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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
C
ENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A Charge Virtual e a Construção de
Identidades
Helga Vanessa Assunção de Souza
Recife
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A Charge Virtual e a Construção de
Identidades
Helga Vanessa Assunção de Souza
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Letras da Universidade Federal
de Pernambuco como requisito
parcial à obtenção do Grau de
Mestre em Lingüística.
Orientadora: Profª Drª Judith Chambliss Hoffnagel
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Souza, Helga Vanessa Assunção de
A charge virtual e a construção de identidades
/ Helga Vanessa Assunção de Souza. Reci
fe : O
Autor, 2007.
124 folhas : il., fig., tab.
Dissertação (mestrado)
Universidade Federal
de Pernambuco. CAC. Lingüística, 2007.
Inclui bibliografia e anexos.
1. Lingüística. 2. Charge virtual. 3.
Multimodalidade. 4. Identidade. 5
. Análise crítica
do discurso. I.Título.
801 CDU (2.ed.) UFPE
410 CDD (22.ed.) CAC2007-
38
AGRADECIMENTOS
Ao meu amado pai, não só por toda ajuda financeira, mas, principalmente, por
todos os anos de sua vida dedicados à minha formação. Meu companheiro,
meu “ranzinza”, meu amigo, meu filho.
À minha mãe, por acreditar em meu potencial, por estar sempre perto de mim,
por me socorrer nas horas de necessidade, pelas confidências, pelos
conselhos. Você é, sem dúvida, a pessoa que mais me conhece.
Aos meus irmãos, por tantas lembranças... Amo muito vocês!
A Mauricio, pelo apoio e incentivo que sempre me deu, por compreender
meus aborrecimentos e minhas ausências, pelo grande homem que é, por
fazer parte da minha história de vida da forma mais bela que pode haver. Eu
te amo muito!
A Dona Cândida Maria, por todos os conselhos, pela amizade, atenção,
cuidado e carinho que dedica a mim.
A Judith, por ter me recebido para orientação, por toda a compreensão e,
principalmente, por me permitir ousar e deixar transparecer a minha
IDENTIDADE. Obrigada pela confiança e credibilidade.
A Angela, pelas preciosas dicas e pela sinceridade. Sem dúvida, você é a
peça fundamental para o meu crescimento acadêmico e profissional.
Obrigada por toda a orientação da graduação e de agora, obrigada pela
confiança e paciência. Vai ser difícil se livrar de mim!
Ao professor Antonio Carlos Xavier, por ter lido meu trabalho com tanto zelo e
se mostrar sempre solícito.
À professora Cristina Teixeira, por se dispor a compor a banca examinadora.
A Márcia, por toda confiança e credibilidade. Por estar sempre disposta a
ajudar. Obrigada pelo apoio que sempre me deu.
A todos os outros professores que contribuíram para a minha formação
acadêmica.
A Diva, Eraldo e Josaías, pela ajuda e paciência.
Aos meus queridos alunos do CJC. Jamais esquecerei o que fizeram por mim.
Vocês marcaram a minha vida. Vocês o um presente que Deus me enviou,
para que eu seguisse a minha jornada tendo a certeza de que fiz a escolha
certa e que vale a pena lutar pela educação. Meus “fofuxos”, amo vocês!
À minha coordenadora e amiga Ana Patrícia. O mundo seria bem mais
tranqüilo se existissem mais pessoas como você! Obrigada por confiar,
acreditar e torcer por mim.
À equipe pedagógica do Colégio São Luís, pela ajuda e compreensão.
Aos amigos Eduardo, Léo, Marília, Patrícia, Clarinha, Dilma, Pri e Tati. É
muito bom ter vocês por perto!
À minha companheira Paloma Maria (amiga quase instantânea), por toda a
força, pelo compartilhamento de nossas dores. Haverá sempre lugar para nós
duas, porque, de fato, torcemos uma pela outra.
Ao meu amigo e irmão Jorge. Obrigada por estar presente em minha vida,
você me traz paz de espírito, porque você é leve. Tenho certeza que foi Deus
quem nos uniu. Te amo!
Ao meu amigo “Fuxo”, por todas as caronas e pela paciência em me ouvir.
Nossa amizade é eterna.
A Salmito José, por estar sempre disposto a ajudar, seja através de
conselhos, ações ou, simplesmente, pela presença. Obrigada, Salmito!
A Morg, minha companheira de trabalho, de casa, de telefone, de alegrias e
de tristezas. Obrigada por me fazer sentir melhor em meus momentos de
aflição.
À minha prima Kelly, por toda a ajuda e companheirismo. Te amo!
A Ricardinho, por compartilhar “Nadinha” comigo. Obrigada, viu?!
À minha “pequena” grande amiga Nadiana (Nadinha!), por sua IMENSA
ajuda. Você foi meu porto seguro nas horas mais difíceis. Serei sempre grata
por tudo o que fez por mim. Muito, muito, muito obrigada!
A Deus, por estar sempre ao meu lado e por guiar meus passos.
Aos meus pais, por me amarem incondicionalmente.
Aos meus amigos, pelos sábios conselhos.
A Mauricio, renovação de minhas forças, inspiração de minha vida
.
RESUMO
hoje em curso uma substancial mudança tanto do ponto de vista cultural quanto
tecnológico a partir da adoção, por parte da sociedade, de novos paradigmas éticos
e morais os quais proporcionaram a instauração de uma relação de vida pautada na
velocidade, eficácia e produtividade. Essas alterações também repercutiram na
linguagem, sobretudo com o advento da Internet, e colaboraram para modificar as
relações de leitura e escrita. A Charge Virtual, através da Análise Crítica do
Discurso e da análise multimodal, é um gênero ideal para investigar a construção de
identidades sociais. Esta pesquisa tem por finalidade analisar as Charges Virtuais,
especificamente do autor Maurício Ricardo exibidas no site www.charges.com.br
e observar como os diversos modos de organização (animação, texto-verbal, áudio e
imagem) interagem e formam a significação do nero em análise. Além disso, este
estudo procura investigar, tendo como base a Análise Crítica do Discurso e a análise
multimodal, de que maneira as relações lingüístico-discursivas constituem uma base
para a construção de identidades por meio de discursos estereotipados presentes
nas falas das personagens da charge.
Palavras-chave: Charge Virtual, multimodalidade e Identidade.
ABSTRACT
There is today a substantial change going on from both the cultural and technological
point of view as society adopts new ethical and moral paradigms which favor a
lifestyle based on velocity, efficiency and productivity. These changes also have
linguistic repercussions, especially with the advent of the Internet and have
collaborated in modifying ways of reading and writing. The Virtual Cartoon, through
its dynamic and creative character made possible by the various technical languages,
lends itself to the study of identity construction, multimodality and Critical Discourse
Analysis. This investigation has as its objective the analysis of the Virtual Cartoons,
specifically those of Maurício Ricardo exhibited on the site
www.charges.com.br
and observes how the diverse modes of organization (animation, verbal text, sound
and image) interact and form the meaning of the genre analyzed. Moreover, this
study seeks to investigate through critical discourse and multimodal analyses the way
in which the linguistic-discursive relations constitute a basis for the construction of
identities by means of stereotyped discourses present in the speech of the cartoons
characters.
Key-Words: Virtual Cartoon, multimodality , identity.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................
01
CAPÍTULO I: A Charge Virtual e a Multimodalidade...........................................
05
1.1 A Charge Virtual............................................................................................ 06
1.2
A Charge Virtual e a Multimodalidade...........................................................
24
1.3 Intertextualidade e Multimodalidade..............................................................
37
CAPÍTULO II: Análise Crítica do Discurso..........................................................
51
2.1 ADC: enfoque social......................................................................................
51
2.1.1 Concepção Tridimensional do Discurso.....................................................
52
2.2 ADC: enfoque lingüístico...............................................................................
69
CAPÍTULO III: Os Estereótipos Sociais: instrumento para a Construção de
Identidades..........................................................................................................
79
3.1 Os Estereótipos Sociais................................................................................ 80
3.2 Os estereótipos Sociais e a Construção Identitária...................................... 82
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................
122
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................
124
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
Helga Vanessa Assunção de Souza
1
INTRODUÇÃO
Percebe-se, hoje, uma grande mudança tanto cultural como tecnológica.
Novos conceitos éticos e morais foram introduzidos na sociedade, o avanço
tecnológico propiciou uma nova forma de vida: agilidade, eficiência e produtividade.
Assim, com todas estas modificações, não poderia ser diferente com a linguagem:
há, também, uma nova forma de ler e escrever, e, sem dúvida, o advento da
Internet, através das ferramentas que a constitui, ofereceu suporte para tais
mudanças. Marcuschi (2004) afirma que parte do sucesso da nova tecnologia deve-
se ao fato de reunir num meio várias formas de expressão, tais como, texto, som
e imagem, o que lhe maleabilidade para a incorporação simultânea de múltiplas
semioses, interferindo na natureza dos recursos lingüísticos utilizados. Galli
(2004:123) afirma que “todo computador, conectado à Internet, possui a capacidade
de transmitir palavras, imagens e sons”. Xavier (2004) atenta para o fato de que a
pluritextualidade permite, numa mesma superfície de leitura, a absorção de
diferentes aportes sígnicos. O autor afirma, também, que
a fusão dos diversos recursos das várias linguagens numa tela de
computador acessíveis e utilizáveis simultaneamente em um mesmo
ato de leitura provoca um construtivo, embora volumoso, impacto
perceptual-cognitivo no processamento da leitura. (Xavier 2004:175)
Assim, tendo em vista o caráter criativo das diversas linguagens propiciadas
pela Internet, nosso trabalho tem por objetivo de estudo as charges virtuais do autor
Mauricio Ricardo, com o intuito observar como os diversos modos (imagem,
animação, texto verbal etc) interagem e constituem a significação do gênero em
questão, bem como verificar, tendo como foco, para tanto, a Análise Crítica do
Discurso, como as relações discursivas texto verbal e texto não-verbal servem
de base para construir identidades através dos discursos discriminatórios que
permeiam as personagens evocadas nas charges.
Castells (2003:164) mostra que “o desenho gráfico computadorizado vem
renovando as formas de expressão artística à medida que a arte visual transforma
em cores, sons e silêncios as manifestações mais profundas da experiência
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
Helga Vanessa Assunção de Souza
2
humana”. Desse modo, o presente trabalho foi elaborado com a finalidade de
esclarecer os seguintes objetivos específicos:
■ Observar como são apresentadas as características definidoras de identidade
(figurino, expressão facial, gestos) e como tais características colaboram para a
propagação de discursos estereotipados nas charges virtuais.
Certificar quais são os elementos lingüístico-discursivos designadores de
identidade e de que forma são apresentados nas charges.
Tomamos como base alguns pressupostos teóricos da lingüística que
nortearam nossa pesquisa. Assim, adotamos os seguintes conceitos:
1- Os neros textuais são fenômenos sociais, dinâmicos, plásticos e se
moldam através das necessidades sociais. (Bazerman 2005, 2006 e
Marcuschi 2002, 2005).
2- Não o texto verbal é importante para a construção discursiva, mas os
diversos componentes multimodais (imagem, som, cores) são fontes de
linguagem constitutivas para a compreensão textual. (Dionisio 2005, 2006;
Kaindl 2004 e Stöckl (2004)).
3- Os sujeitos são construídos e são construtores das práticas discursivas. As
escolhas lingüísticas dos sujeitos compõem as suas identidades e ideologias.
(Fairclough 2001; Wodak 2003; Pedro 1998, 2000 e Rezende e Ramalho
2006).
4- A identidade do sujeito é construída através de exercícios de papéis sociais.
Os estereótipos sociais também definem sua identidade, tendo em vista que
são rótulos estabelecidos e cristalizados nas esferas que compõem a
sociedade. (Banberg 2002; Bauman 2005; Castells 2002; Coelho 2002; Dubar
2005; Dutra 2003; Fujisawa 2006; Giddens 2002; Goldenberg 2006; Hall
2005; Hoffnagel 1999; Moita Lopes 2003; Nolasco 2001; Orlandi 2004;
Pereira 2002; Pereira 2005; Portinari e Coutinho 2006 e Vilela 2002).
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
Helga Vanessa Assunção de Souza
3
Para fins de análise, escolhemos 21 charges virtuais. A escolha das charges
se deu com base em exemplos que dispusessem as várias facetas que compõem
esse gênero textual. Vale ressaltar que, como, a cada dia, é lançada uma nova
charge com uma nova crítica, foi preciso uma atualização constante no que diz
respeito aos assuntos midiáticos. Como as charges virtuais aqui analisadas não
estão em seu meio físico
1
(Internet), tivemos a preocupação de anexar um CD
contendo-as, para que o leitor possa verificar o quanto os diversos modos
2
que
compõem o gênero são importantes para a sua constituição. Além disso, para
facilitar a leitura das charges virtuais, os quadros capturados foram postos em
tabelas, assim, para fazer a leitura das mesmas, é preciso levar em consideração a
maneira de leitura de maior incidência no que diz respeito à escrita alfabética - no
Ocidente, ou seja, da esquerda para a direita e de cima para baixo. Outra
preocupação no que diz respeito à leitura das charges foi a captura e colagem das
imagens das personagens no papel. Como em algumas charges há, em um mesmo
quadro, mais de uma personagem, para não haver confusão, a personagem que
está com a vez do turno foi capturada e colada com a boca aberta, assim, o leitor
terá condições de saber quem está falando no momento da cena.
Esta dissertação está dividida em três capítulos, situados com base nas
seguintes explanações:
Capítulo I: Nesse capítulo, tratamos da constituição do corpus. Para tanto, a teoria
social dos gêneros, bem como os recursos multimodais que são inerentes às
charges virtuais são postos em destaque.
Capítulo II: Com base na teoria da análise do discurso crítica, esboçamos como
nossos discursos estão imbricados por relações hegemônicas, ideológicas e
investidos de poder. O discurso é visto numa perspectiva social, pois é através de
nossas práticas sociais que construímos, moldamos e propagamos nossos discursos
e, conseqüentemente, nos firmamos como indivíduos nas esferas sociais.
1
Estamos tomando meio físico como sinônimo de suporte.
2
O termo “modo” está empregado com base na teoria da multimodalidade, que concebe os gêneros
textuais orais e escritos como multimodais, tendo em vista que quando falamos ou escrevemos um
texto, usamos, pelo menos dois “modos” de representação: palavras e gestos, palavras e imagens,
palavras e entonações etc. (Dionisio 2005:161)
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
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4
Capítulo III: Nesse capítulo, discutimos as noções de identidade e estereótipos
sociais, bem como analisamos algumas charges virtuais que se utilizam desses
conceitos para identificar suas personagens e promover o humor e a crítica.
Assim, esperamos que essa pesquisa venha a contribuir para a análise de
como as diversas modalidades que compõem a charge virtual são importantes para
a construção e constituição da crítica, bem como possa ajudar, de alguma forma,
aos professores que buscam (e têm acesso), em seu dia-a-dia, inserir em suas
práticas recursos tecnológicos e, também, uma conscientização crítica por parte de
seus educandos.
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Helga Vanessa Assunção de Souza
5
CAPÍTULO 1
A CHARGE VIRTUAL E A MULTIMODALIDADE
(...)
Todo dia eu só penso em poder parar
Meio dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão
(...)
(Cotidiano – Chico Buarque)
O fragmento da música de Chico Buarque descrito acima remete-nos às
repetições que realizamos em nosso dia-a-dia, repetições essas que, em sua
maioria, são necessárias para a construção de um convívio em sociedade.
Atividades como ir ao trabalho, ir à escola, ir ao médico, fazer pagamentos, compras,
dentre outras ações corriqueiras, nos colocam diante de uma gama de gêneros
textuais, cada qual com suas especificidades necessárias para que se tenha uma
estrutura social organizada. Ao preenchermos um boleto bancário, assinar a guia de
um cartão de crédito, produzir um artigo científico ou lermos uma notícia que nos
chama a atenção, estamos realizando ações sociais. Bazerman (2005:22) salienta
que os textos, quando bem sucedidos, proporcionam aos leitores um fato social,
esses, no entanto, são ações sociais significativas realizadas por meio da linguagem
ou dos atos de fala. O autor complementa afirmando que:
esses atos de fala
3
são realizados através de formas textuais
padronizadas, típicas e, portanto inteligíveis, ou gêneros, que estão
relacionadas a outros textos e gêneros que ocorrem em
circunstâncias relacionadas. Juntos, os vários tipos de textos se
acomodam em conjuntos de gêneros dentro de sistemas de gêneros,
os quais fazem parte dos sistemas de atividades humanas.
A diversidade textual é necessária para a interação humana, pois é por meio
dela que nos comunicamos e optamos usar um texto qualquer em diferentes
situações. Os meios tecnológicos propiciam uma nova forma de vida,
3
Os atos de fala mencionados por Bazerman dizem respeito à Teoria dos Atos de Fala proposta por
John Austin, que consiste em uma análise de três níveis: a ato locucionário (o que é dito literalmente);
o ato ilocucionário (o ato pretendendido); e o ato perlocucionário (o modo como as pessoas assimilam
esses atos, ou seja, o seu efeito real).
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
Helga Vanessa Assunção de Souza
6
conseqüentemente, o acesso a gêneros que cada vez mais solicita de seus usuários
uma capacidade de leitura diferenciada: animação, recursos de áudio, infográficos,
slides etc. Desse modo, o presente trabalho, além de mostrar o gênero charge virtual
numa perspectiva interacional, dinâmica e social, tem por finalidade investigar como
a multimodalidade interfere na construção de sentido do gênero charge virtual, tendo
em vista que seu produtor se utiliza de várias semioses para a sua construção.
1. 1 A CHARGE VIRTUAL
O fato de vivermos em sociedade faz com que sejamos atuantes no sistema
social ao qual estamos sujeitos. Um exemplo disso são as críticas feitas pelo
chargista Maurício Ricardo, através das charges virtuais. Vale salientar, que
concebemos a charge virtual como um gênero textual, tendo em vista que esta, além
de suas características tipificadas, como: vários quadros seqüenciados, presença ou
não de caricaturas
4
, a escolha, por parte do leitor, dos recursos de áudio ou
legendas, animação etc; possui, também, a mesma função social da charge
impressa: humor, crítica ou, simplesmente, entretenimento, o que nos faz constatar
que se trata do mesmo gênero, já que o diferencial entre os dois se dá pelas
possibilidades do meio físico do qual cada um se originou. Bazerman (2005:31)
revela que se compreendermos gêneros como fenômenos de reconhecimento
psicossocial, eles serão “parte de processos de atividades socialmente organizadas”.
Assim, o autor complementa dizendo que “gêneros emergem nos processos sociais
em que as pessoas tentam compreender uma às outras suficientemente bem para
coordenar atividades e compartilhar significados com vistas a seus propósitos
práticos”.
Marcuschi (2002) afirma que os gêneros são textos histórica e socialmente
situados. Produzimos textos ao longo de nossas vidas de acordo com as
ferramentas disponíveis em cada período histórico, bem como de acordo com as
nossas necessidades. Além de os gêneros convencionados pelo poder de
instituições que prestam serviços indispensáveis para o convívio social (contas de
luz, água; imposto de renda, boletos bancários, entre outros), gêneros relacionados
4
Mais adiante, mostraremos um exemplo de charge virtual que faz uso de imagens reais das
personagens.
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
Helga Vanessa Assunção de Souza
7
à cultura e ao lazer também foram criados como forma de satisfazer determinadas
necessidades fundamentais ao homem: entretenimento, prazer, crítica, ideologias
etc. “Gêneros textuais se constituem como ações sócio-discursivas para agir sobre o
mundo e dizer o mundo, constituindo-o de algum modo”. (Marcuschi, 2002:22)
Dessa maneira, emerge o gênero charge, um gênero midiático que tem por função
social provocar o efeito do humor associado à crítica.
Entre o final do século XVIII, início do século XIX, o desenhista francês
Honoré Doumier fez uma crítica ao governo de sua época no jornal “La Caricature”.
Ele, para fazer sua crítica, expôs sua opinião através de um desenho, ou seja, de
uma charge. O gênero ganhou “força” e outros jornais passaram a publicá-lo. A
charge jornalística impressa perpassou as fronteiras da França e conquistou os
jornais do mundo inteiro. Ainda hoje ela é uma ferramenta utilizada como meio de
divulgar acontecimentos sócio-políticos de maneira crítica e bem-humorada. No
entanto, com o advento da tecnologia, mais especificamente, com o surgimento da
Internet, esse gênero ganhou outras proporções. Além de a charge impressa, há,
também, a charge virtual (doravante CV).
O site que disponibiliza as charges produzidas pelo autor Maurício Ricardo,
que exibe suas charges, diariamente, no site www.charges.com.br, passou a ser
divulgado por volta dos anos 2001/2002 . Nele, as charges são arquivadas por um
tempo e, por terem um caráter efêmero, com o passar dos acontecimentos, vão
sendo substituídas por outras de temática atualizada. Mesmo assim, muitas vezes, o
autor traz à tona uma charge mais antiga, intitulada “Clássicos da Charge” que,
apesar de sua produção mostrar um fato que ocorreu em um determinado tempo
passado, sua temática ainda pode ser considerada atual, pois o fato mostrado ainda
está em vigor. As CVs podem ser divididas em quatro categorias, com base nos
critérios mostrados a seguir:
1. Musicais (denominadas pelo autor de charges-okês) - charges que fazem uso
de paródias de músicas que estão em vigor;
2. Entrevista (denominadas pelo autor de Tobby Entrevista) - charges que
supõem uma entrevista com políticos, animais e celebridades;
3. Político-sociais - charges que se utilizam do meio político e do social com o
intuito de criticar;
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
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8
4. Celebridades - charges que satirizam as personalidades.
Presenciamos nas CVs abordagens de manifestação crítica. Elas, assim
como a charge impressa, têm por função social
5
satirizar, ironizar, criticar através do
humor. Além disso, observamos que as CVs também fazem uso de caricaturas;
porém elas vão se diferenciar das charges impressas por fazerem uso de recursos
audiovisuais proporcionados pela tecnologia. Som, imagem, movimento, seqüência
de quadros, entre outros, são algumas das características que compõem esse
gênero.
Bazerman (2005:30-31) mostra que temos a tendência de identificar e definir
os gêneros através de algumas características definidoras de sua forma e, apesar
desse conhecimento ser bastante útil para atribuirmos sentido aos gêneros com os
quais nos relacionamos, nos dá, também, uma visão reducionista e incompleta de
gêneros; pois apesar de boa parte dos gêneros manterem um padrão (fator
importante para o conhecimento, a familiaridade e a utilização dos mesmos), eles
possuem uma estrutura maleável. Tais aspectos o também pontuados por
Marcuschi (2005:18), ao mencionar que os gêneros o são modelos estanques,
nem estruturas rígidas e sim entidades dinâmicas, “formas culturais e cognitivas de
ação social corporificadas de modo particular na linguagem”. Assim, os gêneros
mantêm uma determinada estrutura padronizada que pode ser alterada de acordo
com as necessidades sociais e culturais, como ilustram os exemplos abaixo:
5
A charge virtual, além de criticar, satirizar e ironizar, aproveita datas e acontecimentos marcantes
para render homenagens a alguém ou a alguma data comemorativa, sem, no entanto, fazer uso da
crítica, como, por exemplo, a morte do Papa João Paulo II etc.
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9
EXEMPLO 1 – Debate
6
(Folha on-line/2006)
EXEMPLO 2 – Debate Bate
6
Vale lembrar, que estamos nomeando o exemplo 1 de charge impressa, devido a este gênero, até
pouco tempo, ser divulgado apenas através da impressão no vegetal. No entanto, hoje, também,
podemos encontrá-lo na Internet.
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16
(charges.com.br/2006)
Tanto a charge impressa quanto a virtual abordam o mesmo tema político,
nesse caso, o debate dos candidatos à presidência (Luís Inácio Lula da Silva e
Geraldo Alckmin) que passaram para o segundo turno em 2006. A charge impressa
mostra as “armas” que cada candidato possui para se enfrentarem. Estas remetem a
objetos primitivos utilizados em prol da violência, fato que nos leva a uma retomada
do passado da política de uma maneira geral, pois as brigas entre candidatos e
partidos têm bases antigas”. A crítica consiste no fato de os candidatos levarem à
tona nos debates ataques que abalam a moral de cada um, quando, na verdade,
deviam estar esclarecendo as dúvidas dos eleitores em relação as suas propostas
de governo. A segunda charge faz a mesma crítica; porém, a presença da linguagem
verbal atrelada às imagens, angulações que enfocam cada personagem, um maior
detalhe no cenário (painel formado por palavras que revela um panorama da política
nacional: lama, corrupção, denúncia, conchavo etc), som, expressões faciais e
gestos dos candidatos, bem como uma maior quantidade de quadros, propicia ao
interlocutor uma maior possibilidade de verificar o assunto e, portanto, a crítica.
Percebemos que, apesar da temática das charges (impressa e virtual) ser a
mesma (política), bem como sua função social (crítica, ironia, humor etc), o suporte
no qual a CV se insere permite a utilização de alguns recursos (som, movimento etc)
que mostram o quanto não podemos classificar os gêneros como algo rígido,
estanque. Marcuschi (2005:18) deixa claro que, do mesmo jeito que a língua sofre
variação, os gêneros também irão variar, pois precisam se adaptar aos processos
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17
culturais presentes na sociedade. O autor complementa afirmando que “hoje, a
tendência é observar os gêneros pelo seu lado dinâmico, processual, social,
interativo, cognitivo, evitando a classificação e a postura estrutural”.
Uma prova da dinamicidade e plasticidade dos gêneros é percebida através
das CVs. Desde a criação do site que contém as CVs produzidas por Mauricio
Ricardo, este tenta aprimorá-las através da busca de uma maior interatividade com o
leitor. Assim, além de o leitor ter a opção de escolher se quer fazer download”,
escolher a versão com som ou legendas, atribuir nota, comentar, enviar para
alguém, bem como enviar sugestões de temas a serem exibidos nas charges, o
autor, muitas vezes, solicita a participação direta do leitor em algumas charges
através de comandos que este necessita utilizar, como mostra o fragmento da
charge a seguir:
EXEMPLO 3 – Fragmento de Calçada da Fama
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18
(charges.com.br/2005)
O leitor, para visualizar a charge, precisa dar os comandos através dos
botões que aparecem em cada quadro, para que a charge mostre a seqüência de
seus quadros. A charge tem como cenário uma calçada, fazendo alusão à calçada
da fama que há em Hollywood, que contém a assinatura dos “astros” americanos. A
“calçada da fama” brasileira, mostra a visão do chargista em relação a composições
de alguns “astros brasileiros”. Ele faz uso de algumas peculiaridades que
caracterizam as personagens; por exemplo, a assinatura do presidente registrada
com o “L” invertido reflete mais uma crítica, agora, no que diz respeito à escolaridade
do presidente Lula, já que este não possui curso superior; desse modo, muitas
vezes, é atribuído a ele o título de “semi-analfabeto”, servindo de base para a
exploração da crítica Além disso, a charge mostra uma das os do presidente Lula
com apenas quatro dedos, perda essa que ele sofreu em seu antigo trabalho como
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torneiro mecânico, característica bastante utilizada pelos chargistas e humoristas, de
uma maneira geral, para caracterizar o presidente. Em contrapartida, ao aludir a
apresentadora de TV Daniele Cicarelli
7
, o autor da charge enfatiza o fato desta ter
um dedo a mais em um dos pés. Para complementar seu perfil, o chargista evidencia
o tamanho deles, que ela, além de apresentadora, também é modelo, e por ser
bastante alta, tem os pés grandes. Desse modo, o autor vai compondo o perfil de
outros famosos, através de traços que dizem respeito a suas características sicas
ou relativas à personalidade de cada um.
Bazerman (2006:10) mostra que o caráter dinâmico, interativo e agentivo dos
gêneros (no que diz respeito à utilização dos gêneros escritos) “significa que no
centro de nossa teoria devem estar pessoas que querem realizar coisas através da
escrita em um mundo em mudança”. Nós agimos através dos gêneros. O produtor
da charge age socialmente através de seu juízo de valor. “(...) nossos textos são
atos de nossa vontade, motivados pelos nossos desejos e intenções”. (Bazerman,
2006:13). Dessa forma, assim como os produtores dos gêneros são agentes, seus
consumidores também o são, pois, como mostra o exemplo 3, o leitor age
diretamente no gênero, não através da leitura deste, mas também através das
ações por ele realizadas e dos comandos que dão seqüência à charge.
Vale ressaltar, também, que o chargista propicia aos leitores charges que
contém vários episódios. Esses episódios são inacabados, para que, no dia
seguinte, haja a continuação de um novo capítulo, lembrando um desenho animado
seqüenciado, uma novela, uma minissérie etc. O leitor passa a ser uma espécie de
“telespectador”, pois ele precisa acompanhar os capítulos da charge para saber o
que vai acontecer com as personagens envolvidas no dia seguinte. Kress (2003:89-
90 apud Marcuschi 2005:25, grifos do autor)
postula que a mobilidade dos gêneros permite dizer que caminhamos
para uma “hibridização” ou “mesclagem” de gêneros de tal ordem
que podemos chegar a uma situação em que não mais haja
“categorias de gêneros puros e sim apenas fluxo”.
7
Na calçada da fama brasileira, o nome da modelo e da apresentadora Daniele Cicarelli aparece na
forma reduzida “Dani”, que é o apelido dado, na maioria das vezes, para as pessoas chamadas
Daniele, Daniela, Daniel.
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
Helga Vanessa Assunção de Souza
20
A série intitulada “Só Levando” é composta por dez episódios seqüenciados.
A temática abordada nos capítulos é de caráter social, mostra como núcleo
principal das personagens, uma família de quatro integrantes (pai, mãe, filho e
filha). No entanto, essa família tem sua base estrutural totalmente abalada: o pai
desempregado, mentiroso, enganador; a esposa infiel, “trambiqueira”,
interesseira; a filha mente para família dizendo ser estudante universitária,
quando, na verdade, não é estudante, e sim uma garota de programa; o filho é
adotivo, pois tem como pais biológicos um casal alemão, o que faz dele loiro com
olhos azuis; ele se veste como rapper, porque não aceita sua origem. A título de
ilustração, abaixo estão alguns quadros (correspondentes ao primeiro quadro
início da charge) que contêm os episódios seqüenciados.
EXEMPLO 4 – Fragmento de Só Levando (parte 1)
(charges.com.br/2006)
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
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EXEMPLO 5 – Fragmento de Só Levando (parte 2)
(charges.com.br/2006)
Os exemplos 4 e 5 ilustram o primeiro quadro dos capítulos 1 e 2 da série “Só
Levando”. Como o exemplo 4 mostra o primeiro episódio da série, o item “capítulos
anteriores” exibido a partir do capítulo 2 em diante, não aparece. Interessante é o
efeito de luminosidade e cores que a charge utiliza nesse primeiro quadro. Nos
exemplos 4 e 5, o leitor, ao situar o mouse em cima do item “conheça os
personagens”, além de o vermelho das letras tornar-se mais vivo, as personagens
são evidenciadas, como mostra o exemplo 4. Caso o leitor clique nesse item, é
aberta uma nova janela na página do site das charges, que irá mostrar o perfil das
personagens que fazem parte da série. Da mesma forma, ocorre com o exemplo 5.
Ao situar o mouse no item “capítulos anteriores”, a cor amarela das letras é
evidenciada e as luzes da fileira de casas que compõem o cenário são acesas. Se o
leitor clicar nesse item, ele tem acesso às charges anteriores.
Um outro ponto que merece atenção é a não-utilização (apenas) de
desenhos caricaturados. Em algumas CVs, o autor expõe as imagens das
personagens reais. No entanto, as falas dessas personagens são fictícias e as
situações por elas vivenciadas nos quadros são moldadas com a finalidade de
promover o humor, a crítica. No fragmento da CV que segue, o autor constrói um
diálogo imaginário entre duas personalidades norte-americanas, que fazem de tudo
para “aparecerem” na mídia, já que estas, conseguem obter a renda necessária e
“desnecessária” para seus sustentos, através de suas aparições “escandalosas”, nos
meios de comunicação.
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
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EXEMPLO 6 – Fragmento de Megafusão
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
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23
(www.charges.com.br/2006)
Mais uma vez, a partir desse exemplo, observamos o quanto os gêneros são
fatos sociais, dinâmicos e flexíveis. Bazerman (2005:31) atenta para o fato de que,
ao definirmos gêneros como apenas conjuntos de traços textuais, ignoramos o papel
dos indivíduos no uso e na construção de sentidos. Ignoramos as diferenças de
percepção e compreensão, o uso criativo da comunicação para satisfazer novas
necessidades percebidas em novas circunstâncias e a mudança no modo de
compreendermos o gênero com o decorrer do tempo”. Os gêneros evoluem e se
moldam de acordo com os padrões sociais estabelecidos. Cada vez mais
presenciamos uma “mescla” de características que compõem vários gêneros; daí,
estabelecer critérios estruturais para definir gêneros é restringir não só a criatividade
de quem os produz, como o seu papel ativo na sociedade, ou seja, sua
dinamicidade.
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
Helga Vanessa Assunção de Souza
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1. 2 A CHARGE VIRTUAL E A MULTIMODALIDADE
Dionisio (2005) chama atenção para os avanços tecnológicos, pois estes
estão colaborando para a diversidade de arranjos no processamento textual, visto
que os gêneros estão com uma maior liberdade de manipulação por parte de seus
usuários - devido ao meio físico que os transmitem. A charge virtual é um exemplo
dessa diversidade de arranjos propiciada pelo seu meio físico. Nela, seu produtor
integrou imagem, movimento, som e texto verbal. Além disso, a charge ganhou um
número maior de quadros, condição essa que permite aos leitores um “tempo maior”
para digerir a crítica, pois, se compararmos a CV com a charge impressa,
verificamos que a crítica presente na segunda é exibida de forma condensada em
um ou dois quadros, fato que exige do leitor uma compreensão aguçada da crítica
por ela ofertada. Vejamos o exemplo a seguir:
EXEMPLO 7 – Charge Impressa
(Jornal do Comércio/2006)
Para compreender a crítica exibida na charge em questão, o leitor precisa
estar situado no fato social que a envolve. Temos como personagens o presidente
do Brasil Luis Inácio da Silva (Lula), pertencente ao PT (Partido dos Trabalhadores),
que estava, no período, como candidato à reeleição e o candidato à presidência
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
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Geraldo Alckmin do PSDB (Partido Social Democrata Brasileiro). A charge mostra os
candidatos tentando conseguir o apoio do PMDB (Partido Movimento Democrata
Brasileiro), que se encontrava dividido: uma parte apoiava Lula e outra parte apoiava
Alckmin. O local que mostra a placa do PMDB assemelha-se a uma casa de
“programas baratos ou a um cortiço. Suas paredes estão com parte do reboco à
mostra e um varal com peças íntimas penduradas. Isso tudo devido o partido
estar em uma situação ruim e, portanto, provavelmente, em busca de quem tiver a
melhor “oferta”. No entanto, toda a crítica está situada em apenas um quadro. Nesse
caso, em especial, pouco se verifica a utilização da linguagem verbal, assim, o leitor
deverá atinar para a leitura da imagem, os prováveis gestos das personagens, bem
como o cenário mostrado.
A CV, por utilizar um número maior de quadros seqüenciados, o que permite,
na maioria dos casos, a consonância entre as linguagens verbal e não-verbal,
possibilita ao leitor uma compreensão maior da crítica por ela exibida. Stöckl (2004)
chama atenção para o fato de observarmos como as modalidades interagem e são
organizadas no texto e no discurso, levando em consideração que, geralmente, as
modalidades são vistas individualmente. Os diversos modos de representação que
compõem a CV são fundamentais para a sua construção e para o seu sentido. A
perda de um de seus modos (áudio, movimento etc) afeta diretamente na
compreensão de sua crítica, em seu efeito de humor; como, por exemplo, a retirada
da CV de seu meio físico para o papel, como mostra o exemplo que segue abaixo:
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
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EXEMPLO 7 – Tobby entrevista Jom e Terry
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(charges.com.br/2006)
Este exemplo fala sobre a censura de alguns desenhos da dupla Tom e Jerry,
que tem as iniciais de seus nomes trocadas (Jom e Terry), característica do quadro
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
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de entrevistas, tendo em vista que as personagens aparecerem fumando.
Interessante é perceber que, mesmo o interlocutor não estando situado no contexto
social que envolve a charge, os vários quadros seqüenciados, bem como as pistas
informadas pela linguagem verbal, situa o leitor no assunto abordado; mesmo que
este não vislumbre a totalidade da crítica, até mesmo porque o chargista critica
assuntos paralelos: política, desenhos japoneses, censura etc. Mas, ainda assim,
através do número de quadros, a movimentação e expressão das personagens em
conjunto com que está verbalizado servem como ferramentas facilitadoras para a
construção de sentido do assunto explanado. Além disso, os mecanismos
multimodais propiciam ao leitor a observância do humor, fator esse difícil de ser
perceptível aqui, tendo em vista que a charge não se encontra no seu meio físico,
perdendo, portanto, características fundamentais para a promoção do gracejo.
Desse modo, o leitor deixa de presenciar, por exemplo, o sotaque das personagens,
fator que o chargista revela para enfatizar o humor no gênero, que o gato é fanho
e o rato é gago.
Vale lembrar que, além dos recursos de áudio, as movimentações dão vida às
personagens. Elas esboçam, através de suas expressões faciais, indignação, ironia,
raiva, paixão, sarcasmo; enfim, suas expressões e seus gestos são fatores
imprescindíveis para a construção humorística e crítica das charges. O recurso de
áudio tem tanta importância na caracterização das personagens que o próprio
chargista afirma isso no primeiro quadro que apresenta a charge, como mostra
abaixo:
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
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EXEMPLO 8 – Toda forma de poder
(charges.com.br/2006)
Kress (2003:86, apud Marcuschi 2005:28, grifos do autor) ressalta que
não podemos ignorar que hoje vivemos uma ‘era de novos meios’ de
comunicação e que a teoria de gêneros não pode esquecer isto. Não
temos apenas uma escrita alfabética no ocidente, ‘mas uma escrita
alfabética no contexto de outros modos co-ocorrentes’ que se
afiguram relevantes para o processo comunicativo. Assim, além dos
modos lingüísticos, isto é, a fala e a escrita, temos de dar conta dos
demais modos a eles integrados, tais como som, imagem, gestos,
imagens em movimento etc.
Desse modo, quando acessamos o gênero CV, precisamos estar atentos às
mudanças sociais, culturais e tecnológicas que estão a nossa volta, que exigem de
nós, como leitores, em nossa prática de leitura e de escrita à aplicabilidade de vários
mecanismos ao mesmo tempo. Leitura porque necessitamos ativar os comandos
gestuais, sonoros, lingüísticos, entre outros, para a compreensão do gênero; escrita
porque o site disponibiliza meios de interação (links), tais como: “fale com o autor”,
“envie para um amigo”, sugestões, comentários etc. Tais recursos, em conjunto,
atribuem sentido para seus usuários. Stöckl (2004) explana que a multimodalidade
está relacionada a artefatos comunicativos e processos que combinam vários
sistemas de signos (modalidades) e cuja produção e recepção pedem aos
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
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37
comunicadores a inter-relação semântica de todos os repertórios de signos
presentes. Wysocki (2004:123-126 apud Dionisio 2005:166) diz que “todos os textos
com base numa tela do computador e numa página são visuais e seus elementos
podem ser analisados”.
Atrelar os recursos multimodais para significar os textos nem sempre é tão
fácil. Kaindl (2004) mostra que as traduções de histórias em quadrinhos deixam a
desejar justamente por privilegiarem a linguagem verbal para mostrar o humor do
gênero. O autor acrescenta que a dimensão lingüística é importante, mas que se faz
necessário acoplar a dimensão verbal com a dimensão não-verbal. Desassociar os
recursos oferecidos pelo gênero CV é desconstruir a sua função social. Um dos
exemplos apontados pelo pesquisador mostra uma determinada tira que, ao ser
traduzida da língua francesa para a língua alemã, perdeu boa parte de seu humor,
justamente porque o que estava verbalizado em francês era uma expressão
idiomática também demonstrada na imagem. Como na língua alemã, não havia
tradução para essa expressão idiomática, o que estava sendo representado na
imagem não tinha sentido algum. É fundamental que se leve em conta o conjunto
dos elementos multimodais, pois a crítica, o humor, a ironia e as referências culturais
estão presentes nos gestos, expressões, falas, sotaques das personagens, bem
como no cenário no qual a ação se desenrola.
1. 3 INTERTEXTUALIDADE
8
E MULTIMODALIDADE
A intertextualidade é inerente à CV, até mesmo porque para o autor criticar
alguém ou alguma coisa se utiliza de algo da esfera social: pessoas,
acontecimentos, instituições etc. Mas a questão está na forma como os elementos
intertextuais são empregados na constituição dos mecanismos multimodais. Cada
vez que o chargista recorre a outros textos para construir suas charges, algumas
“pistas” desses textos são sinalizadas através dos elementos multimodais, seja na
caricatura, nos gestos, nos objetos, nas músicas, entre outros.
8
Estamos utilizando o termo intertextualidade, em detrimento do termo interdiscursividade, com base
na teoria de Bazerman (2006:92), que concebe intertextualidade de uma forma ampla, por evocar não
a representação da situação discursiva, como, também, seus recursos textuais e o modo como
esses textos se posicionam diante de outros textos e os usa.
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
Helga Vanessa Assunção de Souza
38
Muitos dos elementos intertextuais mostrados nas CVs são explorados
através de seus recursos multimodais e, em especial, os recursos de áudio e
animação. Muitas das CVs utilizam paródias de músicas para a sua constituição.
Essas charges são chamadas pelo autor de “charges-okês”. O próprio nome das
charges remete a um outro termo “videokê”, que consiste em um aparelho que
reproduz apenas a melodia das músicas sem a letra, pois mostra a letra na tela da
televisão para que alguém acompanhe e cante. As charges-okês levam esse nome
pelo fato de a letra das paródias aparecem nos quadros para que o leitor possa
acompanhar, porém, diferente do videokê, tanto a melodia quanto a letra o
transmitidas através do áudio. Geralmente, o autor escolhe uma música para
parodiar que se remeta, de alguma forma, ao assunto abordado na charge, como
mostra o exemplo a seguir:
EXEMPLO 9 - Baba
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(charges.com.br/2002)
Nesse exemplo, o chargista faz uma paródia da música “Baba Baby” da cantora
Kelly Key. A música original utiliza a expressão baba” no sentido de um homem “babar”
por uma mulher, ou seja, desejá-la imensamente. Já a paródia utilizada na charge, a
palavra “baba” foi empregada no sentido de fazer o trabalhador, que ganha apenas um
salário mínimo, “babar” pelo alimento exposto no supermercado, visto que este não
ganha o suficiente para tê-lo. A crítica feita ao baixo salário, ao aumento do preço dos
alimentos, a falta de conscientização política, entre outras, será reforçada com base na
expressão “baba”, que será exibida através da personagem que fica com a língua para
fora, “babando” pelo alimento que não pode possuir. Vale ressaltar, que a animação será
estabelecida de acordo com o que é apresentado pela música. Como quem canta a
paródia é a caixa de supermercado (moça loira, de seios fartos, semelhante a cantora
Kelly Key) que, provavelmente, “baba” todos os dias em seu ambiente de trabalho
(supermercado) por, também, ganhar um baixo salário, a personagem que representa um
trabalhador (operário) vai reafirmar o que é dito por ela através da confirmação
estabelecida pela movimentação de sua cabeça. A animação terá um papel fundamental
na demonstração da paródia: o olhar do operário para os possíveis itens do
supermercado, seu rosto de “sofrimento”, indignação, a concordância com as palavras da
caixa de supermercado, o balançar dos braços da caixa de supermercado acompanhando
o ritmo da música, servem de estampa para a representação da canção.
Bazerman (2006:94) chama atenção para o fato de que a intertextualidade hoje,
apesar de ser um fenômeno bastante reconhecido, não possuir ainda um vocabulário
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44
analítico, assim, ele lista seis aspectos centrais da intertextualidade denominados níveis
de intertextualidade. No nível seis, o autor explicita que “cada texto, a todo instante,
depende da linguagem disponível no momento histórico e faz parte do mundo cultural de
todos os tempos”. Na CV, a menção que se faz a outros textos está atrelada a fatores
sociais e culturais, fator imprescindível para a sua compreensão. O exemplo que segue,
apesar de não estar reproduzido em sua totalidade, visto que boa parte da charge foi
suprimida, mostra o quanto o compartilhamento das questões culturais é importante para
a relação intertextual que o gênero estabelece.
EXEMPLO 10 – Fragmento de A volta da inflação
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(charges.com.br/2004)
Para identificar o humor da charge, o leitor necessita ter um conhecimento
partilhado com os textos citados. A charge faz uma crítica à situação econômica
brasileira, que vivia um momento de instabilidade. O autor faz uma espécie de
propaganda televisiva para apresentar o CD intitulado “A Volta da Inflação”. O recurso de
áudio terá um papel fundamental para a conexão intertextual estabelecida com a
propaganda, pois, simultaneamente a aparição dos quadros, há um locutor que apresenta
o produto.
O Brasil, durante um determinado período, manteve sua economia estável, no
entanto, esta começou a entrar em crise e os produtos alimentícios, eletrônicos, entre
outros, começaram a aumentar de preço, por isso a razão do título do CD ser “A Volta da
Inflação”. A imagem que aparece na capa do CD é a de um dragão. Caso o leitor não
compreenda absolutamente nada de política econômica, provavelmente, irá questionar a
razão pela qual aparece a imagem do dragão que, nesse caso, representa a inflação,
com suas “chamas” destruidoras, pronta para devastar a população consumidora. Assim,
o autor mostra alguns antigos sucessos musicais, para marcar esta “volta”. Ele faz uso de
três paródias de músicas para construir a crítica, sem, no entanto, alterar seus títulos: O
Portão, Imortal e Música Urbana. A cada chamada feita pelo locutor aparece um
fragmento da paródia, com seu possível cantor, com a mesma estrutura de uma
propaganda de CD televisiva. Interessante é a caracterização do dragão na exibição de
cada paródia, pois o chargista utiliza objetos, componentes sicos, expressões e gestos
que compõem o cantor original das músicas parodiadas. Por exemplo, quem canta “O
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47
Portão” é o cantor Roberto Carlos, que possui os cabelos grisalhos e um pouco
compridos, além disso, durante muito tempo ele usou uma pena como brinco em uma de
suas orelhas. Vale lembrar que Roberto Carlos costuma inclinar o pedestal do microfone
ao cantar e que, geralmente, ele o mantém no suporte, tendo em vista que o cantor pouco
se desloca no palco. O chargista aproveitou essas características do cantor (modo de
portar-se no palco, tipo de microfone etc) para transpor para o dragão. Da mesma forma,
ele fez com as outras duas paródias, “Imortal”, originalmente cantada pela cantora Sandy,
que também tem suas características mostradas no dragão (meiga, calma, cabelos lisos)
e “Música Urbana”, originalmente cantada pelo grupo Capital Inicial (cabelos curtos,
guitarra, brincos na orelha, camiseta etc). No entanto, para fazer as associações das
características mostradas no dragão, com os cantores originais, o leitor precisa conhecê-
los, compartilhar desse conhecimento cultural, caso contrário, muito do gracejo é perdido.
Na mostra dos locais de vendas do CD (lojas, supermercados, postos de
gasolina), o autor aproveita para realçar ainda mais a sua crítica, visto que a inflação
pode ser vista e sentida em cada estabelecimento por ele mencionado. Um outro ponto
que merece destaque é o final da apresentação do CD pelo locutor, tendo em vista que
este cada vez que menciona o preço do CD, logo precisa “atualizar” o preço devido ao
aumento proporcionado pela inflação. Assim, a cada novo preço, um som de máquina
registradora aparece como “pano de fundo”, para ilustrar a crítica. Um outro exemplo de
como o aspecto cultural é relevante para o reconhecimento do intertexto, bem como, a
identificação da crítica na charge, segue abaixo:
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EXEMPLO 11 – Fragmento de Sabe quando o Lula vai ganhar?
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(charges.com.br/2002)
O chargista, na apresentação da charge, pergunta ao leitor “Sabe quando o
Lula vai ganhar?”, enquanto isso, o cenário mostra um quarto com pessoas dormindo. Até
então, o leitor não sabe de quem se trata, até o despertador, ao atingir às 7 h, tocar e
Lula levantar. Mesmo o cenário estando escuro, uma forma de demonstrar que as luzes
estavam apagadas e portas e janelas fechadas para impedir a claridade, pela sombra da
personagem Lula o leitor tem condições de identificá-la através de alguns de seus
atributos físicos: orelhas salientes, abdômen acentuado etc. Em seguida, um pedaço do
teto despenca, Lula fica sem compreender, quando aparece um santo “simpático”
dançando. A intertextualidade vai ser definida a partir do momento que o leitor ativar
alguns conhecimentos relativos tanto a um comercial de venda de carros, quanto a um
velho dito, bastante difundido na sociedade brasileira. Como é muito comum, no dia de
algum santo, as pessoas pedirem algo, quando este “algo” é improvável de acontecer,
surge o velho dito que geralmente é composto por um questionamento seguido de uma
resposta, como, por exemplo: “Sabe quando você vai ganhar na loteria? No dia de São
Nunca. Esse dito é utilizado para causas impossíveis”, visto que não existe São Nunca,
ele apenas foi criado para fazer uma ironia através do advérbio “nunca”,ou seja, o pedido
nunca será realizado. Assim, um comercial de uma determinada concessionária de
veículos utilizou-se desse mote para fazer a propaganda das facilidades oferecidas pelo
estabelecimento para a compra dos veículos. Desse modo, aparece o cliente lamentando-
se, ao olhar para o carro, dizendo que só no dia de São Nunca poderá obtê-lo, daí, surge
o “São Nunca” (simpático, dançante, festeiro), para surpresa e felicidade do cliente que
consegue, com a ajuda de São Nunca, fazer com que, o que era “nunca”, se tornasse
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possível, no caso, a compra do carro. Da mesma forma, Lula depois de duas tentativas
frustradas à presidência, sente-se mais confiante, como pode ser percebido em seu
semblante ao verificar que a causa da quebra do teto de seu quarto era a descida de
“São Nunca”, sempre alegre, dançando, simpático (do mesmo modo que mostra a
propaganda televisiva).
Os recursos multimodais empregados nessa charge servirão como uma
ferramenta importante para a construção da relação intertextual, tanto pela música de
fundo que aparece com São Nunca, que é a mesma do comercial, quanto pela animação
que permite a personagem São Nunca realizar a mesma coreografia mostrada pelo São
Nunca da propaganda. Além disso, o efeito de luminosidade para contrastar o quarto
escuro, com a quebra do teto e, conseqüentemente, a entrada da luz do sol pelo teto,
serve de apoio para o desenrolar da história apresentada na charge, bem como na
aparição de alguns elementos (pijama de estrelinhas de Lula, quadro com estrelinhas),
que sinalizam para uma outra fonte intertextual: o PT (Partido dos Trabalhadores) partido
ao qual Lula é filiado e tem como símbolo uma estrela vermelha.
Os mecanismos multimodais (áudio, animação, texto verbal etc) servem de
apoio para fixar, ainda mais, as construções ideológicas provenientes da crítica abordada
nas CVs. Os discursos propagados pelas personagens são moldados com base nos
gestos, expressões faciais, objetos, cenário que complementam e (re)afirmam as práticas
sociais estabelecidas pelas estruturas sócio-políticas que compõem a sociedade. Assim,
a observância do discurso como uma prática social será o foco do capítulo que segue,
que visa o discurso numa perspectiva crítica, tendo em vista que somos concebidos com
base em nossos discursos e nos discursos da esfera social, de uma maneira geral.
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
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CAPÍTULO 2
ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO
A linguagem é o arame farpado mais poderoso para se
garantir o poder”.
Maurício Gnerre
Ao encararmos a linguagem como a prática social por excelência e,
conseqüentemente, formadora de representações e significações (Kress apud
Pedro, 1998:27), inevitavelmente estamos considerando o contexto social como
norteador das práticas discursivas sócio-histórico-culturalmente situadas,
representadas por nós, sujeitos tanto construídos por estas quanto delas
construtores. No entanto, a ênfase no social não negligencia os papéis de outros
aspectos, como o cognitivo e o psicológico, que são vistos como resultantes da
bagagem histórica de cada indivíduo. Como atores ativos, perante a sociedade,
estamos sujeitos à escolha de elementos lingüísticos que determinam as nossas
ideologias e constroem identidades e relações de poder. Diante disso, torna-se
objeto de estudo da Análise Crítica do Discurso (doravante ACD) as relações de
poder e de dominações legitimadas pelo uso da linguagem e as mudanças sociais
que esse uso pode promover. Deste modo, temos uma relação dialeticamente
estabelecida entre discurso e sociedade, em que esta molda aquele e é por ele
moldada. (Fairclough, 2001:91). Percebemos, então, que a ACD é uma disciplina
que está posicionada na interface entre os estudos sociais e os lingüísticos (estes
baseados na perspectiva funcionalista de Halliday) e que procura estabelecer um
constante diálogo entre essas duas áreas do saber.
2.1 ACD: ENFOQUE SOCIAL
Norman Fairclough, notadamente o principal analista crítico do discurso, situa
esse último termo entre as práticas sociais e, portanto, distante do caráter individual
da linguagem da perspectiva estruturalista: “ao usar o termo ‘discurso’, proponho
considerar o uso de linguagem como forma de prática social e o como atividade
individual ou reflexo de variáveis institucionais”. (Fairclough, 2001:91)
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
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52
Assim, a ACD tem como um de seus principais objetivos “mostrar como as
práticas lingüístico-discursivas estão imbricadas com as estruturas sociopolíticas,
mais abrangentes de poder e dominação” (Kress, 1990 apud Pedro, 1998: 22). As
diferenças existentes entre grupos sociais se dão pela dominação de um grupo para
outro. Exemplo claro desse tipo de dominação pode ser percebido através da
linguagem publicitária, que precisa manipular seu discurso para envolver e atingir
seu público-alvo. Esse aspecto das relações entre os sujeitos, no que diz respeito à
assimetria entre os discursos e, por conseguinte, o poder exercido de um dos
participantes sobre o(s) outro(s) é considerado como um dos critérios fundamentais
da problematização teórica da ACD e já citado por Kress (1990, apud Rezende e
Ramalho, 2006:27), do que podemos concluir que nunca paridade total entre os
indivíduos nas práticas sócio-discursivas por eles desempenhadas. Por essa razão,
a ACD tem como foco as temáticas sociais (desigualdade social, racismo, sexismo,
etc.) que mostram as relações de poder, relações sociais, construção identitária
apreendidas dos discursos.
A respeito dessa dominação, reflexo de práticas discursivas, soam de
maneira bastante produtiva as palavras de Van Dijk, segundo o qual a dominação é
“o exercício do poder social por elites, instituições ou grupos, que resulta em
desigualdade social, onde estão incluídas a desigualdade cultural e a que deriva da
diferenciação e descriminação de classe, raça, de sexo e de características étnicas”.
(Van Dijk, 1993 apud Pedro, 1998:25).
2.1.1 CONCEPÇÃO TRIDIMENSIONAL DO DISCURSO
Considerando essas práticas sociais como fundamentais no estudo do
discurso, mas sem menosprezar a importância dos aspectos lingüísticos e
interacionais, Fairclough, em sua Teoria Social do Discurso, apresenta-nos uma
perspectiva tridimensional da análise do discurso. Para esse teórico, haveria três
dimensões por meio das quais seria possível observar analiticamente as relações
estabelecidas no evento discursivo: as dimensões da prática textual, da prática
discursiva e da prática social.
O discurso enquanto prática textual está relacionado às regras de produção
do texto, à forma como ele é tecido e como sua textura é adquirida. Na análise
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
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textual, segundo o autor, são consideradas as características formais do texto e, por
isso, ela pode ser organizada em quatro itens: vocabulário, gramática, coesão e
estrutura textual (Fairclough, 2001: 103). No que diz respeito ao vocabulário, é
interessante notar que, como bem frisa Fairclough, “os significados das palavras e a
lexicalização de significados são questões que o variáveis socialmente e
socialmente contestadas, e facetas de processos sociais e culturais mais amplos”
(Fairclough, 2001: 230). Desta forma, o uso de itens lexicais tem implicações
políticas e ideológicas, e permite a construção da realidade de um modo específico.
Um exemplo de como as escolhas lexicais acentuam o caráter ideológico do
discurso, pode ser visto na charge virtual reproduzida abaixo:
EXEMPLO 12: Brasileira pobre, revoltada, canta: “Amor e Sexo”, da Rita Lee
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(www.charges.com.br/2006)
Como podemos observar, todo o discurso da charge é construído a partir de
itens lexicais que, apesar de estarem no mesmo campo semântico, veiculam valores
diferenciados, no que diz respeito ao aspecto sócio-cultural. Termos como “frouxo”,
“tarado”, “trambiqueiro” e “caloteiro” contrapondo-se aos “complacente”, “caliente”,
“negociante” e relapso”, respectivamente, traçam um perfil característico, reflexo de
uma convenção patrocinada pela sociedade, de dois grupos dicotômicos: a classe
desprovida economicamente (na charge, descrita pelo termo “pobre”) e a classe
provida economicamente (na charge, descrita pelo termo “rico”). As escolhas lexicais
mencionadas para grupo dos “pobres” atribuem a este um valor pejorativo, que
servem para demarcar a posição econômica da qual faz parte. Essas escolhas são
reafirmadas pela estrutura recorrente classe social + o verbo “ser”, em que o uso
desse verbo idéia de que cada uma das características associadas aos grupos
A CHARGE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
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são constitutivas de sua natureza, impossibilitando uma mobilidade social, ou seja,
criam uma noção estratificada de sociedade.
Vale ressaltar que as expressões valorativas destacadas por aspas, o que
nos permite pressupor que se tratam de alusões a discursos construídos
anteriormente, são reproduzidas de maneira indignada por uma integrante de um
dos grupos abordados. Alguns elementos pictóricos (fogão, batedeira, geladeira,
avental, vassoura, uniforme etc.) sinalizam para um contexto, em que o leitor através
de inferências, ativa conhecimentos, de natureza diversa, da sua memória social.
Assim, pode-se concluir que a voz enunciadora da charge é produzida por uma
integrante do grupo desfavorecido economicamente – uma empregada doméstica.
Quanto à gramática, Fairclough (2001: 104) afirma que toda oração é
resultante da combinação de significados
9
ideacionais, interpessoais (identitários e
relacionais) e textuais. Três dimensões da gramática são estudadas: transitividade,
modalidade e tema. Em relação à transitividade, é relevante o estudo, por exemplo,
das razões que motivam a escolha da voz passiva, que pode ter fins ideológicos,
como omitir o agente ou a causalidade. Quanto à modalidade, podemos analisar o
uso de alguns itens modalizadores, como verbos modais, advérbios, etc. Outro fator
importante no estudo do discurso enquanto prática textual é a coesão. Para
Fairclough, os marcadores coesivos não podem ser encarados apenas como
elementos ou propriedades objetivas dos textos, “tais conexões e inferências [que os
falantes precisam fazer para interpretá-las’] podem apoiar-se em pressupostos de
tipo ideológico”. (Fairclough, 2001:113). Por fim, temos a estrutura textual como item
importante para a análise do discurso crítica. Segundo o autor, “a estrutura textual
diz respeito à ‘arquitetura dos textos e especificamente a aspectos superiores de
planejamento de diferentes tipos de textos”. (Fairclough, 2001:106).
Essa preocupação com a análise do ponto de vista textual é resultante da
influência da Lingüística Sistêmica Funcional de Halliday, pela qual a Teoria Social
do Discurso se orienta. A respeito dessa relação entre a ACD e a lingüística
funcional, discutiremos mais adiante. O texto tem grande relevância para ACD, pois,
como pontua Magalhães (2004:2), “os textos contribuem para definir os sentidos
construídos nas práticas sociais. Mas são as práticas sociais que controlam a
9
No tópico “ACD: enfoque lingüístico”, mais adiante, abordaremos os tipos de significados, propostos
por Fairclough, decorrentes da concepção de funções lingüísticas de Halliday.
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seleção dessas possibilidades e sua manutenção ou transformação em domínios
sociais particulares, por exemplo, no domínio da medicina, da religião ou do ensino”.
A seleção de determinadas formas, portanto, não é de natureza individual ou
psicológica, mas de caráter ideológico e podem construir diversos tipos de
significados. Segundo Fairclough (2001:104), “toda oração é multifuncional”, tendo
em vista que “as pessoas fazem escolhas sobre o modelo e a estrutura de suas
orações que resultam em escolhas sobre o significado (e a construção) de
identidades sociais, relações sociais e conhecimento e crença”.
O discurso enquanto prática discursiva diz respeito à forma como os gêneros
textuais são produzidos, consumidos e distribuídos. Todo discurso se enquadra em
uma situação, em um tempo e um espaço determinado e, por esse motivo, o termo
discurso nos refere também a uma prática discursiva que permite a realização de
outras práticas sociais (julgar, classificar, informar). A cada um dos processos
discursivos estão associadas, conforme aponta Fairclough, algumas dimensões: (1)
ao processo de produção associam-se a intertextualidade manifesta e a
interdiscursividade; (2) ao de consumo, a coerência; e, finalmente, (3) à distribuição
relacionam-se as cadeias intertextuais. (Fairclough, 2001: 283).
Finalmente, o discurso como prática social se constitui em função dos
aspectos ideológicos e hegemônicos observados na instância discursiva sob análise.
Fairclough (2001, 117) entende a ideologia como as construções da realidade que
se fundamentam em diversas dimensões nas práticas discursivas. Isso quer dizer
que o uso de determinadas formas lingüísticas, o que pressupõe a escolha de uma
palavra ou estrutura em detrimento de outra, revela uma ideologia e, de certa forma,
serve para que seja estabelecida ou mantida uma forma de dominação. Tal posição
também está em sintonia com que afirma Thompson, no tocante à ideologia. Para
esse autor, uma análise da dimensão ideológica de um discurso:
dedica-se principalmente aos modos como as formas simbólicas se
interseccionam com as relações de poder. Dedica-se aos modos
como o sentido é mobilizado no mundo social e serve para nutrir
os indivíduos e grupos que ocupam posições de poder. (...) estudar
ideologia é estudar os modos em que os sentidos servem para
estabelecer e manter relações de dominação. (Thompson apud
Costa et al., 1997: 72).
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A charge abaixo é um exemplo claro de como as relações de dominação
estão presentes, na sociedade.
EXEMPLO 13 - Hino da Independência
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(www.charges.com.br/2006)
A charge reproduzida acima faz uma paródia do Hino da Indepedência do
Brasil. Alguns elementos visuais que compõem o cenário reforçam o texto verbal,
uma vez que remetem às cores que caracterizam a bandeira brasileira: azul (no
tapete), verde (no sofá) e amarelo (no pano de fundo). Além disso, uma alusão
ao formato cartográfico do Brasil, representado pelo tapete.
Tendo em vista a proximidade do período das eleições para presidente, que
ocorreu no segundo semestre de 2006, o autor da charge dialoga com o Hino da
Independência com o intuito de veicular uma crítica à situação política do país. A
partir daí, algumas questões ideológicas são postas em destaque como, por
exemplo, a dominação política em relação à população brasileira, tendo em vista que
esta o encontra alternativas para driblar as imposições as quais está submetida.
Vale salientar que a situação apresentada na CV constitui um microcosmo
(representado por uma família brasileira) de uma realidade macro a sociedade
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como um todo. Essa família, cujos componentes giram em torno da figura paterna e
a esta estão subordinados, se equipara, de certa forma, ao modelo de administração
política, em que o poder se concentra nas mãos de uma minoria que “dita” as regras.
Essa minoria vai ser demarcada pela classe política em contraposição à população
e, também, na figura da personagem Sr. Juarez, como pode ser confirmado através
de alguns aspectos textuais e culturais. Um aspecto que pode ser observado é a
maneira como o narrador se refere aos componentes da família em questão –
apenas o nome do Sr. Juarez é evocado, enquanto os demais são destacados como
assujeitados e dependentes da figura do pai – o que pode comprovar a visão
patriarcal ainda estabelecida no Brasil. Além disso, a única personagem que tem
“voz”, que dialoga com o narrador é a personagem do Sr. Juarez; os outros
componentes não passam de meros figurantes, até mesmo pelos papéis que
representam socialmente, ou seja, a mulher (submissa ao marido e não envolvida
com questões políticas), os filhos (adolescentes que fazem uso da moda
convencionada pela mídia boné, piercing etc que não tomam partido dos
acontecimentos político-sociais do país, que estes são vistos, geralmente, como
seres alienados que buscam apenas a futilidades).
Um outro ponto que merece atenção é a tomada de turno do Sr. Juarez. Com
base em nosso conhecimento cultural, podemos pressupor que o narrador iria
finalizar a paródia do Hino com uma expressão de teor pejorativo e reprovável.
Diante disso, com o intuito de poupar” os integrantes de sua família do conteúdo
dessa expressão, Sr. Juarez reafirma seu papel de “chefe da família”.
O último quadro da CV levanta um questionamento: “Independencia?”. Tal
indagação promove uma série de outras reflexões: como podemos ser
independentes se estamos a mercê dos ditames de uma minoria que detém o
poder? Como podemos ser independentes se o temos autonomia para
promovermos mudanças na estrutura da pirâmide social vigente no Brasil? Como
podemos ser independentes se os direitos e deveres pregados na Constituição não
são garantidos para toda a população?
É importante ressaltar que, permeando a afirmação de Thompson a qual
corrobora ainda mais a tese de Fairclough, a linguagem promove mudanças sociais
a partir de mudanças discursivas, o que não é considerado, por exemplo, pelos
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sociolingüistas. A ACD bem como a Lingüística Crítica, apesar de não negarem as
contribuições da Sociolingüística no que diz respeito à influência do social na
linguagem, vêem nessa vertente dos estudos lingüísticos uma falha, que não é
levada em conta a variação da sociedade em função da linguagem. A respeito dessa
discussão, Fowler and Kress, em capítulo de Language and control (1979) intitulado
Critical linguistics, sugerem que a análise lingüística, da qual são atuantes, leve em
consideração o a influência da estrutura social no uso da linguagem, mas
também a direção inversa. Segundo esses analistas críticos, em acordo com a
afirmação de Thompson acima destacada, “a linguagem serve para confirmar e
consolidar as instituições que a modelam, sendo usada para manipular os
interlocutores (...), para manter o poder das agências estatais, da sociedade e de
outras instituições”. (Fowler et al., 1979:190, tradução nossa).
Ainda na discussão acerca das relações entre ideologia e discurso, é
relevante mencionar a visão de Van Dijk a respeito. Segundo esse analista crítico do
discurso, que enfatiza o papel da cognição na relação entre discurso e produção de
poder e dominação, “as ideologias são modelos conceptuais básicos de cognição
social, partilhados por membros de grupos sociais. (...) Para além da função social
que desempenham ao defender os interesses dos grupos, as ideologias têm a
função cognitiva de organizar as representações sociais (atitudes, conhecimentos)
do grupo, orientando assim, indirectamente, as práticas sociais relativas ao grupo”.
(Van Dijk, 1997: 107-108). Diante dessas funções das ideologias, Van Dijk
(1997:107-110) apresenta sete hipóteses consideradas na sua abordagem da
ideologia: (1) “as ideologias são cognitivas”; (2) as ideologias são sociais”; (3) “as
ideologias são sociocognitivas”; (4) “as ideologias não são ‘verdadeiras’ ou ‘falsas’”;
(5) as ideologias podem ter vários graus de complexidade”; (6) “as ideologias têm
manifestações que variam de acordo com o contexto”; e, finalmente, (7) “as
ideologias são gerais e abstratas”. Para esse autor, é preciso pormenorizar as
relações entre a ideologia, o discurso e as práticas sociais, visando a suprir as
deficiências de outras abordagens formais.
Algumas dessas abordagens tomam a ideologia como constitutiva do texto,
afirmam que as ideologias estão no texto. Diante disso, Fairclough, mesmo não
negando que os textos, de certa forma, apresentem as ideologias dos atores/grupos
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sociais, levanta uma questão relevante: as ideologias estão no texto ou no evento
em que elas perpassam? Esse autor advoga a favor da concepção que considera
que “a ideologia está localizada tanto nas estruturas (isto é, ordens do discurso) que
constituem o resultado de eventos passados como nas condições para os eventos
atuais e nos próprios eventos quando reproduzem e transformam as estruturas
condicionadoras”. (Fairclough, 2001: 119). Essa afirmação se deve pela razão de os
textos estarem sujeitos a interpretações dos vários atores sociais que, por sua vez,
estão ideologicamente marcados. Assim, as ideologias podem variar de acordo com
os eventos sociais, dos quais os textos são apenas momentos. Notemos que essa
idéia está em sintonia com a sexta hipótese considerada por Van Dijk (as ideologias
têm manifestações que variam de acordo com o contexto), anteriormente citada.
Vale a pena ressaltar que, apesar de os sujeitos estarem posicionados
ideologicamente, estes podem agir criativamente e “reestruturar suas práticas e as
estruturas posicionadoras”, nas palavras de Fairclough. Segundo ele, à medida que
os seres humanos são capazes de transcender tais sociedades [caracterizadas por
relações de dominação com base na classe], são capazes de transcender a
ideologia”. (Fairclough, 2001:121, grifo nosso). Fairclough ainda levanta uma outra
questão quanto aos sentidos do texto: os sentidos das palavras são ideológicos?
Segundo o autor, outros aspectos semânticos devem ser levados em conta, como as
pressuposições, as metáforas e a coerência, para a constituição ideológica dos
sujeitos. (Fairclough, 2001:119).
O outro conceito bastante importante na análise do discurso enquanto prática
social é o de hegemonia, que foi proposto por Gramsci, em ocasião de sua análise
do capitalismo ocidental e da estratégia revolucionária da Europa Ocidental.
Retomando e atualizando o conceito de Gramsci, Fairclough afirma que a
hegemonia se caracteriza pelo donio econômico, político, cultural e ideológico
exercido pelo poder de um grupo social sobre os demais (Fairclough, 2001: 122).
Vale salientar que esse domínio de uma classe, aliado a outras forças sociais,
“nunca [é] atingido senão parcial e temporariamente, como um ‘equilíbrio instável’”.
(Fairclough, 2001:122, grifo nosso). Segundo Fairclough (1997: 81), esse equilíbrio
pode perder-se devido ao fato de, a partir da luta hegemônica, haver uma
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“desnaturalização de convenções existentes e sua substituição por outras”.
(Fairclough, 1997: 80).
Diante do quadro teórico traçado por Gramsci, Fairclough (1997) se propõe a
observar como se dá a relação entre discurso e hegemonia, e, para tanto, destaca
duas possíveis relações entre estes. Para o analista crítico do discurso, a prática e a
luta hegemônica assumem, comumente, a forma de prática discursiva na interação
verbal. Assim, o conjunto de convenções discursivas existente na sociedade, que se
relaciona a certas ideologias, pode ser modificada e transformada em senso comum.
Desta forma, as ideologias que a ele se associam também são alteradas.
Percebemos, então, o quanto estão inter-relacionadas a ideologia e a hegemonia, na
medida que esta permite que sejam perpetuadas e (re)produzidas dimensões
ideológicas. Conseqüentemente, a luta hegemônica se constitui pela
(re)estruturação de novas práticas, no lugar das que foram desnaturalizadas.
Quanto a outra relação entre discurso e hegemonia estabelecida por
Fairclough, temos o discurso como o próprio lugar hegemônico. No entanto, a
hegemonia na esfera do discurso, de um grupo sobre a sociedade ou sobre parte
dela, se por uma relação de dependência em que o domínio é fruto da habilidade
em “moldar” práticas discursivas. Segundo Gramsci (apud Fairclough, 1997:81), é
nesta área que se observa a relação entre hegemonia e as diversas variantes
lingüísticas e a conseqüente eleição de uma delas como padrão.
Para Fairclough, as duas relações entre discurso e hegemonia apresentadas
devem ser analisadas conjuntamente, visto que o nas práticas discursivas
concretas “que o produzidas, reproduzidas, questionadas e transformadas as
estruturações hegemônicas de ordens do discurso” (Fairclough, 1997:82).
Segundo Pedro (1997:29), o próprio termo hegemonia pressupõe que uma
análise crítica do discurso e da dominação não é simples, levando em consideração
que muitas formas de domínio que estão imbricados nas interações social e
discursiva.
Sinteticamente, então, podemos representar o modelo tridimensional do
discurso, proposto por Fairclough, bem como as categorias analíticas para cada uma
das dimensões, da seguinte maneira:
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PRÁTICA SOCIAL
Ideologia
Hegemonia
(sentidos, pressuposições, metáforas)
(orientações econômicas, políticas, culturais, Ideológicas)
PRÁTICA DISCURSIVA
Produção
Consumo
Distribuição
(intertextualidade manifesta e interdiscursividade)
(coerência)
(cadeias inertextuais)
TEXTO
Vocabulário
Coesão
Gramática
Estrutura Textual
Diante dessa forma tridimensional de encarar o discurso, Fairclough propõe a
análise, como foi dito, das relações de poder advindas do uso da linguagem. No
entanto, vale salientar, não se tratar de uma visão determinista. Segundo Pennycook
(apud Pedro, 1997:37), é demasiado determinista e reducionista a posição de
Fairclough, quando este afirma que as desigualdades sócio-econômicas são
advindas das relações de poder que, por sua vez, são fruto das práticas discursivas
e sociais dos sujeitos. Para Pedro (1997: 37), entretanto, as preocupações de
Pennycook são infundadas, uma vez que, mesmo diante de outros fatores para a
desigualdade, é fato que uma hierarquia entre classes e sujeitos que são
decisivas para o exercício do poder. (Pedro, 1997:37). Ainda segundo a autora, não
se pode reduzir o projeto teórico e analítico da ACD a esse fator, já que esta
considera os processos de interação discursiva.
Fairclough, como principal representante da ACD, encara dialeticamente a
relação entre discurso e sociedade e, a partir dessa relação, afirma ser possível
promover a mudança social. Para isso, o autor leva em consideração, dentre outros
Figura 1 – Concepção Tridimensional do discurso
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fatores, os processos e estruturas sociais que proporcionam a construção dos
sentidos na interação verbal. Tendo em vista os sentidos produzidos nas práticas
discursivas, trataremos a seguir da operacionalização de três significados, propostos
por Fairclough, a partir das funções de Halliday.
2.2 ACD: ENFOQUE LINGÜÍSTICO
Como foi mencionado anteriormente, a ACD se orienta pela perspectiva
funcional de Halliday e pela Lingüística Sistêmica Funcional (doravante LSF), da
qual é representante. Assim como a ACD, a LSF considera a influência do contexto
sócio-histórico-cultural dos participantes da interação verbal na construção dos
significados do texto.
Wodak (2004), em artigo que traça um panorama geral dos desenvolvimentos
da análise crítica, afirma que alguns críticos focalizam em suas análises, aspectos
textuais, contextuais, microlinguísticos, etc. dos textos, mas em qualquer um desses
estudos referências à gramática sistêmica funcional de Halliday. Por isso, ainda
segundo a autora, “compreender as premissas básicas da gramática hallidayana e
sua abordagem à análise lingüística é essencial para uma compreensão mais ampla
da ACD”. Na LSF, é investigado o uso efetivo da linguagem em relação à atividade
social e são considerados o texto, o contexto e a linguagem. Para Halliday (apud
Resende e Ramalho, 2006:57), é fundamental para a organização dos usos da
linguagem, e não apenas uma forma de distinção, a variação funcional. Segundo
esse lingüista crítico, três macrofunções (ou metafunções) atuantes no texto: a
função ideacional, a função interpessoal e a função textual.
A função ideacional da linguagem diz respeito aos significados relacionados à
nossa experiência, enquanto sujeitos sócio-historicamente situados. Essa função
expressa o significado da experiência cognitiva e lógica do discurso. São as
representações simbólicas da realidade, do mundo que nos cerca. A função
interpessoal corresponde a uma forma de ão, considerando sua função no
processo de interação social. Essa função está sempre presente, que representa
a interação dos sujeitos do discurso. A terceira função proposta por Halliday, a
textual, diz respeito aos “aspectos semânticos, gramaticais, estruturais, que devem
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70
ser analisados no texto com vistas ao fator funcional”. (Resende e Ramalho,
2006:57).
Fairclough, tendo em vista seus propósitos analíticos, recontextualiza a LSF e
utiliza-se das macrofunções de Halliday, propondo algumas alterações. Fairclough
mantém a função ideacional, mas divide a função interpessoal em duas outras
funções: a função identitária e a função relacional. A primeira “relaciona-se aos
modos pelos quais as identidades sociais são estabelecidas no discurso” e a
segunda diz respeito a como as relações sociais entre os participantes do discurso
são representadas e negociadas”. (Fairclough, 2001:92). Segundo o autor (2001:
209), uma tendência em focalizar a expressão em detrimento da identidade nas
funções da linguagem, como é o caso dos estudos de Jakobson
10
. Para Fairclough,
quando se tem a construção do “eu” como centro da análise, a função da identidade
passa a ter grande importância. Por isso, o autor divide a função interpessoal de
Halliday, que, ao focalizar a expressão, a função da identidade estava sendo
menosprezada.
Quanto à função textual proposta por Halliday, Fairclough, em estudo mais
recente, Analysing Discourse (2003), prefere integrá-la ao significado acional em vez
de considerá-la separadamente (apesar de tê-la incorporada, em Discurso e
mudança social): “não distingo uma função ‘textual’ separada, ao contrário, eu a
incorporo à ação”.(Fairclough, 2003 apud Resende e Ramalho).
Para Fairclough (apud Resende e Ramalho, 2003), o discurso enquanto parte
constitutiva das práticas sociais pode figurar como um modo de agir, um modo de
representar e um modo de ser, e a cada um desses modos associa um tipo de
significado. Ao modo de agir, Fairclough relaciona o significado acional, em que os
textos são produtos da (inter)ação do sujeitos e de suas práticas. Desta forma, os
gêneros correspondem a modos de agir discursivamente, e o discurso é visto como,
primeiramente, lugar de ação: “[os gêneros são] o aspecto especificamente
discursivo de maneira de ação e interação no decorrer de eventos sociais”.
(Fairclough, 2003 apud Resende e Ramalho, 2006:62). Esse significado
corresponde à fusão das funções textual e relacional. Ao modo de representar,
10
Jakobson propõe, como uma das funções da linguagem, a função emotiva ou expressiva, que “visa
à expressão direta da atitude do falante em relação àquilo que ele está falando”. (Jakobson, 1961:354
apud Fairclough, 2001:209).
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71
segundo o autor, corresponde o significado representacional, em o que o discurso se
pela representação do mundo material, pelas várias perspectivas deste,
resultantes das relações que as pessoas estabelecem com ele e entre si. Esse
significado corresponde à função ideacional, proposta por Halliday e mantida por
Fairclough, em Discurso e Mudança Social. Finalmente, ao modo de ser, temos o
significado identificacional, em que o discurso se constitui pela construção de
identidades sociais, que permitem a identificação dos atores socais em textos, a
identificação do estilo. O significado identificacional corresponde, na nova
perspectiva de Fairclough, à antes função identitária, uma das duas funções
estabelecidas por Fairclough (2001) e proveniente da função interpessoal de
Halliday.
Como podemos perceber, Fairclough (apud Resende e Ramalho, 2003)
estabelece uma correspondência entre os significados acional, representacional e
identificacional e os gêneros, discursos e estilos, respectivamente. Considerando
que estes últimos, de certa forma, conectam o texto a outros elementos da esfera
social, podemos afirmar que uma análise crítica do discurso deve levar em conta as
diversas realizações lingüísticas a que os sujeitos recorrem em suas práticas
discursivas e sociais, a inter-relação dos três significados e a maneira como os
gêneros, discursos e estilos são utilizados na articulação do texto. Um exemplo de
como essa articulação entre os elementos citados anteriormente são concretizados
pode ser observada na charge a seguir.
EXEMPLO 14 – Garoto brasileiro canta: HINO NACIONAL
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Tomando como ponto de partida o Hino Nacional do Brasil, a charge
contrapõe dois períodos sócio-historicamente distintos: o contexto de produção do
Hino que reflete uma exaltação da pátria, própria de um país que estava até então
sob domínio de uma outra nação e, portanto, precisava valorizar suas qualidades e
feitos heróicos, bem como a expectativa de um futuro promissor e o contexto de
leitura atual que, pela distância cronológica e, conseqüentemente, pela mudança
do contexto histórico, altera o caráter original do hino, já que hoje, diante da situação
sociopolítica do nosso país, percebemos uma insatisfação por parte da população
como um todo. O texto-fonte é caracterizado, no que diz respeito às estruturas
lingüísticas, por uma linguagem mais grandiloqüente e por construções sintáticas
marcadas pela forma indireta, como podemos perceber no hipérbato inicial
(“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heróico o brado
retumbante”). o texto parodiado, se constitui por uma linguagem simples, é
predominantemente construído na ordem direta, não há uma preocupação com a
norma padrão (“tu já é”, “os mano”) e se utiliza de gírias (“maneiraço”, “bonito
pacas”, “pra burro”). O fato de a personagem se predispor a “traduzir” o Hino
Nacional “pra todo mundo entender” alude à parcela da população que “sabe” sua
letra, mas na maioria das vezes não reconhece alguns termos que são empregados
na sua superfície lingüística e, por conseguinte, não compreende a idéia que
perpassa em sua letra. Vale ressaltar que, mesmo quando os leitores reconhecem
as palavras presentes no Hino, ainda sentem dificuldade na leitura deste, em virtude
da forma como os enunciados estão articulados.
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77
Depois de “traduzido” o Hino, a personagem se preocupa, frente a uma
provável descrença do público que assiste a sua apresentação
11
, em se eximir da
responsabilidade no que diz respeito ao conteúdo do texto, agora bem mais claro
para os expectadores. Estes, por sua vez, numa perspectiva mais ampla, representa
o povo brasileiro em geral. Essa possível descrença, surgida por meio da
compreensão da informação antes velada, é fruto de questionamentos acerca de
alguns dos nossos sentimentos nacionalistas: - Cadê o futuro? Cadê a igualdade?
Até quando teremos que ter esperança?
Mesmo recontextualizando a LSF, Fairclough mantém o princípio do
pensamento de Halliday. O esquema abaixo representa o desenvolvimento dessa
perspectiva:
Halliday, 1991
Fairclough, 1992
Fairclough, 2003
Função
Idea cional
LSF
(Halliday, 1991)
Função
Identiria
Função
Interpessoal
Funçã o
Relacional
Significado
Identifica cional
Significado
Representacional
Significado
Acional
Funçã o
Textual
Como podemos perceber, é de fundamental importância a contribuição de
Halliday quanto às funções da linguagem. Fairclough as recontextualiza e propõe,
como instumentos analíticos do discurso necessários, no que diz respeito aos
aspectos lingüísticos, dos três significados acima mencionados. Entretanto, é
importante frisar que não se justifica uma análise crítica do discurso considerando
11
O cenário que compõe a CV é semelhante a de um palco, visto que o piso, pela cor marrom,
lembra um tablado de madeira e atrás da personagem uma cortina, representando a bandeira do
Brasil, colocada para compor o ambiente da apresentação, provavelmente, realizada em uma escola,
para homenagear o dia da Independência do país.
Esquema 1 – Multifuncionalidade da linguagem (da LSF até a ACD)
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isoladamente os aspectos lingüísticos, nem tampouco apenas os aspectos sociais.
No entanto, esses aspectos foram, nesse capítulo, expostos separadamente, tendo
em vista fins didáticos, uma vez que é nosso intuito tornar mais claras algumas das
principais discussões da ACD, que fundamentam nosso trabalho. Então,
considerando essas discussões aqui mencionadas e a importância das estruturas
lingüísticas na construção das identidades sociais, trataremos a seguir dos
estereótipos sociais cristalizados cultural e historicamente que estão presentes nos
discursos que permeiam a sociedade e, conseqüentemente, nas CVs, tendo em
vista que estas se constituem como uma representação da sociedade.
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CAPÍTULO 3
OS ESTEREÓTIPOS SOCIAIS: INSTRUMENTO PARA A CONSTRUÇÃO DE
IDENTIDADES
IDENTIDADE
Que povo eu sou
que senta comigo no sofá
e que assiste a TV embasbacado?
Que povo eu sou
se não sou um
mas muitos nós?
Que povo eu sou
que vai à missa
e pede perdão e pede clemência
e salvação pelos erros
que cometem conosco comigo?
Que povo eu sou
incompleto e perdido?
Que povo eu sou
que vivo olhando
para o meu próprio umbigo
e não me encontro em mim
mesmo nos outros eus?
Que povo eu sou
se não sou eu?
Hideraldo Montenegro
O poema de Hideraldo Montenegro reflete algumas das várias facetas
realizadas por nós ao constituir nossa identidade, identidade esta construída através
dos vários “eus” que habitam em cada indivíduo e se manifesta através dos papéis
que desempenhamos no cotidiano. O poeta ao questionar “Que povo eu sou?”
revela a inexatidão identitária inerente a cada ser humano. Temos um “povo” dentro
de nós, que mostra a nossa identidade cultural (língua, costumes, crenças, valores
éticos e morais etc), que nos permite viver em sociedade e realizarmos nossos
papéis sociais. A inexatidão está justamente nas modificações constantes dos
papéis sociais que desempenhamos ou deixamos de desempenhar, porque vivemos
numa constante “mutação” que é gerada por diversos fatores. Dentre eles, as fases
da vida (infância, adolescência, maturidade, velhice etc); pois, em cada uma dessas
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fases, desempenhamos papéis diferentes que são estabelecidos pelas nossas
relações sociais (família, escola, amigos) e que afetam diretamente a nossa forma
de agir e pensar. Bauman (2004: 54-55) compara a nossa identidade com um
quebra-cabeça. No jogo, através da conexão das peças disponíveis, é possível a
visualização final da imagem. Já no quebra-cabeça identidade, a imagem final nunca
pode ser concluída, pois, apesar de conseguirmos encaixar algumas peças que a
compõe, muitas destas passam por mudanças, são trocadas e/ou descartadas ao
longo de nossa vida. Nossa identidade está sempre em construção. O autor afirma
que
as pessoas em busca de identidade se vêem invariavelmente diante
da tarefa intimadora de “alcançar o impossível”: essa expressão
genérica implica, como se sabe, tarefas que não podem ser
realizadas no tempo real”, mas que serão presumivelmente
realizadas na plenitude do tempo na infinitude... (Bauman, 2004:
16-17)
Paralelamente aos nossos papéis sociais, estão os estereótipos sociais que
interferem diretamente nas ações que praticamos, pois através delas somos
incorporados e/ou submetidos a determinados grupos, com base em características
típicas e delimitadoras que, inevitavelmente, servirão de base para compor a nossa
identidade. São essas características que fornecem “dados” para distinguir, por
exemplo, os integrantes das classes que compõem a pirâmide social: classe baixa,
classe média e classe alta. Desse modo, verificamos o quanto os estereótipos estão
vinculados a dominação e ao poder convencionados pela estrutura social a que
pertencemos.
3.1 OS ESTEREÓTIPOS SOCIAIS
Durante muito tempo, na tentativa de uma definição ao termo estereótipo,
várias noções foram atribuídas. Pereira (2002:43-45) define estereótipo em dois
planos: o etimológico e o histórico. O primeiro está relacionado a duas palavras
gregas, stereos, que significa rígido e túpos, que significa traço. O segundo diz
respeito à psiquiatria do século XX, que se utilizava da palavra estereotipia no
diagnóstico de pacientes que sofriam de dementia praecox, que consiste na
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81
repetição freqüente e mecânica de gestos, postura ou fala. Ainda no plano histórico,
a palavra estereótipo está relacionada a um aparelho tipográfico, que produzia uma
mesma impressão milhares de vezes. No entanto, o autor afirma que tais definições
são genéricas e nos apresenta outras definições. Uma, dentre muitas, revela que os
estereótipos eram concebidos como fotografias, visto que estavam diretamente
ligados às impressões imediatas objetivas e, a partir delas, eram arquivadas na
memória. A partir daí, no ano de 1933, os pesquisadores Katz e Braly fizeram uma
pesquisa que consistiu no levantamento de uma série de características listadas por
cem alunos da Universidade de Princeton, que estabeleciam traços constitutivos
para representar dez grupos éticos. Os pesquisadores constataram que a atribuição
de características estava relaciona ao compartilhamento das opiniões sociais.
Pereira (2002:45) menciona que ainda hoje presenciamos o compartilhamento
das crenças, ou seja, opiniões sociais e apresenta a definição dada para
estereótipos com base nas teorias atuais. Assim os estereótipos são tidos como
“crenças sobre atributos típicos de um grupo, que contêm informações não apenas
sobre estes atributos, como também sobre o grau com que tais atributos são
compartilhados”.
Orlandi (2004) faz distinção entre as expressões clichê, poncif, lugar comum,
idéias recebidas e estereótipos, concebendo este último como derivado de processo
de categorização e de generalização. Dessa forma, o estereótipo simplifica o real,
favorecendo uma visão esquemática, própria aos preconceitos. A autora afirma que
apesar do termo estereótipo está ligado à noção de preconceito, inexatidão, crença
geral, ele vai trazer também a idéia de estabilidade e através dessa noção
ambivalente, podemos partir para a reflexão da relação do indivíduo com o outro e
consigo mesmo, dos grupos com seus membros etc.
Além dessas definições, Pereira (2002:46) distingue estereótipos e processos
de estereotipização, com base nos autores Leyens, Yzerbt e Schadron que
concebem os estereótipos como
crenças compartilhadas sobre os atributos pessoais, especialmente
traços de personalidade, como também sobre os comportamentos de
um grupo de pessoas, enquanto definiram a estereotipização como
processo de aplicar um julgamento estereotipado a um indivíduo de
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82
forma a representá-lo como portador de traços intercambiáveis com
outros membros de uma mesma categoria. (PEREIRA, 2002:46)
Assim, fica claro que o conceito de estereótipos está diretamente relacionado
à forma como a sociedade, de uma maneira geral, concebe, compartilha e julga
determinados grupos sociais.
3.2 OS ESTEREÓTIPOS SOCIAIS E A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA
Os estereótipos sociais por trazerem uma concepção cristalizada socialmente
a respeito de indivíduos e grupos de indivíduos, conseqüentemente, estão presentes
nos discursos discriminatórios e preconceituosos convencionados pela sociedade.
Dessa forma, são um forte aliado para a construção identitária do ponto de vista
social, pois, estamos sempre julgando e sendo julgados pela visão de outros.
Mesmo quando não nos vemos da forma como a sociedade nos julga, não
escapamos dessa “visão” global, por ser esta mais sólida, que um grupo social
tem mais poder que apenas um indivíduo.
Pereira alega que os estereótipos servem como bases para o preconceito e a
discriminação. Primeiro o autor pontua a diferença entre os termos preconceito e
discriminação, sendo esta manifestada nas circunstâncias em que ocorre um
tratamento injusto em relação a alguma pessoa exclusivamente em decorrência da
afiliação da pessoa objeto desse tratamento”. (Pereira, 2002:88). Além disso, o autor
explica que existem várias formas de discriminação que podem ser exibidas através
de um contínuo marcado por graus de intensidade crescente, variando entre a
rejeição verbal (comentários ácidos, anedotas, insultos verbais, entre outros) e a
interdição que se dá através do ato de impedir o acesso ou o contato de pessoas do
grupo que são alvos da discriminação.
O preconceito, no entanto, “retira o seu poder e a sua força de um conjunto de
idéias extremamente genéricas sobre os grupos externos”. (Pereira, 2002:88).
Partindo dessa distinção, o autor afirma que os estereótipos se manifestam nos
preconceitos e na discriminação, principalmente no que se refere aos meios de
comunicação de massa, visto que esses contribuem para o desenvolvimento de
crenças estereotipadas compartilhadas pelo coletivo. Pereira (2005) discute a forma
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como recebemos os fatos ocorrentes no mundo e como eles são relatados pelos
meios de comunicação, afirmando ser tais relatos imbuídos de valores e estereótipos
resultantes da cultura e das versões de quem os divulga. Assim, esses relatos
selecionam fatos e pessoas tendo como base critérios pessoais, técnico-
profissionais, de interesse do poder dominante, entre outros. Desse modo, a autora
mostra que recebermos um mundo editado, um mundo composto por informações e
imagens que contribuem para a formação da nossa visão de mundo.
A identidade de um indivíduo também é definida por normas estruturadas
pelas instituições e organizações da sociedade. Castells (2002) explica que os
indivíduos possuem identidades múltiplas e essa pluralidade vai servir como “fonte
de tensão e contradição tanto na auto-representação quanto na ação social”. Em
seguida, o autor afirma que existe uma diferença entre identidades e o que os
sociólogos chamam de papéis sociais, sendo as identidades constituídas por “fontes
de significado para os próprios atores, por eles originadas, e construídas por um
processo de individuação”, e que, mesmo sendo constituídas por instituições
dominantes, terão legitimidade se os atores sociais internalizarem as identidades
promovidas pelas mesmas. (Castells, 2002: 22). Porém, convém mencionar que
mesmo quando tais identidades não são internalizadas pelos indivíduos, a sua
construção identitária se faz também a partir de um órgão mais “poderoso”: a
sociedade. O mesmo autor, em seguida, afirma que não é difícil concordar que toda
e qualquer identidade é construída, mas que, para tanto, deve-se levar em
consideração a partir de quê, por quem, e para que isso acontece; já que a
construção de identidades “vale-se da matéria-prima fornecida pela história,
geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e
por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso”.
Ao mencionar que a construção de identidades ocorre em contextos marcados
por relações de poder, Castells (2002:24) apresenta três formas de construção de
identidades:
Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da
sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos
atores sociais.
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Identidade de resistência: criada por atores que se encontram em
posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da
dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com
base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade,
ou mesmo opostos a estes últimos.
Identidade de projeto: quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer
tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade
capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a
transformação de toda a estrutura social. Esse é o caso, por exemplo, do
feminismo que abandona as trincheiras da resistência da identidade e dos
direitos da mulher para fazer frente ao patriarcalismo, à família patriarcal e,
assim, a toda estrutura de produção, reprodução, sexualidade e
personalidade sobre a qual as sociedades historicamente se estabeleceram.
Embora muitos grupos sociais tenham alcançado conquistas essenciais para a
sua autonomia quanto grupo, como pontua Castells (2002), ao se referir às
mulheres, cujos direitos antes eram muito mais resumidos; ainda uma
perpetuação de alguns estereótipos no que diz respeito ao comportamento feminino.
Hoje, como bem explicita Moita Lopes (2003), as mulheres competem com os
homens no mercado de trabalho, porém, ainda assim, existe a concepção de que
“lugar de mulher é na cozinha”, ou então, esta será vista apenas do ponto de vista
sexual (símbolo sexual), visão esta bastante propagada pela mídia; entre muitas
outras características impregnadas culturalmente e socialmente atribuídas a elas
como, por exemplo, sendo inferiores aos homens; se loiras, dotadas de pouca
inteligência; mulher não sabe dirigir etc.
Tal fato não acontece apenas com as mulheres, mas com qualquer grupo de
indivíduos que traga consigo marcas identificatórias cristalizadas de alguma forma
pela sociedade como mostra Signorini (1998) ao exemplificar a surpresa
demonstrada por uma dona de casa escolarizada de classe média, ao ouvir pela
televisão um líder regional do Movimento dos Sem-Terra, louro de olhos claros, que
respondia sem tropeços às perguntas que lhe foram feitas. A autora segue
explicando que esta surpresa se deu por ter sido realçado a não congruência do tipo
mostrado em relação aos padrões identificatórios construídos para a categoria e
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85
conseqüente suspeita de falta de legitimidade de sua posição de representante e de
falta de validade de suas ações. Dessa maneira, podemos observar o quanto os
estereótipos sociais influenciam na construção de identidades por parte da
sociedade.
Pereira (2002:107), ao mencionar a teoria das identidades sociais, explana o
compartilhamento das normas como um processo social que leva a uma
conformidade às normas sociais; portanto, tal teoria está diretamente relacionada ao
fato de “categorizar as pessoas, definindo-as como membros de uma dada
categoria, aprender as normas estereotipadas aplicáveis àquela categoria e
assimilar e aplicar as normas a si mesmo e aos outros”.
Nossa identidade é convencionada pelo nosso “eu”, pelos outros “eus” que
habitam em nós e pelos “eus” exteriores que, de alguma forma, exercem poder
sobre nós. Vale ressaltar as palavras de Davis e Harré (1999:46), citadas por Dutra
(2002): “[...] quem uma pessoa é, é sempre uma pergunta aberta com uma resposta
mutável dependendo das posições disponíveis a elas dentro de suas práticas
discursivas e das práticas discursivas dos outros”. A seguir, analisaremos, com
base na ACD, algumas CVs para mostrar como esse gênero utiliza-se de
estereótipos para construir identidades que viabilizam a crítica social, por meio do
humor.
EXEMPLO 15 – 2006, um brasileiro no espaço
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(www.charges.com.br/2006)
Percebemos, na charge em questão, uma crítica a duas classes sociais
brasileiras: a classe política e a classe média. Além dessas duas, a charge também
critica um pequeno grupo de pessoas (Big Brothers) cujos membros, por sua vez,
podem estar inseridos nas duas classes anteriores – tendo em vista que para
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ingressar na carreira política não é exigida “uma formação profissional” - ou apenas
na segunda (classe média). Para tanto, o chargista aproveita um fato que foi de
grande repercussão na mídia durante toda a semana, no caso, a ida do primeiro
astronauta brasileiro ao espaço, e cria um diálogo imaginário entre os astronautas
brasileiro e russo. Este último é evidenciado pelo sotaque carregado de “erres”, que
serve para demarcar sua nacionalidade.
Para compreender a crítica e, conseqüentemente, o humor da charge, o leitor
precisa estar ciente do fato noticioso, bem como dos acontecimentos políticos e das
programações televisivas, neste caso específico, o Big Brother Brasil. A partir daí, o
autor constrói a identidade desses grupos através de estereótipos convencionados
socialmente, que, conforme explicita Pereira (2002), os estereótipos, a medida
que são utilizados pelos indivíduos para lidar com um ambiente social heterogêneo,
passam a ser vistos como processos comuns e deixam, dessa forma, de serem
vistos como generalizações indevidas.
É quase impossível, que em um mundo tão diversificado social e
culturalmente, não fossem estabelecidos rótulos para determinados grupos sociais,
bem como é fato que tais rótulos são empregados por grupos que detêm um maior
poder diante da hierarquia social ou grupos que não se identificam com outros
grupos. Tajfel (apud Pereira, 2002), tomando como base a noção de categorização
estabelecida por Allport (apud Pereira, 2002), sistematizou estratégias para
diferenciar o próprio grupo (nós; o endogrupo; o ingroup) dos grupos externos (eles;
o exogrupo; o outgroup). Basicamente, tal teoria relata que as pessoas pertencentes
a um determinado grupo têm a tendência de favorecer o próprio grupo, bem como
rejeitar os demais.
Desse modo, a charge acima põe em destaque alguns “pontos de vista”
convencionados pela sociedade, atribuidores de características para os grupos de
políticos, ex-Big Brothers e classe média, fazendo com que a identidade de tais
grupos seja moldada e estabelecida socialmente através do compartilhamento de
estereótipos e das relações de poder que determinados grupos sociais exercem
sobre outros, como, por exemplo, a mídia, grande propagadora de conceitos pré-
estabelecidos. Assim, concepções estigmatizadas como a de que “todo político é
ladrão, corrupto e enganador” vai ser ainda mais reforçado pela mídia, que se
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aproveita da crise política vivenciada pelo governo Lula e seus “seguidores”, para
aumentar seu ibope.
A charge exibida, por ser um gênero midiático, também tira proveito de tal fato
para ridicularizar os grupos “alvos”. Isto pode ser visto de forma bem demarcada
através da expressão “lixo espacial”, para se referir a tais classes. Vale mencionar,
que de forma sutil, o chargista traça o perfil dos políticos com a crise vivenciada por
cada um no governo Lula (final de 2005/ início de 2006), como podemos ver através
das comparações por ele feitas (Palloci cada vez mais ameaçado; Dirceu esse
coitado, fazendo de tudo pra voltar), o que evidencia uma característica bastante
forte da charge: a efemeridade, pois é preciso o leitor estar por dentro do contexto
sócio-histórico propagado na charge, para compreender a crítica nela contida.
Além da classe dos políticos, dois outros grupos são destacados: os ex-Big
Brothers e a classe média. Do mesmo modo que a classe política, os ex-Big
Brothers também o identificados através de traços estereotipados: pessoas que
querem ascender a uma carreira artística, porém, são desprovidos de talentos;
dotados de pouca cultura; fúteis etc, como mostra o trecho da charge que os
compara com “estrelas de pouco brilho, de vida curta e que após três meses (a
duração do programa exibido na TV) se apaga”. Tais características são reforçadas,
pelo fato de o programa ter tido seis exibições e, apenas uma pequena parcela ter
conseguido “brilhar” um pouco mais, ou seja, ter alcançado um espaço na mídia.
No tocante a classe média, esta, que já teve seus “dias de glória”, hoje,
encontra-se a mercê pela falta de emprego, pela grande competitividade no mercado
de trabalho, e pela desigualdade social, geradora de violência. Dessa forma, o
chargista de maneira crítica e fazendo uso de um humor sarcástico, afirma que “esta
foi para o espaço muito tempo”, mostrando o descrédito que a classe vem
sofrendo. Também, os representantes desta classe são mostrados, em sua maioria,
com trajes cor de rosa, em se tratando do público feminino, representando, de certa
forma, a burguesia; visto que para esta cor é atribuída a idéia do termo “patricinha”,
que indica que mulheres que se vestem de “rosa” são mais consumistas, andam
sempre com as roupas combinando com os acessórios (como é evidenciado na CV
em questão, visto que os sapatos das personagens femininas são rosas assim como
suas vestes).
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Vale ressaltar, que alguns termos apresentados na charge, também servem
para mostrar atributos depreciativos dos grupos sociais em questão, como, na
expressão “chuva de ex-Big Brothers”, em que o chargista evidencia a grande
quantidade de participantes do programa que foram esquecidos e estão “por aí”,
sem fama e no anonimato. na frase “o presidente Lula manda um companheiro
pro espaço”, além de mostrar um termo característico do discurso de Lula ao se
referir aos partidários do PT e àqueles que o apóiam, de uma maneira geral, o autor
alude aos políticos que tiveram seus cargos cassados; também mostra, nas
entrelinhas, a falta de sinceridade na relação entre os “companheiros”, que visam
ao poder. Fairclough (2001) atenta para o fato de o discurso ser moldado pela
ideologia, bem como seus efeitos construtivos sobre as identidades sociais, relações
sociais.
Pereira (2005) faz uma reflexão sobre a forma como recebemos os fatos
ocorrentes no mundo e como eles são relatados pelos meios de comunicação,
afirmando ser tais relatos “impregnados de valores e estereótipos resultantes da
cultura e das versões de quem os propaga. Relatos que selecionam fatos e pessoas
com base em critérios pessoais, técnico-profissionais, de interesse do poder
dominante e outros mais”. Desse modo, segue abaixo um exemplo de CV que traz
como temática a “profissão” de ambulante e, como essa profissão se constitui.
EXEMPLO 16 – Camelô canta: “Radio pirata”
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(www.charges.com.br/2002)
No primeiro quadro, tem-se o título da charge e, em seguida, o autor faz um
breve comentário acerca do assunto que a charge trata (venda de cd’s pirata) e
deixa claro aos leitores a sua não aceitação em relação à pirataria. Ainda no primeiro
quadro, verifica-se um ícone (Play) no qual é necessário que o leitor clique para dar
início a charge. A partir daí, iniciam-se os episódios da (CV), que faz uma crítica bem
humorada à pirataria, utilizando a paródia da música “Rádio Pirata” do grupo de rock
nacional RPM.
O autor faz uso de algumas características para retratar um vendedor
ambulante, ou, como ele mesmo classifica, um “camelô”; dentre as quais estão o uso
de um brinco, óculos escuro (já que a maioria dos ambulantes trabalham expostos
ao sol), camiseta (comprovando o despojamento em relação ao local de trabalho,
pois não exigência do uso de um fardamento para o exercício desse tipo de
profissão), e, por último, uma característica bastante relevante: a ausência de um
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dente. Esta última, ao contrário das anteriores, não servirá apenas para marcar a
identidade de um vendedor ambulante, mas também para indicar a classe social a
que ele pertence, bem como o seu grau de instrução; pois parece haver uma maior
incidência de desdentados nas pessoas de baixa renda e de pouca instrução; além
disso, o gênero, por trabalhar com caricatura, sugere este tipo de leitura. Hoffnagel
(1999) mostra que a identidade de um indivíduo particular será composta por
múltiplos elementos ou atributos que emergem na interação social e que este
indivíduo pode agir atribuindo maior ênfase por ser jovem, ou por ser feminino ou
ainda por pertencer à classe média e assim por diante. Tais características são
fundamentais para exibir o estereótipo (do ponto de vista social) de um vendedor
ambulante, que, assim como postula Vilela (2002) estereótipo está relacionado à
noção de imagem e representação, à conceito e categorização, a preconceito, juízo
e pré-juízo.
Além das características que estão estereotipadas na fisionomia da
personagem, o discurso empregado pelo “camelô” revela alguns elementos do ponto
de vista lingüístico em que se pode atribuir marcas identificadoras para construção
de identidade. Por exemplo, a utilização de uma linguagem com gírias próprias de
um determinado grupo (“os home”) para se referir a outro grupo, no caso, os
policiais. Fairclough (2001) diz que a prática discursiva contribui para reproduzir a
sociedade (identidades sociais, relações sociais, sistemas de conhecimento e
crença) como ela é, mas também para transformá-la. Ou seja, ao fazer uso de tais
expressões, a personagem explicita sua profissão, porém, em um outro contexto,
outras expressões poderiam ser utilizadas mostrando outras características que
definissem outro papel social exercido por ela na sociedade.
De acordo com Gee
(2001: 99)
todo discurso provém de alguém que tem suas marcas
identitárias específicas que o localizam na vida social e que o
posicionam no discurso de um modo singular assim como seus
interlocutores. Dessa forma, “quando qualquer ser humano age e
interage em um dado contexto, outros reconhecem aquela pessoa
como agindo e interagindo como um ‘certo tipo de pessoa’ ou mesmo
como diversos ‘tipos’ diferentes ao mesmo tempo.
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Vale ressaltar que os desvios lingüísticos encontrados na charge, que
transgridem com as prescrições estabelecidas pela norma de prestígio (“susseços”,
“asseito xeque”, “bão”, “os home”) servem ainda mais para sinalizar a identidade da
personagem: pouco letrado do ponto de vista lingüístico, negociador etc. Dutra
(2003:217) ao tratar dos pressupostos teóricos de Kleiman, revela o quanto as
práticas de letramento estão envolvidas na construção de identidades e afirma que
Práticas de letramento seriam, desse modo, práticas sociais
marcadas social e culturalmente, nas quais a leitura e a escrita se
constituem como formas de construir “conceitos, relações sociais,
identidades, valores e crença. Nessas práticas, portanto, as pessoas
constroem e reconstroem a si próprias e aos outros. Desse modo, a
leitura é então compreendida também a partir de uma perspectiva
social e como constitutiva de relações de identidades sociais.
Outra característica do ponto de vista lingüístico também sinalizadora de
traços identitários está nos termos e nas expressões utilizadas pela personagem,
como “a capinha é impressa de um lado”, “no disco eu escrevo o nome do
cantor”, “caneta de retroprojetor”, “a gravadora quer que a polícia me prenda”, “não
diz que eu sou pirata”, “cd genérico” etc., que são próprias da função por ela
exercida: vendedor de cd’s piratas. Dubar (2005) aponta para o fato de cada
indivíduo ser identificado por outrem, e, para tanto, esta identificação ise utilizar
de categorias socialmente disponíveis (designações oficiais de Estado,
denominações étnicas, regionais, profissionais etc.). Segue abaixo um exemplo de
como a identificação, por parte do outro, muda a concepção de indivíduo, ou seja, a
sua construção identittária, a partir de sua identidade de gênero.
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EXEMPLO 17
Gata Turbinada
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(www.charges.com.br/2006)
A charge mostra duas personagens que são constantes na produção do
chargista (Espinha e Fimose). Elas representam o universo dos adolescentes, assim,
geralmente, o desenrolar de suas histórias terá como cenário boates, mulheres,
computadores, carros, outros adolescentes etc. Nesse exemplo, o diálogo entre as
personagens se em uma boate, fato que pode ser inferido como base em alguns
elementos não-verbais formadores desse contexto, como várias pessoas,
provavelmente dançando; canhões de luzes, de vários tipo e cores; bebida alcoólica,
etc.
A caracterização das personagens adolescentes inicia-se por seus apelidos
(Espinha e Fimose), visto que, em algumas pessoas, na puberdade, é comum o
aparecimento de acne; e, em se tratando do sexo masculino, muitos jovens
necessitam realizar um procedimento cirúrgico, chamado fimose. Além de seus
apelidos, as vestes (boné, camiseta, touca) e a utilização de algumas expressões
“demais, né?”; “pagando mico”; “a mina”; “turbinada”; “e aí?” utilizadas pelas
personagens, servem como construtos da identidade dos adolescentes da
atualidade, tendo em vista que as expressões, as vestes, os costumes variam a
cada geração. Portinari e Coutinho (2006) concebem a moda como uma linguagem
que é cuidadosamente construída e que não se limita apenas no vestuário e
acessórios, mas abrange todo o corpo: anatomia, gestos, voz, entonação, olhar,
postura, andar, cabelos e tudo que compõem a imagem pessoal. No caso específico
das personagens Espinha e Fimose, o visual por elas adotado revela um certo
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“despojamento”, através de acessórios básicos que norteiam o universo “masculino”
adolescente, tendo em vista que o chargista atribui a essas personagens, apesar de
toda a “inocência” que permeia suas mentes adolescentes, traços “viris”. As
personagens estão sempre à procura de uma relação afetiva com o sexo oposto, o
que, geralmente, tem um desfecho desagradável, pois as mesmas além de
possuírem um físico que foge da estrutura convencionada pelos parâmetros de
beleza impostos pela mídia, possuem poucos dotes intelectuais e um baixo poder
aquisitivo, características fundamentais, na visão propagada pelas CVs, para o
despertar do interesse do público feminino em relação ao sexo oposto. Nolasco
(2001:78) mostra que a representação masculina de “ser homem” é marcada por
intermédio de indicadores de desempenho que remetem à força sica, sexualidade
incontrolada, homofobia, sucesso financeiro e prestígio social e que tais indicadores
conferem identidade aos indivíduos.
A crítica abordada na charge pode ser percebida em três momentos: o
primeiro está relacionado à diferença de estatura entre a personagem Fimose e sua
“pretendente”, visto que esta é mais alta que ele e desperta na personagem Espinha
um certo estranhamento, que pode ser comprovado em sua fala: “- pagando
mico! A mina é bem mais alta que você!”. A expressão “pagar mico”, bastante
utilizada nos discurso dos adolescentes pode ser interpretada como “passar por um
vexame”, passar vergonha”. Provavelmente, na concepção de Espinha, que talvez
não seja tão diferente da de seu amigo Fimose, o homem precisa ser mais alto que a
mulher, até como forma de demonstrar uma maior “virilidade”, poder”, “domínio”; no
entanto, como é muito difícil para ambos conseguirem se relacionar com alguém do
sexo oposto, Fimose repreende Espinha: “- Olha o preconceito!”. Goldenberg (2006:
27-28) revela que boa parte das pessoas do sexo masculino, com uma maior
incidência entre os adolescentes, tem uma preocupação extrema com o tamanho do
pênis, a altura, a força sica e o desempenho sexual, como forma de demarcar a
virilidade tão cobrada pela sociedade ao sexo masculino. Tais preocupações, muitas
vezes, acarretam para esses indivíduos danos físicos e psicológicos, já que muitos,
para alcançarem o tão sonhado “porte físico”, fazem uso de anabolizantes bovinos
para que o corpo cresça e fique robusto.
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104
Vale ressaltar, que a aceitação da diferença de estatura aceita por Fimose,
se devido à “mulher” ser dotada de atributos físicos designados como “ideais”
para o universo feminino, no que diz respeito aos meios midiáticos: seios volumosos,
cabelos lisos, quadris largos, cintura fina, magra, roupas da “moda” (calça de cós
baixo - que deixa a mostra sua barriga em forma, mini-blusa), acessórios que
demarcam sua feminilidade (piercing no umbigo, pulseiras, maquilagem) etc. Além
disso, o “ser homem” convencionado pela estrutura patriarcal vigente na sociedade,
exige do sexo masculino, uma postura “diferente” da exigida às mulheres. Agir como
“homem”, para muitos, está diretamente relacionado a obter o maior número de
relações sexuais com mulheres que estejam “disponíveis”, ou seja, como é difundido
culturalmente, “mulheres fáceis”, visto que, no caso das mulheres, quanto maior for o
número de parceiros, confere a estas o estereótipo de “mulher da vida”. Bamberg
(2002: 160-174) avaliou uma entrevista realizada entre um moderador (adulto) e
cinco adolescentes com idade de 15 anos. O ápice da discussão se deu em torno de
uma garota que havia tido sua primeira relação sexual e, segundo os entrevistados,
tinha ido para “cama” com vários meninos. Segundo os adolescentes, a garota
tinha o intuito de “chamar a atenção”, ou melhor, eles afirmam que ela necessitava
de atenção e que não ligava para a forma como era (pré)concebida pelos demais
colegas, no caso, “puta”. Para os garotos, não cabe a uma menina/mulher manter
relações sexuais com vários meninos/homens. Essa concepção, por mais que as
mulheres tentem quebrá-la, pois é fato que na luta por igualdade de direitos, o
público feminino adquiriu grandes avanços em relação a sua emancipação sexual,
faz parte de um trajeto histórico e socialmente construído que, para “ser uma boa
mulher”, esta precisa ser submissa, fiel, casta (se possível), viver em função da
família (marido, filhos e casa) etc.
O segundo momento, em que a crítica se faz presente, diz respeito aos
padrões de beleza física imposto para a mulher da atualidade. Hoje, a mulher
precisa ser bela, mesmo que essa beleza” seja artificial. Porém, o padrão ideal de
beleza difundido pela imprensa, requer um corpo longilíneo, com curvas bem
definidas, seios fartos, que realcem as vestes assinadas pelos estilistas famosos,
porque para ser “bela”, é preciso, antes de tudo, de uma boa renda, para gastar em
salões de beleza, clínicas de estética, cirurgias plásticas, academias de ginástica e
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105
roupas e acessórios de grife. Leite (1995:79) afirma que esse novo padrão de beleza
é divulgado pelos meios de comunicação, por questões econômicas – comprar
“beleza” é algo bastante rentável. O autor faz uma crítica em relação à escravidão a
qual o ser humano tem sido sujeito na atualidade, em que nos tornamos escravos de
nosso corpo, tendo em vista que, na grande maioria das vezes, o que gastamos
para alcançarmos a tão sonhada “beleza” física tem como retorno o fracasso e,
conseqüentemente, a perda de mais dinheiro, pois os produtos cosméticos não
evitam o envelhecimento, tendo em vista que boa parte das pessoas que se
submetem a regimes e cirurgias de emagrecimento voltam a engordar etc. A charge
explicita que a beleza artificial almejada pelas mulheres é, de fato, tão artificial, que
até alguém do sexo masculino consegue obter esse padrão.
O terceiro ponto em que culmina a crítica aborda o homossexualismo. Apesar
dos grupos homossexuais terem ganhado espaço social, através de lutas travadas
com o preconceito estabelecido pela sociedade, ainda hoje, sofrem grandes
preconceitos. Castells (2002: 238) afirma que “o patriarcalismo exige
heterossexualidade compulsória”. A repressão ao homossexualismo foi e ainda é
seletivo aos olhos da sociedade, que tem, como norma fundante pelo patriarcalismo,
um ideal de vida que gira em torno da família, cabendo para aqueles que sentem
desejo por alguém do mesmo sexo, “os becos escuros da sociedade”. (Castells
2002:239). De acordo com Foucault (Foucault, 2002 apud Castells), “a sexualidade
é construída socialmente. A regulamentação do desejo está subordinada às
instituições sociais, canalizando assim a transgressão e organizando a dominação”.
A personagem Fimose, ao perceber que a bela mulher” estava interessada por ele,
fica exultante pela fartura dos seios que se dispunham em frente aos seus olhos.
Quando a “garota” afirma que os seios não são naturais, mas foram “turbinados”
com silicone, Fimose se mostra “compreensivo” e diz não ter nenhum preconceito
com quem muda algo no corpo devido a alguma insatisfação. Porém, quando,
finalmente, ele consegue conquistar o seu alvo, que o beija e o deixa literalmente
“babando”, toda a magia que o embriagava se desconstrói através da descoberta de
que a “bela mulher” que acabara de beijá-lo, na verdade, era um antigo conhecido
que havia estudado com ele na série do primário. Desse modo, Fimose passa a
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sentir-se enojado e, imediatamente, começa a cuspir, o que demonstra sua
indignação, em forma de “nojo”, por ter beijado alguém do mesmo sexo.
O preconceito em relação aos homossexuais será reforçado no final da
charge através da afirmação irônica que seu amigo Espinha relata: “- Olha o
preconceito!”, expressão utilizada por Fimose no início da charge, quando o seu
amigo mostra discordância em ter um envolvimento com uma mulher que possua
uma maior estatura. Castells (2002:56) alerta para o fato de os movimentos lesbiano
e gay não serem
simples movimentos em defesa do direito humano básico de escolher
a quem amar. São também expressões poderosas de identidade
sexual e, portanto, de liberação sexual. Esses movimentos desafiam
algumas das estruturas milenares sobre as quais as sociedades
foram historicamente construídas: repressão sexual e
heterossexualidade compulsória.
Dessa forma, movimentos como lesbiano e gay, negros, feminista etc., vêm
como forma de romper convenções cristalizadas na estrutura social. No tocante
às mulheres, apesar de terem conquistado um patamar mais elevado diante da
hierarquia social, antes, merecida aos homens, ainda são apresentadas nas
CVs com imagens estereotipadas que propagam uma visão reducionista do ser
mulher: donas de casa, mães, , símbolo sexual se novas como ilustram os
exemplos abaixo:
EXEMPLO 18 Fragmento de “Brasileira go-go-girl nos EUA: ‘Xibom
Bobom’”
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(www.charges.com.br/2002)
Na charge em questão, a mulher brasileira, mesmo tendo um curso superior,
ganha seu sustento através da exibição de seu corpo. O autor não explicita se a
personagem é apenas uma dançarina de uma casa noturna destinada ao público
masculino ou, se, além disso, ela também se relaciona intimamente com o público
freqüentador do estabelecimento. As características físicas mais marcantes da
personagem estão na largura de seu quadril, no tamanho de suas nádegas e em sua
cintura extremamente fina, o que evidencia ainda mais a largura de seu quadril.
Podemos dizer, que tais características são postas em destaque por dois motivos: o
primeiro, pelo perfil da mulher brasileira, visto que esta é conhecida por ter nádegas
fartas e o segundo, por ser uma mulher que tem como profissão dançar nua na
noite, para atrair a atenção dos homens, que, por sua vez, procuram esse tipo de
“lazer”, para satisfazer seu apetite voyeur. Giddens (2002: 95) afirma ser o corpo um
objeto no qual temos, ou não, o privilégio de nele viver, pois é através de nosso
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corpo que temos as sensações de bem-estar, de prazer, de doenças e de tensões.
O pesquisador acrescenta, ainda, que
o corpo não é só uma entidade física que “possuímos”, é um sistema
da ação, um modo de práxis, e sua imersão prática nas interações da
vida cotidiana é uma parte essencial da manutenção de um sentido
coerente de auto-identidade.
A charge também aponta para um outro fato social importante, que atinge não
o público feminino, mas a população "jovem" de uma maneira geral: a busca de
oportunidades de emprego em países estrangeiros. Esse fato é evidenciado pela
crise econômica em que se encontra o Brasil. Muitos jovens, mesmo depois de
conquistarem o rmino de um curso superior, não conseguem emprego ou por falta
de experiência ou por não terem um poderoso "conhecido" que possa dar uma
"mãozinha" ou pela grande competitividade que ocasiona a escassez de vagas
empregatícias. Vale lembrar, que, mesmo aqueles que alcançam um espaço no
mercado de trabalho, às vezes, o salário que ganham, tendo como parâmetro o
tempo de dedicação aos estudos, bem como as horas que despendem em seus
empregos, mal para conseguirem sobreviver numa sociedade altamente
capitalista e consumista. Desse modo, muitos buscam como solução morar fora do
país (mesmo clandestinamente e subempregados), para conseguirem, ao menos,
juntar algum dinheiro, que, a moeda estrangeira, dependendo do país, é mais
forte que a brasileira, e conquistar algum bem material (apartamento, casa, veículo
etc).
No que diz respeito ao público feminino, as CVs pouco divulgam a mulher no
mercado de trabalho e, quando isso acontece, boa parte mostra a mulher inserida na
profissão de professora, talvez, por ser uma profissão que remeta à maternidade,
tendo em vista que, principalmente na atualidade, a escola é a extensão do lar e
cabe ao professor ser, antes de tudo, um educador. Poucas CVs destacam os vários
papéis sociais vivenciados pelas mulheres e, quando isso ocorre, é para render
homenagens ao “Dia Internacional das Mulheres”, como mostra o exemplo que
segue:
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EXEMPLO 19 – Novos tempos
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(www.charges.com.br/2006)
O exemplo 15 retrata a mulher "moderna", isto é, a mulher que estuda,
trabalha, se sustenta, exerce cargos de chefia (antes destinados apenas aos
homens), comanda o lar, ler jornal e, ainda por cima, não tem medo de barata! A
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personagem masculina que verifica tais constatações através de indicadores
percentuais de um jornal, se frustrada, "impotente" diante da esposa, que não
precisa dele nem para executar uma barata (inseto causador de pânico para muitas
mulheres). Fugisawa (2006: 48) aponta para o fato de as mulheres de hoje
buscarem por uma maior escolaridade, profissionalização, conhecimento,
informação e equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal. No entanto, o
chargista só destaca o perfil da mulher versátil, para prestar uma homenagem ao dia
consagrado para as mulheres, como podemos ver nos dois últimos quadros da
charge.
Em se tratando dos atributos sicos femininos, o chargista, geralmente, utiliza
o seguinte critério: mulheres jovens possuem seios fartos e empinados, cintura fina,
roupas sensuais etc. Porém, se a mulher for representada como "dona de casa",
casada, mais velha, suas vestes são mais recatadas, compostas; os seios não tão
empinados e a silhueta mais volumosa, como mostram os fragmentos das CVs a
seguir:
EXEMPLO 20 – Fragmento de De olho na aula
(www.charges.com.br/2006)
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EXEMPLO 21 – Fragmento de Conflito de Gerações
(www.charges.com.br/2006)
EXEMPLO 22 – Fragmento de Mães cantam: “Tema da Vitória da F1”
(www.charges.com.br/2003)
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Os exemplos acima revelam o quanto a visão difundida das mulheres, nas
CVs, é reducionista. Mulheres “fisicamente atraentes são, provavelmente jovens,
solteiras e sem filhos. Giddens (2002:62) afirma que “em todas as culturas, a roupa é
muito mais que um simples meio de proteção do corpo é manifestamente um meio
de exibição simbólica, um modo de forma exterior às narrativas de auto-identidade”.
Dessa forma, a utilização de roupas “ousadas” não cabe para as mais velhas, que
são retratadas com dotes físicos menos “atraentes”. Um outro exemplo que mostra o
quanto a nossa roupa revela a nossa identidade é exibido abaixo:
EXEMPLO 23 – Breve numa escola em Sampa...
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(www.charges.com.br/2006)
Este exemplo nos revela o quanto os atributos sicos, a aparência dos
indivíduos, são determinantes para inclusão/exclusão destes, no âmbito social. O
fato de a rede municipal de ensino "doar" o fardamento às crianças através da
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119
"ajuda" de patrocinadores e, conseqüentemente, desses patrocínios, terem suas
logomarcas estampadas nos fardamentos, expõe os alunos à condição de "folders",
"panfletos", "outdoors" ambulantes. Assim, a condição de "meio físico divulgador"
das marcas patrocinadoras da qual os usuários do fardamento estão sujeitos, faz
destes "modelos", que precisam "adequar" a sua aparência aos produtos que estão
sendo por eles divulgados. Vivemos em mundo de "aparências". Esse "modo" de
vida vem sendo o grande responsável pela "escravidão" narcisista à qual estamos
condenados. A obsessão por um "corpo perfeito" tem levado muitas mulheres a
ficarem doentes, sofrendo de bulimia, anorexia, depressão etc. Giddens (2002:12-
13) revela-nos que a modernidade da mesma forma que propiciou um mundo
unificado, global - apesar de contraditório - também nos proporcionou um mundo,
fragmentado, disperso, um mundo que produz diferença, exclusão e marginalização.
Quem não tem a "beleza" convencionada pelos meios de comunicação vive
à
margem da sociedade: obesos, feios, deficientes, pobres etc. Ainda hoje, a
aparência serve como pré-requisito para a obtenção de um espaço no mercado de
trabalho, basta passarmos um dia no Shopping de alguma cidade brasileira, para
percebermos o perfil da grande maioria dos funcionários dos estabelecimentos de
venda (jovens, bem vestidos), afinal, para lidar com o público é preciso, antes de
tudo, ter uma "boa" imagem. A imagem diz tudo.
Coelho (2002:69-70) explana que "objetos podem identificar indivíduos,
grupos sociais e culturas. Para tanto, constituem-se em suportes ou unidades
textuais". Dessa forma, os objetos refletem o seu possuidor a partir "dos sentidos
levantados pela semântica do objeto". Assim, a charge (des)associa a imagem das
personagens aos produtos que estas estão divulgando. A professora, ou melhor, a
"tia" , como ela mesma se denomina, revela um discurso excludente. Seus alunos,
Maiquecléverson, Suzileide e Reginosvaldo, que ganharam o uniforme que contém
as marcas do sabão Momo (Omo), dos comprimidos para emagrecer Track 500
(Tack 500) e do Ruíndows (Windows), respectivamente, precisam devolver os
uniformes, pois seus "perfis" não correspondem aos produtos que estão divulgando.
Maiqueclevérson (sabão Momo) vive sujinho, Suzileide (comprimidos para
emagrecer Track 500) engordou 10 quilos e Reginosvaldo (Ruíndows) cheira cola e,
portanto, vive travado. Interessante é a forma como o discurso desta última
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personagem é construído. Na verdade, Reginosvaldo é o único que tem o perfil de
seu produto (RuíndowslWindows). O chargista, através do trocadilho feito com o
nome "Ruíndows", para se referir ao programa de computação "Windows", faz uma
crítica ao produto através da personagem Reginosvaldo. As personagens
Maiquecléverson e Suzileide, apesar do constrangimento promovido pela professora,
nada dizem quando a docente anuncia que eles precisam devolver o uniforme,
assim, a única coisa que fazem é chorar, tendo em vista que, a grande maioria das
crianças que estudam na rede municipal de ensino, pertencem a classe
economicamente desprovida e não têm condições de comprar roupas para irem
à
escola. Porém, no momento em que a professora questiona Reginosvaldo pelo fato
deste cheirar cola e, por conseguinte, "viver travado", o garoto diz: "- Tudo a ver!",
afinal o Ruíndows também "vive travando".
A crítica que permeia a personagem Claudijeferson possui um teor muito
forte. A professora pede para ele um pouco mais de paciência, visto que, não foi
possível conseguir ainda um fardamento para o educando. A charge termina com um
questionamento de Claudijeferson: "- Por que, tia?", que não obtém resposta
alguma, pois, sua imagem, por si só, é a resposta. Como um deficiente físico
pode "servir" para divulgar algum produto?
Além do fato de estudarem em uma escola blica, os nomes atribuídos às
personagens sinalizam, também, para a situação sócio-econômica das quais fazem
parte. É muito comum ouvirmos discursos imbuídos de preconceitos em relação aos
menos afortunados no tocante à escolha de seus nomes. Os indivíduos
"economicamente fortes" divertem-se através de comentários sobre os nomes que
as famílias carentes, do ponto de vista econômico, dão aos seus filhos. A diversão
consiste na forma como esses nomes são criados, alguns através da mistura dos
nomes dos pais, como, por exemplo, "Reginosvaldo", que podemos supor que se
trata da mescla dos nomes "Regina" e "Osvaldo”; outros por tentarem utilizar nomes
estrangeiros, em sua maioria, relacionados com a língua inglesa, por acharem
"diferente", "mais elegante", etc. Assim, Maurício Ricardo aproveita desse mote para
identificar a classe social das personagens em questão. O cenário da escola é outro
ponto que merece destaque para a construção sócio-econômica de seus
freqüentadores. A mesa da professora está com uma parte da madeira retirada, o
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quadro verde remete a um quadro a giz e na parede que fica situada atrás da
docente, perfurações provenientes, possivelmente, de três balas deixadas como
resultado de alguma briga de facções criminosas que moram na comunidade da qual
escola faz parte.
Um outro ponto que merece atenção são as cores que compõem as vestes da
personagem Claudijeferson: verde, amarelo, azul e branco, ou seja, as cores da
bandeira do Brasil. O leitor precisa estar muito atento, para perceber que esse
detalhe foi utilizado propositadamente o Brasil é um país de exclusão, o Brasil é
um país ”deficiente”. Esse quase “imperceptível” detalhe constrói a identidade do
Brasil e, conseqüentemente, de seu povo, pois, como afirmou o antigo ministro e
pensador francês Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), "a grandeza de um país não
depende da extensão de seu território, mas do caráter do seu povo”.
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os gêneros textuais, de uma maneira geral, demarcam nosso contexto sócio-
cultural, pois é por meio deles que realizamos nossas ações sociais e os adaptamos
a nossa realidade. Em se tratando da CV, que tem por finalidade difundir crítica e
humor, essas adaptações são bastante evidentes pela forma como ela é propagada
(Internet), pois a tecnologia, com seus recursos de áudio, animação, efeitos de cores
e luz proporcionou uma outra possibilidade de construção crítica através da charge.
Os mecanismos multimodais oferecidos nas CVs, além de manterem uma relação de
apoio com texto verbal, para a produtividade das informações disponibilizadas,
servem de sinalizadores para a construção intertextual inerente ao gênero, de modo
que estes são fundamentais para a relação semântica da crítica e de seus
elementos intertextuais.
Além disso, os componentes visuais fornecidos pela seqüência de quadros
em conjunto com o discurso verbalizado servem de base para a construção, embora
reducionista, das identidades das personagens e, conseqüentemente, da sociedade,
tendo em vista que as temáticas abordadas nas CVs possuem um caráter social.
Nolasco (2001:152) afirma que
as identidades se fazem por meio dos diferentes papéis sociais,
presentes em tais metadiscursos, que perpassam os percursos
socializantes, de modo que a cada passagem ou transição vivida
pelo sujeito encontramos um sentimento de identidade associado a
um deles.
Os discursos propagados nas CVs criam um ambiente propício para a
construção de identidades através da utilização de traços estereotipados que são
vinculados às personagens. As escolhas lingüísticas atribuídas pelo autor às
personagens, bem como as escolhas dos diversos meios (animação dança,
gestos, expressões faciais -, cores, roupas, acessórios etc) que complementam o
texto verbal, são regidas com base nas idéias “cristalizadoras” vigentes em nossas
práticas sociais, pois, inevitavelmente, estamos expostos a constantes rotulações
por parte da sociedade. Consoante Kleiman (2001), a prática discursiva é
constitutiva tanto de maneira convencional como criativa, pois contribui para
reproduzir a sociedade através de identidades sociais, relações sociais, sistemas de
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conhecimento e crença, bem como contribui para transformá-la.
Os estereótipos sociais se propagam e tornam-se formas fixas estabelecidas
no convívio social, de forma que a ruptura desses estereótipos, dependendo do
contexto em que estão inseridos; e, neste caso, em especial, na charge virtual,
causam a não-aceitação por parte da sociedade/leitores, ou, no mínimo,
estranhamento; pois se a charge mostrasse um perfil diferente dos grupos que por
ela são convencionados (político - corrupto; loira - dotada de pouca inteligência etc),
o gênero não atingiria um de seus maiores propósitos: o humor.
Dessa forma, a caracterização dos estereótipos, como postula Pereira
(2002:50-52) vai ser estabelecida a partir de diferentes tipos de contextos; de sua
natureza consensual; de "uma certa homogeneidade na atribuição de características
aos alvos dos estereótipos" e de seus elementos descritivos e avaliativos, tendo em
vista que além da descrição de traços e comportamentos dos grupos sociais, são
postos em destaque, também, seus atributos positivos e negativos. Assim, os
estereótipos "são considerados como estruturas que podem ser representadas
dentro das mentes individuais", e "podem ser amplamente compartilhados pelas
pessoas que convivem no interior de uma mesma cultura".
As CVs são de grande fecundidade para a análise de identidades, que se
utilizam de estereótipos e do humor, como bem pontua Possenti (1998) ao revelar-
nos o potencial das piadas
12
no que se refere ao trabalho com discursos que operam
com representações grosseiras, estereotipadas e de nelas veicularem um discurso
proibido, subterrâneo, não oficial, discurso este não mencionado, talvez, em outros
gêneros.
12
Neste caso, vale lembrar que o termo piada não está sendo utilizado como sinônimo de gênero,
mas sim de texto humorístico.
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