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Ângela Thalassa
Correio Paulistano:
O primeiro diário de São Paulo e a cobertura da
Semana de Arte Moderna
- O jornal que “não ladra, não cacareja e não morde” -
Mestrado em Comunicação e Semiótica
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a
obtenção do título de MESTRE EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA, na
Área de Concentração Signo e Significação nas Mídias, Linha de
Pesquisa Epistemologia da Comunicação e Semiótica das Mediações,
sob a orientação do Profº Dr. Norval Baitello Júnior.
PUC
São Paulo
2007
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Livros Grátis
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Milhares de livros grátis para download.
Profº Dr. Norval Baitello Júnior (Orientador)
Profº Dr. Antonio Adami
Profº Dr. Luciano Guimarães
A
Marcelino “Pão e Vinho”, maninho,
p
rimeiro exemplo de amor às Ciências
H
umanas, à Música e a outras Artes.
Quanta saudade!
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A
Dóris Luiza Thalassa Soliman, filhinha. De
surpresa, ela se aproximava trazendo nas
mãozinhas suco geladinho e sanduíche com
o melhor queijo quente do Brasil. Pelo
carinho nas longas horas de estudo, por
compreender minhas ausências, amparar o
choro, dar beijinhos de ânimo, reclamar e
dividir sua especial infância com esta minha
p
e
q
uena aventura de dois anos.
Agradecimentos
Jornalista e Ms. Geraldo Rodrigues, intelectual e amigo, por despertar meu
interesse pelo Correio Paulistano, pelos livros com os quais surgia de repente.
Profª Drª Eliana Vianna Brito, querida professora dos tempos colegiais que,
num reencontro vinte anos depois, simplesmente disse todas as palavras que eu
precisava ouvir.
Profº Dr. Norval Baitello Júnior, orientador desta pesquisa, transmissor de um
poderoso vírus: ter carinho para com os nossos alunos, conhecer-lhes o nome, as
dificuldades, as qualidades...
Professores Drs. Antonio Adami e Luciano Guimarães, pelo interesse no
processo qualificatório, pela participação na Banca Examinadora.
Profº Dr. Eugênio Trivinho, meu primeiro professor no Programa de Pós-
Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC/São Paulo: exemplo de ética,
disciplina e dedicação, lançador de faíscas.
CNPQ, pelo financiamento desta pesquisa.
Profª Marli Reis, pela leitura, pelas palavras de incentivo.
Profª Conceição Ribeiro, amiga, pela leitura, pelas conversas, pelo incentivo.
Profº Milton Bueno e Cristina, pela militância ética, pelos livros emprestados.
Sandra, irmã caçula, pelos socorros, pelas pacientes impressões e
reimpressões.
Regina Borges, amiga e cabeleireira, por acreditar em mim e, claro, pelo
penteado prometido para o dia do exame... Cabelos sãos, mente sã!
Fabiano Spada, pela diagramação.
Meu carinho a todos e a todas!
Correio Paulistano: o primeiro diário de São Paulo e a cobertura da Semana de Arte
Moderna - O jornal que “não ladra, não cacareja e não morde”-
O presente trabalho busca compreender o jornal Correio Paulistano (1854-1963) –
primeiro diário de São Paulo e o terceiro do Brasil – e sua relação com o movimento
modernista, demonstrada pela comparação entre as matérias publicadas por ele e pela
concorrência. Os jornais eleitos para análise são, além do Correio Paulistano, o Estadão, o
Jornal do Commércio, a A Gazeta e a Folha da Noite (posteriormente, Folha de São Paulo).
As matérias escolhidas são as que retratam a cobertura da Semana de Arte Moderna, que
provam que o Correio Paulistano foi o único a dar cobertura favorável ao evento,
reconhecendo o vanguardismo do movimento modernista e contrariando a elite e a imprensa
da época, que os consideraram “subversores da arte”, “espíritos cretinos e débeis” ou
“futuristas endiabrados”. Apesar disso, nesta época, o jornal era representante do Partido
Republicano Paulista, dirigido e sustentado por aristocratas, tradicionalistas e passadistas.
A descoberta da presença marcante de Menotti del Picchia na redação - ou Helios
como costumava assinar a coluna Chronica Social, palco da prática de seu jornalismo
literário e convincente - foi fundamental para compreendermos as diferenças gritantes na
tônica da cobertura da Semana de 22, que pode ser apontada como um dos casos
polêmicos que não recebeu tratamento maniqueísta por uma imprensa que historicamente
se fecha em pool. Esse conflito só foi possível graças à postura do Correio Paulistano.
Nascido sob a monarquia, republicano por convicção, ora liberal ora conservador,
rebelou-se contra forças políticas influentes e posicionou-se contra Vargas, sendo por ele
empastelado por vários anos. O apoio ao movimento modernista representa uma rebeldia a
mais na tumultuada vida do “conservador” Correio Paulistano. Sombra e reflexo de
importantes transformações políticas e sociais que culminaram na sociedade e na imprensa
de hoje, o objeto é tratado como parte do resgate da memória histórica do nosso jornalismo.
Como ferramenta para este estudo foi fundamental o concurso de autores como
Nelson Werneck Sodré, Juarez Bahia, Paulo Duarte, Alberto de Souza (imprensa); Mário da
Silva Brito, Francisco Alambert e Charles Harrison (Modernismo); José Maria Bello, Lilia
Schwarcz e Leonardo Trevisan (História). Na formação do senso crítico quanto aos
processos comunicacionais que transparece ao longo do trabalho, apontamos os autores
Paul Virilio, Eugênio Trivinho, Krishan Kumar, Harry Pross, James Hillmann, Edgar Morin,
Vilém Flusser, Jean Baudrillard, Boris Cyrulnik e Norval Baitello. Quanto à metodologia
foram aplicados os métodos histórico e comparativo – o primeiro, permitindo a reconstrução
histórica do cotidiano do jornal; o segundo, possibilitando a verificação das diferenças entre
as coberturas jornalísticas à época da Semana de Arte Moderna.
Palavras-chaves: Correio Paulistano, história da imprensa paulista, Modernismo, Semana de
Arte Moderna, Menotti del Picchia.
Correio Paulistano: the first newspaper of São Paulo
and the coverage of Modern Art Week
– the newspaper that “doesn’t bark, doesn’t clucking and doesn’t bite” -
The current research looking for to comprehend Correio Paulistano newspaper (1854-1963) –
first daily of São Paulo and third in Brazil – and its relation with modernist movement showed by the
comparison between their articles published and other published by their competing newspapers.
Correio Paulistano and other newspapers were chosen for such analysis as O Estadão, Jornal do
Commércio, A Gazeta and Folha da Noite (currently Folha de São Paulo). The chosen articles could
prove that Correio Paulistano was the unique one that gave favorable coverage to the event
recognizing the avant-garde of modernist movement and went against to the elite and the press at that
time which considered the movement as “subversives of art” and “silly and cretin spirits” or “devilish
futurists”. Besides at that time Correio Paulistano was the newspaper of representative of São Paulo
Republican Party which was directed and financed by aristocracy and traditionalist and nostalgic
people.
The discovering of Menotti Del Picchia outstanding presence in editorial staff – or Helios as he
used to sign the principal article entitle Chronica Social and that was stage of his literary and
convincing journalism practice – was fundamental to understanding some gross keynote differences in
coverage of 22 Week which could be pointed as one of polemical cases that didn’t receive a
manipulated approach by a press that historically use to work closing in pool. Such conflict just was
possible because this mentioned Correio Paulistano position.
This newspaper arose during monarchical period and was republican by conviction –
sometimes liberal sometimes conservative. It was rebel against political influenced forces and kept
against position face to Vargas government and was been slapsticked during several years by these
government forces. The support to the Modernist Movement was considered an extra rebelliousness
in this conservative Correio Paulistano tumultuous life. Our object is approached as part of our
Introdução
Correio Paulistano:
Cento e nove anos de história em cem páginas.............................................. 01
História e lirismo em capítulos ..................................................................03
Das dificuldades do percurso .....................................................................06
Considerações sobre a linguagem e os anexos ........................................07
Dos objetivos e métodos.............................................................................08
Capítulo I
O nascimento e a morte do “bandeirante da imprensa paulista” ...................09
1.1 O Correio Paulistano funda a imprensa diária em São Paulo. ................10
1.1.1 Primeira edição – 26 de junho de 1854....................................................17
1.1.2 Segunda edição – 27 de junho de 1854...................................................20
1.1.3 Terceira edição – 28 de junho de 1854....................................................22
1.1.4 Sétima edição – 04 de julho de 1854 ......................................................23
1.1.5 Vigésima terceira edição – 22 de julho de 1854 ......................................24
1.2 O vento que sopra da redação ora é liberal ora conservador..........................25
1.3 Cinquentenário: abram alas para a chegada do século XX.............................42
1.3.1 No 95º aniversário: “as confidências de um anfitrião da história bandeirante”
..............................................................................................................................44
1.3.2 Centenário: “um século de tradição a serviço de SP e do Brasil”...........46
1.4 Morte sem decadência: a última edição de um arauto do jornalismo.............49
1.5 Joaquim Roberto de Azevedo Marques: o “exhaurido vexillario” ....................53
Capítulo II
Novas idéias, velhos lobisomens e o vínculo comunicativo entre um jornal
diário e o cotidiano de uma terra em construção ............................................58
2.1 O contexto histórico do século XIX: idéias que atravessam oceanos ............59
2.2 A Vila de São Paulo de Piratininga: o som de um burburinho no silêncio dos
matagais ...............................................................................................................70
2.3 O “Partido dos Velhos”: o jornal torna-se órgão oficial do Partido Republicano
Paulista (PRP) ......................................................................................................77
2.4 A carta de Campos Sales: o poderio econômico ameaça e cumpre..............84
Capítulo III
Movimento modernista: o jornal dos oligarcas pretende ser moderno,
vanguardista e polêmico ....................................................................................90
3.1 Da Europa em guerra para SP: por aqui, modernistas inspirados pelo progresso
..............................................................................................................................91
3.2 Luxo e cultura nos anos de 1920: A “Paulicéia Desvairada” desponta .........102
3.3 Debates pela imprensa: modernistas são defendidos na Chronica Social, coluna
de Menotti del Picchia .........................................................................................115
Conclusão
Correio Paulistano:
arauto, conservador, liberal, modernista .......................................................147
Um salto de vanguarda ............................................................................151
Referências Bibliográficas ........................................................................154
Anexos .............................................................................................................158
O jornalismo é conflito, e quando não há conflito
no jornalismo, um alarme deve soar.
(Eugênio Bucci em “Sobre ética e imprensa”)
Introdução
Correio Paulistano:
cento e nove anos de história em cem páginas
2
O Correio Paulistano foi um dos maiores jornais da imprensa brasileira e
formou pessoal e tecnologia que permitiram o surgimento de outros jornais tão
fundamentais quanto ele, mas não pioneiros, como o Diário Popular, hoje Diário de
São Paulo; A Província de São Paulo, atualmente O Estado de São Paulo e a Folha
de São Paulo, bem mais recentemente formada a partir da união entre Folha da
Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite. O mais antigo deles – A Província – só foi
lançado vinte e um anos depois do Correio Paulistano.
À época de sua fundação, ele foi o primeiro jornal independente não atrelado
a um partido político ou a uma escola literária; o primeiro a ser publicado diariamente
em São Paulo e por longo período de tempo; o primeiro a ser impresso em máquina
de aço (abandonando o sistema de prelo manual à mão escrava capaz de rodar
apenas 25 jornais por hora); o primeiro que montou oficinas a vapor; o primeiro que
saiu às segundas-feiras; o primeiro a ser impresso numa máquina rotativa e o
primeiro a sair em grande formato. Foi ainda o primeiro jornal matutino a estampar
clichês e a contratar fotógrafos para seu corpo de redação, num momento em que
notícias ilustradas eram privativas dos “vespertinos escandalosos” (sim, a neoplasia
da imprensa já germinava suas células...). Foi o segundo a usar linotipos e o terceiro
a completar um centenário em plena circulação no Brasil.
A importância deste objeto de estudo, contudo, não se dá por seus aspectos
materiais ou técnicos a priori. Sua maior relevância, avalio, está no pioneirismo de
ser um jornal diário numa terra sem leitores, de maioria escrava e analfabeta. Ser
composto à luz de lampião numa São Paulo que dormia cedo para escapar ao cerco
de perigosos lobisomens escondidos pelos matagais e pelas ruas esburacadas que
arranjavam o pequeno núcleo colonial. E a despeito de dificuldades hoje
inimagináveis, atravessar o período histórico – considerado pelos pesquisadores da
3
área como aquele que maiores transformações trouxe à vida cotidiana do ser
humano - que transcorre entre a segunda metade do século XIX até a segunda
metade do século XX.
História e lirismo em capítulos
“O nascimento e a morte do bandeirante da imprensa paulista” é o título
do capítulo I. Nele abordei a fundação do jornal e o panorama da imprensa no Brasil
colonial. Fiz também uma pesquisa in loco em algumas edições, inclusive na
primeira, datada de 26 de junho de 1854, analisando-as pelos pontos de vista
editorial e tipográfico. O aspecto político foi outro bastante esmiuçado: a postura ora
liberal ora conservadora do jornal, recurso utilizado para sua sobrevivência em
tempos de forte centralismo monárquico, foi pensada sob a ótica da dificuldade de
se manter um jornal diário – com poucos anunciantes e baixo número de leitores -
sem esbarrar na dependência dos organismos oficiais.
Algumas edições especiais são contempladas neste primeiro capítulo: 50º,
95º e 100º aniversários de fundação. E por falar na fundação do Correio Paulistano,
seu fundador, Joaquim Roberto de Azevedo Marques não foi esquecido. Teve sua
vida investigada e, num cruzamento de dados um tanto quanto impossível de ser
aqui explicado, cheguei a montar sua árvore genealógica que compreende,
inclusive, outros pioneiros da imprensa. Azevedo Marques ganhou minha simpatia:
seu aspecto sisudo guardava honradez e frustração. E nenhuma fofoca consegui
descobrir sobre a vida dele para lhes contar agora e quebrar esta geleira: teve 16
filhos com a mesma mulher, trabalhou exasperadamente, era um jornalista idealista
e não aceitou propinas em seu jornal!
4
O que não consegui realizar de modo plenamente satisfatório neste primeiro
capítulo foi o levantamento mais apurado das causas que levaram ao encerramento
das atividades do jornal em 1963, depois de 109 anos. Tal ocorreu em razão da
impossibilidade de acesso às últimas edições que, há anos, encontram-se ainda em
processo de restauração e gravação em microfilmagem, não estando disponíveis à
consulta pública. Formulei, contudo, duas hipóteses para o seu fechamento.
“Novas idéias, velhos lobisomens e o vínculo comunicativo entre um
jornal diário e o cotidiano de uma terra em construção” foi o tema escolhido para
o capítulo II. Impossível, para a linha de estudos da comunicação com a qual
compartilho idéias, desconsiderar o vínculo entre o meio de comunicação e a cultura
no qual ele está inserido. Por isso, fundamento o capítulo na passagem da
sociedade agrária para a industrial, o “momento” que faz toda a diferença na história
da história das nossas vidas e da vida do Correio Paulistano.
São Paulo colonial, escravidão, imigração, República, desenvolvimento
urbano, Educação, a passagem da imprensa dos amanuenses (pessoas pagas para
copiar à mão os jornais) até as poderosas rotativas. Nada disso poderia deixar de
aparecer no corpo deste trabalho, pois contar a história do Correio Paulistano é
contar a trajetória de São Paulo. Mas, se a futura maior metrópole do Hemisfério Sul
anda de carruagem no século XIX, da Europa sopram idéias que atravessam
oceanos e contaminam nossa muito recém formada elite cultural. No capítulo II as
principais teorias e os mais influentes teóricos em voga no Velho Continente neste
momento, aparecem como forma de contextualizar as bases da formação do germe
do conceito de “nação brasileira”, que inflama as páginas dos jornais, as conversas
nas praças, nos cafés...
5
As “novas idéias” que sopram da política, das artes e da cultura balançam por
aqui velhas estruturas de poder herdadas dos colonizadores e a política café-com-
leite da República Velha se obrigará a ganhar outros temperos, assunto que também
surge no capítulo II. Em sua tese apresentada à USP (Os Arautos do Liberalismo,
um estudo sobre o Estadão também editado em livro), a profª Maria Helena Capelato
mostra o quanto o estudo de jornais é de extrema importância para a compreensão
de um período histórico. Como a idéia de “nação brasileira” ultrapassa a barreira do
Made in Europe para chegar ao “verde-amarelo“ e ao “indianismo” dos modernistas
é o mote do capítulo seguinte:
“Movimento modernista: o jornal dos oligarcas pretende ser moderno,
vanguardista e polêmico”. O assunto do capítulo III concentra nosso principal
objetivo: entender a ligação entre o Correio Paulistano e o movimento modernista.
Ao final do capítulo, analisei matérias publicadas nos principais jornais em circulação
em fevereiro de 1922, das quais extraí alguns adjetivos oferecidos aos artistas:
“subversores da arte“, “frutos verdes de espíritos cretinos”, “mentes débeis”,
“ruidistas da arte”, “futuristas enfoncè”, “escandalosos”, “extravagantes”, “idiotas”,
“desequilibrados”, “aberrações” e mais uma lista de outros.
No Correio Paulistano – o único jornal da grande imprensa a cobrir a Semana
de Arte Moderna de forma positiva e a reconhecer o vanguardismo do movimento –
o tom era de exaltação e exultação com a nova forma artística e o enterro do
parnasianismo. Antes, porém, de chegar a esta comparação de matérias
jornalísticas da cobertura da Semana de 22 propriamente, o capítulo III passa pelo
contexto social-histórico que desembocou no modernismo no resto do mundo e no
Brasil. Lá fora, o pessimismo causado pelas dores da I Guerra Mundial; aqui, o
6
entusiasmo com a nova metrópole que se levantava com o dinheiro do café.
Nacionalismo, fascismo, capitalismo, greves, comunismo... misturas explosivas.
Naveguei também pelo luxo e pela cultura dos anos de 1920 - a década que
transformou estruturalmente todo o mundo e é considerada o berço do Brasil
moderno. Registro ainda diversas matérias publicadas no Correio Paulistano entre
1913 e 1921, que alimentaram o espírito modernista antes da Semana de 22.
Das dificuldades do percurso
Estando clara a importância do objeto e sua categoria de meio produtor de
cultura e de cultura produzida por seu meio ambiente, numa simbiótica relação de
sombra e reflexo, ao enfrentar as dificuldades de minha tarefa, não poucas devido a
sua própria natureza, elenquei algumas para apontá-las neste espaço.
Não dispomos ainda de registros históricos adequados sobre a imprensa
brasileira. Mesmo os autores que sabidamente são referências para a história da
nossa imprensa, como Nelson Werneck Sodré, Juarez Bahia e Freitas Nobre, têm
em suas obras preocupantes lapsos de tempo histórico e falhas na precisão de
dados. Isso digo a respeito do Correio Paulistano, embora seja grande a
probabilidade que o mesmo ocorra com outros importantes meios de comunicação.
A dissertação ora apresentada representa um resgate, uma compensação dessa
perda histórica.
Dada a dificuldade com as referências bibliográficas concentrei-me em beber
direto na fonte principal. Novas agruras. O material microfilmado disponível na
Biblioteca Municipal de São Paulo “Mário de Andrade” é o mesmo presente no
acervo do Centro Cultural de São Paulo e está incompleto. Na primeira, uma única
máquina em pleno funcionamento! Na principal biblioteca da grande metrópole deste
7
imenso país! No Centro Cultural um número maior de máquinas, porém, uma única
com regulagem total de foco.
É fácil entender: o material microfilmado utilizado na pesquisa tem entre cem
e cento e cinqüenta anos, sua qualidade está prejudicada desde o original, com
páginas mutiladas, manchadas e amareladas, há inúmeros trechos apagados ou
ilegíveis, o português é arcaico, as letras miúdas etc. e sem a regulagem total de
foco a única leitura possível foi à lupa. Um enorme dispêndio de tempo e energia.
Máquinas antigas, quebradas, acervo não digitalizado e - pasmem! - cópias ao
módico valor de R$3,60 a unidade (cfme. decreto do atual prefeito publicado durante
as férias, precisamente em 29 de dezembro!), sendo necessárias quatro cópias para
cada página de jornal em razão da falta de recursos técnicos da máquina.
No Arquivo Público do Estado de São Paulo o acervo de jornais antigos é
bem mais amplo e lá encontrei todas as edições que necessitava, além de ser
possível conseguir-se material em CD (aguardando-se entre vinte e trinta dias),
porém, uma reforma interminável o manteve fechado por cerca de dois meses.
Estes “detalhes” que aponto têm como alvo lembrar que o descaso com a
pesquisa bebe na mesma nascente da falta de cuidados com a Educação. A esta
crítica, não me furto.
Considerações sobre a linguagem e os anexos
Ao longo de todo o corpo textual aparecem citações de autores e réplicas de
artigos publicados em jornais cuja linguagem original foi preservada. Desta feita, os
leitores encontrarão arvore (sem acento), bello (belo) ou paiz (país). E frases como:
cortava o silêncio o vulto mysterioso e lesto de um noctívago retardatário deslisava
rente á parede, sob o alongado beiral dos telhados ennegrecidos, escondendo a
8
guitarra trovadoresca nas dobras da capa fluctuante e larga”. Assim escolhi para
preservar a fidelidade e a essência estética dos textos, uma vez que mantê-los em
seu original não comprometia o entendimento global.
Em relação aos anexos faz-se necessário desculpar-se pela prejudicada
qualidade das cópias, tiradas a partir de fotos da tela de microfilmes.
Dos objetivos e métodos
Gostaria, ainda, de esclarecer quais foram os meus objetivos ao apresentar
esta pesquisa, focando-os em três pontos:
1 – Resgatar a importância do jornal Correio Paulistano entre os maiores de
São Paulo e do Brasil.
2 – Cobrir a lacuna existente nas publicações que retratam a história da nossa
imprensa.
3 – Elaborar um trabalho que sirva de apoio para futuras pesquisas
acadêmicas e jornalísticas.
Por fim, guardo para o futuro o desejo de aprofundar alguns aspectos desta
dissertação, pois em que pesem consideravelmente a aplicação dos métodos
histórico e comparativo – o primeiro, permitindo a reconstrução histórica do cotidiano
do jornal; o segundo, possibilitando a verificação das diferenças entre as coberturas
jornalísticas à época da Semana de Arte Moderna - aponto a falta da metodologia da
memória oral, um recurso interessante para cobrir a lacuna de documentos.
Abandonei este método pela dificuldade de localização dos descendentes das
pessoas que foram mais diretamente envolvidas com o jornal e o conseqüente
dispêndio excessivo de tempo que esta empreita acarretaria.
Capítulo I
O nascimento e a morte do
“bandeirante da imprensa paulista”
“Muitos jornalecos apareceram de 1830 a 1854, quando veio à luz o Correio
Paulistano.”
Juarez Bahia (1972, p. 27)
10
1.1 O Correio Paulistano funda a imprensa diária em São Paulo
11
seu livro): “muitos jornalecos apareceram de 1830 a 1854, quando veio à luz o
Correio Paulistano”.
No ano de seu lançamento houve um recenseamento realizado a mando de
José Antonio Saraiva, presidente da Província de São Paulo
4
, que contou “15.253
almas”. Estudiosos da área acusaram erro na pesquisa e o presidente se defendeu
alegando falta de orçamento para a correta operação censitária. Após estudos e
comparações com outros censos, trabalha-se hoje com o número de 22 mil
habitantes para a época, a maioria analfabeta e escrava.
Apesar do custo proibitivo, surpreendentemente, o Correio Paulistano foi o 64º
jornal de São Paulo (SODRÉ, 1966, p. 88)
5
e se afirmou num tempo em que as
folhas tinham vida dura e curta e a (ex) vila de São Paulo de Piratininga
6
a economia
calcada em manufaturas de chapéus. Até então, São Paulo havia convivido, em
razão da proibição de D. João VI, príncipe regente de Portugal, de haver tipografias
na colônia, com jornais impressos em Londres como o Correio Brasiliense (1808-
1822), O Investigador Português e até com folhas manuscritas. É importante frisar
que o primeiro jornal manuscrito que circulou em São Paulo foi O Paulista, lançado
em 1823 pelo tio do fundador do Correio Paulistano, professor de Gramática Latina e
Retórica.
4
Os Estados da Federação eram denominados Províncias anteriormente à Proclamação da República.
E antes de serem Províncias, Capitanias Hereditárias.
5
O Correio Paulistano foi o 64º entre 1827, data de lançamento do Farol Paulistano, primeiro jornal
impresso na cidade, e 1854, data de lançamento do Correio Paulistano.
6
Sobre o desenvolvimento de São Paulo ler no capítulo II o item 2.2.
12
Por vezes, burlar os colonizadores resultava em experiências gloriosas como
a de Líbero Badaró
7
no O Observador Constitucional (1829), já num tempo em que
surgiam os primeiros jornais (não diários) impressos na cidade. O primeiro deles foi
o Farol Paulistano (1827-1831), o que demonstrava o quanto São Paulo estava
atrasada em relação à imprensa brasileira, fundada pelo semanário A Gazeta do Rio
de Janeiro, em 1808, por ordem do mesmo D. João VI, instalado naquela cidade,
então capital do Império. (Vianna, 1945). As matérias limitavam-se aos documentos
oficiais da família real.
7
O médico e jornalista Giovanni Baptista Líbero Badaró foi assassinado em 1830 por policiais
ligados à D. Pedro I. Houve grande manifestação popular e aumentou a insatisfação com o imperador,
acusado pela morte do jornalista. Pedro I abdicou um ano depois. Tornou-se célebre a frase dita por
Badaró no momento de sua morte: “Morre um liberal, mas não morre a liberdade!”.
F
igura 1: Joaquim Roberto de
A
zevedo Marques, fundador do
P
aulistano, dedicou 36 de seus anos
ao
j
ornal.
F
igura 2: Pedro Taques de Almeida
A
lvim, o primeiro redator do
Correio Paulistano, fez fama entre
os cole
g
as do Lar
g
o São Francisco.
13
O ano do lançamento do jornal (1854) fora também o da chamada política de
conciliação
8
(1853-1868), um acordo proposto por D. Pedro II pelo qual governavam
juntos conservadores e liberais, que arrefeceu a luta entre as antigas agremiações.
Sem o debate entre os meios de imprensa, o jornalismo ficou um tanto quanto
prejudicado. Havia O Ypiranga, lançado em 1849, depois de a Revolução Praieira ter
explodido em Pernambuco e, embora o presidente da Província fosse um
conservador, o jornal saía em defesa do Partido Liberal. Os acadêmicos tratavam
exclusivamente de filosofia, arte, literatura e direito: Revista do Ensaio Philosophico
Paulistano e Ensaios Literários do Atheneu Paulistano. Parecia clara a carência de
outros periódicos.
O serviço tipográfico era caríssimo tanto para a impressão de livros quanto de
jornais. Diante da economia, da demografia, das tendências literárias, sociais e
políticas, o lançamento de um diário demonstraria audácia e vanguardismo. Uma
pergunta então se poderia fazer: se a imprensa “de combate” tinha perecido pela
extinção dos partidos aos quais os meios de comunicação estavam ligados, por que
o Correio Paulistano daria certo? Encontramos na edição de lançamento palavras
que jogam luz a essa questão. “(Lançamos) no intuito de fundar uma tribuna livre,
aberta a todas as aspirações e a todas as queixas, sem restrições na esfera do
pensamento religioso ou partidário”. O Correio Paulistano, portanto, estabelecia-se
como um jornal livre, num momento em que todos os jornais existentes
representavam um partido político ou uma escola acadêmica. E os atrelados a
8
A política de conciliação: D. Pedro II estabeleceu o Ministério da Conciliação para alternar no poder
liberais e conservadores, que mantinham aliança no estratégico ponto da escravidão. A partir de 1860,
o desenrolar de acontecimentos importantes põe em xeque tanta cordialidade: proibição do tráfico
(desde 1850), a expansão cafeeira, alavanca de desenvolvimento do país, e a Guerra do Paraguai
(1865-1870).
14
partidos mantinham mornas as discussões por conta da política imperial
conciliatória. Resta-nos acompanhar a construção e a desconstrução desse ideal.
Azevedo Marques, o fundador, traz para o jornal a experiência de haver
gerido a tipografia do órgão oficial do Partido Liberal e convida para ser seu editor
um conhecido membro do Partido Conservador, Pedro Taques de Almeida Alvim
(1824-1870)
9
. Ele fica pouco, até 1856, mas procura dar vida ao diário. Taques era
um boêmio altamente intelectualizado, um espírito à frente de sua época, e fez do
Correio Paulistano o jornal mais aberto, moderno, tolerante e debatedor da
tradicionalista cidade (Duarte, 1972).
Além da figura de Azevedo Marques, portanto, nos seus dois primeiros anos o
Correio Paulistano esteve firmemente atrelado ao seu redator, Pedro Taques, que
15
tornado mais sombrio do que aquele que o fizera conhecido entre jornalistas e
estudantes de Direito.
Debalde procurei vestígios positivos da passagem de Taques por esse
jornal: o seu engenho, dado á jocosidade e á pilheria, não podia
nenhumamente revelar-se nas columnas graves, severas, de uma
autoridade cathedrática, de uma circumspecção professoral, immutável,
que o Correio Paulistano manteve desde seu início até bem poucos annos
atraz. (SOUZA,1904, p. 23, sic)
Este fato nos leva a acreditar que todos os créditos pela experiência da
imprensa diária em São Paulo foram somente de Azevedo Marques ou que a marca
editorial do Correio Paulistano fora a mesma de seu fundador. Embora essa
informação pareça contraditória com relação à fornecida por Duarte (1972), que
classificou o Correio Paulistano como “o jornal mais aberto, moderno, tolerante e
debatedor da tradicionalista cidade” (cfme. página 14), assim não a consideramos,
pois, embora se mantendo acanhado seu redator e, ao analisarmos suas primeiras
edições nada tivéssemos descoberto de “aberto” ou “debatedor”, o Correio
Paulistano desempenhava um papel de vanguarda para seu tempo.
Apuramos, através da análise das primeiras edições, que devido à política de
conciliação proposta pelo imperador para todo o país, Azevedo Marques mantivera o
jornal “imparcial”, embora oferecesse um apoio sereno ao Conselheiro Saraiva,
presidente da Província. Só raramente publicava artigos de fundo, restringindo-se
aos atos oficiais, notícias do interior de São Paulo, da Corte e das demais
16
Províncias. Donde concluímos que foi esse jornalismo insosso que manteve cativo o
espírito de Pedro Taques.
F
igura 03: A Rua Nova de São José teve seu nome trocado para Líbero Badaró após o
assassinato do jornalista de 32 anos. Coincidentemente, nesta rua funcionou a primeira e
a última sede do Correio Paulistano.
F
igura 4: Sede do jornal Correio Paulistano, na atual Rua Libero Badaró.
17
A análise de algumas edições, escolhidas pela importância e disponibilidade
de material legível, nos fala mais sobre a fundação desse diário:
1.1.1 Primeira edição – 26 de junho de 1854 – segunda-feira
F
igura 05: A capa da 1ª edição do Correio Paulistano está
autografada pelo seu fundador, Joaquim Roberto de Azevedo
Marques.
Página analisada: capa
Tamanho: 37 X 28 cm
N
úmero de páginas: 4
N
úmero de colunas: 3
Tiragem: 450 exemplares
N
º de habitantes em São
Paulo: cerca de 22 mil
Circulação: “o jornal sai
todos os dias exceto os de
guarda” (informação contida
na capa).
18
É preciso despojar-se daquilo que se conhece como um grande jornal, grande
mídia, ou imprensa de massa nos dias atuais para se compreender a importância do
Correio Paulistano para a época. Para conhecê-lo, passaremos a uma análise de
sua primeira edição, lançada numa segunda-feira, 26/06/1854, que nos revela
detalhes importantes. Ela traz na capa (região central, abaixo da logomarca) as
informações: “Impresso na Tipografia Imparcial de propriedade de Marques e Irmão.
Redator: Pedro Taques de Almeida Alvim. Dimensões variáveis”. E esclarece:
“Publica todos os artigos de interesse geral gratuitamente. Cobra as de interesse
particular. Anúncios de assinantes terão inserção gratuita, não excedendo 10 linhas.”
Esta é também uma edição sem anúncios.
Do ponto de vista de uma análise tipográfica, a leitura de um jornal
organizado em três colunas corridas de página inteira é bastante trabalhosa. O texto
que termina na última linha da primeira coluna continua na primeira linha da segunda
coluna, assim como o texto da última linha da segunda coluna continua na primeira
linha da terceira coluna. Todo o texto corre na íntegra, sem intertítulos e sem apoio
de imagens caricatas
10
, as quais só seriam introduzidas na imprensa paulista dez
anos depois da fundação do Correio Paulistano.
Na primeira edição, na primeira coluna, o título: “Prospecto” e um texto aqui
reproduzido na íntegra por tratar-se do primeiro texto publicado pelo jornal e por
10
Caricatura, a “linha que brada”, considerada um diálogo entre a pintura histórica e os retratos. O
primeiro periódico ilustrado do Brasil surgiu em Recife, em 1831, e foi batizado O Carcundão. Em
São Paulo tal só aconteceu em 1864-1865, período em que durou O Diabo Coxo, lançado pelo famoso
caricaturista do Império, Ângelo Agostini, em parceria com Américo de Campos e Antonio Manoel
dos Reis. O primeiro personagem abordado pelos caricaturistas foi o médico Oswaldo Cruz em razão
da polêmica campanha de vacinação contra a febre amarela e a varíola.
19
revelar a preocupação com uma importante e eterna discussão na vida da imprensa
nacional e internacional até os dias de hoje.
“Prospecto”
O Correio Paulistano, que hoje começa sua carreira jornalística, vem,
também, abrir uma nova hera na imprensa desta província. Então, forçoso
é confessá-lo, que a imprensa não tem correspondido por modo
satisfatório à sua sublime missão (E o texto continua reclamando que os
jornais do império estão a serviço de interesses pessoais, num trecho
pouco legível).
Por outro lado, os interesses reaes da província, erão postos de parte,
porque os interesses de partido tem tudo desnaturado e confundido.
Nestas circunstâncias, entendemos fazer um importante serviço à nossa
bella província publicando o Correio Paulistano, cuja missão é a de
oferecer uma IMPRENSA LIVRE (destaque do autor).
(Correio Paulistano, 26 de junho de 1854, 1ª edição, capa, sic)
Um texto, como se vê, iluminado pelas discussões que perpassam esses 152
anos de imprensa diária no Brasil e em várias partes do mundo. O desejo de que
cada lançamento de um órgão de imprensa se faça em benefício da novidade e da
ruptura com o passado (“nova hera”), representado sempre pela “má imprensa”; o
objetivo – nunca alcançado – de que os interesses coletivos suplantassem os de
origem pessoal (“a imprensa não tem correspondido por modo satisfatório à sua
sublime missão”); o sonho, nunca abandonado por muitos jornalistas, que a
imprensa tivesse verdadeiramente liberdade de publicar, distanciando-se das
20
amarras políticas (como na época) e das amarras comerciais (que predominam hoje
mais do que as políticas dentro das redações).
Na segunda coluna, sob o título “Correio Paulistano”, uma matéria informa
“que no dia 21 do mês que corre fez juramento sagrado o novo presidente da
Província: José Antonio Saraiva”. O texto saúda o novo presidente, depois critica as
constantes mudanças no cargo. Promete apoio à Saraiva se ele trabalhar pela honra
da Província. “O Correio Paulistano não é jornal de partido; seu fim está ligado à
honra da Província” (cortando a frase ao meio, o texto continua na página 2).
Traz ainda informações oficiais sobre o Senado e a Câmara. No expediente
diz:
A redação queria tamanho maior, mas são várias as dificuldades de quem
está nascendo. Duas pessoas entregam pontualmente o jornal e pedirão
assinatura a todos que o receber. No caso de recusa tenham a bondade
de devolvê-lo.
(Correio Paulistano, p. 02, 1ª edição - 26/06/1854)
1.1.2 Segunda edição – 27 de junho de 1854 – terça-feira
Observa-se a mesma estrutura tipográfica da edição número 01; as notícias
correm por conta de informações oficiais da Câmara e do Senado. Sai o primeiro
anúncio (como os seguintes teve inserção gratuita): um aviso a todos para que não
façam negócios com tal senhor em razão de o mesmo ter letras protestadas pelo
21
padre local. Esta edição também marca o início da publicação dos folhetins
11
pelo
jornal.
11
Folhetim, gênero que mistura jornalismo, literatura, jocosidade e seriedade, considerado
erroneamente por críticos como um tipo de “baixa literatura”. Publicadas em capítulos que se
sucediam nas edições dos jornais essas histórias fizeram muito sucesso e estiveram presentes na
formação literária de escritores importantes como Machado de Assis. Já em 1830 chegavam ao Brasil
em jornais estrangeiros em língua inglesa ou francesa. Em português, o primeiro jornal a publicar um
folhetim foi O Chronista, no Rio de Janeiro, em 1836.
F
igura 6: Esta é a capa da 2ª edição do Correio
P
aulistano, publicada em 27/06/1854.
22
1.1.3 Terceira edição – 28 de junho de 1854 - quarta-feira
Observam-se pequenas alterações na tipologia empregada nos anúncios,
diferenciando-os dos textos jornalísticos. São publicados na última coluna da página
04 com o título “ANNUNCIOS”. Falam da venda de fazendas (tecidos vindos do Rio
23
1.1.4 Sétima edição – 04 de julho de 1854 - terça-feira
Sob o título “Notícias do ultimo vapor”, o Correio Paulistano traz notas
extraídas de jornais sobre acontecimentos na Europa (os jornais não são citados,
mas sabe-se que um deles era o Diário do Rio de Janeiro, fundado em 01 de junho
de 1821). Esta edição também esclarece que a administração do jornal é uma
empresa literária (editora), que não interfere na redação (politicamente) e que o
Correio Paulistano tem correspondentes nos pontos mais importantes da Província.
F
igura 8: Correio Paulistano, 04/07/1854, capa
da 7ª edição.
24
1.1.5 Vigésima terceira edição – 22 de julho de 1854
Observa-se um anúncio na página 04 de cabeça para baixo, revelando a
pouca intimidade com recursos tipográficos na época. Os folhetins têm força e
continuam por edições a fio. Publica ainda o “Expediente da Presidência” (da
presidência da Província), num laço que se estreita com os organismos oficiais.
F
igura 9: Correio Paulistano, 22/07/1854 - a
p
ágina 04 passou a ser dedicada aos anúncios.
25
1.2 O vento que sopra da redação é ora liberal ora conservador
Era praxe aplaudir apenas as peças dramáticas e pelas pantomimas
manifestava-se o público somente com gargalhadas. “Certa noite, porém, a comédia
era de tal modo jocosa que o auditório, obliterado repentinamente em seu bom
senso, esqueceu a pragmática, as conveniencias sociaes e o próprio decoro, e
prorompeu tresloucadamente em palmas estrondosas”. (SOUZA, 1904, p. 20, sic)
O caso foi visto como mostra de anarquia num prédio de ordem pública e
mexeu de tal modo com a sociedade paulista, que modificou a calmaria da cidade.
Depois de dois dias de intenso falatório, o Correio Paulistano interveio publicando
um artigo no qual alegava que o episódio fora um “movimento irresistível,
necessariamente desculpável, porquanto não houvera premeditação intencional das
palmas”. O artigo acalmou os ânimos e o Correio Paulistano mostrava sua influência
sobre seus leitores, estabelecendo um vínculo entre o ser que comunica e o que se
torna produto da comunicação.
Se o jornal vivia seus momentos gloriosos também as dificuldades não o
deixavam em paz. Desde sua fundação até 14 de fevereiro de 1855, o Correio
Paulistano manteve-se com o mesmo formato e impressão em papel florete (um tipo
de papel em folha inteira, porém, dobrável em três colunas, em princípio importado
da Espanha). A partir desta data, aumentou o tamanho quando contratado para
publicar atos da Assembléia Provincial, mas retornou ao velho formato tão logo esta
fonte de recursos secou. Na sua gestão interina, Amaral Gurgel suspendeu a
publicação dos atos oficiais (NOBRE,1950). Em 24 de maio do mesmo ano, o jornal
já era publicado em tamanho ainda menor do que o inicial, numa época de grande
26
carência de recursos e apoio. Em julho, entra em enorme crise financeira. Azevedo
Marques ao invés de suspender a publicação da folha, passou a lançá-la duas vezes
por semana, depois de haver sido diária por um ano e 16 dias ininterruptos. A data
de 14 de julho de 1855 marca o último número dessa primeira fase diária. É válido
ressaltar que essa crise financeira também esteve ligada a um período de
descompromisso da (pequena) população letrada com a leitura do jornal, pois o
mesmo era vendido por seus entregadores separadamente e através de assinatura,
cujas vendas também diminuíram.
Este período de dificuldade, iniciado em maio de 1855, permanece até 01 de
agosto de 1858. Justificando-se através de um artigo, Azevedo Marques promete
circular diariamente pelo menos nos meses de funcionamento da Assembléia
Provincial (constantemente o imperador mandava fechá-la), mas a promessa foi
apenas irregularmente cumprida. Essa situação de vai-e-vem financeiro, que ainda
se repetiria inúmeras vezes, não era um caso específico do Correio Paulistano: as
mesmas razões haviam suspendido a publicação de O Ypiranga depois de 14 anos.
[...]
A obra do jornalismo no Brasil, onde a imprensa vegeta sob o peso dos
grandes salários do pessoal typographico, ainda escasso, do custo
exorbitante do papel e outros materiais importados e, mais que tudo, do
gravoso porte de circulação, verdadeiras azas de chumbo impostas á ave
transmissora do pensamento, a obra do jornalismo no Brasil requer
pesados sacrifícios pecuniários. Aos productos dessa sagrada industria
scasseiam consumidores, porque geralmente os súbditos de um regimen
que se mantem por ausência da opinião, não podem sentir a falta das
liberdades que a imprensa procura reivindicar.
(O Ypiranga, artigo publicado em 12.12.1869, sic)
27
Através da leitura deste artigo podemos compreender os problemas que
afligiam os heróicos jornalistas da época, os mesmos que atormentam hoje os de
veículos de pequena imprensa: dependem de verba pública (não só das prefeituras,
mas também das câmaras municipais), o que põe esses pequenos jornais muito
próximos da manipulação política a favor de interesses pessoais e partidários; arcam
com altos custos de serviços gráficos; abrem mão de profissionais especializados
em razão de custos salariais e terminam por perder a qualidade, principalmente, a
do texto, já que os recursos tecnológicos para o desenvolvimento de design são de
mais fácil acesso, pelo menos atualmente.
Sem recursos, o Correio Paulistano cede a pressões do Partido Conservador
e a ele adere publicamente, perdendo prestígio entre seus leitores. A ação foi
considerada por muitos como “um passo dado para trás”. Trocar de posição diversas
vezes seria uma constante na vida do jornal, mas, nem só as questões financeiras
pesaram na decisão de Azevedo Marques de se ligar a um partido, como não fizera
durante a política de conciliação. De fato, ele havia compreendido que a conciliação
proposta pelo imperador a todos os partidos, o “apagamento dos ódios”, era um
eufemismo totalmente ilusório.
Azevedo Marques sacrificava princípios políticos e relações pessoais pela
sobrevivência do jornal que, sob seu comando, sempre viveu em aperto financeiro,
já que ele evitava ao máximo os conluios. Sodré (1966, p.190) explica essas
mudanças de posição política ao dizer que os jornais de vida longa no Brasil foram
sempre conservadores, mesmo o Correio Paulistano, apesar de seus intervalos
liberais. E Chagas
(2001, p. 198) nos lembra que o próprio Azevedo Marques
escreveu em editorial que deixava a linha liberal para a conservadora por
“circunstância de caráter financeiro”.
28
O largo período entre 1858 a 1882 foi de reorganização para o Correio
Paulistano. Ligando-se ao Partido Conservador passou a receber novamente a
subvenção do governo e retomou sua impressão diária. Em 1859, o presidente da
Província, José Joaquim Fernando Torres, assinou autorização para a publicação
dos atos oficiais (o jornal chegou a ficar parado por uma semana por falta de papel).
Em artigo, Azevedo Marques promete continuar “franqueado a todas as opiniões
honestas”. Vale a pena analisar as mudanças ocorridas no período em questão.
A sede, que já havia deixado a Rua Nova de São José (Líbero Badaró) para
se fixar na Rua do Ouvidor (atual José Bonifácio), em 1860, muda-se para a Rua do
Rosário (15 de novembro), 49. Ali, o Correio Paulistano conseguiu contratar pessoal
para o trabalho tipográfico e administrativo (José Maria Lisboa, que depois de 14
anos deixará o jornal para ajudar a fundar seu principal concorrente) e abriu um
escritório permanente para recebimento de anúncios. Até então era impresso num
prelo de pau movido à mão escrava e a tiragem permanecia nos mesmos 450
exemplares do ano de seu lançamento.
O jornal experimenta o progresso inaugurando uma Alauzet marca A (figura
10) em 1863, a primeira máquina de aço da imprensa paulista. A tiragem sobe para
700 números e o prelo de madeira manual é aposentado. O conteúdo tipográfico foi
completamente remodelado. Depois, sobe novamente a tiragem para 850
exemplares assim que a Alauzet passa a ser movida a vapor, em 1869. Mais de
vinte anos depois o jornal seria produzido na moderna “Máquina de Marinoni”
(figura 11).
Foi o Correio Paulistano, portanto, o primeiro jornal de São Paulo a introduzir
tais melhoramentos em suas oficinas. Nos primeiros dias, a curiosidade popular foi
enorme. Houve romaria de todas as classes sociais para ver a impressão do jornal
29
na nova máquina. O povo se apertava e se acotovelava nas oficinas e até nas
portas da rua. Segundo Souza (1904, p. 56, sic), “deram-se alguns esmagamentos
e scenas de pugilato.”
F
igura 10: A Alauzet foi a
p
rimeira máquina de aço
da imprensa paulista e
aposentou o prelo de
madeira de funcionamento
manual, que imprimia
apenas 25 jornais por
hora. O Correio
P
aulistano foi o primeiro
j
ornal a trabalhar com
uma dessas máquinas em
São Paulo.
Figura 11: A máquina
de Marinoni (foto)
substituiu a Alauze
t
nas oficinas do
Correio Paulistano.
Depois, seria a vez da
moderníssima Koeni
g
& Buaer. (fotografia
extraída do livro de
Marius Vachon: Les
Arts et les Industries
du Papier en France
1871-1894 (Librairies-
Imprimeries Réunies,
Paris
)
,
p
a
g
e 153
)
30
Entre os anos de 1866 e 1872, a Secção Livre tornou-se a mais importante e
comentada coluna do jornal. Publicava reclamações dos leitores e debatia assuntos
como filosofia, religião, direito, ciências, artes e letras. Os artigos eram assinados
por pseudônimos ou iniciais. Até 1872, o português Antonio Gonçalves Batuíra foi o
entregador oficial do Correio Paulistano; tomando gosto pelo ofício, mais tarde
dirigiu o quinzenário espiritualista Verdade e Luz.
Foi 1866 um ano importante para a capital paulista, que iniciava o caminho
rumo ao “progresso” comunicando-se com outras localidades populosas via estradas
de ferro, e em razão da guerra entre Brasil e Paraguai (1865-1870)
12
, já em curso
(MAESTRI, 2001). Neste ano, o poder estava nas mãos do PP (Partido
Progressista), liga heterogênea de elementos moderados do Partido Conservador e
do Partido Liberal, e o presidente da Província era José Tavares Bastos, apoiado
pelo Correio Paulistano. O redator, Américo de Campos
13
, por sua vez, sentia-se
pouco à vontade no cargo em razão de seu “temperamento revolucionário e
combativista”. Parece-nos que o dominou a mesma inércia que anos antes refreara
Pedro Taques.
Um fato marcante então se deu por conta de um artigo considerado ofensivo
pelo chefe de polícia local. Azevedo Marques permitiu ao redator Américo de
12
Sobre os acontecimentos históricos do século XIX que compartilharam espaço nas páginas do
Correio Paulistano ler no capítulo II o item 2.1.
13
Américo de Campos (1835-1900), formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e
promotor público, fez da imprensa uma tribuna para defender seus ideais abolicionistas e republicanos.
De 1865 a 1874 foi redator do Correio Paulistano, de onde saiu para fundar em 1875, com Rangel
Pestana, A Província de São Paulo. Em 1884, com José Maria Lisboa, deixa A Província de SP
(depois O Estado de SP) para fundar o Diário Popular, atualmente Diário de São Paulo (ler mais no
capítulo II, item 2.4). Proclamada a República foi nomeado cônsul do Brasil em Nápoles, onde faleceu
(ler mais no capítulo II, item 2.3).
31
Campos (que também editava o humorístico Cabrião
14
), publicar na Secção Livre
uma reclamação assinada contra a polícia por esta não agir quando o autor do artigo
e seu jornal foram atacados por um grupo de acadêmicos. O chefe de polícia era
amigo íntimo de José Tavares Bastos (o presidente da Província) e ameaçou (por
escrito, vale frisar) suspender o contrato oficial entre o Correio Paulistano e a
Assembléia Provincial “si continuasse a agazalhar na Secção Livre quaisquer artigos
ou reclamações contra a polícia”. (SOUZA,1904, p. 40, sic)
Sentindo-se ferido em sua dignidade, Azevedo Marques rompeu com quem
chamou de “presidente prepotente”. Resultado imediato: o contrato que havia sido
lavrado por resolução votada na Assembléia foi arbitrariamente suspenso. O
presidente também recrutou funcionários do jornal para o serviço militar e para a
Guerra do Paraguai. Em contraposição, o jornal aventou uma campanha férrea de
oposição ao presidente “todos os dias e em todos os tons”. Iniciou-se um tiroteio: o
promotor público Martinho Prado Júnior (1843-1906) foi removido da Comarca de
Santos por ser irmão de Antonio da Silva Prado (1840-1929)
15
, redator do Diário de
14
O humorístico Cabrião (1866-1867) foi um dos primeiros jornais ilustrados do Brasil. Seus editores
eram, além de Américo de Campos, Ângelo Agostini – o caricaturista do Império – e Antonio Manoel
dos Reis. O trio já havia editado outro ilustrado – o Diabo Coxo (ler a nota 10). Cabrião significa
“indivíduo que importuna sem parar”, exatamente o que o jornal fez com o Império, com sátiras
fantásticas.
15
Antonio da Silva Prado (tio-avô de Caio Prado Jr., considerado intelectual brasileiro
contemporâneo) foi deputado e senador na Assembléia Provincial e primeiro prefeito de São Paulo
entre 1898-1910; chegou a ser dono do Correio Paulistano. Martinho (avô de Caio) também foi
político, assim como o pai dele, Antonio Caio. O patriarca da família foi o trisavô de Caio, Antonio da
Silva Prado, Barão de Iguape (1798-1875), homem forte do Império, que transmitiu seu título por
32
São Paulo, órgão conservador que acompanhou o Correio Paulistano na campanha
“contra o presidente prepotente”. Também foi demitido da promotoria da cidade
Francisco Quirino dos Santos por ser genro de Azevedo Marques.
Muda o governo e o Correio Paulistano baixa o tom. A Assembléia Provincial
reconhece o direito de contrato que o jornal detinha, porém manda o caso para a
análise do Judiciário. Enquanto o processo corre, o Correio Paulistano foi
especialmente “liberal”. Em 1868, caem os progressistas porque o imperador
escolheu um conservador para um cargo no qual deveria estar um candidato liberal.
E como já não poderia deixar de ser o Correio Paulistano alinha-se novamente com
a corrente conservadora.
Desafiados, os progressistas reaproximam-se dos liberais para fazerem frente
aos conservadores. Em 17.07.1868, a Assembléia Provincial é mais uma vez
dissolvida e com isso as indecisões políticas “cessam”: a monarquia manteria dois
partidos constitucionais, que delimitam bem seus campos de atuação – liberal e
conservador. É o fim da política de conciliação. Insatisfeitos, os liberais mais
“radicais” deixam o partido e a idéia republicana começa a tomar vulto. Eles
transformam o Club Radical da Corte em diversos clubes de republicanos e lançam,
em 1870, um manifesto “que abalara profundamente os melhores espíritos da
sociedade paulista”, fundando o Partido Republicano
16
(COSTA, 1987). Em toda a
Província ocorre o mesmo: os clubes radicais se constituem na bandeira
republicana. Azevedo Marques, mesmo estando no poder o Partido Conservador,
gerações. A família Silva Prado foi das mais ricas e tradicionais de São Paulo com atividades no café,
na política, na imprensa, no comércio, nas indústrias, finanças, ferrovias, na cultura e na arte.
16
Sobre o Partido Republicano e o Partido Republicano Paulista (PRP), do qual o Correio Paulistano
foi órgão oficial, ler mais no capítulo II, item 2.3.
33
publica artigos de Américo de Campos e próprios aplaudindo os ideais liberais-
republicanos.
O texto seguinte descreve o espírito desse tempo.
Não estávamos mais na tosca região ancestral pouco preparada para
vencer na conquista penosa do futuro, e a capital não era mais a cidade
escura, silenciosa e deserta, segregada de toda útil convivência de
civilização anterior. A iluminação a gás embelezava noturnamente a
cidade, as vias férreas cortavam os campos, galgavam serras,
transpunham rios, ligando o sertão e a marinha a sede oficial do governo;
as linhas de bonde com toda sua lentidão primitiva e rotineira aproximavam
do centro os arrabaldes e facilitavam a circulação urbana; a imprensa e a
arte tipográfica tomavam incremento, desenvolviam-se, melhoravam [...] se
a população não aumentou em quantidade, sua qualidade cultural tinha
aumentado com a leitura de livros e jornais da Corte e toda sorte de obras
do estrangeiro. (SOUZA,1904, p. 45-46)
Por essa época, o Correio Paulistano entra numa briga contra a Cia. que
executava a linha Santos-Jundiaí que, tendo carros de 1ª, 2ª e 3ª classes mandou
retirar os bancos da 3ª classe para voltar a vender mais bilhetes das outras duas
categorias mais caratigm5raseom-0.5er m8a6
34
respeitosamente por motivos de pudicicia e de limpeza moral dignos do applauso
honesto de todas as almas pósteras. (SOUZA,1904, p. 48, sic)
Em 17 de julho de 1872, os republicanos fazem uma reunião visando firmar
uma organização forte e duas figuras marcam suas presenças: Azevedo Marques e
Américo de Campos. Por dois anos, até a saída de Américo de Campos, o Correio
Paulistano consegue manter seus artigos republicanos. Em 1874, deixando uma
carta que não revela seus verdadeiros motivos, Américo deixa o jornal e se junta ao
grupo que lançaria a A Província de São Paulo
17
(folha fundada em 04 de janeiro de
1875).
Muitas coisas estariam para mudar na vida de Azevedo Marques e do Correio
Paulistano, pois não resistindo às pressões impostas pela concorrência do novo
diário, dentro de alguns anos ele se veria obrigado a vendê-lo. Tudo isso muito antes
d´ele se tornar órgão oficial do Partido Republicano. Estas questões serão
retomadas no capítulo II, nos itens 2.3 e 2.4.
Para fazer frente ao novo jornal em cuja direção estavam os republicanos, em
04 de dezembro de 1877, o Correio Paulistano assina contrato com o Partido
Conservador. Dali em diante, o jornal serviria oficialmente para a defesa do
programa doutrinário e dos interesses políticos deste partido. No ano seguinte, com
a ascensão ao poder na Província do Partido Liberal, o jornal faz uma oposição
implacável. Por exigência dos chefes paulistas do Partido Liberal, Joaquim Roberto
de Azevedo Marques Filho é demitido do cargo de secretário da Academia de
Direito.
17
A Província de São Paulo passa a ser O Estado de São Paulo, em 1889. Sobre a relação entre este
jornal e o Correio Paulistano leia no capítulo II o item 2.4, que também esclarece os motivos que
levaram Américo de Campos a deixar o Correio Paulistano.
35
O ano seguinte marca também mudanças na imprensa de São Paulo. O jornal
Diário de São Paulo (lançado em 1865), de propriedade do Cel. Paulo Delphino da
Fonseca (primo de Azevedo Marques), deixa de ser publicado e todo o seu material
tipográfico vai para o Correio Paulistano, inclusive mais uma máquina a vapor. Nesta
data, ele passa a ser editado em grande formato.
Depois de cinco anos resistindo ao cerco dos conservadores, Azevedo
Marques não pôde se opor nem ao poderoso Antonio da Silva Prado, chefe da União
Conservadora (cfme. nota 15, p. 31) nem à concorrência de A Província de São
Paulo, que já está completamente estabelecida. O ano é 1882 e o Barão de Iguape
finalmente compra o jornal com quem já flertava desde que chefiava o Diário de São
Paulo e colaborou com o Correio Paulistano quando este foi perseguido pelo
presidente da Província.
O irmão dele, Antonio Caio da Silva Prado, assume a redação e o Padre
Adelino Jorge Montenegro torna-se uma espécie de editor-gerente. José Maria de
Azevedo Marques, um dos filhos do fundador do Correio Paulistano, faz as funções
de guarda-livros e revisor. Azevedo Marques fica por perto e se torna o responsável
pelas oficinas e pela gerência (cargo do qual seria demitido duas semanas depois de
proclamada a República). Ele volta a ser o editor ainda no mesmo ano, já que Padre
Adelino logo deixa a sua função.
Esse período encerra o que foi chamada de “fase de reorganização” do
Correio Paulistano e inaugura a chamada “fase moderna de consolidação e
progresso” (de acordo com uma classificação de Alberto de Souza, 1904). Tal
divisão de fases se deveu à injeção de recursos proporcionada pelo poder
econômico do novo proprietário. Desde o início da gestão de Antonio Prado até 06
36
de agosto de 1883, o Correio Paulistano saiu também às segundas-feiras e se
tornou o primeiro jornal paulista a realmente ser publicado todos os dias.
A sistemática perseguição do Correio Paulistano ao Partido Liberal
prosseguiu até a data de 19 de agosto de 1885, quando este caiu do poder. Com a
nova ascensão dos conservadores, o jornal cresce. Pouco mais de um ano depois, o
secretário da Província, Estevam Leão Bourroul assume a redação e, naturalmente,
Azevedo Marques volta às oficinas. Na verdade, ocorria que desde que o Partido
Conservador passou a ser mandatário do jornal, Azevedo Marques subia e descia do
comando da redação a cada passagem de políticos no cargo, sendo, entretanto,
sempre mantido por perto porque efetivamente era o único que entendia do
processo de confecção de uma folha do início ao fim. Podemos imaginar o quanto
isso custava ao seu espírito empreendedor e altivo.
O ano é 1887 e “tudo” está por acontecer: a abolição, a queda do Império, a
República. Agora, ainda que ligado ao Partido Conservador, o Correio Paulistano
vivencia esses momentos históricos intensamente e pode advogar a abolição
18
.
Antonio Prado tomou a iniciativa de promover uma histórica sessão no Teatro São
José, em 15 de dezembro deste ano, que teve influência na mudança legal que
determinou o fim da escravidão no Brasil.
Cinco meses depois dessa reunião saiu finalmente a decisão parlamentar que
culminou na assinatura da lei. No encontro em questão, os barões e políticos
presentes deram-se conta, em alto e bom som e em conjunto, que a continuidade da
escravidão os expunha aos riscos da perda do poder. Poucos dias após promulgada
18
Os Conservadores não advogaram a abolição por princípio, mas às vésperas dos acontecimentos que
precipitaram a queda do Império, inclusive a abolição, adaptaram-se aos novos rumos da política para
manterem seus vínculos com o poder.
37
a lei, nova troca na redação do jornal: sai Estevam Bourroul entra Paulo Egydio de
Oliveira Carvalho.
Pouco antes da Proclamação da República, em 07 de junho, sobe ao poder o
Partido Liberal e o Correio Paulistano explode em oposição, tornando claras as suas
contradições e dificultando ao máximo o traçamento por parte desta pesquisadora
de uma linha de conduta do ponto de vista político ou editorial. O Partido Liberal
representava naquele momento os arautos da expectativa popular e suas teses
eram muitas vezes defendidas em artigos do próprio Azevedo Marques. Os últimos
governos monárquicos foram considerados desmandosos e retrógrados e a
população brasileira estava muito irritada com o Império. Este, mantido apenas pelo
apoio militar, vê a República ser consolidada quando tal apoio se retira, em 15 de
novembro de 1889.
Foi o “conservador” Correio Paulistano a primeira folha a considerar o
processo republicano irrevogável e a conclamar os antigos partidos a facilitarem a
remodelação institucional do país, aderindo por palavras e atos. Dezessete anos
antes, Américo de Campos havia cantado o ato nas páginas do Correio Paulistano
como “uma utopia da pátria futura”. A República marca outra mudança profunda nos
destinos do jornal.
A partir de junho de 1890, ele foi adquirido por um seleto grupo de
republicanos históricos, entre eles, o capitão Manuel Lopes de Oliveira, Victorino
Gonçalves Carmilho, Jorge Ludgero de Cerqueira Miranda, Vladislau Herculano de
Freitas, José Luiz de Almeida Nogueira, Carlos de Campos (editor-chefe por 25
anos), Luiz de Toledo Piza e Almeida, Wenceslau de Queiroz e Delphim Carlos. O
jornal passa a ser o órgão oficial do PRP (Partido Republicano Paulista), posição
deixada pela A Província de São Paulo. Nessa função o Correio Paulistano
38
permaneceu até 1955. A ligação com os republicanos é aprofundada no capitulo II,
item 2.3.
A redação viveu talvez seus melhores momentos: Wenceslau de Queiroz era
o primeiro secretário, auxiliado pelo cronista Paulo Prado, o folhetinista Ezequiel
Freire e Américo de Campos Sobrinho. A presença de Paulo Prado
19
no jornal, 32
anos antes da Semana de Arte Moderna, nos dá as primeiras pistas da ligação entre
o Correio Paulistano e os artistas modernistas (tema do capítulo III). A tiragem, que
permanecia em 850 exemplares, subiu para 1.800 até rapidamente chegar a 8.500.
Souza (1904, p. 63, sic) nos dá uma curiosa informação: “O Correio
Paulistano, por motivos íntimos que não importa revelar agora, atravessava então,
em plena prosperidade econômica, uma situação financeira difficilima com cujos
entraves era forçoso arcar heroicamente”. Desta vez, foi o advogado Delphim Carlos
quem socorreu o diário a ponto de comprometer sua fortuna, já que pouco depois da
Proclamação da República, precisamente em 1º de dezembro de 1889, Azevedo
Marques fora demitido de suas funções gerenciais do jornal do qual havia sido
proprietário e fundador. O motivo da demissão foi dos mais simplórios:
desentendimentos com um dos diretores, José Luiz de Almeida Nogueira. Os
comentários do autor a respeito do episódio da partida de Azevedo Marques
merecem destaque: “ao deixá-lo, foi acompanhado por sentimentos de affectuoso e
grato respeito da alta sociedade paulistana e coro unânime de dolorosa e tocante
19
Paulo da Silva Prado (1869-1943) era legítimo representante da oligarquia paulistana dos anos de
1920-1930. Filho de Antonio da Silva Prado (ler a nota 15 na p. 23) foi o grande mecenas que
possibilitou o evento modernista de 22. Ele tinha um dos pés nas rupturas que o movimento
representava e outro no Departamento Nacional do Café.
39
sympatia do jornalismo local que abriu alas, á passagem do exhaurido vexillario
20
(p. 66).
Alguns detalhes a respeito desses anos pré e pós República se fazem
necessários.
Fim de 1886: a sede do jornal deixa a Rua da Imperatriz, 40, para a Rua do
Imperador (hoje Marechal Deodoro). O prédio da Rua da Imperatriz havia sido
comprado em 1859 por 16:000$000 de réis e fora vendido em 1880 por 56:000$000.
Essa valorização naturalmente acompanhava o início das grandes transformações
estruturais e econômicas pelas quais passaria a cidade na virada do século XIX. O
comprador fora o Marquês de Três Rios, que mandou demolir o imóvel e construir
um maior e mais “moderno” no qual funcionou a famosa Livraria Laemmert.
Em 1889, a sede voltou a ficar localizada na Rua da Imperatriz, mas no
número 51. Foi neste local que o Correio Paulistano passou a ser impresso na
máquina de Marinoni (figura 11). E foi nesse endereço também que Azevedo
Marques viu funcionar o jornal que fundara até 1892, ano de sua morte. Pouco
depois, em 1894, o jornal muda-se para a Rua São Bento, 35-C, onde depois esteve
sediado o Jornal do Commércio.
Já em 1897 separam-se oficina e redação. Na Ladeira Dr. Falcão, 18, passou
a funcionar a oficina. A redação ficou na Rua 15 de novembro, 44. Nos anos
seguintes, o jornal trabalha para “apagar” problemas de adaptação entre os períodos
20
“Exhaurido vexillario” ou “um incansável porta-bandeira”.
40
monárquico e republicano. Levanta várias bandeiras e atua firmemente na defesa
dos interesses do novo regime.
Em 1902 há nova mudança no endereço da oficina gráfica: vai para a Rua da
Boa Vista, 13. A redação permanece na Rua 15 de novembro.
Em 1904 o jornal comemora 50 anos (item 1.3 deste capítulo).
A partir de 1920 até 1922 o Correio Paulistano envolve-se com o movimento
modernista e oferece ampla cobertura da Semana de Arte Moderna, sendo o
primeiro jornal de importância em circulação na época do evento a reconhecê-lo (ler
mais no capítulo III).
Getúlio Vargas, 1930: deste ano até 1934 o jornal foi fechado a mando do
presidente e suas oficinas são incorporadas ao patrimônio do Estado. Depois,
vendido para uma Sociedade Anônima e, em 1945, para João Sampaio, que elege
para redator-chefe o profº Luis Antonio da Gama e Silva.
Em 1949 a edição especial do 95º aniversário relembra a relação do jornal
com o movimento modernista (ler mais no item 1.3.1 deste capítulo).
Já em 1954 o jornal publica uma edição comemorativa ao seu centenário com
oito cadernos e cem páginas (ler mais no item 1.3.2 deste capítulo).
41
Em 1955
21
o Correio Paulistano foi novamente vendido e completamente
remodelado. João de Scantimburgo
22
fora o comprador e com ele fica até 1961;
nesse período a tiragem é de 70 mil exemplares. Scantimburgo compra o jornal de
Altino Arantes (1876-1965), governador de São Paulo entre 1916 e 1920, que havia
adquirido os direitos do Correio Paulistano de João Sampaio. A morte do
“bandeirante da imprensa paulista” está anunciada. Scantimburgo vende o jornal
para o padre Victor Ribeiro Nickelsburg, nome que já fazia parte do conselho
editorial, que o fecha em 1963 (ler o item 1.4 deste capítulo).
A luta de Azevedo Marques, mendicante de publicidade de porta em porta,
não encontrou respaldo na seqüência de proprietários que adquiriram os direitos do
jornal. Numa entrevista de Scantimburgo ao jornalista Myltainho
23
ele diz com
rispidez não ter guardado um exemplar sequer, uma foto, um documento, sob a
alegação que o jornal não lhe interessava. Tal atitude, naturalmente, trouxe lapsos
importantes na reconstrução do tempo histórico do Correio Paulistano devido à
destruição de material original.
21
Neste ano termina a ligação entre o Correio Paulistano e o Partido Republicano Paulista (PRP),
iniciada oficialmente em 1890. Mais sobre o assunto encontra-se no capítulo II, item 2.3.
22
Scantimburgo (1915-) foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Militante no jornalismo
paulista, lecionou na Fundação Armando Álvares Penteado e na Universidade Estadual Paulista
(UNESP). Foi diretor dos "Diários Associados”, do "Diário do Commércio" e do "Digesto
Econômico", em São Paulo, além do Correio Paulistano.
23
Em reportagem publicada na revista Jornal dos Jornais (vide bibliografia).
42
1.3 Cinqüentenário: abram alas para a chegada do século XX
Mesmo sem o seu “exhaurido vexillario”, já que Azevedo Marques falecera
dois anos após a proclamação da República e sua conseqüente demissão do jornal
que fundara, o Correio Paulistano chega a 1.904 para comemorar sua 50ª edição.
Para marcar o cinqüentenário do jornal, completado em 26 de junho, a
empresa encomendou da Europa máquinas de rotação e de estereotipia, mas um
problema de transporte atrapalhou o lançamento de uma edição especial. As
máquinas não chegaram a tempo e o artigo comemorativo só foi publicado em 14 de
julho de 1.904, na edição de número 14.698.
A edição especial saiu com oito páginas e nove colunas. Houve também uma
mudança na logomarca composta por letras de contornos mais leves, sem
requintados arabescos, numa tentativa de expressar a “modernidade” na qual o
jornal sentia-se agora inserido. O artigo comemorativo, bem simples por sinal,
tratava de marcar a importância do jornal na história da imprensa e da própria
cidade, que concomitantemente com ele se desenvolveu. Este artigo é o mesmo
apresentado na introdução do livro de Alberto de Souza
24
, fonte importante desta
24
Jornalista, poeta e escritor, Alberto de Souza (1870-1927) trabalhou no Correio Paulistano e na A
Província de São Paulo. Foi abolicionista convicto. Escreveu para inúmeros jornais e revistas em
Santos, São Paulo e Rio de Janeiro. Recebeu o título de doutor in honoris causa da Universidade de
Virgínia pelos seus conhecimentos em Ciências Sociais.
43
pesquisa. O livro foi publicado no mesmo ano do cinqüentenário, donde concluímos
que ele foi escrito para contar a trajetória do Correio Paulistano justamente como
parte das comemorações. Alberto de Souza colaborou durante vários anos
escrevendo para o jornal. Abaixo, o artigo na íntegra:
Escrever a história do Correio Paulistano é o mesmo que escrever a
história completa de nossa imprensa jornalística nos últimos cinqüenta
anos; e escrever a história do jornalismo paulista nesse dilatado percurso
de tempo equivale a escrever a própria história de nossa evolução
intellectual, política, social e econômica. Nenhum outro orgam de nossa
imprensa, periódica ou diária, jamais reflectiu tão accentuadamente, nem
tão energicamente desposou, as aspirações quaesquer de nossa terra, nas
diversas fases de seu desenvolvimento passado.
(Correio Paulistano, edição 14.698, 14 de julho de 1904, capa, sic)
Estampamos lado a lado as capas das edições 14.697 e 14.698 para
visualizarmos as modificações na logomarca e o artigo comemorativo ao 50º
aniversário do Correio Paulistano.
F
igura 12: Correio Paulistano, edição
14.697, 13/07/1904, com o antigo logotipo.
F
igura 13: Correio Paulistano edição 14.698,
14/07/1904, comemorativa ao 50º aniversário,
com o logotipo mais “moderno”.
44
1.3.1 No 95º aniversário: “as confidências de um anfitrião da
história bandeirante”
Ao comemorar a passagem dos seus 95 anos, o Correio Paulistano publicou
ampla reportagem a cerca de sua trajetória. A matéria está assinada por Daniel
Linguanotto (figura 14) e lembra que muito da história do jornal havia sido contada
por Alberto de Souza na edição comemorativa aos 50 anos do Correio Paulistano.
Segundo a reportagem de Linguanotto:
Não há episódio miúdo ou graúdo, ocorrido nos últimos 95 anos que não
esteja fielmente retratado nas colunas do “Velho Órgão”. Não há
acontecimento algum de relevância para os destinos desta terra no qual o
Correio tenha deixado de atuar de maneira preponderante. E de quantos,
verdadeiramente, não terá sido ele o fator ou juiz. Ninguém conta melhor
os derradeiros dias do Império e os primeiros da República. Ninguém,
sobretudo, rememora São Paulo, seu irmão mais velho, com mais carinho
e exatidão, pois ambos cresceram juntos, na mesma casa. Nada mais
justo, portanto, do que chamá-lo de “anfitrião da história bandeirante”.
(Correio Paulistano, 26/06/1949, edição 28.596, domingo)
O título da matéria é “Confidências de um anfitrião da história bandeirante” e o
subtítulo “O 95º aniversário do Correio Paulistano – sua vida e suas glórias – ninho
de estadistas – quando os imortais engatinhavam – primazias”. (anexos A, B e C)
O jornalista lembra os tempos difíceis da fundação do jornal e a coragem de
Azevedo Marques de lançá-lo sem condições financeiras e sem público leitor em
número suficiente. “Da torre da igreja do Colégio abrangia-se a cidade com um só
45
golpe de vista. Tão modesta que Santos e Campinas se julgavam a capital e
disputavam entre si a honrosa prerrogativa” – escreve Linguanotto.
Algumas passagens apontadas ao longo desta pesquisa são lembradas na
matéria dessa edição especial, como o caso da linha de bondes de tração animal (os
elétricos foram inaugurados em maio de 1900), cujos usuários encolerizados pelas
péssimas condições do transporte abarrotavam a Secção Livre do jornal com cartas
de reclamação e pedidos de providência.
O jornalista escreve estar temerário em revelar a verdadeira tiragem do jornal
naquele momento (1949), mas garante que ele já passara a casa dos 50 mil
exemplares e que “seu maquinário é tão moderno quanto o das demais empresas
jornalísticas do país”. Na lista de pioneirismos que o jornal carrega, a matéria
destaca o fato de o Correio Paulistano ter sido o primeiro jornal matutino a estampar
clichês, bem como a contratar fotógrafos para seu corpo de redação. Até então,
notícias ilustradas eram privativas dos “vespertinos escandalosos”.
Linguanotto escreve: “Os leitores que conhecem o atual Jornal do Commércio
do RJ, padrão da monótona discrição jornalística dos velhos tempos, podem ajuizar
o que foram os matutinos paulistas antes da sensacional inovação (grifo do autor)
do Correio Paulistano”.
F
igura 14: O jornal publica
ampla reportagem em
comemoração aos seus 95
anos de
f
unda
ç
ão.
46
1.3.2 Centenário: “um século de tradição a serviço de São Paulo e
do Brasil”
Podemos supor, com grandes chances de acerto, que nem em seus melhores
sonhos Azevedo Marques imaginaria que sua pequena folha, inicialmente impressa
por mão escrava, poderia chegar ao centenário. A edição de número 30.128,
publicada em 26/06/1954, já é bastante parecida com os jornais que conhecemos
atualmente. Dividida em oito cadernos foi praticamente dedicada a rememorar a
história do jornal, com artigos de diversos articulistas e publicidades de
parabenização das principais empresas da época anunciantes.
Na capa principal uma sobreposição de imagens da antiga São Paulo dos
tempos da fundação e modernos prédios, uma flâmula com as inscrições “1854 –
1954” e o texto “um século de tradição a serviço de São Paulo e do Brasil”. (anexos
E, F e G)
Na capa interna uma mescla de imagens de uma edição do jornal, da
bandeira de São Paulo e de uma antiga igreja (anexo D). O título principal é
“Memória Histórica sobre o Correio Paulistano” e o subtítulo “As diferentes fases
deste jornal – colaboradores e redatores – a evolução gráfica”. Logo abaixo do título
uma foto de Antonio da Silva Prado e nova menção ao livro de Alberto de Souza.
(anexos H e I)
Os articulistas, nomes já conhecidos do público, ganham espaço para seus
textos, cada um contando a história do jornal de um dado ponto de vista. Francisco
Martins dos Santos, fundador do Instituto Histórico e Geográfico de Santos publica
47
“De Adorno a José Bonifácio de Andrada e Silva” e lembra a passagem de
personagens e o espaço aberto para teóricos e teorias. (anexo J)
Fernando Egydio escreve “Minha Passagem pelo Correio Paulistano” e
descreve os companheiros que com ele dividiram as páginas do jornal. (anexo L)
Um dos principais textos está assinado por Nelson Werneck Sodré “Vida Literária –
um Século”. Sodré, como se sabe, tornou-se um dos maiores especialistas em
história da imprensa brasileira e é diversas vezes citado ao longo desta pesquisa
(anexo M)
João Sampaio, que no ano do centenário é o diretor do Correio Paulistano,
escreve:
Em 1892, quando Azevedo Marques morreu, o Correio Paulistano já era,
para a época, um grande jornal. Acompanhara o crescimento vagaroso da
cidade, de poucas dezenas de milhares de habitantes, a mais de setenta
mil no início da era republicana [...] de então em diante a capital seguiu o
desenvolvimento do Estado de São Paulo. E o nosso jornal conheceu a
prosperidade, não interrompida até que sobre o país se espalharam as
densas nuvens de uma revolução malograda (referia-se ao período em que
Vargas mandou fechar o jornal entre 1930 e 1934).
João Sampaio lembra ainda que o Correio Paulistano foi o terceiro do país a
completar um centenário, acompanhando o Diário de Pernambuco e o Jornal do
Commércio. (anexo N)
No anexo O vemos uma publicidade já com bons recursos gráficos de uma
das maiores empresas da época em São Paulo, a Seagers do Brasil S.A,
parabenizando o aniversário do jornal.
48
Como não poderia deixar de ser a edição especial também relembra a
primeira fase e publica antigos clichês que retratam aspectos da vida paulistana nos
meados do século XIX como a carruagem, principal meio de transporte. (anexos P,
Q e R). Azevedo Marques foi lembrado em ampla reportagem (anexos EE e FF).
As atividades de comemoração também foram externas à redação. Os
leitores puderam participar de uma missa solene na Catedral da Sé, celebrada pelo
Cardeal Mota, e de uma visita à necrópole da Consolação, quando o túmulo de
Azevedo Marques recebeu uma placa alusiva à data e depositaram flores nos
túmulos de Pedro Taques, Almeida Nogueira, Antonio Prado, Luiz Pizza, Herculano
de Freitas, Carlos de Campos, Lacerda Franco e Vitorino Carmillo. Houve ainda uma
sessão solene no Instituto Histórico e um almoço no Clube dos Proprietários de
Jornais e Revistas.
F
igura 15: A edição comemorativa ao centenário traz oito cadernos e textos especiais dos
p
rincipais articulistas do jornal.
49
1.4 Morte sem decadência: a última edição de um arauto do
jornalismo
Nascido durante a monarquia e cantando a República, berço de
transformações sociais, históricas e econômicas; arauto de diversas mudanças na
imprensa brasileira como a introdução dos jornais diários, os avanços na técnica de
impressão, o modo de utilização da fotografia, o “bandeirante da imprensa paulista”
chega a sua última edição. Conciliador, liberal, conservador, republicano...
O jornal que publicou palavras do famoso abolicionista Luís Gama, de Castro
Alves, Américo de Campos, José Bonifácio de Andrada e Silva, Alphonsus de
Guimarães, Pedro Taques, Coelho Neto, Werneck Sodré e tantos outros... O jornal
que assinou o “Apelo de Jornalistas ao Comitê de Defesa Proletária”, que articulava
uma reunião entre os grevistas de 1917, patrões e governo, num tempo de recessão
e fome no qual os trabalhadores em busca de trabalho tornaram-se andarilhos pelo
centro de São Paulo... O jornal que registrou a passagem de Luiz Murat, Fagundes
Varela, Martim Francisco Ribeiro de Andrada, Teodoro Sampaio, Rodrigues Alves,
Campos Sales, Júlio Prestes, Vicente de Carvalho, Bernardino de Campos, Américo
Brasiliense, Washington Luís... cala sua voz na edição de número 32.882, ano 110,
vendida a CR$20,00.
Na capa, abaixo da logomarca, o Correio Paulistano ainda trazia as
inscrições: “Fundador: Azevedo Marques”. A edição saiu com quatro páginas, oito
colunas e tamanho Standard (o mesmo dos grandes jornais da atualidade).
A data foi 31 de julho de 1963, quarta-feira, e o último endereço a Rua Líbero
Badaró. No expediente lê-se o nome de seu diretor: Péricles Eugênio da Silva
50
Ramos e dos membros do Conselho de Redação: Ruy Rebello Pinho, Carlos
Augusto Telles Corrêa, José Carlos de Ataliba Nogueira Júnior, Francisco Izolino
Siqueira, Ignácio Aragão, Monsenhor Victor Ribeiro Nickelsburg.
Não há evidências de decadência, problemas de ordem financeira ou
qualquer outro sinal nas edições que antecedem as finais, que dêem conta do fato
de um jornal de 109 anos estar publicando suas últimas edições. Também não foi
encontrada nenhuma nota ou comunicado para justificar ao público leitor o
desaparecimento do Correio Paulistano das bancas de jornal. Joaquim Roberto de
Azevedo Marques torna-se nome de uma rua no centro de São Paulo e isso é tudo.
F
igura 16: Correio Paulistano, última edição
disponível, número 32.882, ano 110,
31/07/1963, capa.
51
Na opinião de Souza (a quem podemos considerar um grande conhecedor da
trajetória do Correio Paulistano), o jornal soube transigir e ceder nos momentos de
crise. “Dobrou-se com intelligente solicitude ás correntes de opinião de cada época:
não lhes oppoz obstáculos”. (1904, p. 69, sic). É justamente nestas palavras que
encontramos respostas para uma das duas hipóteses passíveis de serem
formuladas para explicar o encerramento das atividades do jornal. Em 1889, o jornal
A Província de São Paulo deixa de ser o órgão oficial dos republicanos e passa a ser
O Estado de São Paulo. E isso ocorre justamente quando a República é oficialmente
declarada, ou seja, o jornal, que deveria ficar atrelado ao governo, segue como uma
empresa autônoma.
Coube ao Correio Paulistano assumir a posição deixada pelo O Estado de
São Paulo e passar a ser a folha oficial do governo republicano. O jornal age,
portanto, em direção contrária a do outro jornal citado. Ao “não opor obstáculos as
correntes de cada época” ficara atrelado a gostos e desgostos, mandos e
desmandos de cada governo, ora vivendo períodos de largueza orçamentária ora
passando por sérias dificuldades para se manter.
Um texto épico, dos tempos da grandeza helênica, com o qual Souza termina
seu livro, cabe ser aqui reproduzido:
A arvore que cede esforço da corrente e dobra-se com docilidade á sua
violenta passagem, conserva-se intacta – e vive. Mas, a arvore indócil que
não quer vergar-se e que não cede um só instante á impetuosidade das
águas, será fatalmente arrancada do solo com todas as suas raízes é
arrastada para longe pela força mesma das correntezas indomáveis.
(Sophocles: Antígona, Acto III, Scena I).
52
Tais palavras ratificam o eufemismo de Alberto de Souza com relação às
posições políticas historicamente assumidas pelo Correio Paulistano e corroboram
para a manutenção da primeira hipótese aqui levantada. Seu livro, autografado ao
amigo Abimael Silveira, em 15 de fevereiro de 1907 (gentilmente cedido ao Arquivo
Público do Estado de São Paulo, que possui este único exemplar), traz em diversas
passagens eufemismos quanto à troca constante de posição política enquanto
postura assumida pelo próprio jornal.
A outra hipótese está ligada ao golpe militar de 1964. O jornal, que havia sido
empastelado por quatro anos durante a ditadura Vargas, poderia ter sido novamente
fechado por razões políticas, uma vez que poucos meses separam o encerramento
de suas atividades da efetivação do golpe. É possível que haja outras pistas que
expliquem o encerramento do Correio Paulistano nas edições subseqüentes à
edição que analisamos e tomamos por última nesta pesquisa, as quais não tivemos
acesso até o fechamento da mesma (cfme nota explicativa presente neste capítulo,
p. 10, item 1.1, nota 03).
Figura 17: Capa do livro
do jornalista Alberto de
Souza, publicado em 1904,
como parte das
comemorações do 50
º
aniversário do Correio
Paulistano.
53
1.5 Joaquim Roberto de Azevedo Marques: o “exhaurido vexillario”.
O “incansável porta-bandeira” e fundador do Correio Paulistano vivia
modestamente, mas provinha de uma família com vasta linhagem. O levantamento
de dados foi dispendioso em tempo, mas através do cruzamento de diversas
informações foi possível decifrar um pouco do que foi a vida deste grande
empreendedor, capaz de lançar um jornal diário numa cidade de ainda poucas
ruas...
Marques é um sobrenome de formação patronímica, aquele que vem a ser o
“filho de Marcos”, uma derivação do prenome paterno. É originário de Viscaya, em
Portugal, onde inicialmente foi Marquiz. O cavaleiro João Marques, em 1248,
escalou a muralha da cidade de Sevilha durante a invasão dos mouros. Desde os
primeiros anos de povoamento do Brasil, esta família espalhou-se por diversas áreas
do nosso território como Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul.
A árvore genealógica de Joaquim Roberto de Azevedo Marques, o fundador
do Correio Paulistano, provém do ramo dos Marques que se fixou no Rio Grande do
Sul através de João Marques, que por volta de 1730 estabeleceu-se na Colônia do
Sacramento e se casou com a índia Ana Sampaio. Um dos descendentes do casal,
provavelmente neto, José Gomes Marques, assinou uma declaração em 1838 na
qual afirmou ser um português católico e casado com uma brasileira, apresentando
no documento a heráldica de sua família. Foi este documento que permitiu o
levantamento da constituição familiar dos Marques.
A união dos sobrenomes Azevedo e Marques provém de José de Azevedo
Barbosa, português (filho de Gerônimo Barbosa e Maria de Azevedo), casado com
54
Maria Marques de Souza, também portuguesa. José e Maria deixaram em
Sacramento uma vasta descendência de magistrados, jurisconsultos, médicos,
engenheiros, militares e jornalistas.
Um dos netos do casal era o major Joaquim Roberto de Azevedo Marques,
nascido em Sacramento em 07.06.1755 e falecido em Santos em 20.03.1827. O
major freqüentou a Universidade de Coimbra e casou-se com a santista Luiza
Americana dos Reis. Deste casal, nasceu Antonio Mariano de Azevedo Marques,
conhecido por Mestrinho, proprietário de uma tipografia e de quem o fundador do
Correio Paulistano era sobrinho. Foi ele quem lançou, em 1823, o primeiro jornal da
Província de São Paulo, ainda manuscrito, que só pôde circular depois de uma
autorização da Junta Governativa. Os leitores revesavam-se na posse da folha.
A irmã de Mestrinho, Ana Vitorina, casou-se com seu primo, o tenente
coronel Joaquim Roberto da Silva Marques. O casal vivia em Paranaguá, vasta
comarca que compreendia os Estados do Paraná e de Santa Catarina e ali nasceu o
fundador do Correio Paulistano e primeiro tipógrafo da cidade de São Paulo, o
tenente-coronel Joaquim Roberto de Azevedo Marques (18.09.1824 – 27.09.1892).
A mãe de Azevedo Marques veio para a capital de São Paulo em 1832,
quando ficou viúva e com sacrifício educou os filhos. O tenente-coronel cursou
Ciências Matemáticas, além da carreira militar. Eram seus irmãos: Manoel Eufrázio
de Azevedo Marques Sobrinho, autor de um livro de apontamentos históricos
registrado no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, José Cândido de
Azevedo Marques e Roberto Maria de Azevedo Marques, que foi sócio e redator do
jornal O Commercial (1857-1860) também impresso pela Tipographia Marques e
Irmão, empresa fundada na seqüência do lançamento do Correio Paulistano. O
jornal havia sido fundado por Azevedo Marques e, em seguida, entregue para a
55
administração do irmão. Fundou também a Gazeta de Campinas, empresa entregue
para José Maria Lisboa administrar. Antes destes dois e do próprio Correio
Paulistano, Azevedo Marques já havia tido outras experiências. O primeiro jornal
lançado por ele carregava a logomarca de “Americano”, além de haver sido também
editor de “O Ipiranga”.
Azevedo Marques casou-se em 1845 e teve 16 filhos e 24 netos. Os filhos
são Joaquim Roberto, José Maria, João Batista, Antonio Mariano, Artur, Alfredo,
Afonso, Maria Cândida, Gabriela, Júlia, Emília, Leocádia, Ana Benedita, Luiza,
Henriqueta e Francisca.
Ao fundar o Correio Paulistano ele introduziu no ofício seus filhos e filhas.
Leocádia e Henriqueta, por exemplo, eram as encarregadas das assinaturas e
subscritavam à mão o endereço dos assinantes. Joaquim Roberto de Azevedo
Marques Filho ajudava na contabilidade e foi um dos fundadores do Instituto dos
Advogados de São Paulo (IASP). Não foi possível levantar exatamente a função
ocupada por cada um na estrutura do jornal, vez que não era praxe na época os
jornais trazerem expediente, com especificação de nomes e funções.
O sogro de Azevedo Marques, também seu tio, visto que ele se casara com
sua prima Ana, José Gomes Segurado, era comerciante numa loja de fazendas na
Rua Direita e manteve um jornal bi-semanário lançado em 1832 também com o
nome de Correio Paulistano por aproximadamente um ano. Tal fato causou confusão
com a data de lançamento do jornal, como apontada por SCHWARCZ (1987).
Segundo esta autora, ambos os jornais seriam o mesmo, porém, baseados em
outras leituras preferimos a informação de autores especializados em história da
imprensa como Nobre, Sodré e Bahia, que apontam que, fora a logomarca, não
houve ligação entre os jornais. Além disso, há uma diferença de vinte e dois anos
56
entre um e outro e não há registro da passagem do sogro de Azevedo Marques pelo
Correio Paulistano ora pesquisado. Segundo Nobre, o primeiro Correio Paulistano
foi um intérprete do pensamento chimango, movimento liberador do padre Diogo
Antonio Feijó. Baseados ainda na edição do 100º aniversário do jornal, de
26.06.1954, de nº 30.128, compreendemos que Azevedo Marques decidira usar o
mesmo nome fantasia em razão de homenagear seu tio e sogro, também um dos
pioneiros da imprensa paulista.
Paralelamente às atividades do jornal Azevedo Marques carregou um
emprego como secretário da Câmara Municipal. Tirou uma licença de dois meses
para cuidar de sua saúde, mas faleceu no oitavo dia. É possível considerar que
alguns sofrimentos colaboraram para a decadência de sua saúde. Em 1882 vendera
os direitos do Correio Paulistano para Antonio Prado e ocupou no jornal apenas uma
função gerencial. Em 01/12/1889, poucos dias depois da Proclamação da República,
fora demitido do cargo de gerente. Em carta aberta ao público ele explicita sua dor:
“Sinto um profundo desgosto. [...] Desejo, porém, que aqueles que me julgavam
parte integrante da vida do Correio Paulistano, fiquem sabendo que hoje nada sou
no seu estabelecimento”.
Quatro anos antes de vender o jornal para Antonio Prado havia morrido um
de seus mais importantes colaboradores nas atividades da empresa, seu irmão
Manuel Eufrázio, o único ainda vivo. Apesar de ser o primogênito, Azevedo Marques
foi o último entre os irmãos a falecer. Carregava ainda onze anos de viuvez, já que
sua esposa o deixara em 1881. Durante seu enterro várias foram as homenagens,
inclusive da Associação de Tipógrafos e Jornais, fundada por ele. Outras vieram do
jornal que ele fundara em Santos e da Gazeta de Campinas, cuja administração
57
entregara a José Maria Lisboa, o mesmo que o deixara para juntar-se ao grupo que
lançou o jornal A Província de São Paulo (cfme capítulo II, itens 2.3 e 2.4).
No livro do cemitério Municipal de São Paulo, posteriormente batizado por
Cemitério da Consolação, encontra-se o registro:
Aos 27 dias do mês de setembro de 1892 sepultou-se num terreno
perpétuo à Rua 11 lado esquerdo nº 43, o cadáver do tenente-coronel
Joaquim Roberto de Azevedo Marques, com 68 anos de idade, natural de
Paranaguá, viúvo. Faleceu antes de ontem, às 11 da noite, vítima de
meningo encefalite. Atestado dos doutores Filadelfo e Ascendino Reis. É o
que certifica o escrivão Antonio José Veríssimo. São Paulo, 27 de
setembro de 1892.
(Correio Paulistano - 25.06.1854)
Azevedo Marques conseguiu publicar por conta própria o “Memorial
Paulistano” (não conseguimos localizar nenhum exemplar), uma espécie de
almanaque com todo tipo de informação a cerca da cidade, o primeiro, aliás. Isso em
1888. Seu grande projeto, entretanto, ficara inacabado: queria editar um livro sobre
a história da imprensa brasileira.
F
igura 18: Esta foto de
J
oaquim Roberto de
A
zevedo Marques,
f
undador do Correio
P
aulistano, é a única
disponível e está presente
em todas as matérias e
livros que citam o jornal.
58
Capítulo II
Novas idéias, velhos lobisomens e o
vínculo comunicativo entre um jornal diário e o
cotidiano de uma terra em construção
“Por isso esses dois periódicos (Correio Paulistano e O Estado de São Paulo)
são fontes inestimáveis para o exame da vida política”.
José Ênio Casalecchi (1987, p. 187)
59
2.1 O contexto histórico do século XIX: idéias que atravessam
oceanos
segunda metade do século XIX traz como embate principal a
formação de uma nação brasileira, ainda que o modelo
civilizatório venha made in Europe. Fundado em 1854, o Correio
Paulistano surgiu numa época e num meio cujas tendências ainda não estavam
precisamente, rigorosamente definidas. “Estávamos apenas no inicio da formação de
nosso caracter collectivo”. (SOUZA, 1904, p. 02, sic)
Segundo ele, o momento era de luta entre “o espírito liberal do nosso povo”
contra o “patente reacionarismo da política imperial”; luta sangrenta que não contou
com as benesses dos representantes reais, ao contrário do que a história oficial
eternizou. O Império, então, já não representa glamour e está de mãos dadas com a
escravidão e com a manutenção do Brasil na condição de colônia, impedindo que a
nação se desenvolvesse.
O contexto externo também se apresenta. A Inglaterra pressiona desde o
começo do século pelo fim da escravidão, o que faz primeiro, em 1807, pelos
mesmos interesses comerciais que motivaram seu incentivo no século anterior:
garantir mercados consumidores para o crescente desenvolvimento do capitalismo
industrial. A pressão inglesa, entretanto, só surte efeito no Brasil a partir de 1850
25
25
No mesmo ano da abolição do tráfico negreiro foi estabelecida a Lei de Terras. Durante o
período colonial, a aquisição de terras se fazia mediante a concessão de sesmarias, que foi
suspensa com a independência. A nova lei estipulava que a terra pública só poderia ser
60
com a aplicação das primeiras leis que rumavam à promulgação da Lei Áurea [farsas
jurídicas como a Lei do Ventre Livre (1871), dos Nascituros e Sexagenários (1885)].
A proibição do tráfico é importante, mas não alivia as tensões internas.
A Guerra de Secessão (1861-1865), nos Estados Unidos, prova a inutilidade
da escravidão, mas o ano chave foi mesmo aquele em que termina a Guerra do
Paraguai (1865-1870) e não há outro advento histórico que tire o foco da escravidão.
Brasil, Costa Rica e Cuba são os únicos países da civilização ocidental a admitirem
o cativeiro. Agravam-se as tensões entre senhores e escravos, assassinatos, fugas,
organizações em quilombos se tornam constantes e, junto à ação dos abolicionistas,
dão uma dimensão de movimento social ao grito antes isolado. (SCHWARCZ, 1987)
Associações organizam caixas de auxílio, empréstimos e juntas de alforria. O
Correio Paulistano publica constantes anúncios de senhores em busca de fugitivos.
Defende os escravagistas num primeiro momento, quando ainda ligado à monarquia,
através dos conservadores; posteriormente, adere aos abolicionistas quando os
ideais republicanos tomam vulto. As plantações estão com a escala produtiva
comprometida e agricultores do Oeste Paulista concedem liberdade mediante
contratos de trabalho. Temem ficar com o café no pé. Metade das exportações é
café; açúcar, couro, algodão e borracha formam o restante.
Se a escravidão de quatro milhões de africanos, braço de sustentação
monárquica, está com os dias contados, a Guerra do Paraguai também tirara jóias
da coroa imperial. Com o assassinato de Solano López, presidente do Paraguai, na
batalha de Cerro Corá, chegara ao fim a guerra de cinco anos da Tríplice Aliança
adquirida mediante a compra, dificultando o acesso à terra para as pessoas de poucos
recursos. Os grandes proprietários acreditavam que se a terra fosse facilmente adquirida por
qualquer pessoa ficariam sem mão-de-obra. Estavam garantindo seus privilégios de
proprietários e solidificando o drama da divisão de terras no Brasil.
61
contra o Paraguai. Financiada pela Inglaterra, a Tríplice Aliança constituída pelo
Brasil, Argentina e Uruguai fizera uma guerra sem precedentes na América do Sul.
Um terço da população paraguaia fora dizimada.
Este fato é de suma importância para acirrar o clima republicano, pois o custo
da guerra atrai a atenção da população para os delírios de D. Pedro II e para a
necessidade premente de recuperar as finanças do país. Escravidão e guerra.
Guerra e escravidão. Milhares de escravos foram enviados à zona de guerra e
retornavam como heróis. O Império usava o exército para sufocar as constantes
revoltas dos cativos. Caxias e outros militares fizeram carreira destruindo quilombos,
mas, com o fim da guerra, os soldados recusavam-se a perseguir colegas dos
campos de batalha, trabalho delegado às milícias locais.
O Brasil detinha ainda outro pódio: era o único país latino a manter uma
monarquia que, agora, se via às voltas com escravos heroicizados. O poder tem
suas colunas de sustentação na tríade - Coroa, proprietários de terra, escravidão -
porém, a passagem dos dias mostrava a ruína dessas bases. A classe imperial
dominante pratica uma política imobilista: mediante todos esses acontecimentos
prefere fazer de conta que nada está havendo.
A imprensa fazia campanha sistemática com a publicação de artigos de
abolicionistas e contra os desmandos do imperador. Nela, já ocupavam espaço
negros importantes como Luís Gama, Quintino de Lacerda e José do Patrocínio.
Chegavam ao Brasil notícias da queda do Segundo Império na França e sua
substituição pela Terceira República Francesa. E assim, caíam, uma a uma, as
estruturas monárquicas, essas alturas sensivelmente debilitadas. D. Pedro II é
duramente criticado por todos os lados e os dois partidos da monarquia – liberal e
62
conservador – perdem sua pouca importância. José Bonifácio de Andrada e Silva, o
Moço, escreve nas páginas do Correio Paulistano.
O campo é cada vez mais perfeito para que a República surja. Na introdução
de seu livro, Souza (1904) critica “os escuros tempos da escravidão colonial” e
ressalta a vitória do “pensamento republicano em 1889”. Tais palavras, escritas 15
anos depois de proclamada a República, nos lembram que esta foi a grande
conquista social e política do período, apesar dos inúmeros reveses. E a convivência
indiscutível do Correio Paulistano
26
em todo o processo: “Em suas columnas, os
anceios e as duvidas, as angustias e as crenças da alma brasileira borbulhavam
contradictorias e desordenadas”. (SOUZA,1904, p. 04, sic)
As tais “novas idéias” que borbulhavam a alma brasileira “contraditórias e
desordenadas” criticavam, além da escravidão, os privilégios dos amigos da Corte e
as fortes ligações entre a Igreja e o Estado. E trazem a pergunta sobre como lidar
com a sociedade de trabalhadores livres e de poder descentralizado que lhe acena
com a mão.
Quando a escravidão oficialmente se vai, em 13 de maio de 1888, leva o
império quase simultaneamente. Finalmente chegam os esperados “novos tempos”.
“Novos tempos” esses que sofreriam um dramático empecilho: a massa de negros
jogada às ruas, relegada à própria sorte. Para tal, não tardam a buscar respostas
nas teorias deterministas européias, que passam a “explicar” nossa realidade e a
colocar o negro como um “objeto da ciência”. Esses discursos deterministas
proliferam na imprensa. Euclides da Cunha, por exemplo, escreve numa seção da A
Província de São Paulo na qual cita Charles Darwin, Spencer, Huxley, Auguste
26
Ler sobre o Partido Republicano e o Correio Paulistano no item 2.3 deste capítulo.
63
Comte e defende claramente a superioridade natural da raça branca, considerando a
miscigenação prejudicial e o mestiço um desequilibrado.
As idéias que preenchem as páginas do Correio Paulistano e constroem o
imaginário dessa nação em formação de caráter estão baseadas em alguns
cientistas que abalaram antigas estruturas de crenças durante o século XIX. Darwin
(1809-1882), Comte (1798-1857) e Karl Marx (1818-1883) não poderiam ser
esquecidos, ainda que superficialmente citados.
Darwin, por exemplo, escandaliza os europeus com seu livro “Sobre a origem
das espécies”, colocando o processo de seleção natural em contrapartida com o
texto bíblico. Era 1859 e o cientista inglês, filho de um pastor anglicano, após longas
viagens e pesquisas, inclusive pela América do Sul, conclui que a história dos seres
vivos não passa de uma guerra entre as várias espécies e também dentro de uma
mesma espécie. Desta guerra saem sobreviventes apenas os mais fortes e mais
adaptados ao meio ambiente. O abalo nas convicções não ocorreu por acaso. De
repente o homem não é mais, de acordo com o darwinismo, o centro da criação, e
descende de ancestrais primitivos e animalescos, tendo se tornado mais apto à vida
pelo ambiente e por sua própria luta pela sobrevivência. Um caos semelhante
àquele provocado pela descoberta de que não era a Terra o centro do sistema solar.
O polêmico Comte cumpre sua parte. A seleção natural deveria ter
correspondência na evolução da sociedade. Rejeitando as misérias conseqüentes
das duas revoluções industriais, esse pensador e seus contemporâneos criaram
utopias para a sociedade, que deveria com o tempo superar ou diminuir
drasticamente suas diferenças. Ele acreditava que a vida social poderia ser
analisada através de um modelo científico e assim criou a Sociologia. Sua
64
interpretação da história da humanidade (filosofia da história) levou-o a considerá-la
como um processo permanente de melhoria, passando por estágios inferiores (fase
teológica e fase metafísica) até alcançar um patamar superior (fase positiva). Por
isto foi denominada Positivismo a doutrina que Comte elaborou entre 1830 e 1854,
com ênfase especial no conhecimento propiciado pela observação científica da
realidade. Este conhecimento tornaria possível o estabelecimento de leis universais
para o progresso da sociedade e dos indivíduos.
Comte, porém, abominava tanto a revolução quanto a democracia, vendo
nelas apenas o caos e a anarquia. Para ele, “a ordem era a base do progresso
social”. Seu modelo positivista de regime foi o republicano, mas estruturado sob a
forma de uma “ditadura científica”. Homens esclarecidos e da máxima honestidade –
verdadeiros sacerdotes do saber (tecnocratas, diríamos hoje) – aconselhariam os
ditadores ilustrados e, de certa forma, comandariam as ações do Estado para
integrar os mais pobres ao universo social. Além da proteção ao proletariado,
figuram entre os postulados positivistas a separação entre o poder religioso e o
poder civil e a universalização do ensino primário.
As idéias de Comte tiveram enorme repercussão no Brasil, principalmente em
seu aspecto religioso. Em 1876, fundou-se a primeira Sociedade Positivista do Brasil
tendo à frente Teixeira Mendes, Miguel Lemos e Benjamin Constant, que constituiu a
origem do Apostolado Positivista do Brasil e da Igreja Positivista do Brasil, cuja
finalidade era “formar crentes e modificar a opinião por meio de intervenções
oportunas nos negócios públicos”.
Entre essas intervenções, sem dúvida, foi importante a participação dos
positivistas no movimento republicano brasileiro, embora seja um exagero dizer-se
65
que foram eles que proclamaram a República. Influíram, é verdade, na Constituição
de 1891 e a bandeira brasileira passou a ostentar o lema comteano “Ordem e
Progresso”. Forneceram aos republicanos sul-rio-grandenses e aos jovens oficiais
do Exército uma ideologia de mudança sem o risco da desordem. De certa maneira,
estas idéias sedimentaram uma linha reformista autoritária iniciada no Rio Grande do
Sul com o governo de Júlio de Castilhos (1893-1900) e continuada pelo Estado Novo
(1937-1945) e pelo regime militar (1964-1984). No século XX, o entusiasmo pelo
positivismo religioso decresceu consideravelmente, mas continua a existir a Igreja
Positivista do Brasil, no Rio de Janeiro, que permanece atuante até os dias de hoje.
Uma vez que Comte queria educar moralmente os capitalistas e não eliminá-
los, suas teorias não foram tão revolucionárias quanto a de outro contemporâneo
seu. É impossível trafegar pelo século XIX sem falar sobre um dos maiores
pensadores sociais de todos os tempos. Um pensador que nos propôs um telos num
dado tempo histórico que não podemos precisar cirurgicamente já ter passado. As
idéias de Karl Marx, no entanto, só alcançaram grande ressonância no século XX,
após a revolução que criou a União Soviética. Para ele, as lutas sociais decorriam da
revolução industrial na Europa e do conflito entre o burguês e o proletário. A história
da humanidade teria sido sempre marcada pela luta de classes, cuja intensidade
variava com o tempo. Na Antigüidade Clássica, por exemplo, ela se dava pelo
permanente confronto entre os senhores e os escravos. Já na Idade Média, o
conflito entre as classes evidenciava-se no esforço dos servos e dos vilãos para se
emanciparem do domínio que os senhores feudais exerciam sobre eles.
Marx tinha uma visão otimista do destino da humanidade. Acreditava que a
batalha final travada entre os capitalistas e os operários, seguramente levaria à
vitória destes últimos, que representavam a maioria da sociedade. A partir de então
66
se constituiria um mundo ideal onde todas as diferenças de classe desapareceriam e
o império da igualdade entre os homens finalmente triunfaria. “Com essa revolução
social - escreveu ele ao encerrar O Manifesto Comunista, em 1848 - “os proletários
nada têm a perder a não ser seus grilhões. E têm um mundo a ganhar”.
Como cientista social, a maior contribuição de Karl Marx foi seu estudo sobre
o funcionamento da sociedade capitalista, cujo primeiro volume O Capital (1867) foi
o único publicado em vida. Iniciando pela análise da produção das mercadorias,
Marx realiza uma impressionante descrição do sistema capitalista, sua evolução e
suas transformações. Segundo ele, o capitalismo seria um sistema historicamente
datado e, portanto, sujeito a desaparecer no tempo. Sua existência, tal como
sucedera com o escravismo e o feudalismo, chegaria ao fim com uma grande crise,
uma espécie de catástrofe geral da economia e das instituições que começaria nos
países mais industrializados da Europa. Paradoxalmente, a concepção marxista veio
a triunfar na Rússia e na China, países rurais e atrasados.
Na segunda metade do século XIX, Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica e
Itália eram consideradas grandes potências industriais. E na América, os Estados
Unidos já apresentavam um grande desenvolvimento. Todos estes países
exerceram atitudes imperialistas, interessados em formar grandes impérios
econômicos, levando suas áreas de influência para outros continentes.
Com o objetivo de aumentarem sua margem de lucro e também de
conseguirem custo consideravelmente baixo para seus produtos, matérias-primas e
fontes de energia, estes países se dirigiram à África, Ásia e Oceania, dominando e
explorando estes povos. Não muito diferente do colonialismo dos séculos XV e XVI,
que utilizou como desculpa a divulgação do cristianismo, o neocolonialismo do
67
século XIX usou o argumento de levar o progresso da ciência e da tecnologia ao
mundo.
O ponto culminante da dominação neocolonialista ocorreu quando países
europeus dividiram entre si os territórios africano e asiático, sem o intuito de
levar em conta as diferenças étnicas e culturais destes povos. De acordo com
Cáceres (1988), devido ao fato de possuírem os mesmo interesses, os
colonizadores também lutavam entre si para se sobressaírem comercialmente.
O governo dos Estados Unidos, que já colonizava a América Latina, ao
perceber a importância de Cuba no mercado mundial, invadiu o território que,
até então, era dominado pela Espanha. Após este confronto, as tropas
espanholas tiveram de ceder lugar às tropas norte-americanas. Em 1898, as
tropas espanholas foram novamente vencidas pelas norte-americanas e, desta
vez, a Espanha teve de ceder as Filipinas.
Um outro aspecto importante a se estudar sobre o neocolonialismo é a
entrada dos ingleses na China, ocorrida após a derrota dos chineses durante a
Guerra do Ópio (1840-1842). Esta guerra foi iniciada pelos ingleses após as
autoridades chinesas, que já sabiam do mal causado por esta substância, terem
queimado uma embarcação inglesa repleta de ópio. Depois de ser derrotada
pelas tropas britânicas, a China foi obrigada a assinar o Tratado de Nanquim,
que favorecia os ingleses em todas as cláusulas. A dominação britânica foi
marcante por sua crueldade e só teve fim em 1949, ano da revolução comunista
na China.
Hoje, pode-se afirmar sem erros, com a certeza dos fatos históricos
decorrentes, que os colonialistas do século XIX só se interessavam pelo lucro
68
obtido através do trabalho que os habitantes das colônias lhes prestavam e não
se importavam com as condições de trabalho, tampouco se os nativos iriam ou
não sobreviver a esta forma de exploração desumana e capitalista. Foi somente
no século XX que as colônias conseguiram suas independências, porém,
herdaram dos europeus uma série de conflitos e países marcados pela
exploração, pelo subdesenvolvimento e pelas dificuldades políticas.
Ainda contextualizando o lançamento do Correio Paulistano e o
desenvolvimento da imprensa e da política em São Paulo e no Brasil entre os
mais importantes eventos históricos do século XIX
27
com conseqüências no
século XX, não se pode esquecer da presença marcante do modernismo no
campo artístico. Esse movimento surge justamente na última década do século
passado como resposta às conseqüências da industrialização, revalorizando a
arte e sua forma de realização: a manual. O nome deste movimento deveu-se à
loja que o alemão Samuel Bing abriu em Paris no ano de 1895: Art Nouveau.
No resto da Europa difundiram-se diferentes traduções: Modernismo, na
Espanha; Jugendstil, na Alemanha; Secessão, na Áustria; e Modern Style, na
Inglaterra e na Escócia. (HARRISON, 2001)
Segundo este autor, com características próprias em cada um destes
países as primeiras exposições internacionais organizadas nas capitais
européias, contribuíram para forjar certa homogeneidade estilística. A
arquitetura foi a disciplina integral à qual se subordinaram as outras artes
27
Não se pretendeu neste texto nenhuma análise histórica ou interpretação destes fatos, nem mesmo
retratar “todo” o contexto social-histórico do século XIX (o que seria impossível dada a largueza de
tempo histórico), mas, tão somente, contextualizar o Correio Paulistano com o período histórico no
qual ele esteve inserido. O mesmo ocorre com os fatos marcantes do século XX citados.
69
gráficas e figurativas. Reafirmou-se o aspecto decorativo dos objetos de uso
cotidiano mediante uma linguagem artística repleta de curvas e arabescos, de
acentuada influência oriental.
Contrariamente à sua intenção inicial, o modernismo conseguiu a adesão
da alta burguesia, que apoiava entusiasticamente essa nova estética de
materiais exóticos e formas delicadas. O objetivo dos novos desenhos, então,
reduziu-se meramente ao decorativo e seus temas, como que surgidos de
antigas lendas, não tinham nada em comum com as propostas vanguardistas
do início do movimento. Paradoxalmente, o modernismo não teria sido possível
sem a subvenção de seus ricos mecenas.
Exatamente assim ocorreu com o movimento brasileiro - de traço de
ascensão burguesa - e cujo um dos principais organizadores da Semana de
Arte Moderna, Paulo da Silva Prado, pertencia à oligarquia do café, provedora
da riqueza e dos títulos da família Silva Prado.
O envolvimento do Correio Paulistano com tal movimento é criteriosamente
analisado no capítulo III desta dissertação.
70
2.2 A Vila de São Paulo de Piratininga: o som de um burburinho no
silêncio dos matagais
Tanta efervescência social e política na virada do século XIX no Brasil e no
mundo diferiam da situação anteriormente encontrada nos exatos 300 anos entre a
fundação de São Paulo (1554) e a do Correio Paulistano (1854), quando muito
pouco se modificara no modo de vida da cidade. Uma planta da (ex) Vila de São
Paulo de Piratininga (figura 19) revela o que foi a cidade no período e, portanto, nos
dá uma idéia de toda a Província.
Mesmo com a elevação da vila à categoria de cidade, a futura maior
metrópole do hemisfério sul tratava-se, ainda, de uma aldeia colonial
28
– um
pequeno núcleo de ruas esburacadas e escuras, casebres e matagais. Conforme
Souza (1904, p.9): “nessas ruas se movimentava o espírito público, germinava a
incipiente civilização paulista”. O fato é que a geografia depunha a favor do
desenvolvimento tardio, já que a vila estava segregada da costa marítima e da
capital do Brasil (Rio de Janeiro) pela falta de estradas. No atual Parque do
Anhangabaú se planta agrião e se caça lagartos. Os habitantes dormem cedo, logo
ao pôr do sol e, na falta de médicos, proliferam boticas e curandeiros. A política e os
jogos eram feitos nas farmácias (um dado bastante curioso sobre doenças, vícios e
cura...!).
A beleza e a singularidade do relato a seguir merecem destaque:
28
A família real portuguesa estava no Brasil desde 1808. A vila de São Paulo de Piratininga foi
elevada à cidade em 24/07/1711, mas quase nada nela se modificara por ainda mais de 150 anos.
Depois da Independência (1822) tornou-se capital da Província.
71
Ruas tão esburacadas. Absoluta escuridão á noite. Os combustores
públicos de illuminação a kerozene, collocados economicamente á
distancia respeitável uns dos outros, projectavam de longe em longe, o
clarão amortecido de sua luz vasquejante, no chão deserto das viellas
esburacadas e sobre a frontaria caliginosa e grosseira dos velhos casarões
adormecidos na treva [...] cortava o silêncio o vulto mysterioso e lesto de
um noctivago retardatário deslisava rente á parede, sob o alongado beiral
dos telhados ennegrecidos, escondendo a guitarra trovadoresca nas
dobras da capa fluctuante e larga. [...] ás vezes ouvia-se o grito de terror
da patrulha de ronda quando encontrava numa esquina mal assombrada, o
perfil esguio de um lobishomem gigantesco [...]. (SOUZA,1904, p. 09, sic)
Figura 19: Planta da cidade de São Paulo em 1854, data do lançamento do
j
ornal Correio Paulistano, quando esta já contava com 300 anos de
fundação (extraída do livro de Alberto de Souza).
72
Estudos superiores só em Coimbra, pelo menos até 1827, quando são
instaladas as duas primeiras salas de cursos jurídicos no Brasil – uma no Convento
de São Francisco (construído em 1624); outra em Olinda. O único agito em São
Paulo fica por conta dos estudantes abastados que gastam aqui as fortunas das
fazendas de seus pais. E esse burburinho, somado à ascensão do Centro-Oeste
cafeeiro, trouxe dinheiro e a conseqüente necessidade de melhorar a cidade para
acolher a aristocracia. E ela, que nunca dormiu cedo (nem de olhos fechados),
lotava os saraus das noites do Cassino nas apresentações de arte dramática e
teatro lírico.
A Secção Livre do Correio Paulistano publica toda sorte de reclamações e
exigências em relação ao serviço teatral, considerado como um verdadeiro serviço
público. Os leitores exigiram, inclusive, trocar o drama (que eliminava personagens
com veneno e punhal) por comédias “em nome do pensamento moderno”. Houve
mudanças, mas apesar da subvenção do governo e predileção do público por esse
gênero de diversão, publicava a Secção que “o mobiliário era sempre o mesmo,
tanto para salas nobres como para as pocilgas plebéias, os cenários eram velhos e
estragados e a guarda-roupas reduzidíssima, um tanto quanto esfarpelada e
safada”.
A elite em tudo fora ouvida. Já no fim do século XIX e, principalmente, nas
primeiras décadas do século XX, levantam-se os palacetes, as lojas de tecidos,
charutarias, lojas de crédito, escolas, destilarias, fábricas de móveis e artefatos,
tecelagens, cerâmicas... Segundo Gilberto Freyre
(1985, p. 393) nossa aristocracia
quisera se parecer com a européia modificando os próprios hábitos e costumes.
Substituem violões por pianos ingleses, modinhas pela música francesa, o rapé da
73
Bahia ou do Rio pelo charuto Manilha ou Havana e os doces das fazendas por
importados adquiridos em luxuosas confeitarias.
A ciência chega com médicos e engenheiros, a cidade recebe água, esgoto e
campanhas de vacinação. Os “higienistas” interferem em tudo. Naturalmente, o luxo
e a riqueza propiciados pelo café não beneficiam a todos e a preocupação com a
reorganização dos espaços e a difusão das “novas idéias” deixa de fora os negros
libertos, as mulheres, os pobres e os analfabetos. Paralelamente, a miséria corre
pelos trilhos das recém-instaladas ferrovias tão rápida quanto as melhorias. Uma das
provas de como o crescimento da cidade é projetado para atingir os interesses das
elites e não como desenvolvimento social e sustentável é o caso – bastante comum
– do poderoso Antonio da Silva Prado (capítulo I, item 1.2, p. 31, nota 15), que
financia a construção da ferrovia Cia. Paulista cuidando para que um ramo saísse
direto de sua fazenda.
O bandeirantismo alargara as fronteiras em todo o Estado de São Paulo e o
café tomou praticamente todas as regiões. O alto custo de transportar as sacas fez
com que, já em 1891, das 67 petições apresentadas em duas sessões da Câmara
dos Deputados, 48 fossem para obter o privilégio de construir ferrovias. Eram as
ferrovias que mantinham as cafeiculturas economicamente viáveis e possibilitavam a
exploração das terras virgens do interior. Representavam também lucratividade certa
para o investimento do capital excedente dos fazendeiros. Mas, na mesma medida
em que tornavam possível a exploração de terras mais distantes também traziam à
tona o agudo problema da falta de mão-de-obra, preocupação de todos os
segmentos dirigentes da Província desde a proibição do tráfico em 1850.
Conforme Costa (1987) as primeiras levas de imigrantes ficaram lado a lado
com os cativos nas novas regiões cafeeiras do Oeste Paulista, que domina depois
74
que o Vale do Paraíba perde sua importância. O Oeste, portanto, cresce com o
trabalho assalariado e o Vale decresce com o serviço escravo. A diferença é que os
imigrantes alemães, italianos, espanhóis e portugueses tomam outros espaços além
do rural e ocupam diversas profissões e posições; já o trabalho que ninguém quer
como coleta de lixo, lavanderia, cozinha e ambulante fica a cargo dos negros
libertos.
Até 1895, poucos anos após a abolição e a República, sociedades não
governamentais já haviam introduzido mais de 120 mil imigrantes em São Paulo.
Entre os anos de 1886 e 1897 a Província/Estado recebeu 727 mil imigrantes, a
maioria italiana. O Correio Paulistano e outros jornais chegaram a discutir, por volta
de 1892, a introdução de imigrantes asiáticos e indianos. Os debates ocorriam
também no parlamento. Houve tantas reuniões e tamanha união em torno das
melhores formas de se repor a mão-de-obra, que historiadores consideram esse
período como o gerador do “poderoso germe do espírito associativo das classes
dirigentes para a defesa de seus interesses”. O trabalho livre
29
mudou o complexo
cafeeiro, diminuindo os custos da produção (nos últimos tempos de escravidão eram
altos os custos de manutenção e impostos sobre o cativo) e proporcionando a
introdução de maquinários e implementos. Com o imigrante vêm suas culturas
milenares, menos expropriadas do que a cultura negra.
29
Neste momento, não se pode considerar ainda o regime de trabalho como livre ou assalariado,
pressupostos do capitalismo, mas, sim, de transição entre o trabalho escravo e o livre, chamado
colonato. Os colonos recebiam certa quantidade de pés de café para cultivar e entre os pés plantavam
agricultura de subsistência. Pagavam para usar as terras dos fazendeiros, ao invés de os fazendeiros
pagarem por seu trabalho, como no regime “livre”.
75
O colonato resultou ainda na diversificação agrícola e no surgimento de
mercado para o excedente oferecido. O “salário” ampliava o mercado corrente dos
bens de consumo e desenvolvia manufaturas. Os imigrantes não-agrícolas e o
êxodo durante as crises do café foram também responsáveis pela expansão urbano-
industrial de São Paulo. Estes números mostram o que acontecia: a cidade contava
em 1870 com 25 mil habitantes; cerca de 65 mil em 1890 e quase 240 mil em 1900.
A Província passa de pouco mais de 800 mil pessoas (1872) para mais de um
milhão e 200 mil (1886).
A educação, entretanto, não acompanha todo esse “desenvolvimento” e a
densidade demográfica. Nesta época, o número de normalistas formadas não
passava de oito e os alfabetizados, segundo relatório de 1888 apresentado ao
presidente da Província, apontavam 20% da população, dos quais 0,58% com
instrução secundária e 0,15% superior. Entre os que tinham diploma superior
estavam os que mandavam na política: 100% dos conselheiros de Estado, 95% dos
ministros, 90% dos deputados e 85% dos senadores passaram pela academia,
principalmente a de Direito e de Medicina.
Para os poucos letrados desenvolvia-se a imprensa. Dados de 1883 apontam
a existência de 57 jornais: 16 liberais, 6 conservadores, 5 republicanos, 4
comerciais, 2 católicos e 25 sem compromissos explícitos. Na capital, os diários
eram, além do Correio Paulistano, o Diário de São Paulo, a Gazeta do Povo, o
Jornal do Commércio, a A Província de São Paulo e O Ipiranga. Havia ainda o Diário
de Santos, a Gazeta de Santos e o Diário de Sorocaba. (cfme. Casalecche, 1987)
Da dissidência de A Província de São Paulo funda-se o Diário Popular e,
observa-se que, no período que antecede à Proclamação da República a diferença
na imprensa é feita pelo Correio Paulistano (1854) e, na seqüência, pela A Província
76
de São Paulo (1875) e pelo próprio Diário Popular (1884). Ao contrário destes, como
vimos, o Correio Paulistano não viraria o século XX.
Se após a instalação do regime republicano e a concomitante mudança do
eixo econômico, político e geográfico do país do Rio de Janeiro para São Paulo
brilham as melhorias e se escondem as desigualdades, na imprensa as
transformações são tanto quanto significativas.
A passagem do século (XIX) assinala no Brasil a transição da pequena à
grande imprensa. Os pequenos jornais de estrutura simples, as folhas
tipográficas, cedem lugar à imprensa jornalística, com estruturas
específicas e dotadas de equipamentos gráficos necessários à sua
função”. (SODRÉ, 1966, p. 364).
Em seu artigo “A Questão Nacional na Primeira República”, Lucia Lippi
Oliveira (1997, p. 186) destaca o papel político do Estado agindo sobre os
fundamentos culturais que estão a seu dispor em cada momento histórico. “No final
do século XIX, os Estados passam a agir sobre a máquina da comunicação –
imprensa, cinema, rádio, ensino – inventando e inculcando tradições a fim de
homogeneizar e padronizar seus habitantes [...] organizar e disciplinar seus
indivíduos”.
77
2.3 O “Partido dos Velhos”: o jornal torna-se órgão oficial do
Partido Republicano Paulista (PRP)
Até 1864, o Liberal e o Conservador eram os únicos partidos políticos no
Brasil. A partir daí surge o Partido Progressista formado a base dos liberais
históricos e conservadores dissidentes ou moderados, mas essa mistura não
funcionou e o partido teve vida curta. Os liberais apresentavam propostas mais
“avançadas” no programa dos seus Clubes Radicais. Manifestavam-se contra o
poder pessoal e o moderador (do imperador), propunham sufrágio direto e universal,
o fim da guarda nacional e da polícia eletiva, a temporariedade do senado, a
substituição gradual do trabalho escravo pelo livre etc. Tais idéias eram
incompatíveis com os conservadores, mesmo com os mais moderados.
Os partidários do progressismo acabaram por se juntar a outros liberais e
formaram um novo Partido Liberal, cujo manifesto data de 1869. Era menos radical
que o anterior e propunha, por exemplo, o voto direto, mas não universal. O órgão
oficial dos republicanos, neste momento, é o jornal A República (1870-1873), dirigido
por Quintino Bocaiúva, Aristides Lobo e Manoel Vieira Ferreira. Saía três vezes por
semana e, às vezes, diariamente, chegando a tiragem de 10 mil exemplares num
dia. Em suas páginas pregações a favor da separação entre a Igreja e o Estado;
contra o castigo corporal nas forças armadas e a favor da federação. Fechou
empastelado por monarquistas, cfme Chagas (2001, p. 141).
Foi A República quem publicou o manifesto que organizou o primeiro Partido
Republicano, em 1870, cuja proposta básica era a queda da monarquia. Qualificava-
a o manifesto como portadora de muitos defeitos e responsável por quase todos os
males que afligiam a sociedade da época. A República seria a solução e a
78
democracia romperia a restrita participação que o sistema monárquico impunha.
Então, com propostas consideradas avançadas e modernas, o Partido Republicano
ascende ao poder com a proclamação e sua raiz mais forte é o PRP (Partido
Republicano Paulista), em cuja base, entretanto, continuam os cafeicultores e o que
se vê, segundo Lilia Schwarcz (1987), é uma adaptação das idéias originais “liberais”
às práticas das elites brasileiras.
A história do PRP está intimamente ligada ao Correio Paulistano, jornal que o
representou durante longos anos, desde quando se firmou a versão paulista do
Partido Republicano. Dessa forma, precisamos compreender essa ligação. O
movimento republicano impôs o presidencialismo, o federalismo e a ampliação do
regime representativo, mas, ao limitar o direito de voto ao alfabetizado, marginalizou
ampla camada popular. Mesmo com dados já do final de 1920, 80% da população
brasileira vivia no campo onde predominava o analfabetismo.
O federalismo também causa grande ruptura com o sistema até então
praticado, visto que os Estados independentes ficam desafogados do escorchante
centralismo monárquico, entretanto, torna-se, ao mesmo tempo, uma espécie de
movimento separatista, em especial em São Paulo e no Rio Grande do Sul. O
republicanismo paulista era o mais organizado e combativo, bastante ligado aos
interesses dos proprietários locais
30
. A vestimenta liberal e democrática do novo
regime se esgarça quando, ao lado da marginalização das camadas populares,
assumem os governos estaduais membros da elite, que pretendia ser a única com
30
Em 1878, entre os republicanos paulistas mais de 30% eram proprietários rurais; na Província do
Rio representavam menos que 2%, enquanto que os profissionais liberais (advogados, jornalistas,
professores, médicos, engenheiros etc.) formavam mais de 60% da base do partido.
79
representatividade. Os Estados passam a ter como donos grupos políticos, famílias
latifundiárias ou até mesmo uma única família. “A autonomia das Províncias era a
forma de, pela República, atingir-se a ´comunhão da família brasileira´, tão
sacrificada pela centralização.” (CASALECCHI, 1987, p. 42)
Neste sistema político oligárquico criou-se uma teia de submissão e
dependência entre o eleitor, o coronel, o partido e o Estado. “Descartava-se a
República, como já o fizera o Império, de seu componente anárquico: o povo”.
(CASALECCHI, 1987, p. 13). De fato, em São Paulo mais do que no Rio de Janeiro
(os dois Estados foram os maiores focos do republicanismo), cartas trocadas entre
os republicanos e notícias de jornal dão conta que o povo assistiu à revolução
monarquia/república bestializado, surpreso, sem saber do que se tratava. Segundo
Holanda (1972, p. 360), “ao proclamar a República, Deodoro não estava muito certo
de que a oligarquia monárquica pertencia ao passado e que o futuro seria da
oligarquia republicana”. Isso porque o marechal reconhecia entre as forças que
depuseram o trono a presença forte de ambas as oligarquias.
Não à toa, São Paulo fora o lugar onde mais facilmente encontrou guarida o
manifesto que pregava a República. Por aqui, acreditava-se, já em 1879, que a
Província se tornaria em breve a maior potência da América do Sul. Efetivamente,
porém, os partidários que fundaram o PRP em São Paulo não passavam do número
de dedos das mãos. Segundo recomendações de Campos Sales (ler neste capítulo,
o item 2.4, p. 69), as regras para a participação na agremiação eram: “pertencer ao
mesmo meio social e estar sujeito às mesmas influências”. No ano de 1872, a
convenção mais famosa do PRP, a Convenção de Itu, contou com 133 “homens de
posses” assim distribuídos: 78 proprietários de terra e o restante de outras
profissões (12 negociantes, advogados, médicos etc), segundo Trevisan (1987).
80
Esta convenção apontou a necessidade da criação de um jornal próprio, idéia
ratificada no Congresso do Partido, em 1874.
O Correio Paulistano, fundado em 1854, em apenas trinta anos já havia sido
“conciliador”, “conservador” e “liberal”, mas desde a Convenção de Itu
propagandeava o republicanismo, os atos oficiais do PRP e o congresso de 1874,
data em que voltou a ser liberal. Esta lacuna foi preenchida, como veremos, pela A
Província de São Paulo, que embora sempre tenha buscado traçar para si um perfil
livre, descompromissado com este ou aquele partidarismo, contava com notórios
republicanos entre seus diretores.
O acesso à grande imprensa foi de suma importância para a política praticada
nesse momento. Se o PRP contava com o Correio Paulistano (apesar do flerte com
os republicanos entre 1874 e 1875, torna-se seu representante oficial apenas a partir
de 1890), todas as demais dissidências, apesar dos republicanos presentes,
reuniam-se em torno de A Província de São Paulo (esta situação pode ter sido de
grande importância para a permanência de um veículo e o desaparecimento do
outro. Cfme. itens 2.3 e 2.4 deste capítulo).
O Correio Paulistano estampou em suas páginas acertos e erros, vitórias e
tropeços da vida perrepista. Na primeira etapa (1889-1906) o partido que
comandava o Estado de São Paulo enfrentou o movimento reivindicatório dos
cafeicultores com a ameaça de um novo partido (o da Lavoura), a dissidência de
1901 e a Revolução Monarquista de 1902. A partir da década de 20, as tensões
voltam a se manifestar, uma vez que a agremiação já não conseguia sustar o alarido
da “oposição”, acompanhado de ações concretas como a formação do Partido
Democrático, cujo homem forte era Antonio da Silva Prado. Uma outra fonte
81
oposicionista “de peso” também fazia sua parte: anarquistas, anarco-sindicalistas e
comunistas.
O poder do PRP durou da Proclamação até a Revolução de 30, dominando a
política paulista durante 41 anos. Nesse período o Estado de São Paulo teve 14
governadores, pertencentes exclusivamente a elite e com interesses na cafeicultura.
O PRP também elegeu quatro presidentes da República: Prudente de Morais,
Campos Sales, Rodrigues Alves e Washington Luís.
Essa largueza de poderio do PRP é chamada historicamente como
“República Velha” que, segundo Trevisan (1982), já nasceu velha, inovando muito
pouco em relação à monarquia no trato da coisa pública e servindo para manter a
política que interessava aos cafeicultores do Oeste Paulista. As mudanças que
sopravam de toda a parte do mundo, contudo, forçavam a porta de entrada brasileira
através da técnica, da máquina, da indústria, dos operários, das artes e do
desenvolvimento das cidades e o mundo agrário das oligarquias se desvanecia.
Apesar de toda a resistência, a conjuntura de idéias que floresceu no século XIX (ler
item 1.1 deste capítulo) não deixaria o Brasil, quiçá São Paulo, na mesmice política
da República Velha.
A República brasileira, gerada em ventre oligárquico, manchada pela
escravidão, conhece, em seu primeiro período, a tentativa do imobilismo, a
desesperada tentativa de freio à roda da História, a tentativa mesquinha e
egoísta dos donos do poder, de manter o país agrário, rural, conveniente a
seus interesses. (TREVISAN, 1982, p. 65)
Não podemos nos esquecer, já que a República Velha está em fase terminal,
de analisar o contexto do Exército. Sempre chamado a defender a Pátria, o Exército
passou por reformas que o modernizaram e aumentaram sua operacionalidade. Para
82
tal, foi necessário que o oficial estudasse e isso significou a ampliação das fronteiras
da percepção da fonte dos problemas do país, do atraso que a oligarquia perrepista
propunha. E mesmo antes de ocupar efetivamente o poder em 1930, ele já o havia
visitado no quatriênio Hermes da Fonseca. É o período no qual os Estados
“desobedientes” conhecem as “salvações”, eufemismo para “intervenções”.
A década do pós-guerra, 1920, representa renovações ideológicas para o
mundo todo (como descrito no capítulo III, itens 3.1 e 3.2). As artes conhecem
explosão antes nunca vista. A política precisa de um modo para revitalizar a ordem
do capital abalada pela guerra. O liberalismo democrático, modelo de todo o século
XIX, com um pacto social baseado em Constituição, eleições, oposição,
discordância, revela-se lento, inadaptado para países que tenham pressa. E países
em duas situações tinham pressa: os atrasados em seu desenvolvimento e os que
perderam muito durante a I Guerra
31
.
A solução estava no Estado forte. “Ele garantiria o jeito de apressar o
desenvolvimento, disciplinaria a sociedade, afastando os descontentes e os
descrentes”, explica Trevisan (1982, p. 66). Com o fermento da crise econômica
trazida pela guerra surgiu o socialismo na Rússia e partidos de esquerda cresceram
na Europa, assustando os burgueses, mas foi a crise de 1929 – iniciada nos EUA e
rapidamente espalhada pela Europa – que definitivamente aprofundou a crise do
capitalismo europeu e declinou as democracias parlamentares na Europa,
31
Depois da I Guerra Mundial (1914-1918), primeiro grande evento transformador da história no
século XX, a Europa ficou arruinada e conheceu recessão, inflação e desemprego. Grandes impérios
desapareceram e a prosperidade mudara-se para o outro lado do Atlântico. Os EUA viviam grande
progresso: não sofreram destruição do seu território, dominavam a metade do ouro do mundo e suas
bolsas de valores movimentavam a maior parte do capital mundial. Foi assim pelo menos até 1929,
data do crash.
83
permitindo o surgimento de Estados totalitários como o fascista, conforme aponta
Cáceres (1988).
Alemanha e Itália, países com afinidades com o Brasil, abrigaram as primeiras
aventuras fascistas, alimentos do nazismo. E idéias atravessam oceanos, como
sabemos. “Logo apareceriam teóricos que formulariam as adaptações para o país
do carnaval das teorias em voga na Europa”. (TREVISAN, 1982, p.68) O
nacionalismo foi uma dessas adaptações: o caminho para apressar o
desenvolvimento do Brasil. Quando os militares sustentam a vitória de Getúlio
Vargas e depõem o último presidente do PRP, Washington Luís, terminam quatro
décadas de poder de um único partido no Brasil. Enterrava-se a República Velha e
seu sistema eleitoral conhecido por “bico-de-pena”: voto em aberto e manipulação
fraudulenta das eleições e de seus resultados. Em nome da ordem e da tradição o
Estado Novo realizaria as expectativas difusas da sociedade civil, se assume como
arauto da modernidade e realizador dos ideais dos anos 20 (Lahuerta, 1997). Novas
agruras estariam à vista. Por conta do Getulismo, o Correio Paulistano fica da data
do golpe até 1934 fora de circulação, mas retoma suas atividades e segue como
representante do programa perrepista até 1955.
F
igura 20: O Correio Paulistano traz estampado na capa o seu compromisso:
“Orgam do Partido Republicano”.
84
2.4 A carta de Campos Sales: o poderio econômico ameaça e
cumpre
O lançamento do jornal A Província de São Paulo, tornado O Estado de São
Paulo imediatamente após a Proclamação da República, poderia não ter sido fato de
maior relevância na vida do Correio Paulistano não fossem as condições da
Província e, particularmente, da cidade de São Paulo nessa época. O poderio da
oligarquia republicana que ascendia ao poder (cfme. item 2.3 deste capítulo) teve
peso decisivo no que viria a acontecer depois.
Manuel Ferraz de Campos Sales
32
e Américo Brasiliense de Almeida Melo
33
reuniram sócios - todos republicanos ligados à cafeicultura - e, antes de lançarem A
Província de São Paulo tentaram comprar o Correio Paulistano. Desde a Convenção
Republicana de Itu (1874), os partidários do republicanismo queriam um órgão de
imprensa que os representasse. No “grupo dos 19” (entre os quais governadores,
deputados e presidentes) os mais importantes eram, além de Campos Sales e
Américo Brasiliense, Rangel Pestana, Américo de Campos, Francisco Glicério,
32
Campos Sales (1841-1913), formado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, foi
presidente do PRP, governador da Província de São Paulo, deputado provincial, ministro da Justiça e
senador constituinte. Residindo na Europa, atuou como colaborador do Correio Paulistano. Foi um dos
quatro presidentes da República eleitos pela oligarquia cafeeira do PRP. Concebeu a chamada "política
dos governadores”.
33
Américo Brasiliense (1833-1896), formado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, foi o
3º governador de São Paulo e o 1º presidente do Estado. Também presidiu as Províncias da Paraíba e
do Rio. Vereador, deputado provincial, ministro do STF, promulgou a 1ª constituição do Estado de
São Paulo e abandonou esse mandato. Doutrinou a abolição. Libertou todos os escravos recebidos no
inventário de seu sogro. Foi chefe do Partido Liberal e importante republicano do grupo campineiro.
85
Martinho Prado Jr., Cerqueira Cezar, João Tibiriçá, Almeida Prado, João Tobias de
Aguiar e Castro e Rafael de Barros. Rangel Pestana e Américo de Campos eram os
que detinham o maior capital, daí o nome da empresa de cotistas ser Pestana,
Campos & Cia. Esta composição, entretanto, seria algumas vezes alterada. Para
alcançar o intento de comprar o Correio Paulistano encarregaram Rangel Pestana
de iniciar as “negociações”. Foi então no dia 20 de outubro de 1874 que o “botica”,
como era chamado o Correio Paulistano entre seus leitores, recebeu uma carta de
Rangel Pestana endereçada a Azevedo Marques:
Amigo Sr. Joaquim Roberto (de Azevedo Marques)
Creio que o Sr. deve saber que está em via de execução a fundação do
jornal há certo tempo a esta parte projetado. O capital está quase todo
levantado e os comanditários acham-se de acordo quanto às condições do
jornal e o modo de o dirigir. Há, seguramente, um mês que sou instado
para entrar na emprêsa. Atendendo as condições do jornal, ao valor dos
cavalheiros que fazem parte da sociedade, as vantagens que me oferecem
são boas.
Antes, porém, de tomar qualquer responsabilidade ligando meu nome à
nova emprêsa, eu desejo saber se o meu amigo quer entrar em negócio
para a cessão do seu Correio Paulistano e estabelecimento à sociedade
que pretende ter aí na capital um jornal seu.
Conquanto alguns comanditários opinem que nenhum acôrdo se poderá
dar para êsse fim, por julgarem o meu amigo muito exagerado no preço do
seu estabelecimento e jornal, contudo eu desejo ouví-lo a respeito antes
de dar de minha parte uma decisão definitiva.
Quer me parecer que se o amigo for cordato no seu pedido a compra se
fará. Opino pela compra não tanto por considerá-la de grande vantagem
para a sociedade, por julgar que possa ela fazer com isso um grande
86
negócio, como por considerações que todos nós devemos pesar bem para
prevenirmos desgostos futuros.
O jornal há de aparecer de uma ou de outra forma, e ainda que me obstine
a não fazer parte de sua direção, êle se fundará e com reais elementos de
vida; eu o julgo garantido por dois anos, tempo bastante para êle ganhar
circulação, oferecer lucros. Assim, se o meu amigo quiser diga-me por
quanto se dispõe a ceder o Correio Paulistano e o estabelecimento para eu
poder me haver a respeito para com os comanditários. (NOBRE, 1950, p.
55, sic)
De tão incisiva, a carta de Rangel Pestana foi acompanhada pela minuta de
um contrato de compra e venda. Astutamente, ele destaca a luta que se travaria
entre dois diários disputando o mesmo público e não deixa de citar o poderio
econômico do grupo, lembrando que quase todo o capital necessário para o
lançamento de um novo jornal já havia sido levantado. E chega a ser ameaçador
quando afirma que o interesse na compra nem era para obter grande vantagem, mas
para evitar “desgostos futuros”; que o jornal haveria de aparecer de “uma forma ou
de outra” e que sua circulação estava garantida pelos primeiros dois anos “tempo
bastante para ele ganhar circulação, oferecer lucro”.
A situação de Azevedo Marques tornara-se preocupante. Ele não ignorava o
poderio econômico e intelectual do “grupo dos 19”, todos eram grandes fazendeiros
de São Paulo e Campinas e hábeis em se organizar de maneira prática. Este grupo
sabia que, na luta que travava a favor de seus interesses, a arma mais eficiente era
a imprensa.
A minuta enviada conjuntamente com a carta tinha a seguinte redação:
Damos pelo estabelecimento e jornal 26 contos, cedendo nós o prelo sem
o valor e entregaremos aquele (o prelo) nos primeiros dias de janeiro.
87
Faremos contrato de locação do prédio ficando nós autorizados a fazermos
as obras necessárias, e damos por ele 150$000 por mez. A emprêsa do
Correio Paulistano ficará nos pertencendo desde 1º de dezembro. As
assinaturas em dívidas serão nossas e as que estiverem já pagas serão
respeitadas e enviaremos a folha a esses assinantes.
Não nos responsabilizamos por dívida alguma da atual empresa.
Manteremos o contrato que o jornal tiver para publicação de anúncios e
editais. (NOBRE, 1950, p. 59, sic)
Azevedo Marques refletiu durante alguns dias, certamente pesou as
dificuldades que viriam, mas ele não havia perdido o espírito altivo de vinte anos
antes, quando lançara um jornal diário numa cidade escura e esburacada. Em 28 de
outubro de 1874, um mensageiro entregava a Rangel Pestana a resposta de
Azevedo Marques na qual o mesmo se mostrava sensivelmente magoado com a
pretensão dos republicanos campineiros (o “grupo dos 19” sediava-se em Campinas,
cidade participante do Centro Oeste cafeeiro) e afirmava que o Correio Paulistano
dava seis contos de réis anuais de lucro. Dizia também que já sabia do futuro jornal
pela “despedida que me fez o Sr. José Maria de Lisboa para administrar colossal
empresa” (Lisboa era administrador do Correio Paulistano, bem como da Gazeta de
Campinas, estava há muitos anos com Azevedo Marques e o deixou para juntar-se
aos empreendedores do futuro jornal). Leia um trecho da resposta:
Ora, já se vê que não posso vender meu estabelecimento senão por um
preço cuja importância possa me dar aquele rendimento, e como se infere
da sua carta que a grande comandita acha ‘a priori’ exagerada a minha
pretensão, não podemos fazer negócio. E, conquanto alguém possa
enxergar em alguns tópicos de sua carta uma verdadeira ameaça, eu
88
morrerei no meu posto, ficando à grande e rica comandita a glória de haver
morto a empresa do Correio Paulistano. (NOBRE, 1950, p. 60, sic)
A resposta considerada desaforada apressou a saída do jornal A Província de
São Paulo, cujos primeiros redatores foram Rangel Pestana
34
e Américo de
Campos
35
(também ex-Correio Paulistano). A previsão de saída era 01 de janeiro de
1875, mas o primeiro número atrasou saindo apenas a 04 de janeiro. Embora
tenham trabalhado excessivamente, o atraso fora provocado pelo próprio Correio
Paulistano que negava elementos, informações e pessoal treinado.
O grupo superou as dificuldades e agiu com precaução: embora formado por
republicanos, evitou o choque direto com os conservadores e só assumiu posição
francamente a favor da República em 1884, quase dez anos depois do lançamento
do jornal. A partir desta data foi considerado órgão oficial do PRP até a Proclamação
da República, função a partir daí ocupada pelo Correio Paulistano até 1955
(lembramos que ele havia sido porta-voz do PRP no período entre 1872 e 1874,
quando se ligou aos conservadores depois de não aceitar vender o jornal para os
republicanos até finalmente tornar-se o órgão oficial do PRP por quase setenta
anos).
Julio Mesquita entra na A Província a convite de Alberto Sales (irmão de
Campos Sales, também tornado sócio), em 1885. Ele era genro de Cerqueira Cezar,
um do “grupo dos 19” e em apenas sete anos tornou-se o único proprietário do
34
Rangel Pestana (1839-1903) foi advogado, jornalista e professor. Deputado provincial, senador e
deputado federal. Sua participação foi fundamental na formação do jornal A Província de São Paulo.
35
Sobre Américo de Campos ler o capítulo I, item 1.2, p. 30, nota 13.
89
jornal. Por desentendimentos com Alberto Sales, Américo de Campos e José Maria
Lisboa haviam deixado o jornal, contrariados, para fundar o Diário Popular.
Quando Mesquita, Cerqueira Cezar e Prudente de Moraes rompem com o
então presidente do Brasil, Campos Sales, e com o governador de São Paulo,
Rodrigues Alves, ocorre a primeira dissidência republicana. Campos Sales e seus
correligionários firmam-se em polêmicas através do Correio Paulistano. Os
dissidentes respondem pelas páginas do concorrente. Em 1926, o jornal O Estado
de São Paulo apóia a fundação do Partido Democrático, em “oposição” (na verdade,
apenas outra vertente) ao PRP
36
, que se manteria no poder até o fim da República
Velha, conforme vimos no item anterior.
Bem antes disso, a Província/Estado introduziu novidades que foram aos
poucos absorvidas pelo Correio Paulistano. Uma delas foi a venda de exemplares
nas ruas, um verdadeiro escândalo social. “Agora vendem jornal como se fosse
tomate ou batata”, queixavam-se as pessoas pelas ruas da cidade. Quem conhecia
esse método de vendas, já praticado na Europa, era o francês Bernard Gregoire,
descendente de ciganos que ofereceu tal serviço ao jornal para aumentar seus
ganhos. O resultado todos conhecem. Com o tempo os demais jornais também
passaram a ser vendidos pelas ruas; depois, fixaram os primeiros pontos de venda;
em seguida, montaram as bancas destinadas somente aos jornais e logo veio o
enriquecimento dos empresários do setor, que se tornou um dos mais lucrativos da
economia moderna.
36
O PRP e o PD e o envolvimento de alguns modernistas com estes partidos são temas melhor
abordados no capítulo III.
90
Capítulo III
Movimento modernista: o jornal dos
oligarcas pretende ser moderno, vanguardista
e polêmico
91
“O poema, descritivo, de inspiração urbana, mais lírico do que romântico,
quando mostrado, furtiva e acanhadamente, aos amigos, era pretexto de zombarias.
Ao lê-lo ou ouvi-lo perguntavam, invariavelmente, da métrica e da rima...”.
Depoimento de Oswald de Andrade sobre a reação ao seu poema “Último passeio de
um tuberculoso pela cidade, de bonde”.
(BRITO, 1971, p. 30)
3.1 Da Europa em guerra para São Paulo: por aqui, modernistas
inspirados pelo progresso
“Mais vale dois a sentir, que a multidão a aplaudir.”
(Mário de Andrade, Jornal de Debates, 1921, sobre Anita Malfatti)
buscamos contextualizar na história de São Paulo (cfme.
capítulo II, item 2.2), o período que compreende o lançamento
do Correio Paulistano. Da mesma forma, inserimos neste
trabalho alguns dos mais importantes acontecimentos históricos do século XIX
(cfme. capítulo II, item 2.1) em razão de entendermos o vínculo entre os meios
produtores e a cultura produzida pelos próprios mecanismos de comunicação. Neste
capítulo, para discutirmos as implicações da cobertura feita pelo Correio Paulistano
da Semana de Arte Moderna e a polêmica suscitada pela imprensa é preciso
92
conhecer, primeiramente, o processo social-histórico no qual se fundamentou a
cultura modernista no Brasil.
Falamos anteriormente como ia se expandindo extraordinariamente São
Paulo no início do século XX. A cidade é um canteiro de obras, as construções
aparecem rapidamente e os bondes elétricos facilitam a locomoção. As pessoas
sofrem forte sensação de progresso. E as artes, todas elas, estavam ainda no ritmo
da influência lusitana e colonizadora, divergente do momento vivenciado.
O contexto nesse ponto extrapola o perímetro da cidade e remonta aos
acontecimentos mundiais do período entre-guerras, que traz à Europa uma profunda
crise econômica, social e moral. Segundo Alambert (1992, p. 08), “os liberais
sentem-se derrotados, a Revolução Russa e a barbárie da Primeira Guerra
mergulham os liberais e seu projeto de esclarecimento num paradoxo”. Tal paradoxo
é a perda completa da idéia de um progresso contínuo e inevitável, nos moldes
positivistas.
O nacionalismo (logo descambando para o fascismo) vem como resposta à
necessidade de reorganização de forças após a Primeira Guerra, especialmente
entre as nações que perderam, e se torna fato marcante nas artes e na cultura. Os
primeiros anos do modernismo europeu são marcados por uma visão de mundo
sombria e pessimista. Os países vencedores da I Guerra (EUA, França, Inglaterra e
Itália) exercem forte influência cultural sobre os países economicamente
dependentes e buscam afastá-los de culturas opostas as suas. Procuravam saída
para o duro golpe que o capitalismo burguês sofria a partir da primeira revolução
comunista.
No Brasil, embora os artistas buscassem as novas técnicas na Europa, não
adotam os temas trágicos oriundos da guerra e da desorientação na ordem do
93
capitalismo, inflamados pela crença na “nova civilização” emergente de um país
agrário e atrasado para a riqueza industrial e cosmopolita prometida pela metrópole
paulistana. Aproximando-se as comemorações do Centenário da Independência, o
sentimento anti-lusitano ganhas fortes contornos e não por acaso os modernistas
desembocam no nacionalismo do indianismo e do verde-amarelismo. Eles, a bem da
verdade, nem conheceram a pacata cidadezinha dos tempos da fundação do
Correio Paulistano. Têm entre trinta e quarenta anos na época da Semana de Arte
Moderna, mas, ainda assim, mantém-se numa clara contradição: apesar do
dinamismo urbano de São Paulo, alavanca do país, a sociedade está fincada em
elementos patriarcais e conservadores ligados ao mundo agrário e a intelectualidade
recém-formada vive a imitar os padrões franceses e ingleses.
Ao mesmo tempo em que nas duas primeiras décadas do século XX o café
ainda forma 75% das exportações; entre 1890 e 1920, a população brasileira cresce
de 14 para 30 milhões de pessoas e São Paulo também dobra sua demografia. A
baixa no preço do café traz parte dos lucros para a cidade (cuja função agora não é
somente acolher a aristocracia, mas servir de investimento ao capital excedente) e
chegam a energia elétrica, as máquinas importadas e muitas obras viárias, além de
grandes indústrias fomentadas pela demanda surgida durante e após a Primeira
Guerra. Ford, linha de ônibus, os primeiros veículos a gasolina... Em 1922, surgem
novas linhas postais, telegráficas e telefônicas, fala-se em rádio (a primeira com boa
recepção é instalada em 1925). Em São Paulo se concentram 33% da população
industrial do país e o aparato das máquinas fundamenta o discurso “futurista”
37
dos
modernistas.
37
O Futurismo foi um movimento intelectual artístico italiano liderado pelo poeta Marinetti, que
visava ligar a arte à nova civilização tecnológica, com o qual Oswald de Andrade teve contato já em
1912. Alguns modernistas, como Mário de Andrade, rechaçaram esse rótulo porque o movimento
94
Melhor nos falam esses versos de Oswald de Andrade (Poesias Reunidas.
RJ, Civilização Brasileira, 1978):
aproximou-se do fascismo de Mussolini. Marinetti tornou-se homem fundamental na política do
ditador com o passar do tempo e o Futurismo uma base de sustentação do fascismo. Menotti del
Picchia declarou ter sido obrigado a assumir a qualidade de futurista, porque o termo fora impingido
aos modernistas.
95
Aperitivo
A felicidade anda a pé
Na Praça Antonio Prado
São dez horas azuis
O café vai alto como a manhã de arranha-céus
Cigarros Tietê
Automóveis
A cidade sem mitos
Assim como os versos de Sérgio Milliet (Poemas Análogos. São Paulo,
Niccolini & Nogueira, 1927):
São Paulo
Dos violoncelos dos viadutos
sobe a sinfonia da circulação
São Paulo!
A Rua São João cheira a café
Confundem-se os estilos nessa riqueza sem cultura
agricultura
agricultura
Que loucura!
Longínquo o desafio dos trens e das usinas
O sol faz brilhar multicor a bandeira das ruas
Inevitável associação de idéias:
Bandeirantes!
Mas para que conquistas?
Spaghettis nacionalistas
Avassalaram nosso Ipiranga
Ironia dos “Independência ou morte”!
96
Nem tudo é euforia para a burguesia, porém. Como já vimos, a cidade cresce
para atender a grupos dominantes e ignora uma massa sem direitos. Entre 1915 e
1929 acontecem 107 greves organizadas por grupos anarquistas, incluindo a
histórica de 1917, que envolveu 70 mil operários. No mesmo ano da Semana há
aproximadamente 138 mil operários, um terço imigrante, e se funda o Partido
Comunista, esquentando os debates de esquerda. Brito (1971) nos lembra que o
trabalho operário é um elemento novo no quadro das sociedades e que impõe
reivindicações. O imperialismo e o capitalismo enfrentam o socialismo e um
proletariado indisposto a se sujeitar às mesmas leis que o sujeitavam na terra que
depois de quatro anos de guerra tornara-se um caos monstruoso. A realidade
operária, entretanto, não aparece entre as preocupações dos artistas nesse primeiro
momento.
Não nos esqueçamos que os modernistas vivem sob a República Velha ou
Primeira República (1889-1930) - a rígida ordem oligárquica fundamentada na
política café-com-leite. Segundo frase conhecida de Lima Barreto, “a oligarquia
paulista era a mais odiosa do Brasil, a mais feroz”. O Correio Paulistano, por ocasião
da grande greve, publicava que os líderes dos trabalhadores eram “aventureiros,
que a pretexto de defender ideais liberais, concertavam na treva planos sinistros de
desordem e até de revolução...”. Entretanto, as críticas aos velhos republicanos que
culminaram nos levantes de 1922 e na chamada Revolução de 1924 obrigaram os
modernistas a olhar para a realidade operária que se escancarava.
Somente depois da Semana de Arte Moderna foi fundado o Partido
Democrático em oposição ao “partido dos velhos”, o PRP, aquele representado pelo
Correio Paulistano (cfme capítulo II, item 2.3). O Partido Democrático s2s vn.3475 Tue smg49.095 otp8giulo sa08 D.
97
Prado e os Vergueiro. Era, portanto, a burguesia quem queria liberar o regime
político e estava na base do “novo partido” que atraiu, aí sim, modernistas como
Mário de Andrade, Sérgio Milliet, Paulo Duarte, Rubens Borba de Morais e outros. É
preciso lembrar que Oswald militou no PRP. Observamos que a maioria dos nossos
“reformadores” não foi tão dinâmica na política quanto nas artes, nada injustificável
perante a defesa dos interesses das famílias ricas e poderosas das quais os artistas
eram oriundos.
No artigo “Os Intelectuais e os anos 20”, Milton Lahuerta (1997, p. 97),
aponta: “tanto que a atividade política, quando ocorria, ainda se dava nos moldes
dos partidos oligárquicos”. E Renato Perissotto, ao escrever o artigo “Classes
Dominantes, Estado e os Conflitos Políticos na Primeira República em São Paulo”
(1997, p. 67), acrescenta: “não havia grandes diferenças entre o PRP e o PD”. E se
não havia diferença fica claro que os intelectuais foram “convidados” a participar do
processo, ou seja, a construir a nação por meio do Estado que com ela queria se
confundir.
A curiosa mistura entre a tentativa de romper o limiar do passado, de criticar
os rumos das artes e da política, com o financiamento da Semana de Arte Moderna
por oligarcas do café, nos é revelada por Alambert (1992, p. 43).
“A Semana foi resultado de um empreendimento econômico em que se
associaram Paulo Prado, Alfredo Pujol, Oscar Rodrigues Alves, Numa de
Oliveira, Alberto Penteado, Reneé Thiollier, Antonio Prado Júnior, José
Carlos de Macedo Soares, Martinho Prado, Armando Penteado e Edgard
Conceição, todos muito ricos e ligados às famílias tradicionais e a grupos
econômicos do Estado”.
98
A “marginalidade” da Semana de 22 fica, portanto, comprometida, inclusive,
pela presença de dinheiro público
38
. Enquanto a nova burguesia cafeeira (aquela do
Oeste Paulista) consome peças francesas, as formas rígidas e tradicionais da poesia
parnasiana e óperas italianas, bem populares em São Paulo por causa da imigração,
os trabalhadores circulam pelos teatros de revista onde ouvem a posteriormente
chamada “música popular”, como o famoso “Corta Jaca” de Chiquinha Gonzaga. O
samba é marginal e está fora dos salões “cultos”. Bailes no Palácio dos Campos
Elíseos e chá das cinco na Mappin Stores; Automóvel Clube para os cafeicultores,
Círculo Italiano para os Matarazzo e seus amigos imigrantes; futebol no Hipódromo
da Móoca e moradia nas mansões das Avenidas Paulista e Angélica... No ano da
Semana de Arte Moderna há 14 cinemas, inclusive com roteiros de Menotti del
Picchia, e seis teatros sendo o Municipal, palco do evento, o mais importante.
Os jovens modernistas freqüentam seu circuito e, sem excluir totalmente os
demais, se concentram nos cafés do chamado “triângulo modernista” (ruas Direita,
São Bento e 15 de Novembro), na livraria Garrauax (onde encontravam os livros
importados com informações sobre a arte e a política européias) e nas redações de
jornais que ficavam por ali. Na Rua Líbero Badaró, bem perto, estão a garçonnière
de Oswald de Andrade e a redação do Correio Paulistano. No número 111 desta rua
aconteceu a exposição de Anita Malfatti, que suscitou a matéria avassaladora de
Monteiro Lobato
39
.
38
Mário de Andrade abordou profundamente esta questão nos textos “A elegia de abril”, escritos para
a revista Clima, em 1941, ao desancar a geração de 22, na qual se incluía, por sua indiferença para
com a época social na qual viviam.
39
O artigo de Lobato conhecido por “Paranóia ou Mistificação” foi publicado em 20/12/1917 no
“Estadão” e celebrizou ao mesmo tempo em que traumatizou Anita. Entre muitas outras coisas ele
99
Também a tradicional livraria O Livro, onde Di Cavalcanti expõe suas
primeiras pinturas a óleo e o poeta Guilherme de Almeida faz um recital para a nata
da sociedade cultural, é um constante ponto de encontro para saraus, exposições e
discussões intelectuais. Depois da Semana de Arte Moderna a livraria foi palco até
mesmo de brigas entre os considerados modernistas e os passadistas:
Aconteceu hoje, pouco antes de 17 horas, no interior da Casa Editora O
Livro, na Rua 15 de novembro, uma cena de pugilato entre dois
conhecidos literatos. Mais tarde, o delegado da polícia central tomou
conhecimento, tendo o fato provocado grande escândalo. O Sr. M. del
Picchia, sentindo-se ofendido com artigo publicado nesta Folha pelo Sr.
Assis Cintra, e encontrando o conhecido homem de letras naquela livraria,
resolveu tomar satisfações. No entanto, o autor do artigo não esteve pelos
autos e arrumou-lhe algumas bofetadas, recebendo, em troca, ligeiros
arranhões.
(Folha da Noite. São Paulo - 27/03/1922)
Menotti del Picchia escreveu uma carta ao jornal para explicar sua versão
sobre o incidente ocorrido na livraria O livro:
“Entre literatos”
Minha surpresa aumentou quando vi a notícia deturpada por outro
vespertino local. Há dias, casualmente, encontrei-me na Casa Editora O
Livro com dois senhores empenhados na defesa de um livro acusado de
plágio, sobre o qual, por engano, escrevera umas palavras de elogio.
Como um desses dois senhores me houvesse atacado por esta Folha,
atribuindo-me o que não fiz, julguei meu dever pedir explicações que me
dizia que a forma dela enxergar a arte era anormal, psicótica e seus trabalhos semelhantes aos
desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios... (cfme Brito, 1971, p. 52).
100
devia. Os dois senhores, em altos brados procuraram mostrar minha
pseudoculpa, no caso. Reagi com toda energia e dignidade, sendo
obrigado a dar uns socos num deles, o qual, em reação natural, procurou
como pôde se defender. Soube mais tarde, pela notícia desta Folha, que
meu adversário fora dar queixa à polícia.
É o que me cumpre, Sr. Redator, declarar a bem da verdade. Pela
publicação destas linhas, sou gratíssimo.
(Folha da Noite. São Paulo. Menotti del Picchia - 29/03/1922)
Foi ainda nesta livraria que Graça Aranha, autor de Canaã, intelectual
respeitado e membro da Academia Brasileira de Letras, símbolo do tradicionalismo e
do passadismo, se junta aos modernistas, dando peso e certa credibilidade aos
novos. Ele foi apresentado ao grupo pelo fazendeiro, industrial e escritor Paulo
Prado - um dos patrocinadores e grande mecenas da Semana de Arte Moderna.
No dia seguinte ao recital de Guilherme de Almeida na livraria, o Correio
Paulistano publica um artigo de mesmo nome do livro recém editado do poeta “Era
uma vez”. A beleza do texto merece ser apreciada:
A obra é fluida e leve como um aranhol de ouro, onde as frágeis mariposas
da moda, as sentimentais elegantes da época se prendem fascinadas na
deliciosa espontaneidade lírica de suas rimas aparentemente frívolas, mas
profundamente psicológicas e humanas. Há dor sorridente, há ironias
mascaradas de galanteios, há alegrias disfarçadas em arrufos nesse
poema de amor mundano e galante, atual e sensacional, onde se renova a
malícia das batalhas amorosas, em requintes palacianos de frases
inteiramente fúteis, mas pérfidas e profundas. A vida moderna, com seus
“confort”, com seus táxis, com seus telefones! – oh! Os terríveis, os
maldosos, os líricos telefones! – contagiou o lirismo vivo e brilhante desse
livro escrito com lágrimas e com sorrisos, emoções acalcadas no
artificialismo mundano, onde a crueldade da vida redobra de violência
diante da necessidade de urbanizá-la, civilizá-la, elegantizá-la... Era uma
101
vez é um poema novo para nosso ambiente, um grito de libertação ousado,
uma revolta espontânea e corajosa contra o carrancismo, a velharia, o
“vieux-jeu” pomposo dos metros processionais, das fórmulas hieráticas e
macabras como esquifes e catafalcos...”
(Correio Paulistano. “Era uma vez”. Helios – 26/06/1921)
Outra livraria que anotava a presença dos modernistas era a italiana do “Tisi”,
ponto de distribuição das obras de Marinetti e seus congêneres. Passeiam ainda
pelas reuniões literárias na casa de aristocratas e de D. Olívia Penteado, cujas
paredes dos salões foram pintadas por Lasar Segall, pintor russo radicado no Brasil.
Outros pontos eram o ateliê de Tarsila do Amaral e a casa em que ela viveu com
Oswald, ambos no bairro de Santa Ifigênia, e a casa de Mário de Andrade, na Rua
Lopes Chaves, na Barra Funda, bem mais modesta. Mário era um dos poucos que
trabalhava para viver.
Na Rua Aurora eu nasci
Na Rua Aurora eu nasci
Na aurora de minha vida
E numa aurora cresci.
No Largo do Paiçandu
Sonhei, foi luta renhida,
Fiquei pobre e me vi nu.
Nesta Rua Lopes Chaves
Envelheço, e envergonhado
Nem sei quem foi Lopes Chaves.
Mamãe! Me dá essa lua,
Ser esquecido e ignorado
Como esses nomes da rua.
Figura 21: Mário de Andrade por
L
asar Segall, 1927.
(Mário de Andrade, Poesias
Completas, EDUSP, 1987).
102
O modernismo, como se sabe, dividiu-se em outros movimentos como o Pau-
Brasil, o Antropofágico, o Integralista, o Verde-amarelista; alguns membros se
separaram como Oswald e Mário, outros foram esquecidos ao longo da história, que
para sempre carregaria as marcas deste movimento, como Juó Bananére. De
qualquer forma, não pretendemos nos aprofundar no movimento modernista, já
extenuadamente estudado e que não é o objeto deste estudo, mas acreditamos que
a contextualização histórica que a ele levou, bem como à fundação do Correio
Paulistano, 68 anos antes da grande festa, se confunde com a própria história do
jornal e nos ajuda a montar o quebra-cabeça de um tempo em que intelectuais,
artistas e escritores eram também os jornalistas.
F
igura 22: Oswald de Andrade e
Guilherme de Almeida.
F
igura 23: (esq. para dir.) Victor Brecheret,
D
i Cavalcanti, Menotti del Picchia, Oswald de
A
ndrade e Helio Selinger.
103
3.2 Luxo e cultura nos anos de 1920: A “Paulicéia Desvairada”
desponta
[...]
“Garoa do meu São Paulo,
- Costureira de malditos –
Vem vindo um rico, vem um branco,
São sempre brancos e ricos...
Garoa, sai dos meus olhos.
(Mário de Andrade. Poesias Completas, EDUSP, 1987, última estrofe)
A década de 1920 trouxe modificações estruturais em todo o mundo e é
considerada como o berço do Brasil moderno. É a década do pós-guerra, da
industrialização, das organizações operárias, do modernismo... Os dois anos que
antecederam a Semana de Arte Moderna, em especial, marcaram o desenrolar dos
acontecimentos que precipitariam na ruptura cultural-histórica representada pelo
modernismo brasileiro. Artistas, intelectuais e escritores congregaram-se em torno
da formação de um grupo que, através da imprensa e de reuniões constantes,
planejava balançar as velhas estruturas da cultura paulistana e quiçá brasileira. É a
partir da Semana de 22 que o modernismo se torna uma forma de representação da
cultura nacional, embora também nessa ruptura o “elemento anárquico – o povo”
(cfme. expressão de Trevisan, 1982) permaneça na lateralidade.
“É por isso que entre os intelectuais inspirados no modernismo, ainda que
haja uma pretensão de rever o racismo e de criticar a retórica do academicismo,
104
permanecem um culto à erudição e um sentimento de ser parte da elite tal qual eram
cultivados nos salões aristocráticos”. (LAHUERTA, 1997, p. 97). Mesmo os
modernistas mais radicais, preocupados em construir a cultura nacional, quando
“foram ao povo” o fizeram de forma a encontrar matéria-prima autêntica a qual
pretendiam dar forma intelectual.
Lucia Lippi Oliveira (1997, p. 190) acrescenta que mediando a luta ideológica
entre os conservadores monarquistas e os progressistas republicanos situava-se
ainda a presença da intelectualidade científica que, com princípios evolucionistas
assentados sobre a desigualdade das raças, é extremamente pessimista com
relação aos destinos da nação, comprometidos, segundo ela, pela miscigenação das
raças (ler mais no capítulo II, item 2.1).
A questão da identidade nacional, ainda bastante confusa, como já apontada
no item 1.1 deste capítulo, depois da I Grande Guerra trouxe aos brasileiros um
sentimento de que já não era possível apenas copiar os modelos europeus,
desvalorizados com o fim da belle époque e pela idéia que a América seria, agora, o
espaço da nova civilização e do futuro.
Mesmo que aparentemente sem um objetivo definido sobre o tipo de evento
que pretendiam realizar, faz sentido acreditar que a Semana de Arte Moderna foi
cuidadosamente projetada por pelo menos dois anos, porque os modernistas
queriam um evento concomitante ao Centenário da Independência. Um trecho de
um artigo de Oswald de Andrade ao Jornal do Commércio fornece a prova:
“Cuidado, senhores da camelote
40
, a verdadeira cultura e a verdadeira arte vencem
sempre. Um pugilo pequeno, mas forte, prepara-se para fazer valer o nosso
centenário”. No mesmo artigo Oswald conclama os amigos a apresentar a cultura e
105
a arte como expressões da real independência do Brasil. “Mas independência não é
somente independência política, é acima de tudo independência mental e
independência moral”.
Outra informação nos revela Mário da Silva Brito (1971), considerado um dos
maiores especialistas em modernismo brasileiro, ao relatar que Victor Brecheret,
antes de partir para a Europa, em 1921, deixou trabalhos a serem expostos numa
manifestação de arte moderna que seus amigos planejavam.
Desde 1920, os jovens modernistas escrevem ativamente na imprensa,
espaço utilizado para polemizar com os academicistas e divulgar suas idéias. Além
de Helios e Plínio Salgado, no Correio Paulistano, e Oswald, no Jornal do
Commércio, Mário de Andrade também publica no Jornal do Commércio a famosa
série de artigos intitulada “Mestres do Passado”, criticando a “literatura passadista” e
causando grande celeuma. Reneé Thiollier é o diretor deste jornal e participa do
comitê organizador da Semana de Arte Moderna, usando sua influência para obter
patrocínio do governo.
Um ponto que havia desafiado esta pesquisadora durante a elaboração do
projeto desta pesquisa foi o de descobrir a verdadeira identidade de Hélios (anexo
S). Quem seria ele? Um jornalista tão à frente de seu tempo? E por que o Correio
Paulistano fora capaz de assumir postura contrária a toda a imprensa conservadora
da qual ele próprio fazia parte? Como se comportaram os barões do café, que
mandavam na política e no Correio Paulistano, mediante tais matérias?
Numa pesquisa minuciosa pelas páginas do Correio Paulistano identificamos
Helios assinando a coluna Chronica Social também por M. e, outras vezes,
publicando textos, mesmo que fora do espaço da coluna, com a assinatura
40
Alusão aos camelots du roi (jornaleiros do rei, em francês), no caso, reacionários. Jornal do
106
completa: Menotti del Picchia. Os autores Mário da Silva Brito (1971) e Francisco
Alambert (1992) confirmam que Helios era realmente ninguém menos do que o
escritor e ensaísta Menotti del Picchia
- um ativo participante do movimento
modernista e da Semana de Arte Moderna!
Uma pista reveladora, mas um tanto quanto desanimadora, afinal outros
modernistas escreviam regularmente nos jornais. Num tempo em que literatura e
jornalismo viviam um casamento cheio de paixão e amizade, a maioria dos
modernistas, pelo menos os ligados à literatura, conquistaram espaço cativo na
imprensa. E a pergunta permanecia: por que apenas ele se manifestava
favoravelmente à nova arte na grande imprensa?
Menotti del Picchia, quando articulista do Correio Paulistano, já é um nome
nacional, celebridade aprovada pela aceitação de seus livros, como Juca Mulato, e
se torna o porta-voz público dos modernistas. Transmite aos jornais o pensamento
do grupo, defende todas as inovações, dá notícias dos planos de seus
companheiros. Um ano antes da Semana de Arte Moderna os renovadores estão no
auge da polêmica e até já aceitam a classificação de “futuristas”. “Fazem mais:
passam a impor a palavra, dividem o terreno entre os que os acompanham e os que
os combatem. Agora somente há futuristas e antifuturistas”. (BRITO, 1971, p. 132).
O autor acrescenta que os “modernos” são encaixados por seus opositores a
qualquer custo no grupo de futuristas, uma vez que o termo passou a designar tudo
o que lhes pareça “diferente ou inusitado” (p. 161). “É necessário somente que o
artista se afaste um milímetro dos padrões convencionais vigentes” (p. 162).
Commércio/SP, “Arte do Centenário”, 16/05/1920.
107
Menotti, às vezes, referia-se de modo irônico ao Futurismo de Marinetti e seus
adeptos, mas, ao final de 1920, a ele adere completamente. A seguir um trecho de
um texto do articulista:
“Futurismo”
“Que é futurismo? Aí está um nome pavoroso, que arrepia a pele ao
conservador pacífico, bolchevismo estético, agressivo e iconoclasta,
lembrando um camartelo sonoro a estilhaçar a espinha vertebral da ordem
e do bom senso. [...] Eu, que fui um encruado perseguidor desses
revoltados, só em ouvir o nome de Marinetti sentia ânsias de
estrangulamento e minhas mãos crispavam-se como tenazes. [...] Hoje,
amansei minhas cóleras. Sem admitir-lhe as loucuras, sem aplaudir-lhe as
aberrações, admirei-lhe as belezas. [...] Como se vê isso não é um bicho
de sete cabeças, que nos pintaram os primeiros e barulhentos futuristas. É
uma coisa séria, raciocinada, honesta...
(Correio Paulistano. “Futurismo”. Helios - 06/12/1920)
F
igura 24: O texto
de Marinetti tem
dedicatória a
Mussolini.
108
Num artigo intitulado “Uma palestra de arte”, Menotti del Picchia desculpa-se
por não ter defendido Anita Malfatti na ocasião de sua exposição de pinturas (1917).
“Confessa ter caído no visgo de Lobato e, preso por ele, ter julgado com o critério do
articulista, toda a arte da autora de O Homem Amarelo”. (BRITO, 1971, p. 66)
“Uma palestra de arte”
Não vi a primeira exposição de Malfatti; não posso, pois, julgar se nessa
ocasião lhe cabia a descalçadeira; entretanto, a que hoje se apresenta me
leva à convicção firme de que, por mais bizarras que fossem suas obras,
não poderiam ser ausentes de qualidades e sérias virtudes. Lobato me
parece cruel e exagerado na formidável catilinária que pespegou na nossa
brilhante patrícia. Anita é uma mulher singular que, quando não tivesse
outro mérito, teria o de haver rompido, com audácia de arte independente
e nova, a nossa sonolência de retardatários e paralíticos da pintura. Aqui
fica, apagada e rouca, minha palavra de penitência e defesa; digo-a por
um dever de honestidade e de justiça, porque essa arte, por sugestão e
por mal conhecê-la, eu também, como muitos, berradamente a neguei.
(Correio Paulistano. “Uma palestra de arte”. Helios - 19/11/1920)
F
igura 25: “O Homem Amarelo”.
F
igura 26: Anita Malfatti, foto
de 1912.
109
Tal polêmica não ocorreu com a exposição do pintor russo Lasar Segall,
realizada em 1913
41
, aprovada por toda a imprensa, inclusive pelo Correio
Paulistano.
“Exposição Lasar Segall”
Às quatro horas da tarde de hoje, no salão da Rua de São Bento, 85,
acontece o vernissage da exposição do jovem pintor – Lasar Segall.
Amanhã, às três horas, com a presença do representante do Sr.
Presidente do Estado, secretários, cônsules, artistas e imprensa, realizar-
se-á a inauguração.
A exposição, estamos certos, fará sucesso em São Paulo, pois trata-se de
um artista de uma muito interessante técnica, ainda quase não conhecido
em nosso meio, e que possui indubitavelmente qualidades que se afirmam
promissoramente, permitindo que se possa julgá-lo um artista de futuro.
Limitamo-nos, assim, a noticiar a inauguração, reservando-nos para mais
devagar dizer sobre o valor do pintor russo, que ora nos visita”.
(Correio Paulistano. Registro de Arte. “Exposição Lasar Segall”.
Helios - 01/03/1913)
41
Houve muita discussão sobre quem teria inserido a arte moderna no Brasil, se Lasar ou Anita. Para
Mário de Andrade, por exemplo, o russo teve apenas a primazia cronológica sendo que a
engenhosidade da inovação coube à Anita.
F
igura 28: Lasar Segall.
F
igura 27: “A família enferma”, obra de 1920.
110
Menotti também participou do lançamento público do nome de Vitor Brecheret
ao publicar artigos sobre o escultor no Correio Paulistano. O primeiro deles, intitulou-
se “Arte Nova” e data de janeiro de 1920. Ao longo de dois anos foram inúmeras as
publicações assinadas por Menotti que exaltavam o escultor do Monumento às
Bandeiras (a escultura está assentada em frente ao Parque do Ibirapuera/São
Paulo). No final deste ano, ele também publica uma série de artigos que sugeriam a
Monteiro Lobato que se penitenciasse pela severa crítica à Anita Malfatti, o que
jamais acontecera. Lobato, entretanto, a essa época, já admitia a necessidade de
rompimento com o “autoritarismo clássico” e foi bastante benevolente com a obra de
Brecheret.
Sobre o êxito de Brecheret num concurso realizado em Paris entre quatro mil
concorrentes de todo o mundo, Menotti escreve:
F
igura 29: Escultura de Brecheret “Diana”.
F
igura 30: Vitor Brecheret, autor do
f
amoso “Monumento às Bandeiras”.
111
“Brecheret”
Essa vitória dá o que pensar. Pelo menos dá que pensar nisto:
1º) que há muitos cérebros atrasados entre nós.
2º) que estes cérebros representam a maioria.
3º) que em matéria de arte estamos nos tempos da pedra lascada.
4º) que há um pequeno grupo, o tal caluniado grupo “futurista”, que parece
enxergar mais do que os outros.
5º) que o nosso governo – sem pertencer a esse grupo – sabe fazer justiça
aos artistas de valor.
(Correio Paulistano. “Brecheret”. Helios – 14/06/1921)
Nem precisaríamos lembrar que o quinto item foi incluído porque Menotti era
governista, sendo redator político do Correio Paulistano, a época ainda órgão oficial
do PRP. As crônicas de Menotti também se ocupavam de uma forte preocupação
com o excessivo nacionalismo sustentado pelo lema “o Brasil é dos brasileiros”. Em
maio de 1920, sob o título “Nacionalismo Perigoso”, ele pergunta em que sentido se
usava a palavra brasileiro. “Em São Paulo, por exemplo, são brasileiros e
eminentemente patriotas, prontos a morrer pela nossa terra, todos os filhos de
estrangeiros que nasceram por aqui. E, note-se, não são poucos...”.
São incontáveis os artigos de Menotti que causam celeuma e lançam no calor
das discussões pela imprensa os nomes dos modernistas. É no Correio Paulistano
que ele reproduz um trecho do romance “Os Condenados”, de Oswald de Andrade,
acrescentando tratar-se de “uma de nossas mais belas revelações”.
Nesta edição, sobre Oswald, ele publica:
112
Oswald de Andrade”
A glória incubada de Oswald de Andrade refulgia, cegante até ontem,
apenas nas rodas de seus íntimos. Residia, inédita, na sua formidável obra
– das maiores que tenho notícia – em páginas de sangue e de lágrimas,
reveladoras de uma das nossas mais agudas e ressonantes
sensibilidades.
(Correio Paulistano. “Oswald de Andrade”. Helios – 21/04/1921)
É ele também quem revela a poesia de Agenor Barbosa (cfme. Brito, 1971, p.
216), afirmando que o autor é certamente “entre os novos de São Paulo, dos
maiores poetas, dos mais atuais, dos mais sentidos... avanguardista, bandeirante do
credo novo”. E publica várias poesias de Agenor em seguidas edições. Outros
artigos escritos por ele e publicados na revista Papel e Tinta, que dirigia juntamente
com Oswald de Andrade, davam conta de um Brasil que tinha “uma função social no
mundo do pós-guerra” e pregavam uma idéia bastante lisonjeira, otimista mesmo
com relação ao futuro do país.
Ainda no ano de 1921, Menotti participa de um banquete oferecido em sua
homenagem. Oswald é o escolhido para discursar em prol do amigo. Em seguida,
Menotti publica no artigo “Na maré das reformas”, uma lista de princípios que
norteariam os artistas modernos. Mesmo com tanto barulho, o grande acontecimento
deste ano envolveu outros pilares do modernismo e foi o lançamento por Oswald de
Andrade da poesia de Mário de Andrade no Jornal do Commércio. Este passou
verdadeiras agruras pela notoriedade ganha depois do artigo de Oswald “O meu
poeta futurista”, mas o fato é que depois disto Mário passou a exercer liderança no
113
grupo, juntamente com Oswald e Menotti. A série de artigos “Mestres do Passado”
faz com que os parnasianos fervam de raiva e os modernistas ardam em alegria!
Afinal, quem são os modernistas que se preparam para a Semana de Arte
Moderna? Os poetas são Mário, Menotti, Guilherme de Almeida, Agenor Barbosa e
Plínio Salgado. Oswald e ainda Menotti são romancistas. Na crítica, sustentando a
polêmica estão Mário, Oswald, Menotti, Cândido Mota Filho e Sérgio Milliet. A
pintura tem como expoentes Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro
e John Graz. Vitor Brecheret é o grande nome da escultura. Armando Pamplona
prefere cinema. Antonio Moya é o arquiteto. Sobre ele, escreve Menotti:
“Um arquiteto”
[...] mas sua tortura de criar desborda, ansiosa, de fato, no desejo
iluminado da criação nova, dando então aos seus projetos um alto senso
subjetivo, fazendo que se reflita nos blocos do conjunto, nos detalhes
mínimos, a significação do prédio, dando-lhe assim uma alma, um sentido
que se percebe pela impressão que a mó arquitetônica nos causa...
(Correio Paulistano. “Um arquiteto”. Helios – 20/07/1921)
Os nomes citados são alguns dos principais que encenariam a Semana de
Arte Moderna, chamados por Mário de Andrade por “Dragões do Centenário”. É
também numa crônica de Menotti, através do Correio Paulistano, que o nome de
Graça Aranha aparece pela primeira vez ligado aos modernistas. Ele publica, ainda,
em outubro de 1921, um extenso artigo intitulado “A bandeira futurista”, no qual
114
relata a viagem de Oswald, Mário e Armando Pamplona ao Rio de Janeiro para
arregimentar novos companheiros.
“A bandeira futurista”
[...] Anteontem partiu para o Rio a primeira bandeira futurista. Mário
Moraes de Andrade – o papa do novo credo – Oswald de Andrade, o
bispo, e Armando Pamplona, o apóstolo, foram arrostar o perigo de todas
as lanças, morriões, guantes, lorigas, inclusive murzelos e rocinantes, do
parnasianismo ainda vitorioso na terra do defunto Sr. Estácio de Sá. Bela
coragem! Eu, que sou também bandeirante desse grupo galhardo, sigo-os
com os olhos cheios de amor, inveja e susto... A façanha é ousada!...
(Correio Paulistano. “A bandeira futurista”. Helios – 22/10/1921)
No Rio de Janeiro há um grupo de peso, embora até então não organizado, a
se juntar aos modernistas, também defendendo suas idéias pelos jornais: Manuel
Bandeira, Renato de Almeida, Villa-Lobos (já reconhecido), o poeta e crítico Ronald
de Carvalho, Ribeiro Couto, Álvaro Moreira e o futuro historiador Sérgio Buarque de
Holanda. Os dois últimos e Sérgio Milliet, Guilherme de Almeida, Paulo Prado, além
do próprio Oswald, colaboram nas páginas de A Cigarra, a maior revista da época
em São Paulo, ao lado de medalhões “passadistas” como Coelho Neto, Olavo Bilac,
Monteiro Lobato, Vicente de Carvalho e Osório Duque Estrada. Já não disputavam
espaço, ganharam-no.
Em novembro de 1921, Menotti continua sua saga e escreve no artigo “A
vitória de um patrício”, também publicado no Correio Paulistano, que “Brecheret é a
115
grande vitória do futurismo paulistano. É a consagração do grupo novo. É a morte da
velharia, do arcaísmo, do mau gosto. É o triunfo da mocidade de Piratininga, que é a
mais bela e a mais forte de nossa querida Pátria!”
Na edição especial do 95º aniversário do Correio Paulistano (ler no capítulo I,
o item 1.3.1) publica-se a declaração de Oswald de Andrade que destaca o
importante apoio do jornal não só na cobertura do evento, mas também ao grupo
“antropofagista”, “Anita”, “verde-amarelista”, que foram liderados por Cassiano
Ricardo e Plínio Salgado, ex-redatores (anexos T, U e V).
F
igura 31: A imprensa na década de 1920.
F
igura 32: Comissão organizadora da Semana
de 22: (esq. p/ dir - cima p/ baixo). Pettinati,
j
ornalista italiano, um anônimo, Renée
Thiollier, Manuel Bandeira, Afonso Schmidt,
P
aulo Prado, Graça Aranha, Manoel Vilaboin,
Goffredo da Silva Telles, Couto de Barros,
Mário de Andrade, Cândido Mota Filho.
Sentados: Rubens Borba de Morais, Luís
A
ranha, Tácito de Almeida, Oswald de
A
ndrade.
116
3.3 Debates pela imprensa: modernistas são defendidos na
Chronica Social”, coluna de Menotti Del Picchia
“Seremos lidíssimos! Insultadíssimos! Celebérrimos.
Teremos nossos nomes eternizados nos jornais e na História da Arte
Brasileira.” (Trecho de uma carta de Mário de Andrade a Menotti del Picchia, publicada no
Correio Paulistano em 23/02/1922)
“Carroceiro hespanhol cai do vehiculo”; “bancário prensado no bonde por
carroça no Largo do Arouche”. Há mais, bem mais do que notas como estas, hoje
curiosas, no Correio Paulistano em fevereiro de 1922. O jornal coloca seu último
facho de luz sobre um acontecimento à frente de sua época e “fura” (como se diz no
jargão jornalístico) importantes concorrentes como O Estado de São Paulo, o Diário
Popular, a A Gazeta, o Jornal do Commércio e a Folha da Noite
42
. Tal ocorre numa
época em que ele permanecia órgão oficial do tradicionalista Partido Republicano
Paulista (PRP) e a República brasileira era dominada pelos mesmos barões do café
imperiais.
Alguns autores chegam a chamar o Correio Paulistano de órgão oficial dos
modernistas, tal o apoio dado ao movimento, particularmente, à Semana de Arte
42
- O Diário Popular foi comprado pelo O Globo em 2002 e rebatizado como Diário de São Paulo,
que atualmente publica um encarte com o antigo nome (não foi utilizado como fonte nesta pesquisa).
A A Gazeta comemorou o centenário da marca em 2006, vinculada ao Grupo Gazeta, mas não circula
mais. O Jornal do Commércio ainda circula em quatro grandes capitais, incluindo São Paulo e Rio. A
Folha da Noite, junto com a Folha da Manhã e a Folha da Tarde formariam o jornal Folha de São
Paulo, em 1960.
117
Moderna, ocorrida nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922. Esta afirmação,
entretanto, não é verdadeira, visto que o Correio Paulistano constituía-se num jornal
diário, “independente”, à época da Semana de Arte Moderna contava já com 68
anos de fundação. Oficiais mesmo foram as várias revistas surgidas ao longo do
movimento em todo o país, em especial a “Klaxon” (maio de 1922), lançada na
esteira do sucesso do evento, mas que edita apenas oito números (figura 34).
Em comparação com matérias publicadas pelos demais grandes jornais que
cobriram a Semana de Arte Moderna, a postura do Correio Paulistano foi
completamente diferenciada. O Estadão chama os modernistas de “horda de
F
igura 33: Catálogo da exposição da
Semana de Arte Moderna.
F
igura 34: Capa da Revista Klaxon, nº 01, de
15/05/1922, lançada na seqüência da Semana
de 22.
118
bárbaros” e publica a seguinte nota: “as colunas da Secção Livre deste jornal estão
à disposição de todos aqueles que, atacando a Semana de Arte Moderna, defendam
nosso patrimônio artístico”.
Não fez diferente Assis Chateaubriand nos Diários Associados
43
. Segundo
nos relata Morais (1994), quando Chatô foi procurado
pelos escritores Alcântara
Machado e Graça Aranha e pelo deputado Vilaboin para abrir espaço em seus
jornais para a cobertura da Semana de Arte Moderna, disse que o evento não ia
abalar coisa alguma, seria no máximo “uma semana de secos e molhados”. Ele não
queria se indispor com barões do café, magnatas da indústria, conservadores e
todos os tipos que bajulava para enriquecer e fazer crescer meteoricamente sua
cadeia de jornais. Chatô alegou, ainda de acordo com Morais, que jamais
encontraria ouro andando atrás de “um bando de desocupados que pretendem
escandalizar exatamente o mercado a que se dirige o meu sonhado jornal”. Somente
três anos depois da Semana de Arte Moderna, Chateaubriand escreveria que só
mesmo a metrópole de Francisco Matarazzo e Pereira Ignácio poderia demonstrar
tal entusiasmo pela arte moderna e construiria museus para acolher a expressão
artística antes tão atacada...
43
Os Diários Associados foram uma das maiores cadeias jornalísticas brasileiras. Dirigida por Assis
Chateaubriand, o Chatô, lançara, entre outros, o Diário de São Paulo, em 1925, a TV Tupi e a revista
O Cruzeiro. Atualmente, o grupo ainda detém importantes marcas em todo o país, como o Jornal do
Commércio do Rio, Diário de Pernambuco, Correio Braziliense, Estado de Minas, além de rádios e
tvs.
119
Também o Jornal do Commércio
faz coro com a turma do contra:
“Enterro dos Vivos”
A Semana de Arte Moderna está para acabar. É pena porque, com
franqueza, se do ponto de vista artístico aquilo representa o definitivo
fracasso da escola futurista, como divertimento foi insuperável. Acredito
que estejam satisfeitos os organizadores dessa desopilante hebdômada
precursora do Carnaval, visto como indiscutivelmente conseguiram realizar
a melhor parte de seu programa: fazem barulho provocando escândalo em
nosso meio. Bem analisado, uma porção desses talentosos cavalheiros,
que com sua brincadeira transmitiram ao nosso Municipal emoções
semelhantes às que deve ter experimentado por ocasião do terremoto,
estariam incluídos em uma corrente que, aliás, não é uma novidade em
estética, sendo ao contrário, conhecida em todos os tempos: a dos
ruidistas.
Receio, no entanto, que o escarcéu provocado pelo movimento futurista
tenha ultrapassado a expectativa de seus autores. Assim também, muitas
piadas que se originaram, em virtude deste cataclismo, tendo embora
alguma graça, ofendem. Ouvi, por exemplo, da boca de uma senhora
inteligente que, de resto, falava com a maior naturalidade: “Desculpa-se.
São umas crianças que estão fazendo arte.” Um outro – original e mais
perverso – afirmava que o Sr. Graça Aranha persistia em fazer mal às
artes.
Houve quem asseverasse que, de tudo quanto está exposto, como obra
futurista, o melhor é o Jejuador Urbano, o qual, em época em que há
tendência para comer, adota um critério diametralmente oposto, tornando-
o quase inédito.
Esta, sim, é a verdadeira escola do futurismo, pois fornece ao homem um
meio tão eficaz para lutar contra a crescente carestia da vida. A verdade,
portanto, consiste para mim em que o paciente jejuador “no seu confortável
caixão, pode considerar-se um futurista enfoncé”.
(Jornal do Commércio. São Paulo. “Enterro dos Vivos” - 18.02.1922)
120
Antes do Jornal do Commércio, a A Gazeta já publicara:
Um grupo de distintos cavalheiros da nossa sociedade vai tentar a
organização de um sarau futurista que será, sem dúvida, o maior
escândalo artístico de que se tem notícia, em São Paulo. Cogitam de
reunir pintores, escultores, músicos, poetas, enfim, todos os artistas
“futuristas”, para, no Teatro Municipal, em exposições e conferências com
um programa cuja duração será de uma semana, fazerem a propaganda
da nova escola artística. Ao que nos parece, esse fato vai provocar enorme
sensação, visto que essa plêiade de rapazes compreende a arte futura de
uma maneira bastante revolucionária para poder agradar ao nosso público.
O futurismo é, entre nós, a fantasia mais gostosa possível em arte, é a
extravagância elevada a impertinentes exageros e tem provocado a mais
sincera reprovação. Na Itália, Marinetti, o arrojado propagandista deste
gênero de arte nova, teve o desprazer de se fazer vaiar, nas tentativas que
realizou; suas conferências terminavam, invariavelmente, em verdadeiras
assuadas.
Nós, que pensamos que a grande arte deve ser compreendida por todos,
esperamos, cheios de curiosidade, a realização desse certame e
prometemos, desde já, a nossa crítica severa contra a iniciativa.
(A Gazeta. São Paulo – 30/01/1922)
No dia seguinte, a A Gazeta continua sua campanha contrária aos
modernistas (observar o pseudônimo que assina o texto):
“Os 12 Apóstolos”
O mês de fevereiro do ano do Centenário prepara-se, com trejeitos e
disfarces carnavalescos, para se tornar memorável nos meios literários e
artísticos do país. Doze cavalheiros – 12, como os apóstolos que
121
acompanharam o melancólico rabino da Galiléia -, enfartados de velhas
manifestações de arte, sequiosos de novidades e de novos ideais
artísticos, irão pregar, entre a algazarra com que se festeja Momo e os
preparativos da próxima eleição, o grande Verbo, revelador da Suprema
Verdade. São Paulo, diante da revelação suprema, tremerá em seus
alicerces.
Homens de boas intenções, os doze apóstolos, armados de bisturis,
esvurmarão as mazelas da literatura e da arte. Diante do brilho de seu
estilo e das verdades que serão ditas, ruirá por terra todo o edifício
levantado pelas gerações anteriores, e os representantes da velha arte,
transidos de medo e de vergonha, correrão, pressurosos e tímidos, a pedir
esmola de um pouco de talento. [...] Os 12 Apóstolos são, porém,
humanos. Mais tarde, movidos pela piedade, postos de lado os
ressentimentos de peleja, enferrujadas as armas de combate, os primeiros
de um largo gesto de generosidade e filantropia, darão um pouco de seu
talento aos que não o tem e fabricarão a personalidade para todas as
Madalenas arrependidas. Então, já estarão práticos neste mister, prática
adquirida, agora exercitando-se com seus prosélitos. [...] E, depois,
venham dizer que o futurismo é uma coisa séria, coisa, aliás, em que nem
os seus próprios apologistas acreditam. Em todo o caso, aguardaremos os
acontecimentos e regozijemonos com as novidades com que vai ser
enriquecido o Carnaval de 1922 com a Semana Futurista.
(A Gazeta. São Paulo. Nota de Arte. “Os 12 Apóstolos”. Cândido –
31/01/1922)
44
A Folha da Noite,
após o primeiro dia de apresentações, bate com golpes
fatais:
122
promotores da Semana propiciavam que iam fazer revelações espantosas,
estupidificantes. Pois nada disso. Concorria para isso certo ar misterioso,
revolucionário, que aparecia nas crônicas de um ou outro modernista
dessa capital. Mas estes “reformadores” passaram a gozar da reputação
de idiotas.
Mas, entre as idéias dos reformadores e dos pretensos artistas, há um
abismo profundíssimo... “são frutos verdes de espíritos cretinos” (alusão à
crônica de Villa-Lobos, de quem disseram ter o olhar de quem sabe amar
os homens)... Villa-Lobos é grande compositor e possui um temperamento
artístico excepcional. Ao engano de apreciação, essas tendências estariam
melhor num capítulo de psicopatologia. Com tudo isso, formou-se em torno
da Semana de Arte Moderna uma atmosfera injustificável. Os ideais
estéticos propostos pelo Sr. Graça Aranha e por Ronald de Carvalho
representaram um esforço honesto e uma grande iniciativa.
Mas, isso, de homem que sabe amar homem, isto estamos plenamente
convencidos, isto é desonesto...
(Folha da Noite. São Paulo – 14/02/1922)
E no dia seguinte, críticas ainda mais severas (devido ao artigo ser
excepcionalmente longo vamos reproduzi-lo somente em parte. Trata-se de um dos
poucos que foram assinados pelos seus respectivos autores):
“A Teratologia Futurista”
Não é só um problema de estética, mas deve ser estudado como
fenômeno de patologia mental. Todas as extravagâncias do futurismo
originam-se de um verdadeiro estado de espírito mórbido. O desejo
incontido de “chamar a atenção” e a ingenuidade de certos espíritos
desprovidos de qualquer preparo, o desequilíbrio de alguns cérebros e o
123
verdor da mocidade são os principais motivos e o que caracteriza os
adeptos desta escola.
Futurismo e Teratologia são expressões sinônimas. Os espíritos fracos que
por incapacidade mental não alcançaram o verdadeiro sentido da arte e
atingiram a espiritualidade dos grandes gênios atiram-se ao futurismo na
ilusão de serem “incompreendidos”, pois todo futurista se julga um gênio
iludido pela pretensa vaidade.
Qualquer um deles se julga superior a um Shakespeare, Goethe, etc [...],
no entanto, no fundo, grande número de futuristas é cabotino, sem
consciência de seus atos e, atendendo a um desejo de exibição, confiantes
de que, por se dizerem futuristas, atingiram a glória. [...] Todas as artes
são subvertidas às contorções mais horrorosas. É o domínio da
aberração...
(Folha da Noite. São Paulo. “A Teratologia Futurista”. Mário Pinto
Serva – 15/02/1922)
Ainda na Folha da Noite encontramos a seguinte publicação:
Foi, como se esperava, um notável fracasso, a récita de ontem da
pomposa Semana de Arte Moderna, que melhor e mais acertadamente
deveria chamar-se Semana de Mal – às artes. O futurismo tão decantado
não é positivamente de futuro... No presente, diante da ignorância de tal
semana por parte da sonolenta sociedade, ainda é possível que dê alguma
coisa; depois, porém, de conhecer a droga, ninguém penetrará a botica em
que foi transformado o Municipal, agora muito em voga com o caso do Sr.
Nilo, que foi representado pelo poderio dos futuristas... Mas, no recital
cabotiníssimo de ontem, tudo foi derrocado ou quase tudo. Pondo-se de
parte a nossa excepcional patrícia, quem interpretou sob protestos, aliás,
trechos do pré-homem, o resto foi um atestado eloqüente e incisivo da
morbidez teratológica de que nos falou ontem Pinto Serva.
A sonolenta sociedade paulista foi sacudida duas vezes do seu torpor de
atraso: uma, para vibrar com Guiomar Novaes, e outra, com mais
intensidade ainda, quando soube repelir o cabotinismo.
124
De tudo quanto vimos e observamos do tal futurismo, metidos sempre no
nosso atraso mental, deduzimos que os modernistas possuem uma coisa:
topete, muito topete, e tanto assim que já se anuncia para amanhã mais
uma exibição teratologista.
(Folha da Noite. São Paulo - 16/02/1922)
A saraivada de ofensas, humilhações e vexações públicas aos artistas da
Semana de Arte Moderna não teve limite. Estas matérias e trechos de matérias de
jornais da época são apenas algumas evidências. Uma delas, contudo, também
deixa claro que os jornais falavam sobre um movimento revolucionário, ainda que
sem poder avaliar o vanguardismo do acontecimento e seus desdobramentos,
apontando que aquele momento entraria definitivamente para a história da arte, da
cultura e da própria cidade em expansão.
Tal evidência está na Folha da Noite, em 27 de fevereiro de 1922: “de todos
os pontos do interior e até do Rio de Janeiro chegam notícias do efeito que produziu
nas rodas intelectuais e acadêmicas o fragoroso fiasco dos revolucionários
bolchevistas da celebérrima Semana...”.
Em O Estado de São Paulo encontramos na secção de cartas:
Ex.mos Srs. Membros do Comitê Patrocinador da Semana de Arte
Moderna – Saudações
Em virtude do caráter bastante exclusivista e intolerante que assumiu a 1ª
festa de Arte Moderna realizada à noite de 13, no Teatro Municipal, em
relação às demais escolas de música das quais sou intérprete e
admiradora, não posso deixar de aqui declarar o meu desacordo com este
modo de pensar.
125
Senti-me sinceramente contristada com a pública exibição de peças
satíricas alusivas à música de Chopin. Admiro e respeito as grandes
manifestações de arte independente das escolas a que elas se filiam, e foi
de acordo com este meu modo de pensar que, acedendo ao convite que
me foi feito, tomarei parte num dos festivais de Arte Moderna.
Com toda consideração, Guiomar Novaes.
(O Estado de São Paulo – 15/02/1922)
No Correio Paulistano o tom era outro. Duas colunas tratavam dos assuntos
de arte e cultura: A Chronica Social e a Registro de Arte. A primeira trazia os artigos
mais completos e era assinada por Menotti del Picchia (Helios). Ainda assim,
referências à Semana de Arte Moderna propriamente somente foram encontradas
quase às vésperas do evento. Apesar deste burburinho de dois anos de preparativos
para a Semana de 22, ou melhor dizendo de debates das idéias modernistas contra
as consideradas passadistas, analisando as edições do ano de 1921, encontramos
na de primeiro de janeiro, na coluna Chronica Social, costumeiramente publicada na
página 04, uma brevíssima referência ao evento de comemoração ao Centenário da
Independência. Menotti publica um texto exaltando os dramas da vida com o título
“Acto de Apotheose”, mas não faz referência ao desejo dos artistas de unir a
realização da Semana de Arte Moderna ao Centenário. Os demais títulos das
matérias da coluna são “núpcias”, “necrologia” e “formaturas”. As propagandas
vendem licores Matarazzo e divulgam o Hotel Victoria. Donde concluímos que há
artigos sobre o modernismo e os modernistas ao longo de todo o ano de 1921, mas
não há referências no Correio Paulistano quanto ao planejamento de uma Semana
de Arte Moderna nos moldes como se realizou o evento.
126
A edição nº 21.011, de 01/01/1922, tem 10 páginas e textos corridos em 8
colunas. As fotos (clichês) aparecem em uma ou outra página, mas somente em
matérias sobre assuntos governamentais ou internacionais. Também não faz
referências à Semana de Arte Moderna, mas nos chamou a atenção. Neste
momento, a redação está localizada na Praça Antonio Prado. O “lança-perfume
Pierrot. O melhor de todos. Com venda na Rua São Bento” é a principal propaganda.
As reportagens dão conta de assassinatos de esposas por maridos com a honra
enxovalhada e acrescentam: “situação communissima, portanto, nesses tempos de
desbragada depravação moral”. Não pudemos deixar de observar na mesma edição,
uma notícia em que a mulher é a assassina do marido, neste caso, porém, ela é
tratada por alguém com gênio irascível e nada se fala sobre honra.
Na edição de 21/01/1922 nossa atenção foi despertada pelo título
“Acontecimento Sensacional” e esperávamos ali encontrar a primeira notícia sobre a
Semana de Arte Moderna. A matéria tratava, contudo, de um incêndio ocorrido na
Casa Mappin (uma tradicional loja localizada por muitos anos no centro antigo de
São Paulo, depois falida). O Centenário é anunciado, mas ainda não há nenhuma
referência ao evento modernista, portanto, também ao longo de todo o mês de
janeiro do ano da Semana de Arte Moderna, à exceção de uma mínima nota
publicada em 29/01/1922 anunciando o futuro acontecimento. Continuamos nossa
procura e já em 06/02/1922, praticamente a uma semana do evento modernista, a
principal notícia dá conta de um noivo que atira na noiva e tenta o suicídio porque foi
surpreendido com ela dentro de um hotel.
Segundo Brito (1971, p. 175), “a Semana de Arte Moderna pode ter sido
idealizada às suas vésperas. Alguém pode ter sugerido sua realização como um
espetáculo marcante, embora o desejo de concretizar algo culturalmente significativo
127
viesse de longe”. A incansável procura nas microfilmagens ganha alento no dia
seguinte. Observem que encontramos a primeira referência importante
45
ao evento a
apenas uma semana da estréia no Teatro Municipal. Na Chronica Social, publicada
desta vez na página 05, o título:
“Semana de Arte Moderna” (anexo X)
Os “futuristas”, estes endiabrados e protervos futuristas de São Paulo,
escola mental da nossa gloriosa terra de avanguardistas – vão realizar
umas esplêndidas noitadas de arte durante a semana próxima (não
especifica ainda a data). Será uma semana histórica na vida literária do
país. A sua frente estão nossos consagrados, aplaudidos em todo o país,
como Graça Aranha, Guiomar Novaes, Brecheret, Ronald de Carvalho,
Villa-Lobos, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Guilherme de
Almeida, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, uma dezena de outros, dos quais o
mais nanico, o mais opaco, o mais insignificante é Helios. (O trecho a
seguir foi lido com lupa e compreendido pelo contexto, pois determinadas
palavras estavam praticamente apagadas). Pelo lado social... a Semana
de Arte Moderna...será o maior acontecimento da temporada...reunindo a
fidalguia de figuras tradicionais como Paulo Prado, “Omar Rodrigues
Aires”, Reneé Thioller e outros de veia aristocrática. Como se vê o
“futurismo paulista”, que a horda nacionalista andou... deverá acontecer no
teatro máximo da cidade.
São Paulo no mundo do pensamento, como em todos os ramos da
criatividade humana é ainda o Estado que dá nota e dita o figurino no país.
45
Em torno de dezembro de 1917 há referências no Correio Paulistano à obra de Anita Malfatti,
destacando que ela “se distanciava consideravelmente dos métodos clássicos”. É deste ano o artigo
publicado no Estadão em que Monteiro Lobato a critica severamente, mas, a partir daí, a “má” fama da
pintora congrega em torno dela muitos dos artistas que mais tarde promoveriam a Semana de Arte
Moderna. Nos anos de 1920 e 1921 há artigos sobre artistas modernistas, conforme já inseridos no
trabalho, porém, sem referências à Semana de Arte Moderna especificamente.
128
É na sua terra miraculosa e fecunda que todas as tentativas andazes
encontram apoio e florescem. Este gesto de aliança entre a escola social
paulista e seu esco mental é o gesto mais belo para a afirmação de sua
alta estatura e segurança absoluta do seu predomínio espiritual em todo
país.
Eu que sempre me bati encarniçadamente pelo triunfo do “futurismo
paulista” registro o sensacional acontecimento comovido e jubiloso. Há um
pouco do meu... esforço. A essa vitória da justa causa. Oxalá os outros se
contaminem das nossas idéias e se incorporem na geração nova futurista,
acabando-se de vez com as velhas vestes que adoram o deus parnasiano
que já morreu.
(Correio Paulistano. Chronica Social. “Semana de Arte Moderna”.
Helios - 07/02/1922)
Depois de um silêncio de quatro dias, no sábado, a dois dias da estréia, a
Chronica Social publica:
“Semana de Arte Moderna”
São Paulo – berço de um futurismo social, industrial, econômico – é o
berço do futurismo cultural. (Seguem-se dezenas de linhas quase ilegíveis
que, pelo contexto, exaltam São Paulo). [...] Daí surgiu em São Paulo um
futurismo artístico tão sadio tão moderno... como o mais evoluído de todo o
resto do mundo. Prova disso, vai estar no municipal na próxima semana,
um grupo de artistas prepara uma curta temporada de Arte Moderna:
escritores, poetas, pintores, músicos, escultores.
Será um grande acontecimento para a vida mental e uma festa de grande
repercussão para São Paulo, porquanto a ela estão ligados os nomes dos
mais genuínos representantes da mais fina aristocracia paulista.
(Correio Paulistano. Chronica Social. “Semana de Arte Moderna”.
Helios - 11/02/1922)
129
É domingo, 12/02/1922, a Semana de Arte Moderna será aberta no dia
seguinte:
“Futurismo no Municipal”
O futurismo nacional, filho legítimo de São Paulo, vai ter sua consagração,
em São Paulo. Pela primeira vez ninguém foi profeta em seu país. Quando
pelos jornais Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Helios iniciaram
com grande celeuma e escândalo sua batalha contra os parnasianos,
ninguém supunha que a vitória integral do futurismo paulistano surgisse
tão rapidamente. A chegada ao Brasil de Graça Aranha – um grande nome
nacional – sua atuação incansável, seu admirável esfoopo
130
está preparado para que essa semana marque uma época definitiva na
história do pensamento do Brasil.
Mais uma vez se justifica o lema do brasão da cidade dos bandeirantes:
“non ducor, ducol” (conduzo, não sou conduzido, do latim).
(Correio Paulistano. Chronica Social, p. 05. “Futurismo no Municipal”.
Helios - 12/02/1922)
Ainda no domingo, 12/02/1922, encontramos na mesma edição:
“Semana de Arte Moderna”
A Semana de Arte Moderna continua a despertar o entusiasmo em nossas
rodas artísticas e culturais. A primeira récita, que se realiza amanhã, no
Municipal, será o início de uma série de espetáculos que, pelo seu cunho
artístico, promete ficar memorável em nosso meio. As poucas poltronas
que ainda restam para a Semana de Arte Moderna podem ser procuradas
no Automóvel Club.
(Correio Paulistano. Registro de Arte, p. 06. “Semana de Arte
Moderna” - 12/02/1922)
Finalmente é chegado o dia da estréia. A coluna Chronica Social não fala a
respeito da Semana de Arte Moderna, mas, sim, do comentado baile nos Campos
Elíseos ao qual compareceu a nata da sociedade. O Correio Paulistano, contudo,
aborda o evento na coluna Registro de Arte:
131
Semana de Arte Moderna” (anexo Y)
Realiza-se hoje o primeiro festival da Semana de Arte Moderna. O vivo
interesse que tem despertado em nosso meio o movimento dos “novos”
ainda agora se afirmando numa ruidosa semana artística, certamente
concorrerá para que ao Teatro Municipal acorra enorme assistência. O
espetáculo de hoje, revelando quatro expressões de arte distintas –
literatura, pintura, escultura e música – certamente constituirá a
demonstração prática de valores, de tendências e temperamentos. (O texto
segue com a programação do dia).
(Correio Paulistano. Registro de Arte, p. 06. “Semana de Arte
Moderna” – 13/02/1922)
Na terça-feira, 14/02/1922, a Chronica Social continua abordando a realização
do baile nos Campos Elíseos, que mereceu uma enorme foto na capa da edição
seguinte. Não há nenhuma referência à Semana de Arte Moderna, que estreou um
dia antes. Novamente, é a coluna Registro de Arte a fazer a cobertura do evento:
“Semana de Arte Moderna”
Pela primeira vez tivemos ontem em São Paulo um festival
propositadamente revelador de um fenômeno estético do momento. A
Semana de Arte Moderna ontem iniciada – sejam quais forem as opiniões
a respeito – é a primeira expressão de um movimento artístico tomando
como centro irradiador a terra paulista, colaborando ilustres intelectuais do
Rio. Nunca nossos artistas se congregaram em hostes, estabelecendo
programas transcendentais, ligando num mesmo dia pintura, escultura,
música e poesia. Essas formas de expressões emotivas andaram sempre,
senão divorciadas, pelo menos quase interdependentes, sob esse ponto
de vista, a Semana de Arte Moderna é digna de nota. Sob o ponto de vista
132
dos valores estéticos o primeiro festival pouco revelou no tocante à
literatura, que não passou no terreno das demonstrações práticas de
composições recitadas pelos aplaudidos poetas Graça Aranha e Ribeiro
Couto, que se seguiram à conferência do primeiro. O autor de “Estética da
Vida” falando sobre a emoção estética na Arte Moderna, expôs os traços
gerais do movimento. Essa conferência foi também ilustrada pelo maestro
Ernani Braga, que executou um trecho de Poulenc e de outro compositor
do grupo dos “seis”.
À conferência de Graça Aranha seguiu-se uma parte de música de câmara
constituída por composições do maestro Villa-Lobos: uma sonata e um trio.
Embora revelando tendências modernas, não raro o maestro Villa-Lobos
se torna prolixo no desenvolvimento dos vários temas. Difícil, porém, se
torna formular opinião definitiva sobre o valor do jovem maestro pelos dois
trechos dessa primeira parte, não só por se tratarem de composições de
1915 e 1916, como também pelo fato de, numa única audição, não se
poder ajuizar com segurança um trabalho musical. (O texto segue
comentando o restante da programação apresentada na noite anterior,
mas apenas elencando-a, sem emitir opiniões sobre as apresentações).
(Correio Paulistano. Registro de Arte, p. 02. “Semana de Arte
Moderna” – 14/02/1922)
No segundo dia de apresentações, quarta-feira, 15/02/1922, a Chronica
Social comenta o primeiro dia do evento e reforça o chamado ao público para lotar o
Teatro Municipal. A coluna publica, pela primeira vez, foto de Menotti del Picchia,
aqui não reproduzida pela qualidade, já muito prejudicada, do próprio original.
“A segunda batalha” (anexo W)
Feriu-se, segunda-feira, no Teatro Municipal, entre a cultíssima e
aristocrática platéia de São Paulo, e o grupo escarlate dos “futuristas”, a
primeira batalha da Arte Nova. Não houve mortos e feridos. Acabou num
133
triunfo. Graça Aranha, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto, Villa-Lobos,
os heróis já lendários da primeira refrega, saíram da justa
apoteoticamente, coroados de aplausos. Hoje, entra em combate um novo
contingente de forças: é brilhante e tem antecipadamente garantida sua
vitória, pois leva como segura “mascote” o apoio dessa glória universal que
é Guiomar Novaes.
O programa promete coisas do arco-íris: começará por uma palestra de
Helios, que apresentará o grande romancista Oswald de Andrade; depois,
esse terrível criador da “Paulicéia Desvairada”, que é o erudito e pacífico
Mário de Andrade; depois Álvaro Siqueira, Agenor Barbosa, Luís Aranha,
Plínio Salgado. (O texto segue explicitando outras partes do programa e
rasga elogios à Guiomar Novaes).
[...] É verdade que a gloriosa artista está visceralmente em desacordo com
as irreverências dos futuristas para com os mestres que ela adora. Isto não
a impede de achar altamente intelectual e galhardo o movimento dos
avanguardistas, que estão afirmando no Municipal a existência de uma
arte profundamente autônoma, moderna e nacional
46
.
[...] São Paulo super esteta encherá as poltronas e frisas do Municipal,
hoje à noite, pois, como a da primeira batalha, estamos certos de que
ornarão a platéia todas aquelas aristocráticas flores da aristocracia
patrícia, que transformaram segunda-feira o nosso teatro máximo numa
admirável “corbeille” de elegância, de beleza e de espírito...
(Correio Paulistano. Chronica Social, p. 04. “A segunda batalha”.
Helios - 15/02/1922)
Na mesma data, encontramos na coluna Registro de Arte, publicada na
página 06, uma matéria com o título “Semana de Arte Moderna” relatando toda a
programação do último dia do evento, que seria em 17 de fevereiro. A matéria vem
com um clichê de Guiomar Novaes. Tanto a foto quanto o texto estão de tal maneira
ilegíveis que não foi possível sua reprodução, sequer do texto em parte.
46
Ler na página 123 a carta de Guiomar Novaes publicada no “Estadão” comentando o assunto.
134
No dia seguinte, já após a segunda apresentação, na quinta-feira, 16/02/1922,
o Correio Paulistano publicou o texto abaixo acompanhado por foto de Menotti del
Picchia, também sem condições adequadas de reprodução (anexo Z):
“Semana de Arte Moderna”
Realizou-se ontem, no Teatro Municipal, o segundo festival da Semana de
Arte Moderna, que atraiu numerosa e seleta assistência. O nosso
companheiro de trabalho, dr. Menotti del Picchia, abriu o espetáculo
pronunciando uma brilhante conferência
47
que causou excelente impressão
no auditório. Ele expôs clara e nitidamente os ideais das novas gerações
paulistas, desfazendo dúvidas e traçando um programa de máxima
liberdade dentro da originalidade, sem exageros nem preconceitos
escolares. A bela conferência de Menotti foi aplaudidíssima. (O autor do
texto, sem assinatura, e não se sabe se foi o próprio Menotti, explica que
não publicará a conferência nesta edição por falta de espaço. Na
seqüência citou prosas e versos recitados por Oswald, Sérgio Milliet, Mário
de Andrade, Agenor, Pamplona e Ribeiro Couto das obras de Plínio
Salgado, Ribeiro Couto e Manuel Bandeira).
[...] Durante esses recitativos, uma parte da assistência começou a portar-
se inconvenientemente. (O texto prossegue comentando o restante da
programação, sem emissão de opiniões).
(Correio Paulistano. Registro de Arte, p. 02. “Semana de Arte
Moderna” - 16/02/1922)
Ainda em 16/02/1922, na Chronica Social, o jornal publica um de seus artigos
mais provocantes:
47
Reproduzimos a conferência de Menotti del Picchia proferida durante a Semana de Arte Moderna na
página 135. No Correio Paulistano ela foi publicada na íntegra em 17 de fevereiro de 1922.
135
“O Combate” (anexo AA)
Noitada de glória e de guerra a de ontem no Municipal. Jamais São Paulo
voltou, com tanto interesse, sua atenção para coisas de arte, como nesta
trabalhada semana.
A corte de “gente nova”, se de parte de alguns indivíduos gaiatos e
desconhecidos empoleirados na galeria, recebeu não urbanas
manifestações de desacato, de parte de toda platéia culta de São Paulo a
mais entusiasmada simpatia.
Houve quem cantasse como galo. Houve quem latisse como cachorro.
Cada um, porém, fala na língua que Deus lhe deu. Firme e serena a hoste
avanguardista afrontou o granizo e recebeu com a cabeça altiva os
aplausos que coroaram sua galharda afirmação de independência estética.
A quem vaiaram? Graça Aranha, escritor universal, membro da mais alta
corporação literária do país. Guilherme de Almeida – poeta dos maiores
que temos tido, “enfantgaté” dos nossos salões que acaba de dar-nos mais
uma maravilha do seu comovente lirismo em “Era uma vez”. Ribeiro Couto
– várias vezes coroado pela academia, poeta, um dos maiores críticos
nacionais e uma das celebrações mais completas e admiradas do país.
Villa-Lobos, gênio musical incontestável, ídolo da capital da República,
vitorioso no estrangeiro. Paulina d´Ambrósio, extraordinária artista cuja
mágica arte tem sido sempre acompanhada por apoio e apoteóticas
ovações. Oswald, que Afrânio Peixoto, um dos maiores romancistas do
Brasil de todos os tempos, sagrou como um dos mais humanos, profundos,
seguros estetas do nosso tempo. Mário, senhor de uma cultura pasmosa,
poeta coruscante, crítico, esteta. E mais: Renato de Almeida, Agenor
Barbosa, Plínio Salgado, Sérgio Milliet, Mário Aranha, Cândido Mota Filho,
Ribeiro Couto, Manuel Bandeira. Para que citar mais?....
[...] Portanto, da noitada de ontem ficam, apenas, os aplausos da
aristocrática e brilhante platéia que atulhava as frisas e poltronas do
Municipal.
Não há, pois, que negar que a batalha de ontem foi de glorioso triunfo.
Com o tempo, os mais retardatários denegridores do belo combate de
espírito travado no país, aderirão penitenciados ao movimento, cujas
bases serenas, claras, na minha pequena palestra procurei definir.
(Correio Paulistano. Chronica Social, p 04. “O Combate”. Helios –
16/02/1922)
136
Finalmente, é chegado o último dia de apresentações, sexta-feira,
17/02/1922. Na coluna Chronica Social, na página 04, Menotti não fala sobre o
evento, mas publica uma crônica cuja temática é o modernismo. Na página 02, sai a
publicação da conferência de Menotti del Picchia durante a Semana de Arte
Moderna, o que não havia sido feito na edição anterior por falta de espaço:
Arte Moderna
“A conferência de Menotti del Picchia no Municipal” (anexo BB)
Pela estrada de rodagem da Via Láctea, os automóveis dos planetas
correm vertiginosamente. Bela, o cordeiro do Zodíaco, perseguido pela
Ursa Maior, toda dentada de astros. As estrelas focam o “jazz band” de luz
ritmando a dança harmônica das esferas. O céu parece um imenso cartaz
elétrico que Deus arrumou no alto para fazer o eterno reclamo da sua
onipotência e da sua glória. Este é o estilo que de nós esperam os
passadistas, para enforcar-nos um a um nos finos baraços dos assovios
das duas vaias. Para eles somos um bando de bolchevistas da estética,
correndo a 80 HP rumo da paranóia. Somos o escândalo com duas
pernas, o cabotinismo organizado em escola. Julgam-nos uns cangaceiros
da prosa, do verso, da escultura, da pintura, da coreografia, da música,
amotinados na jagunçada do Canudos literário da Paulicéia Desvairada...
Que engano! Nada mais ordeiro e pacífico, que este bando de vanguarda,
liberto do totemismo tradicionalista, atualizado na vida policiada, violenta e
americana de hoje. Ninguém respeita mais o “casse-te-te” do guarda-cívico
da esquina que esse pugilo de facínoras aparentes, ainda que em mãos
fumegantes do sangue de Homero, Virgílio, Dante, Camões, Victor Hugo,
sobretudo Zola e os neo-gregos, com Heredia à frente.
É que, se assassinamos, sem pena, papões inatuais, lhes beijamos com
reverência os túmulos, amando-os com a alma localizada na hoste dos
epitáfios das suas carneiras. Aos nossos olhos riscados pela velocidade
dos bondes elétricos e dos aviões, choca a visão das múmias eternizadas
137
pela arte dos embalsamadores. Cultivar o helenismo como força dinâmica
de uma poética do século é colocar o corpo seco, enrolado em bandas, de
um Ramsés ou de um Amnésis, a governar a República democrática, onde
há fraudes eleitorais e greves anarquistas.
[...] A nossa estética é de reação. Como tal é guerreira. O termo “futurista”
com que erradamente a etiquetaram, aceitamo-lo porque era um cartel de
desafio. Na geleira de mármore de carrara do parnasianismo dominante, a
ponta agressiva dessa proa verbal estilhaçava como um aríete. Não
somos, nem nunca fomos futuristas. Eu, pessoalmente, abomino o
dogmatismo e a liturgia da escola de Marinetti. Seu chefe é, para nós, um
precursor iluminado, que veneramos como um general da grande batalha
da Reforma que alarga seu “front” em todo o mundo. No Brasil, não há,
porém, razão lógica e social para o futurismo ortodoxo, porque o prestígio
do seu passado não é de molde a tolher a liberdade da sua maneira de ser
futura. Demais, ao nosso individualmente estético repugna a jaula de uma
escola. Procuramos cada um atuar de acordo com nosso temperamento,
dentro da mais arrojada sinceridade.
[...] Que é a nossa arte? Senhores, chorai a morte da mulher “leit-mortif”
das jeremiadas líricas. Até ontem, poetas cabeludos falsos como brilhantes
pingos d´água só descantavam ELA. ELA era o que Marinetti chamava de
a mulher fatal. Para eles – idiotas!- não havia automóveis, corsos,
sapateiros martelando solas, ministros vendendo pátria a varejo no balcão
internacional de conferências e tribunais de arbitragem. [...] Ela fazia
carnívoros pensantes despencarem do viaduto do chá em “loopings”
imprevistos. [...]
E a mulher? Fora a mulher fetiche, a mulher-cocaína, a mulher oncomania,
Peternelle Madame. Queremos uma Eva ativa, bela, prática, útil no lar e na
rua, dançando o tango e datilografando uma conta corrente: aplaudindo
uma noitada futurista e vaiando os tremelicantes ridículos poetaços de
inçadas de termos raros como o porco-espinho de cerdas. Morra a mulher
tuberculose lírica! No acampamento da nossa civilização pragmatista, a
mulher é a colaboradora inteligente e solerte da batalha diuturna e voa no
aeroplano, que reafirma a vitória brasileira de Santos Dumont, e cria o
mecânico de amanhã, que descobrirá o aparelho destinado à conquista
dos astros!
(Correio Paulistano, p. 02. “A conferência de Menotti del Picchia no
Municipal” – 17/02/1922)
138
Ainda na mesma edição, datada de 17/02/1922, a coluna Registro de Arte
publica na página 04.
Realiza-se hoje, no Teatro Municipal, o terceiro e último festival da
Semana de Arte Moderna, com o concurso do distinto compositor patrício
Villa-Lobos. No saguão do teatro continuará a exposição de pintura e
escultura. Esse sarau promete atrair grande concorrência, não só pela
modicidade dos preços das entradas como por ser o último da série.
(Correio Paulistano. Registro de Arte, p. 04 – 17/02/1922)
Após o último dia do evento, o Correio Paulistano publica na coluna Registro
de Arte três notas: a primeira, sem título, trata sobre Di Cavalcanti; a segunda, sobre
a Semana de Arte Moderna (as duas são reproduzidas abaixo); a terceira, anuncia
para os próximos dias um recital de Ernani Braga, comprometido em tocar
Schumann, Chopin, Liszt e Villa-Lobos.
Di Cavalcanti é um bizarro temperamento de artista. Suas figuras
constituem a fixação das linhas e movimentos mais originais dos seres e
das coisas. Essas linhas e movimentos que refletem a própria fisionomia
das almas, são as procuradas pelo jovem pintor que assim surpreende na
natureza aquilo que nos passa despercebido. Nestes “Fantoches da Meia
Noite”, precedidos de um rápido e sugestivo prefácio de Ribeiro Couto, Di
Cavalcanti apanhou o espírito ignorado das cousas moventes na sombra.
[...] Os “Fantoches da Meia Noite” foram editados pela Casa Monteiro
Lobato e Cia
48
.
48
Monteiro Lobato fundou a Editora Monteiro Lobato e Cia., lançando inúmeros escritores até então
desconhecidos e melhorando a qualidade das publicações existentes. Esta empresa foi da maior
importância para o desenvolvimento editorial brasileiro. Depois de falido, voltou ao ramo com a Cia.
Editora Nacional.
139
“Semana de Arte Moderna”
Com o festival de ontem, preenchido exclusivamente com composições da
lavra do maestro Villa-Lobos encerrou-se a série de saraus da Semana de
Arte Moderna. Bem mais concorrido que os anteriores, o sarau de ontem
teria deixado melhor impressão não fora a atitude de hostilidade assumida
sem razão, valha a verdade, no começo e no fim do concerto, por uma
parte diminuta da assistência. Felizmente, essa atitude foi francamente
condenada pela grande maioria, que obrigou ao silêncio os demais.
As composições do maestro Villa-Lobos, de épocas e gêneros diferentes,
produziram, em conjunto, ótima impressão, devendo salientar-se, porém, a
“Sonata Segunda” para violino e piano, trabalhada com felicidade e onde
não escasseiam lindas frases musicais. Apesar de uma ou outra
extravagância e de umas tantas preocupações de modernismo, a melodia
de Villa-Lobos revela, desde logo, um temperamento e um talento dignos
de nota, em que não falta também certa originalidade, como se evidenciou
no quarteto simbólico para flauta, saxofone, celeste e piano.
Tanto à Villa-Lobos como a seus intérpretes e principalmente com Paulina
de Ambrósio, Ernani Braga e Maria Emma, a assistência premiou com farta
messe de aplauso.
(Correio Paulistano. Registro de Arte, p. 02 – 18/02/1922)
Também no dia 18/02/1922, com fortíssimas críticas às vaias recebidas no
Municipal e comparando as manifestações a ladridos e cacarejos (adjetivos
inspiradores ao título desta dissertação), a Chronica Social revela ao leitor o
seguinte texto:
140
“A Vitória” (anexo CC)
Com o triunfo de ontem terminou a gloriosa Semana de Arte Moderna. Que
ficou dela? De pé – germinando – a grande idéia. Dos vencidos, alguns
latidos de cães e cacarejos de galinha...
Eu jamais supus, da alta educação do nosso povo, que pudesse haver
quem chegasse a descer à triste condição de um animal para manifestar
seu ódio. Essa humilhante situação, eleita por alguns “rates”, que deram
suas demissões de homens, foi bem o escalão da própria mentalidade.
De um lado, artistas de fama diziam versos, recitavam trechos de prosa,
enchiam o ambiente de harmonias. De outro lado, alguns indivíduos, que
chegaram a envergonhar o gênero humano, por dele conservarem apenas
o “aspecto”, ladravam e cacarejavam. Cães só produzem mordeduras,
galinhas ovos, em vez de pensamentos, ladridos. Em lugar de idéias,
omeletes... Foram esses os que deram por morta a causa gloriosa da
Reforma. É ridículo. Causa pena.
E quem eram os artistas contra os quais ganiam os despeitados? Homens
finos, de educação, que não perderam a linha de cavalheiros. Como tais,
deviam ter merecido maior respeito, principalmente tratando-se em parte,
de gloriosos hóspedes cariocas e, de outra parte, de paulistas que
conquistaram para o pensamento de São Paulo, um lugar de exceção
honrosa nos ambientes culturais do país.
Batalha intelectual que foi, só admitia, ao ser ferida, armas intelectuais.
Responder com dentadas a dissertações de ordem estética, ladrar, ganir,
ulular, uivar, rosnar, quando o espírito voa, sereno, no céu claro da beleza,
tudo isso dá uma tristíssima amostra de quanto pode o desespero dos
vencidos, que não têm coragem humana de contradizer os que, em
público, assumam a responsabilidade das suas idéias.
Soubessem esses animais – porque não dizê-lo, se só pelas vozes dos
animais se manifestaram esses covardes – quanta dor acalcada em
vigílias de ânsia havia nas palavras daqueles moços heróicos, expostos ao
calvário da assuada selvagem; soubessem quanto amor a esta terra, que
141
procuraram exaltar nos seus versos; soubessem da esperança do
laborioso sacrifício, do desesperado afã da perfeição e teriam reservado
seus cacarejos para a própria inércia e os ladridos para a própria
ignorância.
Não faz mal. Tiradentes foi enforcado porque sonhou com a República
entre os régulos. Wagner foi vaiado, bem como um seu crítico admirador
em São Paulo, só porque tentara abrir novos horizontes à música. Rodin
foi escarnecido só porque dera uma camartelada genial na frieza
acadêmica.
Em compensação – e essa é a consagração da nossa idéia – tudo o que
São Paulo tem de mais culto, mais aristocrático, mais fino, tudo que nesta
terra não ladra, não gane, não cacareja, não morde, aplaudiu com calor os
libertadores da Arte, sagrando seu esforço e fazendo frutificar,
gloriosamente, o seu exemplo!
(Correio Paulistano. São Paulo. “A Vitória”. Helios – 18/02/1922)
O Correio Paulistano publica em 19/02/1922, na coluna Chronica Social, na
página 04, uma nota com foto cujo título é: Dr. Azevedo Marques. Relata a
passagem do aniversário do Ministro das Relações Exteriores sem, contudo, fazer a
ligação entre ele e o fundador do jornal, Joaquim Roberto de Azevedo Marques,
provavelmente tio do então ministro.
No dia 22/02/1922, a coluna Registro de Arte, na página 05, divulga um recital
de Ernani Braga, um dos participantes da Semana de Arte Moderna, cujas
apresentações incluiriam repertório de Villa-Lobos. A ligação do artista com os
modernistas não é citada na nota.
142
Em nossa busca às matérias de datas posteriores ao encerramento da
Semana de Arte Moderna, encontramos publicada no Correio Paulistano uma carta
de Mário de Andrade ao cronista Helios. Aparentemente, pelo conteúdo da carta, ela
não deveria ser aberta ao conhecimento público e não se sabe se Helios teve a
autorização do amigo para fazê-lo
49
. O fato é que a correspondência tornou-se
pública. A exultação de Mário desperta certa comoção... “Escrevera-me o Mário
Morais de Andrade, o delicioso artista de “Paulicéia Desvairada” e o incorrigível
“blagueur” da fronda da Arte Nova” – publica no cabeçalho da coluna Menotti del
Picchia.
“Uma carta” (anexo DD)
Carta muito particular, que tal? Conseguimos enfim, o que desejávamos,
celebridade. Soube que o X.Z. estava um pouco atemorizado com os
insultos que temos recebido. Consola-o tu. Realmente, amigo, outro meio
não havia de conseguirmos a celebridade. Era só assim: aproveitando a
cólera dos araras. Somos todos os pseudofuturistas uns casos
teratológicos. Somos burríssimos. Idiotas. Ignorantíssimos. Compreendes
que, com todas essas qualidades, só havia um meio de alcançar a
celebridade: lançar uma arte verdadeiramente incompreensível, fabricar o
Carnaval da “Semana de Arte Moderna”... e deixar que os araras falassem.
Caíram como araras. Gritaram. Insultaram-nos. Vaiaram-nos. Mas o
público já está acostumado com descomposturas, não leva a sério. O que
49
Mário deixou centenas de cartas trocadas com amigos, personalidades da arte e da cultura.
Explicitou o desejo de que fossem abertas somente 50 anos após sua morte, para preservar
intimidades. Hoje, depois de um belíssimo trabalho de Antonio Cândido e sua equipe, todo o acervo
do escritor, inclusive suas cartas, estão disponíveis no museu do Instituto de Estudos Brasileiros, na
USP.
143
fica é o nome e um sentimento de simpatia que não se apagam mais da
memória do leitor.
Estamos célebres! Enfim! Nossos livros serão comprados! Ganharemos
dinheiro! Seremos lidíssimos! Insultadíssimos! Celebérrimos! Teremos
nossos nomes eternizados nos jornais e na História da Arte Brasileira.
Agora calemo-nos, amigo Helios: não há necessidade de escrever.
Estamos célebres, amados e detestados. E tudo isso por quê? Porque os
araras caíram na armadilha. Insultaram-nos. Somos bestas, doentes,
idiotas. Ignaros. Tudo isso é verdade, amicíssimo. Mas como os jornais o
disseram e o público não acredita, toda gente imagina que somos
perfeitíssimos de corpo e alma, inteligentes, honestos e eruditos.
Que araras, amigo Helios, que araras!
(Correio Paulistano. São Paulo. Chronica Social, p. 05. “Uma carta”.
Helios – 23/02/1922)
Ainda na mesma edição em que se encontra publicada a carta de Mário de
Andrade localizamos na página 04, uma carta de Menotti del Picchia a um jornalista
do Jornal do Commércio. Decidimos incluir aqui trechos da carta, bastante
extensiva, porque seu conteúdo revela muito da polêmica que ocorria pela imprensa
entre “modernistas” e “passadistas”. Nesta data, a coluna Registro de Arte fala sobre
o recital de Ernani Braga e não traz outras notas.
Carta aberta ao Sr. Oscar Guanabarino
Mestre do Passado. Vale! (do latim, “adeus, passe bem”!)
Não me zanguei com teu rodapé iracundo que franjou com cegante
relâmpago de cólera os dois “Jornaes do Commércio”, carioca e paulista.
Caiu do céu... É que até agora os adversários da Semana de Arte
144
Moderna, esse “terremoto estético” que abalou o país, a atacaram com tal
estilo, tais solicismos, tal português, que acabaram perdendo a amizade de
Rodrigues Lobo e outros clássicos menores.
Ficaram no limbo literário, como essas alunas sem batismo, que o inferno
rejeita, o céu não acolhe e o purgatório manda à fava... bradando em nome
do classicismo, expressaram-se em língua de cangaceiros... Tua descida à
arena, velho Mestre do Passado, foi providencial.
[...] Somos expoentes de duas gerações diversas: uma que morre outra
que surge. O nosso adeus seja de amigo, sem lágrimas, mas sem
ressentimentos. Confesso-te, orgulhosamente, que o novato Menotti, que
tua generosidade madura acolheu com tanto carinho, é o que teve a
raciocinadíssima coragem de afirmar suas convicções estéticas na já
célebre noite no Municipal.
[...] Tu – velho Mestre do Passado – pressentindo o golpe fatal que esse
movimento glorioso dará a tua galharda combatividade, já inútil agora que
os crentes adoram o novo sol da Beleza, que reponta da outra banda do
teu mundo, nem leste minhas palavras, no afã guerreiro de combatê-las!
Acusaste-me de “futurista” atordoado pela apavorante significação desse
termo reacionário, quando, nessa mesma palestra que combatias, eu
declarava em alta voz a quem me ouviu e em letra de forma a quem me
leu, que rejeitava o “futurismo”, toda a sua liturgia e todos os seus dogmas.
[...] Admiro qualquer obra em que haja talento. Mas o que é repetição,
imitação, maneirismo é negação de talento. Até hoje se procura imitar os
clássicos pela razão ingênua de que eram “bons” e faziam “vernáculo e
estilo da literatura!”. Mas, se toda vida talharmos nossa bela, plástica,
sonora língua, pelos moldes clássicos, teremos realizado a pálida
decepção da monotonia estafante! Assassinaremos a personalidade...
[...] A arte deve acompanhar as instituições do tempo... [...] E a revolução
literária, vitoriosamente iniciada na “Semana de Arte Moderna”, foi o
princípio sistematizador da Reforma. A tua reação, Guanabarino, foi uma
prova de afirmação corajosa que ela representou. A reforma existia,
obscura, intuitiva, na consciência de todos os “novos”. A batalha do
Municipal não a criou; não fez mais do que a denunciar.
145
Não te zangues por isso, porém, revolve tuas memórias. No teu tempo –
há quantos anos? – não terás tido uma atitude igual a nossa com os
“velhos” de então. Hodie um, cras tibi... Adeus!
(Correio Paulistano, pg. 04. São Paulo. “Carta aberta ao Sr. Oscar
Guanabarino”. Menotti del Picchia – 23/02/1922)
O texto acima encerra a série publicada no Correio Paulistano cuja temática
central fosse a Semana de Arte Moderna no ano de 1922 entre janeiro e 1º de
março, período utilizado como parâmetro desta pesquisa.
Uma vez que outros modernistas ocupavam espaço na imprensa desde a
exposição de Lasar Segall, em 1913, passando pela exposição de Anita Malfatti, em
1917, e principalmente, nos dois anos que antecederam à Semana de 22, uma
pergunta não pode deixar de ser feita. Por que só Menotti manteve postura favorável
às idéias em questão? Em jornais mais conservadores como O Estado de São
Paulo, houve certo cerceamento aos jovens modernistas. Outros jornalistas
realmente não afetos à Semana (havia uma lista grande deles), tomaram espaços
muito maiores para publicar seus textos contra a nova arte. Mesmo porque pesavam
as razões financeiras, pois, a exemplo de Assis Chateaubriand, temiam o
rompimento com a aristocracia tradicionalista.
Quanto a Menotti del Picchia dois pontos podem ser fortemente considerados:
Apesar de o Correio Paulistano ser órgão oficial do PRP e estar ligado à oligarquia
do café e a fortes industriais, Menotti gozava de uma reputação capaz de transpor
essas barreiras. Era um nome muito forte na estrutura de poder do jornal e,
intelectual já reconhecido, dispunha de ampla liberdade para decidir o que seria ou
não publicado. O outro ponto dá-se em torno do trânsito entre ele e medalhões como
Graça Aranha e o fazendeiro e industrial Paulo Prado. Menotti circulava entre os
146
donos do dinheiro e do poder que, como mostrado, arregimentaram os recursos para
a realização da Semana de Arte Moderna.
É preciso considerar-se ainda a idéia de uma “guerra de informação” para dar
notoriedade ao evento. Sobre isso, encontramos pista em Francisco Alambert
(1992), ao relatar que alguns jornais da época publicaram que as agitações no
Teatro Municipal foram provocadas por pessoas que acabaram ligadas ao
movimento, ou seja, uma insinuação de que os opositores mais ferrenhos presentes
ao evento foram “plantados” pelos organizadores ou por eles “cooptados”.
No mesmo sentido, há mais uma informação em Neide Rezende (1993)
acusando Mário de Andrade de polemizar consigo mesmo n´A Gazeta: numa coluna
denominada “Pró” defendia o modernismo; em outra, “Contra”, sob o pseudônimo de
Cândido, rebatia-o (leia o texto publicado na página 119).
Depois da Semana de Arte Moderna, os artistas e intelectuais concentraram-
se no plano de espalhar a nova forma de arte através de revistas de conteúdo
exclusivamente modernista lançadas em várias partes do Brasil. Só em São Paulo
havia, além da Klaxon (figura 34), a Revista de Antropofagia, A Onda, Papel e Tinta,
Terra Roxa e Outras Terras. No Rio de Janeiro, uma subsidiária da Papel e Tinta, a
Árvore Nova, Estética, Movimento Brasileiro, Terra do Sol. A figura 35 nos dá um
panorama da imprensa modernista especializada em todo o país.
147
F
igura 35: A expansão do Movimento Modernista no Brasil através da imprensa especializada.
148
Conclusão
Correio Paulistano:
arauto, conservador, liberal, modernista
149
Chegaram a me confundir as mudanças de postura política do Correio
Paulistano, em especial se considerarmos o fato de que o jornal já resistia há mais
de meio século antes de se formar a noção de jornalismo como empresa lucrativa,
integrante do sistema capitalista como outra qualquer. No início, à época em que foi
fundado, basicamente o único tipo de jornalismo que congregava os jornais
existentes era o partidário político ou o acadêmico. O conceito de jornalismo
independente, defensor de interesses coletivos e difusos, porta-voz de setores
diversos da sociedade era ainda muito incipiente.
É bem verdade que outros Estados, como Rio de Janeiro e Pernambuco,
estavam bem mais adiantados na imprensa diária, mas em São Paulo a situação era
bastante diferente e a cidade mantinha-se praticamente como uma aldeia colonial.
Ao ser lançado, o Correio Paulistano não foi visto pelo seu idealizador como um
meio de subsistência ou uma empresa lucrativa. Então, por que o jornal mudou suas
roupagens com o soprar dos ventos?
Escolho este como um dos pontos centrais para o estabelecimento da
trajetória do jornal dentro da imprensa paulista e aponto algumas conclusões. Fora
preciso bem mais do que um bico-de-pena e um lampião para lutar contra o
escorchante centralismo do governo monárquico. Os jornalistas resistiram
bravamente ao cerco imperial produzindo - à despeito de toda dificuldade – até
mesmo folhas manuscritas, que obrigavam os leitores a compartilharem o jornal de
mão em mão, uma vez que o número de cópias, naturalmente, era pequeno.
Houve também várias tentativas de se abrir gráficas tanto para a impressão
de jornais quanto para livros, mas tais iniciativas foram sempre destruídas pelo
poder da força da guarda imperial. É também deste tempo o primeiro registro de
assassinato de um jornalista em razão de suas atividades profissionais.
150
Quando o Correio Paulistano veio à luz, estava vigorando a política de
conciliação proposta pelo imperador para arrefecer os ânimos entre os partidos e
evitar a disputa política dos cargos, portanto, mesmo que o jornal não se vinculasse
a nenhum partido específico, não poderia ampliar seu leque de discussões. Vale
lembrar que as dificuldades foram tamanhas que, entre 1855 e 1858, Azevedo
Marques fora obrigado a suspender as edições diárias e tornar o jornal bi-semanário.
Ele pedia publicidade de porta em porta, mas um detalhe só descoberto pela análise
minuciosa das edições do jornal, ausente da literatura, é que a publicidade era
gratuita. E mesmo assim, só a partir da terceira edição ela aparece e não como mais
do que pequenos comunicados. Os poucos comerciantes locais não se interessaram
nem mesmo pela inserção gratuita de seus anúncios, porque não confiavam nem na
publicidade nem que um jornal diário vingaria.
Sem publicidade e sem leitores – a instrução era artigo raríssimo numa
sociedade rural e escravocrata, Azevedo Marques terminou por se ligar as estruturas
do poder quando passou a publicar os atos oficiais da Assembléia Provincial. Tal
dependência custou-lhe ficar sem o papel florete, importado, sempre que a
Assembléia era dissolvida pelo imperador ou quando por qualquer questão de
desavença com os donos do poder o “contrato” era sumariamente suspenso.
Somente nas ocasiões em que o governo provincial estava em dia com os cofres do
jornal, este experimentava períodos de estabilidade e progresso.
Apesar disso, Azevedo Marques comprava brigas contra o poder como a que
travou entre seu jornal e o presidente da Província José Tavares Bastos, que reagia
com todo tipo de truculências, como recrutar funcionários do Correio Paulistano para
a Guerra do Paraguai. Esse vai e vem seguiu-se até o surgimento de A Província de
São Paulo, obrigando o Correio Paulistano a fechar um contrato com o Partido
151
Conservador para fazer frente aos chefes republicanos do jornal concorrente. A
relação com os conservadores terminou com o poderoso Antonio da Silva Prado
comprando os direitos do Correio Paulistano, em 1882. Já neste primeiro momento,
acredito, enterram-se importantes perspectivas para a vida futura do jornal. Apesar
de Azevedo Marques continuar na redação por mais alguns anos, sua direção passa
a ser eminentemente política.
Estas mudanças de posição política estão intrinsecamente ligadas, segundo
minha avaliação, ao fechamento do jornal. Ao ser proclamada a República, o Correio
Paulistano assinou contrato com o Partido Republicano e seguiu a ele atrelado por
quase setenta anos. Mesmo acompanhando o desenvolvimento dos demais grandes
jornais da época, editado em grande formato, com oito cadernos e mais de cem
páginas, ser o órgão oficial do partido que representou quarenta e um anos de poder
consecutivo no Brasil, de 1889 a 1930 (com vários retornos após esta data),
arriscava toda e qualquer “independência” do jornalismo por ele praticado.
A comparação com a A Província de São Paulo é inevitável. Quando a
República se estabelece, o jornal que até então representava os republicanos se
desvincula destes e segue como uma empresa autônoma. Muda sua razão social
para O Estado de São Paulo e firma-se como uma das maiores empresas
jornalísticas de todos os tempos. Vale frisar que, quando a A Província de São Paulo
surgiu, o jornal de Azevedo Marques já estava estabelecido há vinte e um anos.
Já o Correio Paulistano, ao ocupar o espaço deixado pelo seu concorrente,
faz o caminho inverso e se atrela ainda mais afuniladamente ao governo. Outra
nuance se põe dentro desta mesma questão: depois de 1930, com a deposição do
último presidente seqüencial do Partido Republicano Paulista por Getúlio Vargas, o
Correio Paulistano foi empastelado e suas oficinas incorporadas ao patrimônio
152
público. A intervenção durou quatro anos. Quando finalmente o jornal voltou a
circular, continuando a ser o veículo de comunicação do Partido Republicano,
naturalmente, explodiu em oposição ao governo. Neste momento, aponto, ele deixa
de ser um jornal de “situação” para se tornar de “oposição”, o que não altera em
nada sua condição de “dependência”. Sua ligação com o PRP só terminaria em
1955, época em que o conceito de empresa jornalística já estava estabelecido. E tal
conceito entende um jornal enquanto empresa autônoma, capaz de sobreviver pela
auto-sustentação e pela pseudo idéia de independência não só financeira quanto
política e editorial.
Um salto de vanguarda
O conservadorismo político foi quebrado pelo vanguardismo cultural? Eis
outro aspecto para o qual não posso me furtar em apontar algumas teses. Por que o
Correio Paulistano foi o único jornal a cobrir favoravelmente a Semana de Arte
Moderna? Esta foi uma pergunta que me fiz desde a confecção do projeto. Porque a
Semana de Arte Moderna foi tudo o que dela se diz depois e não durante sua
ocorrência. Este é o fato. Ao momento de sua realização o evento foi considerado
não mais do que uma atividade artística restrita à elite cultural, sem nenhum apelo
dentro das camadas mais populares. Um evento excêntrico e fechado, isolado
mesmo. Analisando as edições do Correio Paulistano entre 1920 e março de 1922
ficou claro, como demonstrado no corpo do trabalho, que quase às vésperas dos
saraus nem mesmo o Correio Paulistano falava sobre a Semana de Arte Moderna.
E ao contrário do que se pode imaginar não houve espaço privilegiado no
jornal para o tema, restrito às colunas que tratavam exclusivamente de arte, cultura
153
ou eventos sociais – a Registro de Arte e a Chronica Social. Jamais se publicou uma
linha sequer na capa ou com grande destaque, nem mesmo no dia do evento ou
após a estréia.
Nada disso, naturalmente, fere a importância do evento, tão pouco do
movimento modernista, cujas raízes e implicações para o Brasil moderno estão hoje
mais do que conhecidas e reconhecidas. A análise aqui feita é exclusivamente sob o
ponto de vista jornalístico. Neste sentido, o tratamento dado ao acontecimento pelos
demais jornais de igual importância foi o mesmo: espaço restrito às colunas de arte
e eventos.
Ainda assim, o tom diferenciado do Correio Paulistano mereceria uma
explicação e ela está na presença imprescindível de Menotti del Picchia, como já
amplamente discutido no capítulo III. As presenças de Paulo Prado, desde muito
antes da Semana de Arte Moderna (lembramos que o jornal pertenceu a Antonio da
Silva Prado), e de Ribeiro Couto, desde 1917, também merecem o devido
apontamento.
Por último e não menos essencial, levantamos que entre os líderes dos
modernistas literatos, Menotti era o único que, à época da Semana de Arte Moderna,
tinha acesso à grande imprensa e, no caso dele, mais do que isso, desempenhava
um papel importante na redação. Oswald de Andrade circulou pela redação do
Correio Paulistano no período entre 1922 e 1924, porém, depois do evento.
Escreveu para o Jornal do Commércio, entre 1917 e 1922, contudo, não recebeu
grande espaço para divulgar a Semana de 22, já que o jornal assumiu postura
publicamente contrária. Mário de Andrade também escreveu para o Jornal do
Commércio, mas somente no ano de 1921.
154
Em A Gazeta registra-se a passagem de Oswald apenas em 1918, época em
que ocasionalmente compartilhou a redação com Mário de Andrade. Ambos e outros
modernistas publicaram esporadicamente ou não na imprensa por muitos anos após
a Semana de Arte Moderna.
Ao iniciar este trabalho, carregava comigo um pensamento de Nelson
Werneck Sodré (1966) sobre o diferenciado comportamento do jornal em relação
aos modernistas. Ele, que chegou a ser colunista do Correio Paulistano, escreveu:
“por paradoxal que pareça – e só na aparência foi isso paradoxal - o Correio
Paulistano acolheu o movimento modernista, sendo órgão tradicional do PRP, que
mandava no Estado e no país”. E, agora, ao concluir, analisando o modernismo à luz
de ter sido mais um traço da ascensão burguesa, estou convicta de que tal
aparência paradoxal foi desmontada e toda sua ilusão desfeita.
155
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CONSULTAS A JORNAIS MICROFILMADOS
9 Arquivo Público do Estado de São Paulo
9 Biblioteca Municipal de São Paulo “Mário de Andrade”
9 Centro Cultural de São Paulo
9 Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.
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PERIÓDICOS CONSULTADOS
9 Correio Paulistano
9 O Estado de São Paulo
9 Jornal do Commércio
9 A Gazeta
9 Folha da Noite
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