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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MARIA CÉLIA ROSSETTO
A CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA NA SALA DE
AULA: na perspectiva do professor
Porto Alegre
2005
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Maria Célia Rossetto
A CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA NA SALA DE
AULA: na perspectiva do professor
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Educação da Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como
requisito parcial para obtenção de título de Mestre em
Educação.
Orientadora: Prof. Dra. Maria Luiza R. Becker
Porto Alegre
2005
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3
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
__________________________________________________________________
R829c Rossetto, Maria Célia
A construção da autonomia na sala de aula : na perspectiva do
professor / Maria Célia Rossetto. Porto Alegre : UFRGS, 2006.
f.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em
Educação, 2006, Porto Alegre, BR-RS. Orientadora: Maria Luiza
Rheingantz Becker.
1. Ação docente – Autonomia – Sala de aula –. 2. Epistemologia
genética – Desenvolvimento moral. 3. Piaget, Jean. I. Becker, Maria
Luiza Rheingantz, orient. II. Título.
CDU : 17.024.3
____________________________________________________________
Bibliotecária Neliana Schirmer Antunes Menezes - CRB 10/939
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E agradecer se tornou difícil…
São tantas as pessoas que durante essa trajetória de curso se fizeram
atenciosas, solícitas, prestativas, colaborativas, "leitoras privilegiadas", amigas e
companheiras.
Mesmo parecendo senso comum, quero fazer um sincero e carinhoso
agradecimento à família, que de forma muito especial me "poupou" enquanto eu
tinha esse trabalho para fazer e "que nunca terminava", segundo minha filha.
Vianei, André, Vítor, Letícia, os primeiros e os mais privados da minha
presença no dia-a-dia.
Dino e Carmem, meus pais, a quem palavras pouco expressariam o
reconhecimento merecido.
Marcelo, Stela Maris, Maria Cláudia, Maria Lúcia, meus irmãos, um incentivo
constante.
Nara, Patrícia, Silvana e Stela, entre tantos novos acontecimentos e
descobertas durante o curso, quatro pérolas, quatro preciosidades encontradas.
Aos alunos, professores e equipe diretiva das escolas por onde transitei, que
de forma acolhedora e sem restrições me possibilitaram construir esse trabalho.
Aos professores desse Programa de Pós-Graduação, que me acolheram em
suas aulas, me ouviram, me interpelaram e me fizeram aprender.
E por fim, de forma muito especial, a "minha" orientadora Prof. Dra. Maria
Luiza Becker, que me perguntava e desacomodava quando repetidamente dizia: "O
que você quer dizer com isso?" Uma aprendizagem inesquecível do ser um
professor construtivista, uma experiência ímpar que se transformou em amizade,
que é como a tenho, de forma muito carinhosa.
A todos meu sincero agradecimento.
6
RESUMO
A CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA EM SALA DE AULA
na perspectiva do professor
Esta dissertação está ancorada na Epistemologia Genética de Jean Piaget,
no conteúdo do desenvolvimento moral, revelando a difusão desta teoria e conteúdo
moral na prática escolar. Discute sobre a existência de um espaço para a
construção da autonomia cognitiva e sócio-moral em duas turmas de alunos
finalistas do Ensino Fundamental. O foco do trabalho é a busca da confirmação do
discurso do Projeto Político Pedagógico da Escola no desenvolvimento da
autonomia, cidadania e responsabilidade crítica do aluno e na sua relação com a
prática em sala da aula, mediada pela ação docente. Enfatiza o conceito de
autonomia que o professor traz e trabalha, e os espaços que julga disponibilizar para
tal desenvolvimento em aula. Faz uma busca na História da Educação sobre a
gênese da preocupação de atender ao objetivo de desenvolvimento da autonomia
dos alunos.
A metodologia inclui a revisão dos Projetos Políticos Pedagógicos das
escolas, a realização de entrevistas com professores ativos e aposentados e de
observação das turmas. As entrevistas com os dois grupos de professores são
colocadas em paralelo, tal recurso busca observar uma preocupação persistente
com tal objetivo escolar. As escolas selecionadas são as que contribuíram no
panorama estadual de ensino como sendo referências de estudo dos docentes e
consideração à Epistemologia Genética.
Como resultado final tem-se que o comprometimento do professor com a
autonomia, mesmo sendo um objetivo a ser alcançado na formação do aluno é
variável. Quando o professor disponibiliza espaços para a autonomia do aluno nem
sempre reconhece a ação pedagógica despendida como facilitadora de tal objetivo.
O conceito de autonomia do professor e a forma como vê tal conduta dos alunos é
variável, oscilando entre a individuação da ação e o compromisso com a cooperação
7
e interação social. As escolas revelam uma perda de espaço para a discussão e
construção de uma autonomia docente que repercute na construção da autonomia
dos alunos. Os objetivos de autonomia previstos no Projeto Político Pedagógico
não são considerados pelo professor, esse projeto da escola não parece servir como
referência para o desenvolvimento de atividades que aprimorem da conduta moral
de autonomia nos alunos.
Palavras-chave: Ação docente e autonomia; Autonomia; Construção da
autonomia; Desenvolvimento moral; Epistemologia Genética.
8
ABSTRACT
THE CONSTRUCTION OF AUTONOMY IN THE CLASSROOM
from the teacher’s perspective
This dissertation is anchored on the Genetic Epistemology by Jean Piaget,
on the content of the moral development, showing the diffusion of this theory and the
moral content in the school practice. It discusses the existence of space for the
construction of the cognitive and socio-moral autonomy in two classes of students
finishing Primary School. The study focus is in the search for the confirmation of the
Political Pedagogical Project speech of the school in the autonomy development,
citizenship and critical responsability of the student and in his/her relation to the
classroom practice, mediated by the teaching action. It emphazises the concept of
autonomy that the teacher brings and works, as well as the spaces he/she believes
to make available for such development in class. It makes a search into the History of
Education concerning the genesis of the worry about achieving the aim of developing
the students’ autonomy.
The methodology includes the review of the schools’ Political Pedagogical
Projects, the use of interviews with active and retired teachers and class observation.
The interviews with both groups of teachers are put in parallel, and such resource
aims to observe a persistent worry about this school aim. The selected schools are
those which contributed to the state schools panorama as reference in teaching
studies and in considering the Genetic Epistemology.
As a final result it was found that the teacher’s commitment towards the
autonomy, even being an aim to be reached in the students’ education, is variable.
When the teacher makes available space for the student’s autonomy he/she does not
always recognize the pedagogical action carried out as a facilitator for such aim. The
concept of teacher’s autonomy and the way he/she sees such students’ behavior is
variable, oscillating between the individualization of the action and the commitment
with the co-operation and social interaction. The schools show a loss of space for the
discussion and the construction of a teaching autonomy, which have repercussion in
9
the construction of the students’ autonomy. The aims of autonomy predicted in the
Political Pedagogical Project are not considered by the teacher, this school project
does not seem to be a reference for the development of activities which improve the
moral behavior of autonomy in students.
KEY WORDS: Autonomy; Construction of autonomy; Genetic Epistemology;
Moral development; Teaching action and autonomy.
10
S U M Á R I O
RESUMO........................................................................................................6
ABSTRACT....................................................................................................8
INTRODUÇÃO .............................................................................................17
1 CONTEXTUALIZAÇÃO ...........................................................................20
2 O ESTUDO TEÓRICO.........................................................................28
2.1 A AUTONOMIA NO MOVIMENTO DA ESCOLA NOVA .......................28
2.1.1 O autogoverno na Escola Nova .......................................................41
2.1.2 A Escola Nova no cenário nacional .................................................47
2.2 O DESENVOLVIMENTO DA AUTONOMIA EM JEAN PIAGET............62
2.2.1 A dualidade da heteronomia com a autonomia ...............................77
2.3 AUTONOMIA NA ESCOLA....................................................................94
3 METODOLOGIA.....................................................................................110
3.1 OS SUJEITOS......................................................................................111
3.2 OS PROCEDIMENTOS DE INVESTIGAÇÃO UTILIZADOS ...............112
3.3 CATEGORIAS DE ANÁLISE...............................................................115
3.3.1 Autonomia .....................................................................................120
3.3.2 Cooperação ...................................................................................123
3.3.3 Coação ..........................................................................................125
3.3.4 Ação Pedagógica ..........................................................................126
3.3.5 Aprendizagem ...............................................................................127
3.4 A ORGANIZAÇÃO DOS DADOS ........................................................130
4 OS ESTUDOS DE CASO........................................................................133
11
4.1 ESCOLA A...........................................................................................133
4.2 ESCOLA B...........................................................................................200
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................258
5.1Conclusões finais ..............................................................................267
6 BIBLIOGRAFIA.......................................................................................271
12
LISTA DE TABELAS
Tabela 3.2.1: Síntese numérica das entrevistas..........................................101
Tabela 3.2.2: Síntese numérica das observações.......................................103
13
LISTA DE FIGURAS
Figura 3.3.1..................................................................................................106
Figura 3.3.2..................................................................................................107
14
LISTA DE QUADROS
Quadro 4.1.1: Títulos de PPP da Escola A .............................................................121
Quadro 4.1.2: Concepção de Conhecimento da Escola A ......................................122
Quadro 4.1.3: Concepção de Educação na Escola A .............................................123
Quadro 4.1.4: Finalidades e Objetivos da Escola A ................................................124
Quadro 4.1.5: Proposta Pedagógica da Escola A ...................................................126
Quadro 4.1.6: Entrevista com orientador educacional da Escola A ........................128
Quadro 4.1.7: Organização de um boa aula ...........................................................132
Quadro 4.1.8: Parecer dos professores sobre os alunos ........................................133
Quadro 4.1.9: Recursos para aprendizagem dos alunos ........................................135
Quadro 4.1.10: Resultados não previstos na escolarização ...................................136
Quadro 4.1.11: As reuniões e os grupos de estudos ..............................................137
Quadro 4.1.12: A concepção de autonomia ............................................................139
Quadro 4.1.13: Ações escolares que priorizam a autonomia dos alunos ...............142
Quadro 4.1.14: Organização pedagógica na Escola A nas décadas de
1960-70....................................................................................................................144
Quadro 4.1.15: A concepção de autonomia dos professores aposentados
.................................................................................................................................146
Quadro 4.1.16: Situação de conflito ........................................................................151
Quadro 4.1.17: Explicação do professor sobre tema de casa .................................152
Quadro 4.1.18: Outras situações de conflito ...........................................................154
Quadro 4.1.19: Situação de delação entre colegas ................................................156
Quadro 4.1.20: A ausência de conteúdo e a presença da cooperação ..................159
Quadro 4.1.21: A possibilidade de cooperação entre os alunos .............................161
Quadro 4.1.22: Os grupos .......................................................................................162
Quadro 4.1.23: As relações de respeito entre professor e aluno ............................164
15
Quadro 4.1.24: O diálogo ........................................................................................166
Quadro 4.1.25: Uma autonomia que surge .............................................................167
Quadro 4.1.26: A presença do professor................................................................ 170
Quadro 4.2.1: Títulos do PPP da Escola B .............................................................174
Quadro 4.2.2: Fundamentação Filosófica da Escola B ...........................................175
Quadro 4.2.3: Fundamentos Pedagógicos da Escola B ..........................................176
Quadro 4.2.4: Objetivo Geral da Escola B ..............................................................177
Quadro 4.2.5: Entrevista com o supervisor pedagógico da Escola B .....................178
Quadro 4.2.6: A organização de uma boa aula .......................................................181
Quadro 4.2.7: Parecer dos professores sobre os alunos.........................................182
Quadro 4.2.8: Recursos para o aprendizado ..........................................................184
Quadro 4.2.9: As reuniões e os grupos de estudos.................................................185
Quadro 4.2.10: A concepção de autonomia nas entrevistas....................................186
Quadro 4.2.11: A percepção docente sobre a autonomia dos alunos ....................187
Quadro 4.2.12: A organização pedagógica na Escola B nas décadas
de 1960-70...............................................................................................................189
Quadro 4.2.13: A concepção de autonomia dos professores
aposentados.............................................................................................................192
Quadro 4.2.14: O conflito na relação professor-aluno .............................................195
Quadro 4.2.15: Situação de conflito e a lei externa .................................................197
Quadro 4.2.16: Situação de conflito que retoma à aula ..........................................198
Quadro 4.2.17: A explicação do professor...............................................................199
Quadro 4.2.18: A reunião com os alunos faltosos ...................................................200
Quadro 4.2.19: As regras não coercitivas ...............................................................201
Quadro 4.2.20: As delações ....................................................................................202
Quadro 4.2.21: A descentração ...............................................................................203
Quadro 4.2.22: Diferentes grupos de trabalho ........................................................205
16
Quadro 4.2.23: Relações que tendem para a cooperação ......................................208
Quadro 4.2.24: As aulas particulares ......................................................................210
Quadro 4.2.25: Aprender com o colega ..................................................................211
17
INTRODUÇÃO
Este trabalho de pesquisa é resultante de minha trajetória de professora,
sempre preocupada e inquieta com as relações que se estabelecem em sala de
aula, que ora auxiliam de maneira ímpar a ação pedagógica do professor, ora
impossibilitam a necessária troca entre sujeitos que aprendem uns com os outros, no
coletivo. Portanto, o pano de fundo deste trabalho é composto de relações entre
sujeitos que aprendem.
Não foi difícil localizar o tema da autonomia moral e cognitiva nos
documentos oficiais da escola. A autonomia é repetidamente citada como objetivo
na formação do educando, juntamente com a necessidade de que ele também seja
crítico, cooperativo e um cidadão responsável.
Da leitura de repetidos textos pedagógicos que enaltecem a formação
humana para uma sociedade de paz e onde as atitudes morais prevaleçam,
surgiram as questões: Como isso é feito em sala de aula? Como o professor
trabalha tal conteúdo com seus alunos? Como ele percebe o resultado do seu
trabalho de formação humana junto aos seus alunos? Da existência ou não de uma
distância entre um texto escrito que fala sobre a autonomia dos alunos e a sua
operacionalização na prática escolar, pala ação pedagógica; entre o dizer e fazer
com relação à construção da autonomia dos alunos; como o professor constrói, junto
ao aluno, ações no cotidiano que possibilitam uma prática autônoma e cooperativa
no grupo. Por essas questões fui conduzida na elaboração deste trabalho de
pesquisa, que nomeio por: A Construção da Autonomia na Sala de Aula: na
perspectiva do professor.
Acredito ser um tema de relevância à academia pelas múltiplas dimensões
que focaliza: de tomar o sujeito na sua formação cognitiva, social e moral; de
retomar as teorias do desenvolvimento moral e as confrontar com a prática escolar,
especialmente nesta virada de século, quando novos comportamentos, como da
individuação, são tomados pelo senso comum; e, ainda, por não existirem muitas
referências sobre como é feito o trabalho pedagógico abordando o conteúdo do
desenvolvimento moral na perspectiva piagetiana.
18
Para a escola é especialmente importante o tema da autonomia na medida
em que está registrada como um objetivo a ser desenvolvido junto aos alunos pelo
coletivo docente. Piaget (1930) dizia ser a autonomia um fim da educação. No
entanto, quais as oportunidades no interior da escola para tratar desse fim
estabelecido para a educação? De partilhar no grupo docente a temática da
autonomia e da cooperação para a aprendizagem escolar, uma vez que é constante
a intenção da escola contribuir com a formação de alunos cidadãos.
O objetivo deste trabalho é conciliar a necessidade de se dar mais atenção
às relações dentro da escola, além de observar como a autonomia é trabalhada pelo
professor. Retomei, então, os estudos da Epistemologia Genética sob a afetiva e
competente guarda da Prof. Dra. Maria Luiza Becker, na linha de pesquisa:
Psicopedagogia, Sistemas de Ensino/ Aprendizagem e Educação em Saúde. Pude
vislumbrar a discussão da autonomia no contexto escolar como mais uma prática de
difusão da teoria piagetiana, contemplando, de forma especial, o estudo da moral e
das relações interpessoais, que tão freqüentemente é dado como uma lacuna no
trabalho de Piaget. Este trabalho quer contestar tal posição, além de anunciar que
nesse referencial teórico há indicativos pedagógicos extremamente
contemporâneos.
O trabalho que ora se apresenta traz o tema da autonomia na perspectiva do
professor e está organizado de forma a apresentar uma contextualização do tema
que, brevemente, diz sobre o surgimento deste trabalho, dos seus motivos e
enlaces, que marcaram a fundação de seus pressupostos. O titulo que segue,
revisão teórica, dá prosseguimento à contextualização da temática da autonomia,
uma vez que resgata o movimento da Escola Nova para compreender a autonomia
dentro da instituição escolar, querendo estabelecer o marco que funda a
preocupação com a formação moral do educando - sem o pressuposto de uma
confecionalidade - sendo tratado como um assunto da ciência filosófica e da
educação. São sinalizados alguns marcos da história da educação no Brasil com
relação à implantação e repercussão dos princípios da Escola Nova no nosso
território, com o apontamento para algumas das alterações político-educacionais que
desse movimento decorrem. A teoria piagetiana, com relação ao desenvolvimento
moral é então apresentada, uma vez que é o referencial teórico que sustenta esta
pesquisa. Encerrando o capítulo, há uma parte destinada aos documentos
19
escolares, focalizando a abordagem do tema da autonomia nos mesmos; depois
disso, é apresentada a metodologia utilizada e os indicativos de análise utilizados
para a construção e análise dos dois estudos de caso que o trabalho apresenta, e,
por fim, as considerações finais do trabalho.
Este trabalho, que momentaneamente está "encerrado", suscitou muitas e
novas inquietações à autora. Contudo, o trabalho, talvez, já seja insuficiente perante
os novos desafios que agora se abrem, as novas reflexões possíveis após exaustivo
trabalho de construção teórica realizada nas aulas, nos encontros de orientação e no
grupo de colegas-amigos, quando travávamos enriquecedores embates teóricos.
O que posso apresentar agora é resultante de uma história composta de
muitas "pedras", mas que possibilitaram a construção de um arco e uma ponte que
me fez atravessar e avançar perante o que antes era um obstáculo, podendo, agora,
lançar-me a novas investidas no meu fazer de professora. As pedras citadas
costumam lembrar impedimentos, no entanto podem também servir para construir de
forma sólida o que quer que seja, deixando de ser obstáculos para serem uma
possibilidade. Com a idéia de construção de uma ponte que me possibilitou
atravessar de um lugar para outro, de um lugar de menor saber para um de maior
saber, encerro sem mais comentários esta introdução com as palavras de Italo
Calvino, que, pelo personagem Marco Pólo, um viajante genovês curioso e atento,
conversa com um chefe de um imenso império oriental Kublai Khan, descendente de
Gengis Khan. Na obra, os dois falam sobre o que cada um vê do mundo e das
cidades, em seus encantos e possibilidades…
Marco Polo descreve uma ponte, pedra sobre pedra.
- Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? Pergunta Kublai Khan.
- A ponte não é sustentada por essa ou aquela pedra – responde
Marco -, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:
- Por que falar das pedras? Só o arco interessa.
Polo responde:
- Sem pedras o arco não existe.
(CALVINO, 1990, p. 79).
20
1 CONTEXTUALIZAÇÃO
As indagações que direcionaram a construção desta pesquisa são amplas e
perpassam pelas questões da formação de professores, por isso a escolha da
perspectiva docente já no título da dissertação: A Construção da Autonomia na
Sala de Aula: na perspectiva do professor.
Do tema da formação de professores e do seu lugar de trabalho, a escola,
surge a questão referente a sua função social, da existência, na escola, de objetivos
que deveriam direcionar as ações escolares para a formação de alunos
comprometidos com a construção de relações solidárias tanto no ambiente escolar
como nas suas comunidades. Essa construção solidária, de cooperação, passa pela
necessidade de ser construído um rico ambiente de aprendizagem dentro da sala de
aula, no qual as diferenças sejam respeitadas, ao mesmo tempo em que sirvam de
alavancas desafiadoras para novas e diferentes dimensões do aprender, inclusive
para o desafio de aprender com um colega/aluno com necessidades educacionais
especiais; e, por último, o compromisso com o tempo histórico em que estamos
compulsoriamente inseridos, assumindo todos, professores e alunos, uma atitude
cidadã e responsável diante de uma coletividade que necessita de mais ações
cooperativas entre seus membros.
A atitude autônoma e cooperativa do sujeito, enfatizada neste trabalho, é a
que resulta do simultâneo desenvolvimento cognitivo e moral no sujeito. É correlata
ao momento em que o sujeito é capaz de fa
21
lógica das relações, não podem se desenvolver senão na e pela
cooperação. Que a cooperação seja um resultado ou uma causa da razão,
ou ambos ao mesmo tempo, a razão tem necessidade da cooperação, na
medida em que ser racional consiste em "se situar" para submeter o
individual ao universal. (PIAGET, 1994, p. 91)
Além dos aspectos presentes no último recorte, de a autonomia ser um
conteúdo da moral tanto quanto da razão, implicando cooperação, portanto relações
sociais de reciprocidade e respeito entre sujeitos mutuamente construídos, a
autonomia, na obra de Jean Piaget, ainda traz a perspectiva kantiana, que implica
na interiorização e subjetivação dos julgamentos e procedimentos das interações
entre sujeitos, na mesma medida em que reconhece como justa a igual ação para os
seus companheiros de grupo, que supera o individualismo egocêntrico, tanto quanto
a independentização das ações para o agir em co-operação. Essa é a dimensão do
conceito de autonomia a ser buscado neste trabalho.
A idéia matriz do livro O Juízo Moral na Criança (1932-1994) é que existem
dois tipos de relações sociais que determinam duas correspondentes morais: uma
em que a autoridade de um sujeito exerce uma coação sobre um outro e
corresponde à moral da heteronomia; outra em que predominam o respeito mútuo e
a cooperação, na qual a moral será autônoma. No primeiro caso, o bem a ser
praticado é determinado de forma externa por alguém que ocupa o lugar de respeito
em relação a quem atende à demanda; no segundo, o bem a ser praticado é
conseqüência das normas e motivos aceitos, de forma racional, por ambos os
sujeitos da interação e movidos por convicção pessoal.
A autonomia moral pertence à relação social de cooperação, na qual os
sujeitos que interagem e trocam pontos de vista só o fazem por considerarem
relevante a reciprocidade na relação entre as partes, em oposição à verticalidade da
situação heterônoma. Essa hegemonia da reciprocidade, da igualdade de
condições, é resultante da dimensão social na vida do jovem adolescente, que
passa a dispensar uma maior importância às situações nas quais trocas entre pares
estejam baseadas no mútuo sentimento de respeito e na veracidade dos
acontecimentos. É essencialmente o valor do respeito que dá legitimidade à
relação. A cooperação-autonomia ganha espaço na mesma proporção em que a
relação unilateral de subordinação de um sujeito a outro cede terreno.
22
Na contramão desses argumentos piagetianos, a autonomia na escola, não
raras vezes, foi e é abordada numa perspectiva libertária, o que acaba por resultar
na individuação dos sujeitos, cada um cuidando de si de forma egocêntrica,
individual, não contribuindo para o desenvolvimento da verdadeira autonomia moral.
Esse equivocado conceito de autonomia diz respeito a um desmedido e livre-fazer
do aluno, ou, então, à possibilidade de trabalharem sozinhos. São dois extremos de
um termo que não lhe asseguram uma totalidade, a que inclui no conceito de
autonomia as dimensões sócio-moral e cognitiva.
Em 1931 Piaget proferiu duas palestras, “Introdução Psicológica à Educação
Internacional” e “O Espírito de Solidariedade na Criança e a Colaboração
Internacional”, nas quais dizia da sua preocupação com relação à vida coletiva dos
indivíduos, o que diz respeito a todos aqueles que freqüentam uma mesma escola,
ou moram num mesmo bairro, cidade ou nação. Piaget falava a respeito da
formação do homem, de forma a ser contemplada tanto uma especificidade do
conhecimento a ser construído como a necessidade da consciência democrática, do
sentimento de solidariedade de cada um para com todos. Esse é um tema muito
atual, que não mais necessita da descrição de um cenário da realidade para ratificar
sua importância na vida de cada um de nós.
Os textos de Piaget recém-mencionados têm uma perspectiva otimista e
análoga à do movimento da Escola Nova, de a escola ser o espaço privilegiado para
a construção de uma cultura que priorize a paz e a cooperação, sustentada pelos
princípios da teoria construtivista. Tem-se, hoje, a epistemologia piagetiana como
"[…] uma teoria que nos permite interpretar o mundo em que vivemos, além de nos
situar como sujeitos neste mundo" (BECKER, 2001, p. 72). Para tanto se faz
necessário uma conscientização que seja também moral, nas palavras de Piaget:
[…] Nunca esteve tão claro quanto hoje [1931] que as flutuações materiais
das finanças ou da indústria dependem, em última instância, de fatores
morais. Nunca se viu a política, sob seu aspecto realista ou até jurídico,
manifestar de forma mais simples a miséria afetiva e intelectual do homem,
e nunca os ideais nacionais traduziram com mais inabilidade a falta de
universalidade de que ainda sofre a razão humana. (In PARRAT-DAYAN e
TRYPHON, 1998, p. 80).
Piaget sustenta que é preciso superar a ilusão egocêntrica no processo de
desenvolvimento e crescimento humano, para, assim, passar a pertencer,
efetivamente, a um mundo coordenado por relações recíprocas. Faz-se necessário
23
descentrarmo-nos de posicionamentos pessoais, quando em situação de interação,
afastando-nos do eucentrismo para nos colocarmos numa situação dialógica, como
dizia Paulo Freire na obra Pedagogia da Autonomia (1997). Transpor a barreira do
ponto de vista do imediato e do concreto que compõem a individuação, a ausência
das relações, para coordenar, relacionar ou construir a minimização das diferenças
junto com outros sujeitos, exige que disponhamos de um capital moral, lógico e
social construído também com a participação da escola. Mais uma vez Piaget
referiu:
[…] A verdade é que, numa personalidade viva, tudo está inter-relacionado,
e que o processo racional que liberta o indivíduo de seu eu, para convertê-lo
à vida do espírito, por intermédio da cooperação ativa e da coordenação
reflexiva, é um processo tanto intelectual quanto moral, e que dura, sem
nenhuma descontinuidade, do nascimento até a morte. É, portanto, em
cada domínio e em cada nível mental, ou seja, em todas as disciplinas e em
todas as idades, que o conflito renasce e que o indivíduo tem o poder de
isolar-se em seu eu (seu "eu" em todos os graus de socialização), ou de
afirmar-se enquanto homem. (In PARRAT-DAYAN e TRYPHON, 1998, p.
82).
Esse recorte implica tanto os conteúdos de formação geral como a formação
relacional, a serem mais uniformemente consolidados pela escola por meio das
trocas que se estabelecem no seu interior, pela interação professor-aluno, aluno-
aluno e professor-professor; além de apropriar-se dos conflitos que renascem
continuamente no interior de toda interação social, dando-lhes uma configuração
nova, de possibilidade de uma ação dialógica e uma co-operação.
O tema das relações, da moral, da cooperação e da autonomia, exige
reflexão e um trabalho sistemático do professor dentro do espaço escolar, podendo
ser uma alternativa às dificuldades que cotidianamente encontramos na docência.
Nessa perspectiva, do desenvolvimento moral ser calcado especialmente
nas relações significativas que são estabelecidas no interior da escola, o professor
não ocupa lugar de uma figura opaca perante os educandos, mesmo quando tenta
se ocultar atrás do conteúdo que simplesmente transmite aos alunos. Com relação
à autonomia, não pode apostar na falsa hipótese de que os alunos se tornarão
autônomos sozinhos. Os relacionamentos que se estabelecem em sala de aula e os
encaminhamentos dos conflitos que emergem dessa relação tendem para uma das
duas direções, ou da autonomia ou da heteronomia. No primeiro caso, o aluno
discute pontos de vista, aprende a respeitar diferentes posicionamentos e pode
chegar, como grupo, ao consenso democrático. A segunda alternativa tende para a
24
simplificação do conflito pelo estabelecimento de uma lei oriunda da gerontocracia,
pela qual o aluno se submete ou transgride o mandato de forma subliminar.
Piaget, juntamente com tantos outros acadêmicos, é categórico na afirmação
de que o discurso moralizante não produz efeitos no jovem. O adolescente passa a
atribuir valor às condutas coerentes com seus enunciados. Da mesma forma que é
sensível aos adultos e amigos que com ele estabelece relações embasadas no
mútuo respeito, o jovem teme ser desacreditado no olhar do amigo ou por quem
deposita respeito, e não mais a uma figura de autoridade. As ações morais eficazes
são as que exigem um posicionamento pessoal e consciente do jovem, feito por livre
adesão após uma discussão e avaliação dos diversos argumentos que agora
analisa, num contexto de idéias que implicam ações.
A organização dos componentes curriculares no ensino fundamental deveria
estar impregnada pelos temas transversais, que trazem, entre outros, os conteúdos
da ética, da cooperação, da autonomia e da cidadania. Esses conteúdos são de
responsabilidade de todo o corpo docente, não de uma especificidade disciplinar -
talvez um desvio no entendimento que se faz sobre a transdisciplinariedade e
interdisciplinaireidade a partir dos textos contidos nos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs).
No contato que mantenho com a escola percebo que o discurso recorrente,
no seu interior, espelha os valores que estão presentes na sociedade, sobre a pouca
valia do trabalho docente, ao mesmo tempo em que esses profissionais se sentem
acuados pela problemática social que invade o espaço escolar e modifica-o
radicalmente. A escola e o aluno do imaginário do professor, tanto quanto a escola
que um dia ele freqüentou, ficam no plano do sonho impossível; nossa cultura tem
valorizado as atitudes coercitivas, as posturas autoritárias do respeito unilateral e da
vantagem maior de cada um. Essa situação vai além da reflexão sobre os
conteúdos da escola; é preciso incluir na discussão as relações que se estabelecem
na escola e com a comunidade, e, nesse aspecto, a teoria moral de Jean Piaget tem
a contribuir com nossa problemática escolar contemporânea.
Por outro lado, a academia tem nos ensinado que não podemos ter a
pretensão de estudar os acontecimentos escolares, a exemplo do escolhido para a
presente pesquisa, seguindo uma única perspectiva. É necessário alargarmos a
visão para a análise, tal como a metáfora do anão que sobe nos ombros do gigante
25
e, assim, amplia sua perspectiva de análise. Por isso se justifica a busca no estudo
da história da educação, do como e quando foi introduzida na escola a preocupação
com a formação da autonomia no aluno.
Retomo o estudo da Escola Nova, movimento datado no início do século
passado e nele encontro um questionamento sobre a escola da época que a
impulsionava a uma guinada nos seus procedimentos pedagógicos e nos fins
políticos que pretendia assumir. Esse movimento sugere o uso de um método de
ensino que atendesse ao preceito de cooperação entre os alunos, ao
desenvolvimento da autonomia moral pelo self-government e à prática de
assembléias escolares – fato inovador na época e válido para pensarmos a escola
ainda hoje.
A expressão "aprender a aprender" marcou o movimento da Escola Nova
como um emblema, sendo ainda pertinente para a escola contemporânea. A atual
sociedade informatizada disponibiliza ferramentas pedagógicas e tecnológicas para
que o educando ordene suas aprendizagens num contexto dinâmico, sendo
importante ter "aprendido a aprender" de forma autônoma, particular e independente.
Nesse contexto, a autonomia tem a conotação da autoria cognitiva, de o sujeito
assumir o papel de protagonista de sua aprendizagem na construção de
conhecimentos, fazendo progressivas tomadas de consciência a partir de ações
realizadas, processo esse que autoriza o educando na sua independentização no
próprio processo de aprender.
O século XXI parece anunciar um ensino marcado pela urgência de alunos
"cidadãos do mundo", envolvidos pela necessidade da autonomia em seus
processos de ser e de aprender. Talvez não seja precipitado pensar e dizer que a
educação se afasta do ensino de conteúdos rumo a uma aprendizagem na qual o
aluno precisará aprender a comandar ações educativas para além das
aprendizagens conceituais tradicionalmente feitas pela escola; aprendizagens essas
caracterizadas pela criatividade de cada aluno, na empreitada de construção de sua
própria trajetória pessoal-profissional. Nessa situação, os valores morais terão
importância redobrada.
A distinção entre uma autonomia cognitiva – do aprender a aprender – e
uma autonomia moral – da cooperação – é falsa, pois elas são interdependentes
para Jean Piaget. Torna-se emblemática e elucidativa a frase piagetiana de que "a
26
lógica é uma moral do pensamento, como a moral é uma lógica da ação" (PIAGET,
1932-1994, p. 295). A autonomia tanto pertence ao estudo do campo moral - a
moral constituída por princípios, por um sistema de regramento que norteia as ações
de um sujeito com vistas ao bem e identificada pelo respeito e utilização que o
sujeito lhe confere – como pertence ao estudo da cognição, que se dirige para a
organização da razão. Com a existência de uma lógica internalizada no sujeito, há a
possibilidade de ações cooperativas que resultam em autonomia.
[…] desde que haja cooperação, as noções racionais do justo e do injusto
tornam-se reguladoras do costume, porque estão implicadas no próprio
fundamento da vida social entre iguais. Durante os estádios anteriores, ao
contrário, o costume predominava sobre o direito, na medida em que era
divinizado e permanecia exterior às consciências individuais. (PIAGET,
1932-1994, p. 67).
O pensamento do jovem afasta-se da heteronomia à medida que estabelece
um novo ordenamento para as relações sociais, essas baseadas na lógica da
cooperação, especialmente da reciprocidade e justiça distributiva. São, portanto,
solidárias as evoluções da inteligência, da moral e da socialização na Epistemologia
Genética de Jean Piaget.
A referência piagetiana foi uma escolha desde o início desta empreitada,
especialmente as obras o Juízo Moral na Criança, de 1932, e Estudos Sociológicos,
de 1965, onde este tema de estudo encontra bases sólidas. Convém acrescentar
que não foram desconsiderados os textos onde Jean Piaget expressa sua opinião
sobre a educação no contexto escolar - Psicologia e Pedagogia (1969), Para Onde
Vai a Educação (1971) e Jean Piaget – Sobre a Pedagogia: textos inéditos (1998) -,
este último organizado por Silvia Parrat-Dayan e Anastasia Tryphon, além das obras
que possibilitam a compreensão dos conceitos piagetianos, que em sua maioria
estão encharcados de atualidade, mesmo perante o paradigma da complexidade e
da ciência cognitiva que ganha terreno na atualidade.
O modelo filosófico atualmente discutido - da complexidade – tem acalorado
as discussões ao inserir nas pautas científicas novos paradigmas, que
desestabilizam as certezas positivistas e apontam para múltiplos fatores de
probabilidades que compõem todas as vicissitudes do saber. Hoje o princípio da
incerteza sobrepõe-se a uma certeza experimental, anteriormente buscada, como
um aspecto valorativo da cientificidade. Nesse vazio ao qual as incertezas nos
lançam e que é tão repleto de acontecimentos e fatos, temos uma certeza, a da
27
importância das relações entre os sujeitos, a centralidade do homem no processo de
desenvolvimento, de um desenvolvimento que promova cooperação - mais que
competição.
Com essas sinalizações sobre a autonomia e a cooperação temos uma
primeira parte da contextualização deste trabalho. O título que segue, referente ao
estudo teórico, segue contextualizando a autonomia, agora na perspectiva de sua
gênese no contexto escolar.
28
2 O ESTUDO TEÓRICO
Detenho-me agora sobre dados da história da educação e apresento uma
síntese feita a partir da leitura de vários autores consultados
2
, onde enfatizo o
movimento da Escola Nova em alguns países da Europa, nos Estados Unidos e no
Brasil. O texto procura pôr em foco os motivos e o contexto que levaram
à inclusão do conteúdo da moral - não confessional - na escola e pela perspectiva
da autonomia do sujeito.
2.1 A AUTONOMIA NO MOVIMENTO DA ESCOLA NOVA
Retomar o tema da Escola Nova, fato ocorrido na passagem do século XIX
para o XX, primeiro na Europa, depois no Brasil, pode parecer despropositado. No
entanto, é nesse movimento que encontramos uma defesa ao tema deste trabalho: a
autonomia, a preocupação com a conduta moral dos sujeitos que vivem em
comunidades.
A história nos mostra que, no século XIX, especialmente a Europa teve sob
sua responsabilidade um importante legado deixado pela Revolução Francesa
(1789) e pelas duas Revoluções Industriais (1750 e por volta de 1850),
acontecimentos que modificaram de forma radical e permanente a organização
socioeconômica e política da época, o que acabou por invadir o espaço escolar, pois
se precisava educar um contingente populacional, dar-lhe acesso à cidadania, à
informação e à formação para o trabalho na indústria nascente.
O século XX iniciou tendo uma classe de trabalhadores e proletariados que
reivindicavam escolas para seus filhos. Uma situação nova estava dada e fez parte
de uma reivindicação coletiva: a da escolarização para todos, que despontava como
uma necessidade para a sobrevivência no novo contexto urbano e industrial que se
desfraldava.
2
O texto é resultante da leitura de vários autores e obras, todos eles indicados na bibliografia que
acompanha este trabalho.
29
Os governantes signatários da Revolução Francesa e, posteriormente, da
Revolução Industrial viam que a escolarização poderia ocupar um importante papel
na transformação cultural de uma sociedade, por poder veicular através dela
princípios democráticos que levariam à formação de cidadãos comprometidos com o
desenvolvimento do país, tanto quanto era a instituição que melhor qualificaria a
mão-de-obra de que se necessitava para uma produção em escala industrial,
juntamente com as escolas de ofício.
O Estado deveria produzir a equalização das diferenças e contar com uma
população mais esclarecida, composta por cidadãos conscientes dos seus direitos e
participantes ativos da cultura nacional. Surgiu, assim, a escola com funções
redentoras, que livraria o homem da ignorância, da opressão e do analfabetismo.
Como instrumento político, a escola passou a ser obrigatória, gratuita e comum, para
que todos pudessem contribuir com a nação em desenvolvimento.
O contexto fez despontar a importância da instituição escolar também pela
família, que gradativamente passou a partilhar com a escola a função de educar,
antes exclusivamente responsabilidade familiar. Diz Cunha, num artigo em que
trabalha a relação da família com a escola:
[…] a família definiu-se, historicamente, como instituição que credita à
escola a responsabilidade por instruir e educar seus filhos de acordo com os
padrões mais avançados da ciência. De outra parte, a escola deseja que
pais e mães assimilem os conhecimentos científicos disponíveis e
compreendam o trabalho dos professores – caso contrário que se afastem
do terreno educacional. (CUNHA, 2003, p.464).
Retomando o campo da educação, deve-se citar Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778), que primeiro vislumbrou a criança como um ser diferente, em sua
natureza, de um adulto. É por esse motivo que Manacorda (2002) diz ser esse autor
um precursor da Escola Nova ainda no século XVIII. O postulado rousseauniano,
previsto e descrito especialmente na obra Emílio, publicada em 1762, diz que a
criança é, por natureza, pura, pacífica e tímida. A fu
30
ensinamento que se opunha frontalmente aos princípios pedagógicos da sua época,
quando o professor tinha a autoridade física e moral sobre o aluno, podendo até
mesmo espancá-lo, se julgasse necessário. A educação, para Jean-Jacques
Rousseau, deveria ser baseada na autonomia e na liberdade da criança, tal como a
Escola Nova anunciaria no século seguinte. Tem-se desde aí o utopismo
pedagógico, que posteriormente também se faria presente no movimento
escolanovista.
Nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, é possível
localizar na Europa certas instituições que, desde sua fundação, primaram por
princípios inovadores na ciência psicológica e que acabaram por desencadear ações
internacionais, entre as quais a instalação do movimento da Escola Nova.
Em 1899 foi criado o Bureau Internationale des Écoles Nouvelles, dirigido,
de início, por Adolfo Ferrière, que deu a esse organismo um enfoque supranacional
de renovação pedagógica. Em 1912, em Genebra, foi inaugurado, também por
Adolfo Ferrière, o Instituto Jean-Jacques Rousseau, onde Édouard Claparède
trabalhou e o qual dirigiu. Pierre Bovet, que também trabalhava no Instituto
Rousseau, mais tarde chamou Jean Piaget para ali desenvolver seus primeiros
trabalhos de pesquisa. Em 1932, Jean Piaget tornou-se co-diretor do Instituto Jean-
Jacques Rousseau, ao lado de Pierre Bovet e Édouard Claparède. E em 1921 deu-
se a consolidação da Escola Nova, em Calais (França), com o I Congresso
Internacional de Educação, e a constituição da Liga Internacional de Educação
Nova, que chegou a ser implantada em mais de vinte países e reunir os pedagogos
de maior prestígio do campo internacional.
Adolfo Ferrière (1870-1960) foi um teórico preocupado com a organização
de um movimento que disponibilizasse sustentação aos novos princípios
educacionais que surgiam e passavam a configurar uma escola renovada em seus
princípios e procedimentos. O que o mobilizava a tais ideais eram os recentes
estudos da psicologia infantil. Na sua obra, A Escola Activa, de 1946, dizia ser a
escola ativa a que de maneira geral aplicava à educação das crianças as leis da
psicologia genética e da sociologia, sendo essas as ciências básicas da educação.
O Instituto Jean-Jacques Rousseau publicou importantes trabalhos
experimentais sobre a aprendizagem e fez estudos a respeito do desenvolvimento
infantil que tiveram grande influência no movimento escolanovista. Desenvolveram-
31
se reconhecidos estudos sobre o desenvolvimento do infante, especialmente sobre a
mentalidade infantil, os quais revelavam uma criança ativa, em oposição à
concepção de um ser desprovido de razão. A criança passou a ser reconhecida
como um sujeito que tem ação participativa no seu próprio desenvolvimento, não
mais como um adulto em miniatura a ser instruído, moralizado, e devendo
incorporar, da forma mais breve possível, os modelos da sociedade adulta.
O apontamento da existência duma mentalidade infantil, diferente da do
adulto, feita pela ciência psicológica, constituiu um importante marco na
compreensão do desenvolvimento humano, além de ter servido como um dos
tópicos de defesa às mudanças pretendidas pela Escola Nova, de remodelar a
relação professor-aluno e atualizar o conteúdo e metodologia da escolar. Com essa
nova situação, que agora estava dada - da mentalidade infantil - não seria mais
crível que se seguisse conferenciando para alunos pequenos sobre temas
transcendentais.
Silvia Parrat-Dayan e Anastásia Tryphon (1998) recolheram artigos de Jean
Piaget e organizaram a obra Sobre a Pedagogia, da qual o seguinte recorte fala
sobre a Escola Nova e a mentalidade infantil tomando como referência um
pronunciamento de Jean Piaget:
A educação nova propõe que a criança seja tratada como ser autônomo do
ponto de vista das condições funcionais e exige que se leve em conta sua
mentalidade do ponto de vista estrutural. […] o pensamento da criança
funciona como o do adulto, ele apresenta as mesmas funções especiais de
coerência, de classificação, de explicação e de estabelecimento de
relações. Mas as estruturas lógicas particulares que preenchem essas
funções são passíveis de desenvolvimento e de variação. Essa posição vai
ao encontro das exigências da escola nova que pede que se trate a criança
como ser autônomo. (PARRAT-DAYAN; e TRYPHON, 1998, p. 15).
A Escola Nova marca a passagem de um modelo pedagógico que se
preocupava com os fins da educação, com o domínio de um conteúdo que se
apresentava de forma fixa, diante do qual o aluno deveria se render, para um outro
modelo, que passava a se ocupar dos procedimentos e das técnicas que
propiciassem condições de desenvolvimento e participação ativa da criança no seu
desenvolvimento escolar. A psicologia experimental deu suporte a esse novo
modelo ao disponibilizar conhecimentos científicos que possibilitassem ao professor
levar em conta a natureza da própria criança e compreender as leis da sua
constituição psicológica e do seu processo de desenvolvimento. É a passagem de
32
um modelo passivo para um modelo ativo, de participação do aluno e
reconhecimento de sua individualidade como sujeito que aprende. Claparède (1873-
1940) defendeu a necessidade de o professor conhecer seu aluno para melhor
educá-lo, ou seja, o estudo psicológico da criança. Jean-Jacques Rousseau havia se
antecipado a essa necessidade de conhecimentos psicológicos das crianças quando
dissera: “Começai a estudar vossos alunos, pois certamente não os conheceis em
nada” (ROUSSEAU, In PIAGET, 1969-1998, p.143).
O conhecimento do aluno pelo professor, incentivado por Jean-Jacques
Rousseau e Édouard Claparède, é uma necessidade ainda a ser apropriada pelos
professores do século XXI, especialmente o entendimento dos processos de
construção do conhecimento - a epistemologia do conhecimento - para que a ação e
participação do aluno no seu processo de escolarização avancem do conceito
escolanovista
3
de ação tida como a participação do aluno na pesquisa e no estudo
fora do contexto da sala de aula para o conceito de atividade reflexiva e
reflexionante, com a tomada de consciência da teoria piagetiana.
A atividade, tanto na Escola Nova como no construtivismo de Jean Piaget,
opõe-se à ação de verbalização do docente diante da desejada passividade do
aluno. No entanto, há uma distinção na concepção de atividade tida pelos
escolanovistas com a perspectiva piagetiana. Na Escola Nova a atividade do sujeito
está principalmente relacionada a procedimentos educativos que respeitem a
individualidade do aluno que aprende e o incentivme à participação da aula, ao
passo que, para Jean Piaget, a atividade transcende a necessidade e importância do
experimento, da ação física e intelectual sobre as situações vivenciadas, práticas e
contextualizadas; implica ir além, compreender a atividade como característica do
pensamento do sujeito, da criança em escolarização. É pelo conceito de atividade e
ação reflexiva que a autonomia surgirá como conseqüência do processo educativo.
(Piaget, 1930, texto: Os Procedimentos da Educação Moral. In: Parrat-Dayan e
Tryphon. pp. 25-58, 1998.).
3
Os termos “escolanovismo” e “escolanovistas” são utilizados predominantemente na literatura
brasileira, fazendo referência ao movimento da Escola Nova. Termo que utilizo neste trabalho. Nos
Estados Unidos recebeu também a denominação de Escola Progressiva ou Escola Ativa, sendo esse
último termo proferido por Binet.
33
Assim, os estudos que transitavam nas academias americanas e européias
no início do século XX muito contribuíram para o desenvolvimento da psicologia
infantil. Alfred Binet (1857-1911), na Europa, referência importante para a Escola
Nova, fez estudos sobre a inteligência infantil e procurou parâmetros para a sua
identificação por meio de testes psicométricos. A influência de Binet foi
especialmente representada no Brasil no trabalho de Lourenço Filho
4
, que
implementou o estudo da ciência psicológica nas escolas de formação de
professores e disseminou muitos textos científicos em revistas pedagógicas da
época. Nos Estados Unidos a Escola Nova teve a mesma intenção que o
movimento europeu, de deslocar a aula tradicional, dos conteúdos e lições que
deveriam ser ouvidos e memorizados, para uma aula mais dinâmica, com a
participação ativa do aluno.
Em Washington, foi fundada, em 1893, a Associação Nacional para o Estudo
da Criança, seguida da criação de uma escola experimental junto à Universidade de
Chicago (1896), University of Chicago Elementary School, onde John Dewey (1859-
1952) desenvolveu seus primeiros trabalhos.
Jonh Dewey inovou pela vivência democrática e pelas assembléias
escolares, que modificaram a organização social da escola, pelo princípio da
cooperação e intercâmbios estabelecidos entre os alunos e entre os alunos e
professores, procedimentos amplamente utilizados pelo movimento da Escola Nova.
Este autor acreditava na escola como um espaço que alargava a perspectiva
democrática do aluno, em razão da permeabilidade que deveria fluir entre a escola e
a comunidade; da compreensão da democracia como um processo libertador para o
aluno. A concepção de Jonh Dewey sobre democracia era de que ela deveria ser
exercitada na rotina escolar pela constante reflexão das experiências vividas pelo
grupo, muito mais do que conceituada em textos escolares. Esse autor sempre
afirmou a necessidade de os sistemas de ensino serem democráticos em seus
procedimentos diários, pois só assim se poderia construir a democracia como forma
de vida, incrustada nas atitudes de autonomia e de cooperação em cada educando.
Dizia, ainda, que a escola é local de intercâmbio entre gerações, onde os sujeitos
4
Lourenço Filho desenvolveu e introduziu nas escolas o teste ABC, que classificava as crianças com
maior o menor possibilidade frente aos desafios da alfabetização. Motivado pela psicometria de
Binet.
34
devem enfrentar juntos, como um grupo, as situações problemáticas que a vida vai
lhe apresentando gradativamente, e de forma desafiadora. Assim, o processo
educativo é mais do que a explanação de conteúdos que possam ser úteis para o
aluno, é aprender a ser reflexivo e ativo nas situações do cotidiano.
A escola deweiana facilitava e incentivava, junto aos alunos adolescentes,
os clubes de debates, na expectativa de que aumentassem a experiência social de
cada um e do coletivo. As experiências coletivas envolviam tanto uma atividade
realizada na cozinha, como os passeios pelo campo, visitas a marcenarias, fábricas,
comércio, museus e as aulas de laboratório, como as experiências científicas. A
responsabilidade diretiva era democraticamente partilhada entre os membros da
equipe. Todo esse empreendimento pedagógico que caracteriza a escola
democrática de Jonh Dewey não tinha a intenção de que os alunos manifestassem
todos seus impulsos naturais ao seu bel-prazer, mas que fossem acompanhados
pelo professor, de forma não diretiva ou coercitiva.
Voltando ao contexto europeu, o movimento da Escola Nova encontrou nos
estudos do jovem pesquisador Jean Piaget (1896-1980) importantes referências
científicas para a consolidação de princípios pedagógicos a serem difundidos pelos
escolanovistas. Dos estudos de Jean Piaget temos que a inteligência é construída
pelas relações e experiências do sujeito com um objeto. À inteligência é atribuída a
possibilidade de ultrapassar as associações e os hábitos; é o resultado de um
investimento pessoal. A ação acompanha o desenvolvimento da inteligência e
compreende investimentos da criança desde os exercícios sensórios-motores até o
uso de estratégias lógico-formais para explicar o mundo. O desenvolvimento dá-se
pela organização de estruturas mentais, que se atualizam pelas equilibrações
sucessivas. São as necessidades que impulsionam o sujeito à reordenação de uma
estrutura que se apresenta deficitária diante de uma nova experiência vivida; as
necessidades são de origem extrínsecas ao sujeito, oriundas do contexto social, do
que é externo ao sujeito, ou de seu mundo interno, tal como a força do afeto, que
para Jean Piaget é propulsora de atividade, entendida como uma força motriz que
gera transformação. Tanto as necessidades externas como as internas, que
desacomodam o sujeito em sua atual estrutura de pensamento, são tidas como um
objeto na teoria piagetiana, objeto que em relação com o sujeito promove o
desenvolvimento. O desenvolvimento da inteligência é, então, resultado da ação que
35
um sujeito empreende sobre os objetos
5
, que tem como saldo final uma mútua
transformação, a do objeto e do sujeito
6
.
Ainda, os estudos piagetianos vinham apontando a existência duma
inteligência prática que antecedia a inteligência refletida. Esse dado da ação, que
antecede a reflexão, passa a ser um conhecimento psicológico essencial para a
educação e aos escolanovistas da época, que afirmavam a necessidade de uma
educação ativa, além de ressaltarem a importância da atividade, do jogo, do
envolvimento do sujeito na tarefa de aprender. Dessa forma, a Escola Nova informa
sobre mudanças metodológicas no processo de aprendizagem, tendo tomado como
referencial psicológico o princípio "ativo" na aprendizagem, além do fato de esta ser
potencializada quando da utilização de estratégias de ensino que envolvessem a
cooperação entre os alunos em processo de aprendizagem.
Mais uma vez, a concepção de ativo/atividade pode ser especificada. O
movimento escolanovista tende para o conceito nos termos dos estudos piagetianos,
que atribui ao termo “ativo” um sentido funcional, de uma conduta baseada no
interesse, de uma ação concebida como um pensamento em processo, diferente de
uma exercitação, sempre motora, que pode caracterizar um ativismo desprovido de
pensamento.
O movimento escolanovista difundiu princípios e idéias que foram
apropriados por diferentes educadores em diferentes territórios, espalhando-os pelo
mundo – como há pouco exemplificado pela Escola de Jonh Dewey nos Estados
Unidos. São esses relatos de experiências que passam a constituir a concretude
desse movimento feito de idéias.
Os relatos e experiências constituídos a partir dos princípios escolanovistas
primavam pelos seguintes princípios: 1) a atividade do sujeito em aprendizagem; 2)
5
Becker, conhecedor da Epistemologia Genética, diz que o objeto é tudo o que é externo ao sujeito,
tudo aquilo que o contrasta, o diferencia de si. Um objeto tanto é um utensílio ou ferramenta que é
palpável e perceptível, quanto pode ser um pensamento tomado em sua particularidade, como um
fragmento de metacognição, tanto quanto as relações sociais podem ser refletidas como “objetos”
para um sujeito capaz de lidar com proposições, hipóteses, causas e conseqüências no plano da
linguagem comunicativa.
6
Há de se observar, para maior clareza, que existe uma dimensão de implicações recíprocas e
simultâneas entre o sujeito e o objeto. Tanto o objeto desafio o sujeito em seu conhecimento como o
sujeito desafia o objeto ao desvelá-lo, na medida que o sujeito conhece o objeto e passa a mais
36
o processo de cooperação entre os educandos e o estabelecimento de regras
partilhadas no grupo de alunos - o autogoverno; 3) a busca do interesse do aluno
pelos conteúdos de aprendizagem; 4) a ação intelectual e física como gerenciadora
do processo de aprendizagem do aluno; 5) a busca de novos e alegres espaços
para a aprendizagem escolar. “Devia a escola, assim, oferecer situações em que o
aluno, a partir da visão (observação), mas também pela ação (experimentação)
pudesse elaborar seu próprio saber”. (VIDAL, 2003, p. 498).
[…] uma nova dinâmica impulsionava as relações escolares. O aluno
assumia soberanamente o centro dos processos de aquisição do
conhecimento escolar: aprendizagem em lugar de ensino. A psicologia
experimental dava suporte à cientificidade da pedagogia e produzida no
discurso da escolarização de massas populares o efeito da individuação da
criança […] Os materiais da escola recebiam outra importância porque
imprescindíveis à construção experimental do conhecimento dos
estudantes. Os métodos buscavam na “atividade” sua validação. (VIDAL,
2003, p. 498).
Entre muitas outras promissoras experiências escolanovistas destaco uma
segunda escola, a de Célestin Freinet (1896-1966), um educador que utilizou duas
palavras básicas em sua metodologia de trabalho: pesquisar e cooperar. Seu
trabalho foi marcado pela imprensa escolar, atividade que desenvolveu com os
alunos na intenção de dar-lhes voz e expressão; considerava a necessidade de um
trabalho na escola além de incrementar a cooperação na sua execução. "Foi um
otimista, via na educação o motor condutor do progresso social e moral da
sociedade". (ELIAS, 1997, p. 23).
Em 1923, Celestin Freinet participou do II Congresso da Liga Internacional
para a Educação Nova, em Montreux (Suíça), onde conheceu Adolfo Ferrière,
Édouard Claparède, Ovide Decroly, Pierre Bovet e Cousinet, todos diretamente
envolvidos com o movimento de dar "ação, atividade" à criança e adolescente em
escolarização. Desse congresso incorporou a necessidade do trabalho em grupo
com seus jovens adolescentes dentro do contexto escolar. As realidades vividas ou
trazidas pelos alunos para a escola, no seu entender, ultrapassavam a perspectiva
de uma simples reorganização ou incorporação de novos conteúdos ao currículo
escolar, ganhavam as dimensões de vida a serem compartilhadas no grupo; eram a
historicidade de cada sujeito a ser reconhecida e respeitada; eram tidas como
conhecer sobre si mesmo, num infindo processo de equilibração entre as assimilações e
acomodações.
37
experiências que significam a existência dum sujeito-cidadão em relação com outros
cidadãos.
O trabalho de Celestin Freinet propagou-se internacionalmente após a
Segunda Guerra Mundial, difusão que se deu especialmente pela Federação
Internacional de Movimentos da Escola Moderna, organização por ele criada em
1957, que servia de discussão e difusão das idéias de freinetianas.
Uma das marcas do trabalho de Celestin Freinet é a produção de textos
livres, que tinham a intenção de atender ao ritmo e ao interesse dos alunos, além do
objetivo de divulgação, pela imprensa, de um resultado de aprendizagem. Os temas
estudados deveriam atender à necessidade do aluno e seu grupo de trabalho, com a
posterior divulgação em outros grupos e comunidades escolares, o que agregava ao
estudo uma utilidade informativa imediata. O estudo deveria servir para a
cooperação e aprendizagem mútua, independentemente de distâncias físicas entre
grupos de alunos, perspectiva que se opõe a um ensino para um tempo futuro e
incerto na perspectiva do jovem. Essa modalidade de estudo não é muito diferente
do que se faz atualmente com a utilização dos computadores e a internet em
comunidades de aprendizagem.
Para a realização do jornal escolar, que divulgava os textos livres, os alunos
organizavam-se de forma a atender e conciliar diversas tarefas a serem executadas
dentro de um limite de tempo, o que demanda necessidade de autonomia de ação e
autonomia pela cooperação.
As assembléias de sala de aula e de escola também eram sistemáticas na
escola freinetiana. Serviam como um órgão orientador de ações e de decisão do
grupo. Celestin Freinet dizia que a assembléia escolar
[…] educava a função de planejamento e de revisão do trabalho e da vida
da turma, mas, sobretudo, promove nas crianças a confiança nas pessoas e
no que está em seu ambiente e a capacidade de organização de seus
próprios conhecimentos no seio de sua coletividade". (SEBARROJA, 2003,
p. 79).
Essa pedagogia transitava entre o individual e o coletivo, dando prioridade
ao segundo.
Mesmo tendo, Celestin Freinet, firmado raízes para sua proposta
pedagógica no movimento da Escola Nova, com o tempo se distanciou desse
movimento e anunciou A Declaração da Escola Moderna em 1968. Seu argumento
38
era de que a Escola Nova nunca saíra do plano das idéias, tornando-se muito
distanciada da prática escolar; dessa forma, em muitos momentos não se podia
contar com ela como um apoio prático ao trabalho docente.
A Escola Nova alterou o conjunto de princípios que sustentavam as razões e
os fins do ensino ao propor uma nova concepção de aluno: que tem uma infância e
uma estrutura de pensamento que lhe é própria. São conhecidas as leis
psicológicas que explicam seu desenvolvimento, isto é, um aluno entendido por uma
totalidade, que é psicológica, biológica e social.
Convém observar que o princípio da necessidade da atividade infantil no
processo de aprendizagem deve ser atribuído a Jean-Jacques Rousseau (1712-
1778), Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) e Friedrich Frobel (1782-1852), que
ainda nos séculos XVIII-XIX intuíram a necessidade da atividade do infante, sem,
contudo, terem formalizado um estudo com bases científicas, experimentais, que
respaldasse a elaboração de procedimentos escolares verdadeiramente adaptados
às leis do desenvolvimento da criança. Foram os teóricos contemporâneos ao
movimento da Escola Nova - como já mencionado - que, assegurados pela ciência
psicológica e social, disponibilizaram uma compreensão sistemática e científica da
infância, assegurando o fortalecimento das idéias escolanovistas.
Encontramos um recorte feito por Jean Piaget no qual ele cita Johann
Heinrich Pestalozzi, com respeito ao trabalho em cooperação na sala de aula:
[…] a escola é uma verdadeira sociedade, na qual o senso de
responsabilidade e as normas de cooperação são suficientes para educar a
criança, sem que seja necessário, para evitar as limitações nocivas ou que a
competição tem de perigoso, isolar o aluno em seu individualismo. Muito
mais, o fator social intervém no plano da educação intelectual tanto quanto
no domínio moral: como Bell e Lancaster, Pestalozzi tinha organizado uma
espécie de ensino mútuo de tal forma que os alunos se ajudavam
reciprocamente em suas pesquisas. (PIAGET, 1969-1998, p. 144).
Na Bélgica Ovide Decroly (1871-1932) trabalhou com os centros de
interesses, com grupos mobilizados por temáticas comuns de pesquisa e estudo.
Para a Escola Nova as atividades em grupo sempre foram consideradas um potente
instrumento de trabalho escolar.
Paralelamente a todos esses acontecimentos do mundo acadêmico e da
ciência, as relações políticas entre as nações européias eram ora de conflito
armado, ora de processo de reconstrução de uma paz. No ano de 1921, quando foi
39
instalada oficialmente a Escola Nova como movimento de reformulação pedagógica,
a Europa ainda se encontrava abalada pela primeira Grande Guerra. A comoção
produzida, especialmente nos países europeus, após 1918 estava a questionar a
todos sobre a necessária consciência de uma mútua dependência entre os povos e
nações. As pessoas, sensibilizadas pela guerra, viam a necessidade de uma
educação para a paz e cooperação internacional, passando a vislumbrar, com mais
certeza, a escola como um propício lugar para que novas gerações crescessem
cultivando o mútuo respeito e a cooperação.
Dessa forma, mal terminada a guerra, produziu-se um vigoroso movimento
educativo-político, caracterizado fundamentalmente pela idéia de evitar o conflito
armado e de congregar ações pacíficas em todo o mundo. As vias concretas para
atingir esses objetivos passavam pela extensão dos serviços públicos da educação,
além da revisão dos seus planos e métodos de ensino.
Com os estudos psicológicos que se desenvolviam, ratificava-se a
importância de a infância e a juventude crescerem em ambientes menos coercitivos,
para que sujeitos mais autônomos e cooperativos se desenvolvessem. Também as
ciências sociais ganharam terreno no primeiro pós-guerra, passando também a
disponibilizar importantes estudos para a organização escolar e a compreensão dos
processos individuais em concomitância ao coletivo dos alunos. Tanto a psicologia
como a sociologia passam a fazer par com a ciência da educação, na intenção de
atualizar seus procedimentos.
Em 1919, o Bureau Internationale des Écoles Nouvelles organizou uma
reunião em Calais, na França, com o propósito de reunir as características gerais de
uma pedagogia da Escola Nova. Foram organizados em três grandes tópicos: os
que respondem à organização geral da escola, os que respondiam à formação
intelectual do aluno e, por fim, os que diziam respeito à formação moral; esses
foram, ainda, especificados em vinte nove itens que não precisavam ser todos
incorporados pela escola em processo de atualização metodológica. Uma escola
podia fazer um apanhado desses princípios e construir uma organização própria, de
forma que essa liberdade acabou por particularizar as experiências escolanovistas.
Tal procedimento se justificava em virtude da intenção do movimento de querer
influir sobre uma nova concepção de escola, do seu papel na sociedade, mais do
que qualquer receituário metodológico e de procedimentos rígidos.
40
Os princípios da Escola Nova foram modificados em sua ênfase no decorrer
do tempo. Primeiro, sua centralidade estava sobre a necessidade de libertar a
criança da rudeza do ensino clássico, da escola tradicional, especialmente
considerando os conhecimentos que a psicologia trazia para a compreensão da
infância e do desenvolvimento; num segundo momento, foi a organização escolar
que ganhou relevância, e a ciência que surge como complementar à educação é a
sociologia. A educação deveria contribuir também com a preparação do jovem para
o trabalho, para que pudesse colaborar de forma efetiva com o desenvolvimento das
nações (pós-Primeira Guerra). E por último, após a Segunda Guerra Mundial (1939-
1945), surgiu a preocupação com a democratização dos sistemas de ensino, para
que o jovem pudesse viver em sociedade considerando os princípios de
colaboração, cooperação, solidariedade e autonomia, todos eles vividos também no
espaço escolar.
A Segunda Grande Guerra revelou que os empreendimentos educativos até
então despendidos não tinham sido suficientes. As intenções de a escolarização
servir para uma vivência do jovem numa cultura de paz, colaboração e autonomia
ratificaram-se. Foram mantidas as convicções de que a escola tinha poderosa
influência sobre uma formação humana, que fazia minorar as tensões internas entre
indivíduos e entre as nações, em prol de uma melhor compreensão e tolerância às
tensões internacionais.
Em 1946 surgiu a Unesco, órgão das Nações Unidas (ONU) com a intenção
de congregar países num mútuo esforço para a consolidação da paz e da segurança
entre os povos. A liberdade fundamental de cada cidadão e nação, sem qualquer
tipo de discriminação, seria assegurada pelos esforços direcionados por uma ação
educativa internacional que libertasse o homem de qualquer tipo de opressão. Os
princípios apregoados pela Liga Internacional da Escola Nova são renovados, então,
pela Unesco, em Assembléia Geral.
De forma geral, por esse apanhado realizado, que é bastante simplificado,
temos nas proposições de uma Escola Nova uma concepção genuinamente otimista
do ser humano, da sua possibilidade de ser um pacifista, um cidadão cognitivamente
e socialmente ativo. Daí a crítica ao movimento de se constituir numa utopia
pedagógica.
41
A Escola Nova tenta desarticular as práticas pedagógicas tradicionais,
substituindo as relações distantes e autoritárias pelos interesses e necessidades da
infância; quer também que os alunos trabalhem pela cooperação, numa
descontraída atividade lúdica; que os meios de uma ação pedagógica sejam
ajustados aos seus fins, de forma que a criança e o jovem sejam os próprios
protagonistas das situações relacionadas com os princípios que se quer
interiorizados pelos aprendizes.
O movimento não via, por fim, como suficiente, disponibilizar atenção à
atividade da criança; pretendia mais, quis modificar a própria relação entre as
crianças e dessas com o seu professor, proporcionando um momento totalmente
novo e ímpar para a pedagogia.
2.1.1 O autogoverno na Escola Nova
A ciência psicológica vinha indicando vários e novos rumos para os
procedimentos escolares desde o estabelecimento do movimento da Escola Nova.
É da psicologia o argumento de colocar o sujeito como elemento central no processo
educativo, no "ensino ativo", termo criado por Pierre Bovet (BARRELET, PERRET-
CLEMONT,1996, p. 220).
À necessidade de discutir valores sociais num grupo de alunos em formação
se soma a necessidade de ação da juventude, de forma que os interesses se uniram
e constituíram uma única convicção: a importância da escola ativa e do self-
governmente para a formação de gerações responsáveis por um coletivo pacífico.
Esse procedimento, próprio da Escola Nova, ganhou relevância após a Primeira
Grande Guerra Mundial e foi ratificado após a Segunda Guerra Mundial, como
também pela Unesco.
Para Jean Piaget o self-government é o "procedimento de educação social
que tende, como todos os outros, a ensinar os indivíduos a sair de seu egocentrismo
para colaborarem entre si e a se submeter a regras comuns". (PIAGET, apud:
PARRAT-DAYAN e TRYPHON, 1998, p. 119).
O conceito de autonomia é antecedido pelo termo self-governament, sendo
muitas vezes o movimento escolanovista reduzido à aplicação desse princípio
metodológico. Previa a cooperação entre os membros do grupo, considerando
42
professores e alunos como participantes de uma mesma comunidade, onde se
faziam necessárias a comunhão de idéias e a co-responsabilidades nas ações, para
que o princípio da atividade partilhada, da Escola Nova, fosse atendido. Era uma
estratégia que bem atendia à intenção de cooperação, de solidariedade e autonomia
dos alunos, além de atender ao argumento de que a razão se desenvolve pouco a
pouco na criança e que a vida em grupo é o meio natural onde se dá a evolução do
intelecto.
Na obra de Piaget e Heller (1962) há vários relatos de internatos de
meninos, que se difundiram pela Europa ainda no início do século passado, os quais
se regiam pelo self-government. Neles os alunos construíam as regras de
convivência de forma coletiva e fiscalizavam-nas. A participação do professor tinha
um caráter eventual ou sistemático, isso feito quando requisitado pelo grupo na
solução de um ponto de pauta específico. Era dada aos alunos a possibilidade de
se governarem a partir de assembléias, nas quais as dificuldades eram discutidas e
encaminhadas; foram criadas associações de alunos no interior das escolas.
Também os movimentos de juventude eram comuns na Europa, como um
espaço de livre expressão aos interesses dos jovens. Existiam "grupos da
natureza", grupos de civismo, entre muitos outros. Jean Piaget fez parte de um
grupo de jovens
7
em sua juventude, em sua cidade natal.
No que concerne às relações professor-aluno, é o self-government que
permitirá um intercâmbio real. Enquanto os métodos [ensino] continuarem
baseados na coerção, eles apenas provocarão o respeito unilateral, pois a
coerção é exterior ao aluno. Ao contrário, o método do self-government,
enquanto fonte de autonomia, permite ao aluno internalizar as normas e
desenvolver sua personalidade. Piaget não cessa de evocar a importância
desse método no plano educacional. Sua utilidade é evidente para qualquer
interação, seja entre adultos e crianças, irmãos mais velhos e mais novos
ou até mesmo, em termos políticos, entre dirigentes e dirigidos. (PARRAT-
DAYAN; TRYPHON, 1998, p. 14).
Piaget e Heller (1962) relatam a existência duma escola alemã, que em
1909, portanto, antes da Primeira Guerra, estabeleceu em seu regimento a
participação dos alunos para a escolha dos responsáveis para manter a disciplina do
grupo. Tal prerrogativa tentava resgatar a “falta de vida” dos adolescentes em
7
Clube de ciências naturais Os Amigos da Natureza admite em 1910 Jean Piaget, com quatorze
anos, como seu novo membro. Pierre Bovet é co-fundador desse clube junto a Carl-Albert Loosli.
(BARRELET, PERRET-CLEMONT, 1996, p.137).
43
escolarização, a apatia e a indiferença com a rotina escolar, além de reconhecer que
as escolas secundárias deveriam formar líderes; assim, era necessário que os
alunos aprendessem a trabalhar a partir de um coletivo; segundo o mesmo
regimento, construído na discussão de toda “nova necessidade” da comunidade
escolar, a disciplina deveria servir a um disciplinamento individual, construído como
convicção pessoal, não como uma força coercitiva e externa ao sujeito.
Procedimentos dessa natureza afastam-se de uma concepção disciplinar
heterônoma no interior da escola, na medida em que há possibilidade de
cooperação e colaboração entre os alunos pela busca de autonomias pessoais a
serem estendidas à convivência grupal. Os professores acreditavam no processo
circular de, ao respeitarem a personalidade de um jovem ou criança, e na medida
em que permitissem que adquirissem consciência de seus deveres, tendo
responsabilidade na construção da sua autonomia moral e cognitiva, mais se
comprometeriam com o coletivo, de forma a consolidar as intenções da própria
instituição educativa, além de se favorecer o desenvolvimento de pessoas criativas e
com iniciativa própria, o que era sobremaneira negligenciado no sistema de ensino
da época. "A atividade livre conduz à cooperação. A idéia de cooperação define,
para um grande número de educadores, o último fim da autonomia: cooperação com
fins materiais"
8
(PIAGET y HELLER, 1962, p. 30). A cooperação com fins materiais
era entendida como a possibilidade de gerenciamento e provisão de bens
necessários à manutenção da instituição.
Existiram escolas onde as assembléias escolares foram implantadas por
decisão política, por imposições superiores ao coletivo da escolar, as quais
obtiveram resultados negativos, nada promissores na construção de um autogoverno
escolar. Ao contrário, onde a implantação das assembléias foi resultado de estudos
e de uma consciência grupal construída no coletivo escolar, especialmente dos
docentes, esse foi, e é, um recurso promissor para uma educação que objetivava
sujeitos cooperativos, com consciência autônoma e solidária para participarem
ativamente da sociedade.
Num congresso realizado em Praga no ano de 1927, que tinha o objetivo de
discutir e difundir a paz, seu documento final ressaltou que a educação deveria
8
Grifo do autor e livre tradução do espanhol.
44
atender à formação de pessoas autônomas e potencializar a autonomia nas escolas
por meio de sistemas organizacionais de autogoverno.
Houve hostilidades ao método do self-government por parte da Igreja, de
partidos políticos, governo (na falta de disponibilização de verbas) e famílias, que
não compreendiam a educação e o disciplinamento moral segundo esse novo
modelo proposto, o que colocou em descrédito vários trabalhos, além de influir de
forma direta e indireta nas crises vivenciadas por esses educandários inovadores.
Dessa forma, muitas experiências foram exitosas e outras, nem tanto.
Uma das dificuldades relatadas por Piaget e Heller (1962) é a própria
incompreensão do que fosse autonomia pelos alunos quando entravam na
instituição, ou quando o projeto se iniciava; também pela enorme carência na
formação de professores para trabalharem cooperativamente com os alunos. No
entanto, há relatos em que os alunos chegaram a construir uma constituição própria,
como grupos de alunos responsáveis pela organização da aula, outros com o
controle do material, com a organização da biblioteca, programas de ajuda mútua
para o estudo entre os alunos, entre outras funções. A obra La Autonomia em La
Escuela (1962), dos autores citados, ilustra com o exemplo de uma escola da
Polônia:
[…] a autonomia passou pelas seguintes etapas: primeiros exercícios de
discussão sobre a conduta do indivíduo e dos grupos na sociedade;
segundo, foi posto em prática a responsabilidade individual e coletiva com a
organização da interajuda e por meio do espírito de colaboração dos
grupos; terceiro, estimulado a iniciativa para a realização de diversos
projetos; quarto, discussões sobre as diferentes organizações da
autonomia; quinto, elaboração de regulamentos e leis precisas. (PIAGET y
HELLER, 1962, p. 36-37).
9
A autonomia era tida pelos adolescentes da escola secundária e primária
como um símbolo da liberdade e da escola democrática, tal como os objetivos da
Escola Nova pretendiam. Os professores consideravam o modelo democrático e da
autonomia como propício à libertação da escola do jugo autoritário da metodologia
tradicional; também apreciavam a existência de maior liberdade para as aulas no
campo, os passeios pela comunidade, os jogos, visitas a fábricas e aulas no
laboratório, isso tudo de significativa importância para a aprendizagem dos alunos; e,
por último, por aliviar o professor da exaustiva tarefa do "domínio disciplinar", uma
9
Livre tradução do espanhol.
45
vez que os alunos passavam a desejar a organização para o máximo
aproveitamento das oportunidades de que dispunham; a disciplina passa a ser uma
construção pessoal, sendo interiorizada pelo aluno.
A nova metodologia de trabalho escolar trazia embutida em si a necessidade
de aprendizagem com autonomia do aluno, onde o aluno gerenciava gradativamente
seu processo de aprender a aprender. Um aprender entendido como um processo
subjetivo, em que o sujeito se constrói à medida que constrói o conhecimento,
processo esse de ordenação e compreensão de si e do mundo que não dependem
somente de articulações cognitivas, mas também de interações sócio-morais. O
resultado é um saber, um conhecer que é único e universal, cujas leis se aplicam,
igualmente, a situações práticas e bem específicas (da experiência sobre um objeto,
do saber fazer), por um lado, quanto de situações complexas (da equilibração
interna e majorante resultante de uma experiência anterior).
Os trabalhos em grupo, tanto quanto o self-government, são repetidamente
citados pelos escolanovistas. Jonh Dewey (1859-1962), no contexto americano,
defendeu o ensino pela e para a democracia a partir dos grupos de trabalho; Jean
Piaget
10
viu na interação social dos alunos que trabalham em grupo um importante
recurso para o desenvolvimento cognitivo e moral do sujeito, pelos conflitos e
constante necessidade de busca de equilíbrio nas relações de trocas, sejam essas
lógicas ou sócio-morais, e nas imprescindíveis representações pessoais que cada
sujeito, num grupo, necessita reconfigurar internamente e incessantemente; tanto
quanto viu no grupo a possibilidade de superação do egocentrismo pela
reciprocidade nas relações de cooperação. O grupo era tido, ao mesmo tempo,
como estimulador de um sistema auto-regulável de controle moral e disciplinar
pessoal, como também, pelo self-government, um procedimento de educação que
confiava aos alunos a organização da disciplina escolar.
A atividade do aluno e o trabalho em grupo eram prioritários nas escolas
ativas, mas também consideravam com relevância a responsabilidade com relação à
educação moral. As experiências de cooperação e autonomia eram organizadas de
10
Jean Piaget não é citado como um escolanovista, diferentemente de Jonh Dewey, no entanto
defende tal movimento e disponibiliza uma rica fundamentação científica para a Escola Nova. O
movimento da Escola Nova traz uma proposta que é intensamente discutida por intelectuais e
docentes contemporâneos a Piaget.
46
forma a se fazerem representadas em toda a atividade desenvolvida; eram inerentes
a tudo que se fizesse, de forma que, na oportunidade adequada, questões do
cotidiano eram colocadas em discussão, acontecendo uma troca de opiniões sobre o
relacionamento interpessoal, de forma democrática, não se constituindo em uma
matéria, ou uma disciplina para o desenvolvimento da moral. Outra peculiaridade diz
respeito aos conteúdos, agrupados em totalidades, além de todo o esforço
despendido no aprender e fazer do aluno enquanto atitude ou ação, considerado,
pelo professor, como formativo do caráter e da cognição - concepção metodológica
que se opõe a uma aula onde o professor fala para um grupo de alunos que se
mantêm em silêncio e em trabalho individual. A escola ativa defendeu o
desenvolvimento moral como correlato ao desenvolvimento e ao aprimoramento dos
demais conteúdos escolares. Um princípio básico na escola ativa é o de que, se,
para melhor aprender física, matemática, ciência ou gramática, era necessário fazer
procedimentos ativos e reflexivos para confirmar as possíveis hipóteses iniciais do
aluno, esse deve ser também um princípio válido para o desenvolvimento sócio-
moral. Dessa forma, o aluno deveria ser colocado diante de situações em que fosse
questionado por suas ações, com relação à cooperação, ao respeito, ao valor
democrático e à autonomia.
Essa metodologia de trabalho voltou a ganhar espaço na atualidade. Josep
Maria Puig (Espanha) e Ulisses Araújo (Brasil) têm acompanhado trabalhos de
implantação de assembléias escolares com objetivos muito similares ao da Escola
Nova. "[…] As assembléias de sala de aula são um instrumento essencial em uma
escola democrática e um instrumento insubstituível da educação de valores". (PUIG,
2002, p.47). Três motivos são colocados por esses autores em defesa das
assembléias: primeiro, são facilitadoras do diálogo e do desenvolvimento do espírito
democrático no aluno; segundo, são momentos que potencializam a ação
transformadora no interior da escolar, ao redimensionar uma situação de conflito em
situação de aprendizagem, em conteúdo escolar; terceiro, é um espaço para a
educação moral, onde estão presentes o respeito, a colaboração, a solidariedade e
a justiça. As falas numa assembléia são democráticas e educativas porque se
transformam em opiniões, incrementam a compreensão mútua, permitem alcançar
acordos e servem para pedir desculpas, além de comprometerem o adolescente
47
com uma diferente conduta, a que considera o que se fala e o que se faz, no dizer
de Josep Maria Puig (2002).
É esperado que o aluno que trabalha em cooperação e com autonomia
possa ter um melhor desempenho escolar, que os valores de respeito e cooperação
se efetivem no desenvolvimento de uma cidadania responsável, expectativa essa
presente no século passado durante o advento da Escola Nova e do self-
government, bem como no século XXI, nas leis de ensino e nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs).
2.1.2 A Escola Nova no cenário nacional
O movimento escolanovista faz-se presente no Brasil a partir de 1920 e teve
um cenário peculiar, que o contextualiza num tempo histórico de muitos
acontecimentos marcantes.
Paulo Guiraldelli Jr. (2001), em sua obra sobre História da e Educação, diz
que os empresários e políticos brasileiros, no início do século passado,
empenharam-se em colocar o nosso país num novo patamar de desenvolvimento,
mais próximo do modelo industrializado, já consolidado nos países europeus e
americanos.
Para que o Brasil saísse da condição de subdesenvolvimento era preciso
que se enfrentassem, urgentemente, as questões do analfabetismo, das altas taxas
de mortalidade infantil, dos milhões de brasileiros trabalhando em condições
extremamente desfavoráveis
11
, da subsistência agrária, da monocultura, das grandes
áreas desabitadas no interior do país, da existência de uma população em sua
maioria jovem e economicamente não produtiva, da precariedade dos sistemas de
comunicação e de transporte do país, da decadência dos ciclos econômicos que até
então mantinham a economia brasileira, a exemplo do café
12
, da cana de açúcar, da
11
Antes do Estado Novo, governo de Vargas (1937-1945), havia normas esparsas sobre o direito do
trabalhador. Com a Revolução de 1930 iniciou-se um processo de implementação e sistematização
de uma legislação para o trabalhador, que culminou com a edição da Consolidação das Leis de
Trabalho (CLT) em 1943. É ainda posterior e paulatina a inclusão das leis sociais nas constituições
nacionais.
12
A aristocracia rural do café foi responsável por uma elite política paulista, os barões do Império,
sendo abalada pela crise mundial de 1929, com a quebra da bolsa de Nova Iorque.
48
borracha, da necessidade de importação do petróleo
13
, do trigo, bem como da
maquinaria, que serviria de alavanca para a “nossa revolução industrial tardia”.
No espaço cultural, o Brasil intensificava a "redescoberta" da nossa
nacionalidade através do movimento da Semana da Arte Moderna (São Paulo-
1922), com todos os acontecimentos que a antecederam e a sucederam,
revigorando o realismo
14
na literatura nacional, o teatro e as artes populares,
mostrando personagens genuinamente brasileiros, enaltecendo a mistura de raças
que constitui a cultura e o povo brasileiro.
Após a Primeira Grande Guerra as relações internacionais, econômicas e
políticas que o Brasil mantinha com a Europa ficaram abaladas, pois esse continente
agora se centrava na sua recuperação interna, em razão dos prejuízos provocados
pela guerra. O Brasil, nesse momento, intensificou suas relações comerciais com os
Estados Unidos, e a influência americana de imediato se fez notar também na
educação, através dos postulados democráticos de Jonh Dewey.
A partir de 1950 o movimento da Escola Nova passou a ser discutido de
forma mais severa, resultando em certo descaso e discriminação com relação a seus
princípios pedagógicos e políticos. No entanto, parece não ter perdido uma relativa
importância quando se discutiam as condições de ensino, as metodologias de
trabalho, a formação de professores, os valores sócio-morais na educação, a
educação para a solidariedade, cidadania e autonomia dos indivíduos e os
propósitos da educação, tanto que nas leis de ensinos nº 4024/61 e nº 5692/71, que
antecederam a lei atual, tais princípios foram mais uma vez discutidos. Aliás, Paulo
Guiraldelli (2001) identifica nos movimentos educacionais que se seguiram ao da
13
Monteiro Lobato liderou uma campanha pela exploração do petróleo brasileiro. Também caricaturou
em sua obra um personagem tipicamente do interior paulista brasileiro, o Jeca Tatu. Esse
personagem se mostra passivo, indolente, desanimado, doente, com verminoses e sem forças e
recursos para trabalhar o extenso e fértil território brasileiro.
14
Movimento literário que se detém em aspectos da vida, da realidade, dos problemas, conflitos e
costumes da classe média e baixa, com seus fatos ordinários e banais. Na Europa predominou na
França entre 1850 e 1880.
49
Escola Nova resíduos dos seus princípios, a exemplo da Pedagogia Liberal
15
,
Pedagogia Progressista
16
, Pedagogia Crítica
17
e outras tantas.
A magnitude da pretensão dos escolanovistas exigia profissionais
competentes na tarefa do ensino e da aprendizagem – ainda hoje uma questão
presente no nosso contexto. A idéia de que o professor conheça seu aluno para
melhor compreender o processo de aprendizagem que aquele percorre faz supor um
bom suporte teórico, do qual nem todos professores dispõem. O desgaste do
professor como figura pública desqualificada, infelizmente, mantém-se atual.
Os escolanovistas almejavam uma lei que introduzisse no país um sistema
de ensino competente, de qualidade pedagógica, e, ainda, que atendesse ao intento
de ser laico, gratuito, comum aos dois sexos e obrigatório para todo cidadão. Para
tanto, necessitava, para sua consolidação, de transformações sociais concomitantes
a mudanças político-educacionais no cenário nacional.
A defesa à escola pública iniciou-se com o movimento da Escola Nova,
sendo dividido em quatro períodos subseqüentes, aqui ordenados por José Carlos
Libâneo:
[…] a primeira foi o conflito entre católicos e liberais-escolanovistas, ocorrido
no período que vai de 1931 a 1937, sobre as linhas que deveria assumir a
política nacional de educação; a segunda gira em torno do conflito entre
escola pública e escola particular e vai de 1956 a 1961, culminando com a
aprovação, pelo Congresso Nacional, da Lei 4.021; a terceira corresponde
ao surgimento dos "movimentos de educação popular" que vai de 1960 a
1964; finalmente, a quarta, que é momento que estamos vivendo, iniciado
por volta de 1980, caracterizado pela mobilização da sociedade em torno da
universalização e democratização da escola. (LIBÂNEO, 1995, p. 57).
Dessa forma, as questões trazidas pelos escolanovistas se fizeram perenes
no contexto nacional e alternaram momentos em que a discussão dos aspecto
políticos se sobrepuseram ao pedagógico, e vice-versa, um processo de reincidentes
15
A pedagogia liberal sustenta a idéia de que a escola tem por função preparar os indivíduos para
desempenhar os papéis sociais requeridos pela sociedade de classes, de acordo com suas aptidões
individuais.
16
A pedagogia progressista inclui as tendências que compreendem a escola no contexto das
relações sociais, sustentando explicitamente as suas finalidades sociopolíticas em termos de
emancipação humana, ou seja, as pedagogias libertadora e libertária.
17
A pedagogia crítica, também reflexiva, concebe a educação como um processo de humanização
dos homens, mas inseridos no contexto de suas relações sociais. Parte da análise crítica das
realidades sociais, sustentando as finalidades sociopolíticas da escola na direção dos interesses
emancipatórios das camadas populares.
50
discussões pela implantação de gradativas reformas nas leis de ensino, ratificando
os princípios anunciados pelos Escola Nova do início do século passado.
Não se deve desconsiderar, no movimento escolanovista, a presença de
forças capitalistas que representavam a manutenção de interesses diferentes do da
educação. Os políticos tinham especial interesse em controlar a participação política
das massas por meio das eleições, e a escola era um instrumento estratégico para
tal fim. Também havia os interesses revelados dos católicos, que já tinham
assegurado a formação privada das elites brasileiras e não viam motivos de tornar
tal investimento público e para todos, sendo ainda gratuito. Também os intelectuais
se abismavam com a imagem das cidades invadidas por populações de costumes
rudes que ameaçavam as rotinas citadinas de uma elite urbana e letrada que
ascendia economicamente. Educar a população e amenizar, moralizar, seus
costumes toscos eram procedimentos políticos necessários, tanto quanto conter o
fluxo migratório em direção às cidades, o que tornou prioritário disponibilizar
oportunidades de educação por todo o território nacional, criando escolas nas zonas
distantes da cidade e ali fixando as populações rurais. Resumiu o médico Miguel
Couto: "[…] no Brasil só há um problema nacional: a educação do povo".
(CARVALHO, 2003, p.236).
A estratégia utilizada pelos católicos para a manutenção da escola privada
foi a de difamar a escola pública e as pessoas que a defendiam, a exemplo das
críticas lançadas contra Anísio Teixeira, diretor do Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos. Este sempre defendeu uma escola de qualidade, gratuita e
obrigatória, sem, entretanto, se posicionar contra a existência de um ensino privado.
Como um progressista, percebia a necessidade da escola pública e laica para a
classe social operária e trabalhadora que surgia no país e reivindicava a
escolarização como garantia de permanência e/ou melhoria de situação
socioeconômica perante as possibilidades crescentes que o desenvolvimento do
país permitia vislumbrar para o cidadão alfabetizado.
O grupo dos escolanovistas, os "profissionais da educação", assim
identificados a partir do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova de 1932, por sua
vez, defendia os ideais da escola laica, gratuita, comum aos dois sexos e obrigatória.
Afirmavam eles:
51
Jamais o Estado pretendeu exercer o monopólio do ensino, mas ao
contrário, pode mesmo ser acusado de relapso em relação aos seus
deveres educacionais. Tanto isto é verdade que as empresas privadas
mantiveram franco domínio dos ramos de ensino pelos quais se
interessaram – secundário, comercial e superior – e se não exerceram
supremacia sobre o primário é porque este ensino nunca as atraiu
suficientemente. (WEREBE, 1970, p. 29).
Em 1924 surgiu a Associação Brasileira de Educação (ABE), cujos objetivos
eram basicamente dois: reunir em congressos opiniões que pudessem consolidar
uma nova fisionomia pedagógica para a escola brasileira e dialogar com três
18
correntes pedagógicas de intelectuais que defendiam seu modelo de escola. Um
grupo era dos católicos, partidários da pedagogia tradicional, outro reunia os
signatários da pedagogia nova e o terceiro grupo defendia a pedagogia libertária.
Mário Sérgio Vasconcelos (1996) em sua obra: A Difusão das Idéias de
Piaget no Brasil apresenta as reformas educacionais ocorridas no território brasileiro
a partir dos princípios da Escola Nova. São Paulo introduziu os princípios
escolanovistas em suas leis de ensino pela liderança de Sampaio Dória, em 1920;
no Ceará, aconteceu sob a liderança de Lourenço Filho em 1922; no Rio de Janeiro,
por Antônio Carneiro Leão e Fernando Azevedo em 1922; na Bahia, por Anísio
Teixeira em 1924; em Minas Gerais, por Francisco Campos em 1927 e,
posteriormente, no Rio Grande do Sul, no ano de 1938, pelo secretário estadual de
Educação José Pereira de Souza. Esses novos modelos de organização do ensino
e da ação do professor confrontavam-se com a falta de um plano de governo em
nível federal, de uma política público-pedagógica para o ensino nacional, de tal
forma que não foi o poder central que determinou as mudanças na política
educacional; ao contrário, o governo foi constrangido a pensar num plano
educacional mais moderno e condizente com as alterações já realizadas nos
estados da federação.
A discussão política sobre uma escola pública ou privada ganhou espaço no
cenário brasileiro a partir da IV Conferência Nacional de Educação (1931),
organizada pela ABE. Esse evento tinha a intenção de discutir as diretrizes para a
educação popular, tal como desejava o governo de Getúlio Vargas, que fez o
18
Segundo Paschoal Lemme, em depoimento a Marília Pimentel, eram dois os grupos. O liberal-
democrata de Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo, e o grupo católico-reacionário, de D. Hélder
Câmara, Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athaíde) e Jônatas Serrano. (PIMENTEL, Marilia, p.30 In:
LEAL, Maria Cristina. História e Memória da Escola Nova, 2003).
52
pronunciamento de abertura e conclamou os educadores ali presentes para a
elaboração das diretrizes educacionais para um plano de governo, programa esse
não especificado na Revolução de 1930, além de anunciar, no evento, a criação do
Ministério da Educação e da Saúde Pública.
Após a conferência houve o desenrolar dos seguintes fatos:
1 - a conferência acirrou a oposição antagônica entre os progressistas
liberais e os católicos;
2 - foi redigido o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” no ano
seguinte à conferência, em 1932, no qual foram apresentados os motivos e as
indicações metodológico-pedagógicas para uma nova escola brasileira, pautada nos
fundamentos da gratuidade, laicidade, obrigatoriedade, e de ser comum para os dois
gêneros;
3 - o novo ministro da Educação, Francisco Campos, tentou contemplar na
Constituição de 1934 tanto os ideais dos liberais como os dos católicos ao
estabelecer as novas diretrizes da educação pública nacional
19
.
O liberalismo foi o berço do escolanovismo. Como um movimento político,
vislumbrou a escola como formadora de cidadãos alfabetizados e capazes de,
ativamente, participarem do desenvolvimento econômico do país.
O Manifesto de 1932 passou a constituir-se num marco referencial em
defesa da escola pública na história da educação brasileira. Foi positiva a
repercussão que os escolanovistas desencadearam na população e nas elites
governamentais com a publicação do manifesto público que fazia defesa à educação
popular. Nele sugeriam a reformulação da política educacional a partir de bases
pedagógicas renovadas, assentadas todas nos princípios escolanovistas, já
consolidados como uma experiência de êxito em muitas regiões da Europa e dos
Estados Unidos.
19
O grupo dos liberais e signatários do Manifesto de 1932 redigiu um novo documento em 1933,
como síntese do Manifesto de 1932, onde voltou a afirmar os princípios do movimento escolanovista,
como fundamento para uma proposta de educação nacional, agora com posições menos acirradas.
Esse texto serviu como documento-base para o ministro Francisco Campos quando da elaboração
das diretrizes nacionais da educação na Constituinte de 1934.
53
A análise contida na próxima citação refere-se ao ensino na cidade do Rio
de Janeiro, então capital do Brasil, sendo, no entanto, apropriada para a própria
leitura de escola como um todo sobre o que se pretendia na época com a
modernização do ensino:
[…] empurrar a escola para fora de si mesma, ampliando sua área de
influência na cidade; de atravessar o espelho da cultura européia e norte-
americana para elaborar um conhecimento instrumental sobre a educação
brasileira e a vida urbana; de retirar a educação da tutela da igreja e do
governo federal; de lutar contra os "destinos" escolares que a fragmentação
social impunha. Essas características provocaram conflitos em vários
níveis: governamental […]; no nível das próprias escolas em funcionamento,
o que é indicativo do caráter polêmico da gestão da modernidade
pedagógica. (NUNES, 2003, p. 191).
Com o fim da Segunda Grande Guerra (1945), a Europa iniciou a sua
reconstrução tendo governos populares e democráticos, ao passo que no Brasil o
presidente era deposto, em razão da aproximação de Getúlio Vargas às teses
defendidas pela esquerda. Com a queda do governo de Getúlio Vargas, foram
reativadas as mobilizações democráticas e populares em todo o país; partidos
políticos se revigoraram, entre eles os de esquerda
20
; o povo foi chamado para
eleições presidenciais para substituir o governo provisório instalado e para a
formação de uma Assembléia Nacional Constituinte. Tal fato mobilizou os
educadores, que mais uma vez retomaram os ideais da Escola Nova, “adormecidos”
pelo governo ditatorial de Getúlio Vargas.
O Partido Comunista não acreditava na viabilização dos problemas
brasileiros através da escolarização, no entanto valorizou a escola pública e
reivindicou melhores condições de trabalho para o professor de escola primária. Foi
esse partido que organizou os comitês populares democráticos nos bairros das
principais cidades brasileiras, com o intuito de alfabetizar e de realizar um trabalho
político junto às classes trabalhadoras. Desse trabalho resultou que as associações
de bairros, mais uma vez, vieram a público “[…] reivindicar melhorias urbanas como
esgoto, calçamento, parques infantis, escolas etc.” (GHIRALDELLI, 2001, p. 107).
20
O Partido Comunista do Brasil foi fundado em 1922, mesmo ano da Semana da Arte Moderna no
Brasil.
54
A contingência política brasileira de uma possível aprovação do substitutivo
Lacerda
21
, o que era uma ameaça à escola pública, levou a que em 1959 fossem
rechamados os signatários do Manifesto de 1932 e publicassem um novo manifesto,
o “Manifesto dos Educadores Mais Uma Vez Convocados” (1959), também redigido
por Fernando de Azevedo. Na época, o jornal O Estado de São Paulo, que tinha um
editorial pró-conservador, udenista
22
, passou a apoiar os liberais, os educadores
progressistas e até mesmo os socialistas na defesa da escola pública.
Diferente de 1932, o Manifesto de 1959 não se preocupou com questões
dedáticas-pedagógicos. Admitindo válidas as diretrizes escolanovistas de
1932, esse documento tratou de questões gerais de política educacional.
(GHIRALDELLI, 2001, p. 114).
Em 1961
23
surgiu o Movimento de Educação de Base (MEB), vinculado à
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que, trabalhando pela
conscientização das populações da zona rural do país através da alfabetização,
pretendia a elevação da cultura do povo. O MEB e os Cent
55
A Pedagogia Libertadora insistia na idéia de que todo ato educativo é um
ato político e que o educador "humanista revolucionário", "ombreado com os
oprimidos", deveria colocar sua ação política-pedagógica a serviço da
transformação da sociedade e da criação do “homem novo”.
(GHIRALDELLI, 2001, p. 123).
As escolas deixaram de ser extensão da família, do privado e religioso e,
gradativamente, transformaram-se em redes de escolas públicas municipais e
estatais. Ficou estabelecido um novo espaço de poder. A reforma da sociedade
estava a passar pela escolarização, pela “reforma” do homem. A influência liberal
reafirmava os valores democráticos e a perseverança na luta por uma educação
pública garantidora dos direitos de inclusão, entendida como uma luta pela
universalização do ensino básico e pela igualdade de acesso a todos os brasileiros.
Diante desse vasto campo de interesses e intenções, é preciso, para melhor
compreensão do movimento escolanovista no Brasil, distinguir duas análises: uma
dos aspectos políticos que a ele conduziram e outra com relação a seus
fundamentos pedagógicos. Os aspectos políticos e de interesses econômicos estão
apresentados, muito resumidamente, até aqui. Passamos, então, aos aspectos
pedagógicos, de ensino, analisados a uma relativa distância proporcionada pelo
transcorrer do tempo, quando as paixões estão abrandadas e se pode melhor
visualizar o legado da Escola Nova para o contexto atual da escola.
Os conflitos e os avanços no panorama político-econômico trouxeram
repercussões no panorama pedagógico, especialmente quanto à apropriação dos
princípios da Escola Nova no cenário da escola pública brasileira do início do século
passado. Do início da década de 1930 ao final da de 1950, ser progressista
significava ser um escolanovista.
Eram poucas as escolas públicas existentes no território brasileiro durante a
primeira metade do século passado, isso com relação ao contingente populacional
existente; eram também muito precárias fisicamente para a tarefa do ensino,
conforme parecer de Paschoal Lemmne de 1947
24
. Dessa forma, além dessa
dificuldade material, os escolanovistas precisavam enfrentar o desafio da formação
de professores e a incorporação dos novos campos de saberes que se somavam
24
Relatório feito pelo Partido Comunista à Mesa da Câmara Municipal do Rio de Janeiro no sentido
de melhorar a instrução pública (Guiraldelli, 2001).
56
aos conhecimentos pedagógicos, especialmente dos oriundos da biologia, da
psicologia e da sociologia, que passaram a ser ciências-fonte da educação.
A escola, até o século XIX, trabalhava segundo o paradigma pelo qual as
oportunidades de ensino eram desiguais para contemplar distintas realidades e
condições humanas, diferentemente da Escola Nova, influenciada pelos estudos
experimentais da psicologia psicométrica (Alfred Binet, 1857-1911), que pretendia
proporcionar iguais oportunidades aos sujeitos, organizando grupos homogêneos de
alunos conforme o desempenho alcançado em avaliações de inteligência.
Convém que se diga que a trajetória da Escola Nova no Brasil teve
diferentes encaminhamentos, em razão de distintas ênfases que os princípios
disponibilizaram. Uma possibilidade foi a classificatória, onde o professor
identificava o potencial individual dos alunos através de testes e agrupava-os em
função de suas qualidades intelectuais. Para este entendimento a escola deveria
oferecer as mesmas possibilidades de acesso a todos os alunos, no entanto as
diferenças individuais de cada um determinariam seu rendimento acadêmico
25
.
Uma segunda leitura deste movimento refere a uma possibilidade de caráter
bem mais liberal, de uma escola que priorizava atividades que orientavam o aluno na
preparação para a vida social, para a vida do trabalho produtivo no interior da
escola, assemelhando-se ao ambiente produtivo do comércio, da indústria ou das
relações de trabalho. A escola deveria ser útil e produtiva, portanto, preparando
para o trabalho
26
, especialmente as populações desprovidas de capital econômico.
Uma terceira possibilidade que os princípios da Escola Nova ofereceram foi
de a ação pedagógica ser construída a partir das atividades de cooperação e de
solidariedade entre os alunos, com o trabalho em grupo se constituindo numa
ferramenta pedagógica privilegiada. Defendendo essa perspectiva tivemos o
educador Anísio Teixeira, expoente intelectual e ferrenho defensor da escola pública
no Brasil. Anísio Teixeira foi aluno e discípulo do americano Jonh Dewey, no qual se
centra esta terceira perspectiva.
25
As situações de não-aprendizagem eram de "responsabilidade" do próprio aluno.
26
A leitura do Manifesto de 1932 dá possibilidade de entendimento do trabalho tanto como fim quanto
como procedimento da educação.
57
Anísio Teixeira, educador e político, tal como Jonh Dewey, dizia: a escola
não deveria ser a preparação para a vida futura, mas, sim, constituir-se na própria
vida do educando.
Convém que se destaque o nome de Anísio Teixeira no contexto
educacional brasileiro e da Escola Nova. Anísio Teixeira teve importante
participação como administrador público em diferentes setores da educação
brasileira, especialmente entre 1920 a 1960. A sua concepção de educação, de
homem e sociedade estava embasada em princípios filosóficos e político-
democráticos. Foi aluno de Jonh Dewey e defendeu os princípios pragmáticos
desse autor em nosso território. Foi um intelectual comprometido com seu tempo;
fez-se um otimista com relação a uma nova escola brasileira, a que viria a preparar o
homem moderno como um sujeito ativo e participante, pela sua criticidade, numa
sociedade democrática; ele rompeu com a tradição filosófica humanista-cristã em
favor de um humanismo-teconológico. Seus pronunciamentos diziam de duas novas
tendências sociais, que sustentavam as relações sociais e do trabalho, quais sejam,
a ciência e a democracia. Anísio Teixeira nunca deixou de trabalhar por uma escola
pública e de qualidade para todos os brasileiros, como também foi incansável na luta
por uma sociedade mais justa e mais humana para qualquer um.
Feitos esses parênteses, com relação a Anísio Teixeira no contexto
educacional brasileiro, retomo as possibilidades de encaminhamento do trabalho
pedagógico da Escola Nova, a de ser uma escola classificatória, segundo as
possibilidades intelectuais de cada aluno; a de ser uma escola cooperativa, onde o
processo democrático e de aprendizagem em grupo ganhavam relevância, de
perspectiva psicológica e social, e, por último, de uma escola funcional, de
preparação do aluno para sua vida produtiva, de trabalho na sociedade em
transformação. Essas três facetas da Escola Nova não foram claramente
delimitadas ou trabalhadas no interior do movimento escolanovista, de forma a
demarcar especificidades teóricas e tendências. Todas essas fizeram ancoragem no
movimento escolanovista, criando, assim, um emaranhado teórico e pedagógico que
propiciou o entendimento desse movimento ora como elitista, ora como tecnicista,
ora como populista, ora como psicologizante ou mesmo utópico. A obra de
Dermeval Saviani, Escola e Democracia, que teve sua primeira publicação em 1983,
é um dos trabalhos que serviram de referência para muitas teses, dissertações e
58
estudos a respeito da História da Educação Brasileira. Pela perspectiva desse
último autor a Escola Nova é aborda de forma tendenciosa, privilegiando ora a
perspectiva tecnicista, ora uma perspectiva psicologizante. Faz-se necessário
retomar os textos originais e um estudo do contexto da época para melhor
compreender a magnitude desse movimento e sua repercussão no contexto
educacional brasileiro.
A primeira e a terceira tendência têm a característica de ressaltar o individual
em oposição ao coletivo, e as três tendências têm a criança ou o jovem como um
sujeito ativo, que pela atividade participa de forma reflexiva e crítica do seu
desenvolvimento moral, lógico e social.
O dilema interno que a Escola Nova sintetiza foi o conflito entre uma
abordagem individual e uma coletiva. O pensamento educacional renovador
procurava equilibrar-se entre essas duas tendências opostas. A primeira
supervalorizava o indivíduo, pelas testagem de alunos e organização de turmas
homogêneas para que a potencialidade de cada um fosse ressaltada. Na outra
abordagem, é o social que prevalece com destaque, colocando o indivíduo na
dependência das normas sociais. Os defensores do trabalho em grupo, entre eles
Jean Piaget, diziam que o coletivo não se opõe ao individual; pelo contrário, atende
aos dois pólos, porque promove o desenvolvimento individual, do intelecto e da
razão, ao mesmo tempo em que é um procedimento coletivo, feito em par com
outros sujeitos. Enquanto a consideração da individualidade do aluno era resultante
da ênfase dada pela psicometria da época, o trabalho coletivo, dos grupos e ações
cooperativas, era resultante da ênfase psico-sociológica. É diante disso que
devemos compreender o pensamento escolanovista, nem sempre tendo sucesso no
equilíbrio de sua dupla inclinação.
Convém lembrar que o trabalho por equipes nasceu de um dilema de
simultânea natureza, a política e a psicológica. Essa metodologia de trabalho, por
um lado, reconhece a importância crescente atribuída ao fator coletivo pelas
diversas ideologias políticas e de incremento da vida democrática na escola, que
acabou levando os educadores a enfatizar a vida social existente em sala de aula;
por outro, norteada pelo respeito à atividade da criança e pelos dados de psicologia
infantil, que dizia ser a cooperação situação que privilegia a aprendizagem.
59
O modelo escolar predominante fazia o aluno trabalhar de forma a
automatizar procedimentos; por sua vez, a Escola Nova sugere a colaboração entre
os alunos num grupo de trabalho, considerando esta atividade um suporte ao
desenvolvimento da autonomia do aluno. Na escola tradicional, todo
desenvolvimento intelectual e moral do aluno tem sua origem nas relações
heterônomas, porque ligadas à pressão contínua do professor; ao contrário, na
Escola Nova, o desenvolvimento moral e o cognitivo podem, em muito, ser
facilitados pela relação respeitosa e recíproca estabelecida em aula entre professor
e alunos. Nessa relação, os sujeitos são incentivados à descentração de seus
pontos de vista, isto é, a diminuição do egocentrismo natural da criança e as
relações que se estabelecem o mais próximo possível da vida real facilitam um
trabalho espontâneo e cooperativo, constituído a partir das necessidades e dos
interesses de um grupo formado por indivíduos com histórias diferentes.
A ludicidade na atividade escolar é outra característica da Escola Nova, esta
resgatada dos estudos de Friedrich Frobel (1782-1852), que utilizava o jogo nas
situações escolares. Johann H. Pestalozzi e Friedrich Frobel acreditavam que a
educação acontece pela experiência que a criança faz, negando, portanto, o
princípio de uma ação educativa como algo a ser efetuado de fora para dentro. Os
escolanovistas, da mesma forma, viam uma transição espontânea do jogo para o
trabalho; consideravam o jogo um recurso importante por conter, além do
componente simbólico, um exercício sensório-motor a ser praticado tanto pelas
crianças como pelos adolescentes. Os jogos eram incentivados e diversificados,
podendo consistir em atividades campestres, numa caminhada ou num jogo coletivo.
Diz-se, como crítica, que a Escola Nova foi extremamente lúdica,
comandada pelos alunos e com carência de conteúdos acadêmicos. Em resposta,
Adolfo Ferrière diz:
Elas [as escolas com novas metodologias] não se podem basear apenas na
espontaneidade, requerem um certo "programa mínimo" que não se deve
reduzir à reciprocidade e à cooperação. A escola experimental tem, também
ela, um programa de estudos que não é simplesmente sinônimo dos
métodos de aprendizagem social. (BARRELET; PERRET-CLERMONT,
1996, p. 231).
Outro aspecto a ser considerado como política pública da educação, e
também de preocupação metodológica, presente no movimento da Escola Nova é
com relação à formação do professores. Essa formação sempre foi reduzida e até
60
precária em muitas situações, a exemplo de ser suficiente, na época, para a
docência, um reduzido domínio da leitura, escrita e cálculo em muitas regiões do
país; muito poucos eram os professores com habilitação para o magistério, dos
quais, ainda, muitos tinham formação filosófica.
Em Belo Horizonte foi inaugurada em 1929 a Escola de Aperfeiçoamento
Pedagógico, criada com a específica atribuição de atualização e formação docente.
Essa instituição tornou-se uma referência no país, além de ser uma das pioneiras a
ler textos do jovem pesquisador Jean Piaget, sobre suas recentes descobertas
acerca da mentalidade infantil. A escola mantinha intercâmbio com o Instituto Jean-
Jacques Rousseau, tanto que vários professores de lá vieram para ministrar cursos
no Brasil, tal como historia Mário Sérgio Vasconcelos na obra A Difusão das Idéias
de Piaget no Brasil (1996).
A escola exitosa foi uma unanimidade para os escolanovistas, assim como o
fato de ser laica, obrigatória, gratuita e comum. Todos os alunos deveriam aprender
na escola, independentemente de ser organizada a partir de uma classificação
prévia, de priorizar as atividades produtivas e laborativas ou das ações cooperativas;
deveriam ter mais do que o domínio do código da escrita, da leitura e do cálculo,
atingindo um status de cidadão brasileiro, tomando posse de seus direitos e deveres
para uma nova sociedade que se industrializava e se desenvolvia em quase todos
os sentidos. A luta contra o analfabetismo foi unânime. Jean Piaget assim se referiu
a esse empreendimento:
[…] o analfabetismo não é apenas uma privação do uso da leitura e escrita,
mas uma carência geral que interessa aos meios de produção e à própria
saúde tanto quanto os sistemas de comunicação ligados ao alfabeto e que
servem à transmissão dos conhecimentos elementares de que depende a
vida inteira. (PIAGET, 1998, p. 122).
A Escola Nova privilegiava momentos de passeios, piqueniques, idas a uma
indústria para visitação como situações de ensino de enorme proveito pedagógico.
Os alunos não necessitavam permanecer enfileirados, atentos à verbalização do
mestre, para aprender; ao contrário, eram incentivados a participar, a falar, a
perguntar, a estabelecer trocas com os colegas, numa tentativa de aproximação das
situações cotidianas da vida à escola, ao espaço de aprendizagem. As aulas de
laboratório também eram incentivadas, e espaços foram criados para esse fim
específico, do aprender pela experiência, num ambiente cuidadosamente construído
61
para o fim da aprendizagem. O ensino era dividido em períodos de pesquisa, de
estudo individual e de aulas coletivas.
O professor escolanovista devia desacomodar o aluno, criar nele motivos
particulares que o levassem a pensar cientifica e moralmente a partir das
experiências vividas tanto no seu ambiente escolar como nos ambientes social e
familiar. Dessa forma, podemos dizer que a premissa da atividade, do sujeito em
ação, predispõe-no ao desenvolvimento de suas potencialidades intelectuais, sociais
e morais de forma simultânea. Convém que se ratifique a proximidade do
movimento da Escola Nova e algumas idéias pedagógicas lançadas por Jean Piaget
em conferências em que a temática dobrava-se sobre a educação; todavia, a obra
piagetiana transcende os princípios escolanovistas, como uma epistemologia do
conhecimento que foi, em parte, reconhecida pelo movimento em questão.
A pedagogia, a grande beneficiária do movimento da Escola Nova, ganhou
em três dimensões: primeiro, com a própria pedagogia da ação; segundo, na
organização escolar, com uma política para a educação, e, terceiro, com novas
teorias para a educação, a cientificidade de que se carecia até então.
É evidente que, ao resgatar os princípios fundadores da Escola Nova,
fazemo-lo a partir de seu saldo positivo, daquilo que pode ser interessante para a
discussão e enriquecimento das idéias pedagógicas atuais. A pedagogia, por
trabalhar com sujeitos em desenvolvimento, mantém em si a necessidade da
dinamicidade, de constante exercício de atualização crítica e contextualizada, e não
são somente as idéias "novas" que possibilitam uma profícua reflexão pedagógica.
Isso posto, podemos observar que os princípios escolanovistas, mesmo
tendo se passado tanto tempo - o suficiente para que a ciência pedagógica se
ampliasse através de novos estudos -, não deixaram de ser pertinentes. Ainda
falamos de uma escola que tenha como fim um cidadão solidário, autônomo e
crítico, escola que seja ativa, que seja pautada sobre conteúdos significativos, que
seja multidisciplinar. Se considerarmos a perspectiva política do movimento, ainda
entendemos que a escola deva dar acesso e garantir aprendizagem a todos, ser
inclusiva, gratuita, laica e emancipatória.
A Escola Nova trouxe uma forte concepção humanista à educação por
conceber o homem, em sua essência, como articulador e centro do seu
62
desenvolvimento. Provocou modificações importantes no sistema escolar,
colocando os estudiosos do ensino em constante questionamento sobre a melhor
forma de levar o aluno a "aprender a aprender" de forma autônoma e responsável.
2.2 O DESENVOLVIMENTO DA AUTONOMIA EM JEAN PIAGET
A moral diz respeito ao agir humano nas situações de interação com seus
pares, por isso é também social. Em qualquer relação com outro sujeito é
necessária a existência de regras e normas de conduta que orientem a relação, isto
é, seu componente moral. É necessário, no entanto, ter a moral como uma força de
mobilização interna e livre de pressões sociais externas sobre um sujeito, de forma
que o oriente no modo como agir com os outros, no modo como deve proceder
segundo a autonomia moral de cada um.
Segundo Jean Piaget, "[…] toda moral consiste num sistema de regras, e a
essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire
por essas regras". (PIAGET, 1932-1994, p.23). Ainda diz:
A moral da consciência autônoma não tende a submeter as personalidades
a regras comuns em seu próprio conteúdo: não limita-se a obrigar os
indivíduos a "se situarem" uns com relação aos outros, sem que as leis de
perspectivas resultantes desta reciprocidade suprimam os pontos de vista
particulares. (PIAGET, 1932-1994, p. 295).
Jean Piaget diz aqui que a regra moral deve ser organicamente
estabelecida, de forma a contemplar o regramento moral de uma sociedade, as suas
leis, sem suprimir as particularidades da autonomia de cada sujeito, isto é, está
resguardada a possibilidade de diferenciação de cada um na totalidade do
consenso.
Sobre a simultânea diferenciação e similaridade no comportamento de cada
sujeito no seu processo de inclusão social, Jean Piaget diz que a moralidade não
conduz a uma homogeneização de ações, apesar de uma certa tendência para
comportamentos que respondam à uniformização, isto é, que possibilitem a
convivência entre muitos indivíduos a partir de valores minimamente comuns, para
que a cooperação seja possível. A diferenciação numa sociedade é desejada; só
assim cada sujeito pode transformá-la ou nela se inserir conforme suas aptidões.
63
Ser moral pressupõe desentranhar o que nos parece pessoalmente correto
diante de situações controvertidas, e supõe também sentir-se obrigado por
si mesmo a fazê-lo com independência dos pontos de vista e das pressões
circundantes. (PUIG, 1998, p. 78).
Para Jean Piaget, a criança participa ativamente do seu desenvolvimento
moral pelo fato de a construção das regras e valores ser dependente das trocas
sociais que estabelece no meio onde interage. Piaget não vê a criança como
egoísta e movida por impulsos destrutivos; diz que esses julgamentos são
projetados na criança pela percepção adulta. Defende que na criança tanto existem
tendências para saciar desejos próprios, egocêntricos, como tendências de
estabelecer relações de reciprocidade. Os valores e regras são tidos por Piaget
como dependentes da possibilidade de tomada de consciência do sujeito, somados
à qualidade das relações que a farão constituir uma moral mais heterônoma ou mais
autônoma. Na moral heterônoma as regras são meramente legitimadas em razão do
prestígio de quem as impõe e entendidas ao pé da letra, ao passo que a moral
autônoma é regida por regras claramente compreendidas no seu espírito e
legitimadas pela razão, por contratos feitos entre pessoas que se concebem como
livres e iguais, diz Yves La Taille na introdução do livro de Josep Maria Puig, A
Construção da Personalidade Moral de 1998.
Para a concepção de moral autônoma, Jean Piaget sugere que a educação
dos alunos privilegie situações de cooperação, de grupo, nas quais a descentração,
o diálogo e o acordo se fazem necessários.
O estudo de Jean Piaget sobre o desenvolvimento moral foi realizado com
crianças em situação de jogo. A partir das entrevistas clínicas realizadas foram
constituídos dois grupos de análise, um com relação à prática das regras no jogo,
isto é, o modo como as crianças seguem as regras e como fazem para colocá-las na
situação de jogo; e outro grupo, da consciência da regra, que diz respeito ao
entendimento, à compreensão que as crianças têm da regra, de sua necessidade,
origem, utilidade e sua possibilidade de alteração. Esses dois grupos de análise
foram analisados detalhadamente por Jean Piaget na sua obra de 1932, O Juízo
Moral na Criança. Sua busca dirigiu-se à questão: Por que as regras são
obedecidas? Jean Piaget não via valor moral na simples obediência às regras
estabelecidas socialmente; ele buscou o princípio inerente e interno à ação moral, a
64
que move o sujeito para determinadas situações de interação social; como as regras
morais são validadas pelo sujeito.
Com relação à prática das regras, identificou quatro grupos de atitudes
dominantes da ação infantil. Na primeira delas há uma simples manipulação
exploratória das peças de um jogo. A criança exercita sua capacidade motora e
constrói um certo ritual, que será repetido na presença do mesmo objeto. É o
período observado até em torno de dois anos. O segundo grupo, que compreende
dos dois aos cinco anos, foi denominado de período egocêntrico; a criança é capaz
de identificar um procedimento que é peculiar ao jogo e imita-o de forma distorcida,
copia em ação o que consegue perceber de uma situação de jogo, sem, contudo, ter
interiorizado ou compreendido a sua dinâmica total e os procedimentos internos da
intenção e peculiaridades da ação e intenção de quem joga. Nesse momento ela
joga na presença de outras crianças sem necessariamente estar jogando com seu
companheiro; os jogos são paralelos; todos podem ganhar; todos podem ter seu
jeito de jogar. Um terceiro grupo de ações surge com a cooperação nascente, onde
a regra e os procedimentos internos do jogo são conhecidos e respeitados como
imperativos. A criança é capaz de acompanhar a estratégia de jogo do seu
adversário para organizar suas ações com a nítida intenção de vencer ao outro.
Existe, agora, o indício de uma intencionalidade no jogo e uma descentração da sua
perspectiva frente à situação de jogo e interação entre os sujeitos. É no último
grupo que o jovem vê a possibilidade de uma adequação das regras às
necessidades e intenções dos jogadores. O jogo e suas regras tornam-se flexíveis,
desde que sejam negociados e haja o aceite de todos. A regulação é minuciosa,
vários detalhes são especificados, essa etapa da combinação prévia do jogo é parte
da diversão.
A prática das regras, então, vai de uma situação de indiferenciação da regra
para uma etapa de obediência aos procedimentos normativos do jogo até sua
possibilidade de flexibilização, pela negociação e estabelecimento de novos jeitos de
jogar.
O segundo grupo de análise foi o da consciência da regra, a forma como a
criança interioriza a regra moral, esse o grande objeto de estudo de Jean Piaget.
Neste item foram observados três grupos de condutas. No primeiro grupo estão as
crianças que, de início, não percebem a existência das regras. É o período
65
denominado de anomia, com uma indiferenciação de ações originárias do mundo
externo e do universo interno; as ações espontâneas da criança e as ações do meio
não são sentidas como obrigatórias. Esse período se estende até a construção do
objeto permanente, da representação e da função simbólica. À medida que a
criança constrói o real como permanente em seu entorno, tema discutido na obra A
Construção do Real na Criança (1937-1979), surgem as primeiras trocas
interindividuais propriamente ditas, fato que inaugura um novo período, no qual as
normas passam a ser sentidas pela criança.
No segundo tipo de conduta observado existem uma consideração e
respeito, por parte das crianças, com relação à regra ditada pelos adultos. Elas
percebem agora a crescente regularidade de certas restrições, de negativas que
dirigem sua ação exploratória sobre o mundo, de uma maior incidência de regras
exteriores sobre ela, e isso as leva a atenderem às normas de conduta sócio-morais
anunciadas pelos adultos que a cercam, a reconhecerem o valor de uma restrição e
os indícios de uma permissão. Passam de um período de anomia (submissão aos
seus próprios desejos) para a heteronomia (submissão à palavra adulta), deixando-
se dirigir por outros. Os imperativos morais, as regras e os hábitos sociais impostos
à proteção e aos cuidados dispensados à criança são reconhecidos como justos
porque mediados pelo sentimento de respeito e amor da criança pelo adulto, a qual
obedece com a intenção de manter o sentimento de amor por parte do adulto. A
regra é sacralizada e intangível; logo, pensar em modificá-la constitui um sacrilégio.
Esse respeito unilateral é o próprio instrumento de submissão que a criança adota
para si, de forma inconsciente, quando atende às regras existentes e ditadas pelos
adultos.
A responsabilidade é dita objetiva nesse momento porque a criança
considera mais as conseqüências materiais de um ato do que a intenção ao realizá-
lo; o pensamento da criança é dito intuitivo, porque está preso aos aspectos
concretos, e ainda, nesse período, o egocentrismo far-se-á presente de forma mais
intensa.
O egocentrismo coloca a criança dentro do fenômeno da indiferenciação,
que a impossibilita de perceber os sentimentos e desejos de um outro sujeito. O
realismo, artificialismo, finalismo e animismo são expressões egocêntricas de que se
utiliza a criança. Jean Piaget utiliza o conceito de egocentrismo infantil em dois
66
sentidos diferentes: um para demonstrar a indiferenciação entre o sujeito e o objeto
e o outro para indicar a dificuldade de cooperação da criança. O processo de
descentração, que se opõe ao egocentrismo, supõe o reconhecimento de pontos de
vista diferentes do seu, com a coordenação em ação de diversos pontos de vista.
E, por último, o grupo de condutas que têm os jovens com mais de dez-onze
anos, os que fazem da regra uma necessidade, sem que a sacralizem como no
grupo anterior. Para estes a regra pode ser alterada quando do consentimento de
todos, porque não ocupa mais o lugar de uma tradição, e, sim, de uma necessidade
interna de organização, de forma que o direito de todos num jogo ou nas relações
seja observado igualitariamente. A combinação de regras que antecede o jogo
prevê tanto as regularidades quanto as possíveis exceções à regra. No momento,
as regras passam a ser fruto da atividade racional e social. A submissão à lei é
tanto maior quando mais essa lei emana dos grupos de iguais e quando a
personalidade autônoma de cada um participa da sua elaboração. A
responsabilidade é, agora, subjetiva; o jovem é capaz de considerar a intenção de
uma ação, não mais de um resultado material, a exemplo da clássica situação
piagetiana de interrogatório, de ser mais “culpada” uma criança que quebra dez
copos sem querer do que aquela que propositadamente quebra um copo –
responsabilidade objetiva. A mentira ou engano de um para com o outro passam a
ser considerados como uma ação desleal e ruim porque violam a confiança interna
duma relação.
O grupo de estudos, com relação à consciência das regras, faz um percurso
desde a ausência de uma consciência de regras - a anomia, seguida da submissão
do regramento exterior - a heteronomia, até a interiorização das regras, com a
consciência interna da regra - a autonomia.
A passagem da heteronomia para a autonomia dá-se com a gradativa
extinção do temor sentido pela criança com relação ao adulto e o conseqüente
enfraquecimento da obediência à regra ditada por essa pessoa maior em idade ou
tamanho. Isso acontece em razão da ampliação das suas relações sociais no
mesmo momento em que o adulto decai no julgamento feito pela criança, por ela
agora perceber que a justiça não é imanente ao objeto, que o adulto falha, que nem
sempre preserva a verdade ou a coerência entre suas ações e enunciados. Nesse
mesmo tempo cresce a consideração por sujeitos que dispensem igual respeito e
67
consideração pela criança/jovem, com quem estabelece relações de reciprocidade,
mesmo que ainda esteja presente uma mistura dos sentimentos de afeição e medo.
O jovem, agora, esforça-se para não decair no julgamento moral desse novo amigo;
as relações não se caracterizam mais pela verticalidade do mando e instala-se o
respeito mútuo nas relações. O adulto, que era visto como superior às regras e à
justiça, com o respeito mútuo, passa a ter os mesmos direitos e deveres que o jovem
com relação às mesmas. A ação é orientada, agora, pela legalidade de fato ou de
direito, suplantando a de autoridade. Há de se considerar também o
desenvolvimento intelectual da criança em estádio operatório-formal, que possibilita
entender a regra como um contrato entre iguais.
No estudo piagetiano foram observadas diferentes formas de justiça junto às
crianças. Uma primeira justiça é a imanente, própria das crianças menores, que
acreditam na existência de sanções automáticas que brotam das próprias coisas.
Para Jean Piaget a crença na justiça imanente ou objetiva provém de uma
transferência quase que imediata das situações heterônomas vividas na relação com
os adultos para as situações concretas, na relação com os objetos, de necessidade
de reparos imediatos e punitivos. Uma segunda justiça é a retributiva, que supera,
em parte, a justiça imanente. Essa nova justiça diz respeito à proporcionalidade
entre o ato de infração e a sanção cabida. A criança que quebra muitos copos sem
querer será, agora, menos castigada do que a quebra somente um durante um
episódio de raiva; a justiça diz respeito ao dano causado ou à intencionalidade
implícita na situação. É a justiça que avalia a intenção da ação, não somente o dano
causado.
A justiça será igualitária quando tem igual valor e mesma aplicabilidade para
todos. Na impossibilidade de identificação de um culpado, é justo que todos sejam
responsabilizados, o mesmo valendo para os casos em que uma criança protege o
infrator devido a uma combinação prévia, de sigilo. A lealdade ao amigo não deve
ser quebrada e, por isso, uma punição que atinge um “culpado” e todos os outros é
compreendida como cabível, pois responde ao pacto entre amigos, aqui a denúncia
é tida como um ato desleal. A justiça distributiva traz a idéia de ser distribuída em
igualdade para todos, com os mesmos direitos e deveres, isto é, passa a estar
presente o valor da cooperação, da agremiação. A justiça distributiva implica
68
autonomia e libertação em relação à autoridade adulta, ao passo que a retributiva
implica a obediência à autoridade adulta.
A justiça distributiva pode galgar um degrau a mais, quando a igualdade
indistinta é substituída pela idéia de eqüidade. Nesta última os jovens são capazes
de considerar variáveis atenuantes para cada situação em discussão; o julgamento
prioriza tanto a igualdade como a necessidade de não-homogeneização, de poder
haver diferentes graus de responsabilidade numa mesma situação, a qual será
julgada com lisura.
Importante ressaltar que são as relações sociais entre as próprias crianças,
entre os iguais, que constituem o meio mais apropriado ao desenvolvimento
da justiça distributiva e as formas mais evoluídas da justiça retributiva, que é
a da eqüidade. (VINHA, 2003, p. 81).
Diante da necessidade de justiça, as crianças e jovens clamam por
penalizações. As sanções observadas foram principalmente as expiatórias,
especialmente enquanto a criança é heterônoma, e as de reciprocidade, quando a
autonomia prevalece no jovem. As expiatórias são as caracterizadas pela coerção e
por relações arbitrárias e estranhas entre a sanção e o dano causado, e as por
reciprocidade possuem uma menor coerção se comparadas com as expiatórias, por
serem mais compreensíveis, melhor analisadas pela criança e terem uma relação
natural ou lógica com o ato a ser sancionado; estas não são estranhas, podendo,
inclusive, ser uma sanção reparatória ao dano causado. do.
69
é a que resulta de uma ação voluntária, espontânea, que emerge da necessidade
interior de cooperar, sem a necessidade de um ganho pessoal. Jean Piaget
considera que os dois aspectos da personalidade moral são a autonomia e a
reciprocidade.
Se a escola pretende formar consciências livres e indivíduos respeitadores
dos diretos e das liberdades de outrem, isto é, relação entre indivíduos
fundamentadas na autonomia e na reciprocidade, tem-se que a melhor lição moral
verbalizada pelo professor não é suficiente para tal intenção da escola. Se isso
fosse suficiente, a maioria de nós seria moralmente autônoma, pelo número de
vezes que ouvimos boas orientações, as quais nos conduziram à autonomia sócio-
moral. Autonomia é tanto autogoverno como a consideração das necessidades dos
outros, supondo restrições à própria liberdade pessoal.
O visto até aqui possibilita-nos destacar o valor das relações sociais para o
desenvolvimento moral. As vivências diárias, o jogo, as interações entre as pessoas
e as experiências refletidas pelo grupo é que fazem surgir o comportamento
autônomo, que será tanto cognitivo, como sócio-moral. Segue uma rápida
passagem pelos estádios do desenvolvimento cognitivo anunciados por Jean Piaget,
uma vez que são condições necessárias, sem serem suficientes, para o
desenvolvimento moral que está apresentado até então.
O conhecimento, na perspectiva da Epistemologia Genética, é a
manifestação mensurável das estruturas mentais do sujeito, resultantes de todas as
experiências realizadas durante um percurso que se divide em períodos ou estádios.
Os estádios dão indicativos de uma estrutura de conjunto dos esquemas mentais
utilizados pelo sujeito na sua contínua adaptação ao meio onde vive, na busca de
uma equilibração sempre mais adequada e, portanto, maior, melhor ou superior à
anterior.
É bastante conhecida a divisão dos estádios de desenvolvimento de Jean
Piaget. São eles: o estádio sensório-motor, que está dividido em seis subestádios; o
estádio pré-operatório e o estádio operatório concreto, e, por fim, o estádio das
operações formais.
Jean Piaget diz que o que torna as estruturas maleáveis, isto é, nunca
engessadas ou acabadas, é a possibilidade de ação que o sujeito tem. A ação, por
70
sua vez, é mobilizada por uma necessidade, que pode ser fisiológica, afetiva ou
intelectual, a qual direciona o sujeito à atividade da descoberta.
O entendimento do que seja uma estrutura mental é importante para a
compreensão de como se processa a intera
71
reconhecimento dos esquemas e estruturas prévios do aluno no processo de
desenvolvimento e escolarização.
Retomando os estádios de desenvolvimento desde o estágio sensório-motor,
encontramos elementos que respondem à questão epistemológica de como o sujeito
aprende, de quando e como ativamente constrói esquemas
28
pelas experiências
sociais e que implicam desacomodações cognitivas. Os estádios dão conta de um
processo linear e ordenado da capacidade cognitiva do sujeito
29
; são conjuntos de
esquemas que caracterizam diferentes patamares do desenvolvimento. Para nós,
professores, os estádios são indicativos gerais de que recursos intelectuais um aluno
pode estar a utilizar enquanto elabora, de forma pessoal, os conteúdos que
transitam na aula.
Antes de despendermos algumas linhas para o modo como acontece o
processo de aprender nos diferentes estádios, faz-se necessário apresentar as
quatro condições necessárias para o desenvolvimento estabelecidas por Jean
Piaget: uma condição é a maturação ou desenvolvimento do sistema nervoso; outra
é a experiência que o sujeito vai adquirindo e que passa a se constituir numa
referência para toda aprendizagem a posterior; uma terceira condição é a interação
social, espaço no qual o desenvolvimento ocorre e ganha significado, a qual deve
ser sempre entendida como uma relação entre sujeitos, ou entre sujeitos e uma
situação, de forma que haja uma concomitante implicação, ambos agindo sobre uma
comum escala de valores, nunca a interação pode ser compreendida como a ação
de uma das partes somente; e, por último, a equilibração, que ocorre num processo
de ação recursiva.
Essas quatro condições de desenvolvimento se articulam de forma a
constituir um conjunto único. Não é possível estabelecer prioridade para nenhuma
delas, pois, isoladamente, não são suficientes; agem em conjunto e sofrem
reciprocamente a ação de uma sobre a outra.
28
Os esquemas são estruturas inconscientes ao indivíduo, pelo menos enquanto nos estádios iniciais
do desenvolvimento. Os esquemas configuram uma ordenação virtual dos conhecimentos
acumulados pelo indivíduo.
29
A progressão dos estádios é linear enquanto que o desenvolvimento cognitivo não, esse atende a
uma circularidade sempre mais complexa e majorante, num sistema de rede.
72
No período sensório-motor o desenvolvimento dá-se especialmente pela
constância e diversidade de experiências disponibilizadas pelo meio que circunda a
criança, situações que exigem dela ações e interações que vão consolidar as
primeiras condutas sensório-motoras.
A representação e a função simbólica são marcos na transposição
qualitativa de estádios para Jean Piaget, do sensório-motor para o estádio pré-
operatório. Esses marcos possibilitam uma maior e diversificada interação da
criança com o mundo que a cerca; não mais precisando agir de forma sincrônica
sobre o mundo físico. Ela, agora, utiliza meios intermediários, carregados de
significantes, como as palavras, os desenhos, os gestos e as imagens nas suas
ações.
No final do estádio pré-operatório, as ações lógicas começam a ganhar
desenvoltura, no entanto o êxito de uma execução operatória nem sempre vem
acompanhado de uma correspondente argumentação sobre os procedimentos
mentais ou operatórios realizados. A criança realiza uma operação sem que consiga
explicar o percurso feito para alcançar determinado resultado; é quando a ação
antecede o processo de conceituação, de reflexão sobre o procedimento realizado, o
que não invalida o resultado exitoso sobre o desafio que lhe foi proposto. Tal
situação justifica o porquê de esse estágio também ser chamado de "intuitivo", pela
falta de provas para uma afirmação ou operação realizada, pela impossibilidade de,
muitas vezes, a criança justificar suas crenças, isso pela predominância do
pensamento ainda egocêntrica. Não há necessidade de justificativas, parece-lhe
natural que a forma como concebe uma situação, ou veja um objeto, seja
exatamente a mesma de qualquer outro sujeito, o que dispensa explicações ou
justificativas.
As operações atendem a uma composição de ações lógicas, organizadas e
estáveis, hierarquizando um sistema de interdependência entre as partes e um todo.
E esse é um processo que não é dado à criança, e, sim, por ela construído, de forma
que precisa empreender suas ações na construção de significações para o mundo
físico e social que a circunda, para que este adquira uma organização, estabilidade
e sentido.
Quando a criança ingressa no estádio das operações concretas, deve ser
capaz de articular os elementos de um conjunto considerando ora certas
73
particularidades dos objetos, ora o conjunto todo, o que constitui um exercício lógico
de relação e inclusão, de estabelecimento de uma hierarquia que vai das mais
gerais até as mais particulares, com o respectivo trânsito inverso, da reversibilidade
operatória, isso porque reconhece a existência de certas invariantes numa
transformação. As operações requerem uma organização e uma sistematização,
pela ordenação de categorias e séries. A criança executa operações, que é a
capacidade de realizar uma ação de forma interiorizada, ou seja, nem sempre será
necessário realizá-la na prática; pode valer-se do seu pensamento, que é reversível
e pode ser coordenado em uma estrutura de conjunto, organizando sistemas
operatórios onde o todo e as partes se tornam componíveis. Compreender o mundo
significa criar categorias que o expliquem, o que exige a possibilidade operatória da
criança de conservar, organizar e sistematizar as informações e experiências que
vive.
Quando o jovem alcança o estádio de pensamento formal, está de posse de
uma gigantesca possibilidade lógica, que lhe faculta a resolução de problemas e a
articulação de proposições verbais, conduzindo-o a interagir com uma enorme
quantidade de informações de que o mundo dispõe, por ser, especialmente, capaz
da reflexão; com mais facilidade opera com o pensamento refletido; seus
argumentos e trajetória de pensamento penetram e operam com o que é abstrato,
possível ou variável.
Uma das características marcantes deste período formal é a utilização, pelo
jovem, de hipóteses para a resolução de problemas. Com as hipóteses o jovem não
mais age ao acaso, mas guiado por uma conjectura; a suposição dirige uma idéia,
há uma diretriz a ser perseguida. Ele é capaz de considerar várias hipóteses
simultaneamente, cada uma delas contendo muitos outros dados em relação ao foco
do problema, mais do que os dados imediatos; aproxima rapidamente tudo que sabe
sobre o assunto e constrói um sistema teórico complexo, onde os dados aparecem
subordinados à coerência de um sistema. O sujeito não raciocina com base apenas
no real, mas também no plano do que se torna possível - o que implica que o real
passa a ser só uma parte do possível.
A utilização de um raciocínio sobre o possível requer que esse seja feito
utilizando um pensamento conceitual que agora pode ser expresso pela oralidade; a
fala pode explicar e antecipar as conexões estabelecidas no plano mental e/ou
74
concreto. Nos estádios iniciais o sujeito tinha no concreto as referências para a
operação mental; agora, ele pode discorrer sobre os acontecimentos que são
disponibilizados no plano verbal, das conjecturas.
Os experimentos realizados por Jean Piaget e Barbel Inhelder no livro Da
Lógica da Criança à Lógica do Adolescente (1955-1976) bem revelam a utilização de
combinatórias múltiplas pelo adolescente, que lhe permitem examinar
exaustivamente as conseqüências de uma hipótese lançada, utilizar a lógica das
proposições, que caracteriza um tipo de lógica verbal fundada numa combinatória.
Esse raciocínio hipotético-dedutivo requer, ainda, o uso preciso da disjunção, da
conjunção e da condicionalidade. A pergunta sobre a origem das coisas e o porquê
dos acontecimentos ainda acompanha o jovem, porém com a diferença de que,
agora, ele é capaz de provocar variações na situação que o intriga a partir de
hipóteses lançadas, diferentemente do que fazia até então.
O adolescente do estádio formal é um teórico. É um jovem que revela
prazer tanto pelos temas transcendentais como pelos da vida em sociedade.
Discute a filosofia e a moral, a política e a economia, entre outros assuntos do seu
agrado. Sente satisfação em argumentar com seus pares, prazer em extrair as
conseqüências de uma posição adotada em determinado momento, que pode até
ser absurda, mas que, mesmo assim, o encanta pelo embate argumentativo que
possibilita. Aventura-se no pensamento e brinca com ele, da mesma forma que a
criança menor brinca com o que é concreto. Isso porque é capaz de realizar um
pensamento de segunda potência, ou pensar sobre o próprio pensamento, condição
necessária para a construção de uma teoria.
Piaget diz que o adolescente
[…] não se contenta mais em viver as relações interindividuais que seu
ambiente lhe oferece, nem com a utilização de sua inteligência para resolver
os problemas do momento; procura além disso, colocar-se no mundo social
dos adultos e, para isso, tende a participar das idéias, dos ideais e das
ideologias de um grupo mais amplo, utilizando como intermediário certo
número de símbolos verbais que o deixavam indiferente quando criança.
(PIAGET, 1955-1976, p. 254).
Os conflitos e as contradições nas relações sociais, políticas e econômicas
tornam-se mais visíveis para o adolescente e desencadeiam nele uma certa rejeição
a esse contexto e comportamento dos adultos. A explicação de Jean Piaget (1955-
1976) para esse fato, de contrariedade do adolescente ao mundo adulto, é de que o
75
jovem pode e precisa construir uma teoria sobre as relações sociais que lhe
assegure uma individualidade diante do mundo adulto, mundo que o desafia a
participar, agora, como um adulto, com responsabilidade e efetivo compromisso
social. O adolescente adota uma nova "teoria" sobre as relações sociais e morais
fundada na visão de futuro de que agora dispõe dum tempo que está a sua frente e
dum contexto no qual quer ingressar.
São três os pontos que marcam a entrada do adolescente no mundo e nas
relações adultas, segundo Jean Piaget e Bárbara Inhelder (1955-1976), o primeiro é
do adolescente considerar-se um igual ao adulto e julgá-lo num plano de igualdade e
total reciprocidade; o segundo, o adolescente considera com seriedade sua vida
futura, começa a traçar seus planos de inserção profissional dentro de uma
sociedade, que é um contexto amplo e que só agora, de posse do pensamento
formal, consegue dimensionar, relacionando suas ações e intenções futuras com as
possíveis implicações, conseqüências e necessidades; e, por último, a presença
forte de um idealismo que o faz querer transformar a realidade e a sociedade dos
adultos, o que gera o conflito entre o adolescente e a "estabilidade social"
representada pelos adultos de sua convivência, o que importa num retorno a uma
conduta egocêntrica.
O egocentrismo do adolescente difere do egocentrismo infantil. No
egocentrismo infantil existe uma indiferença com relação ao que destoa de sua
percepção, necessidade ou pensamento, ao passo que, o egocentrismo adolescente
se expressa por uma percepção e análise da exterioridade que o cerca com a
concomitante resistência à sua adaptação ao mundo tal como está dado; deseja que
o ambiente social se transforme, se adapte aos seus sistemas de idéias, ao seu
"eu", que é novo e prenhe de inovações pertinentes. Jean e Piaget e Bárbara
Inhelder (1955-1976) dizem que esse egocentrismo adolescente será desarticulado
pela própria participação do jovem na vida adulta, pelo trabalho.
[…] o programa de vida e o plano de reformas […] constituem, sob o ângulo
das funções cognitivas ou do pensamento, uma das características
essenciais da conduta do adolescente […]. Um plano de vida é, em primeiro
lugar, uma escala de valores que colocará alguns ideais como subordinados
a outros e subordinará os valores meios aos fins considerados como
permanentes. […] Um plano de vida é, de outro lado, uma afirmação da
autonomia, é a autonomia moral enfim inteiramente conquistada pelo
adolescente. (PIAGET, 1955-1976, p. 260).
76
A autonomia dá-se pela descoberta, pelo adolescente, do seu próprio ponto
de vista; é uma conquista resultante das interações sociais realizadas no seu
cotidiano. Aproximamo-nos do contexto social da escola. Jean Piaget, nas
oportunidades em que se refere à pedagogia, sugere que se deve atribuir crédito ao
modelo da Escola Nova por ter introduzido métodos que estimulam a organização de
experiências sociais no interior da escola, utilizando estratégias que priorizam a
liberdade e o interesse da criança e do adolescente especialmente pelo trabalho em
grupo.
Mais uma vez, de forma sintética e pontual, foram apresentados dados
referentes ao desenvolvimento cognitivo do sujeito, que "[…] não são estranhos à
vida; é apenas a expressão das coordenações operatórias necessárias à ação"
(PIAGET, 1955-1076, p.254).
O desenvolvimento cognitivo acompanha os progressos do desenvolvimento
sócio-moral do sujeito. Assim, é possível fazer aproximações entre essas facetas do
desenvolvimento, entre as quais destaco:
1- a criança egocêntrica moralmente é o mesmo sujeito que não estabelece
relações de reciprocidade numa operação lógica. Na dificuldade de descentrar-se
para melhor compreender o argumento de uma outra pessoa, é também a que
apresenta certa resistência para compreender uma operação em seu caminho
inverso, da reversibilidade;
2- é quando a criança opera no plano lógico, ordenando critérios de forma
dinâmica, considerando ora o todo, ora suas partes e, de forma reversível, também
no plano sócio-moral, é capaz de melhor transitar em diferentes grupos sociais e
melhor interagir com o sistema de regramento das experiências interpessoais - a
possibilidade de cooperação. Os desenvolvimentos sócio-moral e cognitivo mantêm
uma mútua complementação, visto que um é necessário ao desenvolvimento do
outro, sem que seja suficiente;
3- quando o jovem é capaz de coordenar diferentes situações para uma
operação, podendo lidar com variante e incógnitas, também é capaz de cooperar
com outros sujeitos na realização de ações em conjunto. As atividades de grupo
exigirão do adolescente a descentração intelectual e sócio-moral.
77
Os estádios de desenvolvimento cognitivo, ponto importante na
compreensão da obra piagetiana, e as etapas no desenvolvimento moral, tema
deste trabalho, vão seguir se aproximando, especialmente na discussão dos dados
da pesquisa.
2.2.1 A dualidade da heteronomia com a autonomia
De início darei atenção ao tópico da heteronomia, sem, contudo, fazê-lo de
forma asséptica, pois não há como pensar no termo sem seu contraponto
complementar: a autonomia.
Na visão de Emanuel Kant (1724-1804) a heteronomia é a sujeição de um
sujeito à vontade de outro, que lhe rouba a possibilidade de legislar sobre si mesmo
pelo uso de uma prerrogativa natural, a de usar sua consciência moral livre e
autônoma. Em Jean Piaget a heteronomia é uma forma de regulação externa à qual
a criança está sujeita, são regras prontas que se impõem à criança. Provém do
mundo adulto, da subjugação de uma geração a outra pela força da educação
familiar e da sociedade como um todo.
A cooperação é antagônica à individuação, esta última representada pela
heteronomia, que se expressa pela coação
30
. A heteronomia toma a dimensão da
individuação quando presa à satisfação plena de um desejo pessoal, da própria
expressão do egocentrismo infantil, ao passo que a coação pode desencadear um
comportamento de submissão a determinada ação explicitamente coercitiva, com
uma reação de passividade ou de rebeldia, a que gera um desentendimento entre
indivíduos. Na verdade, o conflito aqui identificado como "passivo" é o que
corresponde aos primeiros anos da criança, vivido de forma inconsciente, ou, então,
não mais de forma inconsciente, quando o jovem ou adulto vê-se cercado por
motivos da esfera sócio-moral ou econômica, submetendo-se a uma coação por
força de uma "necessidade" temporária ou circunstancial.
30
Coerção: ato ou efeito de reprimir; repressão; força exercida pelo Estado para fazer valer o direito;
coibição (no contexto jurídico). Coação: constrangimento, violência física ou moral imposta a alguém
para que faça, deixe de fazer ou permita que se faça alguma coisa. (HOUAISS, 2001).
78
A coação, especialmente a que reage a um mando do tipo autoritário, pode
ser resolvida por uma via democrática, onde a cooperação impera, e é estabelecida
a partir de sujeitos autônomos, ou, então, no seu caminho inverso, pela ratificação
de um imperativo
31
, o que implica a consolidação da relação heterônoma. O
patamar de superação da heteronomia pela autonomia não é radical ou definitivo na
vida de um sujeito, pelo contrário, nos diz Jean Piaget, é um estágio ideal e frágil
sempre buscado, a cada relação interpessoal. Na verdade, há uma tendência ao
predomínio de ações morais autônomas sobre as heterônomas, uma vez que estas
últimas dificilmente se extinguem por completo. A relação de heteronomia faz um
jogo com a autonomia no adulto, tal como uma disputa de espaço, onde a autonomia
está constantemente tentando se sobrepor à presença heterônoma, esta advinda
das regras externas, existentes em abundância nas relações sociais.
A autonomia/heteronomia e a coação/colaboração são díades de opostos
que se complementam. Pelo tratamento da antítese, um dos termos da díade
opositiva pode jogar "luzes" sobre o outro extremo da díade, neste caso, cada
conceito é tanto a negação como a continuidade do outro. Jean Piaget, na obra O
Juízo Moral na Criança (1932-1994), dedica o capítulo dois à discussão da coação
adulta sobre a criança juntamente com o conceito de realismo moral e, no capítulo
seguinte, aborda o tema da cooperação junto ao conceito de justiça. Esses dois
opostos, da coação e da cooperação, estão colocados em ordem de continuidade na
teoria piagetiana quando trata do desenvolvimento moral; da coação aceita pela
criança, até que, pelo aprimoramento das relações sociais e aprimoramento do
desenvolvimento cognitivo, especialmente pela reversibilidade operatória, constitui-
se a possibilidade de relações simétricas entre sujeitos autônomos. Surgem, então,
a cooperação e a reciprocidade como objetivo pretendido nas interações sociais.
O conceito de conflito tem sido associado pelo senso comum a algo
negativo, mais do que a uma situação potencialmente positiva. A dimensão
negativa de conflito tem relação com o não desejado, com a violência, sendo um
fenômeno desagradável e intrinsecamente mau que deve ser corrigido, quando não
31
Imperativo: determinação de autoridade, mando, ordem e imposição. Para Emanuel Kant o
imperativo é uma sentença com forma de ordem ou mandamento que um sujeito racional impõe a si
próprio ou a outro, tendo como objetivo a consecução de um fim prático. (BOBBIO,2000).
79
evitado a todo custo pela coação, recurso utilizado na maioria das vezes também
nas escolas.
Um conflito não precisa estar necessariamente associado a uma situação de
violência, como se o fosse um estímulo condicionante de uma resposta violenta.
Nesse caso, há uma negação da possibilidade humana do diálogo, da cooperação
pelas trocas recíprocas que se estabelecem com o intuito de minimizar as diferenças
e agregar os pontos em comum; falo dos princípios que viabilizam a convivência
com respeito às diversidades inerentes a todas as trocas estabelecidas socialmente.
Os alunos costumam associar o conceito de conflito a situações de brigas,
de bater e machucar um outro, de intimidar, de forma velada ou não, um colega ou
professor, como também à própria "má vontade" em realizar tarefas de rotina, o que
propicia uma situação de confronto com o professor. O conflito assim configurado
tem uma conotação negativa.
Há uma distinção entre violência, incivilidade e violência simbólica feita por
Bernard Charlot (2000) quando aborda o tema da indisciplina no ambiente escolar.
Ao termo “violência” o autor agrega as questões de agressões físicas, envolvendo a
delinqüência, como roubos, crimes, vandalismos e abuso sexual. As incivilidades
são agressões que ficam no plano das agressões verbais, na utilização de palavras
grosseiras, na falta de respeito e nas humilhações; por último, as violências
simbólicas, que são encharcadas por situações de “ironia" ou indiferença. Na sala
de aula, a violência simbólica pode se expressar pelo desprazer de estar na escola,
pela indiferença do jovem que desafia o professor com um comportamento
desrespeitoso, mostrando-se indiferente à presença do professor em aula.
Convém aqui colocar que os conflitos fazem parte do cotidiano humano,
tanto quanto a sua superação; podem corresponder ao próprio entendimento de
desenvolvimento pessoal ou de um grupo. A organização escolar é dinamizada
pela superação de cotidianos e repetidos conflitos em diferentes esferas, seja a dos
alunos, seja a dos professores, dos administradores, dos familiares e dos
funcionários, com implicações simultâneas e de dupla mão, acrescidos, ainda, de
diferentes intensidades e repercussões. Como disse, esses múltiplos conflitos são
inerentes à organização escolar, necessitando, portanto, ser compreendidos como
um valor na medida em que podem gerar debates e novas configurações positivas
no interior da escola, pela discussão crítica que potencializam, mais do que o
80
trabalho de evitação do conflito e/ou coação/repressão que costumeiramente se faz
no interior dos educandários.
O conflito é uma realidade que pode incrementar as práticas sociais e
educativas libertadoras, como entendemos pelo testemunho do educador Paulo
Freire. A idéia é de uma liberdade que surge de uma práxis do conflito que desvela
e supera a opressão, a heteronomia e a coação. A educação, para esse autor, é a
que contribui para a formação de uma consciência crítica e autônoma de forma que
o sujeito se insira no processo cultural, social, político e econômico pela cooperação
e exercício da sua cidadania. Com base nesse posicionamento, a função da escola
é maior do que a apropriação pelo aluno dos conteúdos formais que o currículo da
escola disponibiliza. A educação é a que "[…] prepara, ao mesmo tempo, para o
juízo crítico das alternativas propostas pela elite, e dar a possibilidade de escolher o
próprio conhecimento" (FREIRE,1980, p. 20), isto é, aprender a aprender e a divergir
a partir de uma aproximação crítica da realidade.
Dessa forma, a paz, a cooperação, solidariedade, ou a convivência
harmoniosa desejadas pela escola não deveriam estar, necessariamente,
condicionadas à inexistência de conflitos, e, sim, à utilização de estratégias pacíficas
e criativas que tragam à tona os conflitos resultantes de diferentes modos de ver, de
pensar, de sentir e analisar os fatos, situação essa própria de uma democracia, para
que numa mesa de negociações a ordem comum e o consenso sejam os
resultantes, ratificando, assim, as possibilidades de convivência a partir de condutas
autônomas, tanto quanto no respeito às diferenças humanas.
Ao dimensionar o conflito como um fenômeno natural, necessário e sempre
presente nas relações interpessoais ou intergrupais, este ganha a potencialidade
positiva por possibilitar a sua superação pela argumentação lógica, feita a partir de
diferentes interesses defendidos por distintos indivíduos, grupos ou classes. A
possibilidade de argumentação e convencimento é compatível com um sujeito que
tenha possibilidade de articular proposições, hipóteses, implicações e
conseqüências no plano das idéias e da ação, o que corresponde ao
desenvolvimento lógico no nível formal ou próximo desse; ao mesmo tempo, exige-
lhe compreender as negociações como uma relação de trocas que ocorrem entre
sujeitos e que tende à equilibração das proposições reveladas.
81
A interação, quando tomada na perspectiva social, exige como necessário e
suficiente, três condições para que a cooperação seja equilibrada.
A primeira é que os dois sujeitos utilizem uma mesma escala de valores, o
que, por sua vez, exige a utilização de uma linguagem comum aos sujeitos, ou seja,
que falem através do mesmo código; que existam noções definidas (de convergência
ou divergência) entre ambos para que as ponderações de um possam ser
significadas na escala conceitual do outro; e que exista um certo número de
proposições colocadas em discussão por ambas as partes.
A segunda condição para o equilíbrio das trocas a partir de um conflito é que
exista uma similaridade de valores em jogo, isto é, uma proposição com justificativas
vistas de diferentes ângulos; que cada um dos sujeitos não reincida em contradição.
É necessário que as regulações que vão se construindo sejam asseguradas para
que a própria discussão avance e não retorne ao ponto inicial, emperrando o
processo de troca entre os sujeitos.
Por último, Jean Piaget diz que a discussão travada entre dois ou mais
sujeitos é constantemente retomada em seu ponto de origem como uma
reversibilidade operatória, sendo agora alargada pela troca de proposições que
podem levar a novo patamar conceitual os sujeitos da relação.
A "co-operação na ação" , como enfatiza Jean Piaget, supõe uma
modificação dos sujeitos em interação, das proposições negociadas, uma
consideração mútua entre os argumentos feita pelo exercício da descentração, de
forma que a situação ou operação resultante os coloque em novo patamar de
organização pessoal. Dessa forma, de um conflito novas regras podem ser
estabelecidas, os sujeitos autônomos reivindicarão o consenso, que exige a
descentração de julgamento; só o sujeito autônomo é capaz de cooperar, nos diz
Jean Piaget.
Retomamos o conflito. No mínimo três argumentos situam o conflito como
uma possibilidade construtiva a ser aproveitada pela ação pedagógica. A primeira
retoma o conflito como um aspecto da natureza humana, pois repetidas vezes
somos tomados pelas situações de conflito que nos demandam estratégias
específicas de resolução. Faz-se necessário aprender certas estratégias que não
sejam de evitação do conflito, mas de regulação e recondução a resultados positivos
82
pela negociação, pela via da coordenação de diversos pontos de vista, resultado de
uma equilibração dinâmica entre sujeitos que direcionam suas ações para a
convergência das proposições, tal como propõe Jean Piaget nos Estudos
Sociológicos (1965-1973).
Em segundo lugar, um tanto de conflito, em sua dimensão positiva, é tido
como necessário ao desenvolvimento. O conflito tem uma força "dinamizadora" no
interior das relações grupais. Madalena Freire (1998)
32
diz que, na relação de
indiferença, de plena tranqüilidade, nada acontece que possa mobilizar o sujeito
para a ação e para a aprendizagem. Explica que uma certa dose de conflito, de
provocação, de indignação é "ingrediente" da ação que leva ao aprender. Nesse
segundo ponto, o conflito tem um lugar exatamente oposto ao costumeiramente
aceito, de algo a ser evitado ou banido das relações.
Em terceiro lugar, o conflito é tido como um desafio que requer dos
envolvidos uma resposta proporcional ao que ele próprio mobiliza no grupo ou
sujeito. É uma força que ativa a compreensão maior de uma questão pela análise
do seu todo e partes, a partir dos esquemas de ação que os sujeitos disponibilizam
no momento. Diria que é uma continuidade ao item anterior.
Esse conjunto de motivos implica a apropriação, pelos docentes, das
situações de conflito que repetidamente surgem na relação de sala de aula como um
conteúdo a ser utilizado para a formação de sujeitos autônomos. A utilização do
conflito como conteúdo exige que as ações de cada indivíduo sejam tomadas por
uma nova perspectiva - a das ações individuais que repercutem no funcionamento
do grupo. Pela ação de múltiplas implicações de um grupo que discute, aprende e
se desenvolve pelo aprimoramento das estruturas cognitivas e sócio-morais surge o
compromisso com o coletivo, onde o próprio grupo passa a ser o regulador do
indivíduo em sua particularidade, sem que “apague” a individualidade e originalidade
de cada um.
A oportunidade de um aluno ouvir o colega em seus argumentos e de,
assim, certificar-se do seu posicionamento diante dum conflito amplia a dimensão da
32
A citação de Madalena Freire foi feita a partir das anotações da autora em conferência, 1998, Iº
Congresso Internacional de Educação, Concórdia, SC. Palestra proferida: Relações intra e
interpessoais no processo de ensino aprendizagem.
83
autonomia sócio-moral e cognitiva, tanto quanto o compromisso crescente de
colaborar no e com o grupo. Essa situação faz existir espaços de discussão
democrática no interior das escolas. É a autonomia em exercitação, pelo movimento
de descentração, que considera o ponto de vista alheio na mesma medida em que
pretende ver respeitado seu posicionamento pessoal, pela via da discussão
democrática; a liberdade e a autonomia ficam condicionadas à presença de um outro
sujeito que tem iguais prerrogativas, o que bem ilustra a equação apresentada por
Jean Piaget nos Estudos Sociológicos (1965-1973), no qual as duas partes que
interagem em equilíbrio, em trocas simultâneas, compartilham um equivalente
sistema de reciprocidade entre uma ação e uma resposta a esta ação.
A coação, marcada pela ação heterônoma, tem o selo da moral do dever, de
algo que deve ser obedecido ou que é imposto como uma tentativa de impedimento
do conflito, ao passo que a ação autônoma é selada pela moral da reciprocidade, do
bem, quando o conteúdo da norma pode ser questionado entre sujeitos, que, pela
existência de um mútuo respeito, trocam informações sobre a coerência ou a
pertinência de uma norma.
[…] falarei de democracia e da busca educativa por caminhos que
enfrentem o autoritarismo e as formas violentas de resolução de conflitos,
tão normalizadas em nossa cultura. Entendo que aprender a dialogar, a
construir coletivamente as regras de convívio e a fortalecer o protagonismo
das pessoas e dos grupos sociais na construção da democracia e da justiça
social é um papel que a escola pode, e deve, exercer na luta de
transformação da sociedade. (ARAÚJO, 2004, p. 6).
Ulisses Araújo, autor que vem se dedicando ao tema da (in)disciplina
escolar, acredita na possibilidade de a escola ordenar o seu agir coletivo para a
cooperação democrática, o que, necessariamente, implica alunos que sejam
autônomos. Para tanto, insiste na importância das assembléias escolares. É
necessário que se inverta a frase que diz termos nos tornado, como sociedade, mais
hábeis para lidar com o mundo físico, das coisas, da tecnologia do que com o mundo
social, da moral, da relação entre as pessoas.
Também Josep Maria Puig, autor português, tem se dedicado ao estudo da
moral e, conseqüentemente, das relações interpessoais no âmbito escolar: "As
assembléias de sala de aula são um elemento essencial em uma escola democrática
e um instrumento insubstituível da educação em valores". (PUIG, 2002, p. 27). O
possível enriquecimento da convivência pelas assembléias escolares é um processo
84
que exige perseverança e convicção do professor, a ser ratificada na ação e reunião
do grupo de professores no interior da escola, pela formação continuada do docente,
e na ação planejada em conjunto.
A escola, tal como se apresenta hoje, parece desconsiderar a importância
das relações interpessoais e dos conflitos como fonte de aprendizagem;
desconsidera o enfrentamento positivo dos conflitos ao mesmo tempo em que se
revela impossibilitada pela enorme contingência de conflitos que nela transitam de
forma desordenada. É comum, como professor, constatar a existência de um
excesso de normas coercitivas na sala de aula e na escola, que existem para serem
cumpridas; de provas e avaliações usadas como forma de retaliação dos alunos; da
organização da aula a partir de conteúdos que só têm relação com a seqüência
didática do livro-texto; da cópia de pontos a serem memorizados, enquanto existe
uma infinidade de informações sobre o tema nos meios de comunicação e na própria
experiência de vida dos educandos, os quais poderiam ser aproveitados como
referência para a discussão em aula, pelo grupo que aprende a ser grupo à medida
que pratica a experiência de compartilhar com o colega. Aprender na escola é ter
construído a capacidade necessária para lidar com os conteúdos escolares, além da
capacidade para interagir com os conflitos pessoais e sociais que emergem das
relações escolares. Essa relação pode ser abordada a partir de uma relação
democrática construída no cotidiano escolar, considerando a afirmação de Jonh
Dewey (In SEBORROJA, 2003), que diz ser a escola um espaço de vida para o
aluno, não de preparação para a vida posterior; lembra ainda sobre a importante e
constante negociação entre os objetivos de um grupo que se mantém em unidade
pela existência das individualidades autônomas que o compõem, o que dinamiza o
próprio jogo democrático. A metodologia da resolução dos conflitos pelas
assembléias possibilita consistente e constante interação entre os alunos, pelo
respeito mútuo e cooperação entre os protagonistas do grupo, o que, por fim, ratifica
um viver sobre os princípios democráticos, apreendidos pela ação vivida.
Essas concepções e ensinamentos deixados por Jonh Dewey nos fazem
pensar em liberdade. A liberdade nunca é expressão de um eu-centrismo. Norberto
Bobbio (2000), ao retomar o estudo de Emanuel Kant, diz que a liberdade é limitada
pela presença do outro. Portanto, liberdade e coação, termos certamente antitéticos
85
em suas origens conceituais, tecem uma complementaridade para o entendimento
de liberdade. É Norberto Bobbio quem melhor explica:
[…] uma vez que eu transgrida os limites, invadindo com minha liberdade a
esfera de liberdade do outro, torno-me uma não-liberdade para o outro.
Exatamente porque "o outro é livre como eu, ainda que com uma liberdade
limitada, tem o direito de repelir o meu ato de não-liberdade". Pelo fato de
que não pode repeti-lo a não ser por meio da coação, esta se apresenta
como um ato de não-liberdade cumprindo para repelir o ato de não-
liberdade do outro e, portanto – uma vez que duas negações afirmam -,
como um ato restaurador da liberdade. (BOBBIO, 2000, p. 125).
33
A liberdade assim entendida, como uma expressão autônoma limitada pela
presença de um outro sujeito, precisa ser muito mais discutida nas escolas. Falar
em liberdade é falar em respeito e organização, para que todos tenham espaço de
igual manifestação, o que derruba a ingênua e perversa idéia do tudo poder na
posse da liberdade. Essa segunda concepção de liberdade foi erroneamente
absorvida pela escola na segunda metade do século passado no Brasil. Deixar que
os "alunos aprendessem sozinhos" foi a "novidade", pensando os professores
estarem respaldados pelos estudos da psicologia, que dizia sobre o não limitar para
não reprimir, e pelos princípios escolanovistas de deixar o aluno seguir seu processo
a partir de escolhas pessoais e fortuitas enquanto praticava uma "ação" motora.
Tomar uma teoria ou estudo e utilizá-la sem o devido conhecimento reiteradas vezes
tem causado prejuízos ao sistema de ensino; são os "modismos" educacionais,
quase sempre causadores de danos no sistema escolar.
Retomemos mais uma vez o tema central deste texto, a coação, que nos
conduziu ao tema das assembléias escolares.
A coação, na perspectiva piagetiana, é resultado da ação imperativa do
adulto sobre a criança, uma ação heterônoma. Enquanto imersa na etapa da
heteronomia a criança é também egocêntrica em suas relações, o que ratifica a idéia
de uma heteronomia inconsciente, na medida em que ela vê como uma suposta
expressão da sua vontade uma ordem ou informação que pode ter acabado de
receber. Isso acontece pela sua dificuldade de descentração.
Para Jean Piaget o egocentrismo infantil faz com que a criança sinta-se
possuída por ela mesma, de poder satisfazer-se em suas ações, intenções e
33
Grifos do autor.
86
relações sociais. Ela imita o mundo adulto, interpreta os fenômenos físicos e
responde às determinações adultas como se tivessem sido determinadas de forma
imperativa e original por ela mesma. É o mundo que responde aos seus desejos.
Thomas Kesselring escreveu num artigo (1990) que no egocentrismo infantil
não há estruturas mentais suficientes que lhe possibilitem coordenar outros pontos
de vistas além do seu; sempre há de prevalecer a perspectiva da criança. É pelo
mútuo desenvolvimento das relações sociais e do desenvolvimento cognitivo que o
sujeito/criança pode se afastar do egocentrismo, isto é, pela ampliação das relações
e experiências o sujeito é capaz de descentrar-se do seu ponto de vista, processo
esse implicado com o conhecimento, a representação e a diferenciação de si com
relação ao mundo exterior. Não sendo isso suficiente, faz-se necessário, ainda, na
descentração, a possibilidade de coordenar os pontos de vistas de outros sujeitos a
sua perspectiva, o que a direciona para a autonomia. Poder-se-ia dizer que o
desenvolvimento é um transcurso do egocentrismo para a autonomia, da centração
para a descentração.
O conceito de respeito para Jean Piaget assume uma posição-chave no
entendimento do porquê de a criança atender a determinado mando heterônomo, de
forma plena. O respeito, na obra O Juízo Moral na Criança (1932-1994), difere do
de outros autores; para Emanuel Kant o respeito dispensado a outro sujeito é uma
resposta qualificada a alguém que representa uma norma justa, correta e moral; não
se discute a origem desse sentimento que é dado a priori ao sujeito. Para Émile
Durkheim (1858-1917) o respeito faz-se presente no sujeito pela consideração que
este dispensa à própria norma, à lei e à coletividade que a expressa e utiliza,
devendo ser imitado; é uma resposta a um motivo externo ao sujeito. Para Pierre
Bovet (1876-1965) o respeito provém de uma relação alicerçada sobre a afeição de
um sujeito para outro. É da perspectiva de Pierre Bovet que Jean Piaget se
aproxima, dizendo que o respeito não é inato nem é dado pelo ambiente externo. O
respeito, inicialmente unilateral, se enriquece pela consideração respeitosa e
recíproca entre sujeitos, é o sentimento que sustenta o desenvolvimento moral.
A condição necessária da moral é a existência do sentimento de dever, de
um sentimento que emana da consciência de obrigação de um sujeito para com
outro. A premissa da moral do respeito de Pierre Bovet foi acatada e
complementada por Jean Piaget. Acatada porque reconhece esse fundamento de
87
relação de respeito entre um ou mais sujeitos que estabelecem trocas; mesmo na
relação heterônoma há necessidade da existência do respeito do menor para com a
pessoa maior, ou a quem um sujeito atribui consideração. Jean Piaget complementa
Pierre Bovet porque avança na construção teórica dizendo que são dois os tipos de
relações sociais derivados do sentimento de respeito, o já especificado da
coação/heteronomia e um segundo, que é o respeito que respalda a
cooperação/autonomia.
A questão moral que conduziu os estudos de Jean Piaget foi saber como um
sujeito passa de um estágio de relação heterônoma para uma consciência
autônoma, da cooperação. A idéia de passagem de um tipo de moral para outro traz
a idéia de gênese, de conquista do sujeito pela experiência social e desenvolvimento
cognitivo, diferente de uma premissa dada ao sujeito, tal como fazem supor a teoria
kantiana e durkheimniana.
O respeito unilateral, como já dito, diz da consideração que a criança
dispensa ao adulto, ou ao companheiro mais velho, de forma incondicional no início
do seu desenvolvimento, quando ainda criança heterônoma e egocêntrica. Essa
tamanha identificação da criança com a norma ditada pelo adulto, ou simbiose entre
o que lhe é próprio e o meio externo, opõe-se à conquista que se segue, a da
descentração, que lhe permitiria considerar a perspectiva alheia diferente da sua, o
que significa passar a co-operar com dois universos distintos: o seu e o de um outro,
exigindo a coordenação de ações em patamar mais complexo. O texto piagetiano
diz:
Enquanto a criança não dissocia seu eu das sugestões do mundo físico e
do mundo social, não pode cooperar, porque, para tanto, é preciso estar
consciente de seu eu e situá-lo em relação ao pensamento comum. Ora,
para tornar-se consciente de seu eu, é necessário, exatamente, libertar-se
do pensamento e da vontade do outro. A coação exercita pelo adulto ou
mais velho e o egocentrismo inconsciente do pequeno, são, assim
inseparáveis. […] Egocentrismo e imitação formam um só todo, como, em
seguida, autonomia e cooperação. (PIAGET, 1932-1994, p. 81).
Quando a criança, ainda heterônoma, como já mencionado, organiza seus
julgamentos a partir da premissa de que tudo que advém do adulto é correto,
devendo ser obedecido incondicionalmente, está atendendo e respondendo à moral
do dever; a moral do mal é a própria desobediência ao mandado adulto. A essa
forma de julgamento Jean Piaget denominou de “realismo moral”.
88
[…] chamaremos de realismo moral a tendência da criança em considerar
os deveres e os valores eles relacionados como subsistentes em si,
independentemente da consciência e se impondo obrigatoriamente,
quaisquer que sejam as circunstâncias às quais o indivíduo está preso.
(PIAGET, 1932-1994, p. 93).
Jean Piaget observou o realismo moral nas crianças enquanto atendiam à
regra do jogo como sendo uma realidade obrigatória e intocável (assunto já
introduzido no subtítulo 2.2). Essa perspectiva dogmática da regra é resultado da
coação que sofre do adulto e do contexto, que cotidianamente somam esforços na
intenção de educá-la. "À prática egocêntrica da regra, que segue paralela a um
sentimento de respeito pelo mais velho e pelo adulto, corresponde um juízo teórico
que faz da regra uma realidade mística e transcendente" (PIAGET, 1932-1994, p.
99).
O realismo moral comporta três características. A primeira é de que é
necessariamente heterônomo, a palavra-chave, nesse caso, é a obediência, que é
sempre boa e correta. A segunda característica é decorrente da primeira, na medida
em que a norma ou coação é percebida e atendida a partir da sua expressão literal,
feita ao "pé da letra". Em terceiro lugar aparecem as concepções objetivas da
responsabilidade, que correspondem a uma vinculação entre um acontecimento e
sua causalidade e conseqüência imediata. A sanção a ser aplicada por uma
infração material ou uma mentira cometida por uma criança deverá ser equivalente
ao prejuízo observável, tal como a Lei de Talião, do "dente por dente, olho por olho".
É preciso que os adultos espacem as ações coercitivas sobre as crianças
pelo pretexto das ordens e punições educativas, uma vez que, mesmo que essas
ações, para os pais, nem sempre tenham a intenção moralizante, acabam por fazer
a criança ver todos seus atos julgados e merecedores de ações punitivas, tanto
maiores quanto maior for o prejuízo material. Essa ação coercitiva se potencializa
com a característica egocêntrica da criança abrindo franco espaço para a
responsabilidade objetiva. O reverso de tal situação, de a criança não mais aceitar
todos os veredictos recebidos, dá-se em função de perceber uma nova "ordenação
possível da sociedade", na qual passa interagir com amigos de brincadeiras da
mesma ou mais próxima faixa etária. Nesses grupos ela poderá desenvolver a
necessidade de cooperação a partir da simpatia mútua. A moral da obediência será
substituída pela moral da reciprocidade, que vem acompanhada pela
responsabilidade subjetiva. Outra importante situação de inversão da relação
89
heterônoma dá-se quando o adulto baixa a vigilância e conversa com a criança
considerando seus argumentos, além de explicar-lhe as razões da impropriedade e
os danos causados de uma mentira, por exemplo. O valor moral a ser preservado
será, então, a manutenção da confiança recíproca.
Retomo o aspecto, sempre presente, da heteronomia. A moral heterônoma,
da coação externa, está colocada tanto pelo filósofo da Época Moderna Emanuel
Kant quanto pelo sociólogo Émile Durkheim.
Emanuel Kant
34
inaugura o idealismo alemão e “[…] é considerado o filósofo
da autonomia moral, porque considera a liberdade moral de fato não como falta de
leis, mas como obediência à lei fundamental da própria razão, e, portanto, como
autonomia” (BOBBIO, 2000, p.75) tal como a servidão de um sujeito a sua lei moral,
desde que essa seja universal.
Émile Durkheim representa o realismo sociológico. Este autor explica o
social pelo social, como uma realidade independente dos sujeitos. A moral é
contemporânea ao surgimento do interesse do sujeito pelo grupo social, com o
compromisso pela sua perpetuação na medida em que a reconhece como válida. A
educação não pode ser tida como autônoma, uma vez que é uma instituição da
sociedade que tem a estrita responsabilidade de desenvolver no aluno certos
conteúdos e princípios de moralidade exigidos pela sociedade.
Por sua vez, Emanuel Kant afirma que, pela conquista da liberdade, o
homem tem a garantia de sua dignidade, devendo, então, empenhar-se na busca da
própria felicidade. Os textos kantianos dizem que cidadão é aquele que goza de
liberdade, igualdade e independência. A liberdade está associada ao Estado de
direito, que lhe possibilita escolher o próprio caminho desde que respeite idêntico
direito alheio. A concepção teórica de Emanuel Kant sobre moral diz que é a razão
quem direciona as ações verdadeiramente morais e autônomas do homem livre.
O agir moralmente é regido pelo dever, que direciona as ações do homem
ora por máximas, ora por leis práticas. As máximas são subjetivas e atendem ao
34
A obra kantiana Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785-2002) expõe a teoria da moral
do dever. Sobre a Paz Perpétua (1795-1989) expõe um projeto para a solução das controvérsias
internacionais. As duas obras discursam sobre os fundamentos da moral em Kant, onde Piaget
busca referência para tratar do mesmo tema.
90
dever universal de serem aplicadas a todos pela sua justeza intrínseca, ao passo
que as leis práticas são objetivadas por um desejo pessoal, por uma vontade que
particulariza a ação. A máxima kantiana é a tão conhecida regra moral e, por isso,
um imperativo categórico: "[…] age só segundo máxima tal que possas ao mesmo
tempo querer que ela se torne lei universal" (KANT, 1785-2002, p. 51).
Tanto as máximas como as leis práticas são, para Emanuel Kant, regidas
por imperativos, por um dever, aos quais denominou de “categóricos” ou
“hipotéticos”.
1. O imperativo categórico: estabelecido a priori do pensamento, de valor universal,
é determinado pela razão pura; portanto, detém a essência moral em si, é um
verdadeiro imperativo moral. São os que "prescrevem uma ação boa por si
mesma, como por exemplo: 'Você não deve mentir', e chamam-se assim porque
são declarados por meio de um juízo categórico" (BOBBIO, 2000, p. 105), isto é,
não particularizam uma ação ou ganho pessoal, é um imperativo universal.
2. Os imperativos hipotéticos: têm reduzido valor moral por serem conduzidos por
desejos e experiências relacionadas à vida particular de cada sujeito. "São
aqueles que prescrevem uma ação boa para alcançar um certo fim, como por exemplo:
'se você quer evitar ser condenado por falsidade, você não deve mentir', e chamam-se
assim porque são declarados por meio de um juízo hipotético". (BOBBIO, 2000, p. 105).
Este imperativo é dito por Emanuel Kant como heterônomo, porque revela a ação
do sujeito subjugada às pressões dos costumes sociais e vontades pessoais,
distantes, portanto, da categoria da razão pura, que é dirigida por um imperativo
do dever, desejado e utilizado por todos os sujeitos livres e autônomos.
É pelo imperativo categórico kantiano que se alcançam a liberdade e a
autonomia da razão, com o que o sujeito pode ser capaz de produzir o próprio
esclarecimento (princípio da subjetividade) e encontrar razões para as verdades
sobre si e o mundo. (WASLOW, 2004).
Os conceitos de autonomia e heteronomia, na obra de Emanuel Kant, são
resultantes de uma distinção anterior que esse filósofo faz dos conceitos de moral e
direito. À autonomia é aproximado o conceito de vontade moral, que é regida por si
própria, ou seja, não obedece a outra lei senão à lei moral, que não se deixa excitar
por motivações externas.
91
[…] se por autonomia se entende a faculdade de dar leis a si mesmo, é
certo que a vontade moral é por excelência uma vontade autônoma; […]
essa definição de autonomia coincide com a definição dada por Rousseau à
liberdade, entendida como a obediência à lei que cada um prescreve a si
mesmo. (BOBBIO, 2000, p. 102).
A moral é da esfera da autonomia, ao passo que a heteronomia é seu
oposto porque retira da vontade sua autodeterminação. Ambas são imperativas
para o sujeito, dadas pela consciência moral ou atendendo à conformidade social e
jurídica do Estado.
Para Lia Freitas (2003), que faz seus estudos a partir da obra de Jean
Piaget, a moralidade e a autonomia estão relacionadas da seguinte forma:
A moralidade fundamenta-se na autonomia do sujeito: cada um está
submetido a uma lei, válida para todo o ser racional, e que, ao mesmo
tempo, é reconhecida como a sua própria lei (princípio da autonomia). A
moralidade distingue-se, assim, da religião e do direito, cujas regras são
exteriores aos sujeitos aos quais elas se aplicam (princípio da heteronomia).
Segundo Kant, o fracasso de outras tentativas para explicar a moralidade
deve-se, justamente, à falha de compreensão da autonomia da vontade.
(FREITAS, 2003, p. 65).
O reconhecimento de uma moral autônoma e de outra heterônoma de Jean
Piaget está subordinado ao pensamento kantiano, mas também diverge deste
filósofo ao considerar as duas morais segundo a perspectiva genética, como
processuais e em desenvolvimento, na mesma medida do aprimoramento da lógica
e das interações sociais, ambas experimentadas pelo sujeito ativo; nega, assim, o
caráter apriorista da moral kantiana.
Em Émile Durkheim encontramos a moral social, de forma que também não
é construída pelo sujeito. Aqui a moral é heterônoma em sua essência porque é um
mandato que se impõe externamente ao sujeito, cabendo a este desenvolver um
espírito de autodisciplinamento, isto é, deve adequar-se e reconhecer o regramento
moral existente, faz isso pela interiorização dos preceitos morais validadas pelo
grupo social. A moral pode ser dita como um sistema de disciplinamento e
conformismo.
Tanto Emanuel Kant como Émile Durkheim consideram o processo
educativo como aquele que impregna no sujeito aprendiz a obediência às regras,
tanto as que dizem respeito ao conhecimento quanto às relativas à moralização,
portanto externas, pertencentes ao mundo social adulto e já estabelecidas e
validadas pela tradição, devendo ser unicamente apreendidas pelo aluno de forma
92
imperativa. Emanuel Kant diz que o imperativo moral sobre a criança a livraria da
selvageria
35
, ao passo que Émile Durkheim defende que a imposição moral a conduz
ao disciplinamento.
Um dado de importância e originalidade trazido por Jean Piaget ao estudo
da moral é o fato de a autonomia moral estar associada diretamente ao
desenvolvimento da autonomia intelectual, visto que ambas se desenvolvem na
relação de reciprocidade do sujeito com o meio social. Dessa forma, existe um
paralelismo entre a autonomia moral e a autonomia cognitiva, como dois
desenvolvimentos necessários um ao outro sem que, no entanto, sejam condições
suficientes. Pela abrangência que o conceito toma ao condicionar mutuamente
esses dois domínios, deveríamos fazer nossa bandeira, como professores, as
palavras de Jean Piaget (In Parrat-Dayan,1998) quando diz que o fim da educação
deveria ser o desenvolvimento da autonomia no aluno.
As relações cooperativas são inauguradas pela reciprocidade de
procedimentos entre sujeitos, que abrem caminho para a consolidação da autonomia
moral, tanto como o reverso é também verdadeiro; só o sujeito autônomo é capaz de
cooperar e se descentrar em julgamentos para uma participação coletiva. A ação
dirigida pelos princípios de justiça e liberdade, pela ausência de qualquer pressão
exterior e tida como recíproca nas relações sociais revela a existência da autonomia
moral no sujeito.
A co-operação entre os sujeitos leva-os a uma crítica mútua e a uma
objetividade progressiva. Daí a existência de um raciocínio lógico paralelo à co-
operação moral, apontando-nos, como professores, a necessidade de tratarmos a
educação da solidariedade, da cooperação, da cultura da paz tanto como um
assunto da inteligência quanto como um tema da conduta sócio-moral.
Jean Piaget (1965-1973) diz que a cooperação é concretizada na relação de
complementaridade que os sujeitos estabelecem entre si. Os sujeitos em
cooperação devem ser capazes de descentrações sucessivas na busca de um
equilíbrio pelo consenso. Tal situação não consiste no aceite da escala de valores
35
Selvageria, para esse autor, refere-se à desconsideração das leis do universo adulto constituídas
pelo juízo moral. A criança que age espontaneamente, expressando-se de forma a atender seus
desejos particulares, é considerada imoral, por não ter sido submetida à disciplina, às leis da
humanidade.
93
de um outro sujeito de forma plena e a priori; ao contrário, é na busca de
convergência a partir de divergências iniciais que está a essência do respeito entre
indivíduos que interagem, pela afirmação de autonomias que primam pela
conservação dos acordos, com coerência em relação às afirmações ditas em
momento anterior, numa troca de pontos de vista.
Para explicar os fatos sociais, relativos à integralidade de um sujeito
cognitivo e sócio-moral, Jean Piaget, quando escreveu Estudos Sociológicos (1965-
1973), utilizou os conceitos de ritmo, regulações e agrupamentos.
Os ritmos caracterizam relações simples, ficam no limiar entre os fatos
materiais e as condutas sociais. Como exemplo de um ritmo elementar tem-se a
sucessão de tempo na natureza, com as diferentes estações do ano, que, quando
conjugadas com diferentes ações humanas, como as atribuições laborativas do
homem que trabalha na zona rural, dão origem aos ritmos sociais.
As regulações regem situações de troca entre sujeitos ainda que de forma
"defeituosa", pois as compensações são parciais e a reversibilidade não é eqüitativa,
portanto, não é completa. Somente com a reversibilidade operatória e com a
equivalência recíproca nas trocas sociais é que se tem o agrupamento.
O agrupamento dá-se num desenrolar de operações lógicas entre sujeitos
em interação social, que praticam ações onde há ações recíprocas, correspondentes
ou de complementaridade. O agrupamento comporta dois aspectos internos que o
caracterizam: a reversibilidade operatória e uma composição de conjunto.
O equilíbrio atingido pelas trocas cooperativas entre sujeitos toma,
necessariamente, a forma de um sistema de operações recíprocas e,
conseqüentemente, de agrupamentos. Jean Piaget equacionou as relações
interpessoais. A equação que diz respeito à situação de equilíbrio, de cooperação, é
a que apresenta uma igualdade final na equação, isto é, a ação de um sujeito está
em conformidade com a satisfação de outro sujeito. As múltiplas operações nessa
relação estabelecida são: a existência de uma proposição inicial advinda de um
sujeito, uma primeira operação; a concordância expressa pela satisfação provocada
num outro sujeito é uma segunda operação individual, e a equivalência entre a ação
de um e a satisfação de outro já é uma terceira operação, que nada mais é do que a
correspondência, que torna possível a troca, intercalada pelo surgimento do crédito
94
e da dívida de um para com outro, que são continuamente supridos. Um
agrupamento é um sistema de operações organizadas de forma tal que as
sucessivas operações internas à interação sejam ainda uma operação do sistema,
ao mesmo tempo em que cada operação comporta um sistema. É uma relação
operatória na qual a parte e o todo estão articulados sem que a totalidade seja a
soma das partes.
A existência de respeito mútuo num ambiente de trabalho torna-se uma
condição que potencializa a cooperação pretendida. Tal fato é de fundamental
importância na relação pedagógica, uma vez que a aprendizagem é também
dependente das relações interpessoais estabelecidas, tanto quanto a importância
dada aos conteúdos escolares.
Pelo apanhado teórico até aqui reunido, temos a coação e a cooperação, a
heteronomia e a autonomia como resultantes de múltiplas, contínuas e sistêmicas
relações que acontecem no plano das trocas sociais, constituindo uma gênese que
abrange os domínios da razão e do desenvolvimento sócio-moral, todos
entrelaçados de forma orgânica.
A autonomia, conceitualmente, é a capacidade do sujeito de elaborar
normas próprias, mas, ainda, é o resultado de uma conquista pessoal e interna ao
sujeito que só se exerce envolta pela cooperação. A autonomia está definitivamente
fundada no sujeito quando é um valor interiorizado nele mesmo, sendo, então, capaz
de interagir com outros sujeitos respeitando a liberdade e a autonomia alheia sem
qualquer pressão externa.
2.3 AUTONOMIA NA ESCOLA
A escola sempre foi tida como espaço de complementação na educação dos
jovens, à qual cabe dar continuidade à formação moral, cognitiva, social e para o
trabalho, nos diz Mario Manacorda (2002) ao escrever sobre a história da educação.
Como herança da escola antiga tivemos até o início do século XX uma escola que
convencionamos chamar de tradicional, pela forma como foi se constituindo a
relação professor e aluno e pelos procedimentos metodológicos utilizados. Com o
advento da Escola Nova, que aconteceu na Europa na passagem do século XIX
95
para o XX, as finalidades da escola se atualizaram, especialmente no que refere à
relação professor-aluno e a respeito dos fins da educação. As mudanças são mais
marcantes ainda após as duas grandes guerras mundiais, quando os ideais de
cooperação, autogoverno e de respeito mútuo (idéias pacifistas) foram consolidados
no interior da escola como objetivos formativos, já anunciados pelo movimento da
Escola Nova.
No Brasil, por volta de 1930, Lourenço Filho (2002) fez-se uma retomada
histórica sobre a atualização escolar que ocorria na Europa, esclarecendo sobre as
bases históricas da Escola Nova:
Os efeitos do grande conflito [Segunda Guerra Mundial] imprimiram maior
intensidade e velocidade ao processo de mudança social. Deram ao mundo
a consciência de maior e necessária dependência entre povos e nações e,
sobretudo, que seria necessário rever os princípios da educação e suas
instituições, para que estas, difundindo-se, visassem à preservação da paz.
(FILHO, 2002, p. 68).
Continua-se a admitir que a escola tenha influência poderosa no sentido da
preservação da paz por formação humana que minore as tensões internas
em cada nação e leve a melhor compreender as tensões internacionais. Tal
resultado, no entanto, não pode advir de um livre desenvolvimento da
criança por si só, ou de uma concepção autônoma da ação educativa em
relação aos sistemas políticos, como já se pensou. Certo que todas as
conquistas do conhecimento relativo à criança e aos jovens, quanto ao
desenvolvimento biológico e psicológico, continuam a ser de fundamental
interesse. […] Mas o ideal de convivência pacífica entre os cidadãos e entre
os povos só se logrará alcançar quando as nações se modelarem por uma
filosofia política que a esse ideal sustente. (FILHO, 2002, p. 73-74).
Tais recortes dimensionam a preocupação com a formação humana numa
cultura de paz internacional que minimizasse as diferenças entre culturas, ao mesmo
tempo em que as aproximasse pelo desenvolvimento de ações cooperativas, ações
essas implementadas pela escola, modificadas pelo movimento escolanovista.
Jean Piaget fez vários pronunciamentos nas reuniões nas Assembléias da
Unesco
36
, enquanto membro permanente desta organização internacional. Seus
pronunciamentos sugeriam o desenvolvimento de atitudes intelectuais e sócio-
morais no jovem pela metodologia da ação cooperativa no interior da escola; por
esse viés e razão apoiou o movimento escolanovista. Jean Piaget sugeriu que a
escola investisse no desenvolvimento moral dos alunos, para que conquistassem
sua autonomia intelectual e moral pelo exercício do seu pensamento livre e do
36
Piaget foi presidente da Comissão Suíça na Unesco de 1929 a 1967.
96
espírito crítico, e, ainda, que fosse incentivada pela escola "[…] uma atitude social
de reciprocidade, suscetível de ser generalizada por etapas progressivas desde as
relações elementares da criança pequena com seus colegas até as relações entre
grupos sociais cada vez mais amplos". (PIAGET, In Parrat-Dayan e Tryphon, 1998,
p. 244).
De um documento escrito por Jean Piaget no ano de 1951, para uma
reunião da Unesco, retiro o seguinte trecho, que mantém atualidade mesmo tendo
transcorrido tantos anos:
A primeira condição da educação internacional consiste em desenvolver o
espírito de livre pesquisa e a necessidade de verificação, do ponto de vista
da inteligência, bem como a liberdade e a capacidade de avaliação crítica
que caracterizam a autonomia moral. A primeira qualidade de um cidadão
do mundo é saber, permanecendo fiel aos pontos de vista de sua cidade ou
de seu país, situá-los no conjunto dos outros pontos de vista possível, e isso
supõe uma liberdade intelectual e moral que só os métodos que colocam a
atividade pessoal acima da repetição e da submissão permitem alcançar.
(PIAGET, In Parrat-Dayan e Tryphon, 1998, p. 245).
A moral autônoma de um cidadão crítico que ordena seus argumentos num
contexto mais amplo que o seu, pelas relações interpessoais próximas, de seu
grupo, tanto quanto nas relações internacionais, hoje facilmente realizadas pela
internet, dá-se pela constante coordenação de ações e exercício da descentração,
próprios do desenvolvimento da razão. Esses dados estão postos desde o século
passado e não são desconhecidos nem refutados pelos profissionais da educação.
O ideal de cooperação internacional só terá significação para a criança se
for apresentado como a culminação de uma série progressiva de
cooperações sociais, morais e intelectuais, vivida em todos os aspectos da
vida escolar e extra-escolar. (PIAGET, In Parrat-Dayan e Tryphon, 1998, p.
88).
Um documento da Unesco, de 1996, Educação – Um Tesouro a Descobrir,
também identificado como "Relatório Jacques Delors", sintetiza o estudo realizado
por especialistas de todo o mundo sobre a educação do século XXI. Nele é
reafirmada a educação como instrumento indispensável à humanidade para a
construção da paz, da liberdade e da justiça social. São esses os mesmos
princípios que foram classificados como utópicos no movimento da Escola Nova, por
isso tão severamente criticados. É de se saber que os ideais são sempre projetados
para um tempo futuro, no plano da idealização, passíveis de serem julgados num
momento presente como utópicos. Assim foram tidos os objetivos maiores da Escola
97
Nova, como os objetivos da educação também podem ser tidos como utópicos, mas
nem por isso devemos deixar de desejá-los.
O documento em questão, Relatório Delors, reconhece que a escola não
tem poderes para, sozinha, e pela educação, transformar a organização mundial,
mas testemunha "[…] sua fé no papel essencial da educação no desenvolvimento
contínuo, tanto das pessoas como das sociedades". (DELORS, 2001, p. 11). Diz
que o gênero humano precisa ser enaltecido, que se respeitem os Direitos do
Homem, se pratiquem o respeito mútuo e a compreensão, para que a pobreza, a
exclusão social, as incompreensões, opressões e guerras sejam significativamente
minimizadas.
Como desafios à educação, tomados em sentido amplo, o documento
apresenta sete tensões a serem enfrentadas ou ultrapassadas neste século, tal
como Edgar Morin apresenta nos Os Sete Saberes Necessários à Educação do
Futuro (2001). São dados a conhecer, como segue abaixo, tensões e saberes a
serem incorporados nas discussões e compromissos dos educadores
37
em seu fazer
profissional. As tensões anunciadas por Delors são:
a tensão entre o global e o local: entre a formação escolar que visualize o mundo
sem perder a especificidade da participação e compromisso com o que é local, de
uma comunidade
38
;
a tensão entre o universal e o singular: onde as culturas de cada povo ou grupo
não se percam na tendência de mundialização, da aldeia global de MacLuhan
39
;
37
Os sete saberes "fundamentais" anunciados por Morin, que o autor diz serem esquecidos e, no
entanto, essenciais para se ensinar no século XXI, são: 1) as cegueiras do conhecimento: o erro e a
ilusão; 2) os princípios do conhecimento pertinente; 3) ensinar a condição humana; 4) ensinar a
identidade terrena; 5) enfrentar as incertezas; 6) ensinar a compreensão e 7) a ética do gênero
humano.
38
Essa é uma discussão recentemente feita por autores que estudam o tema dos currículos
escolares. Uma tendência dizia dos currículos atenderem aos interesses particulares das etnias,
minorias, regiões e nacionalismo, "defendendo-se" da globalização. Outra tendência é a da
mundialização do currículo, que dizia do estabelecimento de parâmetros universais, próximos aos
interesses econômicos de neoliberalismo e da globalização.
39
Referência a partir do livro: Mutações em Educação, Segundo McLuhan, 11. ed. de Lauro de
Oliveira Lima, Rio de Janeiro: Vozes, 1978. Livro já discutido em meu curso de Pedagogia, na
década de 1970. Herbert Marshall McLuhan (1911-1980), ex-professor da literatura inglesa no
Canadá, foi pensador contemporâneo que provocou polêmicas ao alardear sobre a complexa rede de
comunicações em que está imerso o homem na era da eletrônica, da cibernética, da automação, e
que afetam sua visão e experiência de mundo.
98
a tensão entre a tradição e a modernidade: das novas tecnologias de educação e
o conservadorismo da herança acumulada como conhecimento geral, de modo a
não se sobrepor um ao outro e que o progresso fique garantido;
a tensão entre as soluções de curto e longo prazo: as duas devem ser articuladas
nos programas governamentais e das escolas, para que não retornemos ao hábito
de recomeçar a cada anúncio da "modernidade";
a tensão entre a competição e o cuidado com a igualdade de oportunidades: a
competição no âmbito educacional não pode ser geradora de diferenças e de
exclusões de qualquer tipo; é suficiente a competição que estimule o
desenvolvimento de cada um na mesma intensidade da cooperação e da
solidariedade que une os indivíduos;
a tensão entre o extraordinário desenvolvimento dos conhecimentos e as
capacidades de assimilação pelo homem: frente à necessidade de aprimorar os
currículos escolares, de acrescentar novos estudos, com o cuidado de não
sobrecarregar a formação escolar além do necessário;
a tensão entre o espiritual e o material: há a necessidade de uma formação
moral, cabendo à formação escolar discutir com os alunos o pluralismo cultural no
qual vivemos.
Na consecução de objetivos estabelecidos a partir das tensões reveladas no
cotidiano, o documento diz que:
[…] cada um deve utilizar todas as possibilidades de aprender e de se
aperfeiçoar, não é menos verdade que para estar apto a utilizar,
corretamente, estas potencialidades, o indivíduo deve estar na posse de
todos os elementos de uma educação básica de qualidade. Mais, é
desejável que a escola lhe transmita ainda mais o gosto e prazer de
aprender, a capacidade de ainda mais aprender a aprender, a curiosidade
intelectual. Podemos, até, imaginar uma sociedade em que cada um seja,
alternadamente, professor e aluno.
Para isso, nada pode substituir o sistema formal de educação, que nos
incita nos vários domínios das disciplinas cognitivas. Nada substitui a
relação de autoridade, mas também de diálogo, entre aluno e professor.
(DELORS, 2001, p.18).
A escola é, na citação acima, valorizada como instituição, desde que tenha
qualidade e competência no que faz. O documento em referência ainda diz sobre os
quatro pilares à educação neste novo século: aprender a viver juntos, aprender a
conhecer, aprender a fazer e aprender a ser.
99
O último pilar, o aprender a ser, parece ter mobilizado as maiores
discussões entre os intelectuais que traçaram esse perfil para a escola deste novo
século. Ficaram, assim, ressaltadas a importância e a necessidade para os
indivíduos em escolarização desenvolverem uma "[…] grande capacidade de
autonomia e de discernimento, juntamente com o reforço da responsabilidade
pessoal, na realização de um destino coletivo". (DELORS, 2001, p. 20).
Dessa forma, considerando e atendendo a esses enunciados de
abrangência internacional proclamados pela Unesco, e sem que os princípios
anunciados na Constituição Brasileira de 1988 sejam contrariados, foi assentada a
organização da escola brasileira pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional nº 9394 de 1996 (LDB), que, de forma ampla assegura uma unidade
nacional à educação brasileira, ao mesmo tempo em que possibilita às diferentes
realidades presentes no território brasileiro serem contempladas em sua diversidade,
portanto, com uma articulação entre obrigatoriedades e permissões.
No artigo 1º da LDB, que trata "Da Educação", tem-se de imediato que a
educação abrange processos formativos que se desenvolvem pela convivência
humana em diferentes espaços, o familiar, o institucional, do trabalho, da cultura,
entre outros. Tal conceito de educação alarga o horizonte da escola e amplia seu
leque de trabalho para além do conteúdo escolar, indicação essa reincidente no
mesmo texto da lei. A educação é concebida como cidadã e formaliza o acesso de
toda a população ao saber formalizado pela escola.
No artigo 2º, que trata "Dos Princípios e Fins da Educação Nacional",
novamente se evidencia a intenção de preparo para o exercício da cidadania do
aluno, atendendo aos princípios de liberdade e aos ideais de solidariedade humana.
Os princípios e ideais aqui expressos representam a base filosófica da lei, aliás,
aspecto pouco explicitado nesta lei de ensino. A mesma temática é seguida no
artigo 22, que fala das "Disposições Gerais da Educação Básica", apresentando
como finalidade da educação o exercício da cidadania e um compromisso com o
progresso do aluno no mundo do trabalho. A formação profissional é entendida
nessa lei de forma diferente da lei anterior, visto que prevê uma ênfase na
qualificação para o mundo do trabalho, sem uma intenção de especificidade e
terminalidade para uma atividade específica, salvo em curso técnico que traga essa
particularidade, de uma preparação específica do jovem trabalhador. Na lei anterior,
100
a formação profissional tinha a intenção de formar um trabalhador com habilidades
específicas e suficientemente desenvolvidas para uma determinada ocupação
laborial, fato amplamente criticado pela escassa formação para o trabalho e
formação acadêmica que oferecia, em razão da amplitude do trabalho para um
tempo exíguo.
O artigo 32, que trata do "Ensino Fundamental", em seu primeiro inciso
retoma a necessidade de o aluno desenvolver a capacidade de aprender a partir do
pleno domínio da escrita, leitura e cálculo; no inciso III, a capacidade de aprender é
relacionada à formação de atitudes e valores e, no inciso IV, aparecem os laços de
solidariedade e de tolerância recíproca como virtudes para a vida social. É no artigo
35, que aborda o "Ensino Médio", etapa final da Educação Básica, que aparece pela
primeira vez, no inciso III, a preocupação com a formação ética e o desenvolvimento
da autonomia, especificada, nos termos da lei, como autonomia intelectual e
pensamento crítico.
A aparição tardia da autonomia no texto da lei faz crer que exista um
processo de construção dessa em todas as séries do ensino fundamental, uma vez
que se entende que a autonomia não é uma aprendizagem que se faz em dado
momento do processo educativo; ao contrário, a autonomia apresenta-se como o
resultado de um processo que se conquista ao longo da escolarização. A autonomia
reflete um dado qualitativo da escolarização, e seus melhores resultados estão
associados às interações vivificadas pelos alunos nas trocas interpessoais
qualitativamente significativas
40
. Pelo menos é essa a ênfase dada ao tema nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), documento que serve de referência para
a discussão pedagógica e política dos professores nas escolas.
No texto da lei, com relação à autonomia, esta aparece adjetivada com a
palavra "intelectual". A leitura que pode ser derivada do artigo 35 é referente à
capacidade de aprender de forma independente que o aluno vai adquirindo. Tal
imperativo, do aprender a aprender, é um legado da Escola Nova. No entanto, a
autonomia não se completa com essa única determinação do aprender – a
intelectual; pode também ser compreendida pela dimensão das relações sócio-
40
As atividades significativas para o desenvolvimento da autonomia são as que propiciam a
cooperação entre pares, a exemplo dos trabalhos em grupo, do self-government, das assembléias de
alunos e escola.
101
morais de um sujeito autônomo, que assume um compromisso de interação e
cooperação com os diferentes grupos em que convive, pelas relações que
estabelece com outros indivíduos, no reconhecimento e aprendizagem sobre a
liberdade e sobre o direito alheio. A autonomia, nesse plano moral, tem a dimensão
da convivência harmoniosa com outros indivíduos, pelo exercício da descentração
sócio-moral e cognitiva e pelo respeito à liberdade de outros sujeitos. É uma
autonomia personificada, que é, simultaneamente, requisito e resultado da
cooperação estabelecida nas relações.
Desde a Educação Infantil, a LDB contempla, repetidamente, a preocupação
com a formação cidadã do educando. A manutenção de um regime democrático e
de direito num país supõe a existência de cidadãos autônomos. E de um cidadão
autônomo e adulto espera-se que seja capaz de analisar, de reivindicar e participar
com ponderação em diferentes situações do seu cotidiano, comparando, de forma
crítica e racional, diferentes fatos da urdidura social, e, ainda, que possa fazer
escolhas nas quais o coletivo seja privilegiado. Especialmente agora, direcionando
a reflexão para uma situação pontual, da atual conjectura da política nacional
41
, faz-
se mais relevante a existência de educandos que possam ver e saibam pensar,
analisar, indicar perspectivas e agir com consciência, isto é, considerando os valores
morais e da cidadania como prioritários. O espaço da escola é privilegiado para tal
aprendizagem e pode se transformar num ambiente democrático, contudo precisam
ser privilegiadas as ações de cooperação, de grupo e de diálogo, condições
inerentes à democracia.
A cidadania no desenvolvimento do educando é repetidamente trazida pelos
artigos da Lei 9394/96. Tem-se que a cidadania passa, necessariamente, pela
aprendizagem escolar e, principalmente, pela ação docente, na atitude consciente,
crítica e reflexiva junto aos alunos, tal como nos diz Paulo Freire: "[…] compreender
o pedagógico da ação política e o político da ação pedagógica, reconhecendo que a
educação é essencialmente um ato de conhecimento e de conscientização e que,
por si só, não leva uma sociedade a se libertar da opressão". (FREIRE, 1979, p.10-
11).
41
Comissão Parlamentar de Inquérito do Mensalão e outras.
102
A cidadania é um legado precioso dos gregos à civilização, no entanto é
necessário considerar que, em seus primórdios, foi constituída a partir de uma
realidade local, onde era possível a democracia direta, os cidadãos se reuniam na
praça pública para propor e votar sobre diferentes assuntos, não havia a
necessidade de representantes, cada cidadão levava o seu voto. Tal como se pode
fazer nas assembléias escolares, onde os grupos são menores. Hoje, considerando
a dimensão política e territorial dos países, a democracia é indireta, representativa.
O Estado moderno e democrático substituiu o regime monárquico -
constituído por súditos - e deu acesso a toda população a direitos mediados por
deveres.
A democracia, que garante o aval de cidadão ao seu povo, é um conceito
em transformação. Liszt Vieira (2001) refere o estudo sociológico de Thomas
Marshall, de 1949, onde o autor reconstitui os dados históricos sobre os direitos e
deveres para o acesso de um indivíduo à cidadania além das garantias
disponibilizadas pelo Estado em diferentes momentos da história ao cidadão.
Apresenta, então, como direitos de primeira geração os que resguardam as
garantias civis do indivíduo, conquistados no século XVIII; engloba direitos
referentes à liberdade e aos direitos políticos, estes últimos conquista do século XIX;
os direitos políticos são os que dão participação ativa e passiva a todo cidadão, de
votar e ser votado. Os direitos de segunda geração correspondiam aos direitos
sociais conquistados no século XX e que passam a garantir um mínimo de bem-
estar e segurança social ao cidadão. Posteriormente a esta última conquista, foi
acrescentado o direito de associação, atendendo à reivindicação democrática das
minorias étnicas e das classes trabalhadoras, que em dado momento também
pediram o acesso à educação e o voto universal, a exemplo da discussão, no
contexto político brasileiro, do sistema de cotas para os grupos indígenas e de raça
negra nas universidades.
O Iluminismo trouxe para o conceito de cidadania uma forte visão cívica, que
passou a fundamentar o nacionalismo liberal. A Revolução Francesa (1789) e a
Declaração dos Direitos Humanos (1948) revelam em seus textos duas causas: a da
soberania democrática dos Estados e dos direitos civis do seu povo, de forma a
garantir o status de cidadania a todos indistintamente. Antes desses dois pontos
referenciais à construção do conceito de cidadania, é possível vislumbrar diferentes
103
status para o "ser cidadão". Um primeiro diz da idéia de identidade de um sujeito
que vive numa pólis do Império; seguido da idéia que coloca o indivíduo cidadão sob
a tutela de um Estado-Nação e, na atualidade, há necessidade de compreendermos
o valor de uma nova cidadania, a que nos dá acesso ao espaço global,
transnacional. Vivemos o momento em que duas cidadanias são capazes de
coexistir: uma vinculada aos direitos individuais garantidos por uma nacionalidade e
outra que nos lança ao contexto da cidadania universal. Esta última se justifica
pelos muitos problemas que se tornaram comuns aos homens e sociedades, como o
do mercado econômico; as questões ambientais; os meios eletrônicos de
comunicação, que não atendem ao limite de uma fronteira territorial; os tratados
internacionais na área ambiental, científica, cultural, econômica, social e criminal,
que nos unificam numa cidadania única. A questão a ser discutida é sobre os
direitos, deveres e formas de participação nesse inflado e dinâmico conceito de
cidadania. Também é possível observar o poderio da globalização quando Estados,
especialmente os menos desenvolvidos e de menor poder econômico, vivem uma
situação de redução na sua capacidade de formular políticas públicas de forma
autônoma. Foi o Tratado de Vestfália, de 1648, ainda no século XVII, que definiu os
princípios de territorialidade, soberania, autonomia e legalidade a cada Estado.
A teoria liberal concebe o cidadão como aquele indivíduo que, de posse de
sua liberdade, é responsável pelo exercício de seus direitos. A esse conceito
básico, o americano John Rewls agregou o aspecto de o cidadão ser o que tem a
virtude da cooperação, que lhe possibilita não só as parcerias e associações, mas
vínculos estáveis entre os membros de uma sociedade. Para esse autor, o
fundamento da unidade nacional é justamente a ascensão dos cidadãos ao princípio
de justiça com eqüidade. A cooperação entre indivíduos numa sociedade, diz o
autor, ocorre pelo benefício mútuo da cooperação.
A participação política não se restringe mais à obrigação do sufrágio, está
presente na esfera social e cultural. Participar de iniciativas cooperativas e
ecológicas, de limpeza de uma praça pública ou manutenção da escola é tão político
quanto participar de uma passeata que reivindica direitos a uma parcela da
população, ou, então, a participação da comunidade escolar nas discussões de
interesse comum e que transitam no interior da escola. Essa idéia de participação
104
cooperativa enfatiza o conceito de cidadania construído sobre a ação prática de
todos os que são afetados pelas normas de uma sociedade complexa e moderna.
Retomando os documentos que dirigem a educação nacional, além da LDB,
há de ser mencionado os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que compõem
um conjunto de obras organizado pelo Ministério da Educação cujo propósito é
subsidiar os professores e administradores escolares na tarefa da constante
atualização curricular, de adequação dos objetivos da escola considerando a LDB
em vigor, além de servir como um texto básico para discussões e posicionamentos
dos docentes sobre a educação, ensino, escola e comunidade quando da
organização do projeto político-pedagógico (PPP) de cada escola.
Os PCNs foram distribuídos aos professores de todo território nacional,
apresentando conjuntos específicos para a Educação Infantil e para o Ensino
Fundamental, este último dividido em dois grandes blocos, o das séries iniciais e o
das séries finais. São organizados de forma a apresentar objetivos gerais para a
formação do educando e objetivos específicos por componente curricular, estes
atravessados por seis temáticas conhecidas como "temas transversais", a saber:
ética, saúde, meio-ambiente, orientação sexual, pluralidade cultural e trabalho e
consumo.
A LDB e os PCNs enfatizam uma concepção ampla e essencialmente cidadã
na formação escolar, a exemplo do objetivo abaixo:
Compreender a cidadania como participação social e política, assim como
exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-
dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças,
respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito. (PCN: terceiro e
quarto ciclos: apresentação dos temas transversais, 1998, p. 7).
A escola está situada na esfera pública, e a ela cabe discutir essa dimensão
intrínseca que carrega, de desenvolvimento sócio-moral do aluno, ao mesmo tempo
em que o conceito de democracia precisa ser mais que recitado, ou seja, precisa ser
vivenciado pela experiência do trabalho e das ações em grupos. O espaço
educacional pode vivificar em cada educando os princípios referentes à dignidade da
pessoa humana e à igualdade de direitos, pela participação e co-responsabilidade
de professores, alunos e funcionários na vida social a ser partilhada nesse espaço
público e social.
105
Tomando a democracia em sentido amplo, duas facetas a constituem: uma
que dá acesso e permanência de todo cidadão à escola, que lhe garante o domínio
dos códigos da leitura, da escrita, do cálculo e de outros saberes acumulados pelo
homem, para que possa ter igual participação na vida social, do trabalho, e das
relações; outra faceta é do contexto social, da vida partilhada pela relação entre os
sujeitos, constituída a partir do respeito, da cooperação, do diálogo, da autonomia,
da liberdade, que constituem e garantem a própria democracia. Tal dimensão é
resultante de uma educação a ser partilhada por duas instituições eminentemente
formadoras da cidadania, a escola - na esfera pública, e a família - na esfera
privada. A Pedagogia da Esperança (1992), obra de Paulo Freire, diz que as
relações democráticas se estabelecem na ação entre sujeitos, não na simples
constatação de um regime político, de saberes teorizados no que se refere aos
direitos e deveres do cidadão.
"Hannah Arendt caracteriza bem a escola como esse espaço de
intermediação entre o mundo privado, da família, e o mundo público" (apud SAYÃO
e AQUINO, 2004, p. 22). A convivência cooperativa ganha relevância nesse
processo de crescimento e, para tanto, regras e fazeres que priorizam o coletivo
passam a ser considerados, tanto quanto o incentivo ao desenvolvimento do que
particulariza cada sujeito, sua autonomia sócio-moral e cognitiva, seu processo de
aprender a diferenciar-se para ser um sujeito que tenha contribuições originais a
implementar numa comunidade/sociedade que clama pelo compromisso cidadão de
todos.
Diante do imperativo de uma cidadania que exige mais posturas do que
conceitos, o professor fica impossibilitado de ser neutro; sua eticidade
42
revela-se
aos alunos nas atitudes, nos gestos e no comprometimento com o coletivo que deixa
transparecer pelas frestas do componente curricular que trabalha. O ensino do
conteúdo aos alunos é demasiado simples, ao exigir apenas certa competência
técnica ou procedimental, face do ensino que muito bem caracteriza o ensino
42
Angelo Cenci diz que a "a moral vincula-se mais diretamente a costumes, valores e normas válidas
em um determinado contexto. […] A moral, nesse sentido, é histórica, prescritiva e material; diz o que
se deve fazer, como se deve agir em determinadas situações. A ética, diferentemente da moral, tem
de ocupar-se com a esfera moral em suas especificidades sem, no entanto, limitar-se ou reduzir-se a
nenhuma moral determinada. A passagem da moral à ética requer uma mudança de plano, isto é, de
nível reflexivo. Passa-se de uma orientação imediata do agir, concreta, para uma maneira mediata,
reflexiva. A esfera da ética é a esfera da justificação racional do agir." (CENCI, 2002, p.46).
106
academicista e tradicional. O processo de aprendizagem construtivista supõe mais,
quer um sujeito que aprenda em interação com um outro sujeito, compondo uma
unidade que traz a faceta da relação. Essa abordagem deve ter, no mínimo, o
comportamento ético do professor no respeito às diferenças do aluno, ao seu "não-
saber" temporário, à diferença cultural que traz para a aula e que se mescla a tantas
outras diversidades existentes no ambiente de aprendizagem.
Na justificativa dos PCNs das séries finais do Ensino Fundamental, volume
que trata dos Temas Transversais, encontramos, tal como no Relatório Delors:
A escola não muda a sociedade, mas pode, partilhando esse projeto com
segmentos sociais que assumem os princípios democráticos, articulando-se
a eles, construir-se não apenas como espaço de reprodução, mas também
como espaço de transformação. (PCN: terceiro e quarto ciclos:
apresentação dos temas transversais, 1998, p. 23).
Os espaços e funções escolares de transformação e de reprodução citados
dão a dimensão dialógica da formação moral e conceitual a ser empreendida pela
escola. Ulisses Araújo (2004) afirma que o coletivo pode ser transformado por nós
ao mesmo tempo em que nos transforma. A transformação anunciada é a que
ultrapassa os muros escolares, aquela que é pertinente também à comunidade de
pais que têm seus filhos na escola. Tais princípios estão claramente esclarecidos na
LDB.
Os PCNs, ao tratarem dos temas transversais, têm como objetivo que as
temáticas escolhidas sejam tópicos que reforcem as idéias já presentes num coletivo
e que se revelem pertinentes de serem experimentadas, exercitadas e discutidas
dentro do precioso tempo escolar. É o olhar docente sobre os acontecimentos que
fazem parte do cotidiano escolar, onde se incluem os conflitos e as relações, que dá
significado ao conjunto formal de conteúdos trabalhados pela escola.
Também a interdisciplinaridade, que faz par com a transversalidade, prioriza
a unidade entre os campos formais dos conhecimentos, fazendo com que haja uma
rede de relações por onde transitam os conteúdos constituindo uma unidade de
conhecimento. Para tanto, precisa ser questionada a organização de uma grade
curricular com disciplinas estanques, separadas, acrescida de uma delegação de
responsabilidade ao aluno, desse fazer, por sua conta, as conexões conceituais a
partir dos diferentes e incomunicáveis disciplinas e conteúdos escolares, todos
fragmentados em períodos de cinqüenta minutos.
107
A relação entre sujeitos dentro do espaço escolar torna-se, assim, um objeto
de conhecimento importantíssimo para a escola, motivo de trabalho mais
sistemático. Vivemos num tempo em que a individuação é reforçada de forma sutil
por essas mesmas "relações interpessoais"; a idéia de levar vantagem e de prover
os desejos individuais de forma absoluta impera e está a impedir as ações coletivas,
além de dificultar ações que considerem a perspectiva da convivência harmoniosa
entre as pessoas, grupos e nações, de inclusão das diferenças.
Reúnem-se numa sala de aula diferentes sujeitos: os que aprendem e não
aprendem, os introvertidos e os extrovertidos, os que colaboram e querem fazer
sempre e os que observam, os aproveitadores e os pacatos, os que gostam de
aprender e os que não gostam, enfim, muitos, com diferentes características e
objetivos para suas vidas. O professor que se dispõe a construir uma aula com essa
diversidade de alunos, com certeza, não conseguirá repetir nunca uma mesma aula.
O desafio é o de "[…] viver cada aula como um enigma" (SAYÃO; AQUINO, 2004, p.
29), sem, no entanto, lançar-se a "aventuras pedagógicas". É a partir da seriedade
das reflexões docentes para uma próxima intervenção que o saber pedagógico se
constrói. Essa perspectiva docente pode assegurar uma relação entre professor e
aluno de trocas inestimáveis, duma verdadeira construção de cooperação e
responsabilidade interior ao grupo.
Assim, a realidade escolar é resultante da sobreposição de diferentes
cotidianos trazidos pelos alunos. O encontro é quase diário e as ações partilhadas
no grupo pelos indivíduos tornam-se fontes de mútuas e inúmeras aprendizagens a
serem mais bem aproveitadas pelo professor, como um esteio para a aprendizagem
formal, sem que tal atitude se transforme numa intromissão desrespeitosa com as
pessoas em relação, o que ratifica o comportamento moral esperado do professor
nessas oportunidades.
O texto que trata da perspectiva da autonomia nos PCNs tem sua fonte nos
estudos piagetianos do desenvolvimento moral.
A autonomia refere-se, por um lado, a um nível de desenvolvimento
psicológico (conforme explicitado no documento Ética), e, por outro lado, à
dimensão social. A autonomia pressupõe uma relação na qual os outros se
fazem necessariamente presentes como alteridade. Nesse sentido, trata-se
da perspectiva da construção de relações de autonomia. Não existe
autonomia pura, como se fosse uma capacidade absoluta de um sujeito
isolado. Por isso, só é possível realizá-la como processo coletivo e que
108
implica relações de poder não autoritárias. (PCN: terceiro e quarto ciclos:
apresentação dos temas transversais, 1998, p. 35).
A autonomia tratada no processo coletivo supera a perspectiva do senso
comum, da capacidade de fazer sozinho, sem ajuda e de forma independente. A
sala de aula pode trabalhar com vistas ao coletivo da aprendizagem e das relações
existentes dentro do espaço público da escola.
Os indicativos lançados pela lei de ensino e sugeridos pelos PCNs são
organizados no interior de cada escola em um documento denominado de Plano
Político-Pedagógico ou Projeto Político-Pedagógico (PPP). Neste documento são
registrados e explicitados os princípios gerais, as diretrizes norteadoras e as
políticas que dão sentido, identidade e dinamicidade às ações e intenções de uma
escola. Nele está a síntese do que a particulariza, realizada pela escolha teórica
feita, pela sua forma de organização administrativa e curricular. Por fim, é o
documento que orienta a trajetória política e pedagógica de uma instituição.
As orientações oficiais dizem que o PPP deve ser a expressão de muitas
vozes: dos professores, dos alunos, dos dirigentes da escola, dos funcionários e da
comunidade de pais. O PPP não é um documento definitivo, está sujeito à avaliação
e ao aperfeiçoamento constantes. Trata-se, portanto, de um documento que é
produto das condições históricas de um dado momento. Como projeto ou plano de
ação, lança perspectivas, fornece direções, sem, no entanto, prescrever condutas
individuais. Seus desdobramentos no dia-a-dia dependerão da vontade das
pessoas com as quais e para as quais foi elaborado, do compromisso ético com a
sua execução. Para que seja um documento orgânico, precisa ser assumido
coletivamente por todos aqueles que compõem a comunidade escolar.
Desse transcurso teórico, que inicia com os princípios morais trazidos pela
Escola Nova, da autonomia discutida por Piaget e dos documentos escolares que
contextualizam o tema desta pesquisa, retomo a pergunta que dirige este trabalho:
Como o professor concebe a construção de autonomia na sua relação com o aluno?
Ou melhor: como o professor organiza espaços para a construção da autonomia em
seu projeto de aula? Tais questões resultam do fato de que todas as disciplinas de
um currículo são possibilitadoras de discussões também morais, no mínimo da
relação entre as pessoas e dessas com a utilização dos conceitos e avanços
científicos da biológica, da física e todas as outras matérias escolares.
109
Antes de me ater às questões da pesquisa, apresento a metodologia que
dirigiu a pesquisa.
110
3 METODOLOGIA
Este capítulo apresenta os procedimentos metodológicos previstos no
projeto que antecedeu este trabalho e atualiza-os a partir dos encaminhamentos que
a previsão anterior possibilitou trilhar.
A busca de informações e dados facultou a construção reflexiva a partir da
unidade central de análise do projeto, qual seja: a concepção de autonomia do
professor e as situações pedagógicas que o docente disponibiliza em aula
para que seus alunos construam sua autonomia. Essa unidade central de
análise inclui três aspectos: primeiro, as ações sociais que transitam
concomitantemente à ação pedagógica, especialmente a de colaboração entre o
professor e os alunos e desses entre si; seguido pelo discurso pedagógico da escola
(registrado em seu plano político-pedagógico) e, por último, pelos princípios
norteadores da ação docente na sala de aula numa práxis pedagógica
43
, verificada
em entrevista com dois grupos de sujeitos, os docentes em exercício e os docentes
já aposentados.
O trabalho foi realizado em duas escolas da cidade de Porto Alegre,
escolhidas a partir da referência de Mário Sérgio Vasconcelos na obra A Difusão das
Idéias de Piaget no Brasil (1996). A eleição desse critério inicial deu-se por serem
estabelecimentos que foram sensíveis aos princípios da Escola Nova e à leitura da
obra piagetiana em meados da década de cinqüenta do século passado.
Após contato com a direção e coordenação das escolas, quando foram
apresentados os objetivos do trabalho, cinco professores de cada estabelecimento
de ensino disponibilizaram, espontaneamente, suas aulas para a observação do
grupo de alunos, no que diz respeito às oportunidades existentes no interior de uma
aula para a construção da autonomia dos alunos. Não foi estabelecida nenhuma
restrição com relação aos diferentes componentes curriculares das oitavas séries do
ensino fundamental.
43
Projeto de pesquisa A Construção da Autonomia na Sala de Aula. p. 49.
111
Dessa forma, constituíram-se em cenário para a coleta de dados: a) duas
turmas de oitava série do ensino fundamental de duas escolas da capital, onde se
realizaram as observações, registradas num diário da pesquisadora; b) dez
professores com regência nessas turmas disponibilizadas pelas escolas, dos quais
cinco de cada uma das escolas, que se tornaram sujeitos da pesquisa quando
entrevistados; c) quatro professores aposentados, dois de cada uma das escolas; d)
o Plano Político-Pedagógico (PPP) das duas escolas.
3.1 OS SUJEITOS
A escolha da oitava série do ensino fundamental é decorrente do estudo
sobre o desenvolvimento moral em Jean Piaget. A obra O Juízo Moral na Criança,
1932-1994, sugere, de forma indireta, a possibilidade de serem encontrados sujeitos
autônomos nessa série, composta por alunos que variam entre os treze e dezesseis
anos.
O grupo de alunos que estão matriculados na série em estudo deveria
encontrar-se, com relação à prática das regras, no estádio da codificação das regras
e, com relação à consciência das regras, também estar no último patamar sugerido
por Jean Piaget (1932-1994), quando a cooperação e autonomia se estabelecem de
forma predominante na relação entre os educandos.
Depreende-se da teoria piagetiana que a adolescência, como uma etapa
própria e com específico desenvolvimento psicológico e da razão, corresponde ao
ingresso do jovem no estádio do pensamento formal, no qual há a real possibilidade
de o sujeito ter assumido a cooperação como valor interacional e estar de posse de
singular autonomia moral.
A escolha dos sujeitos professores a serem entrevistados e observados ficou
a critério da escola. Em momento posterior recebi a nominata dos professores que
se dispuseram à pesquisa. Foi considerado não relevante o componente curricular
que o professor trabalhava.
Os sujeitos do segundo grupo de entrevistas, professores aposentados,
também foram indicados pela escola. Foi solicitada a preferência por professores
112
que tivessem estado na escola próximo da década de 1950 e que tivessem
trabalhado com alunos adolescentes.
3.2 OS PROCEDIMENTOS DE INVESTIGAÇÃO UTILIZADOS
Os procedimentos de investigação foram três: as entrevistas, a análise dos
documentos escolares e a observação de uma turma de alunos em aula.
As entrevistas atenderam a alguns princípios da entrevista clínica de Piaget,
que coloca a ênfase "não em fazer responder, mas em fazer falar livremente e em
descobrir as tendências espontâneas, em vez de as canalizar e as conter". (PIAGET,
1926-1978, p. 7). As entrevistas foram realizadas com os professores indicados pela
escola, todos exercendo atividade de docência com a turma de oitava série
observada pela pesquisadora. Também foram entrevistados professores que
trabalharam nesses estabelecimentos de ensino décadas atrás e, por fim, o
coordenador pedagógico da Escola B e o orientador educacional da Escola A.
Os conteúdos das entrevistas versaram sobre a concepção de autonomia do
professor e sobre o processo de construção de tal valor dentro da sala de aula,
posteriormente observado na prática. As entrevistas foram gravadas e transcritas.
Foi deixado que os entrevistados falassem a partir de suas convicções, sem a
restrição de uma pergunta objetiva, mas sempre mergulhando na temática do
trabalho de pesquisa, com exemplificações a partir de prática de cada professor
entrevistado.
Tabela 3.2.1: Síntese numérica das entrevistas
Componentes
curriculares
Professores
em exercício
Professores
em setores*
Professores
aposentados
Total de
entrevistas
Escola A 5 4 1 2 7
Escola B 4 5 1 2 8
Total 9 9 2 4 15
* Os professores de setores correspondem a um orientador educacional da Escola A e ao
coordenador pedagógico da Escola B.
113
Na Escola A a pesquisadora foi acompanhada pelo Serviço de Orientação
Educacional e, na Escola B, pelo Serviço de Coordenação Pedagógica, com os
quais realizou a entrevista.
A Escola A tem uma entrevista a menos de docente em exercício em razão
de um procedimento administrativo e interno da escola que removeu um dos
professores que disponibilizara seus períodos de aula para a observação. As
entrevistas com os professores foram todas realizadas após o término da
observação do docente em atividade, ou, no mínimo, após duas observações
registradas. O professor não entrevistado, no caso, foi deixado para o final das
observações e o contato anteriormente estabelecido ficou perdido e fragilizado pela
situação de desligamento da escola. Na Escola B, uma das disciplinas observadas
teve dois professores, pois o grupo de alunos era dividido e cada professor
coordenava as tarefas com metade dos alunos, o que resultou em cinco entrevistas
para quatro disciplinas observadas.
O segundo procedimento de pesquisa foi a leitura do Projeto Político-
Pedagógico (PPP) das escolas, documento em que foi observada a forma como o
tema da autonomia está previsto, em qual contexto, agrupado a que possibilidade de
compreensão e desenvolvimento na ação escolar.
A análise dos documentos de uma instituição, segundo Yin (2001), tem
importante participação na construção de um estudo de caso, pois são referências
estáveis aos que trabalham sob a regência de tais documentos, oficiais ao
estabelecimento de ensino. As escolas foram muito solícitas, não fazendo restrição
ao acesso a qualquer documento escolar ou questionamento da pesquisadora.
O terceiro e último procedimento de investigação foi a observação em sala
de aula de duas turmas de oitava série do ensino fundamental, indicadas pelas
escolas.
A Tabela 3.2.2 sintetiza quantitativamente as observações realizadas.
114
Tabela 3.2.2: Síntese numérica das observações
Componentes
Curriculares
Professores
observados
Nº de entradas
na sala de aula
Nº de períodos
observados
Escola A 5 5 21 34
Escola B 4 5 15 19
Total 9 10 36 53
As situações de aula foram observadas e registradas em diário de classe da
pesquisadora. Foram privilegiadas as situações de conflito e cooperação em sala de
aula. As relações estabelecidas entre os colegas, estando todos num grupo de
trabalho, foram registradas enquanto ações realizadas em conjunto ou não, como
também a relação entre alunos e grupos com o professor, na medida em que este
último priorizava ações cooperativas, de incentivo ao diálogo, ou de uma relação
heterônoma, quando a regra poderia se impor de forma definitiva. Uma atenção
especial foi dispensada aos momentos em que o professor estaria facilitando a
oportunidade de expressão do aluno, no estabelecimento de um jogo argumentativo
entre alunos/grupo e professor.
O projeto havia previsto quatro observações em cada disciplina oferecida
pela escola, no entanto foram realizadas, em média, cinco observações para cada
componente curricular.
De posse das entrevistas e dos dados colhidos nos documentos escolares,
esses foram aproximados e analisados de forma integrada, sem individualizar cada
docente que falava, pois interessava a unidade que as diferentes falas daquele
grupo de professores que trabalhavam na oitava série observada pudessem
expressar. O conjunto de dados das falas dos professores em exercício foi
relacionado ao PPP da escola, e o conjunto de dados das falas dos professores
aposentado serviu como um eixo paralelo de análise, como indicativos do que se
alterou ou se consolidou nas escolas pesquisadas com relação à autonomia.
As observações realizadas nas turmas foram tomadas em separado no
momento da análise dos dados, constituindo um segundo momento no registro desta
pesquisa. Após uma tomada geral do que acontecia em sala de aula, considerando
115
o tema da pesquisa, foram então correlacionadas ao bloco que contém as
entrevistas dos professores em atividade, já aproximadas do conteúdo do PPP da
escola.
O conjunto composto pelas observações, entrevistas e análise de
documentos abriu espaço para muitas revelações, surpresas e indagações. Assim
como o fazer pedagógico é feito de urgências que devem responder à contínua
novidade que o processo grupal do aprender e ensinar faz emergir numa aula, a
empiria, para o pesquisador, revela e questiona a teoria em seu processo de
amadurecimento e constante (re)ajustamento dialógico com a prática. A pesquisa
procura sistematizar em conceitos, em fundamentos e princípios a disjunção entre a
teoria e a prática - que continuamente se atraem, tal como os pólos magnéticos, de
valores opostos, também se atraem. Tanto a teoria como a prática pedagógica
colocam em jogo as dinâmicas do aprender e do ensinar, que, mesmo que não
caminhem juntas, têm a mesma direção.
3.3 CATEGORIAS DE ANÁLISE
A organização dos dados das entrevistas dentro das categorias de análise
previstas no projeto foi feita com o objetivo de verificar a concepção de autonomia
vigente no ideário do professor em dois grupos, o dos aposentados e o dos em
exercício da profissão. Após a realização das entrevistas, os dados coletados
somaram-se ao entendimento do próprio objeto de estudo desta pesquisa, qual seja,
da construção da autonomia vista pelo professor. Para tanto, os dados das
entrevistas dos professores em exercício de sua profissão são confrontados com os
indicativos previstos nos documentos oficiais da escola e com os dados das
entrevistas de colegas seus de escola, mas que não estão mais em atividade
docente, buscando-se verificar em que a autonomia se modificou, evoluiu ou se
consolidou no espaço escolar.
Para os professores entrevistados e que se encontram em exercício da
profissão, foram acrescidos na análise final os dados colhidos na observação de sua
prática junto aos alunos, além de se fazer o cruzamento com os dados dos
documentos escolares.
116
As escolas, propositadamente escolhidas, sofreram alterações substanciais
em sua organização pedagógica por volta da segunda metade do século passado,
feitas a partir dos estudos que visavam atualizá-las com o que existia de inovação na
época, especialmente quanto à difusão da teoria piagetiana no Brasil e no nosso
estado
44
.
A próxima figura, que ilustra a disposição das categorias de análise, coloca
os dados coletados nas entrevistas com os professores aposentados em linha
paralela aos dados de entrevista dos professores em exercício da profissão, são
fatos assincrônicos, uma vez que representam tempos diferentes e pela
impossibilidade de observação desses profissionais em atividade, tal como o
realizado com o outro grupo de docentes. A figura a seguir esquematiza essa
configuração teórica adotada.
44
Tese de doutorado da Prof. Drª. Maria Luiza Becker (1998).
Figura 3.3.1
O professor tem um espaço de relação com seus alunos que é intermediado
pelo seu componente curricular, ou vice-versa, uma disciplina com um conjunto de
conteúdos escolares intermediados pela relação. O que importa é a possibilidade de
fazer do tempo de aprendizagem com o grupo de alunos uma experiência que
transcenda os limites conceituais do saber fazer ou compreender os temas em
estudo; é preciso que o aluno e o professor constituam-se como sujeitos de relação
nesse fazer pedagógico, como sujeitos que aprendem por estarem reunidos para
ações em conjunto, que, por sua vez, suscitam ações de cooperação entre os pares,
o que é resultante, segundo Jean Piaget, da possibilidade de autonomia e
cooperação construída pelos sujeitos.
Sujeitos:
Grupo de
professores
a
p
osentados
Grupo de
professores em
exercício
1ª - Ação pedagógica
e o Plano Político-Pedagógico
da Escola
118
A organização dos dados coletados nas trinta e seis observações, muitas
delas de mais de um período consecutivo de aula, ganhou a seguinte configuração
(próxima figura): dois grandes grupos de condutas observáveis, quais sejam, os
momentos em que se observa a atitude de cooperação no grupo dos alunos e os
momentos em que existe um conflito de fato ou em potencial no mesmo grupo. A
mesma conduta, de cooperação e conflito, também foi vista na relação do grupo de
alunos com o professor, e vice-versa.
119
Figura 3.3.2
Condutas Observadas:
Trabalho em
Grupo
120
Os cinco elementos - grupo, conflito, cooperação, coação e relação - são os
indicativos de análise já presentes no projeto que antecedeu a este trabalho, agora
em nova ordenação, o que possibilitou constituir uma rede de relações onde a
verticalidade das condutas observadas (grupo e conflito) é tecida com a
horizontalidade das categorias de análise (relações de cooperação e relações de
coação entre aluno-aluno (A-A), aluno-professor (A-P) e professor-aluno (P-A)).
À transitividade dos dados foi dada especial relevância nas duas ordenações
dos dados coletados como categorias de análise, uma vez que um grupo na
situação de aprendizagem não pode ser concebido como uma situação estática ou
engessada pelas relações e situações unidirecionais.
Apresento uma conceituação breve de alguns termos que são chaves ao
trabalho e que permanecem latentes em toda a discussão teórica e prática exposta,
exigindo-se, por isso, sua apresentação.
3.3.1 Autonomia
O conceito de autonomia utilizado como referência no presente trabalho é o
construído por Jean Piaget na obra O Juízo Moral na Criança (1932-1994).
O conceito de autonomia tem uma enorme gama de aplicações e sentidos
quando o localizamos no dicionário (Houaiss, 2001). Entre esses estão: capacidade
de autogovernabilidade de cada um, de tomar decisões livremente; a existência de
uma independência moral e intelectual. A autonomia tem uma aplicabilidade
jurídica, quando se refere à soberania das leis e à legitimidade de governo de um
país, e uma aplicabilidade administrativa, quando reconhece uma organização em
sua capacidade de gerir-se livremente. Tem também um campo próprio dentro da
filosofia, à qual Emanuel Kant se refere como a capacidade humana de governar-se
segundo princípios morais a si estabelecidos, livre de qualquer pressão externa. Por
último, o dicionário registra a sua utilização no campo da engenharia aeronáutica ou
naval para referir o período de tempo em que um equipamento, aeronave ou navio
pode manter seu funcionamento sem a ação de agentes externos para sua
manutenção.
121
A escolha conceitual recaiu sobre a dimensão da pesquisa científica, tal
como encaminhou Jean Piaget, seguindo a tradição inaugurada por Levy-Bruhl de
trazer a moral para o campo da ciência, afastando-se do debate filosófico e religioso.
Tal referência é encontrada na introdução à edição brasileira de O Juízo Moral na
Criança (1932-1994) feita por Yves de La Taille.
Jean Piaget (1932/1994), ao distinguir a moral heterônoma da moral
autônoma, diz que esta última é resultante da cooperação. Ainda:
[…] há autonomia moral, quando a consciência considera como necessário
um ideal, independente de qualquer pressão exterior. Ora, sem relação
com outrem, não há necessidade de moral: o indivíduo como tal conhece
apenas a anomia e não a autonomia. Inversamente, toda relação com
outrem, na qual intervém o respeito unilateral, conduz à heteronomia. A
autonomia só aparece com reciprocidade, quando o respeito mútuo é
bastante forte, para que o indivíduo experimente interiormente a
necessidade de tratar os outros como gostaria de ser tratado. (PIAGET,
1932-1994, p. 155).
A citação escolhida faz apontamento sobre as seguintes condições para a
autonomia: ser um valor interiorizado pelo sujeito, isto é, sua existência e utilização
independem de qualquer coação externa, deve estar presente no agir do sujeito de
forma livre; outra condição estabelecida é de a autonomia existir na relação entre
sujeitos, não tendo sentido, no caso, a simples independentização da ação (situação
válida para o conceito de autonomia, mas não suficiente quando é tomada no plano
moral); e, por fim, a autonomia supõe reciprocidade, isto é, a aplicação do imperativo
kantiano de só desejar ou fazer ao outro o que gostaria que a si fosse feito ou
desejado.
A autonomia supera a heteronomia, também quando o sujeito é capaz, pela
capacidade de descentração e uso da razão, de situar-se numa perspectiva
diferente da sua e de estabelecer uma reciprocidade de juízos.
Há um trajeto a ser percorrido: de um respeito unilateral que a criança
mantém com os adultos de sua relação para um respeito que é mútuo. É o medo o
elemento mobilizador do respeito unilateral, que desaparece, progressivamente, no
sujeito em razão do surgimento de um segundo tipo de medo, o de decair aos olhos
de um outro indivíduo respeitado, de um outro indivíduo que não está colocado em
posição superior ao primeiro.
122
Antes de especificar um pouco a relação entre o desenvolvimento moral e
cognitivo, convém uma observação com relação à descentração, outra característica
importante do sujeito autônomo.
A descentração opõe-se à centração, isto é, ao egocentrismo, que se coloca
como um obstáculo nas relações sociais. No período egocêntrico as trocas são
incompletas ou não reais
45
. É necessário que a criança reconheça a existência de
um mundo exterior, composto de relações e implicações que independem da sua
vontade; só assim pode construir a si mesma, a sua identidade, diferenciando-se do
que a cerca, do que "não é o eu", isso feito pelo dinâmico equilíbrio entre a
assimilação e a acomodação, possibilitando que as representações se constituam no
interior do sujeito. A superação do egocentrismo radical, dito por Piaget quando se
refere aos primeiros anos do desenvolvimento, também passa a exigir o
reconhecimento de um outro sujeito com iguais necessidades ou vontades. A
descentração supera o egocentrismo infantil, que, pelas relações interpessoais,
gradativamente coloca o sujeito em conflito com sua centralidade.
A razão está implicada como condição necessária, mas não suficiente, para
a autonomia. Piaget se opõe à idéia de que a moral seria adquirida ou aprendida
pela simples percepção do que seja certo, ou do que seja o bem, como também não
é resultante da força do hábito imposto a um sujeito. Para Piaget a moral autônoma
é resultante de uma construção que está em contínua relação com outros sujeitos,
esses que, pela força reguladora do grupo, continuamente exigem a reordenação
das regras e a incorporação de valores mais universais do que particulares para a
manutenção da própria relação em igualdade de condições.
Paulo Freire diz que a autonomia moral é a autonomia do diálogo, do acordo
resultante de sujeitos iguais e que suportam a crítica mútua.
Para Josep Puig, o sujeito autônomo se opõe às situações de conformismo,
imitação e da tradição. O sujeito autônomo é aquele que "faz com os outros" e não
"como os outros". Yves La Taille, ao prefaciar a obra de Josep Puig, diz que esse
45
A criança não tem consciência da posição que assume quando age ou pensa: de ser o ponto
central, a referência única. Toma os desejos alheios como seus, o mundo como de sua propriedade.
Por isso, a troca é fragmentada pela dominância da unilateralidade.
123
autor se refere à "[…] autonomia moral [como] condição necessária para o exercício
da cidadania numa sociedade democrática". (PUIG, 1998, p. 12).
O conceito de autonomia apresentado por Piaget tem relevância para a
escola por abranger o domínio do desenvolvimento sócio-moral e cognitivo de forma
simultânea, além de requisitar a condição da colaboração entre pares de forma a
estabelecer uma justiça distributiva.
3.3.2 Cooperação
Piaget, em 1944, escreveu o artigo intitulado "A educação da liberdade", lido
no 28º Congresso Suíço dos Instrutores, no qual se encontra a seguinte
conceituação para o termo "cooperação", considerado como referência neste
trabalho:
A cooperação é o conjunto de interações entre indivíduos iguais (por
oposição às interações entre superiores e inferiores) e diferenciada (em
contraposição ao conformismo compulsório). Sociologicamente, a
cooperação organizou-se em correlação com a divisão do trabalho social e
com a diferenciação psicológica dos indivíduos que dela resultou. A
cooperação supõe, então, a autonomia dos indivíduos, ou seja, a liberdade
de pensamento, a liberdade moral e a liberdade política. (PIAGET, In
PARRAT-DAYAN e TRYPHON, 1998, p. 153).
A cooperação, em Piaget, está colocada como uma possibilidade do ser
humano em suas atividades de relação com outros sujeitos. É um termo-limite, diz o
autor, pelo fato de a cooperação absoluta e em tempo permanente ser uma utopia
buscada. As situações de cooperação são resultantes da direção que tomam as
relações entre sujeitos, quando afastadas das situações egocêntricas, egoísticas e
individualistas. Em toda relação há a possibilidade de uma oscilação entre
individuação – cooperação, entre egocentrismo – autonomia/cooperação.
No livro O Juízo Moral na Criança (1932-1994) encontramos o seguinte par
de relações: do egocentrismo e da imitação como um único conjunto, a ser superado
pelo conjunto da autonomia e cooperação. E ainda, a importância da cooperação
para a autonomia está no fato de que esta última só se completa ou existe pelo
exercício da cooperação entre sujeitos que se encontram no mesmo patamar de
relações.
A cooperação faz par com a autonomia, fato observado por Piaget em
grupos de jovens que discutiam de forma cooperativa a construção de novas regras.
124
Diz o autor que os jovens adolescentes atingem os níveis finais com relação à
consciência e à prática das regras quando começam a se submeter verdadeiramente
às regras, de forma autônoma; quando percebem que essas deixam espaços para
novos acordos, que podem alterar a sua forma através da discussão, até a regra
poder melhor atender às expectativas de um grupo que interage pela cooperação. A
verdadeira regra não está na tradição, mas no acordo mútuo, cooperativo e de
reciprocidade estabelecido entre os que a consideram.
Na perspectiva da obra, Estudos Sociológicos, de Jean Piaget (1965-1973),
"cooperar na ação é operar em comum, isto é, ajustar por meio de novas operações
(qualitativas ou métricas) de correspondência, reciprocidade ou complementaridade,
as operações executadas por cada um dos parceiros". (PIAGET, 1965-1973, p. 105).
Aqui a cooperação está colocada numa situação lógica a partir da
possibilidade de trocas operatórias. A cooperação, assim entendida, deve resultar
numa operação idêntica, isto é, que atinja o equilíbrio entre as partes, de uma ação
não se sobrepor a outra, na reciprocidade completa de ações. Também essa
dimensão social e lógica da cooperação exige a possibilidade de descentração de
um sujeito. Essa se faz presente pelo contínuo ajuste de uma ação a outra,
considerando dois sujeitos que interagem ou conversam, até compor um sistema
geral, resultante desse conjunto de operações.
Jean Piaget ressalva que a cooperação compreendida pelas leis de
equilíbrio difere, radicalmente, de uma troca espontaneísta, do laissez-faire tal como
o concebe o liberalismo clássico. Diz que, sem uma disciplina interna aos sujeitos,
não há como coordenar diferentes pontos de vista, o que exige constante situação
de operação e seu correlato inverso, a reciprocidade. Podem-se acrescentar ainda a
necessidade de descentração e coordenação de pontos de vista diferentes e a
existência de um mínimo de respeito ao ponto de vista alheio.
Com a obra de Jean Piaget entendemos o processo de transformação do
estado egocêntrico infantil em cooperação, quando a reciprocidade entre pontos de
vista é possível.
125
3.3.3 Coação
A coação aparece como o componente antagônico à cooperação na obra O
Juízo Moral na Criança (1932-1994). Conceitualmente, carrega o significado de
repressão, do ato de pressionar e constranger um indivíduo que se encontra em
situação de desvantagem. É usar de um prestígio para impor uma norma, um saber,
um costume, uma crença ou regras prontas que devem ser atendidas em bloco, isto
é, sem questionamento, pela força da autoridade.
O indivíduo coagido tem pouca participação racional numa ação a ser
empreendida, na conservação, transformação ou divulgação de idéias; basta aceitar
e repetir a norma, idéia ou conceito ouvido de um outro sujeito a quem atribui
prestígio. Não se faz necessária a descentração cognitiva e social do sujeito em
situação de coação - o oprimido - quando da verificação das premissas ou normas
em sua veracidade.
A coação representa o tipo de relação dominante na vida da criança
pequena, é uma etapa obrigatória e necessária da socialização.
O período do egocentrismo infantil é o mesmo em que a criança aceita a
norma heterônoma e coercitiva de forma passiva, sem se dar conta de que obedece,
e da unidirecionalidade da relação. A coação externa não destrói o egocentrismo,
mas o dissimula ou o potencializa, diz Jean Piaget (1932-1994).
A coação é incapaz de produzir mudanças verdadeiras e permanentes no
sujeito, ao contrário da cooperação, que possibilita a troca de idéias entre iguais e,
por isso, é capaz de colocá-lo em situação de operação, de trocas recíprocas. É a
cooperação que liberta a criança da mística adulta.
Quando Piaget refere a existência de dois tipos de relações, a de coação e a
de cooperação, diz que a primeira dá conta de uma imposição exterior ao sujeito, é
um sistema de regras de conteúdo obrigatório. "[…] a coação que implica uma
autoridade e uma submissão, conduzindo assim à heteronomia" (PIAGET, 1965-
1973, p.168).
O sujeito não se liberta totalmente da coação exterior; apenas, com o seu
desenvolvimento há uma amenização de sua força pela possibilidade de julgamento
do sujeito. Por diferentes motivos um indivíduo adulto pode se submeter a outro: por
126
medo, por necessidade, por uma circunstância vantajosa, ou por outros tantos
motivos, caracterizando o sujeito oprimido de Paulo Freire, de consciência "ingênua"
(1970-1987).
3.3.4 Ação Pedagógica
A ação pedagógica é exercida pelo professor junto a um grupo de alunos em
interação num espaço e tempo delimitado de uma aula. Remete o professor à sua
própria relação com o saber e suas concepções epistemológicas, para que todo o
saber que transita numa aula se torne, para o aluno, objeto acessível.
Philippe Meirieu (2002) menciona a expressão trabalho pedagógico para o
que neste trabalho chamo de "ação pedagógica" e atribui ao conceito a rotina de um
professor-pesquisador de sua prática: do ensinar. Também Paulo Freire (1997)
requisita a necessidade do incansável trabalho docente em descobrir como fazer uso
dos objetos e objetivos de aprendizagem, ao examiná-los, analisá-los, interrogá-los
para operacionalizar uma prática que produza interação e significação do objeto com
o aluno que aprende, fazendo uso de diferentes experiências pedagógicas. E ainda,
Darli Collares (2003) diz que a ação de um professor construtivista está atrelada a
uma área de conhecimentos, aos princípios epistemológicos que definem a ação
docente - a mesma que sustenta a sua concepção de conhecimento e dirige o seu
modo pessoal na sala de aula - e, por fim, às questões psicológicas do
desenvolvimento, o que permite fazer intervenções consistentes e acolher os alunos
na sua singularidade.
A ação pedagógica põe em movimento o "triângulo pedagógico: educando –
saber – educador" (MEIRIEU, 1998, p. 80) e envolve uma relação pedagógica onde
estão presentes pessoas com diferentes motivações em situações de transferência e
contratransferência. A forma como o professor encaminha a resolução dos conflitos
em aula, que pode ser a conversação, ao conceder oportunidade a diferentes
manifestações dos alunos, põe em evidência o seu compromisso com o
desenvolvimento da autonomia dos alunos. Esta se expressa pela possibilidade dos
alunos falarem e ouvirem outros posicionamentos, idéias ou soluções para o
encaminhamento de entraves na relação do grupo.
127
O professor pode construir junto aos alunos uma aula em que todos dela
participem, o que pode requerer certa movimentação dos alunos, conversação que
ora pode ter um direcionamento ascendente (do aluno para o professor), ora um
direcionamento paralelo (de aluno para aluno, ou de aluno para professor, quando
este último se coloca na discussão não autoritária com os alunos). A coerção
docente pode manifestar-se pela centralidade do professor em aula, quando todas
as decisões e encaminhamentos são direcionados pelo professor.
3.3.5 Aprendizagem
As ações de pensar e de aprender envolvem, necessariamente, a
possibilidade de ação de um sujeito, além das ações de criticar, de sugerir,
correlacionar, inventar
46
e transcender a um fato ou situação experimentada ou
percebida, de maneira autônoma, no livre jogo das funções intelectuais, motoras e
sociais. É muito estreita a concepção de aprendizagem que não possibilita ao
sujeito pensar por si mesmo, que diz a forma e o modo como um sujeito deve agir
para aprender.
Jean Piaget (1959-1974), ao definir aprendizagem, o fez em dois planos: um,
que chamou de lato sensu, que corresponde ao plano do desenvolvimento, e outro,
que chamou de stricto sensu, das aprendizagens pontuais, dos conteúdos a serem
aprendidos pelo sujeito. A aprendizagem do tipo lato sensu é o resultado do
processo de equilibração, da tomada de consciência sobre uma ou várias
experiências de primeira potência
47
, além de supor a própria aprendizagem stricto
sensu; essa aprendizagem ampla – lato sensu -, é uma aprendizagem
generalizadora.
46
A invenção se opõe a cópia, a reprodução. A aprendizagem em Piaget traz o componente da
construção e da invenção, de como o sujeito pode compreender de forma particular e original uma
experiência vivida e não a possibilidade de reproduzir de forma igual, tal como a cópia. Aprender
supõe invenção, tornando singular o que foi do contexto social.
47
Ações de primeira potência são realizadas sobre os objetos, é o retirar da experiência suas
características materiais e observáveis, ao que Jean Piaget também chamou de abstração empírica.
Um segundo tipo de ações são as de segunda potência, essa resultante da coordenação de ações
realizadas em primeira potência; é a capacidade de retirar, por abstrações reflexionantes, as
qualidades da coordenação de suas ações, do que não é observável uma vez que é uma
compreensão.
128
A aprendizagem lato sensu constitui-se de esquemas, que são como
organizadores utilizados na aprendizagem stricto sensu; são estruturas
generalizáveis, disponíveis à reutilização numa nova situação de aprendizagem, de
um novo conteúdo. A aprendizagem de conteúdos é a de stricto sensu.
Lendo Jean Piaget (1959-1974) é possível compreender e distinguir que a
aprendizagem, no sentido restrito, é o resultado de uma experiência física ou lógico-
matemática que leva a uma compreensão imediata, concreta, ao passo que o
aprender, no sentido amplo, é a união das aprendizagens pontuais do sentido
restrito, colocadas num outro patamar de experiências, que as generalize e as
transforme num conceito mais abrangente que o anterior; é resultante de uma
compreensão refletida.
Essas observações de Jean Piaget redirecionam a ação da escola quanto ao
aprender. Ensinar um conteúdo estático para o aluno, um conteúdo de informação,
leva a uma constatação: estamos operando num nível restrito, de memorizar os
conteúdos listados numa planilha curricular. É necessário que se façam essas
aprendizagens, pois têm sua importância, desde que acrescidas da possibilidade de
o aluno pensar no conjunto das aprendizagens realizadas; pensar o que têm de
comum os tantos trabalhos de matemática, história ou de português realizados e o
que se pode aprender dessas totalidades. Na verdade, abrem-se caminhos para
que o aluno aprenda a partir de sua aprendizagem, no sentido lato de aprender, isto
é, do aprender a aprender.
Fernando Becker (2003) diz que é preciso agir para aprender. Ainda, é
preciso se apropriar da ação do aprender: "[…] ensino não pode mais ser visto como
a fonte da aprendizagem. A fonte da aprendizagem é a ação do sujeito" (BECKER,
2003, p, 14). É a ação que põe um sujeito em interação com um objeto de
conhecimento. Ação enquanto processo dinâmico envolve duas realidades em
constante busca de equilíbrio: a interna ao indivíduo – na reordenação pelo equilíbrio
das suas estruturas internas de pensamento – e a que é externa ao sujeito – do
objeto de aprendizagem a ser explorado, assimilado.
[…] o conhecimento não parte nem do sujeito nem do objeto, mas da
interação indissociável entre eles, para avançar daí na dupla direção de
uma exteriorização objetivante e de uma interiorização refletida. […] no
sentido dinâmico e construtivista das ultrapassagens contínuas. (PIAGET,
1973, p. 14).
129
A palavra "interação", que agora surge no texto, aparecerá inúmeras vezes
na defesa das proposições deste trabalho e sempre no contexto teórico piagetiano,
onde significa estar entre dois pontos, entre um objeto e um sujeito, ou entre dois
sujeitos. A posição de estar entre dois pólos supõe a busca do equilíbrio, isto é,
deverá estar na situação de operação, o que envolve uma ação e sua reação
equivalente ou inversa. Nas interações que o sujeito estabelece com o meio estão
em ação as invariantes da assimilação e acomodação que o transformam como
sujeito, tanto quanto os objetos ficam modificados, isso porque passam a ser “novos”
objetos para o sujeito, modificados pela ação realizada.
O conhecer e o aprender, em Jean Piaget, não se limitam a contemplar um
objeto
48
dizendo suas qualidades, a imaginar ou reproduzir o modelo desse objeto.
Conhecer exige uma ação de transformação a partir do objeto para descobrir as leis
que regem suas transformações ou existência; é distinguir as relações necessárias
das contingentes, atribuir significado às coisas no sentido mais amplo da palavra, ou
seja, levando em conta não só o que é atual e explícito numa experiência, mas,
também, todo o passado das aprendizagens e conhecimentos já realizados. Entra
em processo de reordenação tudo que é real, possível e implícito, introduzindo aí
uma nova distinção piagetiana, a da forma e do conteúdo. Piaget distingue-os
dizendo que a forma é uma estrutura que se "descola" do conteúdo, que afirma ao
sujeito sobre a sua possibilidade de saber, conhecer, de forma própria, original em
outro e superior patamar de conhecimento, que implica no domínio do conteúdo,
mas o transcende, pela reflexão e tomada de consciência.
A essa capacidade cognitiva
49
e lógica do aprender se agrega a necessidade
de um aspecto dinâmico, que a mobilize à ação sobre um objeto ou conteúdo.
Piaget atribui essa responsabilidade ao aspecto afetivo; retoma a unidade do ser
humano e desmente os que dizem ser a Epistemologia Genética uma teoria somente
lógica. “[…] um esquema de assimilação comporta uma estrutura (aspecto
cognitivo) e uma dinâmica (aspecto afetivo), mas sob formas inseparáveis e
indissociáveis”. (PIAGET, 1959-1974, p. 66). A necessidade da descoberta que o
aprender suscita no sujeito é mobilizada pelo afeto, que reclama por uma
48
Ver nota de rodapé de número quatro (4), que conceitua objeto.
49
Capacidade cognitiva, cognitivo, do verbo latino cognoscere : conhecimento.
130
"alimentação", quer dizer, de poder assimilar ou agir sobre conteúdos e dele retirar
informações que se somam às estruturas de conhecimento, sem jamais constituir
uma estrutura afetiva. "O gatilho de uma ação é a afetividade" (BECKER, 2003, p.
20).
Às díades com relação ao aprender - de ser amplo e restrito, de ser um
conteúdo ou uma forma, de ter um sujeito e um objeto em interação - Piaget e Gréco
(1959-1974) acrescentaram a relação de o aprender também ser sincrônico e
diacrônico.
O registro concreto e imediato de uma ação sobre o objeto é delimitado por
um tempo presente e por uma ação sincrônica, assim é necessário para que se
possa fazer uma "leitura" de dados que a situação possibilita. O dado exterior vai
ser interiorizado pela assimilação e coordenação de ações que o sujeito estabelece
com a situação dada, o que poderia caracterizar o aprender pelo registro de novas
informações realizadas. No entanto, essa aprendizagem sincrônica chama pelas
aprendizagens feitas anteriormente pelo sujeito, para que o processo do aprender se
constitua de significado para ele. Toda nova aprendizagem necessita de referências
anteriores; por isso, o aprender é, simultaneamente, sincrônico e diacrônico, inclui
uma experiência anterior.
Com isso, mais uma vez podemos voltar ao contexto escolar e pensar que a
simples aprendizagem de conteúdos é muito reduzida e simples para o aluno.
Aprender com o que aprendemos, eis o desafio que se impõe à escola,
especialmente diante da avalanche de informações disponibilizadas pelos meios
eletrônicos, ou da utilização desses recursos na rotina de aula. Considerando o
exemplo dos meios computacionais na escola, tem-se que só os utiliza com
competência quem sabe aprender a aprender com autonomia. Ao que Piaget
ratifica com a pergunta: "[…] se para aprender a aprender já não é necessário saber
aprender?" (PIAGET, 1959-1974, p. 27).
3.4 A ORGANIZAÇÃO DOS DADOS
Tal como previsto no projeto, os dados coletados neste trabalho são
utilizados para produzir um estudo de caso explanatório de caráter qualitativo. A
131
especificidade deste caso é a construção da autonomia do aluno vista na
perspectiva docente.
O estudo de caso é um rico instrumento de trabalho e recurso metodológico
a ser utilizado quando adequadamente construído e conduzido, no dizer de Robert
Yin (2001). O mesmo autor destaca que o estudo de caso é adequado para a
análise de fatos, acontecimentos ou recortes conceituais contemporâneos, acrescido
de um estudo teórico que o signifique, ampliando, assim, a clássica idéia do estudo
de caso destinado ao estudo de uma história de vida em sua verticalidade.
[…] os estudos de caso […] são generalizáveis a proposições teóricas, e
não a populações ou universos. Nesse sentido, o estudo de caso, como o
experimento, não representa uma 'amostragem', e o objetivo do pesquisador
é expandir e generalizar teorias (generalização analítica) e não enumerar
freqüências (generalização estatística). (Yin, 2001, p.29).
Um argumento apresentado pelo autor em defesa do estudo de caso é o fato
de esse recurso metodológico poder ser utilizado de forma a dinamizar a descrição
dos dados quando são colocados em relação com outras informações e outras áreas
do conhecimento, em oposição ao tradicional acúmulo de documentos de um caso
estudado exaustivamente a partir de uma única abordagem.
A área de conhecimento chamada para fazer um paralelo a este estudo de
caso é a da história da educação, aproximação pretendida na intenção de
contextualizar o surgimento do tema da autonomia no espaço escolar, colocando-a
num marco histórico que a temporalize e a dimensione.
Os estudos acadêmicos contemporâneos tendem à aproximação de
diferentes ciências ou áreas de conhecimentos. Jean Piaget, ainda no início do
século passado, empreendeu em seus estudos sobre a gênese do desenvolvimento
humano a marca do estudo interdisciplinar, o que caracterizou a sua carreira de
pesquisador.
A história da educação faz uma importante aparição neste trabalho. Para
que o tema da autonomia não fosse abordado pela exclusiva vertente dos estudos
psicológicos e uma escassa contribuição da filosofia, na medida em que a
moralidade humana é objeto de estudo desta última ciência, fiz uma busca na
história a partir das questões: qual a gênese da autonomia na escola, de onde surge
a intenção de alargar a formação do educando para o espaço das relações
132
interpessoais, da cooperação e da autonomia? Em que contexto e em que tempo
histórico?
A localização do fato pesquisado no movimento escolanovista ratifica a
necessidade de os professores manterem avivado o conhecimento do processo
histórico sobre os fatos da educação. Isso facilitaria a análise crítica do que nos é
apresentado como "novo", como sendo um estudo e empreendimento
"indispensável" à modernidade. É preciso que consideremos o processo histórico
para não ficarmos nos repetindo o tempo todo com uma "falsa novidade". Os temas
da autonomia, do desenvolvimento da cidadania e de projetos para a paz são
tributos de um movimento pós-Primeira e Segunda Guerras Mundiais de inclusão
desses temas no contexto escolar, o qual veio a ser denominado como Escola Nova.
Estamos cercados, atualmente, como escolas, por projetos que visam ao
desenvolvimento do pensar filosófico e crítico dos alunos, como de outros que
empreendem ações na educação para a paz. São objetivos nobres, desde que não
sejam trabalhados seguindo a formalidade de conteúdos estáticos previstos numa
grade curricular e com períodos e momentos específicos de trabalho junto aos
alunos. Tal situação foi antevista como ressalvada por Jean Piaget em
pronunciamentos de 1930, quando escreveu o artigo "Os Procedimentos da
Educação Moral" (In Parat-Dayan,1998). Um ensino verbalista sobre a paz ou sobre
o pensar filosófico colocaria a perder a mobilidade transdisciplinar que os temas
transversais possibilitam no currículo escolar.
Tendo sido retomado os aspectos metodológicos desta dissertação,
apresento agora os dois estudos de caso, que constituem a essência e a
particularidade deste trabalho.
4 OS ESTUDOS DE CASO
Este capítulo integra os ricos dados trazidos pela empiria e buscados na
teoria. São duas escolas da cidade de Porto Alegre, uma constituindo o estudo de
caso da Escola A e outra da Escola B. Os estudos de caso trazem quadros onde
foram ordenadas as falas dos entrevistados e/ou observações registradas pela
pesquisadora por unidades de conteúdos que as envolviam; essas falas e
observações foram minimamente alteradas, somente o suficiente para a transcrição
de uma linguagem falada para um texto escrito, para manter a máxima autenticidade
e contexto em que aconteceram.
4.1 ESCOLA A
O caso da Escola A é agora apresentado e discutido, levando em
consideração a Figura 3.3.1 (capítulo da Metodologia). Os dados colhidos junto ao
Projeto Político-Pedagógico da escola (PPP) e as entrevistas dos professores em
atividade e dos aposentados são apresentados em quadros, identificados na sua
temática básica pelos seus títulos.
Começo pelo Projeto Político-Pedagógico da escola, discutido somente nos
tópicos que dizem respeito ao tema deste trabalho, nas referências que faz quanto
ao desenvolvimento de autonomia dos alunos e a valores próximos, que dizem
respeito à formação do aluno em seu aspecto sócio-moral.
O Projeto Político-Pedagógico da Escola A foi organizado de modo a
apresentar doze títulos principais.
Quadro 4.1.1: Títulos do PPP da Escola A
1- Dados de Identificação
2- Apresentação
3- Histórico
4- Diagnóstico
5- Concepção de Conhecimento
134
6- Concepção de Educação
7- Concepção de Escola
8- Concepção de Homem
9- Concepção de Currículo
10- Finalidades e Objetivos da Escola
11- Princípios Norteadores da Escola
12- Proposta Pedagógica: Fundamentação Teórica, Ensino Fundamental, Ensino
Médio, Curso Normal, Estágio Profissional, Avaliação
O PPP é um documento de referência para toda a ação pedagógica
desenvolvida numa escola, devendo, por isso, ser de conhecimento e uso de todos
seus professores. O PPP da Escola A, depois de sua "Apresentação" e "Histórico",
faz o "Diagnóstico" da situação econômica e cultural da atualidade, apontando em
que contexto a escola se insere e que tipo de formação escolar vai privilegiar
perante o diagnóstico realizado. É do título 5, que trata sobre a "Concepção do
Conhecimento", que retiro a seguinte passagem para posterior comentário no que se
refere à possibilidade de construção da autonomia do aluno.
Quadro 4.1.2: Concepção do conhecimento da Escola A
[…] conhecer é elaborar uma representação do conteúdo – objeto de
aprendizagem, utilizando os conhecimentos prévios nesta elaboração. Este conteúdo
precisa ser "desconstruído" e "reconstruído" pelo aluno para que se torne significativo. Este
é um processo cognitivo e social, ao mesmo tempo, no qual o sujeito também se modifica
para poder aprender.
[…] viver em um ambiente democrático é condição necessária ao desenvolvimento
de um cidadão autônomo, construtor e atuante no desenvolvimento de sua cidadania. A
relação dialógica, ou seja, a educação problematizadora, conforme Paulo Freire, é uma
educação na qual a relação educador-educando desaparece e é substituída por uma
relação entre iguais que visam, a partir do seu cotidiano, construir uma visão crítica do
mundo. A dimensão política da educação se dá na relação dialógica, perspectiva que busca
o rompimento das relações de poder que caracterizam a relação professor-aluno.
50
A Escola A refere ter o conhecimento como um objeto a ser apropriado pelo
aluno de forma crítica e participativa, numa relação com o professor que não é
50
Uma discussão considerando os pressupostos teóricos do PPP das duas escolas em suas
coerências e contradições poderia ser oportuna, uma vez que esse documento deveria orientar a
ação pedagógica do professor na escola. Este trabalho, no entanto, ateve-se à presença do conceito
de autonomia neste documento que rege as práticas escolares.
135
autoritária ou heterônoma. O referencial é freiriano, autor que, como visto na
primeira parte do trabalho, tem raízes na Escola Nova. A "relação dialógica" é
própria para o desenvolvimento moral, considerando a fundamentação piagetiana,
pois supõe a "conversação" entre sujeitos mediada pela tematização dos conteúdos
da realidade, onde o respeito mútuo se faz presente, numa relação cooperativa e
que intenciona a formação de uma consciência crítica. A relação, quando
estabelecida pelo diálogo, que faz respeitar a autonomia dos sujeitos, a diversidade
de escolhas, posições e condições, com a livre participação de todos, ratifica a
perspectiva autônoma do sujeito e potencializa a relação cooperativa com outros
sujeitos da relação, especialmente na relação pedagógica, com cada qual
assumindo e sendo respeitado em seu papel de aluno e professor, ao mesmo tempo
em que há frestas para a troca e atualização das posições assumidas inicialmente.
A própria intenção de "desconstrução e reconstrução" do conhecimento
exigem espaços democráticos, não aqueles em que o professor dita o conhecimento
para ser copiado pelos alunos. A reconstrução é a própria autoria na construção do
conhecimento, feita pelo aluno e pelo professor, pelo processo criativo da
elaboração de novas sínteses, resultantes de repetidas tomadas de consciência.
O tópico que trata do "Conhecimento" tem continuidade no título seguinte,
sobre a "Concepção de Educação". A Escola A mantém o referencial de Paulo
Freire e o cita mais de uma vez, insistindo na relação dialógica, problematizadora e
construtiva das ações escolares na formação cidadã do aluno.
Quadro 4.1.3: Concepção de educação da Escola A
[…] prática da liberdade, a humanização e a construção da cidadania.
[ao professor cabe o papel de ser o] mediador, propor atividades que despertem o
interesse e a curiosidade do aluno, pois este impulsiona o sujeito a conhecer.
[a escola, como instituição pública, coloca-se no dever de aprimorar a] cultura
popular produzida e que circula entre professores, funcionários, alunos e familiares.
[…] o ato de educar precisa ser um ato pedagógico, político, social, ecológico e
ético; tomado desde a escolha de conteúdo até o método a ser utilizado, supondo uma
determinada forma de relacionamento com as pessoas envolvidas. Busca-se não só o
desenvolvimento cognitivo, mas também a convivência solidária.
136
Está presente neste título a mesma preocupação dos documentos oficiais,
de tomar o conteúdo escolar como um recurso para a formação da cidadania e o
desenvolvimento do senso crítico no aluno, aqui ditos a partir da pedagogia de Paulo
Freire.
O professor parece estar no centro do processo de ensino, na medida em
que tem a função essencial de "mediar" e "despertar" no aluno a curiosidade, o
"impulsionar" a aprender. No entanto, é o aluno que deveria ser o foco no processo
de ensino, sendo o protagonista da sua aprendizagem, esta como um resultado de
um investimento pessoal, com a participação de um bom professor, que o desafie a
pensar e a elaborar conceitualmente os conteúdos escolares.
Quanto à escolha pela valorização da cultura escolar, essa se encontra no
lugar de um conteúdo a ser apreendido pelo aluno, para o aprimoramento das ações
solidárias e cooperativas nesse ambiente e posterior utilização em contextos
diferentes do escolar. O texto do documento quer utilizar o ambiente escolar em seu
todo, com a apropriação de diferentes culturas - a escolar, a familiar e a comunitária.
Os documentos ministeriais que conduzem a ação escolar também dizem de a
escola estar aberta à vida na comunidade, pela participação em acontecimentos
relevantes e fazendo-se presente em eventos culturais, pela ação e participação
cidadã de todos. Pode-se pontuar esse contexto de abertura da escola para a
comunidade como sendo também uma intenção da Escola Nova, especialmente em
decorrência dos períodos pós-guerras mundiais.
A Escola A frisa os compromissos com a democracia, a cidadania e o
exercício de uma ação participativa no fazer didático, da ação escolar dos alunos.
O título seguinte do PPP refere-se à "Concepção de Homem", entendido
como um sujeito sócio-histórico a ser respeitado em seus diferentes estágios de
desenvolvimento. Mais uma vez é ratificada a posição da escola de formar homens
críticos e criativos, que tenham desenvolvido o senso de respeito por si mesmos e
por outros indivíduos com quem convive, que sejam capazes de tomar decisões
embasadas na ciência e nos valores humanistas como membros de uma sociedade
nem sempre justa e democrática. O PPP aqui expressa a atividade de grupo como
preferencial para o exercício da liberdade, a ser vivificada no espaço coletivo, de
137
uma liberdade que é limitada por outras liberdades. A atividade em grupo é um
recurso metodológico essencialmente escolanovista, utilizado, na época, já com o
fim de aprimorar as relações de cooperação entre indivíduos no desenvolvimento
sócio-moral e cognitivo. Não encontrei no PPP da Escola A referências ao
escolanovismo nem ao nome de Jean Piaget, apesar de muitos posicionamentos
assumidos serem pertinentes ao estudo realizado por esse autor e movimento.
O item dez diz das "Finalidades e Objetivos da Escola", trazendo os
objetivos gerais da escola com relação à formação de alunos e à forma como quer
priorizar os conteúdos e procedimentos escolares dentro da ação pedagógica
pretendida. Dentre outros objetivos seleciono os do quadro abaixo:
Quadro 4.1.4: Finalidades e objetivos da Escola A
[1º] Compreender o conhecimento como universal e direito de todos, construído
coletivamente como processo de desenvolvimento, apreensão e transformação da
realidade.
[2º] Conceber a escola como espaço de socialização e construção coletiva do
conhecimento e como espaço coletivo de construção de direitos e deveres (ética, valor,
cidadania, responsabilidade), de exercício de democracia participativa, diálogo, justiça e
igualdade.
[3º] Criar fórum e espaços de discussão e estudos sobre as práticas pedagógicas,
para potencializar o nosso trabalho na escola.
[4º] Compreender a educação como um processo permanente de formação de
sujeitos autônomos, com posição crítica frente às desigualdades e injustiças sociais.
O primeiro dos quatro objetivos acima citados diz de a aprendizagem e a
escolarização serem um direito de todos, fato muito recente na história da
humanidade. A escolarização para todos é uma reivindicação da Revolução
Francesa e, mais recente ainda, é a intenção de uma educação de qualidade, pela
qual todos possam, efetivamente, aprender na escola e fazer dos conhecimentos e
aprendizagens nesse espaço social construído um instrumento democrático, de igual
direito a todos os cidadãos. A transformação da realidade, pretendida no primeiro
objetivo, só se confirma pela efetiva aprendizagem escolar, no entanto são comuns
as circunstâncias de falsas situações de ensino e de aprendizagem no interior da
escola, as que avultam negativamente o merecido reconhecimento do trabalho
138
docente. São múltiplos os fatores que contribuem com o desprestígio do trabalho
escolar, no entanto, apesar de sua importância, não serão tomados para análise por
fugirem ao foco deste trabalho.
O segundo objetivo diz da construção solidária do conhecimento, feito pelas
relações sociais e com vistas à cidadania. Tal objetivo responsabiliza a todos que
trabalham na escola, sugerindo uma ação docente que vá além de ministrar aulas,
aquelas que têm a simples intenção de transmitir conhecimentos, no sentido stricto
do que seja aprender - mencionado por Jean Piaget (1959-1974) - de informar o
aluno sobre conceitos, fórmulas e fatos. Está dito que a escola é um espaço para a
construção de relações embasadas em valores sem chamar à responsabilidade dum
componente curricular específico, a exemplo da filosofia, da educação para o
pensar, introduzido no currículo de muitas escolas, supondo-se, portanto, ser de
todos os docentes esse compromisso de formação humana da educação, tal como
propunha Jean Piaget quando das suas manifestações Sobre a Pedagogia (In Parra-
Dayan e Tryphon, 1998).
Esse segundo objetivo parece retomar os estudos e a experiência propostos
pelo escolanovista americano Jonh Dewey, que enfatizou as vivências democráticas
no interior da escola
51
, sem que esse autor seja citado no PPP da Escola A.
O terceiro objetivo escolhido diz da criação de espaços específicos para a
formação pedagógica dentro da escola, entendida como o aprimoramento
profissional do professor em grupos de estudos. Penso ser esse um espaço
privilegiado e importante para a manutenção e o aprimoramento constante dos
professores, em formação continuada e em serviço, além da própria consolidação do
projeto pedagógico da escola enquanto proposta coletiva. São os professores
críticos que interagem de forma indagativa com os alunos e colegas professores.
São os professores estudiosos, que refletem sobre sua prática, que se
comprometem com a realidade científico-social e que problematizam as suas aulas,
sendo ainda os mesmos que abrem espaços para a participação argumentativa dos
alunos. Os estudos previstos nos objetivos desta escola poderiam favorecer o
51
Jonh Dewey é um autor não citado nas referências utilizadas para a construção do PPP da Escola
A, no entanto é referido por uma das professoras aposentadas em entrevista, que disse ter em sua
prática escolar a influência direta de Jonh Dewey, do ensino pela ação democrática no interior da aula
e escola, fato que não foi desconhecido do projeto pedagógico da época.
139
processual aprimoramento profissional, pelo confronto com outros pontos de vista de
um grupo que interage e potencializa as autonomias cognitivas e morais desses
mesmos, e com o conseqüente e equivalente desenvolvimento sócio-moral dos
alunos.
O quarto objetivo escolar é o que aponta para o ponto central deste trabalho,
a construção da autonomia no aluno, portanto, presente no PPP da Escola A como
objetivo a ser concretizado em ações pedagógi
140
também encontrar referência ao “aprender a aprender”, especialmente na interação
sujeito-objeto, que dá a conhecer, como resultado do processo, o próprio
conhecimento dum sujeito psicológico em sua historicidade. A ação implícita no
aprender a aprender, e também a implicação mútua do sujeito com o objeto são
movidas pelas invariantes funcionais da assimilação e acomodação.
Em outra passagem do mesmo subtítulo encontramos que a formação do
aluno deve incentivar a construção autônoma e original do aluno, para que ele possa
participar ativa e criticamente na sociedade onde vive. Para tanto, é necessário que
a escola tenha olhos para tal desenvolvimento de autonomia e cidadania do aluno,
com ações específicas e visíveis aos alunos. Essa ação específica e visível tem
suas raízes no próprio estudo do professor sobre o tema da autonomia, sobre o
contexto de colaboração espontânea entre os alunos e grupo de docentes, da sua
existência e incentivo como de sua ausência e análise das circunstâncias.
Essa passagem do PPP da Escola A faz lembrar uma idéia anunciada por
Jean Piaget em 1930, no artigo "Sobre os Procedimentos da Educação Moral",
quando diz: "[…] um ensinamento oral deve vir depois e não antes da experiência
vivida” (PIAGET, In Parrat-Dayan e Tryphon, p.39), além de, no mesmo texto,
mencionar que a existência de sujeitos ativos e autônomos faz-se pelo exercício
cotidiano da reflexão, da tomada de consciência sobre os acontecimentos e
implicações dos atos praticados no coletivo, muito mais do que pelas verbalizações
e belas lições relatadas e sem correspondência com a vida imediata dos alunos.
Jonh Dewey também é enfático quando faz no espaço escolar uma prática
democrática, acreditando ser esse o caminho para a formação de cidadania
pretendida pela formação escolar.
O segundo subtítulo refere-se ao ensino fundamental. Repetidamente, o
texto do PPP da Escola A diz do desenvolvimento das potencialidades do aluno para
o exercício da cidadania, da consciência crítica, do espírito de grupo e da liberdade,
agora com a introdução do elemento professor, que tem a função de ser um
mediador, um agente integrador da construção do conhecimento pelo aluno. A
teoria diz que o professor não deve se colocar em posição de autoridade
inquestionável frente ao aluno adolescente; é mais produtivo que se coloque num
patamar onde as trocas sejam recíprocas e facilitem ao aluno tomar consciência
sobre as relações democráticas que se estabelecem no grupo de trabalho, em aula,
141
com todas as implicações que a democracia demanda, de respeito à liberdade
alheia, ao posicionamento diverso ao seu e de direito ao direito a ser partilhado.
Por fim, é esperado pela escola que, ao concluir o ensino fundamental, o
aluno seja capaz de: interagir com colegas, professores e pares de forma
cooperativa, compartilhando possibilidades e respeitando os limites de todos;
formular opiniões sobre diferentes projetos e conflitos do meio social em que vive;
desenvolver a capacidade de aprender a aprender, entre outras intenções mais
voltadas para o domínio de conteúdos.
Portanto, a Escola A está alicerçada sobre um texto que enfatiza a
democracia, que garante espaço para os professores e alunos se reunirem,
manifestarem-se, serem críticos, autônomos e livres diante da necessidade de
construir uma sociedade sempre mais justa.
A autonomia insere-se no PPP da Escola A como um objetivo almejado junto
aos valores morais, à justiça, à solidariedade, à cooperação e à responsabilidade
dos alunos em formação. A autonomia tantas vezes referida no documento da
Escola A não é distinguida em sua dimensão moral ou cognitiva, ou sobre qual autor
fundamenta seu conceito, mas o texto não deixa dúvidas quanto a sua importância
no desenvolvimento do aluno cidadão autônomo, o que me possibilita inferir sobre
um desenvolvimento que é simultaneamente moral e cognitivo, tal como o referencial
piagetiano.
Dessa forma, foi localizada a autonomia do aluno com mais ênfase do que a
do professor no PPP da Escola A. A autonomia do professor é brevemente
lembrada quando o plano menciona os momentos de formação do docente dentro
do espaço escolar, de formação continuada, prevista como um objetivo da escola.
As entrevistas com os professores passam agora a integrar o estudo de
caso da Escola A, mantendo o foco na autonomia do aluno, na relação que o
professor estabelece desse tema com o PPP da escola e como organiza sua aula
para tal desenvolvimento. Sem esquecer que a autonomia do professor também é
relevante para a existência duma simultânea autonomia do aluno.
142
A primeira entrevista a ser apresentada, em seus recortes pertinentes ao
tema de estudo, é do orientador educacional, por apresentar um panorama geral da
escola em suas dificuldades, possibilidades e transformações que vem sofrendo no
decorrer do tempo.
Quadro 4.1.6: Entrevista com o orientador educacional da Escola A
Antes existia um projeto pedagógico na escola, aliás, ainda existe, mas era
respeitado, construído por todos, era divulgado e as pessoas participavam e discutiam o seu
conteúdo. Tinha as equipes de disciplina, a de matemática, de língua portuguesa,
didática… hoje não existe mais. Elas pensavam em conjunto a área de estudo e estavam
sempre se atualizando. O professor ficava em atividade de estudo, ia para a sala,
trabalhava com os alunos, voltava para partilhar e aprimorar o acontecido.
Eu acho muito isolada a ação dos professores de uma série, não tem uma reunião
ou espaço para que as coisas sejam discutidas, essa é a dificuldade. Até com relação à
avaliação, que é o tema atual das reuniões, cada um entende de um jeito e faz de um jeito
diferente. Falávamos hoje no nosso encontro interno do SOE, a escola atende muito alunos
e as ações estão isoladas, especialmente as do professor em sua sala de aula. São três mil
alunos e duas pessoas no pedagógico, por exemplo, sendo que uma delas recém está
chegando na escola, sem a formação específica de coordenador pedagógico. A escola
perdeu aquela articulação que tinha para trabalhar em conjunto, de ter um grupo que
pensava e levava situações já "alinhavadas" para o coletivo dos professores discutirem, o
que era essencial, o que ia fazer diferença na prática do professor com os alunos.
Quanto às reuniões na escola, são semanais, alternadas entre o pedagógico, o
administrativo, a orientação e o grêmio de professores. O SOE não fez nenhuma reunião
ainda neste ano, estamos pedindo horário. Não está sendo possível porque a avaliação
escolar está sendo discutida pelo pedagógico junto aos professores.
Acompanhamos as turmas através do trabalho dos conselheiros, que são
escolhidos pelos alunos. Ao final de cada trimestre, o conselheiro e os alunos realizam uma
reunião de avaliação da turma, levantam os aspectos positivos, negativos e as sugestões
que têm para os professores que se reunirão em conselho de avaliação do trimestre.
Nessas avaliações os alunos demonstram muita consciência, revelam na ficha o quanto se
ajudam mutuamente, da união do grupo na resolução de problemas, dizem dos colegas que
interferem na aula de determinado professor, etc. Quando o professor conselheiro observa
algo na turma, sempre nos procura, mesmo sendo um problema da coordenação
pedagógica, porque tudo acaba se resumindo em problemas de relação entre os
professores e os alunos. Os alunos se ajudam, sem a interferência da gente.
Os professores trazem os conflitos para nós, falam especialmente sobre a falta de
respeito dos alunos. Nós conversamos com os alunos e vemos com eles sobre o quanto
eles e a turma perdem com esse tipo de acontecimento. Fizemos uma reflexão, ou
acontece de a gente [orientador educacional] ir até a sala falar com os alunos e não notar
nenhuma falta de respeito, eles escutam, falam cada um de uma vez. Daí eu pergunto: "Por
que é tão diferente com o professor?" Ao que eles [alunos] respondem: "Contigo é diferente,
a maneira como você fala é diferente".
Ontem aconteceu de um professor mandar seis alunos de uma vez para o SOE.
Ela entrou na sala e viu um empurra-empurra, não quis saber o que era, tirou da sala. Eles
acabaram perdendo um período de aula porque estavam brincando, não estavam em
143
conflito. O professor está estressado, nem pensa em perguntar para os alunos o que está
acontecendo, manda logo para fora da sua aula.
Existe o Grêmio Estudantil, que é chamado de Conselho de Alunos. Eles têm uma
relativa autonomia para a realização de tarefas, precisam sempre o aval da direção quando
querem realizar algo.
A escola congrega todos os alunos através de uma gincana que o grêmio organiza.
As tarefas costumam ter relação com atividades internas da escola, tem tarefas do tipo doar
sangue, arrecadar alimentos e roupas para uma instituições. A vice-direção acompanha a
organização dos alunos. Essa tarefa tem se repetido anualmente pelo sucesso junto aos
alunos.
Neste ano teve uma atividade solidária muito interessante na escola. Os alunos
arrecadaram medicamentos e outras necessidades para um ex-aluno da escola que teve
uma doença que o limitou fisicamente. Quem desencadeou o trabalho foi uma ex-
professora da escola e que hoje trabalha na Justiça. Ela pediu a ajuda aos alunos da escola
e todos responderam. Cada turma viu o que poderia doar e se organizaram. Foram
colocadas mesas na entrada da escola e todo dia eram depositadas ali coisas trazidas pelos
alunos. Foi trabalhado com os alunos de que todos temos alguma coisa para dar.
A escola está muito deteriorada também em sua estrutura física. Os alunos
pequenos estão acomodados precariamente em função de uma obra na escola que já é
eterna. O telhado tem problemas, molha a biblioteca, estraga o patrimônio, e sempre há
mais coisas para arrumar.
Foi realizado um mutirão de limpeza na escola, Dia da Solidariedade, que envolveu
alunos, professores e pais. A escola está com muita dificuldade com relação aos
funcionários, são pessoas de idade, com vários problemas de saúde. Cada professor
conselheiro requisitou a sua turma para limpar a sala de aula que diariamente utilizam,
listaram o que poderia ser feito e quais materiais cada um traria. Esta atividade aconteceu
pela primeira vez na escola e teve um resultado muito positivo. Tem muita sala suja, parede
pichada, classes riscadas. Foi um sucesso, os alunos se envolveram bastante.
A avaliação que hoje faço da escola é de termos muito professor despreparado
trabalhando aqui. Muito professor com contrato emergencial, alguns que já haviam parado
de trabalhar e agora voltam e não têm a mínima noção do que vão encontrar no interior da
escola. Tivemos, recentemente, um de Artes Domésticas que queria trabalhar no
magistério, mas não tinha formação para isso e acabou no ensino fundamental, e o que ele
fez foi uma grande bagunça. Daí a gente trabalha um ano todo com o professor enquanto
vai argumentando pelo afastamento dele, demora, e é difícil trabalhar estes assuntos com o
professor. Quando está um pouco melhor, ele sai, restam as dificuldades que surgem com
as turmas onde ele trabalhava. Teve um outro, muito inexperiente, que tentava sua
aproximação com os alunos se fazendo tão adolescente quanto eles. Outro dia esse
professor estava contando sua triste vida aos alunos, soubemos porque veio aqui uma aluna
com pena do professor, que chorava na frente dos alunos. Quer dizer, é um professor que
não faz a sua parte, e é claro que muitos alunos acabam se valendo desta "ausência de
professor" em aula e a preenchem com a indisciplina, falta de respeito, etc. A formação dos
professores está cada vez mais precária. Vimos isso aqui dentro da escola, na hora do
trabalho com o aluno.
O aluno de nossa escola sempre foi tido como crítico, e continua sendo, com
posicionamento muito claro sobre tudo o que acontece a sua volta para atuar com
autonomia e responsabilidade na sociedade.
144
Esse é um relato marcado por dificuldades, por escassas reuniões de
estudo, pelas limitações de certos professores e certa precariedade das condições
físicas da escola. É um contexto complexo, onde dificuldades de toda ordem estão
representadas, no entanto como idéia principal aparece a carência na formação do
professor. Mesmo que se reconheça a necessidade da melhor formação docente
pelas agências formadoras, tem-se de observar que o relato também evidencia a
falta de uma unidade cooperativa entre os professores, de responsabilidade para
com a escola, de propor e consolidar os vínculos de trabalho entre os docentes. O
relato diz de cada um tendo uma ação pedagógica diferente, guiando-se por
parâmetros individuais, e as ações desconexas nem sempre propiciam unidade ao
trabalho, muito menos espaço para a construção e vivência de uma autonomia, seja
dos docentes, seja dos alunos. Autonomia é aqui entendida como a superação da
individuação, que conduz à cooperação no trabalho e na relação.
A primeira observação importante é sobre o distanciamento que têm os
professores, ou escola, do seu próprio PPP, que é apenas lembrado, não é
convocado nem mencionado como elemento fundante das ações escolares. Num
tempo passado parece ter sido mais bem trabalhado, com a participação e
discussão dos professores, que se reuniam com mais freqüência para o estudo.
Outro problema da escola também te
145
utilizam, contrariando o comportamento desejável de uma co-responsabilidade com
o patrimônio da escola, que é utilizado por muitos alunos, aspecto que é pertinente à
formação cidadã preconizada pelo PPP da escola.
A atividade realizada de mutirão de limpeza e a campanha liderada por uma
ex-professora tiveram resultados positivos e bem revelam a possibilidade de
construção de atitudes cooperativas entre os alunos e professores. Outras
atividades são mencionadas, de ação solidária, mas até que ponto elas
comprometem o aluno com uma postura autônoma de colaboração espontânea, ou
ratificam a idéia de doações materiais, que cumprem a função de uma falsa e
distante prestação de serviço aos semelhantes, do que sobra a mim para ser dado
para um outro que sofre de faltas. Percebo que são momentos esporádicos de
chamamentos a uma urgência, não uma continuidade na ação cooperativa,
constantemente articulada entre o fazer dentro da sala de aula e ações gerais
envolvendo o coletivo escolar – que mobilizam o aluno para uma postura
cooperativa em seu conceito mais amplo e permanente. A evidência dessa oposição
entre uma solidariedade a terceiros e a falta de uma atitude cooperativa como
comportamento de vida é a depredação do patrimônio da escola e as constantes
situações de conflito entre alunos, alunos e professores, além da indiferença para
com o servidor dos serviços gerais da escola. São muitas as classes danificadas,
paredes e portas riscadas e quebradas, estas últimas, que se quer se fecham, ou os
quadros que ornamentam as paredes dos corredores todos riscados ou rasgados,
tanto pela ação do tempo, como falta de manutenção, por riscos de canetas.
O acompanhamento aos alunos se faz de forma indireta, pela queixa do
professor ou ficha de avaliação feita pelos próprios alunos junto ao seu conselheiro.
Nessa ficha consta o relato escrito da autonomia dos alunos, referindo-se à ajuda
mútua prestada entre eles. Será essa a melhor forma de acompanhar o
desenvolvimento da autonomia nos alunos? A autonomia aqui é vista como um
desenvolvimento que acontece independentemente de ação do professor ou da
escola, é alijada de uma atitude e trabalho cooperativo entre professor e setores da
escola. É dito que observam a autonomia dos alunos pelo parecer escrito que eles
fazem, e essa parece surgir do próprio desenvolvimento: “natural – espontâneo” do
aluno. Como, então, se trabalham a cidadania, a autonomia, a cooperação e a
146
solidariedade na escola? Todos esses conceitos estão presentes no PPP da escola
como objetivos de trabalho.
Os alunos têm suas ações acompanhadas pelos professores no grêmio
estudantil. Parece que os alunos necessitam ser "cuidados e vigiados"
constantemente, o que reforça a situação heterônoma, que se perpetua na escola e
na relação professor-aluno, limitando o espaço para o exercício da autonomia e
cooperação espontânea entre os alunos, especialmente nessa organização, que é
essencialmente discente. A situação deixa transparecer a concepção de um aluno
sempre irresponsável, que precisa de aval de um adulto. Que espaços os alunos
têm dentro da escola para a manifestação autônoma? Será que só lhes restam as
ações ditas indisciplinadas? E as de confronto?
A Escola A tem alunos críticos, diz o orientador educacional. Acredito que,
pela desarticulação e dificuldades internas da escola, e, especialmente, pela falta de
reuniões de estudo e planejamento dos professores, é provável que a autonomia
dos alunos seja resultante das inúmeras brechas que eles acabam tendo para agir
com independência no interior da escola, diferentemente de uma autonomia moral
que supõe cooperação, responsabilidade e uma liberdade comedida e com a efetiva
participação de adultos-professores autônomos numa ação conjunta. Se essa fosse
a conduta predominante dos alunos, talvez a escola não estivesse tão depredada
fisicamente e os professores não estivessem tão estressados e queixosos dos
alunos, pois a aula se comporia de um coletivo organizado.
Convém que se apresentem e não fiquem desapercebidas as possibilidades
na construção da autonomia que as ações da Escola A deixam transparecer. Aliás,
os mesmos exemplos citados como restritivos à construção da autonomia dos
alunos trazem um germe de possibilidades. A ação solidária de arrecadar
medicamentos para o ex-aluno, a participação efetiva na limpeza do ambiente
escolar, a existência do grêmio estudantil e seu empenho na realização da gincana
anual – de adesão espontânea dos alunos das séries finais do Ensino Fundamental
– são exemplos que trazem uma dupla face: de uma possibilidade de ação
cooperativa entre os alunos, e, também, de descontinuidade do trabalho docente.
Também a ausência de reuniões para discutir o cotidiano da escola e a possibilidade
de ações conjuntas são contrapostas à existência de uma discussão sobre o
processo de avaliação dos alunos na escola, que toma o espaço de outras temáticas
147
de reuniões. No entanto, é também uma oportunidade de agregação dos
professores em torno de um assunto pedagógico, lamentando-se a escassez desses
encontros, como dito pelos próprios professores em suas entrevistas. O trabalho
dos professores conselheiros junto aos alunos, em reuniões que antecedem o
conselho de classe, parece ser um procedimento adequadamente constituído e
estabelecido, no entanto talvez pouco explorado em toda sua potencialidade como
momento de reflexão e construção coletiva, tal como os procedimentos de uma
assembléia de aula. Esse mesmo documento, resultante da reunião de avaliação da
turma revela, para o orientador educacional ações solidárias entre os alunos, feitas
de forma espontânea, sustentadas pelo coleguismo, pela vontade de ajudar ao outro
e de fortalecer as relações do grupo, o que valida o instrumento e a ação
empreendida. O próprio PPP da escola abre possibilidades para a construção da
autonomia dos alunos e professores. Pena que não seja lembrado pelos docentes
como uma fonte de informações, ou como o documento que direciona as ações
escolares numa unidade de ações e procedimentos que efetivamente garantam uma
identidade ao estabelecimento de ensino e uma referência estável para o aluno em
formação.
Vejamos, agora, fragmentos das entrevistas realizadas com os professores
em atividade na Escola A, reunidos e apresentados em quadros em função de
diferentes assuntos que surgiram nas entrevistas. Cada quadro traz uma totalidade
temática, referente ao pensamento de um grupo de professores que diz sobre uma
fração do agir pedagógico na Escola A, não sobre a participação individual de cada
professor. A distinção da fala dos diferentes professores se fará por uma indicação
numérica para a preservação das identidades.
No próximo quadro há referências sobre como um grupo de professores da
oitava série pensa contribuir para a formação dos alunos, como organiza uma boa
aula e o que leva em consideração quando planeja a sua ação pedagógica junto aos
alunos.
148
Quadro 4.1.7: A Organização de uma boa aula
Professor 1: Consegue-se fazer um bom trabalho quando se aproxima a realidade
do aluno com o conteúdo de aula. O conteúdo entra permeado, se dilui frente aos assuntos
com os quais trabalhamos. Eu procuro fazer essa aproximação através de fóruns, eu tenho
uma prática que os alunos já não sentam mais com freqüência um atrás dos outros. Na sala
a gente se vê, a sala é pública. Eu dou muita ênfase para isso. Eu tenho sentido ao longo
desta caminhada que os alunos começam a gostar da minha matéria.
Professor 1: Eu me preocupo muito com a formação do indivíduo, enquanto saber
pensar, saber criticar, saber opinar, saber diferenciar o que é importante e o que não é, o
que é certo e o que é errado. Desenvolvidas essas habilidades e competências, aí, sim,
estou ajudando na formação para a vida toda. E isso eu deixo bem claro para eles; que eu
preciso que falem, que se expressem.
Professor 2: A formação acadêmica está tecnicista e esqueceu o humano. Estou
tentando pôr a sementinha do ser ético. Aquilo que Morin e Arroyo falam: "educar é educar
para ser humano". O que eu vou deixar não é o definitivo, mas talvez a semente para que
mais tarde, lá na faculdade, seja de direito, medicina ou engenharia, ele se lembre que é um
ser humano com outros seres humanos, porque não existe isso hoje em dia.
Professor 3: Eu não gosto daquela idéia do meu tempo de ginásio, e que ainda
existe, que só o professor fazia, os alunos deviam ficar quietos. Eu gosto da idéia deles
estarem participando. Mesmo que eu dê um conteúdo novo, pergunto: "Como é que se faz?
Eu não sei nada". "Vamos, vamos tentar!", eu digo. Eu acho que é melhor do que dar tudo
pronto, tudo mastigado. A impressão que eu tenho é que ainda se trabalha muito com:
Pega o teu livro e vai para casa estudar, decora o que está ali e pronto! Eu prefiro dar aula
onde os alunos se mexem, andam e perguntam para mim e para os colegas.
Professor 3: O que eu acredito é que os alunos têm que construírem junto comigo,
chegarem ao "x" da questão. Eu coloco assim: todas as disciplinas são interessantes, elas
formam um conjunto, a educação física com a matemática, com a música. Digo para os
alunos que, no momento em que eles percebem que raciocinando fica mais fácil
compreender, que é tão mais fácil do que decorar, tudo fica resolvido. Eu acho tão bonito
quando eles me dizem: "Mas era isso!" Ou uma outra que disse: "Pô! Como eu fui burra,
como é fácil isso. Bem que tu disseste!" Mas eles têm que se darem conta e eu tenho que
tornar interessante o assunto. Se eu não cutucar, eles não vão se dar conta disso. Para
mim o aluno mais interessante na sala de aula é aquele em que eu vejo em sua cara que
não gosta da minha matéria. Aquele que já tira dez com todos os professores já tem essa
tendência de gostar feita, vai ser sempre um bom aluno, tanto faz ser um professor
tradicional ou não. Fazer o aluno gostar da matéria e compreender é o meu desafio.
Professor 4: Eu gosto que eles trabalhem em grupo porque fica mais fácil de eles
se ajudarem e trocarem idéias, um ajuda o outro. No individual eles ficam fechados neles
mesmos. Eles aprendem mais na troca, embora isso dificulte o trabalho da gente porque
eles conversam muito. Nesta troca de idéias outros assuntos surgem, que não são do
conteúdo, mas eu acho que faz parte, até porque eles fazem também o que é solicitado.
Os professores priorizam aulas participativas. A cooperação entre os alunos
que aprendem está na estratégia do fórum e do trabalho em grupo, do
questionamento quando o professor pergunta sobre como se faz determinado
procedimento. Um dos professores lembra que o procedimento de grupo é mais
149
trabalhoso, em razão do quanto os alunos conversam outros assuntos, ao passo que
outro declara gostar desse movimento dos alunos pela sala, que eles conversem e
troquem informações.
Na condição de uma pesquisadora que, no momento, tem o trabalho de
refletir sobre a prática, de buscar indícios que levem ao aprimoramento da ação
pedagógica, me vem a questão sobre o que os professores concebem sobre o
trabalho em grupo. Basta estar juntos para que seja um trabalho em grupo? É fato
que é necessário aprender a trabalhar em grupo, e os alunos necessitam de
informações e de acompanhamento para que a cooperação interna ao grupo seja
evidenciada; a distribuição de funções dentro de um grupo é um patamar ainda
rudimentar do trabalho em grupo. Exige persistência do coletivo docente, uma vez
que, nas primeiras experiências, o trabalho será tumultuado e, provavelmente, feito
com muito barulho; aprender a respeitar o outro grupo, não excedendo no tom de
voz, é considerar a liberdade alheia, num trabalho de mútuo respeito e
reciprocidade. Os relatos do último quadro fazem supor diferentes concepções do
trabalho de grupo, indo desde o planejamento de um fórum de debates até o
estarem livres para circular pela sala. No entanto, há de se observar que o fato dos
professores desarmarem a sala da organização espacial de colunas já é uma
possibilidade de uma nova concepção de aula, na qual o saber e o aprender
resultam do partilhar e do debate de idéias.
A criticidade do aluno é lembrada como intenção formativa do aluno, tal
como presente no PPP da escola. No entanto, o Professor 1 não menciona que
essa preocupação seja oriunda dos objetivos da escola, é resultante da sua
experiência pessoal no magistério; também é esse professor que refere a
transversalidade do conteúdo com a metodologia de trabalho eleita pelo professor.
O Professor 3 acrescenta a necessidade de compreensão do conteúdo, de tomada
de consciência sobre uma experiência pedagógica, para que a estrutura mental, de
construção de conhecimentos, seja o resultado da escolarização (mais forma do que
conteúdo). Isso tudo revela boas e elogiáveis oportunidades nas quais os alunos
estão inseridos, com a ressalva de que são opiniões pessoais, sem pertencerem ao
coletivo dos docentes que trabalham em direção aos mesmos objetivos com o grupo
de alunos, e de ratificação do PPP da escola.
150
Mesmo não sendo a intenção deste trabalho a análise sobre a epistemologia
do professor
53
, não passou despercebida a idéia de deixar marcas nos alunos que
aprendem, de plantar uma semente no aluno que o transforme no futuro, tal como
uma concepção ingênua e empirista da construção do conhecimento.
No quadro a seguir estão reunidas opiniões dos professores quanto aos
jovens, e, especialmente, quanto aos alunos da série em estudo.
Quadro 4.1.8: Parecer dos professores sobre os alunos
Professor 1: Ainda nesta faixa etária o aluno é muito preguiçoso, evita de pensar.
Professor 1: Os alunos costumam receber tudo pronto. Eles não têm "saco", não
têm paciência, pois simplesmente clicam o controle remoto da TV e tá, tá, tá; pegam o
computador e têm tudo ali pronto. A tecnologia e a ciência, desta maneira, atrapalham um
pouco o desenvolvimento da pessoa, que se torna passiva, um mero telespectador da vida.
Professor 1: O simples fato de estar em aula também não basta, porque eles
viajam, se desligam. É uma característica do adolescente viajar, se desligar por causa de
um probleminha com o namorado, ou em casa; logo, não aprendem.
Professor 2: Tem aluno que vem para a aula sem saber o horário! "Ah! Hoje tinha
isso, eu nem sabia…" e esquecem o material que a gente pede, o caderno, a caneta.
Professor 1: Essa turma não tem união, está sempre brigando, é uma turma muito
estressada.
Professor 2: Há amizade entre eles.
Professor 2: No início do ano eu enxergava a turma como composta de alunos
indiferentes. Eu tentava me comunicar com eles, não conseguia. Só agora, nos últimos
meses, é que senti uma melhor participação. Não sei, talvez tenha aprendido a falar a
"língua" deles, mas ainda há pequenos grupos que são indiferentes à aula. Talvez seja
natural, pelo que lembro do meu tempo de colégio.
Professor 3: É uma turma cooperativa e observadora. No final do ano tinha alunos
que saíam pelas classes ajudando os colegas.
53
Tema estudado pelo Prof. Dr. Fernando Becker durante a realização do curso de mestrado na
UFRGS. O autor explicita o contra-senso docente quando conceitua epistemologicamente o tema de
sua prática diária, o conhecimento, e o toma como objeto na sua ação didática. As visões empirista e
apriorista do conhecimento – que predominaram nas explicações docentes sobre o conhecimento –
denunciam a prática docente em ações que retardam, e até impedem, o processo de construção do
conhecimento pelo aluno.
151
Pelo que contém o quadro fica explícita tanto uma queixa em relação à
turma de alunos, de não terem compromisso com as atividades de estudo, quanto
um elogio na cooperação, de ajuda mútua.
Mesmo considerando algumas características referidas, que são próprias do
adolescente, os professores revelam um desânimo com esses alunos, "esquecendo-
se" de que o PPP da Escola A traça como um dos seus objetivos a formação de
alunos responsáveis, situação a ser aprendida na relação escolar.
A docência é quase sempre um trabalho transgeracional, onde uma geração
mais velha convive com uma geração mais nova, e os valores que cada grupo traz
são mesclados como se fosse uma única realidade, situação que propicia equívocos
e conflitos. O quadro acima dá conta dessas perspectivas diferentes, do que é
válido para os alunos, do que caracteriza o seu tempo, como a influência da
televisão, da informação fácil e em abundância, em contraponto a um aluno
idealização pelo professor, resultante de sua vivência como um aluno de um outro
tempo. A contraposição é dada pelo professor, que diz ser necessário falar na
"língua" deles; na verdade, dar margem para a compreensão dos valores morais que
brotam no grupo. Do professor, ou adulto da relação pedagógica, pode-se esperar o
questionamento, a contextualização das idéias que transitam no grupo, tendo em
conta a perspectiva da co-responsabilidade a ser construída na parceria e interação
entre sujeitos.
A possibilidade de cooperação é latente na turma, uma vez que há a
observação de um segundo professor, que diz ser a turma cooperativa, observadora
e solidária, com uns ajudando aos outros quando possível ou necessário. É preciso
que essa possibilidade de cooperação e autonomia seja vista pelo coletivo docente,
para que trabalhem mais na possibilidade criativa e cooperativa do grupo do que no
seu inverso, como o autor que menciona a necessidade de o trabalho docente
direcionar-se sobre as “ilhas de competência” do aluno (GOLDSTEIN, 1996).
Ainda com relação à organização de boas aulas, buscando fazer com que o
aluno aprenda na interação com os colegas, alguns professores organizam projetos
novos na escola, de salas-ambientes, tal como o preconizado pelo movimento da
152
Escola Nova, ao passo que outros justificam sua omissão com a ausência de
recursos.
Quadro 4.1.9: Recursos para aprendizagem dos alunos
Professor 2: O sonho seria colocar em prática o laboratório, uma sala ambiente de…
tem tido reuniões para isso. Nós vamos fazer uma grande sala, colocar mesas redondas
nela e ter disponíveis livros, mapas, vídeos, TV, onde o trabalho seja sempre em grupo.
Quem sabe a gente consegue colocar em prática no próximo ano. Eu me lembro que tinha
este tipo de sala ambiente na escola, no ensino médio, no ensino de línguas estrangeiras.
Professor 4: Eu preciso que a escola forneça algum material, porque senão vai ficar
só no quadro-negro, o giz e o livro. É no que eu tenho me atido até agora, o que tenho
utilizado. Eu acho que a escola deveria ter um material didático melhor, nós não temos.
Como falei, a escola tinha um laboratório que está agora desativado, parece que é no fundo
do corredor e alguns professores estão reativando. Devo te confessar que eu nem tive
tempo para ir até o laboratório, eles [outros professores] parece que já organizaram.
São posturas opostas que demonstram maior ou menor empenho dos
professores quanto à criação de condições para uma melhor aprendizagem dos
alunos. Pode-se esperar pelas condições ótimas ou planejar em pequenos grupos
de professores novas possibilidades para o ensino-aprendizagem. Não quero dizer
que o professor deva suprir e organizar as necessidades da escola de forma a
desresponsabilizar a mantenedora, pelo contrário, a cooperação de um grupo que
trabalha com objetivos comuns pode, inclusive, ser mais eficiente ao fazer
reivindicações aos órgãos competentes.
É preciso que também haja espaço no interior da escola para os professores
autônomos, para os que se reúnem, estudam e se propõem à execução de novos
projetos de trabalho junto aos alunos, tanto quanto ao uso da autonomia
administrativa da escola. Há um espaço a ser preenchido pelo professor e pelos
alunos, que fica entre a espera do ainda necessário recurso do "quadro-negro, do
giz e do livro" e de um outro idealizado com salas ideais para o trabalho que o
professor pode desenvolver com os alunos; o espaço intermediário e disponível é o
espaço já vivido pelos alunos e que está presente na sala de aula, constituído de
histórias de vida, de informações, no qual o aluno transita e que traz para a sala,
podendo o professor apropriar-se dele para compor uma aula junto aos alunos.
Caso o professor não considere o cotidiano dos alunos e das relações que por eles
transita mas, isso não quer dizer que não estejam presentes no interior da aula, sob
153
a forma de um conteúdo subliminar. Essa é uma situação desafiadora, mas ficar
esperando por um recurso específico ou uma solução externa também não é
suficiente, nem há tempo para tal.
Há um contexto implícito de insatisfação com relação ao trabalho realizado,
sendo essa carência de bons resultados atribuída à falta de materiais e ambientes
na escola, entre outras circunstâncias, como a própria falta de encontros
sistemáticos dos professores com o fim específico de congregar ações para um
trabalho coletivo junto aos alunos. O Professor 2, no quadro acima, relata a forma
informal pela qual planejam alterar a situação atual.
Esse contexto de necessidades mais materiais do que de atitudes de
envolvimento e cooperação recíproca - para que uma aula seja plena nos seus
objetivos de desenvolvimento do aluno e professor - revela uma ação docente, ou
discente, que trabalha mais por regulações sociais do que por cooperação, segundo
uma perspectiva piagetiana (1965-1973). As regulações em Piaget são feitas por
aproximações de ações que não se mesclam numa unidade intrínseca, nem atingem
um equilíbrio onde as trocas são recíprocas. As regulações fazem uma
sobreposição de partes, sem uma reversibilidade operatória que modifique os
sujeitos em sua estrutura subjetiva. Enquanto o professor espera por recursos da
escola para uma melhor aula, o aluno interage, faz trocas significativas com seus
colegas. É preciso transpor esse terreno das ações feitas como uma composição
aditiva de objetos de diferentes naturezas para que a aula seja participativa e
cooperativa, seja um rico espaço para o aprimoramento do conteúdo moral e de
autonomia dos alunos.
O PPP da Escola A estabelece, dentre os seus objetivos, formar alunos
autônomos, críticos, cooperativos e cidadãos. No entanto, o resultado é distinto do
pretendido e preocupa um dos professores, em virtude da ausência de valores
humanos nos alunos finalistas do ensino médio. Isso indica uma lacuna na
escolarização e a própria desarticulação do corpo docente quanto ao trabalho em
equipe, com vistas a atingir os objetivos acima citados, previstos como finalidades
educativas da escola.
154
Quadro 4.1.10: Resultados não previstos da escolarização
Professor 2: Especialmente nas salas do 3º ano, não sei se é um estresse pelo
vestibular ou da saída da escola, o que está acontecendo é que os alunos parecem ter uma
agressão com relação aos professores, como um ódio. Eles passam a vida toda numa
classe escolar; hoje em dia crianças de quatro anos já estão numa sala de aula. Será que
estamos ensinando para eles o ódio? Na oitava não tem ainda muito disso, mas chega no
terceiro são agressões verbais constantes, faltando muito pouco para se transformarem em
agressões físicas, não só do aluno para o professor, mas do professor também. Em vez de
ter prazer [com o aprender], a gente está criando ódio, um ódio tremendo na instituição
escolar. Nós estamos criando isto, é muito sério. A questão do respeito ao ser humano
chega a ponto de um aluno ou um grupo de alunos ser agressivo com o professor e esse
revidar. Onde fica a questão do humano? Do respeito? Da reciprocidade? Da cooperação?
Perguntei ao professor se essa reflexão que fizera, de avaliação do processo
educativo, é discutida com os colegas em algum grupo de docentes. A resposta foi
não, que é uma percepção particular e que o aflige com sinceridade. Como dito pelo
professor, é algo preocupante na medida em que contraria todos os princípios e
objetivos da escola, sendo, na atualidade, uma realidade escolar.
Na entrevista com o orientador escolar (Quadro 4.1.6) fica registrada a
reclamação dos docentes quanto à indisciplina dos alunos. A presença no espaço
escolar de situações que contrariam os objetivos da escola deveria ser transformada
em objeto de estudo do próprio grupo de professores, de escolha de ações coletivas
a serem eleitas na tentativa de reverter tal realidade. Só assim se constitui um grupo
que reflete sobre a sua prática escolar, que aproxima a prática da atitude reflexiva de
forma recorrente e insistente; da ação-reflexão apoiada em teorias de ensino e
desenvolvimento.
O estudo pedagógico a partir de um diagnóstico interno demanda a escolha
de uma teoria que sirva de referência teórica. O PPP da escola tem uma escolha
feita, da pedagogia crítica, como também, dentro da Epistemologia Genética, o
estudo da moral poderia auxiliar nessa compreensão do porquê de os alunos
chegarem a resultados tão diferentes do previsto por esse professor e dos objetivos
existentes nos documentos da escola. A possibilidade de superação desse
"problema" parece estar na perspectiva de o professor pertencer também a uma
grupo que aprende e discute o contexto de trabalho de forma crítica. Não é eficiente
a ação isolada dos professores, ainda mais quando se resume à ida do aluno faltoso
à vice-direção da escola (responsável pela disciplina na Escola A).
155
A escola do estudo de caso A sempre foi uma pioneira no estado. Leu Jean
Piaget quando poucos o conheciam, ainda nos originais em francês; foi uma das
primeiras escolas a trabalhar com a metodologia de projetos; tinha tempo destinado
ao estudo por áreas e no grande coletivo, para todos os professores; teve diretores e
professores que fizeram a vanguarda de ensino no estado, tanto que se tornaram
profissionais que lideraram e inovaram em altos cargos na Secretaria de Educação
do estado. Foi, portanto, uma escola-modelo, onde muitos queriam estar e estudar.
A existência de horários específicos para reuniões e debates é fundamental
tanto para os alunos como para os professores na construção da autonomia. O
próximo quadro reúne recortes das entrevistas docentes que revelam a carência
dessa atividade na Escola A.
Quadro 4.1.11: As reuniões e os grupos de estudos
Professor 1: Estou sempre fazendo cursos de atualização e é isso que me faz
crescer, me mantém vivo e querer aprender sempre mais.
Professor 3: As reuniões aqui são muito dispersas, às vezes ajudam. A gente lê,
mas eu acho que fica muita teoria, é o Piaget, é o fulano disse isso, mas na hora de colocar
na prática fica muito difícil.
Professor 4: Os grupos de estudos dependem de uma equipe diretiva, do
pedagógico e do SOE. Eu acho que, quanto mais organizados forem esses setores, mais
fácil para se fazer trocas. Nós fazíamos trocas de experiências em dois períodos semanais
que tínhamos para reunião geral e mais dois períodos semanais para a reunião de equipe,
onde as equipes se reuniam e trocavam experiências. Hoje há duas horas semanais, que
são divididas entre a direção, o SOE, a coordenação pedagógica e o grêmio da escola, cada
semana para uma reunião. Isso este ano. No ano passado nós ficávamos sem reunião ou
era uma vez por mês para você ver como é que está a estrutura do grupo. Eu tenho
colegas com os quais ainda não consegui sentar para nós vermos como é que poderíamos
trabalhar determinado assunto ou unidades, porque não temos tempo. A SE cada vez mais
aumenta a carga horária do professor e tira os períodos de reunião. Nós conhecíamos mais
os alunos. Perdeu-se uma riqueza da escolarização porque o professor foi perdendo
espaço. Os professores diminuem e as salas de aula aumentam em número de alunos, ou
então, são mais turmas que têm que ser acomodadas dentro de uma carga horária fixa, isso
reflete na qualidade de ensino.
Professor 2: Tem a questão do grupo docente, do grupo de professores também
estabelecer relações de ajuda mútua. Eu já trabalhei com o professor de português em
outros anos, neste ano não desenvolvemos nada juntos. Eu acho que tem que ter essa
ligação com certas disciplinas.
Professor 2: Por conta própria e em horário extra ao escolar nós fizemos dois
grupos de leitura no ano passado. Era para quem queria vir, aberto a todos os professores,
especialmente para os professores da oitava série. Um professor do noturno coordenava o
debate. Eu era do grupo e queria que o próximo tema fosse sobre avaliação, outros
156
professores queriam ler sobre teorias da educação. Só tinha dois professores que
trabalhavam com a oitava neste grupo de leitura. Aproveitávamos para falar sobre os
alunos, tentamos alguns projetos mais próximos.
Essas manifestações docentes revelam o quanto se perdeu da cultura de
estudo no interior da Escola A, dito pelos próprios professores e registrado na
história desta escola, de ser o lugar onde idéias inovadoras eram estudadas e
implementadas em seu interior, servindo de modelo a outros educandários.
Os professores dizem que fazem leituras em pequenos subgrupos por
iniciativa própria, em horários extras ao do trabalho de docência, e relatam que
recentemente voltaram a ter reuniões semanais, sendo que a reunião pedagógica,
de estudo ocorre uma vez a cada mês. Ainda assim, essas insuficientes reuniões
não levam a uma reflexão sobre a prática escolar, ou temas de interesse à formação
docente, além de não disponibilizarem tempo para o planejamento de ações
coletivas numa mesma turma de alunos. Ou, então, eles sentem a falta de
articulação entre os setores da escola, tanto quanto de tempo para se reunirem
mais.
O fato de o PPP da escola não ser citado até esse momento nas entrevistas
docentes talvez se justifique pela falta de oportunidade para uma reunião que tenha
em pauta a leitura desse importante documento escolar.
A formação continuada do professor tem sido apontada na literatura
pedagógica, quase que de forma unânime, como um forte componente para a
melhoria da qualidade de ensino e para a minimização das dificuldades enfrentadas
no interior da escola. É na convivência entre os membros de um grupo docente que
as relações se estabelecem, e dessa experiência é que podem surgir as relações de
reciprocidade, cooperação e autonomia, conceitos fundantes deste trabalho, como
também presentes nos documentos da escola como objetivo de suas ações.
António Nóvoa (2002) diz que só a formação contínua do professor, numa
perspectiva crítico-reflexiva feita no interior da escola, possibilita ao docente o
necessário pensamento autônomo, facilitado pelas dinâmicas de grupo junto aos
colegas professores e, em extensão, os alunos. Complementa dizendo que estar
em formação implica um investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os
157
percursos e os projetos escolares, com vista à construção de uma identidade
pessoal, que é também uma identidade profissional.
A autonomia, termo recorrente neste trabalho, traz a questão: o que existe
de comum no pensar desse grupo de docentes a respeito da autonomia dos alunos
da oitava série pesquisada? É o que mostram os recortes do próximo quadro.
Quadro 4.1.12: A concepção de autonomia dos professores
Professor 1: Autonomia é um pouco difícil de definir. É ser agente, ser agente da
sua vida.
Professor 3: Autonomia é construir alguma coisa. Eu acho que ser autônomo é
fazer, é eu mesmo descobrir.
Professor 4: Eu acho que a autonomia depende da personalidade de cada um.
Tem pessoas que não a desenvolvem nunca, têm 50 anos de idade e dependem dos outros.
A família tem influência na autonomia de uma pessoa. Eu acho que uma pessoa que tem
autonomia deve estar muito organizada, porque quem não tem organização está sempre
dependendo dos outros. Eu vejo isso em sala de aula: os alunos não se organizam e estão
sempre pedindo, sempre por fora. Os que são organizados têm a sua autonomia de
trabalho e mesmo para ajudar os outros.
Professor 4: Eu acho que depende muito da família. Embora o aluno fique um turno
inteiro na escola, o outro turno e a noite eles ficam em casa. Se os pais não orientam os
filhos, não educam para esta autonomia, e a escola não consegue fazer muita coisa.
Professor 3: Os alunos que são cooperativos não aprendem só na escola. Esse
jeito de ser deles vem da família, muito mais do que da escola.
Professor 3: Eu acho que a autonomia pode ser construída tanta na sala de aula
como fora da sala de aula. Ela não se constrói assim sozinha; é no grupo, na família, no
social, na escola que ela aparece.
Professor 2: Eu não vejo os alunos agirem com autonomia, os vejo com
individualismo. Eu entendo a autonomia como algo assim, digamos, em toda a sociedade
existem regras para que o coletivo se organize, não vivemos individualmente, vivemos com
outros. Então, a gente tem que perceber até que ponto o meu espaço individual não está
atingindo o espaço individual de um outro indivíduo. Ao compreender isso, eu começo a
agir no mundo também pensando no meu entorno. Essa forma de enxergar para mim é
autonomia. A base de tudo é o respeito à diferença do outro, ele não é igual a mim.
Existem discussões a respeito das diferenças, uma discussão cultural, dizendo que não há
cultura superior a uma outra.
Professor 2: A autonomia tem que ser construída. Parto do princípio do coletivo,
que o ser humano respeite o coletivo, ele não é sozinho. Aparece a aprendizagem, que
também não é feita sozinha, ela é coletiva é refletida. A minha autonomia não fica no
indivíduo, ela se volta para o coletivo.
Professor 4: Eu acho que seria um começo de autonomia o professor não ficar
cobrando, mas nisso tem aqueles que fazem e aqueles que nunca fazem porque não são
cobrados na tarefa. Eu acho que os alunos devem fazer a tarefa não porque o professor vai
olhar, e sim porque isso vai ajudá-los.
158
Professor 3: Autonomia do professor não é aquela coisa de eu ser todo poderoso
em aula, não, não é assim. A autonomia do professor eu vejo como ouvir, refletir sobre o
que estou fazendo em aula. Eu penso sempre sobre minha aula, se estava boa ou não. Eu
vejo aquele aluno dormindo, eu estou dentro da sala de aula e estou vendo e pensando: "O
que será que houve?", "É algo comigo ou na casa dele?" Na próxima aula eu vou cutucar
ele.
Não há como classificar as falas dos professores como conceitualmente
convergentes, corretas ou não. Quase todas têm um tanto do que se concebe como
autonomia. No entanto, a questão que permeia e inquieta a pesquisadora é sobre
qual autonomia estamos falando como educadores. A da independência do fazer
certamente é importante, porém é insuficiente diante da demanda da formação
humana proposta pela escola.
Aparece no conjunto de respostas sobre o que seja autonomia, na
perspectiva docente, a idéia de ser um conhecimento e comportamento a ser
"aprendido" pelo aluno, no entanto dependente de influências fortemente marcadas
pelo contexto familiar. A posição da Epistemologia Genética diz que a autonomia é
uma construção subjetiva, tem uma intensa participação do sujeito, é resultado das
relações sociais e do desenvolvimento cognitivo e acontece conjuntamente com o
desenvolvimento da razão.
O conjunto das respostas faz um apanhado sobre diferentes características
do que seja um sujeito autônomo. Mencionam a independência no fazer alguma
tarefa, em descobrir; uma ação individualizada, como sendo uma característica da
personalidade (apriorismo); uma organização pessoal; uma possibilidade de saber
viver em grupo, respeitando as diferenças culturais e de cada indivíduo, como o
resultado de uma ação reflexiva, em construção (interacionismo). Estão mescladas
as idéias da independentização da ação como a da ação em cooperação. A idéia
subjacente e que permeia essas falas docentes refere-se mais à dimensão moral, da
relação com um outro sujeito, do que à dimensão cognitiva, menos lembrada pelos
professores em suas falas.
Acredito que, à medida que, houvesse um maior espaço para discussão no
interior da escola, sobre esse conceito repetidamente citado no PPP, o seu
entendimento e sua aplicabilidade na ação escolar poderiam ser mais homogêneos,
ter mais pontos em comum, serem reconhecido como uma construção cognitiva,
159
moral e social também sob a responsabilidade da escola, diminuindo os
posicionamentos a partir do enunciado "- eu acho que…", “- gostaria de saber
mais...”, “- você pode me indicar uma bibliografia a respeito?” São falas presentes no
registro das entrevistas com os docentes da Escola A.
A respeito de como a autonomia é construída, se é algo que se agrega como
um valor ao sujeito, pela concepção empirista ou apriorista, ou, então, se opõe a
essas e é um resultado de uma ação construtivista, parece que a opção tende ao
primeiro grupo, onde é chamada a responsabilidade da família para a construção da
autonomia. Pela perspectiva do professor o aluno já vem com esta construção feita
ou não feita para a escola, não faz, portanto, o reconhecimento da participação
escolar na co-responsabilidade no desenvolvimento moral dos alunos feito no
espaço social da escola.
Não é a maioria do grupo que pensa que o desenvolvimento da autonomia
do aluno também depende das ações ocorridas no espaço coletivo da sala de aula.
No entanto, é consenso que na escola muitas relações se estabelecem e diferentes
histórias de vida se revelam; é um espaço social importante na vida do jovem na
medida em que propicia um afastamento do protegido ambiente familiar (éthos
familiar) para a imersão na diversidade e alteridades próprias das relações
interpessoais.
Vale, ainda, a referência da aproximação do conceito de autonomia com a
necessidade de cobrança dos alunos das tarefas feitas ou não feitas, situação que
faz lembrar a posição heterônoma do professor de uma oitava série, de estar na
posição de quem cobra e vigia, numa simbiose que se retroalimenta, na dimensão
do empirismo, de uma ação que precisa ser constantemente exercida sobre o aluno.
É necessário que não se desconsidere que a autonomia do aluno é tanto mais
presente quanto menos coercitivo for o ambiente, isto é, diferentes graus de
autonomia podem ser expressos por um mesmo sujeito em diferentes ambientes.
Ambientes onde as regras foram construídas com a colaboração e responsabilidade
de todos, ou então, estão dadas de antemão e provavelmente serão negadas pelos
alunos. Com isso não se quer estabelecer a simples relação de causa e efeito com
relação as regras democraticamente construídas e a postura moral e colaborativa
dos alunos, no entanto, este é um aspecto que não deve ser esquecido na
construção coletiva de um ambiente que predisponha a participação democrática e
160
respeitosa de todos. Dessa abordagem sobre a construção da autonomia fica a
possibilidade do professor participar, ou deixar espaços para uma organização e
diferenciação de ações a ser realizada no coletivo, onde se prioriza o espaço para a
opinião, o ouvir o outro, o refletir sobre as proposições e escolher um conjunto a
melhor alternativa para o grupo.
Para o coordenador pedagógico a autonomia está claramente representada
no interior da Escola A, tanto na ação dos professores como na dos alunos.
Esclarece que os professores têm uma liberdade maior em sua ação pedagógica do
que em outras escolas, e os alunos são chamados a participar de diferentes
atividades que a escola propicia, além de experimentarem diversos "modelos" de
aula, o que enriquece o seu aprendizado a partir de diferentes relações e
abordagens do aprender que cada professor apresenta. Essa é uma experiência
muito positiva a ser realizada no ambiente escolar, no entanto não se opõe
à existência de valores e condutas a serem partilhados por todos os professores, o
que facilitaria a compreensão de uma unidade de procedimentos que continuamente
se reforçam, uma unidade que tem em sua essência o respeito pelo outro sujeito
quando do trabalho em grupo, da cooperação a ser incentivada e da atitude crítica e
reflexiva como uma decorrência de um pensar individual, autônomo e que se lapida
pelas interações estabelecidas num grupo de iguais, onde o respeito pela
reciprocidade esteja estabelecido. Foi reconhecida pelo coordenador pedagógico da
escola uma diversidade de "fazeres pedagógicos" como autonomia do professor,
que personaliza a aula de cada um, aos quais o aluno se adapta de forma positiva.
Disse, ainda, o coordenador pedagógico, em encontro informal
54
, que a
formação do professor é feita de forma indireta, pela oportunidade de participação
em eventos educacionais promovidos por diferentes instituições, que são
posteriormente partilhados com os colegas. No entanto, não referiu o que está
previsto no PPP da escola sobre de reuniões de estudos dos professores no interior
da escola, organizado a partir de necessidades específicas do educandário.
54
Não registrado em entrevista gravada, mas anotado e autorizado a ser referido no trabalho.
161
Diante desse conjunto de informações sobre autonomia, foi perguntado ao
grupo de professores como pensam ser a melhor maneira de desenvolver esse valor
junto aos alunos, quando e como organizam atividades que auxiliam no
desenvolvimento de ações autônomas com a turma de oitava série observada.
Quadro 4.1.13: Ações escolares que priorizam a autonomia dos alunos
Professor 1: Nós vivemos em grupo, é preciso saber cooperação e conviver com as
diferenças, com idéias diferentes.
Professor 3: Respeitar é procurar dar uma boa aula, eles querem isso, colocar
regras eles também querem, eu acho que o aluno adolescente pede regras, não as de
dominação, aquela de eu mando e vocês ficam quietos. Eu permito que a "linha" se estique
um pouco, depois eu puxo um pouquinho, funciona.
Professor 1: Uma atividade é o fórum. Eles têm autonomia para fazerem o seu
projeto de trabalho selecionando o assunto, o grupo, as formas de apresentação do
trabalho, fontes de pesquisa. Eles podem pesquisar em qualquer lugar, como já ocorreu na
apresentação do tema de doenças sexualmente transmissíveis. Os alunos foram ao posto
de saúde, onde fizeram entrevistas com meninos e psicólogos. Eu dou as linhas e eles se
movem. Isso é muito importante porque, no momento em que eles fazem as escolhas do
que é do grupo, do que é do conteúdo, já é um sinal de que eles são autônomos. Ele vai
arcar com as suas escolhas: se não der certo no grupo, azar, escolheram, não vou interferir,
porque eles têm, sim, que aprender a conviver em grupo, nós somos sempre um grupo.
Professor 3: Essa turma tinha um problema a ser resolvido comigo no primeiro
trimestre, eu não conseguia dar uma boa aula. Via-me como aqueles professores que dizem
que não querem entrar em determinada turma, até me dar conta que eu não podia ser assim
também. Tinha um conflito. No começo eu assumi a mea culpa, não me acho todo
poderoso, fiquei pensando se não estava entrando de má vontade na turma. Pensei se
seria um "olharzinho" de um adolescente que não "caiu bem", mas isso eu não queria que
valesse. Ouvia dizer que a turma era agitadíssima, que os alunos não tinham vontade para
estudar. Até o dia em que disse para eles: "Hoje nós vamos falar sobre as nossas aulas".
Eles logo disseram: "O que vamos fazer? Posso sair tomar água? Que bom não fazer nada!"
Perguntei o que eles queriam de uma aula e de um professor. Disse que iria ouvi-los e
depois falaria. Eles disseram, então, que queriam uma aula mais divertida, "ter liberdade".
Falaram-me que eu entrava na sala com cara braba, tinham a impressão de eu não gostava
deles. A partir deste momento, a aula mudou e foi a melhor turma que já tive. Passaram a
responder com vontade. Eu dizia a eles que todos éramos adultos: "Vamos procurar fazer
assim, o que vocês acham?" Conseguia sair da sala sem nenhum problema, eles seguiam
trabalhando sozinhos. Quando um deles me dizia que queriam fazer o exercício em casa,
eu permitia, dizendo que confiava neles; eles faziam em casa e me mostravam o trabalho
feito. Eu dava espaço para eles.
Professor 3: Eu acho que a construção da relação em um grupo pode se dar junto
com a minha disciplina. A relação entre aluno e professor, o respeitar o aluno é importante.
Professor 2: Eu confesso que não sei como trabalhar a autonomia deles.
Ter respeito com o aluno e prover um bom espaço de convivência no grupo,
juntamente com a preparação de uma boa aula pelo professor, aparecem como a
162
ações a ser empreendidas na sala de aula para o desenvolvimento da autonomia do
aluno.
A possibilidade de os alunos se organizarem em grupo também é lembrada
como fator desencadeante da autonomia dos alunos, no entanto como os
professores trabalham a dinâmica interna de um grupo? Mais do que deixar os
alunos fazerem sozinhos e arcarem com suas responsabilidade, é preciso chamar a
todos para a participação coletiva, um trabalho que requer persistência docente, na
direção da interação dos sujeitos do grupo em atividade.
A necessidade de regras formais estabelecidas em conjunto, como uma
estratégia para a construção da relação em sala de aula, não foi mencionada como
uma estratégia na construção da autonomia. No entanto, deve-se observar a
conversa do Professor 3 com os alunos na intenção de verificar os impedimentos
que estavam a atrapalhar a relação entre alunos e professor e, em conseqüência, o
ensino-aprendizagem. A situação não deixa de ser uma combinação de novas
regras, porém não estabelecidas sob a forma de normas. Os alunos puderam
expressar e explicar seu comportamento, sendo ouvidos pelo professor com atenção
e respeito, o que evidencia a reciprocidade de condutas, de forma que um novo
comportamento surge como resultado. Tal comportamento que não tolhe os alunos,
que circulam pela sala de aula, tanto para conversar como para prestar mútua ajuda,
uns aos outros, contudo agora também comprometidos com os objetivos do
professor para que este tenha espaço para ensinar através de um questionamento
instigante, enquanto os alunos se dispõem a aprender o conteúdo escolar. Essa é
uma oportunidade para uma oportuna discussão docente, a partir da concretude do
exemplo, sobre as relações conflituosas no ambiente escolar, que geralmente são
identificadas como indisciplina - sempre do aluno. A construção da autonomia moral
do aluno supõe a cooperação com os colegas, tanto quanto o professor regularizar a
relação com os alunos a partir da reciprocidade do respeito, não mais das condutas
heterônomas - essa é uma possibilidade a ser explorada pelo coletivo docente
quando se pretende aprimorar as relações de cooperação e autonomia sócio-moral
em aula.
Na escolha da estratégia do fórum do Professor 1, também há um
reconhecimento da capacidade do aluno. É deixada à responsabilidade do aluno a
condução do trabalho, oportunidade para que apresente uma nova forma de abordar
163
determinados temas escolares, além de participar de forma mais ativa da aula,
saindo do lugar de ouvinte ou executor de tarefas ditadas pelo professor, situação
ainda comum nas séries finais do ensino fundamental, tal como observado pela
pesquisadora.
Sem que o assunto tenha se encerrado, é necessário agora introduzir no
corpo do estudo de caso da Escola A o segundo grupo de sujeitos entrevistados, os
dois professores aposentados que trabalharam na escola nas décadas de 1960-70.
As duas entrevistas realizadas disponibilizam dados para a análise de um
outro ponto de referência para o tema em estudo. Elas registraram um marco
histórico mais próximo ao momento em que a escola inaugurava seu compromisso
com os princípios da Escola Nova e com a teoria piagetiana. Os relatos orais das
entrevistadas não puderam ser confrontados com as observações de uma aula, tal
como o feito com os professores em atividade na docência hoje, no entanto são
válidos como fonte de dados para uma pesquisa. Aqui são utilizados como uma
referência que possibilita analisar o que se transformou e o que se perpetuou quanto
ao desenvolvimento da autonomia dos alunos num mesmo estabelecimento de
ensino.
Os professores da Escola A foram até agora referidos nos quadros como
Professor 1, Professor 2, Professor 3 e Professor 4. Os dois próximos professores,
da mesma escola e aposentados, serão “identificados” como Professor 5-A e 6-A, à
letra A refere-se à situação de aposentados.
É nessa perspectiva que os próximos dois quadros estão montados, um
reunindo informações que possibilitem visualizar a rotina da escola, a existência de
grupos de estudos e a relação dos professores com o plano pedagógico da escola, e
outro que especifica o conceito e desenvolvimento da autonomia nos alunos.
Quadro 4.1.14: A organização pedagógica na Escola A nas decadas de 1960-70
Professor 5-A: A escola era um laboratório de aprendizagens para professores e
alunos. Ali se faziam experiências em educação para todo o estado do Rio Grande do Sul.
Professor 6-A: A escola sempre estudou o construtivismo. Uma professora traduzia
os livros do francês para o português, estudamos bastante Piaget e Constance Kamii.
164
Professor 6-A: A gente estudou a autonomia e a heteronomia nas reuniões de
estudos. Os professores tinham uma vez por semana uma reunião de estudos. Nós
tínhamos os materiais e textos.
Professor 5-A: Existiam também as reuniões de laboratório, nós trocávamos as
dificuldades, as experiências boas e as ruins que fazíamos em sala de aula. A partir daí,
nós pensávamos em conjunto como cada um podia voltar para a sala de aula, tentando
superar a dificuldade anterior. Era muito proveitoso, tínhamos muita segurança e dávamos
mais autonomia para o aluno.
Professor 5-A: Eu acho que a gente dava mais oportunidades, mais liberdade para
o aluno. Aquela liberdade dirigida, não era aquela de abrir a porta e sair todo mundo
correndo, ou sair e voltar na hora que quisesse.
Professor 5-A: Tínhamos um planejamento consistente, um conteúdo consistente,
que era estudado e desenvolvido primeiro entre os professores. Tínhamos que saber muito
para dar uma aula. Era preciso ter uma visão de futuro que incluísse o aluno, ver o que era
mais importante.
Professor 5-A: A gente fazia um plano no início do trimestre e apresentava para o
aluno. Ele sabia aonde deveria chegar, o que nós estávamos esperando dele, ele tem que
fazer parte do que acontece na aula.
Professor 5-A: O professor tinha respaldo a sua volta, qualquer problema que
acontecia tinha onde buscar uma solução.
Professor 5-A: Havia uma unidade de trabalho. Sabíamos, por exemplo, na equipe
de tal disciplina, nas reuniões de laboratório, o que cada um trabalhava. Eu trabalhava
numa 8ª série e sabia o que o colega da 7ª estava fazendo ou fez e também o que o pessoal
da 1ª série estava precisando que eu trabalhasse para o ano seguinte. Na mesma série
também, nós sabíamos como o colega de cada disciplina trabalhava, até sobre os alunos
que não se comportavam e tinham que ser retirados da aula temporariamente.
Professor 5-A: Quando o aluno era retirado de uma aula não era para ficar sem
fazer nada no corredor, como agora. Ele saía com o trabalho que estava fazendo, ia para a
biblioteca e tinha que apresentar pronto para o professor no final do período.
Professor 5-A: Qualquer projeto que a gente quisesse fazer era acatado. Era
apresentado para a direção, e ela perguntava se a gente acreditava mesmo naquele
trabalho, e então aprovava.
Professor 6-A: Foi uma experiência muito legal e tinha tudo a ver com a autonomia,
com o respeito pelo sujeito. Não tinha a recompensa nem o castigo. A gente trabalhava
muito com o erro, como aquele caminho que está aberto para o acerto, só acerta quem
também erra! Quem não erra não experimenta, não faz.
Os professores aposentados relataram com verdadeira paixão seu trabalho
na escola. Os professores da época formavam uma unidade que era realimentada
pelo estudo semanal. O encontro de formação permanente parece ser uma
referência que marcava o seu compromisso como profissionais, pois eles
expressaram que isso lhes dava segurança (tal como uma autonomia) para voltarem
à sala e não terem receio de enfrentar as dificuldades. Tinham os colegas para
165
discutir e organizar ações coletivas. O estudo também os comprometia e
impulsionava para a execução de novos projetos dentro da escola.
Chama a atenção o fato de o professor que estuda, que faz parte de um
grupo, conseguir fazer aproximações com a teoria, citando o nome de algum autor,
de forma a tentar uma aproximação da teoria com a prática. Dos professores que
trabalham na escola, o único que citou o nome de um autor foi o que participou de
um grupo de estudo em horário extra-escolar, professor dois, em final de tarde e por
adesão espontânea. Por sua vez, os professores aposentados com maior facilidade
transitavam pela teoria, citando nomes, conceitos e estudos realizados.
Parece ficar mais marcada, num tempo passado, a existência de um
planejamento escolar amplo, o que corresponde ao atual PPP. Os professores
aposentados fizeram referência a esse planejamento dizendo que constava nele o
desenvolvimento da autonomia dos alunos; além de o planejamento específico de
cada professor ser construído em conjunto. O planejamento servia como referência
para o professor na ação pedagógica e concomitante referência para o aluno,
quando entre os diferentes componentes curriculares havia uma unidade de
princípios, especialmente no que se refere a condutas e comportamentos frente às
dificuldades e conflitos, ou quando todos os professores priorizavam oportunidades
de expressão dos alunos de forma a realmente considerarem o resultado das
conversações entre alunos e professores.
Essa é uma situação que teve visível desgaste no decorrer do tempo, tanto
na questão da existência das reuniões e estudos como no empreendimento de
ações coletivas, integradas, entre os professores de uma mesma série. Foram
menos freqüentes os relatos de existência de projetos interdisciplinares e atividades
integradas junto aos alunos que hoje trabalham na Escola A. O registro feito pelos
professores aposentados faz visualizar uma escola muito mais cooperativa entre os
seus professores e alunos.
O grupo de estudos, além de sua intenção formativa, age sobre a estima dos
seus membros, apoiando o professor nas suas dificuldades tanto quanto
reconhecendo os êxitos de cada um, tal como mencionado pela teoria; o grupo tem
a função de ser um regulador de ações dos seus integrantes, reforça a ação
cooperativa e estimula a não-contradição de seus participantes; exige dos seus
166
filiados coerência e uma crescente participação cooperativa, de forma a assegurar
os vínculos estabelecidos e a unidade que dá "resistência" ao grupo. Nas duas
entrevistas dos professores aposentados há o registro de que eles aprenderam
muito na escola, nos estudos com os colegas e nos desafios que se propuseram,
inclusive ao atuarem com alunos e turmas tidas como "difíceis".
Voltamos agora ao tema da conceituação da autonomia pelos professores,
porém dos docentes aposentados que trabalharam na Escola A, num momento em
que sua organização disponibiliza maior ênfase para o grupo de estudos dos
professores.
Quadro 4.1.15: A concepção de autonomia dos professores aposentados
Professor 6-A: A autonomia é a arte de governar por si mesmo e a heteronomia, ao
contrário, é aquela em que existe um mandamento. A autonomia se divide em autonomia
moral e intelectual. Não é autonomia quanto se impõem coisas, quando se espera uma
resposta igual, a gente já sabe a resposta e só quer aquela resposta conhecida.
Professor 6-A: A autonomia vem da família. A gente podia perceber que as
crianças autônomas traziam uma educação familiar. Os pais deixavam a criança ter
algumas iniciativas, tomarem posições, terem uma certeza. Porque a autonomia não é
aquela coisa do vale tudo, tem que ter controle, é uma educação.
Professor 6-A: Eu acho que a escola tem um compromisso com os alunos, de
passar uma prática da responsabilidade. Penso que é melhor parar e pensar sobre as
coisas que não vão bem dentro da sala de aula. Saber porque se fez dessa forma e não de
um outro jeito, quais as conseqüências da ação, pensar junto com os alunos e com os
colegas professores.
Professor 6-A: Eu acho que o respeito e a relação de confiança do aluno com o
professor é a primeira coisa para o ensinar e o aprender. Não é só o professor que ensina;
é o aluno que ensina também, na relação de confiança os dois ganham. O que eles
esperam do professor e o que a gente espera deles, de que forma a gente vai ensinar e
aprender?
Professor 5-A: O aluno que tem mais autonomia procura ajudar os colegas, procura
saber mais; parece que ele fica mais atento, é mais responsável. Tem uma
responsabilidade sobre o seu conhecimento. Em geral, o aluno que tem mais autonomia é o
aluno que tem melhor rendimento.
Professor 6-A: Tem muita importância a autonomia na vida de um sujeito. Uma
pessoa que tem autonomia pode dar as suas respostas, é aquela que já avaliou e tem
posição.
Professor 6-A: Nós sempre trabalhamos com essa forma de autonomia, com essa
forma de criar regras depois de conversar e combinar em grupo.
Professor 5-A: As experiências que fazíamos davam muita autonomia para o
professor. A gente ganhava muito, tinha o compromisso com o que estava sendo feito junto,
não se fazia de qualquer jeito, tinha estudo junto.
167
Professor 6-A: E as coisas que os alunos fazem com o professor, onde existe um
grupo que se ajuda pela cooperação, acabam por refletir-se fora da sala de aula. Eles vão
para o corredor, para o recreio, para casa e estão falando sobre o que está acontecendo,
passa ser o jeito deles serem e trabalharem. A postura deles passa a ser diferente. As
pessoas têm que ter algumas vivências autônomas para se guiarem pela autonomia.
Professor 5-A: Inclusive no nosso Plano Global aparece a autonomia. Fazer com
que o aluno aprenda com autonomia, com crítica. Está lá escrito. É preciso que se dêem
certas condições de trabalhar, não fazer por ele, mas ele tem que conseguir caminhar
sozinho. Eu acho isso extremamente importante na formação do aluno, para qualquer
pessoa. Ainda mais agora que a escola está cada vez mais sobrecarregada de conteúdos e
o aluno está aprendendo muito fora da escola. Inclusive, eu acho que esse ensino a
distância que estão falando tanto por aí, eu não sei bem como funciona, mas eu acho que,
se o aluno não tiver o hábito de saber aprender, o ensino a distância não vai dar certo.
Os argumentos para definir autonomia abrangem a responsabilidade, a
cooperação, o autogoverno, a existência de regras num grupo, a liberdade de ação,
e o posicionamento crítico, formando atitudes que se perpetuam em ações que
ultrapassam as salas de aula. Atendem, assim, ao conceito piagetiano de
autonomia, que é moral e cognitiva.
O respeito ao aluno e a construção de um trabalho coletivo pelo professor,
na continuidade das reuniões de estudo, parecem respaldar tanto a autonomia do
aluno como a do professor. A família, mais uma vez, aparece como co-responsável
na formação da autonomia dos alunos. Os professores contemporâneos colocam a
responsabilidade de desenvolvimento da autonomia nos alunos com mais
exclusividade nas famílias, enquanto os atualmente aposentados dizem que viam
expressões de condutas autônomas nos alunos durante a aula, incentivavam-nas e
empreendiam novas ações cooperativas entre eles no ambiente escolar. A escola
assumia a responsabilidade na continuidade da aprendizagem da autonomia iniciada
na família.
Pelos professores aposentados desta escola é lembrada a ação positiva do
aluno autônomo, na colaboração que passava a prestar ao grupo onde interagia,
sendo essa uma experiência que se aprende pela prática e se carrega pela vida,
disseram eles.
Mais uma vez, parece oportuno frisar que a diferença maior entre o grupo de
sujeitos aposentados e o de não aposentados refere-se à existência e à prática de
grupos de estudos como uma rotina escolar, como uma tarefa do professor, para
manter-se atualizado e ser também um aprendiz do seu fazer pedagógico, numa
168
ação-reflexão ininterrupta. Infelizmente, parece ser um aspecto positivo que se
perdeu na trajetória da Escola A.
Temporariamente interrompo a apresentação de dados novos para uma
primeira reflexão. Retomo as categorias de análise priorizadas para esse conjunto
de informações disponibilizadas pelas entrevistas e pelo PPP da Escola A.
A figura 3.3.1, presente no capítulo da metodologia deste trabalho, é a que
conduz os parágrafos seguintes. Nela estão postos dois grupos de sujeitos, os
professores aposentados e os em atividade na Escola A. Está previsto um olhar
sobre os registros apresentados segundo duas categorias de análise: a primeira, da
ação pedagógica e do plano político-pedagógico da escola; a segunda, a categoria
cooperação entre docentes e a existência e dinâmica dos grupos de estudos. Essas
duas categorias dirigem a reflexão para o conceito de autonomia, de como o
professor trabalha esse conceito e como o significa em seu fazer pedagógico.
A primeira categoria de análise, da ação pedagógica e do plano político-
pedagógico da escola, investiga se o professor faz relação entre a sua ação junto
aos alunos, ou do seu planejamento de aula, e os objetivos e diretrizes anunciadas
pelo PPP da escola.
Está no PPP da Escola A a intenção de desenvolver sujeito autônomos,
através de uma ação escolar implementada pelo seu corpo docente. Está registrada
no seu PPP uma concepção de conhecimento emancipatório e de uma educação
construtivista como processos que envolvem o aluno em sua atividade intelectual,
social, moral, política e ecológica. A criticidade e a dialogicidade são invocadas
através de Paulo Freire para o desenvolvimento de um cidadão autônomo. O
documento refere as expressões "aprender a aprender", legado do movimento da
Escola Nova, e "aprender a viver", que dimensionam o desenvolvimento cognitivo e
moral, a autonomia do aluno.
Nas entrevistas não encontro a menção dos professores quanto ao conteúdo
do PPP da escola, nem que a autonomia fosse uma temática presente no
documento escolar ou uma preocupação na ação junto aos alunos, pelo menos não
no plano intencional, a exemplo de ações específicas serem planejadas com esse
fim. O professor faz um ajuste, recolhe algumas atividades cooperativas que
169
acontecem no interior de sua aula e atribui-lhes a qualidade de desenvolvimento de
autonomia. Importante que se frise que as atividades têm esse potencial de
desenvolvimento da autonomia, da discussão democrática e da reciprocidade de
respeitos na ação grupal. A questão é que são empreendidas com o fim de
desenvolvimento de conteúdos pelo conteúdo, não da autonomia ou cooperação
colocadas em paralelo ao domínio de conceitos formais de estudo.
Durante as entrevistas com os professores em exercício da profissão, esses,
por várias vezes, reconheceram a importância do tema autonomia, inclusive
solicitando orientação à pesquisadora sobre como fazer ou do que ler sobre o
assunto, o que foi combinado que poderia acontecer em momento posterior ao
trabalho que então estava sendo desenvolvido. Quero ainda ratificar a última frase
do parágrafo anterior, de que os professores deixam muitas brechas para o trabalho
e desenvolvimento da autonomia junto aos seus alunos, mesmo que não tenham
planejado tal acontecimento. O que aponto como situação a embaçar a
possibilidade de construção da autonomia é o fato de o professor trazer à cena a
situação da empíria, do “instinto”, do “bom-senso”, como dizem alguns quando
referem sobre um trabalho realizado e sobre uma prática pedagógica construída.
São resultados que não são acompanhados pela tomada de consciência do
professor sobre seu trabalho, sobre as ações praticadas.
O orientador educacional e o supervisor escolar têm uma visão mais
abrangente da escola e visualizam no cotidiano da ação escolar fragmentos de
autonomia tanto dos professores quanto dos alunos, em oposição ao parecer dos
professores, que não fazem essa tomada de consciência sobre sua prática. Tenho,
pelo conjunto das entrevistas, que a ação docente é encaminhada por experiências
individuais, construídas ao longo do exercício da profissão na estrita relação com os
alunos, e os objetivos da escola, expressos no PPP, são, no mínimo, não lembrados.
Os professores aposentados deixaram mais presente em suas falas a
intencionalidade de um grupo que perseguia os objetivos escolares, expressos em
seus documentos gerais. Organizavam atividades com a intenção de
desenvolverem a autonomia nos alunos, lembrando o texto dos documentos da
escola, que direcionava a sua ação na sala de aula como uma diretriz a ser
perseguida por e com todos os outros professores da escola. Na medida em que
muitos professores têm esse conhecimento comum, a ação pedagógica ganha
170
volume no ambiente escolar e na comunidade. Em oposição, os professores
contemporâneos não incorporam de forma sistemática, em sua prática, o texto do
PPP da escola, no qual está expressa a idéia de desenvolvimento da autonomia do
aluno.
Quanto à segunda categoria de análise, da cooperação entre docentes e
os grupos de estudos, é um ponto crítico no interior da Escola A. Os professores não
mais constituem um grupo articulado com um projeto pedagógico único, pois existem
muitos fazeres no interior da escola; não há uma coordenação de ações entre os
professores, o que o supervisor chamou de "possibilidade autônoma dos
professores". Há um desgaste com relação à formação docente ocorrida com o
passar do tempo.
Nos objetivos da Escola A é referido sobre a implementação de um espaço
socializador e democrático no interior da escola, de incentivo às reuniões de estudos
dos docentes para a constante atualização pedagógica. Sobre esse objetivo é
interessante observar que, no mínimo, é intrigante que a escola não seja um lugar
de construção de autonomia intelectual e moral também do professor, pois esse tem,
além das suas ações, como conteúdo de reflexão, as ações dos seus alunos, que
lhe possibilitam espaço e livre-trânsito investigativo para uma autoria de
conhecimentos, resultante dos estudos pedagógicos feitos a partir da tomada de
consciência de sua prática diária. Seria essa a atitude de um professor estudioso,
reflexivo sobre sua prática e que pode desprezar as investidas que outros
profissionais fazem no campo do ensino-aprendizagem, essas, em determinadas
situações, desprovidas de reflexão e experiência com as situações concretas do dia-
a-dia da relação escolar, que é sempre muito complexa e dinâmica.
Sem que o grupo de professores tenha uma discussão regular sobre temas
do cotidiano escolar, com uma concomitante referência teórica, é pouco provável
que os professores se aproximem do texto do PPP da escola e que construam um
grupo que estuda a teoria e a prática docente, que encontre e aponte as
convergências e divergências da prática, da teoria e das trajetórias dos docentes, o
que possibilitaria uma ação pedagógica mais coesa, com mais espaço para
171
discussões democráticas, para ações em grupo, fato que abre caminhos para a
construção da autonomia docente junto aos colegas e alunos.
O entendimento de autonomia pelos professores deste estudo de caso é de
que passa pela individuação das ações, mas também foi apontada como condição
para a ação no grupo social, envolvendo respeito e cooperação. Este último
entendimento revela possibilidades quanto ao desenvolvimento da autonomia nos
alunos, desde que, além de reconhecida pelos professores seja enfatizada e
exercitada por meio de recursos metodológicos e estratégicos pelo professor.
O trabalho docente, com relação ao desenvolvimento da autonomia do aluno
em aula, é feito conforme o entendimento de cada um, utilizando estratégias que
priorizem o coletivo, sem constituir uma ação conjunta e planejada de vários
professores, que potencializa a ação de cooperação no grupo, de autonomia,
independentemente do componente curricular a ser trabalho. A autonomia não é
priorizada pelos professores dessa escola.
Estabelecidos esses primeiros marcos no trabalho, outros dados passam a
ser apresentados, os das observações realizadas numa turma de oitava série e que
complementam o estudo de caso da Escola A. Após as observações inseridas no
trabalho, seguir-se-á uma nova síntese, atendendo ao conjunto que traz um segundo
grupo de categorias de análise, de cooperação e conflito na relação entre os alunos
e entre professor e alunos.
As observações realizadas focalizaram os acontecimentos em sala de aula,
centrando a atenção nos eventuais conflitos existentes, no modo como surgem e
como são resolvidos: com ou sem a intervenção do professor? Com que tipo de
condução? Também registraram as situações de cooperação, na forma como os
alunos despendiam auxílio um ao outro e como o professor incentivava a
cooperação entre eles.
O primeiro quadro reúne situações onde há um conflito seguido de uma ação
coercitiva do professor, situações essas que ocorrem em abundância na relação de
sala de aula. Ao aluno, em nenhuma oportunidade foi dirigida a pergunta sobre o
porquê de determinada conduta; o espaço de possível transformação do conflito
172
num conteúdo a ser falado pelo grupo de aula praticamente inexistiu durante as
observações.
Quadro 4.1.16: Situação de conflito
Após a explicação de um tópico da matéria, começa a correção de uma tarefa de
casa. O professor pede a um aluno que leia a primeira questão; vendo que ele não a fez,
pede que a presidenta anote o nome do colega como não tendo feito o tema. Ninguém se
manifesta para anotar o nome do colega faltoso. A presidenta de aula não se deu conta de
que falavam com ela. Quando o professor pede para que mais um nome seja anotado, uma
colega da fila ao lado da presidenta diz: "Fulana, você é a presidenta! O professor está
pedindo para anotar fulano e beltrano". O professor passa de classe em classe e a grande
maioria da turma tem seu nome anotado como não tendo feito o tema de casa. O professor
dita um bilhete para todos que não fizeram o tema para que tragam assinado por um dos
pais. A presidenta agora ergue sua mão com a folha, querendo entregá-la ao professor, que
responde que ela deve ficar com a folha. A aluna presidenta por mais duas vezes tenta
entregar o registro erguendo a folha enquanto chama o professor, até que o professor vai
até a classe dela e diz que guarde a folha com cuidado, anote a data e a entregue na
próxima aula.
Ainda com relação ao fato do anotar os faltosos com a tarefa de casa, o professor
segue circulando pela sala e chamando os alunos para responderem ao tema. Quase todos
dizem que não fizeram; falam baixo. O professor não ouve que uma aluna fez o trabalho e
já estava sendo anotado seu nome quando um colega diz que ela fez sim o tema. O
professor se volta mais uma vez para a aluna, que mostra seu caderno. Confirmada sua
resposta, o professor diz: "Então fala, mulher!"
O professor passa pela classe de um aluno que desenha no seu caderno. Ele é
anotado na lista da presidenta e advertido pelo professor de que desse jeito não vai
aprender. O aluno olha para o professor e por um curto intervalo de tempo não desenha.
O professor chama a atenção e repreende o grupo todo dizendo do grande número
de alunos que não fizeram a tarefa combinada para casa. Nenhum aluno responde ao
professor. Percebo que só aconteceu uma situação em que a aluna não fez o tema e diz
que o fez; ela é ajudada pelo colega de trás, que lhe empresta o caderno. Todos os outros
são sinceros com sua resposta ao professor.
O professor volta à classe do aluno que desenha e pede a sua participação num
novo exercício, que é feito pelo coletivo da classe. O aluno não sabe responder, é pego de
surpresa apesar de estar sentado no centro da sala, lugar bem visível para o professor. Ao
comentário sobre sua escassa participação em aula, o aluno encolhe os ombros em sinal de
pouco se importar com o fato. O professor então sai da sala deixando a porta aberta. Os
colegas ficam em silêncio. Quando ele volta, sabe-se que foi ao SOE. O professor solicita
ao aluno que pegue seu caderno com o desenho e vá falar com o orientador que o aguarda.
Enquanto o professor e o colega estão fora da sala, a turma se mantém em silêncio,
nenhum aluno se levanta do lugar, ouço alguns comentários perto de mim sobre o ocorrido,
em apoio ao professor. Quando o professor volta à sala, encerra o assunto dizendo que a
sala de aula é lugar de seriedade, é um lugar de trabalho e, se assim não for, que fiquem
em casa.
Quando o aluno que foi encaminhado ao SOE retorna, vai direto para sua classe e
segue o professor com um olhar rancoroso. Este está trabalhando com a turma toda numa
explicação no quadro. Na primeira oportunidade vai até a classe desse aluno e pergunta o
que ficou resolvido com o orientador da escola. Ele diz que seu nome ficou registrado num
173
caderno de ocorrências. O professor pergunta se o nome ficou mesmo registrado no
caderno, o aluno confirma. Então o professor diz: "Era isso que eu queria!"
O mesmo professor que confere o tema de casa dos alunos, em sua
entrevista, faz o seguinte esclarecimento sobre sua atitude em aula.
Quadro 4.1.17: Explicação do professor
A turma vem com esse estigma [de que não colabora]. É muito ruim porque o
professor da outra série já vai pegar informações: "Como é que são teus alunos?" Tudo é
difícil, eles estão numa apatia e está aí o resultado, eles não fazem. Ontem, por exemplo,
eu passei corrigindo, eu passei só para ver, de trinta somente cinco tinham feito uma tarefa
de reforço de casa. Então é aquela coisa, eu até coloquei para os pais na reunião que a
aprendizagem ela se faz 80, 90% dentro da sala de aula com o professor-aluno, os outros
20% é o reforço em casa, e eles não fazem. O simples fato de estarem em aula também
não basta, porque eles “viajam”, se desligam. E alguns conteúdos que a gente tem que
desenvolver, conteúdos universais, democráticos de 8ª série, eles não gostam, não vêem a
utilidade. Então aquilo, naquele momento, não é significativo. O conhecimento, as tais
sinapses, conexões, não se dão e eles não aprendem. É um pouco difícil, é. Em uma turma
de trinta, se eu conseguir alguma coisa de qualidade com seis já me dou por satisfeito.
Silvana Waskow (2004) faz referências à pouca participação dos alunos em
aula e às condutas de rebeldia a partir da situação de entrevista com jovens da
mesma faixa etária dos deste trabalho, utilizando dilemas morais. Diz que a escola
acaba por reforçar a atitude heterônoma do aluno ao deixar claro em várias
situações que o que vale é a nota final e a responsabilidade do aluno quanto ao
prazo de entrega dos trabalhos, podendo até ser um trabalho copiado igual do
colega, dizem eles. Os alunos reclamam da pouca importância dispensada pelos
professores a suas justificativas frente a notas insuficientes ou trabalhos não
entregues, que muitas vezes não têm a intenção de ludibriar o professor. A tal
contexto acrescento a situação do bilhete assinado pelos pais, da já conhecida
necessidade que tem o professor de um respaldo confiável, via ciência dos pais,
para garantia de possível represália ao aluno, reforçando a situação de coação, essa
de pouca eficácia junto ao adolescente na grande maioria das vezes.
Na verdade, o professor revela em sua entrevista que fez o levantamento de
quantos fizeram o tema como uma curiosidade, uma vez que entende que a
aprendizagem escolar exige uma complementação de estudos por parte do aluno,
ainda mais na situação de alunos finalistas do ensino fundamental. Porém, por que
174
o bilhete e não uma discussão em aula sobre a situação? Foi perdida a
oportunidade de transformar uma situação de falta em conteúdo escolar em
discussão dos motivos: do porquê de existir o tema, do porquê de determinada
tarefa ser solicitada e do porquê de os alunos a terem feito. Ainda, pode-se pensar,
se oitenta por cento da aprendizagem se faz em aula, segundo o entendimento do
docente, por que o bilhete e a coação para uma parcela de vinte por cento da
aprendizagem?
A presença de uma autoridade externa, para que seja registrada uma
coação sobre um comportamento indesejado pelo professor, fica marcada quando o
aluno é encaminhado ao SOE. Mesmo considerando que tenham existido situações
de desgaste anteriores na relação do professor com este aluno, temos um resultado
em que fica registrada a queixa sobre ele de forma punitiva, como castigo,
especialmente quando o professor manifesta que alcançou seu objetivo – de o aluno
assinar o caderno de ocorrências. Sem me posicionar na defesa do aluno, o que
não cabe neste trabalho, mas pensando nas possibilidades de uma ação educativa
que modifique cenas como esta, tão comuns nas escolas, e recordando os dias em
que estive na escola, as entrevistas realizadas e as observações feitas, não
encontro um espaço onde o aluno possa falar sobre o cotidiano escolar - talvez o
faça no corredor, de forma impensada, quando esse mesmo aluno risca um cartaz
de uma campanha de saúde colado na parede. É certo que vi e me foram relatados
vários momentos nos quais os alunos tomam a condução dos trabalhos, como na
tradicional gincana da escola, no mutirão de limpeza, no grêmio estudantil, mas
todas essas ações são monitoradas pelo corpo docente de forma direta ou indireta;
outra, como o grupo de pagode, é resultante da iniciativa de alguns alunos que
tocam do lado de fora da escola, na escadaria que dá acesso a ela. Então, que
exercício democrático e de autonomia, de responsabilidade sobre atos pessoais,
está sendo construído junto aos alunos?
Outras situações de coação estão presentes na rotina escolar, a exemplo de
algumas selecionadas e presentes no próximo quadro.
Quadro 4.1.18: Outras situações de coação
O grupo está sentado em círculo para acompanhar a apresentação de um trabalho
realizado pelos colegas. Em dado momento, as conversas paralelas aumentam e o
175
professor olha para um grupo de alunos expressando seu incômodo com a situação. Os
alunos também olham para o professor, mas não se sentem comprometidos ou
repreendidos. A conversa segue. Passado algum tempo o professor interrompe a
apresentação e diz ser uma questão de respeito e educação com os colegas que
apresentam fazer silêncio e diminuir a agitação. A essa advertência do professor alguns
alunos imediatamente se manifestam dizendo que não estavam conversando, ou, então,
dizem que o que faziam não estava a importunar o andamento da apresentação. O grupo
que dirige o fórum volta à apresentação.
Antes de começar a aula, o professor pede que os alunos coloquem suas classes
em filas. Eles levam tempo para começar a atendê-lo. Ele diz que só começará sua aula
com as classes enfileiradas e passa pelas classes para endireitar as carteiras não
alinhadas. Fez isso sempre que entrou na sala para sua aula. Numa das oportunidades,
percebo que os alunos, por conta própria, organizam as carteiras em fileiras, no intervalo
que antecede o período (no período anterior trabalharam em agrupamentos), para atender
ao professor que assim exige a organização da sala. Por várias vezes ele repete: “Quero as
classes mais retas, sentem direito, virem para frente, fiquem quietos”.
Um professor começa a falar e um aluno faz uma pergunta ao mesmo tempo. O
professor, com um tom de voz irritado, diz: "Eu quero falar! E quem quiser falar junto que
saia!" Os alunos se calam.
O professor pede para baixarem o tom da conversa, diz que eles mesmos pediram
176
outros. Isso significa que cada aluno precisa estar identificado com o grupo e
reconhecer os motivos que o congregam ao grupo, esse é o fato que garante a
unidade da ação no grupo
55
.
Vejo uma manifestação egocêntrica dos alunos diante de uma situação de
coação, quando justificam a sua situação pessoal ao serem advertidos pelo
professor. Eles não se percebem incomodando o grupo que apresenta um trabalho,
argumentando que não conversavam naquele momento, ou que a sua conversa não
atrapalha. O egocentrismo impossibilita-os de avaliarem a sua conduta e
interferência dentro do trabalho que se desenvolve no grupo. Como se pudessem
ficar invisíveis quando assim quisessem, no momento estão a atender um prazer
pessoal - que a conversa lhe proporciona; ou o seu oposto, uma situação de rebeldia
com a qual querem ser percebidos e vistos pelo coletivo ao conversarem, dirigindo a
atenção do professor sobre eles. Acredito que a primeira situação melhor responde
à conduta dos alunos desta turma observada.
A consideração sobre o egocentrismo do aluno pode também ser vista como
uma diferença no comportamento do jovem adolescente contemporâneo. É
necessário que se façam observações e mais estudos sobre a capacidade do jovem
de trabalhar com diferentes focos de atenção de forma simultânea. Os adolescentes
dessa turma dizem serem capazes de conversar, de ouvir, de brincar ao mesmo
tempo. Tal situação se apresenta como uma desvalia ao trabalho e à presença do
docente na sala de aula; revela uma diferença na escala de valores dos professores
e alunos, que é potencializadora de conflitos. Esse é mais um desafio para nós
professores, a ser enfrentado com competência profissional em lugar de lamúrias.
A ameaça com notas ainda é uma situação vivida no interior da escola,
mesmo depois de tantos textos e estudos sobre a avaliação ser processual, a que
substitui a uma avaliação final, a que “faz passar de ano”. Trago a questão pelo seu
55
Segundo Moscovici (2003), todo sujeito tem necessidade de “pertencimento” a um grupo que o
identifique. Diz o autor que o sentimento de “pertencimento” social é fruto de uma identificação com
um conjunto de representações sociais que fazem um elo de ligação entre os sujeitos de um grupo.
Pessoas e grupos criam representações no processo de comunicação e cooperação, portanto, criam
representações compartilhadas que identificam a todos. Ao professor cabe conhecer um tanto da
teoria e de estudos afins que lhe possibilite interferir em alguns "aglomerados" de alunos que se
cristalizam na escola e na sala de aula, para atender aos objetivos de formação e desenvolvimento
dos educandos.
177
conteúdo relacional-emocional e metodológico. Também a ameaça constante do
sair da sala para falar com o vice-diretor, situação que a turma de adolescentes
pouco considera, parece ratificar o estádio de desenvolvimento cognitivo e moral em
que se encontram, quando mais se importam com a possibilidade da perda da
confiança e consideração de um outro sujeito a quem dispensam igual respeito e
consideração, do que com a presença da ameaça heterônoma feita pelo professor.
Com o professor em questão não há uma relação, uma interação de reciprocidade
estabelecida entre alunos e docente, o que invalida a ameaça feita; o grupo não
sente o receio de perder a estima desse professor como também não se sente
comprometido a colaborar nesta aula. Portanto, as classes ficam enfileiradas, como
forma de controle do professor, e os alunos terão poucas chances de aprovação.
Esse professor, em contato informal, diz discordar do sistema de avaliação da
escola, onde os professores são obrigados a fazer muitas avaliações, “os alunos são
muito ajudados”, diz ele. Justifica sua opinião com o fato de o aluno saber dessa
infinidade de oportunidades e não estudar, resultando num simples desgaste para o
professor. (Conferi posteriormente as médias dos alunos nesta disciplina: 80% deles
entraram em exame com notas muito baixas).
Da mesma forma que os alunos são coagidos pelos professores, as relações
de delação entre colegas acontecem repetidas vezes. Em algumas oportunidades o
próprio aluno chama a atenção do professor sobre algo que acontece e não foi
percebido como relevante pelo professor, em outras, o professor cobra de um aluno
determinado comportamento. Em vez do diálogo sobre o que acontece no
momento, o aluno aponta para o colega que faz ou fez algo parecido.
O próximo quadro descreve algumas situações de delação entre colegas.
Quadro 4.1.19: Situações de delação entre colegas
Uma aluna reclama em voz alta para o professor: "Estas três não param de falar!";
um menino vira para trás e diz: "Calem a boca!" No momento em que faz essa frase de
advertência aos colegas, o professor, que não é o conselheiro da turma, está elogiando a
turma em seus aspectos gerais após o conselho de classe.
Os alunos estão realizando um exercício em coletivo, alguns acompanham o
professor no quadro e outros trabalham em duplas ou no grupo. Um menino diz em voz alta
do canto extremo oposto da sala para um colega que dá uma resposta incorreta ao
178
professor: "Como vai saber se nunca pára de falar!". O aluno que grita até o momento
estava atrapalhando a aula com conversas paralelas. Passados alguns minutos mais uma
vez grita para um outro que responde acertadamente a uma questão: "Faz agora sem a
calculadora".
O professor se aproxima e diz que o grupo está muito grande, lembra que tinham
sido autorizados a organizarem duplas. Lembra ao grupo que na aula anterior eles já
tinham ultrapassado o limite de conversa e advertidos. O professor volta ao grupo para
fazer uma segunda intervenção, de modo que puxa uma das classes afastando um dos
alunos. De imediato eles dizem: "Olha ali!" Apontou para um grupo de meninas que também
estavam agrupadas em quatro. O menino que tivera sua classe afastada, logo a aproxima
dos colegas, tão logo o professor se vira.
O professor vai até o grupo das meninas para fazer a separação em duas duplas.
Elas se rebelam de forma mais enfática, dizem estarem sendo injustiçadas, de que são duas
duplas, porém, quando o professor pergunta sobre quem trabalha com quem, elas mostram
que as duas alunas das pontas de uma linha horizontal fazem uma dupla e as sentadas no
meio outra dupla. Por fim uma das meninas atende à pressão do professor e resolve ir
trabalhar sozinha, arrasta sua cadeira e classe até o outro extremo da sala, com incômodo
barulho para todos, em sinal de desgosto, dizendo para os colegas que observam: "Algum
problema?", "Só por causa de uma classe!" As outras três seguem agrupadas sem mais se
preocuparem com a colega que saiu do grupo.
O professor pede que duas meninas que estão conversando há bastante tempo
troquem de lugar, uma delas é a presidenta da turma. Elas parecem não ouvir o pedido do
professor. O colega que senta ao lado de imediato acrescenta: "Elas devem sentar uma em
cada canto da sala, elas não param de falar". Com a presença do professor ao seu lado e
com a queixa do colega as duas se levantam de forma contrariada e simplesmente invertem
seus lugares. O professor segue atendendo outros alunos que o chamam. A conversa da
dupla segue e o colega ao lado, que trabalha sozinho, volta para a resolução de seu
exercício.
Um aluno atira bolinhas de papel nos colegas. O professor pergunta quem está
atirando, vários colegas apontam para determinado colega. O professor vai até a classe do
menino e pede que ele junte todas as bolas que estão espalhadas pela sala e as coloque no
lixo. O aluno atende o professor; antes disso, porém, atira mais uma bolinha, na frente do
professor, num dos meninos que o delatou. Tal fato se repete em outra aula e com o
mesmo professor.
Esses recortes são passíveis de três leituras: a comumente feita é a da
brincadeira, da provocação entre alunos; a segunda, mais desafiadora, é se isso
implica crescimento para a autonomia. Explico, crianças menores, quando
"denunciam" um colega para o professor, estão empenhadas num pedido de justiça
retributiva e que seja aplicada uma sanção expiatória, além de garantirem a atenção
do professor sobre si, de quem cumpre um dever moral. Os adolescentes que nessa
situação delatam seus colegas não estão querendo se fazer presentes ao olhar do
professor, e, sim, presentes ao olhar do colega, estão falando para o próprio colega;
não esperam que o professor aplique qualquer punição restritiva, tanto é que nem
179
olham para o professor. Penso que querem mostrar o que viram, sabem ou
perceberam do próprio colega, numa mútua cumplicidade.
E a terceira possibilidade para a explicação das delações entre os colegas é
a do comportamento individualista, quando se valem da denúncia ao outro para
desviar a atenção de si, como no caso em que os meninos apontam para as
meninas que também estão agrupadas em quatro e não em duplas, para que o
professor desvie a atenção que tem sobre eles. A situação pode estar a revelar um
egocentrismo mais infantil, quando pensam num ganho pessoal, mesmo que
signifique a denúncia de uma situação não atendida pelo professor até então, ou,
quem sabe, da aplicação de uma justiça igualitária, tal como corresponde às
crianças menores. Nesta última alternativa todos continuam na mesma situação,
mesmo após a denúncia, com exceção da aluna que se retira do grupo para
trabalhar sozinha.
Jean Piaget escreveu, com base em sua pesquisa, que os jovens têm como
"[…] feio trair um amigo em favor de um adulto, e, pelo menos, ilegítimo intervir nos
negócios do vizinho". (PIAGET, 1932-1994, p. 221). É uma situação nova; a
descentração permite que a perspectiva do amigo e do grupo seja avaliada. A
situação exige uma posição: entre a solidariedade interna de um grupo e a demanda
adulta que sempre exige o atendimento das normas, tidas até então como legítimas.
Sair da situação de atender à lei externa para responder à lógica interna de um
grupo exige um passo em relação à construção da autonomia, o que significa
desprender-se da superioridade representada pelo adulto de respeito. Por isso, as
situações do quadro acima, que poderiam ser tidas como de desconsideração do
professor pelo aluno, podem também ser entendidas como um tanto de autonomia;
indicam que o aluno passa a reconhecer a reciprocidade constituída pelo respeito
entre sujeitos. Quando a relação de respeito e reciprocidade for estabelecida, é
muito provável que o aluno atenda, participe e colabore com aula, tanto quanto
aprenda.
Ainda, as situações presentes no último quadro não são nítidas o suficiente
para que se faça a opção por uma das três alternativas levantadas, No entanto,
revelam um momento de alternância de posição, de perspectiva de avaliação do
aluno com relação à ação escolar; constituem-se num misto das três situações
180
levantadas, onde ora predomina o grupo, ora a individuação ou a dispersão de uma
situação de aprendizagem que está exigindo pouco investimento cognitivo do aluno.
O quadro abaixo traz uma situação que acusa a falta de compromisso do
professor com os alunos, pela ausência de uma aula onde o prazer e compromisso
com o aprender estejam representados.
O quadro mostra um contra-senso: a ausência de uma aula revela uma
cooperação tácita entre os alunos ao permanecerem numa atividade sem nenhuma
exigência, no qual o lazer e o descompromisso prevalecem.
Quadro 4.1.20: A ausência de conteúdo e a presença da cooperação
O período de aula demora a começar, não há nenhum sinal por parte do professor
para que os alunos encerrem o intervalo e se organizem para a atividade de aula. O
professor chama uma aluna e pede que ela escreva no quadro um curto e simples texto,
com não mais de vinte linhas e com informações em nível de quarta série do ensino
fundamental. O professor senta na sua classe e começa a corrigir provas; a aluna escreve
no quadro e só depois de um longo tempo os alunos começam a copiar o que está no
quadro. Foram utilizados dois períodos nessa atividade de cópia. Os alunos já têm suas
classes agrupadas em duplas, trios e quartetos. A dado momento o professor ergue os
olhos e vê que as classes não se encontram mais enfileiradas, como no início da aula. Diz
então: "Isto, vão se juntando e depois eu vou mandar para a rua. Estão sentados juntos para
conversar".
Há muito tempo que os alunos terminaram a tarefa da cópia, no entanto o professor
segue corrigindo os trabalhos dos alunos em sua classe, quase nunca olhando para os
alunos. De vez em quando ele pergunta se terminaram a tarefa. Quase que em coro os
alunos respondem que não. Os alunos seguem conversando entre eles e o professor
fazendo seu trabalho; é uma situação que parece satisfazer a ambos os lados. A aula se
encerra com o professor solicitando que os alunos leiam a matéria dada no quadro, entrega
as provas que corrigiu e sai da sala.
(em outra oportunidade, com o mesmo professor) Os alunos têm uma tarefa para
desenvolver que receberam com resistência. Parece ser um assunto ainda não trabalhado
com a turma; o professor pede que escrevam sobre determinado assunto sem lhes dar
muitas explicações. Os alunos ironizam, perguntando se podem começar o texto com a
expressão "era uma vez…"; um outro aluno diz: "vamos reclamar para o SOE…" O
professor responde ao aluno de modo severo. Os alunos começam a tarefa, com visível
desinteresse pela mesma, querem é sair da sala. [Esse é um professor que não
disponibiliza muito espaço para os alunos. Disse-me, numa das muitas vezes que veio até
minha classe conversar - tenho a impressão de que vem tentar ver o que escrevo -, que
aluno deve ser tratado com restrição e castigo, que não acredita que conversar sirva para
alguma coisa e que essa é uma turma de maus alunos].
O professor que trabalha neste momento com os alunos parece manter uma boa
relação com os alunos, tem a participação de muitos quando faz perguntas sobre o
conteúdo. Os alunos acompanham no livro e caderno o desenvolvimento da aula. Ele
181
anterior e propositalmente colocada no quadro como um contraponto - a possibilidade dos
alunos participarem de uma aula quando ela existe].
Uma cooperação existe nos dois primeiros parágrafos do quadro anterior,
estabelecida de forma tácita entre os alunos e em prol da manutenção da situação
de livre conversação entre eles, enquanto respondem com uma negativa a cada
pergunta sobre a conclusão da tarefa feita pelo professor. Corresponde ao clichê:
“Eu finjo que ensino e vocês fingem que aprendem”.
Esse recorte traz a questão da relação entre o conteúdo trabalhado em aula,
a ação docente e a construção da autonomia. A situação suscita as questões: o
aluno é mais autônomo em razão do conteúdo trabalhado em aula? Ou, o aluno é
mais autônomo em razão da relação de cooperação e respeito mútuo estabelecidos
em aula?
Se o conteúdo é interessante, o aluno participa da aula, ouve os colegas, dá
opiniões, envolve-se em uma construção que é pessoal e coletiva; são essas as
situações que facilitam o mútuo respeito no grupo, o reconhecimento de diferenças a
serem discutidas e a legitimação de muitas liberdades em interação – resultando no
aprimoramento da autonomia sócio-moral e cognitiva. Supõe-se que, se há
cooperação e participação conjunta no desenvolvimento dos objetivos da aula, é
porque houve uma boa escolha metodológica e uma adequada abordagem do
assunto. No entanto, quem trabalha na docência sabe que as indicações recém
feitas com relação a uma boa aula, mesmo que bem planejadas, podem não se
desenvolver na prática quando as relações entre os protagonistas da aula não
estiverem estabelecidas. Isso faz com que a ação pedagógica não tenha espaço
para acontecer, ou, se acontece, é conduzida sob o jugo do autoritarismo.
Ainda com relação às questões há pouco anunciadas, quando o conteúdo
não existe, o aluno vê-se na possibilidade de “não participar”, de “não fazer nada”
que caracteriza a ação e comportamentos implícitos em uma aula, escolhendo outra
atividade, do jogo, da brincadeira, da conversa, que também pode estar no lugar de
uma autenticidade. É a autonomia do livre fazer, do uso abusivo da liberdade. É
claro que a primeira opção, discutida no parágrafo anterior, é mais coerente e
apropriada para o contexto escolar. A constatação final é de que o conteúdo é
importante numa aula tanto quanto a relação que se estabelece entre professor e
182
alunos, para que o tema da aula sirva de elo integrador das idéias, opiniões,
posições, descobertas e invenções que dela podem derivar.
A possibilidade dos alunos de manifestarem suas opiniões, dúvidas e
questões permite revelar facetas dos alunos muitas vezes desconhecidas pelos
professores. A situação há pouco relatada, de ausência de um “conteúdo” de aula,
tanto quanto da própria aula, possibilitou que os alunos se reunissem no fundo da
sala em uma ação que contraria a ação construtiva que a escola pretende
desenvolver junto aos seus alunos. Aconteceu que, enquanto o professor corrigia
provas, alguns meninos reuniram-se no fundo da sala, como muitos outros grupos
que já haviam se formado na sala. Estavam em pé no fundo da sala quando um
deles começou a pressionar uma classe de forma a entortar-lhe as pernas; de
imediato dois deles se puseram em frente do que praticava o ato de vandalismo de
forma a obstaculizar a visualização do que acontecia, situação acompanhada de
risos contidos e espiadas, para conferir que não estavam sendo vistos pelo
professor. Depois da classe totalmente danificada, eles se posicionavam nela como
quem fosse utilizá-la para escrever, a diversão aumentou pela forma toda torcida na
qual precisariam se manter para utilizar a classe. Isso tudo aconteceu com a
presença do professor na sala, mas não trabalhando como um professor em aula.
Disso tudo se poderia estabelecer algumas hipóteses sobre a situação de
grupo. Os alunos adolescentes tendem para ações em grupo, fato oportuno uma
vez que o grupo representa um coletivo, que ratifica seus interesses, falas e
comportamentos; estão todos eles integrados numa coletividade social, na qual
aprendem a estabelecer relações para posterior ingresso em grupos maiores, como
o do trabalho. O exemplo revela que um grupo pode ser constituído em função de
uma atividade construtiva, tanto quanto de uma atividade de vandalismo; tais
possibilidades demandam uma boa ou positiva presença de um adulto que
questione os jovens sobre suas atividades.
As questões que poderiam ser colocadas a partir da necessidade de um
adulto na relação com os adolescentes são: o jovem sempre necessitará da
presença de um adulto que sirva de modelo para a organização de suas condutas
internas? Ou, quando interioriza as condutas que contribuem para o
desenvolvimento social, é desnecessária a presença de um adulto? Ou, ainda, é
183
simplesmente natural que tais fatos aconteçam, devendo-se aceitar as situações de
grupos que se organizam com a intenção de ameaçar e destruir?
Os alunos desta turma de alunos não deixam de ter uma coerência interna,
uma cooperação articulada entre seus membros, só que não direcionada para a
autonomia moral, ou para ações que contribuam para a vida social de uma forma
colaborativa, uma vez que praticam uma ação de destruição de algo que é público,
que deveria estar em condições de uso para outros alunos que também utilizam o
mesmo espaço e classe num próximo turno de trabalho. Recortar situações como
essa e tomá-las na suas relações e implicações é outro desafio a ser estudado na
formação continuada do docente, uma vez que esse tipo de grupo, o que desagrega
as relações de cooperação pretendidas, se faz quase sempre presente no ambiente
escolar. É necessário tomar essa situação de conflito, de desajuste, e tratá-la como
um conteúdo de estudo junto aos professores, evitando as soluções simplificadas de
retaliação do aluno.
A essas idéias apresentadas se agrega a dos motivos que movem os
alunos em escolarização. Sabe-se que os alunos têm diferentes motivos para virem
à escola e nela permanecerem: uns por terem estabelecido para si metas de estudo
que incluem o sucesso acadêmico ou profissional, outros por se manterem, ainda,
submetidos ao desejo dos pais - para que cumpram uma escolarização completa,
aqueles que não têm interesse no aprender, vindo à escola tão-só para atender a
uma necessidade social, de relação com outros jovens de sua idade. Para alunos
com diferentes objetivos na escolarização, diferentes contextos e entendimentos
fazem-se necessários perante a tarefa escolar. Como ilustração trago um fragmento
de um texto de Machado de Assis, que refere os sentimentos de um aluno dentro de
uma sala de aula:
Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso,
ardia por andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos
outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas,
a fina flor do bairro e do gênero masculino. Para cúmulo de desespero, vi
através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do morro do
Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda
imensa, que bojava no ar, uma coisa soberba. E eu na escola, sentado,
pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos. – Fui um
bobo em vir, disse eu ao Raimundo. (MACHADO DE ASSIS, Conto na
Escola, 1896).
184
As situações restritivas, ou de excessiva permissividade, que não auxiliam
na construção da autonomia são muitas e de causas diversas; as aulas que não
atendem aos interesses de construção de conhecimento, pelos alunos, também têm
causas múltiplas e são recorrentes no contexto escolar. Os motivos que fazem o
sujeito querer participar de uma aula também são diversos, no entanto esse conjunto
de adversidades que dificultam a ação pedagógica são realidades que não têm o
status de hegemônicas - ainda bem. É na possibilidade de reversão desses
impedimentos que queremos crer. Mesmo em situações tão adversas como do
último quadro, e da situação relatada no texto que comenta o quadro 4.1.20, por
mais contraditório que possa parecer, é possível ver também a cooperação entre os
alunos, de forma incipiente, desorganizada e sem uma direção que leve à
cooperação social e aos ideais de cidadania pretendidos pelo processo de
escolarização. A cooperação está na forma como os alunos se organizam para
priorizar o gozo do seu prazer momentâneo, pela individuação egocêntrica de
sujeitos que agem em oposição à estrutura escolar que conhecem e rechaçam.
O próximo quadro traz situações recortadas do cotidiano escolar e que
esboçam a possibilidade de cooperação entre os alunos.
Quadro 4.1.21: A possibilidade de cooperação entre os alunos
Um grupo de alunos apresenta seu trabalho para os colegas. Prepararam o tema
tal como previamente combinado, isto é, sem apoio de papel e sem leitura. Eles começam a
apresentação e, com atenção, pode-se perceber o sistema de mútuo apoio por eles
montado. Cada um apresenta um tópico. Enquanto um está falando, outro colega do grupo,
próximo ao que fala, acompanha a apresentação, de forma que, de tempo em tempo,
"assopra" uma palavra que auxilia o colega que no momento apresenta o trabalho, o qual
retoma a dissertação sobre o tema. Esse lugar de apoio ao colega que está apresentando é
rotativo, todos passam pela função.
Ficaram sobre a mesa do professor vários livros para consulta, para quem quiser
utilizá-los. Gradativamente, os alunos vão pegando um livro para si. Um único menino
apanha quatro livros da mesa do professor de uma só vez, um para o trio onde trabalha,
outro para um colega que lhe pediu quando viu que ele estava indo até a mesa do professor
e os outros dois livros foram aleatoriamente distribuídos por onde passava. De livre vontade
prestou um auxílio aos colegas.
Um aluno que costuma brincar em aula anuncia para a turma toda que não tem
tabela para a prova. De imediato, o colega ao lado alcança a sua dizendo que ele pode ficar
com ela durante a prova, explica que tem duas tabelas disponíveis.
185
Os alunos escolhem uma estratégia de trabalho simples, mas que
demonstra uma combinação prévia e onde há uma ação de serviço ao outro.
A convivência diária parece acabar produzindo bons frutos. São situações
simples, não envolvendo diretamente o trabalho em conjunto, mas não deixam de
revelar a disposição do jovem para a cooperação e ajuda. As ações do quadro
acima não são resultantes de uma proposta do professor, são espontâneas.
Com relação ao conteúdo escolar, seria possível que os professores, de
forma mais constante, desafiassem os alunos a pensarem juntos? De os alunos
terem reais desafios cognitivos, que os colocassem diante de uma necessidade de
interação?
A procura constante dos alunos por estarem sentados juntos leva a que a
sala esteja sempre em constante movimento, com a modificação da configuração
dos grupos e a diversificação das relações dentro dum único período de aula.
Chama atenção a forma como eles se movimentam.
Quadro 4.1.22: Os grupos
Os alunos, no primeiro período da manhã, entram na sala e juntam as classes, que
estão colocadas em filas, para depois se sentarem. Pequenos grupos e duplas se formam.
Os grupos são formados sem a necessidade de um pedido ou permissão do
professor.
Os alunos não fazem pedidos uns aos outros para trabalharem juntos,
simplesmente se aproximam e ficam durante o tempo em que haja um interesse. Podem se
afastar para ir até outro grupo, às vezes levando a mesa.
Um menino que costuma estar num trio no fundo da sala, grupo que quase sempre
está com atividades e conversas diferentes das de aula, resolve sair do grupo. Vira-se para
a frente, abre seu livro e caderno e começar a trabalhar. Sai do grupo sem que os outros
dois apresentem qualquer argumento ou motivo para que permaneça com eles. Quando ele
passa a trabalhar, acompanhando a aula, a menina que está a sua frente vira-se e passam
a trabalhar juntos no exercício. Os grupos se reordenam constantemente. A brincadeira dos
dois alunos que agora ficaram atrás é de imitar com a mão uma arma, colocando-a ao lado
da cabeça como quem faz a brincadeira de roleta russa, encenam o tiro e batem com o livro
um na cabeça do outro. Eles estão isolados pelo resto do grupo e seguem se divertindo, tal
como outros alunos do fundo da sala.
A aula começa e o professor está tratando de um novo assunto. O grupo está
disperso, no entanto, à medida que começa a falar e trocar idéias com os alunos que estão
atentos à aula, outros começam a se aproximar e participar também. O professor, com sua
voz e tranqüilidade, conduz a que os alunos também diminuam suas inquietações. Até a
metade do período 80% dos alunos estão formando um único grupo, um único aglomerado
186
de classes muito junto ao lugar de onde o professor coordena a aula. As classes estão
todas muito próximas umas das outras, não há espaço para passar entre as carteiras.
O professor chega com alguns livros que servem de referência para o trabalho a ser
realizado; como não há livros para todos, eles se aproximam para partilhar a leitura. Alguns
estão em grupos de três ou quatro, outros em duplas, poucos alunos estão sozinhos. O
uso do livro não é coletivo, é individual; um de cada vez o abre e procura o que precisa nele,
cada um faz seu exercício individualmente.
Um menino tem sobre a sua classe um minitabuleiro de xadrez: enquanto realiza o
trabalho de aula, joga com o colega da frente. O da frente se vira, pensa e movimenta sua
peça, volta para a sua classe enquanto o outro agora joga. Essa não é uma atividade feita
às escondida do professor.
Os alunos estão se preparando para uma prova que acontecerá na próxima aula.
Alguns se dedicam ao estudo, retomam anotações, fazem perguntas uns para os outros ou
chamam o professor para explicar-lhes a matéria. Parece haver intenção de alguns em
aprender o conteúdo.
Os alunos estão resolvendo exercícios. O professor é chamado pelo orientador
educacional da escola, que veio até a porta requisitá-lo. Eles continuam no seu trabalho,
sem nada se alterar. Ninguém sai da sala. O professor fica ausente da sala por quase vinte
minutos.
Parece fazer parte da rotina escolar colocar a mochila na classe e arrastá-
las para perto do colega, mesmo que o colega escolhido esteja distante. Há um
movimento constante com as classes, uma "dança de classes", pois num mesmo
período eles juntam e separam as classes várias vezes, como se houvesse uma
combinação tácita de que, em alguns momentos, ficam juntos e conversam sobre
muitos assuntos e, em outros, em que devem resolver exercícios, ou se concentrar
na aula, no que o professor fala, separam as classes, voltando depois a se
aproximarem.
O fato de se aproximarem uns dos outros quase sempre possibilita uma
"leitura" do espaço físico da sala de aula, uma preferência natural pelo trabalho em
grupo. Não se pode desconsiderar que uma característica própria da adolescência
se expressa nesta observação, a da importância dispensada ao grupo, do estar num
grupo, uma peculiaridade que muitos professores desta turma toleram, ao passo que
outros exigem a formação de fileiras para a aula, muito embora, no final do período
desse professor, as fileiras já estejam bastante tortas, de forma que as classes não
estão unidas, mas muito próximas umas das outras.
O conteúdo dos dois últimos quadros leva à constatação de que na grande
maioria dos períodos de aula há uma permissão para os alunos estarem juntos,
187
sentarem-se próximos uns dos outros porque assim preferem. Fazem parte da
combinação professor-aluno certas concessões, sendo essa uma delas. Não foi
feita nenhuma observação pela pesquisadora, em seu diário, de um momento em
que o professor oriente a ação no interior do grupo e incentive a cooperação na
resolução dos trabalhos. Foi pouco aproveitada essa disposição dos alunos, de
quererem estar próximos uns dos outros para o uso de uma metodologia de trabalho
extremamente eficaz, especialmente na adolescência: a do trabalho em grupo. O
trabalho em grupo transcende a situação da proximidade física entre os alunos, é
preciso aprender estar e trabalhar em grupo.
Foi preciso olhar com atenção para o grupo para perceber uma harmonia na
aparente desordem. Entre eles as diferenças individuais são respeitadas, ninguém é
cobrado por estar junto com um ou outro colega, ninguém reclama o afastamento do
colega do grupo que quer ficar só ou trabalhar com outros colegas, o que facilita o ir
e vir entre eles.
Ainda pensando na consolidação interna do grupo, em vários momentos o
professor saiu da sala de aula, algumas vezes sem mesmo avisar os alunos, no
entanto eles permaneceram fazendo seu trabalho. Não houve uma corrida imediata
para as janelas ou corredor e ninguém gritou ou se exaltou como se estivessem
livres de uma forma de coerção externa. Eles permaneceram na mesma
movimentação que têm na presença do professor, ora trabalhando, ora conversando
e andando pela sala. Eles não se sentem coagidos pelo professor, têm espaço
suficiente para a conversação enquanto trabalham, ou, ainda, têm uma unidade de
grupo constituída que os leva a trabalhar independentemente da presença do
professor. Essa é uma situação a ser analisada como positiva na perspectiva da
cooperação e integração interna do grupo, tomado como um todo – o da sala de
aula. Esse trânsito livre para o ir e vir entre grupos menores, no respeito à atividade
que cada um esteja fazendo, de brincar, conversar ou trabalhar com o conteúdo da
aula, estampa um estádio de cooperação e solidariedade interna que provavelmente
foram construídas pelas circunstâncias de convivência diária. Não é visível, nesses
momentos, a ação do professor de incrementar e valorizar essa ação cooperativa e
de autonomia dos alunos, especialmente quando entre eles se ajudam na
conferência de resultados de um exercício.
188
Ainda cabe registrar que, mesmo os alunos estando agrupados, realizando
trabalhos individualmente e conferindo com os colegas o resultado final encontrado,
chamam com insistência o professor para olhar o trabalho de cada um. O professor
está todo tempo da aula atendendo aos grupos da sala.
Piaget diz que o adolescente vai gradativamente se libertando da excelência
da palavra adulta pela cooperação e crítica, que passa a exercer de forma cada vez
mais competente, opondo-se à intenção de coerção intelectual e moral do adulto,
que agora se mostra menos eficaz junto ao jovem.
Em contato informal com uma das professoras da Escola A, perguntei-lhe
sobre o fato de eles trabalharem sozinhos quando o professor sai da sala, e obtive
como resposta: "A turma é inquieta, é o jeito deles, andam pela sala, mas são
produtivos, gosto de dar aula para eles." Há uma colaboração interna instituída, o
que supõe sujeitos com um tanto de autonomia para o trabalho. Fica, no entanto, a
dúvida: professores e alunos se dão conta dessa situação construída e vivida?
É desejável que os protagonistas de uma relação, numa aula, sempre que
possível, mantenham o mútuo respeito. Aqui estão agrupadas situações de relação
entre professor e aluno nas quais a consideração pelo outro é mantida.
Quadro 4.1.23: As relações de respeito entre professor e aluno
Durante a apresentação um grupo é interrompido pelo professor, que solicita que
falem mais alto, com maior clareza, mais devagar, que corrijam sua postura para que a
emissão da voz ganhe volume e outras observações. Os alunos não apreciam as
intervenções e demonstram o incômodo com a interrupção da apresentação, de modo que,
após a terceira intervenção, o professor pergunta se querem continuar recebendo esse tipo
de ajuda. Eles respondem que não querem a intervenção do professor, que se desculpa e
diz que não mais vai interromper a apresentação.
Sempre que o professor vai fazer um comentário ou pedir esclarecimento, dirige-se
aos alunos utilizando expressões “com licença” e “por favor, me explica”, e agradece a
resposta do aluno.
O professor pergunta quem deu determinada resposta à questão que fizera. Um
colega que se senta ao lado se apressa a dizer: “Foi fulano!” O professor na frente de toda
turma elogia-o com entusiasmo.
No final da apresentação o professor faz os elogios cabíveis e comenta de forma
construtiva o trabalho dos alunos. Pede que os colegas também façam suas observações.
As meninas atendem ao pedido do professor e repetem umas às outras os mesmos
comentários, até que surge a palavra “estuprador”, que gera uma breve discussão em aula.
Alunos e professor participam ativamente e de forma integrada colocando em discussão
189
diferentes pontos de vista. O professor solicita a opinião dos alunos, todos estão voltados
para a discussão, participando ou escutando com atenção. O diálogo está estabelecido
num clima de mútuo respeito entre todos.
Antes de uma atividade de avaliação haviam sido colocadas no quadro, pelo
professor, as regras que deveriam ser atendidas, como horário de início e final da prova,
não-permissão de empréstimo de materiais, uso de caneta, as dúvidas deveriam ser
esclarecidas antes do início da prova, etc. Esse é um procedimento também utilizado por um
outro professor, na mesma situação de avaliação.
O professor desculpa-se perante a turma por uma tarefa que propôs de forma
indevida. Antes disso conversaram, ouviram-se mutuamente e se esclareceram as dúvidas.
Após um tempo, muitos alunos terminaram a prova, entregaram-na e aguardam em
seus lugares o horário estabelecido para sair da sala. Uma menina pergunta se podem sair
antes do combinado. O professor pede que aguardem mais alguns minutos. Em dado
momento ele comanda a saída em fileiras, pedindo que o façam de modo a não atrapalhar
os colegas que ainda trabalham. Os alunos saem conforme o combinado.
O professor entra em sala e logo elogia uma aluna da turma que passou com a
oitava classificação no Colégio Militar. Aproveita a oportunidade para incentivar os demais.
Fala que quer ver o nome deles numa lista de aprovados na federal do Rio Grande do Sul.
Eles acham graça, e ele confirma que sempre procura o nome dos seus alunos entre os
aprovados. Um aluno, em especial, que se senta no fundo da sala, até o final da aula, em
toda oportunidade que tem lembra e brinca, de forma positiva, com o fato de poder estar na
"lista da federal".
As situações de respeito aqui exemplificadas trazem consigo regras
claramente estabelecidas, presentes no contrato entre as partes, fato às vezes
esquecido na relação entre professor e aluno. A existência de regras estabelecidas
pela conversação é uma referência para o jovem para que possa agir considerando
o plano individual e o coletivo, simultaneamente.
É possível e necessária a convivência respeitosa entre alunos e professores,
sem que, por isso, haja uma confusão de papéis, isto é, existe uma proximidade
entre os dois ou múltiplos protagonistas de uma relação pedagógica, que se
colocam em reciprocidade de trocas sócio-morais e cognitivas, ao mesmo tempo em
que ficam visíveis o papel e a posição do professor e dos alunos. Lembremos que o
documento da escola - o PPP - expressa o desenvolvimento de valores, da
cidadania junto aos alunos, sendo uma tarefa do coletivo pedagógico, de todos os
professores.
A conversa do professor com os alunos, do último quadro, onde há o elogio
e reconhecimento ao esforço de uma aluna aprovada numa prova de seleção, é uma
aproximação positiva entre aluno e professor. A abordagem de satisfação do
professor parece ter servido de incentivo aos alunos da classe, foi um momento em
190
que os educandos estavam todos atentos e participando da conversa de
reconhecimento à colega, foram capazes de se ouvirem uns aos outros como um
único grupo. Muitos colegas expressaram sorrisos de satisfação, outros utilizaram
verbalizações do tipo “legal!”, e um terceiro grupo dirigiu o olhar para a colega com
mais atenção, como quem não soubesse que ela estava prestando provas em uma
outra escola. Essa foi uma oportuna abordagem do professor, de tomar uma
temática que traz em si um potencial positivo, de valoração, e a amplia no contexto
do grupo, dizendo que deseja ver mais alunos aprovados em provas seletivas, como
a do vestibular. Do fato decorreu a situação do aluno que segue mencionando, como
quem brinca, sobre a futura "lista da federal" onde pode estar o seu nome, como
quem se sente entusiasmado com a aprendizagem escolar, como se tivesse sido
estabelecido naquele momento um objetivo e significado para a escolarização. O
professor foi bem enfático ao dizer que queria ver o “nome deles na lista da federal”,
indicando com o dedo cada um dos alunos. Foi um reconhecimento ao valor de uma
aluna, simultâneo ao desafio de uma mesma possibilidade para os demais alunos.
O quadro abaixo traz algumas oportunidades em que pude perceber uma
situação de diálogo e incentivo pessoal aos alunos, muito similar ao quadro anterior,
estabelecido entre os alunos e seu professor. O conteúdo de aula foi
temporariamente interrompido para o estabelecimento de uma conversa, que tenta
possibilitar trocas de informações.
Quadro 4.1.24: O diálogo
O professor inicia a aula fazendo uma devolução oral da avaliação bimestral dos
alunos e um relato da reunião com os pais do dia anterior. Não é o professor coordenador
da turma, mas ele com freqüência conversa com a turma. Salienta a importância de os pais
terem vindo, faz uma lista nominal dos pais com quem teve o prazer de falar. Dá especial
ênfase às melhores notas de muitos alunos, segundo ele merecidas, mostrando o valor que
tinham, como alunos aplicados. Mais uma vez fala sobre os critérios de nota que adota.
Pede que incentivem os pais a virem à escola. Os alunos ouvem com atenção. Um deles,
que costuma conversar e está sempre disperso, vira-se para trás e diz: “Calem a boca!” No
momento ele se sente incomodado com a conversa e agitação do fundo da sala, onde
costuma estar. [Este é o professor 3, que em entrevista relata a necessidade sentida de
conversar com a turma, investigando a razão da não-participação do grupo, com resultado
positivo desta intervenção; é também o professor que elogia a aluna e incentiva a turma no
quadro anterior].
191
O tema da aula possibilita ao professor uma intervenção formativa. A partir do
conteúdo sugere que os alunos façam grupos de estudos, que se ajudem mutuamente, diz
que essa é uma forma de colaborarem com o professor. Sugere que digam: “Sei esta
matéria, quer que te ajude?” Acrescenta que o não conversar em aula assuntos paralelos e
não bagunçar também são formas de colaboração. Conclui dizendo que a turma toda perde
com os comportamentos inadequados para a aula; alerta que alguns podem até perder o
ano em função disso, o que seria uma lástima. Quase que a totalidade dos alunos escuta o
professor; estão atentos à aula que está centrada nele, mas não expressam entusiasmo
com a proposta de grupos de estudos, que foi pronunciada sem a pecha de um discurso
moralizador.
O diálogo estabeleceu-se em uma relação em que os sujeitos envolvidos,
professor e alunos, reconhecem alguns pontos nos quis estão em comum acordo; ao
serem elogiados, é depositado neles determinado “crédito” – fazendo uma analogia
às equações piagetianas co-valorativas, essas referentes às trocas sociais (PIAGET,
1965-1973); a esse crédito o professor tem como devolução uma segunda operação,
agora por parte dos alunos, que se mostram atentos e participam da conversação
estabelecida, numa relação social de “débito” sendo atendida; consideram-se
mutuamente ao se ouvirem uns aos outros, num sistema equilibrado de trocas e
possíveis alterações em ambos os sujeitos a partir da situação vivida. Essa relação
possibilita mudanças, um acréscimo qualitativo nas estruturas individuais a partir de
um sistema operatório estabelecido. Aqui se encontra a possibilidade de
desenvolvimento para o adolescente, de mudança perante o tão costumeiro
apontamento das faltas dos alunos, da sua inadequação com relação ao respeito no
interior da escola.
A possibilidade de tomada de consciência do aluno, de responsabilidade e
ciência sobre seus atos e participação em aula é resultante de um sistema interativo,
onde ele é considerado e desafiado com um sujeito constituído de valores e
possibilidades, como um ser cognoscente. É com a relação de reciprocidade
estabelecida que se torna possível a cooperação e autonomia do aluno. O
adolescente costuma participar de uma boa situação de aprendizagem. Para tanto,
é necessária estar garantida a interação entre professor-aluno e entre colega-
colega, além de existir uma boa situação de aula, o que implica a competência
didática e metodológica do professor, de saber questionar o aluno além de abordar
de forma investigativa o conteúdo em estudo.
192
O próximo quadro traz a observação de uma atitude “nova” no aluno: de
expressão de uma incipiente autonomia, vista na individuação das ações com os
colegas, com quem mantém uma reciprocidade de ações, e em oposição à relação
vertical e heterônoma que mantém com professor.
Quadro 4.1.25: Indícios de uma autonomia do aluno
Ao grupo que apresenta uma pesquisa realizada os colegas fazem perguntas
interessantes, oriundas da curiosidade pessoal sobre o tema, do tipo: “quando aconteceu tal
fato?”, ”quanto foi inventado tal aparelho?”.
Um professor costuma chegar nos grupos que resolvem exercícios mesmo sem ser
chamado e desafia os alunos dizendo não saber sobre o que estão fazendo: “Me
expliquem”, diz o professor. Alguns grupos levam na gozação, outros se empenham em
demonstrar ao professor o transcurso realizado na resolução da questão. Os alunos que
circulam pela sala, ao perceberem o momento de estudo, aproximam-se e acompanham por
cima da cabeça dos colegas o que está acontecendo.
Um grupo de três meninos sentados no fundo da sala faz da oportunidade de grupo
um momento de estudo. Percebe-se que estão lendo o livro à procura de soluções para as
perguntas que têm, indo além do solicitado pelo professor, que passa pelo grupo e diz que
não deviam ter feito a mais do que ele pediu. Esse grupo não chama o professor para
atendimentos personalizados como os outros grupos.
Um menino termina sua tarefa e vai conversar com o colega em outro canto da
sala. Percebendo que ele não concluiu a tarefa, passa a ajudá-lo, explica-lhe o exercício e,
após a tarefa feita, voltam a conversar sobre assuntos diferentes ao da aula.
Dois alunos estão sentados juntos, mas trabalham individualmente. Aquele que
193
quadro tentar a solução e teve ajuda do professor e grupo volta ao seu lugar satisfeito,
dizendo ter agora entendido.
As atividades de aprender configuram diferentes formas de organização da
aula, mais informal do que formal. São grupos que se aproximam e se desfazem;
são alunos que circulam e perguntam tanto ao professor como aos colegas; é um
ambiente informal de muitas conversas, brincadeiras, falas extraclasse enquanto o
professor vai atendendo individualmente os alunos. Existe, com certeza, um sistema
de regras estabelecidas, provavelmente de forma tácita, que não são reconhecidas
de imediato por quem observa, pois o ambiente "parece" estar desorganizado.
Com freqüência observam-se entre os alunos situações de camaradagem,
de empréstimo de material, de disposição em fazer algo pelo colega, o que permite
supor que existem requisitos suficientes para a construção de ações efetivamente
solidárias, cooperativas entre eles. Poucas vezes foi observada situação de ajuda
mútua para o estudo feitas de forma espontânea; quase sempre há uma solicitada
de um aluno para outro, ou da chamada pelo professor que acompanha o resultado
do trabalho.
Do último quadro, o grupo de três meninos que trabalham de forma
independente, os que realizam a atividade buscando informações no material
didático sem chamar o professor para conferência dos resultados, por várias vezes
chamou minha atenção. É um grupo que em repetidos períodos se mostrou mais
disponível aos colegas e à realização da tarefa; parece terem internalizado certa
responsabilidade e compromisso com seus estudos, independentemente de toda
agitação da sala. Costumam trabalhar em dupla ou em trio; o grupo não se altera,
mas, com freqüência, os alunos desse grupo se deslocam pela sala para conversar,
e, então prestar ajuda aos colegas, sob a forma de orientação. Eles primeiro fazem
a tarefa, estudam, pesquisam nas anotações do caderno, resolvem questões que
não foram anunciadas pelo professor, conversam e discutem sobre o conteúdo
escolar, sempre no mesmo grupo; depois, circulam entre os colegas. Os meninos
desse grupo têm um bom relacionamento com os colegas, sendo um deles indicado
por dois professores como aluno autônomo e responsável, em razão de fatores
familiares, de "[…] ter uma estrutura em casa que o apóia e por ser um esportista,
disciplinado" (entrevista com Professor 2 da Escola A). O aluno em questão
194
compete por um clube da cidade na modalidade de natação, treinando quase todas
as tardes. Há na sala outro aluno que também compete no circuito de futebol de
salão, no entanto, mesmo sendo bem recebido pelos colegas da sala, em especial
por um grupo que poderia se dizer "ala mais organizada e estudiosa da sala", é
evidente sua timidez, pois é calado, retraído, observa de longe muitas situações, ao
passo que o outro participa do que acontece; o mais tímido senta-se na primeira fila,
o comunicativo, no fundo da sala e é chamado pelos colegas.
Os professores que circulam na sala para atender aos grupos que
trabalham, ou melhor, aos alunos que estão sentados juntos e que questionam a
partir das dúvidas, estão possibilitando a vivência da cooperação num estádio inicial,
ainda incipiente. A dinâmica dos alunos em atividade deixa transparecer que são
capazes de trabalhar de forma autônoma, ao seu modo, em sua classe e sozinhos,
e, em algumas oportunidades, com o colega. No entanto, na grande maioria das
vezes ainda fazem um chamamento ao professor, para que ele confira o resultado,
como uma confirmação heterônoma dum resultado certo, sobre um saber igual para
todos. É necessário que o professor perceba esse processo de retroalimentação, de
o exercício ser dado e conferido pelo professor, de uma ação ser controlada pelo
conhecimento do efeito de sua resposta, como um movimento que sempre ratifica a
dependência do aluno para com o professor. Seria oportuna a existência de um
espaço com diferentes respostas a serem apresentadas para o grupo,
acompanhadas dos argumentos que conduziram à determinada lógica, espaços
onde vários percursos poderiam ser validados, de forma a desconfigurar a idéia de
somente uma resposta certa, a que é homologada pelo professor. Talvez fosse
essa a estratégia pedagógica que facilitaria a aprendizagem do trabalho em
cooperação, de uns com os outros, e não de sujeitos que trabalham individualmente
enquanto sentados num mesmo grupo, tal como se observa com regularidade.
A presença do bom professor é importante junto aos alunos. É ele quem
auxilia na organização de uma dinâmica interna em cada grupo, posicionando-se
como um adulto perante os adolescentes, com posturas seguras, justificadas e
discutidas com o grupo. Na existência de impasses, o professor pode
temporariamente se ausentar, depois, se necessário, interferir diretamente ou de
modo que os alunos encontrem uma solução que seja a melhor para o coletivo dos
alunos. A conduta pessoal e a personalidade do professor fazem-se presentes e
195
atuantes frente aos alunos, diz Tânia Marques (2005) em sua tese de doutorado, o
que justifica e imprime importância à permanente formação docente e a que faz junto
ao aluno, pois não há ensino de qualidade sem uma adequada formação docente, e,
acrescento, a convivência com um docente que expresse em ações valores morais
cooperativos e de autonomia.
O primeiro recorte exposto no quadro em discussão, dos alunos que fazem
perguntas aos colegas depois da apresentação de um trabalho, está a indicar uma
movimentação, uma dinamicidade nos papéis no interior da aula. As questões foram
dirigidas aos colegas, a atribuição de saber está descolada da figura do professor
naquele momento. Os alunos que ganham espaço de expressão e autoconfiança
em situações como essa podem ser os mesmos que atribuem autonomia ao seu
processo de “aprender a aprender”, feito a partir de experiências próprias, vividas no
coletivo da aula.
O professor que desafia os alunos a explicarem como trabalharam, como
pensaram ou o porquê de terem feito de determinada maneira seu exercício, está
possibilitando ao aluno pensar duas vezes sobre o conteúdo da aula, fato que
direciona à tomada de consciência do aluno, à aprendizagem em sentido lato, o que
realmente dá autoria e autonomia ao aluno quanto ao seu aprender conceitual e
procedimental.
Os alunos que se aproximam dos grupos onde uma explicação ou resolução
de tarefa está sendo encaminhada, geralmente com o professor presente, parecem
se “contentar” com o processo de aprendizagem e interação que ali ocorre. Os que
circundam a discussão e observam já não pedem que o professor vá lhes dizer ou
explicar de forma personalizada e individualizada a mesma situação; retiram da
experiência alheia a informação que lhes falta, compreendem a partir de uma
experiência observada, o que sugere a existência de estruturas lógico-formais.
O quadro abaixo contém recortes onde a presença do professor se revelou
de forma positiva perante os alunos, às vezes mostrando um limite; um limite que o
faz lembrar que a ação de cada um repercute no coletivo, situação a ser considerada
no contexto social da aula, onde o aprender com os outros, em interação, é a
proposta pedagógica para o desenvolvimento.
196
Quadro 4.1.26: A presença do professor
Dois alunos que costumam liderar as ações dispersivas da aula vão até o quadro,
pegam o giz e com seus corpos fazem uma barreira para esconder o que estão escrevendo.
Eles se empurram e riem, numa grande brincadeira. Uma colega que observa diz alto: "Vão
explicar?" O professor, que havia visto o que faziam, mas não havia intervindo acata a idéia
da aluna e diz: "Isso aí, quero ouvir a explicação", e senta-se na classe de um deles dizendo
que é um aluno no momento. Um dos meninos fica envergonhado e quer voltar para o
fundo da sala; o outro segura o colega pelo braço, e começa um novo jogo de empurra e
puxa em meio a risadas dos dois. O professor sente a necessidade de intervir e o faz, vai
até a frente, coloca os alunos de lado, passa a ser ele quem dirige a resolução do exercício
com a participação de muitos outros alunos da sala. Quando a tarefa está encerrada, eles
voltam para suas classes acabrunhados.
Um aluno levanta-se de sua classe e vai até a persiana para fechá-la, pois há
reflexo no quadro e ele não consegue copiar o texto que o professor escreve. A aula está
tão em silêncio que se pode ouvir o barulho de fora da sala, fato raro. Dois outros meninos,
do outro canto da sala, levantam-se para irem também mexer na persiana. O professor põe-
se frente a eles e manda que voltem para seus lugares de forma tranqüila. Eles insistem e
dizem que querem ajudar: “Olha ali, queremos arrumar o que ele não consegue”, Pela forma
como justificam e se portam percebe-se que querem distrair a atenção da turma toda,
fazendo-se centro da atenção. Eles insistem por um tempo, o professor se mostrou firme,
afirmando sua ordem de que voltassem para seus lugares. O professor vai até a persiana e
verifica que está estragada, não há como mexer, o fio está enroscando num lugar muito alto,
de impossível acesso sem uma escada. Sugere ao aluno que não enxerga no quadro que
se sente em outra classe; segue passando o texto no quadro e a turma volta a trabalhar.
Todos estão trabalhando, no entanto, quando o quadro está cheio e é preciso apagá-lo para
continuar o texto, o professor não mais escreve onde bate reflexo; escreve do meio para o
canto direito, deixando sem texto o local onde os alunos têm dificuldade para enxergar.
O professor, num dos recortes do quadro acima, deixa a situação acontecer
para ver o que os alunos são capazes de produzir; com a inexistência de uma
atitude de aprendizagem desses, interveio resgatando a participação dos demais
alunos. Sem a necessidade de chamar a atenção, ou de maiores constrangimentos,
fez com que os alunos se centrassem sobre uma tarefa de aula, de forma que,
aqueles que propuseram uma situação de brincadeira foram imediatamente
desprestigiados pelo grupo, voltaram aos seus lugares e acompanharam a aula dali
para frente. Na outra situação o professor claramente faz uma demarcação de
limite, dizendo que voltem se sentem em seus lugares, que ela vai encaminhar a
situação de brilho no quadro em função da persiana que não fecha. Sua atitude é
firme sem ser autoritária; os demais alunos não se dispersam com o ocorrido, de
forma que todos se mantêm vinculados à ação do professor; em seguida, quando
volta a ocupar o quadro-verde, leva em consideração a luminosidade no quadro e,
em atitude de respeito aos alunos, não usa determinada parte do mesmo.
197
As duas situações comentadas fazem revalidar a importância do professor
em sala de aula. Ele não pode ser uma figura opaca, que se mescla aos alunos de
forma amalgamada, numa falsa idéia de igualdade e responsabilidades indistintas.
A autonomia do aluno se constrói na relação com adultos que dispensam respeito e
reciprocidade ao jovem, não pela ausência e permissividades, situações estranhas à
relação cooperativa de uma aula.
Assim ficou registrado nos quadros um pouco do que foi observado no
interior das aulas, donde emerge o material para a construção do estudo de caso da
Escola A. Segue a retomada do conjunto de informações considerando a terceira e a
quarta categoria de análise, indicadas no capítulo da metodologia.
A terceira categoria de análise, apresentada sob a forma da figura 3.3.2 na
metodologia deste trabalho, diz respeito à relação de cooperação entre aluno-aluno
(A-A) e aluno-professor (P-A, A-P).
A cooperação instituída entre aluno-aluno na Escola A, especialmente no
interior de uma turma de oitava série, é a que atende às necessidades imediatas do
grupo de alunos, motivada pela simpatia ou por conversas interessantes que os
aproximam. A cooperação instala-se rapidamente diante de uma oportunidade que
pareça ser oportuna no momento, quando, de forma tácita e imediata, quase que
todos se manifestam para cancelar uma aula. Estão quase sempre com as classes
agrupadas, muitos próximos, interagindo, trocando idéias diversas e materiais, mas
trabalhando individualmente. Cada aluno faz seu trabalho e chamam o professor
quando necessário, especialmente para verificar o resultado do trabalho. Em
algumas oportunidades conferem com o colega a resposta final do trabalho feito
individualmente, não têm o hábito ou a prática da ação em co-operação com o
colega.
A característica de individuação na realização dos trabalhos de aula foi
considerada interessante e nova na medida em que revela um "desprendimento" do
aluno da figura do professor, numa direção à autonomia do fazer e aprender, mas
seu oposto também se manifesta na situação de chamar o professor para o
veredicto sobre um acerto ou erro. O professor não se opõe a seguir atendendo a
198
esses chamados, de forma que reforça a posição heterônoma do aluno com relação
a sua pessoa e à verticalização do saber.
Com relação à co-operação no interior de uma aula, não há movimentos de
ações espontâneas de ajuda mútua para o aprendizado, que ocorre pela interação.
Em poucas oportunidades os alunos foram chamados a participar de forma integrada
de uma situação que transcendesse o espaço físico da sala de aula, ou que os
desafiasse a trabalharem realmente juntos, onde a atividade de um implica a
atividade do outro, de forma a pensarem juntos sobre o conteúdo de aprendizagem.
Poucas vezes houve uma discussão a partir da realidade social, econômica e
política junto aos alunos que os colocasse em confronto com diferentes pontos de
vista, que os forçasse à descentração necessária ao desenvolvimento da autonomia
e cidadania, prevista no PPP da escola e já reconhecida como de importância pelo
professor em situação de entrevista.
A cooperação instituída entre aluno e professor e vice-versa está
diretamente relacionada à postura do professor junto aos alunos. Os docentes que
mantêm uma relação de respeito e confiança com os alunos, sendo mais flexíveis
quanto aos agrupamentos pedidos pelos alunos, ao mesmo tempo em que são
coerentes com o seu compromisso de professor, obtêm respostas mais positivas
junto aos alunos desta classe. Essa não é uma constatação nova, no entanto a
perspectiva do professor sobre o espaço de construção da autonomia dos alunos,
buscada neste trabalho, é o fato que pode caracterizar um fato novo nessa
complexa relação professor-aluno.
Nas entrevistas os professores dizem que a autonomia é a individuação de
ações, fato facilmente observado nos alunos; dizem também que é uma postura que
exige compromisso social, de responsabilidade com o coletivo e participação
recíproca. Essa dimensão da autonomia, contudo, não é trabalhada por eles dentro
da sala de aula, pois não há propostas de atividades que os desafiem a trabalhar
como grupo, um na dependência do outro, com objetivos e interesses comuns; a
conduta mais comum dos alunos é de agrupamentos, aqui entendida como a
condição de estar reunido, um aglomerado com poucas relações internas de mútua
dependência e co-operações.
199
Se os professores vêem como relevante o desenvolvimento da autonomia
nos alunos, para que se tornem mais humanos, como dito na entrevista, deveriam,
então, estar empreendendo mais ações na sala de aula que objetivassem tal
realização. Os diálogos acolhedores e que rompem com a regularidade de um
programa impregnado de conteúdos preestabelecidos a ser cumprido em
determinado tempo - do número de períodos que cada componente curricular dispõe
-, como também as oportunidades de ouvir os alunos e possibilitar que se ouçam de
forma reflexiva foram observados, pela pesquisadora, em situações esparsas,
circunstâncias que inviabilizam uma mais dinâmica e eficaz instalação no grupo de
condutas cooperativas, reflexivas e autônomas.
Mesmo frente a essa situação de frágil presença de autonomia nos alunos,
na perspectiva docente, quero posicionar-me de forma positiva diante do fato. É
necessário que esses dados de pesquisa sejam tomados pelo coletivo dos
professores e sirvam de alavanca para uma tomada de consciência com relação aos
objetivos formativos da escola; que possibilitem o surgimento de um simultâneo
espaço de autonomia discente e docente; e ainda, em especial, para que os
professores se reúnam para estudar e planejar em co-operação. Além disso, um
segundo fato, de igual relevância, observado é que os alunos e professores trazem,
mesclados em sua rotina escolar, indícios de autonomia, de cooperação e
solidariedade, nem sempre observados pelos mesmos. Existem no interior da
escola professores que possibilitam espaço para a autonomia do aluno, sem, terem,
contudo, tomado consciência de sua ação, presença e importância junto aos alunos.
A quarta categoria de análise é a da relação de coação entre aluno-aluno e
aluno-professor.
A coação entre aluno-aluno faz-se pela delação, sem que esta tenha um
valor de chamada a qualquer tipo de justiça. Ela acontece como uma forma de
manutenção da relação entre os colegas, que apontam falhas uns dos outros sem a
existência de ressentimentos ou intenção de excluir o colega do convívio do grupo.
A coação do professor para com o aluno parece ter a intenção de
manutenção de um ideal pedagógico, de permanência do respeito e obediência
incondicional por parte do aluno, que faz desvelar a manutenção da relação
200
heterônoma. Envolve a representação de um aluno comportado, dócil, estudioso e
que reconhece os valores do professor, aluno que provavelmente transita no ideário
do professor.
Os professores que se apresentavam aos alunos de forma mais respeitosa
junto aos alunos quase não utilizam ações restritivas no desenvolvimento das aulas
observadas. Mesmo que os alunos ainda respondam e até chamem, em
determinados momentos, pela relação verticalizada e heterônoma do professor, essa
não é uma situação constante na aula, é oscilante; parece estar em transição para
uma sempre crescente possibilidade de autonomia, de relações reguladas pela
reciprocidade de ações que transitam entre os sujeitos, “ordenando” a liberdade de
cada um, assim como as individualidades que ganham espaços na exata medida de
um coletivo que passa a co-operar na ação de grupo.
Os professores que seguem se apresentando como uma autoridade diante
dos alunos são por esses desafiados de forma camuflada e constante. Prevalece a
regra restritiva, um regramento que utiliza a perspectiva durkheimiana, de ser
imposta ao aluno como um valor social a ser incorporado, aprendido pela força do
hábito, da coação, a qual esse grupo de alunos observado se mostra refratário,
indiferente à suposta autoridade docente.
Assim, temporariamente, fecho as observações relativas ao estudo de caso
da Escola A.
4.2 ESCOLA B
O segundo caso, da Escola B, passa a ser apresentado e discutido. Traz os
dados colhidos junto ao Projeto Político-Pedagógico da Escola (PPP) e as
entrevistas do supervisor escolar, dos professores em atividade e dos aposentados.
Tal como na Escola A, começamos pelo Projeto Político-Pedagógico da
escola, discutido nos tópicos que dizem respeito ao tema deste trabalho, nas
referências que faz quanto ao desenvolvimento de autonomia dos alunos e a outros
valores que dizem respeito à formação do aluno em seu aspecto sócio-moral.
201
O Projeto Político-Pedagógico (PPP) da Escola B foi elaborado na data de
fundação da escola, 1964. No intervalo de tempo de sua primeira organização até a
presente data (2005), o PPP foi colocado em discussão em reunião de professores
em diversas oportunidades, segundo o supervisor escolar, concluindo-se pela
permanente atualidade, de forma que mínimas alterações foram feitas. Para garantir
essa posição dos docentes da Escola B, o grupo administrativo da escola solicitou a
uma equipe da UFRGS, em 1995, e, depois, a uma equipe da PUC-RS, em 1999,
que o analisassem, sob forma de uma assessoria à escola sobre a atualidade do
PPP da escola. O documento foi ratificado em sua essência e os paradigmas nele
presentes foram considerados apropriados. As instituições que leram o plano
fizeram, ao final do seu parecer, um elogio à escola quanto ao seu documento
pedagógico principal.
O PPP da Escola B constitui-se de quatorze títulos.
4.2.1: Títulos do PPP da Escola B
1- Identificação
2- Justificativa
3- Caracterização do Contexto Social
4- Fundamentação Filosófica
5- Fundamentação Pedagógica: concepção de educação, concepção de escola,
concepção de currículo, concepção de ensino, concepção de aprendizagem, metodologia e
avaliação
6- Fundamentação de Desenvolvimento do Processo Cognitivo – Construtivismo
Interacionista de Jean Piaget
7- Características Essenciais do Aluno
8- Características Essenciais do Educador
9- Papel da Família
10- Papel dos Serviços e Instituições da Escola
11- Avaliação da Proposta Pedagógica
12- Objetivo Geral da Escola
13- Meta Geral
14- Bibliografia
Feita a "Identificação" da Escola B, primeiro título, no título dois, da
"Justificativa", há um compromisso com a educação, entendida como um processo
202
científico, intencional, formal, planejável, controlável e avaliável. O PPP, neste título,
salienta a necessidade de ser respeitada a especificidade do ato educativo no que
tange a sua progressividade. Reconhece a particularidade da ação didática de cada
professor, porém refere que esse profissional deve vincular-se a crenças
pedagógicas comuns, que são patrimônio e compromisso coletivo desta escola, de
ser uma escola comunitária e construtivista.
No título três, da "Caracterização do Contexto Social", há uma análise do
contexto das realidades social e política brasileira. Está dito que a função da escola
é preparar alunos que lutem contra as limitações sociais, políticas, econômicas e
preconceituosas da sociedade, esta última caracterizada pelo conjunto de avanços
tecnológicos e científicos representados pela ciência produzida pelo homem, que
apresenta carências diversas, como de responsabilidades cívicas, de justiça, de
cidadania e solidariedade humana.
Tendo analisado o contexto social contemporâneo, a Escola B alicerça sua
"Fundamentação Filosófica" no título quatro, dizendo:
Quadro 4.2.2: Fundamentação filosófica da Escola B
Identifica-se com a tendência pedagógica crítico-libertadora, que privilegia o
conteúdo científico que seja significativo, que responda ao homem em sua dimensão
histórica, mas o projete para o futuro; que dê ao homem a possibilidade de construir projetos
onde possa ser dono do seu destino, sem ser dominado por conceitos ou dogmas, onde seu
agir seja um agir consciente, com base na realidade.
A "Fundamentação Filosófica" prioriza um ser humano em processo de
formação, representa uma concepção histórico-crítica, pois está atenta à
historicidade do ser humano e à sua bagagem de autonomia, racionalidade e
consciência social, para, assim, participar de um projeto social coletivo e solidário.
O PPP segue apresentando seus alicerces, comprometendo-se com a
formação de um sujeito de consciência crítica, com ativa participação grupal,
vivificada pela ação pedagógica da escola, para que o aluno não se constitua de
forma egoísta, mas com os outros e com o mundo, e que não seja um ser de teorias,
mas tenha uma participação prática e ética na sociedade.
203
O título seguinte do PPP é a "Fundamentação Pedagógica", na qual
expressa um repúdio ao modelo de escola tradicional, de transmissão de saberes. A
tendência pedagógica assumida e anunciada é a crítica. Toma como base os textos
de Paulo Freire e Mikhail Bakhtin
56
. A educação pretendida pela Escola B é a que
busca efetivamente contribuir na formação do aluno, para que tome consciência de
suas "humanidades" e se comprometa com o desenvolvimento máximo das suas
potencialidades, sendo um sujeito livre, consciente e atuante.
No mesmo título cinco há duas citações com referência ao desenvolvimento
da autonomia do aluno:
Quadro 4.2.3: Fundamentação pedagógica da Escola B
[educação é um] processo voltado pra a construção da autonomia do indivíduo,
tendo em vista a vivência democrática;
Tem como tarefa essencial o desenvolvimento do raciocínio, o exercício do
pensamento reflexivo – crítico, condições fundamentais para que o homem chegue à
autonomia intelectual e moral.
Com relação ao Currículo, tema implicado com a "Fundamentação
Pedagógica", diz o documento que esse deve estar a serviço da conscientização e
da libertação do indivíduo, de forma a contemplar o desenvolvimento da autonomia
intelectual e moral do aluno.
Quando o PPP se posiciona com relação ao ensino, utiliza o referencial
piagetiano e freiriano de a ação ser condição para a aprendizagem, e o conflito e a
problematização da realidade, conteúdos de estudo, assim como apresenta o
diálogo como uma condição às relações de troca entre professor-aluno no interior
dos grupos. O ensino deve priorizar ações que atendam à cooperação, à
organização didático-pedagógica e à investigação conjunta de professores e alunos
sobre os temas de estudo, numa unidade processual. Por fim, a expressão
56
Mikail Bakhtin (1895-1975). Renova os estudos lingüísticos e literários tão logo sua obra seja
difundida no ocidente após a década de 1970. Estuda a cultura popular medieval, o romance
moderno e em especial a obra de Dostoiéviski, e estabelece relações com a contemporaneidade a
partir do que chama de dialogismo. Diz do princípio de que todo enunciado lingüístico se fundamenta
no diálogo com outros enunciados.
204
"aprender a aprender" também faz parte do documento, como condição para o
desenvolvimento da inteligência do aluno.
O pensamento piagetiano está presente no subtítulo “Aprendizagem”, ainda
dentro do título cinco, onde o nome de Jean Piaget é citado várias vezes. O
documento diz em determinado ponto que seu marco teórico da escola é a Teoria da
Epistemologia Genética Piagetiana.
O PPP desta escola refere o uso de uma metodologia didática a ser
utilizada pelo professor, que priorize a ação do aluno e do trabalho em equipe, essas
duas eficazes estratégias de ensino, como também facilitadoras da socialização, isto
é, da partilha de idéias, informações, responsabilidades e decisões entre os alunos
que aprendem a cooperar sem discriminar.
O título seis do PPP, a "Fundamentação do Desenvolvimento do Processo
Cognitivo", é todo construído a partir da Epistemologia Genética de Jean Piaget.
São apresentados os estádios de desenvolvimento, os princípios construtivistas, os
fatores de desenvolvimento e, por fim, uma parte específica ao desenvolvimento
moral, onde brevemente se enumeram as etapas da anomia, da heteronomia e da
autonomia moral. O texto diz que é preciso estudar cientificamente o processo de
aprendizagem, razão por que essa teoria está situada dentro do projeto da escola.
As características buscadas para o educando em formação são: sujeito
crítico, reflexivo, confiante, criativo, autônomo, solidário, e que, ainda, esteja
comprometido com a transformação pessoal e da sociedade. Por sua vez, as
características do educador da escola são de que tenha a competência técnica para
a função, que seja hábil nas relações interpessoais, ético, afetivo, responsável,
participante das ações na escola junto aos alunos, solidário, estudioso e tenha
autonomia intelectual.
E o último título trazido para este trabalho é o dos "Objetivos Gerais da
Escola", que diz em sua íntegra:
4.2.4: Objetivo geral da Escola B
Educar para a: responsabilidade; liberdade; trabalho; solidariedade; valorização da
vida.
205
Nesse objetivo da escola está expressa a preocupação com a formação
humana do seu aluno, com muito mais ênfase do que o acúmulo de informações
conceituais a serem memorizadas.
Desse conjunto de idéias retiradas do PPP da Escola B, podemos visualizá-
la como um educandário que pretende manter permanente atividade reflexiva e
crítica dos professores e alunos, dando significativa relevância aos valores humanos.
É uma escola que tem a peculiaridade de ser comunitária, que tem os pais dos
alunos presentes nos processos deliberativos da escola e na co-responsabilidade do
processo educativo. A opção teórica é o construtivismo, utilizando os estudos de
Jean Piaget para estabelecer marcos conceituais.
A autonomia está literalmente expressa como intenção na formação do
aluno; é uma autonomia que tem a conceituação piagetiana, isto é, que abrange a
dimensão lógica e moral, além da necessidade de ricas e positivas relações sociais,
de vivência grupal, para seu aprimoramento.
Outra referência teórica é a do educador Paulo Freire, que faz sua aparição
no texto pela importância da dialogicidade e de consciência crítica, a ser construída
no embate constante com a realidade.
Feita a busca no PPP da Escola B quanto ao seu compromisso com o
desenvolvimento da autonomia no aluno, busquemos a participação dos professores
sobre a importância dispensada ao tema da autonomia na sua ação pedagógica.
A primeira entrevista é do supervisor escolar, que apresenta a Escola B em
sua totalidade, em seu funcionamento macro.
Quadro 4.2.5: Entrevista com o supervisor escolar da Escola B
Quando entrei aqui, ouvia dizer que esta era uma "escola de SOE": tudo era
resolvido por ele, dando toda atenção ao aluno. Hoje está diferente, temos uma equipe com
pessoas com formação específica para a função, o SOE e a SE trabalham juntos.
A escola tem a autonomia como um foco de trabalho. Os quatro pilares da
formação são: liberdade, trabalho, solidariedade e responsabilidade. O próprio cotidiano da
206
escola exige que o professor tenha muita autonomia na condução de projetos por eles
criados.
Trabalhamos em conjunto na escola, Inclusive, no final de cada ano os professores
se avaliam quanto a sua competência técnica, a sua postura relacional e responsabilidade
administrativa. Esta última é a responsabilidade do professor com os prazos, as datas, de
atender às responsabilidades que lhe cabe.
O estudo em grupo foi mais forte na escola. Ontem mesmo, quando estávamos
reunidos com os professores falávamos sobre a necessidade de organizar o estudo, a
discussão, levantar novas estratégias de trabalho, não perder a formação de valores no
interior da escola, que já foi muito forte aqui.
As reuniões pedagógicas acontecem semanalmente e são diversificadas; podem
atender a uma série; outras, são para organizar o pré-conselho, reunião onde fizemos pauta
aberta para discutir as coisas que circulam na escola, reuniões onde se faz a passagem da
turma de uma série para outra, vendo as características e as dificuldades dos alunos.
Nessas reuniões, à medida que as dificuldades vão aparecendo, são imediatamente
trabalhadas no coletivo dos professores. Às vezes o professor usa esse espaço de reunião
para uma catarse, e isso é importante porque as coisas passam a ser ditas. É importante
um espaço de fala para o professor, caso contrário fica só na sala dos professores e não
resolve dentro do plano pedagógico da escola.
Algumas vezes já trabalhamos com a questão dos alunos com necessidades
educacionais especiais, vieram pessoas convidadas pela escola para falar com os
professores. Já houve uma quebra daquela situação de proteger esse aluno por ser
"coitadinho". Ele é tratado com certa especificidade pelos professores, e os colegas também
são muito solícitos a essas questões. Temos vários casos na escola.
A escola tem uma estrutura para acompanhar o trabalho do aluno e favorecer o
contato dos setores, professores, alunos e família. Funciona através de um coordenador
por série, que tem encontros muito freqüentes com o SOE, a supervisão escolar, os alunos
e as famílias. O professor tem uma carga horária específica para fazer este trabalho.
Temos um único coordenador para a 7ª e 8ª séries e para a 5ª e 6ª séries. Assim é possível
acompanhar melhor o aluno e vemos as coisas acontecendo mais no conjunto dessas duas
séries. O professor coordenador tem a função de ser um apoio, um recurso para os outros
professores da série. Eles fazem um levantamento das dificuldades, uma lincagem mais
direta das necessidades imediatas dos alunos, sobre as posturas em aula, a falta de
compromisso com o estudo, etc. Tem muita coisa que o próprio coordenador decide; outras
ele traz para o SE e para o SOE.
Quando acontecem situações mais complexas, o caso vem para mim, de imediato
chamo o SOE. Vemos a situação no conjunto. Por exemplo, tivemos a situação de troca de
um professor nesta turma observada por você. Os alunos estavam se mostrando
resistentes ao novo professor, não o aceitando, embora não tivessem grande simpatia com
o anterior. O professor novo passou por uma série de dificuldades. Chamamos o professor
e conversamos. Percebemos que o professor estava querendo trabalhar, bem como a
escola acordou com ele, porém os alunos não estavam querendo sair do lugar mais
cômodo, de um simples ouvinte; o outro professor anterior não usava uma metodologia
ativa, de participação do aluno. Combinamos, então, com o professor, que chegaríamos à
nova proposta devagar. Quanto à relação dos alunos com o professor, entrou em ação o
SOE, que percebeu o jogo de "quebra-de-braço" que estavam fazendo alunos e professor.
Foram orientados tanto o professor com a turma, em repetidas conversas, ora em grupo, ora
em grupos separados. Bom, é assim que a gente trabalha, em conjunto.
O trabalho dos conteúdos é pensado em duas dimensões: alguns envolvem a
escola toda; outra é quando os professores de uma mesma série trabalham conteúdos
207
próximos. Fazem seminário, debates, apresentam o trabalho para outras turmas, recebem
palestrantes. Assim os temas vão sendo transversalizados pela escola e turmas.
Eu acho que a cooperação circula nesse espaço, nessa ajuda, nesse fazer junto
com os outros. Respeitando o jeito de cada professor ser, mais dinâmico ou de preferir
outro tipo de atividades, mais interna à sala de aula. Autonomia é um espaço de liberdade,
e nesse espaço circulam muitas coisas, o aspecto social e de grupo, uma postura pessoal
interna, determinação, confiança.
Os alunos têm o espaço do Grêmio Estudantil, eles fazem reunião semanal com o
SOE. Desenvolvem uma série de atividades e projetos, colocaram som nos recreios -
criaram a rádio da escola - trazem bandas para tocar, fazem gincanas. No momento estão
planejando uma gincana com os alunos menores, que envolva dormir na escola. É um
espaço de autonomia, embora veja que elas poderiam fazer muito mais, mas a ação deles
está crescendo. As campanhas, por exemplo, ainda ficam no plano assistencial, de juntar
coisas para dar, especialmente para a manutenção da creche do bairro mantida pela escola.
No ano passado fizeram uma campanha de livros e inauguraram uma biblioteca num bairro
pobre da cidade. Alguns alunos da escola pertencem a movimentos de voluntariado social.
O nosso aluno é crítico, independente, se diferencia dos demais, nos dizem as
pessoas que os recebem nas universidades.
Trabalhar a criticidade com o aluno é difícil para o professor, porque há retorno
constante do que o professor está fazendo, da sua postura e do que está dizendo para os
alunos. O perfil do professor desta escola tem que fechar com essa necessidade e jeito de
trabalhar, de também se posicionar, ser crítico e ter vez e voz tanto quanto o aluno. Os
alunos aceitam o limite que às vezes se faz necessário, mas tem que explicar
detalhadamente, mesmo na turma dos alunos finalistas. É preciso entrar na sala,
interromper a aula de um professor e conversar, sem receio de dizer e também ouvir. Os
alunos, muitas vezes, nos colocam em situações complicadas, mas esse é o processo da
escola.
Eu aprendi muito aqui, principalmente de deixar os alunos dizer o que pensam e
mostrar o que são.
No caso da Escola B parece haver uma preservação do grupo docente
através das reuniões pedagógicas semanais. A articulação entre o Serviço de
Orientação e o de Supervisão Escolar dinamiza e unifica a ação de suporte ao
professor, ao agir de forma integrada e imediata ao fato ocorrido.
A existência de um professor coordenador nas turmas, com função
deliberativa junto aos pais e alunos - e não somente de informante -, faz o coletivo
de docentes se implicar na ação formativa da escola. É preciso olhar o aluno, as
relações que se estabelecem para uma ação imediata, não somente o andamento
de um conteúdo planejado.
Os professores são chamados a uma avaliação anual, que retoma a eficácia
da atividade docente e o atendimento dos objetivos da escola. Também mencionam
208
a vontade de terem mais encontros de estudo, pelo fato de a escola ter essa marca
em seu passado não tão distante.
A autonomia é lembrada como uma dupla possibilidade "do fazer" do
professor enquanto um profissional que tem responsabilidades de metas e prazos; e
a dimensão moral, de a autonomia ser um espaço de liberdade, o que exige um uso
criterioso da mesma, uma vez que acontece num espaço formativo e social. A
autonomia foi apontada como uma possibilidade de relações a ser estabelecida
entre os docentes e nas vinculações estabelecidas com os alunos e famílias.
A autonomia do aluno é vista como um processo em construção,
especialmente nas atividades que envolvem o coletivo da escola, a exemplo da ação
dos alunos no grêmio estudantil, que também é acompanhada por um professor,
com a diferença de que é desejado, nesta escola, que eles exerçam mais ações
independentes.
O supervisor escolar fez dois apontamentos relacionados aos professores e
que são considerados relevantes nesta pesquisa: um diz respeito ao fato de a escola
trabalhar para manter unidade em suas atividades educacionais, enquanto serviços
de apoio ao professor, e o outro refere-se ao empenho despendido para a
regularidade dos encontros docentes, com ênfase na atividade de conversação entre
os profissionais que trabalham na escola, além do desejo desses de incrementar o
estudo como rotina interna. Essas duas condições facilitam a possibilidade de um
espaço para a construção da autonomia do professor.
O espaço para a construção de autonomia do aluno é concorrente à
autonomia do professor. Os alunos da Escola B têm vários espaços para a
expressão da sua autonomia, segundo o supervisor escolar; os alunos são ouvidos
pelo professor regente ou por qualquer um dos professores da escola nas
oportunidades em que mantêm contato entre si, ou, então, nas oportunidades em
que o serviço e orientação ou coordenação vai até a sala de aula dialogar com o
grupo de alunos, e, ainda, pela possibilidade e abertura da escola – pelos seus
professores e serviços – de conversar com os alunos sempre que procurada. Os
alunos discutem e apontam contradições existentes na ação escolar, postura que,
segundo o supervisor, muitas vezes coloca os professores em “saia justa” pela
coerência e adequação da análise da situação feita, independentemente da série
209
que cursam, o que, na avaliação da escola, demonstra um resultado positivo na
construção da autonomia e criticidade desenvolvida junto aos mesmos.
Os alunos têm como espaço de manifestação o grêmio estudantil. As
assembléias escolares, como oportunidade democraticamente organizada para falar,
ouvir, reivindicar e planejar ações, não foram mencionadas como existentes no
contexto escolar na atualidade.
As ações desenvolvidas e relatadas na entrevista são pertinentes ao PPP da
escola, no entanto o projeto foi somente uma vez mencionado, usado como
referência em toda a entrevista.
Passemos para o grupo de professores da mesma escola, que serão vistos
no conjunto de suas falas. Os professores receberão a indicação de: Professor 7,
Professor 8, Professor 9 e Professor 10. No interior dos quadros as falas estão
mescladas, não seguem a uma ordem numérica crescente, porque atendem a uma
intenção da pesquisadora de avizinhar as manifestações que se assemelham em
conteúdo, e não a individualidade de cada professor entrevistado. Os professores
aposentados serão indicados como: professor 11-A e 12-A - a indicação da letra
junto ao número refere-se a aposentado.
As entrevistas iniciaram com uma questão referente ao modo como o
professor concebe uma boa situação de aprendizagem e sobre quais bases organiza
uma boa aula.
Quadro 4.2.6: A organização de uma boa aula
Professor 7: Acho que tem duas coisas importantes para ser professor: uma é
saber o conteúdo e outra é gostar muito de dar aula. Tem que gostar da gurizada. O
professor que não gosta do seu aluno não deve ser professor, porque todo dia a gente está
sendo chamado a gostar.
Professor 8: Conteúdo é importante, mas é só um meio para desenvolver o pensar,
o raciocínio, para perceber a lógica que existe em cada situação. Isso é que é relevante.
Professor 7: Não existe aluno que ame a matéria sem gostar do professor, por isso
a relação do professor com o aluno é importante.
Professor 8: Eu organizo minha aula de forma a deixar espaço para uma boa
relação com os alunos, mas não abro mão da minha autoridade, do meu papel de professor.
210
Não estou na frente dos alunos à toa. Existe uma diferença de papéis, me dou bem com os
alunos, mas a experiência me mostrou que não se pode deixar o aluno pensar que comanda
a aula. Tem vezes que preciso ser severo em aula, depois chamo o aluno e converso sobre
o que aconteceu.
Professor 9: Eu trago muitos assuntos para a aula, temáticas que circulam nos
noticiários e meios de comunicação. Faço isso para desenvolver neles uma postura crítica
diante dos fatos que acontecem perto de nós, uma responsabilidade que se deve ter com
outras pessoas. E assim vou desenvolvendo o conteúdo da aula. Um dia trouxe um texto
sobre pessoas idosas, funcionou muito bem. Nestas oportunidades eles acabam falando
deles, das suas famílias, da relação que têm com os adultos e tudo mais.
Professor 8:Trabalho a partir do questionamento, pergunto muito para os alunos em
aula. Provoco com questões e situações para que fiquem indignados e inquietos. Fico feliz
quando eles respondem dizendo que não pode ser daquele jeito, sinal que os desacomodei;
deste ponto retomo meu posicionamento e discutimos. Trago artigos e situações reais para
a discussão de aula. Não dá para ser crítico sem ter espaço para discordar, para dizer a
opinião pessoal.
Professor 9:Trabalho com seriedade. Essa construção se faz dentro da sala de
aula, na troca diária que faço com eles, pela franqueza com que trato todos os assuntos e
de como vão me dando retornos de forma bastante honesta, aprendendo a assim agirem.
Às vezes eles se chocam com minha franqueza.
Professor 8: Penso que temos que resgatar da escola tradicional a disciplina, a
organização. A idéia de deixar o aluno fazer tudo que quiser, pela livre vontade de cada um,
vira bagunça; muita escola que tentou mudar a proposta pedagógica acabou voltando atrás
porque é preciso ordem. O aluno tem que ter uma postura mínima em aula, essa vai desde
o sentar até a forma como se dirige ao professor. Se não resgatarmos isso com o aluno não
existe respeito. Tem momentos em que o professor tem que mostrar aos alunos que quem
comanda o espetáculo é ele.
Professor 9: Na oitava série os alunos têm muito um sistema de ação e reação
imediata. Eu dei um trabalho extenso para eles, alguns se rebelaram, foram na
coordenação, e eu fui deixando. A coordenação, como sabe meu sistema de trabalho e
conhece os alunos, também falou com eles de forma a encaminhar os alunos para o
cumprimento da tarefa. A cada aula eu dava uns minutos para eles se reunirem e tratarem
da organização da tarefa, isso foi baixando a ansiedade do grupo. Atualmente, eles estão
com o trabalho quase feito e tenho visto que muito bem feito.
Professor 9: Não sou considerado um professor "bonzinho" pelos alunos, aquele
que é risonho em aula, mas eles acabam gostando da minha aula e respeitando o meu jeito,
que é, acima de tudo, de muita justiça e clareza. Isso faz eles perceberem que nem todos
são iguais. Na vida é assim, nós temos que saber lidar com diferentes situações.
No conjunto os professores parecem considerar uma boa aula a que inquieta
os alunos, a que os coloca em conflito e os faz pensar. Os fatos do cotidiano são
trazidos para a aula e somados à competência técnica do professor (o domínio do
conteúdo) e ao gosto pela docência, resultariam numa aula em que efetivamente o
aluno tem um bom desempenho de aprendizagem. Os professores colocam-se
tanto numa situação de relação - entre iguais - como de distinção de papéis, de
aluno e de professor. Com mais insistência os alunos parecem ser chamados a
211
perceber os valores morais nos quais cada professor acredita estar embasada a
construção humana e sobre os quais funda a relação com os alunos, para que
apreciem e interiorizem essas mesmas atitudes, de justiça, clareza, franqueza,
honestidade – Professor 9. Esse último posicionamento, do Professor 9 se portar
com a convicção de uma atitude e presença moral – e não moralista – junto ao grupo
de alunos ratifica a atitude a ser interiorizada pelo aluno, sem a necessidade do
constrangimento dos discursos morais.
A Escola B, em seu PPP, expressa uma oposição ao ensino tradicional, no
entanto um dos professores faz lembrar esse modelo escolar ao julgar o
compromisso com o aprender a partir de atitudes de obediência, da postura ao se
sentar, de disciplinamento, para que assim o respeito seja estabelecido. É
importante ressaltar que o respeito estabelecido pelo desenvolvimento moral da
autonomia, na perspectiva piagetiana e também de Bovet, coloca tal valor no
patamar da reciprocidade - do professor para o aluno e do aluno para o professor -
num espaço de relação entre ambos construído, diferente da perspectiva do
autoritarismo, na qual existe um dever de respeito imposto ao aluno para com a
figura do professor.
Um dos professores mencionou a relação crítica que pretendem estabelecer
com os alunos, dizendo que “não dá para ser crítico sem espaço para discordar”,
perspectiva existente no PPP da escola. O espaço da discussão, da opinião e do
compromisso se constrói no coletivo da sala de aula e da escola; referenda a
importância das assembléias escolares, instrumento que possibilita inúmeras
questões, especialmente as referentes às possibilidades (do desenvolvimento moral
autônomo, entre elas) e às dificuldades existentes num espaço público e coletivo,
porque coloca, muitas vezes, o próprio sistema escolar em xeque - nas suas
contradições; além de ser um instrumento que precisa ser construído e aprendido
em seu funcionamento, pelas posturas individuais adotadas durante uma assembléia
escolar, aprendizagens que demandam tempo. As assembléias escolares têm sido
desconsideradas pelo coletivo escolar no geral, tal como o verdadeiro trabalho em
grupo, pela dificuldade que referem os professores a respeito da organização interna
ao processo da construção de uma assembléia escolar, como da vivência do
respeito mútuo – que é a essência dessa proposta. Tempo, construção coletiva e
212
continuidade são fatores importantes para que os resultados nas assembléias e
trabalhos em grupo sejam profícuos.
Também revelam os professores desta escola uma prática embasada na
construção de valores entre alunos e professores, presente no PPP da escola com
relativo destaque. Os professores, nesse sentido, agem de acordo ao PPP da
escola, mas não o mencionam na entrevista; estariam “aprendendo” o
“funcionamento” a escola na informalidade entre os colegas? Por que não utilizam o
documento escolar como referência? Da mesma forma, a construção de valores
está a referendar uma postura docente frente aos alunos. Um professor diz que
utiliza desta postura pessoal junto aos alunos na intenção que seja um valor a
veicular no interior da aula. Ao considerarem a verdade, a sinceridade e a seriedade
como compromissos, fazem o aluno reconhecer tais requisitos na relação e a eles
aderir, num possível resultado positivo à formação sócio-moral do aluno.
Ainda com relação às características de uma boa aula, é exemplo, o desafio
feito pelo Professor 9 aos alunos, quando pede uma tarefa mais complexa e que
mobilizou os educandos a procurarem a coordenação para que fosse abrandada a
tarefa. O conhecimento que o professor deve ter do processo de aprendizagem do
aluno conjuga os textos da psicologia da educação com o conhecimento específico
da área que trabalha, além de exigir que identifique e trabalhe com as mobilizações
de grupo, pois o grupo social é uma constante na escola. O professor pode desafiar
seus alunos tanto com temáticas interessantes e da atualidade, como mencionado,
como por uma tarefa inesperada, que os desafie a fazer algo novo, desconhecido
até então. Esse procedimento torna-se fundamental, especialmente quando o
professor, mesmo de longe, acompanha e dá espaço aos grupos de alunos para que
organizem o trabalho e aprendam sobre o como agir em co-operação. Neste caso, o
professor e o coordenador pedagógico agiram em sintonia, de forma a encaminhar a
realização do trabalho pelos alunos, minimizando o conflito na perspectiva do
diálogo e da concessão de tempo para o amadurecimento do processo de
incorporação do novo.
O Professor 8 traz uma importante questão pedagógica, a relação entre
conteúdo e forma, conceitos trabalhados pela Epistemologia Genética. Diz que o
conteúdo é importante, mas, mais que ele, a forma como o aluno organiza
internamente a experiência realizada, conceitua-a internamente e reutiliza-a em
213
outros e novos contextos torna-se fundamental, sendo esse o verdadeiro processo
educativo, do aprender a aprender a partir de uma experiência realizada. A escola,
tradicionalmente, tem se preocupado mais com a quantidade de conteúdos
escolares que são disponibilizados ao aluno, resultando em muitas informações
superficiais na maioria das vezes, do que com a construção de estruturas lógicas,
que facilitam todas as aprendizagens conceituais.
A relação entre sujeitos foi apontada como importante no contexto da aula,
junto à necessidade de gostar da docência. Compõe importante par pedagógico,
que sustenta a construção da autonomia, enfatizada neste trabalho, como também,
essa é a temática da Professora Doutora Tânica Marques da UFRGS, discutida em
sua tese de doutorado, já citada no corpo teórico deste trabalho.
Junto à reflexão do professor sobre o andamento de uma boa aula, é preciso
ver como o professor percebe os seus alunos, como sujeitos autônomos ou não. A
entrevista privilegiou os sujeitos enquanto grupo, isto é, a turma de oitava série
observada.
Quadro 4.2.7: Parecer dos professores sobre os alunos
Professor 9:Uma das características desta escola é de deixar espaço para a ação
do aluno, para ele caminhar em todas as direções. Às vezes ele passa dos limites e a gente
tem que ir atrás. Isso é muito comentado fora da escola, dizendo que os alunos aqui não
têm controle. Há espaço, sim, para o aluno e ele ocupa, vai construindo seu jeito de ser, vai
aprendendo, mas não é verdadeiro que falte ordem ou respeito. Esse jeito de trabalhar é
mais difícil para nós professores, mas é uma característica importante da escola e
fundamental para o desenvolvimento do aluno.
Professor 10: A escola aqui deixa os alunos um pouco mais soltos. O professor
ajuda mais e está mais próximo do aluno. Pode ser que, por isso, o aluno fique, às vezes,
descomprometido com a aprendizagem escolar.
Professor 8: Adolescente é muito assim: "Eu estou me dando bem, o resto que se
dane". Esse grupo que você observou tem a característica de não se ajudarem
mutuamente.
Professor 9: No geral, os alunos colaboram. A turma em questão é uma boa turma,
eles costumam se ajudarem.
Professor 10: O aluno de oitava série, nos últimos anos, parece mais infantil, mais
imaturo e desorganizado. Eu penso que seja devido à forma de trabalhar com o aluno, de
tudo ser muito prazeroso, divertido e virtual. Ele acaba não se dando conta da seriedade e
responsabilidade que deve ter com as suas tarefas. A estrutura familiar também colabora
com essa situação, eles são desamparados pela família. Os alunos vêm para a escola mais
infantis do que deveriam.
214
Professor 8: Os alunos necessitam de maior capacidade de abstração. É uma
dificuldade vivida pela geração atual, eles não sabem ouvir. Escutam, mas não entendem.
Agora se fala muito em hiperatividade. Não li o suficiente sobre o tema, mas temo que vai
ser mais uma desculpa, que tudo vá ser justificado pelo distúrbio e não se pense seriamente
sobre a situação que vivem os alunos e os jovens.
Professor 8: Vejo que os alunos têm muita informação e poucos conhecimentos.
Eles têm dificuldade de relacionar o monte de informações que recebem pela internet e
outras fontes, com a sua vida, seu cotidiano, com o que acontece ao lado da casa deles.
Professor 7: No meu tempo, a gente pegava um livro e conseguia estudar. Hoje
eles querem um professor particular que diga o que é para ser feito. Ficam dependentes de
um professor, nem se propõem a ler para tentar entender e estudar.
Professor 7: Os alunos são muito individualistas. A gente diz: “Espera que eu
coloque no quadro para todos”, e eles respondem: "Corrige o meu". São alunos de famílias
menores, ou o único filho de uma família; não aprenderam a dividir com os outros um
mesmo espaço, mesmos objetos e a atenção dos adultos. A aprendizagem a ser feita no
coletivo fica difícil.
Professor 8: O jovem tem uma maneira diferente de se relacionar hoje, eles são
muito corporativistas e pouco cooperadores. Se eles tiverem vontade de se juntarem para
mudar uma nota ou trabalho que o professor pediu, se juntam e lutam. Isso não é
cooperação, é corporativismo, resultante do contexto social, do grupo social ao qual eles
pertencem. Todos pensam assim, a cooperação e a solidariedade em classes mais
abastadas é feita "a distância", com carnê.
Professor 9: Eu lido assim com eles, dou as regras e não solto as rédeas
completamente. As coisas vão ficando mais negociadas quando as atitudes deles me
mostram maior responsabilidade, acontece com o amadurecimento da nossa relação.
Os professores não deixaram de considerar o contexto da escola com
relação à autonomia dos alunos. De forma unânime, consideram a proposta da
escola facilitadora da construção da autonomia junto aos alunos. Dizem que a
escola traz uma representação na comunidade de excesso de liberdade, de falta de
controle, do que discordam. Têm consciência de que a existência de maior
liberdade na relação entre alunos e professores exige um docente mais tolerante à
crítica, a ouvir a opinião alheia, que nem sempre será de elogio. O aluno, colocado
no mesmo patamar que o professor, enquanto sujeitos em relação, facilita a
construção de autonomia, especialmente quando o respeito mútuo transita
livremente nessa interação.
Há de se considerar, no entanto, a observação do professor que fala sobre a
responsabilidade que têm os alunos sobre a liberdade a eles concedida. Esse
professor menciona que os alunos costumam receber do professor apoio e
compreensão, de modo que passam a “exigir” maiores facilidades e prazos com
seus trabalhos, habituando-se à falta de compromisso com a escola e as tarefas que
215
dela resultam. Esse é um dado interessante a ser discutido no grupo de professores
da escola, sobre o comprometimento que o exercício da autonomia cognitiva e
sócio-moral passa a exigir, do como agregar essa problemática à reflexão junto aos
alunos.
Quanto à avaliação geral sobre os adolescentes da oitava série ficou em
dois extremos: um diz das condutas de imaturidade, desleixo, indiferença com os
colegas e o trabalho escolar, pouca independência para o estudo e capacidade de
abstração; o outro ressalta os alunos cooperativos, que ajudam o colega nas
atividades de aula, em situação de interação.
O conceito de liberdade, que contempla a consideração com o espaço e
vontade alheia, tanto quanto, deseja que a vontade e o direito pessoal sejam
igualmente respeitados, permeia as duas questões acima. Num pólo a liberdade é
extrema, beira o egocentrismo, a centração absoluta; no outro, a liberdade é
mediada pela liberdade de um outro sujeito, é cooperativa e autônoma, supõe a
possibilidade de descentração de julgamentos e ações na relação interpessoal.
Considerando ser grupos de opiniões que divergem, pode-se pensar que haja
diferenças quanto aos critérios de julgamento de autonomia do grupo de alunos, o
que implica igual divergência sobre o conceito de autonomia que tem o professor.
Fato interessante é a afirmação que diz da substituição da cooperação pelo
corporativismo no interior do grupo de alunos. Esse é um dado de realidade que
não pode ser negado, a exemplo da atual situação política do país, que pode servir
de exemplo ao adolescente, quando interesses pessoais se sobrepõem ao interesse
da nação - os deputados federais votam o aumento exorbitante de seus salários,
conforme proposta feita pelo próprio presidente da Câmara Federal. Ao considerar a
escola como um espaço social, nele estão refletidos muitos acontecimentos do
cotidiano; são situações e histórias de vida trazidas pelos alunos; é o contexto
macrossocial que se faz presente nas relações do grupo de aula, porém numa
dimensão abreviada. Ao fazer essa consideração, torna-se pertinente a observação
do professor, ao mesmo tempo em que é razão suficiente para um importante
trabalho escolar, o de fazer o corporativismo se submeter à cooperação. Tal
inversão de perspectiva exige o próprio exercício cooperativo entre os alunos, pela
discussão a ser rotineiramente implementada em sala de aula a partir dos conflitos
diários e naturais, tal como o último professor do quadro faz referência. Á medida
216
que as relações vão se estabelecendo em patamar mais sólido e cooperativo, há
mais concessões ao grupo, maior responsabilização dos alunos no processo
individual de construção da autonomia do aprender, fazer e pensar.
Pela organização da aula, na tentativa de visualizar o aluno que o professor
tem diante de si, a partir de seu julgamento, pode-se agora perguntar que recursos
ele utiliza para ter o aluno envolvido em sua proposta de aula e, quem sabe,
desenvolver a cooperação entre eles, a autonomia já tantas vezes anunciada.
Quadro 4.2.8: Recursos para o aprendizado dos alunos
Professor 7: Uma coisa que eu faço no segundo semestre é o sistema de "adoção".
Eu brinco com eles, cada um vai adotar alguém para ajudar a estudar e se organizar.
Quando eles não se agilizam por conta, eu digo: "Fulano adota o sicrano". Costuma dar
certo e eu acho bacana isso! Eu digo a eles que quem ensina aprende muito mais e, ainda,
estão sendo solidários. A solidariedade é um valor que a gente vê muito pouco na gurizada
atualmente.
Professor 8: Aproveito sempre as situações de conflito existentes na sala de aula,
qualquer situação de atrito analiso com eles, não deixo passar.
Professor 7: Aprender é feito de uma série de fracassos. Eu digo para eles: "Qual o
problema de errar? Quando erra apaga, isso é normal. Quando começares a acertar, está
na hora de passar para outra!". Aprender é errar. Aprender não é uma série de sucessos.
É interessante que os professores não mencionam o trabalho em grupo que
realizam com os alunos. Nas observações que realizei, que logo serão relatadas, vi
os alunos trabalharem em grupos, tendo liberdade de circular pela sala e de interagir
na construção de um trabalho único, fato não lembrado pelo professor na entrevista.
Talvez pela própria atividade grupal ter sido esvaziada em sua essência, de relação
e cooperação, tal como preconizou o movimento da Escola Nova pelo self-
government, costuma-se trabalhar em grupo pela força do hábito ou porque os
alunos assim preferem e acordam com os professores.
A proposta de "adoção" é essencialmente de cooperação entre os alunos, de
grupo, de co-responsabilidade entre os alunos.
O aparecimento da referência ao erro e ao conflito como componentes da
aula permite-nos estabelecer um paralelo com as considerações existentes no PPP,
de esses serem trabalhados na perspectiva construtivista, porém os professores não
217
fazem referência ao documento da escola. Na prática há uma convergência da ação
dos professores com o previsto no documento escolar, sem, contudo, haver a
consciência de tal fato por parte dos professores.
Foram mencionadas, pelo supervisor escolar as reuniões de professores,
onde eles podem especialmente planejar ações conjuntas. Vejamos como os
docentes entrevistados referem esses encontros.
Quadro 4.2.9: As reuniões e os grupos de estudos
Professor 10: Quando comecei a trabalhar nessa escola, entrei com a cara e a
coragem, não havia trabalhado em nenhum outro lugar até então. Tive muita assessoria e
apoio dos colegas. Meu início de carreira acabou sendo facilitado pela troca entre os
professores da área, que sempre diziam: “faz isso”, além de me perguntarem quais eram as
minhas idéias e ajudavam a desenvolvê-las; todos se ajudavam. A escola dá muita
autonomia para o professor.
Professor 10: A escola dá muito respaldo para o professor desenvolver seus
projetos. A cada ano quer mudar, fazer diferente e melhor.
Professor 10: Tem todo um planejamento que é construído em um seminário de
início de ano. Depois, para o encaminhamento dos projetos existe muito espaço para fazê-
lo acontecer, e sempre há o apoio de quem se precisa. Existe confiança no trabalho por
parte da equipe pedagógica. A conversa é muito fácil e estão sempre próximos.
O professore 10 refere de forma enfática, em sua entrevista, a presença de
uma equipe que trabalha de forma integrada. Não menciona a respeito de um
estudo formal, mas da ajuda partilhada nos momentos de necessidade, do apoio
para o desenvolvimento de projetos. Uma cooperação em ação que certamente
reflete a forma de trabalhar da equipe, e desta junto aos alunos, ratificando a
possibilidade de construção de autonomia docente e dos alunos.
Há momentos de planejamento em conjunto, com a possibilidade de inserir
novos projetos no trabalho de cada ano. Parece ficar presente nas falas dos
professores o reconhecimento de um grupo que trabalha integradamente, resultante
de um espaço dispensado pela escola para o fazer e ousar em novos projetos. A
questão é se os professores se reconhecem como sujeitos autônomos na relação
com os colegas, para que, então, vislumbrem a mesma necessidade de autonomia
cognitiva e sócio-moral junto aos alunos. É sempre oportuno ressaltar a distinção
218
entre uma autonomia da individuação, que leva a uma idéia de auto-suficiência,
gerando uma espécie de “autismo social”, de uma ação de co-operação, respeito às
liberdades, criticidade, e uma autonomia pessoal e social, que se opõe às
estratégias pedagógicas que enfatizam as ações e resultados individuais.
Os outros professores não mencionaram de forma explícita os encontros
pedagógicos.
Vejamos como os professores da Escola B compreendem autonomia.
Quadro 4.2.10: A concepção de autonomia nas entrevistas
Professor 7: Uma pessoa autônoma é a que consegue se comandar, se determinar
nas coisas. São pessoas que não dependem tanto de terceiros, claro que não são pessoas
totalmente independentes, porque totalmente independente ninguém é. Mas são aquelas
que têm um pensamento e conseguem executar.
Professor 9: No meu entendimento, a autonomia é a possibilidade de cada um ser
por si só e ao mesmo tempo com os outros, uma pessoa capaz de agir, de ser gente dentro
do seu campo de trabalho, na comunidade, na sua vida pessoal. A autonomia está além da
escola, deve preparar para a vida.
Professo 8: Autonomia quer dizer que autodetermino a minha ação. Para me
autodeterminar, preciso ter claras as implicações daquilo que vou fazer, tenho que levar em
conta o outro sujeito. O ser humano é um ser interdependente, ele só existe na relação com
outros. A construção da autonomia passa, então, pela relação com o outro.
Professor 8: Autonomia, para mim, não é fazer o que eu quero simplesmente, mas
é fazer com consciência. Sem consciência o sujeito pode se iludir, pensar ser autônomo e
estar sendo manipulado por “n” situações do cotidiano, por ideologias.
Professor 10: A autonomia é saber julgar o certo e o errado, o que pode ser feito ou
não, quando se deve recuar em termos de atitudes dentro de um ambiente, de um grupo.
Professor 9: A construção da relação de autonomia é um todo, a família tem muito a
ver. Ocorrem-me agora alguns casos de alunos que têm os pais sempre “em cima”,
telefonando por eles, acabam por sufocar a iniciativa do aluno. Há outros casos em que os
pais orientam e permitem que o filho "caminhe com suas pernas"; penso que esses têm
mais possibilidade de avançar na autonomia.
Professor 7: Se uma pessoa é autônoma, ela aprende com mais facilidade, tem
mais atenção para aprender, é ousada, não tem medo de errar.
Professor 7: Com a maioria dos alunos eu consigo detectar se ele é autônomo;
percebo isso quando ele consegue fazer as coisas dele sozinho.
Os professores bem expressam a autonomia como a capacidade de
autogoverno mediada pela relação com outros sujeitos, que apontam,
219
constantemente, a fronteira da liberdade de ação de cada um, e ainda há uma
indicação quanto à autonomia cognitiva, do sujeito que aprende de forma mais
“ousada”, sem medo de errar, na verdade, o que se apropriou do processo de
construção de sua aprendizagem, o que aprendeu a aprender.
A família também é apontada como responsável na construção dessa atitude
no filho, pela possibilidade e espaço que disponibiliza para que o jovem vá,
gradativamente, ampliando seu leque de ação, ao mesmo tempo em que perceba o
limite que outros sujeitos lhe impõem. É o princípio kantiano da moral e liberdade. É
o valor da reciprocidade a ser estabelecido com outros sujeitos a quem dispensamos
respeito.
O grupo desta escola é mais uniforme na conceituação da autonomia e
atende à dimensão sócio-moral da autonomia. Não há fortes indicativos da relação
da autonomia com o fazer de forma independente. Os professores compreendem a
importância da relação interpessoal cooperativa, da co-operação na construção da
autonomia do aluno, no entanto não se referem o texto do PPP da escola, onde tal
intenção está registrada; têm, mais uma vez, uma prática condizente com os
objetivos da escola, porém sem mencionarem tal fato. Poder-se-ia supor que tal
situação se justifica pelo fato dos professores já terem pleno conhecimento do PPP
da escola? Se assim fosse, teriam-no mencionado, o que não ocorreu.
Existe um similar conceito de autonomia entre os docentes, provavelmente
construído a partir de vivências, experiências ou reflexões pessoais, as quais têm
implicações com a autonomia dos alunos. Os alunos desta escola parecem ser
críticos, têm uma participação mais constante nas aulas, movimentam-se no interior
da escola, nos corredores e trocas de salas de forma mais organizada, há menos
tumulto e algazarras. No entanto, há de se registrar, com relação à prestação de
uma ajuda, de uma co-operação prestada de forma espontânea a um colega, que é
tão escassa quanto na Escola A.
Os professores entrevistados foram mais enfáticos na intenção de identificar
a postura dos alunos autônomos ou não autônomos da 8ª série observada. Essa
constatação deu origem ao próximo quadro, que se diferencia do Quadro 4.2.7 por
apresentar uma visão mais geral do aluno em suas características adolescentes.
220
Quadro 4.2.11: A percepção docente sobre a autonomia nos alunos
Professor 7: Para mim, os alunos de 8ª série não são ainda autônomos, são
crianças ainda, são muito dependentes. Começo a notar diferença no 2ª ano de ensino
médio; são autônomos realmente os alunos do 3º ano, quando estão terminando o ensino
básico.
Professor 7: Tem turmas em que observo alunos autônomos no trabalho, mas não
na relação.
Professor 7: É gozado que os grupos vão se formando e, com o passar dos anos,
eles vão ficando todos muito parecidos. Tem grupos que dizem: “Deixa que a gente faça
para depois dizer se está certo ou errado”; tem outros que pedem: “Faz tudo e a gente copia
para estudar em casa”.
Professor 9: Existe um fenômeno do coletivo entre os adolescentes. Às vezes, vejo
um bom aluno quando converso com ele, percebo que tem capacidade de cooperar com os
colegas, tem uma autonomia construída, mas no grupo isso não aparece.
Professor 9: Algumas turmas têm ações solidárias entre eles, são cooperativos
entre si, se ajudam, existe o espírito de turma; em outras turmas ficam se debatendo, cada
um puxando para um lado, fazendo isoladamente, escondendo seu trabalho. Eu,
sinceramente, não tenho uma explicação para isso. Quando a gente tem muitos períodos
por semana com eles, acaba enxergando aspectos que são próprios de cada aluno e de
como isso acaba se refletindo no grupo de colegas.
Professor 7: Vejo que o aluno autônomo, principalmente aquele que é autônomo no
raciocínio, está pronto para qualquer tarefa. Para mim é importante ser autônomo no
raciocínio. Ele aprende com mais facilidade porque vai construindo o pensamento dele, não
quer o conhecimento dado por outra pessoa.
Professor 9: A autonomia pode possibilitar que o aluno amplie seu conhecimento,
que ele não fique limitado àquilo que o professor diz, àquilo que foi anotado no caderno, no
quadro ou na folhinha. Acho que autonomia leva o aluno a ampliar seu conhecimento, a se
tornar mais curioso, a buscar o desenvolvimento intelectual.
Professor 8: Um aluno que chega para mim para conversar, querendo resolver seu
problema, reconhece as suas dificuldades e sabe sobre o seu desempenho, me mostra
capacidade de iniciativa, autonomia. Diferente de um outro que faz por intermédio da mãe
ou da coordenação. O movimento do aluno é uma atitude de autonomia.
Pela prática pedagógica os professores observam a autonomia dos alunos
como não estabelecida de forma plena e constante na última série do ensino
fundamental, após oito anos de escolarização, no mínimo. É certo que os alunos,
especialmente nos anos iniciais de sua escolarização, são incentivados a atitudes de
cooperação, solidariedade e respeito, mesmo que atendam às demandas adultas
mais por força de reconhecimento da autoridade e respeito do que por julgarem
coerente e apropriado tal comando. Por que deixam de serem cooperativos na
trajetória da escolarização? Mesmo considerando a perspectiva piagetiana, de que
o aluno passa a reconhecer a horizontalidade das relações e a essas atribui valor
221
moral, ao não querer decair em julgamento daquele em que deposita respeito, e que
o tem como igual nas trocas sociais, parece haver uma ruptura no processo de
construção da autonomia destes alunos. Onde estaria a causa desta
descontinuidade? Seria esperado que houvesse uma passagem gradual e
ascendente do que Jean Piaget apontou como um transcurso da heteronomia para a
autonomia. Tal avanço não se consolida pelo fato de os professores continuarem a
ratificar, em ações, a necessidade de um aluno dependente de sua orientação, seu
comando e reconhecimento de autoridade? Ou simplesmente não reconhecerem a
autonomia já existente nos alunos e dela pouco participarem com trocas recíprocas,
de enriquecimento cognitivo e sócio-moral do processo de construção infinda da
autonomia? Acredito que estamos diante das duas situações.
A percepção de uma autonomia mais tardia, só no segundo ou terceiro ano
do ensino médio, contraria a expectativa da pesquisa. Ainda questiono, tal como no
parágrafo anterior: estariam os alunos em ambientes mais protegidos por um tempo
mais extenso, vindo a retardar a construção da autonomia? Temos que ter em
consideração quando pensamos sobre a última questão a perspectiva familiar, dessa
talvez estar prolongando o tempo de cuidados e proteção, mesmo que os jovens de
uma classe média alta, aparentemente, pareçam mais independentes, na verdade
são dependentes dos seus pais na maioria das situações; a isso somamos a
perspectiva heterônoma na relação professor-aluno, na escola, que também se
estende por mais tempo, ratificando a posição familiar, o que traz mudanças no
processo de construção de autonomia de muitos jovens.
É ainda freqüente a perpetuação da relação heterônoma trazida pelo
professor, e aceita pelo aluno, no desenvolvimento de uma aula. O lugar de
professor como o coordenador, o direcionador das ações dos alunos é muito
presente na turma de oitava série observada, situação que limita o agir autônomo do
aluno, que espera o sinal para a sua participação em aula, ou um indício de resposta
a ser dada por ele. São poucas as vezes em que se expressa de forma pessoal,
original, postura que confirmaria sua autonomia de pensamento.
Considerando a afirmação do professor que diz ser no terceiro ano que tem
um aluno verdadeiramente autônomo, talvez pudéssemos atribuir tal constatação ao
fato do aluno ser um finalista do ensino básico, que responda de forma mais positiva
ao “duelo” entre a heteronomia pretendida pelo professor e o seu desejo de
222
223
desenvoltura. Com relação à autonomia moral, também a deseja, o que o faz
lembrar, de imediato, que essa traz situações de possíveis conflitos entre ele e o
aluno, diz que “exige mais” do professor. Evidentemente, a autonomia moral exige a
reciprocidade de relações, solicita um professor que seja coerente em seu dizer e
fazer, com relação aos princípios e normas que advoga. Exige um professor
autônomo moralmente.
Vejamos agora a contribuição dos professores aposentados sobre o tema da
autonomia e a escola por eles vivida há algumas décadas.
O próximo quadro tem a participação das professoras fundadoras da Escola
B, que relatam a rotina escolar, a ação docente no seu coletivo e na construção de
uma proposta pedagógica. O marco temporal de sua atividade na Escola B também
é nas décadas de 1960-70, tal como na Escola A.
Quadro 4.2.12: A organização pedagógica na Escola B nas Décadas de 1960-70
Professor 12-A: A lei de ensino que vigorou até a época do surgimento da Escola B
era a Lei nº 4.024. Essa lei era muito restritiva, dizia a hora que tinha que bater o sinal para
o aluno sair da sala, ou, então, a visita das inspetoras de ensino, que chegavam nas escolas
para sortear pontos a serem defendidos oralmente pelos professores, tal como uma
sabatina. Mas, também, o Ministério de Educação autorizou, em 1958, que as escolas
construíssem projetos especiais, com novas experiências pedagógicas. Era necessário
construir um currículo próprio, um sistema de avaliação especial e documentar tudo isso.
Professor 11-A: Esta escola começou a ser pensada tendo a família como parceria.
Um segundo ponto era estabelecer uma comunidade educativa com os professores. E,
ainda, uma escola voltada para a espiritualidade, sem o dogma de uma religião, aberta a
todos os credos.
Professor 11-A: Os alunos tinham certa liberdade dentro da escola, muito mais do
que nas outras escolas da época, desde que dentro de certas combinações estabelecidas
pelo coletivo de alunos e professores.
Professor 11-A: A escola adotou a metodologia de assembléias escolares junto aos
alunos. Tudo era combinado com os alunos.
Professor 12-A: Foi estabelecido que o aluno deveria também participar da
avaliação escolar, por um conselho de turma, onde todos tinham voz e a oportunidade de
defender seu ponto de vista.
Professor 12-A: Os professores tinham um coletivo de trabalho e de troca de
opiniões, de estudos, quase que permanente. Tal sistemática, automaticamente, passava
para a relação professor-aluno, que também, sempre que necessário, organizavam rodas de
discussões para a resolução de conflitos. Era uma escola que "falava" muito, uns com os
outros, o tempo todo.
224
Professor 12-A: Lemos muito Piaget na escola. Mais tarde também lemos Vigotsky,
Wallon, Makarenko. Eu acho que não há mais um espaço para as pessoas estudarem,
discutirem, criarem, tanto o professor, como o aluno ou o funcionário.
Professor 12-A: A escolarização foi dividida em etapas tal como os estádios de
desenvolvimento de Piaget. Então nós tínhamos organizado algo que hoje estão chamando
de “progressão”, e algo muito parecido com os ciclos de aprendizagem.
Professor 12-A: A experiência do que fomos como alunos, agora, fazia diferença,
no trabalho que realizávamos como professores. Lembro-me que tive uma professora
fantástica nas séries iniciais. A professora recém tinha chegado dos Estados Unidos, onde
tinha feito um curso com Dewey, sobre a metodologia de projetos, era a época da
democratização da escola. Até a 4ª série eu não tive sala de aula com cadeiras em fila, era
um espaço sempre novo que a gente reconstruía a cada projeto, era aquilo do “aprender
fazendo”. Depois fui para uma escola confessional, que também era inovadora, que não
restringia a liberdade dos alunos. Acho que ela dava um jeito de "acomodar" as ordens da
lei ao que queria ensinar aos alunos, e ensinava muita responsabilidade, criatividade e
autonomia. Estou falando essas coisas da minha vida porque acredito que as experiências
particulares de cada um são carregadas pela vida inteira e a gente as transfere e as aplica
por onde passa. Eu penso, então, que um dos grandes problemas na formação de
professores hoje é de que as experiências que eles vivem são "pobres", e, depois, as
experiências que farão com os alunos serão, da mesma forma, muito tímidas e sem graça.
Professor 12-A: [Foi relatada a história de um aluno que deixava os professores
atordoados, pois a escola não conseguia ser nova para ele. O aluno, a cada proposta do
professor dizia já ter feito aquilo com os pais e de forma muito mais interessante, ele era de
uma família de muitas posses.] Daí nós fizemos uma reunião com um tema específico: o
aluno exigia um currículo especial, caso contrário a escola seria terrivelmente chata para
ele. Resolvemos fazer um plano de trabalho com ele, e funcionou muito bem a partir daí.
Esse era um respeito pelo aluno, junto com uma autonomia que a escola mantinha de poder
organizar algo particular para um aluno, respeitando seu desenvolvimento intelectual.
Professor 12-A: A metodologia que a escola adotou exigia um trabalho construtivo,
ela não podia ter uma metodologia que generalizasse as ações do professor e do aluno, de
tudo ser igual para todos. A metodologia, o currículo e quase tudo foi construído junto com o
grupo de professores, respeitando a autonomia que devia estar presente também no
professor que ali trabalhava.
Professor 12-A: Aconteceu de um pipoqueiro que ficava na porta do ginásio de
esportes, e que era muito apreciado pelos alunos, ser motivo para o chamamento dos
alunos à direção da escola. O motivo era a sujeira que ficava na frente da escola,
sobrecarregando o trabalho das funcionárias da limpeza. Após a conversa, os alunos se
propuseram a encontrar uma solução para o fato. Voltaram dizendo que haviam combinado
que por um mês pagariam alguns centavos a mais para que o pipoqueiro tivesse uma
vassoura, pá e lixeira; ele mesmo faria a limpeza da entrada da escola. Foram eles que
decidiram, falaram com o pipoqueiro e depois conseguiram um lugar para que fosse
guardado o carrinho da pipoca durante a noite. Os alunos sempre participavam de tudo e
eram ouvidos em suas propostas, que quando boas, acatadas.
Professor 12-A: A escola estava inserida num bairro bastante carente.
Pensávamos que não podíamos ficar alheios ao nosso redor; fomos então trabalhar com a
comunidade. Com os pais da escola conseguimos legalizar os terrenos. Sempre houve a
intenção de envolver o aluno e as famílias em ações de cidadania, que ele fizesse algo em
prol do desenvolvimento da comunidade.
Professor 11-A: Penso que só através do diálogo com os alunos a gente conquista
alguma coisa dentro da escola, um diálogo em que se esteja disposto a ouvir. Tudo o que
225
se faz na escola faz parte de um processo demorado, há sempre pequenas intervenções
para fazer, especialmente na relação com o aluno.
Professor 11-A: Os alunos tinham proximidade com todos os professores, inclusive
com o diretor, que circulava pelo pátio e era cercado pelos alunos para falarem um
pouquinho.
Professor 12-A: Nós víamos e acreditávamos que quando o aluno é tratado com
respeito e liberdade, e essa era a marca que queríamos que a escola tivesse, desenvolve-se
tanto no aprendizado como na relação entre os colegas, o que é muito bom. O respeito
pelo aluno, como uma pessoa que pensa, é fundamental.
Professor 12-A: Quando a escola criou a primeira turma, que hoje corresponde ao
ensino médio, novos alunos chegaram, vindos de outras escolas. Os alunos da escola se
incomodaram com os alunos recém-chegados porque esses não participavam, não falavam
em aula, não eram críticos como eles; ficaram incomodados porque os novos pouco
participavam. Penso que isso foi um bom resultado na construção da cidadania, da
participação social, o quanto eles já eram sujeitos que percebiam de forma crítica as
situações próximas, de necessidade de respeito a uma diferença no modo de agir dos novos
alunos.
Professor 12-A: Os alunos sempre participaram de todo processo escolar. Eles
eram sujeitos ativos, críticos e presentes, depois, a dificuldade foi deles quererem ter a
226
constituídos como sujeitos críticos e autônomos, tal como alguns recortes ilustram.
Portanto, um resultado positivo.
O planejamento pedagógico não foi referido como documento distante, mas
como um projeto em construção, pelo coletivo docente. Nele havia uma proposta
pedagógica inovadora: de promoção do aluno, estudo por ciclos, assembléias
escolares, princípios ecumênicos, entre outras; essa proposta se mantém atual,
lembremos do início do estudo de caso da Escola B, onde é dito que este projeto
passou pela análise externa e foi considerado ainda ser um projeto de escola
moderna, um projeto que se mantém atualizado, mesmo considerando a passagem
de algumas décadas. Os relatos dos professores aposentados dizem que o projeto
pedagógico da escola – hoje PPP – foi construído junto com o coletivo escolar, na
constância de discussões e reuniões, fazendo-se presente na ação pedagógica do
professor em interação com os alunos.
Considerando o relato dos professores que hoje trabalham na Escola B,
alterou-se a freqüência do estudo, o grupo está mantido, mas com menor tempo
para a formação teórica. A identidade da escola, de o aluno estar na centralidade do
processo educativo, parece se manter. Continua sendo uma escola com tempo para
o diálogo. O currículo se mantém flexível. O exemplo é do professor aposentado,
quando diz ter sido organizado um programa diferenciado para um aluno em função
de suas experiências prévias, de forma que a escola não o desafiava a conhecer,
desvendar o desconhecido, o novo. Uma situação similar foi localizada na escola
atual, quando foi mencionado, pelo supervisor pedagógico, a respeito das reuniões
docentes de estudos tendo a temática da inclusão dos alunos com necessidades
educacionais especiais, são encaminhados nestas oportunidades as alterações
procedimentais necessárias para a escolarização do aluno em questão.
A autonomia da escola, tema não abordado neste trabalho, mas que supõe a
existência de uma autonomia de ação e sócio-moral dos professores, está presente
no relato da Professor 12-A quando fala da sua experiência como aluno, vivida em
escolas que incentivavam a autonomia do aluno. As leis da época não davam tanta
ênfase ao tema da autonomia e cidadania como a lei de ensino atual, mas os
administradores criaram brechas e incentivaram a construção de projetos inovadores
nas escolas, quando devidamente justificados, registrados e acompanhados por
supervisores autorizados pela Secretaria de Educação do Estado. São essas
227
oportunidades que deram espaço de ação para os projetos de classes diferenciadas
em algumas escolas da cidade de Porto Alegre e o próprio surgimento da Escola B,
onde foi incentivada a autonomia nos alunos, do processo educativo centrado nos
educandos, na aprendizagem mais do que no ensino, assim como de consolidação
do ideário escolanovista, sintetizado na expressão do aluno ser o protagonista da
sua aprendizagem, pelo “aprender a aprender”.
Também a experiência do professor enquanto aluno e a reflexão que faz no
sentido de que seu comportamento posterior é resultante da vivência escolar
reafirmam-nos a importância das significativas experiências de autonomia que
podem ser construídas e vividas na escola, com segura repercussão na formação de
cidadãos mais participativos, tal como mencionado na lei de ensino e documentos
escolares.
Os professores aposentados dizem nas entrevistas que havia regras, e
essas eram combinadas, construídas junto aos alunos. A rotina era suscetível de
alterações, desde que amadurecidas pelo processo do diálogo entre alunos e
direção, ou entre alunos e professores, como no caso do pipoqueiro. Sabemos que
a autonomia cognitiva e sócio-moral supõe o respeito às regras, para que as
liberdades sejam resguardadas no trabalho de grupo, na atitude de co-operação. No
entanto, essas devem ser resultantes de uma construção solidária e participativa
para que sejam efetivamente internalizadas e acatadas pelos jovens, uma vez que
devem responder também as suas perspectivas, a sua co-responsabilidade. Os
professores que hoje estão na docência não são enfáticos quanto ao contexto das
regras no interior das relações escolares, com exceção do Professor 8 deste estudo
de caso, que diz ser necessário voltar ao “disciplinamento da escola tradicional”, do
professor e do aluno ocuparem espaços e funções distintas na relação de aula. É
mais comum, de maneira geral, o professor se posicionar quanto à indisciplina dos
alunos, à falta de respeito aos mais velhos e às regras sociais.
O estudo daqueles professores parece estar sustentado por autores que
identificavam a escolha teórica da escola, a exemplo de referirem Jean Piaget,
57
num
57
Piaget (1986-1980), biólogo e epistemólogo suíço, estudou a evolução lógica do pensamento até a
adolescência, procurando entender os mecanismos mentais que o sujeito utiliza na sua adaptação no
mundo. Como epistemólogo, investigou o processo de construção do conhecimento. Autor que
228
primeiro momento, e, posteriormente, Lev Semenovich Vigotsky
58
, Henry Wallon
59
,
Anton Simionovitch Makarenko
60
, tendo as produções desses como objeto de estudo
do grupo. O PPP da escola mantém em seu texto à referência quase que exclusiva
a Jean Piaget. Na medida em que o professor pensa sobre sua prática diária,
considerando um referencial teórico solidamente construído, ampliam-se as
possibilidades de ser um pesquisador de sua prática, de aproximar a ação da
reflexão e maximizar o potencial pedagógico que tem junto aos alunos. Essa é uma
situação bastante enfatizada pelos teóricos da educação, da educação continuada,
ou em serviço, dos professores.
Essas observações já estão impregnadas por um sentimento de autonomia
do professor e do aluno, no entanto vejamos como os entrevistados referem-se à
construção da autonomia no processo educativo do aluno.
Quadro 4.2.13: A concepção de autonomia dos professores aposentados da
Escola B
Professor 11-A: Eu não falo em autonomia, falo em construção conjunta. A gente
não faz nada sozinho.
Professor 12-A: A escola tem responsabilidade quanto à construção da autonomia
do aluno, e isso começa quando ele entra na escola pela primeira vez. Em qualquer etapa
da escolarização tem que existir a oportunidade para o aluno escolher, pensar e conviver.
São os grandes desafios que a gente tem que ter para formar o aluno autônomo.
Professor 12-A: O aluno que tem autonomia dá mais "trabalho" ao professor. Vai
ser aquele que pergunta para o professor o porquê das coisas serem de determinado jeito,
mudou radicalmente a perspectiva da psicologia e da educação do início do século passado, tendo
seus estudos ainda reconhecidos na atualidade.
58
Vigotsky (1896-1934), professor e pesquisador russo, cujo trabalho tem por base o
desenvolvimento do individuo como o resultado do processo sócio-histórico, enfatiza o papel da
linguagem e da aprendizagem para o desenvolvimento.
59
Wallon (1879-1962), médico, psicólogo e filósofo francês, deu grande ênfase ao desenvolvimento
da emoção; unifica o sujeito, agregando a perspectiva intelectual, afetiva e social. Em 1929 foi eleito
vice-presidente do Grupo Francês de Educação Nova, instituição que ajudou a revolucionar o sistema
de ensino francês; em 1946, assumiu a presidência deste grupo até sua morte. Dedicou-se ao
conhecimento da infância e da inteligência da criança. Coordenou o projeto de reforma de ensino
francês, que propunha, entre outros, que nenhum aluno deve ser reprovado numa avaliação escolar.
60
Makarenko (1888-1939), educador ucraniano comprometido com a causa da construção de uma
sociedade socialista. Trabalhou com grupos de jovens adolescentes considerando a perspectiva de
assembléias escolares, na vida em grupo, autogestão no trabalho e na disciplina. Desenvolveu
trabalho junto a grupo de jovens infratores.
229
não de outro; ele faz uma discussão sadia com o professor e com os colegas; há uma troca
230
O ultimo recorte retoma a autonomia pela perspectiva da liberdade e do
mútuo respeito, condições indispensáveis ao desenvolvimento da autonomia na
perspectiva da Epistemologia Genética de Jean Piaget.
Não foi mencionada a autonomia na perspectiva da individuação da ação.
Como também não foi mencionada a exclusiva responsabilidade da família na
construção da autonomia; a escola toma a sua parte no processo e a trabalha.
Faço agora uma parada na apresentação e análise dos dados. Os dados
que configuram o estudo de caso da Escola B passam, agora, pelo crivo da primeira
figura (3.3.1) desenhada na Metodologia deste trabalho, que mostra dois grupos de
sujeitos, uma representatividade de professores aposentados e outra
representatividade de professores em atividade da mesma escola. Os professores
em atividade têm suas falas analisadas por duas categorias de análise: a relação
que estabelecem entre a sua ação pedagógica e o PPP da escola e a existência de
cooperação entre os docentes na participação em grupos de estudos que
corroborariam com a constituição de um professor e aluno autônomo. Os
professores aposentados também têm suas informações passando pelo mesmo
crivo, mas estão colocados em linha paralela aos professores em atividade, pois não
têm como considerar as duas situações como correlatas, em função da assincronia
temporal existente.
A Escola B tem um PPP que prioriza o desenvolvimento de um sujeito
crítico, reflexivo, cooperativo e autônomo e visualiza-o como um sujeito
transformador da sociedade. Jean Piaget e Paulo Freire são referências marcantes e
repetidamente lembradas no texto do PPP.
Considerando a primeira categoria de análise, a Escola B tem claramente
localizada em seu PPP a intenção de contribuir na formação de alunos e professores
autônomos, tanto na perspectiva sócio-moral quanto cognitiva. Os professores que
atualmente trabalham na escola não mencionaram nenhuma vez a relação de seu
fazer pedagógico com o compromisso da escola, expresso no documento em
questão. É bem verdade que não contrariam de forma radical o texto do PPP, pois
que suas ações são resultantes da experiência que construíram enquanto docentes,
especialmente pelas oportunidades de estudo que os grupos possibilitam.
231
Os professores aposentados, quanto a essa categoria de análise, são
coerentes em seus relatos, dizendo dos objetivos da escola, a que ela se propunha
e qual era seu diferencial na formação do aluno: de oposição à escola tradicional.
Priorizavam o desenvolvimento da criticidade, da cooperação e da autonomia na
construção de sujeitos participantes de um contexto social em transformação.
Convém ressaltar que quem fala são os professores fundadores da Escola B, os
quais, com certeza, estavam muito próximos dos documentos principais da escola.
A cooperação entre os docentes e os grupos de estudos, segunda
categoria de análise, está presente, atualmente, na Escola B de forma mais frágil
que outrora.
Tem-se pelos estudos acadêmicos que a formação docente é
complementada pelos grupos de estudo, pelos encontros realizados no local de
trabalho. O melhor ensino-aprendizagem é o elemento que une esse grupo de
profissionais; a proximidade teórica construída serve como uma ancoragem para a
ação docente junto aos alunos, consolida a autonomia docente e discente, como
conseqüência.
O grupo docente da Escola B tem uma unidade estabelecida pela
cooperação na execução dos projetos por eles pensados em reuniões. Mas, se
cada projeto tende para uma linha teórica diferente, a escola pode se esvaziar na
globalidade do seu projeto pedagógico, perdendo uma unidade de princípios
presentes no PPP da escola. Na particularidade de projetos, na autoria de cada
atividade começa a aparecer o trabalho de determinado professor, o mais ativo em
oposição aos que esperam acontecer as atividades, não do um coletivo escolar; é
preciso atenção para que os diversos projetos estejam na mesma direção, a que
corresponde à formação do aluno.
Os professores aposentados trazem a marca da cooperação e do grupo de
estudo em seu fazer pedagógico. Inserem a sua história de vida como elemento
significativo no processo de ser um professor. Viveram os grupos de estudo de
forma intensa, tendo demonstrado real segurança conceitual - presente em suas
falas. Dizem que a autonomia e os valores morais facilmente transitavam por meio
de suas ações docentes, com resultados promissores.
232
A autonomia está presente de forma conceitual nos professores
contemporâneos, não de forma uniforme, mas reconhecida em seus componentes
essenciais. No entanto, os professores vêem de forma diferente a autonomia nos
alunos, porque, como constatei, não trabalham a autonomia do aluno como um
objetivo de aula; a autonomia acontece como um ganho para o aluno, que se dá ao
acaso e na seqüência de outros objetivos trabalhados. O professor não planejou
uma atividade que tivesse esse fim específico, ou não relacionou o que faz em aula
com o desenvolvimento da autonomia do aluno, expressa no PPP da escola, que
segue sendo um documento construído para atender a normas externas à escola,
uma vez que não foi referido na fala dos professores contemporâneos. Não posso
deixar de registrar que os professores da Escola B desenvolvem um tanto de
autonomia em seus alunos sem se darem conta desse seu trabalho.
Prosseguindo o estudo de caso da Escola B, apresento a seguir o conjunto
de dados resultantes da observação realizada nas aulas dos professores já
entrevistados.
Os registros focalizam dois tipos de condutas, as de grupo e de conflito, na
relação aluno-aluno, aluno-professor e vice-versa. Convém repetir que não são as
condutas de cada sujeito que têm significado para o trabalho, e, sim, o conjunto de
ações. Por isso, sigo com a mesma sistemática dos quadros que reúnem condutas
similares, os quais ganham uma totalidade única na análise.
O próximo quadro traz situações de conflito e de coação, onde não estão
bem estabelecidas, ou claras, as regras para a convivência e aprendizagem escolar.
Quadro 4.2.14: O conflito na relação professor-aluno
Uma aluna é lembrada que não deve chupar pirulito em aula; outra é chamada pelo
professor para que se vire para frente. Só na terceira chamada seguida ela atende ao
professor. Ela é avisada pelo professor, de forma ríspida, que é a última vez que a chama.
Um colega que acompanha o fato diz: "Upa!", como quem quisesse apontar que as coisas
estão ficando mais sérias. Muitos alunos encontram-se conversando sem se importarem
com os chamados do professor.
A aula demora a começar, o professor chama a atenção dos alunos, mais um longo
tempo se passa até que o professor inicie a chamada dos alunos. Enquanto os nomes são
233
chamados várias perguntas inoportunas ocorrem, interrompendo o professor, da mesma
forma que esse tem de chamar muitas vezes um mesmo aluno. Eles dizem: "Professor,
vamos trabalhar ou não?" Ainda durante a chamada, um aluno começa a cantar “parabéns a
você”, dizendo que uma colega está de aniversário. Percebe-se que é invenção, logo um
outro colega diz que é pelo Dia da Criança, comemorado no dia anterior. Com a metade do
tempo do período já transcorrido a chamada é encerrada e uma folha é distribuída, trata-se
de um questionário com peso na nota semestral. Um deles diz: "Prova de novo!" Na aula
anterior fora feita uma avaliação inesperada em razão de conversa demasiada em aula.
Em dado momento o professor fala para mim e para os alunos, estando na frente
da sala, que esses têm pouco respeito e educação, o que torna a tarefa do professor muito
difícil, diz que esse é o motivo pelo qual ele precisa fazer provas diárias.
São poucos os momentos em que os alunos recebem uma orientação do professor
sobre o estudo ou conteúdo da aula. Existe um polígrafo que foi distribuído no início do
semestre.
Os alunos devem ler um trecho de texto que introduz o questionamento que segue
na folha. O professor diz que os alunos não sabem escutar, por isso farão leitura individual
e silenciosa. Há risos na sala e o professor faz um "psiu". Então, muitos outros "psius"
ecoam na sala. O professor diz: "Tá…, fica quieto!" Então o professor chama a atenção de
alguns e um pouco de silêncio faz-se na sala. Um suspiro na sala; um pedido para que o
ventilador seja desligado, ao primeiro “obrigado” seguem-se muitos outros “obrigados” até
que o professor, mais uma vez, precise dizer que chega.
Um aluno que está sentado próximo a mim diz que o professor pediu um trabalho
com dezesseis folhas, diz que é um "carrasco!".
Uma aluna arrasta sua cadeira fazendo um barulho que chama a atenção do
professor. Ele pergunta quem foi e uma outra aluna aponta quem foi. Um menino do fundo
da sala lembra para o grupo todo o dia em que quebrou uma cadeira em determinada
disciplina. Muitos acompanham a narrativa do colega achando engraçado o fato; o aluno
encerra sua fala dizendo da pena que sentiu do professor naquela oportunidade.
O professor é chamado para explicar um termo do texto; ele devolve a questão para
o grupo de alunos; interrompendo a proposta do professor, um aluno anuncia que faltam dez
minutos para encerrar a aula. O professor opta por falar sobre a palavra em questão,
encerrando a participação dos alunos. Enquanto isso acontece, um outro menino se abaixa
para pegar nos tornozelos dos colegas, que se assustam e fazem alaridos, sempre
distraindo a atenção da aula.
As observações deste último quadro são todas de um único período de aula.
A relação professor-alunos não é de uma ação conjunta. O professor faz uso de seu
lugar de autoridade pedindo silêncio, fazendo intervenções, com as quais os alunos
não se importam, pois seguem desconsiderando a proposta de aula que o professor
faz. As avaliações diárias não são sentidas pelos alunos como coação. Eles
parecem não ter receio de decair no julgamento do professor, por isso não se
importam com as avaliações e as chamadas de atenção que ele faz, desde que
possam continuar conversando, o que fazem sem constrangimento. A coação
presente tem, pois, um resultando nulo.
234
A relação está polarizada na figura no aluno, de forma a esse se manter num
lugar egocêntrico, não contribuindo com a construção coletiva de uma aula. Há um
desequilíbrio nas relações de trocas entre os alunos e professor, o que reforça a
situação da individuação de ações. Nenhuma das três condições de equilíbrio de
uma relação
61
faz-se presente (escala comum de valores, conservação de acordos e
reciprocidade de pensamento).
As relações sociais e o contrato pedagógico estabelecido entre o grupo e
cada professor têm esta função: possibilitar relações de troca para que a aula
aconteça. Os alunos podem, sim, quando articulados entre si, impedir a ação do
professor, dificultar todas as boas intenções de aula do professor, por mais que este
se disponha a diferentes abordagens e diferentes metodologias de trabalho.
As situações de conflito - pela não cooperação - estão presentes na aula,
onde o professor tenta chamar a atenção dos alunos sem que obtenha um bom
retorno dos mesmos. Existe uma ausência de presença docente na aula, pois nem a
coação heterônoma é utilizada como tentativa de encaminhar a aula. Como dito, é
uma relação desequilibrada pela sobreposição da vontade do aluno à possibilidade
de aula trazida pelo professor.
O próximo quadro traz uma situação de conflito similar ao último quadro, no
entanto na situação a ser relatada se observa a presença de uma ordem externa, de
imposição da coação e aplicação de normas restritivas representada pelo segurança
da escola.
Quadro 4.2.15: Situação de conflito e a lei externa
Ainda no início da aula o professor chama a atenção de uma aluna por motivo de
conversa. Ela entrou na sala conversando com uma colega, sentou-se virada para trás e
seguiu trocando idéias com a companheira. O professor pretende iniciar a chamada e tal
fato o incomoda. Quando advertidas pela primeira vez, pouco se importam, seguem
conversando. O professor vai até elas e diz para uma que se retire da aula. A aluna se cala,
mas não se vira para frente e tampouco olha para o professor. Não há qualquer sinal de
constrangimento por parte da aluna. Um colega que se senta ao lado das meninas oferece
"ajuda" ao professor prontificando-se a chamar o segurança da escola: "Quer que chame o
segurança?", na intenção de que esse tire a colega da sala, atendendo ao determinado pelo
61
Piaget, Estudos Sociológicos, 1959-1973.
235
professor. (esse fato parece similar ao primeiro relato do quadro anterior, no entanto não é
o mesmo, aconteceu em outro dia e com um outro professor).
Uma aluna engatinha na sala por entre duas fileiras de classes. O professor está
ao seu lado, chama sua atenção e pede que ela volte para a sua cadeira, porém ela faz que
não ouve, continua no chão procurando um pedaço de grafite. Devido ao descaso da aluna
com relação ao pedido, o professor toma a decisão de dizer que ela saia da aula. Nesse
momento ela volta para sua classe mesmo sem o grafite que procurava. Não faz qualquer
movimento que indique indecisão sobre o sair ou não da classe, como também de incômodo
com a presença do professor em relação a ela. Um colega que se senta na fila ao lado e
que acompanha a situação diz: "Tem que chamar o segurança". Passados poucos minutos
diante da situação, que ainda era tensa, o colega mais uma vez se prontifica a chamar o
segurança da escola. O fato fica assim: a aluna não sai, o segurança não vem e a conversa
continua.
Ouve-se na sala o diálogo: "Não vou perder tempo com imbecilidades!”, “Está me
chamando de imbecil?" A turma volta-se para as duas meninas que disseram tais frases.
Faz-se um breve silêncio e, quando percebem os olhares sobre elas, mostram surpresa,
dizendo que estavam conversando. Uma delas pergunta então ao professor se estavam
incomodando, recebe uma resposta afirmativa. De forma muito tranqüila, ela o inquire sobre
o porquê de ele não ter feito para elas um sinal de "Psiu"? Dos que olhavam o
acontecimento ouve-se a complementação: "Professor, quer que chame o segurança"?
Quando um aluno vai entregar seu trabalho na mesa do professor, é informado de
que falta muito pouco para que não mais participe desta aula. O professor lembrou-o de
uma outra oportunidade em que anulou o trabalho de um outro aluno, advertência que não
causa qualquer impacto no aluno.
Um aluno pergunta em aula sobre um trabalho realizado, se contará para a nota
final. É informado de que o trabalho só será considerado para alguns alunos: os que
incomodam em aula.
O quadro tem a situação do aluno que chama por uma restrição externa,
heterônoma, sob a forma de punição restritiva, e do professor que não faz da
situação uma possibilidade de conversação, de transformação do conflito em
conteúdo de aula. Cabe lembrar que, no registro das entrevistas dos docentes desta
escola, foi unânime a observação de que as situações de conflito, ou de desajustes
em aula, são sempre motivo de conversação imediata no grupo, na intenção de
redimensionar a situação de conflito.
Chamar o segurança da escola mostra um retorno ao patamar heterônomo
pelo adolescente, quando poderia desejar a discussão com vista à solução
democrática. Esse é um lugar para o qual o jovem com freqüência retorna, de
aceitar a posição de mando do adulto como sendo a melhor solução, tal como uma
fase intermediária entre uma posição heterônoma e uma posição autônoma.
Os alunos que por várias vezes se dispuseram a chamar o segurança da
escola retomam a necessidade de uma justiça retributiva, eles observam a situação
236
de um colega sem estar diretamente envolvido no conflito. Seria esperado que estes
alunos fizessem uso de uma consciência moral de uma justiça distributiva. Esta
última deveria ser a primeira alternativa perante a situação de conflito relatada no
quadro acima, no sentido de que o imperativo fosse o de não desejar ao outro o que
não se deseja para si, num autêntico movimento de descentração para o julgamento
da ação moral. No entanto, existem as leis e as regras existentes a priori, com sua
função reguladora, exteriores à consciência individual. Chamar o segurança para
limitar a ação da colega equivale a chamar o sistema de leis, de imperativos
externos, para algo que ainda não funciona no plano das trocas interindividuais por
si só, do respeito eqüitativo entre os sujeitos diretamente envolvidos com o
acontecido, prevalecendo, então, o respeito ao mais velho, da heteronomia, que é
chamado para apaziguar uma situação de forma imperativa e restritiva.
As regras externas e que são expressas pela força de lei têm a função de
regulação do coletivo; no entanto, as leis não são absolutas e aplicáveis sem o
julgamento concomitante de uma subjetividade interna, que atribui um valor de
eqüidade às mesmas. As leis externas, dessa forma, fazem par com as leis internas
de um sujeito, quando resultantes da tomada de consciência e do julgamento do seu
contexto, fato possível quando o sujeito é capaz de operar no plano das hipóteses,
do pensamento formal de Jean Piaget.
Também cabe a observação do papel e lugar de desvalia que o professor
ocupa frente a muitos destes alunos. O professor tem dificuldade para encaminhar
algumas atividades que pretende, que correspondam ao trabalho do seu
componente curricular, utiliza a estratégia de provas quase que diárias, como
punição, e os alunos trabalham a partir de textos escritos, uma vez que “não sabem
ouvir”. O grupo de educandos está mais aliado aos interesses dos colegas e as
motivações pessoais de cada um do que à proposta de uma aula. Como dito
inúmeras vezes o adolescente tende a responder ao grupo, que lhe devolve a
possibilidade de pertencimento ao próprio grupo, onde, provavelmente, as relações
se estabelecem com o critério da reciprocidade. As observações acima recortam
situações onde a reciprocidade entre professor e grupo de alunos não está
consolidada e, como dito nos pressupostos iniciais deste trabalho, o grupo de
alunos, quando não vinculados, inviabiliza a aula do professor. A relação precisa
237
estar estabelecida em uma aula, principalmente a relação de cooperação, que
facilita o desenvolvimento da autonomia moral do aluno.
Os dois próximos quadros trazem uma situação que, de início, me pareceu
de nítida ação e presença heterônoma do professor em aula, pela forma como
conduziu a atividade de conferir aluno por aluno quem fez a tarefa de casa. No
entanto, na entrevista com o mesmo professor percebo a real intenção da cobrança
docente.
Quadro 4.2.16: Situação de conflito que retorna à aula
Os alunos levaram para casa uma tarefa de escrita, era o fechamento de um
conteúdo que vinham trabalhando até então. Após a aula iniciada o professor pede que
determinado aluno leia seu tema de casa, mas ele diz que não o fez. Então, o professor
pede para outro e passa por vários sem que nenhum tenha feito. Quando pergunta para
uma menina se fez, ela diz baixinho que fez. Ele pergunta mais uma vez: "Você fez?" Ele
vai até a classe ler o trabalho da aluna, que estava esboçado, mas tinha os tópicos
principais. O professor pede, então, que ela o leia para a turma já que é um dos poucos
feitos, para que eles façam o comentário final sobre o assunto a partir do trabalho dela.
Não elogia a aluna por tê-lo feito.
Na entrevista com o professor protagonista do quadro anterior tenho o
seguinte depoimento:
Quadro 4.2.17: A explicação do professor
A turma em questão é uma turma boa. Eles têm essa coisa de se ajudarem, como
tem, também, uma meia dúzia de alunos que são excluídos do grupo por sua timidez, mas,
no geral, a turma se mostra solidária, se ajudam positivamente e negativamente.
Constituem uma turma de adolescentes. São bons de trabalhar, são alegres, divertidos,
espontâneos e não são sempre iguais: tem dias que estão bem humorados e participam
ativamente da aula, como tem outros dias que estão distantes. Penso que isso tem a ver
com a organização deles, da adolescência. Por exemplo, esse trabalho que eu pedi de
tarefa de casa, e você me viu cobrando em aula quem fez ou não fez, foi pelo motivo de eu
ficar sabendo que eles se organizaram fora da sala para que ninguém apresentasse a tarefa
feita. De propósito eu fiz aquela conferida verbal de um por um, de quem havia cumprido
com a responsabilidade de casa, ainda mais quando percebi que a menina que havia
liderado o movimento foi uma das poucas que fez o tema [três ou quatro alunos fizeram].
Isso foi naquela hora que falei sobre os líderes, para que eles percebessem que quem dizia
para os outros não fazerem faz diferente do combinado. Eu não ia dizer a eles que eles
haviam sido traídos pela colega deles e nem dizer nomes, eles é que precisavam se dar
conta. Eu espero que alguns tenham feito esse raciocínio, fiz para que eles dessem uma
“pensadinha”.
238
A situação acima tem duas possibilidades de análise: uma que fala da falta
dos alunos com relação a uma responsabilidade escolar; a outra se opõe a esta
perspectiva de pensamento e dá indícios de uma independência do jovem com
relação à condução que costumeiramente recebe do adulto. O fato de os alunos se
organizarem para não fazerem a tarefa é um movimento saudável entre os
educandos, desde que não abusivo e freqüente, de forma a revelar outras intenções
perversas ou de acomodação. A organização do boicote à tarefa exigiu que os
alunos se posicionassem diante do pedido de alguém que ocupa o lugar da
autoridade na relação professor-aluno; é o rompimento de padrões heterônomos, de
o professor estabelecer tarefas para serem cumpridas, e dos alunos perguntarem:
“Qual o propósito de tal tarefa?” A análise do conjunto é saudável para a construção
da autonomia, talvez até quando feita dessa forma velada, pelo boicote à tarefa.
Trazer à tona esse movimento dos alunos foi oportuno, assim como é sempre
oportuno que o professor possibilite que, gradativamente, as reivindicações ocupem
o espaço do diálogo e não se sistematizem pela via do boicote ou rebeldia
62
.
A posição do professor de mostrar à turma que a líder do movimento de
boicote ao tema fez a tarefa, na intenção de que eles se deparassem com as
contradições e incoerências a que foram sujeitos, foi oportuna, principalmente pelo
fato de o acontecido não ter sido convertido em discurso moralizante do adulto frente
aos adolescentes. Também foi diferente da situação ocorrida na Escola A, em que o
professor manda bilhete para casa, para ser assinado pelos pais. É mais provável
que a atitude desse professor tenha um efeito transformador sobre os adolescentes
do que o encaminhamento docente do outro estudo de caso.
Uma outra forma de chamar os alunos à responsabilidade é a tradicional
fórmula do discurso moralizante, que no dizer de Piaget tem pouca eficácia, visto
que nele prevalecem a autoridade e a ameaça do professor sobre os alunos.
62
Rebeldia aqui colocada no sentido de ostensiva resistência, oposição frontal, não de um movimento
que pode ser considerado positivo e necessário ao processo de crescimento, de rebelar-se com
certos limites, ultrapassando-os em direção ao crescimento.
239
Quadro 4.2.18: A reunião com os alunos faltosos
Os alunos vão trabalhar no laboratório de informática. Antes de se sentarem frente
aos computadores são chamados pelo professor para uma sala fechada, com cadeiras e um
quadro branco para trabalho. Na sala reservada os alunos são advertidos seriamente pelo
professor quanto à falta de responsabilidade que vêm apresentando na disciplina. Seu tom
de voz é severo, porém sem ser agressivo. A chamada é para o grupo todo e a ênfase do
discurso é a falta de seriedade. É dito aos alunos que estão brincando, não entregando os
trabalhos nas datas combinadas, estão atrasando na entrada da aula e fazendo as tarefas
com pouco comprometimento. São lembrados de que a avaliação não é só dos trabalhos
que entregam, e, sim, de todos os dias trabalhados em aula, que precisam se dar conta
disso. Enquanto o professor fala, há um silêncio, ele repete o enunciado acima com ênfase;
acrescenta que não mais se preocupará com os alunos, que eles devem saber de suas
responsabilidades e dar conta das mesmas, não vai mais ficar lembrando quem entregou ou
não as tarefas, deixará de se preocupar com eles, devem cuidar por conta suas notas
parciais e final. O professor diz que há alunos na turma que não têm nenhum trabalho no
trimestre para ser avaliado. Enfatiza: "Quem vem à aula será avaliado, os que faltam e
continuam brincando vai faltar nota e, com certeza, farão recuperação". Uma menina
justifica sua falta pessoal, do porquê de não ter entregado determinada tarefa. De imediato
é interrompida pelo professor que a lembra que o problema é anterior à última aula, além de
perguntar para a aluna onde estava o seu grupo de trabalho? Pergunta aos alunos por que
eles não agem como grupo, assumindo responsabilidades que são de todos os elementos
de um grupo de trabalho? A aluna não entende a provocação do professor e continua
dizendo dos seus motivos pessoais, mais uma vez é retomado o aspecto coletivo sobre o
trabalharem junto, de um complementando a tarefa do outro. Diz: "É o grupo que
encaminha o trabalho de todos". Um silêncio se estabelece. O professor agora propõe um
trabalho de complementação de estudos para os que têm lacunas na avaliação, mas
ressalta, mais uma vez, que não vai se preocupar com cada um. Cada um que procure o
professor e faça seu trabalho.
Voltando para a sala de informática, o professor separa os grupos de quatro alunos
em duplas, o que justifica dizendo que quer ver todos trabalhando.
Os alunos por muito tempo são continuamente ajudados, lembrados,
chamados, entre tantos outros verbos que revelam a preocupação do professor de
seguir acompanhando seus alunos tão de perto quanto julga necessário, de forma
que passa a ser uma "agenda" auxiliar do educando. É comum uma tutoria de longa
data do professor sobre o aluno, a qual em dado momento se rompe como se fosse
mágica, geralmente numa situação de estresse, em que o conflito fica evidenciado.
Então, daquele momento em diante tudo deverá ser diferente, inclusive com o
compromisso do aluno de atender a uma demanda de expectativas do professor que
provavelmente não tenha passado por um processo de aprendizagem.
Quero crer no compromisso constante de todo o corpo docente com tal
delegação de responsabilidade para o aluno, de este vir, gradativamente, a dirigir
240
suas atividades, sua vida, de forma oposta aos momentos de estresse e tensão em
que se diz: Agora não dá mais, te vira sozinho que não ajudo mais.
Talvez por isso alguns professores relatem nas entrevistas que não pensam
serem os alunos de oitava série autônomos, atribuindo essa qualidade aos alunos
finalistas do ensino médio. Será porque só agora, nesta série, começam a ver e
pedir que se responsabilizem? Por se darem conta de que também são alunos
finalistas de uma etapa de formação escolar, aliás, de uma etapa que, infelizmente,
uma minoria de brasileiros alcança com sucesso?
Durante essa conversa os alunos ficam calados. Parece que entendem a
solicitação e responsabilidade que agora lhes é dada de forma mais séria, ou, então,
de acato à posição de autoridade do professor, quando eles devem se manter
calados, de forma passiva e obediente; com exceção de uma menina, que insiste em
se justificar utilizando uma perspectiva individual, do seu ponto de vista e da sua
situação particular. Talvez seja a única que se manifestou entre outros que teriam
dito as mesmas coisas. É uma atitude de egocentrismo, de análise personalizada,
enquanto o professor quer falar para o grupo de alunos, pede o compromisso deles
enquanto grupo, pois os trabalhos que deveriam entregar são realizados em grupos.
O fato de um aluno faltar aula não justifica que nada do trabalho seja apresentado
ao professor, uma vez que todos os outros elementos do grupo estavam em aula.
Foi necessária mais de uma intervenção do professor para que a aluna entendesse
que o professor não queria o compromisso ou justificativa dela, mas sim deles
enquanto grupos de trabalho.
As restrições, às quais estamos continuamente sujeitos, não são sempre
impeditivas de um desenvolvimento autônomo. Dar-se conta da regra estabelecida,
ainda mais quando foi estabelecida pelo consenso, e atender a ela é expressão de
crescimento, afinal, as relações são constituídas por limites.
Quadro 4.2.19: As regras não coercitivas
Chegam quatro alunos atrasados para a aula. O professor pára na frente deles e
diz que não entrarão sem uma autorização da coordenação, pois estão além do tempo de
tolerância permitido para o ingresso em aula e, ainda, diz ele, com lanche na mão e
bebendo, sabendo que isso não é permitido no laboratório de informática.
241
Após um ar de descontentamento, eles se viram para ir à coordenação. O que está
com a lata de refrigerante na mão diz: "Ora bebendo!… Não é bebida de álcool!".
Só um dos quatro alunos volta com a permissão para assistir à aula. O professor
pergunta pelos outros e fica sabendo que os outros três alunos estavam no bar quando
bateu para entrarem em aula, enquanto ele demorou porque estava na biblioteca pegando
um livro.
Em continuidade ao fato até aqui discutido, o professor faz uma detenção de
alunos atrasados que pretendem entrar na aula. Os limites impostos, que têm a
força da norma externa, da lei, é uma das características do mundo adulto da qual o
adolescente se apropria gradativamente. Constituir o seu espaço de ação exigirá a
descoberta de uma trilha que oscila entre a livre expressão, a liberdade, a
individualidade, a discordância, a autonomia em seu sentido pleno e o lado que
pende para o coletivo, do diálogo, da troca, das responsabilidades com o grupo e
das relações organizadas por um mínimo de regras entre sujeitos.
Os alunos do último quadro que foram impedidos de entrar na sala tentaram
argumentar com o professor usando de sedução; usando da autoridade atribuída
pelo sistema escolar, o professor também argumentou, dizendo que eles estavam
infringindo duas das combinações já conhecidas por eles, de estarem atrasados
além de trazerem alimentos para o laboratório de informática. Os alunos se
renderam sem mais questionar o professor.
As observações das aulas revelaram comportamentos no grupo que
provavelmente não são intuídos de imediato pelo professor, uma vez que este
coordena tantos acontecimentos durante uma aula, a exemplo das situações de
delações entre os alunos, do contexto em que ocorrem.
Na relação entre os alunos transitam situações de coação, ou de
apontamento de deslizes de uns sobre os outros, o que acontece de forma gratuita e
parece ser realizado sem a intenção de prejudicar o colega. Penso que, na verdade,
a intenção é ter o mesmo privilégio que o colega desfruta. Em outras oportunidades
acontece a delação do colega pelo simples hábito de comunicar ao professor sobre
as irregularidades que estão a acontecer sem o seu olhar fiscalizador e que, de certa
forma, confirmam a percepção pelo aluno da necessidade de uma intervenção
242
restritiva de forma permanente – resgatando o modelo heterônomo de relação
escolar.
Quadro 4.2.20: As delações
Um colega devolve a outro um toca-disco CD portátil que tinha na mochila junto
com um disco. O aparelho fica sobre a classe enquanto a dupla de meninos trabalha. O
professor vê e diz para o aluno, sem que ele peça, que, se, para ele, não incomoda ouvir
música enquanto trabalha que pode ouvir baixinho, para não importunar os colegas. O
menino ainda pergunta: "Pode mesmo?", ouve como resposta um sim, desde que não cante
alto e não incomode os colegas. Os dois meninos da dupla repartem os fones e fazem seu
trabalho quando são apontados por uma menina que está num grupo de quatro meninas e
que conversa muito: "Professor, olha, eles estão ouvindo música", "Sim, fui eu quem
deixou". Ela não se conforma e pede explicações. Depois de ouvir o professor vai até o
colega e pede um dos fones para também ouvir, demora um tempo para voltar ao seu grupo
e trabalhar.
O professor chama um leitor para o texto. Um aluno, sem erguer a cabeça, diz alto
o nome de uma colega que se senta no outro lado da sala e pouco participa da aula. Ela
não se manifesta e um outro interrompe o silêncio fazendo a leitura para o grupo.
Uma aluna diz em voz alta ao professor que a colega que se senta a duas fileiras
da dela não parou de conversar a aula inteira, não calou a boca. A que se senta na frente
vira-se e entra na conversa dizendo: "E não parou de me encher!" A reclamação não tem
retorno por parte do professor.
O professor aproxima-se de quatro meninas que fizeram um grupo, a tarefa é para
ser feita em duplas. São perguntadas sobre quem é dupla com quem. O professor separa,
faz duas duplas afirmando que não quer todas juntas. Uma das alunas faz cara de quem
não gostou da separação, e o professor responde dizendo que não adianta fazer cara de
"mau-humor". A mesma aluna pergunta: "Quando que vai dar certo?" E obtém como
resposta: "Eu sei que não dá certo". Elas voltam a aproximar as classes pouco depois. O
professor retorna ao grupo e diz: "Gurias, não quero que vocês fiquem juntas". Elas acabam
fazendo num acordo com o professor. Pela terceira vez o professor se aproxima do grupo
dizendo que com a conversa que está não podem ficar juntas. Dizem, então, que é a
primeira vez que conversam, que é uma injustiça o que o professor diz. O colega da dupla
ao lado ergue a cabeça do seu trabalho entra na conversa e diz que é uma mentira delas,
que estão, sim, conversando. Elas insistem que não estavam conversando, dizendo que é
mentira do colega, agora olhando para o colega que confirmou a denúncia.
Os alunos parecem avaliar a "gravidade" da situação, tal como na etapa
inicial da sanção expiatória, a partir do indício presença do professor junto ao aluno
que está sendo advertido. As de "pouca importância" são aquelas em que os alunos
de longe fazem a indicação para o professor de alguma irregularidade, mas têm o
olhar preso no colega, como uma brincadeira ou uma indicação de que estão
observando o que o colega faz, reatando o vínculo existente entre eles pelo olhar e
aparente "cuidar" um ao outro.
243
Sempre que o professor se dirige até a classe do aluno para fazer uma
advertência e se põe frente ao conflito, a turma interrompe o seu trabalho e passa a
observar o acontecimento; mantém a atenção voltada para o incidente e aguarda
algum tipo de punição ou restrição do colega. Quando essa não existe, os alunos
manifestam sua indignação dizendo que o colega merecia sair da sala, perder nota
ou algo similar. A presença de uma sanção expiatória e uma justiça retributiva é
ainda solicitada pelos alunos, fato que revela um posicionamento mais heterônomo
do que autônomo.
O apontamento de um aluno sobre a conduta inadequada de um outro –
uma situação de delação – não parece ser feito com a intenção de desqualificar o
colega ao olhar do professor, tampouco de solicitação de qualquer tipo de punição,
mas de manter a relação com o colega, como uma brincadeira de mostrar ao
professor que está atento ao que esse colega está fazendo. Nessas situações, o
olhar de quem delata está preso no olhar do colega infrator; o fato do professor
responder ou não à delação pouco importa. São os laços de grupo que estão
sendo reatados.
A conduta das meninas que dizem não estar conversando é similar ao
relatado e comentado no estudo de caso da Escola A, quando foi observado o fato
da posição egocêntrica assumida pelas adolescentes, de não perceberem o
contexto do grupo, de que sua conversa poderia estar atrapalhando o trabalho dos
colegas. É a experiência social que vai sensibilizando o adolescente para a
observação do contexto que o cerca e adequando suas ações em função de igual
liberdade e direito daqueles com os quais convive. Uma experiência que não é
casual, pois, quando mediada por um sujeito que reitere a situação de mútua
responsabilidade, faz com que a construção de normas para o convívio seja mais
prontamente internalizada.
A descentração é uma conduta importante na conquista da autonomia, fato a
que nem sempre os alunos desta série observada atentam de forma espontânea.
244
Quadro 4.2.21: A descentração
O professor fecha uma cortina da sala por causa do sol. O aluno que está junto à
janela reclama dizendo que gosta muito daquele sol, assim está muito bom para ele, diz ao
professor. O professor aponta para os alunos do meio da sala, para quem o sol incomoda.
Mais uma vez ele pede para que a cortina fique aberta. Por fim, a cortina é fechada pelo
professor e assim fica.
Repetidas vezes as observações fizeram-me pensar em alunos que
priorizam a satisfação pessoal, o egocentrismo adolescente, pouco se importando
com a tarefa enquanto coletiva. Convém lembrar que a fase da adolescência, em
que se encontram, é a idade na qual as vantagens pessoais precisam ser
asseguradas para manter um tanto de auto-estima perante o grupo. Outro dado que
ratifica a idéia gregária do adolescente é que, por mais que os conflitos se repitam
em sala, não há desarmonia nas relações; todas essas situações características da
rotina da sala de aula não parecem interferir nas relações pessoais, afetivas e de
amizades existentes.
O professor pode abrir espaços para repetidas e oportunas reflexões sobre o
cotidiano escolar, de forma a possibilitar a ascendente tomada de consciência do
adolescente tanto sobre as relações de cooperação, como de respeito e
interiorização das regras já existentes e das construídas pelo coletivo. Para essa
tarefa faz-se necessária a presença de um professor também autônomo e crítico,
que ajude os alunos a considerarem as diferentes interações, as diferentes
proposições em jogo e que se implicam mutuamente, no jogo do debate que estende
o plano individual para o plano coletivo, e vice-versa. A escola tem em si um
complexo sistema de regras e hierarquias que pode ser um objeto de estudo para o
entendimento de sistemas sociais mais amplos, como o da sociedade em sua
complexidade.
Jean Piaget sustenta, no artigo "Procedimentos da Educação Moral", de
1930, que a autonomia moral representa o desenvolvimento da personalidade
humana de forma plena. Para tanto, fazem-se necessárias as melhores
oportunidades nas relações interpessoais, em oposição aos ambientes autoritários
de opressão intelectual e moral.
245
O adolescente capaz de organizar e de responder a considerações
hipotéticas no plano conceitual e lógico está também habilitado a respeitar e fazer-se
respeitar de acordo com as normas de reciprocidade em uma discussão que envolve
considerações objetivas e subjetivas, de forma simultânea. O principal avanço da
moral e da autonomia é o de poder distinguir a fronteira entre o eu e o outro, entre o
eu e nós, de coordenar o ponto de vista pessoal com os de outros sujeitos, de um
grupo ou de um adulto.
O desenvolvimento tende a levar o sujeito ao exercício de uma autonomia,
no entanto nem toda a autonomia supõe a presença de uma conduta sócio-moral
equivalente. Muitos adultos exercem sua autonomia sem necessariamente estarem
comprometidos com o coletivo, ou melhor, sem que reconheçam o mesmo direito à
autonomia, liberdade e eqüidade de direitos que tem um outro sujeito; nesse caso,
as escolhas, inadequadamente ditas como autônomas, tendem a considerar a
necessidade de um ganho pessoal, tal como os adolescentes destes estudos de
caso. Sujeitos adultos, muitas vezes, agem considerando uma ação egocêntrica
somente, nesses casos a equação social proposta por Piaget nos Estudos
Sociológicos (1965-1973) pende para a individuação, para o egocentrismo e para a
conduta moral da heteronomia, porque se opõe à cooperação. O patamar qualitativo
que leva a uma autonomia moral, da cooperação é o diferencial a ser adquirido
também pelo processo de aprendizagem escolar.
Voltando à especificidade das observações que compõem este estudo de
caso, tem-se que as ações de cooperação entre os alunos existem, mas não vão
muito além da prestação de ajuda quando solicitada, ou seja, não acontecem de
forma espontânea, o que não qualifica essa ajuda como um ato moral autônomo.
Os grupos, forma como os adolescentes preferencialmente trabalham,
servem para a aproximação física, mas, quando necessitam realizar a tarefa, cada
um faz a sua, mesmo estando sentados num mesmo grupo. No final usam dessa
proximidade para conferir o resultado do trabalho com o colega.
O conteúdo do último parágrafo – o trabalho em grupo – está reunido em
ações dos educandos no próximo quadro.
246
Quadro 4.2.22: Diferentes grupos de trabalho
As classes estão organizadas por filas e o professor quer introduir um novo
conteúdo a partir da pergunta sobre as atividades dos alunos no final de semana. Pergunta
sobre os filmes que viram. Muitos respondem e passam a conversar entre eles como se a
sala todo fosse um único grupo, desprendem seu olhar do comando do professor. Falam
especialmente de um assalto no shopping, assunto que não vai interessar ao professor, nem
serve para o tema que quer desenvolver com os alunos. Estão sentadas em seus lugares,
as conversas se estabelecem tanto entre os que estão sentados próximos como com os que
estão sentados distantes. Todos se entendem, não é uma situação confusa, existe uma
unidade na conversa.
Os alunos estão em pequenos grupos, havendo também os que preferem trabalhar
sozinhos em suas classes. Ouve-se a pergunta: "Como se faz isso?" Do outro canto da sala
ouve-se "Multiplica por 10!"; um outro pergunta: "Quanto é…?".
É autorizado um trabalho em duplas, com tolerância máximo para os trios. O
exercício a ser feito é de fixação de conteúdos, resolução de questões. Não muito tempo
após, existem vários grupos com mais de três alunos. O professor adverte que não foi o
combinado, mas eles seguem trabalhando da mesma forma. Alguns alunos parecem
preferir o trabalho individual e assim permanecem.
Observo mais de uma vez um certo ritual: num primeiro momento, os alunos
conversam entre eles, de forma informal, assuntos que não têm relação com aula,
independentemente da distância entre as classes; depois, olham a folha de papel que
receberam há algum tempo do professor, inteiram-se do assunto e começam a arrastar suas
classes para se aproximar do colega que se senta ao lado ou junto a outro colega escolhido;
depois de se aproximarem, continuam a conversar enquanto lentamente fazem o trabalho,
ou, então, em poucos minutos resolvem a empreitada e seguem conversando. Conferem
um com o outro as respostas encontradas e seguem trocando opiniões até que a maioria
dos colegas também termine a tarefa.
Mesmo com as classes estando em filas, as trocas de opiniões acontecem o todo
tempo. Os alunos fazem seus trabalhos individuais, mas o conferem com o colega da fila ao
lado: "Quanto deu?”, “Qual foi a tua resposta?” E sempre são atendidos em sua solicitação;
recebem indicações de pistas, trocam as folhas de forma espontânea para a conferência de
resultados.
De tempo em tempo, o professor pede para que os alunos baixarem o tom da voz.
Num clima descontraído, de brincadeiras e trabalho, um dos grupos chama o professor e
mostra o resultado do trabalho feito, que é diferente daquele do gabarito disponibilizado aos
alunos. O professor confere o exercício, eles reconhecem o erro; parabeniza os alunos do
grupo e anuncia para a classe a mudança de resultado.
O professor avisa que vai até o laboratório de informática. Os alunos ficam em sala
trabalhando tal como se ele continuasse presente. É a mesma conversa, o mesmo levantar
das cadeiras.
Um aluno pega a folha do outro que está sobre a classe para conferir um resultado,
percebe um erro e mostra para o colega, que volta a se debruçar sobre sua folha para
corrigir o exercício.
O professor está anotando no quadro os procedimentos de um exercício que está
fazendo com um aluno sentado no fundo da sala. No exercício anterior, feito com outro
menino, esse sugerira um procedimento diferente, mais simplificado. Enquanto está
trabalhando com o professor não há nada sobre sua classe, de imediato o colega da frente
lhe alcança um papel para que ele tenha um material onde possa concretizar certos
procedimentos. Tão logo recebe a folha, tenta pegar da mão desse colega sua caneta, que
247
é segurada com mais força, no entanto prontamente o segundo colega da frente lhe alcança
a caneta que tem na mão.
Os alunos costumam levantar-se de suas classes para pegar o material de que
necessitam. Fazem isso sem atrapalhar o andamento da aula, a não ser quando pretendem
sair da sala; pedem então para o professor. Algumas vezes fazem-no de forma a
interromper a aula, outras vezes esperam um intervalo do professor para pedir, o que
parece depender do professor que trabalha com eles no momento.
É necessário salientar a contínua movimentação dos alunos, o grupo se
movimenta com o intuito de prestar auxílio, de responder a um questionamento
sobre o assunto da aula, ou da conversa sobre temas diversos. É perceptível o
quanto a turma funciona como um coletivo que interage apesar da ocasional
distância entre as classes; sempre que oportuno, conversam, estabelecem trocas,
num jogo de agrupamentos móveis, ora com um ou dois, ora com muitos, como
também, em determinados momentos, com a turma toda falando como um único
grupo.
Não parece mais ser da cultura escolar contemporânea, especialmente com
adolescentes em aula, a existência de um ambiente silencioso, de seres imóveis,
onde até os gestos dos alunos eram refletidos e o olhar do professor comandava
todas as ações, movimentos e atitudes em aula. As conversas se assemelham ao
diálogo estabelecido numa sala de chat, onde vários assuntos transitam de forma
cruzada e sem que nenhum dos elementos perca a continuidade da conversação. O
professor é um personagem da aula, reconhecido na função de prestação de auxílio
na medida da necessidade do aluno ou do grupo.
É de se salientar, o grupo está estabelecido, as relações de cooperação
também, mas com pouca ênfase na construção do trabalho escolar, de ajuda mútua,
prestada de forma espontânea ao colega, na resolução de desafios que conduzam à
aprendizagem. As ações dos alunos não estão entrelaçadas à ação de outros
colegas para a aprendizagem – os alunos não trabalham em grupo, eles estão
juntos.
Ainda é pertinente a pergunta: onde entram as ações efetivamente
cooperativas? As que comprometam o aluno com o colega, com a articulação de seu
pensamento com o de outro, no exercício das descentração, em discussões que os
lancem a questões que envolvem a resolução de problemas cognitivos, sobre as
248
polêmicas que diariamente transitam nos noticiários e na vida de cada um? Por que
tão poucas vezes prestam auxílio de forma espontânea ao colega? Por que tão
poucas vezes trazem para a aula uma questão que desafia à reflexão pelo grupo?
Por que quase nunca defendem um posicionamento pessoal com argumentos
suficientemente consistentes num embate de idéias com os professores e colegas?
A resposta a tais questões pode estar na ausência de autonomia sócio-moral
e cooperação entre os alunos, ou, então, na falta dum espaço para que tais
conteúdos se concretizem no diálogo, uma vez que, quando o professor abre uma
fresta com a pergunta "O que fizeram no final de semana?", uma enxurrada de
conversas surge. Os alunos falam como se estivessem num ambiente de amigos,
trocando idéias, independentemente do local onde se senta o colega, ouvindo uns
aos outros, trazendo vários assuntos e, desprendendo o olhar do professor, falam
entre eles até que em dado momento há um corte e a aula, conforme planejada pelo
professor, se instala. Então, todos os assuntos trazidos para o grupo ficam
interrompidos.
Duas situações são simultâneas e aparentemente contraditórias: o do
trabalho em grupo, que se consolida como uma necessidade dos adolescentes, e a
forma de trabalhar, que ainda é individualizada, pois cada um faz o seu trabalho.
A forma preferencial de organização dos alunos no espaço da sala são os
agrupamentos. Os alunos, em geral, dão pouca atenção ao momento coletivo da
aula, quando um exercício é respondido no quadro, por exemplo, talvez porque o
aluno já tenha conferido a sua resposta com o colega mais próximo. Também fica
evidenciada uma forma de relação entre eles na qual existe uma grande tolerância
com relação à conversa que os colegas fazem, pois todos têm e usam esse direito;
conseguem, nesse ambiente, realizar seus trabalhos e também parecem aprender.
Também, não compreendem a necessidade de silêncio e ordem na sala como uma
consideração e respeito ao colega que trabalha, que necessita de tais disposições
ambientais para o raciocínio intelectual; a individuação e o egocentrismo,
característicos das relações heterônomas, também disputam espaço nas relações
de grupo.
Existe uma peculiaridade nesta Escola B: os alunos trocam de sala a cada
nova aula. O professor tem sua sala fixa. Funciona muito bem essa estratégia de
249
organização escolar, posto que os alunos interiorizaram a responsabilidade de
chegarem juntos, como um grupo, à outra sala de trabalho.
A relação professor-aluno é ratificada em cada recreio. Os professores
ficam no pátio com os alunos por escolha pessoal, não com a intenção de vigiar o
recreio - para isso há vários seguranças circulando -, mas de conversar; ali são
cercados pelos alunos e conversam animadamente. Não há uma corrida dos
professores para a sala dos professores tão logo soe o sinal do intervalo, negando-
se a atender ou a falar com os alunos - alegando ser esse um tempo deles,
consagrado para a sua "indisciplina escolar”, como é comum ver e ouvir nas escolas.
A mobilização maior de cada aluno parece estar voltada para as interações
sociais que acontecem de forma sincrônica ao trabalho escolar. Por esse viés, do
que eles conversam, parece que os alunos constroem uma parcela da autonomia no
espaço escolar.
Há situações, no entanto, em que há uma ação mais conjunta entre colegas
e entre aluno-professor, numa relação mais simétrica, apesar de menos freqüentes.
Quadro 4.2.23: Relações que tendem para a cooperação
Em dado momento, uma aluna confere com a outra o resultado de um exercício.
Elas percebem que encontraram diferentes resoluções, o que faz surgir a dúvida sobre
quem está certo. O professor é chamado e decide por pedir para uma das alunas que
resolva com ele o exercício no quadro. Ele pergunta à aluna qual o próximo passo, por que
fez de determinada maneira e não de outra, etc. A aluna, da sua classe, vai respondendo e
construindo os procedimentos do exercício; alguns colegas acompanham o trabalho e a
conversação estabelecida; entre esses há outra colega que, de braços cruzados, observa o
que é feito. No final, esta tem seu resultado confirmado e a outra aluna retifica sua folha e
seguem trabalhando, cada uma em sua classe a partir de agora.
Os alunos estão sentados em torno de uma grande mesa onde fazem um trabalho
em conjunto. Um deles assume a liderança e tem diante de si o material que está sendo
produzido; todos os outros opinam e conversam animadamente. As sugestões para o
trabalho chegam de forma informal, brincam a partir de absurdos ou extravagâncias e as
vão colocando na produção coletiva. Em dado momento, o professor chega para ver o
andamento do trabalho do grupo, vê o que está sendo feito e sugere algumas modificações.
Percebe-se que, em ritmo da brincadeira e descontração, o trabalho foi feito.
Numa outra mesa o trabalho está mais setorizado. Dois alunos trabalham
efetivamente e são acompanhados por outros dois colegas sentados próximos a eles,
enquanto outros três, sentados no outro canto da mesa, conversam sobre outros assuntos;
de vez em quando são chamados pelos que trabalham, fazem uma colaboração e voltam ao
tema que os mantêm unidos.
250
Um aluno terminou seu trabalho de avaliação e entrega-o ao professor. Enquanto
retorna ao seu lugar, percebe que o colega está fazendo o trabalho sem o material de
consulta autorizado pelo professor - ele havia dito no início da aula ter esquecido o polígrafo
em casa. O primeiro, sem ser solicitado, deixa seu material na mesa do colega e sai da
sala.
Dois meninos trabalham, um lê e resume o texto e o outro escreve; de tempo em
tempo, param e conversam algo além do texto e acrescentam no trabalho. A sala está em
grande agitação. Um deles levanta-se e vai até um outro grupo, olha o trabalho que os
colegas fazem e dá sugestões, na intenção de complementar o trabalho deles.
Dois alunos, cada um num computador, fazem partes diferentes do mesmo
trabalho. Combinaram que, enquanto um faz a finalização de um texto, o outro procura um
fundo musical para ser usado na apresentação do trabalho. De tempos em tempos se
comunicam, dizendo: "O que achas desta música?"
Um grupo de sete meninos está na frente de um único computador. Há duas fileiras
de cadeiras em frente à máquina. Na frente sentam quatro que realmente monopolizam o
trabalho, estão fazendo um resumo; ao qual cada dá sua contribuição, do tipo: "Põe aí tal
coisa, coloca isto aqui que eu achei…", etc. Os três de trás conversam sem olhar para o que
está sendo produzido. A dado momento, os alunos da frente e que trabalham percebem tal
situação; o menino que parece coordenar as atividades do grupo se vira dizendo: "E vocês,
não dizem nada?" Ele chama à participação os colegas e sugere que os das cadeiras da
frente parem de trabalhar, que não digam mais nada. Os da fileira de trás se sentem
convocados e dizem palavras soltas, coisas que não convencem os colegas, pois não
estavam acompanhando o trabalho. Mais uma vez, o menino que lidera pergunta: "Você aí,
não leu nada?" Tudo isso acontece num clima de seriedade, sem que se caracterizem
ressentimentos entre eles. Os da frente estão literalmente de braços cruzados e olham
para os de trás até que um deles diz algo que é acrescentado ao trabalho; os da frente
voltam a trabalhar e os de trás retomam a conversa paralela.
A relação professor-aluno, na maioria das oportunidades, é amistosa,
propícia aos vínculos e está assentada no mútuo respeito. O professor está
constantemente disposto às solicitações dos alunos, indo a cada classe para fazer
acompanhamento individual aos alunos; inúmeras vezes ele repete a mesma
explicação.
Disso surge uma intrigante questão: até que ponto essa individualização de
uma explicação do conteúdo, feita a cada aluno, em sua classe, atende à
particularidade da aprendizagem pela cooperação de ações? O aluno pertence a
um grupo social - escolar, que pode aprender na interação com os outros, não na
exclusividade da relação com o professor, como parecem priorizar. Esse
251
procedimento do professor reforça a "separação", a exclusividade no atendimento
das dúvidas de cada um, como se fossem os únicos na sala
63
.
Numa aula todos, e cada um, aprendem com as experiências dos outros,
com as hipóteses alheias sendo apresentadas ao grupo e discutidas, mesmo que se
saiba que o ato de aprender é individual, feito na medida em que se reorganizam as
estruturas internas de cada sujeito. Na aula cada aluno seria "forçado", ou
chamado, a acompanhar o raciocínio do professor que fala para um grupo, ou que
responde à pergunta de um colega, a qual todos os outros alunos "deveriam"
também acompanhar, além de tentarem compreender as questões que estão sendo
feitas e seu desenrolar, refletindo junto com as múltiplas intervenções dos colegas e
professor. Isso tudo, num fecundo exercício de descentração cognitiva e utilização
de estruturas lógicas de pensamento, ação coletiva que resultaria no próprio
exercício dialógico-lógico-social de todos e de cada um, sincronicamente. Todo
esse trajeto é interrompido quando cada aluno chama o professor para responder a
sua pergunta. O aprender com o grupo e no grupo fica, portanto, sem acontecer.
Um dos professores, em entrevista, falou sobre as aulas particulares que os
alunos costumam ter, as quais reforçam ainda mais a individuação do ensino e da
aprendizagem. O professor tem a seguinte opinião sobre esse tipo de aula:
Quadro 4.2.24: As aulas particulares
Essa gurizada vem de uma época que qualquer coisa é aula particular. A aula
particular ficou um mercado muito difundido. No momento, a situação financeira fez com que
esse mercado se ressentisse um pouco, e a aula particular está sendo negada. Não
acontece mais na quantidade que se tinha há alguns anos. Os alunos ficavam acostumados
com a "muleta" da aula particular. Daí esses alunos não precisam dividir o professor com
todos, em casa eles resolvem o problema porque os pais pagam.
Existem dois sistemas de aprendizagem circulando em determinados
momentos da aula, os quais acontecem de forma paralela e sem que um interfira no
63
Essa é uma questão já mencionada na teoria do trabalho, trazida pelo movimento da Escola Nova.
A esta questão Piaget diz que a atividade em grupo é a alternativa que congrega a individuação do
aprender e a socialização das relações.
252
outro. Um é comandando pelo professor, que, na frente das fileiras, faz perguntas
que conduzem as atividades dos alunos, diz da atividade a ser feita ou está
atendendo os alunos em suas classes; o outro é comandado pelos próprios alunos,
que estudam em suas classes sem fazerem a solicitação de presença do professor.
Neste sistema cada um vai fazendo as tarefas e vai conferindo o resultado com o
colega; faz lembrar um estudo por módulos, onde há uma progressão a partir do
acerto, num ensino que também é individualizado – reforçando a individuação na
tarefa, tal como a aula particular. Este segundo sistema poderia supor alunos
autônomos na tarefa da aprendizagem, no aprender a aprender; no entanto não é
mais que a resolução de um exercício para que sejam liberados, de imediato, para
outras atividades paralelas à aula. Se estivessem efetivamente empenhados na
aprendizagem, poderiam estar discutindo o conteúdo da aula e fazendo surgir novas
provocações para o grupo todo, transpondo os limites estabelecidos pelo exercício,
trabalhando de forma autônoma, cooperativa, numa ação de mútua ajuda
espontânea com os colegas. Todas essas características existem de forma ainda
incipiente nos alunos da classe observada.
O próximo quadro reúne alguns exemplos desse segundo sistema de
circulação da aprendizagem observada em aula, sem a interferência do professor.
Quadro 4.2.25: Aprender com o colega
Um grupo de meninas está programando os detalhes da apresentação de um
trabalho que fizeram. Enquanto discutem sobre detalhes da apresentação, uma sugere a
cor para o fundo das telas, outra diz que não gosta, pois parece tal coisa…, sugere então
outra. "Põe aí… Troca a letra agora". Vão passando vários itens do trabalho, estão agindo
com descontração e entusiasmo sobre o foco do trabalho.
Quando estão saindo do laboratório de informática, ouço a conversa de dois
meninos que seguem trocando idéias sobre a forma mais original possível de apresentar o
trabalho, trocam idéias e complementam as idéias de um e de outro.
As alunas estão produzindo um trabalho e, para tanto, foram buscar informações
complementares ao tema que desenvolvem. Percebo que trabalharam a partir de uma
divisão de tarefas e agora as reúnem na composição final do trabalho do grupo. Trocam
informações e mostram ao grupo o que trouxeram. Nem todas dão atenção às colegas que
falam, mas, em sua maior parte, as meninas do grupo estão centradas na tarefa de ouvir
umas às outras.
Um menino ainda trabalha em sua folha. Em conversa informal com o professor
soube que é um aluno com dificuldades na compreensão dos conteúdos escolares em
quase todas as disciplinas. Dois colegas que estão conversando, já terminaram suas
253
tarefas, aproximam-se então da classe dele e começam um empreendimento de ajuda.
Apontam na folha do colega onde está o erro e perguntam por que fez de determinada
maneira; fazem perguntas que o auxiliam a retomar alguns pontos da matéria.
O momento é de estudo para uma prova que vai acontecer na próxima aula. O
professor distribuiu uma folha de exercícios e orientou os alunos que usam lápis colorido
para marcar determinadas passagens e acontecimentos: especificou cor vermelha para tal
coisa, cor azul para uma outra. Os lápis são partilhados entre vários alunos, que os pegam
das classes uns dos outros sem constrangimento ou pedido de empréstimo. Não foi
necessário que o professor frisasse a importância da realização do exercício; os alunos
estão realmente trabalhando e, quando conversam, na maioria das vezes, é sobre o
conteúdo em estudo, trocando procedimentos de ajuda mútua.
Quando os alunos reúnem informações para compor a versão final de um
trabalho, estão numa atividade conjunta, mas sem realizarem uma discussão
conceitual - a que promove desenvolvimento das estruturas cognitivas. Eles estão
fazendo uma aprendizagem no cooperar, no aprender a fazer junto, respeitando o
ponto de vista alheio, tendo, portanto, estabelecido as condições mínimas de troca
social. Há de se enfatizar e destacar que existem momentos em que surge a ação
de cooperação espontânea para o aprender, quando, por exemplo, dois colegas se
colocam ao lado de outro e fazem perguntas que envolvem os procedimentos
realizados no exercício.
É também da atividade docente o saber encantar os alunos para o aprender,
levá-los a se aproximar e a se empenhar no esforço necessário a ser despendido
frente à aprendizagem, que só é prazerosa em seus resultados, poucas vezes em
seu processo. O interesse pelo trabalho de aprender não é gratuito nem genético;
os alunos que trabalham de forma independente nos seus trabalhos foram
desafiados em seu potencial e fazem, com certeza, algo que tenha significado para
eles.
Retomo agora a figura ilustrativa das duas últimas categorias de análise
anunciadas na Metodologia, a relação de cooperação terceira categoria de
análise – e a relação de coação – quarta categoria de análise –, todas elas na
interação entre aluno-aluno, aluno-professor.
Com relação à cooperação, que faz par com o desenvolvimento da
autonomia, os alunos demonstram em suas ações vários indícios de sua presença.
No entanto, não de forma constante, há oscilações entre comportamentos
254
autônomos e heterônomos, resultantes do próprio contexto escolar, que tende a
reforçar a posição heterônoma do aluno, mesmo nesta escola onde a presença
construtivista, piagetiana, freireana, escolanovista
64
está registrada no PPP da
escola e na fala de alguns professores.
As relações de reciprocidade, pelo mútuo respeito, entre professor e alunos,
são também observadas fora da sala de aula, o que acaba contribuindo para o
desenvolvimento da autonomia do aluno, resultantes do gosto do professor em estar
com os alunos. A estrutura física da escola facilita tal interação na circulação dos
alunos e professores nos corredores e pátios – muita área de lazer, com bancos,
sombras e recantos.
A avaliação docente de que a turma de alunos da oitava série observada
não é constituída por indivíduos autônomos está parcialmente correta. E sobre o
investimento na formação autônoma dos alunos, esse não é consistente ou
facilmente percebido na ação pedagógica do professor, pois, mesmo quando ele
disponibiliza que eles trabalhem em grupo, muitas vezes a permissão é devida à
preferência dos alunos de assim trabalharem, não porque esteja insistindo para o
desenvolvimento de ações cooperativas entre os educandos que aprendem.
O supervisor escolar lembra, e outros professores entrevistados também,
que o aluno desta escola é crítico. Relatam os docentes que em determinadas
situações precisam fazer uso de bons argumentos para encaminhar algumas ações
junto aos alunos. Tal situação se mostra positiva, mas fico imaginando que a
criticidade dos alunos está sendo construída mais pelas conversas paralelas entre
eles, pelo currículo oculto que transita na escola, do que pela ação docente
planejada e freqüente junto aos alunos e em aula, ou melhor, por meio de uma
variedade de ações que privilegiem a cooperação e a autonomia sócio-moral de
forma proposital. O desenvolvimento da autonomia do aluno não está vinculado a
consistentes experiências partilhadas com o professor dentro da sala de aula.
Os professores aposentados, na primeira parte da análise dos dados,
mencionaram a existência de assembléias de alunos nesta escola, espaço
privilegiado para a discussão da rotina escolar e para o próprio desenvolvimento da
64
Digo escolanovistas pelo fato de Jean Piaget ser reconhecido no Brasil por intermédio desse
movimento, segundo Mario Sérgio Vasconcelos (1996).
255
autogoverno, da autonomia com responsabilidade, dentro de um contexto
democrático, com regras sendo instituídas e discutidas a partir da conveniência entre
todos. Esse espaço não foi mais localizado no interior da escola.
Os alunos mais prestam ajuda mútua quando são chamados pelos colegas
para algum esclarecimento ou no ato de conferência de resultados de exercícios, do
que se organizam em efetivas atividades de cooperação espontânea.
A situação mais comum é de agrupamento, não de trabalho em grupo.
Vejo tal situação como a ausência da ação pedagógica no sentido de fazer os
alunos interagirem em ações recíprocas com seus pares, do aprender a trabalharem
em grupo, a discutirem em aula e aprimorarem as relações sócio-morais, que são
sustentadas pelo recíproco desenvolvimento cognitivo.
As situações de conflito existem e são inerentes às relações sociais, no
entanto nem sempre são aproveitadas como possibilidades de transformação da
conduta do aluno tal como anunciadas pelos professores e, muito menos,
trabalhadas a partir da possibilidade construtivista prevista no PPP da Escola B. O
velho chavão do discurso teórico ser contraditório à prática pedagógica ainda se
confirma. Philippe Meirieu (2002) diz em sua obra A Pedagogia Entre o Dizer e o
Fazer ser quase impossível que a prática pedagógica e a teoria pedagógica
constituam uma desejada unidade, de ser homogênea e equilibrada, com uma
presença constante no interior de uma aula. Existe uma tendência de aproximação
desses dois campos conceituais; e essa é a busca docente na sua formação
continuada, de ter uma teoria que respalde sua ação e a contextualize na prática de
uma aula, que é povoada de novidades, imprevistos e contingências complexas. É
necessário que se faça valer o conhecimento teórico e, também, o resultado das
construções empíricas, da prática, feitas pelo professor no seu trajeto profissional.
As situações de conflito são, na maioria das vezes, ainda encaminhadas
através de atitudes autoritárias do professor, reforçando a posição heterônoma e a
verticalidade da relação social. A essa situação os alunos já respondem de forma
indiferente, não mais se importando com a ameaça verbal ou a prova, até porque
não mais depositam na figura do professor respeito e consideração. Essa é uma
situação-chave para desencadear uma reflexão sobre a indisciplina escolar, ou “falta
de respeito” dos alunos, como anunciada nas entrevistas dos professores. Muitas
256
regras da rotina escolar estão interiorizadas pelos alunos, especialmente as que
dizem respeito aos comportamentos que eles sabem serem agradáveis aos olhos
dos professores; outras nem tanto, as que dizem da atitude de cooperação no
trabalho, feita de forma espontânea. Os alunos ainda são chamados em sua
responsabilidade pelo discurso moralizante do professor, estratégia de pouco valor
segundo Jean Piaget e ratificada neste trabalho.
A situação de coação entre os alunos se fez, especialmente, pelas atitudes
quase que “ingênuas” de delação. A denúncia ao professor parece ser feita para
garantir a justiça igualitária, a possibilidade de agirem da mesma forma, num reforço
à atitude egocêntrica, individualista.
A coação na relação professor-aluno ainda é presente na escola. Tal
situação prolonga a resposta de condutas heterônomas do aluno, que continua
vendo no professor a figura autoritária que comanda a aprendizagem, apesar de não
mais a obedecer de forma incondicional. A escola tem um discurso democrático, de
desenvolvimento da autonomia dos alunos e professores para uma efetiva ação
dialógico-crítica em seu espaço, no entanto nem todos os professores, dos dois
estudos de caso, mantêm essa postura teórica junto aos alunos quando em situação
de aula; fazem-se presentes resíduos da educação bancária, dita por Paulo Freire.
Há de se ressaltar com satisfação que a coação não é a atitude
predominante neste estudo de caso. Essa atitude não é comum a todos os
professores, pois muitos dos observados têm uma relação de respeito estabelecido
junto aos alunos, o que facilita as atitudes de mútua cooperação e desenvolvimento
da autonomia – tal relação existente é pouco explorada pelo professor.
O discurso do professor anunciado na entrevista, de o aluno ser desafiado
em sua postura crítica, de haver espaço para a discussão do cotidiano em repetidas
e freqüentes oportunidades, de o aluno ser inquirido sobre suas idéias e
pensamentos, não se efetivou na prática. Os alunos são principalmente
questionados quanto ao conteúdo formal de aula, do que está sendo trabalhado;
raras vezes se perguntou por que ou como pensam sobre determinada situação, fato
ou acontecimento a respeito dos comentários que invadiam a aula – nas falas
paralelas dos alunos – e que abriam brechas da atualidade dentro da sala de aula,
as mesmas que contribuem para a formação da cidadania, do conhecimento sobre
257
as relações sociais da e na comunidade. A escola tem uma preocupação de que
todos os conteúdos se façam presentes na formação do aluno, porém a contribuição
humanitária a ser despendida na educação do aluno acontece mais nos momentos
informais, de contato fora do espaço delimitado pelas paredes da sala de aula.
258
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No transcorrer da realização deste trabalho novas possibilidades surgiram,
algumas fazendo a síntese de um aspecto do trabalho, outras me levando a novas
descobertas e desafios, e, ainda, aquelas que foram desconsideradas, pois refletiam
o desânimo de determinados períodos na realização do mesmo. Agora, quando as
questões do trabalho voltam à superfície, mais uma vez percebo a complexidade do
ato educativo, onde as relações são múltiplas e interligadas, nada está rigidamente
delimitado.
A escolha metodológica feita de constituir estudos de caso possibilitou um
fecundo trânsito no interior de cada escola. Possibilitou considerar e colocar em
paralelo o PPP das escolas, as entrevistas com os professores e as observações em
sala de aula, além da busca de um suporte teórico-prático sobre a construção da
autonomia no contexto escolar considerando a mesma escola num tempo passado,
feito pelas entrevistas com os professores aposentados, o estudo do movimento
escolanovista e o próprio estudo do desenvolvimento moral na perspectiva da
Epistemologia Genética de Jean Piaget. Todo esse conjunto de dados teve a
intenção de poder registrar algumas derivações ou implicações resultantes do
trabalho moral junto aos alunos, na construção de sua autonomia, e na averiguação
da difusão do ideário piagetiano, referente ao estudo da moral nestas duas escolas.
O trabalho não foi construído com a intenção de julgar procedimentos ou
situações, pelo contrário, pretende ser propositivo. Se utilizado para que inquiete os
professores quanto à formação e ao desenvolvimento da autonomia nos alunos, seu
intento terá sido alcançado.
A Epistemologia Genética de Jean Piaget foi a referência teórica utilizada,
mas também retomei algumas obras de Paulo Freire, motivada pela busca da
autonomia e pela necessária consciência crítica do professor na sua ação
pedagógica. O dizer simples de Paulo Freire nos aproxima afetiva e
intelectualmente do seu texto, que diz da importância do estudo da temática do
desenvolvimento moral do educador com vista ao desenvolvimento da sua
autonomia, cidadania e criticidade, feito através de ações cooperativas vivificadas no
cotidiano escolar. Estou agora mais convicta dessa necessidade.
259
Na obra de Freire a Pedagogia da Esperança (1992) é dito que a esperança
crítica é uma necessidade ontológica do ser humano. Diz ainda: "[…] não há
esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na pura
espera, que vira, assim, espera vã" (FREIRE, 1992, p. 11). O desafio que é lançado
ao docente exige uma ação de despertar para uma esperança que seja crítica e que
o leve a uma atuação profissional fundada no conhecimento, na criticidade e em
ações proativas. O grupo de estudos é o espaço de ampliação dessa criticidade e
construção da autonomia docente. Um professor mencionou em entrevista que
esperava do seu grupo de colegas o incentivo necessário para que não desistisse,
não arrefecesse seu entusiasmo diante dos desafios de cada aula e de cada nova
relação que se estabelece no espaço escolar.
Fica ratificada a constatação de que o grupo que se reúne no interior da
escola pode, efetivamente, modificá-la, ao constituir um grupo que pesquisa sua
prática. O relato dos professores aposentados retomou sempre a coesão do grupo
docente, feita pelo estudo e na construção de projetos que operacionalizassem o
plano pedagógico da escola. Os estudos realizados em reuniões foram citados
como suportes importantes à ação do professor em sala de aula. Os "problemas de
disciplina" parecem ter sido mais bem resolvidos, de forma menos tumultuada,
acredito, pelo fato de a escola, como um todo, expressar sua intenção educativa de
forma clara aos alunos, pela ação do seu coletivo pedagógico em uníssono.
Também esses professores, nos dois estudos de caso, descrevem cenários onde os
alunos e professores desenvolviam ações inovadoras e criativas, sem perderem o
referencial construtivista trazido pelo movimento da Escola Nova. Esses professores
fazem referência ao planejamento conjunto da escola e à consideração dos
documentos escolares, que fundam a ação e especificidade pedagógica.
O grupo de professores entrevistados que atualmente trabalham na Escola A
e a representam não tem mais espaços para discussões teóricas e para o
planejamento de ações conjuntas a serem desenvolvidas junto aos alunos. A
necessidade de estudo dos professores é suprida por investimentos de cada um, e
esses são, eventualmente, partilhados com os colegas. Há uma desarticulação dos
setores que apóiam os professores, de forma que cada um faz o máximo que pode
com o tempo e conjuntura administrativa de que dispõe. O saldo final é de uma
perda sofrida pela Escola A quanto ao espaço formativo dos professores, o que
260
garantiria a articulação com o PPP - que traz considerações referentes à autonomia
dos alunos, sua criticidade e cidadania, conjunto de qualidades construídas através
das interações internas da ação pedagógica e, da escola junto à comunidade e, por
fim, mas não de menor importância, a possibilidade de consolidação da autonomia
do professor.
Na Escola B as reuniões que objetivam o planejamento escolar se mantêm,
os setores de apoio ao professor trabalham integradamente, conseguindo manter
uma unidade docente, especialmente nas ações que acontecem junto aos alunos e
nas combinações pedagógicas feitas na presença de muitos, com a representação
de um coletivo. Mas perdeu, também, o espaço de estudo sistemático, tornando-se
esse mais eventual, quando da necessidade específica trazida por um problema
considerado de maior relevância. Comparando com a Escola A, a perda foi menor,
mas também não mantém o mesmo empreendimento de formação dos professores
como ocorria algumas décadas atrás.
O grupo de professores que se reúne como o objetivo de estudar foi
considerado relevante neste trabalho. É por meio dessa interação docente que se
constitui e se ratifica a autonomia desse profissional, de fundamental importância
para o trabalho de construção da autonomia junto aos seus alunos.
Outro ponto a ser ressaltado nesta conclusão diz respeito à vinculação do
trabalho docente ao que é expresso no PPP da escola. Sabe-se que é o grupo de
professores que deveria dar relevância, significado e presença, em ação, ao texto do
PPP da escola. Os professores fizeram escassas referências ao texto político-
pedagógico da escola, documento que anuncia, em minúcias, os objetivos e teorias
sobre os quais o trabalho na escola está pautado.
Os textos do PPP de ambos os estudos de caso são constituídos a partir de
princípios democráticos, da formação cidadã e do reconhecimento da solidariedade
humana para o desenvolvimento da integralidade do aluno, um sujeito ativo e
responsável com a construção de uma cultura de paz. Tanto a Escola A como a B
referem o compromisso com a formação de um sujeito autônomo; de igual forma, a
autonomia do aluno é citada na LDB e PCNs.
As escolas A e B optaram, em sua trajetória, pela Epistemologia Genética
de Jean Piaget, fato datado da década de 60-70 do século passado; foram
261
educandários que auxiliaram na difusão do ideário desse autor no nosso estado.
Atualmente, somente o texto do PPP da Escola B cita esse autor, e na entrevista
com os docentes em atividade nas escolas não há menção sobre uma teoria que
sustente sua ação pedagógica, seja a presente no PPP da escola, seja outra em que
acredite; o que se pode é deduzir de sua ação as concepções subjacentes na
prática docente, tal como o fez o professor pesquisador Fernando Becker em obra
publicada (1993).
O fato de termos dois estudos de caso, de duas escolas que se deixaram
impregnar pelos princípios escolanovistas e construtivistas na segunda metade do
século passado, ganha significado na medida em que coloca os dois
estabelecimentos de ensino em situações muito similares em dado momento, de
uma identidade escolar promissora e arrojada, construída pelo investimento dum
significativo tempo para o estudo coletivo dos professores, incentivo à participação
dos alunos através de assembléias escolares, de uma educação ativa e reflexiva,
com o decorrente estímulo ao desenvolvimento moral dos alunos. Hoje, os dois
educandários não mantêm as mesmas ênfases de outrora, diga-se de passagem,
ênfases plenamente válidas na contemporaneidade.
A obra de Mário Sérgio Vasconcelos (1969) que investiga a difusão das
idéias de Piaget no Brasil não especifica sobre a propagação da temática moral nas
escolas, mas tal fato foi facilmente constatado na ação docente e discente pelas
referências feitas nas entrevistas dos professores aposentados.
Com relação ao corpo docente, além da já mencionada desarticulação do
grupo para a formação continuada, que deveria estar presente na rotina escolar, ao
fato de pouco mencionarem o PPP da escola como esteio de suas ações, onde está
previsto e assegura o desenvolvimento da autonomia dos alunos, acrescenta-se a
discussão do como compreendem e qualificam a importância da autonomia do
aluno.
O conceito de autonomia deste trabalho é o que diz sobre uma ação
espontânea do sujeito, que reconhece a prática do bem como um valor presente nas
relações interpessoais, devendo ser praticada por si só, como em benefício de um
coletivo que ultrapassa um desejo particularizado de algum de seus elementos;
262
portanto, tem correlação direta com a prática da cooperação e respeito à liberdade
alheia.
O conceito de autonomia dos professores entrevistados da Escola A é de
tratar-se de um tema por cujo aprimoramento a família tem responsabilidade quase
que absoluta. A autonomia corresponde a uma individuação do fazer e a uma
possibilidade de autogerência de cada um; outros disseram que o conceito implica
uma dimensão social, de a autonomia ter sentido como um enriquecimento das
relações interpessoais. O segundo entendimento de autonomia, que implica a vida
coletiva de cooperação, referido por alguns dos entrevistados, não foi visibilizado de
forma mais constante que a ocasional na conduta dos educandos que compõem
uma oitava série do ensino fundamental. Os docentes são unânimes em dizer que a
turma não é de alunos autônomos. Quanto à ação despendida em aula pelo
professor para seu possível desenvolvimento, isso é ocasional. Poucas vezes os
professores mencionaram a autonomia como uma qualidade a ser incentivada, para
que se estenda às relações de cooperação no coletivo da turma.
Na Escola B, o conceito de autonomia pende aos valores relacionais, da
coletividade e respeito à diversidade, sem, contudo, ter uma unidade. De igual
forma, mencionam a família como responsável pelo desenvolvimento da autonomia,
de forma menos determinante que na Escola A, e assumem que a escola também
tem participação em seu desenvolvimento. Os professores conceituam a autonomia,
em ambas as escolas, a partir de uma perspectiva pessoal – não foi partilhada e
discutida no coletivo da escola. A turma observada não é tida como constituída por
sujeitos autônomos, mas vistos como individualistas ou corporativistas. O
desenvolvimento de uma ação pedagógica que aprimore a autonomia nos alunos
depende da disponibilidade de cada professor. Os professores da Escola B crêem
ser vistos pelos alunos conforme os valores morais que têm presentes em suas
ações cotidianas, na relação que estabelecem de forma sincera e coerente com os
alunos na condução das aulas. Essa é uma premissa válida, importante e que
ratifica a posição piagetiana e escolanovista de que os valores morais, entre eles o
da autonomia e o da cidadania, mais do que discursados, precisam ser vividos no
ambiente escolar.
Os professores que fizeram parte dos estudos de caso, nas duas escolas,
não visualizaram seus alunos como sujeitos autônomos. No entanto, a Escola B
263
oferece um espaço maior para o seu desenvolvimento na medida em que os
professores reforçam a vivência de valores morais junto aos alunos a partir de sua
postura pessoal, além de se reunirem freqüentemente, mesmo que para
planejamento. Não é possível, no entanto, que se pense que na Escola A não
existam valores, que os professores não tenham atitudes que correspondam a esses
em sala de aula. A distinção que faço é que na Escola B eles foram lembrados
como facilitadores na construção da autonomia dos alunos, e, se lembrados,
possivelmente, são referências já incluídas na ação docente, já foram tomados na
dimensão da intencionalidade, não como um componente secundário à presença do
professor junto aos alunos.
A correlação entre o desenvolvimento sócio-moral e o desenvolvimento
cognitivo foi poucas vezes especificada pelos docentes. Talvez por não fazerem
essa aproximação, de concomitantes desenvolvimentos que ocorrem no sujeito, não
invistam de forma simultânea no aprimoramento do conteúdo sócio-moral que
transita na fala dos adolescentes, tão susceptível de absurdos e extremos. No
entanto, é tempo de um questionamento junto aos jovens para que reflitam sobre
suas ações, sintam-se compromissados com seus pareceres e ações, uma vez que
já são capazes de raciocinare através de proposições, argumentos e generalizações.
O contraponto das entrevistas foi a observação realizada em sala de aula, a
qual revela que o professor não deixa de favorecer o desenvolvimento da autonomia
dos alunos, especialmente pelo contato que mantém com eles de forma a responder
às necessidades do jovem numa relação baseada no recíproco respeito e pelas
atividades que propõe, de agrupamentos, fóruns, apresentação de trabalhos,
possibilidade de circulação na sala de aula (o que facilita que os alunos mantenham
proximidades físicas e façam trocas interindividuais). Essas oportunidades não
foram tidas pelos professores como situações para o desenvolvimento sócio-moral
do aluno; portanto, quando fazem um trabalho relevante em prol da autonomia do
aluno, nem sempre o reconhecem como tal.
Tomando os dois estudos de caso, temos dois educandários que mais
priorizam o desenvolvimento de uma grade curricular que prepare os educandos
para provas de domínio de conteúdos - fato que aponta uma mudança no transcorrer
do tempo -, com uma menor atenção para o desenvolvimento da autonomia do
aluno, do seu desenvolvimento sócio-moral. Outra característica é a conformidade
264
dos alunos com um padrão de aula frontal, onde o professor fala para os alunos
aprenderem. É bem verdade que várias vezes encontrei os alunos agrupados,
realizando atividades que convencionamos chamar de "grupo", no entanto quase
sempre estavam desenvolvendo no grupo trabalhos que o professor havia
planejado, de resposta a exercícios ou questionários. Os alunos apreciam estar
junto aos colegas, eles pedem para aproximar as classes, mas respondem a uma
folha de exercícios dada pelo docente, para fixar conteúdos, mantendo uma conduta
individual na realização dos trabalhos para o professor. Em ambos os estudos de
caso, os alunos mostram-se solidários e disponíveis à aprendizagem do colega
somente quando solicitados, revelando uma tendência à colaboração.
Não se pode idealizar a aula construtivista como aquela em constante
atividade. Um professor construtivista também dispõe em seu planejamento de aula
de momentos de classes enfileiradas, de trabalho individual e fixação de conteúdos.
No entanto, qual seria a real convicção do professor quando apenas distribui folhas
e folhas de exercícios para os alunos, ou faz prova a cada aula como represália à
conduta inadequada do grupo? Penso que esse é mais um tema que surge deste
trabalho. Enquanto observava as aulas me perguntava sobre como o professor
disponibiliza o tempo dos alunos, como gasta um tempo que não é seu? Com que
tarefas? Para que os alunos aprendam determinados conteúdos escolhidos pela
força da tradição? Perguntava-me sobre o número de oportunidades que estavam
sendo perdidas quando se poderia ter paralisado um exercício e proposto a
discussão sobre o que acontecia naquele momento na aula, a exemplo dos
repetidos conflitos do cotidiano.
É aqui que a ação pedagógica ganha espaço. São basicamente três os
elementos que configuram o contexto de uma aula: um professor, os alunos e um
conteúdo. O tempo de uma aula é composto por inúmeros intervenientes, que a ela
chegam sem a autorização prévia do professor: são as histórias pessoais de cada
um dos alunos, que, quando reunidas, compõe uma nova história para o grupo; são
os diversos motivos que levam cada sujeito a aprender, desde o prazer em desvelar
o desconhecido, de reconhecer o desafio presente num não-saber temporário, ou a
visualização e trabalho em prol de um futuro desejado, ou a simples vinculação com
um grupo de amigos, até a obrigação de vir ao colégio - estar na escola por
diferentes motivos leva os alunos a se comportarem de distintos modos, sem que, no
265
entanto, deixem de configurar um grupo em interação, no qual o professor tem
responsabilidade de trabalho. Podemos ainda considerar os inúmeros intervenientes
docentes e do conteúdo, que também se fazem presentes na dinâmica da interação.
A ação pedagógica que possibilita a construção da autonomia nos alunos foi
um dos motivos primeiros à feitura desta dissertação. Com respeito a isso, tenho
que os professores não dispensam um tempo de sua aula para a construção da
autonomia dos seus alunos de forma proposital e com persistência. Foram poucas
as propostas que colocaram os alunos na situação de trabalho interativo, no qual a
ação de um esteja entrelaçada à ação do colega, em que todos e cada um têm uma
contribuição a disponibilizar no grupo. Como já referido nesta conclusão, mesmo os
alunos estando agrupados,
65
não estão necessariamente trabalhando em co-
operação. Muitos professores, na situação de entrevista, reconhecem o potencial
de importância à autonomia do aluno, mas confessam não saberem como abordar
tal tema junto aos alunos. Por fim, sobre a oportunidade que o professor dispensa à
construção da autonomia dos alunos, fica o registro de que, a transformação do
conflito em um conteúdo de discussão, que aprimore a posição de responsabilidade
do grupo sobre o acontecido, está mais presente nas falas dos professores do que
na ação pedagógica junto aos alunos.
Isso posto, é mister que se firme a postura oscilante dos alunos quanto à
autonomia, de ora mostrarem disponibilidade à cooperação e autonomia e ora
requisitarem a posição heterônoma do professor.
Os dois estudos de caso levam a pensar no prolongamento das situações
heterônomas vividas no grupo das duas oitavas séries do ensino fundamental.
É o movimento da Escola Nova que anuncia a autonomia no contexto
escolar; o movimento surge como um renovador da escola, especialmente quando
trata dos seus fundamentos pedagógicos e incentiva o aprimoramento moral dos
alunos sobretudo pelo trabalho em grupo. Seus defensores acreditavam que
somente pela escolarização de qualidade, implementada em ambientes cooperativos
e governados pelo coletivo escolar, poder-se-ia desenvolver um sujeito autônomo e
comprometido com a paz entre as nações. Esses valores estão ratificados na atual
65
O agrupamento supõe o estar junto, reunir-se, o que difere de uma ação em conjunto.
266
legislação de ensino com relativa ênfase. A sugestão do autogoverno – assembléias
escolares – é pouco aproveitada nas duas escolas no momento atual.
As assembléias escolares e de classe, proposta defendida atualmente no
Brasil, especialmente por Ulisses Araújo, originária do movimento escolanovista, são
interessantes e mais uma derivação deste trabalho. Convém lembrar que os
professores aposentados relatam a constante participação dos alunos na resolução
de conflitos, feita pelas conversações em aula e em coletivos de escola.
O trabalho aponta para a constatação da tendência dos alunos para o
individualismo, não para a cooperação, pois esta última exigiria que os alunos
267
professores mais legais são os que, quando entram na sala de aula, mostram-se
contentes por estar com eles”.
Quanto à função social da escola, tem-se que, como instituição, atende a
dois grandes objetivos, o de ser um elo na engrenagem social que promove o
indivíduo, integrando-o na comunidade de forma produtiva, lúcida, crítica,
responsável, cooperativa e autônoma, agregando os educandos à ação participativa
junto aos problemas da comunidade como um cidadão, e de ser um local e
oportunidade de promoção do desenvolvimento pessoal do indivíduo, para que o
conhecimento supere a ignorância que o oprime. Esses dois pressupostos da
função social da escola são de longa data anunciados pelos documentos escolares,
no entanto nem sempre atendidos em sua plenitude pela ação escolar. Os
princípios da função social da escola estão representados nos dois PPP dos estudos
de caso desta pesquisa, tendo mais ênfase – na prática pedagógica – o segundo
objetivo do que o primeiro, especialmente considerando o tempo presente das
escolas em questão.
A escola que promove o educando é a que o tem como protagonista da sua
aprendizagem, a que o coloca no palco para o pleno desenvolvimento de suas
possibilidades cognitivas, sociais e morais. É esse sujeito "educado" de forma mais
"completa" que melhor pode enxergar as situações do cotidiano que somente na
aparência são inócuas.
5.1Conclusões finais
É necessário retomar as indagações mestras deste trabalho, quais sejam, de
como estão se constituindo no aluno as condutas autônomas na perspectiva do
professor de uma série finalista do ensino fundamental, que, juntamente com o
objetivo de desenvolvimento da cidadania, encontram-se repetidas vezes nos
documentos oficiais de ensino? E como o professor oportuniza o desenvolvimento
da autonomia de seus alunos?
A essas questões que direcionaram as investigações realizadas temos que
os alunos não são tidos como sujeitos autônomos pelos seus professores. E, dessa
forma, não atendem aos objetivos estabelecidos no PPP pela própria escola, de
priorizar a formação autônoma, cooperativa, crítica e cidadã de seus alunos.
268
Os grupos de alunos que foram alvo desse estudo de caso têm um
comportamento oscilante com relação à autonomia, ora expressando-a através de
indícios de sua presença, ora comportando-se como alunos heterônomos.
Na perspectiva docente o conceito de autonomia é considerado como um
valor importante para a formação pessoal dos educandos, no entanto poucos
docentes têm a conduta sócio-moral autônoma como concorrente ao
desenvolvimento cognitivo do aluno. A conceituação que utilizam, e que serve de
referência para a ação destes profissionais junto aos alunos, é de que a autonomia é
uma individuação de ações, para a maioria dos entrevistados, e uma atitude de
presença solidária no grupo social, para a minoria dos entrevistados, não havendo
consenso sobre o conceito. À educação familiar, mais do que à ação escolar, foram
atribuídos os créditos com relação à presença de autonomia nos alunos.
Os recursos que os professores utilizam no cotidiano das aulas para o
aprimoramento das relações de cooperação – segunda questão das conclusões
finais – são basicamente: os alunos estarem agrupados para a realização de tarefas
ditadas pelo professor e a apresentação de trabalhos. As expressões de
cooperação e de conduta autônoma dos alunos no grupo não foram consideradas,
pelos docentes, como também resultantes do seu trabalho junto ao grupo; as ações
de incentivo à autonomia dos alunos e grupo são secundárias, ou imperceptíveis,
pela maioria dos professores, no trabalho que desenvolvem em aula.
Disso tudo retornamos ao já conhecido discurso pedagógico e do qual,
inacreditavelmente, não nos afastamos. A escola e a ação docente priorizam a
formação heterônoma do aluno, apesar da presença de textos na escola e do
discurso docente de querer superar tal objetivo. Para que a tomada de consciência
de tal constatação seja viável, inscrevo-me junto àqueles que defendem a
necessidade da permanente formação do docente junto aos colegas de trabalho,
como condição para a permanente atualização de um aluno e um professor que
participem na sociedade de forma crítica, tendo compromissos com as mudanças
necessárias a uma cultura de paz, à minimização das diferenças e das
desigualdades presentes no cotidiano de todos nós.
A entrevista com professores aposentados das escolas que constituíram os
dois estudos de caso fez perceber um decréscimo na ação escolar que priorizava
269
igual desenvolvimento de conteúdos escolares e dos conteúdos morais, como
também a cultura do estudo docente e sistemático no interior das escolas. O
conteúdo da autonomia cognitiva e sócio-moral parece ter sido mais presente nas
ações e documentos, de forma entrelaçada, nas Escolas A e B nas décadas de 60-
70, quando também esteve mais presente o estudo sobre os princípios e ações
construtivistas em seu interior. Hoje a presença do conteúdo moral está mais
presente nos textos básicos e oficiais de cada um dos estudos de caso do que nas
ações docentes dessas mesmas escolas.
O conteúdo moral tem importância na escolarização pela simultaneidade
existente entre a representação que um sujeito tem do conteúdo da autonomia
(como ação em cooperação e respeito estabelecido de forma recíproca entre
sujeitos) e a possibilidade que essa própria representação gesta de modificação do
mundo onde vive (por um novo regramento e perspectivas a serem vividas). O
sujeito constrói a dimensão interna, subjetiva, e a externa, objetivada em ações, num
movimento dialógico
66
, como diz Paulo Freire e também Jean Piaget, quando
consideram o desenvolvimento sócio-cognitivo como resultante de sucessivos re-
equilíbrios, em constante tentativa de organização na direção de uma síntese
sempre mais generalizante.
O desenvolvimento moral dos adolescentes e adultos não deveria
consolidar-se na permanente conduta heterônoma que prioriza a individuação de
vantagens, na supremacia do egocentrismo, mas ser resultado de sucessivas ações
e experiências suficientemente qualitativas, aprendidas em diferentes contextos e
que levem à moral da cooperação, da consideração do coletivo e ao respeito à
diversidade, à alteridade que compõem uma sociedade.
Com isso, as aprendizagens realizadas na escola não deveriam ser só uma
resposta aos conteúdos validados pela ciência e que devem ser perpetuados pelas
novas gerações; deveria ser, também, uma oportunidade para o aprimoramento do
66
Propositalmente utilizo a concepção “dialógica” e não “dialética”. A dialética refere-se ao
movimento que implica três momentos consecutivos, uma tese, uma antítese e uma síntese, portanto,
existe um ponto de chegada que tende a uma igualdade, a uma síntese, ao passo que a dialética,
enfatizada por Paulo Freire, não prioriza a síntese final; o movimento dialógico é uma espiral infinda
entre tese e antítese que potencializa as relações, não tende ao fechamento.
270
conteúdo relacional, vale dizer, construído nas trocas sociais e expresso em atitudes
de cooperação espontânea entre os alunos, o que equivale ao desenvolvimento de
sujeitos autônomos moralmente e cognitivamente.
Uma educação democrática auxilia na construção de um país democrático,
tanto como uma educação de sujeitos autônomos auxilia na construção de uma
sociedade co-operativa.
271
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