de explorar a
lagoa e a urgência do acidente no gelo. Nesta transição, o analista / menino percebe uma
perda de escolha, na qual é levado a fazer o que deveria ser fei to. Sai o sa ber, entra a
falta de e scolha e resulta em um fazer correto. Trata-se de um movimento um tanto
ambíguo, sugerindo, talvez, que poderia haver uma escolha em fazer o que não deveria
– deixa r o amigo na água ou manter-se afastado. Mais uma vez parece emergir o desejo
de afastar-se. O analista não se sente heróico ao salvar o amigo, e desconecta-se
novamente de si para se envolver no momento.
No momento em que o analista retorna do devaneio, a sessão está em um ponto
totalmente diverso:
Quando o senhor V quebrou o silêncio, começou a contar-m e
sobre ter passado por uma te rapia dura nte a faculdade. Não havia sido
capaz de fazer amigos e sentia muitas saudades de sua casa. O paciente
disse que havia sido um grande ‘aperto’ (s tretch) pa ra seus pais
pagarem pela terapia. Após algum tempo, disse ao senhor V pensar
que, ao perc eber no corredor ter esquecido suas anotações, sentiu-se
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
142
embaraçado como uma criança e, pa ra ele, comportar-se ou ao menos
se sentir c omo uma criança seria algo bastante vergonhoso.
O analista interpretou afirmando que o Sr. V estaria c om medo de repeli-lo e
assustá-lo, resultando em uma quebra em seu recém iniciado processo analítico. O
paciente entra em um silêncio l ongo, não percebido como ansioso, e ao falar novame nte,
é para contar que já foi capaz de ser tratado anteriormente. El e oferece uma resposta ao
analista, e traz ainda seus motivos para fazê-lo – incapacidade de fazer amigos, que se
pais esforçaram para pagar pelo tratamento.
Então, o analista interpreta-o mai s uma vez retornando ao episódio do corredor
da sala de espera, atribuindo ao paciente algo que sequer havia sido trazido na fala. O
Sr. V fa l a sobre sua terapia anterior, e é i nterpretado plenamente a partir do devaneio do
analista: quando e squece as anotações, sente-se como uma criança e é vergonhoso. Este
sentido, originado em seu devaneio, funciona c omo um funil na sessão: a terapia
anterior, a relação com os pais, o ‘aperto’, tudo isso e muito mais é lido e ouvido a partir
de uma experiência infantil do analista, que retorna a todo momento a esta cena
primeira que o c ausou incômodo. A contratransferência toma sua face de estreitamento,
na medida em que nada trazido pelo analisando tem f orça perto da necessidade do
profissional em fazer ouvir o medo e vergonha sentida na infância, atribuídos ao Sr. V.
Cabe acrescentar que, em momento a lgum, o analisando reconhece ou se apropria destes
sentimentos, afastando-se a cada retomada da fala.
As si m, ma i s um a ve z o Sr. V de s via da int e rpr e t açã o:
O paciente não disse nada em resposta a meu comentário, mas a
tensão em seu corpo visivelmente diminuiu. Sentamos calmamente por
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
143
um tempo. (Me pa recia que o senhor V e stava preocupa do pelo fato de
que estar em análise seria um aperto para si – de diversas maneiras
diferentes.) Ele di sse então, “Lá fora, sent ia-me tão perdido”. Havia
suavidade em sua voz enquanto falava tais palavras, uma qualidade de
voz que não havia ouvido dele, uma suavidade que se mostraria uma
raridade ao longo dos próximos muitos anos de sua análise. (Eu havia
notado que a sensação do paciente de que havia um ‘lá fora’ era
também uma sensaç ão de que começava a haver um ‘aqui dentro’ –
dentro do espaço analítico, dentro da relação comigo – no qual ele não
se s e nt i a t ã o pe rdi do ).
O analisando relaxa o corpo e, após muitas tentativas, deixa-se l evar pelo sentido
imposto a si. O Sr. V se cala mais uma vez, e o ana lista se percebe mais relaxado
também – c hega, neste momento, a retomar em seu pensame nto algo do que foi falado
pelo pacie nte, embora não o fale. A fala com a qual o ana lisando interrompe o silêncio
traz à tona um ‘lá fora ’, no qual se sentiria perdido. Não há especificidade neste ‘fora’,
ou relação com o que e le opõe – o autor conjectura a hipótese de que o ‘dentro’ seria o
espaço da sessão, mas não o de senvolve. O relato acaba neste ponto preciso no qual o
analisando parece ceder ao sentido do analista, reconhecendo-se pela primeira vez como
‘perdido’, conexão com alguma de suas falas anteriores. E, de fat o, parece que ele
realmente se perde na sessão, dado que nada do que quis trabalhar foi aceito como tal
pelo analista.
É important e frisar que não se tra ta aqui de uma negaçã o do valor dest e trabalho
ou a preferência de uma leitura a outra. O ponto fundamental desta análise é perceber
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
144
que, de fato, mudando-se o referencial teórico tem os uma sessã o analítica totalmente
diferente das anteriores. Embora o texto seja o mesmo, o efeito provocado parece ser
semelhante a o do ‘Pierre Menard’ de Borges – trata-se de outra sessão. Em uma
situação, o analista se percebe vinculado a um paciente de difícil acesso, e antecipa
aspectos que para este seriam inacessíveis através de uma escuta atenta de seus afetos
pessoais. Em outra, o analista se vê incomodado com elementos do analisa ndo, e insiste
na abordagem destes pelo analisando. O Sr. V, incapaz de responder a esta demanda, se
cala e interrompe seu processo a ssociativo.
São resultados quase opostos, advindos de leituras diferentes dos mesmos
trechos de texto, com uma escansão muito parecida. Fizemos questão de m anter
praticamente a mesma estrutura de tempo da leitura, para evitar uma ê nfase indevida em
um trecho em relação a outro, ou a separação de elementos que fizessem sentido em um
conjunto. Ainda assim, o mesmo text o se mostra múltiplo em sentidos, fért il e rico –
cabe f risar este ponto. Caso não tivé ssemos apoio de um trabalho tão consistente e
fascinante como o texto de Thomas Ogden, seria impossível realizar e ste truque de
espelhos conceitual.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
145
C
OMENTÁRIOS SOBRE O
S
EGUNDO CASO
A
UTO R
:
L
UCIEN
I
SRAEL
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
146
Cabe acrescentar que este autor tem um estilo ma rcado pelo saber psiquiátrico,
aliado a uma visão que exi be influências freudianas. Se o ante rior escrevia sobre o
devaneio e buscava a multiplicidade de elementos de comunicação, neste caso parece
haver um f oco mais preciso e rígido sobre os sentidos produzidos na relação. Há pouco
ou nenhum espaço para o afeto, por exemplo, embora seja possível perceber um autor
conduzido por um efeito contra transferencial envolvendo culpa e o peso das rela ções de
saber presentes no caso.
Iniciemos, assim como no caso anterior, por uma perspectiva orientada por uma
leitura dos textos de Freud sobre a contratransferência. O contexto deste segundo
trabalho é o se guinte: um senhor, por volta dos 40 anos, procura um psiquiatra–
psicanalista com o qual já teve um contato anterior. A nature za deste encontro será
detalhada ao longo do texto, mas é necessário salientar que há na ce na um caráter de
urgência. Ao contrário do caso anterior, nã o há o de talhamento das impressões do
analista anteriores ao diálogo com este homem, o qual, para efeito de comentário, será
tratado então como analisando. A aproximaçã o vem com a finalidade de dese nhar uma
cena analítica mais visível, uma vez ser s empre entre estes dois homens que a fala
ocorre. Tomando este discurso como a base sobre a qual uma relação transferencial -
contratransferencial irá se estabelece r, os diálogos serão tomados como algo análogo a
uma sessão analítica. A demanda, nesta situação é de uma intervenção no tratamento de
sua fil h a.
Uma manhã, um homem de mais ou menos quarenta anos me
aguardava na sa ída de meu consultório. Sua filha, Marie, acabava de
ser hospitalizada em uma clínica privada, com retocolite ulcero-
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
147
hemorrágica. Havia dez anos ela vinha sendo trata da por um
psicanalista por causa de uma a norexia mental. Segundo o pai, esse
psicanalista, que também era psiquiatra, tinha falhado no tratamento, e
pedia-me que atendesse sua filha, o que era evidentemente inaceitável.
Todavia perguntei a o pai de Marie por que ele tinha me procurado:
“Porque o senhor conhece minha filha”, f oi a resposta.
Logo de início, após uma descrição sumária do homem que aborda o analista –
daqui para frente, posicionado como analisando nesta cena – surge o tema da doença de
sua filha. Este, que será o eixo do que trataremos como uma sessão, se aprese nta desde
o princípio marcado por um diagnóstico médico, técnico em sua natureza e precisão
Trata-se, assim, de um início de diálogo que parte de um sintoma médico, uma doença.
Deste ponto, o autor salta para o c ontexto psicanalítico, sem uma transição e ntre eles. A
filha se trata há dez anos, sob um diagnóstico denominado ‘anorexia mental
14
’. Não há
detalhamento sobre o que seria este quadro, ou sua relação com as categorias psíquicas
trabalhadas principalmente na obra freudiana. Há uma marca freqüente da psiquia tria
nesta intervenção, confirma da na frase seguinte: o psicanalista também era psiquiatra. O
pai da moça acusa o psicanalista anterior de falhar no tratamento desta anorexia mental,
e pe dia que o autor atendesse sua fil ha. Este atendimento, para o analista, já se a presenta
como inaceitável. Entretanto, a este ‘inaceitável’ se adiciona algo que fica à beira de
uma situação de sedução: o analista pergunta por que foi proc urado (embora o
atendimento fosse inaceitável), e o analisando responde com um lacônico: ‘o senhor
14
Para uma descriçã o breve sobre o quadro psiquiátrico de ‘anorxia mental’, iremos recorrer novamente
ao excelente Dicionário Houaiss: “Q ua dr o mór bid o e m qu e o in di duo d im in ui a qua n ti dade de
alimentos ingeridos, frequente mente eliminando aqueles ricos em calorias, por meio de uma dieta rígida
autoimposta, que alterna com crises de bulimia, vômitos ou tomada de purgativos”. (H
OUAISS
, 2001. P.
227)
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
148
conhece minha filha’. Há um saber ante rior colocado em jogo como moeda de troca
para manter o interesse do analista – que, aliás, funciona.
Ele confessou, então, que doze anos antes eu tinha tido a
oportunidade de “tratar” de Marie. Vam os nos remeter a essa época.
Marie c ontava então com seis anos, e ti nha passado férias no
Mediterrâneo com se us pais. Essas rias tinham sido interrompidas
pelo aparecimento de “crises” inicialmente noturnas, de pois diurnas,
que sugeriam imedia tamente uma epilepsia temporal.
Então, o pai – analisando ‘confessa’. Há uma cena montada em torno de uma
confissão entre a s duas pessoas. O próprio autor coloca entre aspas em volta do
tratamento que teria feito – difícil afirmar o sentido destas aspas, mas ainda assim o
texto retoma este tratamento. A paciente, aos seis anos, teria interrompido as férias dos
pais com crises que sugeriam uma epilepsia temporal. O diagnóstico m édico continua
situado aqui como referência primária, e o autor parece ocupar ainda o luga r de
“médico”: nã o há interpretação alguma quanto à afirm ação drástica de que as férias
fora m interrompidas por cris es de epilepsia.
O texto prossegue com uma descrição do quadro de Marie.
A garotinha le vanta va-se e vagueava pelo qua rto, com uma
aparência desvairada, aparentemente sem ver nada, batendo nos móveis
e inquietando as pessoas com a frase: “Ele está vindo!” A crise durava
apenas alguns minutos, e em seguida a c riança retomava suas
atividades como se nada tivesse acontecido. Pediatras e neurologistas
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
149
fizeram todos os exames possíveis. Nenhum sintoma clínico foi
diagnosticado, tampouco qualquer distúrbio biológico. (... )
A ga rota tem seu c as o desc rito d e uma mane ira e min en temen te m édica . Nã o h á
uma abordagem propriamente psicanalítica, na qual a fala da paciente ganha peso.
Alguns sintomas são observados, e o único fragmento de fala que surge – ‘ele está
vindo’ – ainda não é detalhado. Até aqui, trata-se de um caso psiquiátrico, sem grande
peso dado à subjeti vidade dos participantes.
Foi assim que descobri Marie, tendo, inclusive, a oportunidade
de assistir a uma de suas crises. Depois da crise, eu lhe perguntei:
“Quem está vindo?” Foi o pai que respondeu: “São os ladrões. Marie
me disse que tinha medo de que os ladrões entrassem à noite no seu
quarto”. Tendo manifestado sua vontade de falar, eu pedi ao pai que me
relatasse as férias que tinham sido interrompidas pela doença da
criança. Ele não se lembrava de qualquer acontecimento especial.
Como vocês ficaram hospedados: Em um hotel. Marie tinha um quarto?
Não, é claro, ela teria sentido medo. Ela ficou no qua rto de seus pais.
“Vocês não receavam que Marie pudesse assistir às suas carícias?”
“Não, ela dormia profundamente e, de qualquer forma, ela era muito
nova para entender o que ocorria”.
O autor tem uma oportunidade de assistir a uma crise, e então, finalmente inicia
um c ontato com a paciente. No momento em que faz a prime ira pergunta, o pai da
menina interrompe, e responde por ela. Surpreendentemente, o analista abandona seus
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
150
questionamentos com a paciente e acolhe o desejo de falar do pai – há uma dime nsão de
sedução que não pode ser negada. Este pai fala por sua filha e o analista o aceita.
O autor pede ao pai que conte sobre o ocorrido, e esse nega qualquer
acontecimento especial, exceto o fato de que a filha ficava no mesmo quarto dos pa is. É
essencial notar que aqui o analista introduz, na forma de uma pergunta, uma hipótese
que irá se sobrepor às demais: a filha assist ia à intimidade do casal? Sem dúvida
pertine nte, mas é algo que parte do analista, não do analisando. Aqui, trata-se de uma
hipótese, uma possibilidade. O pai oferece uma resposta evasiva. Há um jogo de sentido
na cena – o analista sugere algo, o pai o nega. No entanto, a j ovem não foi ouvida, e a
hipótese do analista prossegue como a única possível em uma multiplicidade de
sentidos.
O autor continua o relato c om a internação da paciente.
(...) Internei Marie durante alguns dias num hospital, isolando-a
e proibindo as visitas dos parentes. Durante esse período as crises não
se manifesta ram, e reapareceram quando, quatro dias mais tarde, Marie
voltou para casa. Nesse m eio tempo, tive minha prim eira conversa com
o pai, e obtive um detalhe que, por ser íntimo, me pareceu importante.
A paciente é internada, ao que pa rece com a fina lidade de isolá-la da família.
Mais uma vez: até então é difícil não pensarmos em um caso médico. E é neste ponto
que poderíamos realizar algo de uma leitura sobre a dimensão contratransferencial. O
médico tem uma hipótese forte em mãos, referente ao episódio que se passou durante as
férias do casal. A filha teria visto seus pais durante o a to sexual, e suas crises seriam
uma referência a esta cena. O médico, aliás, não colocará esta hipóte se em questão
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
151
nenhuma vez, e buscará no texto este sentido a cada oportunidade. É o modelo
freudiano clássico da situação contratransferencial: em um contexto de sedução (entre o
pai e o médico) surge um sentido que se sobrepõe a todos os outros.
A paciente fica internada por quatro dias, nos quais não parece haver nenhuma
investigação psicanalítica. Ao mesmo tempo, o médico e o pai conversam pela primeira
vez. Aqui, o interesse do profissional em buscar o sentido sexual da cena se faz
explicitamente. Ele obtém (o te rmo em si parece caminhar pa ra uma conquista ou
vitória) um det alhe que pare ce ser importa nte por ser íntimo. Não há explicação no
texto do motivo pelo qual a intimidade estaria relacionada a alguma importânc ia, ou por
que os outros deta lhes seriam menos fundamentais. E o detalhe é recolhido de modo a
legitimar sua hipótese anterior relativo à cena sexual.
De fato, durante as relações sexuais com a mulher, e sse homem
tinha o hábito, na iminência do orgasmo, de dizer: “Estou indo!” Era
difícil não fazer uma aproximação com: “ele está vindo” falado por sua
filha durante as crises.
‘De fato’ – o t exto parece confirma r o quanto esta suposição do profissional já
estaria fechada sob um campo de certeza. Ele procura algo e o enc ontra. O pai da moça
revela ao médico que tinha o hábito de falar algo durante o orgasmo, e isso
corresponderia ao que sua filha fa la durante as crises. Contudo, esta hipótese parece
estar tão confirmada que não há consulta alguma da filha a este respeito. Até aqui, tudo
se passa através da fala do pai, é o pai que envolve o médico nesta situação de
‘confissão de c ulpa’, colocando-se simplesmente como o responsável pelo mal estar de
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
152
Maria. E o médico reforça este discurso, a partir do momento que é o único sentido a ser
extraído do caso, e todos os outros sintomas e ma nifestações perdem o interesse.
Portanto, doze anos após esse primeiro episódio eu revi o pai de
Marie. Obtive então novas informações. Até os dezesseis anos, Marie
não apresentou qualquer sintoma a parente. Até os dezessete a nos ela
tinha sido brilhante nos estudos, e passava para seu últ imo ano no
colegial; foi então que as coisas se complicaram, ao mesmo tempo que
seus pais atravessavam um conflito bastante banal: o pai tinha tido um
caso com uma jovem. Marie parara de comer, emagrecera e a
menstruação tinha sido interrompida. Ela aceitou fazer um tratamento
psicoterapêutico. Entretanto, a anore xia mental incontestáve l foi
agravada por acessos de retocolite ulcero-hem orrágica. Sendo que o
último desses acessos tinha sido tão grave que obrigara sua
hospitalização para uma tra nsfusão de sangue e tratamento médico. Um
cirurgião (...) tinha examinado Marie e concluído que uma intervenção
cirúrgica não era recomendada, considerando-se o estado de magreza
impressionante da jovem. Com o objetivo de favorecer um aumento de
peso, a equipe médica tinha decidido afastar os pais, que tornavam
dif íc i l a apli caç ã o de uma d isc ip l ina al i men t ar.
O autor afirma que após o episódio descrito anteri ormente – as crises e a
internação de Marie por quatro dias – houve um pe ríodo de paz. Doze anos depois, o pai
e o mé dico se ree ncontram (a jovem continua em silêncio para o lei tor). O autor obtém
novas informações: ao que tudo indica, trata-se do episódio trazido no início do texto,
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
153
no qual o pa i o aborda e propõe que t rate da filha em virtude do frac asso do profissional
anterior.
Novamente é feito um exame com base na fala do pai, que afirma que tudo
correu bem com a filha até os dezessete anos. O texto neste ponto se carrega de
ambigüidade: tudo vai bem até um momento em que as coi sa s se complicam. Algo
‘ba st ante bana l’ o cor re sim ult ane ament e ao adoe cim ent o da j ovem – o pai te m um c aso
com uma moça jovem. Mais uma vez o pai vai ao médico confessar uma culpa, que
acolhe o ocorrido sem ouvir Marie. O pai quer falar, e toda a cena se monta
denunciando que provocou o mal estar da filha graças a seu desejo sexual. O autor
novamente prioriza este sentido e exclui os demais – embora haja a tentativa de
simplesmente enunciar estes dois fatos, eles se enca deiam na estrutura do texto e
repetem o padrão que vincula a vida sexual do pai (que é quem fala) à neurose da filha.
A moça, simul taneamente a e ste caso amoroso do pai, parou de comer,
emagreceu e teve sua me nstruação interrompida, foi submetida a psicoterapia, mas se u
estado se agravou. Mais uma vez, a moça não é ouvida e vai parar no Hospital: o olhar
médico recai constantemente sobre o caso, enquanto não se explora a fala desta jovem.
Então, novamente a cena se repete: o narrador traz o dado da decisã o de afastar os pais
da moça como recurso terapêutico. A repetição é uma marca do caso – os elementos
reaparecem e se orientam na narrativa como que solidificando a hipótese do autor.
Durante o tempo em que Marie ficou sem receber visitas, ela
aceitou a dieta e os horários propostos pelos médicos. Mas a partir do
momento e m que a família ent rou em c ena – sobretudo a m ãe,
trazendo-lhe frutas e verduras, que Marie comia fora dos horários das
refeições, sem grande proveito anabolizante – ela começou a recusar os
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
154
pratos mais ricos que eram oferecidos pelo hospital. O que provoc ou o
conflito entre a família e a e quipe de médicos. Foi então que o pai
decidiu trocar de médico. Eu tentei mostra-lhe que uma mudança,
principalmente de psicoterapeuta, seria inconveniente para Marie. Ele
pareceu ter entendido.
Desta vez, é a mãe que faz o papel de adoecer a filha: ao trazer-lhe comida
escondida dos médicos, esta atrapalha o tratamento benéfico. Curioso apontar que
mesmo a jovem sofrendo de anorexia grave, aceitava ser alimentada por esta mãe que
transgride o cordão de isolamento proposto pela e quipe de médicos: o saber se
multiplica, pl uraliza. Esta infração gera um conflito entre a família e a equipe e, sem
qualquer outro de talhamento, o pai (que retorna a cena para a c onclusão trágica) decide
trocar de médico. O autor, até então externo à seu relato, colocando-se apenas como
expectador, tenta intervir. Ele tenta mostrar ao pai que a mudança seria inconveniente –
o pai pareceu ter entendido. Aqui, neste ponto, a relação cont ratransfe rencial culposa
salta ao olhar do le itor: o autor se exi me da culpa e, a ssim, de sua conseqüência. O pai é
responsabilizado por sua dec isão malfada da, até por ter entendido pela fala do médico
que a troca seria ruim. O tera peuta, embora não tenha tido nenhum destaque na história,
reaparece e é defendido. O que acontece na seqüência do texto quando o pai vai c ontra o
que o mé di c o lhe ha vi a mostrado?
Quinze dias mais tarde, soube que Marie ti nha morrido na me sa
de operações de um outro hospital. O que tinha acontecido? Não tendo
conseguido uma resposta positiva de qualquer psiquia tra, pois ele
entrara em contato com outros, o pai de Marie decidiu arriscar-se com
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
155
um outro mé dico, proprietário de uma clínica privada, um cirurgião
muito competente, mas que não hesitava em fazer alguma s c oncessões
para satisfazer seus clientes. Esse cirurgião, acompanhado de um
colega, examina Marie na cl ínica onde ela estava internada e expl ica
aos pais da j ovem que o prime iro cirurgião não tinha dia gnosticado
uma certa doença do intestino, que exigia uma intervenção imediata.
Ocorre, então, um acontecimento pouco comum, Marie, que nesta
época ainda era considerada menor de ida de, foi retirada do hospital,
colocada em uma ambulância e levada para a outra c línica. No dia
seguinte ela foi operada, e morreu algumas horas depois da intervenção.
O médico que tinha comandado essa mudança conte ntou-se em dizer:
“Era uma doença de Crohn”. Parece-nos quase desnecessário
mencionar que nada, nas radiografias feitas durante a primeira
hospitalização, justificava tal diagnóstico.
(in: I
SRAEL
, Lucien. “A histérica, o sexo e o médico”. São
Paulo, editora Escuta, 1995. P. 234 – 236)
A moça morre, ao que parece, em decorrência da teimosia do pai. O texto é claro
neste ponto: o pai tenta conseguir respostas positivas de psiquiatras, e decide ‘arriscar-
se’ com outro médico, que fazia concessões para satisfazer os clientes. O pai é
diretamente responsabilizado pela m orte de sua filha pela incompetência de um médico
ruim, não psiquiatra. A conclusão do caso, aliás, é também médica. Embora jamais
tenha sido ouvida, a jovem tinha radiografias feitas durante a hospitalização feita pelo
autor do texto que não justificam o dia gnóstico final. Ou seja, o autor pa rece dizer: ‘eu
sabia que não era isso’.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
156
Há uma dimensão a mbígua de sa ber em jogo, entre a insistência do pai em pedir
ajuda e a insistência do autor em afirmar que sabe, em bora jamais tenha feito a lgo com
este saber. Ao final, o anali sta recua e se recusa a aceitá-la em tra tamento. A jovem
morre, e o analista se justifica dizendo que foi o trabalho de um médico inescrupuloso.
Contudo, não caberia perguntar qual o afeto em jogo ne stas descrições? Qual a relação
estabelecida entre o autor e esta moça (ou seu pai, que é quem fala a cada momento)?
Então, no c omentário do próprio caso, o a utor retoma alguns pontos específicos
sobre a contratransferência:
No segundo caso – Marie - , em contrapartida, um personagem
desempenha um papel insistente. É o pai da jovem que tem algo a
esconder, ou pelo menos se comporta como se tivesse. Ele procura
cuidadosamente deixar sua filha muda. E vimos de que maneira ele o
conseguiu, mas ele não podia obter sozinho esse resultado. Portanto, f oi
preciso que ele c onvenc esse os médicos, levando-os a aceitar seus
argumentos. (p. 245)
O pai retorna à pena do autor, desta ve z como alguém que te m algo a esconder.
Embora não esconda nada – pois é ele que procura um analista e diz de sua relação
extraconjugal – se comporta como se tivesse. E para emudecer a filha, ele convence os
médicos, levando-os a aceitar seus argumentos. O pai tem poder de combater o saber
dos médicos – aqui, pulverizados em um grupo, no qual o úni co responsável é este pai
maquiavélico, que mata a filha para esconder sua vida sexual. Este homem manipula os
médicos, e assassina a filha para esconder algo que revela ao autor, um detalhe que é
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
157
obtido por este durante a conversa. E os médicos, assim, deixam de te r culpa na cena
descrita, na qual em nenhum momento, a fala da moça é sequer ouvida.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
158
Mais uma vez, o olha r será troc ado, buscando realizar uma nova leitura do caso.
A passagem será mais ágil para evitar o efeito de repetição excessiva. As perspectivas
lacaniana (no f ormato normal) e baseada em Paula Heimann (em itálicos) serão
simultaneamente exploradas na medida em que formem comentários pe rtinentes.
Uma manhã, um homem de mais ou menos quarenta anos me
aguardava na saída de meu consultório. Sua filha, Marie, acabava de ser
hospitalizada em uma clínica privada, com retocolite ulcero-
hemorrágica. Havia dez anos ela vinha sendo tratada por um
psicanalista por causa de uma anorexia mental. Segundo o pai, esse
psicanalista, que também era psiquiatra, tinha falhado no tratamento, e
pedia-me que atendesse sua filha, o que era evidentemente inaceitável.
Todavia perguntei a o pai de Ma rie por que ele tinha me procurado:
“Porque o senhor conhece minha filha”, f oi a resposta.
O médic o – psicanalista que trata desta moça há dez anos falhara no tratamento
segundo a fala do pa i. Mesmo assim, o pai opta por encaminhá-la a um profissional que
a tratou há doze anos, durante quatro dias, sem interve nção analítica alguma descrita no
texto. Embora a situação seja tida como inaceitável, a conversa prossegue.
O primeiro elemento a ser sublinhado sob uma perspectiva apoiada nos escritos
de Heimann é sutil, pois este autor, oposto ao estudado anteriormente, não explicita em
seu texto os afetos ou opiniões que experimenta. Contudo, o seu texto nos dá indícios
para pensar em processos internos influindo na sessão. Quando o texto afirma, mesmo
que no papel de uma citação da fala do pai, que o analista anterior falhara, ele aponta
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
159
para alguma concordância neste fato. Não há detalhamento sobre o motivo pelo qual o
autor considera inaceitável atender esta moça, mas o interesse pela história se mantém.
Ele confessou, então, que doze anos antes eu tinha tido a
oportunidade de “tratar” de Marie. Vam os nos remeter a essa época.
Marie c ontava então com seis anos, e ti nha passado férias no
Mediterrâneo com se us pais. Essas rias tinham sido interrompidas
pelo aparecimento de “crises” inicialmente noturnas, de pois diurnas,
que sugeriam imedia tamente uma epilepsia temporal.
A garotinha le vanta va-se e vagueava pelo qua rto, com uma
aparência desvairada, aparentemente sem ver nada, batendo nos móveis
e inquietando as pessoas com a frase: “Ele está vindo!” A crise durava
apenas alguns minutos, e em seguida a c riança retomava suas
atividades como se nada tivesse acontecido. Pediatras e neurologistas
fizeram todos os exames possíveis. Nenhum sintoma clínico foi
diagnosticado, tampouco qualquer distúrbio biológico. (... )
O texto faz alusões a crises, ce rcadas de aspas não explicadas, as mesmas aspas
que surgem em torno do termo referente ao tratamento. Dois elementos essenciais para a
descrição do caso são relativizados por aspas e não há menção alguma à razão para isto.
O movimento que parece ser estabelec ido aqui é a estruturação de um sentido, quase um
nivelamento de uma série de elementos da fala para conduzir a um ponto específico.
Ainda não há a menção a qual quer elemento que possa sugerir contra transferência, mas
começa a haver esta emergência de uma inte rpretação se sobrepondo a outras, mesm o
se m ha ve r o c ont ex t o de um a ses o an al í tic a.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
160
A ‘crise’ em questão não envolve a fala da menina, exceto em um fr agmento
que nunc a é explorado. Pedi atras e neurologistas examinam a menina, e na da é
encontrado. Até aqui nenhuma intervenção propria mente a nalítica é realizada.
Há uma escolha interessante de termos, quando a explicação é tratada como
confissão. Pode indicar que algo se monta no interior do analista, que recebe o relato
já sob uma marca de culpa: o pai se confessa. Qualquer eco desta culpa no profissional
segue sem ser mencionado, mas poderia ser uma antecipação inconsciente do analista
de elementos internos ao inconsciente do pai da moça. A crise é descrita a partir dos
sintomas da moça, sem trazer qualquer menção à reação da família. A conclusão do
autor recai sobre a lado médico do caso.
Foi assim que descobri Marie, tendo, inclusive, a oportunidade
de assistir a uma de suas crises. Depois da crise, eu lhe perguntei:
“Quem está vindo?” Foi o pai que respondeu: “São os ladrões. Marie
me disse que tinha medo de que os ladrões entrassem à noite no seu
quarto”. Tendo manifestado sua vontade de falar, eu pedi ao pai que me
relatasse as férias que tinham sido interrompidas pela doença da
criança. Ele não se lembrava de qualquer acontecimento especial.
Como vocês ficaram hospedados: Em um hotel. Marie tinha um quarto?
Não, é claro, ela teria sentido medo. Ela ficou no qua rto de seus pais.
“Vocês não receavam que Marie pudesse assistir às suas carícias?”
“Não, ela dormia profundamente e, de qualquer forma, ela era muito
nova para entender o que ocorria”.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
161
Assim, o autor descreve a sua descoberta da moça, e tem oportunidade de ver
uma das cri ses. A pa lavra ce de ao olhar. O mé dico faz uma pergunta à menina, e o pai é
quem responde por ela. Desde este ponto, um l aço se estabelece e se repete até o final
do caso – o pa i fala pela menina, e o analista o legitima em seu texto. T odas as
interpretaç ões posteriores são baseadas na fala do pai, apoiada por um sentido edípico
conferido às crises da menina, associadas ao testemunho de episódios sexuais entre os
pais. O autor decide então internar a me nina.
Mais uma vez, os termos utilizados são marcantes. O autor do texto ‘descobre’
Marie, e tem a ‘oportunidade’ de assistir uma de suas crises. São termos que
demonstram interesse de algum tipo, mas não explicitados no trecho. Os sentimentos da
menina são secundários no relato do pai – a filha sentiria medo de ficar sozinha em
outro quarto, mas seria incapaz de entender o que os pais faziam em sua frente.
(...) Internei Marie durante alguns dias num hospital, isolando-a
e proibindo as visitas dos parentes. Durante esse período as crises não
se manifesta ram, e reapareceram quando, quatro dias mais tarde, Marie
voltou para casa. Nesse m eio tempo, tive minha prim eira conversa com
o pai, e obtive um detalhe que, por ser íntimo, me pareceu importante.
Seguindo a hipótese e dipiana, única apresentada no texto, o autor interna a
menina. Não há escuta da jovem em j ogo para corroborar ou questiona r um se ntido que
é fechado pelo pai e pelo médico. Durante o tempo da internação as crises desaparecem,
e isto parece convencer o autor da relação e ntre as crises e o contato com os pais. Surge
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
162
então a fala na cena montada, mas uma vez o discurso do pai, no qual não há precisão
exceto de um detalhe, que ‘parece importante’.
O detalhe íntimo parece importante – há sentimentos em jogo, que não são
expressos pelo autor do texto. Alguma hipótese se forma, que não é adicionada ao
‘tratamento’, e lentamente estabelece uma chave de interpretação que irá definir a
seqüência da leitura da cena. Os elementos do texto são reunidos em certa ordem, que
monta a cena confirmando a necessidade do médico de afastar a menina dos pais.
De fato, durante as relações sexua is com a mulher, esse homem
tinha o hábito, na iminência do orgasmo, de dizer: “Estou indo!” Era
difícil não fazer uma aproximação com: “ele está vindo” falado por sua
filha durante as crises.
O autor encontra na fala do pai um elemento que liga três pontas: o
comportamento sexual do pai, a fala da menina desc rita por este pai e a hipótese tecida
pelo a utor e sustentada pelo pai de uma ligação entre as crises e o testemunho de
relações sexuais entre o casal. Assim, a suposição do a nalista é fechada em torno de stes
elementos, e a ce na é cortada pa ra o episódio em que o pai procura novamente este
autor para fa la r nova mente.
O pai assume, para a confirmação do profissional, um vínculo entre sua vida
sexual e as palavras ditas pela filha durante as crises. Caso o analista houvesse
antecipado este ponto no momento em que o percebeu, poderiam ter aparecido
diferentes aspectos do caso. O pai mais uma vez confessa sua culpa, sendo este um
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
163
sentimento que atravessa toda a narrativa sem ser abordado no texto. Qual a reação do
autor a esta culpa? Ele a compartilha de alguma forma?
Portanto, doze anos após esse primeiro episódio eu revi o pai de
Marie. Obtive então novas informações. Até os dezesseis anos, Marie
não apresentou qualquer sintoma a parente. Até os dezessete a nos ela
tinha sido brilhante nos estudos, e passava para seu últ imo ano no
colegial; foi então que as coisas se complicaram, ao mesmo tempo que
seus pais atravessavam um conflito bastante banal: o pai tinha tido um
caso com uma jovem. Marie parara de comer, emagrecera e a
menstruação tinha sido interrompida. Ela aceitou fazer um tratamento
psicoterapêutico. Entretanto, a anore xia mental incontestáve l foi
agravada por acessos de retocolite ulcero-hem orrágica. Sendo que o
último desses acessos tinha sido tão grave que obrigara sua
hospitalização para uma tra nsfusão de sangue e tratamento médico. Um
cirurgião (...) tinha examinado Marie e concluído que uma intervenção
cirúrgica não era recomendada, considerando-se o estado de magreza
impressionante da jovem. Com o objetivo de favorecer um aumento de
peso, a equipe médica tinha decidido afastar os pais, que tornavam
dif íc i l a apli caç ã o de uma d isc ip l ina al i men t ar.
Doze anos depois, o pai e o médico se reencontram, e este obtém novas
informações. Embora tenha se recusado a atender a moça, a relação com o pai continua
na mesma maneira. Eles falam sobre os sintomas da moça, sobre sua anorexia, passando
brevemente sobre sua psicoterapia (mesmo esta te ndo durado dez anos). A moça volta
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
164
aos médicos, por problemas gastrintestinais. O caso ainda parece não ter chegado ao
campo psicanalítico – o autor permanece sob o caminho da observação de sintomas
médicos, e a única hipótese supostamente analítica permanece na suposição edípica,
embora ainda não haja elemento algum da fala da moça, apenas de seu pai. O analista
permanece na posição passiva, recebendo a fa la do pai sem que stioná-la ou busc ar algo
no discurso da moça, agora c om dezesseis a nos. dg 8.7s8amg nto-7.7612(s8)5mm4.9(a)1.3(oad112e)-12.2(ne a]TJT*0.00205Tc0.00563Tw[(a)-134(f).1(a)s-4.4(t)-1.9(a)8-.3(.a md)0.2( )8-.3(.)10.7(af-7.761a7.3(tm-10.24(ília7.3(t)-146 )]TJT300567-2.3085 TD0.Tc0 Tw( )Tj1TT241 Tf9 -2.2979 TD0.0719 Tc0.10039Tw[(A) )-12.6(o)0.9(mlp mdo)-10.7(peai)-10.7(s)7.3(u)-12.6( nesc)-8.1(gar7.3(u)e )-10.67no dpotom)-10.67no dqul)-8.1(í om)-81.9(a)8.9(ml)-10.7(edsta de)eMarie s nv8.7( )-8.1(cn)8.7(aul )-10.7(úao)]TJT-300567-2.3979 TD0.07198Tc0.10573Tw[(are)-8.1( )818 aex-12.6(t)-1.2(r)-139(a)con818 quee t anve cotm.d nfi haaeon0.48mt-8.1( o p)ár7.3( )úd a]TJT*0.0029 Tc0.17425Tw[(c)-13.6(o)0.9(sm9.19u)-12.6( r7.3(u )-10.6(nen)strua11.6(ar18(,.-14.6( eE)-565sm9.19uora )110.6(s)6.3(u)-12.6( ja encaminhad )]TJE1.1944 T0TD0.0719 Tc0.0153 Tw[(A )10.6(aum ratraen)t p)s)12.8(c)-1.4(rot)8.7(r)-139(a)pêuticuao
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
165
Surge no texto uma oposição entre a família e ‘os médicos’, os primeiros
arruinando o t ratamento proposto enquant o os médicos são abandonados pelo pai, que
decide trocar de tratamento. O autor é procurado para resolver esta situação, e ele opta
por convencer o pai a pe rmanecer com o psicoterapeuta de então. Surge uma frase
interessante, que pontua nossa hipótese de elementos contrat ransferenciais: ‘ele pa receu
ter entendido’. O autor claramente se exime de uma culpa que será comprovada
posteriorme nte em seu texto, a partir de um desenlace trágico. Toda a estrutura
significante do texto apóia-se na hipótese da cena edípica, no trauma vinc ulando a
neurose da filha à vida sexual do pai.
Há um ponto importante a ser marcado. A parti r do momento em que o analista
tenta ‘convencer’, sobrepor sua opinião à do pai, a fala deste homem cessa. Embora o
texto não seja explícito neste ponto, este é o ultimo momento em que a fala do pai
aparece. Este elemento nos aponta pa ra uma confirm ação de um efeito trabal hado por
Lacan como característico da situaçã o contratransfe rencial: a e stagnação na fala do
analisando produzida pela emergência da contratransferência. Quando o analista fa la de
seu desejo – no caso, de que o pai não a removesse do tratamento anterior – a cena se
desmonta. Pode ser um bom exemplo da interrupção da dialética analítica que Lacan
comenta em seu texto de 1951, (L
ACA N
, 1951 / 1998) ao trabalhar o caso Dora. Assim
que o psicanalista introduz uma interpretação ‘fechada’, pronta, o discurso do
analisando não encontra espaço para continuar se desdobrando. Neste exemplo, a
interpretação seria algo semelhante a afirmar que o pai da moça deveria permanecer
tentando tra tá-la da maneira que vinha tratando, sem oferecer uma saída a este circuito
médico a que esta menina e s ua família estava inse rida. O autor ti ra o saber do pai,
limita-o em seu poder de decisão sobre o sofrimento de Marie. E isto nã o aparece sem
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
166
conseqüências: em seguida no texto, há um salto a um fi nal trágico, como que uma
punição ao pai por sua pe rsistência. Evidencia-se uma culpa lançada sobre o pai, que
desobedece a orientação do autor em sua advertência.
A cena montada pelo autor se explicita – a família é trazida como responsável
pelo sofrimento da jovem e impedimento contra o tratamento apropriado. No momento
em que a família ‘invade’ o meio médico, o benéfico é interrompido. Os pais são
colocados nesta posição de fazer mal à filha, de ‘substituir os pratos mais ricos
oferecidos pelos médicos’. Mesmo com toda neutralidade que o autor pretende dar ao
texto, elementos transbordam com a sugestão de algum incômodo frente à atitude dos
pais.
O autor se coloca então na posição de convencer o pai da jovem a manter o
tratamento psicoterapêutico. Se há em jogo uma relação de culpa por parte do pai, o
autor se apóia neste sentimento para levá-lo a desistir de trocar de terapeuta. O pai
parece ter entendido, mas o texto caminha para mostrar o que a quebra deste
entendimento faz a esta família.
Quinze dias mais tarde, soube que Marie ti nha morrido na me sa
de operações de um outro hospital. O que tinha acontecido? Não tendo
conseguido uma resposta positiva de qualquer psiquia tra, pois ele
entrara em contato com outros, o pai de Marie decidiu arriscar-se com
um outro mé dico, proprietário de uma clínica privada, um cirurgião
muito competente, mas que não hesitava em fazer alguma s c oncessões
para satisfazer seus clientes. Esse cirurgião, acompanhado de um
colega, examina Marie na cl ínica onde ela estava internada e expl ica
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
167
aos pais da j ovem que o prime iro cirurgião não tinha dia gnosticado
uma certa doença do intestino, que exigia uma intervenção imediata.
Ocorre, então, um acontecimento pouco comum, Marie, que nesta
época ainda era considerada menor de ida de, foi retirada do hospital,
colocada em uma ambulância e levada para a outra c línica. No dia
seguinte ela foi operada, e morreu algumas horas depois da intervenção.
O médico que tinha comandado essa mudança contentou-se em di zer:
“Era uma doença de Crohn”. Parece-nos quase desnecessário
mencionar que nada, nas radiografias feitas durante a primeira
hospitalização, justificava tal diagnóstico.
(P. 234 – 236)
O pai, mais uma vez colocado como protagonista principal desta cena, procura
outro médico, desta vez um mais suscetível a aceitar suas propostas. Este homem
‘arrisca-se com outro médico’, uma ci rurgião que, embora competente, não hesita em
fazer concessões a seus clientes. É marcante a presença dos médicos nesta história:
Marie essencialmente transita por médicos, ganhando novos diagnósticos conf orme
atravessa o texto, e eles detêm este poder de vida e morte sobre a jovem, mesmo no
c amp o d o di agn ós tic o. No ss o te xt o, n o ent a nto, pe rma ne ce na e sf e ra da
contratransferênc ia; parece haver a cada momento um afeto em jogo, algo que transita
entre a culpa e o desejo de se eximir da culpa. O autor estabeleceria uma relação com o
pai da moça, na qual haveria um saber em jogo sobre a doença da moça. Há, inclusive,
uma dimensão de transgressão: o médico rem ove a moça do hospital anterior, onde
estava sendo tratada, e a conduz à clínica particular.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
168
A moça é levada à clínica, submetida a uma cirurgia e vem a falecer. No texto é
marcante o caráter de acusação presente nesta passagem, confirmada pela frase
posterior, na qual o autor afirma que o médico conte nta-se em dar uma resposta
aparentemente superficial. Em seguida, invalida o diagnóstico apresentado. O
movimento do texto caminha no sentido de culpar o outro, mostrar sua falta de saber e,
com isso, demonstrar que a falta deste saber conduz à morte da paciente. A atuação
médica enfrenta esta oposição e ntre vida e morte, o saber que pode diagnosticar ou, no
limite, matar. A contratransferência esta ria alojada neste desejo presente no texto em
apontar a falha do outro e mostrar-se detentor de uma verda de pessoal, capaz inclusive
de salvar a moça. Embora não tenha escutado a moça, o a utor parece em seu texto dete r
este conhecimento sobre seu mal estar.
O trecho de seu livro em que o caso de Marie é come ntado e ncerra-se neste
parágrafo, descrevendo a morte da jovem. Em seguida, pouco depois em seu texto, o
autor volta ao tema de ste caso e discute o que traz como uma a nálise do caso, focando o
tema da contratransferência. E o olhar pelo qual o caso é retomado volta a se r sobre o
papel do pai nesta situação. A suposição do a utor em relação a uma situação edípica
entre o pai e a moça retorna à cena, cercando o pai de culpa pelo ocorrido.
A morte da jovem coroa a suposição do médico de que a interrupção ou
substituição do tratamento seria ruim à jovem, e retribui à culpa com a mais dura das
penas. Os detalhes são trazidos a partir da perspectiva médica, mas pincelados com
alguma ironia em relação à escolha feita pelo pai da moça. A culpa deste pai é o fio
condutor através do qual o autor sustenta o texto e interpreta o caso, deixando de lado
o sentimento despertado por não ter atuado contra a cirurgia letal. Podemos adicionar
um outro elemento ao texto, um ponto que irá se confirmar posteriormente: o autor do
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
169
texto partilha a culpa trazida pelo pai da moça, ele é atingido por estes afetos
transferenciais. Mesmo sem a confirmação do texto, estes afetos transbordam na
estrutura da narrativa, assim como a antecipação do desfecho negativo que iria
ocorrer.
No segundo caso – Marie - , em contrapartida, um personagem
desempenha um papel insistente. É o pai da jovem que tem algo a
esconder, ou pelo menos se comporta como se tivesse. Ele procura
cuidadosamente deixar sua filha muda. E vimos de que maneira ele o
conseguiu, mas ele não podia obter sozinho esse resultado. Portanto, f oi
preciso que ele c onvenc esse os médicos, levando-os a aceitar seus
argumentos. (p. 245)
O pai da j ovem é descrito com o alguém que tem o que esconder, e
responsabilizado pelo silêncio da moça, embora o a utor tenha sido convocado a tratar de
Marie outrora. Então, para atenuar esta sentença lançada sobre o pai, a culpa é repartida
entre um personagem genérico trazido como “os médicos”, que aceitam passivamente
os argumentos tendenciosos do pai. Reforça-se a hipótese da relaçã o entre o pai e o mal
estar e a morte da filha, os médicos retornam com o poder de decisão sobre a vida da
moça.
Assim, é possível perceber aqui um elemento que ressurge ao longo do texto, na
medida em que um sentido se sobrepõe aos outros, soterrando qualquer outra
possibilidade de interpretação. Se a escuta da moça é descartada da cena analítica e a
relação se fa z entre o autor e o pai da moça, em momento algum há uma abertura para
se questionar este ponto. A culpa do analista, escrita em sua hipótese e ao longo de sua
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
170
descrição do ca so, motiva um texto ac usatório e pontual, no qual uma hi pótese fecha a
possibilidade de outras interpretações sobre os sintomas de Marie. O autor, que se
apresenta como psicanalista leva a um engessamento das leituras possíveis, e,
provavelmente, veda a possibilidade de escuta deste caso particular, até mesmo em seu
texto.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
171
C
ONSIDERAÇÕES
F
INAIS
R
ESU M O DAS PERS PEC TIVAS ES TU DADAS
A partir da análise dos casos, percebemos que muitas de nossas questões iniciais
permanecem sem resposta. As trê s perspectivas estudadas compartilham poucos pontos
em comum, apresenta ndo grandes diferenças entre si. Estas diferenças produziram
interpretaç ões totalmente diversas das cenas analisadas. Como citado em nosso método,
a partir do tra balho de Sidney Pulver (in: P
HILLI PS
, 1991. P. 377), parece não haver
uma sessão propriamente dita, e sim vá rias, de acordo com o observador. Os três pontos
de vista são consistentes e bem estruturados. Como opta r por um deles?
Inicialmente, é inte ressante fazer um apanhado da s diferenças e semelhanças
entre as três abordagens do conc eatota1sens 6(c)-12.6(t8.4(ag)11.6a)8.77.3 asss aecatotaaêjá estu-12.6(da)8.77.3 di-2(s)o]TJT*a
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
172
Assim, para Freud, os fenômenos contratransferenciais representam um
estreitamento desta multiplicidade, na medida em que pensamentos e afetos do analista
se sobrepõem à escuta necessária em uma situação analítica. As situações trabalhadas
por este autor geralmente envolvem al gum elemento de sedução, mas Freud destaca a
quebra no compromisso moral de abertura ao outro e abandono dos interesses próprios
em prol do tratamento do sofrimento alhe io.
Lacan compartilha algo desta visão, mas destaca o caráter de inevitabilidade da
emergência dos afetos no processo. Desta forma, o manejo da contratransferência se
converte em algo semelhante a uma escolha por parte do prof issional que deve se
questionar a cada intervenção que fizer, consciente de que seu saber pode promover o
achatamento de sua escuta. Além disso, este autor sublinha o possível efeito paralisante
dos efeitos contratransferenciais na dinâmica do tratamento. No m omento em que o
analista impõe uma interpretaçã o e a engessa, o discurso do analisa ndo se represa. A
palavra é ba rrada pela rigidez da repetição, e se torna sec a, infért il. Assim, ocorre uma
escolha na medida em que o profissional é obrigado a optar entre o desejo de mostrar
seu saber e a sustentação de sua prática: deve haver a cada novo sentido a abertura ao
inconcluso, a possibilidade de outra s leituras. A verdade, ‘êmulo do tempo’ no texto de
Borges e perspectiva central para Freud, que almeja a uma psicanálise orie ntada pela
busca da verdade inconsciente de cada um, perde lugar, e cede espaço para algo mais
maleável: a fal a do analis ando.
Heimann enxerga toda a dinâmica analítica a partir de um outro lugar,
orienta ndo-se pe la compreensão da com plexidade do i nconsciente do analisando. É uma
autora comprometida com uma visão terapêutica da psicanálise, para quem o plano
principal parece ser o desatamento dos nós inconscientes que causariam mal e star. O
profissional busca, c om a apuração de sua capacidade de percepção inconsciente,
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
173
solucionar o sofrimento pela via mais rápida: a comunicação entre inconscientes. A
palavra se torna vagarosa, e o analista toma um atalho que passa por seu próprio
inconsciente.
Até aqui, um triângulo já se fa z ver: Freud e Heimann partem em busca
de uma verdade oculta no inconsc iente do analisando, procurando util izar seu saber e
seus afetos como via de acesso a este c onteúdo ocult o ao próprio pa ciente. O
profissional visa decifrar algo escondido. Para Lacan, ocorre algo diverso. O analista
tem como função o ‘fazer falar’. Assim, ele não prioriza nenhum dos sentidos
possíveis, e evita colocar algo seu em jogo para promover a continuidade do processo
de tratamento, cujo veículo é a fala.
Freud e Laca n têm como moeda a fala do analisando, enquanto Heimann aposta
na compreensão e diálogo entre inc onscientes. Se para os dois primeiros o principal é
escutar e fazer falar, manter a fa la animada durante um processo difícil de
autoexploraçã o por parte do analisando, para Heimann o ana lista ganha um papel mais
central como inté rprete destas dificuldades no falar. O psicanalista, para Heimann, é
aquele que sabe algo sobre o outro a pa rtir de um exame atento dos efeitos inevitáveis
que sua presença provoca. O analista freudiano sabe algumas coisas, mas deve estar
alerta à quilo não trabalhado em sua análise, que pode levá-lo a ser seduzido pelos
efeitos que promove no outro e provocado pelo paciente em sua conduta e percepção de
si. O lacaniano parece ter menos fé neste saber ou percepção, e sua principal função é
sustentar a escuta e recepção do que lhe é trazido, no tempo em que o analisando é
capaz de fazê-lo. Estas três visões não são puras, mas mestiças, ‘diaspóricas’ e
‘fra gmentadas’, pa ra recuperar i déias rica mente ilustrada s por Jacque s-Alain Miller em
sua ‘Cartas à opinião esclarecida’ (M
ILLER
, 2001. P. 13), a re speito da psicanálise
atualmente. Em cada autor trabalhado em nossa pesquisa é possíve l perceber uma
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
174
tendência principal, mas pode-se também entrever um intercâmbio entre eles. No
trabalho de Freud aparece a referência à compree nsão i nconscie nte, Lacan diz da
inevitabilidade de alguma permeabilidade do analista aos afetos contratransferenciais e
da necessidade de acolher estes elementos. Heimann recupera o peso da palavra, e alerta
contra as a rmadilh as da perc epção inconscient e e dos afetos contra trans ferenciais.
Finalmente, há um ponto central em que os três autores concordam
Independentemente de sua origem, os pensamentos e afetos que dizem respeito
exclusivamente ao analista devem ser evitados e excluídos da cena analítica. Suas
opiniões e emoções não relacionadas ao que é trazido pelo analisando são elementos a
serem mantidos sob controle, alheios ao analisando e às interpretações dirigidas a este.
Mesmo quando o analista fala de si, seu objetivo é conseguir algum esclarecimento do
analisando sobre elementos levantados em sessão. Em momento algum há a legitimação
de atos que dizem respeito exclusivamente ao analista, e sempre a dimensão ética de seu
papel como promotor de um trata mento prevale ce. Resta saber este represamento dos
afetos do analista durante a sessão é sustentável, e o quanto esta separação entre analista
e analisando acontece na dinâmica da se ssão, na qual tantos elementos se misturam, as
fronteiras se desfazem, mudam de lugar.
C
ONTRATRANSFERÊNCIA NOS CASOS ESTUDADOS
A contratransferência aparece para Freud e Lacan como um risco à continuidade
do tra tamento. Para Heimann, ela se torna um instrumento privilegia do para
compreender o paciente. Trata-se de uma oposição que reaparece na análise dos casos
clínicos. O primeiro caso, pa ra leitores freudianos ou lacanianos, é exemplo de
fechamento da escuta. Um analista é pego por um afeto negativo provoc ado pela
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
175
interrupção de uma sessão anterior por um paciente recém admitido para iniciar sua
análise. Os afetos do analista apa recem, de acordo com o texto, marcados por um mal
estar, pela sensação de intrusão.
Na primeira leitura deste caso, o analista se vê preso a um sentido
experimentado em relação à situação inicial do encontro. O analisando, de certa forma,
atrapalha a sessão anterior, e o analista se limita a buscar o significado que esta ação
teria em relação a todo o resto de sua fala. Há uma multiplicidade de sentidos possíveis
na fala do analisando, mas o foco escolhido pelo analista permanece sendo a maneira
pela qual o senhor K. chega à sessão. O devane io experimentado se torna a chave
fundamental pela qual toda a sessão é interpretada. Assim, há um inevitável
afunilamento das possibilidades de sentido, uma vez que todas as falas do analisando
são dirigidas ao episódio da lagoa, no qual são experimentados elementos emocionais
‘infantis’, medo, vergonha, etc.
Na segunda análise do primeiro caso, o analista se vê em um esforço constante
em antecipar a fala do analisando, de fazê-lo abordar elementos que para si seriam ma is
importantes. O analista identif ica pontos que poderiam ser explorados a partir da
atuação do analisando em sua chegada, e interpreta estes elementos com base nos afetos
que experimenta em relação aos ac ontecimentos. Tudo isto culmina na emergência de
uma memória, um devaneio que surge para servir de suporte a afetos que a parecem na
sessão e são interpretados gradua lmente segundo o desenvolvimento desta. Parece haver
um processo de desvelamento si multâneo entre anali sta e ana lisando, e ambos partilham
da descoberta que termina por se estabelecer como o sentimento de impotência e
distanciamento manifestados no fina l da sessão pelo Senhor V.
Na terceira análise do primeiro caso, o analista é perseguido por um incômodo
desde o princípio da se ssão. O a nalisando interrompe sua fala em diversos momentos
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
176
em reação às interpretações do analista, que dizem muito mais sobre um episódio
traumático infantil por parte do úl timo. Nesta estagnação o analista termina por impor
um sentido ao paciente, que cede, e o texto se encerra sem have r grande
desenvolvimento por parte do analisa ndo em sua reflexão pessoal.
Já nesta primeira leitura, é possível perceber que não se tratam apenas de três
leituras diversas do mesmo fe nômeno, mas de três sessões percebidas de modo
totalmente diferente pelo analista. A maneira como este percebe os acontecimentos da
sessão desenha ‘realidades’ diferentes, sessões diferentes, nas quais certos elementos
podem ou nã o aparecer. A emergência da vergonha no analisando é um exemplo:
dependendo da perspectiva adotada, será tratada como um eleme nto experimentado pelo
analista ou como algo efetivamente trazido pelo analisando em suas associações
relativas às pessoas da rua. No entanto, estas duas pe rspectivas não se anulam. Ambos
os elementos podem ser percebidos na se ssão analisada. O que pode se transformar, e de
fato se altera, é o olhar que cada leitura pode prover a e sta situação.
Enfim, trata-se de um caso imensamente rico no sentido de permitir l eituras
totalmente diversas sem oferecer uma contradição entre estas. São interpretações
possíveis de um caso publicado, em que os elementos conflitantes não se excluem. Cabe
perceber novos aspectos em cada interpretaçã o, e sublinhar as difere nças de detalhes
que ganham diferente importância de acordo com o autor que se toma como referê ncia.
O segundo caso oferece uma riqueza semelhante, embora muito mais fechada. A
identificação dos elementos contratransferenciais se faz mais difícil, uma vez se tratar
de um texto que nem oferece propriamente o contexto de uma sessã o analítica. O autor
mantém uma postura narrativa, sem mencionar diretamente seus afetos durante a escrita.
No entanto, no texto em si transbordam elementos contratransferenciais, na medida em
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
177
jovem por sua morte trágica. Trata-se de um texto duro, que cerca uma única hipótese: a
origem do mal estar da moça teria sido originado ao testemunhar as relações sexuais
entre o pai e a mãe. Assim, suas crises seriam provocadas por um contato nocivo com a
família, e o pai a levaria de médico em médico busc ando silenciá-la, a fim de esconder
sua própria sexualidade.
Um traço marcante no texto é a tentativa do analista de se eximir de uma culpa
que não diz atribuída a si. Há uma persistência no text o em reforçar a hipótese edípica,
mesmo sem ouvir a moça em sessã o. E esta hipótese sustenta toda a leitura do ca so,
inclusive oferecendo alguma continui dade ao texto, na medida em que os eventos se
encadeiam para produzir a cena na qual o pai, movido por um desejo inconsciente,
provoca a morte da própria filha.
A partir de uma leitura freudia na é possível perceber um estreitamento da escuta
do analista em relação ao discurso do analisando, que definimos como o pai de Marie.
Há um eclipse de qualquer alternativa de escuta além da que é oferecida pelo pai.
Inclusive, todos os demais eleme ntos possíveis da fala não são analisados –
possivelmente excluídos do texto. O autor agrupa todos os elementos posteriores da
fala nesta chave de interpretação da qual o pai partilha e, no texto, se torna o principal
responsável.
Outro elemento marcante é que este pai seduz o analista através de sua busca de
saber. Embora diga que não ace ita o tratamento da filha, o autor se deixa conduzir pela
fala do pai e a aceita como legítima na interpretação do caso. Inclusive, o texto indica
uma c ontinuidade nesta busc a – o autor persiste em descobrir ma is sobre o caso mesmo
após sua separação com o pai. Trata-se da situação descrita por Freud como um efeito
contratransferencial possível, um engessame nto da escuta incitado por afetos sedutores.
O pai oferece toda a história, monta uma cena na qual o prof issional é o último recurso a
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
178
ser recorrido na sa lvação da jovem. E mesmo sem ser aceito formalmente, conduz o
analista a esta ambigüidade de ouvir o ca so, ma s não participar deste. É um desejo que
se insinua a cada momento, este desejo de saber orientado a desvendar algo sobre o
sofrimento de Ma rie.
Esta leitura também seria possíve l sob uma perspectiva lacania na, mas os
elementos sublinhados desta vez fora m mais orientados para o fechamento absoluto do
sentido conduzindo à paralisia do discurso do analisando, mesmo sendo o pai da moça.
Este senhor proc ura um psicanalista por um desejo de falar, ele transmite a história do
mal estar de sua filha e sugere uma participação sua em seu sofrimento. Ele a leva a
diversos médicos, fa la por sua filha com a queles que a tratam. E sua f ala se interrompe
quando o a nalista tenta convencê-lo, no momento exato no qual o profissional se impõe
à sua fala para fazê-lo entender que não de ve abandonar o terape uta que a trata há dez
anos. Embora o texto avance para a morte da j ovem, não há mais elemento algum da
fala do pa i. Há apenas a confirmação do autor sobre a precisão de seu saber, sobre como
sua tentativa de fazer o pai entender poderia ter prevenido a morte da moça na mão de
médicos ruins – descritos como não psiquiatras, em uma oposição clara aos médicos
anteriores, que tentam curá-la.
Quando passamos a uma leitura basea da no trabalho de Heimann, elementos
intere ssantes se fazem ver no texto. De sde as primeiras impre ssões do autor, parece
haver uma percepção de sua parte que aquele caso iria muito mal, e se estabelece uma
ambigüidade no texto em relação à fala do pai. É impossível ao leitor distinguir entre
uma antecipação por parte do autor – nesta medida, com alguma influência inconsciente
– da relação entre a vida sexual do pai da moça, suas crises e uma construção deliberada
do texto neste sentido. As duas possibilidades se misturam através do fec hame nto do
texto sobre esta hipótese, mas é viável afirmar que há uma percepçã o fina do analista
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
179
sobre o que se passa no caso além das palavras ditas. O autor procura detalhes como
quem sabe o que irá encontrar, e isto nos leva a pensar em alguma comunicação
inconsciente.
É claro que esta leitura necessita do apoio de uma visão teórica como a de
Heimann para fornecer a consist ência necessária para nã o falarmos em uma construção
do caso baseada em uma interpretação engessada e quase anterior à própria escuta do
analista. No entanto, o fator do tempo deste caso também levanta reflexões: caso o autor
se arriscasse pela via da interpretaçã o antecipatória, defendida por Heimann, poderia ter
sido mais eficaz em se u ‘convencimento’ do pai de Marie. E, para ir mais longe, ca so o
analista tivesse feito uso da culpa que transmite em seu texto, poderia ter sido ta mbém
mais abrangente em sua leit ura do caso. O uso dos afetos, nesta situaç ão, mostra-se um
instrumento que não favorece apenas o analisando que se percebe mais compre endido,
mas também a o a nalista, que lanç a mão de novos recursos na compreensão da cena
disposta em sessão.
Enfim, são leituras diferentes que produzem sessões diferentes, mas que não
passam de um e xercício para jogar com o conceito múltiplo da cont ratransferência em
suas diversas aplicações. Se houve algum consenso ou divergência, devemos atribuí-la à
nossa leitura, e não a qualquer falha ou crítica dirigida aos a utores. A função principal
deste traba lho parece ter sido cum prida, na medida em que foram possíveis análises
totalmente diversas dos casos estudados sem fugir às propostas dos três autores
utilizados.
Resta sa ber apenas se frente a tal multiplicidade seria poss ível falar em um único
conceito de contra transferê ncia, ou se falamos afinal de uma escolha do analista que
repercute não apenas na percepção que fa rá da sessão, mas também nos efeitos que
promove no paciente.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
180
D
ISSOL UÇÃ O D O CONC EI T O DE CO N TRAT R ANSF ERÊ NCI A
Um aspecto importante a ser marcado é que em todas as leituras, o conceito de
contratransferênc ia tende a se dissolver. É necessário explicá-lo com mais detalhes.
Para Freud, o termo contratransferência surge na forma de adjetivo -
‘contrat ransferenc ial’. Em momento algum o autor define um conceito de
contratransferência. O motivo parece claro: trata-se, em seu texto, de uma decorrência
quase natural da situação de transferência. Os afetos dirigidos ao médico prom ovem,
como que inevitave lmente, uma re ação por parte do analista, que deve reagir com a
neutralidade que as proposições ‘morai s’ lhe impõem. Esta colocação aparece quando o
autor discute a legitimidade de um c omportamento conivente com a sedução do
analisando. (F
REUD
, 19 15 / 1980) Não há uma definição específica, a qual pa rece
desnecessária. O conceito em si está bastante bem delimitado como uma advertência
inserida no corpo da tra nsferência, considerando-se suas decorrências no analista.
Em uma série de textos dedicados a o manejo da transferência, Freud discorre
sobre uma postura adequada do médico frente os afetos dirigidos a si, nomeados
transferenciais. Os desdobramentos contratransferenciais estariam imiscuídos neste
conjunto de recomendações de conduta. Contudo, ao se desenhar este adjetivo
‘contratransferencial’, se exclui uma dimensão que seria própria de um conceito, a de
definição de algo novo a ser explorado ou desenvolvido. Há alguns fenômenos
contratransferenc iais já previstos e mapeados na própria definição de transferênc ia.
Trata-se, aqui, de uma suposição nossa frente um silêncio do autor na menç ão posterior
ao tema, mas que pa rece plausível diante da análise dos textos e dos casos clínicos.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
181
Na perspectiva de Heimann, o termo ganha uma consistênc ia maior na medida
em que a contra transferência é considerada instrumento fundamental para a
compreensão do paciente. No entanto, a explanação do conceito pa rece funcionar como
ponte para a de scrição do mecanismo de comunicação entre inconscientes que tem lugar
entre analista e analisando. O conceito não ganha grande desenvolvime nto – pede uma
definição clara no início, mas deixa de ser um tema de estudo qua ndo se prioriza a
comunicação em si. Estabelecido o horizonte da comunicação entre i nconscientes, o
binômio transferê ncia – contratransferência pe rde sua força, servindo de apoio para
sustentar este meio de compreensão entra analista e a nalisando.
Em Lacan, este movimento de evanescência do conceito de contratransfe rência é
ainda mais claro. No ensino deste autor o conceito apare ce e se dissolve em outros
desdobramentos. É essencial discutir o tema para responder à produção da época sobre
este assunto, mas não há grande desenvolvimento do mesmo. Lacan retoma a posiçã o
freudiana, sublinhando os aspectos de inevitabilidade do fenômeno no analista, e
prioriza a ref lexão sobre a conduta do profissional quando da emergência destes afetos.
O analista deve escolher, deve estabelecer sua posição a partir de sua análise,
sustentando o desejo de prosseguir no tratamento de seu paciente. Mais uma vez retorna
o adjetivo ‘contratransferencial’ em lugar do conceito de contratransferência, para
marcar a necessidade de manter a fala do analisando viva, fluida, ininte rrupta.
Posteriormente em seu ensino surgem conceitos como o Real, o Desejo do Analista e o
Objeto a, todos voltados a dar conta deste ‘vazio esse ncial’ que o profissional criaria
para deixar espaço para a fala do analisa ndo.
Em suma, ao longo da obra destes três autores, a c ontratransferência dá lugar a
outros acontecimentos da cena analítica. É um tema importante, até histórico – marca
uma discussão que define diferentes condutas por parte do analista em sua sessão. É um
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
182
debate que estabelece parâmetros de posicionamento do analista em sua maneira de
escutar e acolher diferentes fenômenos na sessão.
Ao mesmo tempo, é um conceito que não exige maiores formulações. Uma vez
descrito o que se entende com o contratransferência, abre -se caminho para o
estabelecimento de outras reflexões, mais voltadas para o encaminhamento do
tratamento ou para os limites da atuação do profissional. Contratransferência como
ponto cego do médico, gerando engessamento de um sentido. Contratransferência como
veículo de com preensão inconsciente. Contratrans f er ência como interrupção da dialética
analítica, promovendo estagnação na associação livre. Três interpretações diferentes,
com alguns pontos em comum e muita s discordâncias entre si, mas que não ganham
grande desenvolvimento dos a utores para além disto. Há uma simplicidade densa sobre
o tema, que permanece como um princípio orientador da conduta do analista e da
interpretação dos afetos experimentados por ele durante a sessão. Não parece haver
avanço algum por parte destes autores para ramificações do conceito em questão. Após
a discussão do fenômeno, há o desenvolvimento de novos conce itos relativos à atuação
e interpretação do analista em sessão, em que não surge a idéia da contratransferência.
C
ONTRATRANSFERÊNCIA COMO EXCESSO
?
No estudo da contratransferência, é possível perceber uma c onstante. O analista
deve estar constantemente atento ao fenômeno, observando seus limites, ainda que
considere seu aspecto inconsciente. Tudo que o analista traz sobre si, sobre seu mal
estar ou opini ões pessoais deve ser ma ntido fora do alcance do analisando. Há uma
dimensão de difícil definiçã o aqui, relativa ao que pode ser trazido pelo analista em
sessão e efetivamente poderia ser falado em sessão, e a algo a ser suprimido, enviado
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
183
para a análise pessoal do profissional. É polêmico pensar na rea l possibilidade de
‘suspensão’ dos afetos experimentados: como um ana lista poderia de fato el iminar estes
elementos em uma sessão? Não seria inevitável algum transbordar dos afetos na
dialética viva da sessão? Se e stes sentimentos assolam o prof issional, em que medida
e st e nã o é s us cetí ve l de m a n if está -l os de al gum a fo rma?
Nos casos clínicos estudados este transbordar é visível. No primeiro caso, é mais
evidente, pois o autor tenciona explorar a o máximo esta possibilida de. É neste aspecto
que o c ontraste entre os dois autores se faz mais fértil, pois o segundo autor tenta
represar os afetos percebidos, mas produz e nfim um texto emocionado, vivo, no qual
todo o seu desejo e o impacto causado pela tragédia da jovem emergem a cada
momento. O te xto se propõe a uma escrita técnica, dista nte, respeitando o c aráter
externo a uma sessão. Contudo, os afe tos contra transferenciais transbordam, e a escrita
se torna apaixonada, agressiva em relação as médicos que provocam a morte da jovem.
É este o ponto a ser sustenta do: há um excesso na conduta do analista quando ele
experimenta os afetos contratransferenciais. Chamamos de excesso estes aspectos
inevitáveis da relação analítica que emergem durante a se ssão. Freud a lmejava
estabelecer uma distância entre o analisando e estes afetos, mas isto parece impossível.
Mesmo que se tente excluir estes sentimentos, algum elemento surge nos textos
comentados, i ndicando a impossibilidade de se erradicar este excesso durante a sessão
analítica. Algo emerge, e é imprescindível c ontê-lo nos limites deste ‘encaminhar à
própria análise’. Resta sa ber como posiciona r as considerações sobre o ma nejo da
contratransferência frente a esta constatação: se o analista é atravessado por estes afetos,
como falar em c ontrole ou contenção? Se o analista experimenta sentimentos durante a
se s sã o, é viá vel r eco m e nda r o enca m in ha m en to de s te s à sua aná lis e pe s s oal?
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
184
Quando falamos em excesso, nos referimos também à insistência c om que nossa
leitura revelou elementos contratransferenciais nos textos estudados. Embora tenha
havido em todo momento uma t entativa de sublinhar estes aspectos e a escolha dos
casos tenha sido especialmente orientada para este fim, a contratransferência se fez
visível nos textos nas diversas faces e interpretações possíveis. É possível supor que
estes elementos emergem ine vitavelmente, desde que iluminados por uma análise
contratransferencial. Neste ponto encontra-se a definição do excesso, para marcar algo
que ultra passa a s barreiras do autocontrole do profissional. Os afetos se infiltram nos
textos, assim como ocorre nas sessões. Desta forma, a perspectiva freudiana de suprimir
os afetos e enca minhá-los à análise do profissional se mostra a rriscada. Os três autores,
em difere ntes medidas, defende m a busca de uma efetiva neutralidade analítica, mas
este princípio perm anece c omo uma ‘re comendaçã o’, para resgatarmos o título do texto
freudiano. Mesmo para Heimann, o analista de ve manter resguarda do o a feto que diz
respeito a si, voltando-se apenas para os temas que possam levá-lo a interpretar de
maneira mais eficaz o conteúdo trazido pelo analisando.
Talvez o termo excesso seja muito forte, mas foi utiliza do para sublinhar a
existência de elementos incontroláveis, influenciando o analista durante a sessão e
agrupados sob o nome de contratransferê ncia, decorrentes de afetos a ele dirigidos.
Estes elementos são diferentemente interpretados por cada autor estudado, ma s todos
guardam algo de perigoso, na possibilidade de um eclipse do discurso do analisando. O
analista, durante o atendimento, fica em tensão constante, pois ao mesmo tempo em que
sabe ser necessário conter questões pessoais, tem consciência de que isto é, no limite,
impossível. As recomendações freudianas garantem a sua atualidade: ao e ntrar na cena
analítica, o profissional deve ser alertado de sua vulnerabilidade frente os afetos que
experimenta.
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
185
P
OSIÇÃ O F RENTE ÀS TR ÊS A B ORD AG ENS ES T UDA DA S
Neste ponto do trabalho, é necessária uma tomada de posição frente às três
leituras estudadas. As considerações de Sigmund Freud, Paula Heimann e Jacques
Lacan não exigem confirmaçã o alguma de sua qualidade e de nsidade – são leituras
amplamente consistentes e coerentes em relação ao ensino transmitido por cada autor.
Apesar dos poucos textos a re speito do tema, o trabalho de cada um constit ui-se como
uma leitura específica, com diferentes interpretações dos fenôme nos
contratransferenc iais. Estas trê s visões estabelecem parâme tros divergentes,
inconciliáveis na medida em que, ao assumir uma delas, o analista estabelece um olhar
característico que delimita a sua percepçã o em relação aos acontecimentos de uma
sessão.
Quando elaborava o conceito de c ontratransferência, Freud caminhava em
compasso com suas descobertas da época. Ele estabelecia bases para a definição de uma
nova prática médica, uma nova via de tratamento. As recomendações freudianas são,
assim, princípios segundo os quais um médico deve se orientar para escapar a um
elemento que ta nto ocupou este autor: a sedução inerente ao envolvimento entre um
profissional e seus pacientes, em especial mulheres. Desta forma, não é raro na literatura
biográfica desta época encontrarmos situações nas quais os médicos se apaixonavam
por suas analisandas, levando os tratamentos (e algumas relações afetivas!) a um termo
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
186
intensamente que a continuidade do atendimento fosse garantida através da manutenção
da neutralidade analít ica.
Aqui, não se trata apenas da coerência de um autor que coloca seu interesse na
psicanálise acima de seus desejos pessoais de reconhecimento ou afeto, m as de uma
constatação da fragilidade da posição do ana lista. A recomendação de resguardo do
analista frente a seus desejos e reflees pessoais é algo comum aos autores estudados,
e a originalidade freudiana permanece atual.
Heimann, por sua vez, abre uma trilha através do trabalho freudiano. Tomando
como ponto de partida alguns tre chos do trabalho do autor sobre a comunicação entre
inconscientes, esta autora estabelece uma via coerente para a integração dos afetos
contratransferenciais ao ambiente da sessão. Heimann recupera a idéia da
inevitabilidade da emergênc ia de elementos contratransferenciais e os direciona de
modo eficaz pa ra a cena analítica. O analista reconhece os afetos emergentes e os utiliza
em prol da compreensão do inconsciente do analisando.
Há também uma série de elementos que ganham novo valor nesta perspectiva. A
fala do analisando dá espaço, com a valorização da comunicação entre inconscientes, a
esta nova maneira de interação entre os participantes da cena. Outro elemento que se
transforma é o tempo, pois ao fazer uso desta percepção, o analista antecipa elementos
do inc onsciente do analisando. Dito de outra forma: por e sta via, o analista recolhe
afetos do analisando e o faz sem seu consentimento direto.
Trata-se de uma abe rtura consistente, mas que deixa em se gundo plano o
princípio freudiano de priorizar a fala e o ritmo de cada paciente. O analista poderia
respeitar este tempo da compreensão do a nalisando para evitar os efeitos resultantes das
próprias interpretações em si – por vezes tra umáticas - e se ater ao discurso do mesmo,
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
187
evitando acre scentar outros elementos. Para Freud, é importante que o paciente seja o
autor de seu insight, percebendo c omo seu o conteúdo desvelado do inconsciente.
Lacan de certa maneira concilia as posições de Freud e Heimann ao formular
considerações que se comunicam com ambas. Este autor manté m os princípios
estabelecidos por Freud, mas não ignora a i nevitabilidade da emergência de afetos
contratransferenciais. O essencial de acordo com seu ensino, é animar a fala do
analisando, mantendo-se o que considera fundamental: a dinâmica da experiência
analítica. Desde os primeiros textos em que trabalha o tema até seu oitavo Seminário,
em que se dedica mais amplamente ao assunto, Lacan analisa a relação entre
transferência e c ontratransferência visando atenuar o efeito negativo promovido por
emergências contratra nsfe renciais. Aliás, este autor sublinha o caráter ameaçador dos
afetos do analista durante o atendimento. Em seus escritos, a ce na montada é a de um
profissional alerta ao risco do envolvimento.
Seu primeiro trabalho relacionado ao tema é uma análise do Caso Dora, mais
especificamente da interrupção prec oce do tratamento devida a um estreitamento do
sentido. Chamamos estreitamento uma situação na qual o analista fixa sua interpretação
e exclui as demais, sobrepondo-a às outras possíveis. O mesmo ocorre no segundo caso
estudado, no qual o profi ssional interpreta todo o conteúdo t razido pelo pa i da moça a
partir de uma única hipótese.
Desta forma, nã o se trata de utilizar os sentimentos para interpretar um
analisando; o efe ito disto é o estreitamento comentado durante a leitura de Lacan e
encontrado no primeiro c aso. Neste, quando o analista interpreta segundo suas
percepções, o analisando deixa de falar sobre suas inseguranças em relação ao
tratamento, sobre o aperto de sua família, e termina por se ‘encaixar’ na cena montada
pelo analista. Mais uma vez, não se trata de criticar este texto; as bases sobre a qual
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
188
estas intervenções são estruturadas são coerentes com a produção deste autor. No
entanto, se adotamos a postura freudiana recuperada por Lacan, percebemos a
ocorrência de um engessamento do sentido possível. Segundo a leitura lacaniana, há
algo que se repete em ambos os casos: no momento da emergência dos afetos
contratransferenciais, o analista experimenta algo que pode levá-lo a optar por um
determinado sentido em detrimento de outros. De certa form a, é ine vitável que ele o
faça, mas se isso se tornar a linha condutora do tratamento pode haver uma
sobreposição desta interpretação às outras possíveis, levando à estagnação do discurso
do analisando.
O eclipse das possibilidades do discurso é um risco que percorre cada
tratamento, mas esta pesquisa aponta para uma rel ação forte entre esta estagnação e a
emergência de afetos contratransferenciais. Por isso, as recomendações lacanianas são
fundamentais: mesmo que o analista esteja consciente de que é impossível não ser
e nvol vid o pe lo s a fe to s que p erme ia m a se ssã o, de ve ha ver a l gum e sf o rço d e s ua par te
em manter o discurso do analisando em sua multiplicidade. A atuação do analista e a
relação entre seus afetos representam uma possibilida de de ameaça à continuida de do
tratamento, ao mesmo tempo em que a recomendação de i solar completa mente estes
elementos não é alternativa viável. A neutralidade analítica funcionaria como um norte
para o psicanalista, e sua atuação deveria levar em conta a fragilidade de sua posição. A
contratransferência guarda uma similaridade com a tra nsferência, em seu aspecto
potencial de reduçã o da amplitude da fala do analisando.
Para concl uir, nosso trabalho parece ter gerado uma análise, na m edida em que
mostrou haver, de fato, re lação entre as formas de manejo da contratransferência e o
risc o de interrupção do tratamento analítico. O comentário dos textos tratados resgatou a
A Contratransferência a Partir de Freud – Francisco Rodrigues Al ves de Moura
189
posição de Freud sobre o fenômeno da contratransferência e sua recomendação de
neutralidade analítica, assim como as formulações lacanianas sobre o te ma. As idé ias de
Heimann são válidas, m as priorizam elementos que não a fala do analisando e o tempo
necessário à sua apreensão de certas interpretações. As considerações aqui apresentadas
foram bre ves, insuficientes para perm itir uma conclusão sobre o te ma. No entanto,
apontam para uma diferença fundamental entre os autores que estabelece uma f ronteira
entre diferentes possibilidades de se analisar no que diz respeito ao pe so e à importâ ncia
dados à fala do paciente durante a sessão.
Francisco Rodrigues Alves de Moura
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