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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
MESTRADO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS
Porto Alegre
2006
ANA CRISTINA BORBA ALVES
EXCLUSÃO SOCIAL, INVISIBILIDADE E
INCLUSÃO NO SISTEMA PENAL
A reincidência como resposta
ao olhar do (O)outro
Prof. Dr. Salo de Carvalho
Orientador
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ANA CRISTINA BORBA ALVES
EXCLUSÃO SOCIAL, INVISIBILIDADE E INCLUSÃO NO
SISTEMA PENAL
A reincidência como resposta ao olhar do (O)outro
Dissertação apresentada no
Programa de Pós-Graduação em
Ciências Criminais - Mestrado, da
Faculdade de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, como requisito parcial à
obtenção do grau de Mestre.
Área de concentração: Violência.
Linha de pesquisa: Política Criminal,
Estado e Limitação do Poder
Punitivo.
Orientador Prof. Dr. Salo de Carvalho
Porto Alegre (RS), 2006
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
A474e Alves, Ana Cristina Borba
Exclusão social, invisibilidade e inclusão no
Sistema Penal: a reincidência como resposta ao
olhar do outro / Ana Cristina Borba Alves. Porto
Alegre, 2006.
142 f.
ANA CRISTINA BORBA ALVES
EXCLUSÃO SOCIAL, INVISIBILIDADE E INCLUSÃO NO
SISTEMA PENAL
A reincidência como resposta ao olhar do (O)outro
Dissertação apresentada no
Programa de Pós-Graduação em
Ciências Criminais - Mestrado, da
Faculdade de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, como requisito parcial à
obtenção do grau de Mestre.
Área de concentração: Violência.
Linha de pesquisa: Política Criminal,
Estado e Limitação do Poder
Punitivo.
Aprovado em: ______/ ______/ 2006.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Salo de Carvalho - PUCRS
_______________________________________________
Prof. Examinador: Prof. Dr. José Carlos Moreira da Silva
Filho - UNISINOS
_______________________________________________
Prof. Examinador: Profª. Dr.Clarice Beatriz da Costa
Söhngen - PUCRS
Dedico a todos os excluídos/incluídos
no sistema penal que bateram à
porta dos locais onde exerci a
judicatura criminal, por terem feito
que constatasse, de perto, a triste
realidade e pouca sorte (ou ausência
total dela) que a vida lhes reservou.
Sem dúvida, representaram a fonte
inspiradora e o rumo que este
trabalho tomou.
AGRADECIMENTOS
A Salo de Carvalho, MESTRE, pela orientação e
por todo o percurso trilhado. Gracias por me
haver sinalizado outros caminhos, para além
da criminologia radical.
A Sérgio Salomão Shecaira, pelas sugestões
iniciais da pesquisa, com próximas seqüências
“pelas mãos de Alice” Bianchini, e que se
concretizou com Salo de Carvalho.
A Ruth Maria Chittó Gauer, por me haver
mostrado outra forma de ver o universo que
me cerca e de conviver com ele; sobretudo,
pela incondicional e carinhosa acolhida desde
que cheguei ao mestrado em Ciências
Criminais.
Ao amigo Lédio Rosa de Andrade, companheiro
de tantas jornadas - registro a admiração por
sua coragem e pela rara coerência assegurada
entre discurso e práxis -, por me haver guiado
dentro da sociologia e pelas discussões que
teceu, pacientemente, durante meu percurso
acadêmico.
A Paulo de Tarso Brandão por ter me mostrado
que havia outro olhar a ser lançado sobre o
direito e, pelo carinho de sempre.
Ao amigo Léo, por, além da amizade, me
haver mostrado há muito tempo a “microfísica
do poder” e, também, pelas ricas discussões
travadas ao longo da convivência: desde a
administração doméstica à administração
pública.
A Sônia Maria Schmitz, pela fonte de coragem
que representa e em que me inspiro.
A Vera Regina Pereira de Andrade, por me
haver apresentado, tão vivamente, a
“criminologia” e, sobretudo, o paradigma da
reação social, dentro de uma área sem alma –
o direito.
A Amaline Mussi, pelas revisões textual e
gramatical e, acima de tudo, pelas palavras de
extremo carinho que, neste final de percurso,
já quase sem forças de prosseguir, chegavam-
me como um suave mas poderoso sopro
motivador.
A Elisa Bianchini, pelo indispensável apoio
metodológico e o carinho de sempre.
Às meninas da secretaria, Márcia, Karen e
Patrícia, pelo atendimento incondicional.
Ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina, pelo
apoio institucional
A todas as pessoas que, de alguma forma,
ajudaram na elaboração desta dissertação,
pelo carinho e amizade.
Agradecimentos/parte 2: acerca de minha
existência...
À minha mãe, por me haver mostrado, ainda
na infância, que eu poderia alinhar às
ilustrações de gibis, outras, concebidas com
minha imaginação, durante a leitura de textos
ficcionais: origem do meu gosto pela leitura.
Ao meu pai, que, relevados os conflitos,
ensinou-me a ter respeito pelo outro, enquanto
“outro”.
Aos meus manos Beto, Dedé e Bá, pelo amor,
carinho e cumplicidade que sempre nos
uniram.
Aos meus sobrinhos Vitor Hugo, Lorenzo e
Henrique, pelo estímulo à busca de um futuro
melhor.
Às primocas Giane, Greice e Giórgia, por todo
o carinho.
Ao manoco Amilton Bueno de Carvalho, por
me haver acompanhado no percurso do
trabalho, pelas leituras, críticas e, acima de
tudo, pela alegria e pelo privilégio de poder
compartilhar existência, felicidade, dor,
chimarrão, conversas diversas; o
pertencimento do que é do feminino e do
masculino, e tudo o mais; pela acolhida
carinhosa em sua casa, onde me sinto como se
fosse minha: gracias!
A Cíntia Döhler, irmã que o coração escolheu,
pela razão especial que confere a minha
existência. Gracias, ainda, por todo o carinho,
pela acolhida em sua casinha e pela companhia
da Mitsy durante minha estada em Porto
Alegre.
À mana/amiga Mônica Delfino, por me haver
auxiliado no desvendamento dos (O)outros,
pelo valioso suporte psicanalítico prestado e,
sobretudo, pela razão especial que nossa
irmandade assegura à minha existência:
gracias!
A Jackson Rodrigues, pela verdadeira acolhida
em sua casa, junto com sua arte culinária,
música, acompanhados da Moniquinha, da
Bibi, do Nini e do Bochecha.
À mana/amiga Ingrid Pollyana Schmitz de
Lardizábal, por poder compartilhar a vida:
alegrias, conquistas e, de vez em quando, dor.
A Carla Arcari, pela amizade e carinho
nascidos na adolescência
Ao manoco Lecaldinho(Ricardo Giuliani Alves),
pelo carinho de sempre.
A José Augusto Ribeiro Mendes, pela carinhosa
amizade.
A Alexandre Salim, pela cumplicidade e
carinho que nos uniu, mesmo sabedores de
que nossas falas enunciariam as opiniões mais
díspares.
A Saulo Marimon, “colegamigo”, pela
agradável e inteligente companhia e pela
amizade que brotou para além da sala de aula.
A Natie e Lica, pela carinhosa acolhida na PUC,
fazendo com que não me sentisse estrangeira
numa turma onde caí de pára-quedas no
segundo semestre 2004.
A Mônica Elias de Lucca Pasold, pelo prazer de
conviver, no trabalho, com uma pessoa feliz.
Aos novos amigos de longe, Felipe Vaz de
Queiroz, Alexandre Bizzotto e Andréia de Brito
Rodrigues, pela afinidade.
“Me pediram para deixar de lado
toda a tristeza, para só trazer
alegria e não falar de pobreza, e
mais, prometeram que se eu
cantasse feliz agradava com
certeza.
Eu que não posso enganar
misturo tudo que vi. Canto sem
competidor, partindo da natureza
do lugar onde nasci.
Faço versos com clareza: a rima,
o belo e tristeza.
Não separo dor de amor
deixo claro que a firmeza do meu
canto
vem da certeza que tenho de que
o poder que cresce sobre a
pobreza e faz dos fracos riqueza
foi que me fez cantador.”
Geraldo Vandré
RESUMO
Esta dissertação de mestrado pretende efetuar percurso transdisciplinar
por algumas problemáticas que envolvem a violência. Analisa a práxis da
atuação dos sistemas social, político, econômico e penal brasileiros, e
questiona as práticas e políticas criminais utilizadas sob o discurso da
defesa social, estas que, no cotidiano, têm-se mostrado como
(re)produtoras de crescente violência, originada no desmesurado
acionamento do poder punitivo do Estado. Destaca a importância do olhar
do (O)outro e a importância do poder de consumo na constituição do
sujeito. Atribui à exclusão dos direitos ao direito de cidadania (gramática
da exclusão) uma das causas que levariam à desviação primária
(gramática da inclusão) do indivíduo nos sistemas penal e carcerário,
ambos seletivos, estereotipantes, estigmatizantes e perversos. Trata,
ainda, a presente pesquisa, de destacar a seletividade do sistema de
controle penal. Seletividade na escolha das pessoas a quem quer atingir,
ao selecionar os fatos e, novamente, após selecionados os fatos,
seletividade na exegese, ou seja, a exclusão daqueles que não deveriam
ser incluídos no sistema, os quais acabam excluídos por distorções formais,
através da aplicação retórica da norma. Destaca o (não)poder consumir
como um dos grandes mal-estares da brasilidade no momento atual.
Ressalta a importância do olhar e equipara a invisibilidade a uma forma de
não-existência, ao mesmo tempo em que levanta os malefícios de um
olhar estigmatizante e estereotipante, o qual faz com que a reincidência
seja fruto de uma reação social ao olhar do outro. Uma profecia que se
autocumpre.
Palavras-chaves: invisibilidade, exclusão social, cidadania, (in)eficiência
do Estado, sistemas sociopolítico-econômicos, seletividade de controle
penal, mal-estar, estigmas, estereótipos, reincidência.
RESUMEN
Esta disertación del maestreado se propone remontar el paso
transdisciplinar para algunos problemas que implican la violencia. Analiza
la práxis del funcionamiento de los sistemas sociales, políticos,
económicos y criminales brasileños, preguntando sobre las prácticas y las
políticas criminales usadas bajo discurso de la defensa social, eso en la
práctica se ha demostrado como generadores de más violencia con el uso
inmensurable de la energía punitiva del Estado. Separa la importancia de
la mirada del otro y la importancia de la energía en la consumición, en la
constitución del ciudadano. Atribuye a la exclusión de los derechos a lo
derecho de la ciudadanía (gramatical de la exclusión) una de las causas
que conducirían al desviamiento primario (gramatical de la inclusión) del
individuo en lo criminal y la cárcel de los sistemas, que es selectivo,
estereotipante, estigmatizante y perverso. Trata, no obstante, la actual
investigación para separar la selectividad del sistema del control criminal.
Selectividad en la opción de la gente a quién desea alcanzar,
seleccionando los hechos y, otra vez, después de seleccionar los hechos,
la elección en exegese todavía se distingue, es decir, los que no tendrían
que ser incluidos, formas más diversas torcidas con el retórico acaban
para excluirlo del sistema con un uso de de la norma. Separa o no el
poder consumir como uno de los grandes malestares del brasilidade en el
actual tiempo. Los standares hacia fuera la importancia de la mirada e
iguala el invisibilidade a una forma de no existencia, a la vez que levanta
las maldiciones de un estigmatizante y de un estereotipante miran, que
hace con ésa la recaída es fruta de una reacción social a la mirada de la
otra. Una profecía que si autocumpre.
Palabras-llave: invisibilidade, exclusión social, ciudadanía, (in) eficacia
del Estado, sistemas socio-político-económicos, selectividad del control
criminal, malestar, estigmas, estereótipos, recaída
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................
1 INVISIBILIDADE, GRAMÁTICA DA EXCLUSÃO E A INCLUSÃO
NO SISTEMA PENAL ...................................................................
1.1 A importância do olhar do (O)outro na constituição do sujeito ......
1.2 A importância do (não) poder consumir na constituição do sujeito
na atualidade ..............................................................................
1.3 A gramática da exclusão/inclusão ..............................................
1.4 A exclusão do direito aos direitos de cidadania ............................
1.4.1 O princípio da eficiência ........................................................
1.4.2 Da ineficiência na concretização dos direitos básicos
fundamentais de cidadania insertos na Constitui
ç
ão Federal brasileira...
1.5 A gramática da exclusão e a desviação primária (inclusão no
sistema penal), início da carreira criminal ........................................
2 O LABELING APPROACH E A SELETIVIDADE DO SISTEMA DE
CONTROLE PENAL: AS REGRAS E SUA IMPOSIÇÃO ....................
2.1 O labeling approach ................................................................
2.2 A seletividade do sistema de controle penal: as regras e sua
imposição ...................................................................................
2.2.1 Regras penais de que(m)? .....................................................
2.3 Seletividade de fatos: regras penais de quê? ..............................
12
18
18
25
31
37
40
43
59
65
68
73
76
81
2.4 Seletividade de pessoas: regras para que(m)? ............................
2.4.1 Seletividade étnica ..............................................................
2.5 Seletividade na imposição de regras pela exegese: novamente,
regras para quem? .......................................................................
3 EXCLUSÃO SOCIAL , INVISIBILIDADE, O MAL-ESTAR DO
SUJEITO NA ATUALIDADE E A (RE)INCLUSÃO NO SISTEMA
PENAL. REINCIDÊNCIA: A PROFECIA QUE SE AUTOCUMPRE......
3.1 O mal-estar do sujeito: de Freud à atualidade ............................
3.1.1 A promessa da auto-suficiência .............................................
3.1.2 Ideais de beleza, limpeza e ordem ..........................................
3.2 O mal-estar brasileiro na atualidade ........................................
3.3 A invisibilidade e seus descaminhos ..........................................
3.4 Construindo estereótipos, estigmas e etiquetas ..........................
3.5 A reincidência como reação social ou reação ao olhar do outro: a
profecia que se autocumpre ..........................................................
CONCLUSÃO ..............................................................................
REFERÊNCIAS ...........................................................................
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92
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97
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133
INTRODUÇÃO
A dor de pensar não é um sintoma que,
vindo de qualquer parte, se instala no espírito
em vez de ocupar seu verdadeiro lugar.
É o próprio pensamento em si que,
convertido à irresolução,
decide tornar-se paciente e querer não querer,
querer, exactamente,
não querer dizer em vez do que deve ser significado.
Reverência feita a este dever,
que ainda não tem nome.
Este dever talvez não seja uma dívida,
mas apenas o meio pelo qual o que ainda não é,
a palavra, a frase, a cor, há-de chegar.
De maneira que o sofrimento de pensar
é um sofrimento do tempo,
do acontecimento.
François Lyotard
1
Pretende-se, no presente trabalho, traçar percurso por algumas
problemáticas que compõem a violência, a práxis da atuação dos sistemas
social, econômico e penal brasileiros, as políticas criminais adotadas sob o
discurso de combate à violência e, sobretudo, repensar, a partir da análise
dos efeitos que estas produzem no campo prático, os mecanismos
punitivos de prevenção e punição e sua conseqüente limitação. Do modo
como se apresentam, constituem-se como reforçadores e reprodutores de
toda violência, a qual, em seu discurso, dizem combater.
1
O inumano.
13
Contudo, de início cumpre ressaltar que o problema da violência,
tal como um caleidoscópio, é multifacetado. Será feito, assim, um recorte
epistemológico e, sobre este, lançado um olhar, apenas mais um olhar
dentre tantos outros que poderiam ser lançados sobre o mesmo problema,
cada um, por evidente, conduzindo a caminhos e conclusões diferentes
daqueles a que se pode chegar aqui. Isso parece claro, mas indispensável
que seja dito, para que não se criem determinismos nas problemáticas
destacadas no trabalho.
A partir do diálogo de diversas áreas de conhecimento, utilizadas
como referencial teórico, pretende-se denunciar o Estado como um dos
maiores (re)produtores da violência _ em seu desmesurado sistema
punitivo e em sua impotência na implementação de políticas
socioeconômicas e erradicação das desigualdades. Um Estado que,
utilizando-se fala de Vera Regina Pereira de Andrade, tem-se mostrado
eficiente na implementação de um “Sistema Penal Máximo X Cidadania
Mínima”.
2
Vive-se numa era globalizada, em que, na falta de solução para
problemas complexos de diversas ordens, cada vez mais os agenciadores
de nossa sociedade fazem chover leis penais.
Num tempo de tantas incertezas, essas produções legislativas
são fruto da tentativa de se amenizarem os clamores sociais por
segurança. Contudo não se considera que a maximização do uso do
2
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo X Cidadania mínima: códigos
da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.
14
Direito Penal vá reverter o caos em que se encontra.
Na tentativa de descortinar a problemática que envolve a
violência, é necessário, segundo Salo de Carvalho, percorrer um caminho
“para além das disciplinas”, adotando-se perspectiva transdisciplinar
direcionada à negação do método de despedaçamento. Este se baseia “na
obsoleta concepção cartesiana que funda a ciência moderna,” a qual
“compartimentalizou o conhecimento, afastou a ciência da arte,
enrijecendo as formas e engessando a criação.”
3
Assim, para fazer-se uma
possível leitura da violência na sociedade complexa em que se vive, é
necessário, no dizer de Ilya Prigogine, que se faça “uma nova aliança”
4
A escolha da pesquisa é estudar a (re)incidência pelo viés da
invisibilidade e exclusão social, enfocadas sob várias lentes: a
psicanalítica, a social, a econômica. Seleciona-se para a análise os
apanhados pelo sistema penal brasileiro em razão do cometimento dos
delitos contra o patrimônio, que, segundo dados estatísticos publicados
pelo DEPEN
5
, são a maioria dos que constituem a clientela do sistema
carcerário brasileiro.
A exclusão social tem-se apresentado como um dos grandes mal-
estares da atualidade no Brasil. Há um segmento social significativo, de
quem foi expropriado o direito aos direitos de cidadania prometidos na
Constituição Federal brasileira.
3
CARVALHO, Salo. Criminologia e transdisciplinariedade. In: Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n. 56, São Paulo, IBCCRIM/Revista dos Tribunais, 2005, p. 311.
4
PRIGOGINE, Ilya; STENGERS, Isabelle. A nova aliança: a metamorfose da ciência. Trad.
De Miguel Faria e Maria Joaquina Machado Trincheira. Brasília: UnB, 1991.
5
DEPEN. Disponível em: <www.mj.gov.br/depen>. Acesso em: 14 nov. 2005.
15
Há um imenso contingente que não recebe olhar algum, quer do
Estado, quer da sociedade. Um contingente invisível, ou, até mesmo,
inexistente para uma outra parte da sociedade que se encontra inserida
dentro de outro contexto, qual seja, entre aqueles que conseguem gozar
dos direitos de cidadania e usufruir deles.
Existe um grande número de pessoas para quem não há lugar
nenhum. Um contigente que, em apropriação da análise de Bauman,
tornou-se expurgo, desnecessário ao tecido social da atualidade. São
“vidas desperdiçadas”, segundo o mesmo autor.
6
Salo de Carvalho diz que as novas formas surgidas com a
exclusão “seriam caracterizadas pelo fato de algumas pessoas perderem o
status de cidadão, não somente em razão das restrições econômicas, mas
por qualquer característica que as possa diferenciar” como, por exemplo,
etnia, nacionalidade, religião.
7
Entretanto essas mesmas pessoas, excluídas de um lugar, de um
olhar, por parte da sociedade, quando chegam a receber alguma
visibilidade, esta se dá de forma perversa, porque, não raro, ocorre
quando do ingresso deste segmento social no sistema penal. Assim,
quando o Estado ou a sociedade o vê, lança sobre ele um olhar
estigmatizante, estereotipante.
Para a ocupação deste lugar que restou, é necessária uma
6
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de janeiro:
Jorge Zahar, 2005.
7
CARVALHO, Salo. A ferida narcísica do Direito Penal (primeiras observações sobre as
(dis)funções do controle penal na sociedade contemporânea. In: GAUER, Ruth M. Chittó.
(Org.) A qualidade do tempo: para além das aparências históricas. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2004, p. 192-193.
16
seleção, a qual será realizada, num primeiro momento, pela sociedade e,
ainda, efetivada pelo Estado através da criação das regras e sua imposição
com sucesso. A seleção é imposta sob o discurso da defesa da sociedade e,
também, com a promessa de recuperação e reinserção daqueles que são
apanhados pelo sistema penal.
Contudo, das diversas funções e promessas justificadoras da
existência do sistema penal – prevenção (geral e especial), punição,
reinserção e ressocialização –, uma das únicas concretizadas é a punição,
a qual vem resultando em uma série de danos aos que por ele (sistema
penal) são apanhados. A efetivação da punição só tem conseguido criar
estigmas nos que a sofrem, mais os correspondentes estereótipos. Uma
estigmação feita e introjetada com sucesso, pois, não raro, quando o
sujeito sai do cárcere e ingressa no seio social, acaba, agora sim,
recebendo da sociedade um olhar estereotipante e, em reação a esse
olhar, reage da forma que o outro presume. O olhar negativo que lhe é
lançado acaba por tornar-se uma profecia que se autocumpre.
Torna-se de fundamental importância desconstruir o discurso do
Sistema Penal Oficial como garantidor da defesa da sociedade e
recuperador dos delinqüentes, pois este Sistema, na práxis, apresenta-se
como reprodutor das desviações primária e secundária, originando a
(re)inclusão perversa, a estereotipagem e a estigmatização do sujeito
excluído, demonizando-o como criminoso. Trabalha, pois, o Sistema Penal
e seus cárceres, através da maximização da resposta punitiva, para a
manutenção de uma ordem social perversa, excludente e injusta,
17
mascarando os concretos conflitos sociais, que têm na criminalidade um
de seus sintomas.
Assim, como não se alçou a uma era em que se possa expurgar o
direito penal do tecido social, urgem estudos e atitudes para a redução
dos danos sofridos por aqueles que constituem a sua clientela.
Derradeiramente, registra-se que, no campo pessoal, a alavanca,
a principal motivação do presente trabalho, a qual fez com que a dor
virasse palavra, foi a dor sentida pela autora, diante da dor dos outros (a
quem inclusive é dedicado este trabalho), no exercício da judicatura
criminal. A força para exprimir-se, origina-se, sem dúvida, em uma
tentativa de sublimação da dor sentida, ao se entender via da
instrumentalização do poder punitivo ou, assenhorando-se da fala de
Amilton Bueno de Carvalho, da constatação d“O (im)possível julgar penal”
por uma pessoa mínima e psicologicamente sã.
8
8
CARVALHO, Amilton Bueno de. O (im)possível julgar penal. Inédito.
1 INVISIBILIDADE, GRAMÁTICA DA EXCLUSÃO E A INCLUSÃO NO
SISTEMA PENAL
1.1 A importância do olhar do (O)outro
9
na constituição do sujeito
9
Ao longo deste trabalho, serão feitas várias referências às palavras “Outro” e “outro”,
sendo que a primeira terá a acepção de inconsciente; e a segunda, de próximo,
semelhante. Importante artigo elucidativo desta distinção foi escrito por Cyro Marcos,
conforme segue: “QUEM SABE DO OUTRO? Parece que queremos sempre saber do outro.
Saber do outro, no pouco que nos concerne, e muito mais daquilo que não nos diz
respeito. Não nos diz respeito, isto é, mas nos desrespeita. Pois bem. Há 150 anos,
nascia alguém que algum tempo depois, lá em Viena, surge na medicina como
neurologista que atendia, sobretudo, mulheres nervosas. Mulheres histéricas. Atendeu
homens nervosos também. Mas foi com as mulheres que aprendeu alguma coisa para
inventar outra: a psicanálise. Mas, para que serve a psicanálise? Para, justamente, saber
um pouco mais do Outro. Mas, para saber um pouco mais do Outro, é preciso abrir mão
de querer saber um pouco mais do outro. Mas que é isto? Que Outro é este com
maiúscula? Claro, não é o mesmo que o outro com minúscula, este mesmo outro, este
próximo, que se alguém amar como a “si mesmo“ vai colocar tudo em sérias
dificuldades. Não é desconhecido de ninguém que usar o si mesmo como modelo de
amor pode ser um péssimo negócio para o próximo. No mínimo vai ficar refém. Pois
bem, mas o que este médico, com sua genialidade, veio nos mostrar? Qual foi a grande
sacada de Sigmund Freud, cujo sesquicentenário de nascimento ora se celebra? Na sua
“Introdução à Psicanálise”, assim como ao longo de tudo que Freud vai escrevendo, a
noção de inconsciente ganha novo estatuto, novo patamar, nova referência. Até então,
inconsciente era uma noção puramente descritiva, ou seja, era o contrário de consciente,
aquilo que não estava na consciência. E ficava por aí. Com Freud, surge a noção
dinâmica de sistema e com ele vimos onde fica a sede do governo. Fica no Inconsciente.
O eu, na sua parte consciente, como nos ensina Freud, “não é senhor de sua própria
casa”. Daí em diante, inconsciente não é mais o mesmo, ou um mesmo que consciente,
diferindo apenas de sua faceta de negativização provisória: apenas o que não é
consciente. De Freud em diante, o inconsciente é Outro. e Twp21âo(ár)1[(soção s2(te )]TJ814.8347 -1.2156 TD-0.0012 Tc0.0029 Twé Outto? )El P én6(cnad(to, )]TJP)350312 0 TD-0.0009 Tc0.0026 Twsque não eáse émde
antes do outo
19
Passar desapercebido é uma forma de inexistência,
por isso, repetidamente consultamos o espelho,
na vã tentativa de capturar a imagem que os olhos
dos outro vêem, no espelho procuramos nos ver de fora.
Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso
Luiz Eduardo Soares, na obra Cabeça de Porco, aponta não só a
exclusão social, mas também a invisibilidade como um dos possíveis
fatores de um determinado tipo de criminalidade, qual seja aquele
cometido em detrimento do patrimônio.
Eugène Enríquez, em seu artigo intitulado O Outro, Semelhante
ou Inimigo?, diz que vários estudiosos, filósofos, sociólogos, psicanalistas,
há mais de vinte anos proclamam seu consenso sobre um ponto que lhes
parece essencial, a saber, “a necessidade de todo homem de reconhecer
no outro um semelhante e, se possível, um irmão, para poder ocupar
falhos, em suma, não nos acertos, mas nos tropeços. Teve aquele empregado que quis
brindar (anstossen) seu chefe, cujo propósito era “vamos brindar (anstossen) nosso
chefe”, mas, na hora H disse: “vamos aufzustossen (no lugar de anstossen) nosso
chefe!”, o que quer dizer, vamos arrotar nosso chefe. Cômico, não é mesmo? Letrinhas
que estavam desalojadas, recalcadas, aparecem de repente, e olha que problemão. O
problema é que traz vergonha, assim como no caso narrado daquele ginecologista que,
fazendo palestra sobre o aparelho genital feminino, quando tinha o propósito de , lá
pelas tantas, dizer: apesar de numerosas pesquisas e numerosas tentativas”, aparecem
letrinhas deslizando ligeiramente e ele diz: “apesar de numerosas pesquisas e
numerosas tentações”... Pois é, é isto aí, o propósito ia para um lado e o Outro de
letrinhas emerge e joga pra outro lado, para este outro lado onde a coisa inflada,
majestosa, entumecida, murcha, brocha, cai cômica (arrotar o chefe), onde a coisa
certinha, santinha, pretendida pura e isenta, sai sexual, as letrinhas arrastando as
tentativas para as tentações ... Mas, que Outro é este? Onde ele existe? Existe? Ou só
insiste? Ex-siste ou in-siste? E como faz das suas!!! Será que é importante que exista ou
não se, enquanto isto se discute, sua eficácia está sempre aí, nas falas trocadas, nos
lapsos, nas denegações (“não estou dizendo isto para te ofender - ??????) e nos sonhos,
nos sonhos onde o Outro, um pouco mais à vontade, nos leva em mares nunca dantes
navegados a ponto de despertarmos, tendo como resto apenas as letras para relato? Um
dia, volto mais para falar mais um pouco sobre isto. É... parece que não sabemos nada
deste Outro, não é mesmo? Não sabemos e costumamos ter raiva...de quem sabe. Mas,
de que ignorar o Outro nos protege? Que preço pagamos para isto? Que preço se paga
para desconhecer quem manda? Enquanto isto, vamos querendo só saber dos outro, ou
dos outros? Mas o Outro , já que somos “seres” de fala, está aí. E dele não escapamos.
MARCOS, Cyro. Disponível em: <http:www.cidadeguarani.com.br>. Acesso em: 12 out.
2006.
20
verdadeiramente a posição de ser humano e ser social.”
10
É que o olhar do Outro nos constitui. Nossa condição e
constituição enquanto sujeitos depende do Outro, do olhar do outro. O
sujeito traz, em sua constituição, sobretudo, as representações que
produz acerca de si mesmo e, a se representar de uma forma outra, num
outro lugar, talvez o faça no lugar de uma falta, de uma incompletude
quase insuportável de se ser o que se é, a da gênese do eu.
Nos primórdios da vida, então, o que impera para o bebê é a
indiferenciação. A criança encontra-se, neste primeiro momento, num
estado anterior ao do narcisismo primário
11
, e só mais tarde irá se
estruturar numa organização de relação com o objeto. Esta passagem se
daria em etapas: num primeiro momento, não haveria a determinação de
sujeito, nem de objeto, que seriam partes representantes de um mesmo
continuum.
12
Numa etapa seguinte, seria formada uma outra
representação: a do próprio eu e a do seio/mãe como separados,
marcando o início da diferenciação sujeito/objeto. Todo esse processo
teria como conseqüência a ruptura do continuum mãe/bebê, que é a base
para a constituição da relação de objeto e o estabelecimento da
individuação/diferenciação do bebê.
10
ENRIQUEZ, Eugene. In: Civilização e barbárie. Adauto Novaes (Org.). São Paulo: Cia
da Letras, 2004, p. 45.
11
“No contexto da elaboração da segunda tópica, Freud retomou a essa questão da
localização do narcisismo primário, que foi então situado como o primeiro estado da vida
_ anterior, portanto, à constituição do eu, característico de um período em que o eu e o
isso são indiferenciados, e cuja representação concreta poderíamos conceber, por
conseguinte, sob a forma da vida uterina.” ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel.
Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 351-352.
12 MEZAN, Renato. Freud, pensador da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1997, p.
363.
21
A possibilidade de ruptura deste continuum nos remete à
segunda tópica freudiana, na qual Sigmund Freud pensa o eu como
essencialmente corporal. Para Sigmund Freud, há um sentimento de corpo
22
aparição da imagem está ligado a uma identificação:
A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser
ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da
amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans
parecer-nos-á, pois, manifestar numa situação exemplar, a matriz
simbólica em que o eu se precipita numa forma primordial antes
de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes
que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de
sujeito.
15
Importante sublinhar que a imagem do espelho diz respeito à
criança, mas diz respeito também ao investimento que o outro vai
depositar nesta imagem. Jacques Lacan atribui muita importância à
presença do outro, que participaria, assim, da erotização da imagem da
criança, dando-lhe seu aval.
Diz ele que
essa forma, aliás, mais deveria ser designada por eu-ideal se
queremos reintroduzi-la num registro conhecido, no sentido em
que ela será também a origem das identificações secundárias,
cujas funções reconhecemos pela expressão funções de
normalização libidinal.
16
Nesta configuração, Jacques Lacan reconhece a função
primordial do outro como sendo aquele que colocará em jogo a dialética
do desejo. A criança reconhece, então, segundo Lacan, no eu especular
(investido pela libido materna) seu Eu ideal (objeto do narcisismo
primário).
Portanto, para fazer a passagem do estado de narcisismo
primário paro o estado de reconhecimento do outro como objeto, é o
outro que instrumentaliza para o bebê a materialização do processo e o
15
LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 97.
16
LACAN, 1998, p. 97-98.
23
acesso a um eu unificado. Interessante também é pensar na etimologia da
palavra estrutura (structura em latim, do verbo struere) que teve um
sentido arquitetural no começo de seu uso. A estrutura designa “a
maneira como um edifício é construído"
17
. Nos séculos XVII-XVIII, o
sentido do termo "estrutura" modifica-se e amplia-se por analogia aos
seres vivos, abrangendo também o corpo do homem percebido como uma
construção. O termo assume então o sentido da descrição da maneira
como as partes integrantes de um ser concreto organizam-se numa
totalidade.
Robson de Freitas Pereira ressalta que nossa estrutura subjetiva
fundamenta-se numa articulação “simbólica e imaginária
18
em que a
17
Dictionnaire universel françois et latin vulgairement appellé Dictionnaire de Trévoux,
six éditions entre 1704 et 1771, Tradução livre do vocábulo de Mônica Delfino.
18
Importante o que Eugène Enriquez escreve acerca das formas imaginária e simbólica
da estruturação do sujeito, ressaltando apenas que o referido autor não se utiliza de
grafia que marque a diferença entre outro (pequeno outro) e Outro (grande outro):” “O
outro está, portanto, presente, já de início com suas cargas positivas e negativas, e não
é de surpreender que mais tarde, embora seja indispensável para a construção do sujeito
como ser humano [...], o outro possa, ao mesmo tempo, aparecer na forma de
adversário, ou mesmo de inimigo que busca a eliminação psíquica ou física do sujeito.
De que modo o outro entra na construção do sujeito humano (sempre sujeito social)? De
duas formas: uma forma imaginária e outra forma simbólica.” [...] “Forma imaginária:
Lacan assinalou a importância da imagem especular em seu famoso texto “O estágio do
espelho como formação da função do Eu. [...] Se o eu se constitui através da imagem
especular, é por uma apreensão global (antecipação do domínio do corpo). Mas essa
apreensão do corpo como unidade, que faz surgir o júbilo fora do “estágio do espelho”,
só é possível porque a criança é, antes de tudo, constituída como unidade pelo olhar do
outro sobre ela [...] só podemos nos ver porque o outro nos vê e fala de nós. É,
portanto, por uma identificação com a imagem que os outros têm sobre nós que
podemos ter uma imagem de nós mesmos. O que significa que o eu é constituído, desde
a origem, como instância imaginária e remete diretamente ao conjunto dos modelos
imaginários do sujeito.” [...]. “A imagem especular é, portanto, a imagem do
semelhante, mas ela nos adverte da presença de um outro “si mesmo”no espelho, e de
um outro real que nos fala, nos designa e nos atribui qualidades e defeitos. Assim, se o
outro nos constitui em nossa unidade, também nos constitui em nossa divisão. Pois ele
nos lembra que, se pode ajudar a nos construir, pode também nos rejeitar ou provocar
nossa ruptura.” [...] “[...] o fato de que reconhecer-se obriga a reconhecer igualmente o
outro, que nos fala como outro, e a renunciar, portanto, à onipotência infantil
inconsciente e ao recolhimento na “mônada psíquica”ou no “sentimento oceânico”. [...]
24
alienação virtual com o outro sustenta nosso nascimento como sujeitos. A
presença e função do outro é necessária para nossa sobrevivência, em
todos os sentidos.” Contudo chama atenção para o fato de que “um dos
“Ao fazer isso o sujeito se depara com a castração [...], que tem como significado: a) o
sujeito pode ser fragmentado pela ação dos outros, particularmente por seus próprios
pais ou educadores; b) além disso, existem outros que são semelhantes [...] com suas
próprias exigências, que podem bloquear os desejos do sujeito e, portanto, lembrá-lo de
seus limites e destiná-lo à finitude; c) não só o outro está presente, com todo seu poder
real ou fantasiado, como estão presentes outros com variadas imagens do sujeito,
manifestando pressões e injunções (por vezes paradoxais) em relação a ele, devendo
ser armados ou seduzidos, ou simplesmente aceitos, obrigando o sujeito, se ele quiser
agradar, não ser rejeitado, a diversificar suas atitudes e condutas e, portanto,
comportar-se de modo proteiforme.” [...] cada indivíduo está cada vez mais entregue ao
olhar e à palavra do outro. [...] Assim, o sujeito humano experimenta uma enorme
dificuldade para desfazer-se dessa presença dos outros dentro de si, presença que ele
muitas vezes sente não como apoio, mas como intrusão.” [...] ‘estamos expostos àquilo
que A. Mijolla chama, com pertinência, de “os visitantes do eu”, que abrem em nossa
psique trincheiras tão mais operantes por serem inconscientes, ou mesmo negadas pelo
sujeito que é presa deles.” [...]. “Assim, o outro em si nem sempre é aquele ser
benevolente no qual a pessoa se apóia para construir sua identidade, mas pode ser uma
sombra, um falso duplo que suscita uma inquietude da qual o sujeito não sabe “como se
livrar. A forma imaginária pode, assim, nos fornecer os primeiros rascunhos do outro
como inimigo potencial dedicado à nossa destruição interna.” [...] “Forma simbólica: [...]
o fato é que, embora não seja possível, como pensava Lévi-Strauss em certa época,
dividir a humanidade em “sociedade com berço e sociedade sem berço”, ou deduzir o
caráter nacional dos russos partindo dos métodos de acobertamento dos recém-nascidos,
é incontestável (e Freud, assim como os sociólogos, bem o demonstra) que os indivíduos
são marcados desde que nascem para serem os representantes e dignos herdeiros de
uma linhagem familiar, nacional, etc. E a idéia de ‘forma simbólica ‘ acrescenta o
essencial dessa relação entre as gerações: a dívida com aqueles que nos precederam e,
igualmente, a dívida com as gerações futuras, a quem devemos transmitir uma herança
que não seja onerosa. Essa dívida não significa que o herdeiro deva se comportar
exatamente de acordo com o esquema prescrito. Ele pode aceitar a herança
enquanto procede a seu inventário, pode principalmente questioná-la, desprender-se
dela, transformá-la ou até recusá-la, mas com uma condição: reconhecer que ela existe.
[...].
“A forma simbólica da presença do outro em nós nos lembra de nossos deveres em
relação aos mais velhos que nós. Cuidado, não se trata aqui de algum objetivo
moralizador, e sim da enunciação de uma norma que governa a espécie humana: todo
indivíduo tem, desde que nasce, uma dívida não só para com seus pais, mas também
para com sua nação (e, acrescentemos, para com a humanidade inteira), e é o
reconhecimento dessa dívida que faz dele um representante da espécie humana e não
um animal predador. [...] “Reconhecer no outro um semelhante significa, em primeiro
lugar, que cada um, como acredita Levinas, recebe do rosto do outro um chamado e se
sente responsável por ele. O outro lhe aparece como um fragmento da humanidade
inteira, e, conseqüentemente, se ele se sente e se quer parte da espécie humana, não
pode permanecer surdo (ou cego) à sua palavra, ao seu desamparo, quem sabe, ou, de
todo modo, à sua existência. Recusar o outro seria cair no narcisismo mais mortífero.
ENRIQUEZ, Eugène. O Outro, Semelhante ou Inimigo? In: NOVAES, Adauto. (Org.)
Civilização e Barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 45-51.
25
efeitos disso é que se buscamos ser reconhecidos singularmente, com
freqüência essa busca tem efeitos mortíferos, pois a sobrevivência de um
implica o desaparecimento do outro. Só há lugar para um.”
19
Salo de Carvalho, nesta mesma linha de pensamento, ressalta
que, ao mesmo tempo em que o olhar nos faz sofrer a presença do outro,
esse encontro com o outro é sempre traumático,
visto ser a tendência do Um resguardar (-se em) sua finitude e
totalidade. A violência se manifesta, portanto, quando o Um toma
posse do outro, consumindo-o aos poucos, controlando-o em suas
manifestações, contendo seus desejos e sua identidade
20
.
Alfredo Jerusalinski escreveu que “A relação ao olhar do outro
primordial se inscreve inevitavelmente numa dimensão paranóica, na
medida em que desse olhar o sujeito depende, de modo radical, para a
conservação de sua existência”
21
.
Importante ainda destacar que “na vida psíquica do indivíduo
considerado isoladamente, o outro intervém regularmente como modelo,
objeto, apoio e adversário”
22
, podendo-se dizer, segundo o mesmo autor,
que para a modelação da psique do indivíduo ela é atravessada,
trabalhada pelos outros, tornando-se o sujeito psíquico, simultaneamente,
também, um sujeito social.
23
1.2 A importância do (não) poder consumir na constituição do
19
Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Psicanálise em Tempos de
Violência. Ano VI, vol. 12. Porto Alegre, Artes e Ofícios, p.29.
20
CARVALHO, S., 2005, p. 323.
21
Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, op. cit., p. 07.
22
ENRIQUEZ, 2004, p. 45-46.
23
Ibidem, p. 45.
26
sujeito na atualidade
Há quase dois séculos, deixou-se de calcular o valor social de
cada um tendo como referências o lugar, a classe e a família em que
nasceu, pois, na definição do “valor de uma pessoa, suas riquezas
começaram a contar mais que sua origem. Passamos de uma época em
que se venerava o “ser” (nobre, burguês ou escravo) para uma época em
que venerava o “ter”
24
.
E, atualmente, para uma sociedade comandada pela aparência,
importa é “aparentar ter”, o que ainda encerra uma relação direta com o
“ter” como constituição do sujeito. Ocorre que, segundo escreveu Alfredo
Jerusalinski, “Nesse vértice originário podemos perceber que se opera
uma bifurcação na direção do ser, apontando um de seus vetores na
direção do ser e outro na direção do ter”
25
.
Vive-se numa era ditada pelo mercado consumidor, em que a
formação de nossas identidades e a possibilidade de ocupar algum lugar
estão diretamente ligadas à capacidade do sujeito poder consumir ou não.
Diz Maria Laurinda Ribeiro de Souza que “O Estado de Direito fica
substituído, no imaginário social, pelo poder de consumo, deixando à
margem da história e do direito àqueles que se perdem na terceirização
da miséria sem nenhum futuro possível”
26
.
24
CALLIGARIS, Contardo. Terra de ninguém. (101crôniocas). São Paulo: Publifolha,
2004, p. 232-233.
25
Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Psicanálise em Tempos de
Violência. Ano VI, vol. 12. Porto Alegre: Artes e Ofícios, p.08-09.
26
SOUZA, Maria Laurinda Ribeiro de. Violência. Coleção clínica psicanalítica/dirigida por
Flávio Carvalho Ferraz. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005, p. 22.
27
Os não-consumidores têm sido considerados a “sujeira” da
pureza pós-moderna. Segundo Zygmunt Bauman, os consumidores falhos
têm sido considerados a sujeira a ser expurgada desta era pós-moderna;
“são eles os novos “impuros”, que não se ajustam ao novo esquema de
pureza. Encarados a partir da nova perspectiva do mercado consumidor,
eles são redundantes – verdadeiramente ‘objetos fora do lugar’.”
27
Diz
Eugène Enriquez que, dentro desta lógica do mercado de consumo,
O outro transformou-se, de forma cada vez mais freqüente, em
um objeto descartável quando não traz mais benefício para
aqueles que o fizeram introjetar sua ideologia da competição, que
conseguiram manipular seus sentimentos, orientar sua conduta e
nele inocular a culpa, em caso de fracasso.
28
Essa lógica de exclusão do consumidor falho é perversa, pois,
conforme destacamos da fala do autor supracitado, além da reificação do
outro em razão de sua impotência em ser um consumidor ativo, ele é
responsabilizado por seu próprio fracasso. Prossegue Eugène Enriquez,
dizendo que “A escolha é simples: ser vencedor ou fazer parte da corte dos
“deserdados sociais” (Robert Castel), dos marginais, dos indivíduos em via
de exclusão.”
29
E, os que estão abaixo ou não conseguem integrar o
quadro, “são rejeitados, humilhados. A culpa será deles. [...] Morte aos
vencidos ou, pelo menos, falta de consideração ou deferência com eles, ou
apenas o desprezo puro e simples“
30
.
O outro se transforma em refugo, que precisa ser detido e
27
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia
Martinelli Gama. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 24.
28
ENRIQUEZ, 2004, p. 54.
29
Ibidem, p. 53.
30
ENRIQUEZ, 2004, p. 53.
28
mantido em cheque. Esse refugo é fruto dos problemas socialmente
produzidos e, ao que parece, segundo Zygmunt Bauman, não há qualquer
interesse na sua reciclagem, mostrando-se bem menos dispendiosa a sua
remoção.
Como será visto, há uma tendência cada vez maior da
criminalização dos problemas socialmente produzidos: “é mais barato
excluir e encarcerar os consumidores falhos”
31
. Assim, enquanto a busca da
pureza moderna expressou-se através da punição das classes perigosas, “a
busca da pureza pós-moderna expressa-se diariamente com a ação
punitiva contra a ação dos moradores das ruas pobres e das áreas urbanas
proibidas, os vagabundos e indolentes”
32
.
Salo de Carvalho adverte que essa eliminação dos impuros
através da criminalização de suas condutas perpassa e muito a atuação
dos mecanismos punitivos, sendo que
O efeito deletério desta práxis é o aumento da vulnerabilidade de
determinadas pessoas ou grupos sociais à incidência das
violências públicas. Outrossim, para além da atuação dos
mecanismos punitivos, a recepção do discurso etiológico pelo
senso comum legitima a negação da alteridade, visto serem os
criminosos sempre “estrangeiros”.
33
Michel Foucault diz que um dos grandes problemas da seleção
pelo sistema penal desses não-consumidores, donos de lugar nenhum,
donos de nada é que
quando se toma a criminalidade, como se fosse a manifestação dos
31
BAUMAN, 1998, p. 25.
32
Ibidem, p. 26.
33
CARVALHO, S., 2005, p. 328.
29
“portadores de uma essência maligna” que devem ser eliminados,
corre-se o risco de repetir essa história
34
. A punição ganha um
poder justificável “não mais simplesmente sobre as infrações, mas
sobre os indivíduos; não mais sobre o que eles fizeram, mas sobre
aquilo que eles são, serão, ou possam fazer.
35
O ideal e a busca da felicidade e sua (in)satisfação hoje estão
colados ao poder de consumo do sujeito. O consumo é oferecido a todos,
indistintamente, como se todos pudessem usufruí-lo, contudo a realidade
nos mostra que tal ideário se tem traduzido no “fracasso da promessa de
felicidade e satisfação, porque esta frustração é parte integrante de nosso
cotidiano“
36
. A sociedade é diuturnamente metralhada, de todas as formas,
com ofertas de consumo. Prossegue Robson de Freitas Pereira, dizendo
que:
Os out-doors anunciam produtos como se todos pudessem ter
acesso a eles. Somos bombardeados a todo instante com
estímulos a que consumamos alguma coisa, sem saber bem o
porquê. Esta promessa mentirosa tem um efeito de intensificar o
sentimento de revolta e destrutividade, que afeta nossas formas
de sociabilidade. Isso faz com que fiquemos sempre
acompanhados de um sentimento de vergonha e frustração
provocados pela vergonha e frustração provocados pela pobreza
de recursos para o consumo e pobreza de recursos simbólicos.
37
Uma questão interessante a ser observada no que tange a esta
pobreza ou quase ausência de recursos simbólicos é a posição em que o
Estado coloca-se frente ao sujeito, em especial o Estado brasileiro, que,
conforme já tratado no primeiro capítulo, através de nossa Constituição
Brasileira, como “um Pai protetor”, nela inseriu várias promessas
incumpridas. Contudo,
34
No contexto Foucault se referia à estigmatização dos loucos e da loucura.
35
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 22.
36
PEREIRA, 1996, p. 30.
37
Ibidem, p. 30.
30
Este fracasso da função simbólica tem conseqüências tanto para
as relações de vizinhança como para nosso sentimento de
desvalorização frente a nossa própria língua, ou mesmo nossa
identidade nacional (com todas as dúvidas a respeito do que vem
a ser objeto hoje em dia). Pois quem provê os recursos? O pai,
nas dimensões simbólica, imaginária e real. Se ele não garantiu
os recursos, o pai não vale, não é suficiente, ou é inexistente.”
38
Isso equivale dizer que o pai Estado torna-se invisível à grande
parcela da população cujo direito ao consumo foi expropriado, daí advindo
uma série de sofrimentos decorrentes do não poder consumir, do
constituir-se neste ser “impuro” a ser expurgado a qualquer custo do
tecido social.
Isso porque, colado ao “poder consumir”, vem a legitimidade
para se poder ocupar um lugar no mundo. O poder consumir traduz-se
numa das formas de mobilidade na atualidade. É que “essa questão feita
sobre qual o lugar a ser ocupado pode ser respondida pela capacidade de
consumo que cada um possa ter”
39
. Segundo Maria Laurindo Ribeiro de
Souza, a lógica é “Consumir ou deixar-se consumir. O Estado de Direito
fica substituído, no imaginário social, pelo poder de consumo, deixando à
margem da história e do direito aqueles que se perdem na terceirização
da miséria sem nenhum futuro possível”
40
.
E, por conta dessa importância do “ter”, perambulam invisíveis
pelas cidades brasileiras muitas pessoas pobres, jovens na sua maioria,
que a sociedade não as vê. Não somente a sociedade não as vê, pois, para
o Estado elas também são invisíveis, somente aparecem, como números,
38
PEREIRA, 1996, p. 30.
39
Ibidem, p. 28.
40
SOUZA, 2005, p. 22.
31
quando inclusos no sistema penal.
1.3 A gramática
41
da exclusão/inclusão
41
Importante destacar que a acepção que será dada à palavra gramática é a
desenvolvida pela filosofia, qual seja: “Segundo uma tradição registrada por Diógenes
Laércio (III, 25), Platão foi o primeiro a “teorizar a possibilidade da G.”. De fato, é
freqüente nos textos de Platão a referência à G., cuja natureza é definida com mais
precisão no Crátilo. O fundamento dessa definição é a analogia entre a G. e a arte
figurativa. Assim como um artista procura reproduzir os traços dos objetos com o
desenho e as cores, o gramático procura fazer a mesma coisa com as sílabas e as letras.
Seu objetivo é “imitar a substância das coisas”. Se lê chegar a reproduzir tudo o que
pertence a essa substância, sua imagem será bela, mas, se deixar alguma coisa fora ou
se acrescentar algo não pertinente, sua imagem não será bela, mas, se deixar alguma
coisa fora ou se acrescentar algo não pertinente, sua imagem não será bela. Nesse
aspecto, o gramático é um “artífice de nomes, portanto um legislador que pode ser bom
ou mau” (Crat., 431 b ss.). Esse é o primeiro conceito de G. formulado, e é normativo
porque, segundo ele, o gramático não descreve, mas prescreve: é um “legislador”.
Parece ser análogo o conceito de Aristóteles, que define a G. como “ciência do ler e
escrever” (Top., VI, 5 142 b 31). Esse conceito praticamente não foi alterado até a Idade
Moderna. No fim da Escolástica começou-se a falar de uma “G. especulativa” (Tomaseu
de Erfurt compôs uma que foi atribuída a Duns Scot), e Campanella incluiu uma G.
semelhante em sua Philosophia rationalis (1638), que inclui Poética, Retórica e Dialética.
No século seguinte, Wolf pôs entre as outras ciências a G. especulativa ou filosofia da G.,
“na qual se explicam as regras gerais pertencentesb à G. em geral, sem levar em conta
os particularismos das línguas especiais” (Log., Disc. Prael., 1735, § 72). Foi só com
Humboldt que surgiu um novo conceito de G., no famoso texto Sobre a diversidade da
constituição da linguagem humana (1836), a partir do qual a G.começou a ser concebida
como uma disciplina não normativa ou leguslativa, mas descritiva, sendo seu objetivo
investigar, na língua, as uniformidades que constituem regras ou leis. Por esse conceito
moldaram-se todos so estudos modernos da G., que passaram a utilizar cada vez mais as
considerações estatísticas (cf., p. ex., G. HERDAN, Language as Choice and Chance,
Gröningen, 1956). No campo filosófico, Heidegger encarou a exigência de libertar a G. da
lógica que toma as coisas como modelo, ou seja, “o intrumental intramundano”: “A
tarefa de libertar a gramática da lógica exige uma compreensão preliminar e positiva da
estrutura a priori do discurso como existencial. Essa tarefa não pode ser cumprida
subsidiariamente por emio de correções e complementações do que foi legado pela
tradição. Nesse propósito, devem-se questionar as formas fundamentais em que se
funda a possibilidade semântica de articulação do que é suscetível de compreensão e não
apenas dos entes intramundanos conhecidos teoricamente e expresso em frases” [...].
Desse ponto de vista, não basta realizar uma “G. Geral” baseada na generalização das
regras de todas as línguas, visto que mesmo essa G. geral pode ser restrita demais no
que diz respeito às formas lógicas em que se molda. Heidegger acrescenta: “A semântica
tem raízes na ontologia do ser-aí: sua sorte está ligada ao destino deste” (Ibid
., § 34).
Em outros termos, Heidegger desejaria uma G. que levasse em conta não só e não tanto
a estrutura da existência humana, que é específica e diferente da estrutura das coisas.
Esse também parece ser o pressuposto da G. gerativa e transformacional de que fala
Chomsky; com efeito, este se refere freqüentemente a Descartes e, em geral, aos
filósofos do séc. XVII, que ressaltaram o caráter especificamente humano e criativo da
linguagem. Essa G. gerativa deveria solucionar o problema de “construir uma teoria da
aquisição lingüística e de explicar as habilidades inatas específicas que possibilitam essa
aquisição” (Aspects of the Teory of Syntax,1956, I, § 4). Uma G. desse tipo, por um
lado, seria “um modelo explicativo, ou seja, uma teoria da intuição lingüística do falante
32
Metade da humanidade não come;
e a outra metade não dorme,
com medo da que não come.
Josué de Castro – Agenda MST 2003
Na atualidade, a palavra “exclusão”
42
tem sido utilizada pela
mídia nos discursos políticos, sociais, econômicos e institucionais, como
uma espécie de aparador para retratar a desigualdade socioeconômica
reinante no país, restringindo e reduzindo seu sentido ao âmbito
meramente econômico.
Contudo, no presente trabalho, a palavra exclusão será abordada
para além da questão econômica, pois várias de suas facetas e
conseqüências serão analisadas, assim a (in)justiça social e todo o
sofrimento humano a ela associados. É que, segundo Luiz Eduardo
Soares,
Há uma fome mais funda que a fome, mais exigente e voraz
que a fome física: a fome de sentido e de valor; de
reconhecimento e de acolhimento; fome de ser – sabendo-se
que só se alcança ser alguém pela medição do olhar alheio
que nos reconhece e valoriza. Esse olhar, um gesto escasso
e banal, não sendo mecânico – isto é, sendo efetivamente o
olhar que vê – consiste na mais importante manifestação
gratuita de solidariedade e generosidade que um ser
humano pode prestar a outrem. Esse reconhecimento é a
um só tempo, afetivo e cognitivo, assim como os olhos que
vêem e restituem à presença o ser que somos não se
nativo” e, por outro, mostraria que “as estruturas profundas são muito semelhantes de
uma língua para outra e as regras que as manipulam e interpretam também parecem
derivar de uma classe muito restrita de operações formais concebíveis” (Ensaios
Lingüísticos, trad. It., III, 1969, pp. 19 e 272). Essaq G. seria, assim, a matriz de
qualquer G. possível e também apresentaria os critérios para a escolha de determinada
G. na constituição de uma linguagem. (ABBAAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São
Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 490-491).
42
O Dicionário Houaiss registra para a palavra exclusão a acepção ‘ato de excluir-se’. Já,
o verbo excluir, por sua vez, remete a significados como ‘não ter compatibilidade com;
pôr de lado, afastar, separar; deixar de admitir; não conceder direito de inclusão; omitir;
fazer com que perca a posse de; privar, despojar; mandar embora ou para fora; retirar,
expulsar’.
42
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de
Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 1.282.
33
reduzem ao equipamento fisiológico.
43
Em outro ponto de sua obra, o autor supracitado ressalta que
essas reflexões não são hipócritas e não têm pretensão de
sugerir que não haja fome, só fome de amor; quando não
haja necessidade de emprego, renda, vestuário, mercadorias
e moradia, só o fetichismo e a procura desenfreada por
símbolos de inclusão. Há fome física. Há miséria e seu
calvário. Há um rosário de carências. Quero apenas lhe dizer
que não há só isso e que a história não deve ser contada,
unilateralmente, pelo ângulo da economia.
44
Então pode-se dizer que, além da ausência de um olhar da
sociedade sobre esse contingente social, também lhe foi expropriado o
direito de gozar os direitos civis e políticos de um Estado, e isto gerou, em
conseqüência, o surgimento de um segmento social de “não-cidadãos”, ou
seja, os excluídos.
E quem seriam esses excluídos/incluídos de forma perversa? Num
primeiro momento, seriam os marginais, pedintes, mendigos, os quais
povoaram e povoam os espaços sociais, formando universos
estigmatizados e estereotipados, presentes em toda a história da
humanidade. Hodiernamente, também podemos somar a essa classe
excluída, pessoas idosas, deficientes, desadaptados sociais, minorias
étnicas ou de cor, desempregados de longa duração, jovens
impossibilitados de ascender ao mercado de trabalho, bem como todos os
explorados em um subemprego, os trabalhadores do mercado informal e,
ainda, dentre tantos outros, aqueles que percebem um mísero salário
43
ATHAYDE, Celso; MV Bill; SOARES, Luiz Eduardo. Cabeça de Porco. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2005.
44; MV Bill; SOARES, 2005.
34
mínimo.
A exclusão, nos locais públicos de fala ao início citados, aparece
muitas vezes como sinônimo de pobreza, de privação e de despojamento
dos bens e valores de uma determinada sociedade. No entanto, Bader
Sawaia questiona se ocorre realmente uma exclusão, ou se não
poderíamos falar de uma inclusão, contudo perversa, uma vez que todos
os excluídos são incluídos na sociedade, porém como excluídos. É que:
A sociedade exclui para incluir e esta transmutação é condição da
ordem social desigual, o que implica o caráter ilusório da inclusão.
Todos estamos inseridos de algum modo, nem sempre decente e
digno, no circuito reprodutivo das atividades econômicas, sendo a
grande maioria da humanidade inserida através da insuficiência e
das privações, que se desdobram para fora do econômico.
45
O que há, segundo a análise do mencionado autor, é a dialética
exclusão/inclusão.
No Brasil, as políticas econômicas atuais geram exclusão e, ainda,
os que restaram incluídos, assim rest
35
neoliberal, os excluídos são produtos do sistema, mas carregam a culpa de
não terem sabido alcançar sua inclusão”
47
. Assim, resta incluído, aquele
que está inserido no mercado, consumindo.
Ao excluído, por sua vez, resta a sobrevivência através das
migalhas porque, à margem do mercado, traduz-se num não-consumidor
e, “coloca-se na condição de descartável e, portanto, no quadro atual,
mostra-se como um empecilho, dado continuar demandando pelas
necessidades básicas (homo famelicus)”
48
.
Jock Young diz que,
até os anos 1980, a palavra ‘marginalização’ é usada para designar
este grupo adventício: são as pessoas que a modernidade deixou
para trás, bolsões de pobreza e de privação na sociedade afluente.
A partir de então, porém, a expressão passa a ser ‘exclusão social’
[...], abrangendo como abrange uma expulsão mais dinâmica da
sociedade e, o que é muito importante, um declínio na motivação
de integrar os pobres na sociedade.
49
A lógica dialética mostra que a exclusão é um processo complexo
e de muitas faces, com configurações de dimensões materiais, políticas,
interacionistas e subjetivas. A exclusão não gera somente a pobreza, pois
esta é produto do sistema, mas se traduz no processo que envolve o
homem por inteiro e suas relações com os outros, pois
A lógica dialética explicita a reversibilidade da relação entre
subjetividade e legitimação social e revela as filigranas do processo
que liga o excluído ao resto da sociedade no processo de
47
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do pensamento economicista no direito
criminal de hoje. In: Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, v.
5, n. 9 e 10, p. 78, 2000.
48
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do pensamento economicista no direito
criminal de hoje. In: Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, v.
5, n. 9 e 10, p. 78, 2000.
49
YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na
modernidade recente. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 41.
36
manutenção da ordem social, como por exemplo, o papel central
que a idéia de nós desempenha no mecanismo psicológico principal
da coação social nas sociedades onde prevalece o fantasma do uno
e da desigualdade, que é o de culpabilização individual. O pobre é
constantemente incluído, por mediações de diferentes ordens, no
nós que o exclui, gerando o sentimento de culpa individual pela
exclusão.
50
Essa inclusão ocorre de forma perversa, porque, além de fazer
os pobres se sentirem culpados e responsáveis pela própria pobreza, faz
com que adquiram um status social desvalorizado, estigmatizado, e que se
vejam, via de conseqüência, obrigados a viver isolados, até mesmo
daqueles que se encontram em situação idêntica, a fim de dissimular a
inferioridade de seu “Eu”. Acerca do assunto, Léo Rosa de Andrade
expressa:
Se olharmos as favelas, os alagados, as paliçadas, as periferias,
os morros, o submundo, os desgraçados em geral, veremos os
filhos dos escravos, dos índios, dos imigrantes mal sucedidos,
veremos os migrantes, os bóias-frias, os sem-terras, os sem-teto,
veremos os produzidos e reproduzidos nessas circunstâncias. São
a nação miserável, os nascidos e crescidos na parte miserável da
pátria. Os que os perceberam sempre lhes lançaram
acometimentos auto-exculpatórios, atribuindo-lhes desemprego
por vagabundagem, ignorância por vadiação, prole exagerada por
descuido, doença por falta de higiene. Enfim, aos excluídos é
imputada a condição de responsáveis pelas circunstâncias
históricas que lhes aniquila quaisquer meios e todas as chances,
como se eles fossem voluntários da própria miséria.
51
A exclusão, assim, além da total ausência de bens materiais de
consumo que provoca, cria no indivíduo uma sensação de fracasso pessoal,
na medida em que o responsabiliza pessoalmente de sua pobreza, por não
ter conseguido ascender socialmente. Produz, ainda, uma estigmatização
do excluído.
50
SAWAIA, 2001, p. 08-09.
51
ANDRADE, Léo Rosa. A culpa do outro. Inédito.
37
O estigma da desqualificação marca o indivíduo feito cicatriz.
Jailson de Souza e Silva, a respeito, afirma que esse efeito perverso ocorre
devido a que a responsabilidade pelo fracasso social foi transferida ao
indivíduo
52
. E é em decorrência disso que surge a figura de um Estado
assistencialista o qual, segundo Vera Telles, faz com que os direitos sejam
transformados em ajuda, em favores
53
.
1.4 A exclusão do direito aos direitos de cidadania
Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver
proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de
verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um
destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século –
a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher
pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância – não forem
resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia
social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo
ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros
como este não serão inúteis.
Hauteville-House, 1862
Prefácio de Victor Hugo à sua obra “Os Miseráveis”
Inicialmente, necessário faz-se conceituar o que vem a ser
cidadão e o que vem a ser cidadania. O Dicionário Houaiss reconhece ao
vocábulo cidadão o significado de “indivíduo que, como membro de um
Estado, usufrui de direitos civis e políticos garantidos pelo mesmo Estado e
desempenha os deveres que, nesta condição, lhe são atribuídos” e, ainda,
aquele que goza de direitos constitucionais e respeita as liberdades
52
SILVA, Jailson de Souza e. Por que uns e não outros: caminhada de jovens pobres
para a universidade. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003, p. 158.
53
TELES, Vera apud WANDERLEY, Mariângela. Reflexões acerca do conceito de exclusão,
p. 16-26. In: SAWAIA, 2001, p. 24.
38
democráticas”. Já, para o termo cidadania, aponta o sentido de “qualidade
ou condição de cidadão” e “condição de pessoa que, como membro de um
Estado, se acha no gozo de direitos que lhe permitem participar da vida
política
54
.
Das acepções acima referidas, pode-se depreender que todos
aqueles dos quais foi expropriado o direito de gozar os direitos civis e
políticos de um Estado, viriam a formar uma categoria de “não-cidadãos”,
ou seja, os excluídos.
Sílvia Tatiana Maurer Lane questiona: “Quem são os excluídos,
disfarçados em incluídos?”. E, ao mesmo tempo, responde:
São aqueles que para não denunciarem as injustiças decorrentes
da ideologia dominante, necessária para a manutenção do poder
de alguns e de um status quo, são ‘incluídos’ no sistema.
São os negros que denunciam a escravidão, hoje disfarçada em
preconceitos ou discriminações ambíguas.
São os deficientes que denunciam a ausência da Saúde Pública e
de Educação reabilitadora.
São os pobres que denunciam a injustiça econômica e a má
distribuição de renda que impede o acesso à saúde e educação.
São os índios ‘protegidos’ em reservas, que são considerados
incluídos, apesar da autodestruição.
E, muito mais...
55
Esses excluídos, acima enumerados, muitas vezes, são cidadãos
explorados das mais diversas formas e disfarçados como incluídos.
Constata-se que muitas pessoas e suas situações acabam por
ser vinculadas à gramática da exclusão/inclusão, representando as mais
diversas formas e sentidos originados dessa relação inclusão/exclusão.
Mariangela Belfiore Wanderley diz que “Sob esse rótulo estão
54
HOUAISS; VILLAR; FRANCO, 2001, p. 714.
55
SAWAIA, 2001. (quarta capa).
39
contidos inúmeros processos e categorias, uma série de manifestações que
aparecem como fraturas e rupturas do vínculo social”
56
. Referiu, contudo,
que, do ponto de vista epistemológico, o fenômeno da exclusão é tão vasto
e complexo, que se torna quase impossível delimitá-lo. Entretanto, fazendo
um recorte ocidental, pode-se dizer que “excluídos são todos aqueles que
são rejeitados de nossos mercados materiais ou simbólicos, de nossos
valores”
57
.
Assim, a palavra exclusão não pode ser entendida de forma
reducionista, ligada apenas à questão econômica, porque os excluídos não
são apenas aqueles rejeitados física, geográfica e materialmente, “não
apenas do mercado e de suas trocas, mas de todas as riquezas espirituais,
seus valores não são reconhecidos, ou seja, há também uma exclusão
cultural”
58
. A respeito, Jock Young afirma que
A insatisfação face à situação social, a frustração de aspirações e o
desejo podem dar lugar a uma variedade de respostas políticas,
religiosas e culturais capazes de abrir possibilidades para os
imediatamente concernidos, mas também podem, freqüentemente
de propósito, fechar e restringir as possibilidades de outros.
Também podem criar respostas criminais, e estas encerram muito
freqüentemente a característica de restringir terceiros.
59
Prossegue, afirmando que os excluídos acabam sendo impedidos
de “entrar na pista de corridas da sociedade meritocrática, ainda que
permaneçam colados a aparelhos de televisão e outras mídias que exibem
56
SAWAIA, 2001, p. 17.
57
XIBERRAS, Martine apud Mariângela. Reflexões acerca do conceito de exclusão, p. 16-
26. In: SAWAIA, 2001, p. 17.
58
SAWAIA, 2001, p. 17-18.
59
YOUNG, 2002, p. 30.
40
tentadoramente os prêmios e recompensas da sociedade abastada”
60
.
1.4.1 O princípio da eficiência
Eu não tenho.
Eu não tenho chão
Eu não tenho casa
Estou vendendo as asas
Que possuo
Por não ter nada mais
Vez em quando leite, vez um feijão
Que jamais ganhou presente de Natal?
Eu não tenho chão
Só grão de esperança
Há quem tenha por nós
Eu não tenho chão
Eu não tenho casa (nada)
Eu não tenho pão
Estou vendendo as asas
Que possuo
Por não ter mais
Vou longe com Deus e asas que levo
Vejo os castelos frente ao meu brinquedo
Eu não tenho som
Canto o que me dão
Viva a vida, vida viverá
Mas vejo nos olhos de esmeralda
Um dom que sossega minha tristeza
Só ela constrói
Sem ela tudo me dói
Deixa pra lá
Há quem tenha por nós
Lokua Kanza – Vanessa da Mata
61
O princípio da eficiência foi inserido no ordenamento jurídico
nacional por meio da Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998,
que o inscreveu entre os princípios constitucionais da administração
pública, insertos no artigo 37, caput, da Constituição Federal, o qual tem a
60
YOUNG, 2002, p. 31.
61
MATA, Vanessa da. [compositora] In: Vanessa da Mattc0 Tw(61)Tj10.0.50 Tw2a.snessa
41
seguinte redação:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos
poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência, e, também ao seguinte [...].
62
Posteriormente, a Lei nº 9.784/99 (que regula o processo
administrativo no âmbito da Administração Pública Federal) fez referência
a ele em seu artigo 2º, caput, que assim dispôs: “A Administração Pública
obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade,
motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa,
contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”
63
.
Hely Lopes Meirelles já ensinava que “o princípio da eficiência
exige que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição,
e rendimento funcional”
64
.
Celso Antônio Bandeira de Mello, por sua vez, ao falar sobre o
princípio da eficiência, refere que “trata-se, evidentemente, de algo mais
do que desejável”
65
. Prossegue, ainda, dizendo que tal princípio não pode
ser admitido “senão na intimidade do princípio da legalidade, pois jamais
uma suposta busca de eficiência justificaria postergação daquele que é o
dever administrativo por excelência”
66
. Mencionado princípio, segundo esse
62
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 31 ed.
São Paulo: Saraiva, 2003.
63
SANTOS, Alvacir Correa dos. Princípio da eficiência da administração pública. São
Paulo: Ltr, 2003, p. 195.
64
MEIRELLES, Hely Lopes. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros,
2003. p. 94.
65
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Direito administrativo brasileiro. 28. ed. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 111.
66
MELLO, 2003, p. 112.
42
autor, é uma faceta de princípio mais abrangente há muito tratado no
direito italiano, qual seja o princípio da “boa administração”
67
.
Para Hely Lopes Meirelles, o princípio da eficiência constitui o mais
moderno dos princípios da função administrativa, a qual “já não se
contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo
resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das
necessidades da comunidade e de seus membros”
68
.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro diz que o princípio da eficiência se
apresenta sob dois aspectos, a saber: um, que diz respeito ao modo de
atuação do agente público, “do qual se espera o melhor desempenho
possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados”
69
.
O outro
aspecto, e que interessa ao presente trabalho, refere-se “ao modo de
organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o
mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do
serviço público”
70
.
Contudo, alguns autores, como Luiz Alberto dos Santos, tecem
críticas à inserção do princípio da eficiência no texto constitucional, pois
entendem que tal não é princípio da administração pública, mas sim
finalidade precípua desta, o objetivo propriamente dito a ser perseguido
pelo administrador público
71
.
Para Heraldo Garcia Vitta, segundo relata Alvacir Correa dos
67
MELLO, 2003, p. 112.
68
Ibidem, p. 94.
69
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas,
2003, p. 83.
70
DI PIETRO, 2003, p. 83.
71
SANTOS, Luiz Alberto dos apud SANTOS, A., 2003, p. 201.
43
Santos,
Mostra-se desnecessária a introdução do princípio da eficiência no
caput do art. 37 da CF, pois, se o Brasil é um Estado Democrático
de Direito, e tem como fundamentos, entre outros, a cidadania, a
dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa, e tem como objetivos fundamentais construir uma
sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (CF,
art. 1º e 3º), a evidência que a “administração pública deverá ser
eficiente, visar ao bem comum, enfim, é dever jurídico (e não
meramente ético) de todo e qualquer governo ter boa
administração.
72
Por sua vez, Alvacir Correa dos Santos diz que o princípio da
eficiência não veio ao ordenamento jurídico como princípio constitucional
somente para consagração da tecnocracia, mas sim para que o Estado
atinja seus fins maiores, como a prestação de serviços em favor do bem
comum, através dos meios legais e morais que o justifiquem. Prossegue
dizendo, ainda, que
esse princípio deve ser visualizado principalmente em função de
determinados valores protegidos pela Constituição, a exemplo dos
valores da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa
humana, do trabalho, da livre iniciativa e do pluralismo político.
73
Percebe-se que esse princípio surgiu como um poderoso
instrumento de consolidação dos direitos fundamentais prometidos na
Constituição, de forma a viabilizar a construção de um Estado Democrático
de Direito no país.
1.4.2 Da ineficiência na concretização dos direitos básicos
fundamentais de cidadania insertos na Constituição Federal
72
VITTA, Heraldo Garcia apud SANTOS, A., 2003, p. 201-202.
73
Ibidem, p. 193.
44
brasileira
No Brasil, observa-se, desde há muito, a impotência do
Estado-Nação no controle das conjunturas nacionais. A desigualdade social
aumenta cada vez mais e, com ela, o número de pessoas excluídas do
mercado de trabalho. Via de conseqüência, aumenta o número de pessoas
excluídas dos direitos ao direito de cidadania.
De outro lado, há uma minoria com renda muito elevada, ou
relativamente elevada. Formam-se, assim, “dois Brasis”: um dos muito
ricos e outro dos muito pobres. Isso porque o Estado brasileiro não tem
conseguido ser eficiente, para assegurar a concretização dos direitos
fundamentais básicos ao exercício da cidadania, prometidos ao início da
Constituição Federal.
A realidade acima acaba de ser estampada em recente estudo
realizado e publicado pelo IBGE.
Segundo chamada da reportagem acerca de tal estudo, realizada
pela revista ISTOÉ, o País chegou ao “FOSSO ABISSAL – Estudo do IBGE
mostra que o binômio concentração de renda e desigualdade social foi o
mal do século XX no Brasil
74
.
Coexistem em nosso país diferentes causas de pobreza e de
exclusão social, pois “as noções de pobre e pobreza figuram no horizonte
histórico da sociedade brasileira e são explicativas das formas como o
74
Fosso Abissal: estudo de IBGE mostra que o binômio concentração de renda e
desigualdade social foi o mal do século XX no Brasil. ISTOÉ, 08 out. 2003, p. 46.
45
cenário público brasileiro tratou a questão social
75
.
Ocorre que
Em um século, o Brasil se transformou em uma respeitável
economia industrial, mudou-se de mala e cuia da roça para a
cidade e esteve entre os cinco países com maior crescimento do
PIB, ao lado de países bilionários como Japão, Finlândia, Noruega
e Coréia. Mas um passeio pela história da distribuição das
riquezas não deixa dúvidas: os governantes e economistas que
guiaram a Nação nesses 100 anos merecem uma bela salva de
vaias. Dois importantes estudos divulgados na semana passada
consolidam a certeza de que, na busca da justiça social, objetivo
maior de toda nação moderna, o Brasil foi um fracasso.
76
Segundo Vera Telles,
Poder-se-ia dizer que, tal como uma sombra, a pobreza
acompanha a história brasileira, compondo um elenco de
problemas, impasses e também virtualidades de um país que fez e
ainda faz do progresso (hoje formulado em termos de uma suposta
modernização) um projeto nacional.
77
Maura Pardini Bicudo Véras diz que a exclusão social é um
problema brasileiro de 500 anos e que “nossa história traz capítulos
freqüentes de dominação de vastos segmentos populacionais sem
cidadania”
78
. Segundo José de Souza Martins, “nossa cultura barroca de
fachada, com base na conquista, exclui índios, camponeses no campo e,
na cidade, migrantes, favelados, encortiçados, sem teto etc., em uma
fenomenologia bastante conhecida”
79
.
Fazendo um rápido passeio histórico, observa-se que, da era
colonial ao Brasil do Império e das Repúblicas – velha, nova e
75
SAWAIA, 2001, p. 19.
76
Fosso Abissal: estudo de IBGE mostra que o binômio concentração de renda e
desigualdade social foi o mal do século XX no Brasil. Isto É. 08 out. 2003, p. 46.
77
TELLES, Vera apud WANDERLEY, Mariângela. Reflexões acerca do conceito de
exclusão, p. 16-26. In: SAWAIA, 2001, p. 19.
78
SAWAIA, 2001, p. 27.
79
MARTINS, José de Souza apud VÉRAS, Maura Pardini Bicudo. Exclusão social:
problema Brasileiro de 500 anos, p. 27-50. In: SAWAIA, 2001, p. 27.
46
contemporânea, com agravamento durante a ditadura militar, os processos
sociais excludentes sempre estiveram presentes em nossa história.
Depois do período nacional-desenvolvimentista, no auge do
chamado “milagre econômico”, militares e setores conservadores
apresentaram “pseudo-soluções” para as questões sociais, dentre elas as
propostas habitacionais para os setores populares, através dos
financiamentos concedidos pelo BNH, bem como “o controle da vida
sindical dos trabalhadores, arrocho salarial como combate à inflação, a
falta de liberdade política de expressão e organização e assim por
diante”
80
.
Naquele momento, alguns intelectuais brasileiros, “assumindo o
preconceito contra as ‘classes perigosas’, viam os pobres como ‘populações
marginais’ ou atrasadas, que poderiam integrar-se ao novo mundo urbano
e moderno”
81
.
Dentre as várias concepções de marginalidade que vigoravam
nos anos 70, Maura Pardini Bicudo Véras apontou algumas referências
importantes, eis que não assumiu o dualismo “atrasado x moderno”, “não
integrado x integrado”, “rural x urbano”, quando, então, os estudos
passaram a ver as relações econômicas e sociológicas atinentes ao
capitalismo como constitutivas do sistema de produção. “As populações
marginais aparecem, nesse contexto, como conseqüência da acumulação
80
SAWAIA, 2001, p. 29.
81
Ibidem, p. 29.
47
capitalista, um exército industrial de reserva singular”
82
.
Já nos anos 80, período que ficou conhecido como “década
perdida”, contrariamente aos anos 60 e 70 - momento em que se dirigia a
atenção aos favelados e à migração como representantes emblemáticos
dos excluídos na cidade, pelo aumento da pobreza e da recessão
econômica, simultaneamente se vivia a chamada “transição democrática”,
voltava-se a atenção para a questão da democracia, da apartação urbana e
os efeitos perversos da legislação urbanística, a importância do território
para a cidadania, bem como a falência das políticas, movimentos e lutas
sociais.
83
Nesse período, houve, em especial, a discussão acerca do
território, da questão espacial e da cidadania, despontando temas
relacionados à urbanização, às relações entre espaço e sociedade e à
divisão do mundo, com destaque especial para as reflexões sobre espaço e
cidadania.
Segundo Milton Santos, o componente território implica que
seus habitantes, além do acesso aos bens e serviços indispensáveis,
tenham, também, uma adequada gestão deles, os quais devem ser
assegurados a toda a coletividade. Menciona, ainda, que o Terceiro Mundo
é composto por “não-cidadãos” (em especial, originados do “milagre
econômico brasileiro”, que agravou consideravelmente os contrastes entre
o exagerado número de pobres e a concentração de riquezas nas mãos de
82
SAWAIA, 2001, p. 30.
83
Ibidem, p. 31.
48
uma minoria), porque se fundou na sociedade do consumo, da
mercantilização, e na monetarização. Assim, “cada homem vale pelo lugar
onde está. O seu valor como produtor, consumidor, cidadão depende de
sua localização no território [...]”
84
. E prossegue: “a possibilidade de ser
mais ou menos cidadão depende, em larga proporção, do ponto do
território onde se está”
85
.
Com o reconhecimento do componente espacial da pobreza,
percebe-se que a exclusão do direito de acessibilidade ao território nega ao
cidadão o direito de ter um lugar, permanecer no lugar (criar raízes),
perder seu território identitário, bem como seu espaço de memória. Ou,
ainda, quando o consegue, é-lhe negado o direito de mobilidade, pois
há em todas as cidades, uma parcela da população que não dispõe
de condições para se transferir da casa onde mora, isto é, para
mudar de bairro e que pode vir explicada a sua pobreza pelo fato
de sua residência não contar com serviços públicos.
86
Essa parcela dos excluídos, quando, mesmo que de forma
precária, consegue conquistar algum espaço no território, nem sempre tem
respeitado seu direito de permanecer no lugar e de criar raízes, pois o
capitalismo predatório, juntamente com as políticas urbanas que
privilegiam interesses privados e o sistema de circulação (ruas, rodovias e
avenidas), muitas vezes acabam por descaracterizar bairros (por exemplo,
no caso de remoção para construção de obra pública ou para reintegração
84
SANTOS, Milton apud VÉRAS, Maura Pardini Bicudo. Exclusão social: problema
Brasileiro de 500 anos, p. 27-50. In: SAWAIA, 2001, p. 32.
85
SAWAIA, 2001, p. 32.
86
SANTOS, Milton apud VÉRAS, Maura Pardini Bicudo. Exclusão social: problema
Brasileiro de 500 anos, p. 27-50. In: SAWAIA, 2001, p. 33.
49
de posse), expulsando moradores das favelas, encortiçados e moradores
de loteamentos irregulares, sem-teto, sem-terra, sem-raízes, que são
despejados, removidos como se objetos quaisquer fossem.
Jock Young escreve que, através de uma série de medidas, cria-se
uma fronteira clara entre o grupo nuclear (incluídos no espaço urbano) e
os de fora (excluídos do espaço urbano). Essas medidas são representadas
pelo planejamento urbano, a rede de estradas que divide cidades,
o gradeamento de propriedades privadas, o bloqueio de áreas para
evitar o acesso fácil, mas acima de tudo pelo dinheiro: o custo do
transporte público no centro, custo dos bens nas lojas, o
policiamento das áreas nucleares, seja dos shoppings suburbanos
ou dos guetos, seja por polícia particular ou pública, é voltado para
a remoção de incertezas, para limpar as ruas de alcoólatras,
doentes mentais ou simplesmente dos que se reúnem em grupos.
É uma polícia atuarial, que o tempo todo calcula o que pode causar
desordem e mal-estar, mandando circular os inconvenientes em
vez de prender os criminosos. Ela é ajudada pela introdução
disseminada de circuitos fechados de televisão (que na verdade
são mais efetivos em lidar com incivilidades do que com crimes
sérios planejados) e pela aplicação de inúmeras legislações de
controle dos comportamentos desordeiros.
Os de fora
O grupo dos que estão fora vira bode expiatório para os problemas
da sociedade mais ampla: eles são uma subclasse, que vive no
ócio e no crime. Suas áreas são a morada de mães solteiras e pais
irresponsáveis, sua economia, a da droga, da prostituição e do
comércio de objetos roubados. Eles são as impurezas sociais do
mundo moderno recente, que David Sibbley, em seu eloqüente
Geographies of Exclusion [Geografias de Exclusão] (1995), vê
como vítimas de geografias de saneamento e moralização
reminiscentes dos reformadores do século XIX. Mas à diferença
dos reformadores do final do século XIX até a década de 1960, o
objetivo não é eliminar fisicamente suas áreas e integrar seus
membros no corpo político, é manter à margem e excluir.
87
Nos anos 90, o conceito de exclusão foi reeditado como sinônimo
de não-cidadania, imprimindo um significado dinâmico e multidimensional
à palavra. A exclusão deixou de ser vista sob o ângulo reducionista que a
vinculava somente à economia, para se reconhecer que, além do
87
YOUNG, 2002, p. 40-41.
50
desemprego, existem outras dimensões de precariedade econômica e
social, como, por exemplo, “instabilidade conjugal, vida social e familiar
inadequadas, baixo nível de participação nas atividades sociais etc., em
uma espiral viciosa de produção da exclusão”
88
.
Além da exclusão do direito ao trabalho e, conseqüentemente, à
renda, os indivíduos e grupos são excluídos também das trocas sociais e
dos direitos de integração social e identidade, pois, como conseqüência da
exclusão da renda, lhe são excluídos também o direito à habitação,
educação, saúde, acesso a serviços e valores culturais. É que a essa
parcela só tem cabido a miséria. Assim, os excluídos também podem ser
identificados como miseráveis. Segundo Léo Rosa de Andrade,
Aos miseráveis, pelos tempos da nossa história, só se lhes deu a
condição de miséria. Eles foram constituídos como os pobres
desta terra e se lhes foram concedidos os guetos e a condição de
peça de engrenagem do modo de produção que vigorasse. Em um
mundo que pertence a alguns, os demais foram constituídos como
os outros. A importância fundamental da afirmação, em se a
aceitando, está em compreender que o grave problema, que tem
duas partes envolvidas, está no fato de que só uma formula o
problema que pede solução. E na formulação do problema o outro
é o próprio problema. Como a formulação do problema amarra a
solução, e como uma parte do país não está sentada entre os que
a encaminham, resta-lhe receber o que vier: ainda que venha
sobre si ou mesmo contra si, virá com o aviso de que, se não
funcionar, a culpa será sua. Não tem funcionado e a culpa tem
sido do pressuposto culpado.
89
No decorrer da história brasileira, o imenso contingente que
compõe a categoria pobreza, de uma forma cada vez mais perversa, tem
sido discriminado e até mesmo segregado, sendo encarado como um
grupo de indivíduos inteiramente desnecessários ao universo produtivo,
88
SAWAIA, 2001, p. 35.
89
ANDRADE, Léo. A culpa do outro. Inédito.
51
porque, ao que parece, não há mais possibilidade de sua inclusão no
mercado de trabalho e na sociedade. É que, segundo Aldaíza Sposatti,
A desigualdade social, econômica e política na sociedade brasileira
chegou a tal grau que se torna incompatível com a democratização
da sociedade. Por decorrência, tem se falado na existência da
apartação social. No Brasil a discriminação é econômica, cultural e
política, além de étnica.
Este processo deve ser entendido como exclusão, isto é, uma
impossibilidade de poder partilhar o que leva à vivência da
privação, da recusa, do abandono e da expulsão inclusive, com
violência, de um conjunto significativo da população, por isso, uma
exclusão social e não pessoal. Não se trata de um processo
individual, embora atinja pessoas, mas de uma lógica que es
presente nas várias formas de relações econômicas, sociais,
culturais e políticas da sociedade brasileira. Esta situação de
privação coletiva é que se está entendendo por exclusão social. Ela
inclui pobreza, discriminação, subalternidade, não eqüidade, não
acessibilidade, não representação pública.
90
E essa apartação social vai desencadeando um processo pelo
qual o outro passa a ser visto como um ser à parte. É um fenômeno que
separa o outro não-somente como um desi
ual, mas como um
não-semelhante, um não-cidadão, um ser expulso não apenas dos meios
de consumo, dos bens, serviços etc., mas um ser apartado do gênero
humano. Isso porque, segundo Léo Rosa de Andrade,
O outro está, sem a sua participação, constituído como outro.
Deveríamos ser eus articulados, não somos. Poderíamos ser o
outro generalizado, pois, sem dúvida, o eu se constitui, ou surge
em mim, a partir das relações sociais com o outro. Mas há não
alternativa, dado que os outros não estão entre os eus
determinantes, que não seja admitir sua existência e reconhecer
seu direito de existir. Esta é uma condição alicerce para qualquer
desdobramento preocupado com outras possibilidades para a
sociedade.
91
No mundo das relações sociais, a exclusão do mercado formal e
90
SPOSATTI, Aldaíza apud WANDERLEY, Mariângela. Reflexões acerca do conceito de
exclusão, p. 16-26. In: SAWAIA, 2001, p. 20.
91
ANDRADE, Léo. A culpa do outro. Inédito.
52
informal de trabalho transforma o indivíduo em integrante de um
contingente populacional desnecessário ao restante da sociedade e, via de
conseqüência, fragiliza suas relações com o outro, enfraquecendo seus
vínculos, seja na família, vizinhança, comunidade, instituições,
conduzindo-o ao isolamento social e à exclusão. Jock Young afirma que
essa sociedade excludente cria uma propensão ao individualismo, e a
separação que antes era entre classes, opera, agora, dentre os indivíduos
de uma mesma classe, pois os
excluídos, criam uma identidade que é rejeitadora e excludente,
excluem outros mediante agressão e dispensa, e são, por sua vez,
excluídos e dispensados por outros, sejam diretores de escola,
seguranças de shoppings ou supermercados, cidadãos ‘honesto’ ou
o policial em sua ronda. A dialética da exclusão está em curso,
uma amplificação do desvio que acentua progressivamente a
marginalidade, num processo pírrico que envolve tanto a sociedade
mais ampla como, crucialmente, seus próprios atores, os quais, na
melhor hipótese, se metem na armadilha de uma série de
empregos sem nenhuma perspectiva, ou, na pior, de uma
subclasse de ociosidade e desespero.
92
Léo Rosa de Andrade, a respeito ressalta que:
Não se trata, este conflito brasileiro, ou entre brasileiros, de uma
contenda em que as partes propugnem em defesa de formas de
busca de um bem comum. Não há qualquer conversa. Não há
relações estabelecidas entre as partes. O que ocorre é que alguns
brasileiros cravaram-se em condições adequadas para si e outro
tanto não foi incluído, nem se lhe deu meios; nem ao menos se
lhe aludiu com inclusão. A incorporação prática deste outro tanto
nunca esteve em pauta. Não se confunda falar sobre eles, fazê-los
objeto de estudos os mais diversos com estar e dialogar com
eles.
93
Mariângela Belfiore Wanderley, citando Elimar Pinheiro
Nascimento, sobre esse contingente excluído, anota que:
92
YOUNG, 2002, p. 31.
93
ANDRADE, Léo. A culpa do outro. Inédito.
53
No caso do Brasil, consideradas as particularidades sócio-
econômicas, ideo-políticas e culturais, poder-se-ia dizer que estão
sendo forjados, entre nós, personagens que são incômodos
politicamente (a eles são atribuídos os males de nossa política, os
“descamisados de Collor”, por exemplo); ameaçadores socialmente
(são perigosos, pois não são simplesmente pobres, mas bandidos
potenciais - a representação do pobre está se modificando entre
nós: a sua identidade está cada vez mais relacionada a do bandido
marginal) e desnecessários economicamente (uma massa
crescente de pessoas que não tem mais possibilidade de obter
emprego, pois são despreparados).
94
Constata-se a coexistência de dois Estados brasileiros: para uma
minoria o Estado do Bem-Estar e para a maioria um Estado do Mal-Estar.
A já citada pesquisa do IBGE demonstra claramente a assertiva
acima, cabendo referir alguns trechos interpretativos, extraídos do
Caderno Especial que a Folha de São Paulo lançou a respeito:
Segundo o IBGE, o 1% dos mais endinheirados ganha o mesmo
que os 50% mais pobres
País fica mais rico e mais desigual.
O século 20 foi aquele em que o Brasil aumentou sua riqueza,
mas não a dividiu. Em cem anos, a riqueza total cresceu quase
12 vezes em relação à população; no entanto, a distribuição de
renda piorou na segunda metade do século. [...]
A concentração de renda é tão grande que, na virada do século 20
para o 21, o 1% mais rico dos brasileiros ganhava praticamente o
mesmo que os 50% mais pobres. [...]
O Brasil que encerrou o século 20 era um país mais velho, mais
urbano, mais feminino, mais alfabetizado, mais industrializado. A
desigualdade é a marca nacional, seja desigualdade de renda,
racial, de gênero ou regional. [...]
Apesar do enriquecimento, a renda ficou mais concentrada a
partir de 1960 (quando estão disponíveis os primeiros dados
sobre o tema). Em 1999, o 1% mais rico da população em idade
ativa e com rendimento concentrava 13% da renda – quase o
mesmo que os 50% mais pobres, 13,9%. [...]
O Brasil teve um crescimento fantástico, mas não aprendeu a
dividir a riqueza. O crescimento econômico, comparável ao de
poucos países nesse século, levou a uma evolução sem resolução
de uma série de problemas, que seguem agora para o século 21,
afirma o Diretor do IBGE, Eduardo Pereira Nunes. [...]
De acordo com o relatório de 2003 do Pnud (Programa das
Nações Unidas para o desenvolvimento), o Brasil encerrou o
94
WANDERLEY, Mariângela Belfiore apud SAWAIA, 2001, p. 25.
54
século 20 com a sexta pior distribuição de renda do mundo,
perdendo apenas para Namíbia, Botsuana, Serra Leoa, República
Centro-Africana e Suazilândia. [...]
Segundo o assessor de desenvolvimento sustentável do pnud,
José Carlos Libânio, a América latina tem os maiores níveis de
desigualdade do mundo, e o Brasil, na América Latina, é o mais
desigual.
95
Os indicadores sobre saúde reforçam que o Brasil pode e deve ser
classificado como “Belíndia”, mistura de Bélgica, país rico, com
Índia, pobre. A mortalidade infantil cai sistematicamente, e a
principal causa de morte são as doenças circulatórias (coisa de
Primeiro Mundo), mas milhões de brasileiros ainda morrem de
doenças infecciosas e parasitárias típicas de Terceiro Mundo.
96
Para o historiador Nicolau Sevcenko, da USP, a associação entre
crescimento e alguma capacidade de inclusão – que foi real
durante certo período do século 20 – persiste na visão e nas
expectativas que os brasileiros tem do próprio país, embora não
corresponda mais à realidade.
O Brasil, ele diz, comentando os números do IBGE, acompanhou o
movimento geral do século 20 de ganhos quantitativos em
urbanização, industrialização, expectativa de vida, entre outros,
sem no entanto ser capaz de realizar suficiente inclusão social, o
que só piora depois que o crescimento econômico estancou. [...]
O problema não é tanto do quantitativo total, mas da questão
redistributiva. O país cresceu, mas não redistribuiu, não só
recursos econômicos, mas também oportunidades sociais.
97
Analisando a reportagem acima citada, pode-se dizer que há um
Estado que se apresenta máximo para uma minoria e mínimo para uma
maioria.
Este Estado mínimo, por sua vez, se eximiu da responsabilidade
de integrar os diferentes (excluídos), transferindo a responsabilidade pela
exclusão ao próprio excluído que, como diferente, alguns inclusive
passaram a ser vistos como objetos sem nenhuma utilidade econômica.
São os estorvos que estão sendo empurrados para fora ou, em
95
O Brasil do Século 20. Folha de São Paulo, 30 set. 2003. Especial 1.
96
País tem doenças modernas sem ter eliminado as antigas. Folha de São Paulo, São
Paulo, 30 set. 2003. Especial 4.
97
O grau de segregação aqui é extremo. Folha de São Paulo, São Paulo, 30 set. 2003.
Especial 5.
55
determinados casos, incluídos em prisões, guetos, favelas, etc. Jacinto
Nelson de Miranda Coutinho diz que
Afinal, a deificação do mercado, quando vista pelo eficientismo,
glorifica o consumidor (homo oeconomicus, que substituiu o homo
faber: Assman), mas, naturalmente, toma o não-consumidor
(excluído) como um empecilho. Ora, para ele resta o desamor de
seu semelhante, em um mundo de competição.
98
No Brasil, as políticas econômicas atuais geram exclusão e,
ainda, em determinados casos, os que restaram incluídos, assim restaram
de forma precária e marginal, pois, segundo José de Souza Martins,
incluem-se pessoas nos “[...] processos econômicos, na produção e na
circulação de bens e serviços estritamente em termos daquilo que é
racionalmente conveniente e necessário à mais eficiente (e barata)
reprodução do capital.”
99
Criou-se uma sociedade unificada e guiada em torno do
consumo, através da comunicação de massa. Com um simples toque no
botão de televisão, aquela sociedade é reproduzida para as duas
sociedades que formam os “dois Brasis”. Diuturna e simultaneamente, o
sinal entra nas casas e barracos, difunde um mundo fantasioso e colorido
para ricos e pobres e desperta em todos o desejo de uma vida onde há
espaço para lazer, educação, habitação, paz e valores culturais,
componentes necessários a uma existência que possa ser vivida com
dignidade, como prometido na Carta Maior.
98
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do pensamento economicista no direito
criminal de hoje. In: Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, v.
5, n. 9 e 10. 2000, p. 76.
99
MARTINS, José de Souza apud SAWAIA, 2001, p. 39.
56
A ideologia de um consumismo dirigido permeia o imaginário do
homem comum, entretanto ele (o consumismo) origina uma nova
desigualdade, gerando dois mundos, uma sociedade formada de duas
partes que se excluem reciprocamente, mas semelhantes “por conterem
algumas mesmas mercadorias e as mesmas idéias individualistas e
competitivas. No entanto, as oportunidades não são iguais, o valor dos
bens é diferente, a ascensão social é bloqueada”
100
.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho afirma que
Na visão dos neoliberais, o Estado de bem-estar tornou-se um
mastodonte e, se por um lado é incapaz de cumprir suas
promessas, por outro mantém-se inexplicavelmente metido nas
relações individuais, mormente no mercado, donde precisa sair de
modo inadiável. É necessário, segundo os arautos desta visão
economicista, desmontar esse Estado, rearranjando-o de forma
tal que, na nova postura, seja um Estado mínimo.
101
Não se deve olvidar que, por trás de uma sociedade de
consumo, está a exclusão do acesso aos bens de consumo, exclusão do
emprego, inclusão do subemprego, aliás, conforme diz Maura Pardini
Bicudo Véras,
atualmente, criou-se até o neologismo ‘inempregáveis’ para
referir-se aos contingentes que, na nova ordem globalizada em
que se insere o Brasil, não terão nenhuma vez, numa certa visão
fatalística de que a chamada reestruturação produtiva dividirá os
grupos entre assimiláveis (empregáveis) e largo grupo excluído.
102
Ainda, importante registrar a análise de Jock Young quando diz
que “hoje em dia, a empresa de sucesso é aquela que aumenta a
produtividade ao mesmo tempo que despede trabalhadores, e não a que
100
SAWAIA, 2001, p. 39.
101
COUTINHO, 2000, p. 77.
102
VÉRAS, Maura Pardini Bicudo apud SAWAIA, 2001, p. 43.
57
aumenta o tamanho de seu pessoal”
103
.
Além disso, não há nenhuma política de proteção, sequer
assistencialista, para essa parcela excluída, porque os agenciadores de
nossa sociedade desistiram e não esboçam qualquer intenção de integrá-
la, quer na produção, quer no direito à cidadania. Ao que parece, a
pretensão é segregar, confinar, em verdadeiro apartheid entre segmentos,
num crescente distanciamento e incomunicabilidade, traço construído
socialmente”
104
, pois, esse apartheid
se caracteriza pela criação de um campo semântico em que os
significados dos direitos e conquistas civilizatórias, plasmados em
direitos sociais, trabalhistas, civis e políticos são transformados em
fatores causais da miséria, pobreza e exclusão, em obstáculo ao
desenvolvimento econômico e mais, são transformados em
ausência de cidadania. A proteção social, por exemplo, transforma-
se em “custo Brasil.
105
Essa parcela excluída engloba um contingente de pessoas
consideradas supérfluas ao mercado de trabalho, que se tornam, segundo
Luciano Oliveira, “desnecessários economicamente”, e essa ausência de
possibilidade de inserção no mundo do trabalho transforma-as em sujeitos
desqualificados, impondo sobre eles um estigma em razão de sua própria
subvida vivida “em condições precárias e subumanas em relação aos
padrões ‘normais’ de sociabilidade de que são perigosos ameaçadores e,
por isso mesmo, passíveis de serem eliminados”
106
.
Contudo a realidade, hoje, ao que parece, sugere que esse
103
YOUNG, 2002, p. 42.
104
SAWAIA, 2001, p. 43.
105
Ibidem, p. 44.
106
Ibidem, p. 45.
58
exército industrial de reserva, o lumpenproletariat, tornou-se
desnecessário economicamente, formando, ao invés de reserva industrial,
um exército de excluídos, que, em razão de seu excessivo crescimento,
constituir-se-ia em estorvo
107
ao funcionamento da sociedade,
transformando-se, no dizer de Lúcio Kowarick, no subcidadão público ou
em não-cidadão.
108
Assim, da forma em que a realidade da sociedade brasileira se
apresenta, conclui-se que o Estado brasileiro tem-se mostrado ineficiente
em cumprir com o prometido no concernente à eficácia dos direitos
inerentes ao direito do exercício de cidadania.
E, assim, constata-se que o princípio da eficiência, tal como
ocorre com outros princípios constitucionais, tem-se revelado um
instrumento ineficaz para a efetivação dos direitos de cidadania e para a
construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, justa e
igualitária.
Trazendo essa teoria para a realidade do país, em que a maior
parte da clientela penal é formada por praticantes de pequenos delitos
contra o patrimônio - parcela da população à qual resta a prática deste
delito como uma das únicas formas de acesso aos bens de consumo,
poder-se-ia dizer que o Estado brasileiro - ante a desigualdade social que
mantém e perpetua – é o maior responsável pela seleção e inclusão da
clientela do sistema penal.
107
SAWAIA, 2001, p. 46.
108
KOWARICK, Lúcio apud SAWAIA, 2001, p. 47.
59
1.5 A gramática da exclusão e a desviação primária (inclusão no
sistema penal)
109
, início da carreira criminal
Analisando-se a história brasileira, constata-se que o processo
de exclusão a permeia por mais de 500 anos. Tal processo nasceu
juntamente com a colonização do território brasileiro. São mais de 500
anos de exclusão de um contingente formado por índios, negros, mulheres,
desempregados, descamisados, sem-teto, sem-terra, enfim, os miseráveis
de todo gênero, do processo social.
O Estado brasileiro, ao longo de toda a sua história, mostrou-se
ineficiente na concretização dos direitos inerentes à formação de um
cidadão digno. Aliás, esses direitos foram consolidados somente para uma
minoria.
O Estado pátrio se mostrou, na verdade, altamente eficiente na
construção e sustentação de uma nação desigual, que figura, sob tal
rótulo, em um dos primeiros lugares do ranking mundial. É um dos países
onde simultaneamente convivem as pessoas mais ricas e as mais
miseráveis do mundo. “O Brasil é o mais rico entre os países com maior
número de pessoas miseráveis. Isso torna inexplicável a pobreza extrema
de 23 milhões de brasileiros [...]”
110
.
Essa miséria espantosa torna-se inaceitável num país tão rico
109
Observa-se, como já fora destacado na introdução deste trabalho, que os fatores
levantados se referem à prática de delitos contra o patrimônio, inseridos no Código Penal
Brasileiro.
110
MENDONÇA, Ricardo. O paradoxo da miséria. Revista Veja, São Paulo, v. 35, n. 3,
jan. 2002, p. 82.
60
como o Brasil.
Trazendo a questão da exclusão para a esfera penal, Loïc
Wacquant direcionou-a à sociedade brasileira, escrevendo:
Em primeiro lugar, por um conjunto de razões ligadas à sua
história e sua posição subordinada na estrutura das relações
econômicas internacionais (estrutura de dominação que mascara a
categoria falsamente ecumênica de “globalização”) e a despeito do
enriquecimento coletivo das décadas de industrialização, a
sociedade brasileira continua caracterizada pelas disparidades
sociais vertiginosas e pela pobreza de massa que, ao se
combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência
criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades.
[...] O crescimento espetacular da repressão policial nesses
últimos anos permaneceu sem efeito, pois a repressão não tem
influência alguma sobre os motores dessa criminalidade que visa
criar uma economia pela predação ali onde a economia oficial não
existe ou não existe mais.
111
Observa-se como toda essa exclusão se transforma numa
inclusão, contudo, perversa, pois inclui (no sistema penal) os cidadãos
como sujeitos estigmatizados, considerados nefastos ou perigosos à
sociedade, ou melhor, inclui-os como uma categoria social ou grupo que
sequer pode ser reconhecido como sujeito, pois nem eles próprios se
reconhecem como tal e, via de conseqüência, acabam não atuando como
sujeitos. Dados estatísticos acerca do perfil do preso no Brasil, publicados
na revista Isto É, bem o confirmam: 95% dos presos são pobres ou muito
pobres; 65% são negros e mulatos; 65% não completaram o primeiro
grau; e 12% são analfabetos.
112
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, ao falar sobre o controle penal
na semiperiferia, diz que,
111
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001a, p. 08-09.
112
Fora de Controle. Isto É, 17 set. 2003. p. 41.
61
Diferentemente dos países centrais, Brasil e Argentina, situados
na semiperiferia do sistema capitalista, nunca contaram com
mecanismos em condições de substituir as funções exercidas pelo
sistema penal, tanto no plano material quanto no plano simbólico.
Nestas sociedades, com um sistema escolar fragmentado e
ineficiente, que restringe a educação superior universitária a
setores sociais reduzidos; um sistema produtivo incapaz de
garantir o acesso à renda e à seguridade a amplos setores da
população; um mercado interno onde apenas uma pequena
parcela tem acesso aos bens de consumo; sociedades nas quais
quase metade da população se encontra em condições de pobreza
extrema, o sistema de justiça penal acentua sua centralidade
para a manutenção da ordem social, incapaz de manter-se
através dos procedimentos ordinários ou tradicionais de formação
de consenso ou de socialização primária.
113
Alessandro Baratta, ao tratar também da questão da exclusão,
diz que:
Sob o pesado véu de pudor e da falsa consciência que aqui se
estende, não sem a contribuição de uma parte da sociologia oficial,
com a imagem falaz de uma ‘sociedade das camadas médias’, a
estratificação social, isto é, a desigual repartição do aceso aos
recursos e às chances sociais, é drástica na sociedade capitalista
avançada. O ascenso dos grupos provenientes dos diversos níveis
da escala social permanece um fenômeno limitado ou
absolutamente excepcional, enquanto o auto-recrutamento dos
grupos sociais, especialmente dos inferiores e dos marginalizados
é muito mais relevante do que parece à luz do mito da mobilidade
social.
114
A imensa maioria dos que ingressam no sistema penal, pelo
cometimento dos delitos contra o patrimônio, é constituída, justamente,
pela parcela da sociedade excluída do direito de consumo, ou seja, por
aqueles que não conseguem ascender socialmente através de meios tidos
como “normais”.
É preciso esconder toda exclusão social e miséria por ele
113
GHIRINGHELLI, Rodrigo de Azevedo. Criminalidade e justiça penal na América Latina.
Sociologias, Porto Alegre, ano 7, nº 13, jan./jun. 2005.
114
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal. Introdução à
sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2 ed. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos Editora, 1999, p. 172.
62
geradas, representadas por um “menos Estado” econômico-social e um
“mais Estado” penal e penitenciário.
Para isso, os donos das regras criam cada vez mais tipos penais
e aumentam as penas, mascarando fatores que compõem a gênese da
criminalidade. Passa-se, no dizer de Loïc Wacquant, “Do Estado
Providência para o Estado Penitência”.
É que, cada vez mais são construídas prisões, ao invés de se
travar luta em todas as direções, não contra os criminosos, mas contra a
pobreza e desigualdade. Trata-se de um contexto gerador de insegurança
social, o qual enseja, inclusive, a normatização de uma economia informal,
chefiada pelo crime organizado, o qual ocupa lacunas deixadas pelo
Estado. Isto acaba por produzir toda espécie de violência. E as prisões
funcionam como verdadeiras fábricas de miséria, ao exportar sua pobreza
para além grades,
Na medida em que a prisão exporta sua pobreza, desestabilizando
continuamente as famílias e os bairros submetidos a seu tropismo.
De modo que o tratamento carcerário da miséria (re)produz sem
cessar as condições de sua própria extensão: quanto mais se
encarceram pobres, mais estes têm certeza, se não ocorrer
nenhum imprevisto, de permanecerem pobres por bastante tempo,
e, por conseguinte, mais oferecem um alvo cômodo à política de
discriminalização da miséria.
115
As prisões funcionam, também, como fábricas de miséria, ao
tempo que produzem e (re)produzem a miséria, exportando seus efeitos
pauperizantes para muito além das celas e dos presos, na medida em que
a própria família do preso acaba por ser atingida.
115
WACQUANT, 2001a, p. 145.
63
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Edward Rocha de
Carvalho, referem que
Enquanto a postura do estado for neoliberal, assumindo o ‘ter’
como prioridade ao ‘ser’, estará o mundo fadado à proliferação de
teorias impossíveis de verificação e ineficazes desde o próprio
nascimento. Basta pensar que se tem um estado Mínimo e para
fazer viva a Tolerância Zero é preciso um Estado Máximo. Há uma
contradição – di170ris3
64
em primeiro lugar), bastando o agente estar naquela situação.”
118
Contudo, para o ingresso desse segmento social no sistema penal,
há necessidade da produção de norma que os selecionam, conforme
segue.
118
COUTINHO, 2000, p. 81.
2 O LABELING APPROACH E A SELETIVIDADE DO SISTEMA DE
CONTROLE PENAL: AS REGRAS E SUA IMPOSIÇÃO
Numa sociedade complexa, e hierarquizada,
dita as leis a classe que dispõe de poder.
E, obviamente, armará a ordem legal de sorte a garantir
a permanência das desigualdades existentes, das quais decorrem as
vantagens que lhes bafejam os membros, tanto quanto os
ônus suportados pelas massas oprimidas. Ou seja: a ordem jurídica,
elaboraram-na os grupos predominantes em termos de poder, com o propósito político de
assegurar a conservação do ‘status quo’ sócio-econômico.
AUGUSTO THOMPSON – A Questão Penitenciária
Importante destacar, inicialmente, que, no presente trabalho, o
recorte efetuado para estudo foram os delitos contra o patrimônio, sendo
abordadas aqui suas criminalizações primária e secundária.
No capítulo anterior, tratou-se da invisibilidade, frente ao Estado
brasileiro, de alguns segmentos sociais excluídos do direito ao consumo,
fruição e gozo decorrentes do direito de cidadania constitucionalmente
previsto. Neste, será abordado o primeiro olhar que o Estado lançará sobre
algumas pessoas pertencentes a esses segmentos, antes invisíveis.
Contudo, esse olhar, em que pese ser inclusivo agora, surgirá de forma
66
perversa para esse segmento antes excluído e invisível, pois sua inclusão
no recorte que será feito a partir de agora, é no sistema penal.
É importante frisar que, aqui, não se pretende criar um
determinismo social da criminalidade, mas sim correlacionar, de alguma
forma, a inclusão no sistema penal, em razão da culpabilidade pela
vulnerabilidade
119
a que esse segmento social fica exposto. É que, segundo
Eugenio Raúl Zaffaroni, “os atos mais grosseiros cometidos por pessoas
sem acesso positivo à comunicação social acabam sendo divulgados por
esta como os únicos delitos e tais pessoas como os únicos delinqüentes”
120
e, por isso, na maioria das vezes, torna-se inoperante em relação aos
outros tipos de clientela, como, por exemplo, os cometedores de delitos
econômicos (ou crimes de colarinho branco)
121
.
Salo de Carvalho, em seu artigo intitulado Criminologia e
Transdiciplinariedade, escreve que já não é mais cabível formular
perguntas sobre por que os crimes são cometidos, mas sim avaliar “qual o
motivo de se criminalizarem determinadas condutas em detrimento de
outras”. E completa: “em sendo determinadas condutas consideradas
delito, a razão pela qual os aparelhos repressivos incidem com maior
119
Importante a diferenciação que Zaffaroni faz acerca da vulnerabilidade e da co-
culpabilidade: “O estado de vulnerabilidade é um fato, que depende do status social da
pessoa e, portanto, é perfeitamente verificável e não depende só da classe social, não
sendo neste sentido um conceito classista. A periculosidade do poder punitivo para uma
categoria de pessoas com certo status é dinâmica, dependendo das empresas morais e
da mobilidade dos estereótipos, e restringi-la ao conceito de classe é uma simplificação
que deforma a realidade do mundo.” ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Culpabilidade por
vulnerabilidade. In: Discursos Sediciosos, n. 14. RJ: ICC/Revan, 2004, p. 44.
120
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro & SLOKAR, Alejandro.
Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 46.
121
ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA, 2003, p. 47.
67
eficiência em determinadas pessoas e outras ficam imunizadas, é o que
aqui prevalece”
122
.
Ainda, indispensável destacar que não se intenciona aqui a
glamorização do delinqüente
123
, ou ainda, como escreveu Salo de Carvalho,
auferir-lhe “o rótulo de herói e/ou vítima de um modelo penal influenciado
pelas estruturas do capitalismo”
124
. Contudo, segundo Salo de Carvalho,
importante destacar que
Lógico que a estrutura capitalista, atualmente renovada pelo
discurso único da globalização neoliberal, produz miséria
econômica e social. No entanto, estabelecer relações simétricas e
deterministas entre o modelo econômico e os índices de
criminalidade é retomar, desde outro local, método (etiológico) tão
caro aos seguidores de Ferri, Lombroso e Garófalo.
125
Eugenio Raúl Zaffaroni, como já citado acima, trabalha
atualmente com a categoria da seletividade pela vulnerabilidade. Também
chama a atenção para o fato de que não se trata de um determinismo a
partir do qual todas as pessoas detentoras de um status vulnerável serão
selecionadas, mas sim, por apresentarem um estado concreto de
vulnerabilidade, o que facilita a seleção.
126
122
CARVALHO, S., 2005, p. 320.
123
Importante o que traz Elena Larrauri em sua obra La herencia de la criminologia
crítica, especialmente no tópico III.8, intitulado “El delincuente no es “Robin Hood”.
Madrid: Siglo Veintiuno, 1991, p. 176-177.
124
CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 84.
125
CARVALHO, A.; CARVALHO, S., 2001, p. 84 e 85.
126
Importante sua lição: “A sobre-representação de algumas minorias na prisonização de
maior número de imigrantes, de minorias sexuais, em todo caso a maior incidência em
homens jovens, desempregados, habitantes de bairros marginais, etc., são todos dados
verificáveis. A periculosidade do sistema penal se reparte segundo a vulnerabilidade das
pessoas, como se fosse uma epidemia. [...] Isto significa que o mero status ou estado de
vulnerabilidade não determina a criminalização. Não se seleciona a pessoa por seu puro
estado de vulnerabilidade, mas porque se encontra em uma situação concreta de
68
2.1 O labeling approach
O labeling approach surgiu nos anos 60, precipuamente nos
EUA, tendo como principais autores: Beckers, “Outsiders”, 1963; Lemert,
“Social Pathology”, .....; e Goffman, “Asylums”, 1961 (Manicômios, Prisões
e Conventos). Também conhecida como teoria do etiquetamento, da
rotulação, criminologia da reação social, dentre outras denominações,
despontou de forma revolucionária, ao pretender fornecer respostas a
partir do contexto social dentro do qual o crime se insere, contrapondo-se
ao modelo de investigação criminológica calcado no paradigma etiológico
do positivismo
127
. Por sua vez, este estuda o comportamento criminoso,
sustentando que sua qualidade criminal existe objetivamente e pressupõe
a neutralidade dos tipos penais, esquecendo-se de que estes são criados
pelos homens, seres dotados de valores, ideologias e crenças diversas, os
quais os impedem de produzir uma lei neutra, conforme.
vulnerabilidade. Partindo de um estado de vulnerabilidade, deve concorrer um esforço
pessoal do agente para alcançar a situação concreta em que se materializa a
periculosidade do poder punitivo. É muito mais fácil selecionar pessoas que circulam
pelos espaços públicos com o figurino social dos delinqüentes cometendo injustos de
pequena ou média gravidade.” ZAFFARONI, 2004, p. 37 e 38.
127
As idéias fundamentais da Criminologia Positivista se traduzem em princípios básicos,
a saber: O crime é um fenômeno natural e social sujeito às influências do meio e de
múltiplos fatores, exigindo o estudo pelo método experimental; A responsabilidade penal
é responsabilidade social, por viver o criminoso em sociedade, e tem por base a
periculosidade; A pena é medida de defesa social, visando à recuperação do criminoso ou
à sua neutralização, e o criminoso é sempre psicologicamente um anormal, temporária ou
permanentemente (MOLINA, Antonio García-Pablos; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia:
introdução a seus fundamentos teóricos, introdução às bases criminológicas da Lei
9.099/95 – Lei dos Juizados Especiais Criminais. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000. p. 175-189).
69
Segundo Alessandro Baratta, para o desenvolvimento do
labeling,
contribuíram, de diferentes modos, autores que podem ser
classificados conforme três direções da sociologia
contemporânea: o interacionismo simbólico (H. Becker, E.
Goffman, J. Kituse, E.M. Lemert, E.M. Shur, F. Sack); a
fenomenologia e a etnometodologia (P. Berger e T. Luckmann, A.
Cicourel, H. Garfinkel, P. McHugh, T.J. Scheff)
128
e, enfim, a
sociologia do conflito (G.B. Vold, A.T.Turk, R. Quinney, K.F.
Schumann).
129
Importante frisar que parte deste trabalho (em especial os
capítulos segundo e terceiro) será desenvolvida, utilizando-se como aporte
teórico o labeling, mais especificamente o interacionismo simbólico,
130
que
é um dos desdobramentos dessa teoria. Em assim, parte dele
(interacionismo simbólico) será contextualizado no presente capítulo, e
128
“Segundo o interacionismo simbólico, a sociedade – ou seja, a realidade social – é
constituída por uma infinidade de interações concretas entre indivíduos, aos quais um
processo de tipificação confere um significado que se afasta das situações concretas e
continua a estender-se através da linguagem. Também segundo a etnometodologia, a
sociedade não é uma realidade que se possa conhecer sobre o plano objetivo, mas o
produto de uma ‘construção social’, obtida graças a um processo de definição e de
tipificação por parte de indivíduos e grupos diversos. E, por conseqüência, segundo o
interacionismo e a etnometodologia, estudar a realidade social (por exemplo, o desvio)
significa, essencialmente, estudar estes processos, partindo dos que são aplicados a
simples comportamentos e chegando até as construções mais complexas, como a própria
concepção da ordem social” (BARATTA, 1999, p. 87).
129
BARATTA, 1999, p. 92.
130
Importante a lição de Shecaira ao aproximar e ao mesmo tempo diferenciar o
labelling do interacionismo ao escrever: “Em uma primeira aproximação, pode-se dizer
que a perspectiva interacionista, pela primeira vez na história, procura uma explicação
para o crime em paradigmas diversos daqueles concebidos pela criminologia tradicional.
As pessoas tornam-se sociais no processo de interação com outras pessoas,
entrelaçando-se na ação projetada de outros, incorporadas as perspectivas dos outros
nas suas próprias. Naquilo que foi chamado de “gesto significativo”, elas podem assumir
múltiplas identidades interatuantes que são encenadas ao longo do tempo. Parte-se,
pois, de um modelo que eleva à categoria criminológico do plano da ação para o da
reação (dos bad actors para os powerful reactors), fazendo com que a verdadeira
característica comum dos delinqüentes seja a resposta das audiências de controle. A
explicação interacionista caracteriza-se, assim, por incidir quase exclusivamente sobre a
chamada delinqüência secundária, isto é, a delinqüência que resulta do processo causal
desencadeado pela estigmatização.” SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 290-291.
70
outra, no que segue.
Contrariamente às escolas que surgiram apoiadas na sociologia
do consenso, quando havia um amplo acesso das grandes massas a cotas
consideráveis de bem-estar social, o labeling surge durante o desenrolar
do conflito do Vietnam, da campanha pelos direitos civis, do movimento
hippie, da luta dos estudantes e minorias negras. Tais movimentos de
ruptura potencializaram o surgimento da sociologia do conflito.
O labeling caracteriza-se pelo relativismo jurídico e moral, pela
acentuação do pluralismo cultural e pela manifesta simpatia para com as
minorias mais desfavorecidas. Isso provocou uma mudança drástica no
objeto da investigação criminológica. Em vez de se perguntar: “por que o
criminoso comete crimes?”, pergunta-se: “por que aquele fato cometido
pelo indivíduo fora selecionado como crime”, “por que algumas pessoas
são tratadas como criminosas, quais as conseqüências desse tratamento e
qual a fonte da sua legitimidade?”.
Segundo Howard Becker,
[...] de alguma maneira, quando os sociólogos estudavam o crime
não compreendiam o problema dessa forma. Em vez disso,
aceitavam a noção de senso comum de que havia algo de errado
com os criminosos ou então eles não agiriam daquela maneira.
Perguntavam: ‘Por que as pessoas entram no crime? Por que não
param? Como podemos pará-las?’ O estudo do crime perdeu sua
conexão com o curso do desenvolvimento sociológico e se tornou
uma deformação muito bizarra da Sociologia, projetada para
descobrir por que as pessoas estavam fazendo coisas erradas em
vez de descobrir a organização da interação naquela esfera de
vida.
131
131
BECKER, Howard S. Uma teoria da ação coletiva. Trad. Márcia Bandeira de Mello Leite
Nunes. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, p. 21-22.
71
Essa corrente parte do princípio de que a desviação não é uma
qualidade ontológica da ação, mas, antes, o resultado de uma reação
social, e o delinqüente apenas se distingue do homem normal devido à
estigmatização que sofre e introjeta, como decorrência de um sistema
penal seletivo.
Daí que o tema central dessa perspectiva criminológica consiste
precisamente no estudo do processo de interação pelo qual um indivíduo é
estigmatizado como delinqüente, introjetando esse estereótipo criado pela
sociedade, o que o impele de uma reação à forma como o outro o vê.
Manuel da Costa Andrade e Jorge Figueiredo Dias ressaltam que
“será ocioso sublinhar a originalidade e a validade do contributo científico
do labeling approach, numa perspectiva de compreensão global do
problema criminal”
132
.
O legado científico do labeling, em primeiro lugar, foi a
acentuação da multidisciplinariedade para a análise e o estudo da
criminalidade, com “[...] o alargamento considerável do
criminologicamente relevante”
133
.
Prosseguem os autores acima dizendo que, num segundo lugar,
foi
a primeira tentativa sistemática do que designamos por sociologia
da sociedade punitiva; deve-se-lhe, em terceiro lugar, a introdução
de novas técnicas de investigação e de uma nova linguagem, bem
como a descoberta de novas variáveis criminógenas; e deve-se-
lhe, por último, o ter provocado uma das revoluções mais
132
DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem
delinqüente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 355.
133
DIAS; ANDRADE, 1992, p. 355.
72
profundas no pensamento político-criminal.
134
A influência da teoria no campo político-criminal traduziu-se na
defesa de uma não-intervenção radical do sistema penal, mas de sua
intervenção mínima, a ser utilizada como última razão, fomentando
movimentos de descriminalização.
Contudo, sofreu várias críticas, sendo a principal delas baseada
no fato de que a teoria não explica a primeira desviação, mas somente a
secundária. Ignora, pois, as causas primeiras da criminalidade, sugerindo
certo determinismo de reação social.
O próprio Howard Becker, um dos precursores da teoria, acaba
aceitando, de certa forma, tal crítica, no que tange à ausência de
explicação da desviação primária
135
, ao mesmo tempo em que a rebate, ao
dizer, em entrevista concedida a Julius Debro
136
, que não era intenção da
teoria explicar a desviação primária, mas somente a desviação secundária,
ou, ainda, que nem tivera intenção de criar a teoria:
A teoria, e ela era realmente uma teoria bastante rudimentar, não
pretendia explicar por que as pessoas roubavam bancos, mas sim
como o ato de roubar bancos veio a ter a qualidade de ser um ato
desviante. A teoria sugeria que você tinha que responder à
segunda questão olhando para o processo pelo qual as pessoas
definem algumas ações como ‘ruins’ e olhando para as
conseqüências que tal definição provoca.
137
134
DIAS; ANDRADE, 1992, p. 355.
135
Para o labelling a desviação primária consiste na primeira vez em que o sujeito
comete o delito e, a desviação secundária seria a sua reincidência; enquanto que a
criminalização primária consiste na produção formal da norma, e criminalização
secundária, a quem a norma é aplicada com sucesso.
136
BECKER, 1977, p. 13.
137
Ibidem, p. 23.
73
O labeling assume uma convicção nitidamente antideterminista:
“O indivíduo é visto como um actor que sofre a influência do papel que
representa, do cenário que o envolve e dos outros com quem interage,
mas, simultaneamente, que a todos influencia
138
.
Na verdade, ao tratar o sistema como um órgão seletivo de
controle penal e não como um sistema neutro, o labeling contrapõe-se à
criminologia positivista – que trata a lei penal como um dogma. Isto será
detalhado mais adiante.
2.2 A seletividade do sistema de controle penal: as regras e sua
imposição
Grande parte dos juristas prega, cegamente, e muitas pessoas
acreditam, que há um legislador racional produzindo um sistema jurídico
neutro e igualitário para a defesa do direito de todos. Concebem, como
expressa Damásio Evangelista de Jesus, que “é no Direito que
encontramos a segurança das condições inerentes à vida humana,
determinada pelas normas que formam a ordem jurídica”
139
.
Contudo Eugenio Raúl Zaffaroni atribuiu uma outra função
legitimadora da existência do direito penal, ao sustentar que: “Entendemos
por direito penal o discurso doutrinário que tem por objeto a programação
do exercício do poder jurídico de contenção do poder punitivo (a ciência ou
138
DIAS; ANDRADE, 1992, p. 355.
139
JESUS, Damásio. Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 3.
74
saber jurídico penal) e o treinamento acadêmico dos operadores das
agências jurídicas”
140
. Em outras palavras, uma das funções do direito
penal seria a de conter o poder desmesurado do Estado.
Há, também, juristas que vêem no Direito um fenômeno que
surge na sociedade como expressão da ordem política, econômica e social
dominante. Crêem que instituições jurídicas não se explicam a partir de si
mesmas, só podendo ser compreendidas à luz daquelas idéias que
orientam a direção sociopolítica, cultural e econômica da sociedade.
A respeito, Luiz Fernando Coelho adverte que:
A teoria crítica do direito afasta-se assim da sociologia positivista
da ordem e converge para uma sociologia do conflito, em que o
conceito de legitimidade se articula com as formas ideológicas de
obtenção do consenso dos dominados numa sociedade
opressora.
141
Lédio Rosa de Andrade, ao discorrer sobre a Ciência do Direito em
sua obra Juiz Alternativo e Poder Judiciário, anota que, independentemente
do sistema jurídico que se destaque, a questão do direito poderá ser
abordada sob dois aspectos: o primeiro, “de visão dogmática, caracteriza-
se por uma postura tradicional, formal, com base em preceitos
preestabelecidos”; o segundo, contrário a este, faz um estudo crítico, em
que nada é tido como certo, “imutável, absolutamente justo e universal”.
No primeiro enfoque, a certeza é a regra, enquanto que, no
segundo, o questionamento é a forma primeira da investigação. “Os
140
ZAFFARONI, 2004, p. 31.
141
COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2003, p. 568.
75
dogmáticos prendem-se ao seu estudo isolado, fora do contexto social,
restringindo-o à esfera jurídica, não perquirindo sobre suas conseqüências
na vida cotidiana da sociedade”
142
.
Na obra Introdução ao direito alternativo brasileiro, Lédio Rosa
de Andrade ressalta:
a Crítica Jurídica já desvendou, a meu ver de forma bastante clara,
todas as impurezas do Direito, e, hoje, qualquer jurista sério, até
mesmo advindo da filosofia analítica, não mais defende com tanto
fervor ser a instância jurídica totalmente independente da dialética
social.
143
Léo Rosa de Andrade advoga que:
[..] tendo-se a lei e seus agentes como instrumento e prepostos do
pensamento dominante, porque formulada e formado por eles, a
função da legalidade é, em corolário, na medida em que se produz,
reproduz e garante condições de produção e reprodução, o fazer o
viger o pensar que domina, campo onde colhem vantagens os
senhores das rédeas do poder. Vantagens nascidas da refrega em
que os miseráveis aplicam a própria existência, e os poderosos
aplicam a existência dos miseráveis.
144
Utilizando-se como marco teórico o labeling approach, em
especial o interacionismo simbólico de Howard Becker ao tratar da
seletividade do controle penal, propõe um questionamento: de quem são e
para que servem as normas penais? Quais fatos são selecionados para
serem tipificados e criminalizados pelos sistemas de controle formal e
informal? Para quem ela é dirigida?
142
ANDRADE, Lédio Rosa de. Juiz alternativo e poder judiciário. São Paulo: Acadêmica,
1992, p. 21.
143
ANDRADE, Lédio Rosa de. Introdução ao direito alternativo brasileiro. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1996, p. 13.
144
ANDRADE, Léo Rosa de. Liberdade privada e ideologia. São Paulo: Acadêmica, 1993,
p. 65.
76
2.2.1 Regras penais de que(m)
145
?
Os juristas tradicionais pregam que o ordenamento jurídico
penal não possui contradições, é coeso e completo. Acreditam que o direito
penal existe com o fim de promover a justiça, defesa e segurança, de
forma indistinta, a todos os cidadãos. Difundem a idéia, ou melhor,
propagam como verdade que o sistema penal existe para a tutela de bens
jurídicos importantes, valorando
146
a conduta dos indivíduos e, por fim,
cominando-lhes uma sanção, tudo em nome da “defesa social”.
Não obstante essa fala oficial
147
, Louk Hulsman diz que “o
sistema penal visivelmente cria e reforça as desigualdades sociais”
148
. Isso
porque, segundo Amilton Bueno de Carvalho, “[...] a função da lei,
eticamente considerada, desde muito tem sido desvirtuada: muitas vezes,
deixa de ser o limite ao poder desmesurado, para ela mesmo ser fonte de
145
Antes de mais nada é preciso evocar aqui que este e mais os subtítulos que se seguem
foram diretamente inspirados no artigo de Amilton Bueno de Carvalho, intitulado “Lei,
para que(m)?” in Doutrina, v. 11. Rio de Janeiro, Instituto de Direito, p. 303-319. 2001.
146
Todavia, como bem observa Becker “Valores, entretanto, são guias pobres para a
ação. Os padrões de seleção neles incorporados são gerais, dizendo-nos quais das várias
linhas de ação alternativas seriam preferíveis, mantendo-se todas as outras coisas iguais.
Mas raramente todas as outras coisas são iguais nas situações concretas da vida
cotidiana” (BECKER, Howard. Los extraños: sociología de la desviación. Trad. Juan Tubert.
Argentina: Tiempo Contemporáneo, 1971, p. 121).
147
A (fala) de que “O sistema penal, constituído pelos aparelhos judicial, policial e
prisional, e operacionalizado nos limites das matrizes legais, aparece como sistema
garantidor de uma ordem social justa, protegendo bens jurídicos gerais, e, assim,
promovendo o bem comum. Essa concepção é legitimada pela teoria jurídica do crime
(extraída da lei penal vigente), que funciona como metodologia garantidora de uma
correta justiça, e pela teoria jurídica da pena, estruturada na dupla finalidade de
retribuição (equivalente) e de prevenção (geral e especial) do crime. Se, nas sociedades
de classes, todos os fenômenos sociais devem ser explicados por suas contradições
internas, o sistema penal, que aciona o processo de criminalização, deve ser analisado de
acordo com esse parâmetro” (SANTOS Juarez Cirino dos. Direito penal: a nova parte
geral. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 26)
148
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernart de. Penas perdidas: o sistema penal em
questão. Trad. Maria Lúcia Karam. 2. ed. Rio de Janeiro: Luam, 1997, p. 75.
77
opressão – de limite à dominação se transforma em instrumento
dominador”
149
.
Ainda, ao mencionar que o sistema penal reproduz a realidade
social, Alessandro Baratta preleciona que,
A história do sistema punitivo – escreve Rusche – é mais que a
história de um suposto desenvolvimento autônomo de algumas
‘instituições jurídicas’. É a história das relações das ‘duas nações’,
como a chamava Disraeli, das quais são compostos os povos: os
ricos e os pobres.
150
Juarez Cirino dos Santos, ao analisar a política de controle
social, fala que:
Através das definições legais de crimes e penas o legislador
protege, especialmente, os interesses e as necessidades (valores)
das classes dominantes, incriminando, rigorosamente, as condutas
lesivas dos fundamentos das relações de produção, concentradas
na área da criminalidade patrimonial: constrói tipos de condutas
proibidas sobre uma seleção de bens jurídicos próprios das classes
dominantes, garantindo seus interesses de classe e as condições
necessárias à sua dominação e reprodução como classe.
151
Sob a influência do movimento de lei e ordem e da política de
“tolerância zero”, vive-se na era do pan-penalismo, com um crescente
aumento da criminalização primária (produção de normas) e a
conseqüente “ampliação da estrutura normativa incriminadora (direito
penal máximo), a sofisticação dos aparatos de controle da criminalidade e
o aparecimento de novas técnicas e justificativas da punição”
152
. Contudo,
para a criminalização secundária (aplicação da norma), o que tem
149
CARVALHO, Amilton Bueno. Lei, para que(m)?. In: Doutrina. Coordenação James
Tubenchlak. Rio de Janeiro: Instituto de Direito, 2001.
150
BARATTA, 1999, p. 171.
151
SANTOS, J., 1985, p. 26.
152
CARVALHO, S., 2005, p. 322.
78
prevalecido é a escolha prévia de sujeitos a quem a sanção penal pretende
atingir, quais sejam os que se encontram num estado concreto de
vulnerabilidade.
153
Assim ocorre, por exemplo, com os delitos contra o
patrimônio
154
, em que são pré-selecionados para integrar a clientela penal
os sujeitos pertencentes aos segmentos em situação de dominação, ou
seja, aqueles indivíduos privados dos bens jurídicos protegidos por essas
normas. Tais bens jurídicos nada mais são do que os frutos da relação de
produção material (bens de consumo). Protegem os bens de quem tem
poder de consumir, contra quem não os tem
155
.
153
Importante registrar o que escreve ZAFFARONI a respeito da seletividade, quando diz
que “O discurso jurídico penal falso não é nem um produto de má fé nem de simples
conveniência, nem o resultado da elaboração calculada de alguns gênios malignos, mas é
sustentado, em boa parte, pela incapacidade de ser substituído por outro discurso em
razão da necessidade de se defenderem os direitos de algumas pessoas”. ZAFFARONI,
Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.
Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p.
281.
154
Como já ressaltado ao início deste trabalho, os delitos contra o patrimônio foram
selecionados como objeto de estudo na presente pesquisa.
155
Nesse sentido, valiosa é a lição de Alberto Silva Franco, transcrita:
“Conceito de patrimônio está vinculado à idéia de bem ou de conjunto de bens, de caráter
natural ou de conotação cultural, que são axiologicamente tidos como relevantes para
uma determinada coletividade e que são necessitados de tutela jurídica a fim de que
todos e cada um dos cidadãos possam deles usufruir. Ao incluir o patrimônio entre os
bens jurídicos fundamentais para a existência, a manutenção e o desenvolvimento do
Estado brasileiro e do cidadão que nele está inserido, o legislador de 40 deu-lhe cobertura
penal e, ao construir a tipologia de condutas que lhe são lesivas, reconheceu, nas
situações fáticas elencadas, que os autores das lesões àquele bem jurídico devem sofrer
sanções de ordem penal. Tal constatação não obsta a necessidade de análise das forças
ideológicas que se põem à retaguarda do conceito de patrimônio e das tipificações
articuladas. É induvidosa a explícita adesão do legislador daquela época à sacralidade e à
inviolabilidade da propriedade privada, como fundamento básico do regime capitalista. A
estrutura dos crimes patrimoniais, nos idos de 40, atendia, em suas valorações, à
preservação dos direitos patrimoniais dos grupos dominantes, em relação aos ataques dos
que se encontravam nos limites ou fora do sistema social. Exercia-se, desta forma, o
controle penal rígido sobre os que participavam, de modo precário, dos processos de
produção e que, por isso, por que não tinham nenhuma influência nos centros decisórios,
não interferiam na formação das regras reguladoras das condutas sociais. A legislação
penal de 40 expressava, sem dúvida, uma identificação quase perfeita entre o delinqüente
e o marginalizado. Tanto é exato que a clientela da justiça penal estava centrada
79
Ora, essa mesma sociedade que desperta nos indivíduos
(indistintamente, os pertencentes aos segmentos favorecidos e
desfavorecidos) o desejo de consumo vem, depois, reprimir penalmente o
consumo desse desejo por aqueles que socialmente não conseguiram
ascender até os bens para cujo consumo foram despertados.
A incitação ao consumo, fruto de uma sociedade capitalista, abre
caminho para a prática de atividades ilícitas – por parte daqueles que não
ascendem a ele pelas vias tidas como normais - para sua satisfação.
156
Como observa Maria Lúcia Karam,
Como acontece com seus demais mecanismos – a aplicação da lei
e a execução das sanções – já nesse primeiro momento – o da
produção da lei – está claramente presente o papel do sistema
penal na manutenção e reprodução da ordem exploradora e
opressora, que caracteriza a formação social capitalista existente
no Brasil.
157 158
preferencialmente entre os explorados que formavam – e ainda formam – a população
básica dos equipamentos prisionais. A inequívoca improcedência dos que povoam, em
percentual quase absoluto, os estabelecimentos prisionais – pessoas originadas dos
segmentos populacionais menos favorecidos – põe em evidência o estado de miséria
social, a situação de abandono cultural, e a carência de recursos econômicos
indispensáveis ao atendimento das necessidades básicas do ser humano. Tais pessoas
não têm motivos, por força do peso das restrições sofridas, para respeitar a ordem de
valores que os perpetua naquelas situações deficitárias e que privilegia, de outra parte, os
integrantes de estamentos sociais superiores” (Breves anotações sobre os crimes
patrimoniais. In: SHECAIRA, Sérgio Salomão. (Org.) Estudos criminais em homenagem a
Evandro Lins e Silva: criminalista do Século. São Paulo: Editora Método, 2001, p. 57-58).
156
Ensina o mestre Juan Ramón Capella, em sua obra “Fruto Proibido”, que “A reflexão
jurídico-penal da etapa consumista afrontou duas temáticas diferenciadas de grande
importância. De uma parte, se intentou frear os danos de massas característicos da
produção massiva dando-lhes um tratamento penal. [...] Por outra parte, em finais dos
anos sessenta e princípio dos setenta, produziu-se um movimento de forte crítica às
penas de privação de liberdade. Um melhor conhecimento criminológico e médico das
conseqüências destas penas revelava que os princípios da Ilustração não haviam
conseguido traspassar os muros das prisões. Por isso surgiu um movimento intelectual
favorável a derrubá-los, cujas razões não se pode ignorar. Contudo, não se soube achar
alternativas à prisão adequadas e suficientes nem suscitar uma consciência pública
bastante intensa para que a população aceite financiar a ruptura do círculo vicioso que
leva da marginalização social à delinqüência
” (grifo nosso) (Fruto proibido: uma
aproximação histórico-teórica ao estudo do Direito e do Estado. Trad. Gresiela Nunes da
Rosa e Lédio Rosa de Andrade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 224).
157
KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. 2. ed. Rio de Janeiro: Luam, 1993,
p. 75.
80
Diante do quadro acima delineado, importante referir a
contribuição de Alice Bianchini:
Parece impossível, em face de todo esse contexto, manter, na
atualidade, o discurso que se apóia no argumento de que o direito
penal constitui-se em instrumento de garantia de práticas
democráticas do convívio social.
Bem se sabe, em verdade, que o delito não passa de ‘uma
construção destinada a cumprir certa função sobre algumas
pessoas e o respeito de outras, e não uma realidade social
individualizável’ e que os órgãos executivos, detentores do poder
repressivo, decidem quando e contra quem as põe em prática.
Dessa forma, utilizando-se das palavras de Zaffaroni, ‘o discurso
jurídico-penal revela-se inegavelmente como falso, mas atribuir
sua permanência à má-fé ou à formação autoritária seria um
simplismo que apenas agregaria uma falsidade à outra. Estas
explicações personalizadas e conjunturais esquecem que aqueles
que se colocam em posições ‘progressistas’ e que se dão conta da
gravidade do fenômeno também reproduzem o discurso jurídico-
penal falso – uma vez que não dispõem de outra alternativa que
não seja esse discurso em sua versão de ‘direito penal de garantia’
(ou ‘liberal’, se preferem) – para tentarem a defesa dos que caem
nas engrenagens do sistema penal como processados,
criminalizados ou vitimizados.
159
Regras de quê? Regras de quem? Regras de proteção de bens de
158
A respeito, Juarez Cirino dos Santos escreveu que “A proteção das relações de
produção dominantes implica a proteção das forças produtivas (homens, tecnologia e
natureza) e, assim, certos tipos penais parecem proteger bens jurídicos gerais, comuns a
todos os homens, independente da posição da classe (a vida, a integridade física e
psíquica, a liberdade individual e sexual, a honra, etc.). Mas a proteção desses valores
gerais é desigual: a) os sujeitos titulares desses bens jurídicos, pertencentes às classes
dominantes (ou categorias sociais afins), são protegidos como seres humanos; b) os
sujeitos titulares desses bens jurídicos, pertencentes às classes dominadas
(especialmente, o proletariado), são protegidos como força de trabalho (enquanto
energia necessária à ativação dos meios de produção, como mercadoria especial dotada
da propriedade de produzir valor superior ao seu preço de mercado: a mais-valia,
extraída do tempo de trabalho excedente), e, portanto, como objetos; c) finalmente, os
sujeitos titulares desses bens jurídicos, pertencentes às classes dominadas sem função
como força de trabalho (a força de trabalho excedente, excluída do processo de
produção de mais-valia, especialmente o lumpemproletariado), não são protegidos nem
como objetos: ao contrário, são destruídos ou eliminados, pela violência estrutural
(relações de produção) ou institucional (aparelho policial e grupos paramilitares de
extermínio), sem qualquer conseqüência penal. Assim, se a incriminação abstrata (lei
penal) parece indiferenciada ou neutra em relação a esses valores gerais, a
criminalização concreta (aplicação da lei penal) é diferenciada (ou parcial) conforme a
posição de classe dos sujeitos respectivos.” (SANTOS, J., 1985, p. 26-27).
159
BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002, p. 62 (Série as ciências criminais no século XXI; v. 7).
81
consumo de quem tem contra os que não têm.
2.3 Seletividade de fatos: regras penais de quê?
Ao dizer que o sistema de controle penal age consoante o estado
concreto de vulnerabilidade das pessoas, pode-se afirmar que o faz através
da seleção de fatos hábeis, conforme sustenta Maria Lúcia Karam:
A seleção e definição de bens jurídicos e comportamentos com
relevância penal se faz de maneira classista, se faz
fundamentalmente em defesa dos interesses daqueles que detêm
as riquezas e o poder, pois são exatamente estes detentores da
riqueza e do poder - as chamadas classes dominantes – que vão,
em última análise, definir o que deve ou não ser punido, o que
deve ou não ser criminalizado e em que intensidade.
160
De forma contrária ao discurso oficial - sustentado pela ideologia
da defesa social -, a autora prossegue, afirmando que, apesar do
mito difundido pela ideologia dominante, a lei penal brasileira não
se destina a proteger apenas bens e valores essenciais, no sentido
de bens comuns a todos os homens, tendendo assim a privilegiar
os interesses daquela minoria de detentores das riquezas e
poder.
161
Detalhe importante a salientar é que nem todos os tipos penais
inseridos no ordenamento penal (criminalização primária) acabam por ser
criminalizados pela sociedade e até pelo próprio sistema penal. Assim,
[...] a intensidade em que alguém é marginal ou desviante, em
qualquer caso um dos sentidos que mencionei, varia de caso a
caso. Acreditamos que uma pessoa que comete uma infração de
trânsito ou bebe um pouco mais numa festa não é, afinal, tão
diferente de nós, e tratamos sua infração com tolerância.
160
KARAM, 1993, p. 75.
161
Ibidem, p. 75.
82
Consideramos o ladrão menos parecido conosco e o punimos
severamente. Crimes como assassinato, violação ou traição levam-
nos a encarar o violador como um verdadeiro marginal.
162
Percebe-se que, quando um daqueles previamente excluídos do
alcance do sistema penal comete algum fato típico criminal, a própria
sociedade se encarrega de não criminalizar sua conduta, pois, afinal de
contas, para a parcela excluída do sistema penal, os incluídos na clientela
penal devem ser apenas os excluídos da fruição e do gozo dos bens de
consumo, e estes, somente estes, é que são criminosos.
2.4 Seletividade de pessoas: regras para que(m)?
Antes de o controle social penal formal exercer sua seleção, a
sociedade, através das instituições que realizam o controle informal
(família, escola
163
, igreja, clubes associativos, etc.), já define o papel dos
bons e dos maus; os que a ela (sociedade) servem e os que não lhe
servem.
Dos institutos que realizam o controle social informal, “os bons”
(que no sistema capitalista coincidem com as pessoas de segmentos
sociais privilegiados) receberão um olhar meritório positivo (na família, na
escola, na igreja, associações, etc.), um status de bom, ou, poder-se-ia
dizer, um estigma positivo; já, de outro lado, “os maus” (que coincidem
162
BECKER, 1971, p. 14.
163
“A complementaridade das funções exercidas pelo sistema escolar e pelo penal
responde à exigência de reproduzir e de assegurar as relações sociais existentes, isto é,
de conservar a realidade social” (BARATTA, 1999, p. 171).
83
com aquelas pessoas de uma casta social mais baixa, os excluídos) são
olhados com demérito, estigmatizados negativamente e estereotipados
como tal.
No controle social formal, quem vai desempenhar esse papel
selecionador é o sistema penal, que elegerá, por meio da escolha das
condutas, aquelas que considera negativas.
O sistema penal atua sob a ótica criminológica positivista, ou seja,
não questiona o rótulo de “desviante” que vai ser aplicado a atos ou a
determinadas pessoas. Contudo, conforme relata Howard Becker,
[...] os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja
infração constitui desvio e ao aplicar essas regras a pessoas
particulares e rotulá-las como marginais e desviantes. Deste ponto
de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa
comete, mas uma conseqüência da aplicação por outras pessoas
de regras e sanções a um ‘transgressor’. O desviante é alguém a
quem aquele rótulo foi aplicado com sucesso; comportamento
desviante é o comportamento que as pessoas rotulam como tal.
164
A imposição não é objetiva e não segue automaticamente a
infração à regra. A imposição é seletiva
84
facilmente constatável, no Brasil, bastando olhar para quem está
preso ou para quem é vítima de grupos de extermínio.
165
Nessa linha de pensamento, Alice Bianchini expressa que
várias, e de gravidade diferenciada, são as ações conflitivas que se
resolvem por via punitiva institucionalizada. Porém, nem todos os
agentes envolvidos no conflito são submetidos a essa solução. Sua
aplicação resta dirigida a uma parcela bastante reduzida e bem
delineada, filtrada por meio de um processo que, quase sempre,
elege os menos providos economicamente.
166
E prossegue mais adiante:
o sistema penal, em verdade, seleciona pessoas e não ações, como
também fica evidente que criminaliza a pessoas determinadas,
segundo sua classe e posição social. ‘Há uma clara demonstração
de que não somos todos igualmente ‘vulneráveis’ ao sistema
penal, que costuma conduzir-se por ‘estereótipos’ que recolhem os
caracteres dos setores marginalizados e humildes, que a
criminalização gera fenômeno de rejeição do etiquetado como
também daquele que se solidariza ou contara com ele, de forma
que a segregação se mantém na sociedade livre. A posterior
perseguição por parte das autoridades como permanentes
suspeitos incrementa a estigmatização social do criminalizado’,
dando origem, inclusive, ao fenômeno denominado delinqüência
secundária.
167
Assim, pode-se dizer que a categoria daquelas pessoas
consideradas como desviantes não englobará todos os que realmente
transgrediram as regras, isto por diversos motivos: seja porque não foram
descobertos; seja porque, mesmo descobertos, acabaram de alguma
forma sendo excluídos do sistema penal; ainda, em última instância, pela
interpretação que o operador jurídico poderá dar ao fato.
Isso significa dizer que, em que pese a regra ser posta
objetivamente, vários fatores poderão concorrer para que uma pessoa
165
KARAM, 1993, p. 206.
166
BIANCHINI, Alice. A seletividade do controle penal. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, São Paulo, v. 8, n. 30, abr.-jun. 2000, p. 61.
167
BIANCHINI, 2000, p. 62-63.
85
possa ter a qualidade de desviante. Essas regras incidirão mais sobre umas
pessoas do que sobre outras
168
.
Howard Becker afirma que, após realizar estudos sobre a
delinqüência juvenil nos EUA, constatou que meninos pertencentes à classe
média, se cometem algum delito, quase nunca levam registros da
ocorrência, e, caso cheguem a levar os processos, jamais irão muito longe.
Já, em relação aos meninos oriundos das favelas, estes quase sempre têm
suas ocorrências registradas, são processados e, ainda, na maioria das
vezes, ficam presos. Esses estudos constataram que é bem pouco provável
que um menino de classe média, quando abordado por policiais, seja
levado ao posto policial e, mesmo que isso ocorra, dificilmente levará
algum registro, ou melhor, dificilmente será fichado; bem menos provável,
ainda, que seja indiciado e julgado.
Diz Alessandro Baratta:
É na zona mais baixa da escala social que a função selecionadora
do sistema se transforma em função marginalizadora, em que a
linha de demarcação entre os estratos mais baixos do proletariado
e as zonas de subdesenvolvimento e de marginalização assinala,
de fato, um ponto permanentemente crítico, no qual, à ação
reguladora do mecanismo geral do mercado de trabalho se
acrescenta, em certos casos, a dos mecanismos reguladores e
sancionadores do direito. Isto se verifica precisamente na criação e
na gestão daquela zona particular de marginalização que é a
população criminosa.
169
168
Neste sentido, Alessandro Baratta discorreu que “o status social de delinqüente
pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social
da delinqüência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o
mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias.
Portanto, este não é considerado e tratado pela sociedade como ‘delinqüente’” (BARATTA,
1999, p. 86).
169
WACQUANT, 2001a, p. 09-10.
86
Um detalhe importante a ser ressaltado é que, num primeiro
momento, em nome do Estado, quem realizará essa seleção é a sociedade
a qual invoca a força policial. A força policial representa para a sociedade
os “mocinhos” que a livrarão dos “maus”, dos “bandidos”. E,
coincidentemente, esses “maus” e “bandidos”, na sua quase totalidade,
pertencem ao segmento social mais baixo da população. Coincidirão,
conseqüentemente, com os mais carentes economicamente; carentes de
afeto; carentes de pai, às vezes de pai e de mãe; carentes de um olhar
meritório da sociedade, do bom olhar do “Outro”.
Esta seleção é posta para a sociedade como se fosse neutra e
aplicável, de forma igualitária, a todos os que desviassem de uma norma,
mas tudo isso não passa de falácia. Sabe-se que não só nos Estados
Unidos (conforme relatado antes, na pesquisa por Howard Becker), mas
aqui também, dificilmente um indivíduo pertencente a um segmento social
mais alto receberá um registro de ocorrência, quando flagrado cometendo
um ato considerado desviante; contudo uma pessoa menos privilegiada,
certamente, além de “ser fichada”, na maioria das vezes terá seu auto de
prisão em flagrante lavrado.
É que esse combate à criminalidade, segundo Loïc Wacquant,
Apóia-se numa concepção hierárquica e paternalista da cidadania,
fundada na oposição cultural entre feras e doutores, os
“selvagens” e os “cultos”, que tende a assimilar marginais,
trabalhadores e criminosos, de modo que a manutenção da ordem
de classe e a manutenção da ordem pública se confundem.
[...]
Em tais condições, desenvolver o Estado penal para responder às
desordens suscitadas pela desregulamentação da economia, pela
dessocialização do trabalho assalariado e pela pauperização
relativa e absoluta de amplos contingentes do proletariado urbano,
87
aumentando os meios, a amplitude e a intensidade da intervenção
do aparelho policial e judiciário, equivale a (r)estabelecer uma
verdadeira ditadura sobre os pobres.
170
Salo de Carvalho diz a respeito que
Como percebe José Eduardo Faria, com o processo de globalização
e a gradual simbiose entre marginalidade social e a marginalidade
econômica, as instituições jurídicas dos Estados são obrigadas a
concentrar sua atuação na preservação da ordem e da segurança,
assumindo papéis, eminentemente punitivo-repressivos. Os ‘não-
cidadãos’ porém, apesar de destituídos de seus direitos subjetivos
públicos, não são dispensados de suas obrigações estabelecidas
nas leis penais
171
.
Segundo o mesmo autor, para esse contingente de não-cidadãos
resta quase que tão- somente uma inclusão no sistema penal, pois
A crise do sistema de garantias individuais, agregada ao modelo de
desmonte do Estado de bem-estar pelas políticas neoliberais,
produz uma alteração de tal ordem no sistema jurídico que afeta,
inclusive, a estrutura do texto constitucional. Assim, a expansão
do penal, com a inerente deformação da matriz iluminista,
‘constitucionaliza’ a maximização dos aparatos de controle como
forma de contenção das ‘massas inconvenientes’.
A respeito da exclusão, Zygmunt Bauman considerou que
Um resultado particularmente portentoso dessa nova ideologia foi
a substituição dos “interesses compartilhados” pela “identidade
compartilhada”. A fraternidade de base identitária estava para se
tornar – prevenia Sennett – a “empatia por um grupo seleto de
pessoas aliada à rejeição das que não estiverem dentro do círculo
local”. “Forasteiros, desconhecidos, diferentes tornam-se criaturas
a serem afastadas.
172
E, nesse afastamento mencionado por Zygmunt Bauman, o
sistema penal tem agido com certa eficácia, qual seja, tem arranjado no
cárcere um local para afastamento dos forasteiros, dos que “sobram”.
170
WACQUANT, 2001a, p. 9-10.
171
CARVALHO, S., 2004, p. 193.
172
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos
Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 48.
88
2.4.1 Seletividade étnica
A diferenciação na aplicação das normas ocorre também quando
se trata de pretos e brancos, ou seja, as regras abrangerão mais pretos do
que brancos, ao cometerem um mesmo tipo de fato. E, ainda, se aplicadas
a um mesmo tipo de fato, as penas são muito mais rigorosamente
aplicadas em relação aos negros.
Sérgio Salomão Shecaira ilustrou bem a questão em estudo
realizado acerca do racismo:
Segundo a Secretaria de Assuntos Penitenciários de São Paulo, em
pesquisa feita em uma das penitenciárias paulistas, no ano de
1997, brancos, negros e pardos tinham penas diferenciadas
conforme os delitos praticados. Quanto ao homicídio, as penas em
média dos brancos era de 20,1 anos. Para os pardos esse índice se
projeta para 25,0 anos e para os negros era de 35,7 anos. Além
disso, os brancos tinham menos condenações do que os negros.
(1,4 condenações contra 1,8). Isso significa que além de mais
condenados suas penas são proporcionalmente maiores.
173
174
173
A principal Universidade brasileira, em termos de pesquisas, números de alunos e
qualidade de ensino é a Universidade de São Paulo. A forma de seleção dos alunos faz-se
através de rigoroso exame vestibular em que a concorrência é por demais aguerrida.
Nela, 79,5% dos alunos são brancos contra 1% de pretos. Somente 6% dos alunos são
pardos enquanto 12,9% dos alunos são amarelos (orientais). É de destacar que a
população de pretos e pardos no Estado de São Paulo chega a 33,1% enquanto que a
população de amarelos não passa de 1,8%. Assim, pretos e pardos são sub-representados
na Universidade de São Paulo em quase 5 vezes. Os dados acima expressam como as
relações socioeconômicas têm relação com os aspectos raciais. Alguns dados
interessantes podem ser colhidos quanto ao sistema de justiça e sua relação com as
raças. A taxa de encarceramento por grupo racial em São Paulo é 76,8 por 100 mil
habitantes para brancos e de 140 por 100 mil para os pardos, elevando-se para 421 por
100 mil para os negros. Isso significa que um negro tem 5,4 mais chances de estar na
prisão que um branco. Enquanto brancos estão sub-representados nos cárceres em São
Paulo, os negros estão super-representados. Fenômenos semelhantes ocorrem em países
multirraciais que têm problemas raciais reconhecidamente graves. Nos EUA, por exemplo,
estas taxas são de 3.785 por 100 mil para negros, 1.773 para hispânicos e 407 para
brancos. (SHECAIRA, Sérgio Salomão. Racismo. Disponível em:
<http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 17 jul. 2001b).
174
SHECAIRA, 2001b.
89
Portanto conclui-se que a lei também é diferencialmente
aplicada, quando se trata de negros e brancos.
175
O repórter investigativo Caco Barcellos, denunciante da violência
policial instaurada no Brasil, também constatou, em sua investigação
particular, que essa violência tem um alvo certo. Diz ele:
Para nós, mais importante do que contabilizar o número de
mortos era levantar as informações para identificar e conhecer as
pessoas que os policiais militares vêm matando há 22 anos em
São Paulo. Com o registro de 4.179 casos de tiroteios no Banco
de Dados, acreditamos ter conseguido, depois de dois anos de
trabalho, chegar ao perfil das vítimas dos matadores.
Homem jovem, 20m anos. Negro ou pardo. Migrante baiano.
Pobre. Trabalhador sem especialização. Renda inferior a 100
dólares mensais. Morador da periferia da cidade. Baixa instrução,
primeiro grau incompleto
176
.
Vale aqui mencionar estudo realizado pelo Núcleo de Pesquisas
do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, recentemente publicado em
encarte integrante do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
nº 125, de abril de 2003, intitulado Mulheres negras: as mais punidas nos
crimes de roubo. Uma das constatações resultantes dessa pesquisa,
realizada pela Fundação Seade com a cooperação técnica do IBCCRIM, foi
de que “réus negros, especialmente mulheres negras, são mais punidos
pelo sistema de justiça criminal de São Paulo,” conforme demonstra a
175
Nesse sentido, importante a lição de Loïc Wacquant: “o recorte da hierarquia de
classes e da estratificação etnorracial e a discriminação baseada na cor, endêmica das
burocracias policial e judiciária. Sabe-se, por exemplo, que em São Paulo, como nas
outras grandes cidades, os indiciados de cor ‘se beneficiam’ de uma vigilância particular
por parte da polícia, têm mais dificuldade de acesso à ajuda jurídica e, por um crime
igual, são punidos com penas mais pesadas que seus comparsas brancos. E, uma vez
atrás da grades, são ainda submetidos a condições de detenção mais graves. Penalizar a
miséria significa aqui ‘tornar invisível’ o problema do negro e assentar a dominação racial
dando-lhe um aval do Estado” (2001a, p. 9-10).
176
BARCELLOS, Caco. Rota 66. A História da Polícia que Mata. Rio de Janeiro: Record,
2003, p. 68.
90
tabela abaixo:
Tabela 1
177
– Distribuição de indiciados, sentenciados e com execução penal por roubo segundo sexo e raça
Estado de São Paulo – 1991-98
Indiciados Sentenciados Sexo e raça
Em
flagrante
Por
Portaria
Total Condenado Absolvido Absolvido
Impróprio
Total
Sentenciados
com Execução
Penal
Total 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00
Branca 52,91 57,83 55,19 53,55 57,57 56,55 53,96 52,39
Negra
(1)
45,98 40,66 43,52 45,29 41,29 42,86 44,89 46,74
Outras
(2)
0,50 0,51 0,51 0,48 0,37 0,60 0,47 0,43
Não
Informado
0,61 1,00 0,79 0,68 0,77 0,00 0,69 0,44
Masculino 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00
Branca 52,95 57,72 55,16 53,61 57,46 56,10 53,99 52,46
Negra
(1)
45,95 40,78 43,56 45,24 41,40 43,29 44,86 46,66
Outras
(2)
0,51 0,52 0,51 0,48 0,39 0,61 0,47 0,43
Não
Informado
0,59 0,98 0,77 0,67 0,75 0,00 0,68 0,44
Feminino 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00
Branca 51,83 61,63 55,95 51,67 60,47 75,00 52,84 49,46
Negra
(1)
46,63 36,29 42,28 47,15 38,21 25,00 45,97 49,77
Outras
(2)
0,39 0,36 0,37 0,29 0,00 0,00 0,26 0,38
Não
Informado
1,16 1,72 1,39 0,88 1,33 0,00 0,94 0,38
Fonte: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJ; Secretaria da Administração Penitenciária – SAP;
Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo – SSP; Empresa de Processamento de Dados do
Estado de São Paulo – Prodesp; Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados – Seade.
(1) Considerou-se os indivíduos classificados como “pretos” e “pardos”.
(2) Considerou-se os indivíduos classificados como “amarelos” e “vermelhos”.
Tabela 2
178
– Tempo médio, em dias, das etapas da Justiça Criminal para indivíduos envolvidos em roubo,
segundo raça e gênero
Estado de São Paulo – 1991-98
MASCULINO FEMININO
Etapas
Branco
Negro
(1)
Branca
Negra
(1)
Total
Ocorrência Policial –
Inquérito
27 23 23 14 25
Inquérito – Sentença 371 339 406 300 357
Sentença – Execução 501 485 501 472 493
Inquérito – Execução 785 747 782 693 766
Fonte: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJ; Secretaria da Administração Penitenciária – SAP;
Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo – SSP; Empresa de Processamento de Dados do
Estado de São Paulo – Prodesp; Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados – Seade.
(1) Considerou-se os indivíduos classificados como “pretos” e “pardos”.
Na busca de uma resposta, o resultado da pesquisa encontrou
ressonância “com o entendimento do senso comum de que a população
negra e pobre é a clientela preferencial do aparato penal, incluindo desde a
177
Núcleo de Pesquisas. Boletim do IBCCrim, v. 11, n. 125, abr. 2003. p. 2.
178
Ibidem, p. 3.
91
perseguição policial até as autoridades do sistema de justiça”
179
.
Renato Sérgio de Lima, Alessandra Teixeira e Jacqueline
Sinhoretto ressaltam, ainda, que
Os resultados da pesquisa são incontestáveis em apontar a maior
punibilidade para negros, tanto se considerarmos a sua
progressiva captação e manutenção pelo sistema (mais
condenados do que indiciados), como se levarmos em conta a
categoria prisão no processo: além de serem mais presos em
flagrante (do que indiciados por portaria, como a maioria branca),
seus processos correm num prazo menor, o que é indicativo de
maior incidência de prisão processual.
[...]
Do ponto de vista de uma análise sobre inclusão/exclusão social,
estes resultados são consoantes aos dados do IBGE – Instituto
Brasileiro de Geografia Estatística – relativos à distribuição da
população segundo a renda mensal. A maior renda média é obtida
pelos homens brancos, seguidos, com relativa distância, das
mulheres brancas. Os homens negros aparecem em terceiro lugar
e as mulheres negras recebem o pior rendimento médio, muito
inferior àquele do primeiro grupo.
180
Interessante registrar aqui a percepção de Eduardo Galeano,
acerca da seletividade étnica:
Para os que mandam, não há “tolerância zero”. A exitosa receita
de Rudolph Giuliani, nascida para limpar as ruas de Nova Iorque
(p.19) dos delinqüentes e vendida no mundo inteiro, não se
equivoca nunca. Aplica sempre para baixo, jamais para cima, a
mão dura e o castigo preventivo, que vem a ser algo assim como
a versão policial da guerra preventiva. Converte a pobreza em
delito e atribuiu uma “conduta protocriminal” a todos os pobres de
origem africana ou latino americana, que são culpados enquanto
não provem sua inocência.” [...]Em muitos países, pode-se ser
preso pela cor da pele. Nos Estados Unidos, por exemplo. Dentro
das prisões, há quatro negros por cada dez presos. Fora das
prisões, há um negro para cada dez habitantes.
181
Em que pese não ser objeto deste trabalho, pode-se mencionar,
ainda, outros critérios de seleção do sistema penal brasileiro, abordados
179
Núcleo de Pesquisas. Boletim do IBCCrim, v. 11, n. 125, abr. 2003. p. 4.
180
Ibidem, p. 4.
181
GALEANO, Eduardo. Criminologia. In: Discursos Sediciosos, n. 14, RJ: ICC/Revan,
2004, p. 19-20.
92
por Lédio Rosa de Andrade em sua obra Direito Penal Diferenciado, quais
sejam a seleção sexista e machista.
Enfim, aplicação das regras para que(m)? Talvez para tirar os
“ninguéns” das ruas, aqueles muito bem retratados por Eduardo Galeano
no poema abaixo:
Os ninguéns
As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza,
que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a
cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem
nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a
chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou
comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da
imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata
.
Eduardo Galeano – O livro dos abraços.
2.5 Seletividade na imposição de regras pela exegese: novamente,
regras para quem?
93
Pode ocorrer, ainda, que pessoas não selecionadas por ordem e
azar do acaso venham a ser incluídas no sistema penal, uma vez que uma
regra pode surgir para satisfazer um interesse de um grupo e assim gerar
conflito entre alguns membros do grupo que a fez
182
.
Segundo Howard Becker, quando isso ocorre, os operadores do
direito, por meio da exegese, criam artifícios e artimanhas para excluir tais
pessoas. Vale dizer que é essencialmente no caminho trilhado, polícia-
tribunal, que ocorre a seleção da seleção, ou seja, neste caminho,
“aqueles” que não deveriam ser incluídos no sistema penal acabam, em
última instância, excluídos através de uma série de artimanhas, chamada
de interpretação da lei pelos operadores.
Vale dizer que
[...] a história natural de uma regra não termina com a dedução
de uma regra específica a partir de um valor geral. A regra
específica ainda tem que ser aplicada em casos específicos, a
pessoas específicas. Ela deve receber sua personificação final em
atos específicos de imposição
.
183
Lédio Rosa de Andrade ilustra, de forma cristalina, o panorama
acima traçado, apontando decisões (contraditórias) dos Tribunais pátrios
acerca da criação doutrinária do furto de uso. Especificamente, quando o
agente era um rapaz de classe média – em que pesem ausentes os
requisitos doutrinários para tanto –, a mesma fora admitida. De outro lado,
quando o agente era um presidiário em fuga – mesmo que presentes os
requisitos doutrinários criados para a caracterização do furto de uso –, a
182
BECKER, 1971, p. 123-124.
183
Ibidem, p. 123.
94
mesma não fora admitida.
184
184
Seguem os julgados e análise referidos:
TIPO DE PROCESSO ..........................: Apelação criminal
NÚMERO ACÓRDÃO ............................: 32.004
COMARCA ..............................................: Lages
DES. RELATOR .....................................: Aloysio de Almeida Gonçalves
ÓRGÃO JULGADOR .............................: Primeira Câmara Criminal
DATA DECISÃO ....................................: 18 de outubro de 1994
Furto de uso - Ausência de dolo - Retirada de automóvel, de estacionamento de posto de
gasolina, para passeio - Veículo não devolvido em razão do agente ter sido preso em
flagrante - Caracterização do furtum usus, visto que, no caso, o agente não se pautou
com animus furandi - Recurso provido para absolver o réu.
Apelação criminal n. 29.664, de Sombrio.
Relator: Des. Souza Varella.
APELAÇÃO CRIMINAL. FURTO. AUSÊNCIA DE ANIMUS FURANDI. FURTO DE USO
CARACTERIZADO. RECURSO PROVIDO.
[...] Como bem salientou o Dr. Procurador de Justiça, em todas as oportunidades em que
foi ouvido, o apelante confirmou que se apoderou do veículo da vítima, todavia, com o
nítido intuito de restituí-lo in loco et in integro, só não o fazendo porque desgraçadamente
capotou o veículo.
É pacífico o entendimento jurisprudencial que "inexistente o animus furandi, requisito
indeclinável para a tipificação da infração penal, absolvem-se os acusados" (JUTACRIM X -
SP - X/160 - Ap. crim. n. 13.715, 4aCâm., TACRIM - Rel. Juiz Francis Davis).
Do corpo do referido acórdão, que em muito se assemelha ao caso vertente, extrai-se:
"Os réus, em verdade, apoderaram-se à noite de um automóvel, tipo 'baratinha ', modelo
1936, sem chaves, placas, bancos, pára-choques, capota, apenas utilizada para
transporte de peixes, e em tal veículo, foram dar um passeio em Jabuticabal. Aí, por
imperícia, ou em razão do próprio estado da viatura, tiveram um acidente automobilístico,
que os impediu de devolver o carro ao local de onde o retiraram". [...]
Esta Corte não discrepa deste entendimento:
"Furto de uso - Veículo retirado da garagem coletiva para ligeiro passeio - Acidente de
trânsito ocorrido no retorno - Circunstância que não descaracteriza o furtum usus, visto
que, no caso, os agentes não se pautaram com animus furandi - Recurso provido para
absolver o réu - Decisão estendida ao co-réu" (Ap. crim. n. 24.813, de Porto União, Rel.
Des. Aloysio de Almeida Gonçalves, JC 65/373).
Na decisão acima, o furto de uso foi reconhecido, mesmo tendo ocorrido um acidente,
com destruição do bem furtado, um automóvel, resultando, sem a mínima dúvida,
prejuízo patrimonial para a vítima. Já o acórdão que segue, a res furtiva refere-se a uma
bicicleta, apreendida logo em seguida à subtração, sem ter sofrido sequer um arranhão. A
figura do furto de uso não foi reconhecida, pois os julgadores exigiram a devolução
expontânea e íntegra do objeto do furto. Houve, sem dúvida, um exegese diferenciada.
Note-se que no caso que segue o acusado era um fugitivo da penitenciária.
TIPO DE PROCESSO ........................ : Apelação criminal (Réu Preso)
NÚMERO ACÓRDÃO .......................... : 99.009642-4
COMARCA .......................................... : Xanxerê
DES. RELATOR .................................. : Jorge Mussi
95
MATERIALIDADE DELITIVAS DEVIDAMENTE COMPROVADAS – ILÍCITO QUE NÃO SE
CONSUMOU POR CIRCUNSTÂNCIAS ALHEIAS À VONTADE DO RÉU – AUSÊNCIA DE
PREJUÍZO À VÍTIMA QUE NÃO INTERFERE NA TIPIFICAÇÃO DO FATO – CONDENAÇÃO
SUSTENTADA EM FORTE ELENCO PROBATÓRIO – ABSOLVIÇÃO INVIÁVEL.
FURTO DE USO – RECORRENTE QUE FOI PRESO EM FLAGRANTE QUANDO SE DESLOCAVA
PARA OUTRO MUNICÍPIO COM O BEM SUBTRAÍDO – RÉU QUE, ADEMAIS, EM NENHUM
MOMENTO DEMONSTROU A INTENÇÃO DE POSTERIORMENTE DEVOLVER O OBJETO
FURTADO AO LOCAL DE ONDE FOI RETIRADO – TESE DEFENSIVA NÃO EVIDENCIADA NA
ESPÉCIE – CULPABILIDADE CARACTERIZADA – CONDENAÇÃO MANTIDA.
[...]
“No dia 26 de dezembro de 1998, por volta das 21h.30min., o denunciado Carlos
Fernando Machado, após ter fugido da Penitenciária de Chapecó/SC, dirigiu-se até a
cidade de Faxinal dos Guedes/SC e subtraiu para si uma bicicleta Monark, cor azul, chassi
n. LB184567, de propriedade de Valdecir Costa Maia, que estava estacionada em frente
ao ‘Bar do Valdir’, ao lado do Colégio Salustiano Antônio Cabreira, naquela cidade.
“Após apossar-se da referida bicicleta, o denunciado saiu em direção à BR 282, onde foi
abordado por Policiais Militares que já haviam sido comunicados do furto, de sorte que
este somente não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade.”
A materialidade do crime restou devidamente comprovada pelo Termo de Apreensão de
fls. 10, descrevendo a res furtiva encontrada em poder do réu; pelo Auto de Avaliação de
fls. 11, estimando o valor da bicicleta em R$ 130,00 (cento e trinta reais); e pelo Termo
de Reconhecimento e Entrega de fls. 12.
[...] Quanto ao mérito, mister ainda destacar que é irrelevante, como alegado pela defesa
do recorrente, não ter a vítima sofrido qualquer prejuízo, porque recuperou o bem. Este
resgate deu-se tão-somente pela desconfiança da testemunha Santo Broll e pelo pronto
atendimento dos Policiais que foram comunicados do ocorrido. A conduta continua sendo
antijurídica e punível, mesmo que ausente o dano patrimonial da vítima, resultado que só
não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do réu.
3 – Tocante ao pedido defensivo de reconhecimento da ocorrência da fictio juris do furto
de uso, pretendo que por isso seja o acusado absolvido, sorte também não lhe socorre,
vez que tal figura não restou efetivamente tipificada.
Preleciona o saudoso NELSON HUNGRIA, acerca do furtum usus:
“[....] ocorre o chamado furto de uso quando alguém retira coisa alheia fungível (v.g., um
cavalo, um automóvel, um terno de roupa, um livro) para dela servir-se
momentaneamente ou passageiramente, repondo-a, a seguir, íntegra, na esfera da
atividade patrimonial do dono” (in “Comentários ao Código Penal”, 1ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, v. 7, p. 22).
[...]
Colhe-se, ainda, da lição de ROMEU ALMEIDA SALLES JUNIOR:
“O furto de uso é conceituado como a subtração orientada no sentido de servir-se dela o
agente, momentaneamente, restituindo-a, após, ou seja, colocando-a novamente na
esfera de vigilância ou de disponibilidade do proprietário.”
A jurisprudência do nosso Tribunal não discrepa, leia-se:
“FURTO SIMPLES – PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO PELO ACOLHIMENTO DA TESE DE FURTO
DE USO – MATERIALIDADE E AUTORIA DEMONSTRADAS CABALMENTE DURANTE A
INSTRUÇÃO CRIMINAL – FURTO DE USO NÃO CONFIGURADO – REQUISITOS DA
MOMENTANEIDADE DA POSSE E RESTITUIÇÃO DA COISA À ESFERA PATRIMONIAL DO
DONO (VÍTIMA) NÃO PREENCHIDOS – ABSOLVIÇÃO INCABÍVEL.
“Para o acolhimento da tese de ocorrência de furto de uso, ‘é preciso que fique patente a
inexistência de dolo, o que só ocorre quando temos a subtração de coisa alheia móvel
com o escopo de utilização momentânea, logo seguida da restituição, que há de ser
voluntária, à própria vítima ou a alguém por ela indicado, idônea e completa’ (RTJ
56/763)” (Ap. crim. n. 33.299, da Capital, deste Relator, p. no DJSC n. 9.323, de 21.9.95,
p. 22).
[...] “FURTO DE USO – Descaracterização – Requisitos de uso momentâneo da coisa e sua
96
Os julgados acima destacados por Lédio Rosa de Andrade, que
seguem no anexo A, só vêm comprovar o caráter seletivo do sistema
penal, principalmente quando envolve delitos contra o patrimônio. Tal
constatação leva à conclusão de que o critério de seleção desse tipo de
delito se dirige para os excluídos do direito à concretização dos direitos de
cidadania, ou seja, é uma criminalidade fruto da miséria reinante em nosso
país, como demonstrou o resultado da pesquisa realizada pelo Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais.
reposição imediata e voluntária, íntegra, após a utilização inocorrentes – Insuficiência de
não provada intenção do agente de restituí-la, sem que se saiba quando – Furto
configurado – Inteligência do art. 155, ‘caput’, do CP” (RT 697/315).
TIPO DE PROCESSO .......................... : Apelação criminal
NÚMERO ACÓRDÃO ............................ : 31.657
COMARCA .............................................. : Brusque
DES. RELATOR ..................................... : Cláudio Marques
ÓRGÃO JULGADOR ............................. : Primeira Câmara Criminal
DATA DECISÃO .....................................: 6 de dezembro de 1994
FURTO SIMPLES CONSUMADO E TENTADO EM CONTINUIDADE DELITIVA. CONDENAÇÃO.
RECURSO DEFENSIVO. DÚVIDA QUANTO À PROVA. PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO.
IMPOSSIBILIDADE. ELENCO PROBATÓRIO SUFICIENTE QUANTO AO CRIME E SUA
AUTORIA. FURTO DE USO. AUSÊNCIA DE REQUISITOS LEGAIS. SENTENÇA MANTIDA.
Caracterizado o furto consumado perpetrado na presença de testemunha que viu quando
o réu dali saiu com a bicicleta, sendo em seguida encontrado e preso por policiais que
procediam às buscas, na posse da res furtiva.
Outrossim, para a configuração do furto de uso, há necessidade de que a coisa seja usada
momentaneamente pelo agente, sendo sua reposição imediata e voluntária íntegra, após
a utilização.
Para a ocorrência do segundo delito em sua forma tentada, não se fazia necessária a
apreensão da coisa, sendo o bastante a prova testemunhal, a qual se mostrou firme e
coerente em demonstrar a real intenção do denunciado, quando retornou à feira a pé, e,
surpreendido pelos gritos da vítima e o imediato acesso de pessoas, largou a segunda
bicicleta e saiu correndo. RECURSO IMPROVIDO.
Não se está combatendo a figura da bagatela ou do furto de uso, pois, assim como o
furto famélico, são importantes avanços no Direito. Discute-se, entretanto, a forma
diferenciada como estes institutos estão sendo usados. Não se trata, também, de um
discurso apologético em defesa dos pobres e excluídos. Não. Há pobres e pobres.
Inaceitável, entretanto, é a atitude diferenciada do Estado Justiça, quando discrimina
determinadas classes sociais, quando de sua atuação na esfera jurídica, em particular
na penal.ANDRADE, Lédio, 2002, p. 77-86.
3 EXCLUSÃO SOCIAL, INVISIBILIDADE, O MAL-ESTAR DO
SUJEITO NA ATUALIDADE E A (RE)INCLUSÃO NO SISTEMA PENAL
REINCIDÊNCIA: A PROFECIA QUE SE AUTOCUMPRE
3.1 O mal-estar do sujeito: de Freud à atualidade
Em que pese grande parte dos psicanalistas atribuírem
atemporalidade e a-historicidade aos textos de Sigmund Freud, Zygmunt
Bauman e Joel Birman referem os textos de Freud, inserindo-os em um
período histórico.
Assimilando-se os ensinamentos das aulas de Ruth Gauer, a
qual afirma que todo texto é datado, pode-se dizer, então, que Sigmund
Freud era um homem de seu tempo e, em decorrência, datada toda a sua
produção. Datada e reflexo do momento histórico que vivia: o final do
período moderno.
Pretende-se, assim, no desenvolvimento do presente texto,
fazer uma ligação entre passado e presente, analisando-se os possíveis
legados da modernidade, traduzidos, ainda hoje, em mal-estar para a
98
sociedade. É preciso, segundo François Ost,
[...] tentar a ligação cultural do passado e do futuro, a fecundação
reflexiva do projecto pela experiência e a revitalização do dado
pelo possível. Contra o peso do determinismo histórico, é preciso
abrir a brecha da iniciativa e da alternativa, mas contra as
temporalidades manifestas de sociedades hiperindividualistas, é
preciso imaginar mecanismos de concordância dos tempos.
185
É necessário caracterizar o período no qual foi feito o texto, de
modo a identificar possíveis elos com o tempo presente.
Joel Birman diz que, para compreender de que mal-estar Freud
tratava em seu texto O Mal-Estar na Civilização, imperioso considerar
“uma interpretação contextual do conceito de mal-estar
186
na civilização no
discurso freudiano implica retomar esse discurso e a subjetividade que
descreve numa perspectiva também histórica”
187
.
Zygmunt Bauman, acerca do texto acima, diz que é da história
da modernidade que o livro trata, ainda que Freud preferisse referir-se à
cultura ou civilização. Isso porque “só a sociedade moderna pensou em si
mesma como uma atividade da “cultura” ou da “civilização” e agiu sobre
esse autoconhecimento com os resultados que Sigmund Freud passou a
185
OST, François. O Tempo do Direito. Lisboa: Piaget, 1999, p. 17.
186
No que se refere à interpretação atemporal do conceito de mal-estar, Birman
“concebe sempre este como a resultante infalível do processo de socialização da espécie
humana, que, obrigada que foi a desenraizar-se da ordem da natureza e inscrever-se na
ordem da cultura, pagou um preço bastante alto por isso. Com isso, as angústias e
sofrimentos humanos, sempre decorrentes das insatisfações eróticas resultantes dos
imperativos sociais, seriam a matéria-prima recorrente das perturbações do espírito. As
adaptações para isso necessárias, que seriam sempre conseqüentes ao processo
evolutivo da espécie, deixariam, contudo, marcas traumáticas e cicatrizes , que se
consubstanciariam então como dores psíquicas.” BIRMAN, Joel. Arquivos do mal-estar e
da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 60.
187
BIRMAN, 2006, p. 60.
99
estudar; a expressão ‘civilização moderna’
188
, fazendo com isso que o
referido termo – civilização moderna - seja um pleonasmo.
Segundo eles, o sujeito de que nos fala Sigmund Freud era o
sujeito moderno. Era da insatisfação do sujeito ocidental frente à
civilização da modernidade que Freud tratava.
Sigmund Freud diz que “se a civilização impõe sacrifícios tão
grandes que, não apenas à sexualidade do homem, mas também a sua
agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz
nessa civilização“
189
. Isso porque o homem civilizado (moderno) “trocou
uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de
segurança”
190
. Por isso Zygmunt Bauman assevera que uma das
mensagens centrais da obra supracitada é a de que “você ganha alguma
coisa, mas, habitualmente perde em troca alguma coisa”
191
.
Cristina Rauter diz que:
Os progressos tecnológicos da humanidade apenas agravaram o
frágil equilíbrio entre instinto e proibições sociais, criando novas
restrições de ordem moral a partir dos grupos e das comunidades,
tornando os indivíduos mais infelizes. A tendência destrutiva e a
sexualidade reprimidas só fariam intensificar o potencial
destruídos do homem – as conseqüências do processo civilizatório
seriam um mal-estar crescente, diante do qual os desígnios de
Eros seriam insuficientes para construir possibilidades mais
satisfatórias para o escoamento das pulsões, no âmbito da
civilização.
192
Se a civilização somente se constrói com a renúncia ao extinto,
188
BAUMAN, 1998, p. 7.
189
FREUD, Sigmund. O Mal-estar na civilização. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Rio
de Janeiro: Imago Ed., 1997, p. 72.
190
FREUD, 1997, p. 72.
191
BAUMAN, 1998, p. 7.
192
RAUTER, Cristina. Produção social do negativo: notas introdutórias. In: Discursos
Sediciosos, n. 14. RJ: ICC/Revan, 2004, p. 97/98.
100
“os prazeres da vida civilizada, [...] vêm num pacote fechado com os
sofrimentos, a satisfação com o mal-estar, a submissão com a rebelião”
193
.
Importante destacar que, dentre os muitos mal-estares da
civilização tratados por Sigmund Freud, destacaremos apenas a promessa
de auto-suficiência e os ideais de limpeza e ordem. É que estão presentes
na atualidade, em que pese vestidos com uma outra roupagem, e têm
conexão com o que se pretende abordar no presente trabalho.
3.1.1. A promessa da auto-suficiência
A modernidade também criou um sujeito insatisfeito frente à
impossibilidade de alcançar a auto-suficiência prometida pelo Iluminismo
àquela sociedade (moderna).
Segundo Joel Birman, “a formação ilusória da auto-suficiência é
um dispositivo fundamental do imaginário da modernidade“
194
. Essa
formação ilusória da auto-suficiência tem seu marco histórico com o
surgimento do humanismo, momento histórico em que o homem foi
alçado ao centro do mundo e razão de todas as coisas. Assim, “a
metafísica cartesiana, ao colocar o eu como o fundamento do ser, enunciou
a posição estratégica ocupada pela razão humana e o seu empreendimento
na criação do mundo
195
.
Dá-se assim, no dizer de Nietzsche em sua obra “A genealogia
193
BAUMAN, 1998, p. 8.
194
BIRMAN, 2006, p. 121.
195
Ibidem, p. 121
101
da moral”
196
, a morte de Deus, ainda que tal anunciação não implicasse na
inexistência de Deus, mas sim a pretensão do homem de ocupar seu lugar.
Na obra Mal-Estar da Civilização de Sigmund Freud, uma das
críticas centrais ao pensamento moderno é justamente a crítica sistemática
do ideário de auto-suficiência do sujeito. Isso porque, segundo ele,
Essas coisas – que, através de sua ciência e tecnologia, o homem
fez surgir na Terra, sobre a qual, no princípio, ele apareceu como
um débil organismo animal e onde cada indivíduo de sua espécie
deve, mais uma vez, fazer sua entrada como se fosse um recém-
nascido desamparado – essas coisas não apenas soam como um
conto de fadas, mas também constituem uma realização efetiva de
todos – ou quase todos – os desejos de contos de fadas. Todas
essas vantagens ele as pode reivindicar como aquisição cultural
sua. Há muito tempo atrás, ele formou uma concepção ideal de
onipotência e onisciência que corporificou em seus deuses. A estes
atribuía tudo que parecia inatingível aos seus desejos ou lhe era
proibido. Pode-se dizer, portanto, que esses deuses constituíam
ideais culturais. Hoje, ele se aproximou bastante da consecução
deste ideal, ele próprio quase se tornou um deus. É verdade que
isso só ocorreu segundo o modo como os ideais são geralmente
atingidos, de acordo com o juízo geral da humanidade. [...] O
homem, por assim dizer, tornou-se uma espécie de “Deus de
prótese”
197
.
Da leitura acima, pode-se inferir por que a promessa de auto-
suficiência é ilusória: trata-se de uma promessa que nasce morta, pois,
desde o nascimento, o sujeito já nasce em dívida. Ele não nasce humano,
já que, de acordo com Jean-Fraçois Lyotard: “Se os humanos nascessem
humanos tal como os gatos nascem gatos [...], não seria possível – e nem
sequer digo desejável, o que torna a questão diferente – educá-los”
198
.
Prossegue o autor, afirmando que, em razão de as crianças não serem
196
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogía da moral: polêmica. Trad. Paulo Cesar de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 83.
197
FREUD, 1997, p. 45-46.
198
LYOTARD, Jean-François. O inumano. Trad. Ana Cristina Seabra e Elisabete
Alexandre. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 11.
102
pura e simplesmente guiadas e programadas pela natureza, é necessário
educá-las. Ainda que um dia o homem pudesse tornar-se auto-suficiente,
isso não ocorreria de forma plena, pois
A miséria inicial da sua infância ou a sua capacidade de adquirir
uma “segunda” natureza que, graças à língua, o torna apto a
partilhar da vida comum, da consciência e da razão adultas? [...]
esta última assenta e suporta a primeira
199
.
É em razão de que já no início, com seu nascimento o homem já
apresenta “O seu atraso inicial sobre a humanidade, que a
torna refém da
comunidade adulta, é igualmente o que manifesta a esta última a falta de
humanidade de que sofre [...].“
200
que o homem desde o início constitui-se
em um ser em falta. Por isso Freud afirmou que a pretensão de auto-
suficiência do homem e seu ideal de transformar-se em um Deus somente
conseguiu transformá-lo num “Deus em Prótese”, assim a promessa de
auto-suficiência, que se transforma em um conto de fadas.
3.1.2 Ideais de beleza, limpeza e ordem
Dentre os ideários da modernidade, encontram-se a busca e
aceitação da beleza, limpeza e ordem. Sigmund Freud diz que “a beleza, a
limpeza e a ordem ocupam uma posição especial entre as exigências da
civilização”
201
.
O homem moderno foi disciplinado para aceitar e buscar os
199
LYOTARD, 1997, p. 11.
200
Ibidem, 11.
201
FREUD, 1997, p. 47.
103
ideais de beleza, limpeza e ordem.
Uma das formas de busca da felicidade, segundo Sigmund
Freud, é a fruição da beleza, da qual a sociedade moderna não conseguiu
mais abdicar-se. Relaciona-a com os ideais de que ela se estende não só
ao corpo, mas também a esferas sociais de convivência humana, as quais
devem estar livres de impurezas. Efetivamente, segundo Sigmund Freud,
“Esperamos, ademais, ver sinais de asseio e de ordem. [...] A sujeira de
qualquer espécie nos parece incompatível com a civilização”
202
. Da mesma
forma, estendemos nossa exigência de limpeza ao corpo humano.
Prossegue dizendo que não há como descolar a beleza e a
ordem, pois, “assim como a limpeza, ela só se aplica às obras do homem.
Contudo, ao passo que não se espera encontrar asseio na natureza, na
ordem, pelo contrário, foi imitada a partir dela”
203
.
Esses ideais, ordem e pureza, encontram-se impregnados no
homem de tal forma, que não se consegue imaginar a vida sem eles. A
202
A respeito da intolerância da sujeira pela civilização, importante destacar trecho da
obra “O Perfume”: Na época de que falamos, reinava nas cidades um fedor dificilmente
concebível por nós, hoje. As ruas fediam a merda, os pátios fediam a mijo, as escadarias
fediam a madeira podre e bosta de rato; as cozinhas, a couve estragada e gordura de
ovelha; sem ventilação, salas fediam a poeira, mofo; os quartos, a lençóis sebosos, a
úmidos colchões de pena, impregnados do odor azedo dos penicos.
Das chaminés fedia o enxofre; dos curtumes, as lixívias corrosivas; dos matadouros fedia
o sangue coagulado. Os homens fediam a suor e a roupas não lavadas; da boca eles
fediam a dentes estragados, dos estômagos fediam a cebola e, nos corpos, quando já
não eram mais bem novos, a queijo velho, a leite azedo e a doenças infecciosas.
Fediam os rios, fediam as praças, fediam as igrejas, fedia sobre as pontes e dentro dos
palácios. Fediam o camponês e o padre, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a
nobreza toda, até o rei fedia como um animal de rapina, e a rainha como uma cabra
velha, tanto no verão quanto no inverno. Pois à ação desagregadora das bactérias, no
século XVIII, não havia sido ainda colocado nenhum limite e, assim, não havia atividade
humana, construtiva ou destrutiva, manifestação alguma de vida, a vicejar ou a fenecer,
que não fosse acompanhada de fedor. (SÜSKIND. O perfume. Rio de Janeiro: Record,
1985, p. 5-6)
203
FREUD, 1997, p. 46.
104
sujeira é inconcebível na sociedade moderna; a ordem, segundo Ruth
Gauer, “fundamenta todo um padrão de comportamento” [...] e “está
colada à organização: todas as coisas em seus lugares e todos os lugares
com suas coisas igualmente ordenadas e purificadas”
204
.
Esses ideais da modernidade – pureza, perigo, impureza, sujeira
e ordem foram enfocados por Mary Douglas em “Pureza e Perigo”:
Como se sabe, a sujeira é essencialmente, desordem. Não há
sujeira absoluta: ela existe aos olhos de quem a vê. Se evitamos
a sujeira, não é por covardia, medo nem receio ou terror divino.
Tampouco nossas idéias sobre doença explicam a gama de nosso
comportamento no limpar a sujeira. A sujeira ofende a ordem.
Eliminá-la não é um movimento negativo, mas um esforço
positivo para organizar o ambiente.
205
Assim a autora diz que a sujeira consiste fundamentalmente em
desordem e agride os olhos de quem a vê, o que, conseqüentemente
ofende à ordem, não sendo de todo negativo sua eliminação, pois há uma
reorganização do ambiente ao fazê-lo. Contudo o problema é que muitas
vezes esta limpeza e esta ordem são estendidas à sociedade, com intuito
de reorganizá-la, transferindo às pessoas e grupos sociais as categorias de
puro e impuro.
Para Zygmunt Bauman,
A pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes
dos que elas ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para
outro, impulsionadas, arrastadas ou incitadas; e é uma visão da
ordem – isto é, de uma situação em que cada coisa se acha em
seu justo lugar e em nenhum outro. Não há nenhum meio de
pensar sobre a pureza sem ter uma imagem da “ordem”, sem
atribuir às coisas seus lugares “justos” e “convenientes” – que
ocorrem serem aqueles lugares que elas não preencheriam
204
GAUER, Ruth Maria Chittó. Da diferença perigosa ao perigo da igualdade: reflexões
em torno i re 66.3( )]Não modernoó.
105
“naturalmente”, por sua livre vontade. O oposto da “pureza” - o
sujo, o imundo, os “agentes poluidores” – são coisas “fora do
lugar”.
206
O grande problema, quando os ideais de ordem e pureza
estendem-se para o tecido social, é que, ao que parece, para alguns que
estão fora do lugar não há lugar nenhum. Segundo Zygmunt Bauman,
essas coisas “para as quais o “lugar certo” não foi reservado em qualquer
fragmento da ordem preparada pelo homem [...], ficam “fora do lugar” em
toda a parte, isto é, em todos os lugares para os quais o modelo de pureza
tem sido destinado”
207
.
Segundo Ruth Gauer, “nada mais apropriado que pensar na
ordem para compreender a desordem, assim como todo tipo de
discriminação”
208
, ao estendê-la às pessoas, etnias, sexualidades, gerando
inúmeros episódios de discriminação e genocídios de que a história está
repleta.
Cada cultura desenvolve uma noção de ordem, de sujeira e
contaminação, para depois fazer a higienização, expurgando toda sujeira,
que deve ser eliminada. Mary Douglas diz que “Primeiro estão,
reconhecidamente, fora de lugar, uma ameaça à boa ordem, e assim,
considerados desagradáveis e varridos vigorosamente”
209
.
A modernidade, ao disciplinar os homens e as coisas que
pudessem estar fora do lugar, esqueceu-se, segundo Ruth Gauer de que
206
BAUMAN, 1998, p. 14.
207
Ibidem, p. 14.
208
GAUER, p. 399.
209
DOUGLAS, 1966 p. 194.
106
“não haveria imunidade para o egoísmo, o niilismo e para a exploração de
um número enorme de seres humanos”. No decorrer da história da
humanidade, vários foram os impuros a serem expurgados, a fim de se
obter a higienização do tecido social. No mundo pós-moderno, os impuros,
os “fora de lugar”, para quem não há mais lugar algum, são os
consumidores falhos, eles traduzem-se na “sujeira” do ideal de pureza pós-
moderna, conforme adiante será desenvolvido.
3.2 O mal-estar brasileiro na atualidade
Para uma tentativa de compreensão do mal-estar na
brasilidade, Joel Birman diz que “[...] as dimensões política e social são
aqui fundamentais para a devida compreensão da economia do dito mal-
estar, no registro da subjetividade”
210
, fazendo com isso que haja uma
particularidade na representação deste mal-estar, uma singularidade. Isso
porque traz “[...] sua presença numa dada formação social e as marcas da
tradição que a constituíram. Não se trata do mal-estar em geral, mas de
algo que tem a marca da singularidade, conferida aqui pela brasilidade”
211
.
Grande parte do mal-estar da brasilidade é fruto da exclusão
social reinante em todo o país e o sofrimento dela decorrente, como já
amplamente tratado no primeiro capítulo. A negação da concretização dos
direitos de cidadania tem feito surgir um exército de não-cidadãos, ou
210
BIRMAN, 2006, p. 59.
211
Ibidem, p. 59.
107
não-sujeitos, sabe-se.
Cada vez mais a realidade socioeconômica constitui-se numa
lógica polarizada, formando “dois brasis”, fazendo, também, surgir, além
da exclusão, a viscosidade de estranhos. Isto porque, segundo Zygmunt
Bauman
212
, elas são originadas da lógica da polarização de tipo dois, do
aparecimento de duas nações dentro de uma mesma, em que apenas uma
das nações detém o processo de individualização, sendo que, para a
outra, resta, tão somente, o gratuito e radical desencaixe, sendo-lhe
negado todos os instrumentos hábeis à concretização de cidadania e
qualquer possibilidade de identidade.
Refere, ainda, que, desta outra nação, não somente lhe é
expropriada riqueza, renda, expectativa de vida e condições de
sobrevivência, mas, sobretudo, lhe é expropriada, de forma cada vez mais
crescente, o direito à individualidade. “E, uma vez que continua desta
maneira, há pouca oportunidade para se desenviscarem os estranhos”
213
.
É que “tudo isso intensifica o isolamento, o individualismo; elimina a
tolerância com as diferenças. Intensifica a privatização da vida e dificulta
a construção da cidadania”
214
.
Na era do consumo, os estranhos na sociedade brasileira têm
sido constituídos pelo segmento social empobrecido, abandonado;
constituídos daquela parcela da sociedade, crescente a cada dia, que foi
abandonada pelo Estado, o qual não lhe destinou qualquer política social
212
BAUMAN, 1998, p. 48.
213
Ibidem, 48.
214
Souza, 2005, p. 13.
108
ou econômica que a pudesse favorecer. Diz Dominique Schnapper que “o
cidadão é uma abstração, um princípio de funcionamento político, fundado
sobre a igual dignidade de todos os homens, ao mesmo tempo que é um
ideal. É um princípio contrário à realidade do mundo social”
215
. Assim, com
a desigualdade socioeconômica instalada, aos excluídos, é-lhes negado o
direito – o acesso – à cidadania.
Aliás, foi no preenchimento desta grande lacuna deixada pelo
Estado brasileiro, que brotaram grande parte das favelas brasileiras, as
quais, hoje, contam com uma população imensa. Joel Birman menciona
em seu artigo intitulado Sociedade Sitiada que uma outra conseqüência da
realidade socioeconômica brasileira é o surgimento de grandes grupos
criminosos. Estes têm gerido a vida de parcela da população, em razão da
omissão do Estado Brasileiro,
Será sobre esta vasta população abandonada que os grupos
criminosos vão encontrar o terreno favorável para se implantar e
manipulá-las de diferentes maneiras, indo da cooptação direta
para os seus quadros à oferta de serviços sociais para amenizar
as suas agruras. Foi na sombra da ausência do estado, no campo
das classes sociais desfavorecidas, que os grupos criminosos vão
se disseminar decididamente nas favelas e nas regiões pobres da
cidade.
216
Formou-se nas favelas, um estado de exceção; uma zona
incerta: terra de ninguém. Um estado de exceção que, segundo Giorgio
Agamben é aquele que “apresenta-se como a forma legal daquilo que não
215
Dominique Schnapper SCHNAPPER, Dominique. Os limites da expressão ‘empresa
cidadã’. In: A sociedade em busca de valores. Para fugir à alternativa entre o Cepticismo
e o dogmatismo. (Orgs.) Edgar Morin, Ilya Prigogine e outros autores. Lisboa: Piaget,
1996.
216
BIRMAN, Joel. Sociedade sitiada. In: Discursos Sediciosos, v. 14. RJ: ICC/Revan,
2004, p. 127.
109
pode ter forma legal“
217
.
Uma das conseqüências da exclusão socioeconômica brasileira
tem sido o aumento desenfreado de violência. Seja por parte do estado;
seja por parte de seus governados. Ainda que, de fato, esta parcela
excluída não aja realmente com violência, a este segmento social é
sempre atribuído um potencial ameaçador. De uma forma muito perversa
acabam transformando-se no “lobo-mau” de toda violência. Ocorre que
Em geral, a figura do perigo se identifica sempre com esta
população pobre e miserável na representação dos cidadãos
prósperos do Rio de Janeiro. É esta população pobre, destituída
de tudo ou de quase tudo, que alimenta o medo das elites a
serem atacadas. Mesmo que esta população empobrecida não
seja necessariamente agressiva e ostensivamente violenta é ela
que é sempre identificada com a ameaça, o perigo, o medo e a
morte
218
.
Há sempre um pressuposto, ou se pode afirmar que permeia no
imaginário social até mesmo uma espécie de determinismo de que o
segmento populacional pobre e miserável não é apenas ameaça constante
para os grupos sociais prósperos, mas que também são considerados
criminosos em potencial, explicitando a perspectiva política de
criminalização dos “impuros” constituídos dos pobres e miseráveis, sendo
tal determinismo assumido ostensivamente pela sociedade brasileira.
Vale lembrar o que já advertido por Eduardo Galeano:
Também é perigoso ser pobre. Pode-se morrer executado. Há
mais de dois séculos atrás, perguntava-se Thomas Paine: “por
que será tão raro o enforcamento de alguém que não seja pobre”?
A pergunta permanece, embora a forca tenha sido substituída
pela injeção letal. No Texas, citemos um caso, a pobreza dos que
217
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 12.
218
BIRMAN, 2004, p. 132.
110
a cada ano marcham para a morte não está só nas estatísticas. A
ausência de ricos no patíbulo se revela até na última cena:
ninguém escolhe lagosta ou filé mignon, embora estes pratos
estejam no menu de despedida. Os condenados preferem dizer
adeus ao mundo comendo hambúrgueres com batatas fritas,
como de hábito fazem
219
.
Aparentemente esse estado de coisas por muito há de
permanecer, pois a única política que, pelo visto, tem sobrado a esse
segmento social é a gestão de sua miséria através do sistema penal. Não
se vislumbra nenhuma vontade política na cena em pauta para alterá-lo.
Resta assim “o desespero dos dominados diante de uma ordem social que
é altamente injusta e que, além disso, não oferece qualquer viabilidade
política para subverter a sua própria injustiça”
220
.
Assim, está posto que o Estado Brasileiro não ofereceu
condições mínimas para construção da cidadania de um segmento
considerável da população brasileira . Segundo Joel Birman, “diante do
mal-estar e da violência social legítima que implodiu, provocada pelas
exclusões e marginalizações maciças das populações urbanas, a estratégia
do estado foi a da criminalização das sociedades desfavorecidas”
221
.
3.3 A invisibilidade e seus descaminhos
A cegueira de gente que não vê gente é
traumática, causa angústia.
A cegueira de gente que não vê gente
dispara humilhação.
A humilhação pode ser determinada como
cegueira pública,
219
GALEANO, 2004, p. 20.
220
BIRMAN, 2004, p. 125.
221
Ibidem, p. 141.
111
pode ser determinada segundo a experiência
de não aparecer como gente
estando no meio de gente.
O aparecer de um homem no meio de outros
homens, o aparecer de gente enquanto tal,
é um acontecimento intersubjetivo,
é um fenômeno psicossocial.
A subjetividade de cada homem solicitada
pela subjetividade de um outro humano.
(Fernando Braga da Costa - Homens
invisíveis: relatos de uma humilhação social)
Ao início deste trabalho, falou-se na importância do olhar do
outro na constituição do sujeito, pois, a “visage nos faz sofrer a presença
da alteridade
222
, e é “Quando se abrem os olhos, é dom da visão alargada
também comover, mobilizar”
223
. Entretanto, aqui, falar-se-á da dor e
humilhação decorrentes da ausência de um olhar.
O processo identificatório se constrói com os sinais de pertinência
e reconhecimento que o olhar do outro nos oferece.
Sobre a importância do olhar do outro na formação da identidade,
vale registrar o que fora escrito por Luiz Eduardo Soares:
Há mais um aspecto extremamente interessante: ninguém cria
sozinho ou escolhe para si uma identidade como se tirasse uma
camisa do varal. Não é algo que se vista e leve para casa. Não se
porta ou carrega uma identidade, como se faria com uma carteira,
um vestido ou um terno. A identidade só existe no espelho e esse
espelho é o olhar dos outros, é o reconhecimento dos outros. É a
generosidade do olhar do outro que nos devolve nossa própria
imagem ungida de valor, envolvida pela aura da significação
humana, da qual a única prova é o reconhecimento alheio. Nós
nada somos e valemos nada se não contarmos com o olhar alheio
acolhedor, se não formos vistos, se o olhar do outro não nos
recolher e salvar da invisibilidade – invisibilidade que nos anula e
que é sinônimo, portanto, de solidão e incomunicabilidade, falta de
sentido e valor.
224
222
CARVALHO, S., 2005, p. 323.
223
José Moura Gonçalves Filho. In: COSTA, Fernando Braga da. Homens invisíveis:
relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo, 2004, p. 13.
224
ATHAYDE; MV Bill; SOARES, 2005, p. 206.
112
Por isso, não há como falar da questão da identidade, ignorando-
se o pertencimento, pois, “sendo a identidade uma experiência da relação,
que se dá na esfera da intersubjetividade, dos símbolos, das linguagens,
da cultura, ela é sempre uma experiência histórica e cultural”
225
.
Diz Fernando Braga da Costa que “a invisibilidade pública,
desaparecimento intersubjetivo de um homem no meio de outros homens,
é expressão pontiaguda de dois fenômenos psicossociais que assumem
caráter crônico nas sociedades capitalistas”
226
, quais sejam: a humilhação
social
227
e a reificação
228
.
Esse processo de reificação, segundo o supracitado autor, tem
uma relação direta com a invisibilidade, pois, “o que brota da percepção de
não aparecer para os outros é a sensação de existirmos como coisa, um
esvaziamento. Passamos a contar como se fôssemos um item
225
ATHAYDE; MV Bill; SOARES, 2005, p. 207.
226
COSTA, 2004, p. 63.
227
Segundo o mesmo autor, “A humilhação social apresenta-se como um fenômeno
histórico, construído e reconstruído ao longo de muitos séculos, e determinante do
cotidiano dos indivíduos das classes pobres. É expressão da desigualdade política,
indicando exclusão intersubjetiva de uma classe inteira de homens do âmbito público da
iniciativa e da palavra, do âmbito da ação fundadora e do diálogo, do governo da cidade
e do governo do trabalho. Constitui, assim, um problema político.
A exclusão política fabrica sintomas, infestando o afeto, o raciocínio, a ação e o corpo do
homem humilhado. Assume poder nefasto: ao mesmo tempo em que molda a
subjetividade do indivíduo pobre, caracterizando-o muitas vezes como um ser que não
pode criar mas que deve repetir, esvazia-o das condições que lhe possibilitariam
transcender uma compreensão imediata e estática da realidade.” COSTA, 2004, p. 63.
228
Já, “reificação é o processo histórico de longa duração através do qual as sociedades
modernas fundaram seus alicerces sob o princípio das determinações mercantis. Os
mecanismos mercantis tornaram-se, entre nós, destacados e hegemônicos. Destacados:
emanciparam-se de todas as esferas da vida social, concretas e qualitativas – a esfera
política, a esfera cultural, as esferas estética, ética e religiosa. Hegemônicos: isolados,
passaram a regular extrinsecamente todas essas esferas. Desse modo, a reificação
configura-se como processo pelo qual, nas sociedades industriais, o valor (do que quer
que seja: pessoas, relações inter-humanas, objetos, instituições) vem apresentar-se à
consciência dos homens como valor sobretudo econômico, valor de troca: tudo passa a
contar, primariamente, como mercadoria.” COSTA, 2004, p. 63-64.
113
paisagístico”
229
. Algo como “um poste, uma árvore, uma placa de
sinalização de trânsito, um orelhão, uma pessoa em uniforme de gari na
esfera social: todos parecem valer a mesma coisa”
230
.
A invisibilidade, diz Luiz Eduardo Soares, “é uma carreira que
começa cedo, em casa, pela experiência da rejeição, e se adensa, aos
poucos, sob o acúmulo de manifestações sucessivas de abandono,
desprezo e indiferença, culminando na estigmatização”.
231
Voltando à
realidade socioeconômica brasileira, por conta da exclusão social, da
projeção de preconceitos, estigmas, perambulam invisíveis pelas ruas e
guetos das cidades um grande segmento social e, como já tratado ao
início deste trabalho, inicia-se aí a carreira criminal de muitos, pois,
segundo Luiz Eduardo Soares, a sociedade somente vê essas pessoas Na
esquina, apontando-nos uma arma, [...] O sujeito que não era visto,
impõe-se a nós. Exige que o tratemos como sujeito”
232
, pois desse olhar do
Outro, depende sua existência, depende que de alguma forma seja um
sujeito desejante. Segundo ainda o mesmo autor, esse sujeito que era
invisível “recupera visibilidade, recompõe-se como sujeito, se afirma e
reconstrói. Põe-se em marcha um movimento de formação de si, de
autocriação”
233
.
Dessa forma, “se havia dívida (fala-se tanto na grande dívida
229
COSTA, 2004, p.116.
230
Ibidem, p.116.
231
ATHAYDE, Celso; MV Bill; SOARES, Luiz Eduardo. Cabeça de Porco. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2005 ATHAYDE; MV Bill; SOARES, 2005, p. 208.
232
ATHAYDE; MV Bill; SOARES, 2005, p. 215.
233
Ibidem, p. 215 e 216.
114
social), eis aí a fatura.” de toda exclusão social.
234
3.4 Construindo estereótipos, estigmas e etiquetas
Falou-se anteriormente acerca de toda dor produzida por um
não olhar: a invisibilidade. Que esse não olhar traduz-se numa forma de
inexistência.
A seguir, fala-se de um olhar, contudo perverso, porque
negativo. Um mirar não alavancador, mas, destruidor. Pode-se dizer que
tal olhar equivale à invisibilidade, à ausência de qualquer olhar, pois, tão
perverso e maléfico na formação da identidade do sujeito, quanto a
invisibilidade acima tratada.
Para os interacionistas, segundo Jorge de Figueiredo Dias e
Manuel da Costa Andrade, a identidade do sujeito, não é um “dado em si”
(qualidades negativas e positivas inerentes), mas, uma estrutura que se
forma pela intersecção de fatores endógenos e exógenos, “algo que se vai
adquirindo e modelando ao longo do processo de interação entre o sujeito
e os outros”.
235
Nesse processo de interação e construção de identidades,
236
234
ATHAYDE; MV Bill; SOARES, 2005, p. 215.
235
DIAS; ANDRADE, 1992, p. 50.
236
Importante análise de Ruth Gauer no processo de formação da identidade: “Uma
segunda forma de ver a identidade pode ser analisada através das descrições
sociológicas a respeito do individuo moderno. Encontramos um modelo significativo na
obra dos interacionistas simbólicos e, entre eles, Goffman
236
. O modelo interativo
elaborou uma minuciosa anatomia do processo de reciprocidade que se dá entre o
“interior” e o “exterior”, entre o sujeito e seu entorno. Constitui-se em um produto
intelectual próprio da primeira metade do século atual. A individualidade foi colocada em
termos de identidades culturais, e estas, por outro lado, freqüentemente foram situadas
sob a forma de identidades nacionais. Basta recordar, para isto, os numerosos estudos
115
os estigmas, positivos e negativos são de fundamental importância na
constituição do sujeito.
Na constituição do sujeito, “as identidades social e pessoal são
parte, antes de mais nada, dos interesses e definições de outras pessoas
em relação ao indivíduo cuja identidade esta em questão”
237
, ou seja, o
sujeito é constituído do encontro do Outro com o outro.
Aqui, impende ressaltar que os estigmas de que se irão falar,
são os negativos, decorrentes de um encontro do mau olhar do outro com
o Outro. Aqueles estigmas que, segundo Goffman, são marcas ou
impressão que desde os gregos eram empregadas
como indicativo de uma degenerescência: os estigmas do mal, da
loucura, da doença. Na Antiguidade Clássica, através do estigma
procurava-se tornar visível qualquer coisa de extraordinário, mau,
sobre o status de quem o apresentasse. O estigma ‘avisava’ a
existência de um escravo, de um criminoso, de uma pessoa cujo
contato deveria ser evitado.
238
Os estigmas, aqui serão analisados sob uma ótica criminal, quais
sejam, aqueles que se traduzem em marcas negativas impingidas sobre o
sujeito, as quais dificilmente a sociedade irá deixar de enxergar.
Transformam-se os estigmas em etiquetas e rótulos que o indivíduo
sobre caráter nacional. Uma das formas possíveis (e simultâneas) de autodefinição dos
indivíduos será como sendo brasileiros, argentinos, ingleses etc. Estas identidades não
estão, certamente, impressas em nossos genes. Obviamente, ao nos definirmos como
tais, estamos usando de uma metáfora plena de múltiplos significados. Ao mesmo
tempo, a idéia de homem sem identidade nacional parece criar uma tensão, um
sentimento de indefinição em virtude da ausência de um referencial básico. O autor
define o eu como sendo o efeito dramático.” Em seu artigo intitulado Interrogando o
limite entre historicidade e identidade
116
carregará por quase todo o sempre.
A partir daí, criam-se os estereótipos, idéias ou convicções
classificatórias pré-concebidas sobre alguém, resultantes de expectativas,
hábitos de julgamentos ou falsas generalizações,
239
240
ou, ainda, segundo a
definição de Feest e Blankenburg, “sistemas de representações,
parcialmente inconscientes e grandemente contraditórias entre si, que
orientam as pessoas na sua actividade quotidiana”
241
. Esses sistemas de
representações formam-se através das audiências sociais a que estão
submetidas as pessoas que cometem crimes
242
, pois, de acordo com
Howard Becker,
Tratar uma pessoa como se ela fosse desviante em geral, e não
especificamente, produz uma profecia que se auto-realiza. Ela
coloca em movimento vários mecanismos que conspiram para
239
HOUAISS; VILLAR; FRANCO, 2001, p. 1252.
240
“Para ser rotulada de criminosa, uma pessoa precisa somente cometer uma infração
criminosa, e isso é tudo a que o termo formalmente se refere. Entretanto, a palavra traz
várias conotações que especificam traços auxiliares característicos de qualquer portador
do rótulo. Presume-se que um homem que tenha sido condenado como arrombador e,
portanto, rotulado como criminoso é provavelmente uma pessoa que arrombará outras
casas; a polícia, ao prender infratores conhecidos para investigação, após um crime haver
sido cometido, opera com base nessa premissa. Além disso, considera-se que ele
provavelmente cometeu outros tipos de crimes também, porque mostrou ser uma pessoa
sem ‘respeito pela lei” (BECKER, 1971, p. 40). “Ou seja, eles não podem supor que essas
pessoas realmente cometeram um ato desviante ou quebraram alguma regra, porque o
processo de rotular pode não ser infalível; algumas pessoas que na verdade não
quebraram uma regra podem ser rotuladas de desviantes” (Ibidem, p. 20).
241
DIAS; ANDRADE, 1992, p. 348.
242
Importante observação de Sérgio Salomão Shecaira, ao dizer que: “A explicação
interacionista caracteriza-se, assim, por incidir quase exclusivamente sobre a chamada
delinqüência secundária, isto é, a delinqüência que resulta do processo causal
desencadeado pela estigmatização. A pessoa que tem um estigma particular, conforme
menciona Goffman, tende a passar pelas mesmas experiências de aprendizagem social
relativas à sua condição e pelas mesmas modificações em sua concepção do “eu”- uma
carreira moral similar que é, ao mesmo tempo, causa e efeito do compromisso com uma
seqüência de ajustamentos pessoais. Na realidade, a experiência imaginada por este
paradigma não se propôs a estudar especificamente o problema etiológico da
criminalidade – ainda que dele não tenha se esquecido - , mas, no dizer de Becker, a
“alargar a área tomada em consideração”, introduzindo “nos cálculos dos estudiosos
novas fontes de variabilidade.” Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004p.
290-291.
117
moldar o indivíduo segundo a imagem que as pessoas têm dele.
Em primeiro lugar, uma pessoa tende a ser excluída, depois de
identificada como desviante, da participação em grupos mais
convencionais, mesmo que as conseqüências específicas da
atividade desviante particular não pudesse nunca, por si próprias,
ter causado o isolamento, não fosse o conhecimento e a reação
públicos a ela.
243
Com toda a restrição de contatos a que acaba sendo submetida,
a pessoa considerada como delinqüente - principalmente quando
segregada – fica estigmatizada como tal e ajuda a conservar estereótipos
antagônicos, pois “desenvolvem-se dois mundos sociais e culturais
diferentes que caminham juntos com pontos de contato oficial, mas com
pouca interpenetração”
244
.
Como já dito antes em capítulo anterior, uma conduta não é
criminal “em si” e nem seu autor portador de uma identidade criminal “em
si”, como queriam os positivistas, mas, a criminalidade se revela como um
status atribuído a alguns indivíduos mediante um duplo processo: a
definição legal do que vem a ser crime e, a seleção que rotula, estigmatiza
e etiqueta o indivíduo como criminoso, dentre todos aqueles que
praticarem tais condutas.
Por conta desta prática, há muito é conhecida a seleção
criminalizante pela vulnerabilidade, de acordo com estereótipos que
recaem sobre a criminalidade mais tosca, grosseira, praticadas por
segmentos sociais subalternos, menos aparelhados para o cometimento de
condutas mais sofisticadas ou de mais difícil captação pelo sistema penal.
243
BECKER, 1971, p. 41.
244
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 6. ed. Trad. Dante Moreira de
Leite. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 20.
118
Pode-se dizer assim que a grande maioria dos arrebanhados pelo sistema
penal o são, não tanto pelo conteúdo injusto do fato praticado, mas pelas
características estereotípicas que tal segmento social carrega consigo.
Cabe aqui falar que esse processo de seleção em razão do
estereótipo, dos estigmas e das etiquetas traduz-se numa das maiores
formas de violência institucionalizada, pois, segundo Ruth Gauer, pois, ao
pretexto de combater a violência, “somente a violência dos fracos, [...] é
punida concretamente, sentida por ele na carne ou no espírito (ou no que
restou dele)”
245
, por isso esse olhar
246
de que se falou agora é perverso,
pois, longe de ser um olhar construtivo, traduz-se num olhar demeritório,
que (re)produz a delinqüência, pois, quando aplicado o etiquetamento com
sucesso, acaba por operar a (re)inclusão do indivíduo na sociedade como
será visto a seguir.
3.5 A reincidência como reação social ou reação ao olhar do
(O)outro: a profecia que se autocumpre
Para não ser trapo nem lixo;
Nem sombra, nem objeto, nada,
Ser esta besta danada.
Me arrasto, berro, me xingo.
Me mato, mato e me vingo.
245
GAUER, Ruth M. Chittó. Alguns aspectos da fenomenologia da violência. In: A
Fenomenologia da violência. Gabriel José Chittó Gauer e Ruth Maria Chittó Gauer (Orgs.).
Curitiba: Juruá, 1999, p. 17-18.
246
Importante aqui registrar a fala de Luiz Eduardo Soares ao equipar os efeitos
maléficos do estigma com os da invisibilidade: “O preconceito provoca invisibilidade na
medida em que projeta sobre a pessoa um estigma que a anula, a esmaga e a substitui
por uma imagem caricata, que nada tem a ver com ela, mas expressa bem as limitações
internas de quem projeta o preconceito. Por isso, seria possível dizer que o preconceito
fala mais de quem o enuncia ou projeta do que de quem o sofre, ainda que, por vezes,
sofrê-lo deixa marcas.” ATHAYDE; MV Bill; SOARES, 2005, p. 176.
119
Me vingo, me mato e mato.
(Chico Buarque e Paulo pontes _ A gota
d`água)
Ao longo do escrito foi falado acerca da seletividade de pessoas
pelo sistema penal, que cria estereótipos, estigmatiza, rotula e etiqueta.
Aqui, pretende-se agora tratar de um outro estágio, qual seja, o da
reincidência, em especial a reincidência real. Fala-se, aqui, de uma
“estigmatização com sucesso” em resposta ao olhar do (O)outro.
Isso porque, segundo Luiz Eduardo Soares, o olhar é passível de
ser educado, como os demais sentidos. Há uma interação entre quem vê e
quem é olhado e, “se o olhar transporta para a imagem daquilo que é
olhado um pouco da pessoa que olha, se o olhar transporta para a imagem
a relação entre o que vê e o que é visto, deduz-se que ver é relacionar-
se”
247
. E, prossegue dizendo que “não há pureza nem objetividade no
olhar.Nossa visão das coisas e das pessoas é carregada de expectativas e
sentimentos, valores e crenças, compromissos e culpas,desejos e
frustrações”
248
.
O recorte que será traçado é o de uma carreira criminal
249
,
247
ATHAYDE; MV Bill; SOARES, 2005, p. 173.
248
Ibidem, p. 173.
249
Essa carreira criminal foi muito bem retratada num poema inédito, denominado
“Aniversário”, de Lédio Rosa de Andrade:
Aniversário
Tenho poucos segundos, minutos, horas
Cai no mundo, já vindo de um submundo
Sai de uma fenda, quase sem vida, subvida
Sem saber o que era, ainda em formação, só tive decepção
Minha hospedeira era maltratada, passou fome e foi violada
Coisa estranha a sensação
O nascer e o se apartar
Proteção não tive, não
120
Lá dentro ou aqui fora
Só vivi más horas
Tenho alguns dias e não morri
Resisti, estou aqui com o coração a bater
Mas quem me fez e me pariu não resistiu
O outro lado, também responsável, me suportou
Mas não parou e eu estou em mãos alheias
A fraqueza me acompanhou
Vem comigo a todas partes
Levou-me à subnutrição
Pois tive fome e não acesso à alimentação
E acabei tendo diarréia, anemia, raquitismo e bócio, e não foi por ócio
Tenho cinco anos e meu pulmão se destacou
Chorou chorou sem mamadeira só com dedeira
Cedo conheci dor estranha em minhas entranhas
Faltava algo, um alimento ou um alento
Sem paciência quem me cuidava esbravejava
Foi então, sem opção, que decide algo fazer para viver
Fui para a rua, sob a lua, tentar sobreviver
Foi então que aprendi a pedi
Fui tomado de desespero ao ver meu chapéu vazio
Foi então que descobri o subtrair para nutrir
Tenho dez anos e há muito cuido de mim
Após andar e já pensar fui me sustentar, para não chorar
Sou pequeno, subnutrido, mas esperto, ligeiro e aguerrido
Sem cobertor, quase indolor, não paro diante da dor
Sempre dou um jeito, me adaptei e me aperfeiçoei
Certo dia, meio cansado, já fatigado, fui segurado
Homem fardado, pouco asseado, disse não estar pra brincadeira
E logo foi me aplicando uma medida corretiva
Sua grande mão me acertou com precisão e maestria
Muito tonto, abobalhado, fui levado a um juizado.
Duas moças me atenderem e me chamaram de querido
Não sabia o que se passava, mas comi e agradeci
Logo em seguida me levaram a um tal de magistrado
Então um doutor disse que iria me ajudar
Para isto me aplicou o que chamou de medida sócio-educativa
Como não tinha para onde ir, era um desgarrado, acabei internado
A lei chama de abrigo, uma forma de esperar um outro lar
Mas neste lugar tinha muita gente, grades e até correntes
A princípio me assustei e em princípio relutei
Mas logo me acalmei, pois pensei que iriam me amparar
Não conhecia o porvir e nova dor que estava por vir
Já estava acostumado e pensava tudo já ter experimentado
Dor de fome, dor de surra, de moléstia, medo e solidão
Mas desta vez foi diferente, foi por trás não pela frente
121
Foi alguém da instituição e o fez em nome da salvação
Machucado, assustado, revoltado, resolvi dali sair
Afinal a minha honra, tinha honra, foi aviltada
Para fugir não foi difícil, era destro, corajoso, esperto e habilidoso
Voltei para minha casa, grande casa, sem porta e sem janela, era toda a favela
Acolhido por ali, solidariedade sempre há, quinze anos fui festejar
Mas a vida continua, nua crua, e sempre a cobrar
Uma hora o que comer, outra o que vestir, tenho sempre que comprar
Mas emprego é ficção, a lei não se concretiza por aqui não
Sem opção, com apetite acelerado, celerado continuei
E assim era meu dia-a-dia, ganhava o pão e enfrentava o camburão
Não me lembro quantas vezes tentaram me reeducar
A cada internação, era a mesma sofridão
Violência institucional e maior que a marginal
Aprendi ali a responder à altura
Foi quando me tacharam de bandido perigoso
Então me avisaram que a hora estava chegando
Criança, adolescente, quase não era mais
Por dezoito anos comi eca, vive eca e na eca
E agora o ECA não mais me protegeria
Seria responsável criminal e a lei, que nunca veio como direito, agora ma faria um
homem direito
Outro descuido e lá fui eu para frente de novo doutor
Disse que me conhecia, leu minha vida pregressa, sem pressa
Não falou da fome, da miséria, do sofrimento e da dor que sempre me assolou
Apenas relatou os furtos realizados e o patrimônio alheio lesado
E com um sorriso interno me olhou e logo me condenou
Que saudade me deu do centro de internação
E isto já aconteceu no primeiro dia de prisão
Toda fama de bandido se tornou desilusão, virei carne fresca, um tesão
Agora estava diante até de organização e tudo girava em torno da corrupção
Foi quando percebi que minha vida passou em vão
Pensei em aceitar a tal reeducação
Não quis acordo com os guardas, muito menos com o chefão
Queria cumprir a pena para sair da solidão
Aprender uma profissão e tratar de trabalhar
Este foi o maior erro e não me apercebi
O crime organizado controla os dois lados
Ficar vivo depende de muita proteção
E sem ela não há qualquer reeducação
Não seguir as regras postas sequer é uma aposta
Busquei sobreviver, me cuidando a cada passo
Mas em uma instituição total, ninguém é o tal
Reclamei, alertei, o Diretor Geral
Ia se passar algo muito brutal
Minha vida não valia mais nem um real
122
decorrente da interação e da auto-imagem que provocam “a conformação
às expectativas estereotipadas da sociedade, a auto-representação como
delinqüente”
250
.
Conforme já falado antes em seção anterior, a invisibilidade pode
equivaler-se à estigmatização, pois “uma das formas mais eficientes de
tornar alguém invisível é projetar sobre ele ou ela um estigma, um
preconceito”
251
. Isso porque ”o estigma dissolve a identidade do outro e a
substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos”
252
.
Trazendo a questão ao sistema carcerário, em específico ao
cumprimento de uma pena de prisão, Alessandro Baratta escreve que
Se os efeitos diretos ou indiretos da condenação têm, geralmente,
uma função marginalizadora, ainda mais decididamente
prejudiciais aos fins de reinserção, que a nova legislação persegue,
são os efeitos da execução das penas (ou das medidas de
segurança) detentivas sobre a vida do condenado.
253
Isso ocorre porque as instituições totais, oficialmente afirmam e
passam para o mundo extramuros “sua preocupação com a reabilitação,
isto é, com o restabelecimento dos mecanismos auto-reguladores do
internado, de forma que, depois de sair, manterá, espontaneamente, os
Ninguém me ouviu e tudo acabou em uma noite sepulcral
Esta é a estória de um menino, mil, milhões deste Brasil
Sonegados de direitos, são pegos pelo direito
Aumenta a violência social e se responde com mais violência institucional
E esta é nossa história, somos todos responsáveis
E assim será enquanto não estivermos dispostos a mudar
250
DIAS; ANDRADE, 1992, p. 353.
251
ATHAYDE; MV Bill; SOARES, 2005, p. 175.
252
Ibidem, p. 175.
253
BARATTA, 1999, p. 182.
123
padrões do estabelecimento”
254
.
Contudo, apesar de que, na maioria das vezes, as instituições
totais “se apresentam ao público como organizações racionais,
conscientemente planejadas como máquinas eficientes para atingir
determinadas finalidades oficialmente confessadas e aprovadas”
255
, o que
vem a ocorrer quase sempre é que funcionam apenas como depósitos de
internados.
Especialmente em relação ao cárcere, importante registrar que,
segundo Vera Regina Pereira de Andrade,
O fracasso das funções declaradas da pena abriga, portanto, a
história de um sucesso correlato: o das funções reais da prisão
que, opostas às declaradas, explicam sua sobrevivência e
permitem compreender o insucesso que acompanha todas as
tentativas reformistas de fazer do sistema carcerário um sistema
de reinserção social.
256
Quando a segregação do indivíduo é muito longa, e caso ele voltar
para o mundo exterior, geralmente ocorre o que já foi denominado
‘desculturamento’ ou ‘destreinamento’, tornando-o temporiamente incapaz
de enfrentar alguns aspectos de sua vida diária
257
.
Depois das diversas espécies de violências sofridas dentro do
cárcere, uma outra está por vir ao indivíduo, qual seja o olhar que lhe será
lançado pelo mundo lá fora e as dificuldades de enfrentar novamente a
vida com o novo “Eu”, despersonificado e mortificado. Soma-se a isso,
254
BARATTA, 1999, p. 67.
255
Ibidem, p. 70.
256
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da
violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 291-
292.
257
GOFFMAN, 1999, p. 68-69.
124
ainda, o estigma de um indivíduo que adquire um status negativo em
decorrência de ter tornado-se um presidiário. Cria-se um estereótipo e,
provavelmente, este se transformará em um dos momentos mais difíceis
de seu retorno, em razão da sociedade meritocrática em que se vive. O
sujeito passa a se sentir envergonhado de sua condição, assumindo e
introjetando a figura de culpado.
Louk Hulsman refere que
o sentimento de culpa interior que às vezes se invoca para
justificar o sistema penal – o autor de um crime teria necessidade
do castigo – nada tem a ver com a existência de tal sistema. [...]
Ao contrário, é preciso denunciar as culpabilizações artificiais que
este sistema produz. Em inúmeros casos, a experiência do
processo e do encarceramento produz nos condenados um estigma
que pode se tornar profundo. Há estudos científicos sérios e
reiterados, mostrando que as definições legais e a rejeição social
por elas produzida podem determinar a percepção do eu como
realmente “desviante” e, assim, levar algumas pessoas a viver
conforme esta imagem, marginalmente.
Nos vemos de novo diante da constatação de que o sistema penal
cria o delinqüente, mas, agora, num nível muito mais inquietante e
grave: o nível da interiorização pela pessoa atingida do
etiquetamento legal e social.
258
Essa mortificação e despersonificação acabam por ter uma
função dessocializadora, já que a construção da nova imagem, realizada
dentro de uma instituição total, não prepara o indivíduo para enfrentar o
mundo externo, ao contrário, ele aprende a conviver de forma isolada,
inferioriorizada e degradante. Sente-se realmente culpado, pois, ao longo
de todo o processo, com todas as cerimônias e situações humilhantes a
que é submetido, acaba por introjetar a culpa.
258
HULSMAN; CELIS, 1997, p. 69.
125
Essa despersonificação ou “mutilação do eu tendem a incluir
aguda tensão psicológica para o indivíduo, mas para um indivíduo
desiludido do mundo ou com sentimento de culpa, a mortificação pode
provocar alívio psicológico”
259
. Isso porque os presos e a equipe dirigente
de uma prisão, na forma com que os primeiros se submetem e a segunda
atua, “ativamente buscam essas reduções do eu de forma que a
mortificação seja completada pela automortificação, as restrições pela
renúncia, as pancadas pela autoflagelação, a inquisição pela confissão”
260
.
É que, com raríssimas exceções, dificilmente essas
conseqüências não recairão sobre o indivíduo, visto que as instituições
totais “são estufas para mudar pessoas; cada uma é experimento natural
sobre o que se pode fazer ao eu”
261
.
Os efeitos dessocializantes, estigmatizantes
262
e estereotipantes,
decorrentes do processo de prisonização com sucesso, desorganizam de tal
forma a personalidade do indivíduo que dificilmente conseguirá ter um
retorno e reinserção tranqüilos à sociedade livre, caso a ela retorne.
Assim, prossegue-se na carreira criminal, reincidindo, isso,
porque a desviação secundária(reincidência) viria a ocorrer como uma
forma de resposta do indivíduo ao modo como a sociedade o vê, ou seja,
259
GOFFMAN, 1999, p. 49.
260
Ibidem, p. 48.
261
GOFFMAN, 1999, p. 22.
262
Nota da autora: Importante ressaltar que esse estigma, esse estereótipo vai além da
pessoa do condenado, atingindo também toda a sua família, cujos membros passam
comumente a ser referidos como “a mulher do preso”, “o filho do preso”, “a mãe do
preso”. Pode-se assim dizer que os efeitos criminógenos da pena ultrapassam a pessoa a
quem ela é aplicada, derrubando a máxima de que “a pena não passa da pessoa que
comete o crime”.
126
consiste numa resposta ao olhar estereotipante e estigmatizante que a
sociedade lança sobre ele. O detento, por sua vez, acaba introjetando os
estereótipos e estigmas e adequando seu comportamento à expectativa
que a sociedade formulou sobre ele, qual seja a de que é um indivíduo
criminoso e como tal vai se portar.
Jorge Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade dizem que a
reincidência
Trata-se fundamentalmente de problemas sociais provocados pela
estigmatização, punição, segregação e controlo social, factos que
têm o efeito comum de diferenciar o ambiente simbólico e
interaccional a que uma pessoa responde, comprometendo
drasticamente a sua socialização. Tais factos convertem-se em
eventos centrais na existência de quem os experimenta, alterando
a sua estrutura psíquica, criando uma organização especial de
papéis sociais e de atitudes para consigo.
263
Fala-se de uma estigmatização aplicada (negativamente) com
sucesso. Uma profecia-que-a-si-mesmo-se-cumpre, somando-se, ainda, à
falta de oportunidades legítimas a serem oferecidas pelo sistema social.
Aliás, segundo Vera Regina Pereira de Andrade,
está demonstrado, neste sentido, que a intervenção penal
estigmatizante (como a prisão) ao invés de reduzir a criminalidade
ressocializando o condenado produz efeitos contrários a uma tal
ressocialização, isto é, a consolidação de verdadeiras carreiras
criminosas cunhadas pelo conceito de ‘desvio secundário’.
Num sentido mais profundo, contudo, a crítica indica que a prisão
não pode ‘reduzir’ precisamente porque sua função real é ‘fabricar’
a criminalidade e condicionar a reincidência.
264
Destaca-se aí o que há de mais perverso no sistema criminal no
qual o indivíduo é inserido, ou seja, a introjeção da figura do delinqüente.
263
DIAS; ANDRADE, 1992, p. 350.
264
ANDRADE, V., 1997, p. 291.
127
É que ele próprio, após processos de mortificação e despersonificação de
seu “Eu”, passa a se ver como delinqüente, a partir da construção de sua
nova auto-imagem e, assim, acaba reagindo do modo como o “outro”
espera, ou seja, assimila, introjeta e assume a figura do delinqüente,
dando uma resposta às audiências sociais, por isso é uma profecia que a si
mesmo se cumpre.
265
266
Malgrado todas essas conseqüências extra legais, advindas em
razão da (re)inclusão do indivíduo no sistema penal, o sistema legal ainda
se encarrega de trazer sérias conseqüências e prejuízos legalmente
instrumentalizados através do instituto da reincidência.
265
A respeito, escreve Howard S. Becker: Tratar uma pessoa – como se ela não fosse,
afinal, mais do que um delinqüente, tem o efeito de uma profecia-que-a-si-mesma-se-
cumpre. Põe em movimento um conjunto de mecanismos que compelem a pessoa a
conformar-se e a corresponder à imagem que o público tem dela. Quando o desviante é
apanhado, é tratado de harmonia como diagnóstico vulgar. E é o tratamento que
provavelmente provocará um aumento da delinqüência. Apud DIAS; ANDRADE, 1992, p.
352.
266
Assim, lançar sobre uma pessoa um estigma, equivale a acusá-la pelo simples fato de
ela existir. Antever seu comportamento, suas ações, tendem a justificar adoções de
atitudes preventivas. “Como aquilo que se vê é ameaçador, a defesa antecipada será a
agressão ou a fuga, também hostil. Quer dizer, o preconceito arma o medo que dispara a
violência, preventivamente. Essa é a caprichosa incongruência do estigma, que acaba
funcionando como uma forma de ocultá-lo da consciência crítica de quem o pratica: a
interpretação que suscita será sempre comprovada pela prática não por estar certa, mas
por promover o resultado temido.” ATHAYDE; MV Bill; SOARES, 2005, p. 175.
CONCLUSÃO
Diante de tudo que fora exposto neste trabalho, algumas
conclusões podem ser lançadas.
Ao abordar-se a gramática da exclusão do direito aos direitos de
cidadania e ações concretas para sua consolidação e concretização,
insertos na Constituição Federal brasileira, percebe-se que apesar de todo
crescimento e de todos avanços econômicos e tecnológicos, o Brasil tem se
mostrado incapaz de oferecer um mínimo de igualdade de oportunidades a
seus cidadãos.
A última pesquisa realizada pelo IBGE, à luz da realidade
socioeconômica do país, mostrou que a nação ficou mais rica, contudo,
mais desigual. O Estado brasileiro tem se mostrado ineficiente na
concretização dos direitos básicos de cidadania prometidos em nossa
Carta, contrariando o neófito princípio da eficiência nela inserido.
O Brasil tem se desdobrado em dois Brasis: um Estado do Bem-
Estar Social para uma minoria rica e um Estado do Mal-Estar Social para a
maioria representada pelos miseráveis de todo gênero que habitam a
129
nação.
Constata-se, cada vez mais que a cidadania está assegurada
somente no papel. A regra se afirma na consolidação da exclusão social.
O cidadão é excluído do sistema social e, quando porventura
recebe uma inclusão, a recebe como se favor fosse e, ainda uma inclusão
perversa, pois, o inclui estigmatizadamente sob o rótulo de “excluído”. É
perversa porque além do Estado se omitir em efetivar suas
responsabilidades sociais para com o cidadão, ele a transfere para o
indivíduo – a responsabilidade que era social, passa a ser individual –
fazendo-o responsável pelo seu próprio fracasso. E esse sentimento de
derrota pessoal, de “alguém que não deu certo”, que não conseguiu
ascender socialmente (além de toda privação econômica que sofre), faz do
cidadão um indivíduo envergonhado perante os demais “que deram certo”.
Ao analisar-se a prática dos delitos contra o patrimônio, que se
traduzem no grosso da criminalidade, praticada por pessoas pobres, ou
muito pobres, segundo dados oficiais, verifica-se que há também uma
outra inclusão, mais perversa ainda, qual seja, a inclusão no sistema
penal. A prática dos delitos contra o patrimônio tem aumentado tão
assustadoramente quanto a miséria e, cada vez mais há um clamor social
para satanização do excluído. Clama-se por sua inclusão, entretanto não
na sociedade, mas, sim, no sistema penal.
Todavia, não há mais como justificar um Estado penal máximo,
diante da existência de um Estado social mínimo. O Estado apresenta uma
130
co-culpabilidade na prática dos delitos contra o patrimônio na medida em
que os desviantes deste tipo de delito são, na sua grande maioria, os
excluídos dos sistemas de produção, cuja exclusão é gerada pelo próprio
Estado que a cada vez mais tem perpetuado a desigualdade na distribuição
das riquezas materiais e culturais.
Aparece uma nação que ao invés de travar uma luta contra a
miséria, desigualdade e exclusão sociais, cada vez mais tem criado tipos
penais para a inclusão dos excluídos. Um sistema penal que cria e reforça
as desigualdades sociais.
Com fundamento no labeling approach, constata-se a
seletividade do sistema de controle penal. Um sistema penal seletivo.
Seletivo na escolha das pessoas a quem pretende apanhar, via eleição dos
fatos que vai selecionar para criar tipos penais. Um direito penal criado e
aplicado diferenciadamente entre as pessoas, seja, na elaboração das leis,
ou, ainda, em última instância através da exegese.
O sistema penal tem se mostrado muito eficiente em incluir,
perversamente, os excluídos do sistema social, no sistema carcerário que
tem se apresentado como uma das maiores tragédias do século, posto que
além de não atingir os objetivos declarados na fala oficial (reeducação,
ressocialização e reinserção), tem se mostrado como um verdadeiro
(re)produtor da criminalidade através dos efeitos pauperizantes,
estigmatizantes e estereotipantes gerados pelo sistema carcerário.
Essa (re)produção da criminalidade é gerada, em especial pela
pena de prisão, pois, o cárcere, como instituição total que é, e por incapaz
131
de cumprir a promessa oficial citada, se dá em decorrência das
conseqüências e reflexos que recaem sobre o indivíduo durante a sua
estada, como a despersonificação do “Eu”, a introjeção da culpa, a
desviação como resposta ao olhar do “Outro”. Um olhar lançado de forma
estereotipada e estigmatizada, responsável quase sempre pelo não
oferecimento de oportunidades legítimas, levando o indivíduo já fora
segregado, a desviar novamente.
Após a saída do cárcere, verifica-se, novamente, uma exclusão
dos direitos ao direito de cidadania e a conseqüente (re)inclusão, perversa,
do cidadão, porém, no sistema penal.
Ainda, sem se considerar os efeitos criminógenos do sistema
penal que rotula o indivíduo nele inserido como delinqüente, distribuindo-
lhe etiquetas e rotulando-o como tal. Expropriando seu “Eu” e conferindo-
lhe uma outra personalidade estereotipada, que faz com que ele reaja de
acordo com esse olhar do outro, cumprindo um papel que lhe é conferido,
o indivíduo incluído no sistema penal, quando (re)incluído, além dos efeitos
perversos extralegais, sofre sérios efeitos legais.
Um desses malefícios legais é instrumentalizado pelo instituto da
reincidência, que busca nas funções da pena (prevenção geral, prevenção
especial, retribuição, reeducação e ressocialização) a justificação para sua
manutenção, - colocando o indivíduo como ser perigoso e indisciplinado
frente ao Estado - como se as funções declaradas da pena fossem
atingidas.
Contudo, em cotejo com o instituto da reincidência pode-se dizer
132
que, a pena, quando aplicada, não previne, não reeduca, não ressocializa,
restando tão-somente a função retributiva e, uma retribuição
desproporcionada.
Há que se travar uma luta não contra os criminosos, excluindo-
os do seio social, mas sim, pela construção de um Estado Social máximo
que, gerará, com certeza, a necessidade de um Estado Penal Mínimo e,
paralelamente pensar-se em construir um novo olhar do “Outro” para que
como Walt Whitman consiga-se fitar os réus, à margem da lei, com olhar
de parentesco.
Afinal: o Estado serve para promover o Bem-Estar Social ou
para encarcerar e reencarcerar os excluídos de seu próprio sistema?
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