Download PDF
ads:
1
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Ciências Jurídicas
Programa de Pós-Graduação em Direito
Nível Mestrado
Munira Hanna
As Propriedades como Forma Concretizadora de um
(Re)Pensar da Propriedade
São Leopoldo
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
Munira Hanna
As Propriedades como Forma Concretizadora de um
(Re)Pensar da Propriedade
Monografia apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos, como requisito
parcial para a obtenção de título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Darci Guimarães Ribeiro
São Leopoldo
2006
ads:
3
Dedico este trabalho, in
memoriam, a meu pai que me
estimulou a entrar no mundo
jurídico.
4
Agradecimentos
Ao encerrar esta etapa de estudos e
pesquisas com a concretização da elaboração do presente
trabalho, não poderia deixar de agradecer a todos que, de uma
forma ou de outra, contribuíram para sua realização.
Em especial, agradeço aos Coordenadores
do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, Dr.
LEONEL SEVERO ROCHA e Dr. LENIO LUIZ STRECK que
me incentivaram, por meio de atos concretos, a chegar a este
momento significativo de entrada no mundo da pesquisa.
Agradeço, com especial referência, ao meu
orientador, Dr. DARCI GUIMARÃES RIBEIRO, pela
oportunidade de compartilhar com o seu saber e por fazer
acreditar na possibilidade de concretizar a meta a que nos
propomos.
Aos meus familiares agradeço pela
compreensão nas ausências decorrentes das horas de
estudos.
5
RESUMO
É a partir de uma visão histórica e doutrinária que evolui para a atualidade
que o trabalho mostra a mudança do conceito de propriedade do singular para o
plural, e as principais modificações que ocorreram com a repersonalização do direito
privado e a exteriorização da função social da propriedade. No estudo dos filósofos
Thomas Hobbes, John Locke e Immanuel Kant e na análise crítica de diversos
doutrinadores, buscamos as noções sobre aquisição da propriedade e o despertar
do interesse coletivo e social. Paralelamente, procedemos à abordagem sobre os
problemas urbanos de moradia no Brasil, com enfoque personalista da propriedade
em busca da conscientização e solução para os problemas de moradia, a fim de
assegurar a todas as pessoas o direito de ter um lugar adequado e digno para viver.
A problemática continua em aberto, com a necessidade de buscar soluções para a
questão da moradia e de assegurar a todas as pessoas o direito de serem
proprietárias.
Palavras-chaves: Direito privado, propriedade, repersonalização, função social,
dignidade.
6
ABSTRACT
Rethinking the concept of property, from an evolution on the concept of
collectiveness rather than individuality, has lead us to a change of mentality in which
the individual, with his autonomy and dignity, arises and demands that the state
meets his fundamental needs. It is our intention to show the changes such concept
has undergone, and the main modifications that have taken place in relation to the
repersonalization of private law and the exteriorization of the social function of
property rights from a historical and doctrinal viewpoint to an updated one. We have
searched the core ideas in the studies conducted by philosophers such as Thomas
Hobbes, John Locke and Immanuel Kant, with emphasis on property acquisition,
collective and social interests as well as a critical analysis on the viewpoints of
several theorists. We have also studied urban housing problems from a personalist
viewpoint on property aiming at drawing people’s attention and searching for
solutions in order to make sure everyone has an adequate and dignifying place to
live in. Thus the problem remains unsolved, it is necessary to continue pursuing
solutions to assure everyone becomes a homeowner.
Key words: private law, property, repersonalization, social function of property rights,
dignity.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................8
1 HISTÓRICO DA CONFIGURAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE ............12
1.1 Renascimento do Direito Natural ................................................................28
1.2 Visão de Thomas Hobbes...........................................................................31
1.3 Concepções de John Locke........................................................................42
1.4 Os Limites da Propriedade..........................................................................50
1.5 A Propriedade a Partir de KANT .................................................................55
2 CRÍTICA À PROPRIEDADE PRIVADA INDIVIDUAL.........................................65
2.1 Teoria de Locke na Perspectiva de C.B. Macpherson ................................65
2.2 Concepção Aberta e Plural de Propriedade................................................75
2.2.1 Visão de GROSSI................................................................................75
2.2.2 Perspectiva de RODOTÁ.....................................................................99
2.3 A Função Social da Propriedade ..............................................................110
2.3.1 A função social da propriedade e o seu desenvolvimento legislativo 121
2.4 Repersonalização e Constitucionalização: Superação do Paradigma
Patrimonialista .....................................................................................................123
2.5 Conceito de “Pessoa” e a Noção de Constitucionalização........................127
3 A PROPRIEDADE URBANA RE-LIDA SOB A ÓTICA DO NOVO DIREITO DE
PROPRIEDADE ......................................................................................................140
3.1 Problemas Urbanos de Moradia no Brasil e a Proximidade do Enfoque
Personalista da Propriedade Urbana à Problemática da Moradia .......................140
3.2 Legislação Vigente no Brasil, a Partir dos Marcos Funcionalistas,
Personalista e Constitucionalizados, Tendo em Vista o Contexto Concreto
Apresentado pela Dinâmica das Cidades Brasileiras. .........................................151
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................158
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................164
8
INTRODUÇÃO
O direito de propriedade está a exigir um repensar do conceito de propriedade
na sociedade atual, ao recolocar o indivíduo, como ser coletivo, no centro dos
interesses e numa perspectiva de igualdade substancial. É na busca de um novo
direito de propriedade que nos reportaremos ao quadro histórico, em especial, ao
período medieval, para entender que não apenas uma propriedade singular, mas
diversas propriedades que decorrem da multiplicidade de estatutos. Destacamos, no
entanto, que não deixa de existir a individualidade dentro do contexto plural da
propriedade, pois no centro de todo interesse proprietário está a pessoa humana, o
que leva à repersonalização do Direito Privado.
A evolução do conceito de propriedade se fez necessária, em razão das
transformações que se operaram na complexa sociedade moderna, levando à
reconstrução, de forma realista, das mudanças de funções da propriedade privada.
Hoje, volta-se a colocar em destaque os atributos clássicos do direito de
propriedade, com tutela a interesses socialmente relevantes, garantindo a satisfação
das exigências e das necessidades essenciais do indivíduo. Busca-se, através das
técnicas de propriedade, afastar a exclusão social, transformando o discurso para
acessibilidade, ao assegurar ao indivíduo a satisfação de suas necessidades
essenciais, como a garantia ao trabalho, à moradia e a algumas prestações sociais.
9
É nesse contexto que passaremos a repensar a propriedade privada que
deixou de configurar um direito individual, subjetivo, para constituir uma situação
complexa, na qual estão presentes deveres e obrigações de caráter social.
Por isso, no aprofundamento deste repensar da propriedade, abordaremos
questões como o individual e o coletivo; o público e o privado; a repersonalização do
direito e, em especial, a função social da propriedade, a partir de noções propostas
pelos filósofos da modernidade. Nosso enfoque é a evolução do conceito de
propriedade do singular para o plural, com todas as inquietações que envolvem o
tema da propriedade.
O título do presente trabalho, “As Propriedades como Forma Concretizadora
de um Re(Pensar) da Propriedade”, sugere o enfoque que pretendemos dar à
propriedade, com interesse voltado ao coletivo, face às transformações que se
operaram no contexto da complexa sociedade em que vivemos. É um repensar do
conceito plural, com objetivo de concretizar os direitos fundamentais dos indivíduos.
A abordagem do tema será realizada, a partir do enfoque histórico, com
acento especial no período medieval, evoluindo para a atualidade, através de
fundamentos doutrinários que possibilitem a justificação do conceito de propriedade
singular para plural, as formas de aquisição de propriedade e as funções do Estado.
A proposta é analisar o tema em três capítulos. O primeiro sededicado ao
histórico da configuração do direito de propriedade, iniciando com o período
primitivo, em que se destacava a propriedade coletiva; os modelos de organização
da propriedade privada adotados pelos Romanos e Gregos; ênfase na distinção
entre posse e domínio; noções sobre o direito subjetivo, de usar, dispor e fruir do
bem; a propriedade individual e coletiva; a propriedade privada e a religião; a
evolução do conceito de propriedade. Nessa linha de investigação histórica da
propriedade, passaremos a dar uma visão do período medieval, período em que
ocorreram os primeiros esforços para a formulação de um direito objetivo; em que
encontramos as regras de direito público e privado; o surgimento de novas formas
inovadoras de propriedade; o desenvolvimento de cidades e vilas; a forma
individualista de propriedade; e, como traço de ordenação jurídica, focalizaremos a
inversão da relação homem-natureza, com novos valores impressos no mundo
10
jurídico. Veremos que o cânon construtivo da nova civilização são as coisas. É uma
civilização possessória que substitui a mentalidade proprietária romana; novas
definições e novas posturas abrem caminho para que o Direito se coloque no centro
do social. Na Idade Moderna, a propriedade passou a ser exaltada como um direito
fundamental, tendo como marco a Revolução Francesa. Destacaremos uma breve
visão do Direito Natural e um estudo particularizado de sua definição.
Como o tema da propriedade privada tem motivado discussões, a partir das
teorias dos filósofos clássicos, com temas ligados à posse e às ocupações de terras,
à necessidade de regularização de inúmeros lotes urbanos; procedimentos
adequados e céleres para a solução de litígios, passaremos a analisar o papel do
Estado frente à sociedade e à propriedade. Para tanto, serão abordadas as teorias
de Thomas Hobbes, John Locke e Immanuel Kant, dando ênfase à aquisição, limites
e à função social da propriedade.
No segundo capítulo, passaremos à crítica à propriedade privada individual,
através de uma concepção social e funcionalizada da propriedade, com análise de
Locke na tese de C.B. Macpherson; à concepção aberta e plural da propriedade em
Paolo Grossi e Stefan Rodotá, partindo das noções apresentadas por ambos à
concepção atual da função social da propriedade.
No contexto da complexa sociedade contemporânea, como forma de situar as
transformações que ocorreram no Direito Civil, passaremos à conceituação de
repersonalização e de constitucionalização do Direito Privado, numa superação do
paradigma patrimonialista e à análise do conceito de “pessoa”.
No terceiro capítulo, abordaremos a propriedade urbana relida sob a ótica do
novo direito de propriedade, destacando os problemas urbanos de moradia no Brasil
e a análise da proximidade do enfoque personalista da propriedade urbana à
problemática da moradia. Nesse, procuraremos enfatizar o direito que todas as
pessoas têm a um lugar adequado para viver, assegurando o direito a uma moradia
digna. Ao analisar a realidade social e o processo histórico, pretendemos buscar
soluções para o problema de moradia, com a valorização do ser humano, sujeito
com direito a uma vida digna e ao bem-estar. A partir dessa problemática,
11
passaremos a analisar a legislação vigente no Brasil, tendo por base os marcos
funcionalista, personalista e constitucionalizado.
A matéria é vastíssima e não pretendemos esgotá-la, pois apresenta muitos
enfoques que poderão ser desenvolvidos separadamente, comportando um estudo
mais pormenorizado da matéria. Nossa pretensão é apresentar a visão de um novo
direito de propriedade, voltado para os interesses do homem na dinâmica sociedade
da atualidade.
12
1 HISTÓRICO DA CONFIGURAÇÃO DO DIREITO DE
PROPRIEDADE
Ao traçar um panorama histórico da propriedade, destacamos a coletiva como
sendo a mais antiga forma de propriedade. Nessa, os integrantes da comunidade
tinham direito temporário ao uso e ao gozo sobre determinadas coisas, sendo esse
direito marcado pela intransmissibilidade. Entre os povos primitivos, o que contava
era a comunidade e não o indivíduo, pois havia mais terras do que interessados em
seu uso, gozo e domínio. o havia disputa e cobiça entre os primitivos ocupantes
da terra, pois havia terra em demasia que era usada pelos habitantes primitivos que
viviam da caça, da pesca ou ainda do pastoreio.
Nesse período primitivo, não se pode confundir a propriedade coletiva da terra
com uma forma geral da propriedade, pois havia a propriedade individual dos bens
ou objetos de uso pessoal, como os alimentos, o vestuário, a habitação, os objetos
de caça e pesca, que sempre existiu.
1
Conforme COSTA, essa propriedade
individual “[...] sempre existiu, por ser um sentimento inato e instintivo tanto no
homem adulto como a criança e anos irracionais. Ninguém ousaria subtrair-lhes o
alimento ou a moradia sem sujeitar-se à violenta reação.”
2
1
As formas de propriedade pessoal apresentam-se como pertenças sob o aspecto da participação stica das
coisas no ser humano. Por outro lado, esta pertença não diz respeito ao indivíduo, mas às linhagem, ou mesmo
ao clã de que faz parte; pois tudo entra na comunidade da linhagem ou clânica. Esta pertença tem um caráter
sagrado, ela é inviolável, sob pena de sanções sobrenaturais; os bens são em princípio inalienáveis. [...].
(GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 4. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003, p. 44.)
2
COSTA, Dilvanir José. Direito Real. Revista dos Tribunais. v. 782, a. 89, p. 727-736, dez. 2000.p.
732.
13
A propriedade da terra estava vinculada à existência de agrupamentos
humanos e familiares.
3
Partiu da forma coletiva para a individual, o que foi
desencadeado pelo progresso civil dos povos antigos. A propriedade denominada
familiar vigorava na Grécia Antiga, com a adoção da prática de divisão e atribuição
de terras entre os clãs, expandindo-se para a forma de propriedade plena individual
com o aparecimento da economia monetária.
4
A propriedade individual era limitada
aos bens móveis.
Neste particular convém destacar as idéias de Gesta Leal, para quem
Havia duas formas de propriedade coletiva em Roma: a da cidade (gens) e,
depois, a da família. No período antigo, a propriedade seria da cidade,
embora não se desse a cada indivíduo mais do que uma faixa de terra
reduzida; as pastagens pertenciam a todos, sendo certo que fortalecia a
idéia de propriedade coletiva o fato de só se admitir como bens alienáveis
os móveis.
5
É preciso entender como se forma a gens. Ensina-nos Jhering que elas
pertencem ao princípio da família; as cúrias e as tribos, como poder real, nascem da
constituição militar. Nega que as gentes repousem sobre o princípio da família,
dizendo que não se deu a esse assunto toda a importância real que possui. Diz que
Pouco importa, efetivamente, que os membros de uma mesma gens,
tenham, em realidade, o mesmo fundador comum, que a idéia de
parentesco se haja apagado por completo com o decorrer do tempo, e que
a gens se tenha convertido em uma corporação política comum. O essencial
é verificar se a gens, em todo seu espírito de organização, repousa
originariamente sobre a idéia da união das famílias.
6
3
Sobre a existência de agrupamentos humanos e familiares, no pensar de Jhering, 1943, p. 134, “A
antiga associação política, [...] amalgama esses dois princípios de coordenação e de subordinação.
Assim, o Estado antigo tem suas raízes na família e, elevando seu tronco, esparge as ramagens na
organização militar; ou em outros termos, as gentes e o respectivo lugar que ocupavam indivíduos no
seio delas, se fundam na idéia de família, as cúrias, as tribus (sic), com seus chefes e o rei, no
interesse militar”. Como bem destaca o mesmo autor, “O papel que desempenha a família, no regime
antigo, difere essencialmente, do que assumiu no direito moderno. A família é, atualmente, uma
entidade de direito privado puro, sem importância política imediata e se relaciona com o direito em
suas duas espécies mais íntimas: a pátria potestas e o matrimônio; o laço fraternal o se pode
considerar como uma relação jurídica”. Concluímos que a propriedade da terra estava vinculada a
esses agrupamentos humanos, formados pelas gentes e familiares.
4
Destaca Gilissen (2003, p. 78) que “O direito privado grego melhor conhecido é o de Atenas; na
época clássica (século V e IV a.C.), esse direito era muito individualista, permitindo ao cidadão dispor
livremente de sua pessoa e dos seus bens. Encontram-se mesmo regras jurídicas mais favoráveis à
liberdade individual que no direito romano clássico”.
5
LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1998, p. 40.
6
JHERING, Rudolf Von. O espírito do direito romano. Rio de Janeiro: Alba, 1943, p. 138.
14
Um dos modelos de organização da propriedade que considera, em especial,
os aspectos normativos formalizados pelos seus juristas foi legado ao Ocidente
pelos Romanos. Esses o definiram o direito de propriedade, sendo importante
destacar que a palavra proprietas surgiu somente na fase romano-bizantina. Os
romanos, na fase antiga, utilizavam unicamente “domínio”. O direito romano fazia a
distinção entre “posse” e “domínio”, dizendo que aquela era um poder de fato, ligada
ao possuidor, enquanto esse se constituía de um poder de direito, ligado ao
proprietário. O termo dominium
7
passou a exprimir o poder do proprietário sobre a
coisa que lhe pertencia, ou a soma de poderes que lhe competia, encerrando um
conteúdo que se encontra na palavra “propriedade”.
Caracteriza-se o domínio por uma soma de direitos subjetivos sobre a coisa,
como de usar, dispor e fruir do bem. De cada direito subjetivo decorre uma
pretensão que é decorrente do direito de fruir do bem, de extrair os frutos que advém
do mesmo, sejam eles civis, comerciais ou industriais. Retira-se da coisa os frutos
que se constituem no bem objeto da vida e que proporcionam o gozo.
Nessa fase, deparamos-nos com a propriedade coletiva, embora cada
indivíduo recebesse uma faixa de terra, ainda que reduzida, mas as pastagens
pertenciam a todos. Ainda não está presente o individualismo e o sentido de
propriedade privada como conhecemos na atualidade.
Com o decorrer do tempo, desapareceu a propriedade coletiva e surgiu a
propriedade familiar, destacando a figura do pater familias.
8
Primeiro foi apresentada
7
O dominium y la potestas são dois carateres judicos diferentes do direito romano que sempre estão ligados à
realidade, na relão entre o senhor e o escravo. Sobre esses, afirma SAVIGNY, M.F.C. de. Sistema del
derecho romano actual. Madrid: F. Góngora y Compía, 1878. v. 1, p. 239, El dominium consistí tuya un
verdadero derecho de propiedad pura; de manera que el esclavo, completamente asimilado á una cosa, podía
ser vendido en plena propiedad y ser objeto del usufructo, del uso y de la prenda; y el señor tenia, respecto de
él, la reivindicación y todas las acciones introducidas para proteger la propiedad. La potestas colocaba al
esclavo dentro del a familia, y tenia gran analogía con el poder paterno que le servia de tipo. Esta analogía
aparece manifiesta en el derecho de propiedad que el padre gozaba anteriormente sobre sus hijos con el
nombre mismo de potestas, en la incapacidad, común al hijo y al esclavo, de adquirir por mismos, la cual traía
consigo la capacidad necesaria de adquirir para el padre ó para el señor y, por ultimo, en los peculios”.
8
Sobre o aparecimento da propriedade individual, merece refencia a abordagem de Gilissen (2003, p. 45):
Na seqüência da sedentarização, a colheita dá lugar à agricultura; desde então, a tomada de posse comum do
solo generaliza-se e torna-se mais permanente. Uma vez que os clãs sedenrios formam uma aldeia, a
comunidade aldeã substitui a comunidade clânica que no entanto não desaparece; a solidariedade aldeã
aparece ao lado da solidariedade clânica. Os cs no interior das etnias, as falias no interior das clãs fixar-se-
ão cada um às “suas” terras, dando assim a distinção entre terras comuns cujo uso pertence à comunidade
cnica ou étnica (florestas, pastos, charnecas, etc.). Assim aparece a noção de propriedade familiar, depois
individual do solo, e ao mesmo tempo a de sucessão imobiliária e de alienabilidade dos imóveis.
15
uma propriedade individual sobre os objetos usados por cada uma das pessoas,
necessários à sua existência; após, surgiram os objetos produzidos para o uso de
cada indivíduo, porém suscetíveis de troca com outras pessoas, embora sendo de
uso particular; foi dessa evolução que adveio a propriedade de tudo quanto fosse
necessário à produção de mercadorias. Com o tempo, o direito absoluto de
propriedade romana foi sofrendo limitações de ordem pública, privada, ética,
higiênica ou prática. Admitiu-se o uso e o gozo da propriedade e, até abusar dela,
desde que não causasse danos à propriedade ou aos direitos dos outros, já havendo
preocupação com o direito de vizinhança.
Na sociedade romana existiam várias concepções da origem da propriedade
que nos são expostas em diferentes abordagens. Destacamos, em primeiro lugar,
que a estrutura social de Roma estava assentada na figura do pater familias, posição
ocupada por indivíduos reconhecidos como cidadãos que detinham capacidades e
responsabilidades plenas junto aos membros de sua família e da sociedade. O pater
tinha o domínio sobre seu território, sobre os homens e sobre as coisas ligadas à
vida da família. Ele expressava sua força soberana e sua autonomia sobre os bens e
as pessoas da família. Cabia a ele dar uma conotação de valor social aos distintos
bens, sendo de caráter coletivo, aos primeiros, e individual, aos segundos. Coexistia
a propriedade coletiva e individual, sem indicação de qual foi a precedente.
No período clássico romano não encontramos a existência da propriedade
coletiva e individual, mas a afirmação do Estado-cidadão, com a quase exclusiva
identificação da estrutura familiar.
Por outro lado, a visão da propriedade romana arcaica, mais provável, era a
propriedade conjunta e não a propriedade separada. Os esclarecimentos sobre as
formas de propriedade nos foram apresentados pelos direitos de famílias e de
grupos aparentados. É através da jurisprudência romana, transformada pela Teoria
do Direito Natural, que os juristas modernos m a impressão de que a apropriação
individual era o estado normal do direito de propriedade e de que a apropriação em
comum por grupos de homens é apenas a exceção à regra geral. Este é o
pensamento de Henry Maine que não vê, como correto, o princípio de que tudo deve
16
ter um proprietário, pois é incoerente com a incerteza e pouca freqüência com que a
propriedade individual é observada nos primórdios da civilização.
9
Émile de Laveleye, professor belga, nega que a propriedade moderna possui
seu nascedouro no Direito Romano. Acompanha o pensamento de Maine, ao
concordar com a idéia de que a propriedade individual, como a da sociedade do
século XIX, o se vincula funcionalmente com o estado natural nem nasce
diretamente dele. Afirma que a propriedade é um sentimento histórico e o fruto
maduro de uma sociedade individualista e, portanto, um fruto bastante recente na
histórica da civilização humana.
10
A concepção de Fustel de Coulanges é de que os antigos fundamentaram o
direito de propriedade em princípios diferentes dos adotados pelas gerações
presentes. Afirma que existiram povos que nunca chegaram a instituir a propriedade
privada entre si, e outros, que demorada e penosamente a estabeleceram. Os
Tártaros admitiam o direito de propriedade, quando se tratava de rebanhos, mas não
o concebiam, quando se tratava do solo. Entre os germanos, segundo alguns
autores, a terra não pertencia a ninguém; cada ano, a tribo indicava a cada um dos
seus membros o lote para cultivar, e mudava o lote, no ano seguinte. O germano era
proprietário da colheita, mas não da terra. O mesmo ainda acontece com parte do
povo semita e com alguns povos eslavos.
11
A noção de propriedade individual, quanto aos bens móveis, que são aqueles
que constituem o patrimônio da pessoa como os objetos de uso pessoal, era
conhecida pelos germanos. Já quanto à propriedade imobiliária, não ocorria da
mesma forma, pois o solo não podia ser objeto de apropriação individual, sendo
admitida, de certa forma, a apropriação comunitária. Duas formas de propriedade
comum eram admitidas entre os germanos: a propriedade do clã e a da família. A
propriedade comum do clã ocorria no momento em que esse se fixava em
determinado território e tomava posse da terra de que necessitava para sua
habitação e cultura. Também ocorria a apropriação comum pela família, estando
9
MAINE, Henry S. Ancient law. London: J.M. Dente & Sons, 1954, p. 151.
10
Apud PEZZELLA, Maria Cristina Cereser. A propriedade privada no direito romano. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. p.159;
11
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 59.
17
ligada ao solo em que edificavam sua moradia, às terras ao redor dessa, e ao solo
em que estavam enterrados seus antepassados.
12
Para Fustel de Coulanges
13
a idéia de propriedade privada, fazia parte da
própria religião. Cada família tinha seu fogo sagrado e seus antepassados. Esses
deuses podiam ser adorados pela família e protegiam a família. Eram
propriedade dela. Assentado o lar, deus se instalava nele para todo o sempre,
enquanto a família existisse e dela restasse alguém para conservar a chama em
sacrifício. Era assim que o lar tomava posse do solo; apossava-se da terra, e a fazia
sua. Ela era propriedade dele. A família, por dever e religião, ficava em redor do seu
altar, fixava-se no solo, como o próprio altar. A idéia de domínio surgia
espontaneamente, e a família ocupava para sempre esse lugar que lhe pertncia
como propriedade familiar. A propriedade não era apresentada como coletiva, mas
familiar. A partir da análise das crenças e dos costumes dos diversos povos, conclui
que foi a religião doméstica que ensinou o homem a apropriar-se da terra e a
assegurar-lhe o direito sobre ela.
As populações da Grécia e da Itália, desde a mais remota antiguidade,
sempre conheceram e praticaram a propriedade privada, enquanto havia povos que
não concediam ao indivíduo a propriedade do solo, mas facultavam a ele os frutos
do seu trabalho. Entre os gregos, em algumas cidades, os cidadãos eram obrigados
a ter em comum as colheitas, devendo usufruí-las em comum. O indivíduo não era
senhor absoluto do trigo que era colhido, mas tinha a propriedade absoluta do solo.
A concepção de propriedade seguia a ordem inversa, ou seja, primeiro sobre a
colheita e depois sobre o solo.
Afirma Coulanges que
Há três coisas que, desde as idades mais antigas, se encontram fundadas e
solidamente estabelecidas pelas sociedades gregas e itálicas: a religião
doméstica, a família e o direito de propriedade, três coisas que tiveram,
entre si, na origem, patente relação e que pareceram ter sido mesmo
inseparáveis.
14
12
GILISSEN, op, cit., p. 638.
13
COULANGES, op. cit., p.60-66.
14
Id. ibid., p. 60.
18
Como a idéia de propriedade fazia parte da própria religião e cada família
tinha seu fogo sagrado e seus antepassados, o lar tomava posse do solo e faz desta
parte da terra sua propriedade.
Coulanges relaciona a propriedade com a família.
E a família, que por dever e religião fica em redor do seu altar, fixa-se no
solo, como o próprio altar. A idéia de domicílio surge espontaneamente. A
família está vinculada ao fogo e este, por sua vez, encontra-se fortemente
ligado ao solo; estreita conexão se estabeleceu, portanto, entre solo e
família. Neste, no solo, deve ter a sua residência permanente, nunca
pensando em deixá-la, a não ser quando alguma força superior a isso a
constranja. Como o lar, a família ocupará sempre esse lugar. Esse lugar
pertence-lhe, é propriedade sua, propriedade não de umhomem, mas de
uma família, cujos diferentes membros devem vir, um após outro, nascer e
morrer ali.
15
Nessa abordagem, vimos que foi a religião doméstica que ensinou o homem a
apropriar-se da terra e a assegurar-lhe o direito sobre ela. Como a propriedade
surgiu inerente à religião doméstica, a família não podia renunciar nem a uma nem a
outra. A casa e o campo eram vinculados à família e ela não os podia perder nem
lhes abandonar a legítima posse. A religião e a família conduziam à propriedade do
solo em que está estabelecido o lar.
Podemos concluir que, na origem da civilização romana, encontramos a
família como a célula sica da organização social. Nela, o pater familias exercia o
poder que, embora aparentasse ser individual, era exercido em benefício da
coletividade, ou seja, da família romana. O poder, centralizado no pater familias,
mesmo com sua morte não terminava, pois o substituto era previamente designado
pelo antecessor.
16
15
COULANGES, op. cit., p. 60. No mesmo sentido, à respeito do solo, diz Gilissen (2003, p. 45), que
“O solo é sagrado, divinizado; ele é a sede de forças sobrenaturais. Um laço místico, por vezes
materializado por um altar, existe entre os homens e os espíritos da terra, e também com os mortos,
os antepassados enterrados neste solo. O mediador entre o grupo e estas forças é muitas vezes
necessário; é o “chefe da terra”, que pode ser o chefe do clã, mas pode também ser um outro homem
que se identifique com a terra”.
16
Afirma-nos SAVIGNY (1878, p. 253) que “Cabe desde luego conservar á la propiedad de estos
bienes su carácter de propiedad privada, haciendo sobrevivir, por una especie de ficción, la
personalidad del antiguo propietario, y esto de dos maneras: estableciendo que la voluntad del
individuo, expresada durante su vida, puede continuar rigiendo sus bienes desps de su muerte
(testamento, disposiciones por causa de muerte), ó que aquellos que estaban más cerca de la persona
del propietario difunto pueden continuar la propiedad (sucesiones abintestato), y en este punto el
parentesco debe tener una gran influencia(§ 53), puesto que perpetúa la personalidad del individuo”.
19
Após, com o fortalecimento do Estado Romano, esse assumiu as tarefas da
ação política, e as antigas comunidades familiares perderam a sua razão de ser. Do
pater familias ao fortalecimento da soberania do Estado pelas transformações de
relações econômicas praticadas na sociedade romana, evoluiu a concepção de
propriedade romana.
Foram as transformações econômicas da sociedade que exigiram uma
especialização dos poderes do pater familias, e foi o surgimento de novas atividades
econômicas e da produção agrícola que determinaram uma revalorização da
importância econômica e social das coisas, provocando o surgimento de uma nova
forma de expressão das relações com as coisas: o dominium.
17
Houve um período de transição entre o antigo conceito de propriedade
romana e o conceito do direito clássico, a partir da República, com diferenciação dos
conceitos jurídicos e modificações no direito processual civil. A partir da República
tardia foi que os termos dominium e proprietas aparecem como termos técnicos. No
período pré-clássico e clássico do direito foram conhecidas várias formas de
propriedade.
Nesta linha de investigação da história da propriedade, passaremos a dar
uma visão do período medieval, tomando por base os registros históricos de
Gilissen.
18
No período medieval, ocorreram mudanças consideráveis, a partir do culo
XIII até o final da Idade Média. Ainda subsistiam as instituições feudais, e o poder
real ganhava força na Inglaterra e na França. O poder estava concentrado nas mãos
de poucos. Foi nesse período que apareceu a noção de Estado, como um corpo
político juridicamente estruturado, e a hierarquia feudal foi suplantada por uma
organização administrativo-estatal.
Na Idade Média, reapareceu a lei como fonte de direito, mas o costume
persistiu, em especial no direito civil, como fonte de direito. No entanto, a atividade
legislativa continuou restrita ao direito administrativo e ao direito canônico, com
17
PEZZELLA, Maria Cristina Cereser. A propriedade privada no direito romano. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris, 1998, p. 186-187
18
GILISSEN, op. cit., p. 239-241.
20
apogeu nos séculos XII e XIII, se encontrando mais ou menos e sistematicamente
codificado, sendo objeto de estudo pelos juristas. Também exerceu influência sobre
certas partes do direito consuetudinário laico, mais precisamente sobre o processo.
Sua decadência ocorreu no século XIV.
O estudo do direito romano renasceu, passando as compilações a serem
objeto de estudo aprofundado. Ele passou a penetrar cada vez mais na prática,
existindo uma verdadeira recepção do direito romano como direito subsidiário na
maior parte dos países da Europa Ocidental.
19
As partes deixaram de buscar
solução para seus conflitos em Deus e passaram a buscar soluções através de
juízes e árbitros, através da investigação da verdade e de suas decisões. Surgiu a
Justiça e a eqüidade como fundamento do direito. O direito objetivo sobrepôs-se ao
direito subjetivo. Na formulação das regras jurídicas, de uma forma quase exclusiva,
houve uma tendência para os enunciados de direitos subjetivos. O direito, de uma
ou de certas pessoas, passou a ser utilizado a uma ou a algumas outras pessoas.
Os primeiros esforços para a formulação de um direito objetivo surgiram em
toda a Europa a partir do século XII. São regras de direito aplicáveis a todos os
habitantes de um território ou a todos os membros de um determinado grupo social
que gozavam de autonomia política. Encontramos aí, as regras de direito público e
privado que concedem privilégios às cidades; as primeiras coletâneas de direito
redigidas em alguns principados; assim como os primeiros atos legislativos dos
soberanos e dos grandes senhores.
Destaca-nos Savigny, as mudanças ocorridas no direito germânico.
[...] En la Edad Media muchas instituciones nuevas tomaron nacimiento en
el seno del derecho germánico, y en ellas, como en las instituciones
romanas, domina el elemento moral; y si se quiere apreciar justamente su
naturaza, es preciso referirlas unas al derecho de familia y otras al derecho
público, al menos en parte; así sucede con el sistema de los feudos donde
19
Sobre a subsidiariedade do Direito Romano, afirma-nos FRADERA, Vera Maria Jacob de. (Org.) O
direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1997, p. 14-15, que Houve prevalência absoluta do raciocínio segundo o Direito Romano, que era,
aliás, juntamente com o Direito Canônico, Direito subsidiário, isto é, o conjunto de regras aplicáveis
quando a espécie não estivesse prevista nas aludidas Ordenações. [...] No sentido de manter íntegro
o sistema de Ordenações, as lacunas eram preenchidas pela aplicação do Direito Romano e do
Canônico e, no que fossem omissos, pelas glosas de Acúrsio e Bártolo, salvo se fossem contrárias à
communis opinio doctorum”. É o restabelecimento do Direito Romano que passa a ser utilizado na
prática de forma subsidiária.
21
existen numerosas relaciones entre los vasallos y los señores, y sobre todo
con la servidumbre de la gleba [...].
20
No período medieval, as mudanças que começaram a ocorrer na Europa
tiveram início com a queda do Império Romano, atingindo, especialmente, ao Direito
Medieval. Como nos diz Grossi,
El Derecho medieval se revela con toda su singularidad: un universo jurídico
provisto de valores peculiarísimos, separado del moderno por una profunda
ruptura en la medida que está concebido, sentido, construido con una
función, sentido, construido con una función y en un espacio absolutamente
singulares en relación con lo social y lo político. Un Derecho sin Estado, un
Derecho que, sin vincularse a fuertes manifestaciones del poder político sino
permanecido en estrecha alianza con la completa sociedad civil en toda sua
complejidad, no aparece fragmentado conforme a las diversas soberanías
(como ocurre en la amplia koiné unitaria, articulada (pero no fragmentada)
en autonomías. El Derecho medieval, por tanto, no es Derecho
auténticamente europeo, que porta en muchas manifestaciones
autónomas pero al que tales autonomías jamás le hacen perder su calidad
de tejido esencialmente supranacional. [...] no es solamente un mensaje
histórico inconfundible, sino un precioso momento dialéctico para nuestro
inquieto espíritu contemporáneo [...].
21
Na Idade Média, como resultado das invasões, os povos rbaros,
germânicos e romanos entraram em contato com diferentes civilizações, o que
propiciou novas formas inovadoras de propriedade. Leal faz a enumeração dessas
formas, dizendo que a “comunal” existia como sobrevivência da antiga mark
germânica; a “alodial”, considerada como livre; a “beneficiária”, que surgiu da
concessão feita pelos reis ou pelos nobres, ou por estes aos plebeus; a “censual”,
modalidade intermediária entre a beneficiária e a servil, que implicava a fruição dos
imóveis mediante o pagamento de valores determinados; e a “servil”, atribuída aos
servos que possuíam a terra, porém se mantinham ligados a ela como seu
acessório.
22
O desenvolvimento das cidades e vilas iniciou-se no período feudal, em razão
do aumento da atividade econômica dos feudos, o que veio a proporcionar um maior
dinamismo nas atividades e na vida social. Isso fez crescer o comércio e a
organização dos ofícios em Corporações. O crescimento do comércio fragilizou o
modelo feudal de organização social e da própria sociedade, revelando como
20
SAVIGNY, op. cit., p. 244.
21
GROSSI, Paolo. El orden jurídico medieval. Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 14.
22
LEAL, op. cit. 1998, p. 43.
22
prioritária a implementação da idéia de propriedade produtiva, responsável pelo
crescimento econômico, principalmente do mercado das relações de produção que
foi se formando ao longo da ascensão da burguesia, conforme destaca Leal.
23
Na era medieval, o blico foi absorvido pelo privado, pois havia uma
primazia da propriedade territorial sobre os demais institutos. Os senhores feudais
agiam como se desempenhassem função pública, impondo regras, cobrando
tributos, julgando seus servos e cumprindo as decisões. Detinham o poder político e
o prestígio social originários do direito de propriedade. Ou seja, todo o poder
emanava do direito de propriedade. Como nos diz Gomes,
O que caracteriza essencialmente a propriedade medieval, como forma de
disciplina das relações de produção, é, em primeiro lugar, a primazia que
confere aos bens imóveis. Na estrutura econômica da feudalidade, a terra é
o bem principal que tem prioridade, porque a subsistência social depende,
fundamentalmente, do seu cultivo. Da importância social que esse bem de
produção desfrutava nessa estrutura, decorrem conseqüências que
singularizam o regime jurídico da propriedade.
24
Com as invasões bárbaras, houve mudança no sistema de propriedade
romano, pois os povos germânicos tinham um conceito diferenciado de propriedade.
Entendiam como viável o fracionamento da propriedade em várias relações de gozo
possíveis sobre uma coisa. Por exemplo, admitiam a separação das árvores da
terra. Os romanos adotaram a noção de múltiplos domínios, que foi aplicada pelos
juristas, sob conceitos de domínio útil e domínio direto.
Com a queda do Império Romano, houve um período em que não havia uma
autoridade central dotada de poder, instalando-se confusão entre soberania e
propriedade. O proprietário de terras passou a ter poderes políticos sobre os
camponeses que trabalhavam na propriedade, impondo-lhes uma série de restrições
à liberdade pessoal.
Os historiadores tentavam reconstruir as situações reais do alto-medievo,
partindo do sujeito, do esquema individualista da propriedade, com investigações
dos termos propietas e dominium que se encontravam nas antigas cartilhas e nos
23
LEAL, op. cit. 1998, p. 44.
24
GOMES, Orlando. Significado da evolução contemporânea do direito de propriedade. Revista dos
Tribunais, v. 757, a. 87, p. 717-718, nov.1998, p. 717-718.
23
mais obscuros textos da lei. Nesses, o procedimento metodológico adotado era de
despejar a forma pré-concebida de aproximação mental que media a realidade em
correspondência ao esquema de propriedade individual.
25
O alto-medievo é apresentado como uma grande civilização possessória, não
no sentido adotado no direito romano, mas em sua concepção finziana. A conotação
dada por Enrico Finzi é de um mundo de feitos o dotado de formalidade nem de
oficialidade, porém provido de agressividade e de incisividade. Nesse período,
podemos dizer que a propriedade era reduzida a um mero registro cadastral, pois
não havia a presença marcante do estado nem movimentos culturais importantes.
Foi construído um sistema de situações reais, com efetividade econômica sobre o
bem, não ligado ao dominium nem ao domina.
Desapareceu o velho ideal clássico da validade, ou seja, da correspondência
a modelos e tipos. Surgiram, de forma desordenada e viva, situações rudes, não
filtradas por nenhum crivo cultural, que se impuseram na base de feitos primordiais
que são a aparência, o exercício e o gozo. No centro do ordenamento e de sua
atenção não se encontrava o sujeito com suas próprias vontades e presunções, mas
a coisa, com suas regras naturais, força que impregnava toda forma jurídica, ou
melhor, constitutiva de toda forma jurídica. Era o reino da efetividade.
26
Surgiram novas sistematizações, pois o problema central não é o vínculo
formal e exclusivo sancionado pelos livros fundiários, mas a destinação da
propriedade do bem a alguém. É a efetividade sobre o bem, prescindido de suas
formalizações. Podemos dizer que a possession do bem é apresentada como uma
dimensão de facticidade contraposta com um reino de formas oficiais. No reino da
efetividade, a propriedade desvincula-se das formalizações e ganha força a
dimensão de facticidade, em que a aparência e o exercício do gozo levam, através
da possession, a propriedade do bem a alguém.
27
Na construção medieval de propriedade, encontramos como traço de
ordenação jurídica, a inversão da relação homem-natureza e novos valores
25
GROSSI, Paolo. La propiedad y las propiedades: Un análisis histórico. Espanha: Civitas, 1992, p.
34-35.
26
Id. ibid., p. 36.
27
Id. ibid., p. 73-74.
24
fundamentais começaram a ser impressos no mundo jurídico. As coisas se
agigantaram e voltaram-se como elementos essenciais de uma paisagem que leva
cada vez menos traços da ação humana; coisas inacessíveis em suas enormes
proporções, porém a respeitar, a todo o custo, enquanto condições elementares de
sobrevivência no mundo, sendo esse o duro problema de cada dia. O sujeito perdeu
o mando e sofreu o conjunto de forças que, do exterior, projetaram-se sobre ele.
Dentro desse contexto, as forças e regras primordiais escritas sobre as coisas eram
o cânon construtivo da nova civilização O ordenamento passou a exemplificar, a
partir das coisas, e construiu-se do ponto de vista dessas.
28
O jurídico aderiu à plástica da realidade objetiva, e as formas, incapazes de
separarem-se das estruturas, somaram-se a elas. O jurídico mesclou-se, sem
delimitações precisas, com o fático, e dele estava impregnado. O ordenamento
jurídico assumiu, como forças motoras próprias, a aparência, o gozo, o exercício,
presenças vivas da dimensão tica, sem inventar cânones artificiosos de
qualificação. Registrou, com humildade, a carga normativa de todos esses feitos.
Não desapareceu o dominium do antigo titular cadastral, porém ele desvitalizou-se
pelo empobrecimento, deixando que resultasse expropriado dos poderes
empresariais quem proprietário não era, porém era ele gestor da empresa. Essa era
a forma autêntica da vida econômica que vinha sendo ouvida favoravelmente.
29
A nova mentalidade que o historiador contemplava era uma civilização
“possessória” que substituiu a mentalidade proprietária romana. Ela era indiferente à
idéia de validez, porque era dominada por um rigoroso princípio de efetividade. No
contexto da evolução possessória, emergiram as figuras do uso, exercício e gozo
que expressavam, de forma viva, a formalidade do homem com as coisas, sua união
e sua vida com elas. Dessas figuras impregnava-se o ordenamento jurídico, sem
construções rigorosas e definidas. As novas situações fáticas não se colocavam
28
GROSSI, op. cit. 1992, p. 77-78.
29
Conforme afirma Valiente, apud Grossi (1992, p. 19), “Entre los siglos V y XV Grossi sitúa la
experiencia jurídica medieval, como autónoma y distinta de la romana y de la moderna. Y la concibe
como unitaria, según ya dijimos aquí, al margen de la bipartición en fases (las de “fundación” y
“edificación”) del itinerario que comienza con la caída del Imperio y termina, poco más o menos, con
el inquieto siglo XV. La caída del Estado romano produce in la Edad Media un vacío político, para
rellenar el cual el Derecho ve elevado su papel y queda situado en el centro de lo social. [...] Así, el
Derecho medieval se nos presenta como una multiplicidad de ordenamientos coexistentes,
interpenetrados, que se remiten unos a otros [...]”. (GROSSI, 1992, p. 79)
25
fora, mas bem dentro da dimensão do “real”, medida na propriedade e nos direitos
reais sobre a coisa alheia.
Sobre a sociedade e o direito medieval não podemos deixar de registrar o
pensamento de Grossi.
La sociedad medieval es, de hecho, una sociedad sin Estado, donde,
debido a la permanencia de este vacío político, el Derecho ve sublimada su
función, se coloca en el centro de lo social, representa la constitución
duradera más allá (y al abrigo) del carácter episódico de la política más
elemental. Será el planeta moderno, a pesar de las grandes hojas de
higuera del iusnaturalismo de los siglos XVII y XVIII y de la codificación
decimonónica, quien empobrezca el derecho, lo vincule y condicione por el
poder, haga de él um instrumentum regni, lo separe en consecuencia de lo
social.
30
Percebe-se uma mudança de mentalidade no período medieval, onde o vazio
político e a necessidade de novas definições e de novas posturas abriram caminho
para que o Direito se colocasse no centro do social. Valorizou-se o direito romano e
houve necessidade de pôr em prática as leis, devido à necessidade de segurança
jurídica. Houve uma inversão da relação homem-natureza, passando a coisa ao
centro do ordenamento. Passaram a ser escritas regras sobre as coisas que
serviram de base para a construção de uma nova civilização.
Na Idade Moderna
31
, houve uma expansão da propriedade privada, com o
desenvolvimento do comércio, crescimento da produção manufatureira e com o
nascimento dos bancos e dos grandes impérios financeiros e a criação das primeiras
sociedades por ações. A propriedade passou a ser exaltada como um direito
fundamental, junto com a vida e a liberdade, seguindo a corrente do jusnaturalismo.
O ingresso na era contemporânea foi marcado pela Revolução Francesa,
símbolo da ruptura com o passado, e o direito privado espelhou a sociedade
30
GROSSI, op. cit., p. 52
31
Na época moderna, o modelo de direito que conhecemos é o do Direito Moderno. Ao fazermos
alusão ao Direito Moderno, afirma-nos GRAU, Eros Roberto. Direito. In: BARRETTO, Vicente de
Paulo. (Coord.) Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.p. 228, que
nos “[...] referimos um modelo de direito positivo, direito posto pelo Estado. Direito moderno conota,
aqui, o Direito (positivo) produzido pelo chamado Estado moderno, datado da Revolução Francesa.
Objeto a partir e em trono do qual os juristas desenvolvem uma atividade técnica e não política -,
esse modelo de Direito é o modelo de direito do modo de produção capitalista.Seu requisito único de
validade repousa na representação popular (expressão da volonté générale) associada à maioria
legislativa. Os pressupostos que fundamentam a sua legitimidade encontram-se na separação dos
poderes e na vinculação do juiz à lei”.
26
burguesa, por meio de sua ideologia, de seus anseios e das necessidades da classe
sócio-econômica que atingiram o poder. Nasceram os códigos e passaram a regular
todos os anseios dessa sociedade burguesa. Nesse contexto, o individualismo
destacou-se como valor em oposição ao período do estamento social da idade
média em que o indivíduo não era valorizado pelas suas características e méritos
pessoais, mas pelo nível social em que se encontrava.
Na Itália, encontramos a propriedade privada, em especial a propriedade
imobiliária da terra, colocada no centro do ordenamento, no código de 1865,
inspirado no Código Civil francês de 1804. A categoria do ser era subordinada a do
ter. No Código de 1942, a atenção era voltada à empresa, para a atividade
produtiva, para a regulamentação do trabalho, para a organização da produção, para
a forma política e jurídica do intervencionismo do Estado nas relações econômicas.
A característica do ordenamento era o produtivismo, aumentando o legislador a
potencialização do Estado. a Constituição de 1948, que deu ênfase à pessoa,
assumiu, em relação a este problema, uma posição diversa. É o que nos ensina
Pietro Perligieri, dizendo que
Uma coisa é ler o Código naquela ótica produtivista, outra é “relê-lo” à luz da
opção “ideológico-jurídica” constitucional, na qual a produção encontra
limites insuperáveis no respeito aos direitos fundamentais da pessoa
humana.
32
No Brasil, antes do advento do antigo Código Civil, editado em 1916,
vigoravam as Ordenações Filipinas, de Portugal, que foram mantidas mesmo depois
da Independência. Quando o Código de 1916 foi editado, já se encontrava em
declínio na Europa a Era das Codificações, e o intervencionismo estatal começava a
despontar como afirma Daniel Sarmento.
33
Na década de 1930, no ordenamento civil houve intensa intervenção
legislativa, com a edição de normas contendo políticas públicas, externando
diretrizes e valores que se voltavam ao liberalismo do Código. Após, houve a edição
de uma série de leis que versavam sobre matéria de Direito Privado que serviram
32
PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 4.
33
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Júris,
2004, p. 96.
27
para mostrar sua fragmentação. Foi nesse contexto que a Constituição se converteu
no centro unificador do ordenamento civil.
Com a Constituição de 1988,
34
nosso ordenamento jurídico passou a
alicerçar-se sobre princípios e valores humanitários, como a dignidade da pessoa
humana e o Estado Democrático de Direito. A propriedade passou a ser norteada
por sua função social. Já no preâmbulo ficou expresso a que se destina a Carta:
[...] assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das controvérsias[...].
Tanto na Itália como no Brasil, a ênfase à pessoa humana foi dada pela
Constituição que veio romper com a Era das Codificações. No Brasil, com a
fragmentação do sistema de Direito Privado, a Constituição passou também a
disciplinar as relações econômicas e privadas, tornando-se o centro unificador do
ordenamento civil.
Apesar dos avanços trazidos pelo novo Código Civil, esse não conseguiu
atingir a todo o Direito Civil, continuando no centro do sistema a Constituição Federal
que é mais progressista e solidária.
Com a evolução histórica do direito de propriedade pretendemos introduzir
nosso estudo, voltando-nos para a propriedade privada e, em especial, para o
entendimento do plural na propriedade, sem deixar de lado o individual, com ênfase
à pessoa humana, com seus direitos e deveres, numa sociedade complexa como é a
sociedade contemporânea.
34
O significado político-social da Constituição Brasileira é destacado por Leal, op. cit, 1998, na
história política da cidadania nacional, criando disposições jurídicas que se erigem à condição de
princípios à conformação da República Federativa e mesmo à organização da sua comunidade. A
partir daí, são introduzidas inovações na ordem processual brasileira e despertada a participação e
mobilização política, com destaque aos direitos sociais, aos direitos coletivos, possibilitando a
abertura de caminhos para as políticas urbanas objetivas.
28
1.1 Renascimento do Direito Natural
O Direito Natural é um direito inerente à própria natureza do homem e
remonta muito além do século XVII. Os juristas e filósofos da Antigüidade grega e
romana tinham noção do Direito Natural. Os Romanos faziam distinção entre o
direito dos cidadãos romanos, o direito civil, e o direito das pessoas que não eram
consideradas como cidadãs romanas. Essas eram dominadas pelas regras que
decorrem da própria natureza das coisas, isto é, o direito natural. O fundamento do
Direito Natural na Antiguidade Clássica tinha como ponto de referência a natureza e
suas leis, sendo que elas eram válidas para todos os seres da Terra, não sendo
exclusivas para os homens.
Numa visão histórica, a partir de Gilissen, podemos afirmar que a doutrina do
Direito Natural nasceu na Grécia antiga e teve como primeiros defensores os
filósofos Heráclito de Éfeso e Sófocles.
35
Na Idade Média, o Direito Natural aparece como um Direito Natural Cristão.
Tudo converge para Deus e os acontecimentos é fruto da vontade divina.
No século XVI, surgiu uma nova concepção do Direito Natural, baseada na
razão humana e independente de qualquer concepção religiosa. É um direito natural
laico, racionalista que domina todas as relações entre os homens, dos povos em
geral e a posição do homem em sociedade. Os próprios reis eram submetidos às leis
naturais, fundamentais, universais, permanentes, imutáveis, pautadas na natureza
humana. Dessa forma, podia ser combatida a tendência para o absolutismo real, o
que explica o porquê do Direito Natural não se desenvolver na França e nos Países
Baixos de domínio espanhol, difundindo-se na Alemanha e na Inglaterra.
Outro fator de desenvolvimento do direito natural laico é encontrado nas
guerras religiosas e nas conquistas coloniais, pois regras jurídicas, comuns a todos
os beligerantes, eram encontradas na própria natureza do homem, impondo-se o
respeito a essas por todos.
35
GILISSEN, op. cit., p. 364.
29
Destacamos, como “pai do direito natural”, o jurista holandês, Hugo Grotius
36
(Hugo de Groot, 1583-1645). Conforme ensina Vita, ele contribuiu de forma decisiva
para a construção de uma linguagem nova sobre os direitos das gentes e dos
homens e, de forma consciente, embora ainda hesitante, abriu os caminhos para
uma concepção racionalista dos direitos e para uma concepção normativa das
razões e dos embates entre as nações, na guerra e na paz. Grotius descartou o
velho e impôs a dinâmica do novo, através da idéia da conservação de si mesmo, do
auto-interesse, que legitimou a cada homem e a cada nação defender sua liberdade,
seus negócios e sua propriedade contra a usurpação que outros homens ou outras
nações lhes pretendiam impor.
37
Após, a escola do direito natural desenvolveu-se na Inglaterra com Thomas
Hobbes, 1588-1679, com a publicação da obra “De Cive”, em 1642; e na Alemanha,
com Samuel Pufendorf, 1632-1694, com a publicação “De Iure Naturae el Gentium”,
em 1672. Foi na Alemanha que a concepção filosófica, dominada pelo direito
natural, penetrou no direito positivo dos principais estados alemães, nas codificações
ordenadas na segunda metade do século.
O início da laicização ocorre com Grotius. Ele era cristão, mas imbuído de
cultura humanista e considerava a própria lei natural como um fundamento jurídico
superior e, por isso, universal.
38
Os franceses mostraram-se resistentes à teoria do direito natural, porém
Montesquieu apelou ao direito natural em sua obra. Entre os franceses destacou-se
Jean Domat, 1625-1695, com a publicação de “Les Lois Civiles Dansleur Ordre
Naturel”, em 1689, ao adotar, como base da sua construção jurídica, as principais
regras do direito romano que considerou como ratio scripta, razão escrita, as quais
somente adaptou, pois seguiam os princípios da religião cristã e da filosofia
escolástica. Essas regras, que ele considerou como direito natural, construíram, de
maneira racional e lógica, o conjunto das regras jurídicas que passaram a reger a
36
GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Ijuí-RS: Unijuí. 2005. v. 1 e 2.
37
VITA, Caio Druso de Castro Penalva. GRÓCIO, Hugo, 1583-1645. In: BARRETO, Vicente de Paulo.
(Coord.) Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p. 387.
38
GONZAGA, Tomás Antônio. Tratado de direito natural. Organização e apresentação de Keila
Grinberg. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. XVIII.
30
França. Sua obra teve grande influência sobre os juristas franceses do século XVIII e
até sobre os redatores do Código Civil.
Essa é uma breve visão do Direito Natural que nos leva ao estudo mais
particularizado de sua definição.
A questão do Direito Natural foi formulada pela primeira vez na famosa
tragédia “Antígona”, ao apresentar a existência de um direito superior à legislação
positiva estabelecida pela vontade do soberano. A questão tratada envolvia o
cumprimento de uma determinação do soberano de não enterrar o corpo de
Polínice, irmão de Antígona, considerado um traidor pelo rei Creonte. Porém,
Antígona, invocando as leis não escritas dos deuses, leis imutáveis, que não são de
ontem ou de hoje, e que lhe autorizavam a proceder de acordo com os direitos das
famílias de enterrar os seus mortos, decidiu sepultar o corpo de seu irmão, sendo
surpreendida por Creonte durante o enterro.
39
Antígona, ao se insurgir contra a obrigatoriedade de cumprir a legislação
estabelecida por Creonte, insurgiu-se também contra o direito positivo em vigor. Os
fundamentos de sua insurgência foram pautados em pressupostos que foram além
da autoridade constituída e que permitiram o não cumprimento das normas
estabelecidas quando elas entraram em conflito com o princípio de justiça que
estava vinculado a um direito superior.
A existência de um sistema superior de normas ou de princípios, que se
contrapõem ao direito positivo, leva Bedin a afirmar que
[...] é possível definir o Direito Natural como uma doutrina jurídica que
defende que o direito positivo deve ser objeto de uma valoração que tem
como referência um sistema superior de normas ou de princípios (direito
ideal) que lhe condicionam a validade.
40
Como conseqüência dessa definição, conclui Bedin que
[...] é possível identificar as seguintes características na doutrina do Direito
Natural: a) A legislação em vigor deve ser analisada a partir de
determinados conteúdos superiores; b) Esses conteúdos possuem como
39
BEDIN, Gilmar Antonio. Direito natural.
31
fonte uma determinada categoria universal e imutável (ideal de justiça); c)
Esses conteúdos devem sempre prevalecer sobre as disposições formais da
legislação em vigor.
41
Ao questionar quais são esses conteúdos, afirma-nos Bedin que são os
referentes à idéia de justiça. Alega que é por isso que os seus defensores buscam
as normas e princípios que, independentemente de seu acolhimento pela instituição
positiva do Direito, possuem primazia sobre as leis vigentes e o poder estatal que as
implementam. Assim, a legislação vigente será considerada válida apenas quando
suas prescrições corresponderem às exigências de um ideal de justiça.
42
Sua conclusão sobre o tema, leva-nos à reflexão de que uma regulamentação
positiva injusta da conduta humana não tem qualquer validade e não é direito em
sentido estrito, pois deve-se entender por direito apenas uma ordem jurídica válida.
Dessa forma, o Direito Natural transforma a compreensão teórica do fenômeno
jurídico, que submete o fundamento de validade das normas jurídicas em vigor, a
uma concepção de justiça. Para a doutrina do Direito Natural, direito é direito justo.
Sua validade é obtida por um ideal de justiça.
43
Para aprofundar o estudo do Direito Natural, entendemos necessário fazer a
análise de filósofos modernos como Thomas Hobbes, John Locke e Immanuel Kant,
demonstrando a atualidade do tema que está a exigir um repensar do Direito, tendo
como enfoque as leis universais e a instituição do Estado Civil, vinculada à
necessidade da garantia da propriedade.
1.2 Visão de Thomas Hobbes
Ao introduzir o estudo sobre a obra de Thomas Hobbes de Malmesbury,
impõe-se sua contextualização à época em que viveu. Hobbes nasceu em 5 de abril
de 1588, em Westport, na Inglaterra, quando sua mãe, assustada, recebeu a notícia
da iminente invasão da Armada Espanhola. Estudou no Magdalen College, em
41
Id. ibid., p. 241.
42
BEDIN, op. cit., p. 241.
43
Id. ibid., p. 241.
32
Oxford e bacharelou-se em Artes. Aos vinte anos, Hobbes tornou-se tutor da família
Cavendisch, permanecendo nessa família praticamente durante toda sua vida. Foi
nesse contexto familiar que passou a desfrutar a vida cosmopolita na Europa bem
como a ter acesso a uma extensa biblioteca, conhecer pessoas importantes e
influentes no cenário intelectual europeu da época. Morreu aos noventa e um anos,
em 4 de dezembro de 1679, em Hardwich, na Inglaterra. O período em que nasceu e
viveu teve grande influência em seu pensamento e obra.
44
Nas linhas mestras traçadas por Hobbes, Villanova destaca o dever e a
obediência como sendo algumas das relações centrais da filosofia política moderna,
ao criar um novo modelo de justificação do Estado: o contratualismo. Questiona
quem tem o direito de mandar e por que se deve obedecer. Segundo o autor, é essa
a questão que parece orientar o esforço de Thomas Hobbes ao longo das obras que
consolidam sua Filosofia política. Diz que
Ao fundar os alicerces do Estado supostamente sobre uma base jurídica,
Hobbes amarra sua teoria ao plano da racionalidade, da individualidade, da
normatividade e da transcendência. Ao identificar direito com poder, separa
a sociedade do Estado, opõe o poder à potência, sujeita ao medo a
liberdade. Ao derivar obrigação de contrato, afirma-se na tradição liberal e
fundadora do Estado de Direito.
45
Hobbes destaca-se, na atualidade, como o fundador do pensamento
moderno. Os argumentos que levam a essa constatação dizem respeito ao
rompimento da escolástica com a escola clássica e com a jusnaturalista; com a
atribuição do contratualismo, o que leva a concluir que foi o primeiro a fundamentar a
autoridade política no consentimento dos homens e não no direito divino dos reis;
atribuição de ser o pai do liberalismo, do individualismo e até mesmo do positivismo
jurídico.
46
Os estudos sobre Hobbes partem de duas formas de interpretação: a
teleológica que ênfase aos elementos do jusnaturalismo e teleológicos, admitindo
44
VILLANOVA, Marcelo Gross. HOBBES, Thomas, 1588-1679. In. BARRETTO, Vicente de Paulo.
(Coord.) Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p. 436.
45
VILLANOVA, op. cit, p. 436.
46
Id. ibid., p. 436-437.
33
que Deus e outros conceitos teleológicos desempenham papel importante na
filosofia de Hobbes; e a secular que rejeita avidamente essa possibilidade.
47
Pretendemos destacar o pensamento de Hobbes sobre as Leis Naturais.
48
Hobbes adotou como ponto de partida o estado de natureza, vindo a ser imitado por
Pufendorf, mas foi Hobbes quem fez dele um elemento essencial do sistema.
Hobbes apresenta o estado de natureza como um estado de guerra, de opressão e
de miséria. A natureza faz os homens iguais nas faculdades do corpo e do espírito,
porém ainda que haja diferença de força corporal, o mais fraco tem a força suficiente
para matar o mais forte, agindo com secreta manipulação ou aliando-se a outros que
se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo. Os homens buscam a paz, mas estão
em estado de guerra. O seguinte texto de Hobbes bem ilustra o que afirmamos.
[...] a natureza fez os homens tão iguais, no que se refere às faculdades do
corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem
visivelmente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro,
quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro
homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa
com razão nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também
aspirar, tal como ele. Quanto à força corporal, o mais fraco tem força
suficiente para matar o mais forte, quer por secreta manipulação, quer
aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.
49
O estado de natureza revela como os indivíduos se comportariam se não
houvesse uma autoridade para obrigá-los ao cumprimento da lei ou do contrato.
Esse comportamento levaria os indivíduos a uma luta incessante e os colocaria uns
contra os outros, uma luta de cada um deles pelo poder sobre os outros. A intenção
de Hobbes, segundo Macpherson,
[...] é mostrar que essas condições frustrariam inevitavelmente o anseio de
todos os seres por viver comodamente” e de evitar morte violenta, e que
portanto todo indivíduo ponderado deveria fazer o que fosse preciso para se
proteger contra essas condições e que a aceitação, por todos os
indivíduos, de um poder soberano absoluto é suficiente para proteger contra
elas.
50
47
Id. ibid., p. 437.
48
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2006. Série Ouro.
49
HOBBES, op. cit., p. 96.
50
MACPHERSON, C.B. A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes a Locke. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 31.
34
No que se refere às faculdades do espírito, entre os homens uma
igualdade ainda maior do que a igualdade da força. A prudência nada mais é do que
experiência, que um tempo igual oferece a todos os homens eqüitativamente,
naquelas coisas a que igualmente se dedicam. O que torna inaceitável essa
igualdade é simplesmente a concepção vaidosa da própria sabedoria, a qual quase
todos os homens supõem possuir em maior grau do que o vulgo. A natureza dos
homens faz com que, mesmo sendo capazes de reconhecer maior inteligência nos
outros, dificilmente admitam que haja muitos tão sábios como eles próprios. Vêem
sua própria sabedoria bem de perto, e a dos outros homens à distância. Isso prova
que os homens são iguais quanto a esse ponto, e não que sejam desiguais.
A igualdade entre os homens surge da distribuição eqüitativa, quando todos
estão contentes com a parte que lhes couber. Rompe-se a igualdade, quando dois
desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo em que é impossível de ser gozada por
ambos, o que faz com que se tornem inimigos. No caminho para seu fim, esforçam-
se por destruir ou subjugar um ao outro.
51
A ação humana está pautada no empenho e esforço para vencer sempre. O
homem luta para ultrapassar o outro e sobressair-se no contexto social. Teme estar
ultrapassado, o que corresponderia à miséria, e busca suplantar o outro, o que
corresponderia à felicidade. Há uma identificação com o tipo de homem burguês que
busca a ascendência social e econômica.
52
A situação de perigo, que enfrenta tanto o homem que planta, semeia e
constrói um lugar, quanto o que enfrenta o invasor que vem preparado para
desapossá-lo, é apresentada por Hobbes. Para ele, todos estão em situação de
perigo.
Disto se segue que, quando um invasor nada mais tem a recear do que o
poder de um único homem, se alguém planta, semeia, constrói ou possui
um lugar conveniente, é provavelmente de esperar que outros venham
preparados com forças conjugadas, para desapossá-lo e privá-lo, não
apenas do fruto de seu trabalho, mas também de sua vida e de sua
51
A intenção de Hobbes, segundo Macpherson, (1979, p. 31), “[...] é mostrar que essas condições
frustrariam inevitavelmente o anseio de todos os seres por viver comodamente’ e de evitar morte
violenta, e que portanto todo o indivíduo ponderado deveria fazer o que fosse preciso para se
proteger contra essas condições e que a aceitação, por todos os indivíduos, de um poder
soberano absoluto é suficiente para proteger contra elas”.
52
LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 68.
35
liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos
demais.
53
Na busca da própria conservação, Hobbes prega a necessidade da
desconfiança de uns em relação a outros, dizendo que nenhuma maneira de agir é
tão razoável como a antecipação. A subjugação ocorre pela força ou pela astúcia de
subjugar todos os homens que puder, durante o tempo necessário, para chegar ao
momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande para
ameaçá-lo.
Quanto aos atos de conquista, prega que o aumento de domínio sobre os
homens, sendo necessário para a conservação de cada um, deve ser por todos
admitido. Destaca que os homens não têm prazer algum na companhia uns dos
outros, quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito. Cada um
pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si
próprio. Na presença de sinais de desprezo ou de subestimação, o que não tem um
poder comum capaz de submetê-los a todos, leva-os à destruição uns aos outros.
Três causas principais da discórdia são destacadas na natureza do homem
por Hobbes: Primeira, a competição; segunda, a desconfiança; e terceira, a glória. A
primeira leva os homens a atacar os outros visando ao lucro. A segunda, a
segurança. A terceira, a reputação. Os primeiros praticam a violência para se
tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanho dos dominados. Os
segundos, para defendê-los. Os terceiros por ninharias, como uma palavra, um
sorriso, uma diferença de opinião ou qualquer outro sinal de desprezo, quer seja
diretamente endereçado a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes,
amigos, nação, profissão ou seu nome.
54
Os homens vivem em condição de guerra
55
, durante o tempo em que vivem
sem poder comum capaz de mantê-los a todos em respeito. Uma guerra que é de
53
HOBBES, op. cit. 2006, p. 97.
54
HOBBES, op. cit. 2006, p. 98
55
O homem não está na busca somente de uma nova classe social, mas do poder político como
forma de alcançar suas finalidades utilitário-econômicas, como afirma Leal, op. cit. 2001, p. 69, ao
dizer que [...] a causa mais freqüente que leva os homens à recíproca guerra é o fato de que muitos
têm, ao mesmo tempo, o desejo sobre a mesma coisa, quando, geralmente, o a podem consumir
em comum e tampouco repartir”. Afirma Macpherson (1979 p. 53) que “O homem inatamente
moderado, em sociedade precisa procurar mais poder simplesmente para proteger seu nível atual. E
36
todos os homens contra todos os homens. Hobbes explica que “[...] a guerra não
consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante
o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida.
56
Denis L. Rosenfield afirma que o conceito de estado de natureza é um
conceito construído por Hobbes, a partir de dois postulados concernentes à cobiça
natural do homem que tende ao desregramento; e à razão natural, pela qual todo
homem evita a morte violenta, estabelecendo, com tal fim, um regramento de suas
relações.
57
É no desregramento que encontramos o estado de guerra de todos contra
todos. Entendemos como estado de natureza um estado onde todos são iguais na
violência, de tal modo que esta igualdade está na base da construção de máximas,
“preceitos da razão”, que viabilizam a sociedade política, isto é, a “aliança” que
origem ao Estado.
58
37
medo da morte violenta, que o leva à busca de um tipo de organização que o
coloque ao abrigo da violência arbitrária e súbita.
60
Podemos concluir que tudo o que devemos fazer ou omitir para a
conservação de nossa vida encontra-se na lei da natureza que obriga, diante da
razão e da consciência, e que leva à possibilidade de obediência política. A primeira
e fundamental lei natural enuncia que todo homem deve buscar a paz, se for
possível, e preparar-se para a guerra, se essa for inevitável.
61
Para ilustrar a análise feita, destacamos a própria definição de direito natural
apresentada por Hobbes.
O direito natural, que os autores geralmente chamam jus naturale, é a
liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira
que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua
vida. Conseqüentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e
razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim. Conforme o
significado próprio da palavra, por liberdade entende-se a ausência de
impedimentos externos, que muitas vezes tiram parte do poder que cada um
tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a que use o poder que lhe
resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe ditarem. Lei natural lex
naturalis é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante
o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou
privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense
poder contribuir melhor para preservá-la. Porque embora os que têm tratado
deste assunto costumem confundir jus e lex, o direito e a lei, é necessário
distingui-los um do outro. O direito consiste na liberdade de fazer ou de
omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas.
De sorte que a lei e o direito se distinguem tanto como a obrigação e a
liberdade, as quais são incompatíveis quando se referem à mesma
matéria.
62
É da condição do homem o estado de guerra de todos contra todos, e, nesse
estado, cada um é governado por sua própria razão. Nessa condição, todo homem
tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. Conclui Hobbes que,
[...]enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas, não
poderá haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a
segurança de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos
homens viver.
63
60
Id. ibid., p. 29.
61
Id. ibid., p. 29.
62
HOBBES, op. cit. 2006, p. 101.
63
Id. ibid., p. 101.
38
Apresenta, como conseqüência desse preceito, que todo homem deve se
esforçar pela paz e, caso não a consiga, pode procurar e usar todas as ajudas e
vantagens da guerra. Na primeira parte dessa regra, encontramos a primeira lei da
natureza, a busca da paz; na segunda parte, a essência do direito de natureza, ou
seja, a defesa de nós mesmos por todos os meios que pudermos.
Da lei fundamental de natureza que ordena que todos os homens procurem a
paz é que deriva a segunda lei. Um homem, juntamente com os outros, deve
concordar, na medida em que considerar necessário, em renunciar a um direito seu
a todas as coisas, para a obtenção da paz e da defesa de si mesmo, em relação aos
outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação
a si mesmo. Deve ser levado em conta que, enquanto cada homem tiver o direito de
fazer tudo o que quer, todos se encontrarão em estado de guerra. No entanto, se um
homem renunciar a seu direito, e os outros o, não haverá razão para que ele
renuncie a seu direito, pois isso significaria oferecer-se como presa, o que ninguém
está obrigado a fazer, o estando obrigado a dispor-se para a paz. Esta é a lei do
Evangelho: Faz aos outros o que queres que te façam a ti”. E esta é a lei de todos os
homens: “Quod tibi fieri non vis, alteri ne feceris”.
64
Aprofundando nossa abordagem sobre o direito natural, passaremos a fazer
um estudo de Hobbes, a partir da análise feita por Bobbio. Ele afirma que Hobbes
pertence à tradição do jusnaturalismo, tendo dedicado parte de suas obras políticas
o “De Cive” (1642) e o “Leviatã” (1651) ao estudo do direito natural. No entanto,
é considerado também um precursor do positivismo jurídico. O autor questiona como
explicar esse aparente paradoxo, dizendo que se explica com o fato de que Hobbes
adota a doutrina do direito natural não para limitar o poder civil como fará, por
exemplo, Locke -, mas para reforçá-lo. Usa meios jusnaturalistas para alcançar
objetivos positivistas. Diz Bobbio que a mesma idéia pode ser expressa de outra
forma, dizendo que Hobbes é um jusnaturalista, ao partir, e um positivista, ao
chegar.
65
64
HOBBES, Thomas. op. cit. 2006, p. 102.
65
BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p.
41.
39
A distinção entre os vários tipos de direito ou de leis é encontrada no Capítulo
XIV, parte 4, do “De Civi”. Nele afirma que toda lei pode ser dividida em divina e
humana. A primeira é dividida em natural ou moral e positiva, partindo dos dois
modos como Deus fez conhecer aos homens a sua vontade. A natural é aquela que
Deus declarou a todos os homens, por meio de sua eterna palavra, que neles é
inata, que é a razão natural. A positiva é a lei que Deus anunciou por meio da
palavra dos profetas que usou para falar aos homens como homem. A Lei de Deus é
divina e a lei humana é civil.
66
Nessa classificação, segundo Bobbio, não nos parece que Hobbes tenha se
afastado da tradição: o direito natural é aquele que Deus comunica aos homens por
meio da razão e vige no estado da natureza; o direito positivo – o humano, deixando
de lado o divino é proposto pelo Estado por meio da pessoa ou das pessoas que
detêm, no Estado, o sumo poder ou soberania e tem vigência no contexto da
sociedade civil. O que coloca Hobbes contra a tradição do jusnaturalismo é o modo
como concebe a relação entre as leis naturais e as leis civis, a validade das leis
naturais em comparação com a das leis civis.
67
A conclusão a que nos leva Bobbio é de que, para Hobbes, as leis naturais
são aquelas que, no estado da natureza, ainda não têm vigência e, no estado civil,
deixam de viger. No estado de natureza existem as leis naturais; elas só obrigam
em consciência, o que significa que só obrigam a ter a intenção de observá-las. Sua
observância efetiva é devida quando estamos seguros de que os outros também
as observarão. O estado de natureza, porém, é marcado pela insegurança contínua
a situação famosa de bellum omnium contra omnes. Com tal insegurança, não
temos qualquer garantia de que os outros observarão as leis naturais, portanto não
estamos obrigados a cumpri-las, por melhores que sejam nossas intenções.
68
Exemplifica Bobbio, dizendo que uma lei da natureza obriga a manter os
compromissos, mas se agíssemos assim, e os outros não, estaria arriscando a ter
um fim desagradável. Isso leva a concluir que a obrigação vale quando
reciprocamente respeitada. Não havendo garantia de reciprocidade em um estado,
66
HOBBES, Thomas. De cive. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 181.
67
BOBBIO, op. cit., p. 41-42.
68
Id. ibid., p. 42.
40
não cabe a obrigação. É justamente por ser marcado pela insegurança perpétua é
que os homens aspiravam a mudar o estado de natureza para o estado civil.
69
O homem natural, que pretende transferir ou desistir de certos direitos,
porque do contrário uns teriam o direito de ataque, e outros, o de defesa, ou a
guerra, tem o dever racional de desistir do direito de livre postura e de agir,
transferindo-o a outrem. Essas condutas que visam à paz devem ser adotadas por
todos os homens, ou pela maioria, o que não ocorre no Estado de Natureza, pois
não existe alguém bastante forte para obrigá-los a observá-las. O único caminho a
seguir é o da razão que leva os homens à instituição do Estado. Os homens
mutuamente transferem seus direitos, através de um contrato, na busca de
segurança e paz.
70
Os homens buscam, no estado civil, aquela indispensável segurança para
tornarem eficazes as obrigações, transformando-as de internas em externas, os
indivíduos acordam em renunciar a todos os direitos que tinham no estado de
natureza exceto o direito à vida -, transferindo-os ao soberano que, assim, teria o
direito de punir aqueles que não cumprissem suas obrigações. Institui-se a
segurança, e as obrigações tornaram-se eficazes: todos sabem que, se alguém não
cumprir seus deveres, será punido.
71
A segurança é conquistada por todos os indivíduos que participaram do pacto
e estão coobrigados a obedecer ao soberano. Isto é, a fazer tudo que ele ordena. O
que o soberano ordena são as leis civis – o direito positivo. Para que as leis naturais
sejam respeitadas, é preciso obedecer ao poder civil.
O modo estranho é concebido por Hobbes em relação ao soberano pelas leis
naturais, de acordo com Bobbio, pois os soberanos têm o direito de interpretar as
leis naturais, determinando o seu significado. Até mesmo o direito à vida, o único
inalienável, não está protegido. Bastaria que o soberano decidisse não considerar a
pena capital como um homicídio, e o súdito perderia o direito de escapar dela. Em
segundo lugar, os súditos não têm o direito de inquirir se o que o soberano ordena é
justo ou não: a teoria, segundo a qual cabe ao súdito fazer esse julgamento, é uma
69
Id. ibid., p. 42.
70
LEAL, op. cit. 2001, p. 73.
71
BOBBIO, op. cit., p. 42.
41
teoria subversiva. O terceiro argumento é, seguramente, o mais engenhoso, uma
descoberta apropriada para liquidar o jusnaturalismo tradicional. Se é verdade que
os soberanos devem respeitar a lei natural uma obrigação puramente nominal -, é
também verdade que a lei que obriga os súditos a obedecerem ao soberano é
igualmente uma lei natural, em particular aquela que obriga à obediência aos pactos,
pois a soberania é instituída por um pacto entre os membros daquela sociedade. E
essa obrigação dos súditos, diferentemente da que tem o soberano em relação a
eles, é uma obrigação efetiva, tanto assim que o soberano tem o direito de punir o
súdito que deixar de respeitá-la.
72
É função tradicional da lei natural servir para justificar os limites do poder
soberano. Para Hobbes, a lei natural tem um efeito absolutamente oposto, pois na
medida do possível, isenta de limites o poder soberano.
Na doutrina jusnaturalista tradicional, considera-se que o indivíduo deve
obedecer às leis naturais antes das leis civis. Entretanto, se a lei natural se resolve
na obrigação que têm os súditos de obedecer às leis civis, a outra obrigação de
obedecer, primeiramente à lei natural, se transforma no seu contrário: o súdito é
obrigado a obedecer antes de tudo às leis civis.
O resumo do pensamento hobbesiano é apresentado por Bobbio sobre a
validade da lei natural e da lei civil, dizendo que a lei natural põe toda a sua força a
serviço do direito positivo e, dessa forma, morre ao dar à luz o seu filho.
73
A postura analítica, preconizada por Hobbes, no sentido de ver justificado o
poder de um governo que pretenda assegurar a paz e a felicidade ao cidadão pelo
próprio governo, outorgando-lhe uma natureza absoluta e desprendida de quem o
criou, sob pena de se perder de vista outras discussões importantes, como a do
fundamento do poder político e o seu exercício junto à sociedade civil, é contestada
por Leal. Afirma-nos que as concepções sobre o Estado, como um fenômeno não
natural, mas eminentemente político, vão oportunizar, na História, a superação da
idéia de que os regimes monárquicos detêm, na figura do príncipe, a lex animata,
72
Id. ibid. p. 43-44.
73
BOBBIO, op. cit., p. 44.
42
representando uma comunidade política que se legitima por fundamentos divinos
atemporais e que rejeitam qualquer indagação quanto à sua validade.
74
Como vimos, a concepção do pensamento de Hobbes é pautada na busca da
paz, se for possível, e na preparação da guerra, se for inevitável, assim como na
necessidade de delegação de poderes por parte de todos os homens a um
soberano, com a passagem do Estado Natural para o Estado Civil. A partir dessa
visão, entendemos oportuno mostrar a concepção de Locke sobre o Estado Natural,
para que possamos entender a sociedade política que tem por objetivo a
conservação de todos os seus membros e a garantia da liberdade do homem ao
viver na sociedade civil.
1.3 Concepções de John Locke
O objetivo do presente trabalho é compreender as formas de aquisição da
propriedade privada e, para isso, precisamos partir do estudo dos preceitos
filosóficos e políticos do Estado Liberal. Destacamos o estudo de John Locke, um
dos fundadores do liberalismo econômico, considerado um dos construtores do
pensamento liberal. Nossa abordagem está centrada em sua obra que representa
um dos marcos do pensamento político moderno, escrita em 1690.
75
Locke destaca a propriedade como um dos próprios fundamentos da
existência do Estado. É a partir de sua obra que pretendemos fazer uma análise da
relação do Estado com a propriedade, buscando compreender a idéia individualista
da propriedade, fazendo o confronto entre a visão liberal da propriedade e as
exigências do contexto social.
Pretendemos fazer uma análise baseada na ciência filosófica do direito,
aprofundando os estudos sobre o fenômeno sócio-jurídico, partir do conhecimento
científico-empírico e científico-formal. Por isso, não nos prenderemos à ciência social
do direito que investiga o fenômeno social jurídico relacionado à realidade social, por
74
LEAL, op. cit. 2001, p. 41-42.
75
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
43
meio de métodos e técnicas de pesquisa empírica que é baseada na observação
controlada dos fatos.
Ensina Cláudio Souto que há três ciências jurídicas básicas: a formal do
direito, conhecida por dogmática jurídica, que determina as diretrizes formais da
concretização judicial ou administrativa de normas jurídicas preexistentes e que
compõem um ordenamento jurídico sistematizado e coerente, oferecendo solução
para todos os conflitos levados à apreciação do Estado ou outras instâncias
reconhecidas pelo ordenamento jurídico; a ciência social do direito que investiga,
através de métodos e técnicas de pesquisa empírica, ou seja, pesquisa baseada na
observação controlada dos fatos, o fenômeno social jurídico em correlação com a
realidade social; a ciência filosófica do direito que aprofunda os estudos sobre o
fenômeno jurídico-social, a partir do conhecimento científico-empírico e científico-
formal. Esclarece que no ponto onde a ciência empírica do direito encerra as suas
explicações, por não poder ir mais longe, inicia-se o trabalho que vai além do
investigado, agora em vôos mais largos, soltos, vôos nem comprovados, nem
comprováveis, por métodos e técnicas de ciência empírica.
76
Devemos considerar o estado em que todos os homens estão para entender
o poder político corretamente, é o que nos diz Locke. Esse estado natural é um
estado de “perfeita liberdade” para regular suas ações e dispor de suas posses e
pessoas do modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza,
sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem. Prega também
a necessidade de um estado de “igualdade”, com a reciprocidade de poder e
jurisdição, onde ninguém tem mais que qualquer outro. Dentro dessa idéia de
igualdade, diz que é absolutamente evidente que criaturas da mesma espécie e
posição, promiscuamente nascidas para todas as mesmas vantagens da natureza e
para o uso das mesmas faculdades, devam ser também iguais umas às outras, sem
subordinação ou sujeição, a menos que o senhor e amo de todas elas, mediante
qualquer declaração manifesta de sua vontade, colocasse uma acima de outra, e lhe
76
SOUTO, Cláudio. Ciência e ética no direito: Uma alternativa de modernidade. Porto Alegre:
SAFE, 1992, p. 9.
44
conferisse, por evidente e clara indicação, um direito indubitável ao domínio e à
soberania.
77
O estado de natureza como situação de liberdade e igualdade é ressaltado
por Bobbio,
[...] como Hobbes, Locke parte também do pressuposto de que o estado da
natureza é uma situação de liberdade e igualdade. Contudo, liberdade e
igualdade têm, no contexto de Locke, um sentido bem diferente daquele que
tinham no contexto de Hobbes.
78
A liberdade para Locke, no estado natural, leva os homens a regular suas
ações e dispor de suas posses e pessoas do modo como julgarem acertado, porém
dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de
qualquer outro homem.
A igualdade de que fala Locke, diz Bobbio,
[...] não é a igualdade de forças, física ou material, a que se referia Hobbes,
mas essencialmente uma igualdade jurídica, ou seja, aquela situação em
que “todo poder ou jurisdição é recíproco, ninguém possuindo mais do que
qualquer outra pessoa” e na qual não “subordinação ou sujeição” de um
indivíduo a outro. Onde não um soberano comum, todos são igualmente
soberanos: é a regra hoje ainda vigente na comunidade internacional.
79
Essa concepção de igualdade no estado de natureza leva a concluir que,
violada uma lei natural, uma ausência de subordinação, o que leva o indivíduo
ferido a fazer justiça por si mesmo. Ao agir dessa forma, o indivíduo deixa de ser
imparcial.
O raciocínio de Locke sobre o estado de natureza é pautado em quatro
assertivas, de acordo com Bobbio, assim dispostas: as leis naturais podem ser
violadas; as violações das leis naturais devem ser punidas, assim como os danos,
que essas violações provocam, precisam ser reparados; o poder de punir e de exigir
reparação cabe à própria pessoa vitimada; que aquele que é juiz em causa própria
habitualmente não é imparcial, e tende a vingar-se, em vez de punir. A conclusão a
que chega é de que o maior inconveniente do estado de natureza é a falta de um
77
LOCKE, op. cit., p. 381-382.
78
BOBBIO, op. cit., p. 180.
79
Id. ibid., p. 180.
45
juiz imparcial para julgar as controvérsias que nascem, e que não podem deixar de
nascer, entre os indivíduos que participam de uma sociedade.
80
Concluímos que sempre existirão conflitos no estado de natureza e que as
leis naturais serão violadas, exigindo a intervenção de um terceiro para evitar que,
ao agir em causa própria, a pessoa venha a buscar a vingança. Assim, o
inconveniente do estado de natureza para Locke é a falta de um juiz.
O estado de liberdade para Locke o é um estado de licenciosidade, pois
embora o homem tenha uma liberdade incontrolável para dispor de sua pessoa ou
posses, não tem liberdade para destruir-se ou a qualquer criatura em sua posse, a
menos que um uso mais nobre que a mera conservação desta o exija. A lei da
natureza a todos obriga, e a razão ensina que todos são iguais e independentes e
que ninguém deve prejudicar a outrem em sua vida, saúde, liberdade ou posse.
81
A subordinação entre os homens é afastada por Locke, ao dizer que todos
têm as mesmas faculdades, e compartilham todos da mesma comunidade de
natureza. Não se pode presumir a existência de qualquer subordinação entre nós
que possa autorizar que venhamos a destruir-nos uns aos outros, como se fôssemos
feitos para o uso uns dos outros, assim como o são as classes inferiores de criaturas
para o nosso uso. Cada um está obrigado a preservar-se, e não abandonar sua
posição por vontade própria. Pela mesma razão, quando sua própria preservação
não estiver em jogo, cada um deve, tanto quanto possível, preservar o resto da
humanidade e não pode, a não ser que seja para fazer justiça a um infrator, tirar ou
prejudicar a vida ou o que favorece a preservação da vida, liberdade, saúde,
integridade ou bens de outrem.
82
A responsabilidade pela “execução da lei da natureza” é depositada nas mãos
de cada homem, pois cada um tem o direito de punir os transgressores da dita lei em
tal grau que impeça sua violação.
Como todos têm o poder executivo da lei da natureza e que, por outro lado, a
natureza vil, a paixão e a vingança pode levar o homem longe demais na punição
80
BOBBIO, op.cit., p. 181.
81
LOCKE, op.cit., p. 384.
82
LOCKE, op.cit., p. 385.
46
dos demais, o que poderá resultar confusão e desordem, admite Locke que Deus
certamente designou o governo para conter a parcialidade e a violência dos homens.
Admite que o “governo civil” é o remédio adequado para as inconveniências do
estado de natureza quando aos homens é facultado serem juízes em suas próprias
causas.
83
O estado de natureza é mais bem considerado por Locke, ao afirmar que os
homens não são obrigados a submeterem-se à vontade injusta de outrem e no qual,
aquele que julgar erroneamente em causa própria ou na de qualquer outro, terá de
responder por isso ao resto da humanidade, do que um homem no comando de uma
multidão, (monarca absoluto) ter a liberdade de ser juiz em causa própria, e pode
fazer a todos os seus súditos o que bem lhe aprouver, sem que qualquer um tenha a
mínima liberdade de questionar ou controlar aqueles que executam o seu prazer.
84
As diferenças entre a “sociedade civil” e a “sociedade política” são
apresentadas por Locke. Todo homem nascido com título à liberdade perfeita e a um
gozo irrestrito de todos os direitos e privilégios da lei da natureza, da mesma forma
como qualquer outro homem ou grupo de homens no mundo, tem por natureza o
poder não apenas de preservar sua propriedade, isto é, sua vida, liberdade e bens
contra as injúrias e intentos de outros homens, como também de julgar e punir as
violações dessa lei por outros, conforme se convença merecer o delito, até mesmo
com a morte, nos casos em que o caráter hediondo do fato, em sua opinião, assim
exija. Mas, como nenhuma “sociedade política” pode existir ou subsistir sem ter em
si o poder de preservar a propriedade e, para tal, de punir os delitos de todos os
membros dessa sociedade, apenas existirá “sociedade política” ali onde cada qual
de seus membros renunciou a esse poder natural, colocando-o nas mãos do corpo
político em todos os casos que não o impeçam de apelar à proteção da lei por ela
estabelecida. E assim, tendo sido excluído o juízo particular de cada membro
individual, a comunidade passa a ser o árbitro, mediante regras fixas estabelecidas,
imparciais e idênticas para todas as partes, e, por meio dos homens que derivam
sua autoridade da comunidade para a execução dessas regras, decide todas as
diferenças que porventura ocorram entre quaisquer membros dessa sociedade
83
Id. ibid., p. 391.
84
Id. ibid., p. 392.
47
acerca de qualquer questão de direito; e pune, com penalidades impostas em lei, os
delitos que qualquer membro tenha cometido contra a sociedade.
85
Distingue-se quem está e quem não está em “sociedade política”. Encontram-
se em sociedade civil, uns em relação aos outros, aqueles que estão unidos em um
corpo único e têm uma lei estabelecida em comum e um juiz a quem apelar para a
solução de seus conflitos. Esclarece que aqueles que não têm em comum essa
possibilidade de apelo, pela inexistência de um juiz, não se encontram em uma
sociedade política, mas em perfeito estado de natureza.
86
A sociedade política passa a ter o poder de estabelecer qual a punição que
caberá às transgressões cometidas pelos membros dessa sociedade. É ela que tem
o poder de elaborar as leis, assim como o poder de punir os danos cometidos contra
qualquer um de seus membros, causados por alguém que não pertença a ela. O
objetivo é conservar, tanto quanto possível, a propriedade de todos os seus
membros.
87
Sobre o homem na sociedade política, é destacado por Locke que, quando
alguém se incorpora a uma sociedade política, também a ela incorpora suas posses
que tenha ou venha a adquirir e não pertençam a algum outro governo. Enfatiza
que contradição em entender que suas propriedades não serão regidas pelas leis
dessa sociedade. Conclui que, quando alguém se une a uma sociedade política,
também une a essa suas posses que antes eram livres, ficando submetidas ao
governo da sociedade sob cuja jurisdição se encontra, assim como qualquer súdito
dessa sociedade política.
88
Ao questionar o porquê do homem, sendo livre no estado de natureza,
haveria de se desfazer dessa liberdade, Locke responde que embora o homem
gozasse de plena liberdade no estado de natureza, o exercício desse seu direito é
bastante incerto, e está constantemente exposto à violação por parte dos outros.
Enfatiza, dizendo que, como todos são reis na mesma proporção, cada um é igual
entre si e todos têm os mesmos direitos, e, como em sua maioria, são estritos
85
LOCKE, op.cit., p. 458.
86
Id. ibid., p. 458-489.
87
Id. ibid., p. 459.
88
LOCKE, op. cit., p. 492-493.
48
observadores da eqüidade e da justiça, o usufruto que lhe cabe da propriedade é
bastante incerto e inseguro. Essas são as circunstâncias que levam o homem a
querer abdicar dessa condição de liberdade, pois ela é repleta de temores e de
perigos constantes. Não é sem razão que o homem procura e almeja se unir em
sociedade com outros que se encontram reunidos ou que projetam a ela se unir,
pois busca a mútua conservação de suas vidas, liberdades e bens, a que se atribui o
nome de propriedade.
89
Conclui-se que o homem abdica de sua liberdade, ao se unir em sociedade
política e submeter-se a um governo, porque busca a conservação de sua vida e a
segurança de sua propriedade. A insegurança em que vive no estado de natureza
não lhe proporciona essa segurança, pois nela vive exposto à constante violação por
parte dos outros que detêm os mesmos poderes. Em razão das carências existentes
no estado de natureza, decorrentes da inexistência de uma lei estabelecida, fixa e
conhecida; de um juiz, conhecido e imparcial, com autoridade para solucionar todas
as diferenças; da falta de um poder para apoiar e sustentar a sentença, quando
justa, e dar a ela a devida execução, os homens o levados a se unirem em
sociedade.
Os homens raramente vivem no estado de natureza, pois as inconveniências
a que se vêem expostos, em razão do exercício irregular e incerto do poder, que
cada um detém, de castigar as transgressões de terceiros, impelem-nos a se
refugiarem sob as leis estabelecidas de um governo, e nele buscarem a
conservação de sua propriedade. É isso o que leva cada homem a renunciar a seu
poder individual de castigar, autorizando o exercício desse direito a um único
indivíduo, entre eles, designado para tal fim.
Reúnem-se os homens em sociedade, para evitar as inconveniências que
perturbam suas propriedades no estado de natureza. É desse modo que podem
dispor da força que reúnem, em sociedade, para garantir e defender suas
propriedades bem como para disporem de regras fixas a delimitá-las e, por esse
meio, saber o que lhes pertence. Com esse objetivo, os homens renunciam a todo o
poder natural a favor da sociedade em que ingressam.
89
Id. ibid., p. 495.
49
É pensamento de Locke que os homens o se disporiam de abdicar da
liberdade do estado de natureza, submetendo-se à sociedade e ao governo, se não
fosse para preservarem suas vidas, liberdades e bens, por meio de regras
estabelecidas de direito e propriedade, levando-os a assegurar sua paz e
tranqüilidade.
A liberdade do homem é que impede o poder supremo de tomar-lhe alguma
parte de sua propriedade, sem o seu próprio consentimento. Pois, sendo a
preservação da propriedade o fim do governo e a razão por que os homens entram
em sociedade, isso pressupõe e, necessariamente, exige que o povo tenha
propriedade, sem o que será forçoso supor que todos percam, ao entrarem em
sociedade, aquilo que constituía o objetivo pelo qual nela ingressaram.
Os homens em sociedade possuem propriedade e têm direitos sobre os bens
que lhes pertencem, com base na lei da comunidade, não cabendo a ninguém o
direito de tolher os seus haveres, ou partes desses, sem o seu próprio
consentimento. Sem isso, não teriam propriedade nenhuma. Ou seja, os homens
não têm nenhuma propriedade sobre aquilo que outros podem lhe tomar, quando o
desejarem e contra o seu consentimento.
Quanto à segurança da propriedade, é afirmado por Locke que, embora
existindo leis boas e eqüitativas para estabelecer seus limites, ela não estará segura,
se aquele que exerce o poder sobre seus súditos tiver o poder de tomar de qualquer
indivíduo particular a parte de sua propriedade que lhe aprouver e, dela se servir e
dispor, conforme lhe convenha.
90
Ao governo, seja em que mãos estiver, o poder foi confiado pelos homens,
para que pudessem ter e garantir suas propriedades. Diz Locke que o príncipe ou o
senado, por mais que possam dispor do poder de elaborar leis destinadas a regular
a propriedade dos súditos entre si, jamais poderão dispor de um poder de tomar
para si, no todo ou em parte, a propriedade sem o consentimento destes. Isso
equivaleria, na verdade, a deixá-los sem propriedade nenhuma.
91
90
LOCKE , op. cit., p. 511.
91
Id. ibid., p. 512.
50
Quanto à necessidade de pagar tributos, a fim de usufruir da segurança
proporcionada pelos governos, afirma Locke que é adequado que todo indivíduo que
usufrua de uma parcela de proteção pague, de seus próprios haveres, uma parte
necessária para mantê-la, pois os governos não podem se sustentar sem grandes
encargos. Exige, no entanto, que haja o consentimento do indivíduo que a usufrua,
devendo ser esse, por maioria, dado diretamente ou através de seus representantes
por ele escolhidos. Por outro lado, se houver imposição do pagamento por parte de
quem detém o poder, estará sendo violada a lei fundamental da propriedade,
subvertendo o fim do governo.
92
As concepções filosóficas de Locke sobre o Estado de Natureza e sobre a
sociedade civil levam-nos a examinar os direitos e deveres do homem na sociedade
civil, na busca de segurança da propriedade e da liberdade do homem em relação à
sua própria pessoa e bens. Ou seja, impõe-se que façamos uma análise dos limites
da propriedade.
1.4 Os Limites da Propriedade
É importante destacar que o estudo que fazemos sobre a propriedade tem
como ponto central a obra “Dois Tratados sobre o Governo”, de John Locke, e a
análise feita por Macpherson.
Para Locke, o grande e principal fim de os homens unirem-se em
comunidades e de se colocarem sob governo é a preservação de sua propriedade.
Os homens se dispõem a abdicar da liberdade no estado de natureza, e submetem-
se à sociedade e ao governo, para preservarem suas vidas, liberdades e bens, por
meio de regras pré-estabelecidas de direito e de propriedade, com o objetivo de
assegurar sua paz e tranqüilidade. Sendo a preservação da propriedade o fim do
governo e a razão pela qual os homens entram em sociedade, isso pressupõe e,
necessariamente, exige que o povo tenha propriedade. É um direito que antecede a
92
Id. ibid., p. 512.
51
existência da sociedade e do governo civis, ou que deste independe, conforme
análise de Macpherson.
93
A propriedade é apresentada por Locke em dois sentidos. O primeiro, é de
que os homens têm a propriedade em si mesmos, e, por natureza, têm um poder de
preservar a sua vida, a sua liberdade e sua riqueza. O segundo, é de que usa a
propriedade em sentido mais comum, como faz no capítulo “Da Propriedade”, em
seu “Tratado sobre o Governo”, quando se refere à propriedade de terras e bens,
como sendo direito dos homens. Em ambos, Locke demonstra o direito natural do
homem à propriedade.
No estado natural, o homem tem liberdade para ordenar seus atos, dispor de
suas posses e de pessoas, da maneira que achar ser conveniente, mas dentro dos
limites da lei da natureza. Ou seja, a lei da natureza impõe limites aos homens, uma
vez que todos são iguais e independentes, ninguém deverá prejudicar o outro em
sua vida, sua saúde, sua liberdade ou suas posses. Os limites da lei da natureza são
transferidos ao direito natural do indivíduo à propriedade.
Podemos concluir que o direito de propriedade vem acompanhado de alguns
limites que são inerentes ao seu fundamento: é preciso deixar bastante e tão bom
para os outros; nada do que é apropriado pode ser desperdiçado; a quantidade de
bens apropriados depende do que uma pessoa possa obter com o seu trabalho.
94
No princípio, a terra e seus frutos foram dados em comum à espécie humana.
É o preceito que encontramos na lei natural e nas Escrituras; após, no período
medieval e no século XVII.
Deus, que deu o mundo aos homens em comum, deu-lhes também a razão,
a fim de que dela fizessem uso para maior benefício e conveniência da vida.
A Terra, e tudo quanto nela há, é dada aos homens para o sustento e o
conforto de sua existência [...]
95
Está presente na obra de Locke a aceitação de que o mundo foi dado aos
homens em comum por Deus e que, da mesma forma, foi dada a razão aos homens,
93
MACPHERSON, op. cit., p. 209.
94
Id. ibid., p. 213.
95
LOCKE, John. op. cit., p. 406-407
52
a fim de que dela fizessem uso para maior benefício e conveniência da vida. A Terra
e tudo que nela existe é dada aos homens para o seu sustento e conforto de sua
existência. Como tudo é dado em comum, Locke afirma que deve haver um meio do
homem, em particular, se apropriar de parte delas de um modo ou de outro. Essa
apropriação é admitida através do trabalho.
Inicialmente a lei natural, sob a qual o homem estava, era favorável à
apropriação. Foi a ordem de Deus que forçou o homem ao trabalho. Esse era a sua
propriedade, e essa não poderia ser tirada onde quer que ele a tivesse fixado. Foi o
trato, o cultivo e o domínio sobre a terra que levaram à propriedade da terra, estando
esses elementos intimamente ligados.
O direito à conservação da vida pelo homem e do trabalho como propriedade
sua é que fundamenta a apropriação individual dos produtos da terra que, na sua
origem, foram dados em comum à humanidade.
96
Com referência aos limites da propriedade, que Locke explicita, podemos
dizer, em primeiro lugar, que alguém pode se apropriar somente de uma parte das
provisões naturais e que deve deixar bastante e tão bom para os outros. O homem
necessita das provisões naturais para a sua própria conservação, para suprir suas
necessidades vitais e tudo, de que venha a se apropriar, por seu trabalho, é de sua
propriedade.
97
Em segundo lugar, observa Locke, Deus nos deu tudo em abundância, para
usufruirmos, desde que os homens se apropriem dos bens por seu trabalho, antes
que se estraguem, fixando sua propriedade. Como havia abundância de provisões
naturais, cabia ao homem, no estado natural, apropriar-se dos bens de que
necessitava para viver, porém sem desperdiçar ou destruir, sendo admitida a troca
96
No mesmo sentido, afirma FRANÇA, Vladimir da Rocha. Um estudo sobre a relação entre o Estado
e a propriedade privada a partir de John Locke. Revista de Informação Legislativa. Brasília,
Secretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, a. 37, n. 148, p. 187, out./dez. 2000, p. 187,
Desde o momento do nascimento do homem, este teria o direito a sua preservação. Deus concedeu
o mundo aos homens em comum, bem como a razão, para que possam subtrair da terra “o maior
benefício de sua vida e de suas conveniências” (Locke, 1994, p.97). Os bens se apresentam
originariamente em seu estado natural, necessitando sua apropriação de um meio que os tornem
proveitosos”.
97
Também nos afirma França (2000, p. 188) que “Não é preciso o consentimento dos outros homens
para que se possa transformar um bem no estado natural, por meio do trabalho, em direito privado.
53
do excesso das provisões. Não era admitido o perecimento dos bens nas mãos do
apropriado, estabelecendo-se o comércio por troca dos produtos perecíveis. A
comercialização dos excedentes, frutos do trabalho, era permitida dentro desses
limites.
98
Prega Locke que o homem deve se apropriar das provisões naturais, fixando
sua propriedade, sem desperdício. É bom lembrar que, no início, havia muita
provisão natural, e o limite ao homem é de que deveria apropriar-se apenas do
necessário para viver, podendo efetuar a troca entre os demais.
Em terceiro lugar, explicita Locke que a propriedade, adquirida por
apropriação legítima, é limitada pela quantidade que uma pessoa possa obter por
seu próprio trabalho. Aqui encontramos a questão da propriedade da terra. O
homem adquire a propriedade da extensão de terra que pode arar, plantar, melhorar
e cultivar, e os produtos dela, que é capaz de usar, constituem sua propriedade. A
delimitação é feita pelo trabalho, e os demais não poderiam tomar-lhe. Para essa
apropriação, não depende o homem de nenhum consentimento, pois Deus lhe
ordenou que trabalhasse a terra. Como havia bastante e tão bom, de sobra para os
outros, não havia nenhum prejuízo para os demais. Restou instituída a propriedade
individual da terra, com a apropriação limitada.
Ocorre que esses limites o flexibilizados, a partir da invenção do dinheiro.
Esse é introduzido por um consentimento tácito que é anterior ao consentimento que
veio a formar o estado de sociedade. Sua utilização transcende ao limite do
desperdício, pois permite trocar bens perecíveis por ouro e prata, possibilitando o
acúmulo de valor sem desperdício ou perda. Isso propiciou a passagem do homem a
um outro estado de natureza, permitindo o desenvolvimento de uma economia
mercantil, na qual a terra e os bens podem ser utilizados como capital.
99
98
Quanto ao desperdício, diz França (2000, p. 188) que “O que exceder a esse limite não pode ser
apropriado individualmente e deve permanecer no domínio, pois, ‘Deus não criou nada para que os
homens desperdiçassem ou destruíssem’” (LOCKE, 1994, p. 100). Também afirma o mesmo autor,
(2000, p. 188) que Para Locke (1994, p. 101), é inconcebível que Deus tenha criado o mundo para
que a terra permanecesse inerte, sem as comodidades da vida que ela oferece aos homens dispostos
a investir o seu trabalho para se apropriar de um bem da natureza que nasceu de todos”.
99
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. John Locke. In: BARRETO, Vicente de Paulo. Dicionário
de filosofia do direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p. 544.
54
Com o dinheiro, o homem amplia a sua propriedade que vai além da
apropriação pelo trabalho de sua família, e, pela simples troca de bens perecíveis e
úteis, passa a consumir uma variedade maior de bens. Essa é a forma mercantilista
com que Locke a propriedade. uma identificação do dinheiro com capital e
ambos são associados à terra. Na opinião de Locke, a finalidade da agricultura, da
indústria e do comércio era a acumulação de capital. O objetivo era originar mais
capital para possibilitar investimentos proveitosos.
100
Conforme análise de Macpherson, o limite da lei natural não é negado, pois a
apropriação de uma grande quantidade de bens que venha a se estragar antes de
serem consumidos é condenada. O dinheiro possibilita a troca de qualquer
quantidade de produto por capital ativo que não se deteriora. Analisa o
posicionamento de Locke, dizendo que ele considera não ser injusto nem insensato
acumular qualquer quantidade de terra, de modo a fazê-la produzir um excedente
que possa ser convertido em dinheiro e usado como capital.
101
O dinheiro para Locke é uma mercadoria. Ele tem valor porque é uma
mercadoria que pode entrar em permuta com outras mercadorias, mas sua principal
finalidade é servir como capital. O objetivo não é proporcionar uma renda para
consumir mais, mas originar mais capital para proporcionar mais investimentos.
Locke demonstra que o dinheiro tornou possível e justa a acumulação de
mais terras por um homem do que aquelas que ele poderia utilizar 582(a)-4(t)-2(i(cke)-4( )-212(d)-4(e)2(d)-4(e6(i)2(n)-4(( )-212a)-4( )-212sm)-162(h)6(o)-4(m)-7(e)84P2(l)22(p)6(a)-4(r)3(a)-4)-4(3-4( )-32(-42(e)-c9c9c9Td[( )8(m)312(uP(r)3(2(e)-c9c9c91e)-4(g)6(a)-4(d)-4.00391(o)-4(,(3-4( )-(a)4(o)-4(d)6(e)-b(i)2(a)-42(L)6(o)2(e()-4(t)-2(a)-4( )-42(212(e)-4((r)3( )-25 m3i)2(l)2(i)12(z)10(a)-(r)3( )-29(z)1( )-21)-29(z)1( )-21(g)6(a)-a)-4(s )-32(m)-7(e)-4(r)3T00391(o)-4(,(3-477e(n)-4.)-2(r)c)10(a)-4(p477e(n)-42(r)3( )-2(a)-4(r)2.99805(a)6( )277.998]TJ-)3ê277.998)2(i)12(z)10(a)-(r)3(i)12(z)1 Td[2(d)-4(e-2(a)-4(r)13( )-25)42.99805(a)3(o)-4(d)-)-171.99ge)-4( )-252(é)6( )-252(s)6( )-6oc5((r)3(2(e)-c2r)3(i)12(z561.99ge)-4( )-251124(r)3( )58 -20.76 Td[(p)-4( )-21)Td[(p)-(r)13( )-25)42o)-4(cke)--4(s )-42(su)-4(a9ge)-4( 6(v)10(e)e)-4(n)-4(2 )-21(g)6(a)-as mes r
55
Dessa forma, o dinheiro, a desigualdade de posse da terra e a substituição do
limite inicial de desperdício e o limite da quantidade de terra que um homem pode
possuir legitimamente são colocados por Locke no estado de natureza.
Podemos perceber, assim, que inicialmente são fixados os limites para a
propriedade limitada. No início, o homem apropriava-se das provisões naturais
suficientes para a sua sobrevivência, deixando tanto e tão bom para os outros, pois
havia em abundância. Após, o limite era fixado pela apropriação pelo trabalho, ou
seja, a quantidade de bens apropriados dependia do que uma pessoa pudesse obter
com o seu trabalho, sem desperdício, pois admitida a troca do excesso das
provisões. Com a criação do dinheiro, por convenção, restou admitida a propriedade
ilimitada por um homem em relação aos demais, com o objetivo que transformar o
excedente em mais dinheiro, convertendo-se esse em capital para gerar mais e mais
investimentos. Afastado o desperdício, Locke procura demonstrar que não é negado
o limite da lei natural, demonstrando que a propriedade ilimitada é possível e justa.
1.5 A Propriedade a Partir de KANT
Ao tratar sobre o tema do Direito Privado, Kant inicia analisando como ter
alguma coisa externa como sua. No primeiro parágrafo afirma que “é juridicamente
meu aquilo com o que estou de tal forma ligado [...]”. Adota duas posições em
relação à posse, dizendo que “[...] alguma coisa externa seria minha somente se eu
pudesse assumir que poderia ser prejudicado pelo uso de uma coisa por outrem,
ainda que eu não esteja de posse dela”. Trata-se da posse sensível que se entende
como sendo a posse física, e a segunda, inteligível, como sendo tão-só uma posse
jurídica do mesmo objeto.
102
A distinção fundamental entre a [...] posse sensível, física, empírica ou
possessio phaenomenon e a posse inteligível, jurídica ou possessio noumenon que
resolve a contradição
103
é entendida na primeira proposição, como a posse como
102
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro. 2003, p. 91
103
TERRA, Ricardo Ribeiro. A doutrina kantiana da propriedade. Discurso 14. Rev. do Departamento
de Filosofia da FFLCH da USP. São Paulo, v. 14, p. 113-157, 1983, p. 116.
56
empírica, enquanto na segunda, é inteligível. Ambas são verdadeiras, pois [...]
poderei dizer que algo exterior é meu se puder considerar-me lesado pelo uso que
outro fizer deste objeto mesmo que eu o esteja fisicamente em posse dele, o que
será possível em termos de posse inteligível.”
104
A distinção entre a posse empírica e jurídica é feita por Kant. A primeira, “[...]
em conformidade com direitos não ultrapassa o direito de uma pessoa com respeito
a si mesma”.
105
quanto à segunda, podemos explicar como se referindo a “Aquele
que a afeta contra meu consentimento (por exemplo, tira-me a maçã da mão), afeta
e cerceia o meu interior (minha liberdade), está em sua xima em direta
contradição com o axioma do direito”.
106
Refere-se a posse inteligível à possibilidade de possuir uma coisa externa a
nós mesmos, colocando de lado quaisquer condições de posse empírica no espaço
e tempo, pressupondo a possibilidade de possessio noumenon, o que vai além
dessas condições limitadoras.”
107
A posse inteligível vai além do direito de uma
pessoa em relação a si mesma.
Na exposição do conceito de “meu” e “teu” exteriores, é preparado o campo
para a definição real e para a dedução do conceito de posse jurídica. Os objetos
exteriores são divididos em três espécies, que podem estar relacionados ao arbítrio
de cada um, insistindo no caráter não-físico da posse afirmando Terra que:
Na primeira, tenho a posse de uma coisa corporal quando, mesmo não
estando na posse física, puder afirmar que o objeto é meu. Possuo uma
maçã, quando posso dizer que ela é minha, mesmo quando não a tenho em
minha mão. A posse não depende do lugar onde o objeto esteja; Na
segunda, a prestação de alguma coisa por alguém é minha, se posso
pretender que seja realizada no futuro e não apenas no presente [...]; Na
terceira, em relação à mulher, criança e criado, posso afirmar que são
meus, não porque estão sob o meu poder agora, pois mesmo que se
subtraiam à coerção, continuam sendo meus.
108
O princípio do meu e o teu exteriores resolve-se na possibilidade da posse
jurídica que, por sua vez, resolve-se na questão da possibilidade de uma proposição
104
Id. ibid., p. 116.
105
KANT, op. cit. 2003, p. 16.
106
TERRA, op. cit., p. 96.
107
KANT, op. cit. 2003, p. 96.
108
TERRA, op. cit., p.117.
57
jurídica sintética a priori. O postulado dá-nos a faculdade que nós não poderíamos
tirar dos simples conceitos do direito em geral.
109
Ainda sobre o princípio do meu e do teu, pode-se dizer que as relações entre
homens e coisas não são afetadas pela propriedade, mas são alteradas
substancialmente as relações do indivíduo com seus semelhantes. Adotando a
formulação em termos negativos, a propriedade é impensável sem uma
reciprocidade vinculadora do meu e do teu exterior sob leis públicas. Conclui-se que
a propriedade é inviável à revelia de leis universais que tornam compatíveis as
relações externas dos homens entre si.
110
EssQ1(oB606.656[(f)433 0e(1)3.7604(3)-4(e)6( )277.998]TJ(1)3.7604(e2)-4(x)10(t)-2(e)-4(r)3(n)-4(a)-4(s )-34(a)-4(s )-34(.760400147(vc(o)-4(r)3(n)-4(a)6(m)-f231 5.52 Td[6(1)36(i)2(a)-4( )--34()-302.002(8 n)-4(a)--4(r)3(4(e)-4( )-42(o)-4( )-32(p)-4(r584( )-321)3.76049(1)3.76049(0)556]TJ/R9 1s )-32(e)6()é4(d)6(e)6(n)-4(t)-2n)-44(t)-2n)-44(t)-2n)-44(t)-2nti2nts e-4(a)(e)-4(d)-4(a)6(d)-4(e)6( )-672(é)-4( )-672(i)12ti2n n-44(ti2n)-m c(a)V0-4(r)3(n)-43e21oe-4(ao2(e”(r)1oe-4[6(e)6(n)-4(ó-4[4)1oe-4[4g4(r-92(f)-12(a)-4(cu)-4r)3(e)-4(l)2(a)8m2(f)-1(i))3(e)-4.0010(t3510(t)-2(é0251t)-2(é0251t)-2(é0251t))556]Té0251t)-2(é0251t)am tter4[(.)-2( )4(o)-4(m5( )-42(a)-4(s 2(e)-4c-20.76 Td[(a)-47604(1K)6]Té0)-4( )-2 2r)-4( )-2 2rs. se1oe-4[4ht
58
Quanto à expressão externo, parágrafo sete, diz Kant que essa “[...] não
significa num lugar distinto de onde eu estou, ou que minha decisão e aceitação
estão ocorrendo num tempo diferente daquele da oferta, significa apenas um objeto
distinto de mim”.
114
A distinção entre o “ter” e o “deter”, na concepção kantiana é
[...] a forma de ter alguma coisa externa como o que é meu consiste numa
ligação meramente jurídica da vontade do sujeito com aquele objeto de
acordo com o conceito de posse inteligível, independentemente de qualquer
relação com ele no espaço e no tempo.
115
Ter um objeto significa que ele está em meu poder, é objeto de meu
arbítrio,
116
e eu decido como utilizá-lo. Isto não significa que eu esteja utilizando e
exercendo, atualmente, com meu corpo um poder físico sobre o objeto. Pensa-se a
posse aqui não em termos de detenção empírica, posse no fenômeno, mas a posse
inteligível, e essa possessio noumenon vale “como uma legislação com valor
universal: este objeto exterior é meu”.
117
No parágrafo oitavo, Kant afirma que “Não estou obrigado a deixar intocáveis
objetos externos pertencentes a outros, a menos que todos os demais me
proporcionem garantia de que se comportarão segundo o mesmo princípio com
respeito ao que é meu”.
118
A relação que se estabelece é de que “Se posso criar
uma obrigação para os outros homens, estes também podem impor uma a mim;
um princípio de reciprocidade”.
119
A conclusão a que se chega é de que, pelo
postulado da razão prática, é possível ter um objeto exterior como meu, e os outros
podem ter algo como seu, regidos pelo princípio da reciprocidade.
114
Id. ibid., p. 98.
115
Id. ibid., p. 99.
116
Na análise feita por LEAL, Rogério Gesta. Hermenêutica e direito. 3. ed. Santa Cruz do Sul:
Edunisc, 2002, p. 47 é “[...] o arbítrio que impulsiona o homem a agir para satisfazer seus desejos,
seus apetites, não deve afetar a liberdade de arbítrio dos outros indivíduos. Em razão disso, o arbítrio,
traduzido nas máximas individuais que julgam o meio apto para atingir a satisfação de um desejo,
está sujeito a uma legislação exterior. Tal legislação é o Direito, isto é, o conjunto de condições
através das quais o arbítrio de um indivíduo pode concordar com o arbítrio de outro, segundo uma lei
universal de liberdade.” É o arbítrio a capacidade do homem de se determinar pela lei moral, fazendo
dela sua máxima, cabendo ao Direito a limitação da liberdade de cada um para que seja possível a
convivência dos sujeitos de direitos.
117
KANT, op. cit. 2003, p. 99.
118
KANT, op. cit. 2003, p. 101.
119
TERRA, op. cit., p. 119.
59
Quanto ao princípio da aquisição exterior, é exposto por Kant somente no
capítulo do direito real, sendo dedicadas poucas linhas de sua própria formulação no
parágrafo décimo.
A aquisição é definida por Kant, com a seguinte afirmação: “Eu adquiro
alguma coisa quando faço com que se torne minha” e a aquisição ordinária, como
sendo aquela “[...] que não é derivada daquilo que é de outrem”.
120
Ou seja, a
primeira aquisição é a que se denomina de aquisição originária.
Os três aspectos da aquisição original são apresentados por Kant no décimo
parágrafo.
1) Apreensão de um objeto que não pertence a ninguém, [...] a apreensão é
tomar posse de um objeto de escolha no espaço e no tempo, de modo que
a posse na qual me instauro é possessio phaenomenon; 2) Indicação
(declaratio) de minha posse desse objeto e de meu ato de escolha no
sentido de excluir qualquer outra pessoa dele; 3) Apropriação (appropriatio)
como o ato de uma vontade geral (em idéia) produzindo uma lei externa
pela qual todos ficam obrigados a assentir com minha escolha. [...]
121
A ênfase dada por Kant à aquisição originária está de acordo com outros
pensadores que buscam a fundamentação da propriedade.
122
Quanto às formas de aquisição da propriedade, estão divididas em três
categorias: (1.ª) No que tange à matéria: adquiro uma coisa corpórea ou a prestação
de outra pessoa; (2.ª) No que tange à forma: que é o tipo de aquisição; (3.ª) No que
tange à base de aquisição no direito (titulus) é um aspecto da maneira como a
aquisição é realizada.
123
Sobre a aquisição originária, a reformulação de noções de outros filósofos
modernos é utilizada por Kant para solucionar o problema da aquisição originária.
Duas são as teorias básicas do direito de propriedade que procuram a legitimação
da aquisição: uma pela ocupação, defendida pela primeira vez na modernidade por
Grotius e outra, pelo trabalho, defendida por Locke. Outra questão de disputa
120
KANT, op. cit. 2003, p. 103.
121
Id. ibid., p. 104.
122
TERRA, op. cit., p. 120.
123
KANT, op. cit. 2003, p. 104-105.
60
consiste em estabelecer se o direito de propriedade repousa ou não numa
convenção.
124
O direito dos homens é o fundamento do direito. A ele é que se refere o dever
de abster-se do bem de outrem, de restituir aquilo que, sem ser nosso, está em
nossas mãos ou o lucro que disso tiramos, a obrigação de cumprir promessas, a
obrigação de reparar o dano causado por própria culpa e a aplicação dos castigos
merecidos entre os homens.
125
Restringe-se o direito aos objetos exteriores, sendo
direito do ocupante usar e consumir as coisas postas à sua disposição segundo a
necessidade natural, levando a concluir que quem lhe tirasse este direito faria
injustiça.
126
Sobre a liberdade, Grotius diz que “[...] o há ninguém que o gostaria de
ter à disposição a possibilidade de escolha, como sendo o direito à liberdade”. Como
primeiro dever, apresenta o dever de conservar no estado em que a natureza nos
colocou, de reter o que é conforme à natureza e de repudiar as coisas que lhe são
contrárias.
127
Essas noções foram utilizadas por Kant ao tratar do meu e do teu. A
conclusão é de que “Vida e liberdade o direitos básicos anteriores à
propriedade”.
128
Sobre a origem da propriedade, Grotius relata que
Logo após a criação do mundo, Deus conferiu ao gênero humano um direito
geral sobre as coisas dessa natureza. [...] cada um podia se apropriar para
suas necessidades do que quisesse e consumir o que podia ser consumido.
O uso desse direito universal tinha então a função de direito de propriedade,
pois do que alguém se havia apropriado outro não podia tirá-lo dele sem
injustiça.
129
No início, todos possuíam alimentos, vestes, locais para morar e todos
possuíam as coisas em comum. Para manter este estado, os homens mantinham
um modo de vida simples como a dos povos da América ou viviam da caridade como
os essênios e os primeiros cristãos.
130
Os homens, no entanto, não perseveraram
124
TERRA, op. cit., p. 125.
125
GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Ijuí-RS: Unijuí. 2005. v. 1 e 2, p. 39.
126
TERRA, op. cit., p. 118.
127
GROTIUS, op. cit., p. 99.
128
TERRA, op. cit., p. 126.
129
GROTIUS, op. cit., p. 309.
130
TERRA, op. cit., p. 126.
61
nessa vida simples e inocente, o que os levou ao rompimento da concórdia pela
ambição, sendo símbolo a torre de Babel.
131
Quando a comunidade dos bens passou a desagradar, sem que ocorresse a
partilha, foi realizado um acordo pelo qual o que cada um ocupasse seria de sua
propriedade. Com relação às coisas que eram comuns a todos e que o foram
divididas desde a primeira partilha, não poderiam mais se tornar propriedade de
ninguém por uma partilha.
132
Rompendo com a vida mais simples, os homens optaram por um gênero de
vida mais cômodo, e tiveram de recorrer à indústria que alguns empregaram para
uma coisa, e outros para outra.
133
Os homens passaram a necessitar do trabalho
para produzir os bens mais sofisticados que pretendiam consumir.
134
O tema da comunidade primitiva de todas as coisas é uma constante no
pensamento jurídico moderno e Grotius foi quem forneceu os modelos desse
procedimento jurídico.
135
Quanto à transformação das coisas em propriedade,
esclareceu que isso não ocorreu por simples vontade, mas através de convenção de
partilha, ou tácita, através de ocupação.
136
Para entendimento do pacto estabelecido, distingue-se a aquisição originária
da derivada. Esta se realiza por um contrato com aquele que obteve a
propriedade, enquanto aquela se em uma coisa que não tem dono ou que ainda
é de todos, podendo ocorrer a aquisição por divisão ou por ocupação. Por divisão,
ocorria quando ainda se constituíam os agrupamentos humanos, como antigamente;
atualmente só se pode adquirir por ocupação.
137
A conclusão, a partir das noções de Grotius, é de que a aquisição de algo se
pela primeira ocupação, e que o direito de propriedade tem por base uma
convenção tácita que deve ser aceita por todos.
131
62
Uma fundamentação do direito de propriedade, diversa de Grotius, é
apresentada por Locke. Destacamos os seguintes pontos que foram objeto de
estudo em capítulo específico sobre o tema: Locke aceita que a terra foi dada por
Deus aos homens em comum; ressalta que isto não impede a propriedade individual;
de início descarta a necessidade de consentimento de todos os homens; após,
passa a exigir pacto expresso; ponto de partida para a legitimação da apropriação
individual é que cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa e de que
a essa ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo; cria-se a possibilidade de
passar a propriedade da própria pessoa para as coisas que possibilitam sua
subsistência, pois o trabalho do homem e a obra de suas mãos são propriedade
dele. O que ele retira do estado de natureza fica misturado ao próprio trabalho,
tornando-se propriedade dele. O homem, proprietário de si mesmo e, portanto de
seu trabalho, detém o fundamento principal da propriedade. Estabelece-se uma
teoria da propriedade baseada no trabalho, independentemente de qualquer pacto
entre os homens.
Sobre a aquisição da propriedade pelo trabalho, diz Locke que “A extensão de
terra que um homem pode arar, plantar, melhorar e cultivar e os produtos dela que é
capaz de usar constituem sua propriedade”,
138
ressaltando que foi no princípio
que pôde o trabalho dar início a um título de propriedade sobre as coisas comuns da
natureza, porque após a propriedade foi regulada por pactos e por leis.
139
O fundamental da apropriação para Kant, não é a mistura do trabalho como
objeto, mas que aquela se funda num ato de vontade.
140
A transformação do objeto
é expressão do arbítrio, fundando-se a apropriação na liberdade. Outra diferença é
que a noção kantiana adquire função de crítica social, estando vinculada à
apropriação, não apenas no passado, como em Locke, mas também no presente.
141
A ética kantiana não dá, ontem como hoje, oportunidade à melhor das
conveniências sociais que é a aquisição da propriedade pelo trabalho. Da teoria da
aquisição que remete ao trabalho, diz Heck que “[...] toda a propriedade fática
138
LOCKE, op. cit., p.412.
139
Id. ibid., p. 428 e 424.
140
Sobre a desqualificação das justificativas convencionais para a existência de propriedade, ver
CAYGILL, Howard. Dicionário KANT. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000,
p. 264.
141
TERRA, op. cit., p. 130.
63
constitui um documento oficial a favor do dono como superproletário de um
lumenproletário original. Quem tem algo é porque trabalhou.” A propriedade na
concepção kantiana não está apoiada na relação do homem com os objetos
materiais por ele trabalhados, mas sim no plano das relações externas dos homens
entre si. A propriedade é para Kant não um direito fundamental, mas uma construção
da razão.
142
A aquisição pelo trabalho leva a pensar a relação dos homens com as coisas
como relações entre pessoas, ou seja, personificando as coisas e atribuindo-lhes
uma obrigação de servir àquele que as transformou. A posse é entendida não como
uma relação imediata com as coisas, mas como uma relação entre pessoas,
exigindo que esteja de acordo com a vontade unida de todos.
143
Ao abordar a questão referente ao ter e à aquisição do meu e do teu
exteriores, assim como a relação público com o privado, Kant constata a
necessidade da instituição de um estado jurídico e a conseqüente passagem do
estado de natureza, expressando que
Antes de uma Constituição civil (ou na abstração desta), a possibilidade de
objetos externos que são meus ou teus tem, portanto, que ser assumida e
com eles um direito de constranger a todos com os quais pudéssemos
entreter quaisquer negociações para que conosco ingressassem numa
Constituição na qual objetos externos podem ser assegurados como meus
ou teus.
144
A aquisição no estado de natureza é uma aquisição provisória, e está
baseada somente numa lei de uma vontade comum. A posse em antecipação é a
preparação para a condição civil que pode ser baseada em uma lei de vontade
comum. A posse, nessa condição, é posse jurídica provisória, enquanto a posse em
condição civil real é posse definitiva.
145
A conclusão é de que no estado de natureza se pode ter ou adquirir algo, mas
tal aquisição é provisória. Para que cada um tenha a sua propriedade é necessário
que haja uma legislação proveniente da vontade geral e um poder coercitivo que a
142
HECK, op. cit., p. 178.
143
TERRA, op. cit., p. 135.
144
KANT, op. cit. 2003, p. 102.
145
Id. ibid., p. 102.
64
execute.
146
Sobre a necessidade de uma vontade coletiva, diz Kant que “[...] é
somente uma vontade submetendo todos à obrigação, [...] uma vontade coletiva e
geral (comum) e poderosa é capaz de suprir a todos tal garantia.”
147
Exige-se a
condição civil para possa estar submetido a uma legislação externa geral.
A conclusão, a partir do posicionamento analisado, é de que a instituição do
estado civil está intimamente vinculada à necessidade da garantia da propriedade.
Demonstrada a possibilidade da propriedade, abre-se caminho para a saída do
estado de natureza e entrada no estado civil.
148
O destaque dado por Kant é quanto à aquisição originária e a derivada, o que
nos remete a uma análise da primeira posse e à forma de aquisição da propriedade,
com reformulação feitas por Kant das noções de Locke.
146
TERRA, op. cit., p. 140.
147
KANT, op. cit., p. 101.
148
TERRA, op. cit., p. 141.
65
2 CRÍTICA À PROPRIEDADE PRIVADA INDIVIDUAL
2.1 Teoria de Locke na Perspectiva de C.B. Macpherson
O presente estudo será pautado na interpretação feita por Macpherson
149
da
obra de Locke.
As bases do pensamento da Teoria Liberal Democrática são apresentadas
por Macpherson com fundamento na teoria e na prática política do século XVII.
Constata que as dificuldades da moderna teoria liberal-democrática o mais
profundas do que ele mesmo havia pensado; que o individualismo, oriundo do
século XVII, trazia em si a dificuldade central existente na sua qualidade possessiva.
Demonstra que a qualidade possessiva se encontra na concepção de indivíduo
essencialmente proprietário de sua pessoa e de suas próprias capacidades, nada
devendo à sociedade por elas. Estabelece a relação de propriedade com a natureza
do indivíduo. Para dar sustentação histórica à sua posição, fundamenta suas
críticas, a partir de filósofos recentes, descrevendo suas concepções de propriedade
e classificando-os como integrantes da corrente filosófica dominante, utilizando-os
para justificar seu posicionamento crítico diante dela. Na abordagem sobre Thomas
Hobbes e John Locke, procura mostrar que a teoria desenvolvida por eles, em
alguns aspectos, é rigorosamente incoerente quando sopesadas as suas suposições
149
MACPHERSON, C.B. A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes a Locke. Rio
de Janeiro: Paz e Terra,1979.
66
implícitas. Procura explicar como o teórico pode ter permanecido sem consciência
dessas incoerências.
150
Macpherson afirma que tudo o que o liberal-democrata moderno poderia
desejar está no trabalho de Locke. Nesse, destaca o governo pelo consentimento
majoritário, direitos de minorias, supremacia moral do indivíduo, santidade da
propriedade individual. Afirma que tudo é derivado de um princípio inicial de direitos
e de raciocínio naturais individuais, um princípio, ao mesmo tempo, utilitarista e
cristão. Atribui alguma confusão e mesmo autocontradição por se encontrar o autor
quase no começo da tradição liberal, reinterpretando a natureza do indivíduo e a
sociedade do século XVII. Conjectura Macpherson que as suposições não
declaradas por Locke, levadas para sua teoria, tenham partido de sua compreensão
da sua própria sociedade.
151
Na interpretação de Macpherson, as provas levam à conclusão de que Locke
não era absolutamente um individualista, mas sim um “coletivista”, na medida em
que subordinava os desígnios do indivíduo aos desígnios da sociedade.
Encontramos em Locke uma preocupação com o princípio democrático com o
governo da maioria. Porém, essa não era absolutamente a preocupação de Locke.
Macpherson questiona se o governo majoritário não colocará em perigo aquele
direito à propriedade individual que Locke, claramente, pretendeu defender. A
ênfase é colocada no constitucionalismo de Locke, porém o contexto da História
ofusca o contexto da história social e política. O que é proposto é um compromisso
entre o individualismo de Locke e seu coletivismo e as maiores incoerências são
deixadas sem explicação.
152
Algumas idéias pré-concebidas e suposições sociais do seu pensamento
político estão explícitas no Segundo Tratado. A mais importante está em seu famoso
capítulo “Da Propriedade”.
153
150
OLIVEIRA, Neiva Afonso. Propriedade e democracia liberal. Um estudo estribado em Crawford
Brough Macpherson. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. Coleção Filosofia-185, p. 155.
151
MACPHERSON, op. cit., p. 205-208.
152
Id. ibid., p. 207.
153
Id. ibid., p. 208.
67
Não há como negar que Locke centraliza a defesa a um direito individual
natural à propriedade em sua teoria de sociedade civil e governo. A afirmação que
se repete com muitas variações no Segundo Tratado é de que O grande e principal
fim, portanto, de se unirem os homens em comunidades, e de se colocarem sob
governo, é a preservação de sua Propriedade”.
154
Afirma Macpherson que o
postulado que se extrai é de que os homens têm direito natural à propriedade, um
direito que antecede a existência da sociedade e do governo civil ou que destes
independe.
155
Propriedade, para Locke, significa a propriedade que os Homens têm de si
mesmos, tanto quanto de seus Bens. O termo propriedade nem sempre é utilizado
por Locke em sentido tão lato, pois encontramos em sua argumentação, quanto às
limitações dos poderes dos governos, o uso da propriedade no sentido mais comum,
de terras e bens. Registra Macpherson que, quando Locke usava a propriedade,
tanto no sentido lato como no sentido restrito, sempre classificava a riqueza, a vida e
a liberdade como objetos dos desejos naturais dos homens, objetos para cuja
preservação os homens instituíram governos. Afirma que, em qualquer dos usos de
propriedade, Locke precisava demonstrar um direito natural à propriedade.
156
Segundo Macpherson, Locke havia estabelecido no começo do Segundo
Tratado que todo homem tinha um direito natural às posses e que se encontrava no
Estado de perfeita liberdade para ordenar seus atos, dispor de suas posses e
pessoas da forma que achasse conveniente, porém dentro dos limites impostos pela
Lei da Natureza.
157
Procede Macpherson à análise dos limites da natureza, dizendo que é preciso
deixar bastante e tão bom para os outros; que nada do que é apropriado pode ser
desperdiçado; que a quantidade de bens apropriados depende do que uma pessoa
possa obter com o seu trabalho.
158
154
Sobre a união dos homens em comunidades, a fim de preservarem suas propriedades, afirma-nos
Oliveira (2004, p. 157) que “A posição de Locke é precisamente a de um contrato social legitimado a
partir do estabelecimento de uma autoridade cuja função é preservar o direito de propriedade.”
155
Id. ibid., p. 209.
156
Id. ibid., p. 209-210.
157
Id. ibid., p. 210.
158
MACPHERSON, op. cit, p. 212.
68
Ao analisar a limitação do desperdício, afirma Macpherson que dois níveis
de consentimento na teoria de Locke. Um é o consentimento entre homens livres,
iguais, racionais, em estado de natureza, quanto à atribuição de um valor ao dinheiro
que Locke trata como sendo acompanhado da aceitação convencional da
obrigatoriedade dos contratos comerciais. Diz que esse consentimento é dado “fora
dos limites da sociedade, e sem pacto”; deixa os homens ainda em estado de
natureza, e dá-lhes o direito a maiores bens do que poderiam ter licitamente, de
outro modo. Outro é a concordância de que cada um deve entregar todos os seus
poderes à maioria. Esse é o consentimento que estabelece a sociedade civil. Como
as prioridades estabelecidas no estado de natureza são difíceis de cumprir, Locke
aponta essa como a principal, razão de os homens voltarem-se para o segundo nível
de consentimento, e entrarem para a sociedade civil. É após o consentimento ao
dinheiro que ocorre a saída do estado de natureza para a sociedade civil. A
seqüência envolve três fases: duas do estado de natureza; uma, depois do
consentimento ao dinheiro, seguidas pela sociedade civil.
159
Ao abordar a limitação da suficiência, Macpherson diz que o limite da
apropriação individual que Locke menciona em primeiro lugar, é de que toda e
qualquer apropriação deve deixar bastante e tão bom quanto para os outros. Esse
limite é menos obviamente superado pela referência à introdução do uso do dinheiro
por consentimento. Não há dúvida de que Locke o considerou superado.
160
Também
Bobbio diz que esse limite não tem grande importância na economia de uma
sociedade de proprietários, pois Locke não cansa de afirmar que terra em
abundância para todos e, portanto não que se temer que a apropriação feita por
alguém possa trazer desvantagem aos outros.
161
A norma da lei natural “que cada homem deveria deixar tanto quanto possa
utilizar” não vale depois da invenção do dinheiro. Locke não forneceu nenhum
argumento específico quanto a esse ponto. O encadeamento do raciocínio de Locke
parece ter sido o de que a conseqüência automática da adoção do dinheiro é a
evolução de uma economia mercantil, daí a criação de mercados para os frutos da
159
MACPHERSON, op. cit, p. 212.
160
Id. ibid., p. 222-223.
161
BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p.
198.
69
terra até então sem valor, e daí para a apropriação da terra que, até então, não valia
a pena ser feita. E, por implicação, o consentimento com uso do dinheiro, é
consentimento com suas conseqüências, donde o indivíduo tem justificação para se
apropriar da terra, mesmo quando esta não deixa nem o bastante, nem tão boa
quantidade para os outros.
162
Locke apresenta um novo argumento na terceira edição do Tratado: a
apropriação pelo trabalho não diminui, porém aumenta o estoque comum da
humanidade. A apropriação de mais terras do que aquelas que são deixadas em
quantidade suficiente e nem tão boas com a maior produtividade da terra apropriada
mais do que compensa a falta de terras disponíveis para os outros. Isso supõe,
naturalmente, que o aumento da produção total será distribuído em benefício, ou
pelo menos, não em prejuízo, daqueles que ficaram sem terra suficiente. Locke faz
essa suposição. Mesmo o diarista sem terra ganha sua mera subsistência. E a mera
subsistência, dentro do padrão predominante num país onde toda a terra está
apropriada e sendo plenamente utilizada, é melhor do que o padrão de qualquer
membro de uma sociedade em que a terra não está apropriada e plenamente
trabalhada: “um Rei de um território grande e infrutífero (entre “várias nações dos
Americanos”), come, mora e se veste pior do que um diarista na Inglaterra”.
163
O segundo limite da apropriação depende do próprio fim do instituto da
propriedade que é servir ao sustento de cada um, com sua família. Também diz que
esse não tem valor absoluto, pois vale somente em uma sociedade primitiva, antes
do surgimento da moeda.
164
A apropriação privada, desse modo, realmente aumenta a quantidade que é
deixada para os outros. A certa altura, não sobrará mais tanta terra para os outros,
162
MACPHERSON, op. cit., p. 225.
163
Id. ibid., p. 223-224. Afirma-nos Oliveira (2004, p. 157) que “Locke fundou o direito natural de
propriedade na idéia de que o trabalho que imprime uma pessoa sobre um objeto, uma coisa ou
70
porém sobrará vida bastante e tão boa (até melhor) para os outros. A idéia inicial de
Locke é que a vida é um direito fundamental do homem, o que o leva a deduzir
inicialmente o direito de apropriação da terra. É pela apropriação de toda a terra que
é criada uma vida melhor para os outros.
165
A limitação da suficiência foi superada. Permanece válida em princípio, mas
agora funciona de modo diferente. Após as primeiras idades do mundo, a regra da
suficiência não exige que cada apropriação de terra deva deixar terra bastante e tão
boa quanto, para os outros.
166
Em resumo, a apropriação de terras, em quantidade tal, que não deixe tantas
nem tão boas para os outros é justificada tanto pelo consentimento tácito do
dinheiro, quanto pela afirmativa de que os padrões dos que não têm terras, onde
essas estão todas apropriadas e utilizadas, são mais elevados do que os padrões de
quaisquer outros, em qualquer lugar onde a terra não esteja generalizadamente
apropriada.
A acumulação privada que, supostamente, ocorre entre iguais, é vista como
um espaço privilegiado do exercício de liberdade individual, o direito natural por
excelência que antecede o próprio Estado, sendo a finalidade desse, assegurá-la.
Nessa fase liberal-jusnaturalista, a propriedade é o direito fundamental por
excelência, e cria o limite entre os espaços público e privado.
167
Temos como conseqüência do princípio anterior que o direito natural de cada
homem a obter os meios de subsistência, mediante sua operosidade, era o direito de
apropriar-se dos meios de subsistência, no sentido original da intervenção de Locke.
duas maneiras de apropriação: todos têm o direito de apropriar a terra; quando
não mais terra, o direito natural à subsistência pode ser satisfeito estipulando-se
um arranjo que garanta aos que não têm terra obter a subsistência mediante seu
trabalho. Locke descobriu que esse arranjo era uma conseqüência natural da
adoção do dinheiro. Conclui que Locke, ao dizer que os homens, depois da adoção
165
MACPHERSON, op. cit., p.224.
166
Id. ibid., p. 225.
167
FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais, dignidade da
pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.).
Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.
92.
71
do dinheiro, têm direito a mais terra do que sobra para os outros, não contradiz sua
afirmação original do direito natural de todos aos meios de subsistência.
168
Tratando da suposta limitação de trabalho, Macpherson afirma que a terceira
limitação aparentemente está implícita na apropriação individual. Diz que Locke não
ofereceu nenhum argumento explícito para esse fim, e não precisava fazê-lo, pois a
todo tempo destacava a validade da relação salarial, pela qual um homem pode,
licitamente, adquirir o direito ao trabalho de outro.
169
Locke enfatizava que
[...] todo Homem tem a Propriedade de sua própria Pessoa; a esta, ninguém
tem nenhum Direito, a não ser ele mesmo”, quando este mistura seu
trabalho com a natureza, este Trabalho, sendo Propriedade inquestionável
do Trabalhador, Homem nenhum a não ser ele pode ter direito àquilo a que
(seu trabalho) está de uma vez, unido.
Não está absolutamente incoerente com a suposição de um direito natural de alienar
o próprio trabalho em troca de um salário.
170
Quanto mais o trabalho é afirmado como sendo uma propriedade, mais é para
ser entendido como sendo alienável. Para Locke, o trabalho de um homem é tão
inquestionavelmente propriedade sua que ele pode vendê-lo livremente, por um
salário. O trabalho, assim vendido, torna-se propriedade do comprador que então
tem direito a se apropriar do produto desse trabalho.
171
A suposição de que Locke estava tomando isso como certo, desde o começo
de sua justificação da propriedade, pode ser estabelecida por dois fundamentos.
Primeiro fundamento: Locke aponta o reconhecido direito dos indivíduos de se
apropriarem do produto natural das “[...] terras comuns que assim permanecem por
acordo”. Aqui, como no estado de natureza, o direito é estabelecido simplesmente
pelo gasto em trabalho, porém não ocorre a Locke que o direito de um homem
168
MACPHERSON, op. cit., p. 225-226.
169
Id. ibid., p. 226.
170
Id. ibid., p. 226.
171
Id. ibid., p.227.
72
pode ser estabelecido pelo trabalho de seu próprio corpo; é igualmente estabelecido
pelo trabalho que ele comprou.
172
O pressuposto de que Locke mais pensava do que deixava de pensar em
relação salarial no estado de natureza pode ser visto quando se dirigia para
questões de política econômica, como nas “Considerações”, quando ele tratava os
assalariados como uma classe normal e numerosa na economia, sua
contemporânea; e os salários, normalmente, estavam em nível de mera
subsistência, e que o assalariado não tinha outra propriedade que não o seu
trabalho.
173
As situações são explicitadas por Macpherson em três argumentos: quando
ele calcula a rapidez da circulação da moeda, as três únicas classes que considera
de significação são os assalariados, os proprietários de terras e os “corretores”, ou
seja, os mercadores e os lojistas; e supõe que os assalariados vivam geralmente “da
mão para a boca”, e que não tenham outros recursos além dos salários. Ao
investigar a incidência da taxação, diz que os impostos não devem recair sobre o
pobre assalariado ou o artesão [...] porque este vive apenas da mão para a
boca”.
174
Para Locke, então, uma economia comercial em que toda a terra está
apropriada, implicava na existência de trabalho assalariado.
Segundo fundamento: O pressuposto de que Locke estava atribuindo a
relação salarial ao estado de natureza é ainda mais fortalecido quando observamos
que ele relaciona os direitos naturais e a lei natural com a sociedade civil. que a
propriedade civil não pode sobrepujar a lei natural, e que tanto a apropriação de
mais terras do que aquela que um indivíduo pode, ele mesmo, trabalhar, como a
compra do trabalho dos outros são legítimos na sociedade civil, ambas devem ter
estado de acordo com a lei natural.
175
172
MACPHERSON, op. cit., p. 227.
173
Id. ibid., p. 228.
174
Id. ibid., p. 229.
175
Id. ibid., p. 230.
73
Enquanto ninguém tem o direito natural de alienar sua própria vida, que é
propriedade de Deus, ou tirar arbitrariamente a vida ou a propriedade de outrem, é-
lhe deixado o direito natural de alienar sua propriedade.
176
Qualquer direito de propriedade menor do que esse teria sido inútil a Locke,
pois a livre alienação da propriedade, inclusive da propriedade do próprio trabalho,
mediante compra e venda, é um elemento essencial da produção capitalista. E a
alienação do próprio trabalho de alguém está nitidamente diferenciada da concessão
de poder arbitrário sobre a própria vida, na diferenciação de Locke entre o escravo e
o livre assalariado.
177
A conclusão é de que Locke tomou por subentendido, durante toda a sua
justificativa do direito natural à propriedade, que o trabalho era naturalmente uma
mercadoria, e que a relação salarial que dá o direito de apropriação do produto do
trabalho de outrem fazia parte da ordem natural. Daí conclui-se que a terceira
suposta limitação ao direito natural de apropriação (ou seja, o máximo que alguém
possa trabalhar por esforço próprio) nunca foi cogitada por Locke. Não é o caso de
Locke remover essa limitação, pois não estava presente em seu pensamento, mas
tem sido vista em sua teoria pelos que a bordaram na tradição moderna do
humanismo liberal.
178
Também Bobbio considera que não razão para excluir a alienação do
trabalho da concepção filosófica produzida por Locke sobre a sociedade e a
propriedade, por três motivos. Primeiro, porque Locke declarou que a primeira
propriedade de que o indivíduo é titular é a sua pessoa. Segundo, porque é da
essência da propriedade a utilização da coisa possuída. Terceiro, porque a
alienação é uma das manifestações mais normais da livre utilização.
179
Sobre a contribuição de Locke, diz Macpherson
180
que a doutrina da
propriedade em Locke aparece sob uma nova luz, vindo a restabelecer a
significação que teve para Locke e seus contemporâneos. A novidade de sua
doutrina está na insistência em que o trabalho de uma pessoa é propriedade dela e
176
MACPHERSON, op. cit., p. 231.
177
Id. ibid.,p. 231.
178
Id. ibid., p. 235.
179
BOBBIO, op. cit., p. 201.
180
MACPHERSON, op. cit., p. 232-233.
74
tem quase a significação oposta àquela que lhe tem sido atribuída nos últimos anos;
fornece uma base moral à apropriação burguesa. Com a remoção das duas
limitações iniciais, que Locke reconheceu explicitamente, a teoria da propriedade, no
todo, é uma justificação do direito natural, não apenas à propriedade desigual, mas a
uma apropriação individual ilimitada. A insistência em que o trabalho do indivíduo lhe
pertence é a raiz da sua justificação. Se é o trabalho, propriedade absoluta do
homem, o que justifica a apropriação e cria o valor, o direito individual de
apropriação sobrepuja quaisquer reivindicações morais da sociedade.
181
Afirma Macpherson que Locke “Justificou, como natural, uma diferenciação de
direitos e de raciocínios, e assim fazendo, forneceu uma base moral positiva para a
sociedade capitalista”.
182
A pretensão de Macpherson, ao descrever as concepções de propriedade de
Thomas Hobbes e John Locke, é fazer uma crítica à corrente filosófica dominante da
moderna teoria liberal-democrática.
O que podemos concluir, apesar da crítica estabelecida por Macpherson, é
que a aquisição de bens, de forma ilimitada, é vista como o exercício da liberdade
individual, um direito natural por excelência que existia anteriormente ao Estado e
que, com sua instituição, passou a ter por finalidade a proteção da liberdade do
homem, assim como a proteção de seus bens, ou seja, de sua propriedade.
181
Sobre a propriedade ilimitada, afirma Oliveira (2004, p. 209) que “John Locke foi o primeiro a
tematizar a propriedade como direito individual de apropriação ilimitada. Sua posição tornou-se
padrão daqueles que formularam o pensamento da classe dirigente inglesa, desde a revolução de
1688, bem como dos que fizeram e consolidaram as revoluções francesa e americana, no século
XVIII. Sua teoria de justificação de propriedade, portanto, foi gravada ou, pelo menos, está implícita
– nas constituições das primeiras grandes nações capitalistas”.
182
MACPHERSON, op. cit, p.233.
75
2.2 Concepção Aberta e Plural de Propriedade
2.2.1 Visão de GROSSI
Paolo Grossi faz excelente estudo sobre a propriedade, realçando e
destacando o singular e o plural em sua obra. O título da obra é revelador,
183
pois
o que o autor pretende mostrar é a visão singular e individual de propriedade e sua
evolução para o plural, o que revela uma nova concepção de propriedade. A visão
que apresenta encerra um significado histórico, pois entende que é através dele que
ocorre a radical mudança de mentalidade.
184
A proposta do autor é olhar as coisas sem preconceitos individualistas e com
uma disponibilidade total para ler as coisas sem grandes deformações, pois as
coisas haviam revelado que eram estruturas, senão específicas, com ordens
específicas e diversificadas que requerem diversas e particulares construções
jurídicas.
185
As palavras de Grossi revelam essa preocupação em mostrar a relação
entre os homens e as coisas sem preconceitos individualistas, ao dizer que
Aquí había germinado la intuición elemental de que era hora de mirar a la
relación entre el hombre y las cosas, no desde la altura del sujeto, antes
183
“O título da obra é resultado de uma reflexão pessoal feita por Grossi, a partir de Salvatore
Pugliatti, na conferência sob o título “La Proprietá e la Proprietá”, que o levou a uma sistematização e
à mudança na maneira de olhar a relação entre o homem e as coisas. A origem dessa mudança foi o
primeiro Congresso Nacional de Direito Agrário de 1935, no qual Pugliatti participou aos
congressistas sua larga reflexão pessoal e ao mesmo tempo levou a termo com uma sistematização
admirável, o giro que, por mérito seu e de Enrico Finzi, se havia (sic) produzido na doutrina italiana
dos anos trinta.” (GROSSI, Paolo. La propiedad y las propiedades: Un análisis histórico. Espanha:
Civitas, 1992, p.20).
184
Sobre a evolução da propriedade singular e individual para o plural, diz DÍEZ-PICAZO, Luis.
Prólogo, apud RODOTÁ, Stefan. El terrible derecho. Madri: Editoral Civitas, 1986, p. 17, que “La
idea de la multiplicidad de propiedades no existe la propiedad, sino las propiedades trata de
romper con ese esquema. Los partidarios de esta tesis sostienen la desintegración del concepto
unitario y la diversificación de los regímenes jurídicos. El concepto unitario de propiedad deja paso a
la idea de la diversidad de propiedades, ya que, según sea la naturaleza del objeto, la situación
jurídica habrá de tener un contenido diferente. No se pueden aplicar las mismas directrices, o los
mismos esquemas, al régimen de la propiedad mobiliaria que a la inmobiliaria, a la propiedad urbana
que a la rústica y así sucesivamente. Hay, según ello, diferentes “estatutos de propiedad”.
185
Sobre a linguagem do individualismo, trazemos a explicação de VILLEY, Michel. A formação do
pensamento jurídico moderno. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.255: Em vez de visar a
ordem do grupo, está centrada no “sujeito” em particular. Tende a conceber e a exprimir as
“qualidades” ou as “faculdades” de um sujeito, as forças que seu ser irradia: poderes, mas no sentido
principal da palavra, entendida como capacidade da pessoa, inerente ao sujeito: no sentido
“subjetivo”. Conseqüência: esse poder é concebido, de partida, como “ilimitado”. É apenas num
segundo momento, quando for preciso dar conta dos poderes concorrentes dos outros, que lhe
atribuirão fronteiras. Inicialmente, ele não é uma parte definida.”
76
bien poniéndose al nivel de las cosas y observando desde abajo aquella
relación, sin preconceptos individualistas y con una disponibilidad total para
leer las cosas sin gafas deformadoras. Y las cosas habían revelado que
eran estructuras no genéricas sino específicas, con órdenes específicos y
diversificados que requieren diversas y particulares construcciones jurídicas,
si estas últimas quieren ser adecuadas y no mortificantes.
186
Macpherson destaca que, no individualismo possessivo, o indivíduo é
essencialmente o proprietário de sua própria pessoa e de suas próprias
capacidades, pelas quais ele não deve nada à sociedade.
187
A instalação de uma metodologia fundamental foi possível, para Grossi, com
a relativização e desmistificação da propriedade moderna. Foi a partir dos climas
históricos e dos mais variados conteúdos que identificou uma abertura para a
concepção da propriedade. Diz que é através da historificação que chegamos à
pluralidade da propriedade, pois “Sobre esto el historiador no puede más que estar
de acuerdo; para él propiedad‘ debe ser solamente un artificio verbal para marcar la
relación histórica que un ordenamiento da al problema del vínculo jurídico más
intenso entre un sujeto y un bien.”
188
É o historiador que recupera os dados
históricos e projeta uma ideologia sobre a propriedade.
Ainda que o título remeta à pluralização da propriedade, não é possível
desvincular o caráter individual da propriedade. sempre um mínimo de posse e
de individualidade presente na concepção de propriedade. Parte o autor de
realidades que considera vivíssimas do período medieval, que se arrastam e que se
mantêm até nossos dias. A partir desta perspectiva, Grossi afirma que
El primer riesgo es el de un pesado condicionamiento mono cultural: nuestro
título, aun con todas sus pluralizaciones, lleva impreso el reclamo
embarazoso a un universo propietario”, y propiedad es siempre mínimo de
pertenencia, de poderes exclusivos y dispositivos conferidos a un
determinado sujeto por el ordenamiento jurídico.
[...] hay todo un pulular vivo para nuestra atención de culturas propias de
planetas jurídicos diversos, en donde no es tanto la tierra la que pertenece
al hombre sino más bien el hombre a la tierra, donde la apropiación
individual es invención desconocida u ordenación marginal.
189
186
GROSSI, Paolo. op. cit. 1992, p. 21.
187
MACPERSON, op. cit., p. 275.
188
GROSSI, Paolo. op. cit. 1992, p. 22.
189
Id. ibid., p. 25-26
77
O estudo histórico, realizado por Grossi, parte do período Medieval. Nesse
período, nas zonas da Europa Ocidental, encontrava-se a chamada “propriedade
coletiva”, termo considerado impróprio, pois o encontramos uma propriedade que
não seja individual, seja ela condomínio, propriedade de uma pessoa jurídica ou,
ainda que fosse pública e do estado, pois considera que seria sempre individual,
ainda que não ligada a um indivíduo fisicamente existente.
190
Esclarece Grossi que a propriedade coletiva tem em comum a garantia de
sobrevivência para os membros de uma comunidade plurifamiliar, com uma função
essencialmente alimentar. Tem como conteúdo fundamental o primado do objetivo
sobre o subjetivo que se cristaliza como objetividade histórica na relação com o
indivíduo, na ordem comunitária.
191
Na sociedade coletiva, a apropriação, no sentido tradicional do termo, ocorre
de forma indireta sobre o produto de fundo que serve à sobrevivência cotidiana de
um núcleo familiar. Desse modo, a apropriação não alcança nunca o próprio objeto
de fundo que é a propriedade. A propriedade é vista como um meio para a
sobrevivência.
192
Tomando a propriedade como convenção verbal, Grossi insere também em
seus limites as formas de “propriedade coletiva”. Chama a atenção, para que o se
descure a existência de um território uniforme, muito bem multifacetado dentro
daqueles limites e que não se cometa a ingenuidade imperdoável de crer que tudo
se esgota no universo da posse, conforme a corrente bem pensante do dominante
pensamento oficial.
193
Conclui o autor que o título de sua obra, com sua oprimente reclamação ao
“próprio” e ao “meu”, o deve vendar nossos olhos e fazer-nos considerar apenas
uma paisagem jurídica, pela simples razão de que nos é próximo e familiar. Invoca
nossa atenção para que nos mantenhamos de olhos abertos para outras
concepções de propriedade. Considera que
190
Id. ibid., p. 26.
191
Id. ibid., p. 28.
192
GROSSI, Paolo. op. cit. 1992, p. 28. (tradução nossa).
193
Id. ibid., p. 29-30.
78
[…] Vivir en el interior del universo de la pertenencia, como es nuestra
suerte, sin abrir ideales ventanas al exterior, arriesga no solamente
hacernos considerar única la que es simplemente una solución histórica
dominante, sino hacérnosla considerar la mejor posible, con la consiguiente
condena de toda otra solución como anómala y peor.
194
Sobre a história da propriedade e sua definição, também enconte, ta 1.78255.12leaa 1.78255.12 del
79
Ele não qualifica poderes e não faz deles direitos. Ele traça os limites dos domínios,
porém o que acontece em cada domínio, as relações do proprietário com o domínio
que lhe corresponde, isso não lhe concerne. No direito romano não definição do
conteúdo do suposto direito subjetivo de propriedade.
198
Para Grossi, o alto-medievo é uma grande civilização possessória,
entendendo-se o objetivo possessório não no sentido romanístico, mas na
concepção de Enrico Finzi. É a conotação de um mundo de feitos, nem formais nem
oficias, porém provido de agressividade e de incisividade.
199
Nesse período, podemos dizer que a propriedade é reduzida a um mero
registro cadastral, pois não a presença embaraçosa do estado nem movimentos
culturais importantes.
200
É construído um sistema de situações reais, com efetividade
econômica sobre o bem, não ligado ao dominium nem ao domina.
201
Desaparece o velho ideal clássico da validade, ou seja, da correspondência a
modelos e tipos. Surgem, de forma desordenada e viva, situações toscas, não
filtradas por nenhum crivo cultural, que se impõem na base de feitos primordiais que
são a aparência, o exercício, e o gozo. No centro do ordenamento e de sua atenção
está a coisa, com suas regras naturais, e não o sujeito com suas próprias vontades e
presunções. É o reino da efetividade,
202
enquanto
198
VILLEY, op. cit., p. 258.
199
Id. ibid., p. 35.
200
Sobre o Estado na Idade Média, diz PEZZELA, Maria Cristina Cereser. Código Civil em
perspectiva histórica. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.) O novo código civil e a constituição. 2.
ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006a, que “O Estado, que o Medievo não conheceu, é uma
entidade política que tende a apropriar-se de todas as relações sociais que se desenvolvem no seu
âmbito, o Estado é, por sua vocação, uma entidade omnicompresiva.” Na nota de rodapé n. 8, a
autora explica a expressão omnicompresiva, como sendo uma expressão italiana, sem uma
correspondente na língua portuguesa, que pode ser compreendida como “ que inclui tudo”. (p. 36).
201
GROSSI, op.cit. 1992, p. 35.
202
A distinção entre eficácia, eficácia jurídica, eficácia social e a própria aplicação é feita por
MATTOS, Liana Portilho. A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do Estatuto
da Cidade. Rio de Janeiro: Temas e Idéias, 2003, p. 86-87. “A eficácia, como se sabe, consiste na
aptidão do ato jurídico para produzir efeitos, para irradiar as conseqüências que lhe são próprias. A
eficácia jurídica guarda relação com a qualidade da norma em produzir os seus efeitos ínsitos, em
regular as situações, relações e comportamentos nela indicados. [...] A eficácia social da norma
jurídica, embora também comporte tratamento de acepções distintas por parte da doutrina, está um
passo além da aptidão típica da norma para produzir efeitos (eficácia jurídica). Ela diz respeito à
conformidade de uma situação fática a uma determinada norma jurídica, à aproximação íntima entre
os efeitos possíveis e sua irradiação efetiva no plano do concreto (aplicação). Aqui, portanto, é que se
dá o encontro também não consensual entre os conceitos de eficácia social, aplicação e
efetividade.” É na eficácia social que encontramos os meios para a efetiva aplicação da norma.
80
[…] desaparece el viejo ideal clásico de la validez, es decir, de la
correspondencia a modelos y tipos. No-arquitectura y formas sapientemente
preconstituidas sino un germinar desordenado y vivo de situaciones toscas,
no filtradas por ninguna criba cultural, que se impone en base a hechos
primordiales que son la apariencia, el ejercicio y el goce. Y, en el centro del
ordenamiento y de su atención no ya el sujeto con sus propias voliciones y
presunciones sino la cosa con sus naturales reglas incluidas, fuerza que
impregna toda forma jurídica, antes bien, constitutiva de toda forma
jurídica.
203
Surgem novas sistematizações, pois o problema central não é o vínculo
formal e exclusivo sancionado pelos livros fundiários, mas a efetividade sobre o bem,
prescindindo de suas formalizações. Como diz Grossi, é a possession do bem, com
sua dimensão de faticidade
204
que se contrapõe a um reino de formas oficiais.
205
No reino da efetividade, a propriedade desvincula-se das formalizações e
ganha força a dimensão de faticidade, em que a aparência e o exercício do gozo
levam, através da possession, a propriedade do bem a alguém.
206
Na construção medieval de propriedade, encontramos como traço de
ordenação jurídica, a inversão da relação homem-natureza, e novos valores
fundamentais começam a imprimir-se no mundo jurídico.
207
Afirma Grossi que as
203
Id. ibid., p. 35.
204
Sobre a matéria, registramos as noções de HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre
facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler UGF. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro,1994. v. 1, p. 33, ao afirmar que “A idealidade da generalidade conceitual colocara-nos
frente à tarefa de explicar, com o auxílio das regras de linguagem, o modo como significados
idênticos podem manter-se em meio à variedade de suas respectivas realizações lingüísticas. Ao
passo que a idealidade da validade veritativa nos confrontara com a tarefa de longo alcance, de
explicar, com o auxílio das condições comunicativas da prática de argumentação, como as
pretensões de validade, levantadas aqui e agora e voltadas ao reconhecimento ou aceitação, podem
ir além dos standards para tomadas de posição em termos de sim/não, exercitadas em qualquer
comunidade particular de intérpretes. Ora, esse momento transcendente, e somente ele, distingue as
práticas de justificação orientadas por pretensões de verdade em relação a outras práticas, reguladas
apenas por convenções sociais”.
205
Id. ibid. , p. 36.
206
Sobre a posse, afirma ARONNE, Ricardo. Titularidades e apropriação no novo Código Civil
brasileiro Breve ensaio sobre a posse e sua natureza. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.) O novo
código civil e a constituição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006a, p. 240-241, que A
posse, na disciplina da pertença, atende ao comando dos regimes de apropriação. Tradicionalmente
é a regulação do ter, não raro em prejuízo do ser, diante de sua arquitetura fulcrada na retenção
física dos bens de apropriação. Independe das titularidades, guardando autonomia institucional
(classicamente mais propalada do que sistematizada), se imiscuindo no domínio, em sua percepção
mais arejada, mas tampouco, confunde-se com ele, constituindo ainda, um desafio para a civilística,
no sentido de ter muito a ser dito sobre o tema, não obstante muito já ter sido dito.”
207
Sobre a grande experiência jurídica medieval, afirma-nos Grossi (1992, p. 52) que “[...] debemos
aproximarnos al Derecho medieval: como a una gran experiencia jurídica que alimenta en su seno
una infinidad de ordenamientos, donde el Derecho – antes de ser norma y mandato – es orden, orden
de lo social, motor espontáneo, lo que nace de abajo, de una sociedad que se autotutela ante la
81
coisas se agigantam e voltam-se como elementos essenciais de uma paisagem que
leva cada vez menos traços da ação humana. As coisas servem como condições
elementares de sobrevivência no mundo. O sujeito perde o mando e sofre o conjunto
de forças que, do exterior, projetam-se sobre ele. Dentro desse contexto, o cânon
construtivo da nova civilização são as forças e regras primordiais escritas sobre as
coisas. O ordenamento passa a exemplificar sobre as coisas e constrói-se do ponto
de vista das coisas.
208
O jurídico adere à plástica da realidade objetiva. As formas, incapazes de se
separarem das estruturas, somam-se a elas. O jurídico mescla-se, sem delimitações
precisas, com o fático e dele está impregnado.
209
O ordenamento jurídico assume como forças motoras próprias a aparência, o
gozo, o exercício, presenças vivas da dimensão tica, sem inventar cânones
artificiosos de qualificação. Registra, com humildade, a carga normativa de todos
esses feitos. Não desaparece o dominium do antigo titular cadastral, porém ele se
desvitaliza pelo empobrecimento, deixando que resulte expropriado dos poderes
empresariais quem proprietário não é, porém é ele gestor da empresa. Conclui
Grossi que “esta é a demanda autêntica da vida econômica que vem sendo ouvida
favoravelmente”.
210
Afirma-nos o autor que se trata de uma revolução cultural que está escondida,
que é enganosa, fruto o de um movimento ou de um programa, mas de uma
problemática que está operando, de geração em geração, no vazio criado pela
queda do mundo antigo sobre o único terreno verdadeiramente existente, ainda que
sutilmente e destruidor: o da mentalidade.
211
litigiosidad de la incandescencia protectora del individuo y de los grupos. La sociedad se impregna de
Derecho y sobrevive porque ella misma es, antes que nada, Derecho, debido a su articulación en
ordenamiento jurídico”.
208
GROSSI, op. cit. 1992, p.73.
209
GROSSI, op. cit. 1992, p. 74.
210
Id. ibid., p. 76.
211
Id. ibid., p. 76. Ver também GROSSI, Paolo. El orden jurídico medieval. Madrid: Marcial Pons,
1996, p. 89. “La nueva experiencia, con su vacío cultura, con su rarefacción política, con sus
constantes y apremiantes exigencias de supervivencia cotidiana, se ve obligada a redescubrir otras
fuerzas, fuerzas objetivas, aquellas que, sin artificios, nacen efectivamente sobre y de las cosas y a
las que están ligadas las instancias primarias de la vida de cada día.”
82
A nova mentalidade que o historiador contempla, é apresentada por Grossi
como sendo de uma civilização “possessória” que substitui a mentalidade
proprietária romana. Ela é indiferente à idéia de validez, porque é dominada por um
rigoroso princípio de efetividade. Neste contexto da evolução possessória, emergem
as figuras do uso, exercício e gozo que expressam de forma viva a formalidade do
homem com as coisas, sua união e sua vida com elas. É dessas figuras que se
impregna o ordenamento jurídico, sem construções rigorosas e definidas.
212
A conclusão a que chegamos é de que as novas situações fáticas não se
colocam fora, mas bem dentro da dimensão do “real”, numa dimensão que
continuamos pensando, medida na propriedade e direitos reais sobre a coisa
alheia.
213
No estudo realizado, a propriedade é vista como mentalidade jurídica. Não é
negado o mérito de fazer da propriedade um elemento da paisagem histórica, desde
que não se desperdice a dimensão jurídica que é uma realidade ôntica a
individualizar e a destacar. O autor expressa-se, dizendo que
[…] Añadamos también, insistiendo sobre los temas aludidos, con tal de que
entre los mil hechos que componen aquel paisaje no se pierda el entretejido
de líneas que conlleva que no es tangible, antes bien, que corre subterráneo
o circula invisible en el aire, pero que no por es menos presente y
significativo como fuerza de un cierto clima histórico. La propiedad, las
propiedades [...] antes de ser paisaje son mentalidades.
214
O autor define mentalidade, dizendo que mentalidade é aquele conjunto de
valores que circulam em uma área especial e temporal, capaz por sua vitalidade, de
separar a diáspora dos feitos e episódios isolados e de constituir o tecido conjuntivo
escondido e contestante daquela área.
215
A possibilidade de tornar essa realidade unitária, o autor transfere ao jurista,
pois a esse a tarefa é natural e familiar. Essa atribuição é justificada, porque o jurista
é um intelectual que, por uma íntima tensão, sempre faz as contas com o nível de
valores, e faz a unificação orgânica dos dados. Diz que o jurista se sente,
comodamente e na própria casa, no terreno das mentalidades, pois com fundamento
212
GROSSI, op. cit. 1992, p. 77.
213
GROSSI, op. cit. 1992, p. 79.
214
Id. ibid., p. 57.
215
Id. ibid., p. 58.
83
sincrônico, faz o entrelaçamento da globalidade da experiência com o procedimento
fundamentalmente sistêmico, pois os valores tendem a permanecer e a cristalizar-
se.
216
Sobre a evolução do direito e a sucessão de modelos sistemáticos, afirma
Canaris que o direito sempre teve seu sistema interno e que o externo somente se
tornou possível quando a Ciência do Direito atingiu um determinado nível de
desenvolvimento. Descreve a história do direito, dizendo que
[...] O Direito Privado continental resulta de três recepções sucessivas do
Direito romano: a recepção das universidades medievais, a partir de
Bolonha, a recepção humanista, com tônica na França, no século XVI e a
recepção pandectística, na Alemanha do século XIX. Na recepção verifica-
se que uma comunidade independente de qualquer dominação política,
econômica ou social, adapta elementos jurídicos significativos próprios de
outra, presente ou passada.
217
No entanto, a essência da recepção é outra, como nos afirma Canaris. “Ela
repousa numa difusão cultural de certos elementos ou, se se quiser, na
aprendizagem de uma determinada Ciência”. A recepção no Direito prende-se à
aprendizagem dos juristas. Ao longo da história, nas sucessivas recepções, o Direito
foi se modificando, com as alterações que foram sendo introduzidas no sistema
externo.
218
No terreno jurídico, a propriedade rompe a trama superficial das formas. Liga-
se, por um lado, à antropologia, a uma visão do homem no mundo; e por outro,
graças aos interesses vitais de particulares e de classes, a uma ideologia. Por isso,
diz Grossi que a propriedade, por essas insuprimíveis raízes, mais que nenhum
outro instituto, é mentalidade e, mais, é mentalidade profunda.
219
Obriga-se o historiador a uma observação objetiva da propriedade, porque
mudam as paisagens agrárias, passam as ordens sociais, porém a mentalidade, às
vezes, persiste.
220
216
Id. ibid., p. 58.
217
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de Sistema na ciência do
direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002, p. LXX e LXXI;
218
CANARIS, op. cit., p. LXXIII.
219
GROSSI, op. cit. 1992, p. 59.
220
Id. ibid., p. 59.
84
O autor o historiador-jurista como o reconstrutor da forma esclerosada e
oficial, porque deve ajustar contas, quotidianamente, com as mentalidades, pois o
Direito é, fisiologicamente, uma mentalidade baseada na consciência social. Adverte
o autor, no entanto, que o historiador genérico da cultura e da sociedade não deveria
perder a oportunidade de fazer uma reflexão realista, pois, no universo jurídico, as
formas são somente as pontas que emergem de um gigantesco edifício submerso,
um edifício construído sobre valores, e esses demandam respeito e observação às
manifestações mais vivas de um costume, crenças religiosas, certezas sociais.
221
O historiador do direito é homem de dupla consciência, e tem uma dupla
exigência quanto ao conteúdo das fontes. Elas devem estender-se até alcançarem a
historificação dos dados jurídicos e das opções cnicas. O historiador do direito não
deve ficar nas fontes jurídicas, mas utilizar-se da maior gama das fontes, pois ampla
e variada. Nelas também encontramos dados oferecidos pela história agrária e
cadastral.
A história agrária tem como cânon metodológico sempre unir, de maneira
determinista, a mudança social, o florescimento, a crise, os precisos feitos
estruturais. Para alguns, considera a superpovoação em relação à quantidade de
superfície cultivada; para outro, o escasso progresso técnico de cultivos e, ainda
outro, a debilidade do modo de produção feudal; e quem invoque a crise
demográfica, seguindo a carestia e epidemias, os movimentos dos preços e das
rendas. O autor adverte para que se tenha cautela no nível das estruturas, pois
total ausência de tentativa para conjugar as relações e o modo de produção para
organizar os dados dentro de seu natural tecido de civilização e efetuar, com eles,
uma composição absolutamente historiográfica.
222
Quanto às fontes cadastrais, afirma Grossi que o cadastro é formalmente um
procedimento jurídico, porém com finalidade e conteúdos exclusivamente
econômicos, pois é um conjunto de operações dirigidas à fichação da consistência e
renda dos bens, assim como a efetiva percepção desta, para fins de impostos. Nos
cadastros se fala de propriedade e de proprietários, pensados e colocados na esfera
das relações econômicas. Seu objetivo é econômico, ao gravar com ele o tributo. A
221
GROSSI, op. cit. 1992, p.61.
222
GROSSI, op. cit. 1992, p. 44.
85
propriedade chega a identificar-se com uma noção conceptualmente genérica, ainda
que economicamente corpórea, de detenção, de riqueza fundiária e percepção da
renda. É uma noção que nada tem a ver com o poder construído pelos juristas.
Como fonte genérica, revelam-se inadequados para o historiador do Direito.
223
No entanto, ainda que incompletos e inadequados, os dados oferecidos pela
história agrária e pelas fontes cadastrais contribuem com dados que podem ser úteis
ao historiador do Direito.
Merece também destaque, como fonte de dados sobre a propriedade, a
teologia voluntarista do século XIV e do século XV, pois oferecem elementos
preciosos das velhas propriedades jurídicas, que conduzem às cartas constitucionais
do século XVIII e aos códigos de século XIX.
A história da propriedade e das relações jurídicas sobre as coisas está
necessariamente marcada por uma profunda descontinuidade, que a propriedade
é sobretudo mentalidade, conforme nos afirma Grossi. Não há uma continuidade,
porque não uma única propriedade, mas tantas propriedades, quantas são as
experiências jurídicas que se têm sucedido no tempo. Tomando por base o ponto de
vista social, verificamos que nunca foi derrubado o embasamento da propriedade
individual. Mesmo na propriedade coletiva do alto-medievo foi mantida a idéia formal
de propriedade individual como legitimadora da propriedade. Também a propriedade
é o poder sobre as coisas, e pode ser definida como a situação de poder direto e
imediato sobre o bem tutelado. A tutela, primeiramente, informe e fática, é o primeiro
passo que se instala sobre um itinerário que desembocará na sinalização de uma
dignidade formalmente proprietária.
224
Merece destaque a afirmação de Grossi de que se desembaraçar de toda
aproximação formalista, de todo o estorvo desviador da continuidade pode ser a
única operação de higiene intelectual para aprender e seguir o formar-se da nova
experiência jurídica sobre o tronco dos feitos econômico-sociais. Aqui, respeito à
descontinuidade quer dizer respeito à originalidade dos feitos históricos.
225
223
Id. ibid., p. 44.
224
GROSSI, op. cit. 1992, p. 67-70.
225
Id. ibid., p. 71.
86
Apesar da descontinuidade histórica da propriedade, em razão dos diferentes
universos que a compõem, não podemos esquecer que o velho continua
procedente, quase por inércia no nível da mentalidade. Continua informando as
consciências, fazendo do novo universo uma realidade in limine contraditória,
portadora de valores do signo oposto. Como afirma Grossi, são esvaziamentos
lentos a extinguir-se, mas que nada têm a ver com o problema de continuidade. O
completamente ”moderno” da propriedade concentra-se no mais tardio do século
XIX.
226
No alto-medievo, as figuras jurídicas que surgiram de forma grosseira e
rudimentar foram modeladas pelo juiz e o notário daquele período. Surge uma nova
possibilidade de compreensão e utilização de modelos culturais, juntamente com os
instrumentos interpretativos e inventivos romanos e, no centro deste patrimônio,
retorna o próprio dominium, voltando a propor um modelo de toda ordem jurídica
real.
227
A mentalidade usual do alto-medievo retoma o esquema do dominium que se
desdobrará e resultará modificado. O mundo jurídico vem agora repensado pelos
homines nuovi da nova cultura jurídica, cidadãos, mestres, pensadores, em termos
de dominium. A civilização construída no alto-medievo não é desmentida, mas
continua se enriquecendo e complicando-se sob o ponto de vista cultural.
228
Afirma Grossi que o testemunho loquaz da continuidade é o dominium utile,
invenção que reflete os vícios e as virtudes da jurisprudência do renascimento
jurídico. Ninguém duvida de que o domínio útil leva inscrito em sua figura uma íntima
contradição: um substantivo e adjetivo mal definidos. O substantivo atende ao reino
da soberania imperiosa do indivíduo, às capacidades expansivas da vontade,
enquanto o adjetivo arrasta aquela capacidade a uma esfera que não é o propósito,
a um mais baixo nível de terrenidade cotidiana de onde as coisas são usadas e
gozadas, porém não é necessário falar de virtude, de soberania, de capacidade.
Nenhuma dúvida existe de que o gozo pode estar no interior do conteúdo do
226
GROSSI, op. cit. 1992, p.71-72.
227
Id. ibid., p. 81.
228
Id. ibid., p. 82.
87
domínio, ainda que conteúdo marginal. A noção de gozo é sem dúvida estranha à
idéia de domínio.
229
O domínio útil é fruto da contaminação entre o plano da efetividade e o da
validez,
230
é o conjunto das servidões alto-medievais, repensado “romanisticamente”
no termo de dominium.
231
A visão histórica da noção de domínio útil nasceu do respeitável
descobrimento dos Glosadores e viveu substancialmente nas instituições da práxis
alto-medieval. Essa noção, ainda que pensada e vivida num universo cultural,
certamente não correspondia à interpretação que prevalecia na realidade. Desloca a
atenção da titularidade ao exercício como conseqüência do agigantamento social e
jurídico de feitos econômicos antes inominados e privados de tutela. Em seu
apogeu, instala-se o dominium no coração da idéia proprietária, provocando uma
ruptura da antiga propriedade unitária, propondo uma renovada nota de pertinência.
Entende Grossi que “[...] si del mundo retorna en auge una lectura en el prisma de la
propiedad, los hechos concernientes a la utilitas pueden y deben encarnar una
propiedad”.
232
Afirma o autor que é conferido um máximo de relevância às coisas. O sujeito,
em sua unicidade, pede um dominium unitário e incindível, enquanto a coisa, em sua
complexidade estrutural, em sua estratificação de substantia e de utilitas, impõe
diversificações proprietárias, segundo as diversas dimensões nas quais se articula.
229
Id. ibid., p. 82-83.
230
Diz Habermas (1994, p. 46) que [...] a facticidade e a validade se separaram, na perspectiva dos
próprios sujeitos agentes, formando duas dimensões mutuamente excludentes. Para atores
orientados pelo sucesso todos os componentes da situação transformam-se em fatos, que eles
valorizam à luz de suas próprias preferências, ao passo que os que agem orientados pelo
entendimento dependem de uma compreensão da situação, negociada em comum, passando a
interpretar fatos relevantes à luz de pretensões de validade reconhecidas intersubjetivamente.
Entretanto, sempre que a orientação pelo sucesso e a orientação pelo entendimento chegam a formar
uma alternativa completa aos olhos dos sujeitos agentes, a regulamentação intersubjetivamente
obrigatória de interações estratégicas precisa fazer jus a duas condições contraditórias, as quais não
podem ser preenchidas simultaneamente na ótica dos atores. Tais regras representam, de um lado,
delimitações factuais que modificam de tal forma o leque de dados, que o ator, no enfoque de alguém
que age estrategicamente, sente-se obrigado a adaptar objetivamente seu comportamento à linha
desejada; de outro lado, elas precisam desenvolver, ao mesmo tempo, uma força social integradora,
na medida em que elas impõem obrigações aos destinatários, o que é possível, segundo nosso
pressuposto, na base de pretensões de validade normativas reconhecidas intersubjetivamente. [...]
Normas desse tipo devem apresentar-se com uma autoridade capaz de revestir a validade com a
força do fático [...]”.
231
GROSSI, op. cit. 1992, p. 84.
232
Id. ibid., p. 85.
88
Portanto, falar de domínio direto e de domínio útil significa, sobretudo, uma
aproximação antiindividualista de grande humildade com relação à realidade
cósmica, um certo todo cognoscitivo, uma determinada antropologia. Esta
imposição de diversificações proprietárias, a partir da idéia de utilitas, leva a um
domínio que se estende e que impede de conceber a propriedade como relação
pura.
233
Por fim, apresenta Grossi a seguinte definição:
El dominio útil es, ante todo, la traducción en términos jurídicos de una
mentalidad. Es la mentalidad del primado de lo efectivo, es la mentalidad
“posesoria” del alto medievo la que domina aún como imperiosa constitución
material del mundo de los Glosadores y dos Comentaristas.
234
Este é o quadro descrito por Grossi a respeito da propriedade plural que
surge no Alto Medievo, como fruto de uma mudança de mentalidade possessória.
Não mais uma concepção pura de propriedade, pois a idéia de utilitas impõe a
diversificação, levando ao surgimento de uma pluralidade de propriedade, com a
extensão do domínio.
O discurso de Grossi legitima-se com o pressuposto de que o domínio útil se
extrai do território mais zeloso da posse e representa uma propriedade. Apresenta
como possível a existência de equívoco quanto à terminologia, pois o termo
propriedade vem sendo reservado unicamente à chamada propriedade moderna,
negando as várias formas medievais de dominium.
235
Não dúvida de que os dominia medievais pouco tenham que compartir
com a propriedade moderna e de que, para sua qualificação, o termo “propriedade”
não está imune de ambigüidade. Também não dúvida de que nenhum dominium,
seja ele direito ou útil represente a propriedade. Os dominia continuarão a existir na
história da propriedade e continuaremos a perceber em cada dominium um conteúdo
mínimo ou máximo de propriedade.
236
233
GROSSI, op. cit. 1992, p. 86.
234
Id. ibid., p. 88.
235
Id. ibid., p 91.
236
Id. ibid., p. 91-92.
89
O conteúdo mínimo da propriedade constitui um problema do ponto de vista
histórico jurídico e do domínio útil como propriedade. Diz Grossi que há
Un problema grave y urgente en todos aquellos ordenamientos que,
partiendo del estatuto de la cosa, toman la propiedad como una entidad
fraccionable, y que por consiguiente admiten la legitimidad de más de un
propietario actuante sobre la misma cosa; problema por el contrario
inexistente, como es obvio, en las culturas rigurosamente individualistas, por
ejemplo en la romano-clásica y en la burguesa-moderna, porque en ellas la
propiedad construida sobre el sujeto está de tal manera caracterizada por
sus fundamentos ético-políticos como para no tener nada que compartir no
digo con las situaciones de simple detentación, sino también con todas las
otras situaciones jurídico-reales. [...] La interrogación sobre donde finalice el
terreno de un derecho real limitado y donde comience el de la propiedad es
incluso insensata, lógicamente improponible.
237
Conforme Grossi, na servidão medieval uma dessacralização de que o
dominium não parte do sujeito sobre a coisa, mas que nasce da coisa. A hipótese da
existência de várias propriedades fracionada sobre a mesma coisa, cada uma tendo
por objeto uma determinada fração de poderes sobre a coisa, torna instável e
difundido os confins entre propriedade e direito real limitado. Também afirma que
alguns têm sustentado, de forma autorizada, que todo ius in re encarna um
dominium aos olhos do jurista – teórico e prático – do Direito Comum.
238
A questão é árdua e, para melhor entendimento, merecem considerações os
termos ius, ius in re e iura in aliena. A questão é saber se a palavra ius é usada para
definir coisas corporais ou incorporaius . estão é sabade . es6-4(r)3(n)-4(a)-é sabad2 Tf.4muma e prá Td[(d)-4(e)602.00195(r)2.99805stente, codTd[2(d2 Tf.4)-7 38rp7i
90
91
Reconhece, no entanto, que alguns textos utilizam a expressão ius domini, porém o
que se constata, de ordinário, é que eles não querem dizer que o dominium seja um
ius, senão que um dominium produz uma condição jurídica (ius) na pessoa do dono,
ou seja, o direito do dono à coisa apropriada.
243
Não é todo o ius in re que é elevado dominium, mas somente aqueles que
incidem sobre a globalidade da coisa, como a propriedade, ou os que incidem sobre
as dimensões particulares da coisa como a enfiteuse, a superfície, as concessões
fundiárias em longo prazo, ou mesmo a locação em longo prazo. Não é elevada a
dominium uma servidão predial ou uma servidão pessoal, pois essas poderão ser
enquadradas no iura in re aliena.
244
O conteúdo mínimo, para que se tenha dominium, é a existência de um poder,
não importa se pequeno ou grande, porém autônomo e imediato sobre a res
corporalis. O dominium deve comprometer e acometer frontalmente o sujeito e um
fragmento do cosmos. Só apropriação da coisa, se essa aproximação frontal.
De maneira diversa, todo tipo de servidão, que não compromete a res em sua
essência constitutiva, que se projeta do exterior sobre a coisa, qualifica-se somente
como ius in re aliena (direitos em propriedade do outro) estranho à idéia de posse do
bem.
245
Exemplifica o autor, dizendo que o usufrutuário e o titular de uma servidão
predial são domini, porém sobre o próprio ius, não chegando a incidir sobre a
certeza dura e resistente da coisa. Seu dominium é dominium rei corporalis, situação
que somente genérica e impropriamente pode ser qualificada dominium, porque
subtrai ao secreto essencial de toda a propriedade autêntica.
246
Os juristas, por cima desta consciência antropológica e sociológica, tecem
seus entramados cnicos e constroem tecnicamente o caráter proprietário do
domínio útil, sem desmentir sua particular situação. Ele te os atributos que ao
titular del poder porque su relación es “entre su sujet d’action el una action”, por tanto, una relación
intrasubjetiva. [...] el derecho subjetivo es solamente un estado jurídico, una ventaja objetiva
concedida por el orden jurídica de que goza el titular del poder, no confundiéndola con la idea de
pretensión ni de acción en sentido material [...].”
243
GROSSI, op. cit. 1992, p. 109.
244
Id. ibid., p. 95.
245
Id. ibid., p. 95.
246
Id. ibid., p. 96.
92
dominium eram reconhecidos por uma tradição antiga e augusta; uma rei vindicato
como instrumento de tutela processual, a propriedade no descobrimento do tesouro,
a aquisição dos frutos mediante separação, a possibilidade de construir servidões e
outros direitos sobre a coisa etc. E, falando dele, far-se-á sempre referência ao
princípio romano e romanístico, pensado para a propriedade: duorum vel plurium in
solidum dominium esse non potest”, atestando a convenção de mover-se no interior
da dimensão proprietária.
247
O domínio útil sobrevive desde período anterior à Idade Média, convertendo-
se em hóspede incômodo nos textos legislativos, doutrinários e judiciais, durante boa
parte da primeira idade moderna.
248
Inaugura-se o moderno da propriedade, com o domínio útil, um projeto
jurídico que terá uma página verdadeiramente nova na história da propriedade
moderna somente quando tenha consolidado uma nova mentalidade jurídica. Uma
nova antropologia substitui a precedente profundamente encarnada na
consciência social e, por estar calada nas consciências individuais, volta a cultura, a
atitude de pensamento, o sentimento coletivo, o costume; materiais difíceis de
enumerar.
249
Há uma renovação antropológica que vida a uma civilização “moderna”. As
crises da estrutura e o despertar antropológico aparecem em sintonia, e unem-se em
uma singular plenitude no tempo histórico. O sujeito tem uma dupla exigência e,
duplamente intensa, de buscar fundamentos novos e, sobretudo, de buscá-los
dentro de si, fazendo as contas exclusivamente consigo.
A história da propriedade moderna tem um curso subterrâneo e outro patente,
quer dizer, uma pré-história e uma proto-história:
250
a primeira consiste na análise do
individualismo possessivo, e a segunda, se tem alguma antecipação em algumas
proposições teóricas, no século XVI começará a correr desobstruído, e continua
247
GROSSI, op. cit. 1992, p. 96.
248
Id. ibid., p. 98.
249
Id. ibid., p. 101.
250
Sobre pré-história e proto-história, afirma Grossi (1992, p .85-86), que El primitivo […] sino un
sujeto paupérrimo culturalmente que tiene una relación singular con la realidad externa [...] la
naturaleza está contrastada por una manifiesta desproporción entre aquélla y éste, por una
superioridad de aquella sobre éste como agente civilizador [...] este hombre tan pobre de carga crítica
es una presencia frecuente en la edad protomedieval [...]”.
93
bastante mais tarde, sobretudo com a grande reflexão pandectística do século XIX,
quando a nova propriedade assumirá também a substância de uma ordenação
organizativa da vida quotidiana.
251
A propriedade moderna, para Grossi, surge das soluções medievais da posse,
qualificada como moderna e desenhada por um sujeito presunçoso e dominante. É
enumeração de suas potencialidades, é instrumento de sua soberania sobre o
criado; uma marca rigorosamente subjetiva que a assinala; e o mundo dos
fenômenos, em sua objetividade, é somente o terreno sobre o qual a soberania se
exercita; não é uma realidade condicionante com suas pretensões estruturais, senão
passivamente condicionada.
252
Enquanto no período medieval a propriedade havia consistido na
sistematização de sua complexidade, o moderno da propriedade está no
redescobrimento de sua simplicidade. Sua meta é a simplicidade absoluta, conforme
nos ensina Grossi.
253
A idéia de simplicidade tem relevo histórico: separa a posse do
condicionamento da complexidade das coisas e absolutiza o dominium no âmbito do
sujeito, inserindo-o o mais possível em seu interior. Grossi afirma que o certo é que
a intuição mais profunda da idade nova consiste na interiorização do dominium, e a
noção mais revolucionária está na velha, porém renovada idéia do dominium sui.
Esse, como regra do universo do microcosmo, significa que ele é dominus por
chamado de Deus e da natureza, que o dominium não necessita das entidades
externas senão para manifestar-se, sensivelmente, pois esta in interiore homine
uma realidade ontologicamente acabada.
254
A noção de simplicidade da propriedade, como procedimento liberatório,
colocado pela cultura moderna, tira a propriedade do eixo das coisas para encontrá-
la no intra-subjetivo. Junto à simplicidade, encontraremos o segundo traço tipificador
da nova propriedade: a abstração.
255
251
GROSSI, op. cit. 1992, p. 104-105.
252
Id. ibid., p. 109.
253
Id. ibid., p. 109-110.
254
Id. ibid., p. 112.
255
Id. ibid., p. 113.
94
Afirma Grossi que a propriedade tendia a lançar-se de plano na confusão,
lucidamente consistente, entre o “meu” e o “seu”. Como dimensão do sujeito não
podia não impregnar de conotações éticas, e adquiria a absolutividade das noções
éticas. Ao mesmo tempo em que chegava a seu cúmen esse processo de apoteósis,
amadurecia a separação definitiva de todos os outros direitos reais: ordenações
organizativas da realidade econômica e plenas de conteúdos econômicos; a
propriedade é uma dimensão e quase virtude do sujeito, e a não está contaminada
por conteúdos econômicos. De mundos fundamentalmente diferenciados e dos
institutos, com funções diametralmente divergentes, volta-se, cada vez mais
depressa, ao tempo no qual dominium e ius in re vêm postos em comum, abaixo do
signo de uma mesma qualidade, e sua relação resolvia-se com a fragmentação.
256
Como noção simples, apresenta Grossi a propriedade, como é simples uma
virtude, uma vontade, uma intenção, um ato interior. Afirma que o procedimento
liberatório, posto no ato pela cultura moderna, retira-a do eixo das coisas para
introduzi-la no intra-subjetivo; e uma segunda aquisição, junto à simplicidade, põe-se
a seu lado e dela é conseqüência. Simplicidade quer dizer também purificação
externa da relação, quer dizer que tem logrado sacudir de cima de si todo estorvo
dos conteúdos mais variados para fazer dela o que, com a terminologia dos teólogos
voluntaristas, poder-se-ia definir uma potentia. A propriedade é a maturação, essa
versão o exasperadamente subjetiva, uma capacidade de capturar e dominar todo
o conteúdo, rechaçando-o, como contribuição, a seu ponto essencial. O conteúdo é,
somente, um acidente que não alcança nunca a repercussão sobre a substância da
relação. Junto a e detrás de – a simplicidade, é aqui o segundo traço tipificador da
propriedade nova: a abstração.
257
uma mudança na concepção de homem que se descobre proprietário e
soberano. Sobre o tema discorre Laura Beck Varela.
A partir das contribuições da teologia voluntarista tardo-medieval (em
especial dos teólogos franciscanos), e, após, da filosofia jusnaturalista,
firma-se um processo de “interiorização do dominium”, dominium sui: o
indivíduo se descobre proprietário, descobre-se centro da ordem jurídica,
em substituição à centralidade da res. Proprietário, com um ato interior, uma
vontade, uma intenção, uma potentia, uma linguagem dos teólogos
voluntaristas noção simples e, por conseguinte abstrata eis algumas
256
GROSSI, op. cit. 1992, p. 113.
257
Id. ibid., p. 113.
95
bases da propriedade moderna. É esse dominium abstrato e seu conteúdo,
sem carne e ossos, dominium sine usu, que serve à visão de mundo
burguesa; [...] O individualismo possessivo, que tem raízes na filosofia de
Locke, seria, segundo Paolo Grossi, outra matriz básica para a superação
do modelo medieval.
258
Conforme Alejandro Guzmán Brito, a noção de direito subjetivo opõe-se, bem
se sabe, à do direito objetivo. Porém, em um sistema de direitos subjetivos, quer
dizer, em um sistema, onde o dado primordial consiste nessa noção, a missão do
direito objetivo é reconhecer e proteger esses direitos, por um lado, e limitá-los,
somente na medida necessária, para assegurar sua maior efetividade, por outro.
259
96
dispor das coisas, da maneira mais absoluta, desde que não se faça um uso
proibido pelas leis ou pelos regulamentos”.
264
Esse artigo apresenta uma dupla escritura: de um lado se agiganta a
galhardia dos poderes até o infinito; enquanto de outro busca atenuar um elenco de
poderes determinados pelo gozar e dispor. O Código evidencia, de forma expressa,
o gozo e a disposição como atributos da propriedade. O gozo é o direito de perceber
os frutos do bem, por meio da prática de atos materiais ou através de atos jurídicos.
Quanto à disposição, cabe ao proprietário definir a destinação da coisa, de tal modo
que a torne produtiva ou improdutiva. Esse poder de escolha hoje está bastante
limitado pela função social da propriedade.
Afirma Grossi que duas almas, duas mentalidades, na redação do art. 544
do Code Civil napoleônico.
265
Diz que não dúvida de que os compiladores do
Código e do texto do artigo embriagaram-se na retórica do culo XIX da nova
propriedade liberada e de que os descobrimentos da filosofia lockiana e fisiocrática
têm uma desembocadura no Código. Afirma que o legislador napoleônico é um
homem de fronteira. Tem seus pés na terra bem preparada do velho regime, onde se
formou e educou, enquanto suas mãos estão cheias de coisas novas. A descoberta
da unidade proprietária o cancela completamente tradicional articulação do
domínio em um ius disponendi em um ius utendi, fruto de uma cultura diversa e de
uma visão objetiva da posse que, partindo de pressupostos antiéticos dos juristas
napoleônicos, havia hipotetizado como legítima a divisão mesma do domínio. Diz
que cai, no seio do art. 544, a idéia desafinada de uma propriedade como acropOç1eti.00195(z)10( )277.9(p)-4(o)-41ote 22os d
97
poderes, resultado da adição de um gozar e de um dispor, que deveria fazer
aceitável a sanção inaceitável e o inaceitado princípio da divisão da propriedade.
266
O Código napoleônico é mostrado como apresentador de uma nova ideologia,
ainda que de forma inconsciente, pois revela alguma desenvoltura e alguma não
medida incoerência. As faculdades de usar, gozar e dispor demonstram a idéia de
individualismo, consagrado no apogeu do liberalismo, em plena codificação
revolucionária.
Afirma Grossi que a grande espera pelo cunho de um modelo técnico
coerente com o ideológico aplaca-se com a pandectística alemã que substitui a
cultura anterior. Aqui a propriedade define a criatura jurídica natural como o homo
economicus de uma sociedade capitalista avançada: um instrumento ágil,
descarnado, funcionalíssimo, caracterizado pela simplicidade e abstração. Afirma
que a realidade unilinear se modela sobre a simplicidade do sujeito e no nível dos
bens; abstrata, como o indivíduo liberado da nova cultura, do qual quer ser uma
manifestação e um meio valioso de defesa e ataque. Uma modelação tão estranha
que parece quase uma identificação: a propriedade é somente o sujeito em ação, o
sujeito na conquista do mundo. Idealmente, as barreiras entre o “seu” e o “meu”
caem.
267
Para um melhor entendimento, cumpre-nos dar uma visão sobre o
pandectismo. O termo exprime o pensamento jurídico presente nos Digesta e, ao
longo da história, apresenta uma utilização diversificada. No século XVIII, ficou
conhecido como usus modernus pandectarum e, afirma Canaris, que “[...] o Ius
Romanum se revelaria na medida em que se mostrasse adaptado às necessidades
da época”.
268
Também esclarece Canaris que [...] o pandectismo, agora em causa, reporta-
se a outro período histórico: o da doutrina geral do Direito Civil, iniciada por Savigny
e desenvolvida na Alemanha, nos princípios do século XIX”. A originalidade de
savignyana analisa-se na síntese desses dois aspectos: a natureza histórico-cultural
do Direito deve articular-se com um adequado sistema de exposição. O pandectismo
266
GROSSI, op. cit. 1992, p. 126.
267
Id. ibid., p. 129-130.
268
CANARIS, op. cit., p. LXXXI.
98
aceita o Direito periférico perante o conjunto de fatores que, nos diversos
problemas concretos e a esse nível, promovam soluções aplicáveis e aplicados
como irrecusável herança histórico-cultural.
269
Finalizando, Canaris afirma que
O sistema do pandectismo traduz a conquista acabada de um esforço
secular de aperfeiçoamento juscientífico. Sob o seu manto ocorreu, no
século XIX, uma última e decisiva recepção do Ius Romanum, que
cristalizaria no Código Civil alemão de 1896. A difusão desse Código
asseguraria, ao longo do século XIX, um retorno a muitas soluções
românicas.
270
A abstração da propriedade é total: abstrato é seu sujeito titular, e abstrata é a
sua linha mestra, com uma capacidade ilimitada para tolerar os conteúdos mais
variados. Essa construção jurídica, sem ambigüidades, que descende,
razoavelmente, em todos os seus aspectos das premissas programáticas de índole
ético-política, é um mérito histórico da pandectística madura; um mérito, porque,
finalmente, a sociedade burguesa poderia proclamar que tem, também, sobre o
plano jurídico, uma propriedade autenticamente burguesa que, depois de muitos
séculos, deixou de lado o modelo técnico medieval e o substituiu por um novo
modelo.
271
Como a afirmação de uma liberdade e de uma igualdade formal, havia sido
instrumento mais idôneo, para garantir ao homo economicus a desigualdade de
feitos das fortunas. Assim esta “propriedade espiritualizada” havia-se concentrado,
graças às suas ilimitadas possibilidades de transformação, na pedra filosofal da
civilização capitalista: a mais pobre, a mais descarnada das construções jurídicas,
havia se demonstrado um meio eficientíssimo para trocar tudo por ouro, diligente
instrumento para todo o tipo de mercado.
272
Concluímos com uma frase significativa de Grossi sobre o “moderno do
Direito”, afirmando que a propriedade adquire um fim especulativo. “La frontera entre
269
CANARIS, op. cit., p. LXXXI.
270
Id. ibid., p. LXXXIV.
271
GROSSI, op. cit. 1992, p. 130-131.
272
Id. ibid., p. 131.
99
ayer y hoy se vuelve un confín firmísimo y “do moderno del Derecho adquiere
acabado especulativo.”
273
2.2.2 Perspectiva de RODOTÁ
A questão da propriedade volta lentamente a colocar-se no centro da atenção,
de um modo mais nítido, nas discussões e nas análises políticas, jurídicas e
econômicas. A análise é feita, a partir de fatos ocorridos após a primeira guerra
mundial, período em que se moviam nesta direção a Revolução Soviética, a
Constituição de Weimar, as leis Inglesas de reforma de 1925, o descobrimento das
infinitas formas de intervenção pública na economia, instrumentos da economia de
guerra que haviam posto em vida a propriedade como direito subjetivo. Com o
pós-guerra, havia a necessidade urgente de reconstruir, impulsionando a não pôr em
discussão a ordem da propriedade. Incluída nas novidades que, certamente, não
faltam, está presente como proteção aos modelos daquela época distante.
274
Nesse período, o clima cultural que domina é o do descobrimento da
separação entre propriedade e o controle das análises e soluções baseadas, de
forma exclusiva ou predominante, na vertente proprietária. Como nos diz Rodotá,
El eclipse de la propiedad se tiñe con los colores del realismo y encuentra el
alivio de la revelación sociológica y el camino que ha de seguir quien
pretenda establecer unas nuevas reglas de control de los bienes y de
distribución de la riqueza parece otro.
275
Percebe-se, por meio de uma reflexão teórica mais profunda uma tendência
de se voltar a colocar no centro da atenção o núcleo duro da propriedade. Como diz
Rodotá,
[…] No hay sólo un redescubrimiento del tema de la propiedad en la clave
de una renovada atención del pensamiento socialista respecto de la
transferencia de los medios de producción a sujetos públicos o colectivos. El
relanzamiento de la propiedad celebra también sus ritos en los viejos
templos con la reanudación de la política neoliberal, con algunas
elaboraciones de los nuevos economistas y con las escuelas del “economyc
273
GROSSI, op. cit. 1992, p. 132.
274
RODOTÁ, Stefan. El terrible derecho. Madri: Editorial Civitas, 1986, p. 27.
275
Id. ibid., p. 28.
100
analisis of law”. De nuevo se agitan banderas en las que se escribe todos
propietarios.
276
Surgem novos interesses e situações a exigir uma regulamentação
proprietária. A exigência não é somente dos que desejam ser proprietários, mas dos
próprios proprietários que desejam ver assegurados os seus interesses. A situação
de conflito é assim apresentada por Rodotá.
La propiedad, descrita por Tocquevielle como un “campo de batalla” vuelve
a aparecer como la sede de un conflicto fundamental, cuyos términos sin
embargo, han cambiado muy claramente. Ya no se trata sólo del conflicto
entre poseedores y desposeídos, que sólo aspiran a transformarse en
poseedores en una universal dominación de la lógica del “individualismo
posesorio”. Frente al interés del propietario se sitúa el de los que no quieren
que todo se mida con el rasero de la propiedad en cuanto apropiación
privada individual.”
277
Surgem e difundem-se os interesses de natureza coletiva, apontando para um
novo horizonte a exigir um novo conceito de proprieda
101
que constituye cabalmente el fundamento de la tutela de la propiedad. Esta
conclusión, ciertamente clara en lo que se refiere al paso de unas manos a
otras, que se realiza a través de las nacionalizaciones, puede resultar
menos convincente respecto al salario mínimo, el cual, sin embargo, se
presenta, por una parte, como una forma de disposición (de los empresarios
en beneficio de los trabajadores) y, por otra, constituye un correctivo
impuesto por una dinámica social que desde hace mucho tiempo ha visto
cómo una gran mayoría de ciudadanos se desplaza de la propiedad a la
ocupación.”
279
Sublinha o autor que esses objetivos são perseguidos através de uma técnica
que é do tipo dominical, ainda que provoque sacrifício dos interesses dos
proprietários privados que os consideram incompatíveis com a satisfação de
interesses de caráter público ou coletivo.
280
A reflexão jurídica tem colocado em evidência, como ponto de discussão mais
evidente, a prepotente matriz proprietária. O autor não se surpreende com a
produção de dois fenômenos só aparentemente contraditórios.
No es sorprendente por ello que se produzcan dos fenómenos sólo
aparentemente contradictorios: por una parte, los estudiosos registran un
deterioro progresivo Delmodelo clásico de la propiedad, hasta comprobar,
con satisfacción o con resignación, que se van perdiendo sus rasgos
precisamente en las realidades institucionales que habían visto su mayor y
más decidida expansión; y, por otra parte, se enriquecen las posibilidades
de utilización de las técnicas dominicales en direcciones que hubieran sido
impensables, o que hubieran considerado inadmisibles, en los momentos en
que el modelo era verdaderamente la masa de granito” sobre la cual se
edificaba el sistema jurídico.
281
As técnicas dominiciais são apontadas por Rodotá como as que permitem
garantir a máxima tutela possível. Por isso é que se compreende porque se recorre a
elas para garantir novos interesses e novas situações, pois a elas se atribui um nível
igual ou superior àquele que, no passado, se reconhecia à propriedade.
282
279
RODOTÁ, op. cit., p. 31.
280
Id. ibid., p. 33. Sobre o público e o privado, destacamos a excelente distinção feita por
SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça. Rio de Janeiro: Atlântica, 2005, p 60-61: “O privado e o
privatismo, o público e o publicismo. A contraposição ou o paralelo entre essas idéias corresponde ao
fato de que, em determinados contextos, pode sobressair o “sentimento” da individualidade e da vida
privada, em outros, o da coisa pública […]. No século XX, alguns autores recorreram ao resgate do
termo grego prosopon (pessoa), a propósito do personalismo e em função da possibilidade de
entender-se a “pessoa” como o indivíduo redimensionado em função de valores que só a sociedade
pode configurar.”
281
RODOTÁ, op. cit., p. 33.
282
Id. ibid., p. 34.
102
Os conflitos, a que se querem oferecer soluções com as técnicas aludidas,
são, substancialmente, os que se produzem entre interesses dominicais e novos
interesses que não se podem reconduzir a uma base dominical. A matriz de tais
técnicas contribui para confirmar a lógica da propriedade como obrigatório ponto de
referência, dando uma nova legitimação aos interesses dominicais que queriam se
alojar no centro do sistema.
283
Diz o autor que
[...] asistimos a tentativas muy diversas de “redefine el derecho de la
propiedad”, de establecer correctamente el puesto de la propiedad” o de
reconstruir de un modo realista los “cambios de función de la propiedad
privada”. Por estos caminos se registra la vitalidad del instituto, que le
garantiza su supervivencia en un tiempo en el que, por otra parte, la
propiedad se presenta “disgregada por una multiplicidad de estatutos,
reducida a una situación inerte separada de cualquier actividad que la
atraviese o superponga a ella, contemplada fuera de cualquier medida de
cooperación y relegada por ello a los márgenes de las categorías
nuevamente estudiadas de la relación jurídica y del derecho subjetivo [...].
Ante todo, una tentativa de íntegra restauración del “modelo de dominación”
que es posible encontrar en la reconsideración de los derechos de
propiedad, que hace la llamada nueva economía”, que ofrece de ellos una
vez más una versión absolutista. [...] Para llegar a este resultado es
necesario volver a colocar en un lugar de honor a los atributos clásicos del
derecho de propiedad, en primer lugar a la facultad de exclusión, y rechazar
cualquier interferencia de otros.
284
Essa faculdade tem sido enfatizada e tem-se encontrado, na mudança, o
limite da moderna noção de propriedade, um limite tal que faz com que não seja
utilizado nas organizações sociais capitalistas.
285
Explica o autor que o discurso sobre a exclusão se transforma em um
discurso sobre a acessibilidade.
286
Trata-se de partir de uma base diferente para
283
RODOTÁ, op. cit., p. 34.
284
Id. ibid., p. 34.
285
Id. ibid., p. 34-35.
286
Sobre a exclusão social e acessibilidade, podemos citar SARMENTO, Daniel. Os direitos fundamentais nos
paradigmas liberal, social e pós-social. In: SAMPAIO, José Arcio Leite (Coord.) Crise e desafios da
Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 397-398, ao afirmar que “[...] a globalização ecomica, ao
elevar ao plano transnacional a concorrência comercial, foa os agentes econômicos a buscarem a redão, a
qualquer preço, dos seus custos, sob pena de perda da capacidade competitiva. Esta busca tem se traduzido
em diminuição da oferta de trabalho, com a crescente automação, e em preses, muitas vezes vitoriosas, no
sentido da flexibilizão e da desregulamentação das relões laborais. O quadro se agrava diante da
constatação de que, em um contexto de amplo desemprego, o poder de barganha dos trabalhadores e dos
seus sindicatos praticamente desaparece, o que torna ainda mais desigual a relão entre pato e empregado.
A exclusão social produzida neste contexto é alarmante. [...] Os dados comprovam a tese de que a intervenção
estatal é necessária para garantia da justiça social pois o mercado tende a aprofundar as desigualdades
econômicas. [...] Na verdade, a exclusão, no contexto do neoliberalismo globalizado, é ainda mais cruel do que
no Estado Liberal, pois naquele, as foas produtivas necessitavam de mão-de-obra para produção de mais-
valia. Hoje, com os avaos na automação, o trabalhador desqualificado não tem mais nenhuma utilidade para
o capital, e torna-se simplesmente descarvel.
103
reconstruir e legitimar uma nova situação dominical. Para isso, colocam-se em
destaque as técnicas da propriedade que se podem descobrir em duas direções: a
tutela que se oferece a interesses que, na escala de valores, socialmente relevantes,
têm-se colocado ao lado dos dominiais ou que têm avançado mais adiante; e a
garantia de situações ligadas à satisfação das exigências e das necessidades
essenciais do indivíduo.
287
A tutela do primeiro realiza-se com freqüência, ou de maneira quase
exclusiva, através do instrumento da responsabilidade civil; no segundo caso,
estamos diante de uma reconstrução residual ou mínima da noção de propriedade
em torno da necessidade de assegurar ao indivíduo a satisfação de algumas
necessidades essenciais, por meio da garantia do trabalho, da moradia ou de
algumas prestações sociais. Esses bens primários constituirão o novo núcleo duro
do direito de propriedade e, através de seu direito, ligados à pessoa, proporcionarão
uma nova legitimação ao nexo propriedade-liberdade.
288
Na reflexão sobre o passado, encontramos a ligação da propriedade aos
valores econômicos e a uma subproteção a outros valores que hoje se considera
insuportável. Na reflexão sobre o presente, comprovamos a distância entre a nova
base pessoal, em torno da qual vem refletir as mais sólidas razões da propriedade, e
as razões que deverão justificar sua extensão mais adiante, em definitivo. Também
nos apercebemos de que o direito de colocar no centro da reconstrução uma noção
“inclusiva” e o “exclusiva” de propriedade termina proporcionando novos motivos
de crises em lugar de dissipá-los.
289
O “direito de não ser excluído” limita-se a uma série reduzida de bens,
rigidamente circunscrita pelas necessidades essenciais do indivíduo, resultando
evidente um novo conflito entre proprietários e não proprietários. Postula-se uma
regra de solução de tal conflito que se resolve, por sua vez, em uma disciplina da
propriedade dos bens ou das situações dos proprietários que não caem no âmbito
das necessidades mínimas da pessoa. Sintetiza, dizendo que, pelo caminho da
realização da propriedade “pessoal”, depara-se sempre com uma propriedade que
287
RODOTÁ, op. cit., p.35.
288
Id. ibid., p. 36.
289
Id. ibid., p. 36.
104
se de sacrificar para obter aquele fim mínimo e, uma vez mais, a propriedade se
converte em um obstáculo de direito cuja remoção confia-se às regras jurídicas.
290
Destaca o autor outro ponto profundo de crise, dizendo que se reproduz na
propriedade algo que já se tem manifestado na empresa.
[...] se reproduce en la propiedad algo que ya se ha puesto de manifiesto en
la empresa, pues a propósito de esta última se había hablado cabalmente
de “constelaciones de intereses” destinados a repercutir sobre su estatuto
jurídico y, por lo menos en perspectiva, a determinar formas de
redistribución del poder de decisión.
291
A propriedade, em sua versão mais ampla, parece ligada substancialmente a
uma área que se identifica através das necessidades essenciais do indivíduo, mas
que produz a impossibilidade de olhar o modelo como paradigma ou como modelo
de reconstrução que pode operar mais além da área considerada.
292
Por outro lado, o modelo puro de propriedade vê-se assediado por impulsos
sócio-políticos e instrumentações técnicas que colocam em dúvida a oportunidade
de satisfazer às necessidades essenciais mediante um recurso pleno ao direito de
propriedade. Rodotá exemplifica com o direito de habitação, asseverando que “[...]
Por ejemplo, en lo que se refiere al derecho de habitación, se discute si se debe
conceder preferencia a la tradicional propiedad de la casa o si es mejor satisfacerlo
recurriendo a instituciones diferentes de la definitiva apropiación individual.
293
Para
essas situações, diz que o objeto de regulamentações jurídicas não pode,
certamente, constituir o critério regulador invocado para os diversos âmbitos e
situações, pois concentram-se em instrumentos expressivos de uma lógica diferente
da dominical que é deslegitimada, inclusive do âmbito de incidência direta.
294
O autor distingue, dentro do modelo jurídico da propriedade, os instrumentos
que são postos à disposição do titular do direito:
[...] la identificación de la dinámica, que ha arremetido contra el modelo
jurídico de la propiedad, permite distinguir, dentro del conjunto de los
290
RODOTÁ, op. cit., p. 36.
291
Id. ibid., p. 37.
292
Id. ibid., p. 37.
293
Id. ibid., p. 38.
294
Id. ibid., p. 38.
105
instrumentos puestos a disposición del titular del derecho, los que son
inherentes a su estructura técnica y que por tanto sólo son utilizables
cuando resulta admisible la extensión o la transposición del modelo; y
aquellos otros que, en cambio, se atribuían a la propiedad como
consecuencia de una operación de carácter no técnico, sino ideológico,
consistente en la voluntad de caracterizar la propiedad como la situación
dotada de la tutela más intensa entre todas las jurídicamente posibles. En
este último caso, se trata de técnicas que, como la del resarcimiento del
daño, podrían muy bien extenderse más allá del ámbito de la propiedad, a
cualquier punto en que se produzcan situaciones que una diferente
apreciación socioeconómica ha colocado en una posición igual o superior a
la que en el pasado se atribuía al derecho de propiedad.”
295
Somos levados à conclusão de que a propriedade tem-se transformado, de
uma variável independente que era, em uma variável dependente do sistema
jurídico.
296
Ao tratar do surgimento do momento coletivo, com novas formas e com nova
intensidade, sobretudo no que concerne aos interesses não dominicais que nele se
expressam, impõe-se uma revisão da extensão dos limites das tradicionais áreas
públicas e privadas. Profundas transformações foram impostas ao setor público e ao
setor privado da economia pela socialização das forças produtivas impostas ao
Estado.
297
Afirma que a área privada, sobretudo em conseqüência do movimento em
favor dos direitos civis, apresenta uma imagem muito diferente da que tinha no
passado, organizada toda ela em torno das relações de propriedade. Quanto à área
pública, sobretudo em conseqüência das demandas de participação e das críticas às
formas de exercício delegado de poder, não se pode reduzir à gestão centralizada
da burocracia.
298
O que se percebe agora é que a dimensão coletiva penetra tanto na área
pública como na área privada. Isso leva a um reexame dos critérios de distribuição
dos recursos, com destaque para a gestão de tais recursos. Sobre a matéria, afirma-
nos Rodotá que
[...] la dimensión colectiva penetra ahora en las mismas áreas públicas y
privadas, imponiendo un reexamen de los criterios de distribución y, sobre
295
RODOTÁ, op. cit., p. 38.
296
Id. ibid., p. 39.
297
Id. ibid., p. 40.
298
Id. ibid., p. 40.
106
todo, de gestión de los recursos atribuidos a tales áreas. En otros términos,
se rompe el nexo de exclusividad sujeto-interés-bien, en el sentido de que,
por ejemplo, a un sujeto privado correspondan únicamente un interés
privado y una disciplina privatista del bien, de modo tal que desaparecen las
ambigüedades que hasta ahora presentaba la fórmula de la “función social
de la propiedad”. Además, el surgimiento de sujetos colectivos incide en la
posición tradicional de los sujetos públicos y privados, en el sentido de que
hay que dar a los primeros voz en los procesos de decisión sobre el uso de
los recursos, formalmente imputables a estos últimos.
299
Uma nova interpenetração entre o público e o privado ocorre a partir do final
da Idade Média, ao formar-se o Estado moderno. Ocorre uma funcionalização entre
o público e o privado e também do privado ao público. A diferenciação nas relações
econômicas e políticas e entre a sociedade civil e o Estado tem início por volta do
século XVIII. A dicotomia entre o blico e o privado volta a apresentar-se sob a
forma de distinção entre a sociedade política e a sociedade econômica. Afirma-nos
Sarlet que é nesse contexto histórico que se revela mais intensa a divisão
dicotômica entre o público e o privado e suas derivações. Como novidade desse
período histórico no direito privado, diz que o direito se torna estatal e burguês.
Estatal, porque é a primeira vez que o legislador se ocupa de forma sistemática e
abrangente com o direito privado, pois nessa área não havia a intervenção estatal.
Era um setor deixado aos costumes ou desenvolvido a partir de pareceres e escritos
doutrinários. É a partir da Revolução Francesa que o direito privado se torna burguês
e passa a espelhar a ideologia, os anseios e as necessidades da classe
socioeconômica que havia conquistado o poder em praticamente todos os Estados
ocidentais.
300
A convergência do direito público e do direito privado é bem explicada por
Sarlet, ao dizer que
De qualquer sorte, do ponto de vista jurídico, percebe-se claramente que
público e privado tendem a convergir. Tal convergência, aliás, opera nas
duas direções, ou seja, cada vez mais o Estado se utiliza de institutos
jurídicos do direito privado, estabelecendo relações negociais com os
particulares, e conseqüentemente abrindo mão de instrumentos mais
autoritários e impositivos. [...] Por outro lado, também o direito privado se
desloca em direção ao público, como se percebe na elaboração da
categoria dos interesses e direitos coletivos e difusos [...], mas igualmente
299
RODOTÁ, op. cit., p. 41.
300
SARLET, Ingo Wolfgang.(Org.) Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.16-18.
107
na funcionalização de inúmeros institutos típicos do direito privado, como é
o caso de reconhecimento da função social da propriedade.
301
Não se pode negar que a questão do controle das questões de interesse
coletivo se converte em uma questão fundamental, pois tem por objetivo fazer a
distinção, através da qualificação formal, do que deve ser dado ao sujeito que é
titular dos direitos sobre o bem público, o privado ou o cooperativado. Entende
Rodotá que
[...] no es posible ya tomar en consideración únicamente el problema de la
distribución de la propiedad entre los diferentes sujetos (públicos, privados,
cooperativos), de nuevo separados y recibidos sólo con el hilo general de la
planificación. Se trata, por el contrario, de establecer, por una parte, áreas
en las cuales la lógica de la propiedad debe ceder íntegramente el puesto a
una lógica diferente, que genéricamente definimos todavía como “no
dominical” [...] Y por otra parte, es necesario establecer las reglas sobre las
cuales se pueda extender el control del ejercicio de los derechos
dominicales, cualquiera que sea el sujeto titular de ellos. La cuestión de los
controles colectivos, difusos en resumen, se convierte en una cuestión
fundamental, encarnando la dialéctica entre intereses no dominicales y base
dominical, respecto de la cual no parece que pueda llevarse a cabo una
distinción que se funde únicamente en la calificación formal que haya que
dar al sujeto titular de los derechos sobre el bien (público, privado,
cooperativo).
302
O autor chama a atenção para a necessidade de fixação das áreas e dos
recursos cuja utilização devem corresponder aos valores coletivos privilegiados,
segundo critérios, cuja determinação que confiar a sujeitos distintos os que, até
agora, estão assentados à lógica privativista e à gica burocrática ou, em qualquer
caso, da irresponsabilidade frente à coletividade.
303
Quanto ao conceito de propriedade, afirma Rodotá que
[...] han tratado de dar carta de ciudadanía en el sistema jurídico no ya a un
solo concepto de propiedad, sino a una multiplicidad de estatutos. En
efecto, se puede con todo derecho considerar que cabalmente estas
exposiciones han cumplido, al mismo tiempo, la función de disolver la vieja
categoría unitaria y de dejar sobrevivir el esquema de la propiedad,
preparando así un terreno propicio para la adopción de este último, siempre
que se pueda sostener la misma justificación realista para situaciones
dotadas de apoyo social [...].
304
301
SARLET, op. cit 2003, p. 26.
302
RODOTÁ, op. cit., p.41.
303
Id. ibid., p. 41.
304
Id. ibid., p.49.
108
Sobre a produção de uma multiplicidade dos estatutos da propriedade e a
passagem para o conceito de propriedade singular para o plural, Rodotá afirma-nos
que
Todo ello, sin embargo, no excluye que uno de los problemas centrales siga
siendo todavía el de la relación entre la realidad de los diferentes estatutos y
la persistencia de las referencias a una noción unitaria de propiedad, no
solo en el lenguaje, sino en muchos de los materiales normativos
componentes de nuestro ordenamiento. [...] Sería ingenuo pensar que el
paso de la propiedad a las propiedades significa una vuelta de página que
permite no dar ya relevancia alguna a una serie de normas, de esquemas
reconstructivos y de conceptos ordenadores, moldeados partiendo de la
premisa de una propiedad idéntica siempre en sus connotaciones
fundamentales. [...] La consecuencia de esta reconocida autonomía puede
consistir en sustraer de una o varias reglas “comunes” a la propiedad o los
bienes pertenecientes a una determinada categoría.
305
A análise do problema é feita pelo autor a partir da visão histórica, abordando
a definição unitária e a sua manutenção em diferentes setores, concluindo que não
se pode romper com a propriedade unitária, ainda que existentes disciplinas setoriais
diferenciadas. É o que nos afirma o autor, ao dizer que
No es posible limitarse a “rasgar el velo” de la propiedad única: subsiste
siempre la necesidad de explicar cómo ha podido acreditarse durante
decenios la tesis de la unidad del concepto de propiedad no obstante la
existencia de disciplinas sectoriales diferenciadas [...].
306
A mudança da propriedade unitária para uma multiplicidade de estatutos e
para um projeto social é apresentada por Rodotá como reconhecimento da efetiva
função histórica dos deferentes elementos constitutivos do sistema jurídico de
propriedade. A substituição de uma linha dogmática por uma linha realista é assim
apresentada.
A través del reconocimiento de la efectiva función histórica de los diferentes
elementos constitutivos del sistema jurídico de la propiedad, en cambio,
pueden emerger a un tiempo las finalidades perseguidas por los diferentes
estatutos y el proyecto social de conjunto que a ellos corresponde, no
cristalizado ya en torno a una única noción, formalmente unitaria, sino
obtenido mediante la observación directa de una realidad y no fosilizada en
unas pocas fórmulas doctrinales.
307
305
RODOTÁ, op. cit, p. 49-50.
306
Id. ibid., p. 51.
307
Id. ibid., p. 51.
109
Esclarece-nos que hoje a propriedade não se apresenta como um bloco
monolítico, mas como um objeto que deve ser considerado de modo conjunto, em
que uma estratificação secular tem reconhecido a existência de problemas, cujos
nexos não se podem cortar arbitrariamente.
308
Conclui o autor que os diversos estatutos não podem ser ignorados e que as
mesmas referências unitárias podem se estender em função de uma multiplicidade,
dizendo que “[...]la existencia de referencias unitarias en el sistema actual no entra
necesariamente en contradicción con la comprobación de la diversidad de las
propiedades.”
309
O autor faz a distinção entre “novas propriedades” e “propriedades múltiplas”.
Para tanto, afirma que
[...] nuevas propiedades [...] se diferencia de las propiedades múltiplas” en
que, en lugar de actuar como un elemento disgregador de las situaciones
recibidas, se basa sobre la recuperación de una base funcional permanente
del instituto de la propiedad. Común a los dos modelos continúa siendo en
todo caso el denominador individualista. Y la confirmación de una sustancial
homogeneidad entre ellos se puede obtener de la experiencia [...] entre el
concepto abstracto y las situaciones concretas que reclaman una tutela
fuerte, no se ha dudado en meterse por el camino de propiedad de
situaciones que podían reconducirse a la antes recordada base funcional.
310
O que o autor nos leva a perceber é que, se quisermos ver, além das
fórmulas, quais são as linhas de reconstrução que hoje operam em matéria de
propriedade, é necessário que tenhamos presente a completa dialética entre o
conceito unitário e as teorias da pluralidade de propriedade e das novas
propriedades.
311
Para que possamos conseguir uma maior clareza sobre o tema, argumenta o
autor se referindo a uma sentença da Corte Constitucional, dizendo que
Para conseguir una mayor claridad, se puede aludir a la muy concebida
sentencia número 56 de 1968 de la Corte Constitucional, en la cual [...] los
diversos elementos que acabamos de recordar, parecen jugar del siguiente
modo: abandono de la noción unitaria y formal de la propiedad;
descomposición en multiplicidad de estatutos de las diferentes “categorías
de bienes” y recomposición del nexo entre expectativas económicas y tutela
308
RODOTÁ, op. cit., p. 52.
309
Id. ibid., p. 55.
310
Id. ibid., p. 63.
311
Id. ibid., p. 63.
110
dominical. [...] la instancia realista está presente en dos niveles, el de la
multiplicidad en lugar da unidad (múltiples propiedades) y el de la
determinación de las situaciones merecedoras de una tutela dominical. [...]
La vieja unidad formal, que ya no responde a las demandas de tutela de los
titulares de los bienes, se disuelve con el instrumento pluralista.
312
A conclusão a que chegamos é de que o posicionamento de Rodotá, assim
como de Grossi, remete-nos ao abandono da noção unitária de propriedade e
conduz-nos ao reconhecimento da existência de uma multiplicidade de estatutos e
a diferentes categorias de bens. As expectativas de ordem econômica, geradas pelo
tipo de vida que levam os titulares dos bens, o apresentadas como merecedoras
de uma tutela dominical. Como bem afirma Rodotá, “[...] La vieja unidad formal, que
ya no responde a las demandas de tutela de los titulares de los bienes, se disuelve
con el instrumento pluralista.”
313
2.3 A Função Social da Propriedade
A superação do modelo de propriedade apresentado na Constituição é trazida
com a cláusula da “função social da propriedade” que tem sua base histórica nas
formulações acerca da figura do abuso de direito que levou a jurisprudência francesa
a impor, de forma gradativa, certos limites ao poder absoluto do proprietário. A
moderna concepção do direito de propriedade, pautada na idéia de atender à função
social, tem como precursor o doutrinador francês, Léon Duguit.
314
Foi ele que expôs,
de forma revolucionária, que o proprietário não é, na verdade, titular de um direito
312
RODOTÁ, op. cit., p. 63.
313
Id. ibid., p. 64
314
No início de século XX, a função social da propriedade foi enfatizada por DUGUIT, León. Las
transformaciones generales del derecho privado desde el Código de Napoleón. Tradução de
Carlos G. Posada. Madri/Espanha: Francisco Beltrán, 1912, p. 168-169, “[…] Sin embargo, la
propiedad es una institución jurídica que se ha formado para responder a una necesidad económica,
como por otra parte todas las instituciones jurídicas, y que evoluciona necesariamente con las
necesidades económicas mismas. Ahora bien, en nuestras sociedades modernas la necesidad
económica, a la cual ha venido a responder la propiedad institución jurídica, se transforma
profundamente; por consiguiente, la propiedad como institución jurídica debe transformarse también.
La evolución se realiza igualmente aquí en el sentido socialista. Está también determinada por una
interdependencia cada vez más estrecha de los diferentes elementos sociales. Di ahí que la
111
subjetivo, mas apenas o detentor da riqueza, uma espécie de administrador da coisa
que devia ter utilidade social.
315
Nossa intenção não é fazer um estudo histórico, porém não podemos deixar
de fazer referência ao ano de 1918, significativo na história do dogma jurídico da
propriedade, ainda que, mesmo antes dessa data, juristas e não juristas, através de
textos legislativos e doutrinários, falavam da função social da propriedade. A
história jurídica registra que, mesmo antes desse ano, era possível encontrar
disposições que continham a imposição de obrigações aos proprietários privados, de
modo que o discurso sobre a função, como princípio de caráter geral, germinaria em
tais normas particulares.
316
Foi Léon Duguit, no século XIX, que fez uma crítica ao direito subjetivo e
propôs sua substituição pela “noção realista da função social”, firmando a
propriedade como uma função social. Foi ele que aprofundou a polêmica, ao
rechaçar a idéia do direito privado, orientado pelo conceito de direito subjetivo que
reconhece a uma pessoa o poder de impor a sua vontade às demais.
317
Foi a doutrina de Duguit, que deu início à corrente do pensamento jurídico
para a elaboração de textos constitucionais que enfatizaram a função social da
propriedade, como nas Constituições do México e de Weimer. Elas vieram a inspirar
as Constituições da segunda metade do século XX que passaram a adotar a função
social, admitindo o condicionamento de um direito subjetivo à funcionalização. É a
função social a atribuição de um poder que se desdobra em um dever, pois não se
315
No mesmo sentido, diz LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica
complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 107-108, “Partiu do raciocínio de que a propriedade não
é um direito, mas uma coisa, uma utilidade, uma riqueza, protegida pelo direito objetivo, quando o
proprietário encontra resistência de terceiros. Logo, o proprietário não tem um direito subjetivo de
usar a coisa, mas o dever de empregá-la de acordo com a finalidade assinalada pela norma de direito
objetivo.”
316
“[...] a través de un reconocimiento y de un examen de estos significados, sin la pretensión de
agotarlos todos o sin trazar una historia del término, aunque la fortuna de la expresión sea tal que
justifique una investigación enteramente dedicada a ella. Este esclarecimiento, por otra parte, debe
permitir explicar más ampliamente la referencia al año 1918, que hemos soñado como especialmente
significativo en la historia del dogma jurídico de la propiedad. Verdaderamente es fácil demostrar
con textos legislativos y doctrinales en la mano que se ha hablado mucho antes de esa fecha de
función social de la propiedad entre juristas y entre no juristas; y que antes de ese año es posible
encontrar disposiciones que contienen la imposición de obligaciones a los propietarios privados, de
modo tal que el discurso sobre la función, como principio de carácter general, germinaba en tales
normas particulares.” (RODOTÁ, 1986. p. 211.)
317
COSTA, Judith Martins. Diretrizes teóricas do novo digo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva,
2002, p. 146-7.
112
limita à satisfação de interesses próprios e individuais, mas também à satisfação dos
interesses alheios.
Podemos constatar que a forma de exercer-se o direito de propriedade foi,
aos poucos, condicionada ao bem-estar social e ao cumprimento de sua função
social. Passou o direito de propriedade por um processo de publicização, segundo
alguns, ou de socialização, conforme outros.
A função social não deixa o campo da regulamentação privada, passando
para o domínio do direito público, como nos ensina Costa, ao dizer que a função
social exige a compreensão da propriedade privada o como monopólio dedutível
dos códigos oitocentistas, mas como uma pluralidade complexa de situações
jurídicas reais que englobam, ao mesmo tempo, um complexo de situações jurídicas
subjetivas, sobre as quais incidem, de forma escalonada, graus de publicismo e de
privatismo, de acordo com o bem objeto da concreta situação jurídica.
318
A distinção entre o público e o privado a incidir nos institutos do Direito
Privado foi traçada por Ludwig Raiser, em meados do século XX. Essa distinção
partiu da complexidade e pluralidade da vida contemporânea que acabou destruindo
a divisão existente entre o direito público e o direito privado existente na codificação
das leis. A proposta foi de divisão do ordenamento jurídico em dois los; um,
centrado na autonomia privado, na autodeterminação e na idéia de responsabilidade
social; outro, no interesse público e na heterodeterminação, sobre os quais se
constituíram os pólos de irradiação de graus de privativismo e de publicismo.
319
Sobre o público e o privado, iniciamos com a distinção entre as duas
dimensões, apresentadas por metáfora criada e utilizada por Saldanha, a partir da
idéia de jardim e de praça. A distinção dá-se no sentido quantitativo e qualitativo. No
primeiro, o problema é de extensão espacial, em que toma a cada e o jardim como
um espaço menor, onde as coisas são ajuntadas. É o local de viver, em especial o
viver noturno das pessoas; o segundo, correspondente à praça, é um espaço
maior que revela a cidade e tende a confundir-se com ela. É no segundo aspecto
que ocorre o problema de caracterização e de conteúdo. O espaço privado
318
COSTA, op. cit. 2002, p. 148.
319
Id. ibid., p. 149.
113
apresenta o sentido de reduto, preso ao sentido mais íntimo do ser humano,
enquanto o espaço blico é o espaço do viver social, onde se desenrola a
produção econômica e a ordem política e cultural. Esse é o espaço mais amplo e
mais problemático do humano, no qual se acha o pensar em geral, com heranças
históricas e “ismos” modernos, um espaço dentro de cujas ocorrências se
inventaram a geografia e a história.
320
Nessa distinção, evidenciamos que o princípio da liberdade individual
consolida-se no existir mais íntimo do ser humano, no espaço da casa e do jardim,
que corresponde ao espaço privado, local de privacidade e de intimidade, em que se
exercita livremente a vida privada. Já o público está associado à praça, local do viver
social e das relações que se estendem desse viver e que se desdobram na
produção econômica, na ordem política e na criação cultural.
Ao fazer alusão aos planos do viver, Saldanha também indica uma alternativa
elementar que é aquela que se entre o viver geral”, isto é, o viver de todos ou
com todos e o viver consigo mesmo que se referem ao viver pessoal que é privado e
consiste no plano da convivência mais íntima, mais direta, mais correlata ao existir
individual. É nesse contexto que se situa a posição da família que sempre
concentrou o existir privado e que na evolução histórica passou do clã ao Estado ou
das fratrias à polis.
321
No paralelismo ou contraposição entre privado e blico, em diferentes
contextos, ora pode sobressair o sentimento de individualidade e da vida privada,
ora da coisa pública. Isso ocorre devido ao crescimento das relações e das
complicações que levam a uma noção de “público” que se fragmenta em diversos
planos dentro da sociedade.
322
A conclusão a que nos leva o autor citado é de que o viver privado possui
algo de centro e de refúgio, mas a vida histórica, evidentemente, não ocorreria sem
o viver privado. É na esfera pública que se incluem as definições sociais
320
SALDANHA, op. cit., p. 15-16.
321
Id. ibid., p. 22.
322
Id. ibid., p. 60.
114
fundamentais, como o poder e seus símbolos, as hierarquias, as edificações e os
distantes rituais, isto desde os tempos antigos até a modernidade.
323
Podemos concluir que, atualmente, o direito privado contempla normas de
ordem pública, preceitos de interesse geral, e os institutos de direito privado
possuem relevante função social. Quanto ao conceito de ordem pública, não é
exclusivo do direito público, sendo ele um equívoco proporcionado pela dicotomia
entre o direito público e o direito privado. A noção de ordem pública é muito ampla e
permeia todo o ordenamento jurídico, encontrando-se positivada, em mais alto grau,
nos princípios constitucionais.
324
Voltando-nos para a propriedade, podemos dizer que, na distinção entre o
público e o privado, ela é chamada a desempenhar várias funções, ora
apresentando funções de grau elevado de caráter público, ora apresentando funções
de grau elevado de privacidade. Portanto, a propriedade desempenha tanto funções
públicas como privadas.
Hoje entendemos, como “direito de propriedade”, um complexo de situações,
deveres, obrigações, ônus jurídicos, a par de direitos subjetivos e poderes formativos
que se opõem, em perspectiva escalonada. Deixou a propriedade privada de
configurar um direito subjetivo, individual, para constituir uma situação complexa em
que também estão presentes deveres e obrigações de caráter social. É a partir da
propriedade que se exterioriza a função social e que passa a integrar o complexo de
direitos e deveres originados do direito de propriedade, modificando a idéia
individualista.
325
O conceito de função social é utilizado, algumas vezes, para negar à
propriedade a natureza de direito subjetivo e, em outras, para expressar a
subordinação do momento individual ao momento social. Essa é a interpretação de
Rodotá que assinala, também, a ambigüidade e o caráter contraditório das
conseqüências que se devem atribuir à imprevisão do conceito e que estão a dizer
que o qualificativo social não se presta a uma determinação que se realize em
323
Id. ibid., p. 114.
324
ALBUQUERQUE, Ronaldo Gatti de. Constituição e codificação: a dinâmica atual do binômio. In:
COSTA, Judith Martins. A reconstrução do direito privado. São Paulo: Editora da Revista dos
Tribunais, 2002, p. 99-100.
325
COSTA, op. cit. 2002, p.150.
115
termos jurídicos, quanto a observar os escassos esforços de precisão técnica da
expressão, em um debate que se arrasta muitos anos. A ambivalência apontada
que se liga a motivações ideológicas, que não recebem concreta expressão, baseia-
se precisamente sobre a afirmada impossibilidade de entender, de modo unívoco, a
qualificação social sobre a falta de credibilidade de qualquer tipo de mensuração da
utilidade social e, portanto, sobre a inutilidade de empreender qualquer tentativa de
tradução a fórmulas jurídicas rigorosas.
326
Quanto ao modo de operacionalizar o conceito de função social da
propriedade, tal como posto em nosso direito objetivo, afirma Loureiro que são duas
as orientações em vigor. A primeira concebe a função social como uma “cláusula
geral” do direito privado que funciona como norte para aferição dos comportamentos
proprietários. A segunda defende a tese de que a função social é um conceito, cujo
conteúdo é fornecido pela lei. Sem definição e especificação legal, a função social
se torna conceito vago e sem auto-aplicação. Também afirma que a atuação dos
tribunais se dá em respeito à figura já determinada pelo legislador ordinário.
327
As críticas quanto à primeira orientação, ou seja, à função social como uma
cláusula geral do direito privado, estabelece-se porque confere ao Poder Judiciário
uma margem muito ampla de decisão e de intervenção na vida econômica.
De acordo com Sarlet, os adeptos de uma vinculação sustentam que incumbe
ao legislador e, de forma supletiva ao juiz, a função de “intermediar” a aplicação das
normas e direitos fundamentais às relações entre particulares. Diz que cabe ao
legislador privado resolver as colisões que se estabelecem inevitavelmente no
326
[...] Ello es todavía mucho más evidente en lo que se refiere al concepto de función social, que
unas veces se utiliza para negar a la propiedad la naturaleza de derecho subjetivo insertándola o
dejando que se la inserte en una más amplia perspectiva social o solidarista) y otras veces “para
expresar la subordinación del momento individual [...] al momento social. [...] Más exacto nos parece
señalar la ambigüedad y el carácter contradictorio de las consecuencias que se deben atribuir a la
imprecisión del concepto: mas no tanto para decir que lo mismo el término función que el calificativo
social no se prestan a una determinación que se realice en términos jurídicos, cuanto para observar
los escasos esfuerzos de precisión técnica de la expresión en un debate que, sin embargo, se
arrastra desde hace muchos años. La ambivalencia recordada, que se liga con motivaciones
ideológicas que no reciben concreta expresión (aunque no por ello dejen de ser transparentes), se
funda precisamente sobre la afirmada imposibilidad de entender de modo unívoco la calificación
social, sobre la falta de credibilidad de cualquier tipo de mensuración de la utilidad social y, por tanto,
sobre la inutilidad de emprender cualquier clase de tentativa de traducción a fórmulas jurídicas
rigurosas, cuando se llega a la desconfianza total hacia todas las proposiciones en que el adjetivo
social aparece.” (RODOTÁ, 1986, p. 191-192).
327
LOUREIRO, op. cit., p. 114.
116
âmbito das relações entre particulares, todos titulares de direitos fundamentais,
realizando o juiz essa tarefa na ausência de norma legal incidente ou para atuar de
forma corretiva, no caso da lei ser manifestamente inconstitucional, em especial, por
ser ofensiva aos direitos fundamentais. Na ausência do legislador, o juiz deve limitar-
se a interpretar o direito infraconstitucional à luz das normas de direitos
fundamentais, fazendo uso de conceitos indeterminados e de cláusulas gerais do
Direito Privado, que atuariam como uma espécie de “porta de abertura” para os
direitos fundamentais. O Constituinte, através da cláusula geral, possibilita a
mediação pelo legislador e/ou pelos órgãos judiciais.
328
Não podemos deixar de registrar o posicionamento de Streck sobre a matéria,
ao dizer que “[...] não se pode confundir a adequada/necessária intervenção da
jurisdição constitucional com a possibilidade de decisionismos por parte de juízes e
tribunais. Seria antidemocrático.” Fundamenta dizendo que “[...] a admissão de
discricionariedade judicial e de decisionismos [...] é o próprio paradigma positivista
que o constitucionalismo de Estado Democrático de Direito procura superar,
exatamente pela diferença ‘genética’ entre regras e princípios.” Sua conclusão é de
que,
[...] por mais paradoxal que possa parecer, os princípios têm finalidade de
impedir “múltiplas respostas”; portanto, “fecham” a interpretação (e não a
“abrem”). A partir disso é possível dizer que é equivocada a tese de que os
princípios são mandatos de otimização e de que as regras traduzem
especificidades [...], pois dá a idéia de que os “princípios” seriam cláusulas
abertas”, espaço reservado à livre atuação da subjetividade do “juiz”. [...]
Nada mais positivista que isso. [...].
O autor remete a discussão a Kelsen. Conclui, dizendo que as decisões dos juízes
devem ser controladas pela doutrina e que o Estado Democrático de Direito exige
fundamentação detalhada de qualquer decisão.
329
Tanto o posicionamento de Sarlet como o de Streck merecem acolhida, pois a
atuação do juiz ocorre na ausência de norma legal incidente ou para atuar de forma
corretiva, quando a lei for manifestamente inconstitucional, devendo o juiz limitar-se
a interpretar o direito infraconstitucional à luz das normas de direitos fundamentais,
328
SARLET, Ingo Wolfgang. A constituição concretizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000,
p. 142.
329
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso Constituição, hermenêutica e teorias discursivas.
Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006, p. 142.
117
evidentemente que de forma fundamentada e com embasamento na doutrina. Não é
outro o posicionamento que se exige do juiz na interpretação dos princípios
constitucionais.
Quanto à segunda posição, que defende a tese de que a função social é um
conceito, cujo conteúdo é fornecido pela lei, a função social dependeria de
legislação específica para poder ser aplicada a casos concretos. Essa corrente
entende que, se a legislação inferior disciplinar a função social em contraste com
preceitos constitucionais, deve prevalecer o critério da especialidade. Sustenta,
ainda, que a amplitude da função social deverá ser interpretada restritivamente, de
modo a vincular o bem à sua utilização normal, sem descaracterizar a propriedade
privada, ou reduzindo-a à concepção meramente instrumental.
330
Constatamos que estamos diante de uma contradição entre os sistemas
aberto e fechado. O primeiro que parte da cláusula geral, e possibilita a
interpretação pelo legislador e/ou juiz, conferindo abertura ao sistema e amplitude de
interpretação, mas que não agrada a muitos. O segundo, porque o sistema é
fechado, limita e restringe a norma constitucional, possibilitando, inclusive, que
legislação inferior venha a disciplinar a função social, e, em contraste com preceitos
constitucionais, prevê que prevalece o critério da especialidade. Essa ainda prevê a
interpretação da função social de forma restritiva, sem descaracterizar a propriedade
privada.
A prioridade na concretização dos direitos fundamentais é do legislador, por
isso as normas jurídicas, inclusive as de Direito Privado, gozam de presunção de
constitucionalidade. Na resolução de casos concretos, que envolvem questões de
direito fundamental, os juízes, na aplicação de tais normas, delas podem se
afastar, se demonstrarem sua inconstitucionalidade. Nesse caso, é ônus dos juízes a
argumentação.
331
Com relação à interpretação do juiz, afirma Rodotá que, qualquer que seja o
modo como se entenda a natureza da atividade interpretativa do juiz, temos de
concluir que se pode criar um princípio inexistente em nosso ordenamento. Destaca
330
LOUREIRO, op. cit., p. 117.
331
SARMENTO, op.cit., p. 284.
118
dois pontos: ou bem o princípio somente está determinado na lei ordinária submetida
ao juiz do tribunal, e este não pode examinar a constitucionalidade por falta de
contraste com uma norma da constituição; ou bem o estabelecido na lei ordinária
contrasta com um princípio existente no texto constitucional, e será, portanto,
possível declarar sua ilegitimidade. Se a maneira exata de colocar a questão é essa
última, isso significa que a determinação de utilidade social é, em linha de princípio,
independente da atividade do legislador ordinário e que atualmente é possível julgar
toda a legislação em matéria de iniciativa econômica e de propriedade privada com a
medida do citado princípio constitucional que adquire, por conseguinte, uma eficácia
unificadora do direito vigente.
332
Na complexidade da sociedade atual, encontramos uma diversidade de
expectativas que conduzem à abertura do sistema, não se admitindo uma única
resposta, quando o próprio legislador possibilitou a abertura através de cláusulas
gerais que levam à abertura do sistema. Considere-se, ainda, que o Direito está
interligado com os subsistemas como a economia, a ciência, a religião, o que mostra
a necessidade de evolução do Direito para os anseios da sociedade. Não como
negar que, diante da complexidade da sociedade atual, iremos deparar-nos com a
situação de risco e de paradoxo, face à diversidade de alternativas que serão
colocadas diante do caso concreto. No entanto, o enfrentamento das situações, a
partir da interpretação e da aplicação da norma constitucional, impõe-se.
333
332
: “Cualquier que sea el modo en que se entienda la naturaleza de la actividad interpretativa del
juez, hay que excluir que pueda crear un principio inexistente en nuestro ordenamiento. Entonces,
una de dos: o bien el principio sólo está determinado en la ley ordinaria sometida al juicio del tribunal
y éste no puede examinar la constitucionalidad por falta de contraste con una norma de la
Constitución; o bien lo establecido en la ley ordinaria contrasta con un principio existente en el texto
constitucional y será, por tanto, posible declarar su ilegitimidad. Si la manera exacta de plantear la
cuestión es esta última, ello significa que la determinación de la utilidad social es en línea de principio
independiente de la actividad del legislador ordinario y que actualmente es posible juzgar toda la
legislación en materia de iniciativa económica y de propiedad privada con la medida del citado
principio constitucional (el cual por consiguiente adquiera una eficacia unificadora del derecho
vigente.” (RODOTÁ, 1986. p. 206.)
333
Por complexidade entendemos o excesso de possibilidades, [...] queremos dizer que sempre
existem mais possibilidades do que se pode realizar”, diz LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 45. Sobrepondo-se às expectativas, formam-se conjuntos
maiores de rejeições que podem ter suas raízes na casualidade dos contatos humanos. Afirma
Luhmann, op. cit., p. 107, que “A função da complexidade dessas estruturas é a de aumentar a
complexidade dos sistemas físicos e sociais, aumentar o âmbito da experiência e da expectativa de
forma a adequar-se a um mundo complexo, com múltiplas situações e exigências instáveis. Com isso,
no entanto, sobrecarrega-se a capacidade, fatualmente determinada, de estabelecimento de
orientações congruentes. Na experimentação corrente do cotidiano é impossível acompanhar tais
estruturas de expectativas fáticas e concretamente, ou seja, fixá-las e controlá-las conscientemente.”
119
Com relação ao conceito de propriedade, podemos dizer que evoluiu do
caráter individual para o social, o que se deve à incorporação progressiva do
princípio da função social da propriedade nos ordenamentos jurídicos de diversos
países. No caso brasileiro, a Constituição de 1988 modificou a abrangência do
Direito Público Constitucional, ao garantir o direito de propriedade no art. 5.º, XXII, a
fim de atender à sua função social. Como nos diz Chemeris, a modificação da noção
individualista de propriedade revela que a propriedade não se sujeita somente ao
Direito Privado, mas também ao Direito Público, com regulamentação do Direito
Constitucional.
334
O princípio da igualdade, da cidadania e da dignidade humana materializa-se
na função social da propriedade, buscando o equilíbrio entre o conteúdo social
positivado na Constituição e a desigualdade social existente na sociedade, com o
objetivo de minimizá-la.
335
A igualdade, como um dos princípios estruturantes do regime geral, está
positivada ao longo de toda a Constituição Brasileira e está enunciada, como valor,
no preâmbulo do texto constitucional
336
e, como princípio, no art. 5.º, caput.
337
A Constituição Federal garante a igualdade na aplicação do direito e como
nos diz Aronne, a igualdade assume relevância quando tratamos de administração
pública e do tratamento judiciário. Ser igual perante a lei traduz mais do que mera
aplicação igual da lei, pois induz que a própria lei deve tratar de forma igual todos os
cidadãos. Essa igualdade vincula o próprio legislador para a criação de um direito
igual, não excludente, para toda a sociedade, o que conduz ao princípio da
universalidade. É daí que decorre a obrigatoriedade de atuação do legislador,
334
CHEMERIS, Ivan. A função social da propriedade. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002, p.41.
335
Id. ibid., p. 41.
336
Nós representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para
instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia interna e
internacional, com a solução prática das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL,
Preâmbulo.)
337
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, Art. 5.º, caput.)
120
positivada na lei, para a solução dos casos práticos, como princípio de igualdade a
todos os indivíduos.
338
A função social da propriedade é um princípio que tem por base o
ordenamento jurídico e a matriz juspositiva no texto constitucional. É o ponto de
convergência de todas as evoluções alcançadas pelo conceito de propriedade.
Deve, portanto, andar junto com os interesses coletivos, sem sobrepor-se a eles,
com o fim de atender à função social.
339
Confunde-se a definição de função social com os sistemas de limitação da
propriedade. No entanto, esclarece Silva que as limitações dizem respeito ao
exercício do direito ao proprietário; a função social à estrutura do direito mesmo, à
propriedade. As limitações estão ligadas às atividades do proprietário e interferem
somente no exercício do direito, o que se explica pela simples atuação do poder de
polícia.
340
Sobre o significado, numa perspectiva contemporânea, entendemos a função
social como norma imperativa da ação do proprietário. C
121
a função social não é tanto a característica típica como o modo concreto desse fim
de se manifestar como um dado externo, ainda que não eliminável.
341
2.3.1 A função social da propriedade e o seu desenvolvimento
legislativo
A primeira Constituição Brasileira, do período do Império, de 1824, consagrou
o direito à propriedade privada no art. 179, item 22, assim dispondo:
22. É garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem
público, legalmente qualificado, exigir o uso e emprego da propriedade do
cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcará os
casos com que terá lugar esta única exceção e dará as regras para se
determinar a indenização.
A Constituição Republicana, de 1891, manteve o direito à propriedade privada
no art. 72, § 17, com previsão de desapropriação por necessidade ou utilidade
pública, mediante indenização prévia.
Na Constituição de 1934, o direito à propriedade privada era quase absoluto,
cedendo somente à desapropriação pelo Poder Público, mediante indenização justa.
Essa foi inspirada no modelo alemão da Constituição de Weimar, art. 113, item 17,
que condicionava o direito de propriedade privada ao cumprimento de sua função
social. No entanto, seu período de vida foi curto, pois teve origem na revolução
constitucionalista de 1932, que sucedeu a Revolução de 1930, que levou Getúlio
Vargas ao poder. Vargas, em 1937, implantou o Estado Novo, e impôs uma nova
Constituição ao País, inspirada na Constituição Polonesa de 1935.
341
“Se ha observado desde diferentes puntos que en esta concepción la propiedad “tiene” y no “es”
una función social; indicándose con ello, simplemente, la posición de la propiedad en el sistema de
los derechos, sin determinar ninguna peculiaridad de ella. Encuadrada dentro del más general
conjunto de obligaciones a las que el creyente está sometido, la función social aparece como un
temperamento de la propiedad, del mismo modo que los límites que se le imponen. Al igual que
cualquier otro instrumento a disposición del hombre, la propiedad no se sustrae al destino a un fin que
trasciende al individuo: la función social no es tanto la característica típica como el concreto modo de
manifestarse de este fin supra-ordenado, manteniéndose así como un dato externo, aunque no
eliminable. Es evidente que ello no introduce innovaciones en la estructura histórica de la propiedad y
más bien la injería en un sistema jerárquico. Las razones sociales que es habitual señalar como
fundamento de esta construcción no consiguen penetrar en lo vivo de la estructura jurídica.”
(RODOTÁ, 1986, p. 215-216.)
122
A Constituição de 1937 não manteve a inspiração alemã, e voltou a assegurar
o direito à propriedade privada, ressalvando a desapropriação por necessidade ou
utilidade pública, mediante indenização prévia.
Na Constituição de 1946, foi restaurada a necessidade de cumprimento da
função social da propriedade, tendo como inspiração a redemocratização do final da
Segunda Grande Guerra. A função social foi incluída entre os princípios que regem a
ordem econômica e social.
Em 9 de novembro de 1964, por meio da Emenda Constitucional n. 10, foram
acrescentados parágrafos ao art. 147 da Constituição, prevendo a possibilidade da
União desapropriar imóveis rurais, para os fins previstos nesse artigo.
A Constituição de 1967, em seu art. 157, III, manteve a função social da
propriedade entre os princípios da ordem econômica e social. Porém o direito à
propriedade privada foi mantido no art. 150, § 22, com ressalva para os casos de
desapropriação. Em 1969, a Emenda 01/69 manteve a mesma disposição.
A inovação, no tratamento da matéria, foi dada pela Constituição de 1988, ao
incluir a função social da propriedade entre os direitos e garantias individuais e
coletivos, no art. 5.º, XXIII, conferindo-lhe a condição de cláusula pétrea. Também
manteve a função social entre os princípios de ordem econômica, art. 170, III, e
estabeleceu os requisitos para cumprimento de função social à propriedade, tanto de
bens imóveis urbanos como rurais, no art. 186. Constitui-se a função social dos
seguintes fatores expressos nos incisos do art. 186 da Constituição Federal:
aproveitamento racional e adequado da propriedade; a utilização adequada dos
recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente; a observância das
disposições que regulam as relações de trabalho e da exploração que favoreça o
bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Destacamos também a idéia plural de propriedade no Código Civil Brasileiro
de 2002, pois, de acordo com o art. 1.228, § 1.º, O direito de propriedade deve ser
exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais [...]”,
enquanto no caput, do art. 1.228, do mesmo texto legal, dispõe que O proprietário
123
tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de
quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
Também estabelece o § 2.º, do art. 1.228, do Código Civil de 2002, que se
proíbe ao proprietário os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade,
ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem”. Também o art.
1.277, que se refere aos direitos de vizinhança, traz sanções ao “uso anormal” da
propriedade. Também se integram ao conjunto de normas da propriedade aquelas
que se referem ao direito de superfície, ao condomínio, ao exercício das servidões e
do usucapião.
Decorre das disposições do Código Civil, que citamos anteriormente, o
princípio da função social como funções positivas e negativas. Como funções
positivas, impõe o novo Código o dever de usar o direito de propriedade de acordo
com as finalidades econômicas e sociais, incluindo-se os fatores ecológicos e
ambientais e os relativos à preservação do patrimônio histórico e artístico, de
inegável interesse coletivo e transindividual. Do ponto de vista das funções
negativas, não pode o proprietário exercer “anormalmente” o seu direito, ou seja,
exercer seu direito de forma abusiva e fora das finalidades arroladas no § 1.º, do art.
1.228.
É a propriedade um direito individual, porém condicionada ao princípio da
função social. Sua interpretação é feita a partir dos procedimentos que legitimam as
aspirações sociais, através de uma nova visão hermenêutica, voltada à concepção
constitucional de igualdade, com o fim de combater as desigualdades existentes
entre as pessoas.
2.4 Repersonalização e Constitucionalização: Superação do
Paradigma Patrimonialista
Dentro do contexto da complexa sociedade contemporânea, como forma de
situar as transformações que ocorrem no Direito Civil, entendemos conveniente
124
iniciar o estudo com a conceituação da repersonalização e da constitucionalização
do Direito Privado.
Sobre o tema, afirma Fachin que o Código Civil Brasileiro de 2002 está
ancorado nos princípios fundamentais do Direito Civil, tendo por base, além da
suposta autonomia e pretensa igualdade, o reconhecimento da pessoa e dos direitos
de personalidade, para assegurar os direitos dos não reconhecidos e os excluídos
de todos os gêneros. Traça um roteiro das tendências contemporâneas.
342
uma mudança de mentalidade na sociedade atual que faz também
repensar o Direito, recolocando o indivíduo como ser coletivo, no centro dos
interesses, e na perspectiva da igualdade substancial. Os direitos fundamentais do
indivíduo, nas palavras de Lorenzetti, “[...] são a forma contemporânea da doutrina
dos Direitos Naturais; constituem um objetivo ideal do ordenamento, que vai sendo
atingido, progressivamente, até a positivação, nela introduzindo critérios do dever
ser”.
343
Ao saudar o reconhecimento da pessoa, Fachin explica o sentido da
“repersonalização” do Código Civil, dizendo que as pessoas não são apenas
indivíduos e seus códigos, mas que estão na origem das histórias narradas sem as
características e cicatrizes do seu tempo.
344
Em síntese, a discussão dos princípios, valores que o sistema jurídico colocou
em seu centro e em sua periferia, é o que chamamos de “repersonalização” do
direito privado. É de uma nova noção de sistema e da análise de seus componentes
axiológico-normativos que surge a repersonalização. Como nos diz Aronne,
[...] na positivação do princípio da dignidade da pessoa humana, no grau de
princípio fundamental, as normas de direito das coisas passam a receber
342
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 8-9.
343
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1998, p. 144.
344
FACHIN, op. cit., p. 8. Sobre o sentido da repersonalização, explica CARVALHO, Orlando de. A
teoria geral da relação jurídica: seu sentido e limites. (Nota prévia). 2. ed. Coimbra: Centelha, 1981.
v. 1, p. 92, que “É esta valorização do poder jurisgênico do homem comum sensível quando, como
no direito dos negócios, a sua vontade faz lei, mas ainda quando, como no direito das pessoas, a sua
personalidade se defende, ou quando, como no direito das associações, a sua sociabilidade se
reconhece, ou quando, como no direito de família, a sua afetividade se estrutura, ou quando, como no
direito das coisas e no direito sucessório, a sua dominialidade e responsabilidade se pontenciam –, é
esta centralização do regime em torno do homem e dos seus imediatos interesses que faz do Direito
Civil o foyer da pessoa, do cidadão puro e simples.”
125
seu influxo, migrando para uma nova dimensão finalística. O sujeito,
intersubjetivamente considerado, no seu meio e interação social, por
imposição do ordenamento, retoma o centro protetivo do Direito, em
detrimento da pertença.
Houve uma alteração substancial no Código Civil Brasileiro que tinha como núcleo
central o patrimônio, passando atualmente a ter como centro a pessoa e suas
necessidades fundamentais, indo de encontro aos direitos fundamentais
estabelecidos na Constituição Federal. A mudança de enfoque centralizador do
Código Civil deu início à marcha da repersonalização e da despatrimonialização do
direito.
345
A repersonalização coloca o indivíduo como ser coletivo no centro dos
interesses e sempre na perspectiva da igualdade substancial. Esse novo enfoque na
maneira de ver a sociedade leva a repensar sobre a importância a ser atribuída à
personalidade, destacando o direito à intimidade, ao próprio corpo; a importância
dada aos hipossuficientes; à garantia do patrimônio mínimo, como o bem de família
e o módulo rural, aos defeitos nas relações jurídicas vinculadas ao contrato e ao
patrimônio bem como da tutela da vida a quem se destina à norma civil.
Partindo da análise do passado, pretendemos olhar para o futuro, mostrando
que o individualismo deu lugar ao indivíduo coletivo como ser coletivo no centro dos
interesses e na busca da igualdade. Os direitos individuais, atribuídos a cada
cidadão, devem coexistir com os interesses/deveres superiores do Estado inscritos
na Constituição e, em tese, devem coincidir com os interesses coletivos. Havendo
conflito entre os interesses individuais e os coletivos, predominarão esses.
346
Entendemos por “repersonalização” a discussão de valores, dos princípios,
que o sistema jurídico colocou em seu centro e em sua periferia. O Código Civil
Brasileiro tem como centro o patrimônio e é, em torno dele, que gravitam os
interesses das pessoas. Com o movimento da repersonalização, as pessoas
passaram para o centro dos interesses, assim como suas necessidades
fundamentais, entre elas o direito de morar com dignidade. Esse novo enfoque
345
ARONNE, op. cit., p. 44.
346
LEAL, op. cit., p. 118.
126
conduziu à “despatrimonizalização” que também possui um caráter de
“desmaterialização” da riqueza, como bem explicou Fachin.
347
Constitucionalização significa o processo pelo qual a Constituição vai gerar
mudança que irá repercutir no Direito Civil.
348
Os valores como igualdade,
solidariedade, liberdade, fraternidade, pluralismo e bem comum ingressam no
sistema jurídico pátrio como princípios que vinculam tanto ao Estado como ao
destinatário da ordem jurídica, dando origem aos princípios da dignidade da pessoa
humana, cidadania e função social da propriedade.
349
A propriedade privada, como direito individual, foi disciplinada juridicamente a
partir do Código Civil Francês em 1804, art. 554, destacando o direito de
propriedade como um direito absoluto no centro do ordenamento, reproduzindo as
idéias econômicas do início do culo XIX, através da propriedade liberal. Serviu o
Código Francês de inspiração ao Código Civil Brasileiro de 1916 que colocou a
família, a propriedade privada individual e a autonomia da vontade como pilares de
sustentação do sistema jurídico privado, servindo, assim, como expressão de
positivação do direito natural.
Após, na Constituição de 1988, acrescentou o legislador que o exercício
privado da titularidade da propriedade deve estar submetido ao interesse social. O
art. 186 da Constituição Federal
350
estatui um conjunto de benefícios básicos
vinculados à função social da propriedade, em especial, da propriedade imobiliária
rural. Hoje, o exercício da titularidade da propriedade privada está submetido a
esses requisitos, sob pena de aplicação de sanção, em caso de não-observância.
O Direito Privado à propriedade passou a ser aplicado à luz da Constituição, o
que veio a caracterizar a “constitucionalização” do Direito Privado. Propicia a
Constituição um processo de mudança que vai repercutir no Direito Civil.
347
FACHIN, olp. cit., p. 78.
348
Id. ibid., p. 77.
349
RIBEIRO, op. cit. 1998, p. 115.
350
“A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo
critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I- aproveitamento
racional e adequado; II- utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente; III- observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV- exploração que
favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL
BRASILEIRA, Art. 186, 1988)
127
Destacamos que, em relação ao direito de propriedade, o Código Civil de 2002 veio
a introduzir a função social da propriedade no parágrafo 1.º do artigo 1.228, ao
dispor que o direito de propriedade deve ser exercido com as suas finalidades
econômicas “e sociais”.
351
Não como negar que a Constituição, influenciada pela complexidade da
realidade social, é mais progressista e aberta. Como diz Streck,
[...] de um lado, temos uma sociedade carente de realização de direitos e,
de outro, uma Constituição que garante estes direitos de forma mais ampla
possível. [...] O Estado Democrático de Direito representa a vontade
constitucional de realização do Estado Social. É um plus normativo em
relação ao direito promovedor – intervencionista próprio do Estado Social de
Direito. Desse modo, se na Constituição se coloca o modo, é dizer, os
instrumentos para buscar/resgatar os direitos de segunda e terceira
gerações, via institutos como substituição processual, ação civil pública,
mandado de injunção (individual e coletivo) e tantas outras formas, é porque
no contrato social – do qual a Constituição é a explicitação – há uma
confissão de que as promessas da realização da função social do Estado
não foram (ainda) cumpridas.
352
Operando uma síntese entre o ser e o dever ser que não podem ser vistos
isoladamente, proporciona a Constituição uma nova leitura do Direito Civil, aspirando
a pautar as relações privadas por parâmetros normativos mais progressistas e mais
justos, dentro da complexidade da sociedade atual.
2.5 Conceito de “Pessoa” e a Noção de Constitucionalização
Parece simples dizer o que entendemos por pessoa, mas, na realidade,
essa é uma conceituação difícil, pois envolve uma complexidade de noções
relacionadas à vida humana, ao ser racional, ao indivíduo, ao homem, à pessoa
como sujeito de direitos e à dignidade humana. Por outro lado, deparamo-nos com
conceitos formulados por diversos autores, o que nos leva a fazer um trabalho de
351
“O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas
e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a
flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem
como evitada a poluição do ar e das águas”. (CÓDIGO CIVIL, Art. 1.228, § 1.º, 2002)
352
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Uma visão crítica do Direito.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 85.
128
pesquisa, na busca de uma melhor compreensão dos grandes temas que envolvem
a pessoa humana.
Ao se referir ao conceito de “pessoa”, Silva faz referência à importância do
debate sobre o tema, afirmando que não se pode, de maneira alguma, deixar que se
transforme em um palavrório estéril e com todas as imperfeições éticas, sociais e
jurídicas que a discussão possa trazer. A justificativa que apresenta é de que se
desenha no horizonte o fortalecimento de um sistema de exclusão social com
proporções planetárias, apoiado em uma lógica que faz pouco caso do segundo
imperativo categórico de Kant, em sua filosofia moral.
353
A preocupação de Silva não é com o fato de se viver uma época de crise e
transformação das referências, entre elas a do conceito de pessoa, mas com o
descaso por uma discussão profunda e interessada dessas referências, seja pela
insistência de um comodismo ilusório, apegado a velhos conceitos, seja pela
prevalência do imediatismo e das vantagens fáceis, que faz pouco caso da relação
entre os atos que dita e a preservação e afirmação da noção de dignidade em si e
do alter
354
.
Sobre a origem do conceito, a partir de Moura, podemos dizer que surgiu na
civilização greco-romana e que, inicialmente, estava limitado ao mundo do teatro,
pela utilização de máscaras pelos artistas. A finalidade era fazer que suas vozes
reboassem melhor pelo espaço aberto em que representavam. Em Roma, tal
máscara era chamada persona (pessoa). O termo vinha do verbo personare, isto é,
ressoar. Como a máscara adaptava-se ao personagem que era representado
(homem, mulher, velho, criança, etc.), o conceito de pessoa passou a corresponder
ao papel que se representava numa peça teatral (personagem).
355
No Direito Romano, o conceito de pessoa passou a qualificar aquele que tinha
capacidade de ter direitos, os sujeitos de direito, passando o Direito a reforçar o
conceito de pessoa. Esse conceito não incluía todo e qualquer ser humano, como
353
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Pessoa Humana e Boa-Fé nas Relações Contratuais: a
alteridade que emerge da ipseidade. In: Anuário do programa de pós-graduação em direito da
UNISINOS. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2005. p 115-116.
354
Id. ibid., p. 115-116.
355
MOURA, S.J., P.
e
Laércio Dias de. A dignidade da pessoa e os direitos humanos. São Paulo:
Editora da PUC, 2002, p. 29.
129
podemos constatar pela exclusão dos escravos que não eram considerados
pessoas, não eram titulares de direitos, e eram considerados como res, ou seja,
como coisas.
Na área do direito, o uso do termo “pessoa” reforça, em um certo sentido, o
conceito de pessoa, mostrando que não se restringe à área do teatro e que é
aplicado para significar a capacidade de exercer um papel ou uma função na vida
real.
No campo da Filosofia e da Teologia, o conceito de pessoa surgiu com o
cristianismo, com fundamento no conhecimento de Deus, ser infinitamente perfeito,
inteligente e livre, bem como no conhecimento do ser humano, racional e dotado de
liberdade. É a teologia moderna que estabelece que todos os homens são pessoas
e que esse termo se refere somente aos homens.
A ligação do termo pessoa a indivíduo de substância racional, conforme
Moura, ocorre porque O conceito de pessoa aproxima-se muito do conceito de
hipóstase”. Assim destaca o autor:
É importante ressaltar que o conceito de hipóstase teve, contudo, uma
compreensão mais abrangente que o de pessoa, podendo exprimir qualquer
indivíduo substancial, como observa Santo Tomás de Aquino ao responder
uma objeção: “Hipóstase, entre os gregos, pela própria significação do
nome, pode exprimir qualquer indivíduo substancial, mas pelo modo de falar
veio a significar o indivíduo de natureza racional, por causa da excelência
dessa natureza.” (Suma Teológica, I, q. XXIX, art. 2, ad. I).
356
Conclui Moura que o conceito de pessoa não se limita somente aos seres de
natureza racional como também, por sua origem, está ligado à idéia de dignidade de
um ser que decorre de sua excelência. O termo “pessoa” está ligado à idéia de
dignidade e o fundamento dessa dignidade, no caso do ser humano, é a sua
natureza como animal racional.
357
Passando à análise do conceito de pessoa em Kant, podemos constatar que
esse filósofo relaciona a liberdade aos seres racionais. Ou seja, a idéia de pessoa
está ligada à liberdade de sua vontade.
356
MOURA, op. cit., p. 32.
357
Id. ibid., p. 32.
130
A vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto
racionais, e liberdade seria a propriedade dessa causalidade, pela qual ela
pode ser eficiente, não obstante as causas estranhas que possam
determiná-la. Mais adiante afirma “[...] a liberdade tem de ser demonstrada
como propriedade da vontade de todos os seres racionais [...].
358
A liberdade da vontade é a autonomia, pois a vontade é, em todas as ações,
uma lei em si mesma que caracteriza tão-somente o princípio de não agir segundo
nenhuma outra xima que não seja aquela que possa ser objeto de si mesmo
como lei universal. É a fórmula do imperativo categórico. Assim, vontade livre e
vontade submetida a leis morais são uma só e a mesma coisa.
A liberdade tem de ser demonstrada como propriedade da vontade de todos
os seres racionais, em geral, dotados de uma vontade. Está ligada ao conceito de
autonomia, e esta, por sua vez, está ligada ao princípio universal da moralidade que
serve de fundamento à idéia de todas as ações de seres racionais. Quando nos
julgamos livres, incluímo-nos no mundo inteligível como seus membros e
reconhecemos a autonomia da vontade juntamente com a sua conseqüência, a
moralidade; como obrigados, ao mundo sensível, e simultaneamente ao mundo
inteligível.
A distinção de “pessoa”, com a noção de ser humano, é feita por Sève,
vinculada à espécie biológica. Diz que o ser humano é humano porque tem como
ponto de partida a humanidade como espécie biológica. A pessoa é humana, num
sentido completamente diferente, pelo fato de tomar como fim a humanidade como
ideal regulador. No ser humano, a humanidade está presente a título de fato. Na
pessoa, ela está representada como um valor. É essa representação que constitui a
consciência moral.
359
Enquanto o ser humano é visto como espécie biológica, portanto ligado à
ciência, a pessoa é representada como um valor, constituindo a consciência moral.
Percebemos que a palavra pessoa aponta para uma verdadeira construção cultural
358
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo:
Martin Claret, 2004, p. 78-79.
359
SÈVE, Lucien. Para uma crítica da razão bioética. Lisboa: Instituto Piaget Divisão Editorial,
1994, p. 21.
131
e que, tal qual ela chegou aos dias presentes, indica muito mais do que apenas um
ser biológico.
360
Assim o conceito que melhor conviria ao nosso estudo é o de indivíduo que
nos é dado pela biologia, pois pessoa é claramente uma categoria do direito romano
e, para nós, de forma mais direta, da teologia cristã.
361
A noção de pessoa, como sujeito de direitos, advém do conceito abstrato e
não da realidade concreta, pois define-se a pessoa como a aptidão a ser titular de
direitos e de obrigações, sendo que essa aptidão repousa sobre a “vontade, livre e
soberana” do sujeito, numa linguagem diretamente aparentada com a da análise
kantiana.
362
A dissociação entre pessoa e indivíduo físico é fundamental para atender-se
ao pensamento jurídico contemporâneo. Deve-se recusar a concepção clássica do
direito natural, pois a figura do indivíduo como sujeito de direito está inteiramente
ligada à autonomia da pessoa. Portanto, sendo a autonomia um fundamento da
dignidade, a pessoa, titular de direitos, deve ser vista em sua dignidade.
363
Sobre a dignidade humana em Kant, iniciaremos o estudo com clássico
conceito de dignidade.
No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa
tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa
que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer
equivalência, compreende uma dignidade.
O que diz respeito às inclinações e necessidades do homem tem um preço
comercial; o que, sem supor uma necessidade, se conforma a certo gosto,
digamos, a uma satisfação produzida pelo simples jogo, sem finalidade
alguma, de nossas faculdades, tem um preço de afeição ou de sentimento
(Affektionspreis); mas o que se faz condição para alguma coisa que seja fim
em si mesma, isso não tem simplesmente valor relativo ou preço, mas um
valor interno, e isso quer dizer, dignidade.
Ora, a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um
fim em si mesmo, pois por ela lhe é possível ser membro legislador no
reino dos fins.
364
360
SILVA FILHO, op. cit. 2005, p. 117.
361
SÈVE, op. cit., p. 38.
362
Id. ibid., p. 21.
363
Id. ibid., p. 22.
364
KANT, op. cit. 2004, p. 65.
132
A concepção moderna da dignidade da pessoa humana de acordo com a
tradição kantiana é apresentada por Hegel, não se constituindo, segundo Seelman,
de uma recaída no pré-kantiano.
365
Os elementos da compreensão kantiana são apanhados inteiramente por
Hegel que, no entanto, os classifica de forma diferente.
Em primeiro lugar, reconhece que a pessoa como objeto do dever de respeito
é a auto-referência do ser idêntico, e é a própria referência à subjetividade sempre
diferenciada. O motivo do respeito recíproco é a garantia da liberdade. É um
imperativo prático que motiva o estabelecimento de um estado jurídico. Não tem por
base uma realidade ontológica nem autonomia ou razão que exijam observância,
mas o respeito recíproco do indivíduo como pessoa, detentora de direitos. Em Hegel,
a pessoa é um imperativo jurídico e não um mero dever de virtude, como
apresentada em Kant. Prevalece, em Hegel, o dever de respeito ao homem, antes
mesmo do dever de respeito aos direitos individuais, pois estes referem-se
àquele.
366
Também considera Seelman que “[...] a orientação de acordo com as
necessidades existentes no sujeito”
367
não corresponde à concepção apresentada
por Kant, pois Hegel alarga a pretensão de respeito à particularidade, característica
própria da pessoa humana, sob a palavra-chave do respeito recíproco ou da
dignidade da pessoa humana.
A pessoa, no direito abstrato, e o sujeito, na “moralidade subjetiva”,
concretizam-se na institucionalização jurídica dessas relações de respeito na
“sociedade civil” e no “Estado”. É uma auto-referência sempre individual que se
concretiza externamente.
A segunda esfera do reconhecimento de Hegel é de que, “[...] é uma filosofia
do sujeito, o uma filosofia da intersubjetividade”.
368
A filosofia torna-se
intersubjetiva somente na religião. Para Hegel, a relação religiosa é vista como a
365
SEELMAN, Kurt. Pessoa e dignidade da pessoa humana na filosofia de Hegel. In: SARLET, Ingo
Wolfgang. (Org.). Dimensões da dignidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 52.
366
SEELMAN, op. cit., p. 53.
367
Id. ibid., p. 53.
368
Id. ibid., p. 53.
133
abdicação de uma postura intransigente quanto à subjetividade individual. Nessa
concepção, o retratar-se a si próprio ocorre na execução do perdoar e ser perdoado.
Na filosofia da religião, o respeito é muito mais um ato da intersubjetividade do que
um imperativo prático.
O terceiro estágio do reconhecimento recíproco do respeito na esfera do
Direito, em Hegel, é um retratar-se a si próprio. É o auto-respeito que repousa na
retratação e que não pode ser objeto do direito como imperativo, porque é um ato
interno que, como tal, não pode ser exigido e, ainda que fosse, não poderia resultar
meritório.
369
Na discussão atual sobre a dignidade, afirma Seelman que a dignidade é
determinada como algo que é ferido por meio da degradação, porém é definida
como uma lesão ao auto-respeito.
370
A degradação é uma violação contra um dever
de respeito jurídico, e pode ser pensada na recusa do reconhecimento da “pessoa”
como subjetividade jurídica e do “sujeito” como indivíduo particular. Ocorre a
degradação, quando o outro não é reconhecido como livre ou como indivíduo
particular com suas necessidades específicas.
371
O que não tem preço ou equivalência compreende uma dignidade em Kant.
Quando alguma coisa é o fim em si mesma, que não tenha valor relativo ou preço,
mas um valor interno, isso é dignidade.
Podemos dizer que “o que se faz condição para alguma coisa que seja o fim
em si mesma” leva-nos à noção de homem com um fim em si mesmo e como centro
da dignidade humana. Kant, ao afastar o valor relativo ou preço, dizendo “isso não
tem simplesmente valor relativo ou preço”, atribui um valor absoluto a alguma coisa
com fim em si mesma, admitindo-a como lei e base do imperativo categórico.
O imperativo é a fórmula do mandamento que se expressa pelo verbo “dever”.
Serve para mostrar a relação de uma lei objetiva da razão com a vontade. O
imperativo ordena. Classifica-se como imperativo categórico porque representa uma
369
SEELMAN, op. cit., p. 54.
370
Id. ibid., p. 54.
371
Id. ibid., p. 54-55.
134
ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com outro fim. A
ação é boa em si mesma.
O que tem “um fim em si mesmo” é o homem, ser racional, que existe como
fim em si mesmo e não como meio. É para ele que tudo converge, por isso ele
tem de ser considerado como fim.
No pensamento da Igreja Católica, o ser humano tem um lugar privilegiado no
universo, afirma Moura que
[...] ele tem, por sua natureza de animal racional, dotado de uma alma
espiritual, um destino eterno, e, portanto, um lugar privilegiado na criação e
na história. Este lugar é descrito pelo Salmista nestas linhas poéticas: “Que
é o homem, digo-me então, para pensardes nele? Que são os filhos de
Adão, para que vos ocupeis com eles? Entretanto, vós o fizestes quase
igual aos anjos, de glória e honra o coroastes!” (Sl. 8, 5-6). Esta glória e
honra correspondem à dignidade que tem cada ser humano e que lhe
advém da sua natureza racional, do fato de ser pessoa.
372
No entanto, Kant não vincula a dignidade do ser humano à religiosidade, mas
às máximas da vontade.
A natureza, tal como a arte, nada contém que à sua falta se possa pôr em
seu lugar, pois o que o seu valor não reside nos efeitos dela derivados, na
vantagem e utilidade que criam, mas sim nas intenções, isto é, nas máximas
da vontade, sempre prestes a se manifestar dessa maneira por ações, ainda
que o êxito não as favoreça. Tais ações não carecem de nenhuma
recomendação de disposição ou gosto subjetivo para as olharmos com
imediato favor e satisfação; o carecem de nenhuma tendência ou
sentimento imediato; apresentam a vontade, que as realiza.
373
São fundamentos da dignidade a moralidade, a autonomia e o respeito.
Sobre a moralidade, no texto de Kant sobre a dignidade, Junges faz a
seguinte análise:
Aparecem três características da dignidade próprias da moralidade:
incondicionalidade (absoluta prioridade), superioridade absoluta (acima de
qualquer preço) e incomensurabilidade (nenhum equivalente), Segundo
135
humanidade, através da moralidade. A dignidade identifica-se com a
moralidade.
374
A moralidade encontra-se em puros conceitos da razão e não em qualquer
parte. Como representação pura do dever e, em geral, da lei moral, tem uma
influência sobre o coração humano tão superior a todos os demais determinantes.
375
Todos os conceitos morais têm sua sede e origem, completamente, a priori,
na razão, tanto na razão humana mais vulgar como na mais especulativa. Tais
conceitos não podem ser abstraídos de nenhum conhecimento empírico e,
precisamente nessa pureza de sua origem, é que reside a sua dignidade para nos
servir de princípios práticos supremos.
376
Consiste a moralidade na livre aceitação de um dever que a razão apresenta
à vontade como necessário. Quando o cumprimento desse dever lesa as minhas
inclinações sensíveis, é a lei moral um constrangimento que se exprime num
imperativo incondicionado, “categórico” que me ordena objetivamente o próprio fim.
Essa ordem não é externa como na legislação jurídica, mas interna. É isso que é
próprio da lei moral. Como forma de obrigação em geral, podemos dizer que a
moralidade é a necessidade de uma ação livre, ditada pelo imperativo categórico da
razão. Esta é a pura forma da obrigação universal que constitui o fundo da idéia de
lei moral.
377
A autonomia é constituída da vontade, graças à qual ela é, para si mesma, a
sua lei, independentemente da natureza dos objetos do querer. “O princípio da
autonomia é, portanto, o escolher senão de modo a que as máximas de escolha
no próprio querer sejam simultaneamente incluídas como lei universal”.
378
Agir moralmente, na interpretação de Junges, é agir por respeito e segundo a
representação da lei. Essa é a xima universal ou imperativo categórico, cuja
374
JUNGES, José Roque. O respeito à dignidade humana como fundamento de todo humanismo. In:
OSOWSKI, Cecília (Org). Teologia e humanismo social cristão. São Leopoldo: Editora Unisinos,
2000, p. 149.
375
KANT, op. cit. 2004, p. 41.
376
Ver KANT, op. cit. 2004, p. 42.
377
SÈVE, op.cit., p. 154.
378
KANT, op. cit., p. 70.
136
primeira formulação é “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela
tua vontade, em lei natural!”.
379
A vontade é concebida por Junges como a faculdade que determina a si
mesma a agir conforme a representação de leis, isto é, segundo máximas, o que
ocorre em seres racionais. Partindo da afirmação de que todo ser racional existe
como fim em si mesmo e não como meio para o uso arbitrário desta ou daquela
vontade, chega à segunda formulação do imperativo categórico: “Age de tal maneira
que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro,
sempre e simultaneamente como fim e nunca como meio”.
380
Há uma identificação da humanidade com o ser racional com fim em si
mesmo. Deve ser respeitada a dignidade do outro e não tomar o outro como um
simples meio. O dever jurídico não é imposto por meio da violência, mas como dever
de virtude que se situa entre o dever jurídico e outro dever de virtude que é o amor
ao próximo. Se existe na própria pessoa o dever para consigo mesmo de respeitar a
humanidade, então se afirma esse conceito de dignidade que reconhece ao
indivíduo, perante os outros, o direito moral de respeito.
Impõe o segundo imperativo categórico de Kant, o respeito que a pessoa
deve ter a si mesma como regra de universalização, que conduz ao respeito pelo
outro, estabelecendo-se uma reciprocidade.
A exigência do imperativo categórico é de que o ser humano não seja visto
como um meio para atingir outras finalidades e que seja sempre considerado como
um fim em si mesmo. Orienta-se o imperativo categórico pelo valor universal e
incondicional da dignidade humana. É ela que inspira a regra maior que é o respeito
ao outro.
Como terceira formulação do princípio prático da vontade, afirma Junges que
a vontade é concebida como legisladora universal no ser racional considerado em si
mesmo. Na terceira formulação, a renúncia a todo interesse e o agir por puro dever
tornam-se caráter específico do imperativo categórico. É a idéia de uma vontade
como legisladora universal que expressa essa dimensão. Como lei universal, a
379
JUNGES, op.cit., p. 150.
380
Id. ibid., p. 150.
137
vontade não se funda em nenhum interesse, pois reporta-se ao valor ético que é
incondicional. Enquanto lei universal, a vontade é autônoma diante da heteronímia
da lei, pois torna-se sua autora.
381
A máxima “sempre ao mesmo tempo como um fim e nunca simplesmente
como meio” é tida como absurda por Sève, porque a moral não me proíbe de
recorrer a outrem como a um meio, desde que tenha o seu acordo livre para tal. O
que é inaceitável é utilizar o ser humano como puro meio, desprezando a sua
liberdade. A consideração da humanidade em cada homem determina, pois,
relativamente a ele, um dever à exigência incondicional de respeitar a autonomia da
vontade em todos.
382
A idéia de igualdade de todos os seres humanos na dignidade é
fundamentada no respeito. Afirma Kant que
A própria legislação, no entanto, que determina o valor, por isso mesmo
deve ter uma dignidade, ou seja, um valor incondicional, incomparável, para
o qual só a palavra respeito confere a expressão conveniente da estima que
um ser racional deve lhe tributar.
O respeito aparece como idéia de reciprocidade, respeitar aos outros como a si
mesmo, o que leva à igualdade de todos os seres humanos.
383
O reconhecimento como pessoa e como sujeito na Filosofia do Direito de
Hegel difere da concepção de Kant, quanto à classificação. Hegel apresenta a
pessoa e o sujeito como objeto do dever de respeito que é igual em todos, do ser
idêntico, também para além do tempo, e com referência à subjetividade sempre
diferenciada. Apresenta como motivo da necessidade desse respeito recíproco a
garantia de liberdade.
384
Na base do dever de respeito de Hegel, não se encontra qualquer realidade
ontológica, nem autonomia nem razão que exijam observância. O respeito para
Hegel é um imperativo prático motivador do estabelecimento de um estado jurídico.
A diferença de Kant é que esse respeito recíproco, do primeiro estágio, refere o
381
JUNGES, op. cit., p. 150-151.
382
SÈVE, op. cit., p. 157.
383
KANT, op. cit. 2004, p. 66.
384
SEELMAN, op. cit., p. 52.
138
respeito como pessoa, como legitimado à detenção de direitos, não é um mero dever
de virtude, mas, expressamente, um “imperativo jurídico”.
385
Outra distinção que faz, diz respeito à orientação de acordo com as
necessidades existentes no sujeito que em Kant é identificada na concepção da
dignidade da pessoa humana e que, em Hegel, é alargada para a pretensão de
respeito à particularidade, àquilo que é distinto, característico e que, possivelmente,
nele se estabelece como motivo para uma crítica à propagação de representações
humanas objetivas sobre respeito recíproco ou dignidade da pessoa humana.
386
Essas relações de respeito, diz Seelman que, na “sociedade Civil” e no
“Estado” são institucionalizadas juridicamente, o que garante a concretização
externa da auto-referência da pessoa, no “direito abstrato”; e do sujeito, na
“moralidade subjetiva”, como sujeito jurídico, ou seja, como sujeito concreto, dotado
de necessidades. Enfatiza que, nessa garantia institucional, o propriamente jurídico
reside em tais relações de respeito. Assim, na segunda esfera da Filosofia de Hegel,
o que se reconhece é a filosofia do sujeito, concretização externa de uma auto-
referência sempre individual.
387
A filosofia da intersubjetividade é para Hegel o que se torna a Filosofia da
Religião, porém o conceito de dignidade da pessoa humana não é o
restabelecimento de uma autoridade imperativa externa. A relação religiosa é
apresentada na forma de abdicar-se expressamente de uma postura intransigente
quanto à subjetividade individual. Assim, a dignidade para Hegel só ocorre na
execução do retratar-se de si próprio, no perdoar e ser perdoado. O respeito aqui é
um ato da intersubjetividade mesma e não um imperativo prático de uma
concretização externa da auto-referência subjetiva. O auto-respeito pode tornar-
se uma questão de dignidade ali onde essa resulta de um ato interno próprio.
388
O Concílio Vaticano II, na passagem da Gaudium et Spes, recomenda
[...] a reverência para o homem, de maneira que cada um deve considerar o
próximo, sem exceção, como um “outro eu”, tendo em conta, antes de mais,
385
SEELMAN, op. cit., p. 53.
386
Id. ibid., p. 53.
387
Id. ibid., p. 53.
388
Id. ibid., p. 54.
139
a sua vida e os meios necessários para a levar dignamente, não imitando
aquele homem rico que não fez caso algum do pobre Lázaro.
389
Ponto capital para o nosso problema é que respeitar alguém é dobrar-se à
sua liberdade moral, e não fazer todas as suas vontades. Aliás, entendido como um
simples afeto psicológico, o respeito não poderia ser mais ordenado que o amor.
390
Em análise à Declaração Universal de Direitos Humanos, não encontramos
conceito de pessoa, mas nele encontramos, como fundamento, a razão e a
consciência de que é dotado todo o ser humano e a afirmação de que todos nascem
livres e iguais em dignidade e direitos.
Entre a relação de sujeito e pessoa, o conceito de personalidade deve ser
considerado. Outrora, o termo personalidade era sinônimo da palavra pessoa. No
entanto, a antropologia filosófica atual propõe-nos uma visão mais profunda que não
encontramos nem na psicologia da personalidade nem na psicologia social, pois
nelas falta o essencial que é a própria vida do ser concreto na espessura do seu
mundo e na abertura de seu destino.
O objeto da personalidade é aquilo que um homem faz da sua vida e aquilo
que sua vida faz dele, esboçando um conceito de personalidade fecundo que é a
personalidade como produtora de uma história de vida que, ao mesmo tempo, a
produz. É um mundo de práticas e de relações, de significações e de regulações,
cujas lógicas objetivas são outras tantas formas indutoras de personalização que
vem a constituir um mundo societário ativo de seus semelhantes.
Esses elementos são importantes para nossa abordagem jurídica no âmbito
da discussão sobre o respeito da dignidade da pessoa humana.
389
CONSTITUIÇÃO Pastoral do Concílio Vaticano II. Sobre a Igreja no mundo de hoje. 2. ed. São
Paulo: Paulinas, 1966, p.36.
390
SÈVE, op. cit., p. 158.
140
3 A PROPRIEDADE URBANA RE-LIDA SOB A ÓTICA DO
NOVO DIREITO DE PROPRIEDADE
3.1 Problemas Urbanos de Moradia no Brasil e a Proximidade do
Enfoque Personalista da Propriedade Urbana à Problemática da
Moradia
Não podemos negar o direito que todas as pessoas têm a um lugar adequado
para viver, o que nos remete ao direito de moradia digna. Junto a esse direito, surge
o direito à segurança, ao conforto, a um ambiente saudável que proporcione
qualidade de vida aos moradores e à comunidade.
Apesar do direito à moradia, muitas pessoas não possuem um teto sob o qual
viver, o que leva à dificuldade de acesso ao emprego, à educação e à saúde. É o
que nos revela a Comissão das Nações Unidas para Assentamentos Humanos,
estimando que 1,1 bilhão de pessoas estão vivendo em condições inadequadas de
moradia. Todos os outros direitos humanos estão vinculados ao direito a uma
moradia digna, pois as pessoas primeiramente precisam morar para, depois, verem
satisfeitos os seus demais direitos. No entanto, esse direito à moradia é um direito
que vem sendo violado.
391
391
SAULE JR., Nélson. Direitos humanos à moradia adequada e à terra urbana. In: PLATAFORMA
BRASILEIRA de direitos humanos, econômicos, sociais e culturais. Relatório Brasileiro 2003,
Recife: Edição Bagaço, 2003, p. 139.
141
Prevê a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5.º, § 2.º, que Os direitos
e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime
e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte”. Ou seja, a Constituição Federal enquadra
no rol de direitos protegidos aqueles enunciados nos tratados internacionais, entre
eles, os direitos humanos.
A previsão do direito humano à moradia encontra-se no Capítulo dos Direitos
Sociais, art. 6 da Constituição Federal. No entanto, apesar dessa previsão
expressa, milhões de brasileiros não têm acesso à moradia digna, continuam
vivendo em situação de pobreza, e são excluídos dos meios de acesso ao bem-estar
social.
Podemos dizer que o Brasil, apesar de sua grandiosidade, de suas riquezas
naturais e culturais, da diversidade de raças que compõem o seu povo, ainda
mantém um quadro de pobreza, de miséria e de exclusão social
392
que o colocam
entre os países de maior desigualdade e contraste do planeta.
Ao analisar a realidade social e o processo histórico, pretendemos buscar
soluções para o problema de moradia com a valorização do ser humano, sujeito com
direito a uma vida digna e ao bem-estar. Entendemos que o Brasil somente atingirá
o desenvolvimento humano, quando observados plenamente os direitos humanos na
esfera econômica, social e cultural.
Destacamos que o modelo de industrialização e de desenvolvimento que
vigora nos países em emergentes, com sua forma diversificada e desequilibrada,
apresenta como resultado a modernização que proporciona a exclusão e a
segregação social de grande parte da população, resultando na urbanização
brasileira. O processo de urbanização brasileiro e dos demais países latino-
392
Sobre a inclusão social, afirma-nos VIAL, Sandra Regina Martini et alii. Sociedade contemporânea:
o paradoxo da inclusão/exclusão social no contexto da global. In: LEAL, Rogério Gesta; REIS, Jorge
Renato dos. Direitos sociais e políticas públicas. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. t. 4, que
“Temos, desta forma, uma sociedade que inclui todos somente porque também é capaz, ao mesmo
tempo, de excluir os ditos” incluídos. Logo, a diferença entre inclusão e exclusão se refere ao modo
pelo qual uma sociedade consente aos indivíduos serem pessoas humanas ou, em outros termos, de
participarem do sistema universal da comunicação, o que significa que a inclusão e a exclusão
assumem formas diferenciadas nas diferentes etapas evolutivas. [...] Falar em cidadania, ou em
inclusão e exclusão, significa pensar na implementação dos direitos das pessoas enquanto seres
humanos.”(p. 1079-1085).
142
americanos intensificou-se a partir da segunda metade do Século XIX. O grande
movimento populacional obrigou a construção de cidades para atender às
necessidades de moradia, de trabalho e demais necessidades de seus habitantes.
393
Houve um processo migratório do campo para a cidade, devido a pressões
negativas ou de expulsão do campo, propiciadas pela política de desenvolvimento
agrícola e pela concentração da propriedade na mão de poucos proprietários
privados. Também a improdutividade da terra foi motivo de migração, pois cerca de
166 milhões de hectares são latifúndios improdutivos, os quais ocupam 60% da área
total.
394
Sobre o desenvolvimento agrícola implantado no Brasil, podemos dizer que
sempre privilegiou as oligarquias rurais e o capital industrial, comercial e financeiro
que a ela se aliou. Os seguintes dados são apresentados por Saule Júnior.
Dos 38 milhões de habitantes na área rural, 73% tem renda anual inferior à
linha da pobreza (US$ 260,00), colocando o país entre os de pior
distribuição de renda do mundo. Esta situação agrária é responsável pela
presença, no campo, de 51% dos milhões de famintos do Brasil e pela
migração de 50 milhões de pessoas do campo para as cidades nos últimos
30 anos. Hoje, 81% da população brasileira vive nas cidades, cerca de 138
milhões de pessoas.
395
Com o objetivo de fazer obras de saneamento e de embelezamento das
cidades, os pobres foram expulsos para as periferias, nascendo, assim, a
urbanização brasileira. Obras paisagísticas passaram a ser realizadas nas áreas
centrais, favorecendo e consolidando o mercado imobiliário capitalista, e obras de
infra-estrutura passaram a ser realizadas pelo Estado, a fim de induzir o
393
A temática que envolve as cidades é apresentada por Leal (1998, p. 56), ao afirmar que “Os temas
que envolvem a cidade, por exemplo, surgem, nos moldes em que se encontram modernamente, no
século XX, como um ramo do conhecimento que se pretende multidisciplinar, a saber, o urbanismo,
em resposta à complexidade de problemas que não poderiam receber solução dos conhecimentos,
instrumentos e métodos setorizados de nenhuma ciência ou técnica em separado”. Esclarece que
“[...] no século XIX, confunde-se a arte de decoração imitativa com a missão de planejar as cidades.
Derivado da voz latina urbis (cidade), surge, com efeito, como arte de tornar as cidades belas e
harmoniosas. É, então, disciplina complementar à arquitetura; se preferirmos, uma arquitetura de
conjunto.” Com a superação desse conceito, afirma que o tema que envolve a cidade passa a
abranger “[...] todos os aspectos do inter-relacionamento entre o homem e os espaços por ele
habitados, assumindo, em breve tempo, posição eminente entre as disciplinas de síntese (aquelas
que se relacionam a outras disciplinas)”. Percebemos, assim, a evolução do planejamento das
cidades em razão do embelezamento para a visão de cidade que passa a abranger todos os
aspectos do relacionamento entre o homem e os espaços por ele habitados.
394
O processo migratório campo-cidade ocorre, segundo Leal (1998, p. 61), “[...] por pressões
positivas, através da oferta de melhores empregos nas cidades, e negativas ou expulsadoras do
campo, tanto por um crescimento vegetativo dessas populações como por alterações na tecnologia
de produção agrícola e formas organizacionais da produção e da criação de tipos de produtos
liberadores de mão-de-obra.”
395
SAULE JR, op. cit., p. 141.
143
desenvolvimento industrial. A realização dessas obras, em áreas distantes e vazias,
valorizou as áreas, e propiciou a especulação imobiliária que veio a penalizar os
moradores das periferias que arcaram com seu custo.
396
Observamos, a partir desse procedimento, que as elites procuram afastar de
sua visão a população pobre e criam, através de reformas urbanas, uma cidade
artificial e dividida. Os trabalhadores urbanos passam a viver nos assentamentos
das periferias das cidades, locais que lhes são acessíveis, devido ao seu baixo
poder aquisitivo, que não lhes permite pagar aluguel ou comprar seu terreno. Esse
também é o entendimento de Leal, ao destacar que os loteamentos são irregulares e
que o Estado, por meio das Prefeituras, mantém-se afastado dessa problemática,
não se comprometendo a levar infra-estrutura a essa periferia urbana nascente, pois
esses loteamentos não são conhecidos oficialmente, o que leva o Poder Público a
justificar a não instalação de equipamentos urbanos faltantes e imprescindíveis
como pavimentação, luz, água, esgoto, canalização de águas pluviais e de cursos
d’água.
397
A forma de adquirir-se propriedade, desde a primeira lei de terras de 1850, é
a compra e venda que substituiu o sistema anterior da apropriação que fazia com
que o possuidor adquirisse a propriedade. Após, partiu-se para o parcelamento do
solo, criação de códigos de posturas e de obras, leis de zoneamento e parcelamento
do solo, de edificações. É indiscutível que as áreas de terra melhor localizadas
passaram a ter preços mais elevados, o que segregou territorialmente grande parte
da população que não tinha condições de pagar o preço da terra urbanizada e bem
localizada. Como conseqüência, surgem as cidades dividas: a cidade formal, legal e
urbanizada; e a cidade informal, ilegal e desprovida de infra-estrutura.
398
De um certo modo, a ilegalidade está presente pelo fato de que as pessoas
que adquirem a terra e nela se estabelecem não têm condições de proceder à
regularização da área, devido à exigência de preenchimento dos requisitos legais.
Os padrões de legalidade são restritivos e inflexíveis e não podem ser cumpridos
pela maior parte da população. Essa é a forma de colocar as pessoas à margem da
396
SAULE JR, op. cit., p. 141. Sobre o embelezamento como objetivo da urbanização e, após, a
cidade como questão de desenvolvimento, ver LEAL, op. cit. 1998, p. 73.
397
LEAL, op. cit. 1998, p. 71.
398
SAULE JR, op. cit., p. 142.
144
regularização tradicional bem como de revelar o não cumprimento da função social
da propriedade.
É visível em nossas cidades a presença da legalidade e da ilegalidade, sendo
que essa última aumenta a cada dia. Com a migração do interior para a cidade, as
pessoas, sem poder aquisitivo, passam a viver em aglomerados humanos, na
periferia, formando novos blocos populacionais ilegais. O êxodo rural proporciona o
aumento das cidades e a formação de outras. Em todo o País, as cidades abrigam
hoje mais de 80% da população.
399
A ilegalidade da ocupação do solo não se restringe às favelas. Essas,
segundo estimativa do IBGE, tiveram um crescimento de 22% no período de 1991 a
2002, conforme nos informa Saule Jr, ao afirmar também que a irregularidade está
nas seguintes situações:
Ocupações coletivas de prédios públicos em regiões centrais da cidade por
movimentos que lutam por moradia: ocupações individuais ou coletivas de
espaços vazios sob pontes e viadutos; loteamentos clandestinos
145
existência de um déficit habitacional que reflete a necessidade de construção de
novas moradias em função da deficiência do estoque devido à precariedade
construtiva ou desgaste da estrutura física ou, ainda, por ter coabitação familiar.
Também os domicílios sem condições de habitabilidade integram o déficit de
estoque de moradia, com necessidade de incremento ou reposição.
401
O ônus excessivo de aluguel é apontado como um item do déficit de estoque
de moradia e aponta a extrema insegurança e a perda de renda mensal dos
assalariados de baixa renda que não possuem casa própria. Entre esses, a relação
de locação é estabelecida através de relações informais e perversas para os
inquilinos que não têm renda para alugar, sem observância da lei e, portanto, fora do
mercado formal da locação.
As pesquisas realizadas apontam a necessidade de incremento e reposição
do estoque de moradias, sobretudo nas áreas urbanas, em mais de 80%, para
famílias com rendimentos iguais ou inferiores a três salários mínimos. O estudo do
déficit habitacional apurou que esse segmento de famílias representa 83,2% da
população urbana em condições críticas de habitação. A necessidade mais
premente é, portanto, de moradia familiar.
402
No levantamento feito, também se constatou a inadequação das moradias,
com necessidade de reparos ou ampliação das mesmas. necessidade de
ampliação da oferta de serviços de infra-estrutura básica, de ações de legalização
da situação da posse da terra (regularização fundiária) e de linhas de crédito para
reforma ou ampliação da moradia. Constata-se a existência de uma densidade
excessiva em domicílios de famílias com renda mensal de até três salários mínimos.
Também nessa faixa de renda e nas faixas de cinco a dez salários mínimos
encontram-se a maior parcela de domicílios com inadequação fundiária.
Nas habitações de famílias com baixa renda é que se concentra a
inadequação dos serviços de infra-estrutura, onde podemos também observar a
inadequação de, pelo menos, um dos serviços essenciais sicos. O estudo
realizado aponta o esgotamento sanitário como o serviço mais deficitário nos
401
SAULE JR., op. cit., p. 145.
402
Id. ibid., p. 149.
146
domicílios brasileiros, com 79,3%, seguido da falta de rede geral de abastecimento
de água, com 15,3%. Conclui que a concentração de domicílios inadequados dá-se
na faixa de até três salários mínimos, representando 58,9% dos carentes do País.
403
O que se constata é que o déficit habitacional brasileiro está concentrado
entre moradores que se encontram na faixa salarial de renda mais baixa do país. Há
necessidade de uma política de subsídio à política habitacional, no que se refere à
produção e à comercialização de moradias. Algumas prioridades são apontadas por
Leal como impositivas, e devem ser perseguidas e reguladas pelo Poder Público.
404
Os dados revelam que muito a fazer e, com urgência, devido à deficiência
habitacional ocasionada pelo crescimento da população das cidades brasileiras, e
porque as leis de mercado, por si só, não têm conseguido solucionar o problema de
moradia das famílias com baixa renda. necessidade de incremento das políticas
públicas, pois o que foi feito mostra-se insuficiente para a solução do problema
que tende a agravar-se, uma vez que constatado que 83,2% do déficit urbano
concentra-se nas famílias de baixa renda.
405
Merece registro também a existência de déficit rural de moradia que está
concentrado em famílias com renda de até dois salários mínimos.
403
ONU: O Brasil terá 55 milhões vivendo em favelas até 2020, publicado no Jornal O Estado de
São Paulo, em 16 jun. 2006. Disponível em: <http://www. cidades.gov.br/index.php?option=content
&task=view&id=1273>. Acesso em: 26 jun. 2006.
404
As prioridades são especificadas por Leal (1998, p. 81-82): “1) Uma gestão democrática da cidade
que garanta condições de moradia digna, infra-estrutura básica e equipamentos sociais eficazes ao
conjunto da população e que se constitua em instrumento de integração de uma grande massa de
excluídos urbanos; 2) Políticas governamentais voltadas à sustentabilidade urbana de forma, a tornar
as cidades mais compactas (zoneamento espacial e políticas fiscais que protejam áreas rurais e de
preservação ambiental) e com maior eficiência nos transportes, no uso de energia e na construção; 3)
Uma concepção de zoneamento urbano e de ocupação do solo urbano que permita a convivência
entre usos residenciais, industriais e comerciais e favoreça a utilização mais intensa de transporte
não-motorizado. Um sistema múltiplo de transportes públicos trens, metrôs, ônibus que
estabeleça a conexão entre bairros e centros urbanos com serviços diversificados; 4) Definição de
estratégias e políticas de uso e conservação dos recursos hídricos, de maneira a evitar o desperdício
e a co-responsabilizar empresas, governo e sociedade civil na sua gestão; 5) Estabelecimento de
soluções combinadas para manejo dos resíduos urbanos, priorizando a redução das fontes de
detritos, reutilização dos resíduos e reciclagem; 6) a utilização de instrumentos jurídicos existentes e
a criação de novos, que dêem cobertura e mesmo viabilidade ao exercício do Poder de Estado, para
dar concretude à idéia de função social da propriedade e da cidade, ampliando as possibilidades de
objetivação de tais metas, tanto como os exemplos acima referidos, como imaginando novas
situações desta ordem.”
405
SAULE JR., op. cit., p.149.
147
O estudo realizado revela, com dados precisos e percentuais, o que nós
sabemos através da constatação visual de nossas cidades. Aumenta o cinturão de
miséria nos grandes centros urbanos, locais de moradia de famílias com baixa
renda, que vivem em habitações inadequadas, com problemas de infra-estrutura e
sem legalização fundiária.
De acordo com o artigo “ONU: Brasil Terá 55 Milhões Vivendo em Favelas até
2020”, publicada no jornal O Estado de São Paulo, do dia 16 de junho de 2006,
tendo como fonte um relatório das Nações Unidas sobre
148
razão das políticas sociais desenvolvidas. De acordo com os dados do relatório, na
América Latina, a Argentina, o Brasil e o México vão ter maior influência na redução
da população das favelas da região até 2020.
408
O relatório da ONU aponta que o Brasil e o México atingiram uma redução
extraordinária na fatia de moradores de favelas nas áreas urbanas, enquanto, em
números absolutos, o aumento foi pequeno nos dois países. A estimativa é de que
as populações de favelas aumentem em 4 milhões, até 2020, totalizando 71 milhões
de pessoas, se a desaceleração continuar. Informa que, na Argentina, a taxa de
crescimento das favelas é de 2,21 % ao ano. Também apresenta, através do
Relatório Habitat, uma previsão assustadora, ao constatar que quase 1 bilhão de
pessoas, um sexto da população mundial, vive em favelas e que, se a tendência
atual continuar, esse número vai subir para 1,4 bilhão em 2020, o equivalente à
população da China. O alerta que faz a ONU é de que “a comunidade internacional
não pode ignorar os habitantes das favelas, porque, depois da população do campo,
elas são o maior grupo nos países em desenvolvimento, - e este número vai crescer
quando estes países se tornarem mais urbanizados”. Os dados são alarmantes,
porque a estimativa é de que, até 2030, as cidades dos países em desenvolvimento
vão ter cerca de 4 bilhões de habitantes, 80% da população urbana do mundo. Por
isso, a sugestão da ONU é de que os governantes, ao formularem as políticas
sociais, levem em conta as diferenças entre favela e outras áreas urbanas.
409
De acordo com a reportagem sobre a matéria, a equipe de pesquisadores
dividiu os países em quatro grupos, a fim de medir a performance de cem nações na
redução da população de favelas: os que estão no caminho certo, os que estão
estáveis, os que estão em risco e os que estão indo pelo caminho errado. O Brasil,
segundo essa tabela, está na categoria estável, junto com países como a Colômbia
e Filipinas, graças ao compromisso político, apoiado por recursos, em investir nos
pobres dos centros urbanos.
410
Em termos de desigualdade entre os moradores de favelas e os de áreas
urbanizadas, o estudo revela que o Brasil só pode ser comparado à Costa do
408
ONU, op cit., on-line.
409
Id. ibid.
410
Id. ibid.
149
Marfim, apresentando o índice de desnutrição no Brasil de 19% entre os moradores
de favelas, ante 5% entre os que vivem em outras áreas urbanas. Outro dado
apontado é de que os casos de mortalidade infantil no Brasil melhoraram muito,
como conseqüência de investimento no sistema público de saúde, mas faz um
alerta, pois as crianças das favelas ainda correm um risco mais alto de mortalidade
do que as crianças que vivem em áreas urbanizadas.
411
As desigualdades revelam que é urgente a adoção de medidas eficazes para
o combate da miséria em nossas cidades, com políticas públicas voltadas à moradia
e ao acesso de melhores condições de vida, com trabalho que proporcione salário, a
fim de que possam suportar os gastos com a propriedade legalizada.
Diante desse quadro, voltamo-nos para a necessidade de dar um novo
enfoque à propriedade, que ela não é estática e que evolui, de acordo com as
necessidades da pessoa humana, no contexto social e econômico e com o grau de
complexidade hoje alcançado que deriva do grau de complexidade das relações
sociais. Esse contexto impõe o reconhecimento de que a propriedade não pode
ser sustentada, como no período da codificação, o que revela a insuficiência da
abordagem jurídica da propriedade que a afasta de seu contexto de natureza social
e de suas correlações políticas.
412
Sobre a matéria, a reportagem escrita por Costa e Gonzatto conclui que a
política habitacional implantada em Porto Alegre chega aos 14 anos com rachaduras
em suas fundações. Ela foi concebida para transformar vilas irregulares e insalubres
em comunidades estruturadas e prósperas. A constatação dos repórteres é de que o
modelo foi abalado por uma combinação de venda ilegal, alta inadimplência e
superlotação de casas, além do advento de novas favelas. Outra constatação é de
que os beneficiados com moradias em conjunto habitacional da prefeitura voltam
para áreas irregulares, pois não têm condições de suportar as despesas de
pagamento da prestação, ainda que essa seja de reduzido valor, R$ 40,00, mais as
taxas de luz e água. Isso leva a concluir que novas políticas públicas são
411
ONU, op cit. on-line.
412
LEAL, Rogério Gesta. Direito urbanístico – Condições e possibilidades da constituição do
espaço urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 31.
150
necessárias para, além de possibilitar a moradia, possibilitem o acesso à
profissionalização e ao trabalho.
413
Na continuidade da reportagem, em 3 de julho de 2006, Costa e Gonzatto,
afirmam que “a política habitacional adotada em Porto Alegre não teve fôlego para
frear o processo de favelização nos últimos 14 anos.”
414
O levantamento realizado por Costa e Gonzatto é realizado a partir de dados
do IBGE, obtidos pelo Censo de 2000. Conforme esses dados, a criação de áreas
urbanizadas para famílias de baixa renda, proporcionada pela administração
municipal, não foi capaz de evitar um aumento de 33,6% no percentual de famílias
que vivem em vilas insalubres desde 1991, o que representa um contingente de 143
mil pessoas vivendo no limiar da civilização.
415
A comparação dos números apresentados na reportagem é de que toda a
população estimada para 2005, que vive em vilas insalubres, sem fornecimento de
energia elétrica, água, saneamento, coleta de lixo e outros benefícios fundamentais
garantidos aos cidadãos, corresponde ao número de habitantes de cidades como
Sapucaia do Sul ou Uruguaiana, com 134 e 133 mil habitantes, respectivamente.
O retrato urbano fornecido pelo IBGE é revelado por Costa e Gonzatto ao
dizerem que, no começo dos anos 90, a população que vivia em “aglomerados
subnormais” era de 7,89%. A expressão “aglomerados subnormais” é utilizada para
designar conjuntos de pelo menos 51 moradias localizadas em terrenos de
propriedade alheia, com densidade e carência de serviços públicos essenciais. A
constatação é de que, uma década depois, essa proporção saltou para 10,54%.
416
Ao revelarem o déficit habitacional no município de Porto Alegre, de 35 mil
habitações, sendo 15 mil emergenciais para desocupar áreas de risco como beiras
de arroios ou encostas de morros, Costa e Gonzatto divulgam dados oficiais,
noticiando que o Município conseguiu conceder moradias a 7,6 mil famílias. No
413
COSTA, José Luís; GONZATTO, Marcelo. Barracos sem fim. ZERO HORA, Porto Alegre, 2 jul.
2006. Seção Geral, p. 33-35, p. 33.
414
COSTA, José Luís; GONZATTO, Marcelo. Barracos sem fim (2). ZERO HORA, Porto Alegre, 3 jul.
2006. Seção Geral, p. 28-29, p. 29.
415
Id. ibid. (2), p. 29.
416
Id. ibid. (2), p. 29.
151
entanto, uma solução em curto prazo não é vislumbrada, tendo, por exemplo, a
afirmação do superintendente de Urbanismo e Produção Habitacional do
Departamento Municipal de Habitação Demhab, Carlos Henrique Reis e Silva, de
que, desde que começou a construir casas, jamais chegou perto de zerar esse
déficit.
417
Tudo está a demonstrar a necessidade de implantação de novas políticas
públicas pelo Estado, a fim de buscar soluções para o déficit de moradias existente
nas cidades brasileiras.
3.2 Legislação Vigente no Brasil, a Partir dos Marcos
Funcionalistas, Personalista e Constitucionalizados, Tendo em
Vista o Contexto Concreto Apresentado pela Dinâmica das
Cidades Brasileiras.
Todas as pessoas têm direito à moradia, e a Constituição Federal Brasileira
protege esse direito assim como os Tratados Internacionais de proteção aos direitos
humanos. Para esclarecer a origem dos tratados, podemos dizer que resultam da
adoção, pelas Nações Unidas, dos pactos internacionais de direitos civis e políticos
e de direitos sociais, econômicos e culturais que têm como fundamento a
Declaração Universal dos Direitos Humanos. As constituições democráticas
modernas reconhecem esses direitos que se constituem a pretensão dos indivíduos
ou da coletividade perante o Estado, e que integram a legislação positiva de grande
parte dos Estados na atualidade. O que se observa, no entanto, é que a existência
de previsão legal não significa a efetivação e concretização desses direitos às
pessoas que vivem nos países em desenvolvimento.
A moradia, como direito humano, é encontrada em diversas declarações e
tratados internacionais de direitos humanos, e o Estado Brasileiro faz parte dessas
declarações e tratados. Na Constituição Brasileira, foi inserido o direito à moradia
como um direito social, no art. 6.º, através da Emenda Constitucional n. 26, de 14 de
fevereiro de 2002.
417
COSTA e GONZATTO, op. cit., p. 29.
152
Encontrando-se previsto na Constituição Federal o direito à moradia, como
um direito social, exige-se a ação positiva do Estado, através da execução de
políticas públicas habitacionais. Trata-se de um direito fundamental prestacional e,
como ensina Sarlet, os direitos fundamentais sociais prestacionais têm por objeto a
prestação do Estado diretamente vinculada à criação de bens materiais, destinação
e redistribuição. Tendo esses um forte cunho programático devem ser dotados de
eficácia, cabendo, portanto, ao Estado a adoção de medidas que promovam e
protejam o direito de morar. Os direitos sociais reclamam um crescimento da posição
ativa do Estado no âmbito econômico e social, objetivando à realização da igualdade
material, garantindo a participação do povo na distribuição pública de bens materiais
e imateriais. Encontram-se intimamente vinculados às tarefas de melhoria,
distribuição e redistribuição dos recursos existentes bem como à criação de bens
essenciais que não se encontram disponíveis a todos que deles necessitem.
418
Conforme Saule Jr., os compromissos assumidos pelos Estados e que
constam nos tratados e convenções internacionais, por sua força vinculante aos
países signatários, acarretam obrigações e responsabilidades aos Estados pela falta
de cumprimento das obrigações assumidas.
419
A Constituição Federal adota, no art. 4.º, II, a prevalência dos direitos
humanos nas suas relações internacionais, o que obriga o Estado Brasileiro a adotar
políticas públicas de habitação, a fim de garantir o direito à moradia.
Dispõe o art. 5.º, § 2.º, da Constituição Federal que “Os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”. Sobre a matéria, afirma Streck não haver dúvida,
acerca da natureza constitucional que assumem os tratados internacionais, de que
tratam de direitos humanos fundamentais, pois previsto, de forma explícita, na
Constituição Federal. A previsão de que as disposições acerca dos direitos humanos
fundamentais não podem se esgotar na dicção da própria Constituição exsurge do
texto constitucional. Merece registro textual a afirmação do autor de que “Os
418
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006b.
419
SAULE JR., op cit., p. 151.
153
avanços estabelecidos em tratados devem ser incorporados à materialidade
constitucional. Mais do que isto, a Constituição recepciona os tratados
internacionais, desde que estes não representem retrocesso social”.
420
Em interpretação ao artigo 5.º, § 2.º, Sarlet observa que é feita referência
apenas aos tratados internacionais, não mencionando as convenções ou outras
espécies de regras internacionais. Diz que, em relação aos “tratados internacionais”,
existe certa unanimidade no seio da doutrina de que esses englobam diversos tipos
de instrumentos internacionais. Os tratados são gênero e significam um acordo
internacional, independente de sua designação particular, e as convenções e pactos
são espécies.
421
Como os principais documentos internacionais que afirmam os direitos
humanos não se enquadram na categoria jurídica dos tratados e apenas estes estão
previstos no art. 5.º, § 2.º da Constituição Federal, o alcance desse dispositivo
sofreria grave restrição.
A finalidade do art. 5.º, § 2.º, segundo Sarlet, é de viabilizar a incorporação de
outros direitos fundamentais que não tenham sido expressamente previstos. O
objetivo não é restringir, mas ampliar e completar o catálogo dos direitos
fundamentais, integrando a ordem constitucional interna com a comunidade
internacional. Essa solução corresponde às exigências de uma ordem internacional,
cada vez mais marcada pela interdependência entre os Estados e pela superação
da tradicional concepção da soberania estatal.
422
Quanto à recepção das normas de direito internacional na ordem interna e à
sua posição hierárquica com relação ao direito nacional, a questão não é pacífica
em nosso ordenamento jurídico. Com relação à forma de incorporação dos tratados
no direito interno, inexiste preceito expresso na Constituição dispondo de forma
favorável à recepção automática. A questão que se coloca diz respeito à
possibilidade de se considerar os tratados internacionais relativos a direitos
humanos diretamente incorporados ao ordenamento constitucional,
independentemente de qualquer procedimento legislativo formal. No entanto, a
420
STRECK, op. cit. 2002, p. 556-557.
421
SARLET, op. cit. 2006b, p. 139.
422
Id. ibid., p. 140.
154
própria ordem internacional tem observado a necessidade de esgotamento dos
recursos de direito interno nos instrumentos de proteção internacional dos direitos
humanos, o que, afirma Leal, “[...] evidencia o caráter subsidiário dos procedimentos
internacionais e a função primordial e de responsabilidade primária dos órgãos
internos dos Estados-Partes.”
423
O art. 5.º, § 2.º, da Constituição Federal consagra os direitos fundamentais
reconhecidos no texto constitucional, e também inclui os oriundos dos tratados
internacionais, não fazendo qualquer referência expressa à forma de sua recepção.
Destaca-se também que o texto constitucional se refere expressamente aos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil for parte, o que revela a
necessidade de uma adesão formal ao tratado para que possa ser enquadrado na
hipótese prevista no art. 5.º, § 2.º da Constituição Federal. Essa é a posição da
doutrina que condiciona a recepção à ratificação do tratado.
424
Quanto à posição hierárquica das normas internacionais no ordenamento
interno, a posição dominante na literatura é de que nossa Constituição se impõe ao
direito internacional. No entanto, quanto à posição hierárquica do direito
internacional com relação ao direito infraconstitucional interno, a doutrina encontra-
se dividida. Alguns sustentam a supremacia do direito internacional, outros
consagram a teoria da paridade entre normas internacionais e a legislação
interna.
425
Pela análise acima, percebemos que o Estado Brasileiro deve cumprir os
compromissos assumidos nos tratados internacionais de que fez parte, com
necessidade de adesão formal a esses, para que possa a exigência de cumprimento
estar enquadrada na previsão do art. 5.º, § 2.º da Constituição Federal.
Adverte Saule Jr. que a obrigatoriedade de adoção de políticas públicas de
habitação, a fim de garantir o direito à moradia, advém da aprovação do texto do
Pacto Internacional pelo Congresso Nacional sobre direitos econômicos, sociais e
culturais, através do Decreto Legislativo n. 226 de 1991, assim como a Presidência
423
LEAL, op. cit. 2002, p. 213.
424
SARLET, op. cit. 2006b, p. 142.
425
Id. ibid., p. 144.
155
da República também o fez por meio do Decreto n. 591 de 1992, afirmando que o
Pacto será executado e cumprido tão inteiramente como nele se contém.
426
Já analisamos que o texto constitucional se refere aos tratados internacionais,
mas que a finalidade é de viabilizar a incorporação de outros direitos fundamentais
que não tenham sido expressamente previstos, ampliando e não restringindo.
Assim, cabe ao Estado Brasileiro promover programas e ações que
possibilitem o acesso à moradia digna às pessoas de baixa renda, através de
políticas voltadas à erradicação da pobreza, diminuição das desigualdades e à
promoção da justiça social.
A pretensão é de promoção de uma política urbana e de inclusão social e
territorial da população, com o objetivo de regularização fundiária e de urbanização
dos assentamentos de baixa renda.
Cabe ao poder público a promoção de políticas públicas, adotando por
princípio a função social da cidade e da propriedade. A exigência aos governantes é
de que se dêem condições dignas a todas as pessoas, para que possam exercitar
seus direitos de cidadania e os direitos humanos.
No que se refere à legalização urbana, podemos dizer que ela vem ocorrendo
no Brasil a partir de 1990, tendo por base a Constituição Federal de 1988 que
reconheceu o direito à moradia como um direito fundamental. Para regularização dos
assentamentos precários foi instituído o usucapião urbano e a concessão especial
de uso para fins de moradia, previstos no art. 183. A regulamentação foi dada pela
lei federal de desenvolvimento urbano denominada de Estatuto da Cidade e pela
Medida Provisória n. 2.220 de 2001.
Para fins de cumprimento da função social da propriedade, a Constituição
Federal adota os seguintes instrumentos: a lei federal de desenvolvimento urbano, o
plano diretor, o parcelamento e a edificação compulsórios, o imposto sobre a
propriedade imobiliária urbana progressivo no tempo e a desapropriação com títulos
da dívida.
426
Saule Jr., op. cit., p. 151.
156
Cumpre registrar que o direito à moradia se encontrava previsto na
Constituição Federal, no art. 7.º, IV, mesmo antes de sua inserção no art. 6,
através da Emenda n. 26, de 2002. O art. 7.º, IV, ao definir o salário mínimo como
aquele capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua
família, incluiu entre essas o direito à moradia. Destacada como uma das
necessidades vitais da pessoa humana e como condição de vida digna, encontra-se
ao lado de uma das necessidades mais elementares do direito à vida que é o
alimento. Dentro do contexto da cidade, é a posse de um espaço para a
concretização da moradia que serve para dar efeito concreto à função social da
propriedade.
427
Quanto ao conteúdo, pode-se dizer que o direito à moradia não se confunde
com a propriedade, ainda que essa possa servir de moradia a seu titular. A moradia,
como manifestação da posse, por expressa previsão constitucional e, em
determinadas circunstâncias, serve como pressuposto para a aquisição da
propriedade, como no usucapião constitucional, e como elemento indicativo do
cumprimento da função social da propriedade. uma vinculação entre o direito de
moradia e a dignidade da pessoa humana, o que leva a exigir que os direitos
mínimos sejam reconhecidos como parâmetros internacionais no que se refere aos
direitos sociais, econômicos e culturais que atuam como elementos materiais que
servem para direcionar os órgãos estatais de cada país.
428
A Comissão da ONU, específica para tratar da matéria, estabelece a
segurança jurídica para ir to4.68 Td[(A)-3( )-442(C)2(o)-4(m)-7(i)2(ss)10(ã)2(i)24( )-242 o( )--2( )-22(2.00195(o)6(e)-42 )-582(s)10(a)-4(l)2(á)6(r)3(i)2(o)-4( )-92(m)-7(í)8(n)-4(i)2(21I(r)3( )-442(d)-4(a)6( )-432(m)-7(a)-4(t)-2(é)-4(r)-4(ci)2(o)-4(n)6 )-162(e)2J351-3( )-442(C)2(o)-4(m)- como us ato8rcio
157
contra a violação do Estado e dos particulares, no sentido de um direito da pessoa
de não ser privada de uma moradia digna. Em sua dimensão defensiva, o direito à
moradia não poderá ser considerado um direito absoluto, pois está sempre sujeito ao
conflito com direitos igualmente existenciais. Como direito a prestações, são
múltiplas as possibilidades, pois o direito à efetivação do direito à moradia depende
tanto de medidas de ordem normativa como de prestações materiais, quanto da
concessão de financiamentos a juros subsidiados para aquisição de moradias,
quanto do fornecimento de material para a construção de moradia própria, entre
outros. Tudo serve para demonstrar que o direito à moradia tem seu lugar de
destaque entre os direitos ligados ao mínimo existencial para uma vida digna.
430
430
SARLET, op. cit. 2006b, p. 349.
158
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No repensar o direito de propriedade, partindo de uma visão histórica e
doutrinária, com ênfase no período medieval, fomos levados a concluir que não
existe apenas uma, mas diversas propriedades, porém não deixando de estar
presente a individualidade nesse contexto plural, pois, no centro desse universo
proprietário, encontra-se a pessoa humana com sua autonomia e dignidade a exigir
a satisfação de suas necessidades fundamentais, entre essas, a moradia.
Nessa evolução do conceito de propriedade pudemos constatar que se
operaram transformações na sociedade moderna que levaram a repensar o direito
proprietário, através da repersonalização que possibilitou a mudança de mentalidade
individual para a coletiva, com a exigência de tutela dos interesses sociais
fundamentais pelo Estado. Atualmente podemos dizer que o direito privado
contempla normas de ordem pública, preceitos de interesse geral, e os institutos do
direito privado possuem relevantes interesses sociais. Assim, a noção de ordem
pública está presente em todo o ordenamento jurídico. A propriedade privada deixou
de configurar um direito subjetivo, individual, para constituir uma situação complexa
em que se encontram presentes deveres e obrigações de caráter social. É a partir da
propriedade que se exterioriza a função social, possibilitando uma concepção aberta
da propriedade.
A visão propiciada pela abordagem do renascimento do direito natural levou à
conclusão de que uma regulamentação positiva injusta da conduta humana não tem
qualquer validade e não é direito em sentido estrito, devendo-se entender por direito
159
apenas uma ordem jurídica válida. Transforma o Direito Natural a compreensão
teórica do fenômeno jurídico que remete a uma concepção de justiça, ao submeter o
fundamento da validade das normas em vigor.
O estado de natureza é apresentado por Hobbes como um estado de guerra,
de opressão e de miséria. Revela-nos como os indivíduos comportar-se-iam, se não
houvesse uma autoridade para obrigá-los ao cumprimento da lei ou do contrato. Os
homens vivem, nesse estado, em condição de guerra. Como alternativa para a
conservação do homem, leva-o à busca de um tipo de organização que o coloque ao
abrigo da violência arbitrária e súbita. O único caminho a seguir é o da razão que
leva os homens à instituição do Estado. Os homens, mutuamente, transferem seus
direitos, através de um contrato, na busca de segurança e paz. Essa é a passagem
do estado de natureza para a sociedade civil apresentada por Hobbes.
Em Locke, é destacada a propriedade privada como um dos próprios
fundamentos da existência do Estado. Para Locke, o estado de natureza é uma
situação de liberdade e igualdade que leva o homem a regular suas ações e dispor
de suas posses e pessoas do modo que entenderem, tendo como limites a lei da
natureza. Quanto à igualdade, não subordinação de um indivíduo ao outro, todos
são igualmente soberanos. Como inexiste subordinação, o indivíduo ferido faz justiça
por si mesmo, não havendo imparcialidade. Para Locke, o inconveniente do estado
de natureza é a falta de um juiz. Surge d a necessidade de ingresso em uma
sociedade política. Conclui-se que o homem abdica de sua liberdade, ao unir-se em
sociedade política e submeter-se a um governo, porque busca a conservação de sua
vida e a segurança de sua propriedade. Reúnem-se os homens em sociedade para
evitar as inconveniências que perturbam sua propriedade no estado de natureza.
A propriedade é apresentada por Locke em dois sentidos: (1.º) Os homens
têm a propriedade em si mesmos e, por natureza, têm um poder de preservar a sua
vida, a sua liberdade e a sua riqueza; (2.º) Usa a propriedade em sentido mais
comum, ao referir-se à propriedade de terras e bens como sendo direito dos
homens. A propriedade vem acompanhada de alguns limites que o inerentes a
seu fundamento: é preciso deixar bastante e tão bom para os outros; nada do que é
apropriado pode ser desperdiçado; a quantidade de bens apropriados depende do
que uma pessoa possa obter com seu trabalho.
160
Na concepção de Locke sobre a propriedade, encontramos o direito à
conservação da vida pelo homem e ao trabalho como propriedade sua que
fundamenta a apropriação individual dos produtos da terra e que, na sua origem,
foram dados em comum à humanidade. Assim, pode o homem apropriar-se dos
bens por seu trabalho; não pode desperdiçar ou destruir, sendo admitida a troca do
excesso das provisões; a propriedade, adquirida por apropriação legítima, é limitada
pela quantidade que uma pessoa possa obter pelo trabalho, não havendo exigência
de que seja unicamente por seu trabalho; permite a troca de bens perecíveis por
ouro e prata, possibilitando o acúmulo de valor sem desperdício ou perda; com o
dinheiro, o homem amplia a propriedade que vai além da apropriação pelo trabalho,
permitindo o desenvolvimento de uma economia mercantil; admite a venda do
trabalho pelo homem e a propriedade ilimitada.
O estado civil é determinado por Kant pelos três princípios a priori de
liberdade, igualdade e independência. Desqualifica a existência de propriedade pela
justificação feudal por conquista militar e de aquisição pelo trabalho. Não considera
a posse como relação de uma pessoa com objetos, optando por focalizar a posse
como relação de uma pessoa com pessoas. A propriedade por aquisição é
estabelecida à primeira pessoa que se apropriou do bem, como propriedade
originária, sendo que todos os outros indivíduos devem respeitar essa aquisição. Faz
distinção entre a posse sensível e inteligível, dizendo que a primeira é a posse física,
empírica ou possessio phaenomenon, e a posse inteligível é a posse jurídica ou
possessio noumenon que resolve a contradição. A conclusão a que se chega é de
que, pelo postulado da razão prática, é possível ter um objeto exterior como meu, e
os outros podem ter algo como seu. O fundamental da apropriação para Kant, não é
a mistura do trabalho como objeto, mas aquela que se funda por um ato de vontade.
A transformação do objeto é expressão do arbítrio, fundando-se a apropriação na
liberdade. Outra diferença apontada, é de que a noção kantiana adquire função de
crítica social, estando vinculada à apropriação, não apenas no passado, como em
Locke, mas também no presente.
A partir da análise da obra de Grossi foi possível abordar a problemática da
propriedade singular e plural, que nos levou a concluir que não existe apenas uma
propriedade, mas diversas propriedades que, no entanto, não conseguem se
161
desvincular do caráter individual. É a partir do título “La Propriedad e Las
Propriedades que o autor faz a análise da problemática do tema, buscando na
história da propriedade e, em especial, no Alto-Medievo as diversas formas de
propriedade que evoluem dos diversos estatutos de bens, recuperando fatos
naturais e econômicos, para edificar uma pluralidade de propriedade.
Nessa evolução histórica da propriedade, constatamos que as realidades
vivíssimas do período medieval, com suas diversas formas de propriedade,
permanecem ainda hoje, ao lado da propriedade individual. É, a partir da construção
medieval da propriedade, com a reconstrução de situações reais e com a
investigação dos termos propietas e dominium que se caracteriza a civilização
possessória e o reino da efetividade em substituição ao da validez. Integram-se ao
jurídico as situações fáticas que se consolidam com a aparência, o exercício e o
gozo, como base de uma mentalidade “possessória”.
Demonstramos que se inquieta o jurista, pois envolvido em questões de
valores, vai à procura das diversas fontes para buscar compor a idéia de
propriedade. Para tanto, utiliza-se de dados jurídicos; opções técnicas, ligadas à
economia; elementos da história agrária e cadastral. Para o entendimento das várias
formas de propriedade, faz uso de todas as fontes, compondo um quadro plural de
propriedade. É essa pluralidade que revela a descontinuidade na história da
propriedade, mostrando também que, apesar da existência de experiências jurídicas
diversas, permanece a idéia de propriedade individualista. É dentro da pluralidade
de propriedades que se instala a individualidade da propriedade.
Com uma mudança de mentalidade, com a abertura para uma nova
compreensão e utilização de modelos culturais, permanecem os velhos preceitos,
porém surge uma realidade contraditória. Como elemento novo, retoma o dominium
para compor a ordem jurídica das coisas, e destaca-se o dominium utile para
consolidar a propriedade plural.
É da diversidade de soluções proprietárias da Idade Média que surge a
propriedade moderna, com traço que tipifica como nova propriedade, pois marcada
pela subjetividade. Pretendemos, com essa contribuição para o estudo da
162
propriedade, buscar as origens e as diversas fontes, para melhor entender a
propriedade e as propriedades, como nos sugere Grossi.
Em Rodotá, constatamos que a propriedade volta lentamente a colocar-se no
centro da atenção das discussões e das análises políticas, jurídicas e econômicas, o
que decorre do período do pós-guerra, com uma necessidade de reconstruir. Não há
somente um redescobrimento do tema da propriedade na renovação do pensamento
socialista a respeito da transferência dos meios de produção a sujeitos públicos ou
coletivos, mas um reinício da política neoliberal, agitando-se as bandeiras de “todos
proprietários”. Surgem novos interesses e situações cada vez mais difíceis de
reduzir à ordem proprietária.
Prega Rodoque são as técnicas da propriedade que resolvem o problema
dos recursos escassos, no lugar das atribuições do direito, à sua utilização por
alguns sujeitos com exclusão dos demais. A falta de recursos faz com que uma
grande maioria de cidadãos se desloque da propriedade à ocupação. Destaca a
deterioração progressiva do modelo clássico de propriedade e o enriquecimento da
possibilidade de utilização das técnicas dominicais em direção antes impensáveis.
Propões tentativas diversas de redefinição do direito de propriedade, mostrando a
necessidade de se voltar a colocar em lugar de honra os atributos clássicos do
direito de propriedade, para afastar a exclusão, transformando o discurso para
acessibilidade. Enfatiza a necessidade de reconstrução residual ou mínima da noção
de propriedade, a fim de assegurar ao indivíduo a satisfação de algumas prestações
sociais. Coloca no centro da reconstrução uma noção “inclusiva” e não “exclusiva”
de propriedade. a propriedade em sua versão mais ampla, ligada
substancialmente a uma área que se identifica através das necessidades essenciais
do indivíduo. Ao tratar do momento coletivo, diz que se impõe uma revisão mais
ampla da extensão dos limites das tradicionais áreas públicas e privadas. Chama a
atenção para a necessidade de fixação das áreas e dos recursos cuja utilização
devem corresponder aos valores coletivos privilegiados. Quanto ao conceito,
também destaca que não apenas um conceito de propriedade, mas uma
multiplicidade de estatutos. Prega o abandono da noção unitária e formal de
propriedade; a decomposição em multiplicidade de estatutos e as diferentes
163
categorias de bens; a recomposição do nexo entre expectativas econômicas e tutela
dominical.
Como um fechamento às questões propostas, procedemos à abordagem
sobre os problemas urbanos de moradia no Brasil, com enfoque personalista da
propriedade em busca de conscientização e solução para os problemas de moradia,
a fim de assegurar a todas as pessoas o direito de ter um lugar adequado e digno
para viver.
A problemática continua em aberto, pois muito que ser feito para
solucionar o problema da moradia no Brasil e para assegurar o direito de todos os
cidadãos de serem proprietários.
164
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBUQUERQUE, Ronaldo Gatti de. Constituição e codificação: a dinâmica atual do
binômio. In: COSTA, Judith Martins. A reconstrução do direito privado. São Paulo:
Editora da Revista dos Tribunais, 2002.
ARONNE, Ricardo. Direito civil-constitucional e teoria do caos. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006.
____________. Propriedade e domínio. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
BEDIN, GILMAR ANTONIO. Direito natural. In: BARRETTO, Vicente de Paulo.
(Coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.
BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: Editora Universidade de
Brasília,1997.
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de Sistema na
ciência do direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002.
CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica: seu sentido e limites.
(Nota prévia). 2. ed. Coimbra: Centelha, 1981. v. 1.
CAYGILL, Howard. Dicionário KANT. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2000.
CHEMERIS, Ivan. A função social da propriedade. São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2002.
COMPARATO, Fábio Konder Comparato. A afirmação histórica dos direitos
humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
CONSTITUIÇÃO Pastoral do Concílio Vaticano II. Sobre a Igreja no mundo de
hoje. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1966.
165
COSTA, Dilvanir José. Direito Real. Revista dos Tribunais. v. 782, a. 89, p. 727-
736, dez. 2000.
COSTA, José Luís; GONZATTO, Marcelo. Barracos sem fim (2). ZERO HORA,
Porto Alegre, 3 jul. 2006. Seção Geral, p. 28-29.
____________. Barracos sem fim. ZERO HORA, Porto Alegre, 2 jul. 2006. Seção
Geral, p. 33-35.
COSTA, Judith Martins. Diretrizes teóricas do novo código civil brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 2002.
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2003.
DUGUIT, León. Las transformaciones generales del derecho privado desde el
Código de Napoleón. Tradução de Carlos G. Posada. Madri/Espanha: Francisco
Beltrán, 1912.
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2003.
FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais,
dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica. In:
SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito
privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
FERRAZ, Flávio Carvalho. A questão da autonomia e a Bioética. Revista de
Bioética e Ética Médica, Conselho Federal de Medicina, v. 9, n. 1, p. 78-79, 2001.
FERRO, Marcelo Roberto. A propriedade privada no código Napoleão. Revista de
Direito Civil Imobiliário, Agrário e Empresarial, a. 18, n. 70, p. 50, out./ dez.1994.
FINZI, Enrico. Il Possesso dei Diritti. In: SALVATORE, Romano. L'ordinamento
giuridico. Milano: A. Giuffre, 1961. p. 3-11.
FRADERA, Vera Maria Jacob de. (Org.) O direito privado brasileiro na visão de
Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
FRANÇA, Vladimir da Rocha. Um estudo sobre a relação entre o Estado e a
propriedade privada a partir de John Locke. Revista de Informação Legislativa.
Brasília, Secretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, a. 37, n. 148, p. 187,
out./dez. 2000.
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 4. ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2003.
GIORDANI, José Acir Lessa. Propriedade imóvel: Seu conceito, sua garantia e sua
função social na ordem constitucional. Revista dos Tribunais, a. 80, v. 669, p. 47-
56, jul. 1991.
166
GOMES, Orlando. Significado da evolução contemporânea do direito de
propriedade. Revista dos Tribunais, v. 757, a. 87, p. 717-718, nov.1998.
GONZAGA, Tomás Antônio. Tratado de direito natural. Organização e
apresentação de Keila Grinberg. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
GRAU, Eros Roberto. Direito. In: BARRETTO, Vicente de Paulo. (Coord.) Dicionário
de filosofia do direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.
GROSSI, Paolo. El orden jurídico medieval. Madrid: Marcial Pons, 1996.
____________. La propiedad y las propiedades: Un análisis histórico. Espanha:
Civitas, 1992.
GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Ijuí-RS: Unijuí. 2005. v. 1 e 2.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. Tradução
de Flávio Beno Siebeneichler – UGF. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1994. v. 1.
HECK, José N. Estado e propriedade na doutrina do direito de Kant. Revista
Veritas. Porto Alegre, v. 43, n. 1, p. 169-179, mar. 1998.
HOBBES, Thomas. De cive. Petrópolis: Vozes, 1993.
____________. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2006. Série Ouro.
JHERING, Rudolf Von. O espírito do direito romano. Rio de Janeiro: Alba, 1943.
JUNGES, José Roque. O respeito à dignidade humana como fundamento de todo
humanismo. In: OSOWSKI, Cecília (Org). Teologia e humanismo social cristão.
São Leopoldo: Editora Unisinos, 2000.
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro. 2003.
____________. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos.
São Paulo: Martin Claret, 2004.
LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
____________. Direito urbanísticoCondições e possibilidades da constituição do
espaço urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
____________. Hermenêutica e direito. 3. ed. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2002.
____________. Teoria do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
LEAL, Rogério Gesta; REIS, Jorge Renato dos. Direitos sociais e políticas
públicas. Santa Cruz do Sul: EDUNISC2004. t. 4.
167
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1998.
LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
MACPHERSON, C.B. A teoria política do individualismo possessivo de
Hobbes a Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1979.
MAINE, Henry S. Ancient law. London: J.M. Dente & Sons, 1954.
MATTOS, Liana Portilho. A efetividade da função social da propriedade urbana à
luz do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Temas e Idéias, 2003.
MOURA, S.J., P.
e
Laércio Dias de. A dignidade da pessoa e os direitos humanos.
São Paulo: Editora da PUC, 2002.
OLIVEIRA, Neiva Afonso. Propriedade e democracia liberal. Um estudo estribado
em Crawford Brough Macpherson. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. Coleção
Filosofia-185.
ONU: O Brasil terá 55 milhões vivendo em favelas até 2020, publicado no Jornal
O Estado de São Paulo, em 16 jun. 2006. Disponível em: <http://www.
cidades.gov.br/index.php?option=content&task=view&id=1273>. Acesso em: 26 jun.
2006.
OSÓRIO, Letícia Marques (Org.). Estatuto da cidade e reforma urbana: Novas
perspectivas para as cidades brasileiras. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2002.
PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
PEZZELLA, Maria Cristina Cereser. A propriedade privada no direito romano.
Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998.
RIBEIRO, Darci. La pretensión procesal y la tutela judicial efectiva. Espanha:
Librería Bosch, S.L., 2004.
RIBEIRO, Maurício Antonio Ribeiro. A dignidade da pessoa humana: estudo de um
caso. Revista dos Tribunais. São Paulo, n. 758, p. 106-117, dez. 1998.
RODOTÁ, Stefan. El terrible derecho. Madri: Editorial Civitas, 1986.
ROSENFIELD, Denis L. Introdução à obra DE CIVI. In: HOBBES, Thomas. De civi,
Petrópolis: Vozes, 1993.
SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça. Rio de Janeiro: Atlântica, 2005.
168
SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.) O novo código civil e a constituição. 2. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006a.
SARLET, Ingo Wolfgang. A constituição concretizada. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2000.
____________. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2006b.
SARLET, Ingo Wolfgang.(Org.) Constituição, direitos fundamentais e direito
privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Lumen Júris, 2004.
____________. Os direitos fundamentais nos paradigmas liberal, social e pós-social.
In: SAMPAIO, JoAdércio Leite (Coord.) Crise e desafios da Constituição. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004.
SAULE JR., Nélson. Direitos humanos à moradia adequada e à terra urbana. In:
PLATAFORMA BRASILEIRA de direitos humanos, econômicos, sociais e culturais.
Relatório Brasileiro 2003, Recife: Edição Bagaço, 2003.
SAVIGNY, M.F.C. de. Sistema del derecho romano actual. Madrid: F. Góngora y
Compañía, 1878.
SEELMAN, Kurt. Pessoa e dignidade da pessoa humana na filosofia de Hegel. In:
SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Dimensões da dignidade. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005.
SÈVE, Lucien. Para uma crítica da razão bioética. Lisboa: Instituto Piaget Divisão
Editorial, 1994.
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. John Locke. In: BARRETO, Vicente de Paulo.
Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.
____________. Pessoa Humana e Boa-Fé nas Relações Contratuais: a alteridade
que emerge da ipseidade. In: Anuário do programa de pós-graduação em direito
da UNISINOS. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2005.
SILVA, José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo:
Malheiros, 2001.
SOUTO, Cláudio. Ciência e ética no direito: Uma alternativa de modernidade.
Porto Alegre: SAFE, 1992.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Uma visão crítica
do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
169
____________. Verdade e consenso Constituição, hermenêutica e teorias
discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006.
TERRA, Ricardo Ribeiro. A doutrina kantiana da propriedade. Discurso 14. Revista
do Departamento de Filosofia da FFLCH da USP. São Paulo, v. 14, p. 113-157,
1983.
VARELA, Laura Beck. Das propriedades à propriedade: construção de um direito. In:
MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado. o Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002.
VILLANOVA, Marcelo Gross. HOBBES, Thomas, 1588-1679. In. BARRETTO,
Vicente de Paulo. (Coord.) Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2006.
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. 1. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
____________. Estudios en torno a la noción de derecho subjetivo. Chile:
Ediciones Universitarias de Valparaíso, 1976.
VITA, Caio Druso de Castro Penalva. GRÓCIO, Hugo, 1583-1645. In: BARRETO,
Vicente de Paulo. (Coord.) Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2006.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo