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ELTON BRUNO SOARES DE SIQUEIRA
A CRISE DA MASCULINIDADE NAS DRAMATURGIAS DE
N
ELSON RODRIGUES, PLÍNIO MARCOS E NEWTON MORENO
RECIFE – 2006
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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ELTON BRUNO SOARES DE SIQUEIRA
A Crise da Masculinidade nas Dramaturgias de
Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e Newton Moreno
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
da UFPE para obtenção do grau de
Doutor em Teoria da Literatura.
ORIENTADORA: MARIA DA PIEDADE
MOREIRA DE SÁ
RECIFE – 2006
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2
Siqueira, Elton Bruno Soares de
A crise da masculinidade nas dramaturgias de
Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e Newton Moreno
/ Elton Bruno Soares de Siqueira. – Recife : O
Autor, 2007.
323 folhas : il., fotog.
Tese (doutorado) – Universidade Federal de
Pernambuco. CAC. Teoria da Literatura, 2007.
Inclui bibliografia e anexos.
1.Literatura brasileira. 2. Dramaturgia. 3.
Estética. 4.Masculinidade. 5. Análise do discurso.
I. Rodrigues, Nelson. II. Plínio Marcos. III. Moreno,
Newton. IV. Título.
869.0(81) CDU (2.ed.) UFPE
869 CDD (22.ed.) CAC2007-
37
3
4
Resumo
Partindo do suposto de que a literatura corresponde a um discurso que se insere num contexto
cultural e, por isso, marcado ideologicamente, propomo-nos investiga r como o teatro brasileiro,
a partir de Nelson Rodrigues, e xpressa indícios de uma crise d os valores masculinos
hegemônicos. O mito moderno da masculinidade é problematizado a pa rtir da análise da obra de
três escritores de considerável destaque na produção dramatúrg ica brasileira moderna e
contemporânea: Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e Newt on Moreno. O corpus da pesquisa é
composto de seis peças: Perdoa-me por me traíres (1957) e O beijo no asfalto (1961), de
Nelson Rodrigues; Dois perdidos numa noite suja (1966) e Navalha na carne (1967), de
Plínio Marcos; Dentro (2002) e Agreste (2004), de Newton Moreno. O objetivo principal da
pesquisa foi caracterizar a forma em que cada autor trabalha as personagens masculinas ou os
discursos masculinos em suas peças, a fim de deduzir uma gama de valores concernentes à
questão da masculinidade. Outros objetivos, mais específicos, orientaram a investigação, como:
identificar que recursos discursivos, presentes nessas drama turgias, contribuem para criar
alteridades masculinas; interpretar como essas alteridades corroboram a crise dos referent es
masculinos; investigar que r elações possíveis podem ser apontadas entr e a forma dramatúrgica e
o tema abordado. Para tanto, nos valemos de algumas orientações metodológicas da Análise
Crítica do Discurso Literário, baseando-nos, sobretudo , em Fairclough (2001), para uma
abordagem crítica do di scurso, o que nos f ez intervir sobre a ma terialidade lingüíst ica e estética
dos textos, sem perder de vista os objetivos e as finalidades que fazem da nossa pesquisa uma
investigação do cará ter político da produção dramatúrgica brasileira, e em Bakhtin ( 1981a), para
as considerações sobre a arte literári a. Demonstramos que as peças de N elson Rodrigues, P línio
Marcos e Newton Moreno, além das inovações formais, trataram de temas pertinentes ao homem
contemporâneo, oferecendo uma concepção lúcida do mundo pós-Segunda Guerra e de suas
contradições. Constatamos que o discurso masculino nessas dramaturgias converge para a idéia
de que o homem, inserido no mundo contemporâneo, se depa ra com situações e tipos de relaçõ es
sociais não mais condizentes com o quadro de referências que ele tinha de sua própria imagem
masculina — o sistema de crenças burguês.
PALAV RAS- CHAVE : dra mat urgi a; est éti ca; d iscur so; mascu linid ade .
5
Abstract
Starting from the hypothesis that literature corres ponds to a discourse which is part of a cultural
context, hence ideolog ically ma rked, we aim to inve stig ate ho w th e Braz ilia n th eatre, fro m
Nelson Rodrigues on, expresses signs of a crisis in the hegemonic male values. The modern myth
of ma sculin ity is stud ied b y the analys is of the works o f three playwrights of considerable
importance in the mo dern and contemporary Braz ilian dramaturgy: Nelson Ro drigues, Plínio
Marcos and Newton Moreno. The research corpus is comp osed of six plays: Perdoa-me por me
traíres (1957) and O beijo no asfalto (1961), by Nelson Rodrigues; Dois perdidos numa noite
suja (1966) and Navalha na carne (1967), by Plínio Marcos; Dentro (2002) and Agreste (2004),
by Newton Moreno. The ma in objective was to char acterize the way how each author deals w ith
the male characters or the male discourse in their plays, so as to deduce an array of values
concerning the issue of masculin ity. Some other more specific objectives also guided the
investigation, such as: to identify which discourse r esources, present in those dramaturgies,
contribute to create male alteraties; to interpret how these alteraties corroborate the crisis of the
male referents; to investigate which possible relations can be pointed ou t between the
dramaturgic form a nd the theme addressed. To do so, we used some of the methodological
orientations of the Critical Analysis of the Literary Discourse, based, mainly, on Fa irclough
(2001), to achieve a critical approach to the discourse, which made us interv ene in the linguistic
and aesthetic material ity o f the tex ts, without losing sight of the objectives and aims which make
our research an in vestigation of the po litical character of the Bra zilian dramaturgic productio n;
and on Bakhtin (1981a), for the considerations about the literary art. We show that the plays by
Nelson Rodrigues, Plínio Marcos and Newton Moreno, besides bringing forma l innovations,
address ed th emes w hich pertain to the c ontem pora ry man, offering a lucid conception of the
post-II World War reality and its contradictions. We have concluded that the male discourse in
those dramaturgies converges to t he idea that the man, as pa rt of the contemporary world,
comes across situations and types of social relations which do not agree anymore with the
reference he had of his own image as a male - the bourgeois belief system.
KEYWORDS: dramaturg y; aesthetics; discourse; masculinity.
6
Résumé
En partant de l’hypothèse selon laquelle la litt érature correspond à un discours qui s’insère dans un
cont exte cu ltu rel et, d onc, idéo log iquem ent ma rqu é, o n se p ropo se de cher cher comme nt le th éâtr e
brésilien, à partir de Nelson Rodrigues, exprime des indices d’une crise des valeurs mascu lines
hégémoniques. Le mythe moderne de la masculinité est mis en question à partir de l’analyse de
l’œuvre de trois écrivains d'une importance considérable dans l a production dramaturgique
brésilienne moderne et contemporaine: Nelson Rodrig ues, Plínio Marco s et Newton Mo reno. Le
corpus de la recherche est compo sé de six pièces: Perdoa-me por me traíres (1957) et O beijo no
asfalto (1961), de Nelson Rodrigues; Dois perdidos numa noite suja (1966) et Navalh a na carne
(1967), de Plínio Marcos; Dentro (2002) et Agreste (2004), de Newton Moreno. Le but de ce travail
est de caractériser la manière dont chaque auteur travaille les personnages masculins ou les discours
masculins dans ses piè ces, afin de déduire une ga mme de valeurs co ncernant la q uestion de la
masculinit é. D' a ut r es bu t s, pl u s sp écif iques, o nt ori e nt é la r e ch e r che, à sa voir: id entifier quels recour s
discursifs, présents dans ces dramaturgies, contribuent à créer des altérités masculines; interpréter
comment cettes altérités corroborent la crise des référents masculins; chercher quelles relations
possibles on peut remarquer entre la forme dramaturgique et le thème abordé. On a utilisé quelques
orientations méthodologiques de l’An alyse Critique du Discours Littéraire, en se basant surtout sur
Fairclou gh (20 01), po ur une appro che crit iqu e du discou rs, int ervena nt sur la mat ér ialité li ngui st iqu e
et esthétique des textes, sans perdre de vue les objetifs et les finalités qui font de notre travail une
recherche sur le caractère politique de la prodution d ramaturgique brésilienne; et sur Bakhtin
(1981a), pour les co nsidérations sur l’art littéraire. On a démontré que les pièces de Nelson
Rodrigues, Plínio Marcos et Newton Moreno, outre les inovations formelle s, nous ont off ert des
thèmes qui tr aitent de l’homme contempo rain, en apportant une conception lucide du monde post-
Deuxième Guerre mondiale et de ses contradictions. On a constaté que le discours masculin dans ces
dramaturgies converge vers l'idée selon laqu elle l’homme, inséré dans le monde contemporain,
affronte des situations et types de relations social es non plus équiv alentes au sy stème de référenc e
qu’il a eu de sa propre image masculine — le système de croyance bourgeois.
MOTS-CLÉS: dramaturgie; esthétique; discours; masculinité.
7
Agradecimentos
Meu profundo agradecimento à orientadora e amiga Piedade de Sá, pelo exemplo de
profissionalismo e de dedicação acadêmica. Sem a sua desmesurada paciência, o percurso do
Doutorado poderia ter sido incomparavelmente mais espinhoso.
Ao professor e amigo Anco Márcio Tenório Vieira, leitor crítico e profissional comprometido, que
sempre me estimulou a perseguir, cada vez mais profundamente, meus objetivos acadêmicos.
Valiosos foram seus comentários no Exame de Qualificação desta tese.
Ao professor Alfredo Cordiviola, pelos comentários lúc idos e inteligentes na ocasião do Exame d e
Qualificação.
A Suely Figueiredo, grande amiga e exímia educadora, responsável pelo meu amadurecimento
como homem e como pensador.
A Wilde Mary, tia e amiga, que se dispôs a ler parte de minha tese, além de ter oferecido
sugestões valiosas para o desenvolvimento teórico deste trabalho.
Ao amigo Wellington Júnior, eterno interlocutor para as questões teatrais. Devo a você o contato
com alguns dos títulos que ser viram de referência bibliográfica para esta tese.
A Johnny, amigo e interlocutor sagaz. Sua paciência foi fundamental para meus momentos de
crise ao longo deste percurso.
A Roberta, que, sempre em nome da amizade, deu-nos apoio em nossos momentos mais difíceis.
A Diva Albuquerque e Eraldo Lins, que, no s ecreta riado do Programa de Pós-Graduação, sempre
se mostraram prestativos em resol ver as questões solicitadas.
A todos que, direta ou indiretamente, contri buíram para a realização desta pesquisa.
8
S
UMÁRIO
PAG.
Introdução ................................................................................... 10
P
ARTE I: DISCU RSO E MASCULINIDADE ................................................... 20
1. Prolegômenos a uma Teoria do Discurso Literário ................... 21
1.1. O ponto de partida: uma concepção de discurso ............................... 22
1.2. Análise Crítica do Discurso: Problemas e Métodos ............................ 26
1.3. A análise crítica do discurso literário .............................................. 31
2. Discurso e Ideologia ................................................................ 43
2.1. Ideolo g i a como Crença s Fundamentais de um Grupo
........................ 48
2.2. A ideologia nas a rtes ................................................................. 58
2.3. Discurso literário e ideologia ..................................................... 62
3. Masculinidade em Questão ...................................................... 66
3.1. Gênese do mito moderno da ma sculinidad e
.................................... 69
3.2. O mito da masculinidade na era contemporânea
............................... 80
3.3. O mito da masculinidade no Brasil ................................................. 90
3.4. A literatura moderna e o mito da masculinidade
............................ 102
9
3.5. Categorias centrais: o discurso masculino
burguês e sua alteridade
.......................................
109
P
ARTE II: ANÁLISE DO CORPUS ............................................................. 114
4. O teatro brasileiro moderno econtemporâneo —
situando Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e Newton Moreno
....
115
5. Nelson Rodrigues .................................................................. 147
6. Plínio Marcos .......................................................................... 189
7. Newton Moreno ....................................................................... 243
C
ONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... 284
B
IBLIOGRAFIA ....................................................................... 288
A
NEXOS
A
NEXO 1: DENTRO
A
NEXO 2: AGRESTE
10
Introdão
Nos seus estudos sobre teatro e literatura dramática, Brecht (1898-1956) anunciava o
surgimento de uma nova dramaturgia, profundamente marcada pelo teatro épico. Dramaturgo,
poeta, teórico, encenador, ele chamou a atenção, direta ou indiretamente, para o caráter
ideológ ico do drama e, por extens ão, do teatr o. Comprometido com as causas sociais e políticas,
seu teatro foi aos poucos evoluindo para um distanciamento da chamada “forma dramática” e
para um desabrochar da “forma épica”. Sob clara influência das idéias de Piscator (1893-1966) a
respeito de um teatro político, Brecht passou a refletir sobre a ação política pelo e com o teatro.
Para o pensador alemão, o teatro deve ser concebido como um espaço de discussão, onde se
travam as mais diversas lutas ideológicas, e oferecido aos espectadores como objeto estético a ser
observado, analisado e ponderado, a fim de poder despertar neles a consciência e a ação política
para a superação das injustiças sociais.
A forma dramática, de tradição aristotélica, era tida por Brecht como ideológica, uma vez
que, propondo ao público uma imersão na vivência dos sen timentos, não oferecia outr a
alternativa além da alienação. Nesse tipo de teatro, o homem e a realidade são apresentados
como categorias fixas, imutáveis, naturais, interpretação equivocada para aqueles que, como
Brecht, sentiam a necessidade de transformar a realidade em favor do homem, concebido como
sujeito histórico e social. O contexto político em que Brecht se inseria era de muita turbulênc ia, e
a situação econômica da Europa, sobretudo da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, era
caótica. Movimentos sociais reivindicavam melhores condições de vida para o povo. Era um
momento que exigia mudança. Brecht utilizou o teatro para promover debates sob re a condição
política, econômica e social do homem numa sociedade capitalista cruel.
Brecht estava propondo uma no va forma de conceber a realidade por meio do teatro e,
por isso mesmo, elaborou um sistema de idéias para a construção de uma nova cena, com a
presença de uma dramaturgia épica e dialética. A nova forma do teatro e do t exto dramático
deveria ser, portanto, determinada por esse propósito político, fortemente marcado pela
ideolog ia da es quer da.
11
O pensador alemão compreendeu claramente a natureza ideoló gica do f enômeno teatral,
em que se insere a produção dramatúrgica. Podemos traçar um paralelo entre as idéias de Brech t
e a afirmação de Bakhtin (1990) de que todo signo é ideológico. O autor russo insere a literatura
nas produções ideológicas, uma vez que ela mantém uma relação dialética com os mais diversos
valores sociais. Esses valores determinam a obra não do exterior para o interior, mas são eles
mesmos elementos constitutivos da forma que assume o objeto literário.
Partindo do suposto de que a liter atura corresponde a um discurso q ue se insere num
contexto cultural e, por isso, marcado ideologicamente, prop omo-nos investigar como o teatro
brasileiro, a partir de Nelson Ro drigues, expre ssa indícios de uma cris e dos valores masculino s
hegemônicos. Apesar de a concepçã o de masculinidade m erecer uma investigaçã o mais atenta,
sobretudo em face às transformações sócio-culturais ocorridas no mundo contemporâneo, há
muito poucos estudos brasileiros sobre o assunto. O que é ser homem nas sociedades
contemporâneas? Qual a função social do hom em num mundo do minado pela economia g lobal?
Em que medida as idéias atuais sobre o masculino equivalem às idéias próprias das sociedades
burguesas dos séculos XVIII e XIX ou delas se afastam? Que é comportamento próprio de
homem? Todas essas questões têm estimulado mu itas pesquisas, desde os anos 80, sobretudo
nos Estados Unidos e em alguns pa íses da Europa, como França e Inglaterra. No Brasil, contudo ,
os estudos sobre a masculin idade são ainda muito incipientes. É na te ntativa de contribuir de
alguma maneira para a discussã o sobre o tema que problematizaremos o mito moderno da
masculinidade a partir da análise da obra de três escritores de considerá vel destaque na
produção dramatúrgica brasileira m oderna e conte mporâne a: Nelson Rodrigue s, P línio Marcos e
Newton Moreno.
Nelson Rodrigues nasceu no Recife, em 1912, mas aos quatro anos de idade foi mora r
com sua família no Rio de Janeiro. Apesar de ser natural de Pernambuco, pro duziu uma obra
fortemente determinada pela realidade carioca do século XX. Tendo escrito um total de
dezessete peças, o dra maturgo ajudou a construir a histó ria do teatro moder no brasileiro. Seu
Vestido de Noiva (1943) é considerado o marco da moderna dramaturgia brasileira, tanto pela
estrutura complexa e inovadora do drama quanto pela aliança estabelecida entre o dramaturgo e
o encenador polo nês radicado no Brasil, Zb igniew Ziembinski (1908-1978), que assinou a
direção do espetáculo mais revolucionário apresentado nos palcos brasileiros até então
1
. Com
1
Além de Sábato Magaldi (1992; 1993; 1997; 1998) e de Décio de Almeida Prado (1987; 1988; 2001), dois dos mais
respeitáveis críticos e historiadores do teatro brasileiro, comungam da tese de ter sido Vestido de Noiva o marco do
teatro brasileiro moderno Ângela Leite Lopes (1983; 1993; 2000; 2002), João Roberto Faria (1998), Eudinyr Fraga
(1998), entre tantos outros intelectuais e críticos, como Manuel Bandeira, Álvaro Lins, Edélcio Mostaço, que tiveram
seus comentários reunidos na Fortuna Crítica do autor (1993).
12
Vestido de Noiva, Nelson Rodrigues conh eceu a fama, mas suas futuras peças foram
responsáveis por muitas polêmicas, todas de ordem moral. Nas suas próprias palavras, ele
escrevia um “teatro des agradável”, pela sinceridade com que aborda va, explicitamente, tema s
considerados tabus pela sociedade ca rioca da segu nda metade do s é culo XX.
A dramaturgia de Nelson Rodrigues, pela sua riqueza, suscita discussões as mais
diversas, como atestam os estudos sobre sua obra. No entanto, ao que pa rece, nenhuma análise
dos discursos sobre o m asculino, presentes em seus texto s, foi realizada ainda. Sa lomão (2000)
desenvolve um estudo so bre o f eminino e o mascul ino na obra do dra maturgo, mas seu propósito
é analisar a questão de gênero sob um enfoque psicológico, o que termina por redundar numa
abordagem estritamente temática. Nosso interesse, entretanto, é realizar uma abordagem, sob
enfoque crítico, dos discursos masculinos nas peças de Nelson Rodrigues.
Nosso segundo drama turgo é, ainda hoje, co nsiderado um escritor maldi to, marginal,
“aquele que escreve palavrões”, “aquele pirado que vende livro na rua”, “um boca-suja” (L
ANYI,
1999, p. 14). Plínio Marcos (1935-1999) foi futebolista amador, biscateiro, camelô, estivador e
palhaço de circo. Apesar de ter escrito sua primeira peça, Barrela, em 1958, só começou a ter sua
obra sistematicamente estudada nos anos 80, depois que personalidad es como Déci o de Almeid a
Prado, Sábato Magaldi e Paulo Vieira, críticos e histor iadores do teatro brasileiro, debruçaram-se
com maior rigor sobre as particularidades da dramaturgia de Plínio Marcos
2
. Muitas de suas
peças, produzidas em poucas tiragens, estão, hoje, esgotadas no mercado editorial, dificultando o
acesso do público leitor à sua obra
3
.
2
Saliente-se que muitos críticos, nos anos 60 e 70, escreveram, em diferentes jornais, resenhas de espetáculos
concebidos a partir de textos de Plínio Marcos, elogiando, as mais das vezes, o talento desse dramaturgo. Entre eles,
citemos Alberto D’Avessa, Yan Michalski, João Apolinário, Paulo Mendonça, Roberto Freire, Sába to Magaldi e Décio
de Almeida Prado. Para a leitura de alguns de seus textos, indicamos o sítio oficial do dramaturgo.
3
Em http://www.pliniomarcos.com/teatro_obracompleta.htm, consultado de janeiro de 2005 a maio de 2006,
encontramos a seguinte listagem das peças do dramaturgo:
TEATROADULTO:
Barrela (1958); Os Fantoches (1960) (1ª versão de Jornada de um Imbecil até o Entendimento); Enquanto os Navios
Atracam (1963) (1ª versão de Quando as Máquinas Param); Chapéu sobre paralelepípedo para alguém Chutar (1965)
(2ª versão de Os Fantoches); Reportagem de um Tempo Mau (1965); Dois Perdidos Numa Noite Suja (1966); Dia Vi
(1967) (1ª versão de JESUS-HOMEM); Navalha na Carne (1967); Quando as Máquinas Param (1967) [2ª versão de
Enquanto os Navios Atracam (1963)]; Homens de Papel (1968); Jornada de um Imbecil até o Entendimento (1968)
(3ª versão de Os Fantoches); O Abajur Lilás (1969); Oração para um Pé-de-Chinelo (1969); Balbina de Iansã (1970)
(musical); Feira Livre (1976) (opereta); Noel Rosa, O Poeta da Vila e Seus Amores (1977) (musical); Jesus-Homem
(1978) [2ª versão de Dia Virá (1967)]; Sob o Signo da Discoteque (1979); Quero, Uma Reportagem Maldita (1979)
(adaptação para teatro do romance do mesmo título, escrito em 1976); Madame Blavatsky (1985); Balada de um
Palhaço (1986); A Mancha Roxa (1988); A Dança Final (1993); O Assassinato do Anão do Caralho Grande (1995)
(
13
O universo de que trata a maioria de suas peças é o da marginalida de, dos párias da
sociedade. Seu teatro é profundamente comprometido com os prob lemas sociais urbanos,
especificamente da soci edade paulistana da segu nda metade do século XX. Nesse ambiente da
marginalidade, ocupado sobretudo por sujeitos da classe popular, a tendência maior é
encontrarmos valores morais e ideológicos mais conservadores. É sobre esse viés que nossa
análise incidirá, investigando os discursos masculinos e os discursos sobre a masculinidade. Por
outro lado, enfocaremos as situações-limite em que se encontram as perso nagens masculinas: ao
mesmo tempo em que sustentam um discurso de identidade m asculina, costumam ter
comportamentos muitas vezes a vessos ao ideal burg uês de masculinidade, sobretudo no que
tange à vivência da sexualidade. Plín io Marcos é um autor ainda pouco estudado nas academias,
não obstante a qualidade de se us textos. Q uanto à mascul inidade na sua obra, nenhum estud o
parece ter se detido sobre o tema, o que nos motiva a investigá-lo.
Por fim, o terceiro dramaturgo é pernambucano e nasceu em 1968. Newton Moreno é
formado em Artes Cênicas pela UNICAMP e vive em São Paulo desde 1990. Ele é integrante do
grupo teatral “Os Fofos Encenam”, onde atua como intérprete. Com eçou a escrever para o teatro
e dirigiu o espetáculo a partir de seu próprio texto, Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada (2000).
O seu trabalho dramatúrgico, divulgado mediant e esp etáculos de d iferen tes dir etor es, vem s end o
reconhecido e aclamado pela crítica paulista na, e começa a se tornar tema de debates
acadêmicos, sobretudo na USP e na U NICAMP. A temática homo erótica é uma constante em sua
obra, o que nos permite levantar questionamentos a respeito da imagem masculina e dos valores
da masculinidade.
Dos três dramaturgos que estudaremos, Newton Mo reno é o mais novo, não apenas do
ponto de vista cronológico, mas sobretudo do estético, se considerarmos a preocupação por parte
do dramaturgo em experimentar novas linguagens, novas forma s. O homoerotismo , nas sua s
mais diversas formas de manifestação social, sinaliza, no mun do contemporâneo, uma crise da
noção burguesa de masculinidade. Isso se tornará mais claro na análise do corpus.
As peças dos três autores, após uma leitura analítica, nos levaram a formular as seguintes
indagações: quais são, nas dramaturgias estudadas, os elementos discursivos da e sobre a
masculinidade que revelam uma crise da s representações so bre o que vem a ser homem? Que
valores masculinos são construídos nessas obras? Há alguma ligação, nas obras que compõem o
corpus, entre o tema da masculinidad e, em suas diversas vertentes, e a forma dramatúrgica, ou
seja, a construção estética dos dram as?
14
Para tentar responder a essas questões, procuraremos, como objetivo principal da
pesquisa, caracterizar a forma em que cada autor trabalha as personagens masculinas ou os
discursos masculinos em suas peças, a fim de deduzir uma gama de valores concernentes à
questão da masculinidade. Entre os obj etivos específicos estão: identificar que rec ursos
discursivos, presentes nessas dramaturgias, contribuem para criar alteridades masculinas;
interpretar como essas alteridades corroboram a crise dos referentes ma sculinos; e investigar
que relações possíveis podem ser apontada s entre a forma dramatúrgica e o tema abordado.
Trabalharemos com discursos masculinos e com o discurso da masculinidade em seis
peças que fazem parte do que se convencionou chamar “moderna dramaturgia brasileira”
4
. São
elas:
de Nelson Rodrigue s: Perdoa-me por me traíres (1957); O beijo no
asfalto (1961);
de Plínio Marcos: Dois perdido s numa noite suja (1966); Navalha na
carne (1967);
de Newton Moreno: Dentro (2002); Agreste (2004).
A escolha dos autores deveu-se a dois critérios. Antes de mais nada, eles se encontram
inseridos no rol de dramaturgos brasileiros modernos, com obras produzidas substancialmente
numa época histórica que equivale ao período contemporâneo, ou seja, pós-Segunda Guerra
Mundial. Além disso, são autores que, do nosso ponto de vista, problematizam, cada qual à sua
maneira, aspectos intimamente rela cionados à masculinidade. Nel son Rodrigues, em suas
tragédias cariocas, por exemplo, constrói perso nagens masculinos q ue, inseridos num mundo
contemporâneo, vêem seus valores masculinos confronta dos com valores concebidos na
contemporaneidade
5
. Plínio Marcos enfocou personagens masculinas da marginalidade
paulistana que se deparam muitas vezes, direta ou indiretamente, com a ambigüidade sexual.
Newton Moreno, enfim, apesar de não possuir ainda uma antologia de textos dramáticos
satisfatória para, dela, construirmos interpretaç ões de ordem ma is genérica, uma vez que se trata
de um jovem autor, com uma obra pouco numerosa, trab alhou o tema do homoerotismo nos
textos que compõem nosso corpus, com implicações decisivas pa ra as discussões
contemporâneas sobre a mascul inidade.
4
Cf. Magaldi (1998). O termo “moderna” no sintagma “dramaturgia brasileira” corresponde à produção dramática
produzida no Brasi l a partir do Modernismo.
5
Valemo-nos da classificação feita por Magaldi (1993) para os textos do dramaturgo: para o crítico, os textos de
Nelson Rodr igues se dividem em Peças Psicológicas, Peças Míticas e Tragédias Cariocas.
15
Para a organização do corpus, um dos critérios utilizados foi o cronológico, a fim de
delimitar uma fase que vai da déca da de 1950 à de 2000. Nelson Rodrigues, apesa r de ter escrito
sua última peça em 1978, teve a maior parte de sua produção dramática compreendida nas
décadas de 1940 e 1950. Plínio Marcos, por sua vez, à exceção de Barrela (1958), produziu seus
textos a partir da décad a de 1960, ten do escrito sua últ ima peça, O Bote da Loba, em 1997. P or
fim, Newton Moreno começou a sua produção dramática a partir da década de 2000. Localizadas
nas décadas de 1950, 196 0 e 2000, re spectiva mente, as peças que iremos analisar nos permitirão
compreender aspectos das produções dramatúrgicas brasileiras na contemporaneidade.
Em relação à escolha dos seis textos dramáticos, seguimos um critério, de certa forma
aleatório, uma vez que os discursos masculinos estão presentes, de alguma maneira, em todas as
peças da obra dos três dramaturgos. No entanto, procuramos selecionar os dramas que trazem, a
nosso ver, o tema da masculinidade mais evidenciado.
No caso de Nelson Rodrigues, por exemplo, Perdoa-me por me traíres é uma peça cujo
título corresponde a uma fala da personagem Gilber to, marido que pede perdão à esposa, Judite,
por ela o ter traído, o que contraria os valores adotados pelo homem “macho” na família
burguesa. O beijo no asfalto, por sua vez, explora a imagem da imprensa marrom, que, no caso
da peça, transforma num fato jornalístico sensacionalista a cena de um transeunte beijando um
homem atropelado. Valemo-nos do Teatro Completo de Nelson Ro drigues, da ed itora Nova
Aguilar, conforme consta da bibliografia.
Quanto a Plínio Marcos, encontramos em Dois perdidos numa noite suja apenas
personagens masculina s: dois ho mens, co mpanheiros de quarto de uma pensão deca dente,
entram num conflito de fo rte sugestão homoerótica. Navalha na carne é uma peça que co nté m
duas personagens masculinas e uma feminina: o ca fetão, a prostituta e o empregado da pensão
em que se encontram hospedados os dois primeiros. Há, nesta peça, um discurso masculino
violento, no que se refere à forma como o cafetão trata a prostituta e o empregado,
assumidamente homoss exual. Além do mais, há sugestã o de um jogo erótico entre o cafetão e o
empregado. Os texto s analisados fazem parte de Plínio Marcos, da Global Editora, edição à qual
estaremos nos reportando.
Newton Moreno, finalmente, explora o homoerotismo nas relações de suas personagens.
Dentro é uma peça cujo enredo transcorre ao longo de um ato de fist-fucking entr e dois ho mens,
únicas personagens do texto. O cerne da fábula em Agreste corresponde ao relacionamento
amoroso entre duas mulheres, uma das quais, travestida de homem, faz sua esp osa e toda a
cidade acreditarem na falsa identida de sexual. Dentro ainda não se encontra publica da, mas te ve
16
sua concreta existência no palco, qua ndo, em 2002, Nilton Bicudo a encenou co mo parte d o
projeto Mostra SESI de Dramaturgia Contemporânea. Agreste foi encenada por Ma rcio Auré lio,
em 2004, e publicada, nesse mesmo ano, na Revista Sala Preta, do Departamento de Artes
Cênicas da USP. Soubemos da publicação da peça muito tardiamente e não conseguimos ter
acesso à revista. As duas peças foram cedidas pelo próprio dramaturgo, que nos autorizou a
transcrevê-las nos anexos deste trabalho. Portanto, sempre que fizermos referência aos texto s,
remeteremos o leitor ao Anexo 1, no caso de Dentro, e ao Anex o 2, no caso de Agreste.
A seleção desses textos, num total de seis peças, foi feita a partir da necessidade de se
construir um material empírico suficiente para procedermos a uma análise satisfatória, tendo em
vista a formulação de conclusões razoáveis a respeito do tema em questão . Considerando que o
estudo da ob ra teatra l completa dos três a utore s (no caso de Newton Moreno, a obra produzida
até o presente mome nto) poderia suscita r consideraçõ es mais e nriquecedoras sobre a
masculinidade na dramaturgia brasileira, co nsideramos, para fins de uma análise mais
verticalizada, ser imperiosa a delimitação do corpus numa amostragem representativa da
produção literária dos referidos dramaturgos.
É necessário que o méto do de análise utilizado compreenda um olhar crítico sobre as
manifes taçõe s discur siva s de e so bre a mas culin idade, e sobr e as quest ões ideol ógica s que
envolvem o gênero masculino. Para tanto, nos valemos de algumas orientações metodológicas da
Análise Crítica do Discurso Literário, ta is como se encontram expostas nos capítulos 1 e 2. Co m
base nas idéias de Fairclough (2002), conceberemos os discursos masculinos presentes nas peças
enfocadas como responsáveis pela construção de identidades e relaçõ es sociais, bem como de
sistem a de c rença s e val ores so bre o masc ulino . Comp arti lha mos do projeto dos a nalis tas c rít icos
do discurso em ressaltar a importância da ling uagem na produçã o, manutenção e mudança das
relações sociais de poder. Os nosso s textos dramáticos tiveram e têm participação na vida
sociocultural brasileira, o que permite uma a plicação concreta dos resultados da pesquisa. Ou
seja: por nos basearmos numa dimensão sociocultural, acreditamo s que nosso estudo está
potencialmente habilitado a fornecer descrições não apenas f ormal, mas culturalmente
sign ific ati vas .
A análise partirá da materialidade lingüística (léxico, sintaxe, orga nização textual) e
estética (elementos ou estratégias retóricas, elementos de criação textual e aspecto s formais da
estrutura textual, como a questão dos gêneros literários), sem perder de vista os o bjetivos e as
finalidades que fazem da nossa pesquisa uma investigação do caráter político da produção
dramatúrgica brasileira.
17
Consideraremos, também, as avaliações sociais so bre a mascul inida de e co mo ela s
correspondem às esferas ideológicas, constituindo a obra literá ria não somente do exter ior, mas
também se ap oiando nos elemento s estrut urais intríns ecos. Esta s erá a contribuição de orde m
estética que pretendemos of erecer às discussões sob re o texto teatral.
O trabalho se divide em duas partes. Na prime ira, construímos nosso o bjeto teórico, que
servirá de aporte para a análise a ser desenvolvida na segunda pa rte.
O primeiro capítulo é dedicado à exposição de alguns princípios para uma teoria do
discurso literário. A perspectiva adotada é a da Análise Crítica do Discurso (ACD), que estuda as
manifestações discursivas a partir de elementos lingüísticos. Vale salientar que compreendemos
o texto literário como uma ma nifestação discursiva e, por isso, não deve s er estudado sob um
enfoqu e ima nentist a. Essa inform açã o é relev ante na medida em que nossa concepção teór ica
não se insere no paradigma estruturalis ta francês, vigente na seg unda metade do século XX ,
cujos estudos se volta vam para a relação entre estruturas lingüísticas, na esteira da lingüística
saussuriana, e estruturas literárias, de modo que, em muitas obras estruturalistas,
encontrávamos termos como “g ramática da narrativa”, “pro cessos metafóricos e metonímicos na
atividade de criação literária” etc.
Acreditamos que as condições de produção são extremamente significativas para a leitura
e interpretação do texto literário. Fatores como mo mento histórico, relações sócio-político-
econômicas e ideológicas deixam de ser concebidos como simples e descomprometido “entorno”
e passam a ser interpretados como elementos estrut urantes da ob ra literária. Daí a necessidad e
de partir da base lingüística, por meio da qual se realiza a obra, para depreendermos valores e
informações que estão ocultas — ou pressupostas ou subentendidas — e que contribuem para a
avaliação e apreciação do texto literário num determina do contexto histórico e social.
Para maior clareza do conceito de ideologia, realizamos, ao longo do segundo capítulo,
uma investigação mais detida das diversas acepções que o termo assume. Nosso objetivo, por
ora, não é construir uma definição de ideologia, tarefa árdua para as ciências humanas.
Procuramos delimitar o fenômeno e propor a concepção que será adota da na análise. Além disso,
propomos uma reflexão sobre as determinações ideológicas do pensamento estético e da criação
da obra artística. Por fim, retomamos a discussão apresentada no capítulo 1 e reforçamos o
caráter ideológico da produção literária.
No capítulo 3, delimitando ainda mais o s tipos de ideologias que serão alvo de nossa
análise, apresentamos os valores sociais atribuídos à masculinidade, com enfoque nos período s
moderno e contemporâneo. Fundamentado em Cecchetto (2004), Foucault (1999; 2001a;
18
2001b), Oliveira (2004) e Mosse (1996), procuramos caracterizar os valores burgueses de
masculinidade e compreender em q ue sentido eles, de maneira geral, s e encontram em cr ise no
mundo contemporâneo. A partir de Gilberto Freyre (1996; 1998), de James Naylor Green (2000)
e de Trevisan (2002), investigamos valores e comportamentos do e sobre o homem na sociedade
do Brasil colonial, imperial e republicano. Concluímos o capítulo com a citação de alguns textos
da literatura européia e brasileira que mantivera m, conscientement e ou não, pouco importa,
relação com valores masc ulinos burgueses.
A segunda parte do trabalho é dedicada à análise do corpus. Como ex igência de nosso
método, dedicamos o Capítulo 4 a um breve pa norama da produção teatral brasileira, partindo
da eclosão do Moderni smo no Brasil até o su rgimento do que veio a se denominar a “nova
dramaturgia brasileira”, que se encontra hoje em processo. A finalidade do capítulo é situar
historicamente a produção dos três dramaturgos em foco. Se a investigação do corpus implica,
em nosso caso, um olhar crítico, precisamos recuperar a história, as relações sociais e ideológicas
de uma época. Evitando trilhar pela senda das simplificações cronológicas, guiamos nossos
passos pelo curso do tempo, mas aportamos em deter minados trechos, em determinadas
mônadas, para nos valer do termo usado por Benjamin (1994), que correspondem ao desponta r
de Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e Newton Moreno. Procuramos problematizar um pouco o
aparecimento de cada um deles no cenário teatra l brasileiro. Para tanto, dialog amos com
algumas vozes críticas, que representaram institucionalmente a recepção das obras que
analisaremos a seguir.
Nos capítulos 5, 6 e 7, serão analisadas, respectivamente, as peças de Nelson Rodrigues,
Plínio Marcos e Newton Moreno. Tendo em vista que o tema de nossa pesquisa é a crise da
masculinidade na dramaturgia brasileira, acreditamos que relacionar as peças desses
dramaturgos poderá nos ga rantir uma leitura segura da forma como a dramaturgia brasileira
vem acompanhando as transformações das ideologias masculinas na contemporaneida de. Não
nos furtaremos, portanto, a essa tarefa. Assim, no final de cada capítulo, construiremos algumas
inferências, não deixando de estabelecer, qua ndo necessário, um paralelo entre os es critores.
Para dar termo a esta introdução, gostaríamos de cha mar a atenção para o fato de que
nenhuma leitura crítica é desp ro vida de viés ideo lógico. O “ verossímil cr ítico”, a “o bjetividade”, o
“gosto”, a “clareza”, a “assimbolia”, valores tão consagrados pela crítica de outrora, estão sendo
colocados em questão, há pelo menos quatro décadas, pelo discurso crítico contemporâneo
6
. Se
eles continuam constituindo valores majoritariamente perseguidos pela Acad emia, não podemos
6
Contra esses valores opõe-se Roland Barthes (1987), em seu ensaio/panfleto em torno da Nouvelle Critique
Française, apontando o obsoletismo da “velha crítica”.
20
PARTE I: DISCURSO E MASCULINIDADE
21
1. Prolegômenos a uma Teoria do Discurso Literário
“[…] la situation extra-verbale n’est en aucune façon
la cause extérieure de l’énoncé, elle n’agit pas
sur lui de l’extérieur comme une force mécanique.
Non, la situation s’intègre à l’énoncé comme
un élément indispensable à sa constituition sémantique.
Donc l’énoncé quotidien considéré comme un tout
porteur de sens se décompose en deux parties:
1) une partie verbale actualisée, 2) une partie sous-entendue
(Bakhtine In: T
ODOROV, 1981, p. 191)
Nossa pesquisa está centrada no discurso literário, considerado um tipo de prática social
que se utiliza, as mais das vezes, da pa lavra escrita. Na crítica, fora m muitas as tentativas de se
caracterizar a literatura por meio de um enfoque lingüístico. Aristóteles (1987b, p. 218-223), em
sua Poética, identifica seis elem entos estruturais e essenciais da trag édia, entre os quais a
elocução, termo que pode ser entendido de duas maneira s: 1) modo de imita ção, que é de
conhecimento próprio do ator — consiste em saber o que é uma ordem ou uma súplica, uma
explicação, uma ameaça, uma pergunta, uma resposta, e outras que tais; 2) recursos da escrita,
compreendendo letra, sílaba, conjugação, nome, verbo, artigo, flexão e proposição. Os
recursos usados pelo poeta na elocução poética são: uso de nomes c orrentes ou estrangeiros;
metáfora (transporte do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie de
uma para a espécie de outra, ou por analogia); ornato; no mes inventados, alongados, abreviados
ou alterados.
Ao estudar a tragédia, o autor distingue três níveis de análise lingüística : um pragmático,
que diz respeito às ações realizadas pela linguagem; um gramatical, quando o analista se atém à
composição escrita propriamente dita; e, finalmente, um nível retórico, que consiste num uso
particular da linguagem, tendo-se em vista os efeitos estéticos
7
. Aristóteles, no entanto, não
desenvolve uma teoria do discurso dra mático, tarefa que extrapola os objetivos de sua Poética.
7
No livro III da Retórica, do capítulo I ao XII, Aristóteles (2002) toma da Poética o termo elocução [lexis; elocutio],
concebendo-o como a passagem adequada das id éias (res) para as palavras (verba).
22
Somente no século XX de nossa era vamos encontrar, nos estudos dos formalistas russos,
uma teoria lingüística do discurso poético. A preocupação desses autores era caracterizar a
linguagem poética, dif erenciando-a da linguagem corre nte do cotidiano . Apesar da grande
contribuição dos seus estudos para uma abordagem científica do texto literário, eles foram alvo
de muitas críticas, entre outras razões, po r privile giarem aspectos i ma nen tis ta s do tex to literár io,
com o fito de qualificar a palavra poética, objeto de suas pesquisas. Os estudos contemporâneos
de Teoria Literária partem do pressuposto de que a existênc ia de uma língua p oética, em
contraposição a uma cotidiana, é uma visão epistemologicamente insustentável, uma vez que, de
fato, não há nenhuma marca pro priamente lingüística que diferencie um uso do outro. Outro s
são, portanto, os fato res que devem ser observados para a caracterização de um discurso
literário.
Em nossa perspectiva, o estudo da obra literária deverá realizar-se levando em conta
sempre a totalida de do o bjeto em f oco , ou seja , o ana lista dev erá co nsidera r não som ente a
estrutura lingüística estrita, mas também as condições de produçã o — os fatores sociais,
históricos, ideológicos, políticos e econômicos que, direta ou indire tamente, interferem na
formação dessa mesma estrutura lingüística. Partimos do princípio de que todo enunciado é
determinado por sua enunciaçã o. Como se verá mais a diante, esta determinaç ão não se efetiva
sob o enfoque positivist a, causal e unidirec ional, mas de fo rma dialética, da í a importância que
estamos atribuindo à noção de totalidade. Uma análise do discurso literário, tema sobre que nos
debruçaremos de agora em diante, poderá oferecer instrumentos valiosos para uma
compreensão da literatura como prática estética e social.
1.1. O ponto de partida: uma concepção de discurso
O termo discurso é de uso tão co mum quanto di versificad o. Ma inguen eau (1976, p. 11),
referindo-se à polissemia do termo, af irma que
contrariamente ao que se passa com outras áreas da lingüística, a análise do
discurso domina com muita dificuldade seu objeto; lingüistas e não-lingüistas
fazem do conceito de discurso um uso muitas vezes sem controle: enquanto
alguns têm uma concepção muito restrita do termo, outros utilizam-no como
sinônimo muito abrangente de ‘texto’ ou de ‘enunciado’.
23
Consideraremos, por o ra, três concepções de discurso, uma proveniente do ca mpo
filosófico; as outras, do campo da lingüística.
Sob enfoque filosófico, Foucault faz do termo discurso um uso muito partic ular. Segundo
o autor, um estudo sobre os discursos pode se a rticular a uma reflexão lingüística, mas sem
jamais se fixar n ela. Mesmo não definindo mu ito claramente o que vem a ser “discurso”,
encontramos em suas pesquisas termos como ‹‹regularidades discursivas››, ‹‹unidades do
discurso››, ‹‹formações discursivas››, ‹‹ordem do discurso›› etc.
O autor parte do princípio de que os discursos se constituem por uma dispersão, ou seja,
por elementos ligados sem nenhum imperativo de unidade. O papel do a nalista do discurso é
descrever essa dispersão e as regras capazes de reger a formação discursiva. Sendo concebido o
discurso como um conjunto de enunciados que tem seus princípios de regularidade n uma
mesma formação discursiva, Foucault (1995, p.43) assim descreve o que entende por formação
discursiva:
No caso em que se puder descrever, ent re um certo número de enunciados,
semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de
enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma
regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações), diremos, por convenção, que se trata de u ma formação
discursiva.
Em outras palavras, a formação discursiva constitui todas a s injunções que torn am
possível a existência do discurso n uma instituição. Diz ainda o autor que
em toda sociedade a produção d o discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que
têm por função conjurar seus p oderes e perigos, dominar seu acontecimento
aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (F
OUCAULT, 1996, p.9)
O discurso passa a ser, no seio das práticas sociais, o espaço de interação entre o sab er e o
poder. O sujeito falante se pronuncia de algum lugar, a partir de um direito reconhecido
institucionalmente. Este discurso que passa por verdadeiro é, pois, gerador de poder. Ma s, no
dizer de Brandão (1995, p.32), “a produção desse discurso gerador de poder é controlada ,
24
selecionada, organizada e redistribuída por certos procedimentos que têm por função eliminar
toda e qualquer ameaça à permanência desse poder”.
À formação discursiva pertenceria uma família de enunciados regida pela mesma ordem
discursiva. Em Arqueologia do Saber (F
OUCAULT, 1995), a noção de enunciado é discutida numa
perspectiva diferente d a noção de proposição o u de frase. O enunciado é concebido como
unidade elementar que forma um discurso.
Foucault concebe, portanto, o discurso como modos, quase sempre lingüísticos, mas não
exclusivamente, de org anizar o significado, os sistemas de poder/co nhecimento em que
assumimos posições de sujeito.
O pensame nto foucaultiano é de capital importâ ncia para o analista do discurso, pois
inaugura uma epistemolog ia do discurso que não está de maneira a lguma distanc ia da dos fatores
extrínsecos ao texto, como a ideologia, a luta de classe, o poder. O discurso é produto de uma
constelação de el ementos que deter minarão sua existência o u sua interdição, sua censura. Nada
obstante, Foucault declara explicitamente que o seu problema de pesquisa não é de ordem
lingüística, e isso está bem claro na construção do objeto e nos métod os de abordagem. Para ele,
o discurso é compreendido como um conjunto de enunciados que dependem da mesma
formação discursiva, e é no que se refere às relações de poder que sua pesquisa se aterá.
Acreditamos que encontrar uma concepção e uma abordagem do discurso numa
perspectiva de base lingüística, sobretudo dentro de nossa área de interesse, o contexto da obra
literária, nos fornecerá bases mais sólidas para uma inter venção crítica precisa.
A concepção p roposta por Kress (apud P
EDRO, 1997, p. 21-22) pa rece-nos muito coerente
e clara no que concerne à compreensão do que vem a ser discurso:
Discursos são conjuntos de afirmações sistematicamente organizadas que dão
expressão aos significados e valores de uma instituição. Para além disso, de
forma marginal ou de forma central, definem, descrevem, e delimitam o que é
possível dizer e o que não é possí vel dizer (e, por extensão, o q ue é possível
fazer) em relação à área de preocupação dessa instituição. Um discurso fornece
um conjunto de afirmações possíveis sobre uma dada área, e organiza e dá
estrutura ao modo como se de ve falar sobre um tópico particular, um objeto,
um processo.
25
Considerar o discurso como ‹‹conjuntos de afirmações››, como um ‹‹dizer››, um
‹‹falar››, abre espaço para uma abordagem discursiva de ordem lingüística, pois se trata da
relação entre a linguagem e o s eu contexto (institu ição), numa perspectiva dialética. O contexto
não é enfocado apenas co mo entorno, como um cenário exterior ao tex to, mas como elemento
que interfere na forma de falar, na forma de dizer.
Perceb e-se, na concepção de K ress, uma forte influênc ia do pensam ento filosófico de
Foucault, sobretudo quando afirma que os discursos definem, descrevem e delimitam o que é ou
não possível dizer em r elação à área de preocupaçã o da instituição que o enforma. Kress , no
entanto, ao contrário de Foucault, enfoca o discurso não somente como práticas histórica e
socialmente situadas, mas como construções lingüísticas que mostram uma estrutura articulada.
A partir daí, o autor procura criar uma metodologia em que não escapa um olhar lingüístico, no
sentido lato do termo, sobre o discurso.
O que nos interessa particularmente é tomar o conceito de discurso, em especial o de
discurso poético, como uso de linguagem, forma de prática social, e não como atividade
individual ou como r eflexo de variáveis situa cionais. Estamos de acordo co m Fairclough (2001,
p.91), quando diz qu e o di scurso é um modo de ação, “uma forma como as pessoa s podem a gir
sobre o mundo e especialmente sobre o s outros, como também um modo de representa ção”.
Uma noção como essa implica ser o discurso
moldado e restringido pela estrutura social no sentido mais amplo e em todos os
níveis: pela classe e p or outras relações sociais em um n ível societário, pelas
relações específicas em instituições particulares, como o direito ou a educação,
por sistemas de classificação, por várias normas e convenções, tanto de
natureza discursiva como não-discursiva, e assim por diante. (F
AIRCLOUG H,
2001, p.91)
Tanto Kress quanto Fairclough comungam do mesmo ponto de vista sobre o fenômeno
discursivo. Ao contrário da perspectiva estruturalista, s egundo a qual a linguagem d eve ser
estudada a partir da langue, sistema abstrato de signos, os autores reivindicam a necessidade de
conferir um estatuto crítico aos estudos sobre o discurso . A lingüística definitivamen te não pode
mais ficar restrita às estruturas imanentes, mas deve englobar todos os fatores que contr ibuem
para que a linguagem se forme e s e enforme num contexto particula r.
O discurso é uma prática de representação de mundo, na medida em que interpreta e
atribui significados à realidade concreta em que nos encontramos inseridos. Va le salientar que o
termo representação do qual fazemos uso está sendo entendido a partir de seu étimo latino re-
26
praesentatio, um apresentar novamente, com toda s as implicações subjetivas e sociais que o
fenômeno encerra
8
.
É esta a concepção que adota remos em nossa pesquisa: a abo rdagem do discurso numa
perspectiva da análise crítica.
1.2. Análise Crítica do Discurso: Problema e Métodos
A Análise Crítica do Discurso (doravante ACD) é uma perspectiva de análise de natureza
lingüística, que teve como um de seus principais idealiza dores o lingüista inglês No rman
Fairclough. Trata-se de um olhar crítico sobre o discurso, que tenta superar os obstáculos
epistemoló gicos da análise do di scurso de linh a francesa, tal como desenvolvida por Pêcheux,
Maldidier, Co urtine, Authier-Revuz, entre outros.
A tradição francesa da AD, iniciada por Pêcheux, a despeito do ranço estrutur alista do s
primeiros estudos (cf. P
ÊCHEUX, 19 97 ; GADET, HAK, 1997), contribuiu na tentativa de combina r
uma teoria social do discurso com umtodo de análise textual. A fonte principal dos trabalhos
do autor foi a teoria marxista da ideo logia, desenvolvida por Althusser (1992). Em sintonia co m o
sociólogo francês, Pêcheux conside ra que o discurso é o espaço da luta ideológica e reconhece,
portanto, a materialidade lingüística da ideologia.
A AD f ra nc esa co nce be o discurso como uma atividade comunicativa, que engloba não
somente os enunciados produzidos pelos interlo cutores, ma s também o processo de sua
enunciação. Essa atividade é determinada por fatores históricos, sociais e ideológicos,
respon sávei s pela c ircul ação de sen tidos. No en tanto, os d ispositivos de a nálise utilizados por
Pêcheux e seus seguidores são insatisfatórios e apresentam problemas de ordem ep istemológica.
Fairclough (2001), apesar de reconhecer na AD francesa da primeira geração uma abordagem
crítica do discurso, questiona a ênfase dada pelos franceses aos elementos componentes do texto,
ou seja, às orações, em detrimento de aspectos distintivos da organização textual. Os textos são
tratados como produtos, e os processos discursivos de produção e interpretação textual (a
interação entre os sujeitos) não são problematizados.
Além do mais, a perspectiva francesa da AD apresenta uma noção de sujeito com a qual
Fairclough não concorda: para os franceses, o sujeito não é o centro do processo discursivo, não
8
Apesar da “crise da representação”, tão discutida pelos filósofos contemporâneos, acreditamos que os sujeitos sociais
interagem a partir de uma crença na representação, na construção de uma realidade que para eles é estável e coerente.
27
está na origem dos discursos, mas é atravessado pelos discursos, tornando-se, pois, assujeitado
9
.
O objetivo principal de Fairclough é desenvolver uma abordagem para a análise do discurso que
pudesse ser usada como um método dentre outro s para investigar as relações de poder, a fim de
que, conscientes da domina ção, os sujeitos sociais possam reagir e se l ibertar, promovendo,
assim, mudanças sociais. Daí a sua crítica às abordagens de Pêcheux e de Foucault, entre outras,
que tomam a posição do sujeito como efeito do discurso, negligenciando a capacidade dos
sujeitos de atuarem como agentes sociais e de transformarem as bases da sujeiçã o. O método
crítico que ele propõe implica “mostrar causas que estão ocultas, implica também inte rvenções –
por exemplo, fornecendo recursos por meio da mudança para a queles que possam encontrar-se
em desvantag em” (2001, p. 28).
O discurso é, pois, uma prática de significação do mundo, constituindo e construindo o
mundo em significado. Nessa perspectiva, Faircloug h (2001, p. 91) distingue três aspectos dos
efeitos construtivos do discurso:
1) o discurso contribui para a construção do que é referido como “identidades sociais”
“e ‘posições de sujeito’ para os ‘sujeit os’ soc iais e os tipos de ‘eu’”;
2) o discurso “contribui para a construção das relações sociais entre as pessoas”;
3) o discurso “contribui para a construção de sistemas de conhecimento e de cre nça”.
Fairclough (2001, p. 92) relaciona esses três efeitos a três funções de linguagem, que ele
denomina de identitária, relacional e ideacional, respect iva men te.
A função identitária relaciona-se aos modos pelos quais as identidades sociais
são estabelecidas no discurso, a função relaci onal a c omo as relações s ociai s
entre os participantes do d iscurso são representadas e negociadas, a função
ideacional aos modos pelos quais os textos significam o mundo e seus
processos, entidades e relações.
9
Em sua versão mais recente, a AD relativiza esse conceito, como atestam as obras de Maingueneau (20 01; 2005).
28
Vale salientar que a prática discursiva é, para o autor, tanto constr utiva quanto criativa: serve
para reproduzir a sociedade tal como ela se apresenta, mas também contribui para transformá-
la.
Concebido como prática social, o discurso estabelece com a estrutura social uma relação
dialética, uma vez que se apresenta como um dos seus princípios estruturadores, ao mesmo
tempo em que é por ela estruturado e condicionado. Nas palavras de Gouveia (1997, p. 30),
a estrutura social é condição para a existência do discurso, mas é também o
efeito de tal existência: por um lado, o discurso é constrangido e formado por
relações ao nível da sociedade, por relações específicas a instituições
particulares, por sistemas de classificação e por vá rias normas e convenções, de
natureza quer discursi va, quer não discursiva, de t al forma que os eventos
discursivos variam na sua determinação estrutural, de acordo com o domínio
social particular ou enquadramento institucional em que são gerados; mas, por
outro lado, o discurso é um princípio estruturador, no sentido em qu e Foucault
usa o termo discurso, i. e., os objectos, os sujeitos e os conceitos são formados
discursivamente.
Determinado pelas estruturas sociais, o discurso tem efeitos, por sua vez, sobre a socieda de, na
medida em qu e repro du z as es trutu ras s ocia is. Sa liente -se q ue Go uvei a se va le da p ersp ecti va
foucaultiana para a abordag em do discurso e das formações discursivas, e revela a a tualidade
inconteste das pesquisas do filósof o francês. No entanto, por si só, a filosofia de Foucault não se
mostra suficiente para uma abordagem lingüística do fenômeno discursivo, nem era esse o
objetivo do filósofo. Gouveia destaca o que se afigura como contribuiçã o da epistemologia do
discurso em Foucault e articula essa perspectiva com os objetivos da ACD.
A ACD estuda, pois, o discurso em sua relação íntima com o contexto, e s e diferencia de
outras abordagens ao conceb er o sujeito não como entida de autôno ma, mas como send o
"construído por e construindo os processos discursivos a partir da sua natureza de actor
ideológico" (P
EDRO, 1997, p. 20). Os sujeitos não sã o compreendidos como categorias abstra tas,
mas como atores sociais que assumem papéis dentro das instituições sociais.
Apesar de algumas discrepâncias teóricas e metodológicas, os analistas críticos do
discurso compartilham de um mesmo projeto: ressaltar a importância da linguagem na
produção, manutenção e mudança da s relações sociais de poder. Fairclough propõe que a ACD
29
oferece uma maior consci entização de co mo a linguagem contribui para a dominação de uma s
pessoas sobre outras. Isso proporcionará, portanto, uma maior reflexão sobre as práticas sociais,
tendo em vista a emanc ipação social dos sujeitos que se vêe m em posiçã o de domina do s. Uma tal
abordagem permite ao pesquisador assumir uma po stura política mais ampla, ao questionar as
formas do texto, as condições de produção e as estratégias de leitura, juntamente com as
estruturas de poder que criaram as condições de produção discursiva. Dessa forma, os analistas
críticos do discurso constroem um c orpus formado por texto s que ocorrem de forma regular em
domínios importantes da vida sociocu ltural, o que permite uma a plicação concreta de seus
resultados. Por se basear numa dimensão sociocultural, a ACD está potencialmente habilitada a
fornecer descrições não apenas formal, mas cult uralmente significa tivas.
O problema a ser resolvido pela ACD, de acordo com Pedro (1997), é a articulação das
macronoções, como grupo, poder e dominação instituciona is, e das micronoções, como texto,
fala ou interação comunicat iva. A dominaçã o pode ser produzida e reproduzida nos textos de
modos bastante sutis, como "naturais" e "aceitáveis". Por isso, a ACD se centraliza nas estratégias
discursiva s que legitimam o controle, que "naturalizam" a ordem social e as relações de
desigualdade.
Há uma questão epistemológica que merece ser ressaltada: a ACD requer uma abordagem
multidisciplinar, tornando menos r elevantes as distinções tra dicionais entre teoria, descr ição e
aplicação. Para tanto, tornam-se imprescindíveis teoria s complexas que permitam o
entendimento de problema s igua lmente complexos. Faz-se, portanto, necessária a
construção de um aparelho teórico integrado, a partir do qual seja possível
desenvolver uma descrição, explicação e interpretação dos modos como os
discursos dominantes influenciam, indirectamente, o conhecimento, os saberes,
as atitudes, as ideologias, socialmente partilhadas. (P
EDRO, 199 7, p. 30)
O interesse está, em última análise, em saber como estruturas específicas de discurso
determinam ou facilitam processos de formação ideológica.
Impõe-s e, pa ra tant o, uma questã o de o rdem metodo lógica. A ACD trabalha com um
amplo leque de categorias descriti vas e me todo lógica s. Dois pontos são impo rtantes: a orientação
deve ser lingüística, ou seja, a análise deve partir de uma materialidade lingüística (léxico,
sintaxe, texto); os analistas não podem perder de vista os objetivos e as finalidades que fazem de
sua pesquisa um projeto antes de mais na da político.
30
Quanto à orientação lingüística mais ampla, não se deve menosprezar qualquer aspecto
da forma, "sejam elementos ou es tratégias retóricas, elementos de criação textual e aspectos
formais da estrutura textua l, ou categorias e formas sintáticas mais previsíveis" (P
EDRO, 1997, p.
33). Kress, por exemplo, considera a categoria textual do gênero como um dos aspectos da forma
que devem ser levados em consideração. Para ele, o gênero deve ser entendido como categoria
que explica formas convenciona lizadas e conven cionalm ente disponíveis, como estr uturações
contingentes das ocasiões sociais, da relaçã o entre os participantes sociais e as suas finalidades e
intenções. To davia, a forma textua l não é um assunto d e interesse, senão quando é concebida
como um meio através do qual se pode alcançar uma compreensão da orga nização social e
cultural.
Em suma, um estudo nessa perspectiva se efetivará mediante dois processos
metodológicos: a descrição e a análise, estando o primeiro no âmbito da Lingüística e o segundo,
no da Sociologia. A análise, no entanto, não pode prescindir de uma dimensão interpretativa: por
mais rigoroso e sistemático que seja o método de abordagem, ele não consegue superar a
necessidade de realizar uma construção cri ativa do significado, uma explicação de teor
interpretativo. Entendemos pelo termo interpretação não somente o ato de a tribuir um sentido a
um dado fenômeno — e que se opõe à produção —, mas sobretudo à dimensão de análise que visa
a mostrar as relações, quer entre as propriedades de um texto, quer entre as práticas de
interpretação (na primeira acepção que apresentamos acima) e as propriedades sócio-culturais
que enformam a prática discursiva.
No que tange especifica mente à relação entre discurso e ordem do discurso, conc epção
foucaultiana por excelência, Fairclough (2001) propõ e um método de análise inte rtextual, que
deverá ligar o texto à prática discursi va e, para além da localização do texto na ordem do
discurso, mostrar a localização do texto relativamente à rede social das ordens do discurso.
Por fim, adotaremos aqui uma perspectiva tridimensional do discurs o, proposta por
Fairclough (2001, p.101). Caberá à ACD proceder a uma análise que compreenda a articulação
das três dimensões do discurso, como mostra o gráfico a seguir:
31
TEXTO
PRÁTICA DISCURSIVA
(produção, distribuição, consumo)
PRÁTICA SOCIAL
As pesquisas em ACD deverão dar conta de textos escritos ou orais, das práticas discursivas,
que compreendem os p rocessos de produção, dist ribuição e consumo de textos, e de eve ntos
discursivos, como instâncias da prática sócio-cultural.
Nosso interesse, na presente pesquisa, é estudar o texto literário como fenômeno
discursivo em associação com as práticas discursivas e sócio-culturais. Como to do acontecimento
discursivo, o discurso literário também passa pelo processo de produção, distribuição e consumo
de textos. A seguir, procuraremos levantar algumas características relevantes desse tipo de
discurso.
1.3. A análise crítica do discurso literário
Definida a perspectiva teórica que iremos adotar, precisamos, agora, fazer uma adaptação
para os estudos da obra literária, de tal maneira que possamos compreender como o texto
literário é uma produção ideo lógica, na acepção bakhtiniana do termo ; como ele constitui um
tipo de discurso que reproduz valores, mas, sobretudo, apresenta uma natureza de açã o
particular sobre o mundo. Essa característica dos textos literários não pode ser comparada, num
mesmo nível e por meio de traços s uperficiais, às propriedades de outras espécies de texto, de
32
outras esferas socioculturais, pois a ação realizada pela literatura é mediada pelo trabalho
estético com a linguagem, fenômeno social por excelência, e por isso apresenta um significado
particular sobre o mundo.
33
do verdadeiro método em Marx, orienta do pela perspectiva dial ética da totalidade . A
conseq üênci a é a rup tura en tre fo rma e c onteúdo , entre teoria e histó ria .
Para esses críticos “marxistas”, a literatura se realiza por processos imanentes, e o meio
social extra-artístico só dialoga com a obra por uma relação causal. Não caberia ao sociólogo
realizar uma análise dos elementos imanentes da literatura, da sua estrutura e da sua evolução
autônoma. O papel do sociólogo seria estabelecer uma interação causal entre a literatura e o
meio social que a e nvolve. Por sua vez, a teoria da arte, concebida co mo ciência particular, s e
proteg e de qual quer in terf erên cia d a soci ologia , uma v ez qu e esta ria p reocu pada com qu estõe s
que dizem respeito tão somente à estrutura da obra.
De acordo com Bakhtin (1981a), caberia a o método sociológico, em sua concepção
marxista, permitir, pela primeira vez, realizar um estudo verdadeiramente científico das
produções ideológicas. Deve, para isso, considerar que as determinações sociais não provêm do
exterior do objeto; as formações ideológicas são de natureza social, mas estão presentes no
interior do objeto artístico, fazend o parte do seu material de construção, a linguagem. A estética
é apenas uma variedade do social, e a teoria da arte, uma sociologia da arte
10
.
Ainda conforme o pensa mento bakhtinia no, há duas concepções equivocada s no que diz
respeito à teoria da arte e que devem ser evitadas: a primeira é a fetichização da obra de arte
como coisa; a segunda reduz o estudo da obra ao psiquismo, seja do criado r, seja d o receptor.
Uma das variantes da primeira concepção vem a ser o método formal, que coloca o material, a
forma, no sentido ma is estreito da pa lavra, em primeiro pla no. O discurso é analisad o do ponto
de vista lingüístico-abstrato. Na seg unda concep ção, no entanto, está em primeiro plano a
psicologia do autor ou do receptor.
Ora, constatamos que, no ca so da teoria literária, as correntes críticas como o
Formalismo Russo e o Estrutura lismo se enquadram na primeira co ncepção destacada por
Bakhtin. No afã de construir uma verdadeira ciência mediante os estudos literários, tanto os
formalistas quanto os es qlesnrra obrnda mpoge te.
34
A psicocrítica de Charles Mauron, por exemplo, desenvolve um trabalho que reflete a
segunda concepção apontada pelo teórico russo. A obra de arte é concebida como um sinto ma
das neuroses do autor, e é estudada ten do em vista a dec ifração da vida psíquica do autor
empírico. Ora, no âmbito clínico, um estudo como esse teria, provavelmente, muito a contribuir;
basta lembrar que Freud construiu muitas de suas teorias a partir da leitura e interpretação de
textos literários (Édipo Rei, Hamlet, etc.). No entanto, para a teoria literária, uma concepçã o
dessa ordem não poderia oferecer solução para as questões estéticas que a obra literária impõe.
Para Bakhtin, ambas as concepções compartilham do mesmo equívoco: tentam descobrir
o todo na pa rte. To davia o fa to artístico cons iderado em sua totalida de não se encontra nem na
coisa nem no psiquismo do criador, tomado isolada mente, nem no do recepto r: ele c ontém esse s
três aspectos. Tanto uma como outra concepção têm seu significado na medida em que s ão
submetidas à abordagem sociológic a, fundamental e mais concreta . “O fato artístico é a forma
particular de uma relação recíproca entre o criador e os receptores” (B
AKHTIN, 1981a, p. 187). A
tarefa de uma poética sociológica seria compreender esta forma pa rticular de comunicação socia l
que se realiza e se fixa no material da obra de arte, participando do fluxo da vida social, que, por
sua vez, reflete na obra a infra-estrutura econômica geral. A obra entra com as outras formas de
comunicação num processo de interação e de troca de forças.
Vale, aqui, uma nota sobre a com unicação artística. O verbo latino communicare deriva
do étimo communis, na a cepção de pertencer a todos ou a muitos. Comunicar é tornar comum ,
fazer saber. Sob a influência da teoria estruturalista da comunicação, sustentada p or Jakobson,
muitos teóricos da literatura trataram a comunicação l iterária como um processo em que um
emissor veicula uma mensagem para o receptor. Conforme Jakobson (1969), a função poética da
linguagem se ca racteriza pela ênfa se que na comunicação é dada à mensagem. Não concorda mos
com a idéia de que o texto literário veicula uma mensagem, como a perspectiva estruturalista da
Teoria da Comunicação nos f ez acreditar. Para defender nosso ponto de vista, valemo -nos de
alguns argumentos. Numa obra teoricamente despretensiosa, mas de elogiável perspicácia,
Duarte Júnior (2000, p. 81) estabelece uma distinção entre comunicar e expressar: “Comunicar
supõe transmitir significados os mais explícitos p ossíveis. Já a expressão se refere a
determinados sinais qu e indicam (e, nã o, significam) elementos e fo rmas do sentimento
humano”. No entanto, consti tuem dois processos que se imbricam, na medida em que toda
comunicação, por mais objetiva que pretenda ser, carrega em si alguma expressã o, isto é,
exprime a subjetividade dos interlocutores; de maneira semelhante, toda expressão of erece
elementos de comunicaç ão, na medida em que a interpretação do signo expressivo implica um
sentido que lhe é atribuído. No entanto, em se tratando de arte, aqui concebida como “criação de
35
formas perceptíveis expressivas do sentimento humano” (cf. LANGER, 1971, p. 82), não podemos
considerá-la como um símbolo de natureza estritamente ling üística, cuja função é transmitir
uma mensagem. Fora de si mesma, a arte não poderia transmitir significa dos, mensagens, nada
impedindo que da expe riência estética resultem discussões acerca de determinados temas, que
nunca poderão, no entanto, determinar um s ignifica do ún ico, como a ssim reque r a co munica ção
ordinária. Na arte, a comunicação deve se r entendida a partir d e seu étimo, como um
compa rtilhar , “torna r comum ” a exp eriênc ia est ética e ntre produto r e consu midor es, med iada
pela obra artística. Daí concordarmos com Bakhtin quando se refere à obra de arte como uma
comunicação particular. Essa comunicação se realiza por um processo que vai além do
puramente racional, do convencionalizado, pois implica um partilhar de saberes sensitivos. A
experiência estética contém o componente social, uma vez que nela existe a relaçã o de três
elementos: produção, produto e consumo . Ou seja, há “o” que produz a “obra de a rte” para que o
“apreciador” (leitor) a consuma.
O discurso literário, particularmente, surge de uma situação vivida, de natureza
extraverbal, que o completa e nã o pode dele ser separado sem que se comprometa o valor da
obra. De aco rdo com Bakhtin (1981a, p. 190), o contexto ex traverbal do enunciado se divide em
três aspectos:
1) O horizonte social comum aos locutores (unidade de lugar visível: o
compartimento, a janela, etc.), 2) o conhecimento e a compreensão da situação,
igualmente comum aos dois locutores e, enfim, 3) a avaliação — também
comum aos dois — que eles fazem da situação.
Tudo isso é englobado na significação viva do enunc iado, é absorvido por ele, ficando, portanto,
verbalmente não-ma rcado, não-dito, subentendido.
A obra literária é construída a pa rtir desta tridimensionalidade: há um horizonte social
comum aos locutores — escritor e público leitor —; há um conhecimento partilhado, sem o qual a
obra se tornaria ilegível; e há uma avaliação que ambos fazem da situação. Sem levar em
consideração esses e lementos, o a nalista tende a não apreender um se ntido mais totaliza nte da
obra literária. Bakhtin é categórico quando afirma que a situação extraverbal se integra ao
enunciado como um elemento indispensável à sua constituição semântica particular: quando o
enunciado é deslocado do contexto, ele perde quase totalmente seu sentido, não se podendo mais
compreendê-lo. O que se deve levar em conta não é a obra fora da vida nem a vida fora da obra,
mas a sua complexa inter-relação.
36
Nesse ponto específico, a concepção bakhtiniana merece ser problematizada.
Compreendemos o ponto de vista do autor, com o qual concordamos. No entanto, havemos de
consider ar ma is prof undam ente, sem pre tende rmos s er arr ogant e, essa relaç ão ent re enunc iado
e situação extraverbal. Não podemos dizer que um leitor, desconhecendo o contexto em que uma
obra se insere, deixe de compreendê-la “completamente”. A Ilíada e a Odisséia, epopéias
ocidentais das mais antigas de que dispomos, re metem-nos a um tempo que não deixou vestígio
sequer da existência concreta de seu autor, Homero. No entanto, qualquer leitor que estiver com
alguma dessas obras em mãos, independentemente de ser acadêmico ou não, poderá
experimentar na leitura um prazer estético. Vale salientar, porém, que Bakhtin se dirige aos
estudiosos da literatura, e, de fato, em se tratando de uma análise literária, o conhecimento do
contexto extraverbal se torna de capital importância, pelas razões já expostas. O autor chama a
atenção para a “constituição semântica particular” do enunc iado, querendo com isso salientar
que o processo de significação do enunciado apela para o conhecimento, por parte do leitor
crítico, dos elementos e xtraverbais, uma vez que eles sã o pa rtes cons titut ivas do enuncia do. Sem
levar em conta isso, fica realmente dif ícil apre endê-lo adequa damente. A questão levantada por
Bakhtin chama a atenção para o fato de que a obra literária, por exemplo, é produzida num meio
e num tempo histórico q ue determinam, d ialeticamente, sua própria forma artística. Daí a
“semântica particular” do enunciado a que se referia Bakhtin. Adotando o ponto de vista do
autor, acreditamos ser possível experimentar o prazer na leitura de um texto desconhecido
qualquer. No entanto, tomar esse texto como objeto de aná lise requer um conhecimento dos
elementos contextuais em que ele f oi inserido.
Além disso, havemos de considerar, no caso do leitor comum, que informações sobre o
contexto histórico da produção artística se revelam uma fonte capaz de amplificar o prazer
estético. O que dá charme à Ilíada e à Odisséia é, também, o fato de elas terem sido escritas há 28
séculos, terem sobrevivido em matéria e forma, terem sido criadas por um homem sobre cuja
existência nã o temos provas cabais. Nesse ca so, o maravilhamento pelo contexto pode ser maior
do que o causado pela beleza do objeto. O cará ter de belo poderá se estender ao histórico. Na
manifestação estética estão todos o s sonhos, problemas, anseios, des lumbres, medos e
realizações dos homens em seus respectivos contextos históricos. Para quem cultua o saber,
informações e contextualizações dos fatos a rtísticos se tornam fundamentais.
Esclarecido esse ponto, falemos do último aspecto do contex to verbal conforme Bakhtin.
A avaliação social, por exemplo, é própria da vida de todos os representantes do grupo em
sociedade, e é respons ável pela orga nização da forma enunciativa e da sua entonação . Ela
determina a escolha da s palavras e a forma da unidade verba l. A entonação, p or sua vez,
37
estabelece uma relação estreita entre o discurso e o contexto verbal. Ela é social por excelência: o
seu sentido depende das avaliaçõ es que dela faz o grupo social.
É certo que o termo ‹‹ entonação›› não é bem des envolvido na teoria bakh tiniana, mas
podemos inferir que se trata de um fenômeno de estilo, de expressã o, de uso social da
linguagem, que implica a seleção de palavras, expressões, sintag mas, mediante a representação
que o sujeito social faz da realidade.
A obra de arte literária está profundament e imb ricada no contexto extra verbal vivido. É
particularmente importante na literatura o papel representado pelas avaliações sociais
subentendidas, que organizam tanto as formas artísticas quanto sua expressão direta. Para uma
compreensão mais ampla da avaliação, discutiremos no próximo capítulo a relaçã o entre obra,
crítica e ideologia.
Por ora, podemos fazer um paralelo entre a concepção bakhtiniana de avaliação e a noção
de formações discursivas, tal como encontra mos nas formulações de Foucault e como esse
conceito foi aproveitado pela ACD. Ao contrário da filosofia platônica, de ma rcado teor idealista,
o pensamento dialético de Bakhtin aponta para o fato de que a criação poética não comunga com
a linguagem dos deuses n em é de responsabilidade únic a do indivíduo criador. O artis ta é
compreendido como sujeito soc ial e não como uma persona lidade inserida num plano entre
homens e deuses; além disso , sua produção estética é infl uenciada p elo contexto socia l concreto.
É certo que o art ista poderá não estar integ rado numa instituição determ inada, mas el e
estabelece uma interação com d iversas esferas sociais, que, de maneira talvez não conscien te,
interferem na sua produção. Como assinala Bakhtin, são as avaliações sociais, ou seja, um
conjunto de crenças partilhadas por um determinado grupo, que interferem também na
construção das formas artísticas. O artista dialoga com essas crenças, podendo mantê-las ou
contestá-las, mas essa avaliação social, de uma maneira ou de outra, se encontra presente nas
opções estéticas do criador. Se a arte opera com uma versão de mundo, esta versão interage com
as diversas esferas de pensamento do contexto social.
A entonação, os gestos estão enraizados no contexto imed iato. Tanto pela entonação
quanto pelo gesto, o h omem toma uma posição ativa em relação a certos valo res da sua
existência social. Toda pa lavra realmente pronunciada é a expressão e o p roduto da interação
social de três participantes: o locutor (ou autor), o ouvinte (ou leitor) e aquele ou aquilo de que
se fala (ou herói). O leitor e o objeto do discurso (herói) participam constantem ente da criação
da obra de ar te, que não deixa de s er por um instante o acontecimento de uma comunicação
vivida e ntre eles.
38
O gesto, outro termo também não muito claro na teoria bakhtiniana, será compr eendido
em nossa perspectiva de análise como e lemento ideológico do texto, responsável pela
manutenção do sistema ou por sua mudança, por sua transformação. Do ponto de vista
metodológico, a obra literária deve ser estudada, de acordo com uma poética sociológica, em dois
sentidos: em relação ao conteúdo, para o qual ela é uma avaliação ideológica, e em relação ao
material mediante o qual esta avaliação se realiza tecnicamente. O mo vi men to i nte rp retativo te m
de ser, pois, dialétic o, contemplando estes dois as pectos dentro da tota lidade da obra. Conforme
Bakhtin (198 1a, p. 203):
não é absolutamente necessário que a avaliação ideológica expressa pela forma
passe pelo conteúdo sob o aspecto de alguma sentença, de um julgamento
mora l, p olít ic o ou outr o. A ava lia ção deve se manter no ritmo, no movimento
axiológico do epít eto, da met áfora, na ordem segundo a qual se desenvolve o
acontecimento representado; ela deve se realizar apenas através dos recursos
formais do material. Mas, ao mesmo tempo, a forma, sem que passe no
conteúdo, não deve tampouco perder sua ligação com ele; caso contrário, ela se
torna uma experimentação técnica desprovida de todo sentido artístico
verdadeiro.
Os diferentes aspectos que determinam a forma do enunciado artístico são: 1) o valor
hierárquico do o bjeto (“herói”) ou do acontecimento que co nstitui o conteúdo do enunciado, 2)
seu grau de proximidade em relação ao autor, 3) o ouvinte e s uas relações recíprocas com o
autor, de um lado, e com o objeto (“herói”), de outro (p. 213). “Todos estes aspectos constituem
pontos de aplicação das forças sociais da realidade extra-artística à poesia” (B
AKHTIN, 1981a, p .
213).
Parece-nos que as metodologias cria das pela ACD convergem pa ra o méto do só cio-f orma l
de análise do discurso poético de que trata Bakhtin. Se os analistas críticos do discurso não
devem perder de vista o elemento lingüístico, no estudo particular do discurso poético o analista
não poderá deixar de enfocar a forma, uma vez que o produto estético se cara cteriza pela forma
39
que o criador dá aos seus sentimentos
11
. Essa forma, no caso a literatura, constitui o material
lingüístico, o que faz do f enômeno literário uma arte distinta das demais
12
.
Vale considerar, ma is uma vez, que o elemento lingüístico que caracteriza a literatura
deve ser entendido não numa perspectiva estrita , mas abrangente; ou seja, na da língua como
uso social. No caso da literatura, a língua é trabalhada com propósitos de efe ito estético.
As esferas ideológicas, em particular a estrutura sociopolítica e econômica, determina m a
obra poética não somente do exterior, mas se apoiando nos elementos estruturais intrínsecos.
Por outro lado, a interação artística do criador, do ouvinte e do obje to (“he rói”) p ode ex ercer s ua
influência sobre os outros domínios da com unicação social, considerando-se, pois, que as
relações sociais são mediadas por relações de poder.
Uma questão que diz respeito à sociologia da forma, e à qual gostaríamos de dedicar um
pouco mais de tempo, vem a ser a natureza e função dos gêneros discursivos.
Para Bakhtin (1992), os g êneros são espécies de enunciados relativamente estáveis,
elaborados por cada esfera da a tividade humana que faz uso da língua . Uma vez que as
atividades humanas são inúmeras e variáveis, os gêneros discursivos são, conseqüentemente,
ilimitados.
Como orientação metodológica para os estudos dos gêneros, Bakhtin propõe a divis ão
preliminar entre os gêneros primários e os gêneros secundár ios, sendo os primeiros
considerados os mais simples, rela cionados a atividades lingüísticas espontâ neas, como, por
exemplo, a conversação e a carta pessoal; e os segundos, mais complexos. Os gêneros
secundários do discurso, nas palavras do autor, “apa recem em circunstâncias de uma
comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita:
artística, científica, sociopolítica” (B
AKHTIN, 1992, p. 281). Os textos literários — romance, teatro,
poemas — se enquadram no grupo do s gêneros secundários .
A partir de Bakhtin, muitos autores têm recupera do a velha discussão sobre os gêneros,
antes restrita apenas ao campo literário. Apesar da contribuição do auto r aos estudos pioneiros
sobre o assunto, não podemos deixar de f lagrar em sua concepção um viés ma rcadamente
formalista. Ao caracterizar o texto literário como um gênero “complexo”, fr uto de uma
comunicação “evoluída”, em contraposição à conversação, um gênero “simples”, revela, se nã o
uma concepção valorativa (simples vs. complexo), uma compreensão das espécies textuais como
11
Quanto à relaçã o sentimento e forma na produção estética, nos apoiamos no estudo de Langer (1980), para quem o
criador encontra uma forma para expressar seus sentimentos.
12
Aristóteles (1987) usa a categoria meio para diferenciar os diversos tipos de imitação na arte. A literatura se
caracteriza por ser u ma arte que se expressa po r meio do verbo, quer metrificado, quer não.
40
organismos “simples” e “complexos”, o que não nos parece bem adequado. A generalização que
uma tal dicotomia incorre não nos permite prever os casos mais variados da literatura, de um
lado, e da conversação, do outro. Além disso, como sua teoria se encontra num curto ensaio,
pode dar margem à associação entre “fala” vs. simplicidade e entre “escrita” vs. complexidade .
Ainda poderíamos considerar a substituição dos termos por gêneros “espontâneos” e “não-
espontâneos”, referindo- se, respectivamente, à “conversação espontânea” e ao texto literário
escrito, por exemplo. Mesmo assim não conseguimos evitar a perspectiva redutora da dicotomia.
Os estudos sobre os gêneros textuais estão ma is avançados, tentando dar conta da proliferação e
pluralidade das espécies de texto.
Uma opção de estudo válida vem a ser a aná lise da intergenericidade, na medida em que,
por exemplo, um gênero, ao ser inserido no utro, transforma-se dentro deste e adquire uma
característica particular. No caso do teatro, quando a s réplicas são inseridas no drama, perdem
sua forma e significados cotidianos e se remodelam, ressemantizam-se conforme as exigênc ias
do gênero dramático.
Sabe-se que, depois do Romantismo, a teoria do s gêneros literários caiu em certo
ostracismo, na medida em que a clássica trip artição épico-lírico-dramático não tinha mais
espaço numa literatura que reivindicava a mistura dos gêneros.
Foi com Bakhtin que se percebeu a importância dos inumeráveis gêneros discursivos que
participam da esfera social. Os gêneros não são fixos: eles apresentam uma dinâmica homó loga à
dinâmica da sociedad e: à medida q ue se modificam as atividades sociais, novos gêneros vão
sendo requeridos. A nossa comunicação se efetiva, pois, a partir de um g ênero determina do.
É nessa perspectiva que Maingueneau (1995) discute o papel dos gêneros no contex to da
obra literária. Para o autor,
a obra é indissociável das instituições que a tornam p ossível: não existe tragédia
clássica ou epopéia medieval fora de uma certa condição dos escritores na
sociedade, fora de certos lugares, de certos modos de elaboração ou de
circulação de textos. (M
AINGUENEAU, 1995 , p. 19)
No que diz respeito aos gêneros discursivos, há uma esp écie de contrato tácito ent re o
escritor e a tradição literária, mediante certo número de regras que se supõe serem conhecida s
pelos sujeitos que participam da esfera literária: escritor e público.
41
Como se vê, estamos concebendo os gêneros literários como espécies de realização
textual/discursiva, não como modelos ideais de que tratava a poética clássica: épica, lírica e
dramática. Vamos considerar, a exemplo de Genette (1979), os três gêneros clássicos como
arquitextos, mo dos textuais, ou, no vocabulário da l ingüística contemporâ nea, como tipos
textuais
13
.
A poética clássica, até bem pouco tempo, concebia os gêneros como fenôm enos
acessórios, não como a manifestação de um fato constitutivo. A escolha de um gênero literário
não é uma opção aleatória do escr itor a partir de um l eque de possibilida des: nã o s e trata de uma
decisão exterior ao ato de criação literária. A escolha de um tema e o tratamento de um conteúdo
implicam a constituição da forma genérica. O que o texto diz (o conteúdo) e o que faz (a forma)
estão, portanto, intimamente liga dos. Dessa maneira, a proposta de Maingueneau (1995 , p. 75) é
bem clara:
Se o gênero não é um contexto contingente, mas um componente completo da
obra, deve-se levar em conta a maneira como esse investimento se efetua,
restabelecer a força que une um cert o ‘conteúdo’ a um certo ‘contexto’ genérico.
[...] Racine não tem uma ‘mensagem’ que poderia ter exprimido atrav és das
tragédias, das máximas ou dos poemas líricos: o fato de investir de um certo
modo na tragédia clássica é uma dimensão completa da ‘mensagem’ de sua
obra.
Além disso, há de se considerar, também, a relação entre os gêneros e o poder. Ivo
Lucchesi (1992), num breve artigo intitulado “Gêneros Literários e a Genealogia do Poder”,
revisa a clássica divisão triádica dos gêneros literários — épica, lírica e dramática — e reconhece
uma íntima associação entre os gêneros épico e dramático com diversos mecanismos de poder.
Considera que essa associação se estabeleceu desde os primórdios dos estudos lit erários, quando
Aristóteles delimita o estudo de sua Poética à investigação do épico e, sobretudo, do dramático.
O gênero lírico se caracteriza histórica e culturalmente (no Ocidente, vale ressaltar) por um
descaso pelo poder instit uído e por uma liberdade que tenderá a subverter esse mesmo poder. O
curto espaço em que Lucchesi desenvolve seu pensamento não nos permite investigar essa s
relações com ma ior acuidade , resulta ndo, no cômputo geral, em af irmações que o autor sustenta ,
13
Bronckard (1999) assim define os tipos discursivos: segmentos constitutivos de um gênero, ou melhor, forma s
específicas de semiotização ou de colocação em discurso, dependentes do leque de recursos morfossintáticos e das
propriedades semânticas de uma língua. São, por isso, em número necessariamente limitado.
42
mas sem se remeter a um corpus a mplo, para, assim, poder chegar às conclusões generalizantes
a que se propôs.
Dos autores com os quais trab alharemos nesta investigação, Nelson Rodrigues e Newto n
Moreno, por exemplo, oferecem te xtos cujos gêneros desafiam o ana lista. O primeiro cria, para
muito de seus textos, uma designação genérica que não encontra respaldo na tradição dos
estudos sobre gêneros literários. O segundo, a partir do m omento em que aborda a questão da
ambigüidade do sujeito masculino, parece tratar dessa ambigüidade numa forma estética em que
se confundem o dramático e o épico. Na análise propriamente dita, observaremos o tratamento
que os dramaturgos deram ao gênero dramá tico em que seus textos se inserem.
Como se vê, há uma longa série de questões relacionadas à técnica da forma, que
podem ser isoladas das questões da sociologia da forma por uma espécie de abstração. Neste
trabalho, o que vai nos interessar é a forma como o discurso l iterário, particularmente o
dramático, de Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e Newton Moreno, se articula com os diversos
discursos sobre a masculinidade, provenientes da esfera social de cada período histórico em que
foram produzidos. Ou seja, objetivamos saber como estruturas específicas de discurso dramático
determinam ou facilitam processo s de formação ideológica. Para tanto, uma noção crítica de
discurso, tal como foi apresentada neste capít ulo, assim como uma concepção mais ampla dos
gêneros discursivos, servirão de base teórica para análise e discussão do nosso corpus.
Para uso de uma tal noção de discurso, não podemos prescindir de uma discussão sobre
as estratégias de poder. No capítulo seguinte faremos uma ab ordagem crítica da relação entre
discurso-poder-ideologia.
43
2. Discurso e Ideologia
O termo ideologia é apenas uma maneira conveniente de
classificar em uma única categoria uma porção de coisas
diferentes que fazemos com os signos.
(E
AGLETON, 1997, p.171)
O estudo da ideologia é, entre outras coisas, um exame
das formas pelas quais as pessoas podem chegar a
investir em sua própria infelicidade.
(E
AGLET ON, 1997, p.13)
O conceito de ideologia é, hoje, um dos mais complexos e polêmicos nas ciências sociais e
humanas. Para se ter uma idéia, Eagleton (1997, p. 15-16) catalogou, “mais ou menos ao acaso”,
dezesseis acepções do termo, atualmente em circulação. Este capítulo apresentará alguma s
características do fenômeno ideológico, a fim de precisar a concepção que será por nós adotada
na abordagem do discurso literár io, particularmente o dram ático.
Antes de iniciarmos a discussão do assunto, gostaríamos de fazer algumas considerações
sobre o pensamento de Ma rx e Engels, os primeiros a abordar o tema com ma ior profundidade
teórico-filosófica. Vale salientar q ue o objetivo dos autores foi levantar questões sobre a ideolog ia
alemã, de forma que não podemos, como muito se tem feito, interpreta r a noção marxista como
uma teoria geral da ideologia.
Para os autores,
cada nova classe que toma o lugar daquela que dominava antes dela é obrigada,
mesmo que seja apenas para atingir seus fins, a representar o seu interesse
como sendo o interesse comum de todos os membros da sociedade ou, para
exprimir as coisas no plano das idéias: essa classe é obrigada a dar aos seus
pensamentos a forma de universalidade e representá-los como sendo os únicos
razoáveis, os únicos universalmente válidos. (M
ARX; ENGELS, 1998, p. 50)
44
O ponto d e vista de Marx e Engels apresenta algumas limitações próprias da época em
que foi concebido. A partir dele, uma série de formulações muito em vog a nos debates de
tradição marxista foram elaboradas. Por exemplo, ideologia seria um conjunto de idéias falsa s
que ajudam a legitimar um p oder político dominante. Ou me smo uma comuni cação
sistematicamente enviesada, na medida em que distorce o entendimento sobre a realidade
concreta. A fim de se manterem no poder, os b urgueses criavam mecanismos para na turalizar
algumas idéias que lhes eram necessárias; ou seja, idéias que correspondiam a os interesses da
classe burguesa eram propaladas como verdades naturais, inquestionáveis.
Aqui nos deparamos com alguns problemas de ordem epistemológica. Valemo-nos das
críticas feitas por Eagleton (1997) a essas definições de cunho negativista para compreender
melhor o funcionamento do fenômeno ideológico . Como veremos mais detalhadamente adiante,
nem todo conjunto de crenças norm almente denominado d e ideológico correspond e a um poder
político dominante.
Além disso, o segundo questionamento que podemos fazer à concepção marxista de
ideologia , que não nos perm ite tomá-la generaliza damente, é de o rdem cognitiva. A noção de
“falsa consciência” esbarra com o ponto de vista aristotélico segundo o qual h á uma
racionalidade moderada dos seres humanos em geral. De acordo com esse ponto de vista, a
maioria das crenças tem um fundamento qualquer de verdade. Logo , se verificamos na po lítica, a
partir do século XX, certos “irracionalismos patológicos”, no dizer de Eagleton (1997, p. 24), é
difícil sustentar a idéia de que massas de pessoas reproduziriam, durante um longo período
histórico, idéias e crenças que fossem falsas, absurda s. Para Eagleton ( 1997, p. 25),
ao depararmos com um corpo de doutrina religiosa , mitológica ou, digamos,
mágica, à qual muitas pessoas se devotaram, podemos, com freqüência, ter
razoável certeza de que ela contém algo. [...] Podemos supor, de modo geral, em
razão simplesmente do caráter disseminado e duradouro de tais doutrinas, que
elas codificam, ainda que de maneira mistificada, necessidades e desejos
genuínos.
Para serem eficazes, as ideolog ias devem fa zer algum sentido para as pessoas; devem
corresponder, em alguma medida, ao que os sujeitos conhecem da realidade social com a qual
interagem. Se podemos falar de ideologia dominante, esta moldaria necessidades e desejos, ma s
45
estaria atenta aos desejos e necessidades que as pessoas já possuem, a fim de, com isso, construir
um corpo de idéias que pareçam plausíveis e atraentes àqueles a quem se dirige. A ideologia não
pode mais ser compreend ida como “ilusões impostas”. O fenômeno ideo lógico funciona
dialeticamente, o que possibilita evitar a interpretação causalista de que os sujeitos dominados,
destituídos absolutamente de uma racionalidad e moderada, se submetem à dominação como
simples marionetes.
Além disso, a concepção nega tivista da ideologia em Marx e Engels pode nos conduzir a
uma atitude polarizadora na aná lise do fenômeno ideológico. De acordo com Va n Dijk (2003, p.
15), “este uso negativo do conceito comporta a seguinte polarização entre Nós e Eles: Nós temos
o conhecimento verdadeiro; Eles têm ideologias”, o que não nos parece razoável, uma vez que se
trata de uma postura tão arbitrária e arrogante quanto a nature za do fenômeno ideo lógico que
critica.
Essas observações não desmerecem em absoluto o riquíssimo texto que Marx e Engels
produziram sobre a ideologia burguesa. Eles foram os primeiros a enfocar a relação dialética
entre as bases materiais concretas e a produção de pensamento. No entanto, seu o bjetivo era
compreender o funcionamento da economia política burguesa, o que lhes permitiu chegar a
conclusões satisfatoriamente cr íticas para o momento histórico em que produziram suas teor ias.
Dessa forma, obedecendo a os princípios do materialismo dialético, procuraremos ampliar a
discussão marxista, refletindo sobre a produção e reprodução das ideologias à luz das bases
históricas do nosso segundo milênio.
No outro extremo da discussão, encontramo s os chamados “críticos da ideologia”, que
questionam a existência do fenômeno ideológico. A cr ítica pós-estruturalista, por exemplo,
vigente na segunda metade do século XX, aboli u do pensamento contemporân eo a questão da
ideologia. Imbuídos das noções co nfusas do pós-modernismo, a principal crítica dess e grupo
incide sobre a concepção de representação, tão cara à definição clássica de ideologia.
Segundo Eagleton (1997, p. 174), o pós-estruturalismoé uma teoria latentemente
libertária do sujeito, que tende a ‘demonizar’ o próprio ato de fechamento semiótico e q ue
celebra acriticamente a libertação eufórica das forças de produção lingüística”. Antes dos estudo s
pós-estruturalistas, o estruturalismo teve o mérito de separar o signo do referente, ao propor, de
acordo com os postulados da lingüística saussuriana, a divisão do signo em significante e
significado, sendo aquele a base material do signo e est e o conceito que se associa, arbitrá ria e
convencionalmente, ao significante. Um princípio epistemológico como ta l conseguiu dar um
salto qualitativo em relaçã o à verdade, até então dominante, proposta por S. Tomás de Aquino,
46
da adeq uação entre a s coisa s e a in teligênc ia (adaequatio rei ac intellectus) (cf. KONDE R, 2002 ,
p. 177). O signo, portanto, não mantém uma relaçã o com dados referenciais senão por uma
atitude arbitrária e convencional. O pós-estruturalismo, por sua vez, problematiza ainda mais a
questã o, q uand o pr opõe uma sep ara ção entre o sig nific ante e o s ignif ica do. A s igni fica ção e stá
dispersa numa cadeia de significa ntes, tornan do-se difícil fixá-la. Ela nunca está totalmente
presente em apenas um signo. Cada signo num processo de significação está marcado e
influenciado por todos os outros, formando um sistema complexo difícil de se esgotar. Longe de
ser uma estrutura bem definida , como propalavam os estruturalista, a lingua gem passa a ser
estudada como uma cadeia que se est ende ad infinitum, c ujos elemen to s não podem ma is ser
passíveis de uma definição ab soluta. Como decla ra Eagleton (1983, p. 140), na interpr etação
dessa tendência cr ítica,
não há nada totalmente presente nos signos: seria ilusão pensar que poderi a
estar plenamente presente ao leitor aquilo que digo ou escrevo, porque o uso
dos signos sempre implica alguma dispersão das minhas sign ificações, implica
sua divisão, e o fato de q ue jamais serão idênticas a si mesmas em todas as
ocasiões. Não só as minhas significações, na verdade, mas também eu: como
sou feito de linguagem, não sendo esta apenas um instrumento cômodo que
uso, toda a noção de que sou estável, de que sou uma entidade unificada,
também deve ser fictícia.
Derrida (1995) denomina de metafísico to do sistema de pensamento c onstruído a pa rtir
de uma base sólida, inatacável, sobre o qual se podem construir significações estáveis. O termo
desconstrução, cunhado pelo autor, corresponde a uma operação crítica através da qual
podemos mostrar que a “estruturalidade da estrutura” (D
ERRIDA, 1995, p. 230) é antes de mais
nada produto de um determinado sistema de sig nificações, comumente definido pelo que exclui.
Esse tipo de pensamento sustentado por “oposições binárias” era muito cultuado pelos
estruturalistas. O desconstrutivismo pro põe um enfraquecimento dessas oposições binárias ao
estudar o sistema de significantes no processo de significa ção textual. Com isso, chega à
conclusão de que as oposições binárias rep resentam uma concepção típica das ideologias, que
“tendem a traçar fronteiras rígidas entre o que é aceitável e o que não é, entre o eu e o não-eu, a
verdade e a falsidade, o sentido e o absurdo, a razão e a loucura, o central e o marginal, a
superfície e a profundidade” (E
AGLETON, 1983, p. 143). O método descon stru tivista pret ende ,
47
pois, desmistificar a natureza do fenômeno ideológico e construi r um pensamento que
transcenda os limites impostos pela ideologia.
Estamos de acordo com a crítica de Eagleton (1997) em relação à perspectiva
desconstrutivista, que supõe ser todo “fechamento” semiótico contraproducente. O “fechamento”
deve ser compreendido como um efeito provisório de qualquer semiose, que pode ser
politicamente positivo ou negativo, dependendo do contexto discursivo e ideológico em que se
desenvolve. O problema maior de uma tal epistemologia é que, no afã fetichista de investigar a
linguagem como “texto ”, não considera a relevância do contexto discursivo, resvalando, assim,
para um formalis mo crítico.
O pós-estrutura lismo e a teoria do pós-modernismo, de maneira geral, se relacionam
dialeticamente com a dinâmica do capitalismo tardio, como observou muito bem Jameson
(2000). De acordo com o pensador norte-americano, pós-modernismo é um conceito
historicamente necessário ao terceiro estágio do capitalismo oc idental
14
. O fenômeno da
hipertextualidade e da cibercultura, próprio da comunicação virtua l desenvolvida na produção
do sistema capitalista da segunda metade do século XX, não nos permite que tratemos dos
sistemas de significação como fenômenos centralizadores e unificadores , tal como
costumávamos proceder até entã o. Uma nova fo rma de cultura se nos impõ e, o que nos impele a
refletir sobre ela. No entanto , Jameson, crítico de forte tendência marxista, propõe uma reflexão
sobre a ideologia na era histórica em que estamos vivendo, a do “capita lismo ta rdio”.
Para o autor, existe na cultura um horizonte particular de determinada classe social que
convive com a expressão utópica da coletividade. A crítica ma rxista da cultura, além de
desmistificar as distorções ideológicas, deverá também “buscar, através e além dessa
demonstração da função instrumental de um dado objeto cultura l, projetar seu poder [o poder
do objeto cultural] simultaneamente utópico como a afirmação simbólica de uma forma de classe
específica e histór ica da unidade col etiva” (J
AMESON, 1992, p. 301). Com isso, Jameson propõe à
prática crítica um trabalho de interpretação que pode redundar numa hermenêutica negativa
(crítica das distorções ideológ icas) ou numa hermenêutica positiva (resgate do conhecimento
novo que está sendo produzido na cultura).
Tomando por base a crítica de Jam eson, a subjetivida de do pós-moder nismo apresenta,
entre outras características, o predomínio do espaço sobre o tempo, o que enfraqueceria, pela
fixação do presente espa cial, o senso histórico, p ropiciando a diluiçã o do passado e sup rimindo
14
Conforme Jameson (2000), o primeiro está relacionado às máquinas a vapor; o segundo, aos motores elétricos; e o
terceiro, aos motores eletrônicos e/ou nucleares.
48
as esperanças relativas ao futuro. O passado se transforma em matéria fragmentada para
bricolagem e o pre sente se fixa no ins tantâneo. As fronteiras entre a s culturas clássica,
tradicional e popular se diluem, multiplicando-se os estilos, que passam a ser, todos,
legitimados.
49
Como sistemas de idéias dos mais diverso s grupos sociais, as ideologias não só dão
sentido ao mundo, mas também fundamentam as práticas sociais de seus membros. Co m
freqüência, as ideologias surgem da luta e do conflito de um grupo: nos situam a Nós mesmo s
contra Eles.
Claro está que não trataremos do conc eito em termos de classes sociais, tal como a
tradição marxista, mas alargando-o à noção de sistemas de crenças produzidos e rep roduzidos
pelos grupos sociais. Um estudo crítico da Ideologia supõe uma análise crítica que vai de
encontro a todos os tip os de abuso de poder e de dominação . É com essa perspectiva que
procuraremos utilizar o termo na análise crít ica do d iscur so masc ulino .
As contribuições teór icas de Van Dijk (2 003) a respeito do tema “Ideologia” são de
valiosa importância para a construção do nosso objeto de pesquisa, uma vez que, por se tratar de
um analista crítico do discurso, o autor articula coerentemente uma noção de ideologia com a
análise lingüísti ca do discurso. Ap esar de utiliz ar exemplos do discurso racista para explicitar o
conceito de ideologia que desenvolve, a obra nos será útil no que se refere à definição do termo e
à proposta de uma metodologia de análise.
Seu objetivo central está disposto já na apresentação: of erecer uma “introdução
multidisciplinar ao co nceito de ideolog ia, com ên fase na expressão, construção ou legitimação,
mediante o discurso, de algumas ideologias” (V
AN DIJK, 2003, p. 13). Para o autor, o uso da
linguagem e do discurso é uma das práticas sociais mais importantes condicionada s pelas
ideologias . Este uso infl ui na forma de a dquirir, apreend e r o u modificar as ideolog ias.
Van Dijk utiliza algumas noções de co gnição social para problematizar o conceito do
fenômeno ideoló gico. Para ele, as id éias têm com freq üência uma dimensão avaliadora . No
entanto, não podemos compreender a dinâmica da ideolo gia (produção, r eprodução e
modificação de crenças) a pa rtir de uma perspectiva subjetivista apenas. O que nos interessará,
no momento, é a forma como os sujeitos sociais constroem e reproduzem, socialmente, suas
crenças. Assim, da mesma forma que não temos idiomas individua is, tampouco temos ideologias
individuais. Ela s são crenças so ciais compartilh adas e não opiniões pessoais, e s e associam às
propriedades características de um grupo, como identidade, posição na sociedade, interesses e
objetivos, relações com outros grupo s, reprodução e meio natura l.
Para maior compreensão do fenômeno ideológico, Van Dijk apela para a Psicologia, a fim
de associar tipos de memória a sistemas de cognição distintos: memória a curto prazo (MCP) e
memória a longo prazo (MLP). As crenças ideológicas se encontram geralmente na M LP. No
entanto, faz-se necessário distinguir alguns tipos de crenças, que reproduziremos a seg uir:
50
a) memória episódica: pessoal, subjetiva, se forma a partir das experiência s
pessoais.
b) conhecimento sociocultural: crenças mais gerais, compartilhadas
socialmente, com membros do m esmo grupo, de outras so ciedades ou culturas.
Elas formam a memória social. O conhecimento sociocultural se converte num
sistema central de representações mentais na memória social. O co nceito de
conhecimento é relativo e depende das crenç as do grupo, da sociedade e da
cultura.
bb) Fundamento comum: conhecimento que nunca é questionado e
que é aceito por todos os membro s po tencialmente competentes de
uma cultura.
c) memórias sociais: opiniões do grupo compa rtilhadas socialmente.
Desses tipos, somente o conhecimento sociocultura l e as memórias sociais se relacionam
à ideologia entendida como um co njunto de crenças compartilhadas por membros de grupo s
determinados. A memória episódica, por corresponder a uma experiência de ordem estritamente
subjetiva, não será consid erada na compreensã o do fenômeno ideo lógico, entendido como uma
questão de cognição social. Por sua vez, o fundamento comum também não está especificamente
relacionado a questões ideológicas, uma vez que corresponde a conceitos convencionais,
necessários para a manutenção da ordem da comunica ção. Ao contrário do fundamento comum ,
o fenômeno ideológico pressupõe diferença s de opinião, confl itos e lutas.
O mesmo grupo ideológico se define precisamente porque seus membros compartilham
mais ou menos da mesma ideologia, das mesmas crenças, das mesmas opiniões. Van Dijk (2003,
p. 24) acredita que “as ideologias formam a s representações sociais das crenças
compartilhadas de um grupo e funciona m como marco de referência que define a coerência
global dessas crenças”. Em toda sociedade, as normas e os valores organizam nossas ações e as
avaliações que temos uns dos outros . Para que os valores e as normas se tra duzam em crenças
ideológicas, é necessário que haja polêmica no grupo. A interpretação dos valores de uma
maneira específica, em funçã o do grupo e de seus interesses, estabelece os pilares das crença s
ideológicas. Podemos citar como exemplo a crença, ainda hoje vigente em nossos arquétipos, de
que a mulher corresponde à figura de Penélope e o homem, à de Ulisses. Se esse arquétipo nos
51
remonta ao sistema de crenças da Grécia antiga, o mito grego assume uma representação
particular nas sociedades burguesas dos séculos XVII e XIX, que estabelecem, na vida social, a
dicotomia esfera pública vs. esfera privada, encerrando a mulher no âmbito da esfera privada
(ela é a dona do lar, res ponsável pelos filhos e p elo bem-estar do marido) e pro jetando o homem
na esfera pública. Até o século XX, essa crença era tida como fundamento comum, quando
grupos de mulheres co meçaram a questionar o mito de P enélope atribuído à mulher ocidental,
gerando polêmica e dividindo as crenças em paradigmas ideológicos distintos: ideologia
masculina e ideologia fem inina (ou feminista). Podemos, a ssim, nos apoiar num qua dro de
refer ênc ia pr ovi sór io: a ideo log ia é um tipo de cognição social e, mais especificamente, um
conjunto de crenças básicas que fundamentam as representações sociais de um grupo. Se as
crenças, assim como a memória, nos sugerem ordem e organização, podemos considerar que as
ideologias, de algum mo,,asfifi asgi7-6.5(s)m6(fi)1a.6(r)-.7(as)”6Tw[8(e)1 c. See sidicvs5(,.6(s)5(os66( )-m.3( a)-neir( é )-5.cl.4( )5.6(p)-6.0-5.o. Se)6o.1( (j.6(s)e.8(d)tivmór(s dos )-o. Se)6.1(9(s prom.3(o)-a6.9(s que)6 co5de)6.0- um g)-.1(ii)-nizam que )5.6 a)-6.0-7.5( ).9(.9(eis-8(o w[(gr h):6.3( )]TJ2.25337082 TD0 Tc0 Tw( )Tj2TT14 1 (,)52.542.247.7026 TD020073 Tc-0.0069 TCritérco5de)io.5(i)-1.4(6(s)e.110.6( s)4.rco5de)t)o)-1inê.5(i)-n.2(aciblica)]TJ/TT16 1(vs90686449 0 TD0.0011 TD-0.1347 T:7.5( )Q.5(i5-5.82am)9.6(e)5.46(u)(in.6 -6.5(9)4.rid4.rt9.6(e)6.3(n7(céloo w[(o? lica)]TJ2TT14 1-(vs90686J2.258949 0 TD650011 TD-751347 TAt[8(e3)5.76v)-3.7)7.28(d)1d)6-5.7(e)6.1-6.7ra)-í)ognc7(iv)8.3
52
por conseguinte, os sentimentos subjetivos da identidade s ocial (pertinência) de
seus membros. (V
AN DIJK , 2003, p.28 )
Um dos critérios usados por Van Dijk (2003) para identificar a formação de ideologia é o
estabelecimento do conflito . No entanto, ao contrá rio do que supunha a teoria clássica de
ideologia, esse conflito ideológico não se restringe a oposições binárias sobre temas específicos
a favor ou contra o tema. A ideologia não pode ser compreendida como um sistema estável de
crenças. De acordo com o teórico holandês, alguns investigadores chegaram à conclusã o de que
não existem atitudes ou ideologias está veis. Por isso, não devemos postular cognições sociais
gerais e abstratas. Os indivíduos costumam expressa r uma grande variedade de opiniões
conflitivas sobre um mesmo tema. Nada obstante, há de se observar certo grau de perman ência e
continuidade do conhecimento social, das atitudes e das ideologias nas diferentes situaçõ es, do
contrário não poderíamos nos comunicar, interagir, falar e cooperar com o grupo. “Devemos
compartilhar, pelo menos com um certo conhecimento do mundo e determinadas atitudes,
normas e valores gerais que guiam as ações e nos permitem a ntecipar aquilo que esperam os
demais de nós mesmos” (V
AN DIJK, 2003, p. 34).
Quanto às relações entre discurso e ideologia, Van Dijk (2003) fornece princípios
metodológicos compatíveis com a s propostas de Kress, Pedro, Fairclough a presentadas no
capítulo anterior. Analisemos alguns que no s servirão de base para a abordagem da
masculinidade no discur so dramático.
Há duas formas a partir das quais as ideologias são veiculadas nos discursos: uma
explíc ita e outra imp lícit a. Quando as ide olog ias s ão vei cula das e xpli cita mente, fica fáci l par a o
analista identificá-las. No entanto, há determinadas estratégias, menos óbvias, que são expressa s
implicitamente: entonação, ambigüidade, uso de determinados pronomes em contexto s
específicos.
Tomemos como ponto de partida que as ideologias podem ser convertidas em
proposições. Não é preciso frisar que os elementos proposicionais das ideologias não se fecha m
às unidades lingüísticas como as orações.
Estamos de acordo com Van Dijk (2003) quando admite que é mais provável a ideologia
modificar mais incisivamente o significado semântico e o estilo de um discurso que a morfologia
e certos aspectos da sintaxe, já que estes dep endem muito menos do contexto. Lembremos que
as categorias pertinência, atividades, objetivos, normas e valores, posição e recursos
organizam as ideologias do grupo e determinam as formas discursivas que reproduzem as
53
determinadas ideologias. As informações adquiridas a partir de ssas categorias são sobre ‘Nós
mesmos em relação a ‘Eles’. As ideologias organizam, assim, as pessoas e a sociedade em termos
polarizados. A nossa posição em comparação com a dos demais é socialmente fundamental.
No que se refere ao aspecto semântico, o funcionamento do discurso ideológico se dá a
partir desta estratégia, conforme Va n Dijk (2003, p. 57-58):
Falar de ‘Nossos’ aspectos positivos.
Falar de ‘Seus’ aspectos negativos.
Não falar de ‘Nossos’ aspectos negativos.
Não falar de ‘Seus’ aspectos positivos.
A partir de então, o autor chega às bases do que chama de “quadrado ideológico”, dispostas a
seguir:
Enfatizar ‘Nossos’ aspectos positivos.
Enfatizar ‘Seus’ aspectos negativos.
Atenuar ‘Nossos’ aspectos negativos.
Atenuar ‘Seus’ aspectos positivos.
Nossas crenças são produzidas ou reproduzidas tendo em vista, consciente ou não-
conscien tement e, a p reser vação da imag em de noss o grup o e a a valiação , gera lmente n egativa ,
do que é estrangeiro ao grupo. Mais uma vez recorremos às ideologias ma sculinas, cujas crenças
organizam discursos e compo rtamentos muito particulares do grupo social masculino: “isso” é
de homem; “isso é de mulher”; “isso” é de veado
15
. Aqueles que não compartilham das mesmas
ideologias flagrantes no discurso do “macho” são preteridos pelo grupo socialmente estab elecido.
Numa perspectiva lingüística da análise crítica do discurso, não poderemos deixar de
considerar alguns aspectos que dizem respeito à organização textual propriamente dita.
15
Palavra de uso popular, refere-se ao homossexual masculino. Constatamos que, em textos os mais diversos , ora o
vocábulo é escrito com “e” ora com “i”.
54
Comecemos pelos temas. Todo discurso versa sobre algum assunto e sobre algum tema. Os
temas representam a informação mais importante do discurso e explicam de que trata, em geral,
este discurso. Constitui, portanto, o que melhor recordamos desse discurso. Distinguimos tema
de assunto a partir daquilo que já se tornou um truísmo nos estudos sobre texto: o assunto
corresponderia às idéias mais abstratas, geralmente reduzidas a uma palavra (masculinidade,
feminilidade, homoerotismo), sobre o qual formulamos um tema; ou seja, o tema seria uma
delimi tação da idéia ma is abstra ta, em que expr essamos um ponto de vista, que servirá de norte
para o desenvolvimento dos nos sos discursos. Essa delimitação temática poderá revelar opções
ideológicas por parte do sujeito produtor.
Outro aspec to que mencionamos anteriormente e que merecerá atenção no percurso da
nossa análise crítica são as informações implícitas. Como foi dito, nem sempre as proposições
ideológicas vêm expressas explicitamente num disc urso. Chama remos de significado ‘inferido’
do discurso a todas as proposiçõ es que aparecem num mod elo (mental), mas não exp licitamente
no discurso. Apesar de não f azer parte de nossos objetivos na presente pesquisa, o estudo da
cognição social nos fornecerá elementos para a abordagem crítica das ideologias masculinas nos
discursos dramáticos analisados. Na análise ideológica do discurso, é muito importante estudar
por que se encontram explícitas ou implícitas algumas proposições de ca ráter ideológico. Como
explica Va n Di jk (2 003 , p. 60-6 1) ,
a opção de expressar ou d eixar implícita uma informação não é neut ra. É fácil
antecipar que num esquema geral a gente tenderá a deixar implícita a
informação que não é consistente com sua auto-imagem positiva. Por outro
lado, qualquer informação que transmita ao receptor os aspectos negativos d e
nossos inimigos ou dos que consideramos fora do grupo tenderá a expressar-se
explicitamente, tan to na linguagem escrita quant o na oral.
O estudo das informações implícitas abrirá caminho para a investigação das
ambigüidades e vaguezas no discurso. Um discurso pode não ser claro em virtude de questões de
caráter político, por exemplo, como o corre quando as informações não são apropriadas ao
contexto ou são ‘politicamente incorretas’. Na opin ião de Van Dijk (2003, p. 67), “a ambigüidade
implica mitigação, eufemismo e, indiretamente, negação”. Muitas vezes, os enunciados ambíguos
são assim construídos para valorizar a imagem positiva do enunciador, membro de determinado
grupo social. Os sentidos que na ambigüidade se mantêm implícitos nos possibilitam
55
compreender esse tipo de comunicação da seguinte maneira: não expressamo s cla ramente u ma
opinião que seria, em determinado co ntexto, espúria, mas não deixa mos de veiculá-la
implicitamente, satisfazendo nosso desejo de reproduzir as ideologias do grupo a que
pertencemos.
O fenômeno da ambigüidade, por sua vez, abre espaço para a análise de algumas formas
de negação que costumam ser marca das ideologicamente. Van Dijk (2003, p. 64 ) apresenta um
rol dessas formas, que reproduziremos abaixo:
Aparentes: “não tenho nada contra X, mas... ”.
Concessão aparente: “Talvez seja elegante, mas...”.
Empatia aparente: “Talvez tenham tido problemas, mas...”.
Desculpa aparente: “Saberão perdoar-me, mas...”.
Esforço aparente: “Fazemos tudo o que pode mos, mas...” .
Transferência: “Não tenho nenhum problema com eles, mas meus
cliente s...” .
Culpabilização da vítima: “Não sã o eles os discriminados, somos
Nós!”.
Em to das essas formas, verificamos que há uma nega ção aparente porque só a primeira
parte nega os sentimentos negativos em relação a um grupo, ao passo que o resto do discurso
afirma aspectos muito negativos dos outros. A negação funciona, nesse caso ma is uma vez, como
uma forma de preservar a imagem positiva do grupo, uma forma de manter as aparências.
Antes de chegarmos aos elementos sintáticos da Ideologia, vale salientar outros dois
aspectos essencialmente semânt icos: a sinonímia e a ilustração. A sinoní mia pode ser lexical ou
estrutural no primeiro ca so, temos as palavras sinôni mas; no seg undo, as paráfrases. Tendo
em vista que a sinonímia perfeita não existe e que as paráfrases são expressões ou textos que têm
mais ou menos o mesmo significado, mas não exa tamente o mesmo, a análise das sinoním ias
num discurso se mostra relevante para a depreensão das crenças de grupo . Por exemplo, num
grupo de h omens que compar tilham ma is ou menos as mesma s crença s sobre as mulh eres,
56
referir-se ao outro sexo como “mulher”, “esposa”, “segundo sexo”, “pirraia” faz diferença do
ponto de vista ideológico
16
.
Qua nto às ilustrações, observa Van Dijk, de maneira muito perspicaz, que o discurso
sobre “Nós” e “Eles” se caracteriza por exemplos e ilustrações, muitas vezes na fo rma de
narrativas pessoais ou vicárias sobre “nossa s” boas obras e o mau comportamento “deles”. As
histórias, em muitos casos, servem de premissas de uma argumentação, considerando-se que
elas têm a função de apoiar outra proposição já expressa primeiramente.
No que se refere à sintaxe, mesmo ad mitindo, a partir de Van Dijk (2003), que é um nível
menos suscetível à ideologia que o semântico, gostaríamos de destacar três aspectos que podem
expressar ideologias, conforme o contexto: topicalização, ordem das palavras na frase e vozes
verbais. Salientamos que a forma, em si, não apresenta significado ideológico senão quando s e
relaciona com o significado ou com o contexto interacional.
Há topicalizaçã o quando um sintagma nominal ou verbal é deslocado para a esquerda da
oração, funcionando como ‘tópico ’ de todo o enunciado. A escolha do tópico é ma rcada
ideologicamente, a partir do contexto em que se desenvolve a interação. Quanto à disposição das
palavras na frase, valemo-nos da explicação de Van Dijk (2003, p. 70), quando diz que “a orde m
das palavras nas orações marca de diversas formas se o significado que expressamos com certas
palavras recebe mais ou menos ênfase e se essa ênfase tem implica ções ideológicas”. Esse item
está estreitamente relacionado com a topicalização, pois o lugar que ocupam as palavras na
estrutura frasal pode dizer respeito ao tópico frasal, logo à orientação ideológica. Por último, as
vozes verbais, ativa e passiva, são usadas, muitas vezes, de forma marcada do ponto de vista
ideológico. Também se trata de uma questão relacionada à topicaliza ção. Por exemplo, duas
manchetes de jornal, que versam sobre o mesmo tema “Marido mata mulher com 20 fa cadas”
e “Mulher morta por marido com 20 faca das” , implicam escolhas tópicas que geralmente
expressam a orientaçã o ideológica do s discursos.
Há outro aspecto importante para uma análise crítica, situado entre a sintaxe e as
estratégias discursivas: a modalização. Trata-se de uma marca metadiscursiva, que pode ser
tomada no sentido amplo ou es trito. Stricto sensu, os modalizadores expressam modalidades
que têm sido objeto de estudo da ló gica e da semâ ntica. São eles:
16
O termo “pirraia” expressa a forma carinhosa com que o homem jovem da classe popular nordestina trata sua
namorada. Variação de “pirralha”, corresponde ao hoje pouco usado “pequena”.
57
Modalizadores aléticos: referem -se à necessidade ou possibilidade
da existência dos estados de coisas no mund o (É impossível não se
comover com as palavra s de X.);
Modalizadores ep istêmicos: assinalam o grau de
comprometimento do locutor com relação a seu enunciado; o grau de
certeza com relação aos fatos enunciados (Evidentemente o ho mem
tem mais capacida de do que a mulh er para desenvo lver trabalhos que
exigem força.);
Modalizadores deônticos: indicam o grau de
imperativida de/possibilidade atribuído ao conteúdo proposicional ( É
preciso acabar com o machismo!).
Lato sensu, eles podem ser:
Modalizadores axiológicos: expressam u ma avaliação dos eventos ,
ações, situações a que faz menção o enunciador (Bravamente, a moça
pegou da espingarda e arregimentou mais de 100.);
Modalizadores atitudinais: correspondem à a titude psicológica do
enunciador diante dos eventos de que fala o enunciado (Infelizmente,
o Ministério da Economia foi ocupado por um parlamentar do sexo
feminino.);
Atenuadores: têm em vista a preservação das faces dos interlocutores
(Ao que me parece, nunca foi dada a oportun idade para a mulher
publicar suas obras literárias antes do século XX.)
17
.
Como se verifica, por se tratar de el ementos metadiscursivos, os modalizadores
expressam a posição ideológica do enunciador diante do conteúdo que está sendo veiculado com
e pelo enunciado.
17
Cf. Koch (2004). Os exem plos foram por nós criados, a partir de fragmentos de diversos discursos, que constituem,
antes de mais nada, estruturas de pensamento cristalizadas.
58
Quanto às p roposições no nível geral do discurso, algumas dela s se expressam em orações
que podem situar-se no princípio ou no final. Geralmente as proposições que se situam no
princípio do discurso têm mais ênfase: entendemo-las primeiro; porta nto, elas controlam
melhor a interpretação do resto do texto. O m odo em que se constrói um discurso é, pois,
ideolog icam ente releva nte.
A partir da apresentação dos elementos discursivos que podem vir marcados
ideolog icam ente, tratar emos, a seg uir, da re laçã o entr e ideo log ia e art es.
2.2. A ideologia nas artes
O termo estética provém do g rego aisthesis e significa todo o domínio da percepção e das
sensações humanas, em contraste com o domínio mais á rido do pe nsam ento conc eitual . Da raiz
da palavra, aisth, deriva o verbo grego aisthanomai, que significa “sentir, mas não com o coração
ou com os <sentimentos>, mas sim com os sentidos, com a rede de percepções físicas” (B
ARILLI,
1994, p. 18). O termo foi cunha do, como se sabe, por Baumga rten e trai, em sua etimologia, um
discurso sobre o corpo, sobre os aspectos psicofísicos inerentes à experiência estética.
Baumgarten (1993) parte do étimo para construir o que chama de uma “ciência do conhecimento
sensitivo”.
A distinção que o termo estética estabelece inicialmente não é entre a arte e a vida, mas
entre o material e o imaterial: experiência dir eta com as coisas, de um lado, e p ensamentos, de
outro. Trata-se de um território que constitui
nada mais do que a totalidade da nossa vida sensível o movimento de nossos
afet os e av ersõ es, de c omo o mun do atin ge o cor po e m sua s su pe rfíc ies
sensoriais, tudo aquilo enfim que se enraíza no olhar e nas víceras e tudo o que
emerge de nossa mais banal inserção biológica no mundo. (E
AGLETO N, 1993, p.
17)
Ela é a dimensão do humano que a filosofia pós-cartesiana se empenhou em ignorar.
Uma das teses que Eagleton (1993) sustenta — e com a qual nos afinamos — é que a
estrutura polít ica de uma socieda de interfer e dire tamente nessa área mais ta ngível do “vivido” ,
em tudo o que pertence à vida somática e sensual de uma sociedade. E uma de suas hipóteses é
59
que “os caminhos misteriosos” da experiência viva de algum modo po dem ser mapeáveis pela
intelecção, o que teria gerado uma ciência completamente nova, a c iência da sensibilidade. Po r
exemplo, o discurso da estética, que germinou a partir do século XVIII, não teria se mostrado
como um desafio à autoridade política, mas pode ser lido como sintoma do dilema ideológico
inerente ao poder absolutista. Baumgarten teria resolvido esse dilema de forma notável,
procurando estabelecer um equilíbrio delica do entre o racional e o sensível. “Para Baumgarten, a
cognição estética é mediadora entre as generalidades da razã o e os particulares dos sentidos: a
estética é um domínio da existência que participa da perfeição da razão, mas de um modo
‘confuso’” (E
AGLETON, 1993, p. 18). “Confusão” significa, nesse contexto, fusão, interpenetração
orgânica entre o elemento racional e o s ensível. Não significa que o d iscurso resultará obscuro,
pelo contrário, “qua nto mais ‘confusas’ ela s [as representações expressas pelo disc urso] são
quanto mais unidade-na -variedade elas produzem mais claras, perfeitas, determinadas, elas se
tornam” (E
AGLETON, 1993, p. 19). Percebe-se, dessa forma, que a exper iência do “vivido” nã o
escapa às determinações ideoló gicas. Mas, concomitantemente, ess e tipo de experiência é capaz
de subverter a o rdem política, determinando, por sua vez, as ideolog ias. A relação é, pois,
dialética.
Outro exemplo que podemos oferecer é o caso do movimento estético
Realismo/Naturalismo. Consid eramos que a linguagem, especifica mente na criaçã o do tex to
literário, é infinitamente produtiva. A tendênc ia realista da estética tende a reprimir essa
produtividade no “fechamento” (oclusã o) do te xto. O pensamento, marcado pela “estabilidade
ideológica”, reprime as forças “desagregadoras”, “d escentrada s” da língua, em nome d e uma
unida de ima gin ária . Na s pa lavra s de Ea glet o n (19 97 , p. 174 ),
o processo de forjar “representações” sempre envolve ess e fechamento
arbitrário da cadeia signi ficante, restringind o o jogo livre do sign ificante a um
significado espuriamente determinado qu e pode então ser recebido pelo sujeito
como natural e inevitável. [...] a representação ideológica envolve reprimir o
trabalho da linguagem, o processo material da produção significante subjacente
a esses significados coerentes e que, potencialmente, sempre pode subvertê-los .
Ainda no que concerne à relaçã o entre arte e ideolog ia, consider aremos a “prática
intersemiótica”, tal como foi discutida por Maingueneau (2005). Ele parte do modelo da
formação discursiva (F
OUCAULT, 1996) como um “sistema de restrições” para defender que se
60
trata de um modelo aplicável não apenas aos objetos lingüísticos, mas a qualquer tipo de
organização de sentido. Como salienta Maingueneau (2005, p. 145), “os diversos suportes
intersemióticos não são independentes uns dos outros, estando submetidos às mesmas
escanções [sic.] históricas, às mesmas restrições temática s etc”. As noções de “escola” e
“movimento” na estética, por exemplo, constituem um conjunto de crenças sobre a arte, que não
podem estar imunes a determinações ideológicas. A formação discursiva que constitui a estética
romântica entra em conflito com a que constitui a estética neoclássica ou parnasia na. A luta
ideológica é travada pelo conflito entre conceitos distintos, que expressam as crenças dos
membros de cada comunidade intelectual/estética . Portanto, é relevante invest igar as relações
entre as diversas artes e entre as artes e os sistemas lingüísticos de produção conceitual, a fim de
mapear as influências ou correspondências ideológicas. Essa hipótese le va Maingueneau (2005,
p. 146) a formular a seguinte proposição: “O pertencimento a uma mesma prática discursiva de
objetos de domínios intersemióticos diferentes exprime-se em termos de conformidade a um
mesmo sistema de restrições semânticas”. Ou seja, as produções disc ursivas de diversas ordens
são, num dado momento histórico, suscetíveis senão de todas, mas de muitas das restrições
semânticas.
A noção de texto precisa, nesse caso, ser e-5.2(d), os
61
essa mesma medida? A escolha desses crité rios não implica ria uma opçã o subjetiva? Ninguém
pode afirmar que o seu prazer estético é melhor ou maior do que de outra pessoa. Ninguém tem
a última palavra nesse caso. Não há critérios de comparação racionalmente aceitáveis para
hierarquizar o prazer dos sentidos. O valor da obra vem a ser legitimado, a nosso ver, pelas
Universidades, pelas críticas especializada e jorna lística, por exemplo, a partir de critérios qu e
são significativos para momentos históricos determinados. Começamos a ter uma idéia do que é
o valor consensual de uma obra quando articulamos os diversos depoimentos que vários autor es
já produziram sobre ela, em locais e tempos diferentes.
A propósito da discussão, vale confer ir as lúcidas palavras de Magaldi (2003, p. 26):
Não se pense que os ideais estétic os sejam eternos. Cada época tem as
suas necessidades, eminentemente variáveis. O valor de um momento é
demérito de outro. Shakespeare reinou absoluto, no fim do século XVI e in ício
do século XVII inglês, sofrendo, depois, quase dois séculos de ostracismo. Sua
grandeza confundiu-se com indisciplina, para os padrões do século XVIII. Até
que o romantismo reabilitou-o, colocando-o inquestionavelmente no centro da
criação artística. Para os nossos valores, ele é ainda o exemplo do gênio
completo, não só do teatro. É possível, porém, que gerações vindouras, fincadas
em preceitos diferentes, consagrem outros méritos, elevando ao primeiro plano
nomes que para nós ainda habitam o purgatório. Seria erro de alguém? Foram
ceg os os que não pe rceb er am a genia lid ade de Shakespeare? S eremos obtusos
nós, que não estamos enxergando a excelência de alguém a ser reconhecido no
futuro? Esse jogo de brilho ou hibernação faz parte da Hisria e é tolice querer
negá-lo, ainda que se tente, de todas as formas, minimizar seus efeitos.
Bem se vê que a perspectiva essencialista da arte não é mais sustentável. Não há
nenhuma essência do “belo” que faz a obra “transcender” seu tempo e “ficar para a posteridade”.
Defender a “perenidade” espontânea de uma obra, pelo seu “valor intrínseco”, revela um viés
dogmático para o qua l faltam argumentos teór ico e empirica mente razoáveis. É, pois, important e
que estejamos atentos à distinção entre a arte como discurs o(s) e o(s) discurso(s) sobre a arte.
Em ambos os domínios, verificamos graus de restrições a partir de práticas discursivas
determinadas. No entanto, é importante salientar que a prática artística, p ela sua própria
natureza ambígua, socialmente construída, apresenta condições materiais para questionar as
62
ideologias dominantes e propor no vas formas de conceber o mundo, também estas marcadas
ideolog icam ente. É o qu e d iscut irem os a se guir, no que se refere, espec ifica mente à literatura .
2. 3. Discurso literário e ideologia
No capítulo anterior, tratávamos da literatura como uma produção ideo lóg ica, na acepção
que Bakhtin (1981a) dá ao termo, ou seja, uma produção significativa realizada por sujeitos
sociais e históricos. Foi necessário refletir sobre a relação dialética entre literatura e sociedade, e
sobre como os elementos que compõem os diversos valores sociais se encontram materialmente
presentes no discurso literário. Vamos expandir um pouco mais a discussão e refletir sobre a
relação dialética entre literatura e ideologia.
Como declaramos no capítulo anterior, a literatura é uma produção social que tem a
linguagem como material de trabalho. Somente esse fato ser ia suficiente para flagrarmos o
caráter ideológico da literatura, uma vez que não podemos conceber a l inguagem como uma
realidade deslocada do contexto ideológico em que se desenvolve. Lembr a Bakhtin (1990) que
todo produto ideológico é uma parte da realidad e social material em t orno do
homem, um aspecto do horizonte ideológico materializado. Qualquer coisa que
uma palavra possa significar, ela está antes de mais nada materialmente
presente, como coisa enunciada, escrita, impressa, sussurrada ou pensada. Ela
estabelece uma relação entre indivíduos, que é objetivament e expressa nas
reações combinadas das pessoas: reações em palavras, gestos, atos,
organizações etc. O intercurso soc ial é o ‘medium’ no qual o fenôm eno
ideológico primeiro adquire sua existênc ia específ ica, seu significado ideológ ico,
sua natureza semiótica.
Admitindo que a ideologia só pode ser entendida como realidade sígnica existente na
interação social, podemos dizer, a partir da metáfora usada por Bakhtin, que a arte seria um dos
troncos sígnicos da dimensão ideológica, sendo a literatura um dos ramos, o que não significa
que toda obra literária expressa claramente um corpo de idéias relativamente homogêneo. Antes
de tudo, a ideo logia nã o pode ser conceb ida como um co njunto de idéias conscientement e
veiculadas e reproduzidas. Pelo contrário — e nisso a concepção de ideologia em Marx ainda faz
eco aos estudos contemporâneos sobre o tema — a ideologia está sobretudo no que não é visto,
no que subja z e organiza toda e q ualquer atividade discursiva. Mas a dimensão ideológica, que
63
isto fique bem claro, só poderá ser objeto de investigação se tomarmos o discurso como o seu
suporte inalienável.
Encontramos em Eco (1991), no capítulo intitulado “Do Modo de Formar como
Compromisso com a Realidade”, uma visão lúcida quanto à relação entre as formas artísticas e a
ideologia, que nos ajudará a compreender a dimensão ideológica da literatura. Para o semiólogo
italiano, a arte contemporânea o pera, no nível das estruturas forma is, uma contínua
remanipulação da linguagem adquirida e es tabilizada, bem como dos tipos de ordem
consagrados pela tradição. Poderia parecer, portanto, ao crítico de arte que, deslocando sua
atenção para os problemas da estrutura, a obra de arte renuncia a fazer um discurso sobre o
homem , perd endo-se num a vazia abst ração. No ent anto, não po demos nos esqu ecer de que es se
discurso sobre o homem de que trata o crítico de arte corresponde a um tipo de ordem discursiva
[forma tiva] que ser via p ara falar d o homem d e ontem. “Romp endo esses módulo s de orde m, a
arte fala do homem de hoje, através da maneira pela qual se estrutura” (E
CO, 1991, p. 255). Para
falar do homem e do mundo, a arte não se restringe a conteúdo s explícitos sobre o tema: ela o faz
dispondo suas formas de maneira determinada. O conteúdo da obra só poderá ser construído a
partir da sua materialização na forma artística, e é nesse nível q ue deverá ser conduzido o
discurso sobre as relações entre arte e mundo.
No caso da narrativa literária, por exemplo, começar descre vendo as circunstâncias que
envolvem a ação (espaço, temp o, personagens) para apresentar o conflito, c ujos motivos se
sucedem numa relação causal até chegar a um desfecho, implica que se acredite numa
determinada ordem do s acontecimentos, numa determinada concepção de o rdem do mundo,
refletida na linguagem, que serve apenas para expressar uma interpretação da realidade.
A literatura organiza palavras que significam aspectos do mundo, mas a obra
literária significa o mundo em si através da maneira como essas palavras são
organizadas, aind a que, tomadas isolada mente, signifiquem coisas sem sentido,
ou então acont ecimentos, relações entre ac ontecimentos que parecem nada ter
em comum com o mundo. (E
CO, 1991, p. 258-259)
É sobre esse aspecto que nos debruçaremos para estudar a obra literária como produção
ideológica.
Tal premissa nos possibilita reagir à visão de que a literatura fo ge à ideologia, uma vez
que ela subverte os sistemas de poder. É inegável que o discurso literário, a partir de uma
64
liberdade aparente de que goza o escritor, se mostra como um discurso de resistência (cf. BOSI,
1993), mas esse discurso não deixa de estabelecer, pelo seu caráter avaliador, um conflito de
ordem ideológica.
Podemos citar o projeto estético-ideológico empreendido por Brecht (2005, p. 31), que
propõe substituir uma dramaturgia aristotélica por uma dramaturgia não-aristotélica, como
vemos no quadro abaixo:
Forma dramática de teatro Forma épica de teatro
A ce na “p ers onifi ca” um a conte cim ento na rra -o
envolve o espectador na ação e consome-lhe a
atividade
faz dele testemunha, mas desperta-lhe a atividade
proporciona-lhe sentimentos força-o a to mar decisões
leva-o a viver uma experiênci a
proporciona-lhe visão do mundo
o espectador é transf erido para dentro da ação
é colocado diant e da aç ão
é trabalhado co m su gestões é trabalhado co m argumentos
os sentimentos permanecem os mesmos
são impelidos para uma con s cientização
parte-se do princípio que o homem é co nhecido o homem é objet o de análise
o homem é imut ável
o homem suscetível de ser modificado e de
modificar
tensão no desenlace da ação
tensão no decurso da ação
uma cena em função da outra
cada cena em função de si mesma
os acontecimentos decorrem linearmente
decorrem em curva
natura non facit saltus
facit saItus
(tudo na natureza é gradativo)
(nem tudo é gradativo)
o mundo, como é
o mundo como será
o homem é obrigado
o homem deve
suas inclinações
seus motivos
o pensamento determina o ser
o ser social determina o pensamento
Brecht, dra maturgo, poeta, encenador e teórico do teatro, é herdeiro do teatro político de
Piscator e concebe o fenômeno teatral como um instrumento poderoso para intervir
politicamente sobre a realidade concreta. Sua extensa obra dramatúrgica é heterogênea,
consider ando -se qu e o autor p assou pelo est ilo ex press ionis ta, p elo teatro didático , dialét ico ,
épico.
65
Como podemos ver no qua dro exposto, a na tureza ideológica da dramaturgia épica, que
se contrapõe a uma dramaturgia de tradição aristotélica, não está no conteúdo da obra, entidade
abstrata quando separada da forma, nem tampouco apenas nos temas escolhidos, tal co mo
muitos exeg etas fazem crer. O cará ter ide ológ ico de um a tal estét ica es tá pre cisam ente no seu
nível formal: tratamento das persona gens, das ações; disposição dos argumentos; etc. Tudo isso
implica uma forma de ver o mundo e os sujeitos sociais que se contrapõe ao mundo “fechado”
que costumava ser expresso pela dramaturgia aristotélica. Não satisfeito com esta forma de
expressão, Brecht experimenta desconstruí-la e construir uma estrutura textual que alcance seus
objetivos políticos. É, nas palavras do teórico, o ser social determinando o pensamento.
Como se vê, o tema Ideologia traz inúmeros aspectos, muitas vezes conflitivos, de forma
que não podemos esgotá-lo em poucas páginas. Como dissemos, a dimensão ideológica do
discurso é condição i mperiosa para o trabalho in vestigativo do an alista crítico. Tenta mos
estabelecer, neste capítulo, alguns princípios norteadores que procuraremos seguir na análise
crítica do discurso literário, espe cificamente no que tange às ideologias masculinas. Para
entendermos um pouco mais sobre essas ideologias, buscaremo s, no próximo capítulo,
apresentar uma concepção do que chamamos discursos masculinos e uma leitura crítica das
ideologias que constroem estes discursos.
66
3. Masculinidade em Questão
Leio escritores gays, vejo filmes com temáticas gays,
freqüento ambientes GLS e ainda acho homens bonitos ou
feios. E, por incrível que para alguns pareça, eu não sou
gay.
Hoje eu estava escrevendo uma reportagem pela
manhã no jornal, quando um colega me interrompe para
perguntar:
— Você é gay?
Digo que não, que sou hetero e pergunto o que levou a
fazer tal indagação.
— É que eu vi na sua mesa um livro do Caio Fernando
Abreu (“Morangos Mofados”). Geralmente quem lê este
escritor é gay.
— Ah, então eu devo ser. Porque considero o Caio um
dos meus contistas prediletos. E também gosto de
Trumam Capote, que era homossexual. E de Gay Talese,
que não sei se é gay, mas tem um nome meio suspeito.
— Não, claro que você pode ler o Caio, mas é que meu
cunhado é gay e na estante dele tem todos os livros dele.
(LEIJOTO, Márcio. Eu não sou gay..
http://tipos.com.br/marcio/eu-nao-sou-gay ,
consultado em 14.05.2006)
Os estudos sobre gêneros, desde o século passado, sobretudo, vêm se dedicando, em sua
grande maioria, à s questões que envolvem a natureza psicofísica das mulheres, seus direitos e
funções na sociedade e o contexto ideológico das relações sociais em que estão ins eridas
18
.
Muitos desses estudos, de caráter eminentemente político e ideológico, acompanharam e dera m
suporte à luta travada pelas mulheres para a aquisição de direitos sociais iguais aos dos homens.
A revolução sexual deixou grandes marcas nas sociedades ocidentais nacada de 1960 e trouxe
implicações político-econômicas consideráveis para as décadas futuras. Nos meios acadêmicos,
uma série de discursos de e sobre a mulher começou a ser produzida, o que veio a abalar o status
quo instituído por uma sociedade marcada até então pela dominação masculina. Com isso,
muitos direitos foram conquistados pelas mulheres, de tal forma que, não obstante o privilégio
18
Usamos o termo gênero no mesmo sentido em que é utilizado por Cecchetto (2004, p.53), ou seja, “construções
sociais e psicológicas que se impõem sobre as diferenças biológicas”.
67
social que ainda é concedido aos homens, o quadro social em várias sociedades no Ocidente está
bastante modificado , to mando como parâmetro o co ntexto sócio-político do início do século XX.
Diante de ta ntas transforma ções pelas quais passaram as várias sociedades em questã o,
como ficou representado o gênero ma sculino nas relações sociais e políticas? Poucos estudos, no
entanto, vêm se dedicando ao tema, se compararmos com a grande quantidade de trabalhos
realizados sobre a mulher. A masculinidade, que parecia um fenômeno “evidente” e
“inquestionável”, começou a ser discutida primeira mente entre as mulheres. Se não fossem as
discussões promovidas pelas feministas, especialmente a partir da década de 1960, o inter esse
pela masculinidade como objeto de estudo não teria sido desperta do (cf. C
ECHETTO, 2004, p.51).
Tais estudos permitiram o exa me crítico das desigualdades sexuais baseadas na diferença entre
os sexos, desmis tificando as noçõ es do que era “na tural” na vida de homens e mulheres. O
enfoque dado à masculinidade era justificado, as ma is das vezes, para compreender a situação da
mulher numa sociedade hegemonicamente androcêntrica.
O primeiro investimento dos estudos feministas sobre a questão da sexualidade, como o
de Rosaldo e Alme ida (apud C
ECCHETTO, 2004), foi proceder à revisão crítica das principai s
teorias de caráter essencialista e biológico, que associavam o gênero à sexualidade e concebiam
como “inevitável” e “natural” a subordinação das mulheres ao homem. Constatou-se que os
modelos essenciali stas de pensamento social não consid eravam o conte xto histórico e cult ural
para compreender a questão do gênero (cf. R
OSALDO apud CECCHETTO, 2004). O sexo biológico
costumava ser usado pelos sistemas sociais para organizar e explicar os papéis e oportunidades
que homens e mulheres desfruta vam em sociedade.
Est udos sobre a construção social da masculinidade, sobre os valores sociais positivos
atribuídos ao gênero masculino e sobre as transformações pelas quais vêm p assando o homem
ocidental na contemporaneidad e começaram a despontar, muito timidamente, nos anos 70. Mas
foi principalmente na década de 1980 que começou a surgir, sobretudo nos países anglo-saxões,
uma antologia de textos sobre o tema, assinados por homens que se diziam vinculados ao
movimento feminista. O ponto de partida desses autores era a idéia, já desenvolvida pelos
estudos feministas, de que a masculinidade e a feminilidade são fenômenos co nstruídos
socialmente e, por isso, são históricos, mutáveis e relacionais. Tal empreendimento ficou
conhecido como Men’s Studies. Contra o fa lso universalismo que revestia os papéis sexuais
masculinos, esses autores costumava m reconhecer que “há uma diversidade de estilos ou tipos
de masculinidades, cada um deles correspondendo a diferentes inserções dos homens nas áreas
da política, da economia e da cultura , entre outras” (C
ECCHETTO, 2004, p.57). O s men’s studies se
68
valem de diferentes disciplinas acadêmicas, como História, Biologia, Filosofia, entre outras, para
a construção do seu objeto de pesquisa.
A principal crítica a que os men’s studies estão sujeitos recai sobre o acentua do enfoque
que esses estudos dão à q uestão dos papéis sexuais, ou se ja, do “conjunto de valores e atitudes
socialmente determinados, correspondentes às representações e expectativas do ser homem e do
ser mulher em todas as sociedades” (C
ECCHETTO, 2004, p.58). A partir dessa concepção, o
masculino e o feminino são tomados como pontos de referência opostos entre si. Esse binarismo
revela uma tendên cia funcionalista, q ue pode le var à interpretação de que o homem e a mulher
têm uma essência ontológica diferente.
Não podem os concordar com essa abordage m funcionalista do tema, uma vez que,
isolando os papéis sexuais, deixa de analisar a dinâmica e as inter-relações entre os gêneros, tão
necessárias para o entendimento do que vem a ser o masculino e o feminino. Um estudo profícuo
sobre a masculinidade deverá possibilitar a compreensão das “experiências concretas dos
homens e sua s práticas possíveis” (C
ARRIGAN, CONNEL & LEE apud CECCHETTO, 2004, p.60), e
esse resultado não pode ser al cançado se adotamos uma perspectiva dicotômica na a nálise da
questão.
Na tentativa de ultrapassar os limites de uma perspectiva funcionalista no tratamento do s
gêneros, surgiram alguns estudos, norte-americanos em sua maior ia, preocupados com o
fenômeno que chama ram de “crise da masculinidade”, ou seja, o desco nforto de alguns homens
diante de padrões culturais rígidos, que fazem do fato de ser homem um fardo pesado. No Brasil,
um dos representa ntes dessa tendência é Tr evisan, que e m seu livro Seis balas num buraco só
faz uma análise do “pesado fardo de ser homem, com obrigação de ter coragem sempre, mostrar-
se durão, enfrentar o mundo através da força” (T
REVISAN, 1998, p. 14). O aut or parte de algu ns
fatos brasileiros especificamente relacionados com a violência masculina extrema para
questionar se a violência é algo inerente ao sexo masculino ou se os homens cometem certos atos
de violência incomuns em virtude da crise que os valores sociais do masculino vêm sofrendo nas
últimas décadas, e que os afeta diretamente. Optando pela segunda a lternativa, Trevisan passa a
investigar o mito da mascul inidade, recorrendo, muitas vezes, a categorias psicanalíticas como
falo, castração e androginia para compreend er o poder que foi culturalmente concedido ao
homem. Muitos homens na sociedade pós-industrial não conseguem atender às expectativas que
a sociedade tem do masculino. Instaura-se, portanto, uma contra dição entre a imagem do
“macho”, tal como é representada socialm ente, e as reais condições de vida dos homens, o que
pode gerar uma série de distúrbios psicológicos.
69
O estudo de Trevisan (1998), assim como dos autores que se filiam a essa linha de
pesquisa, tendem a uma perspectiva psicanalítica — e um tanto quanto universalista — que foge
aos propósitos de nossa pesquisa, que é investiga r, mediante a produção estética de textos
dramáticos, a construção social e histórica do masculino e as diversas formas de os homens
exercerem sua masculinidade na sociedade contemporânea, razão por que não nos deteremos
em analisá-los.
A análise de discursos do e sobre o masculino que realizaremos terá um en foq ue c rít ico;
para tanto, procuraremos estabelec er uma conexã o entre investigação científica e estratégias de
mudanças sociais, focalizando a vida cotidiana como um contexto em que se desenvolvem e se
transformam as crenças sociais sobre o que vem a ser homem.
A questão do masculino será enfocada, no pr esente trabalho, a partir da Idade Moderna ,
com o desenvolvime nto das sociedades burg uesas ocidentais, que irão trazer um novo s entido
para a imagem social do homem. Para tratar da questão no cont exto da sociedade brasileira,
precisaremos, primeiramente, compreender co mo a socieda de européia construiu, na era do
capitalismo, uma imagem particular do homem, a fim de atender aos objetivos político-
econômicos da burguesia.
3.1. Gênese do mito moderno da masculinidade
Pedro Paulo de Oliveira (2004) discute a construção social da masculinidade numa obra
que, por ora, merecerá nossa atenção.
O autor parte do princípio de que a ma sculinidade não consti tui algo concreto ou
palpável; trata-se de um fenômeno que participa ativamente nos processos de subjetivação dos
agentes sociais. Para Oliveira (2004, p. 15),
a masculinidade articula e constitui um dos estratos da região do socius, esse
espaço-processual ou processo-espacializa nte dinâmico, intangível, mas efetivo,
que compreende todos os objetos da vida social (agentes, leis, instituições,
símbolos, valores etc.), ao lado ou mesmo articulada a outros como
nacionalidade, religião, profissão, grupos de status, posição de inserção s ocial,
região de orig em, etnia, grupo de idade etc.
70
É uma crença que tem o poder d e construir e orient ar juízos percepti vos, cognitivos e estéticos;
estabelece um conjunto de prescrições quanto aos comportamentos sociais e contribui
decisivamente pa ra a formação de identidades sexuais, que se pretendem fixas, estáveis e
naturais, tornando-se, portanto, elemento fundamental pa ra a subjetivação dos agentes sociais
em sociedades ocidentais.
Partindo, dentre outras fontes, do respeitável estudo de George Mosse, Oliveira apresenta
fatores que deram origem a o ideal moderno de masculinida de na pa ssagem da sociedad e
medieval para a moderna. Dentre eles, destacam-se a fo rmação do Estado nacional moderno e a
criação de instituições específicas, como o exército. Os ideais burgueses de ma sculinidade
revelam valores calcados na dinâ mica do merca do, na personalidade mo derada e no culto d a
ciência metódico-racion al. Obser ve-se que, dessa maneira, o mito do masculino influenc ia,
reciprocamente, o grupo de instituições sociais que possibilitou sua em ergência.
Muitos valores atribuídos ao homem medievo, tais como lealdade, probidade, correção,
coragem, bravura, sobriedade e perseverança, mantiveram-se na era moderna, mas com algumas
transformações: coragem e bravura, por exemp lo, vão perdendo o caráter de violência explícita,
como se percebia nas contendas entre cavaleiros medievais, e ganhando contornos m arcados por
imperativo s mora is essenciais. Assim sendo, na dinâmica das relações sociais, através da
introjeção dos imperativos morais, emerg e a personalidade do homem burguês por excelência,
caracterizada pelo autocontrole e pela contenção das violentas expressões emocionais, típicas da
nobreza de espada.
Com a emergência das revoluções burguesas, que g rassaram na Europ a entre os séculos
XVIII e XIX, surgiu a necessidade de delimitar o território nacional e de se cultivar um espírito
nacionalista. Conforme Hobsba wm (2000, p. 126), “a lemães, italianos, húnga ros, poloneses,
romenos e o resto afirmara m seu direito de serem Estados independentes e unidos, envolvendo
todos os membros de suas nações contra governos opressore s”
19
. O fenômeno “nação”, apesar da
sua complexidade, era aceito como uma noção tão evidente por si mesma, que nunca chego u a
ser, durante esse período, objeto de discussão. Sentia-se a necessidade de se formarem Estado s
soberanos, “com território coerente, definido pela área ocupada pelos membros da ‘nação’, que
por sua vez era definida por sua história, cultura comum, composição étnica e, com crescente
importância, a ngua” (H
OBSBAWM, 2000, p. 127-128). A fixação dessas nações não foi tarefa
fácil, como ficou evidente pelos acontecimentos históricos: se, por um lado, havia as nações cujos
19
Hobsbawn (2000; 2001) oferece um rico material de estudo para a compreensão da “era das revoluções” e da “era
do capital”, a partir das quais se desenvolve a necessidade dos Esta dos de se tornarem nações, adotando princípios de
nacionalidade.
71
territórios eram inquestionáveis, por outro, encontravam-se a lgumas acerca das quais se tinha
uma boa dose de incerteza.
A consti tuição e manutenção da autonomia e soberania de uma nação — constituição dos
Estados Modernos — exigiam a criação de ex ércitos nacionais, que detinham o monopólio do uso
da força. Os ideais revol ucionários n ão se restring iam, na França pelo meno s, à tríade egalité,
liberté e fraternité: consistiam também no sacrifíc io da vida em nome do amo r à nação. Os
soldados tinham de demonstrar sua devoção ao país por meio da virilidade e de atos de coragem ,
a fim de se mostrarem aptos a defender o Estado. O ethos guerreiro e varonil da expedição de
Ciro, o persa, que Xenofo nte já elogiara no século IV antes da era cristã, se d issemina pelo
imaginário social e passa a ter, nos Estados modernos, grande valorização nacional
20
. Evidencia-
se, então, a forte relação entre o nacionalismo, o militarismo e a masculinidade. À diferença do
olhar grego de Xenofonte, que realçava as virtudes varonis dos solda dos na defesa da Pérsia, o u
seja, o caráter destemido dos soldados persas e a sua relação com o Esta do, as nações modernas
valorizam o comportamento viril dos soldados como relativo ao do Homem Moderno, categoria
dotada de grande valor social. O Estado nacional passa a se sustentar sobre uma base ideológica
sólida, que pode ser resumida nas seguintes palavras: potência, poder e posse. Lidar com o
perigo era uma atitude associada à autêntica masc ulinidade, e todos os homens deveriam estar
preparados a lidar com os prováveis reveses.
No século XIX, o campo de batalha se torna um espaço privilegiado para se modelar o
corpo e o espírito de um autêntico “varão”. De acordo com Mosse (1996, p. 23), habilidade e
destreza físicas sempre f oram requisitos prezados para se defender a honra, “mas agora a nova
sociedade em formação visava o corpo masculino integral como exemplo de virilidade, força e
coragem, expressas mediante postura e aparência apropriadas”. Ainda conforme o autor, em
tempos anteriores ouvia -se falar de uma postura varonil, mas raramente da aparência física .
Nunca antes se tinha tomado o corpo masculino como modelo para avaliar condutas as mais
diversas. A aparência, inegavelmente, sempre foi levada em consideração (na Idade Média e no
início da Idade Moderna, por exemplo, o vestuário, estabelecido pelo código da realeza, foi signo
de posição e status, assim como o comportamento cortês, tomado como referência de boa
conduta), todavia o que era apresentado, inicialmente, de modo fragmenta do torna-se, nos
tempos modernos, mais siste matizado, organizado numa totalidade na qua l o corpo — e não
meramente o vestuário ou hábito cortês — passa a ser o foco de atenção, juízo de valores,
conforme determinado padrão de beleza estabelecido. Fo rmou-se, portanto, um estereótipo que
determinaria as percepções sobre o masculino na era moderna. Aspectos visuais, como a força e
20
Sobre Xenofonte, cf. Jaeger (2003, p. 1214-1252)
72
a beleza corpórea do homem, se tornaram símbolos de sociedade e de nação. Na concepção de
Mosse (1996), o ester eótipo da masculinidade modern a foi construído sobre um ideal de beleza
corpórea, simbolizando atributos que o verdadeiro homem deveria possuir.
A título de exemplo, no século XX, entre a s duas guerras mundiais, o slogan comum nas
propagandas militares soviéticas e nazistas, simultaneamente, era: “Homens rijos, com postura
ereta e olhar petrificado”. A relação entre nacionalismo e corpo masculino mostra-se flagrante.
Observe-se, além disso, que o ideal de masculino correspondia à necessidade de ordem e
progresso das sociedades ocidentais modernas. Esse mesmo ideal foi cooptado pelo
nacionalismo moderno, que imprimiu ao estereótipo um poder adicional de base.
Seguindo as diretriz es da ideologia burguesa, a educação dos jovens na Alemanha nazista
se pautava no autocontrole, na disposição ao sacrif ício e n um el evad o s enso de h onra , po r um
lado; na lealdade, camarad agem, obediência, disciplina e coragem, por outro (cf. O
LIVEI RA,
2000). Os fascistas, por sua vez, contrapunham a agressividade frente ao guerreiro e a
obediência aos superior es, atitudes que se d evem prezar no ho mem militar i taliano, contrário à
lassidão, à preguiça, à lascívia, à decadência. Sali ente-se que a ma sculinidade estaria
autenticamente localizada no ambiente guerreiro.
O socialismo soviético, apropriando-se desses valor es particulares da masculinidade
burguesa, acrescentou outra fa ce fundamental ao mito: o soldado guerreiro deveria ser o modelo
do trabalhador exemplar e respo nsável, paradigma do home m autêntico.
Em momentos de cr ise política e social, esses valores da masculinida de passam a ser
ressaltados, chegando-se ao ponto de os modelos viris serem quase divinizados como os únicos
capazes de liberar a nação dos movimentos trá gicos e monstruosos.
Já se percebem duas representações, apa rentemente antagônicas, sobre o masculino: de
um lado, o guerreiro heróico ; do outro, o homem come dido, sereno, protótipo do pa i de família
trabalhador. Tem razão Oliveira (2004) ao identificar esse aparente antagonismo. Na verdade,
não se trata de comportamentos excludentes e impossíveis de s erem ressaltados
simultaneamente. A nação burguesa precisava cultivar o ethos guerreiro que caracterizaria os
atributos agressivos e bravos do homem, necessários à proteção do Estado, mas também o ideal
do homem trabalhador, produtor de mercadorias e legítimo provedor da família. O equilíbrio da
nação burguesa seria alcançado a partir da convivência dessas duas representações.
Apesar de verificarmos a formação, nos séculos XVIII e XIX, de Estados-nações laicos,
não podemos deixar d e considera r a importante co ntribuição da r eligião judaico-cristã na
sedimentação dos ideais burgueses de masculinidade. Ela se incubia de p romover a moralidade
73
marcadamente burguesa, ao passo que ao exército e aos esportes ficava a responsabilidade de
cultivar valo res ma sculino s para a educ ação da virilid ade (cf . O
LIVEIRA, 2000). Segundo Costa
(2002), o código napoleônico, que defendia a liberdade jurídica e política do cidadão, não podia
ir de encontro à ordem social burguesa na França. Os ideais revolucionários, com suas fantasias
intelectuais, precisavam conviver com os interesses burgueses de raça, classe e as aspirações
imperialistas e nacionais. A liberdade só se constituía plenamente q uando obedecia à liberdade
moral. Foi nessa senda que se infiltrou a Igreja, com sua moral baseada nas relações
monogâmicas, abençoadas por Deus. O casamento civil e religioso se tornou uma das principais
instituições que me lhor serviram para cultivar e sse tipo de moralidade. Valores morais como a
contenção e o autoco ntrole eram requisito s fu ndament ais pa ra o ch efe de famíl ia.
Ao contrá rio das relações familiares na era medieval, a família se constituía agora como
organismo pertencente à esfera privada. Passa a ter estr utura e função condizentes com a s
aspirações da ordem política burguesa, que reforça a assimetria de poder no seio do grupo
familiar. Há uma separaçã o radical das funções entre homens e mulheres e, cons eqüentemente,
uma valorizaçã o do elemento ma sculino na dinâmi ca das relações sociais. À mulher estariam
reservados os serviços e as obrigações condizentes com a esfera da vida privada; ao homem, as
tarefas da vida pública, a esfera do poder político-econômico. É essa organização sistêmica das
relações sociais, baseada na cisão radical entre esfera pública e esfera privada, e os respectivos
valores atribuídos a cada uma, que tornará a estrutura familiar moderna marcada mente
burguesa. De acordo com Gerson (apud O
LIVEIRA, 2000, p.50), “a família [burguesa] moderna
tornou-se sinônimo de uma diferenciação exarcebada entre os sexos, de uma glorificação do laço
mãe-filhos e de uma expectativa de que os homens sustentassem suas esposas e crianças”. Uma
série de instrumentos ideológicos contribuiu para reforçar esse quadro familiar: leis civis,
princípios religiosos, romances populares que reproduz iam o estereótipo do ser masculino e do
ser feminino. N esse contexto , quanto mais o ho mem fosse vir il e a mulher feminina , conforme
valores burgueses, mais saudável seria o Esta do.
Quanto às leis, instauraram-se dispositivos para legitimar o casamento civil, que só seria
reconhecido pelo Estado se fosse realizado a partir da união heterossexual, concedendo aos
agentes de sexos distintos o direito ao exercício da prática sexual com finalidades reprodutoras.
Conforme Oliveira (2004, p. 69),
cinco características norteiam a constituição de leis referentes aos aspectos da
vida sexual dos agentes no final do século XIX: sexo é algo natural; o natural é
74
sempre o comportamento heterossexual; o sexo genital é primário e
determinante; o verdadeiro sex o é falocêntrico; por fim, sexo é algo que deve
ocorrer de prefe rência no casament o.
O discurso científico veio legitimar, através de argumentos ra cionalistas, a supremacia
androcêntrica. O darw inismo representou um importante pap el para a construção do idea l
moderno da masculinidade. A força física, a inteligência e a propensão à agressividade
constituíam, para a teoria evolucioni sta, importantes atributos para a espécie vencer a luta pela
sobrevivência. A forma como essa teoria foi adaptada para a explicação da vida social
correspondia, na concepção de Oliveira (2004), às estratégias de competitividade capitalista e
contribuía para a manutenção da crença sobre a masculinidade, enfatizando a idé ia de virilidade
adaptativa, conquistada por meio da disciplina corporal, moral e intelectual.
Para esse fim, a medicina orientou suas pesquisas a partir da máxima : “Mente sã, corpo
são”. O que fugia ao padrão do homem branco , europeu e heteross exual era enquadrado como
objeto de investigação e, em muitos casos, era considerado como desviante e, sob algum aspecto,
patológico. Boa parte da teoria médica no final do século XIX veio a reforçar o mito da
masculinidade e a avalizar preconceitos culturais da época, muitos dos quais se mantêm
prese nt es n o imag iná rio ocid ent al
21
.
Para Olivei ra (2 0 04, p. 57),
sobretudo no século XIX, os médicos tendiam a definir saúde e doença não
apenas como categorias clínicas, mas também como categorias morais. Os
ideais societár ios fermentados a partir dos ideais burgueses e apoiados por
instituições fundamentais, como a Igreja, o Estado e as Forças Armadas,
recebiam argumentos abonadores afiançados por teorias médicas e biológicas.
Muit os cie nti stas d o perío do se as seme lhavam aos charlatões interessados, pois
21
Idéias como “a constituição física feminina, comparada à masculina, é mais delicada e frágil, e isso explica o fato de
serem as mulheres mais propensas a desenvolverem doença de nervos numa freqüência maior a dos homens”
(T
HOMAS S YDENHAM, cf. OLIVEIRA, 2004, p. 56); “o homosse xualism o constitui um dis túrbio gené tico” ; “o negr o é
libertino e devasso por natureza” procuravam ser embasadas cientificamente pelo discurso médico. Vale salientar que,
ainda hoje, alguns órgãos de saúde, como os bancos de sangue, descartam a contribuição voluntária de indivíduos que
se declaram homossexuais, sob a alegação de que constituem um grupo de risco quanto às doenças sexualmente
transmissíveis (DST), quando já se tem por definitivo, do ponto de vista da Sociologia e da Medicina, que, em se
tratando de contágio por DST, não existem os chamados grupos de risco, mas atitudes de risco, o que desvia a
responsabilidade do gay e de outros grupos estigmatizados para os comportamentos sexuais não-preventivos,
independentemente da orientação sexual. Dados de uma pesquisa que real izamos em 2 002 — “O Discurso Médico
sobre as DST: Modos de Contágio” — revelam que os homens que assumem identidade e comportamento do legítimo
“macho”, apesar de praticarem ocasionalmente relações do tipo homo-orientadas, muitas vezes sem preservativos, são
doadores de sangue, uma vez que mantêm sigilo, diante dos médicos, quanto a esse tipo de comportamento sexual.
75
receitavam terapias antes mesmo de terem formulado um diagnóstico claro e
independente de seus desejos e projeções.
O teor moralista desses estudos fez com que a medicina ocupasse o lugar que antes era
monopólio da Igreja e da teologia, de forma g eral. Por exemplo, os “desviantes”, “pervertido s”,
estereótipos criados pela med icina oitocentista e no vecentista, eram diagnosticados co mo
devassos, fracos e afeminados, ou seja, um diagnóstico que revela valores morais negativos. A
psicanálise, profundamente marcada pelo positivismo tão em voga nesse período, tratou de
realizar uma responsável pesquisa sobre a vida psíquica dos sujeitos, problematizando o
inconsciente co mo categoria científica, embora não tenha deixado de reproduzir a lguns dos
mitos que envolvem a masculinidade. Na esteira de médicos respeitáveis do século XIX, toma-se
como assente a divisão dos sujeitos a partir da sexualidade, reforçando a existência de tipo s
como o heterossexual, o homossexual e o bissexual. Essas categorias estã o comprometidas com
sua gênese histórica, localizada nos contextos médico-legal, psiquiátrico, sexológico e higienista,
e apontam para a divisão entre norma e anti-norma do ideal de masculinidade imposto pela e
para a família burguesa oitocentista. Para um tal ideal, a construção do tipo homossexual, com o
respaldo do discurso médico e j urídico, veio a calhar, no sentido de per mitir submeter o
homossexual à observação e ao policiamento.
Num contexto como esse, tudo o que fugia ao ideal de masculinidade social mente
construído — ou seja, o do homem branco, heterossexual, forte, valente, destemido, auto-
controlado — era alvo de deprec iação, tornando os sujeitos verdadeiros anátemas, verdadeiros
“alter egos”, nas palavras de Baumann (apud O
LIVE IRA , 2004, p. 70). Para o autor,
ser um alter ego significa servir como depósito de entulho dentro do qual todas
as premonições inefáveis, os medos inexpressos, as culpas e autocensuras
secretas, demasiadamente terríveis para serem lembrados, se despejam; ser um
alter ego significa servir como pública exposiçã o do mais íntimo privado, com o
um demônio interior a ser publicamente exorcizado, uma efígie em que tudo o
que não pode ser suprimido pode ser queimado. O alter ego é o escuro e sinistro
contra o qual o eu purificado pode bri lhar.
A con struç ão de uma mas culin ida de idea l imp lica , nece ssa riamen te, a fixa ção de uma
antinorma, representada por sujeitos que ou não sabem ou não querem seguir os princípios do
76
comportamento ideal. Tornam-se, portanto, objetos de ataques físicos ou mora is por ousarem
divergir ou se diferenciar do que é in stituído pela norma ideal. Assim, um invertido, nas palavras
de Zola (apud C
OSTA, 1995, p. 51) “é um desorganizador da família, da nação, da humanidade. O
homem e a mulher c ertamente estão aqui embaixo para fazer filhos e matam a vida no dia em
que deixam de fazer o necessário para que isto aconteça”. Vê-se que a função da relação homem-
mulher, reduzida ao componente sexual-biológico, precisa ser reforçada pela presença
necessária de um não-eu, de um a-normal — atente-se ao predicativo “desorga nizador da
família, da nação, da humanidad e”. Numa interpretação de viés ps icanalítico, poderíamos
entender a tensão entre aqueles que seguem as norma s da masculinidade e aqueles que dela s
divergem como uma rivalidade em to rno do “narcisismo das pequenas diferenças”, que é
atravessado pelo poder e pela ideologia vigente na sociedade. Para os que segue m as normas,
eleger um “inimigo” poderá ser necessário para criar unidade de grupo, marcando uma diferença
nítida entre o eu e o não-eu, sobretudo quando essa unidade garantirá aos seus membros a
satisfação de pertencer a um grupo de prestígio social. Como vimos no capítulo anterior, grupos
sociais delimitam seu campo de ação ideológica a pa rtir de características próprias a cada um,
que entram em choque com as características de outros. Não é casual, portanto, a existência,
pelo menos no contexto brasileiro, de uma série numerosa de termos para designar aqueles com
comportamentos homo-orientados , o que dem onstra a necessidade d o “homem” de demarcar
muito bem seu território e afirmar uma identidade socialmente ideal
22
.
Vale fazer, no momento, uma reflexão a respeito da forma como esses “desviantes” eram
tratados no co ntexto do século XIX. Homossexual foi o termo estabelecido para classificar o
sujeito de sexualidade homo-orientada, opondo-se, portanto , aos heterossexuais, q ue seg uiam a
tendência “natural” ou “sagrada” da sexualida de hetero-orientada. Os dois vocábulos já foram
assimilados ao imaginário p opular a tal ponto que se tornaram naturais . O ideal de
masculinidade, que dirigiu a a tenção dos cientistas dos séculos XVIII e XIX na categorização dos
tipos sexuais, foi responsável p ela crença estabelecida quanto à natureza do homem
heterossexual. Em se tratando do sexo masculino, heterossexualismo é sinônimo de “homem”,
ao passo que homossexualismo equivale a “degenerescência”, “perversão”, “safadeza”, “não-
homem”.
22
“invertido”, “pervertido”, “sodomita”, “fresco”, “bicha”, “viado”, “frango”, “boiola”, “baitola”, “gay”, “rapaz alegre”,
“fruta”, “arroz doce”, “boneca”, “marica”, “mona”, “coca light”, “goiaba”, “moça” , “mulher zinha” são alguns dos termos
usados, no nosso contexto social, para denominar os que assumem publicamente a homossexualidade. Estes, por sua
vez, aceitando ironicamente o jogo estabelecido pelas representações masculinidas, se referem aos rapazes de
identidade heterossexual como “boy”, “bofe”, “cafuçu”, “macho”, entre outros termos. Observe-se que a ideologia por
trás de cada um desses nomes reforça a divisão da sociedad e entre homens machos e mulheres frágeis, as duas únicas
naturezas possíveis par a uma cultura androcêntrica.
77
Em luga r dos termos hoje já clássicos homossexualismo e heterossexualismo, Costa
(2002) propõe homoerotismo e heteroerotismo, opçõ es terminológicas dotadas de um cará ter
político no mínimo curioso. O autor ad voga o princípio de q ue a s exualidade human a é comp lexa
e, por isso, não pode ser interpretada sob o enfoque restrito de que existem tão-somente dois
tipos de comportamentos antagônicos: o homossexual e o heterossexual. Além disso, questiona a
razão de dividir os sujeitos sociais a partir do critério da sexualidade, pois estar íamos, dessa
forma, reduzindo a complexidade psicológica de cada ser humano ao tipo determinado de
prática sexual que realiza.
A crença desenvolvida desde o século XVIII de que havia sujeitos que se caracterizavam
por serem heterossexuais ou homossexuais contém um lastro essencialista difícil de ser
sustentado atualmente. Baseada em pressupostos realistas, essa crença toma por a ssente que,
independentemente das diferentes circunstâncias histórico -culturais, existe algo em comum
entre os fenômenos co mparados, algo que tran scendia a história: o fato de um indivíduo senti r
desejo por outro do mesmo sexo. Pa ra os realistas, é preciso identificar um certo número de
elementos que possibilitem uma fo rmulação teórica a partir dos fatos observado s. É devido a
esse algo invariante que poderíamos fa lar da homossexualidade moderna ou da pederastia grega
como termos que se referem a uma mesma realidade. O problema que se coloca para uma ta l
concepção consiste na noção de referência. Trata-se de uma categoria exterior ao jogo de
linguagem? É possí vel, do ponto de vis ta prático-filosó fico, ident ificar o referente s em a
interferência dos valores e dos conceitos? Em culturas distintas, o termo homossexualidade, por
exemplo, não obstante o conceito a ele atribuído, contém o mesm o referente? O que é ser
homossexual?
Nossa perspectiva teórico-crítica na abordagem de discurso nos conduz a uma resposta
que não se pretende de finitiva para a solução dos problemas levanta dos, mas que, no momento,
parece-nos a mais pertinente. Não partilhamos da sedutora idéia dos realistas, de que o sentido
das palavras enco ntra-se na rea lidade ou na nature za daquilo que ela designa. Embasamo-nos
nas contribuiçõe s que Wittg enstei n trouxe à filo sofia da linguagem, sobretudo no que tange à
crítica ao essencialismo. Nas Investigações Filosóficas, o autor considera um erro filosófico
cardeal perguntas do t ipo “o que é?”. As expressões, quando analisadas isoladamente, fora do
“jogo de linguagem” em que se constituíram , são destituídas de uma essência. Nos mais var iados
jogos de lin guag em revela-s e, do ponto de vist a semântico , uma compl exa rede de “pa recenças
[“pa recença s de fa mília ”], qu e pode m esta r entr ecruzadas. No enta nto, não justifica m a tese de
que há um elemento comum a todos os jog os. Os conceitos são abertos e o significado das
78
expressões depende do seu uso em condições específicas
23
. Qualquer sistema conceitual que se
pretenda fixo constitui uma ilusã o metafísica
24
.
Numa perspectiva mais marxista, Bakhtin (1990, p. 37) poderá contribuir para o
enriquecimento dessa discussão, quando declara que
o signo, então, é criado por uma função ideológica precisa e permanece
inseparável dela. A palavra, ao contrário, é neutra em relação a qualquer função
ideológica específica. Pode preencher qualquer espécie de função ideo lógica:
estética, científica, moral, religiosa.
Para Bakhtin, a pa lavra acompanha e comenta todo ato ideológico, daí por que, q uando se
encontra inserida num discurso, torna-se parte da unidade da consciência verbalmente
constituída (cf. B
AKHTIN, 1990, p. 38). O caráter neutral da palavra e a natureza ideológica do
signo são concepções que vão encontrar eco na filosofia de Wittgenst ein, conforme vi mos.
No que se refere à classificação das sexualidades, costuma haver uma redução da
natureza psíquica do s er humano à “essência” do seu desejo: o indivíduo é, portanto,
heterossexual ou homossexua l. Além de conceber ca da tipo de prática sexual como denominador
comum a todos os homens que nele estariam inseridos, essa teoria não prevê como possível que
o indivíduo varie suas práticas sexuais paradigmáticas. Assim, a opiniã o pública, aceitando como
natural a explicação da sexualidade humana propalada pelos discursos científicos de séculos
passados, cria uma expectativa bastante redutora do compo rtamento sexual dos sujeitos sociais.
Contrapondo-se a esse conteúdo essencial ista e extremamente preconceituoso do termo
homossexual, Costa (2002) sugere o uso do nome homoerotismo, para designar o tipo de
erotismo caracterizado pelo desejo com relação a pessoas do mesmo sexo. Em seu livro, escrito
em 1992, composto por ensaios sobre o referido tema, que deu ens ejo a uma pesquisa mais
ampla em Costa (1995), o autor propõe uma transformação radical de ordem epistemológica: o
vocábulo homoerotismo, contra riamente a homossexualismo, “nega a idéia de que existe algo
como ‘uma substância homossexua l’ orgânica ou psíquica comum a todos os homens com
23
Para Wittgenstein (1995, p. 413), “todo símbolo, isolado, parece morto. O que é que lhe dá vida? — Só o uso lhe dá
vida. Tem, então, em si o sopro da vida? Ou é o uso que é o sopro da vida?”.
24
Observe-se que o desconstrutivismo em Derrida converge com as noções wittgensteinianas de “jogos de linguagem”
e “parecenças de família”, daí podermos apontar a influência que o filósofo austríaco exerceu sobre o pós-
estruturalismo francês.
79
tendências homoeróticas” (COSTA, 2002, p. 22). O termo, assim, não possui o caráter substantivo
indicador de identidade, como em homossexualismo.
Do ponto de vista da estrutura ling üística, homossexualismo e homoerotismo constituem
signos pertencentes a um mesmo paradigma semântico, de forma que usar um nom e por outro
não alteraria a essência do fenômeno. Após a obra de Wittg enstein, é difícil tratar da questão a
partir do que se chama “a essência do femeno”. Costa (2002; 1995), afinado com a filosofia da
linguagem, concebe a língua como uso social, ou seja, ela é socialmente constitutiva. Assim
sendo, os dois termos problematizados, criado s em contextos ideológico s distintos, carregam
valores que dizem respeito aos seus respectivos contextos. Como vimos, homossexua lismo, em
sua gênese, é uma palavra que alude a doença, anormalidade, perversão, tal como esse tipo de
prática sexual era interpretado e ainda costuma sê-lo. A convicção na norma “natural” da
sexualidade burguesa levou a psiquiatria do século XIX a definir o homossexua l como uma
personalidade especial. Freud (apud C
OSTA, 1990, p. 195), inclusive, nos “Três Ensaios de Teoria
Sexual” afirma que “estas pessoas são chamadas de sexo contrário ou, melhor, invertidos”. A
palavra invertido deixa de assumir o valor adjetivo presente em Westpha l (apud C
OSTA, 1990),
de uma “sensibilidade sexual contrária”, pa ra tornar-se substantivo, tomando-se o indivíduo
como referente da palavra. Não é de se estranhar que a inversão do que se instituiu como norma
sexual, a partir de argumentos evolucionistas, articulados conforme interesses do Estado
burguês (asseg urar o povoamento , reproduzir as forças de trabalho, proporcionar uma
sexualidade economicamente útil) , se tornasse crime (v er o caso da so ciedade ingl esa dos séc ulo s
XIX e XX, por exemplo, na qual Osca r Wilde foi julgado como p ervertido e imora l) e foco de
atenção quase obsessiva por parte d os discursos médicos e legislat ivos, nunca antes ver ificado
nas sociedades ocidenta is.
Com essa p rop osta, Cos ta (200 2; 19 95) adm ite, coer ente mente , que não es pera, a penas
com a simples mudança de um termo pa ra outro, transformar o modo em que as pessoas em
geral costumam representar o “homossexua l”. N o entanto, acredita o autor, e com ele estamos de
acordo, que a discussão sobre a natureza do desejo, entendendo-se que ela não é suficiente para
conferir, de forma substantiva, a identidade dos sujeitos, viria a desmistificar muitas das
representações que se costumam ter do fenômeno e a propor uma compreensão mais justa da s
relações homoeróticas. Em outras palavras, o preconceito contra o homossexual deverá ser
colocado em questão na medida em que se trata de uma representação historicamente
determinada .
80
No que concern e à pres ente pe squisa, o conce ito de hom oero tismo se rá us ado ap enas no
que diz respeito à relação do tema com o mito da masculinidade. Não será, pois, nosso propósito
investigar a na tureza psicana lítica do desejo ho moerótico.
3.2. O mito da masculinidade na era contemporânea
Disc utimos no ponto anterior co mo o mito m oderno da masculinidade está ass entado
sobre um estereótipo. Mosse (1996) assegura que a masculinidade moderna constituiu um
estereótipo, uma imagem menta l, coerente, na medida do possível. Co mo todo estereótipo s e
atém à percepção da aparência exterior para julgar o valor de alguém, a masculinidade moderna
procurou tornar a complexa natureza humana objetiva, fácil de compreender em apenas um
lance de olho, e passível de valoração. Essa aparente objetividade se baseou na natureza do corpo
masculino. Mas como se tem compo rtado es se estereótipo na contemporaneidade?
Antes de mais nada , gostaríamos de esclar ecer o conceito de conte mporâneo que
adotaremos. Sem perder de vista as polêmicas discussões sobre a pertinência do termo para
abordar a sociedade pós-industrial, a despeito das convenções da História oficial, usa remos a
palavra para nos referir ao momento histór ico do capitalismo tardio, pós-Segunda Guerra
Mundial, marcado pelas redes virtua is de transação de mercado. Será ness e contexto qu e
analisaremos as práticas masculinas e sua relação com o que indicaremos como a crise do mito
moderno da masculinidade.
Comecemos pela crise da família burguesa. Uma série de ac ontecimentos contribuiu para
desestabilizar a estrutura e a função da família moderna e, conseqüentemente, afetar o lugar
ocupado pelo homem, núcleo da família patriarcal burg uesa, símbolo, portanto, do p oder
masculino. Para Castells (apud O
LIVE IRA , 2004, p. 103), o patriarcalismo se caracteriza
pela autoridade, imposta institucionalmente, do homem sobre a mulher e filhos
no âmbito familiar. Para que essa autoridade possa ser exercida, é necessário
que o patriarcalismo perm eie toda a so ciedade, da produç ão e do consumo à
política, à leg islação e à cultura. Os relac ionamentos int erpessoais,
conseqüentemente, a personalidade, também são marcados pela dominação e
violência que têm sua orig em na cultura e instituições do patriarcal ismo.
81
As mudanças so fridas pela soc iedade ocidenta l no mundo c ontemporâneo abalara m as
estruturas do regime patriarcal. A estrutura da família, constituída por marido, esposa e filhos,
sob o poder do homem/pai de família, foi sens ivelmente altera da. A quantidade de divórcios, a
partir dos anos 50, revela a insatisfação com o mo delo baseado em vínculos duradouros.
Considerando-se que outros laços matrimoniais, após o divórcio, possam ser estabelecidos,
constata-se um gradual enfra quecimento do sist ema de dom inação masculina, num contexto em
que a “lealdade” das mulheres ou do s filhos começou a entrar em crise (cf. O
LIVEI RA, 2004).
Chamemos a atenção para a inserção, cada vez maior, das mulheres no mercado de
trabalho, direito conquistado pelos movimentos feministas, sobremaneira. Esse f ato trouxe
algumas alterações quanto ao perfil do ma rido como provedor do lar, uma vez que a s esposas
começam a participar ativamente, com seus próp rios salários, do orçamento fa miliar. Com isso,
deixam de esta r numa posição d e subserviência em relação a o “chefe” da casa e pa ssam a
contribuir com a economia do lar. Isso põe em questão, portanto, a própria noção de “chefe” de
família.
Na opinião de Ol iveira (2004), as dificuld ades em compatibilizar casamento, trabalho e
vida pessoal podem ter ocasionado a posterg ação do vínculo matrimonia l e a construçã o de
relacionamentos sem vínculos legais, o que teria enfra quecido a autoridade patriarcal. O
nascimento de filhos fora do casamento ou o crescimento do número de lares em que um dos
pais é responsável pelos filhos também alterara m a relação de autoridade entre o pai e seus
descendentes. Ainda mais tênue enco ntra-se a relaçã o entre paternidad e e dominação
masculina, se considerarmos alguns dos produtos dos avanços tecnológicos, como a fecundação
de bebês em provetas e a inseminação artificial. A biotecnologia, indiretamente, contribuiu para
a desestabilização do núcleo familiar burguês, responsável único, até então, pela reprodução da
espécie, mediante relaçõ es “heterossexuais”.
É evidente que uma transf ormação radical da es trutura familiar sofreu influência da s
relões de produção, tais como se configuram na contemporaneidade. Elas se caracterizam pela
produção e consumo alucinantes de mercadorias, o que gerou, nas palavras de Oliveira (2004, p.
106), uma “‘mercadificação’ quase total da vida social”. Ainda conforme o autor, essa
“mercadificação” da vida social não poderia deixar a família passar incólume:
se, antes, a ativid ade econômic a estava sujeit a a deveres de parentesc o, a
lealdades comunais, a solidariedades corporativas, a rituais religiosos, entre
outr os, h oje , mai s d o que nunc a, o merc ado sub juga e imp õe su a d inâmi ca a
82
todas as instituições de onde emanavam estas ativid ades que por meio de
instituições específicas cimentavam a coesão social.
O mercado contemporâneo solapa, em princípio, qualquer laço social estreito entre sujeitos e
reivindica a privatização de setores institucionais. Como a família é uma instituição, a hipótese
sustentada por nós é que ela est á sendo levada a reproduzir os va lores do mercado, não
surpreendendo, por exemplo, o crescimento de número de lares habitados po r apenas um
indivíduo. Fatos como esses contribuem para abolir, gradualmente, a estrutura da sociedade do
tipo patriarcal. Em contraposição, encontramo-nos inseridos numa sociedade em que os sujeitos
tendem à individualização e, por isso, se tornam avessos a compromissos duradouros.
Após a revolução sexual da década de 1960, ficou mais evidente a separaçã o entre sexo e
dever matrimonial e, simultaneamente, a conjunção entre sexo e pra zer, o que veio a favorecer a
“indústria dos deleites” (cf. O
LIVEI RA, 2004, p. 108). A produção de re vistas de nudez, de r evista s
e de vídeos pornôs, de sites na Internet sobre sexo, prazer, encontros virtua is, ao mesmo tempo
que satisfaz, em parte, o desejo desses indivíduos de sexo não-convencional, corrói, aos poucos, a
resistente estrutura da família patriarcal moderna e o mito da masculinidade nela pressuposto.
O que mais surpreende é a atual tolerância de alguns setores da sociedade ocidental
quanto aos sujeitos que foram p roscritos pelos ideais burgueses cultivadores da célula fa miliar
tradicional. Por exemplo, os deno minados “homossexuais” estão sendo cada vez mais alvo do
mercado e foco da mídia; em algumas localidades, há bares, livrarias, farmácias, padarias,
agências de turismo e bancos destinados a atender o público gay. Espantoso não é se conceder o
espaço público aos grupos gays, que têm o di reito, como qualq uer cidadão, de r eivindicá-los.
Espantoso é que es sa mudança ra dical não parece advir prioritariamente de uma consciência
política e ideológica da sociedade ocidental: ela se deve aos interesses do mercado. Como são
sujeitos que assumem uma identidade “homossexual” e, po r isso, não têm, em geral, nenhum
compromisso financeiro com esposa e filhos, tornam- se agentes consumidores ideais para o
mercado globalizado. Logo, pa ssam a receber o respeito por parte da sociedade “mercadificada”.
Observe-se que as leis do mercado contemporâneo abdicaram dos ideais rígidos de
masculinidade para integra r um tipo de público que, mesmo desafian do a união matrimonial
convencional, tornou-se um interessante alvo de consumo. Para Oliveira (2004, p. 123), a
liberdade de consumo, tão cultivada pelo capitalismo, permite, no mundo contemporâneo, a
flexibilização de qualquer padrão comportamental rígido q ue exclua as mais variadas opções de
compras e aquisições. A produção e a reprodução dessa ideologia se mostram com maior clareza
83
em alguns comportamentos da sociedade civil. A noção de “politicamente co rreto” é um sintoma
evidente de que as diferenças devem ser respeitadas, a fim de resguardar a integridade do
cidadão. Mas eis que esse respeito, apesar de constituir uma vitória para as lutas de movimentos
gays, se deve ao fato de que há inter essados na manut enção da integrida de “física” e
“psicológica” dos gays, grandes consumidor es em potencial. Basta ver, no caso do Brasil, o
tratamento que costumam receber os agentes da classe popular, tidos como “homossexuais”, e os
de uma classe economicamente fa vorecida, para se constatar q ue os primeiros continuam sendo
discriminados e ultrajados, ao passo que os se gundos, “respeitados”. A Lei passou a conceder,
em certos contexto s sociais, alguns direitos ao cidadão “homossexual”, q ue já não pode mais ser
discriminado, sob risco de o agressor responder a processo.
São, nada obstante, transformações que afetam radicalmente o m ito moderno da
masculinidade, uma vez que, sem as ba ses da família patriarcal que o sustentava, ele sofre u m
abalo, desestabiliza-se e está sujeito a perder sua hegemonia.
No entanto, não foi apenas a crise da família patriarcal que colocou em xeque o mito da
masculinidade, mas tamb ém a crise de outras instituições, como a religião e a ciência. A religião
católica, no caso do Brasil, pelo menos, perdeu seu monopólio diante das diversas opções que
são oferecidas, por exemplo, pelas igrejas pentecostais e neopentecostais. Há, hoje, mais de
trinta mil d enominações de Igrejas e, segundo informações extraídas da pesquisa de Pa triota
(2003), só no Rio de Janeiro surgem, atualmente, em média, cinco novas Igrejas neo-
pentecostais por semana, o que eq uivale à criação de uma Igreja por dia. A religião entrou na
dinâmica do mercado contemporâneo e oferece seus mais variados serviços como iguarias de um
self-service disponível pa ra a massa. A h egemonia que a Ig reja Católic a goza va no Brasil até o
século XIX se perde, o que ensejou a criação de microunidades i nstitucionais, de orientação
teológica as mais diversas, cada qual oferecendo um ser viço diferente para ser consumido pelo
público religioso. Inegavelmen te, a maioria de ssas linhas religiosas comunga mais ou menos o s
mesmos valores morais conser vadores, sobretudo no que concerne à sexua lidade
25
. Porém a
única fonte propaga dora de uma moral religiosa ocidental, a Igreja Católica, perde espaço para
uma série de micro-unidades religiosas, com interesses bastante divergentes entre si, passando a
concorrer com ela o espaço de poder. Isso faz romper as bases sólidas de um discurso
homogêneo. Enfim, por mais qu e os valores propalados pelo discurso religioso, em geral,
continuem ainda muito cons ervadores, inc luindo a fé na unidad e familiar co mo sendo vonta de
25
Pelo que se tem notícia, das religiões que agregam um número alto de fiéis, apenas o Candomblé admite
irrestritamente o prazer terreno, o que vem a justificar sua moral bastante flexível quanto à sexualidade. É sabido que
os travestis, quando recorrem a algum culto religioso, procuram essa religião, a única no Brasil que os aceita sem
exigências.
84
de Deus, temos constatado que o poder subjacente ao mito da masculinidade, por exemplo, uma
vez que deixou de ser sustentado por uma fonte ideológica apenas, encontra-se mais vulnerável.
A prática religiosa, na concepção de Bauman (apud O
LIVEIRA, p. 111), tornou-se u ma atividad e d e
lazer, “isto é, comportamento del iberado, nã o-regulamentado, pessoal e privado”.
A perspectiva positivista da ciência do século XIX conferiu ao homem a supr emacia nas
relações sociais de poder, oferecendo, como vimos, diversos argumentos, muitos dos quais com
bases morais. Na contempora neidade, a c iência alcançou um status maior, mas, para isso, teve
de abdicar das bases epistemológicas do realismo e do positivismo — lembremos do bordão
positivista “ver para prever, prever para prover” — e entrar em consonância com as
transformações sofridas pelo mundo cap italista do século XX. A ciênc ia contemporânea põe em
xeque o modelo das verdades essenciais, tão caro aos realistas e positivistas, quando propõe uma
concepção relativista da realidade. Para Oliveira (2004, p.114),
relativa e pragmática, a ciência pós-moderna se despe da autoridade inconteste
que assumiu na modernidade. Suas pesquisas bio-anatômicas, confirmando a
superioridade masculina sobre a mulher ou a patologia da homo-orientação,
são neutralizadas com a desconfiança em relação aos métodos de análise, à
amostra selecionada, às intenções não pronunciadas etc. As pesquisas
científicas estão mais sujeitas a serem postas em dúvida tão logo apresentem
resultados possivelmente eivados de intenções ocultas, ainda que muitos
preconceitos baseados na assimetria socioh istórica [sic] de gênero continuem a
ser mais “demonstrados”, veiculados e recepcionados com grande benevolência
pelo senso comum e pelos seus variados canais de divulgação.
O caráter pragmático da ciência contemporânea se dá pelo viés utilita rista, que se opõe à
pretensão da ciência moderna de se alcançar uma verdade universal, o que a faz investir no
aperfeiçoam ento técnico, como fo rma de inter vir no contex to social. A ciência será tão melho r
quanto mais eficiente for na solução dos problemas sociais de diversas ordens. Instaura -se, como
se verifica no modelo econômico em que estamos inseridos, uma competitividade nos meios
científicos para se tentar chegar a soluções eficie ntes de vários problemas.
Quanto à ordem cultural e à produção de bens de consumo, podemos verificar notáveis
alterações na conduta do ho mem contemporâneo e na s representações sociais sobre o
masculino. No caso dos EUA, por exemplo, após a Segunda Guerra Mundial, fixou-se um modelo
de música que ultrapassou as front eiras nacionais: a juventude européia consumia-a, amava-a,
85
vestia as roupas que os artistas costumavam vestir e seguia as mais variadas tendências da moda .
De acordo com Mosse (1996), foi essa cultura jovem que fez pressão para uma mudança da
moral e dos sóbrios costumes do pa radigma masculino vigente até o pós-guerra. Por sua vez, a
mídia, como o cinema, dominado pela indústr ia hollywoodiana , nos apresentou no vas
dimensões quanto à questão das mudanças comportamenta is, popularizando imagens diversas e
antagônicas da masculinidade, jamais observadas antes da guerra. A chamada Geração Beat, na
década de 1950, surgiu como sig no de mudança, ao se posicionar, através da literatura,
contrariamente à tirania dos estereótipos normativos. Na ótica de Mosse (1996, p. 184), os
beatniks “pareciam não se preocupar com sua masculinidade, e tiveram experiências sexuais
com homens e com mulheres, apesar de o uso de droga s ter sido, por um momento,
aparentemente ma is importante pa ra eles do que o sexo”. O jazz, na mús ica, constituiu para os
beatniks o modelo para uma experiência de vida improvisada. Foi um movimento que
influen cio u b oa p a rte da juve ntu de n or te- a mer ic an a e eur opé ia , of ere ce n do um ritm o e um est i lo
de vida frenético a um públ ico sequioso de muda nça, que queria escapar dos limites e
convenções da vida moderna enquanto afirmava sua própria identidade individual.
A tese defendida por Mosse (1996, p. 185) é que a música popular, a partir dos anos 50,
encorajou os jovens a ex perimentar a expressão corpo ral, estimulando-os a redescob rir o corpo
humano, longamente aprisionado pela ‘respeitabilidade’ da moral burguesa. A relação
‘harmônica’ e imutável do homem com seu corpo passou a assumir, agora, novos contornos. Seja
no rock’n’roll, no jazz, no chamado new sound, a música popular
encorajou movimentos selvagens, apaixonados e desarmônicos do corpo e
estimulou cada jovem a ‘fazer a coisa do seu próp rio jeito’ [‘to do his own
thing’]. A busca de uma nova identidade foi uma importante motivação tanto
para a Geração Beat e os br itân icos Angry Young Men’ dos anos de 1950,
como, muito depois, para os ‘hippies’ e ‘punks’: a juventude procurava ser ela
mesma, sem muito respeito pela tradição.
Vê-se, portanto, que a relação dessa cultura jovem do pós-Segunda Guerra com o estereótipo
moderno da masculinid ade era de oposição: foi uma cultura que ousou desafiar as norma s
comportamentais de uma sociedade crente nos valores do pa radigma masculino moderno .
Nos anos 70, particularmente, a liberdade de expressão corporal foi acompanhada po r
um tipo de aparência mais natural: as mulheres descartavam qualquer adorno, a fim de
86
apresentar-se sem artifícios; e os h omens, numa atitude de rebeldia contra o padrão do corte
masculino, começaram a usa r cabelos longos, prendendo-os ou fazendo tranças. As roup as e as
aparências tendiam a anular as diferenças de gênero, sem apresentar, necessariamente,
nenhuma conotação “hetero” ou “homossexual”. No entanto, esse novo tipo de co mportamento
tornava o homem menos “masculino”, conferindo-lhe uma aparência andrógina, que logo foi
absorvida pela publicidade dos anos subseqüe ntes.
A indústria do entret enimento, dos anos 70 aos 90, popularizou astros como David
Bowie, Boy Geor ge, Michael Ja ckson, Marilyn Ma son, Brian Molko (líder da banda Placeb o),
cuja androginia traía uma oposição extrema à tradição masculina modern a.
Observemos q ue as transformações o corridas no mundo ocidental con temporâneo , nos
mais diferentes setores, interferiram decisivamente na soberania dos ideai s modernos de
masculinidade, o que provocou alterações nos comportamentos humanos, nas relações de gênero
e nos hábitos dos homens. Essas mudanças, todavia, não ocorreram de forma inconteste. A
estrutura político-econômica em que estão inseridos os agentes sociais na contemporaneidade
provoca dúvidas e inseguranças. O questionamento do que antes era socialmente valoriza do vem
seguido de mudanças macroestruturais que geram um novo tipo de comportamento e,
particularmente, um novo paradigma da masculinidade, que ainda não se encontra bem
definido. Daí falarmos de uma crise de valores. Dessa crise, outros valores começam a ser
engendrados, mas estamos num momento histórico em que eles ainda não estão bem definidos.
Apesar de um ideal de masculinida de como foi construído , desenvolvido e propagado na
sociedade burguesa moderna não conseguir mais estar em consonância com os novos tempos,
vale repetir que uma tal mudança de comportamento não se apresenta de modo unívoco e
absoluto. Uma perspectiva dialética, contrária às muito cômodas tendências universalistas, nos
permite considerar a situação social e ideológica do mito da masculinidade na sociedad e
ocidental contemporânea através de, pelo m enos, dois ângulos particulares: os idea is de
masculino nos estratos sociais economicamente favoreci dos e nos estratos populares. Na
concepção de Oliveira (2004), a muda nça de paradigma pela qual o homem contemporâneo está
passando se evidencia, sobretudo, nas relações de grupos economica mente privilegiados, que
têm acesso mais facilitado aos bens de co nsumo. No caso das cama das populares, relacionadas à
situação de pobreza, temos a figura do trabalhador desempregado, impossibilitado, pois, de s e
inserir na sociedade de consumo. Como lhes é negado o direito de aquisição de bens materiais ,
os homens das camadas populares costumam, em compensação, sustentar valores conservadores
considerados positivos; entre eles, o valor de ser “homem”, como uma forma de expressar o
orgulh o de ser em rep resentant es l egítimo s e fié is do q ue já es tá cons agra do pela ideolog ia da
87
sociedade burguesa mo derna. Por não p articiparem das vantagens do capital, os homens
populares exibem, com orgulho, comportamento s valorizados por uma sociedade burguesa
androcêntrica.
Um dos sintomas dessa realidade é a forma como esses agentes sociais costumam se
referir à estrutura familiar. Reis (In F
RANÇA, 2002), numa pesquisa realizada sobre o discurso da
e sobre a pobreza, revela que os entrevistados, todos pobres, assumem a célula familiar como um
valor positivo, um apoio cotidiano que ofer ece sustentação para a vida. A união da f amília de
estrutura patriarcal, vale ressaltar, é responsável pelas conquistas e pelos momentos de
felicidade de seus membros. Além disso, a família constitui o luga r da educação, o espaço
responsável pelo ensino dos valores vinculados à honestidade e ao trabalho. Trata-se, como se
vê, de uma reprodução dos requisitos modernos fundamentais para o bom funcionamento de
uma sociedade capitalista.
Como a exclusão social é uma realidade inconteste para esses grupos sociais, a única
alternativa para tenta rem se inserir na so ciedade é, para eles, a educação das crianças, com o
objetivo de que elas se comportem de acordo com os padrões exigidos pela soc iedade, assum indo
uma identidade e um modo de vida socialme nte aceitos. Dessa forma, acreditam que podem
suavizar o peso da exc lusão.
Não se deve negar, nos estudos sobre a crise da masculinidade, que os segmentos
populares concebem, com freqüência, a experiência da masculinidade como propiciadora de
prazer e satisfação. Em muitos ca sos, a masculinidad e é vista como uma “benção” de Deus. Na
observação de Oliveira (2004, p. 203),
em contraste com o que possa, porventura, ocorrer nos divãs de psicanálise, ou
nos consultórios clínic os de psicologia, em que homens de classe média
confessam suas dores pelo fato de terem de estar à altura de um padrão tido por
eles como opressor, nas camadas populares vemos o orgulho pelo fato mesmo
de se ter que sofrer para ser hom em. Encara-se de maneira positiva o que
poderia ser considerado como “fardos da masculinidade” [...].
As inúmeras transformações macroestruturais pelas quais a sociedade ocidental vem
passando, em especial aquelas que se referem ao regime de gênero, costumam ser recebidas
pelos homens dos estratos sociais populares com indignação e pessimismo. Esses agentes sociais
revelam, muitas vezes, uma certa nostalgia do tempo em que era indiscutível a soberania do
88
homem, além de expressarem uma insatisfação diante do fato de seu poder estar sendo
transferido para as mulheres.
Se podemos falar da angústia masc ulina que paira sobre os segmentos populares, essa
angústia não corresponde ao fardo de ser homem, mas provém da falta de possibili dade de
poderem exercer suas responsabilidades de homem. Para os homens das classes
economicamente favor ecidas, há, em princípio , muitas opo rtunidades e opções para eles se
inserirem socialmente. Para os homens dos segmentos populares, entretanto, não são oferecidas
as mesmas oportunidades de inserção social. As poucas opções de se inserir no mercado de
trabalho, por exemplo, fazem que muitos ou não obtenham emprego ou tenham chances
limitadas de ma ntê- lo, afeta ndo, pois, seu pa pel de pro vedor da família.
Essa situação , contudo, não afeta o sentimento de ser homem. Mesmo com p oucas
condições materiais para exercer o papel que lhe é tão requisitado pe la sociedade, o status de
provedor é reivindicado por essa população como uma prerrogativa, um dir eito, mais do que um
dever. Além dos deveres familiares, há nos homens das camadas populares um orgulho dos
atributos masculinos po r excelência, den tre eles a “heteros sex ualidade”. Da í por que, mesmo não
deixando de exercer , em mu itos casos, práticas sexuais homo-orientadas, esses homens
sustentam sua condição de “macho” e costumam agredir física ou moralmente os que contrariam
tal condição. Pesquisadores têm apontado para o fato de que se percebem, sobretudo nos
segmentos populares, comportamentos que exibem de forma ostensiva os indícios de virilidade,
construídos socialmente, como o costume de segu rar, em público, as genitálias.
Podemos problema tizar ainda mais a questão consi derando que es sas ca racteríst icas nã o
se encontram apenas nas camadas populares, podendo ser verifica das, também, em ind ivíduos
dos estratos sociais privilegiados economica mente. A despeito do espaço conquistado, do pós-
guerra aos dias de hoje, pelos outsiders (negros, homossexuais, ciganos; enfim, todos que fugiam
ao paradigma de masculinidade) e da permanência penetrante da cultura da nova juventude, o
velho estereótipo masculino mantém-se ainda resistente na contempo raneidade. Destaque mos
três aspectos dist intos: comportament o/atitude, culto ao corpo, representações do homem ideal .
Como exemplo do primeiro, tomemos como foco os cha mados skinheads, surgidos na Inglaterra
no final da década de 1960 (cf. M
OSSE, 1996, p. 187). Eles ilustram a complexidade da cultura
jovem contemporânea na medida e m que compa rtilh a m o estilo de vida não-ortodoxo dos jovens
do pós-guerra (tanto o ritmo da música pop quanto o sentimento de auto- identificação), mas,
paralelamente, projetam uma masculinidade agressiva. Ao contrário da maioria dos envolvidos
com a cultura jovem, os skinheads não sã o pacíficos: gostam de confrontações e são
constantemente violent os diante daqueles que consideram inimigos — negros, judeus, asiáticos ,
89
homossexuais. Trata-se de um grupo que imita os homens guerreadores (cf. MOSSE, 1996, p.
187), predispostos a ostentar sua virilidade. Se no princípio muitos traíam sua origem da classe
operária, posteriormente foram sendo repr esentados também por sujeit os da classe média, que
assumiram comportamento e postura ideológica neona zistas. O retorno à ideologia nazista
reflete, necessariamente, uma adesão aos estereótipos de masculinidade moder na. Constitui,
portanto, um comportamento em conflito: participa da cultura “des territorializa da” dos joven s
contemporâneos, mas são fascinados pela masculinidade mais estereotipada
26
.
Para o segundo aspecto, destaquemos particularmente o caso do jiu-jítsu. Conforme
representações sociais hegemônicas, baseadas em estereótipos, há uma a ssociação entre
homens, esportes e lutas marciais. Se essas últimas estão ligadas, segundo pesquisas (cf.
C
ECCHETTO, 2004, p.141), ao tema do gênero, da violência e da marginalidade urbana,
consideremos o fato de muitos rapazes da classe média estarem se matriculando em aca demias
de jiu-jítsu. Constatamos que o culto exa gerado ao co rpo masculino reflete o estereótipo
moderno de masculinidade nesse estrato social, sobretudo quando percebemos comportamentos
afetados, como o dos que andam pelas ruas sem camisa, ostentando o corpo musculoso e um Pit
Bull — imagem tipificada do homem masculinizado. Mais uma vez nos deparamos com jovens
inseridos numa cultura contemporânea, mas fazendo apologia a aspectos do “território” cultural
da masculinidade moderna .
Por fim, consideremos o ideal norm ativo de masculinidade capturado pela imaginação de
muitos dos sujeitos de identidade sexual homo-orientada. Mosse (1996) buscou, na Alemanha de
1924 a 1979, estória s romântica s gays nas quais os “belos jovens” são invariavelmente graciosos,
musculosos e louros, com semblantes talhados em pedra; seus corpos são lisos, sem pêlos. Vê-se ,
aqui, que esse retrato do homem ideal converge para a forma como sempre se representou o
ideal ma sculino na modern idade. Trata-se, pois, de um tipo de conti nuidade do estereótipo
masculino entre os que foram rejeita dos como um co ntra-tipo.
Nada obstante o que foi apresentado, acreditamos que, no caso dos homens de uma
camada mais popular, a falta de opções de inserção no mercado de trabalho os faz se valerem dos
atributos masculinos “autênticos” e se orgulharem disso. Por sua vez, os homens de classe média
e alta, por terem, em princípio, maior a cesso ao mercado de trabalho, possuem também um
maior acesso às informações e às idiossincrasias de uma sociedade que não pode mais estar
plenam ente es trut urada a par tir do que reza vam os ideais burgueses de mascul inidade. Esses
26
Noções como “território” e de “desterritorializar” são algumas das pedras-angulares das Teorias C ulturais.
Desterritorializar é desfamiliarizar, levar ao estranhamento práticas instituídas, mas é, ao mesmo tempo, a busca de
novos rearranjos, de novos agenciamentos. Para uma discussão aprofundada dessas e de outras questões correlatas, é
imprescindível consultar Hall (1997), Bhabha (2003), Canclini (2003).
90
não foram ainda superados por outros valores heg emônicos. Um exemplo disso é que, na opinião
de Mosse (1996), o stablishment político da Europa ocidental não chegou a ser afetado
consideravelmente pelas transformações pelas quais têm passado muitos dos setores da
sociedade. Apesar da maior projeção da s comunidades gays e das conquistas alcançadas pelos
movimentos feministas, uma mudança absoluta na aceitação moral dessa realidade,
fundamental para a transformação do estereótipo, a inda é colocada em dúvida. Há de se
considerar também, juntamente a Mosse (1996), a grande capacidade da sociedade normativa de
cooptar os “desviantes”, como pro curar integrar a “juventude transviada ” mediante uso do
patriotismo. Como exemplo disso, o alistamento militar de milhares de jovens norte- americanos,
sobretudo de negros e chicanos, a partir de 2003, para lutar contra o terrorismo das facções
fundamentalistas, foi estimulado por a lgumas promessas feitas pelo Estado aos voluntários ,
como adquirir cidadania americana ou alcançar um padrão de vida melhor. Além disso, a
cooptação também se realiza pelo encoraja mento a uma atitude não-política, mas de
“vanguarda”, em prol do desen volvimento e mod ern izaçã o da p átria . Por outro lado , a
masculinidade ambígua da nova cultura tende a ser mais difícil de se integrar ao estereótipo
masculino fixado. Nossa história ainda está por se fazer, mas nos parece plausível que as várias
mudanças ocorridas após a Segunda Guerra têm flexibilizado esse mes mo estereótipo.
3.3. O mito da masculinidade no Brasil
Nas pesquisas que realizamos, constatamos que um dos estudo s mais consistentes,
realizados no Brasil, sobre a na tureza social do mito moderno da masculinidade é de autoria d e
Pedro Paulo de Oliveira (2004). No entanto, são ainda muito poucas as pesquisas em nosso país
voltadas para o tema, sobretudo quando se trata da masculinidade no Brasil. Até mesmo Oliveira
(2004) deixou de contemplar essa realidade, o que ele justifi ca pela inex istência de estudo s
relevantes sobre o tema, relacionados à questão do masculino no Brasil. De fato, o pouco
material que pudemos coletar, das mais diversas áreas, constituem textos relevantes na m edida
em que, indiretamente, são pioneiros no questionamento a respeito do mito da masculinidade
brasileira.
Valemo-nos de duas das respeitáveis obras de Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala
(CG&S) e Sobrados e Mucambos (S&M), com o intuito de compreender como se desenvolveu o
mito moderno da masculinidade no Brasil no período colonial e imperial. Usaremos, mais
especificamente, cinco capítulos: “ Características gerais da colonização portuguesa do Brasil:
formação de uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida” (CG&S); “O colonizador português:
91
antecedentes e predisposições” (CG&S); “O escravo negro na vida sexual e de família do
brasileiro (CG&S); “O pa i e o Filho ” (S&M); e “A Mulher e o Homem” (S&M) . Não é objetivo dos
referidos livros investigar a condição masculina em nosso país, mas podemos deles tirar algumas
conclusões a respeito do homem e da dominação masculina nos respectivos períodos da história
brasileira. Além deles, tomaremos por base as pesquisa s de João Silvério Trevisan [sobretudo
Trevisan (2002)] e de James Naylo r Green (2000), que, apesar de tratarem da
homossexualidade no Brasil o primeiro, do Brasil-Colônia à contempo raneidade; o segundo,
do século XX trazem informações relevant es para nossos objetivos aqui, pois aborda m as
formas de socialização dos homossexuais bra sileiros, o que passa necessariamente pelo
questionamento sobre o que vem a ser um homem.
Quando a qui aportaram, os co lonos portugueses, dos mais diversos estratos sociais,
contaminados pelo espírito moderno que aflorava em Portugal, se depararam com uma terra
inóspita, sem o mínimo tra ço de civilidade européia. O perfil da produção econômica que se
instaurou na “nova terra”, a partir dos portugueses, foi o de uma monocultura agrária,
sustentada por uma mão-de-obra escrava, o que corresponderia, grosso modo, ao regime feud al
europeu, não ob stante o componente escra vo, característico das rela ções de exploração como as
que foram aqui estabelecidas
27
. Muitos desses colonos enriqueceram e se tornaram aristocratas
agrários, vivendo co m todo o luxo exigido pela vida da metró pole, mesmo se cons iderarmos as
condições materiais da Colônia, que não permitiam uma vida autenticamente aristocrática.
Uma das característica s da so ciedade colonial no Brasil foi a vida moral “dissoluta”,
sobretudo no que se refere à sexualidade
28
. A estrutura familiar era marcadamente patriarcal,
sob a chefia, no caso da s so ciedades a çucareiras, do “Senhor de Engenho”, por exem plo, o u, mais
tardiamente, do “Senhor do Café”, no caso das sociedades cafeeiras, que vigoraram sobretudo no
século XIX. Os “chefes” de família, muitos dos q uais proprietários de terras, reproduziam, de
forma extrema mente conser vadora , valore s e comp ortame ntos do h omem feudal . Como el es
eram senhores absolutos da família, caberia às respectivas esposas assumirem a função de
procriadoras, mães e “senhoras” do lar.
A pesquisa de Fr eyre identifica no homem po rtuguês o elemento central no tipo de
regime patriarcal e escravocrata que se implantou no Bra sil. Vejamos, a título de exemplo,
alguns fragmentos do capítulo primeiro de Casa Grande & Senzala:
27
Como se sabe, a relação entre senhor feudal e trabalhador não tinha exatamente o caráter de regime escravocrata. O
“vassalo”, apesar de ter de pagar a dívida ao senhor feudal, que lhe havia doado um lote de terra de seu feudo, tinha,
em princípio, liberdade física e psicológica, ao contrário do escravo, que era posse do seu senhor.
28
Cf. Freyre (1998).
92
Foi misturando-se gostosamente com mulheres de cor logo ao primeiro contato e
multiplicando-se em filhos mestiços que uns milhares apenas de machos atrevidos
conseguiram firmar-se na posse de terras vastíssimas e competir com povos grandes e
numerosos na extensão de domínio colonial e na eficácia de ação colonizadora. (F
REYRE,
1998, p. 9, grifo nosso)
Pelo intercurso com mulher índia ou negra multiplicou-se o colonizador em vigorosa e
dúctil população mestiça, ainda mais adaptável do que ele puro ao clima tropical. A falta
de gente, que o afligia, mais do que a qualquer outro colonizador, forçando-o à imediata
miscigenação [...] foi para o português vantagem na sua obra de conquista e colonizão
dos trópicos. (F
REYRE, 1998, p. 13)
Atraído s pelas po ssibilida des de u ma vida livre, inteiramente solta, no meio de muita
mulher nua, aqui se estabeleceram por gosto ou vontade própria muitos europeus [...].
Garanhões desbragados. (F
REYRE, 1998, p. 21, grifo noss o)
[...] as ligações de todos esses europeus, tantos deles na flor da idade e no viço da melhor
saúde, gente nova, machos sãos e vigorosos , ‘aventureir os moços e a rdentes , em
plena força’, com mulheres gentias, também limpas e sãs [...]. (F
REYRE, 1998, p. 21, grifo
nosso)
Uma espécie de sadismo do branco e de masoquismo da índia ou da negra terá
predominado nas relações sexuais como nas sociais do europeu com as mulheres das
raças submetidas ao seu domínio. (FREYRE, 1998, p. 50)
Resultado da ação persistente desse sadismo, de conquistador sobre conquistado, de
senhor sobre escravo, parece-nos o fato, ligado naturalmente à circunstância econômica
da nossa formação patriarcal, da mulher ser tantas vezes no Brasil vítima inerme do
domínio ou do abuso do homem; criatura reprimida sexual e socialmente dentro da
sombra do pai ou do mar ido. (F
REYRE, 1998, p. 51)
[...] no íntim o, o que o grosso do qu e se pode chamar ‘pov o brasile iro’ ainda goza é a
pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático. (F
REYRE,
1998, p. 51, grifo nosso)
93
No relato de Freyre (1998), os colonos portugueses, quando chegaram ao Brasil, tinham poucas
opções de relacionamento com mulheres brancas, o que os predispunha à miscigenação. A
constituição da família patriarcal no solo brasileiro, ainda segundo o autor, se tornou, já no
século XVI, “o grande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o
solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramenta s, a força social que se desdobra em
política, constituindo-se na aristocracia colo nial mais poderosa da América ” (F
REYRE, 1998, p.
19). Ora, questionamo-no s, se o homem europeu goza va na colônia de maior liberdade nas
relações sex uais, por que a necessid ade de constituir família, num regime pa triarcal, como esfera
da vida privada? A resposta pode ser depreendid a do próprio texto freyriano, na medida em que,
segundo o autor, europeus aventureiros, como degredados, cristãos-novos, náufragos, traficantes
de escravos, de papagaios e de madeira, não deixaram marca rele vante na estrutura econômica
brasileira. Foi a necessidade de desbravar a nova terra, de cultivá-la, de extrair-lhe riqueza, de
acumular capital, de tornar-se uma aristocracia rural, de fortes traços burgueses, que trouxe
junto a si uma necessidade de construir laços matrimoniais que permitissem, pela estrutura
familiar patriarcal, criar uma instituição que garantisse a unidade produtiva, o capital, “a força
social que se desdobra em política”. O povo português, segundo Freyr e (1998), há séculos antes
do processo de coloniza ção no Brasil já era o mais voltado ao comércio e o menos rura l da
Europa, em razão da forte presença do mercantilismo burguês e semita, assim como da
escravidão moura, sucedida pela negra. Assim, cedo se mostra ram os verdadeiros propósitos da
política colonial no Brasil: mediante trabalho escravo, os portugueses, guiados pelo instinto
econômico, em vez de se valer da colônia para extrair-lhe riquezas apenas, criou condições para
transformá-la em local de riqueza (cf. F
REYRE, 1998). Não recebiam, para ta nto, os auspícios do
Reino português. Criou-se aqui no s trópicos um tipo de política econômica e social jamais vista
em outros tipos de coloniza ção: por um la do, a exploração e o c ultivo da riq ueza vegetal pelo
capital particular; p or outro, a utilização da mulher nativa, no s primeiros tempos, nã o somente
como instrumento de trabalho, mas também como elemento de formação do núcleo familiar. A
família torna-se, pois, uma estrutura preponderante para a constituição de uma aristocracia
agrária, escravocrata e mercantilista que se instauraria nos solos brasileiros.
No entanto, mesmo com as família s assentadas no solo brasileiro, o senhor colonial
gozava de uma liberdade moral que era interditada à mulher, interdição nem sempre
verdadeiramente respeitada
29
. Ou seja, o senhor mantinha relações sexuais com as índias e, mais
tardiamente, com escravas, escravos, “negr inhas” ou “negrinhos” e com sua esposa, objeto s
29
Trevisan (2002, p. 121) salienta o fato de ter sido o convívio social desse período muito vigiado, circunscrevendo as
mulheres brancas ao lar; dessa forma, “os namoros e adultérios só podiam se iniciar nas igrejas, tornadas verdadeiras
válvulas de escape sentimentais”. Sobre a função da Igreja no período colonial, discutiremos mais adiante.
94
mantidos como verdadeiras posses do patriarca. Quanto às relações libidinosas com índias e
escravas, o senhor de enge nho funcionava , nas palavras de Freyr e, como “garanhões
desbragados”. O ventre das negras, por exemplo, constituíram local de riqueza, na medida em
que produziam “muleques”, muitos dos quais, sem o r econhecimento da patern idade, tornara m-
se mão-de-obra escrava privatizada.
É evidente que a estrutura patriarcal, como o próprio nome o diz, implica o elemento
masculino como núcleo das relações conjugais e, por extensão, das relações soc iais, por meio de
valores criados e reproduzidos por ambas as esferas sociais: a pública e a privada. É por isso que
Freyre caracteriza a política colonial como marcada por um “governo masculino e corajosamente
autocrático”. Autocrático por gozar de maior liberdade de decisão, pelo menos até a chegada de
D. João VI, em 1808. Observe-se que Freyre admite que o povo brasileiro ainda goza dessa
pressão de um governo masculino, marcado por um sado-masoquismo característico das
relações sexuais que aqui se estabeleceram. Ou seja, na década de 1930, quando o sociólog o
brasileiro publicou sua obra de fôlego, percebiam-se claramente resquícios desse tipo de governo
masculino, o que nos permite sus tentar que as f ortes características do patriar calismo nos
acompanharam, pelo menos, até a primeira metade do século XX, quando as transformações
mundiais, em termos de cultura e compo rtamento, ex erce ram infl uência decis iva sob re noss a
forma de conceber a masculinidade.
No que diz respeito à conduta, há um argumento preconceituoso de qu e teriam os negros
corrompido a vida sexual da sociedade brasileira, uma vez que eles constituiriam uma raça
libidinosa, selvagem, predisposta a satisfazer o apetite sexual. Esse tipo de afirmação corrobora a
representação social que, no período moderno, se construiu sobre o negro: uma anti-norma da
masculinidade; um contra-tipo. Daí por que o povo brasileiro é concebido, por alguns, como uma
raça miserável, marcada p ela inércia e indolência, resultado da miscigenação de raça s distintas
(cf. F
REYRE, 1998). Ironicamente, o s negros, que contribuíram para a formação do povo
brasileiro, foram a mão -de-obra escrava responsável pela sustentação da economia colonial,
valendo-se, para ta nto, de sua força física no plantio e colheita da cana-de-açúcar. Freyre salienta
o caráter afrodisíaco dos africanos em contraposição à frieza e dureza dos europeus que
habitavam acima de Portugal. No entanto, vale ressaltar a bicontinentalidade como traço
característico de Portugal, que contém na g ênese de sua cultura influências européias, por um
lado, e africanas, por outro, pelo contato que tivera com os mouros. Assim, se é válido marcar
dessa forma a sexualidade dos africano s, admitamos que os portugueses se cons tituíram como
um povo mais predisposto à atmosfera afrodisíaca. Opondo-se veementemente à hipótese d e
95
corrupção da vida sexual brasileira pelos negros, Freyre (1998) a firma que a depravação sexual é
inerente a todo e qualquer sistema escravocrata, como se observa na citação a seguir:
É [a depravação sexual] da essência mesma do regime [de escravidão]. Em
primeiro lugar, o próprio interesse econôm ico favorece a depravação criand o
nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o maior número
possível de crias. [...] Dentro de semelhante atmosfera moral, criada pelo
interesse econômico dos senhores, como esperar q ue a escravidão — fosse o
escravo mouro, negro, índ io ou malaio — atuasse senão no sentido da
dissolução, da libidinagem, da luxúria? O que se queria era que os ventres das
mulheres gerassem. Que as negras produzissem muleques [sic]. (F
REYRE, 1998,
p. 316 - 1 7)
Reforçando esse mesmo argumento, a crescenta mais adiante:
Nas condições econômicas e sociais favoráveis ao masoquismo e ao sadismo
criadas pela colonização portuguesa — colonização, a princípio, de homens
quase sem mulher — e no sistema escravocrata de organizaç ão agrária do
Brasil; na divisão da sociedade em senhores todo-poderos os e em escravos
passivos é que se devem procurar as causas principais do abuso de negros por
brancos, através de formas sadistas de amor que tanto se acentuaram entre nós;
e em geral atribuídas à luxúria africana. (F
REYRE, 1998, p. 32 1)
O regime de sexo dentro da família buscava fazer do homem uma criatura tão diferente
da mulher quanto possível: ele, o sexo f orte e nobre; ela, o sexo fra co e belo. A exploração da
mulher pelo homem não é característica a penas do regime da família patriarcal, mas convém a
esse tipo de estr utura familiar a extrema especialização e diferenciação entre os sexos. Há, po is,
na concepção de Freyre (199 6), um padrão duplo de moralidade , donde ao homem são
oferecidas toda s as condições de g ozo físico do a mor, limitando à mulh er o dever de ir para a
cama com o marido sempre que ele estiver disposto a procriar. Além disso, esse padrão duplo de
moralidade “dá também ao homem todas as oportunidades de iniciativa, de ação social, de
contatos diversos, limitando as oportunidades da mulher ao serviço e às artes domésticas, ao
contato com os filhos, à parentela, às amas, às velhas, aos escravos” (F
REYRE, 1996, p.93). Como
96
se verifica aqui — a vida da mulher restrita à esfera privada e a do homem aberta à esfera pública
—, há uma semelhança entre a política do sexo no Brasil Colônia e a das nações européias,
dominada cada vez mais pela dinâ mica da burguesia. Do nde a reprodução dos valores moderno s
burgueses nas terras ultramarinas.
O poder do sexo era ensinado aos homens desde o fim da infância, que era interrompid a
muito cedo e abruptamente. No s istema patriarcal, há uma distância so cial muito nítida entre o
menino e o homem; nas exp ressões port uguesa s, entr e “pár vulos” e “adu ltos” ( cf. F
REYRE, 1996,
p. 67). No estudo de Freyre (1996; 1998), os meninos, diante do prestígio de ser homem feito,
deixam-se amadurecer “morbidamente”, antes do tempo. Do ponto de vista dos valores culturais
e morais, sua educação era confiada à Igreja, aos jesuítas, q ue não se abstinham de castiga r, com
a permissão dos pais, os alunos indisciplinados. Além disso, ficava a cargo dos pa is, das mães e
das mucamas o incentivo direto ou indireto à vida precoce de garanhão. Algumas mães
desembaraçadas, conforme Freyre (1998), empurravam para os braços dos filhos adolescentes
negrinhas ou mulatas, a fim de lhes despertar o apetite sexual. O medo de ter um filho “marica”
ou “donzelo” já era comum na casa -grande do tempo da escra vidão. De acordo com Freyre (1998,
p. 372), o que sempre se apreciou na família colonial brasileira foi “o menino q ue cedo estivesse
metido com raparigas. Raparigueiro, como ainda hoje se diz. Femeeiro. Deflorador de mocinhas.
E que não tardasse em emprenhar negras, aumentando o rebanho e o capital paternos”.
O perfil aristocrático do s senhores de eng enh o exigia o cuidado excessivo da mão escrava,
o que tendia a torná-los mais ociosos. Não foi po r acaso que o diplomata inglês Richard Burton
(apud F
REYRE, 1998, p. 468) salientou tanto do homem ibero-brasileiro, quanto dos anglo-
americanos, a “beleza, pequenez e delicadeza dos pés e mãos às vezes exageradas, degenerando
em efeminação”, em contraste com as mãos e p és grandes dos ingleses e portugueses. O senhor
branco era, de fato, tratado “principescamente” pelos escravos (cf. T
REVISAN, 2002). No entanto,
havia uma supervalorização do pênis, que deveria ser, nas palavras de Freyre (1998, p. 429),
“arrogantemente viril”, como forma de o homem poder mostrar-se um legítimo procriador.
Segundo consta em Freyre (1998), um senhor de engenho em Pernambuco, em meados do século
XIX, mandava insp ecionar o membro dos que se candidatavam ao casamento com uma de suas
filhas, a fim de verificar se seu futuro genro apresentava as qualidades de um bom procriador. Se
na Europa do perío do moderno a masculinidade esta va associada a um tipo padrão de corpo, no
Brasil o corpo mascul ino reduziu-se quase que exclusivamente ao membrum virile (cf. F
REYRE,
1998). Não obstante a estatura “a molecida” dos senhores brancos, eles se mostravam duros e
corajosos em situações que se colocavam como ameaça ou desafio ao seu poder aristocrático e
97
patriarcal. Para Freyre (1998, p. 429), “souberam empu nhar espadas e repelir estrangeiros
afoitos; defender-se de bugres; expulsar da co lônia capitães-generais de Sua Magestade”.
Para finalizar o quadro histórico do período colonial no Brasil, tendo em vista a
compreensão do mito brasileiro da masculinidade, não podemos nos a bster de um comentário
sobre a função da Igreja na colônia brasileira. Referimos anteriorment e que cabia aos jesuítas —
de um rigor moral irrepreensível, conforme Freyr e (1998) — a educação cultural e moral dos
jovens, tomando-se como parâmetro a moral cristã. No entanto, se, de acordo com Freyre (1998,
p. 30), o Catolicismo funciono u como “cimento da nossa unidade”, o u seja, como responsável
pela sedimenta ção — bem suced ida, a propósito — de uma ideo logia e de uma conduta
marcadamente cristã, também se apresentou, c ontraditoriamente , num clima de “r eligiosidade
hedonista, do qual não escapava nem mesmo o clero” (T
REVISAN, 2002, p. 121). As festa s
religiosas eram, na leitura de Trevisan (2002), acompanhadas po r desfechos profanos. Muitos
dos santos cultuados no solo br asileiro eram, a propósito, associados à sexualidade e à
procriação (cf. T
REVISA N, 2002), como, por exemplo , Santo Antô nio (casament eiro) e Nossa
Senhora do Bom Parto (protetora da maternidade)
30
.
Contudo a colô nia portuguesa não esteve livr e do o lhar censor e punitivo da Inquisição.
Se na Europa, em geral, na época correspondente à colonização po rtuguesa, a Igreja ainda
reinava soberana, na Península Ibér ica , pa rticular mente, a si tua ção era dif erente. Tant o Portuga l
quanto Espanha estabeleceram uma união entre Es tado e Igreja, de forma que a s decisões
políticas partiam dos interesses conjuntos dessas duas esferas institucionais. Com relação à
Inquisição, originalmente um trib unal eclesiástico, o Estado desde cedo dela se apossou, com o
fito de perseguir objetivos de natureza política, mais do que propriamente religiosa.
O sistema legislativo em Portug al, articulado com os interesses da Igreja Cató lica, quando
da época da colonização, não apresenta va coerência quanto a quais eram as infrações
criminosas. Num ponto, porém, havia unanimidade: era considera do criminoso, s ujeito à morte
ou ao exílio, o indivíduo herege, que negasse a fé cristã ou co metesse atos considerados
blasfemos à ordem religiosa vigente. Era dessa forma que a Igreja Católica conseguia ma nter seu
poder, inclusive nas colônias portuguesas. A sodomia, por exemplo, era um delito que deveria ser
punido severamente. De acordo com Trevisan (2002, p. 157),
30
Trevisan (2002, p. 121) menciona as festas de São Gonçalo do Amarante, santo incumbido de encontrar marido ou
amante para jovens e velhas senhoras, que enchiam as igrejas de rituais e danças pagãs. Uma das trovinhas que
herdamos da cultura portuguesa é a seguinte: “São Gonçalo do Amarante,/ meu santo casamenteiro,/ casai as minhas
amigas/ mas casai-me a mim primeiro”. Tudo isso levou os cônegos da Igreja de São Gonçalo, tempos depois, já no
início do século XIX, a proibirem essas festas.
98
seus praticantes eram condenados a punições capazes de desafiar as mais
sádicas imaginações, variando historicamente desde multas, prisão, confisco d e
bens, banimento da cidade ou do país, trabalho forçada (nas galés ou não),
passando por marca de ferro em brasa, execração e açoite público até a
castração, amputação das orelhas, morte na forca, morte por fogueira,
empalamento e afogamento.
Curioso é ter sido a sodomia perseguida não somente nos países católic os, mas também
nos protestantes, como Inglaterra, Suíça e Holanda. Ou seja, era um crime que se voltava contra
os preceitos patriarcais do cristianismo e contra a Natureza. No que respeita ao universo
católico, no sécu lo XVI, em razão da Reforma Protestante, a Igreja empreende uma política
contra-reformista, em cujos expedientes de control e doutrinário e moral destaca-se o Tr ibunal
do Santo Ofício da Inquisição, a ssociado à Igreja Roma na. Em Portugal, o Tribunal da Santa
Inquisição começou a funcionar em 1536, continuando suas atividad es até 1765. A preocupação
com a colônia brasileira, por exemplo, era compartilhada ta nto pelo poder eclesiástico quanto
pelo poder real, uma vez que se temia o desleixo moral dos habitantes brasileiros, tão distantes
geograficamente da metrópole. Trevisan (2002) admite que, diante de uma copiosa
documentação de difícil acesso, pouco ainda s e conhece sobre as ações concretas da Inquisição
nas colônias portuguesas. Destaque-se que, no Brasil, nunca foi instalada uma me sa inquisitor ial
do Santo Ofício. O país se encontrava sob a competência do tribunal de Lisbo a. Dessa forma, os
processos eram levados para a Corte. A Inquisição no Brasil foi extinta, segundo D. Estevão
Bettencourt, em 1774, q uando o Santo Ofício foi oficial mente transformado em tr ibunal régio,
sem autonomia, comple ta mente dependent e da Coroa
31
.
Quase sempre os visitadores vinham ao Brasil sob a ordem do Conselho Geral da
Inquisição em Portuga l, mas não foram poucas as vezes em que s ua presença foi solicitada por
autoridades da própria Colônia, por exemplo, “quando o provincial da Companhia de Jesus
escreveu ao Conselho Português, pa ra denunciar a existência de grande escândalo (...) em razão
(...) de cousas de judaísmo, como d e feitiçaria s e do peca do nefando ” (T
REVISAN, 2002, p. 128). O
pecado nefando era um termo de que se valiam os inquisidores para se referirem ao coito anal,
também designado como “tocamento desones to”, “tocamento to rpe”, “trabalho nefando”, ou
simplesmente “nefando” (T
REVISAN, 2002, p. 132). Sa liente- se q ue, ness es t ermos, os
determinantes participam de um mesmo paradigm a cujos valores são moralmente negativos. A
sodomia, não ob stante ser praticada também com mulheres, pressupunha, antes de mais nada,
31
In: http://www.midiasemmas cara.com.br/artigo.php?sid=2267
99
relações entre homens, o que era radicalmente proscrito, no caso, pela ordem c ristã. Segundo
consta nos documentos disponibiliz ados (cf. T
REVISAN, 2002), no caso do Brasil,sil,rdo; a .12sa, no ca(il,)(re)46412filh(il,)(re)4641, no caoãc0.1so62
100
do trabalho “livre”. No Brasil o escravismo gerou três classes sociais distintas — latifundiários ,
escravos e homens livres. O sistema agrário era dominante ainda em terras bra sileiras e, por
isso, o poder político-econômico s e concentrava nas mãos dos la tifundiários. N a análise de
Schwarz (2000a), a multidão de sujeitos que compunham a terceira classe, a dos homens livres,
não era nem latifundiária nem es crava, restando-lhe a opção de viver do favor dos po deroso s. Se
o escravismo chocava-se com as idéias liberais, o sistema de favor procurou absorvê-las e
101
mudanças e continuam reproduz indo os mesmos valores que conferiram a o sexo masculino o
poder hegemônico. Quanto às camadas po pulares, o orgulho de ser homem e de pertencer ao
grupo sexual socialme nte privilegiado faz co m que a resistênc ia às alterações estruturais da
família do tipo burguesa seja ainda maior.
Situações surpreendentes de violência envolvendo homens levam Trevisan (1998) a
interpretá-las como s endo sintomas da crise da masculinidade. O caso do índio pataxó, q ue, em
1997, foi queimado vivo por um g rupo de cinco rapazes de c lasse média da cidade de Brasília,
chamou a atenção pela crueldade. Esse e outros casos envolvendo vio lência entre torcidas de
futebol organizadas, formação de gangues de lutadores de jiu-jitsu, crimes cruéis de homens
contra mulheres constituem focos de concentração de agentes ma sculinos que resistem às
mudanças impostas pelo mercado ao s ideais modernos de masculinidade. Logo, trata r da
masculinidade no contexto da sociedade brasileira não pode se restringir a uma visão
generalizadora e universalista. O problema é muito mais complex o e exige, porta nto, uma
atenção maior.
Quanto à questão da anti-norma, especificamente o “homossexualismo”, a pesquisa d e
James N. Green (2000) traz resultados surpreendentes. Curioso é que nos deparamos com uma
leitura lúcida de um aspecto da nossa realidade social, feita por um intelectual estrangeiro, um
brasilianista de origem norte-americana. Em nossa sociedade, o homo ssexual assumido sempre
foi recebido e tratado de maneira ambígua. Geralmente, ou são associados ao carnaval, à
brincadeira, ao espírito festivo — um “bobo da corte” que faz rir —, ou à imoralidade, à violência
contra o pudor — um pária, que merece ser punido. Ao analisar a “homossexualidade” masculina
no Brasil do século XX, Green (2000) sustenta a tese de que, por trás de uma aparente
condescendência por parte da sociedade local com relação à figura do homossexual (o que a festa
do Carnaval deixa supor), esconde-se um preconceito violento , que pressiona os homossexuais,
de certa maneira, a se manterem longe da vida pública. Contra todas as repressões a que estão
sujeitos, os gays foram conquistando, a duras penas, uma visibilida de e uma força polít ica sólida ,
o que veio a lhes garantir um e spaço na sociedade dedicado às discussões d e ordem jurídica,
inclusive.
Na busca de elementos que venham a engrossar a discussão sobre masculinidade,
procuraremos, a seguir, levantar algumas considerações acerca de como a literatura , durante o
período moderno, produziu e reproduziu idéias a respeito do masculino. O passeio que faremos
por algumas literaturas será de caráter ilustrativo para as questões já levantadas nesse trabalho,
portanto a menção a determinadas obras será absolutamente aleatória. No próximo capítulo,
procederemos à análise sistemática do corpus.
102
3.4. A literatura moderna e o mito da masculinidade
Comecemos essas considerações com a seguinte a firmação: na literatura moderna, a voz
poética hegemônica era a do homem. Q uando em séculos passa dos, por exemplo, alguma s
mulheres escreviam textos literários, as mais das vezes usava m pseudônimos ma sculinos, como
forma de garantir a a ceitação do público. Interessa-nos, entr etanto, tomar como ponto de
partida da discussão o fato de termos, no cânone literário moderno, uma quantidade majoritária
de autores masculinos, do nde não será difícil encontrar ideologias que corresp ondam aos ideais
burgueses de masculinidade.
Além disso, observamos que esses textos literários veiculam um discurso masculino, pelo
fato de ter o homem — voz lír ica masculina — se colocado com o sujeito do discurso, tomando,
quase sempre, a mulher como objeto de desejo desse mesmo discurso. Um dos sintomas desse
fato é apontado por Sant’Anna (1993) ao salientar a freqüência com que os poetas se referem ao
corpo feminino, em contraste com a rara menção ao corpo masculino. Para o autor, isso se deve
ao preconceito histórico de que o homem s e caracteriza pela razã o (espírito), enquanto a mulher,
pela sensualidade e forma física.
A título de ilustração, citemos o tão exaustivamente analisado soneto de Gregório de
Matos (1976, p. 202):
Anjo no nome, Angélica na cara!/Isso é ser flor , e Anjo junt amente:/Ser
Angélica flor, e Anjo florente,/Em quem, senão em vós, se unifor mara://Quem
vira uma flor, que a não cortara,/De verde pé, da rama florescente;/E quem um
Anjo vira tão luzente, /Que por seu Deus o não idolatrara?//Se pois como Anjo
sois dos meus altares,/Fôreis o meu custódio, e minha guarda,/Livrara eu de
diabólicos azares.// Mas vejo, que tão bela, e tão ga lharda,/ Posto que os Anjos
nunca dão pesares,/ Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.
Verifica-se, nesses versos cultistas, um jogo de p alavras cujas metá foras aponta m para a
relação antitética céu/terra, sagrado/profano, tão ao gosto dos barrocos. A mulher é focada como
objeto do desejo do eu-lírico, e enca rna a dualidade, geradora de ambigüidade, de ser sagrada —
observe-se a imagem do anjo — e mundana — conceito representado pela metáfora da flor. Ao
mesmo tempo que a mulher seduz o homem pelo perfil angelical, também o faz pela frescura do
corpo florente. Logo, a sedução da carne e, em c onseqüência, o pecado é gerado , a exemplo de
Eva, unicamente pelos encantos físicos da m ulher, que se torna ainda mais perigosa quando se
103
disfarça na candura de um anjo. A mulher, através do seu corpo, tenta o homem, perturbando
seu espírito. No verso “Quem vira uma flor, que a não cortara”, podemos encontrar uma sugestão
ao contato dos corpos, à relação sexual, se c onfrontarmo-lo, por exemplo, co m a pa lavra
“deflorar”, comum já ne ssa época, cujo sentido meta fórico, depend endo do co ntexto, vem a ser
“desvirginar”.
Em pleno século XVII, no contexto do Bra sil Colônia, depara mo-nos com um discurs o
que expressa os ideais burgueses de masculinidade e é atra vessado por um interdiscurso, o
religioso. Isso se verifica quando nos depara mos com a figura da mulher associada ao instinto
sexual, cabendo ao homem, heterossexual, macho, suscetível aos prazeres que os corpos
femininos proporcionavam, o status de vítima do peca do, encarnado pela figura da mulher. A
diferença entre os sexos está traçada em todo o poema, em que temos, de um lado, o homem que
busca o equilíbrio espiritual, e, de outro, a mul her, que é toda luxúria, perturbando, assim, a
integridade moral do homem.
Encon tramos, tamb ém, e sobretu do, no contexto da literatura euro péia, alguns ex emplos
ilustrativos do discurso ma sculino dominante, tal como se desenvolveu na sociedade burguesa .
Lancemos um breve olhar sobre a fala de Don Juan, de Mol ière ( 19 97, p . 12- 14) , no mom ento em
que Leporelo (Sganarelle, no original francês), seu cr iado, desaprova-lh e a conduta de sedutor:
DON J UAN
Não diga! Você pretende que uma pessoa se ligue definitivamente a um só
objeto de paixão, como se fosse o único exist ente? Depois disso renun ciar ao
mundo — ficar cego para todas as out ras formosura s? Bela coisa, sem dúvida,
uma pessoa em plena juventude enterrar-se para sempre na cova de uma
sedução, morto para todas as belezas do mundo em forma de mulher. Tudo em
nome de uma honra artificial que chamam fidelidade? Ser fiel é ridículo, tolo, só
serve aos medíocres. Todas as belas têm direito a um instante de nosso
encantamento. E a fortun a de ter sido a primeira não pode impedir às outras o
direito de estremecer o nosso coração. A mim a beleza me enlouquece em
qualquer lugar em que a encontre; e cedo facilmente à doce violência com que
me domina. Em amor é lindo estar comprometido. Mas o compromisso que
tenho com uma beleza não impede minha alma de ser justa com as outras. [...] e
se mil rostos formosos me pedissem, partiria em mil meu coração para atendê-
los. [...]. Há uma doçura extrema em dominar, com cem ou mil galanteios, o
coração de uma jovem esplêndida, vendo, dia a d ia, o progresso de nossa
penetração. .. em sua ânsia. Inva dindo, com lances de arrebatamento, prantos e
promessas, o pudor inocente de uma alma e vendo-a, aos poucos, perdendo
104
qualquer vontade de se defender. Forç ando, passo a passo, todas as últimas
pobres resistências que ela nos opõe, vencendo essa teia de escrúpulos que
formam sua honra, levando-a carinhosamente até... até onde queremos. Mas,
uma ve z possu ída, nã o há mais o q ue diz er, ou d esejar . Toda a bel eza da paixão
se acaba e dormimos na serenidade do amor conquistado, até outro estímulo
despertar nossos desejos com a irresistível atração do novo. Enfim, não há nada
tão doce quanto dobrar a resistência de uma bela mulher. Nisso minha ambição
é igual à dos grandes conquist adores, que voam eternamente de batalha em
batalha, jamais se resignan do a limitar sua ambição. Também não faço nada
refreando a impetuosidade dos meus desejos. Minha vontade é seduzir a Terra
inteira. Como Alexandre lamento que não haja outr os mundos para estender até
lá minhas conquistas amorosas
34
.
O mito de Don Juan era muito popular e circulava pela Europa antes de Molière escrever sua
peça. A primeira adaptação literária do mito devemos a Tirso de Molina, com a peça El Burlador
de Sevilla (1630), apesar de este não ter sido o criador da personagem lendária. Muitos estudo s
foram realizados a partir de Don Jua n, mas o que nos interessa particularmente é flagrar os
valores masculinos que perpassam o discurso da personagem. Vale salientar que Don Juan
exercia no público um fascínio, paralelamente à reprovação de que eram alvo os seus atos
inescrupulosos pa ra uma sociedade católica e burguesa. Tal fascínio se devia ao comportamento
tipicamente masculino da personagem, conforme os ideais modernos de mascul inidade — o
34
Tradução e adaptação de Millôr Fernandes. No original de Molière, encontramos o texto a seguir: DOM JUAN —
Quoi? tu veux qu’on se lie à demeurer au prernier objet qui nous prend, qu’on renonce au monde pour lui, et qu’on
n’ait plus d’yeux pour personne? La belle chose de vouloir se piquer d’un faux honneur d’être fidèle, de s’ensevelir
pour toujours dans une passion, et d’être mort dés sa jeunesse à toutes les autres beautés qui nous peuvent frapper les
yeux! Non, non la constance n’est bonne que pour des ridicules; toutes les belles ont droit de nous charmer, et
l’avantage d’être rencontrée la première ne doit point dérober aux autres les justes prétentions qu ‘elles ont toutes sur
nos coeurs. Potir moi, la beauté me ravit partout où je la trouve, et je céde facilement à cette douce violence dont elle
nous entraîne. J’ai beau étre engagé, l’amour que j’ai pour une belle n’engage point mon âme à faire injustice aux
autres; je conserve des yeux pour voir le mérite de toutes, et rends à chacune les hommages et les tributs où la nature
nous oblige. Quoi qu’il en soit, je ne pu refuser mon coeur à tout ce que je vois d ‘aimable; ets qu’un beau visage me
le demande, si j’en avais dix mille, je les donnera tous. Les inclinations naissantes, aprés tout, ont des charmes
inexplicables, et tout le plaisir de l ‘amour est dans le changement. On goûte une douceur extrême à réduire, par cent
hommages, le coeur dune jeune beauté, à voir de jour en jour les petits progrès quon y fait, à combattre par des
transports, par des larmes et des soupirs, l’innocente pudeur d’une âme qui a peine à rendre les armes, à forcer pied à
pied toutes les petites résistances qu’eIle nous oppose, à vaincre les scrupules dont elle se fait un honneur et la mener
doucement où nous avons envie de la faire venir. Mais lorsqu’on en est maître une foi, il n’y a plus rien à dire ni rien à
souhaiter; tout le beau de la passion est fini, et nous nous endormons dans la tranquillité d’un tel amour, si quelque
objet nouveau ne vient réveilier nos désirs, et présenter à notre coeur les charmes attrayants d’une conquete à faire.
Enfin il n’est rien de si doux que de tr iompher de la résistance d’une belle personne, et j ‘ai sur ce sujet l’ambition des
conquérants, qui volent perpétuellement de victoire en victoire, et ne peuvent se résoudre à borner leurs souhaits. Il
n’est rien qui puisse arrêter l’impétuosité de mes desires: je me sens un coeur à aimer toute la terre; et comme
Alexandre, je souhaiterais qu’il y eût d’autres mondes, pour y pouvoir étendre mes conquêtes amoureuses (M
OLIÈRE,
1987, p. 31-33).
105
garanhão sedutor de mulheres —, levando o público de uma soc iedade capitalista nascente a
encará-lo com certa simpatia, como uma concessão que se fa z ao legítimo “macho”.
Temos uma personagem representada por um homem bra nco, heterossexual, sensível aos
encantos femininos, do tado de um inco ntrolável apetite sexua l e da necess idade de dominar a s
parceiras. Caçoando dos valores morais cristãos, como a fidelidade no casamento, Don Juan
justifica seu comportamento lascivo pelo imperativo do impulso sexual, qualidade, portanto, do
macho “garanhão”. No trecho “Há uma doçura extrema em dominar, com cem ou mil galanteios,
o coração de uma jovem esplêndida, vendo, dia a dia, o progresso de nossa penetração... em sua
ânsia”, podemos observar três palavras que marcam, neste contexto, o discurso masculino:
dominar, galanteios e penetração. Dominar o coração de uma jovem esplêndida e torná-la,
mesmo que num curto espaço de tempo, sua propried ade, implica, em nossa sociedade
androcêntrica, o objetivo de todo homem que exerce sua masculinidade. Quanto mais mulheres
dominadas o homem e xibir em seu rol de co nquistas, mais valorizado se torna num tipo de
sociedade como a nossa. E essas c onquistas se fazem com galanteio s, palavras sedutoras do
homem varão, o único munido do direito, na sociedade fa locêntrica, de tomar iniciativa em
conquistas amorosas. Por fim, a penetração, palavra usada, de forma ambígua, pelo
comediógrafo, cujo sentido implícito de ato sexual, tomado pelo prisma do falo, gera o riso,
efeito previsto pela comédia. Numa cultura dominada pelos valores masculinos, o sexo é visto
como penetração, realçando-se a figura do falo di vinizado. Apesar de no original não ha ver a
palavra “penetração”, o sentido que é sugerido pelo ritmo da fala é o da penetração e o da cópula.
Esse sentido foi perspicazmente co nstruído na tradução de Millôr Fernandes, se
acompanharmos o ritmo da seguinte pa ssagem:
Há uma doçura extrema em dominar, com cem ou mil galanteios, o coração de
uma jovem esplêndida, vendo, dia a dia, o progresso de nossa penetração... em
sua ânsia. Invadindo, com lances de arrebatamento, prantos e promessas, o
pudor inocente de uma alma e vendo-a , aos poucos, perdend o qualquer vontad e
de se defender. Forçando, passo a passo, todas as últimas pobres resistências
que ela nos opõe, vencendo essa teia de escrúpulo s que formam sua honra,
levando-a carinhosamen te até... até onde queremos.
A partir da palavra “penetração”, há uma sucessão de orações reduzidas de gerúndio, o que
sugere o ritmo do coito, que se acelera (no último p eríodo, há um acúmulo de três orações
reduzidas de gerúndio) e continua até chegar ao até, que, repetido após uma pausa, sugere o
106
arfar do g ozo ma sculino . Essa estr utura tr ai uma voz masculina profundamente marcada. O
discurso masculino é construído e repro duzido não apenas no nível do conteúdo semântico, mas
também no nível da entonação, que é de ordem formal.
Valendo-nos de outro exemplo, podemos citar a literatura destinada aos leitores infa nto-
juvenis, um público que passa a ser valorizado pela sociedade moderna, considerando-se serem
eles consumidores em po tencial e futura mão-de-obra para o regime de produção capitalista.
Para crescerem conforme os padrões e idea is de uma socieda de burguesa, precisariam ser
educados para tal. Uma das formas de educação seria a literatura destinada aos jovens.
As histórias de Perrault (1628-1703), ainda que originalmente não tivessem sido escritas
para crianças, conquista ram grande êxito entr e o público infa nto-juvenil, fato que levou a s
escolas, aparelhos ideológicos do Estado, a trabalharem com essa literatura como forma de
educar moralmente as criança s, conforme a s ideologias burguesas. Em sua versão de
Chapeuzinho Vermelho, Perrault (apud Tatar, 2004, p. 338) acrescenta à história uma moral,
que reproduzimos a seguir:
Vemos aqui que as meninas, / E sobretudo as mocinhas / Lindas, elegantes e
finas, / Não devem a qualquer um escutar./ E se o fizerem não é surpresa / Que
do lobo virem o jantar. / Falo “do” lobo, pois nem todos eles / São de fato
equiparáveis. / Alguns são até muito amáveis / Serenos, sem fel nem irritação. /
Esses doces lobos com toda educação, / Acompanham as jovens senhoritas /
Pelos becos afora e além do portão./ Mas ai! Esses lobos gentis e prestimosos, /
São, entre todos, os mais perigosos.
35
A história da menina que vai à casa da avó para entregar-lhe alguns bolinhos e lá encontra o
lobo, por quem é devorada, é uma alegoria dos valores morais que a sociedade burg uesa
pretendeu desenvolver em sua população. A conotaçã o sexual no conto é flagrante se
considerarmos que Chapeuzinho Vermelho deita-se à cama junto do lobo, tira a roupa, conversa
com o lobo e é por ele “comida”. Mas o que nos interessa particula rmente são as representações
sociais construídas sobre as meninas e sobre os rapazes em sociedade, tal como podemos flagrar
na moral da história. Às moças é oferecido o conselho de se precaverem em relação aos homens
que são lobos. Elas são referidas a partir dos qualificativos lindas, elegantes e finas. Por um lado,
35
No original frans, o texto se encontra da seguinte maneira: “On voit ici que de jeunes enfants,/ Surtout de jeunes
filles/ Belles, bien faites, et gentilles,/ Font très mal d’écouter toute sorte de gens,/ Et que ce n’est pas chose étrange,/
S’il en est tant que le Loup mange./ Je dis le Loup, car tous les Loups/ Ne sont pas de la même sorte;/ Il en est d’une
humeur accorte,/ Sans bruit, sans fiel et sans courroux,/ Qui privés, complaisants et doux,/ Suivent les jeunes
Demoiselles/ Jusque dans les maisons, jusque dans les ruelles;/ Mais hélas! qui ne sait que ces Loups doucereux,/ De
tous les Loups sont les plus dangereux” (P
ERRAULT, 20 03) .
107
temos a representação da frag ilidade e passividade, que devem ser atributos de uma moça
burguesa respeitável; por outro, a representação dos homens como dotados de instinto sexual
irrefreável. Não se verifica nenhum julgamento moral em relação ao caráter do homem, senão
quando interfere na integridade moral das mo cinhas. O instinto sexua l parece ser propriedade
natural apenas do homem, po is são eles qu e seduzem as mocinha s. A crença de que ao ho mem é
dado o direito de exercer ativamente seu instinto sexual e à mulher, o dever de sofrer
passivamente a violência dess e instinto masculino foi necessária para que a sociedade firmasse
suas bases na estrutura da família patriarcal.
Vo ltando ao contexto da literatura brasileira, gostaríamos de mencionar, ainda, duas
obras do século X IX, que tra zem valores, ex plícitos ou implícitos, dos ideais de masc ulinidade. A
primeira delas é o poema épico de Gonçalves Dias, I-Juca Pirama. Poesia indianista , o texto
canta a honra do índio g uerreiro tupi, numa idealização que tem por ba se os valores da
sociedade burguesa européia. O g uerreiro cativo, em seu ritual de mo rte, pede ao inimigo a
liberdade, pois deixaria só o pai, ce go e doente. Interpretado como co varde, é solto pela tribo
inimiga. Ao saber que seu filho fugira “covardemente” da morte, o pai re nega-o e deseja-lhe
todas as desgraças. Humilhado e imbuído de orgulho, o filho volta à tribo contra a qual lutava e
entrega-se à morte, não sem antes se mostrar como bravo guerreiro. Não obstante os fatos
corresponderem, no geral, ao comportamento cultural de alguns grupos indígenas, como é o caso
do ritual de antropofagia, os valores de caráter e os conflitos psicológicos do índio cativo são
culturalmente europeus, especificamente da burguesia européia. Vejamos este fragmento do
Canto IV:
Aos golpes do imigo, / Meu último amigo, / Sem lar, sem abrigo / Caiu junto a
mi! / Co m pl ác ido rost o, / S ere no e co mp osto, / O ac erb o des go st o / C omig o
sofri (Dias, 2000, p. 50).
A lamentação do índio cativo carrega sentimentos de um nobre ca valeiro med ieval. Sua tristeza
se dá pela perda de um amigo, cujos laços de amizade, pautados na honra, no respeito e no
decoro, se conf iguram a partir de ca racterísticas d a cultura euro péia. O índio bras ileiro possui
outros valores que dizem respeito à sua própria cultura. No po ema, a expressão direta dos
sentimentos f az do índio um elegante, nobre e ín tegro cavalheiro europeu. A honra, a bravura, a
força, o espírito guerreiro e o equilíbrio são, como vimos anteriormente, ideais m odernos do
masculino, de forma que o nosso Romantismo teve na literatura um eficiente veículo para a
divulgação e cristalização do mito burguês da masculinidade.
108
Por fim, Bom-Crioulo é outra obra brasileira que se insere nas discussões sobre o
masculino. Nela encontramos a relaçã o homoerótica entre do is marinheiros, um negro, outro
branco e mais frágil. Muitas questões poderiam ser levantadas a partir desse livro, mas nos
ateremos ao tratamento que foi dado ao tema da “homossexualidade”. Num contexto em que
predominava a filosofia e a ciência positiva, a obra de Adolfo Caminh a apresenta uma narração
marcada pela técnica de laboratório: o romancista precisava agir como cientista, analisando
empiricamente as consideradas patologias sociais, de f orma que pudesse, assi m, intervir
precisamente sobre problemas específicos (o “prever para prover” da filosofia positiva). No
entanto, a própria ciência novecentista, como já tratamos, não conseguia abdicar dos
preconceitos, de forma q ue os resultados, sob a aparência de uma explicação científica rigorosa,
eram contaminados pelos mais variados mitos e crenças. Não foi diferente com o romancista de
Bom-Crioulo, que, no capítulo III, por exemplo, ao narrar uma cena erótica entre os dois
marujos, escreve:
Depois de um silêncio cauteloso e rápido, Bom-Crioul o, aconchegando-se ao
grumete, disse-lhe qualquer cousa no ouvido. Aleixo conservou-se imóvel, sem
respirar. Encolhido, as pálpebras cerrando-se, instintivamente de sono,
ouvi ndo, com o ou vid o pe gad o ao co nvé s, o maru lha r da s ond as n a p roa, não
teve ânimo de murmurar uma palavra. Viu passarem, como em sonho, as mil e
uma promessas de Bom-Crioulo: o quartinho da Rua da Misericórdia no Rio de
Jan eir o, os tea tro s, os pas sei os. ..; lem b rou-se do castigo que o negro sofrera por
sua causa; mas não disse nada. Uma sensação de ventura infinita espalhava-se
em todo o corpo. Começava a sentir no próprio sangue impulsos nunca
experimentados, uma como vontade ingênita de ceder aos caprichos do negro,
de abandonar-se-lhe para o que ele quisesse — uma vaga distensão dos nervos,
um prurido de passividade...
— Ande logo! murmurou apressadament e, voltando-se.
E consumou-se o delito contra a natureza.
(Caminha, 1997, p. 37-38)
A exemplo da literatura naturalista, encontramos em Bom-Crioulo uma descrição biológica do
sexo, o que, em princípio, não geraria surpresa no leitor. O último enunciado, no entanto, chama
a atenção pelo que encerra de juízo valorativo. O “delito contra a natureza” corresponde à prática
de desejo homoerotizada, conside rando-se que natural é a prática “heterossexual”. Este
109
enunciado denuncia um discurso médico-natura lista preconceituoso, es tigmatizando como
patológica e desviante a relação homoerótica. Além disso, concebe as prá ticas sexuais a partir
das representações sociais que costumam separar os indivíduos entre pa ssivos e ativos. No
exemplo citado, Bom-Crioulo assume o papel de ativo, ao passo que Aleixo sente “um prurido de
passividade”. A rela ção erót ica continua a ser representada apenas pelo ato de penetração,
precisando-se, conforme modelo dualista adotado, de ter um ativo (o que penetra) e o passivo (o
que é penetrado). Na sociedade burguesa patriarcal, o primeiro corresponderia ao homem; o
segundo, à mulher. Procura-se transferir o mesmo modelo de dominação ma sculina para as
relaçõ es ho moerot izada s, de for ma que se prec isa conceb er um s ujeito q ue seja o ativo e outro , o
passivo. Apesar da grande coragem do escritor de ter oferecido ao público novecentist a uma obra
conte ndo cena s exp líc ita s de ho moer otis mo, a represen tação do fenô meno não conseg ue se
desvencilhar das crença s hegemônicas sobre o masculino nem das relações de poder que
envolvem o homem.
3.5. Categorias centrais: o discurso masculino burguês e sua a lteridade
A fim de que nossa análise, nos capítulo seguintes, seja compreendida com maior clareza,
procuraremos, neste tópico, sistematizar o que entendemos por discurso masculino burguês e
por alteridade, não obstante estarem os pontos que aqui levantaremo s, de certa forma,
disseminados em linhas anteriores. Isso se faz necessár io, uma vez que essas duas categorias
foram tomadas por nós como instrumentos teóricos fundamentais para a investigação da
chamada crise da masculinidade no mundo contemporâ neo.
Comecemos pelo discurso masculino burguês. Como o discurso é neste trabalho
concebido como uma prática social de significaç ão, falaremos de um discurso masculino quando
nos depararmos com práticas discursivas cujos valores ideológicos interferem na s
representações sociais que se tem do “homem”. O qualificativo “burguês” restringe o campo
semântico da expressão, associando as representações sociais sobre o masculino aos valores
modernos da burguesia. O discurso masculino burguês é, pois, uma prática de significação do
mundo, marcada pela ideolog ia androcêntrica, a fim de manter os interesses políticos e
econômicos da burguesia. Esse discurso teve seu momento áureo no século XIX, quando se
estabeleceu como ordem discursiva hegemônica no Ocidente.
Catalogaremos alguns desses valores que, nas práticas discursivas, constituem o sistema
de crenças burguês do homem moderno:
110
a) comportamento viril — potência, poder e posse — aliado à contençã o das violentas
expressões emocionais (característic as essa s do homem medievo);
b) aspectos visuais que denotem virilidade, como a força e a beleza corpórea do homem;
c) imagem de trabalhador sério e exemplar;
d) a família como célula (privada) da sociedade;
e) ser branco, heterossexual, saudável, forte, valente, destemido e auto-controlado.
Nenhum desses valores, por si só, seria suficiente para caracterizar o discurso com o qual
trabalhamos. O discurso masculino burguês é dinâmico e histórico, da ndo-nos a idéia de uma
prática específica pela forma como os valores acima arrolados se relacionam dentro de uma
mesma formação discursiva. Por exemplo, vejamos como Hobsbaw m (2000, p. 329) sintetiza
aspectos desses valores a partir da dinâmica da socialização burguesa:
A “família” não era meramente a unidade social básica da sociedade burguesa,
mas também a unidade básica do sistema de prop riedade e das empresas de
comércio, ligadas a outras unidades similares por meio de um sistema de trocas
de mulheres-mais-propriedade (o dote d o casamento) em que as mulheres
deveriam ser, pela estrita convenção derivada de uma tradição pré-burguesa,
virgines intactae. Qualqu er coisa que enfraq uecesse essa unidade familiar er a
inadmissível, e nada a enfraquecia mais do que a paixão física descontrolada, que
introduzia herdeiros e noivas “in adequados” (isto é, economicamente
indesejáveis), separava maridos de mulheres e desperdiçava recursos comuns.
Mesmo assim se tratava de um tipo de mora l sustentada com certa dos e de hipocrisia (cf.
H
OBSBAWM, 2000) no que se referia ao comportamento masculino: exigia -se a castidade das
mulheres solteiras e fidelidade para as casadas; paralelamente, verificavam-se “a caça livre de
todas as mulheres (exceto talvez filhas casadoiras das classes médias e altas) por todos os jovens
burgueses solteiros, e uma infidelidade tolerada pa ra os casados” (H
OBSBAWM, 2000, p. 325).
Esse jogo dentro das famílias era aceito como natural.
Não podemos de ixar de considerar, também, o cruzamento entre esse discurso buguês e
o discurso religioso sobre o masculino. Apesar da história da ascensão da burguesia ter sido
acompanhada por uma lenta e prog ressiva laicização do Estado, é importante lembrar que a
moral cristã, se punha empecilhos às novas de scobertas científicas (cit emos, a título de exemplo,
111
a teoria evolucionista de Darwin), se rvia ideolog icamente aos interesses de muitos dos Estados
burgueses. Além disso, os ideólogos burgueses não podiam se privar da religião, que constituía,
ainda nessa época, “o idioma no qual a es magadora maioria da popul ação mundial pensava”
(H
OBSBAWM, 2000, p. 375). Como a burguesia precisava do apoio das massas, flexibilizava
algumas de suas determinações e co optava a religião, usando-a para finalidades educacionais ,
tendo em vista a f ormação moral e ética do cidadão burguês. O extremismo dos pa drões morais
da Igreja, ao procurar reprimir as paixões físicas descon troladas dos fiéis, contribuía para
manter a estabilidade familiar e, com isso, a propriedade burguesa.
No decorrer da análise, o leitor irá se deparar, vez por o utra, com a expressão “pequena
burguesia” ou “valores pequeno-burg ueses”. Partimos do princípio de que a classe bu rguesa não
é um bloco homogêneo: ela pode ser dividida em várias subclasses, formando verdadeiros grupos
autônomos (grande burguesia, média burguesia, burguesia intelectual, pequena burguesia)
36
. A
pequena burguesia é constituída, no geral, por trabalhadores emergentes, que participam, de
forma simples e modesta, da dinâmica do mercado de tra balho. Seus valores mora is costumam
ser mais rigorosos que os da grande burguesia. Conseqüentemente, a hipocrisia também
costuma ser mais evidenciada. Ciente das diferenças simbólicas entre essas subclasses, faremos
uso dos termos burguês e pequeno-burguês para nos referirmos à prática de um mesmo discurso
masculino. Para tanto, tomamos p or base a opiniã o crítica de Hobsbawm (2000, p. 340), ao
considerar que,
se o esnobismo separava os milionários dos ricos, e est es por seu turno dos
meramente prósperos, o que era natural numa classe cuja verdadeira essência
era subir mais alto pelo esforço individual, tal divisão não chegava a destruir a
consciência de grupo, que transformou o “meio” da sociedade na “classe média”
ou “burguesa”.
Apoiava-se em pressupostos comuns, credos comuns, formas de aç ão
comuns. A burguesia dos p enúltimos 25 anos do século XIX era
esmagadoramente “liberal”, não necessariamente num sentido partidário (...),
mas num sentido ideológico.
Daí por que o apelo a determinados valores masculinos, conceb idos como pilares para a
manutenção da ordem burguesa, guiada pela competitividade e pela ânsia de progresso.
36
Cf. NORBERT O BOBBIO et al, 20 00, p. 119.
112
O outro do masculino, o não-masculino, precisava ser bem definido, a fim de garantir o
controle ideológico de uma sociedade moderna e masculina. Interpretamos esse outro como
efeitos do discurso masculino burguês.
Além das contribuições de Van Dijk (2003) para o estatuto discursivo da ideologia, nos
valeremos da concepção de alteridade proposta por Ja net M. Paterson (2004). De acordo com a
autora, o Outro é identificado como fo rmação discursiva e cultural , identi ficaçã o que não p ode
se efetuar sem se levar em conta as noções de essencialismo e de estereótipos sociais. A seguir,
relacionaremos as noções conceituais que, segundo Paterson (200 4, p. 27), subentendem a
represent ação do ou t r o n a ficção:
1. “O Outro é uma noção relacional que se define em oposição a outro termo”.
2. “Para que a diferença iner ente à alteridade sej a significativa, ela imp lica a presença
de um grupo de refer ência que demarque o Outro”.
3. É importante distinguir ‘diferença’ e ‘a lteridade’. A diferença passa a ser alteridade
quando “o grupo de referência dispõe de um inven tário de tra ços perti nen tes qu e
constituem a alteridade de uma personagem”.
4. “Toda a alteridade é variável, movente e susc etível de ser anulada. Ela não é marcada
por alguma imanência e pode ser dotada de traços p ositivos ou negativos, eufóricos
ou disfóricos num mesmo espaço social ou discursivo.”
5. “Se, na vida real, a a lteridade de um indivíduo é determinada pela socieda de que o
cerca, a personagem do Outro é, da mesma forma, inteiramente governada pelos
dispositivos do texto”.
Apesar de usar a categoria Outro para analisar o estatuto da alterida de nos romances
canadenses, Paterson constró i um quadro de referência teór ica que nos embasará, também, na
investigação do não -masculino pr esente nas dramaturgias enfocadas. Se dizer o Outro é
apresentá-lo como tal pelas estratégias enunciativas, a descrição do espaço, dos traços físicos, da
indumentária , dos aspectos linguageiros e onomástico da perso nagem não deverão pa ssar
desapercebidos. Esse processo cria vínculos entre o parecer e o ser da ficção expresso com o
sendo Outro. A retórica é um instrumento forte para colocar o Outro no discurso. Ela está ligada
às dimensões espa ciais, à d escrição das personagens e à enunciação. É preciso, no entanto,
perguntar se o Outro tem uma funç ão de revelação no discurso. Qua l é a função do Outro na
113
diegese? Ele modifica o curso dos acontecimento s? Cada texto literário explora de maneira
particular o potencial s ignificante da persona gem do Outro. E a isso estaremos aten to na análise.
O problema da ma sculinidade na sociedade contemporânea está longe de ser esgota do.
Diríamos que começou a se impor há muito pouco te mpo. Não constitui nosso objetivo, no
momento, cheg ar a uma conclusão sobre o assunto , senão contribuir com a análise das imagens
masculinas oferecidas pela literatur a e construídas na inter ação autor-texto-leitor num contexto
ideológico determinado. Os exemplos literários apreciados neste capítulo servem, como já ficou
dito, como ilustração do prob lema. A análise sistemática do discurso do e sobre o homem se
realizará no ca pítulo seguinte , a pa rtir dos textos dramáticos que compõe m nosso corpus.
114
P
ARTE II: ANÁLISE DO CORPUS
115
4. O teatro brasileiro moderno e contemporâneo
— situando Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e Newton Moreno
Traçaremos, neste capítulo, um breve panorama do tea tro brasileiro moderno e
contemporâneo, não pretendendo , com isso, inco rrer em dois caminhos suspeitos do ponto de
vista epistemológico e meto dológico : não queremos fazer uma “síntese histórica ” do teatro
brasileiro a partir da décad a de 1940, com proble matizaç ões pert inente s ao ca mpo da Histór ia;
também não pretendemos, a qui, construir um pa inel que sirva de pano de fundo para a análise
crítica que se desdobrará nos capítulos subseqüentes. Tomando uma de suas acepções da palavra
“panorama”, apresentaremos uma “visão ampla” (isso significa dizer, claro está, que não
lidaremos com os d etalhes exigidos por uma leitura estrita da história do teatro brasileiro) das
principais tendências do teatro no Bra sil a partir de 1940, enfocando sobretudo a dramaturgia
produzida nesse período. Em outras palavras, pinçaremos alguns aspectos do teatro no Brasil,
tomando co mo perspectiva sobretudo o eixo Rio de Janeiro-São Paulo, de 1940 aos nossos dias,
de onde surgiram as principais tendências artísticas da modernidade brasileira com as quais
lidaremos para estuda r a dramaturgia de Nelso n Rodrigues, Plínio Marc os e Newton Moreno.
Para seguir o método de análise crítica do discurso, faz-se necessário inserir o objeto em
foco no seu respectivo contexto histórico. Como está expresso no primeiro capítulo desta tese,
nosso ponto de vista, apoiado numa gama de auto res da ACD e do discurso literário, é que o
enunciado precisa ser criticamente analisado com relação à enunciação. O discurso literário,
objeto de nosso questionamento, está enraizado nos contexto s histórico, político, econômico e
ideológico, que permitem à literatura sua razão de ser.
Dessa forma, entender como Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e Newton Moreno se
inscrevem em seus respectivos contextos históricos, estét icos e ideológicos será o maior
propósito desse capítulo, sem pretender, no entanto, estender as discussões a partir de pontos da
história do teatro desse período particular. Para tanto, nos valeremos, não poucas vezes, de
alguns pontos de vista que fazem parte da fortuna crítica desses dramaturgos, a fim de
dispormos de indícios para compreender como suas obras foram recebidas por um público, cada
qual assentado num contexto histórico determina do.
116
Em 1941, ano em que N elson Rodrigues escreveu sua primeira peça, A Mulher Sem
Pecado, proliferavam no teatro carioca as revistas, os vaudevilles e as peç as de u ma s ó estr ela —
Procópio Ferreira, Jaime Costa, Dulcina Morais
37
. Como bem observou Ruy Castro (1992, p. 151),
“dizia-se”, nessa época, “que o teatro brasileiro ia do Ro cio à Cinelâ ndia — ou s eja, de mal a
pior”. Não é nosso propósito, aq ui, julgar a relevância des sas peças no cenário brasileiro do
século XX. Salientamos, apenas, junto a outras vozes da crítica teatral e literária dessa e de
épocas posteriores, que, não obstante a revolução estético-cultural encetada pela Semana de Arte
Moderna, de 1922, o teatro brasileiro, até a década de 1940, mantinha-se fiel, ainda, às óperas e
comédias de costume de companhias estrangeiras (européias, sobretudo) ou de autores
nacionais que demonstravam, na maioria das vezes, forte ligação com os mo tivos estrangeiros,
não refle tind o, p orta nto , crit ica mente a realidade brasileira.
Antônio de Alcântara Machado, por exemplo, que havia participado da Semana de 1922,
ao lado de Oswald de Andrade e de Mário de An drade, entre outros, ex erceu o ofício de crítico
teatral e foi test emunha da produção teatra l brasileira da s décadas de 1920 e de 1930. Numa de
suas crônicas, fazendo um balanço da dramaturgia brasileira dessa época, denuncia-lhe o
anacronismo, ao declarar que
A nossa comédia cont emporânea nem chega a ser a filha melhorada de O
demônio familiar de José de Alencar ou de O juiz de paz da roça de Martins
Pena: é irmã delas. Tirante o ambiente, a linguagem, é reprodução fiel das mais
velhas. O espírito e a fatura são iguaizinhos.
Defeitos gravíssimos. Aponto estes: desnacionalização, banalidade, atraso
técnico, repetição, ignorâ ncia da época e do meio, uniformidade, p obreza de
tipos e de cenários.
A conclusão é inapelável para o nosso teatro:
Alheio a tudo, não acompanha nem de lon ge o mo vim ent o acel erad o da
literatura dramática européia. O que seria um bem se dentro de suas
possibilidades, com os p róprios elemen tos que o meio lhe fos se fornecendo,
evoluísse independentemente, brasileiramente. Mas não. Ignora-se e ignora os
outros. Nem é nacional nem é universal. (A
LCÂNTARA MACHADO apud PRADO,
1993, p. 20)
Quanto às personagens, aconselha ao comediógrafo nacional procurá-las nas ruas:
37
Para conhecer a ficha de algumas produções teatrais anteriores ao surgimento de Nelson Rodrigues como
dramaturgo, consultar Sábato Magaldi (1992).
117
Não vê? Ali, ao longo do muro da fábrica. O casal de italianinhos. Ele se despede
agora. Logo mais vem buscá-la. Um belo dia, mata-a. Traga esse drama de todos
os dias para a cena. Traga para o palco a luta do operário, a vitória do operário,
a desgraça do operário, traga a oficina inteira. [...]
Sim, mais um que passa. Nasceu na Itália. Três anos de idade: São Paulo.
Dez anos: vendedor de jornais. Vinte anos: bicheiro. Trinta anos: chefe político,
juiz de paz, candidato a vereador. [...] Abrasileiremos o teatro brasileiro.
Melhor: apaulistemo-lo. (A
LCÂNT ARA MACHADO apud PRADO, 1993, p. 21)
Vê-se, nessas poucas linhas, algumas características do teatro bra sileiro do período em
que fervilhavam as idéias, de inspiração modernista, sobre a renovação da cultura brasileira. Se,
por exemplo, na música tínhamos um Villa-Lobos, na pintura uma Tarsila do Amaral, na
literatura Oswald e Mário de Andrade, to dos eles afinados com o proje to modernizador da arte
nacional, no teatro encontrávamos, ainda, a repetição de fórmulas desgastadas, que muito pouco
contribuíam para a cara cterização da cena local.
Na década de 1930, Oswa ld de Andra de, di vorcia ndo-se da sua ima gem de enfant terrible
da burguesia paulistana, abraça a causa proletária, assimila anarquicamente as idéias de Marx e,
valendo-se de pre ssupostos estético s do Modernis mo brasileiro, como a irr everência e a pa ródia,
apresenta-nos três peças que, pelo alto grau de experimentação e de iconocl astia, não
encontraram companhias teatrais q ue aceitassem encená-las: O Rei da Vela (escrita em 1933 e
publicada em 1937), O Homem e o Cavalo (1934) e A Morta (1937) . A primeira encenação de
uma peça de Oswald de Andrade só ocorreria em 1967, qua ndo o Teatro Oficina decide montar O
Rei da Vela, espetáculo que representou, para o contexto dos anos 60, um libelo estético de
resistência política e cultural. O fenômeno teatral é concebido, a partir do século XX, como
objeto que engloba o texto dramatúrgico, mas nã o se restringe a ele, daí por que nenhuma das
peças de Oswald de Andrade contribuiu, em sua época, para a renovação da cena teatral
brasileira.
Nelson Rodrigues, jornalista de O Globo, decide escrever, em 1941, sua primeira peça ,
que recebeu o título de A Mulher Sem Pecado. Mas sua encenação só se realizaria em 1942, pela
"Comédia Brasileira", com direção de Rodolfo Mayer, no Teatro Carlos Gomes (Rio de Janeiro).
O intuito do dramaturgo era escrever uma chanchada, mas o texto redundou num drama de
emoções bastante atípicas para os palco s brasileiros de até aquele momento. Consta que o
público reagiu com certa indiferença nas duas semanas em que a peça estivera em carta z (cf.
118
CASTRO, 1992). A crítica ficou dividida. Enquanto os críticos Mário Nunes e Bandeira Duarte
demoliram a peça — para o primeiro, o texto era “pura e simples coleção de horrores” (cf.
C
ASTRO, 1992, p. 155) —, outros como Manuel Bandeira e Álvaro Lins dirigiram ao dramaturgo
palavras elogiosas. Para Álvaro Lins (apud C
ASTRO, 1992, p. 156), por exemplo, a peça continha
“arte literária, imaginação, visão poética dos acontecimentos; técnica de c onstrução; que não era
uma cópia servil de cenas burguesas de sala de jantar; e, sim, interpretação de sentimentos
dramáticos ou essenciais da vida humana”. Manuel Bandeira destacara que “o diálogo era de
classe — rápido, direto e, por ser assim, facilitava aos atores a dicção natural” (apud C
ASTRO,
1992, p. 159)
Mas sabe-se que Nelson R odrigues só viria a alcançar sucesso com Vestido de Noiva, peça
escrita e encenada em 194 3, pelos “Come diante s”, sob a direção de Zbig niew Ziembinski e com
cenário assinado pelo talentoso artista plástico Sa nta Rosa. A peça foi muito bem recebida pela
intelectualidade e pela crítica especializada, e consagrou Nelson Rodrigues co mo dramaturgo
moderno.
Depois de Vestido de Noiva, as peças de Nelson Rodrigues obtiveram uma recepção em
que não faltou polêmica. Como o próprio dramaturgo admite, em seu artigo Teatro
Desagradável, “com Vestido de Noiva, conheci o sucesso; com as peças seguintes, perdi-o, e
para sempre” (R
ODRIGUES, 1949, p. 18). Alguns de seus textos foram censurad os e os que
conseguiram ser encenados nesse período foram, por um lado, recebidos por um públ ico
indignado, que não poupava as vaias e as palavras agressivas contra o autor; por outro, como
precisamente observou Victor Hugo Adler Pereira (1998), havia um público seleto, entusiasta,
que desejava testemunhar o surgimento de um dramaturgo vanguardista, capaz de operar uma
modernização cultural. Ou seja, aceitava-se a presença de um “autor desagradável”, desde que
sua imagem revelasse o perfil de um escritor “maldito” e vanguardista.
No contexto do Brasil dos anos 40 e 50, fortemente marcado pela moral pequeno-
burguesa, a recorrência de temas qu e exploravam as obsessões do espírito huma no rendeu ao
dramaturgo o epíteto de pornográf ico, de devasso. Em contrapartida, florescia nos palcos
brasileiros uma nova dramaturgia, que, além dos inúmeros mérito s apontados pelos mais
diversos críticos, apresentava traços expressionistas, o que satisfazia as expectativas da
intelectualidade sequiosa de uma revolução modernizadora da cena nacional.
Para Sábato Magaldi (1992, p. 30), crítico que acompanhou de perto a trajetória do
dramaturgo, “a maioria dos protagonistas de Nelson suporta uma carga de aniquilamento que os
aproxima do herói expressionista”. Acrescenta ainda:
119
O herói expressionista tem com o trágico o parentesco da fatali dade, qu e o abate
irremediavelmente. Apenas, a fatalidade vem do íntimo, força avassaladora que
o arrasta para o abismo (é bem essa a realidade, não recurso de expressão). O
homem carrega dentro de si demônios que, se liberados, o perdem para sempre.
(...) Esse é o instante da liberação das reservas irracionais do indivíduo,
superando a capacidade de conter a cond uta pe lo rac ioc ín io d isc ipl ina dor .
(M
AGALDI, 1992, p. 31)
No teatro, o Expressionismo se caracteriza, entr e outros aspectos, pela adoção de
artifícios antinaturalistas, por um certo investimento contra a ordem burguesa, pelo valor dado à
regeneração ou renovaçã o espiritual e pelo tom declamatório fervoroso (cf. B
ABLET & J. JACQUOT
apud Eudinyr FRAGA, 1998). Na cena, a realidade não é uma forma de conhecimento, como
desejaram os naturalistas, mas de expressão: “o palco se torna ‘o espaço interno de uma
consciência’ (R
OSENFELD, 1968, p. 98), sendo as demais personag ens e o espaço exterior o
desenvolvimento de seus problemas particulares” (G
UINSBURG; FARIA; ALVES DE LIMA, 2006 , p.
142).
Comp artilha desse mesmo ponto de vista o crítico Léo Gilson Ribeiro (1993, p. 170),
como se lê no fragmento abaixo, num momento quando trata da peça Vestido de Noiva:
Vista de uma perspectiva contemporânea, Vestido de noiva
120
regeneração do ser humano e na efetivação de uma sociedade que privilegiará a dignidade
essencial do homem” (F
RAGA, 1998, p. 22). Seus textos ostentam o caos moral e ético em que
estamos inseridos e expressam, em última instância, a nostalgia de um mundo mais equilibrado,
mais puro, o que revela, inclus ive, um caráter idea lista. Contra a pecha de “indecente” e “imoral”
que o dramaturgo carregou ao longo de sua vida, parece-nos que há em seus textos um tom
muito mais moralista do que “indecente”, uma vez que por trás das cenas consideradas
escandalosas escondia-se uma aspiração à pureza e à ordem do mundo. Vale salientar que não
estamos atribuindo valor pejorativo à palavra “moralista”, mas apontando-lhe o que contém de
idealis mo.
Fraga (1998, p. 197), numa obra dedicada à a nálise do expressionismo na obra de Nelson
Rodrigues, reconhece, entre as dezessete peças do dramaturgo, muitas das características que J.
L. Styan (Modern Drama in Theory and Pratice 3
Expressionism and Epic Theatre) apontara
nos primeiros dramas expressionistas, a saber:
1. A atmosfera de sonho e mesmo de pesad elo, corrob orada p ela ilum inaçã o
irreal, pelas distorç ões cenográficas e p ela utilização de pausas e silêncios
contrapondo-se ao texto falado;
2. A simplificação dos cenários, sugerindo, imagi sticamente, o tema d a peça;
3. A fragmentação da hist ória e da estru tura da peça em episódi os que, por si
mesmos, expressam a visão do protagoni sta, em geral do próprio autor;
4. Os caracteres perdem sua individualidade e tendem a uma abstratização que
os torna estereótipos caricaturais, grotescos, muitas vezes;
5. Diálogo febril, poético, tomando a f orma de longos e líricos monólogos ou, às
vezes, de frases telegráficas, com uma ou duas palavras, entrecruzando-se
diál ogos , esti liza ndo ( e art ific ializan do) a lin guage m;
6. O estilo de representar t ende ao excesso (overacting), assemelhando-se aos
movimentos mecânicos de um boneco.
A nosso ver, esses traços se concentram, na verdade, mais numas peças que noutras. No
entanto, as características 1, 2 e 4 parecem predominar na obra dramatúrgica de N elson
Rodrigues. Concorda mos com Fraga (1998) que Nelson não fora um expressionista na acepção
estrita do termo, porque, como afirmara Ribeiro (1993), o dramaturgo escrevera Vestido de
Noiva, sua segunda peça , “anos dep ois dos dramaturgos alemães (...) terem elevado o
expressionismo ao seu ápice cênico” . De fato, em 1930, apr oximadamente, os historiado res do
121
teatro dão o mo vimento expressionista por esgotado
38
. Nelson faz parte, porta nto, de um
contexto histórico e cultura l distinto. Há de se c onvir, contudo, que, antes dele, nen huma peça
brasileira de caráter vanguardista tinha subido aos palcos naciona is, pelo menos no que em
registro
39
. Salientemos que sua conc epção de m undo converge co m a expressionista na medida
em que exprime uma recusa — violenta, as mais das vezes — do realismo, não obstante se servir
da realidade empírica como alicerce, sobretudo quando,
a partir de 1953, o dramaturgo começa a
abordar em seus textos a realidade urbana carioca, observando como se efetivavam as relações
humanas no mundo emp írico. Também na “distorção exagerada da sociedade que nos cerca, no
privilegiar o grotesco do comportamento humano” (F
RAGA, 1998, p. 199) estão as semelha nças
entre a concepção expressionista e a visão de mundo de Nels on Rodrigues.
Diante da mesm ice do teatro nac ional anteri or a Nelson, compr eende-se por que a
intelligentsia brasileira tendeu a receber os dramas rodriguianos como a “maior contribuição
brasileira para o teatro mundial” (R
IBEIRO, 1993, p. 169), a despeito da reação negativa de boa
parte do público, agredida não somente pelo impacto da nova forma teatral que passou a fazer
parte das produções locais, mas sobretudo p elas realidades “vulgares” (nos sentidos estrito e
moral) da vida cotidiana que o dramaturgo insistia em transpor para o palco. Houve quem
comparasse sua dramaturgia à concepção artaudiana de teatro, quando, ao escrever sobre suas
“peças desagradáveis”, Nelson Rodrigues defende que se trata de “obras pestilentas, fétidas,
capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na platéia” (R
ODRIGUES, 1949, p . 18)
40
. De
acordo com o teatrólogo francês, o teatro foi feito para abrir co letivam ent e os ab scesso s. O teatr o
europeu da primeira metade do século XX estava muito empenhado em definir e realçar a
teatralidade, o fenômeno teatral, procura ndo afastar-se da hegemonia literária —
textocentrismo, no dizer de Jean-Jacques Roubine (1998) — para propor uma dramaturgia mais
orgânica, fundam entada na experiênc ia da cena. Nelson Rodrigues passou, assim, a ser
consagrado como o primeiro dramaturgo brasileiro moderno, trazendo para o teatro nacional
uma visão de mundo profunda mente sinto nizada com o sentimen to moderno.
Ma is recentemente, Ângela Leite Lopes (1993), procurando problematizar a condição
moderna que a dramaturgia rodriguiana inaugura
no co ntexto teatral brasileiro, defend eu a tese
segundo a qual é o caráter trágico que vamos encontrar nos textos de Nelson Rodrigues. A autora
38
Ver, por exemplo, Guinsburg; Faria; Alves de Lima (2006).
39
Mais uma vez chamamos a atenção para a relação texto vs. palco. De fato, nenhuma peça brasileir a vanguardista,
antes de Nelson Rodrigues, tinha sido levada aos teatros nacionais. Como já mencionamos, e vale a pena retomar,
Oswald de Andrade escrevera sua trilogia valendo-se das tendências de vanguarda — futuristas, surrealistas e
expressionistas. O Rei da Vela é passível de uma leitura com enfoque no expr essionismo (sobretudo quando tomamos
o primeiro ato da peça). A Morta, sobretudo, é, das suas peças, a que apresenta mais fortemente presentes as
características do expressionismo.
40
Cf. “Fortuna Critica”, em Rodrigues (1993)
122
traça um percurso da experiência do trágico, da antiguidade grega aos nossos dias, a fim de
melhor precisar seu objeto de estudo. Para investigar a relação teatro e sociedade, Lopes se vale
das pesquisas de Jean-Pierre Vernant e demonstra como em Antenas, por exemplo, com a
instituição dos concursos trágicos, a cidade se fazia teatro. A trag édia, assim, não era um fato
artístico isolado, mas um fenômeno teatral,parte integrante da vida da polis, ao lado de seus
órgãos políticos e judiciários” (L
OPES, 1993, p. 70).
Se a tragégia era pa rte constitutiva da cultura grega clássica
41
, a experiência do trágico e,
conseqüentemente, a visão trágica do mundo eram elementos cultural mente inerentes na vida
do indivíduo. Em que sentido? De acordo com Vernant (2005, p. 15, 19-20),
na perspectiva trágica, o homem e a ação se delineia m, não como realidades que
se poderiam definir ou descrever, mas como problemas. Eles se apresentam
como enígmas cujo duplo sentido não pode nunca ser fixado nem esgotado. (...)
Na cena, os heróis do drama, tanto uns como outros, em seus debates se servem
das mesmas palavras, mas essas palavras assumem significações diferentes na
boca de cada um. (...) As palavras trocadas no espaço cênico têm, portanto,
menos a função de estabelecer a comunicação entre as diversas personagens
que a de marcar os bloqueios, as barreiras, a impermeabilidade dos espíritos, a
de discernir os pontos de conflito. Para cad a pr otag onis ta, fecha do n o un ivers o
que lhe é próprío, o vocabulário utilizad o perman ece em grande parte opaco; el e
tem um único sentido. Contra essa unilateralidade se choca violentamente outra
unilateralidacle. A ironia trágica poderá consistir em mostrar como, no decurso
do drama, o herói cai na armadilha da própria palavra, uma palavra que se volta
contra ele trazendo-he a exp eriência amarga d e um sentido que ele se obstinava
em não reconhecer. (...) É apenas para o espectador que a linguagem d o texto
pode ser transparente em todos seus níveis, na sua poliva lência e suas
ambiguidades. Do autor ao espectador a linguagem recupera a plena função de
comunicação que tinha perdido em cena, entre os personagens do drama (...).
No pr ópr io m oment o em que vê os prot ag onis tas ader irem exc lusi vame nte a um
sentido e, nessa cegueira, dilacerarem-se ou perderem-se, o espectador deve
compreender que realment e há dois ou mais sentidos possíveis.
123
problemática do mundo. É, talvez, possível estabelecer um paralelo entre essa tomada trágica de
consciência e o efeito catártico que a tragédia, na leitura aristotélica, prete nde promover na
audiência, mas seria desviar do caminho se nos ativermos a essa questão. O que importa frisar é
a relação dialética entre a forma como os home ns gregos concebiam o mundo, a forma como sua
arte se desenvolve (referimo-nos, aqui, especif icamente à tragédia) e a forma como essa arte
influencia-lhes a fo rma de co mpreender o universo. Na leitura de Lopes (1993, p. 75), com a qual
concordamos, “a tragédia não se define pelo que diz da cond ição humana, mas pelo que põe em
jogo — em questão — do disc urso humano, enquanto ação”. Há uma imediatidade , uma
espontaneidade comunicativa que passa pela experiência estética direta
42
.
A partir do momento em que a filosofia ocidental se apropriou das artes como objeto de
investigação, interfer iu decisivame nte na imediatidade da experiência estética e a transformou
em experiências mediatizadas. Quando Aristóteles ecreveu sua Poética, o período áureo das
tragédias gregas já tinha chegado ao fim
43
. Por conta da função catártica ineren te ao gênero
trágico, Aristótel es faz com q ue a tragédia seja admitida (ou tolerada , para ser mais pr eciso) no
campo das idéias. O idealismo aristotélico, diferentemente do platônico, se c oncentra na
tragédia como imitaçã o que tem po r efeito a cata rse. Dessa fo rma , a filosofia pretend e solucionar
os conflitos trágicos que sustentam a tragédia enquanto gênero. Torna a experiência estética um
fenônemo mediatizado, pois faz preceder a idéia (conceito), de maneira que a realização artística,
antes imediata, torna-se uma “representação” da idéia.
Em vez de se concen trar na visão trágica, Ar istóteles se aterá à tragédia como gênero, daí
boa parte de sua Poética se dedicar à estrutura e aos elementos quantita tivos e qualitativos dessa
espécie literária. De tal sorte que, no Renascimento, quando foi relida em alguns países
ocidentais, sua obra foi tomada como um código, um conjunto de leis imutáveis da estrutura
dramatúrgica, usada ideologicam ente para constranger os dramatur gos a lhe respeitar os
princípios. O pensamen to filosófico prece de e passa a determinar a forma artística, que se torna
definitivamente objeto de “representação”; ou seja, o conceito abstrato tornava-se
“representável”. De acordo com Lopes (1993), a obra de arte aparecia como um discurso sobre
uma idéia. Essa discussã o foi muito bem desenvolvida em Hegel (1997), filósofo que se val eu da
forte relação entre filosofia e arte no mundo moderno para chegar à sua tese a respeito da “morte
da arte”. Para Hegel, a arte deixou de ocupar o lugar ativo que ocupava outrora na vida (a
referência é sempre à arte grega antiga), uma vez que as atenções se deslocaram para a esfera da
42
O termo imediatidade foi tomado de empréstimo a Hegel (1997), quando caracteriza a “alta destinação” da arte
grega.
43
Eurípedes, cujos dramas se desviaram da idéia original do trágico — fato que já aponta para a crise da Tragédia
teria morrido em 406 AC, 22 anos antes, portanto, do nascimento de Aristóteles (384 AC).
124
“representação”. Desse modo, o instinto criativo, na produção a rtística, cede ao apelo da
reflexão, dos pensamentos, das abstrações e das representa ções abstratas e gerais
44
.
Na segunda metade do século XIX, começou a haver uma progressiva transformação do
fazer artístico: a arte começa, paulatinamente, a se auto-representar, não obstante ser da mesma
época o surgimento de uma das últimas tendências artísticas apoiadas fervorosamente na
“representação”, o Naturalismo
45
. A arte naturalista e a arte auto-representativa foram a s duas
tendências mais fortes que, no Ocidente, conc orreram ao longo da modernidade artística do
século XX. No entanto, a própria modernida de se fundamenta como um mome nto de crise, de
ruptura. Põe-se em questão, agora, a pró pria repr esenta ção , com o exp edien te s eguro e suf icie nte
para alcançarmos o conhecimento da realidade. Se, com essa crise, a idéia passa a ser
questionada, a relação idéia-arte passa a sofrer, cons eqüentemente, uma transformação. Dessa
forma, a modernidade é compreendida através de uma visão trágica, na medida em que
reinstaura conflitos que a filosofia nã o pode mais solucionar com precisã o.
O t eatro de Nelson Rodrigues, ao desviar-se da representação naturalista autêntica,
propõe uma auto-reflex ividade, que fa z realçar a pró pria teatralidade do fenômeno dramático.
Esse traço é o q ue nos permite ins eri-lo na mod e rnidade artística. No entanto, Lopes (1993) vai
mais além, admitindo que esse tipo de fazer artístico realça a dimensão trágica e moderna da
dramaturgia do autor. Para a pesquisadora, o teatro de Nelson Rodrigues, e nisso está seu
caráter trágico, investe nos seguintes elementos:
idéias, gestos, reflexão (gestos, olhares, palavras e as infinitas modalidades do
gesto teatral). [Eles] Realizam, no seio de seu desenrolar, o movimento dialético
que rege seu devir (art ístico) como um todo. Realizam-no operando cisões.
Cisões que marcam, em si, o procedimento reflex ivo. Para retomar a dialética
nome-palavra de Benjamin, essas cisões colocam (ou repousam sobre) as etapas
que permitem a passagem da palavra ao nome (ou da obra à idéia, ou ainda do
44
125
particular ao universal). O que faz com que nunca se possa — ou só
artificialmente — chegar a uma síntese, a um discurso globalizante.
Como foi visto até então, são vários os argume ntos utilizados para sustentar o cará ter
moderno (modernista) do teatro de Nelson Rodrigues. A nosso ver, ele dialoga com todas as
características apontadas e as acomoda numa atmosfera local, nacional. Se, sobretudo, nas
chamadas tragédias cariocas o dramaturgo procura conferir, pelo menos na superfície, um
caráter mais realista à intriga, rompe com o realismo na medida em que muitas de sua s
personagens, marcadas por algum tipo de obsessão, apresentam um compo rtamento excessivo
ou uma fala sentenciosa que superdimensionam o real e, por isso, ferem a convencional ilusão de
realidade. Isso nos revela os sentimentos mais obscuros dessas mesmas personagens. A
verossimilhança externa é momentaneamente abalada, mas recuperamos a coerência da ação
dramática quando compreendemos que a cena configura-se como “o espaço interno de uma
consciência”, quando se torna claro que “apenas o protagonista tem existência efetiva e o s
demais, inclusive objetos, luz, música, natureza física , são suas projeções exasperadas” (F
RAGA,
1998, p. 27). São persona gens que, constantemente ou nos áp ices de crise, rompem com a razão,
com a convenção e com a moral. O dramaturgo acentua-lh es a cr ise a través d e uma len te de
aumento, provocando um efeito expressivo perturba dor.
Perdoa-me por me traíres (1957) e O beijo no asfalto (1961), q ue fa zem pa rte de no sso
corpus, são dois exemplos dessa dramaturgia. Traçaremos, em breves linh as, como essas peças
foram recebidas, em suas respectivas épocas, pelo público e pela crítica. Certamente vai nos
ajudar a compreender um pouco mais da moral vigente nesse período.
A primeira peça foi levada ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1957, por Gláuc io
Gil, responsável pela direçã o do espetáculo. A grande novidade era que Nelson Rodrigues, pela
primeira e última vez, participou do espetáculo como ator, interpretando a personagem Tio Raul
(pelo menos nos dez primeiros dias da temporada). A estréia foi polêmica e barulhenta, como já
era de praxe na vida teatral do dramaturgo. Apesar dos ap lausos nos dois primeiros atos, o
terceiro ato se fechou ao som de vaias, dirigidas por mais da metade do teatro. Para agravar
ainda mais o tumulto, o vereador Wilson Leite Passos, que se encontrava no teatro por ocasião
da récita, in dignado pelo que acab ara de assistir , teria sacado (segundo testemunhas, inclusive
Nelson Rodrigues) um revólver e dado um tiro, apavorando elenco e platéia. Magaldi (1992, p.
127), relatando o mesmo fato, admite que
126
o comportamento de Gilberto [personagem da peça], que pede perdão à mulher
por ela traí- lo, desconcerta o enraizad o machismo brasileiro. Há uma
inconsciente postura feminista nesse homem que r econhece as suas fraquezas,
justificando a insatisfação de Judite. Assim como Gilberto escandalizou a
família, a peça sacudia o moralismo convencional do espectador.
A questão do “machismo brasileiro” será um dos focos da análise, que desenvolveremos no
capítulo subseqüente. Chama-nos a atenção o “moralismo convencional do espectador”.
Nenhuma explicação do fato parece-nos mais coerente do que a interpretação feita pelo próprio
Nelson Rodrigues, a qual se encontra no livro de m emórias, O Reacionário. Segundo o
dramaturgo, no caso da estré ia de Perdoa-me por me traíres, a reaçã o negativa do público ía
além da questão de gostar ou não gostar da peça. Caso fosse uma questão apenas de gosto, as
pessoas que não tivess em gostado da peça poderiam ter saído no primeiro ato do espetáculo, o u
em outro momento antes de a peça encerrar. Não foi esse o caso. O teatro manteve-se lotado até
a cortina baixar definitivamente. Se as pessoas estavam ali, “histéricas”, a o final da récita, é
porque algo de mais profundo, mais vital estava a contecendo a elas. Wilson Leite Passos,
inclusive, apoiado por setores da Igreja Católica (inconforma da pela cena do aborto), acionou a
censura, que pro ibiu a peça n5laor g auASTRO
127
“Protesto em nome da família brasil eira!”, gritou um espectad or exaltado, em
cena aberta de “Beijo no asfalto”.
Todos se voltaram para ele: os outros espectadores, o elenco, os contra-
regras. Era como se aquele homem de gravata, sobraçando uma honesta pasta,
representasse ali, na platéia do Teatro Ginástico, a típica célula familiar
brasileira de 1961, composta de marido, mulher, amante, um casal de filhos, a
sogra, a cun hada, o gato e o pa pagaio. A lguém a inda tent ou reag ir:
‘‘Cala a bocal’’
Mas outras vozes se junt aram à do homem de pasta:
“Isto é um acinte!
“Onde está a policia que não fecha esta indecência?”
O motivo da revolta era uma fala de Selminha, interpretada por Fernanda
Montenegro, quando ela tentava defender a virilidade de seu marido Arandir
(Oswaldo Loureiro) contra as sórdidas insinuações do delegado Cunha (Ítalo
Rossi) de que Arandir seria homossexual:
“Ou o senhor não entende quê? Eu conh eço muitas que é uma vez por
semana, duas e, até, quinze em quinze dias. Mas meu marido todo o dia! Todo o
dia! To do di a! (Num berro selvagem) Meu marido é homem! Homem!”
Numa outra apresentação dessa mesma montag em, Ma gal di (19 96, p . 143) obs ervou a
reação do público e constatou que os espectadores esta vam mergulha dos num silêncio tens o.
Curioso é que, na cena de Selm inha, a mesma que Castro havia mencionado, “alguns casa is se
retiraram da sala. O tema provocava incontrolável incômodo”.
Do testemunho de Castro, acima citado, dois aspectos nos chamam a atenção, os quais
procuraremos desenvolver mais de talhadamente no próximo capítulo: o pro testo se dá “em
nome da família brasileira”; houve apelo à presença da polícia para garantir a segurança diante
da “agressão” representada pelo espetáculo. A menção à família é ironizada pelo biógrafo, ao
caracterizar a célula familiar dos anos 60 como constituída por “marido, mulher, amante, um
casal de filhos, a sogra, a cunhada, o gato e o papagaio” (grifo nosso). O term o “amante” como
elemento constitutivo da estrutura familiar burguesa gera estranhamento, a princípio, pois a
ordem burguesa preza pela fidelidade no casamento. Dividindo sua esposa com uma amante, o
marido infringe a moral burguesa, ma s tem apoio da cultura machista em que se insere; afinal,
para essa cultura, ter duas ou mais mulheres assegura ao homem a virilidade, o poder fálico. No
entanto, se esse comportamento foge à noção q ue temo s de família na socied ade bur guesa ,
parece ser, n o mínimo, cinis mo usar o nome da “família” para defend er valores mo rais.
128
Além disso, um dos esp ectadores, indignado, reivindica a presença da polícia. Como disse
Magaldi, o incômodo gerado pelo espetáculo era tão incontrolável, que obliterava qualquer
possibilidade de diálogo razoável. Apelou-se para as forças armadas, para um órgão pertencente
aos aparelhos repressivos do Estado, provavelmente a fim de conseg uir silenciar o que se
configurava como um cr ime aos padrões morais.
A crítica foi mais fa vorável a essa peça que a Perdoa-me por me traíres. Bárbara
Heliodora (1993), por exemplo, a considera uma das maio res realizações do dramaturgo, um
destaque da dramaturgia de Nelson Rodrigues, q ue vinha trilhando por caminhos, aos olhos da
jornalista e crítica, assaz equivocado.
Gostaríamo s, agora, de retomar o m omento histórico em que Nelson Rodrigues surge no
cenário teatral brasileiro e consid erar outros aspectos, a fim de evitar uma leitura enviesada e
tendenciosa da modernidade nacional. A iniciativa de identificar um marco na modernidade
brasileira provém, antes de mais nada , de uma necessidade de se estabelecer uma cronologia
histórica, no entanto não significa dizer que Nelson Rodrigue s surg iu ao acaso ness e co ntex to. Se
antes do autor de Vestido de Noiva não ho uve, como vimos, n enhuma expressã o teatr al
consistente, de forma que pudesse alca nça r o suces s o a q ue el e c h eg ou, ha ve m os d e c o nvir q u e a s
condições históricas estavam pro pícias ao surgimen to do dr amat urgo. Po r exemp lo, no final da
década de 1930, como analisou Pra do (1988), vão surgindo grupos teatrais amadores que
desencadearam uma lufada renovadora da estética bem ao gosto do público a que se rendiam
os profissionais das décadas de 1920 e de 1930 (Procópio Ferreira, Leopo ldo Fróes, Jaime Costa ,
Alda Garrido, entre outros). Alfredo Mesquita, em São Paulo, e Paschoal Carlos Magno , no Rio
de Janeiro, fo ram dois nomes de m aior destaque d o amadorismo no s anos 4 0. Além deles, Os
Comediantes foi um grupo amador que se tornou conhecido pela f amosa montagem de Vestido
de Noiva, sob a direção de Ziembinski, e levou alguns espetáculos à cena até o a no de 1946,
quando se extingue
46
. Certamente, a inovação dramatúrgica de Vestido de Noiva aliada ao
expressionismo radical da cena de Ziembinski concederam ao dramaturgo o mérito de ter
finalmente conso lidado o modernismo teatral no Brasil. Mas havemos de cons iderar, também, a
contribuição dos grupos amadores ao “espírito moderno” das artes cênicas brasileiras.
46
Os Comediantes alternaram, em seu repertório, autores nacionais com estrangeiros. Por exemplo, encenou Vestido
de noiva e A Mulher sem Pecado, de Nelson Rodrigues, Terras do Sem Fim, a partir do romance de Jorge Amado;
assim como Pelleas e Melisanda, de Maurice Maeterlinck, O Leque, de Carlo Goldoni, Era uma Vez um Preso, de Jean
Anouilh, Desejo, de Eugene O'Neill, e A Rainha Morta, de Henry de Montherlant.
129
Em 1948, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), grupo paulistano, consolida o novo
profissionalismo do teatro nacional
47
. Franco Zampari, engenheiro industrial, se vale da
experiência de homme d’affair para da r, com o exemplo do TBC, uma estrutura administrativa
ao teatro brasileiro como nunca houvera existido. O prog rama estético do grupo apoiava-se em
duas exigências fundamentais: os textos tinham de ser consagrados e os encenadores,
estrangeiros. Pela leitura crítica de Prado (1988, p. 43 ), à diferença do que se fazia no Rio d e
Janeiro “seria antes de caráter empresarial, consistindo numa economia interna mais perfeita e
num considerável sa lto quantitativo”. O Brasil entrava em co ntato, através do palco , com os
clássicos e os modernos da dramaturgia mundial, como Sófocles, Carlo Goldoni, Friedrich
Schill er, Osc ar Wi lde, Má ximo Gor ki, Aug ust Str indberg, Luig i Pirandello, Jean Anouilh, Arthur
Miller, entre tantos outros. Na história do TBC (quinze anos de existê ncia), oito encenadores
europeus — seis ita lianos, um belga e um pol onês — marcara m sua presença. N a opinião de
Prado (1988) e de Magaldi (1997), esses encenadores contribuíram significativamente para
transformar uma geração de amador es em profissionais competentes. Acostumados c om o estilo
da velha comédia de costumes, os a tores brasileiros foram estimulados pelos encenador es
estrangeiros a experimenta rem o naturalismo e o expressionismo, do is estilos que remontavam
ao final do século XIX e início do XX, e que ainda permaneciam desconhecidos do palco
brasileiro.
No caso de São Paulo, ante a qualidade dos trabalhos do TBC e a tendência de se encenar
textos estrangeiros, os dramaturgos se viram com poucas condições de assistir a seus textos
representados no palco
48
. Ta lvez po r isso que, d esde o adve nto de Vestido de Noiva e das pe ças
sucessivas de Nelson Rodrigues (não obsta nte os escândalos que sua drama turgia gerou), não
tivemos um dramaturgo com um trabalho consistente, vigoroso, na qualidade de um autor
moderno autêntico. Somente a partir de 1955, de acordo com Prado (1988), foram surgindo
textos dramáticos nacionais que contrib uíram decisivamente para a maturidade do teatro
brasileiro moderno. São eles: A Moratória (1955) , de Jorge Andrad e; Auto da Compadecida
(1956), de Ariano Suassuna; Eles não Usam Black-Tie (1958), de Gianfrancesco Gua rnieri;
Chapetuba Futebol Clube (1959), de Oduvaldo Vianna Filho; O Pagador de Promessas (1960),
de Dias Gomes e Revolução na América do Sul (1960), de Aug usto Boal. Nessa passagem da
obra, Prado (1988) não insere o primeiro texto de Plínio Marcos, Barrela (1958). A montagem só
47
Usamos a expre ssão “nov o profissi onalism o” por considera r que o teatro br asileir o da década de 1920 e de 1930 ,
sobretudo, era dominado pelos “profissionais”. Todos as estrelas que nós mencionamos ou tinham sua própria
companhia ou trabalhavam em co mpanhias que precisavam do público pagante para se manterem ativas.
48
Magaldi (1997) identifica que a concessão quase exclusiva era dada a Abílio Pereira de Almeida (1906 - 1977),
dramaturgo brasileiro que teve alguns de seus textos encenados pela companhia paulista, como Paiol Velho, com
direção de Ziembinski, em 1951; Santa Marta Fabril S. A., dirigido por Adolfo Celi, em 1955; e Rua São Luís, 27 - 8º
Andar, em 1957, na direção de Alberto D'Aversa .
130
teve direito a uma única exibição, em 1959, no Festival Nacional do Teatro do Estudante, em
Santos, graças à intervenção de Paschoa l Carlos Magno, idealizador do evento, que recorreu à
autoridade do Presidente da Repúb lica , Jusceli no Kubitschek, para que a peça fosse liberada pela
Censura, pelo menos para fins de apresentação num festival estudantil. Após essa estréia, o texto
de Plínio Marcos manteve-se proibido durante vinte e um anos. É possível que a aparição-
relâmpago de Plínio Marcos no cenário teatral dos anos 50 não tenha deixado g randes marcas,
não obstante o apoio fervoroso de Patrícia Galvão (Pagu), intelectual militante, ao texto do
dramaturgo, nessa mesma época.
Sali ente-s e q ue está vamo s sain do da e ra dos encenadores — experimentada muito
tardiamente em comparação com as transformações pelas quais passou o teatro europeu no final
do século XIX
49
— e encontrando espaço para a consolidação da era dos dramaturgos modernos
no Brasil. Isso se deveu a alguns fatores, um dos quais, a pontado por Magaldi (1997),
corresponde às condições difíceis com que se depararam os novos elencos (surgindo em
cresc iment o ac elera do), em qu e esc assea vam o s ence nado res es tran geiro s, res pon sáve is pe la
revolução da cena teatral brasileira. Os no vos atores tiveram de s e reunir em novos grupos que,
por sua vez, tiveram de conquistar um espaço próprio nas artes cênicas. Esperava-se que os
valores cultivados pelo TBC não se adequassem mais às necessidades de uma nova geração, a
qual, por estar construindo sacrificadamente sua história, sem os auspícios provenientes da
esfera pública ou privada, reivindicava uma cena radicalmente nacional, voltada para as
preocupações sociais e políticas do Brasil das déca das de 1950 e de 1960.
O grupo de maior envergadura nesse período fo i, sem dúvida, o Teatro de Arena,
fundado em 1953 por José Renato, egresso da Escola de Arte Dramática de São Paulo, com
propósitos de coloca r em cena os i niciantes na carreira. Mas a companhia só alcança projeção
quando, junto a José Renato, participaram do grupo três homens que se tornaram de capital
importância para a construção de uma cena e de uma dramaturgia solidamente política e
nacional: Augusto Boa l (1931), Gianfrancesco Guarnieri (1934 – 2006) e Oduvaldo Vianna Filho
(1936 – 1974), popularmen te conhecido como Vianinha. O Arena ence na Eles não Usam Black-
Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, sob a direção de José Renato; Chapetuba Futebol Clube, de
Oduvaldo Vianna Filho, direção de Boal, 1959; Gente Como a Gente, de Roberto Freire, 1959 , e
Fogo Frio, de Benedito Ruy Barbosa, 1960, ambos dirigido s por Boal; Revolução na América do
Sul, de Boal, direção de José Renato, 1960; O Testamento do Cangaceiro, de Francisco de Assis,
com direção de Boal, 1961. Apesar de na primeira fase do Arena domina rem os textos
49
A respeito das transfor mações do teatro europeu moderno, especificamente do papel que os encenadores
desempenharam na mudança de concepção sobre o fazer teatral, leia-se, sobretudo, Roubine (1998).
131
estrangeiros — Tennessee Williams, Stafford Dickens, Marcel Achard, Bertold Brecht —, a partir
do encontro de Renato, Boa l, Guarnieri e Vian inha, passou-se a exigir textos bra sileiros como
forma de questionar a realidade nacional
50
.
Uma das contrib uições talvez a maior da dramaturgia de Boal, Guarnieri e Vianinha
ao teatro brasileiro moderno foi trazer ao palco gente humilde. Apesar de isso não constituir um
recurso inovador, haja vista que as comédias de costumes costumavam se valer del e, tornou-se
um expediente original, na medida em que o tratamento dado pelos dramaturgos do Teatro d e
Arena a essa gente se distanciava do estereótipo da visão contemplativa da s vidas simples, do
puro encanto da vida do campo ou dos subúrbios, muito c omum na tra dição teatral brasileira.
Prado (1988, p. 65) avalia que as peças de Viriato Corrêa e Oduvaldo Vianna, entre 1920 e 1930,
evocavam esse tipo de imagem sentimenta lista do povo humilde, cujas “entrelinhas sugeriam
invariavelmente que os pobres, a título de comp ensaçã o, possue m uma inocência , uma pureza de
sentimentos, uma alegria de viver e uma felicidade superiores a tudo o que os ricos possam ter”.
Apesar de Eles não Usam Black-Tie carregar ainda muito dessa visão romântica do pobre,
rompe com a atmosfera superficialmente lírica quando lança as personag ens numa greve por
melhores condições de t rabalho. A luta social e a violenta repressão policial, pres entes na peça,
constituem motivos que nos reportam, dialetica mente, ao quadro sócio-econômico-político e
ideológico pelo qual passava o Brasil nos últimos tempos, em que pairava o surto da
modernização econômica brasileira, arrastando, em ricoch ete, denúncias de corrupção, miséria
social, do fosso cada vez mais profundo entre a classe burguesa e a popular.
Além da contribuição do Teatro de Arena para o tema, constata -se que representantes da
classe popular começam a pulular nos textos dramatúrgicos desse período. Entre vários,
podemos citar dois. Ariano Suassuna, com Auto da Compadecida, valoriza o homem do povo,
explorando o filão da farsa a partir da ação burlesca e malandra do protagonista, João Grilo. Dias
Gomes apresenta como protagonista de O Pagador de Promessas o roceiro Zé do Burro, que se
desloca com sua esposa à cidade de Salvador, com uma cruz às costas, para cumprir uma
promessa. Intolerância política e religiosa são dois motivos que contribuem para o
desenvolvimento desses temas, subjacente aos quais residia a crítica à falta de equivalência entre
os interesses políticos e econômicos da elite e os interesses do povo, que se encontra à margem e
alienado do poder público hegemôn ico.
50
Como aqui não é nosso propósito traçar a história do Teatro de Arena, suge rim os aos intere ssados a lei tura da obra
de Cláudia de Arruda Campos (1988), que analisa a trajetória do grupo no teatro brasileiro, da sua fase de
nacionalização até o período mais radical de “rebeldia”, qualificativo usado pela autora para caracterizar a fase em que
foram pr oduzidos os espetá culos Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes.
132
Mas foi, seguramente, Plínio Marcos o primeiro que ousou levar aos palcos, de forma
quase naturalista, não exa tamente o povo ou o proletário, mas a categoria humana qua lificada
pela sociedade com o epíteto de “marginal”. Eram o “subpovo, o subproletariado, uma escó ria
que não alcançara sequer os d egraus mais ínfi mos da hierarq uia capitalista” (Prado, 1988, p.
103). Comparando as personagens plinianas com as de Nelson Rodrigues, Paulo Vieira (1994, p.
15) conclui que
as de Plínio, sem o jog o de nuances do modelo rodriguiano, são p uras,
no sentido em que não escamoteiam seus sent imentos, não s e
movimentam por fingimento s ou amoralismos, nã o possuem sequer um
mínimo de consciência política que vai ma rcar o malandro idea lizado
pela esquerda engajada. São conduzidas unicamente pelo ódio e pela
violência.
Plínio Marcos abre caminho para uma geração de textos que traziam à baila a voz das
minorias e dos oprimidos, sem mais o tom falsamente cond esc end en te ou moral iza nte com que a
literatura brasileira costumou tratar os párias da sociedade. Suas peças se passam em ambientes
de última categoria e, procurando concentrar a ação num conflito intens o, mantêm-s e veros símil
na caracterização da população que habita esses locais, não poupando as palavras de b a ixo-calão,
a violência física e os confrontos verbais mais agressivos. Não somente a variante lingüística e
comportamental dos que habitam o bas-fond é representada de forma verossím il, mas ta mbém
os discursos construídos ou reproduzidos pela s personagens, os quais mantêm coerência e
similaridade com as práticas discursivas no contexto do submundo. Não se trata de um discurso
sobre o Outro, mas um discurso construído a partir da perspectiva do Outro, ou seja, da
populaçã o marginalizada. Por ter co nvivido de fato com muitos ma rginais, é poss ível que P línio
Marcos tenha assimilado as representações próprias desse meio e as tenha levado ao palco, com
discursos genuinamente colhidos da boca dessa gente.
A obra de Plínio Marcos pode ser dividida em duas grandes tendên cias: a primeira delas
constitui o que Pa ulo Vieira (1994), a partir de Antô nio Mercado, d enomina de constatação; a
segunda, de proposição. A fase de constatação corresponde à produção dos primeiros textos, em
que o dramaturg o desvelaria o mal existente no submundo da sociedade. Na fase de proposição,
por sua vez, Plínio Marcos estaria propondo a superação do ma l na sociedade. Na primeira, a
predominância de bandid os e desvalidos — plano material; na segunda, iniciada em 1978, com a
133
peça Jesus-Homem, a presença dos místicos — transcendência do plano material. Essa leitura,
um tanto quanto arbitrária, procura dar conta da mudança pela qual passou a produção
dramatúrgica do autor sa ntista a partir de 1978, resultando em trab alhos de menor vigor
artístico na opinião de Vieira (1974). Não vem ao caso discutir aqui se essa segunda fase da
dramaturgia pliniana correspond e precisamente à superação do mal. Concentraremos nossa
atenção em duas obras pertencentes à primeira fase, Dois Perdidos Numa Noite Suja e Navalha
na Carne.
Do ponto de vista formal, essas duas peça s não oferecem nenhum tipo de
experimentação. Pelo contrário, se moldam a partir do modelo dramático aristotélico, com
unidade de ação, tempo e espaço; caracteres bem definidos, necessários e verossímeis; com ações
que se articulam numa lógica ca usa-efeito. O elem ento inovador dessa dramaturgia, no entanto,
se deve ao talento do autor, que radicaliza o trabalho com a linguagem coloquial procedimento
iniciado no teatro brasileiro por Nelso n Rodrigues , concentra a ação, estabelecendo o conflito
desde as primeiras linhas, gerando um clima de tensão necessário para, assim, nos inserirmos no
universo asfixiante que o texto retrata.
Dois Perdidos numa Noite Suja tem sua estréia, em São Paulo, em 1966, no Bar Ponto de
Encontro, transferindo-se em seguida pa ra o Teatro de Arena (SP). A cr ítica paulistana foi
estusiástica, reconhecendo em Plínio uma feliz promessa para a dramaturgia nacional. Foi essa a
opinião de Sábato Magaldi, a o fazer o bala nço do que fora apresen tado em São Paulo neste
mesmo ano: “Se a temporada de 1966 foi esca ssa em número de produções, mostrou uma
virtude, do ponto de vista da dramaturgia; todas as novas p eças brasileiras, entre as quais a de
Plín io Mar co s, busc am in quie tant emen te um cami nho in édit o”
51
. Bár bara H eliodor a, no R io de
Janeiro, também ap rovo u o texto, como atesta este fragment o de sua crítica:
Outra vítima da sanha da moralidade das aparências é Plínio Mar cos, cujo Dois
Perdidos numa Noite S uja é uma das obras mais p ungentes e poéticas que t êm
aparecido na dramaturgia nacional, obra de perfeita economia dramática na
qual não existe uma só palavra que não contribua para a composição geral da
imagem, e que a ela não se integre, constituindo um todo de tal modo unif icado,
de tal modo voltado para a criação de uma visão dramática do homem nas
condições mais extremas da existência, q ue espanta que ocorra a quem quer que
seja destacar desse maravilhos o complexo esta ou aq uela palavra para ser
avaliada fora de seu contexto.
51
In: http://ww w.plinioma rcos.com/tea tro/2perdidos.htm# , consultado em 20/0 5/2006.
134
(http://www.pliniomarcos.com/teatro/2perdidos.htm#, consultado em 20/05/2006.)
O teatro agressivo de Plínio Marcos mantém-se na peça Navalha na Carne, apresentada
ao público um ano depo is do lançamento de Dois Perdidos numa noite Suja, com tipos humano s
e com uma violência se melhantes ao texto que o precedeu
52
. Estreou em setembro de 1967, no
Teatro Maria Della Costa, em São Paulo, com direção de Jairo Arco e Flexa. Nesse mesmo ano,
Navalha na Carne teve sua representaçã o proibida, numa Portaria de 14 de junho. Os censore s
federais consideraram o texto inadequado à platéia de qualquer faixa etária, sob a alegação de
que, pela obscenidade e profusão de anomalias, a peça não oferecia uma mensagem positiva e
constru tiva. Vê-se q ue ma is uma vez o Est ado so bretudo num regime ditatorial, como foi o
caso intervém pa ra abafar uma realidade g erada pelo pró prio sistema político-econômico, ma s
insuportável para ser aceita e divulgada às classes médias e altas. Não fosse pela persistência de
alguns artistas, que acreditaram no talento de Plínio Marcos e batalharam pela liberação do
texto, Navalha na Carne poderia ter caído no ostracismo.
Preocupados tão-somente com o decoro e os princípios de uma moral burg uesa, nem a
censura nem o público em geral conseguiram perceber a relação angustiante, dolorosa e, em
última instância, lírica das personagens Neusa Sueli (a prostituta), Vado (o cafetão) e Veludo (o
camareiro); um pequeno, modesto, mas valioso retrato da vida dos que também vivem no bas-
fond brasileiro e desse universo pa rticular. O dramaturgo , no entanto, fo i bem acolhido pelo
público que fazia parte da esquerda política. Essa tensão entre repúdio e apoio fo i muito bem
observada por Sábato Magaldi, na ocasião em que fora assistir à montagem. Vale destacar alguns
pontos de sua crítica:
A grande ovão, no final do espetáculo de ontem, no Teatro Maria Della Costa,
prova que as autoridades an daram certas, ao liberar Navalha na Carn e, depois
de tanta incompreensão da Censura. Os aplausos em cena aberta, repetidas
vezes, vieram, como uma descarga emocional para equilib rar o incômodo
prov ocad o por num eros os diálog os d e vi olenta dramaticidade. A literatura
teatral brasileira nunca produziu uma peça de verdade tão funda, de calor tão
autêntico, de desnudamento tão cru da miséria humana como essa de Plíni o
Marcos.
52
Entre Dois Perdidos numa noite Suja e Navalha na Carne, Plínio Marcos escreveu Dia Virá, encenada em setembro
de 196 7, no mesm o mês e ano que Navalha na Carne fo i lev ada ao p alc o. Dia Virá obteve pouca repercussão, ao
contrário de Dois Perdidos numa noite Suja, de Navalha na Carne e até mesmo de Jesus-Homem, sua segunda
versão, escrita em 1978 e encenada em 1980. Por essa razão, consideramos que Navalha na Carne sucedeu Dois
Perdidos numa Noite Suja.
135
Freqüentemente, o púb lico ria de alguns palavrões ou de réplicas de sabor
equívoco. Essa relação chegou a irritar-nos, como se nascesse de uma falta de
inteligência do texto. Depois pareceu-nos que essa era uma válvula de escape
para os espectadores não mergulharem num terrível mal-estar: um pouco mais
de insistência na verdade e seria insuportável o clima dramático.
(...)
Três casais retiraram-se durante a representação. Anotamos esse fato,
para prevenir as sensibil idades que poderiam chocar-se nos próximos
espetáculos. Navalha na Carne fere mesmo – com o toda verdade lançada com
indiscutível talento artístic o.
(http://www.pl iniomarcos.com/teat ro/navalha.htm#, consultado em 20/05/2006.)
Para além da violência na qual se assentam as relações entre suas personagens, os
diálogos nessas duas peças de Plínio Marcos escond em sutilezas, emoções que rep ortam ao
simbolismo emanado das relações humanas. Na sensível leitura de Prado (1988, p . 103), essas
personagens “revelam em cena um rancor e um ressentimento que, emb ora de possível origem
econômica, não se voltavam contra os poderosos, por eles mal entrevistos, mas contra os seus
próprios companheiros de infort únio”. Elas procuram re cuperar, na interaçã o com as demais,
relações de poder que sempre lhes foram negadas no seio da sociedad e dita “normal”. Daí por
que a forma violenta com que exercem sua se xualidade. Num m undo ainda pro fundamente
masculinizado, os homens subjugam as mulh eres e procuram sub jugar os outros homens,
colocando em dúvida a sexualidade dos companheiros ou trata ndo os homossexuais como seres
inferiores, comparados à mulher . Essa atmosfera ma sculina constituirá, posteriormente, nosso
foco de análise.
Como muito bem afirmou Heliodora, o dramaturgo não conseguiu se livrar da “sanha
moralista”. Ainda em nossos dias, não obstante o sucesso alcançado, essas peças de Plínio
Marcos são recebidas, por parte de alguns de seus leitores, com mu ita resistência. A razão?
Pruridos morais. No enta nto, o dramaturgo sa bia o que estava propondo. Segundo suas próp rias
palavras: “não faço teatro para o povo, mas faço teatro em favor do povo. Faço teatro para
incomodar os que estã o sossegados. Só para isso faço teatro . [...] Teatro só fa z sentido quando é
uma tribuna livre onde se podem discutir até as últimas conseqüências os problemas do homem ”
(http://www.pliniomarcos.com/teatro_o bracompleta.htm) .
Nesse ponto a obra de Plínio Marcos se encontra com a de Nelson Rodrigues. Em ambos,
o teatro deve ser conceb ido para incomodar. No entanto, enqua nto Nelson Rodrigues propunha
um mergulho, mediante experiência est ética, no universo íntimo de suas personagens, revelando
136
o que, na sociedade burguesa, deve-se esconder, Plínio Marcos expõe uma parte da nossa
realidade social que a classe dom inante insiste em manter abafada , silenciada. Deparar-se com
um retrato suficientemente fiel dessa realidade não constitui algo agradável ao público burguês,
que se sente ofendido. Em última a nálise, tanto um como outro autor agridem o público em sua
moral burguesa. Desse ponto pretendemos extrair algumas interpretações na análise que
desenvolveremos mais à frente.
Por ora, citemos um trecho de mais uma crítica escrita por Magaldi (1998, p. 221) para a
peça Navalha na Carne:
7.6( ()-5.9(1)3.8(99it7.2( )]Tho)s da589 0 TD0.0003 Tdo.2(er pa562q82 TD6(en)6ebrJda tabu6(do.2sum111re )-5p6 9 ar(e)6.3( d.3e)63150006 Tc-0.056 TwTT14 17nstitui 6-5.7(rt6 TD52607.a r-5n82 T1 o9988(p)-11(tem fu.1562 n82 T1 ç)TD9(ã)6dúbli32607.a vs,3)9(ôorp)-)i talt6 TD52o
137
teatro constitui um dos espaços para lançar o grito das minorias. Lembrando mais uma vez a s
palavras do dramaturgo: “Teatro só faz sentido quando é uma tribuna livre onde se podem
discutir até as últimas conseqüências os problema s do homem”. Sua opçã o estética lhe fornece, a
nosso ver, subsídios para alcançar esse objetivo. Além disso, a opção pelos desvalidos, pela
estética do grotesco, pelas falas angustiadamente espontâneas e pela tensão constante qu e
imprime à cena, incomo dando, com isso, a platéi a, confere caráter moderno à obra, garantindo-
lhe um lugar reservado na história da dramaturgia moderna brasileira.
Foi, contud o, certíssimo o vaticínio que o crítico d eixara passar em sua cr ítica: a
dramaturgia brasileira moderna, multifacetada, caminha para alçar altos vôos. A marcha
histórica vem revelando as condições sócio-político-econômicas e ideológicas para o
desenvolvimento de uma escritura dramatúrgica mais radical. Lembremos alguns de seus
passos.
Sobretudo a pós o AI 5, a censura brasileira tornou-se mais intra nsigente e seus decretos,
inapeláveis. O teatro foi brutalmente perseguido e não foram poucos os casos em que os artistas
sofreram ameaças ou atentados violento s
53
. Dessa forma, a década de 1970 foi marcada, no
contexto do teatro nacional, por duas grandes tendências: produções nas quais a dramaturgia
encerrava uma crítica expressa pelo viés da metáfora ; formação de grupos de jovens cuja s
experiências cênicas eram realizadas por meio de um processo coletivo, em que todos
participavam de todos os aspectos da produção do espetá culo (dramaturgia, cenários , figurinos,
divulgação, etc)
54
. No primeiro caso, são exemplos os textos Calabar (1973), Gota d’água (1975)
e Ópera do Malandro (1978), de Chico Buarque; e Apareceu a Margarida (1973), de Roberto
Athayde. No segundo, os exemplos mais expressivos foram as experimentações de grupos como
Pod Minoga e Asdrúbal Trouxe o Trombone, esse último liderado por Hamilton Vaz Pereira
55
.
Se o processo de ab ertura política no Brasil dos anos 80 oferecia condições mais
favoráveis aos dramaturgos de escreverem sem temer o fantasma da censura, foram, no entanto,
os trabalhos dos encenadores brasileiros que ganharam destaque considerável no nosso cenário
teatral. Não houve nenhuma produção de textos dramatúrgicos rele vantes no contexto do s anos
53
Só para ficar com o exemplo do Teatro Oficina, vale conferir, em Armando Sergio da Silva (1981), as experiências
que o grupo teve com a censura.
54
Tratamos de duas grandes tendências, num sentido muito generalizador. É claro que havia espetáculos e
dramaturgias que fugiam aos dois perfis que traçamos. Mas essas duas vertentes nos parecem as mais fortes e as que
ofereceram maiores resultados à concepção de te atro que se desdobraria nos anos 80 e nos subseqüentes.
55
Mesmo já tendo se mostrado irreverente e inovador nos espetáculos anteriores, foi com Trate-me Leão (1977) que o
grupo colocou em prática o conceito de criação coletiva. Vale destacar que, apesar de Hamilton Vaz Pereira assinar a
autoria do texto, a dramaturgia se construiu como produto de um proc esso em que todos os membro s do grupo
estiveram ativamente envolvidos.
138
80. A abertura política foi acompanhada pelas intensas experimentações de diretores que
inauguraram uma cena marcadamente autoral. Trata-se da era dos encenadores-autor.
Para ficarmos apenas com dois exemplos, citemos as produções de Gera ld Thomas e de
Antunes Filho. Nessa década, Gerald Thomas realizou seus espetáculos Quatro Vezes Beckett
(1985); Carmem com Filtro (1986); Eletra Com Creta (1986); A Trilogia Kafka (1988) ,
composta de Um Processo, Uma Metamorfose e Praga. Antunes Filho, por sua vez, encenou
Macunaíma (1978); Nelson Rodrigues - O Eterno Retorno (1981), r eunindo quat ro peças do
dramaturgo moderno, reduzidas a duas no es petáculo Nelson 2 Rodrigues (1982); Romeu e
Julieta (1984 ); A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1986), Xica da Silva (1988) e Paraíso Zona
Norte (1989)
56
.
Como di zíamos, na década de 1980 não houve nenhuma produção dramatúrgica de
rele vo. M as aqu i val e um escl are cim ento . De fato, se pensarmos na produçã o de um texto
dramático autônomo, caracterizado como ob ra literária a ser transp osta para os palcos, a
exemplo das produções de Nelson Ro drigues e de Plínio Ma rcos, não vamos encontrá- lo nos
anos 80, pelo menos algum que mereça destaque pela inovação fo rmal. O encargo é assumido
por encenadores que se tornaram autores quase integrais do espetáculo. Esse acontecimento foi
significativo para a produção de uma nova dramaturgia, a qual chamaremos de contemporânea
ou, ainda, de uma pós-dramaturgia.
Macunaíma, de Antunes Filho, foi, nas palavras de Antônio Mercado, um espetáculo cuja
escritura cênica (...) realiza uma síntese extraordinária de mídias diversas (...),
de teatro popular, pesquisa erud ita e exp erimentação de vanguarda; de
diferentes linguagens, estilos e t endências (...). O qu e nos surpreende é que d e
tudo isto não resulta algo sem nenhum caráter, como o herói da estória, mas
justamente o contrário.
(http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclop edia_teat ro/index.c fm?f
useaction=espetaculos_biografia&cd_verbete=592, consultado em
20/09/2006)
56
Não pude mos de ixar de citar Macunaíma, mesmo sendo um espetáculo de 1978, e não dos anos 80, como vimos
tratando. Primeiramente, é um espetáculo do final dos anos 70, revelando experimentações formais que seriam a
tônica da cena teatral a partir dos anos 80, como a narrativização da cena, por exemplo, da qual trataremos adiante,
com mais detalhes. Em segundo lugar, mesmo tendo estreado em 1978, o espetáculo foi apresentado entre os anos
1978 e 1987, data de seu encerramento, com o total de 876 sessões no Brasil e no mundo. Dessa forma, foi um
espetáculo q u e esteve radicado, também, nos anos 80.
139
Na opinião de Mariângela Alves de Lima,
em Macunaíma é visível o gosto pela transubstanciação, pela capacidade do
teatro de sugerir sem precisar recorrer a objetos definidos. Um dos traços
marcantes dessa encenação é a recorrência ao fabuloso que se instala em
cena por um simples gesto ou de t raços que apenas ind icam a passagem para
outro plano ficcional. O teatro, d iz Macunaíma, é capaz de criar o maravilho so a
partir da presença de um ser humano no espaço destinado à representação.
(http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclop edia_teat ro/index.c fm?f
useaction=espetaculos_biografia&cd_v erbete=592, consu ltado em
20/09/2006)
A recorrência ao fabuloso, a mudança de planos ficcionais, o uso de mídias diversas, de
teatro popular, pesquisa erudita e experimentação de vanguarda; de diferentes linguagens,
estilos e tendências caracterizam a narrativiza ção da cena contemporânea, po nto fulcral da
dramaturgia após 1980.
Uma das vertentes, talvez a ma is expressiva, do teatro contemporâneo é a que José da
Costa Filho (2003) deno mina de teatro narrativo-performático. Po r esse termo, o autor
compreende as criações cênico-dramatúrgicas conjugadas, em que os textos são muitas vezes
teatralizações de obras narrativas de outros auto res, permitindo, com isso, a exploração intensa
da capacidade performática individual dos intérpretes e do jogo dos atores entre si. Vê-se, pela
opinião de Mercado e de Lima, que, ao abarcar uma obra narrativa romanesca (rapsódica, para
ser mais fiel ao projeto estético de Mário de Andrade), o espetáculo Macunaíma trabalhou a
tensão entre a narratividade e a performatividade
57
.
Com Gerald Thomas, a escritura cênico-dramatúrgica se adensa e se to rna mais radical.
De acordo com a linha de raciocínio de Costa Filho (2003; 2005) , caracteriza-se o teatro
contemporâneo, do qual Thomas faz parte, por duas tendências simultâneas e contrapostas: a
narrativização da cena, por um lado; e, por outro, a problematização irônica da própria
57
De acordo com a Enciclopédia Itaú Cultural, “a encenação objetiva encontrar um desenho que satisfaça os
contornos míticos propostos pelo texto, encontrando-os nos movimentos corais, através da exploração de diversos
formatos de blocos imagéticos. É assim alcançada uma dinâmica de massas em movimento, com a
aparição/desaparecimento de figuras e objetos cênicos. Há blocos de araras, piolhos e outros animais, além de danças
indígenas rituais e bumba-meu-boi. A chegada a São Paulo dá-se com o encontro de um bloco de operários e suas
brita dei ras. A s estát uas de Vences lau propi ciam um novo co njun to, nu ma cena to rnada a ntoló gica, bem co mo a do
carnaval, na chegada do herói ao Rio de Janeiro”.
(http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=espetaculos_biografia&cd_
verbete=592).
140
narrativa. A narrativização da cena corresponde ao esfacelamento da co ncepção unifica da e
fechada do drama, com a presença de uma personagem solidamente definida, fonte da ação
dramática; além disso, compreende a “valorização do diálogo direto do artista com o público e de
uma concepção do trabalho do ator como uma espécie de rapsodo, de jogral ou de performer
(C
OSTA FILHO, 2005, p.53). A problematização da narrativa se dá qua ndo o próprio teatro
narrativo passa a questionar a funçã o narrativa de reconstituição ou re presentação estável de
fatos.
Essa “nova” cena d ialoga com algumas das prin cipais linhas de pensa mento da
contemporaneidade . A noção de que, pela narra tiva, apreenderíamos os fatos tais como eles
possivelmente teriam sido dad os, num te mpo e espaço def inidos (narrativa verídica), revela
ambição de domínio intelectual do mundo, o qual passa a se tor nar objeto de c onhecimento.
Como se lê em Foucault (1999), a modernidade ocidental realizou sua história com base no
pensamento segundo o qual o homem (sujeito) estabelece uma relação extrínse ca com o mundo
(objeto), que poderá ser, pela faculdade da razão, ana lisado objetivamente. Sujeito vs. objeto
eram constituídos como dois pólos que mantinham entre si u ma relação dicotômica. Ao
contrário dessa perspectiva, o teatro contemporâneo propõ e uma narrativa não-verídica ou
falsificante, na medida em que o objeto passa a ser “pura força de atração geradora do
movimento do sujeito em direção à perda de si mesmo, à perda do que lhe era familiar, de suas
referências seguras etc” (C
OSTA FILHO, 2005, p. 54)
58
. Trata-se de uma narrativa que
problematiza a fronteira entr e o real e o ima ginário, não se dispondo, po r isso, a criar conexões
lógicas entre as partes e a construir uma suces são cronológica linear dos fa tos. Essa nova cena,
então, apresenta um caráter narrativo falsificante e digressivo, “com uma orientação tempora l
marcadamente múltipla e ac úmulo de referências díspares em cada cena” (C
OSTA FILHO, 2005, p .
54). A narrativa, no entanto, é “cenicamente performa tizada como agenciamento de uma deriva
permanente do sentido, ou como pensamento diaspórico, para lembrar Homi Bhabha” (C
OSTA
FILHO, 2005, p. 55). Nesse ponto encontramos ecos da tese de Lopes (1993), de que a visão
trágica co nstitui a tônica do teatro moderno. Estendendo o pensa mento da autora, podemo s
dizer que o teatro contemporâneo aprofunda a crise oper ada pela mod ernid ad e e, p or me io da
auto-representação radical, revela seu teor trágico.
O teatro de Gerald Thomas, a partir dos anos 80, questiona a noção de presença cênica,
na medida em que problematiza, p or um lado, a concepção moderna de repres entação do sujeito
58
Os termos não verídica e falsificante foram tomados de Costa Filho (2005), que, por sua vez, os usou a pa rtir d e
Blanchot e Deleuze, r espectivamente.
141
e do corpo; e, por outro, as formas de lidar com a referência e com o sentido. Leia-se, por
exemplo, o comentário a seguir, com respeito à peça Eletra com Creta:
Os seis personagens formam dup las que transitam cada uma em um universo.
Eletra e Medéia vivem a c ulpa de seus crimes, num contraponto entre o m ito
grego e o ind ivíduo do fim do milênio. Acusam-se mutuamente diante de u m
juiz, Ercus e Cúmulus Nimbus, livres criações de Gerald Thomas a partir da
dupla becket tiana de Fim de Jogo, expondo a crise da palavra e a inutilidade da
ação. Sinistro encarna o destino e serve de juiz da primeira du pla e Memnon
reflete a memória. No decorrer do espetáculo, os conflitos se desdob ram e as
dimensões se misturam, em um frenesi que caminha para o caos. A maior parte
do texto se ocupa do comentário, da autocr ític a, d a re flex ão s obre a qu ilo q ue s e
faz, que se é, que se representa. (...) Os person agens de Gerald Thomas são
instrumentos para comentar a civilização ocidental por meio de fragmentos de
referências universais colados de forma absolutamente pessoal. Em vários
momentos, as personagens se movimentam em silêncio enquanto, sobre a
emotiva sinfonia de Shostakovich, a voz em off do direto r surge onisciente,
como se o espectador ouvisse os pens amentos do criador.
(http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclop edia_teat ro/index.c fm?f
useaction=personalidades _biografia&cd_verbete=151&lst_p alavras=&cd_idio
ma=28555, consultado em 20/09/2006)
A perda de fontes enun ciadoras estáveis (como as personagens do dra ma ortodoxo, dotadas de
ciência e poder de decisão para satisfazer sua vontade ao longo da ação dramática) torna a cena
um território intelectual de citações e simulações, que, por sua vez, nos remetem a outra s
citações e simulações, num jogo de espelhos perturbador. Há um processo cerebral e irônico que
esmaece a noção de unidade centralizante. Na acep ção desconstrutivista, trata-se de um jogo do
deslizamento do signo e do significado desviante. A ironia e a metaling uagem rompem com a s
“individualidad es totalizantes” (cf. C
OSTA FILHO, 2005) e com as identificações qu e por acaso o
público venha a sentir. Contribuindo para romper definitivamente com a representação
naturalista da cena, o texto é tratado como partitura e a voz dos atores é trabalhada para adquirir
um tom operístico.
A partir dos anos 90, vamos encontrar uma reveladora pluralidade de tendências e de
experimentos, que serão vistos, aqui, como realidade histórica em processo. O tempo ainda é
muito recente para expormos opiniões mais generalizadoras. Pinçaremos alguns poucos casos
142
que nos poderão ajudar a compreender o ambiente em que se insere o terceiro dramaturgo que
compõe nosso corpus, Newton More no.
A concepção que tomamos aqui de teatro narrativo-performático continua sendo a
tônica de muitas das novas produções. Os e spetáculos de Enrique Diaz, da Companhia dos
Atores (Rio de J aneiro), dão conti nuidade à vert ente cerebra l e lúdica do teatro de Gerald
Thomas. Com Melodrama, esp etáculo de 1995, inaugura-se um novo método de criação da
companhia, que integra o texto e a cena: o autor Filipe Miguez escrevia o texto enquanto o s
atores ensaiavam com Enrique Diaz, integrando os dois percursos criativos. No plano conceitual,
esse método nos remete às criações cênico-dramatúrgicas conjugadas, de que trata Costa Filho
(2003; 2005), como já vimos. Como se pode prever a partir do título, a peça aposta na
metalinguagem e faz uma paródia ao gênero melodramático. A remissão às mais diversas
situações melodramáticas rompe com a cadeia da unidade dramática e fratura a unidade do
sujeito dramático, na medida em que não há um só agente que realiza uma única ação dramática.
As personagens são, elas mesmas, personagens paródicas das peças melodramáticas, gerando
uma estrutu ra em abismo que esface la a noção da existência prese ncial de um sujeito dotado de
unidade.
É também da déca da de 1990 o Te atro da Vertigem , grupo paulista dirigido por Antônio
Araújo. A experiência cênica inovadora do Teatro da Vertigem é resulta do da intensa pesquisa e
da realização de espetáculos em espaços não convencionais. A Trilogia Bíblica, dirig ida po r
Antônio Araújo, foi co mposta pelas peças Paraíso Perdido (1992), escrita por Sérgio de
Carvalho; O Livro de Jó (1995), com texto de Luís Alberto de Abreu; e Apocalipse 1,11 (2000),
com dramaturgia de Fernando Bonassi. Do ponto de vista da encena ção, o grupo se destaca por
fazer uso de recursos de intensa teatralidade, propondo um mergulho profundo da equipe nos
ambientes (há uso freqüente de espaços não convencionais) e nas personagens enfocadas. Daí a
rigorosa preparação corporal e vocal constituírem a base do trabalho de linguagem do Teatro da
Vertigem, a fim de poderem alcançar uma performatização material e corporal exarcebada,
mediante o dilaceramento e desinvidualização dionisíaca . Do ponto de vista da dramaturgia, é
marcada pelo processo participativo, característica realçada por Fernando Bonassi, autor de um
dos textos da Trilogia Bíblica. O dramaturgo está sempre presente na sala de ensaios,
dialogando com atores, diretor, técnicos. Resulta, po is, desse processo a estruturaç ão do texto
final.
Juntamente às ricas experiências de grupos teatrais nos anos 90, vimos surgir alguns
dramaturgos que vêm se mostrando como uma geraçã o mais sólida e contundente, não obstante
a pluralidade de abordagens. Nomes como Bosco Brasil e Mário Bortolotto, por exemplo,
143
figuram como dramaturgos de temática fortem ente urbana, não negando a filiação, em distintos
graus, claro, a uma mesma tradição realista, o que demonstra uma ênfase aos traços estilísticos
mais característicos da dramá tica.
No decênio que se segu e, a produção c ênico-dramatúrgica, cada vez mais conjug ada, tem
se mostrado multifacetada e multidirecionada. É nesse contexto que surge a dramaturgia de
Newton Moreno, muito prematura ainda, ma s já fincando bases sólidas na história do teatro
brasileiro. Seu trabalho encontra- se em processo de formação, de maneira que não podemos
ainda tecer a seu respeito considerações ma is ou m enos sintetizadoras. Observamos que, até
então, boa parte de sua escritura teatral tematiza o universo homoerótico, nos contextos rural ou
urbano. É o caso de Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada (2000),
144
impulsiona o dramaturgo a experimentar e a buscar uma forma eficiente para propor uma
experimentação estética afinada com as idéias que ele tem do teatro de hoje.
Dentro foi encenado em 2002, como parte do projeto Mostra SESI de Dramaturgia
Contemporânea, idealizado por Re nato Borghi e Élcio Nog ueira Seixas, e sses, in clusive, atore s
do espetáculo em questão. A direção foi assinada por Nilton Bicudo. Tivemos a oportunidade de
assistir à encenação quando o grup o envolvido com o projeto esteve no Recife. O espetáculo foi
apresentado no Teatro de Santa Isa bel em 2004, que se encontrava relativamente cheio, com
uma platéia heterogênea. Dois fatos curiosos ocorreram. Primeiro: antes do início do espetáculo ,
Luah Guimarãez, atriz que também faz parte do projeto, foi até o proscênio, explicou que a peça,
apesar de conter cenas “fortes”, é “tão lírica”, que valeria a cooperação da platéia. A atriz parecia
esperar da platéia uma possível reação agressiva. Segundo: não houve nenhum tipo de reação
agressiva, mas foram ouvidos a lguns risos nervosos, s eguidos por alguns assobios. Isso mostra
que a cena provocou um impacto de ordem moral. Curioso é que, apesar de nos encontrarmo s no
século XXI, aproximadamente seis décadas depois que Nelson Rodrigues surgiu no cenário
teatral e quatro décadas de distância da primeira montagem de Navalha na carne, que
provocara frisson no público paulistano, a platéia ainda fique incomodada. Há um
estranhamento decorrente dos valores morais sobre os quais a sociedade ainda está assentada.
No entanto, obteve boa acolhida da crítica especializada, como demonstram os
testemunhos a baixo:
A posse e o possuído expõem a voracidade de levar mais adiante a extensão do
prazer, tenta-se ampliá-la at é esbarrar na certeza de que inexistem o absoluto e
a busca recomeça, numa permanente tentativa do encontro, da partilha, do
intercâmbio, do descobrir-se no outro. (Macksen Luiz. Jornal do Brasil.
Caderno B. 12/10/2002. Vaias, emoções e risos.)
A um só tempo, à margem do exper imento e da tradição, há o belíssimo diál ogo
dramático de Newton Moreno onde se alternam a voz do desejo que quer
possuir e a voz do objeto da posse. (Mariângela Alves de Lima. O Estado de São
Paulo. Caderno 2. 06/07/2002. Panorama teve pluralidade de temas e
estilos.)
A peça explora a complexidade de relacionamentos e práticas homoeróticas na
narrativa polêmica de um fist-fucking, (...) na com bin açã o de p rim iti vo e
simbólico e na mistura da carne e alma qu e resu lta m n uma sínt ese p oét ica do
145
comportamento marginal e da vida de riscos. (Sílv ia Fernandes. Folha de S.
Paulo. Ilustrada. 23/06/2002. Subjetividade, paródia e polêmica
dominam novo ciclo.)
Por essa pequena amostragem, vê-se q ue a crítica esteve m ais atenta ao teor do texto do
que propriamente à realização cênica, o que é basta nte compreensível, haja vista a natureza do
projeto em que a p eça esteve inserida. O foco, tanto dos realizadores da Mostra quanto da crítica,
incidia sobre a nova safra de dra maturgos brasileiros. Para a crítica, parecia seduzir a linguagem
lírica e não-rea lista da peça.
Recepção mais efusiva ganhou o espetáculo Agreste, com encenação de Marcio Aurélio. A
peça estreou em 2004 no Teatro Cacilda Becker (São Paulo) e, desde então, tem sido sucesso de
público e de crítica.
A montagem obteve, nesse me smo ano, o prêmio APCA de texto e
espetáculo, bem co mo o Shell de melhor dra maturgo. Na opinião de Ivana Mo ura, quando do
Festival de Teatro de Curitiba, 2004 , onde Agreste foi ap resentado, o “trabalho de tessitura do
texto ganha o reconhecimento de seus pares do público e da crítica. [Newto n Moreno] É
apontado como um novo fôlego da dramaturgia nacional”
61
.
Em 2006 , o mesmo espetáculo esteve na Alemanha, no festival “Brasil em Cena: Teatro e
Performa nc e do Brasi l”, cujo enca rte trazia a seguinte consideração crítica:
O pernambucano Newton Moreno é um jovem autor cujo estilo poderíamos
igualmente chamar de “agreste“ – um estilo tão grandiloqüente quanto
lacônico, usado para descrever de forma direta e simples porém incisiva pessoas
e paisagens aparentemente arcaicas, perd idas e ao mesmo tempo prot egidas na
imensidão do nada, mas que mesmo assim não estão completamente fora da
civilização e das obrigações sociais como poderíamos julgar num primeiro
olhar. (http://boell-lat inoamerica.org/download_pt/Brasil_em_cena.pdf)
Se a peça Dentro pode provocar, primeiramente, um estranhamento de ordem mora l, não
obstante ter sido bem recebida pela crítica, Agreste, que se vale do mesmo tema
(homoerotismo), tem se mostrado ma is aceita pelo público, por ques tões para as quais
apresentaremos, mais à frente, algumas hipóteses.
61
In: http://www.nordesteweb. com/not01_0304/ne_not_20040324b.htm.
146
Tanto Nelson Rodrigues, quanto Plínio Marc os, quanto, ainda, Newton Moreno, por
ousarem propor um teatro radica l, foram vítimas, cada qual a seu modo, da sanha moralista do
público brasileiro. Newton Moreno, no entanto, teve o conforto de produzir seus textos
polêmicos num mom ento histórico em que domina a filosofia do “pol iticamente correto” e em
que as minorias sociais conquistam um espaço cada vez maior nos debates púb licos, o que
suaviza mais a reação moralista da platéia. Ou será que o público está mudando? É para tentar
responder a questões como essa que daremos início à análise do corpus.
147
5. Nelson Rodrigues
GILBERTO (recua numa crise violenta, num berro)
— Não! Teu beijo ainda tem a saliva do teu amante!
(Nelson Rodrigues, Perdoa-me por me traíres)
A
RANDIR (numa alucinação) — Dália, faz o seguinte. Olha o seguinte:
diz à Selminha. (violento) Diz que em toda minha vida, a única coisa
que se salva é o beijo no asfalto. Pela primeira vez. Dália, escuta! Pela
primeira vez, na vida! Por um momento, eu me senti bom!
(Nelson Rodrigues, O beijo no asfalto)
Feitas as considerações preliminares, a fim de compreender em que contexto se inse riam
nossos dramaturgos, centremo-nos, por ora, nas duas peças rodriguianas, Perdoa-me por me
traíres e O beijo no asfalto. Lembramos que, no capítulo anterior, Sábato Maga ldi, ao analisar o
comportamento de Gilberto, se referia ao impacto que exercia sobre “o enraizado machismo
brasileiro”. É essa relação entr e a moral ma sculina pequeno-burguesa (machismo) e sua
alteridade que procuraremos analisarem ambas as peças.
Perdoa-me por me traíres apres enta a personagem Glor inha, adolescente, órfã de mãe e
abandonada pelo pai, que havia s ido internado num manicô mio quando a menina a inda era
pequena. Ela foi adotada pela família paterna e viveu sob a educação severa do tio, Ra ul. No
primeiro ato, Glorinha falta à aula e vai com sua amiga de colégio, Nair, à casa de Madame Luba,
cafetina especializada em comercializar colegiais adolescentes, moças “de família”. Ao sa ir da
casa de Madame Luba, Glorinha acompanha sua amiga, que vai fazer aborto numa clínica
clandestina. Antes de Nair morrer na mesa de cirurgia, Glorinha a aba ndona. No segundo ato,
quando está saindo de casa para ir ao colégio, Glorinha é interceptada pelo tio Raul, já ciente de
que, no dia anterior, a sobrinha não tinha ido ao co légio. Revela-lhe que Nair está morta e que
tomara conhecimento de onde elas estiveram, juntas, antes de Glorinha abandonar a amiga.
148
Conta-lhe, num flashback, a verdade sobre os pais da sobrinha, Gilberto e Judite. Enquanto
estivera internado num manicômio, Gi lberto fora tra ído pela esposa. Ao retornar ao lar, ele
recebe a visita de toda sua família, que viera lhe contar da traição de Judite. Ante a reação
condescendente e compreensiva de Gilberto, Ra ul decide-se por voltar a internar o irmão e,
sozinho com Judite, obriga a cunhada a to mar veneno. No terceiro ato, tendo contado a
Glorinha, no tempo presente do drama, que amara a cunhada e a matara, decide fazer o mesmo
com a sobrinha, pois ela era igual à mãe. Glorinha o convence a morrer junto com ela, mas
somente Raul to ma o veneno. G lorinh a, q ue levou o copo à boca mas não bebeu o veneno, assiste
à morte do tio e sai pela porta rumo à casa de Mada me Luba. Fim da peç a.
Em O beijo no asfalto, um jornalist a inescrupuloso e um delegado corrupto se
aproveitam de um fato que ocorrera durante a manhã para combinar algo que favorecesse a
ambos. Um homem havia sido atropelado por um lota ção e outro se ba ixara diante do corpo do
atropelado e lhe beijara a boca. O jornalista decide escrever uma matéria sensacionalista sobre o
beijo no asfalto e propõe ao delegado investigar o caso, a fim de sugerir que se tratava de um
crime passional, pois isso elevaria o número de leitores do jornal assim como suavizaria a
imagem corruptível da polícia carioca, acusada de inúmeros delitos. Arandir, o homem que
beijara o atropelado, é interrogado pelo delegado e pelo jornalista na delegacia. Os dois
intimidam Arandir, inquirindo se ele g ostava de mulher e s e conhecia o morto. Aprígio, sogro de
Arandir, que estivera a seu lado quando ocorreu o fato, vai à casa da filha, Selminha, e lhe conta
o que presenciara. Quando Arandir chega em casa, encontra a esposa e a cunhada à sua espera e
conta, assustado, o que sucedera naquele dia. Tu do isso ocorre no primeiro a to, que funciona
como prólogo, apresentando o início do co nflito. No segundo a to, sai o jornal com a manchete de
capaBeijo no Asfalto e a foto de Arandir. A reportagem sugere que os dois homens eram
amantes. Selminha toma conhecimento do conteúdo da matéria por intermédio de uma vizinha.
Arandir é destratado no trabalho por seus colegas, que haviam lido o jornal, e pede demissão.
Selminh a fica em cris e qua ndo o marido conf irma que b eijara um homem na bo ca, mas ele
garante à esposa que o atropelado era um desconhecido. Em meio a isso, o jornalista vai ao
enterro do morto e chantageia a viúva para que ela confessasse já ter visto Arandir em sua casa.
No terceiro ato, Selminha é levada pelo delegado e pelo jornalista a uma casa na Boca do Mato,
onde é interrogada pelos dois, humilhada, e ouve da viúva do atropelado que Arandir era
conhecido de seu marido. Arandir sai de casa pa ra fugir de todos e se hospeda num quarto de
hotel. Deixa recado para Selminha o procurar, mas ela renega o marido. Dália, a cunhada, na
esperança de conq uistar o amor de Arandir, vai ao hotel d izer ao cunh ado que Selminha não
quer mais vê-lo. Dália se declara a Arandir. Percebendo que a cunhada também desconfia da sua
149
versão dos fatos, expulsa-a do quarto. Segue-se a cena do encontro entre sogro e genro. Aprígio,
alterado, diz não perdoar o genro porque o amava. Depois da declaração, Aprígio atira no genro.
Arandir morre. Fim do drama.
O título das duas peças em qu estão — elemento paratextual — caracteriza-se por se
constituir de uma citação, valendo-se de um extrato de enunciado representativo da fa la das
personagens
62
: em Perdoa-me por me traíres o título é uma citação da fala de Gilberto e em O
beijo no asfalto, da manchete do jornal (mencionada pelas personagens), responsável pelo
aniquilamento da personagem Arandir. O beijo é um motivo fundamental para o
desenvolvimento da intriga na segunda peça, presente, inclusive, no título. Na primeira , o título
nos reporta ao flashback, chamando a a tenção para o significado des se recuo no tempo pa ra o
esclarecimento da intriga.
Tendo em vista que o título de Perdoa-me por me traíres realça um momento do passado
— com relação ao momento pres ente em que a peça se desenrola —, comecemos a a nálise pelo
flashback. Quando Gilberto sai de ca sa para ficar recluso num manicômio, Judite quer se
despedir com um beijo, ao qual o marido se nega, alegando que o beijo da esposa continha a
saliva do amante. Se o ciúme era justificado ou, simpl esmente, um delírio de Gilberto, isso não
fica claro até esse momento. Mas é relevante destacar o fato de o marido ter rejeitado o beijo da
mulher, uma vez que, acreditando ser ela uma adúltera, a união espiritual, representada pelo
beijo, estaria rompida. Mas Gilberto, não obstante o gênio violento, reconhece que seu ciúme
está levando-o ao delírio e procura se curar disso pela malarioterapia
63
. Sua última fala se dirige
a Raul: diz nã o querer ver ninguém no hospital, que voltará “q uando for outro homem
(R
ODRIGUES, 1993, p. 806-807). Ao retornar ao lar, seis meses depois, decide fazer uma surpresa
a Judite, aparecendo sem avisar, e a encontra arrumando-se para sair. Pede-lhe um beijo cinco
vezes, mas, dessa vez, ela se esquiva e lhe nega o pedido, alegando estar pronta para sair. Na
verdade, como Tio Raul revelará em cena seguinte, Judite tem um amante e, surpresa pela
chegada de Gilberto, não se sente estimulada a beijá-lo , uma vez que já perdera o vínculo
espiritual com o ma rido, mesmo antes de ele a ter abandonado para se internar numa casa de
saúde. Nesse momento, Gilberto apela para a atenção de Judite, dizendo-lhe que ressuscitara e
que não haveria compromisso algu m que justificasse o fato de a esposa não ficar em casa e
62
Thierry Gallèpe (1997) identifica os componentes do texto dramático, valendo-se da seguinte terminologia: PEÇA =
texto+ paratexto
150
comemorar a ressurreição do esposo. Na cena seguinte, recebe Raul, falando-lhe: “te juro: eu sou
outro, profundamente o utro” (R
ODRIGUES, 1993, p. 808).
Ressurreição, do latino resurrectione, é um termo que retoma o sentido de anastasis, dos
gregos, para designar, literalmente, o retorno à vida, o ato de devolver à vida uma pessoa já
considerada morta. As pessoas, no entanto, usavam o termo para diver sos fenômenos, até que,
com o advento do cristianismo, a pala vra ressurreição passou a significar o espírito de Cristo,
que, após a crucificação, apareceu aos seus, antes de subir ao Reino de Deus. A Igreja Católica
também adotou uma co notação escatológica ao se ref erir à ressurreição dos mortos no dia do
juízo final. Como o cristiani smo dominou no O cidente durante vinte séculos, é normal que o
valor dado de imediato à palavra seja, hoje, influenciado pela ideolo gia cristã . Logo flagramo s na
fala de Gilberto a presença de um discurso religioso, quando diz à esposa que ele voltou
ressuscitado. Isso nos reporta também à informação que Gilberto dá ao irmão, ao falar que
voltará quando for um novo homem. Na volta, a personagem se sente recuperada por conta do
tratamento da malarioterapia e se considera ressuscitado , um novo homem, não mais o
ciumento atormentado que abandonara o próprio lar.
Mas, afinal, o que viria a ser esse novo homem? Numa leitura superficial, trata-se de uma
expressão comum, pois, se antes Gilberto se sentia doente de ciúme, quando volta para casa
acredita estar curado; em outras palavras, ser “um novo homem”. De fato, a mudança de
comportamento fica evidenciada na s ações da pers onagem. Apesa r de Judite deixar uma sér ie d e
indícios de que tra ía o marido, em nenhum moment o, depois da volta de Gilberto, isso se tornou
motivo de briga entre o casal. Pelo contrário, diante da acusação de que Judite tinha um amante,
Gilber to se m ostra c ondesc endent e com o a dult ério, emitin do enun ciado s do tip o: “A ad últera é
mais pura porque está salva do desejo que apodrecia nela”; “chego aqui e vejo o quê? Que
ninguém ama ninguém, que ninguém sabe amar ninguém. Então preciso trair sempre, na
esperança do amor impossível.”; “Perdoa-me por me traíres!”; “Amar é ser fiel a quem nos trai!”;
“Não se abandona uma adúltera!” (R
ODRIGUES, 1993, p. 812-813). Gilberto é um “novo homem”,
que não demonstra ma is ser ciumento, apesar de esses enunciados sentenciosos revelarem, à
primeira vista, que Gilberto ainda se encontra perturbado psicologicamente. Sa liente-se,
entretanto, que a cena co nstitui um flashback. Mesmo que esse flashback tenha sido construído
na peça de forma dramática, ou seja, não é um simple s relato oral, mas um recuo no tempo
subordinado às leis do teatro — apaga-se a luz que corresp onde ao espaço do tempo presente,
para acendê-la num outro plano, o do passado, com as personagens que fazem parte desse
passado —, o conteúdo desse flashback provém de uma fonte enunciadora: Tio Raul. As cenas do
passado constituem projeções da mente obsessiva de Tio Raul, exemplo de personagem
151
expressionista. Dessa fo rma, torna-se pa ra o leitor uma fonte nã o confiável, princip almente se
considerarmos que seria impossível recuperar os momentos em que Gilberto e Judite estão
sozinhos, sem a presença de Tio Raul, fonte única do s fatos relatados. Como é possível relatar o
que não se viu? Tio Raul projeta de sua mente o que parece ter acontecido, mas o flashback
redunda em pura subjetivação, ressaltando-s e o valor psicológico da personagem Raul. Os
enunciados proferidos por Gilberto, como aludimos, adquirem um tom sentencioso , dissonante,
que faz a personagem parecer perturbada. Chamemos a atenção de que foi Tio Raul quem
decidiu levar seu irmão de volta à casa de saúde, pois, para ele, o irmão estava agindo de maneira
insana. A incompreensã o entre as personagens faz com que Gilber to seja taxa do de louco, daí, no
flashback, suas falas se revestirem de tom grandiloqüente, acentuando o caráter expressionista
da cena.
Mas por que, na ótica de Tio Raul, Gilberto estaria ag indo como louco? Parece-nos que é
justam ente ness e pont o qu e está imp licita da a ques tão d o “ou tro h omem ”, d e que f ala Gilb erto .
Esse ponto será alvo de nosso invest igação, na medida em que implica uma relação entre a moral
burguesa moderna e o outro da masculinidade. O que se espera de um “homem”, na perspectiva
pequeno-burguesa como a de Tio Raul, sua família e Judite, quando sabe que a esposa o está
traindo? O castigo. Veja-se como a ce na se desenrola entr e Gilberto e sua família:
(1)
G
ILBERTO — Na casa de saúde eu pensava: nós devemos amar a tudo e a todos.
Devemos ser irmã os até dos móveis, irmãos até de um simples armário! Vim de
lá gostando mais de tudo! Quantas coisas deixamos de amar, quantas coisas
esquecemos de amar. Mas chego aqui e vejo o quê? Que ninguém ama ninguém,
que ninguém sabe amar ninguém. Então é preciso trair sempre, na esperança
do amor impossível. (agarra o irmão) Tudo é falta de amor: um câncer no seio
ou um simples eczema é o amor não possuído!
S
EGU NDO IRMÃO — Bonito!
P
RIMEIRO IRMÃO — Que papagaiada!
T
IO RAUL (contido) — E, finalmente, qual é a conclusão?
M
ÃE (para si mesma) — Meu filho não diz coi sa com coisa...
(...)
G
ILBERTO (recuando) — Vocês ex igem o que, de mim ?
T
IO RAUL — O castigo de tua mulher!
M
ÃE — Humilha bastante!
152
PRIMEIRO IRMÃO — Marca-lhe o rosto!
G
ILBERTO — Devo castigá- la eu mesmo? Na frente de vocês? (com súbita
exaltação) Judite! Judite! (para os outros) Vocês vão ver! Vocês vã o assistir!
(grita) Judite! Judite! (R
ODRIG UES , 1993, p. 812)
E, agora, leia-se o diálogo entre Gilberto, Judite e Tio Raul, que se segue à cena transc rita em (1):
(2)
(Silêncio geral. E, fora, então, de si, o marido atira-se aos pés de Judite.)
G
ILBERTO (num soluço imenso) — Perdoa-me por me traíres!
J
UDITE (desprendendo-se num repelão selvagem) — Está louco!
G
ILBERTO (sem ouvi-la) — Perdoa-me!
J
UDITE (para a família) — Não está em si! Eu não traí ninguém!
T
IO RAU L (para família que se agita) — Ninguém se meta! Ninguém diga nada!
(para a cunhada, caricioso e hediondo) Pode falar, Judite! Quer dizer que voc ê
concorda conosco? Acha também que seu marido recaiu, digamos assim?
G
ILBERTO — Não responda, Judite!
J
UDITE — Mas é evidente que está alterado... E, depois, não tem cabimento: diz
“Perdoa-me por me traíres” , ora veja!
T
IO RAUL — E acha que ele deve ser internado, não acha, Judite? Diga para a
sua sogra, seus cunhados, diga, Judite!
J
UDITE (crispada e com certa vergonha) — Deve ser internado! (ROD RIGUES,
1993, p. 813)
Depois de saber que Judite tem um amante, Gilberto conta à família o que sucedera no
manicômio, como lemos em (1). O tempo em que ficara recluso o fez reencontrar o amor, ma s
um amor puro, altruísta, que não cobra nada em troca. Para Gilberto, os que o rodeiam não
sabem o que é o amor, mas o ódio, a mesquinhez, a ar rogância. Essa concepção de amo r
“absoluto” trai um discurso religioso, da ética cristã, que nos faz lembrar, por exemplo, o Sermão
do Mandato, do Pe. Antônio V ieira, em que o orador defende sua tese do verdadeiro amor em
Cristo, demo nstrando que nós, humano s, não sabemo s amar
64
. Ou, ainda, Cristo, que pede a
64
Estamos nos referindo ao sermão pregado na Capela Real, no ano de 1645. Segundo Vieira (2003, p. 51), “quatro
ignorâncias podem concorrer em um amante, que diminuam muito a perfeição e merecimento de seu amor: Ou
153
seus discípulos, na Santa Ceia, para amarem uns aos outros, como ele os havia amado (Gilberto
diz que “nós devemos amar a tudo e a todos”)
65
. No entanto, esse interdiscurso religioso está
posto, na fala de Gilberto, a partir de valores que contrariam a própria ordem do discurso
religioso e da formação discursiva nela pressuposta . Por exemplo, imbuído de amor puro,
Gilberto acha que, nã o encontrando a feto entre seus semelhantes, o suj eito deve trair, na busca
do amor absoluto e, por is so, impossível. A traição se justifica pelo amor, de um lado, e, po r
outro, pela falta dele. Entretanto, a traição é, na Bíblia, uma atitude condenável
66
. Delimita-se, a
partir da fala da personagem, um campo discursivo religioso, cujo espaço se constrói pela
polêmica entre duas formações discursivas distintas: o discurso cristão- bíblico e o apócrifo, que
justifica a traição pelo amor
67
. Essa polêmica inte rfere na semântica do discurso, na medida em
que a traição é revestida de caráter quase que sagrado (lembremos as falas de Gilberto, que
destacamos anteriormente — “Amar é ser fiel a quem nos trai!”; “Não se abando na uma
adúltera!”).
No tocante à relação de gênero, mesmo que o discurso religioso, ao se valer do
mandamento divino “Não cometerás adultério” (Bíblia de Jerusalém, Êxodo, 20, 14), imponha
censura à prática do adultério, é tolerável, em nosso contexto androcêntrico, que o homem seja
adúltero, mas a mulher nunca poderá infringir o mandamento de Deus (e também social),
devendo obedecer ao marido e sempre respeitá-lo. Quando Gilberto se mostra compreensi vo
com a esposa adúltera, quebra a expectativa que sua família tem do filho “homem”. Sua fala
parece ser tão absurda aos familiares, que o primeiro irmão chama aquilo tudo de “papagaiada”,
Tio Raul perg unta-lhe qual a conclusão de tudo o que diz, e sua mãe acredita que o f ilho não diz
coisa com coisa.
O conflito ideológico se instaura a partir da inter incompreensã o que envolve os discur sos
de Gilberto e da família
68
, caracterizados por nós, respectivam ente, como o discurso da
alteridade e o discurso masculino pequeno-burguês. Como se lê em (1), log o após a fala
porque não se conhecesse a si; ou porque não conhecesse a quem amava; ou porque não conhecesse o amor; ou
porque não conhecesse o fim onde há-de parar, amando”.
65
Quanto à tão conhecida fra se de Cristo, cf. Jo, 15, 12 (Bíblia de Jerusalém) .
66
Cristo foi “traído” por Judas Iscariotes, que, por sua vez, se suicidou em razão do remorso. Judas foi pela Igreja
Católica tomado como bode expiatório, de tal sorte que seu comportamento se difundiu, ao longo dos séculos
subseqüentes, como um ato vil, abjeto.
67
Maingueneau (2005, p. 35-37), ao tratar do interdiscurso, val e-se dos te rmos universo discursivo, campo
discursivo e espaço discursivo. Por campo discursivo, o autor entende “um conjunto de formações discursivas que se
encontram em concorrê ncia, delimi tam-se recipro camente em uma região determinad a do universo discursi vo”. Os
espaços discursivos seriam “subconjuntos de formações discursivas que o analista julga relevante para seu propósito
colocar em relação”.
68
É também de Maingueneau (2005, p. 103) o termo interincompreensão, segundo o qual “cada discurso é delimitado
por uma grade semântica que, em um mesmo movimento, funda o desentendimento recíproco”. Em nossa análise, o
espaço discu rsivo corr esponde a o disc urso ma sculino, de onde em ergem forma ções dis cursiv as que estã o em co ndiçã o
de polêmica.
154
incompr eendida de Gi lberto , seus pare ntes l he cob ram o ca stig o da mu lher , que ele a
humilhasse, que lhe marcasse o rosto. Esses enunciados revelam uma semântica discursiva
coerente, reproduzindo uma ideologia segundo a qual uma adúltera deve ser castigada. Suas
falas se relacionam intertextualmente a uma prática judaica mencionada na Bíblia: lançar
pedras, em público, a uma adúltera. Essa prática se estendeu até o período medieval. E, até há
pouco tempo, a mulher que cometia adultério, se não passava mais por um flagelo público, era
alvo, em muitas culturas, de execração pública
69
. Como a família, l iderada por Tio Raul ,
representa a ordem ideológica hegemônica, em que o homem de ve ser superior à mulher e
exigir-lhe respeito, o comporta mento de Gilberto é desprovido de s entido para seus parentes. O
discurso de Gilberto passa a assumir o lugar do “outro”, pois, para a personagem, o “novo
homem” em q ue ele s e tor nou i mplica ama r inco ndicionalmente as pessoa s e as coisas. Ora,
entre a “honra” e o “a mor”, o ver dadeiro “homem”, na mentalidade pequeno-burguesa, deverá
optar pela “honra”. Rejeitando os pressuposto s semânticos da ordem discursiva pertencente à
esfera de seus familiares, Gilberto assume o espaço da transgressão, do diferente, do “outro”, ao
optar pelo amor. Também ele deixa de compreender o sentido dos enu nciados de seus irmãos e
de sua mãe, qua ndo diz, em (1), “Mas chego aqui e vejo o quê? Que ninguém ama ninguém, que
ninguém sabe amar ninguém”. O policiamento fa miliar, em vez de ser aceito por Gilb erto como
indício do amor filial ou fraternal, é compreendido pela pe rsonagem como um comportamento
típico de quem desconhece o amor. Saliente-se que um discurso ressemantiza o significado do
outro, e vice-versa, a partir de pressupostos que dizem respeito à fo rmação discursiva de cada
discurso. Em outras palavras, como revela Maingue neau (2005, p. 104), há uma “tradução” de
semas do discurso do outro: “cada um entende os enunciados do Outro na sua própria língua,
embora no interior do mesmo idioma”.
Como nos interessa analisar as relações de poder inerentes à prática discursiva sobre o
masculino, destaquemo s a hegemonia do discurso machista sustentado pela fa mília de Gilberto.
No contexto social em que se situa a peça, trata-se de um discurso aceito como normal e
verdadeiro. E como esse discurso impõe suas próprias restrições, a fala de Gilberto sobre o amor
e o adultério é interpr etada como atestado de insanidade. Sobretudo quando ele chama a esposa
e, diante de todos, pede-lhe perdão por ela o ter traído. O comportamento é tão atípico para uma
sociedade ainda fortemente influenciada por valores patriarcalistas, que o enunciado “Perdoa-
69
Estamos focalizando apenas a cultura judaico-cristã. Diferente é o caso de outras culturas, sobretudo algumas
facções mais radicais do islamismo, que ainda hoje pune, muitas vezes até com a morte, a mulher adúltera.
Quanto à realidade cristã, citemos só um exemplo de como esse tema foi trabalhado em arte: no filme Breaking the
Waves (1996), do diretor dinamarquês Lars von Trier, uma jovem irlandesa, entre os anos 60 e 70, perturbada
emocionalmente pela morte do irmão e pelo acidente envolvendo o marido, acredita que salvará o esposo se fizer sexo
com os mais diversos homens. Tal comportamento a faz ser expulsa da ordem protestante de que era membro, por ter
sido considerada uma adúltera pecadora.
155
me por me traíres!” soa estranho. Nem mesmo Judite, alvo primeiro dos ataques que geraram a
polêmica, consegue co mpreender o marido. “Está louco!” é a reação que esboça. A didascália
informa que ela se desprende “num rep elão se lvagem”, atitude que indica o espanto que el a
estava sentindo diante da cena a que acabara de assistir. A ação realizada pela fala do esposo é
diagnosticada, por ela também, como típica de um insano, o que nos leva a duas leituras: por um
lado, ela estava querendo esconder de todos que traía o marido; por outro, ela realmente não
compreendia por que, sendo ele o traído, o ma rido lhe pedia perdão (“não tem cabimento: diz
‘Perdoa-me por me traíres’, ora veja!”). Ela concorda com Tio Raul que Gilberto deve voltar a ser
internado na casa de saúde . A grande iron ia trágica se concentra na inco municabilidade entr e
Gilberto e a esposa. Ele, protegendo -a, resguarda-se do ciúme, oferecendo-lhe um amor puro e
absoluto; ela, f ingindo que não o traía, não deixa de se espantar diante do pedido de perdão de
Gilberto. A ordem discursiva hegemônica constrange o discur so alheio (o de Gilberto) e
proscreve-o. Gilberto é preso pelos irmãos e retirado de cena, rumo ao manicô mio.
Gilberto passa a ser duplamente o “outro” do ma sculino. Primeiramente porque opta pelo
amor em vez da honra masculina (no sentido, vale ressaltar, atribuído pela ideologia pequeno-
burguesa). Em segundo lugar porque é qualificado como louco, imagem avessa, porta nto, ao
ideal mo derno de masculinidade. Inter nando a personagem (em outra s palavras, silenciando-a ),
o discurso masculino pequeno -burguês contribui para a manutenção do status quo e da ordem
masculina hegemônica. Além disso, é preciso punir a adúltera: Tio Raul a obriga a toma r veneno.
Ao perseguir a união espiritual e o amor, em oposição à violenta defesa da honra, a
personagem Gilberto encontra sua trag édia pessoal, que o levará à decadência, ao seu próprio
aniquilamento como homem, incompre endido p or todos que compartilham de um mesmo
sistema de crenças machistas. A forma de demonstrar seu amor nã o corresponde à expectativa
que as personag ens, partindo da representação social do masculino, nutriam a respeito do
comportamento de Gilberto.
Uma vez q ue na peça não há nenhuma menção à homoafetividade de Gilberto, seu
comportamento será interpretado como de um louco, imagem que ta mbém contraria os valores
pequeno-burgueses a respeito do conceito de masculino. Vale lemb rar o que foi discutido no
capítulo III, com relação à anti-norma da masculinidade burguesa. Na mentalidade burguesa, o
homem ideal correspondia ao homem branco, heterossexual, forte, valente, destemido, auto-
controlado. Dessa forma , estar desprovido de razão não constitui uma característica condizente
com o modelo masculino hegemônico . Apostar num amor “puro”, despojando-se dos valores
socialmente consagra dos, faz do homem um lo uco. Confinar a persona gem numa casa de saúde
pareceu ser a melhor opção para os familiares de Gilberto, a fim de que seu comportamento não
156
maculasse a imagem da família. Considerando a constituição familiar como peça fundamental
para a ordem burguesa, podemos inferir que, na peça, o silêncio forçado de Gilberto corrobora a
manutenção do status quo. No entanto, a ação de Gilberto, a despeito de sua imagem
expressionista projetada pela memória de Tio Raul, assume, no contexto do drama, um
simpático valor de oposição à ordem vigente. Apesar de, aparentemente, o equilíbrio familiar ter
sido reconquistado com a saída de cena de Gilberto, constatamos, no final do segundo e em todo
o terceiro ato, que esse equilíbrio é um engodo.
Incapaz de co nciliar a moral idea lizada (peq ueno-burguesa) com o imp ulso erótico, seu
representante-mor, na peça, Tio Raul, vive num conflito que o levará à própria derrocada. Com o
propósito de defender a honra masculina de seu irmão, no final do segundo ato, se d irige a
Judite nos seguintes termos: “Estou no lugar do irmã o louco. Negas que tens amante?”
(R
ODRIGUES, 1993, p. 814). Tio Raul mata Judite, mas, na verda de, o faz po r ciúmes, pois era
apaixonado pela cunhada. Essa revelação, no entanto, só é verbalizada no final do terceiro ato,
ou seja, final do drama, o que confere à peça um caráter melodra mático. Tio Raul diz à sobrinha:
(3)
T
IO R AUL (...) Contei a história de t ua mãe, porém n ão te disse que a amava,
que sempre a amei. Ainda agora, neste momento, eu a amo. (berrando) Eu
matei a mulher, a cunhada que me repeliu e porqu e me repeliu (...).
[...]
T
IO RAUL (sem ouvi-la, delirante) Judite, quando eu te fiz beber o veneno e
caíste de joelhos, com as entranhas em fogo, eu te segurei pelos cabelos, assim,
Judite! (e de fato agarra Glorinha pelos cabelos) Vi que ia morrer o corpo
beijado por tantos, nunca b eijado por mim! Foste minha agonizando, querida!
Pela primeira vez, minha! Cerraste os lábios para o meu beijo... Mas nem teu
marido, nem teus amantes, ninguém te beijou na hora em q ue morrias, só eu!
(R
ODRIGUES, 1993, p. 823)
O discurso de Tio Raul revela alguma s fendas que nos permitem analisar um sentimento
contraditório. Por um la do, a adúltera de ve ser punida [“Ela não trairá nunca mais...”, d iz Tio
Raul à mãe, depois que ele mata a cunhada (R
ODRIGUES, 1993, p. 814)]; por outro lado, a
adúltera é punida por repelir os sentimentos de quem “verdadeira mente” a amava. O adultério
deve ser castigado, porém Judite será castigada, na verdade, por repelir o cunhado. Tio Raul
sustenta o discurso da honra masculina, mas deseja tacitamente que Judite seja adúltera,
157
mantendo relações extra-conjug ais com ele. Fere, porta nto, o mandamento “divino ” — “Não
cometerás adultério” —, discurso que veio a contribuir, conforme vimo s, para o fortalecimento
da ordem burguesa pós-revoluções. Quanto mais se estabelecem os limites da estrutura familiar
nuclear (pai, mãe e filhos), mais garantias de produtividade o homem oferecerá ao sistema
capitalista. O ad ultério, po r menos que seja cr iticado quando se refere aos homens, constitui
uma das restrições das formações discursivas subjacentes ao discurso burguês sobre o
masculino. No entanto, Tio Raul aceitaria o adultério de Judite se fosse praticado com ele
mesmo. Trata-se de uma concessão no mínimo paradoxal. Como a cunhada o repele, vale-se do
discurso masculino sobre a honra contra o adultério e a assassina
70
.
Essa tensão entre sus tentar um discurso e nutrir sent imentos que o contradizem torna
Raul uma personagem atormentada. O clímax desse conflito se ap resenta na seg unda fala da
personagem, como se lê em (3). Ao longo do terceiro ato, Tio Raul mostra-se vio lento com a
sobrinha, defendendo a boa moral familiar. No entanto, encaminha -se para um estado d e
obsessão irremediável. O delírio chega ao ponto de a personagem confundir Glorinha com
Judite, filha e mãe, alegando que as duas eram muito parecidas. Tio Raul fala à sobrinha
chamando-a pelo nome de Judite. O “beijo”, a que se refere Tio Raul, contém dois significados
contrastivos: é associado ao erótico, logo ao pecado, qua ndo refer e os beijos que Judite dera em
seu marido e nos amantes (o beijo que deve ser punido); também constituiria o símbolo da união
espiritual entre Raul e Judite, que só poderia s e efetivar, no entanto, com a morte da cunhada.
Por essa última acepção, o beijo torna-se, para a personag em masculina, ato sacralizado (“nem
teu marido, nem teus amantes, ninguém te beijou na hora em que morrias, só eu!”). O beijo está
associado à morte; o eros ao thanatos. Esse valor sagrado do ato de beijar justifica o beijo que
Tio Raul dá na sobrinha , no terceiro ato. Ao perceber que o b eijo da sobrinha não tinha sido
espontâneo , mas uma estratég ia da menina para escapar da mo rte, Tio Ra ul constata que seu
sentimento “puro” fora traído e apressa-se por levar seu p lano de assassinar a g arota às últimas
conseqüênci as.
A história de Gilberto e Judite terminou qua ndo as duas personagens foram punidas por
terem ousado se d istanciar dos padrões mora is hegemônicos, o qu e vem a sa lvaguardar a
ideologia m achista de que a mulher deve ser fiel ao marido e o mar ido deve cobrar fidelidade à
esposa. Entretanto, concebendo a peça como uma to talidade, esse disc urs o ma sculino é posto e m
questão, quando concluímos que a personagem Tio Raul , responsável pela manutenção da
moral, mostra-se tão desequilibrada quanto Gilberto, pelo menos da forma como este último
70
Em nenhum momento da peça Tio Raul se declara à cunhada, mas a convida a abandonar o marido e a levá-la
daquela casa, ao que Judite se nega. Daí a razão de acreditarmos que Tio Raul é repelido pela cunhada.
158
fora pintado na seqüên cia do flashback; assim como se revela tão adúltero quanto Judite, pois
pretendera trair o irmão para ficar com a cunhada. O discurso masculino da moral não se
sustentou em seus pilares e demonstrou s er hipócrita , desencadeador das infelicidades da s
personagens.
Percebe-se que, à exceção da Tia Odete — esposa do Tio Ra ul —, que é afetada por uma
espécie de monomania (sempre que está em cena, fala o mesmo texto Está na hora da
homeopatia!”), os sujeitos desequilibrados se concentram nas personagens mascul inas. Judite e
Glorinha, apesar de sofrerem pressões vio lentas por parte da família, representam a liberdade d e
viver a vida conforme os impulsos do desejo. Gilberto e Tio Raul vivem a tensão entre valores
morais e desejos latentes, que os leva ao desequilíbrio.
Tia Odete, como nã o tem participação direta na ação dramática, funciona como um índic e
importante para compreendermos a persona gem Tio Raul. Sua fala, somada à descrição de suas
aparições, nos indica a corrupção a que o mundo de Tio Ra ul estava submetido.
Aparentemente, Tio Raul mantém um casamento estável, mas essa estabilidade nada
mais é do que um efeito dis cursivo para abafar a morbidez que afeta o casal. A frase de tia Odete
é exclamativa e exprime sentimentos q ue desconhecemos. No entanto, considerando que o
conteúdo semântico do enunc iado expressa preocupação com a hora do medicamento,
reportamo-nos a situações maternas, em que as mã es dedicam-se zelosamente à saúde dos
filhos. O casal não tem filhos, sendo Glorinha, a sobrinha, quem ocupa o luga r de filha. Tia Odete
assume o espaço de mãe e de esposa, mas seu silêncio na casa, rompido apenas pelo enunciado
exclamativo, indica que ela não se encontra em condições de exerc er nenhuma das duas funções.
É esposa por convenção e, enviesadamente, procura manter a moral esponsalícia. Sua primeira
aparição ocorre no início do seg undo ato, quando a cena se desloca para o espaço da casa de Tio
Raul. A didascália informa que se trata de uma “senhora taciturna, rosto inescrutável. (...) Vive
fazendo interminável viagem pelos cômodos da casa. Não se senta nunca.” (R
ODRIGUES, 1993,
p. 797). Ser esposa implica s er “dona de casa”, no contexto da moral pequeno-burguesa, e Tia
Odete parece jamais sair de casa (“Vive fazendo interminável viagem pelos cômodos da casa”).
Além disso, a esposa deve ser discreta, recatada e honesta, conforme a mesma mora l, e Tia Odete
expressa esses atributo s pelo comportamento de nunca se sentar. A didascália é categórica no
uso do advérbio “nunca”, o que pressupõe que, depois de um determinado momento de sua vida,
a personagem deixou de se sentar
71
.
71
O sentar-se envolve acomodar o corpo, apoiando-se a pelve em alguma superfície horizontal. Como é na pelve que se
situam os órgãos sexuais e as nádegas, e como ambas as regiões costumam ser, em nossa cultura, investidas de um
imaginário erótico, entendemos a atitude de Tia Odete como enviesadamente recatada, uma vez que a personagem
159
O sentar-se estaria associado ao sexo, a uma ação “suja”, daí por que a personagem, nessa
peça, não se senta. Mais uma vez a moral pequeno-burgues a estaria atuando para det urpar os
sentimentos e as emoç ões mais puras. Na cena , o dramaturgo refo rça o estranhamento ao
enfocar, de forma express ionista, o comportamento da personagem. A função de esposa é
ratificada apenas depois da morte do Tio Raul, quando Tia Odete “caminha lentamente pa ra o
marido morto”, “senta-se no degrau”, “pousa a cabeça de Raul em seu regaço” e, “na sua doçura
nostálgica”, diz-lhe: “Meu amor!” (R
ODRIGUES, 1993, p. 825). É o único momento em que ela se
expressa de forma diferente, num enunciado de conteúdo afetivo. Como se a confiss ão do amor
só pudesse se dar depois da morte do ser amado.
Nesse sentido, unindo os enunciados anteriores a esse último, podemos inferir que, ma is
do que esposa, Tia Odete estaria ocupando na vida de Raul o espaço materno. “Está na hora da
homeopatia!” nos indica que, em seu delírio, a personagem repete uma fórmula que expressaria
o zelo com que cuida do outro, no ca so, o marido, seu amor. Mas um zelo que é próprio da
preocupação materna. Na sociedade moderna, ou seja, burguesa, a mulher adquire seu valor por
ser procriadora e mãe. Uma vez que tia Odete não procriou, exerce a função materna sobre a
sobrinha e sobre o marido. Mas nem mãe consegue ser plenamente, pois está imersa
patologicamente numa monomania.
Tia Odete p arece s er, no co ntexto ex press ionis ta da pe ça, mais um a imag em pro jetada da
mente perturbada de Tio Ra ul, sobretudo quando lemo s, em duas didascálias do terceiro ato,
que, “na sua ausência, sua sombra é projetada no fundo do palco” (R
ODRIGUES, 1993, p. 815),
ou que “quando está ausente, sua sombra, enegrecida, é projetada no fundo do palco, andando
de um lado para o outro” (R
ODRIGUES, 1993, p. 823). Se a peça é dividida entre um pla no no
presente e outro no passa do, é o plano do presente que encerra a ação efetiva, cabendo ao plano
do passado, também ele dramático, a função de esclarecer os acontecimentos presentes,
revelando que os fatos anteriores se repetem no presente da ação dramática. O terceiro ato
apresenta o momento mais tenso da ação, quando Tio Raul decide matar a sobrinha. O palco se
evita se sentar para que, no contato da pelve com a superfície de apoio, não possa vir a sentir prazer. Nossa
interpretação se apóia em dois mo tivos. Primeiramente, a personagem não se senta “nunca”, o que já nos sugere uma
obsessão de ordem sexual, levando em conta que uma gama de personagens rodriguianas padecem dessa obsessão.
Em segundo lugar, apoiamo-nos num sentindo que extrapola os limites da própria peça, mas que nos permite
compreender o universo simbólico do dramaturgo. Em Viúva, Porém Honesta (1957), farsa que se seguiu
imediatamente após a encenação de Perdoa-me por me traíres, Nelson Rodrigues faz uso do deboche para criticar
muitos de seus adversários, por meio de personagens que, de uma forma ou de outra, os mencionam. A viúva, a quem
o título se refere, é Ivonete, filha de Dr. J. B., dono de um grande jornal. A peça começa com Dr. J. B. conversando com
amigos, dizendo-lhes que não conseguia fazer a filha se sentar. Viúva de Dorothy Dalton, um crítico teatral
homossexual, Ivonete expressa sua tristeza querendo apenas ficar de pé. Na noite de núpcias, traíra o marido quatro
vezes, mas, depois da morte de Dorothy Dalton, Ivonete se recusa a se sentar, demonstrando fidelidade ao morto. No
final da peça, quando ele ressuscita, por intermédio do Diabo da Fonseca, um diabo de verdade, Ivonete, feliz, volta a
traí-lo. A honestidade da viúva se expres sa, pois, na de cisão de não se sentar.
160
torna, como já dissemos, o espaço interno da consciência de tio Raul, e a presença de Tia Odete
se materializa fantasmagoricamente, mediante projeção de sua sombra. Observe-se que, quanto
mais Tio Raul se aproxima do delírio, mais a sombra de Tia Odete se eng randece, pr omoven do
um efeito visual grandiloqüente. A projeção de sombras na cena constitui um recurso muito caro
à encenação express ionista, técnica também utilizada no cinema expressionista alemã o
72
.
Se em Perdoa-me por me traíres os valores pequeno-burgueses, sob enfoque masculino,
são postos em questão, pela atitude lirica mente transgressora de Gilberto, autor da bela frase
que dá título à obra, não escapa ao nosso olhar crítico o mo mento em que o discurso dramático
trai, ele mesmo, uma co ncepção ideológica masculina conservadora . Trata-se de um momento
circunstancial, no início da peça, quando a cena se passa na casa de Ma dame Luba. Pola Negri ,
“garçom típico de mulheres”, é descrito na didascália da seg uinte maneira: “Na sua frenética
volubilidade, ele não pára. Desgrenha-se, espreguiça-se, boceja, estira as pernas, abre os
braços” (R
ODRIGUES, 1993, pp . 783). Mais ad iante, tentando conf ortar Glorinha, a p ersonagem
começa a falar com grandes atitudes, rasgando gestos imensos, com mil e uma inflexões”
(R
ODRIGUES, 1993, p. 785). Interrompe sua fala, em dado momento, para dar uma “gargalhada
esganiçadíssima” (R
ODRIGUES, 1993, p. 786). É evidente que a persona gem constrói, para a
cena, uma atmosfera descontraída, que levará o leitor, possivelme nte, ao riso. Não há nenhum
texto sentencioso que exponha a personagem ao ridícu lo, à crítica contund ente. No entanto, a
associação da imagem do homossexual ao riso, recurso largamente explorado pelo teatro a
então, não deixa de subscrever uma ideologia masculina que vê o homossexual como a figura do
outro. O outro do masculino. Não estamos afirmando que o homossexual não deva ser associado
a situações cômicas, mas a construção dessas didascálias exprime um discurso masculino que se
afirma enquanto tal abordando o tema como o espaço do outro.
Não podemos nos referir ao Outro, conforme Paterson (2004), sem levar em
consideração um grupo de referência. Vale salien tar que esse grupo de referência se coloca, as
mais das vezes, como espaço de poder, a partir do qual se filtram os traços da alteridade. Uma tal
concepção dialoga com as considerações de Van Dijk (2003), como foi visto, a respeito do
conflito ideológico. Só poderemos identificar uma ideologia se dois conjuntos de crenças, no
mínimo, entram em conflito, o que marcará as divergências ideológicas entre os grupos de
referência. A caracterização de cada conjunto de crenças passa pela identificação, num dado
contexto, das respostas às seguintes questões: quem (nã o) pertence ao grupo? Que fazemos? Que
queremos? Por que o fazemos? Que é bom ou mau para Nós? Quais são as nossas relações com
72
Só para citar um exempl o do cinema expressi onista alemão, o filme Nosferatu, de F.W. Murnau, lançado em 1922,
constrói o suspense, em muitas cenas, através da projeção da sombra engrandecida — imagem deformada e grotesca
— do vampiro que aterroriza a população da região de Bremen.
161
os outros? Quem acede aos recurso s de nosso grupo? Sem se ater a essas pergunta s, o analista
poderá encontrar dificuldades em identificar qual o grupo de referência e como esse grupo
processa a alteridade.
Assim c omo Pa terson (2 004), co mp reendemos a imag em do outro numa persp ectiva
não-imanentista. Os processos discursivos podem construir uma imagem variável do outro,
alternando, num mesmo espaço textual, entre os tr aço s negat ivos e po siti vos, a fim de marca r a
alteridade. Dessa forma, atravessado por valores ideológicos, o discurso sobre o outro conduzirá
nossa apreensão da alteridade, reproduzindo a ideologia do minante ou superando-a.
Além disso, só podemos a preender a alteridade mediante as estratégias enunciativas do
texto, como a construção do espaço, a descrição da indumentária, dos traços físicos, linguageiro s
e onomásticos do Outro. O p rocesso discurs ivo cria vínculos estreitos entre o parecer e o ser
daquele ou daquela que a ficção designa como sendo Outro.
No caso específico da personagem Pola Negri, em Nelson Rodrigues, comecemos por
analisar a estratégia onomástica de que se vale o dramaturgo. Pola Negri (1895-1987) foi uma
atriz, de origem polonesa, que fez muito suc esso no tempo do cine ma mudo
73
.
É fato notório que muitos dos homossexuais assumidos se autodenominam com apelidos
femininos, seja como “nome de guerra” exclusivo para espaços públicos, seja como forma de
162
bichas”
75
. Um homossexual se chamar “Pola Negri”, por exemplo, é, pois, uma atitude camp
comum no Brasil.
Nelson Rodrigues procura representar, naturalisticamente, um tipo humano bastante
corriqueiro: um homossexual assumido. Não é exatamente essa a questão que levanta mos. O que
nos interessa é como o discurso dramá tico nesta peça inscreve a presença do outro. Pola Negri
foi o nome escolhido pelo dramaturgo para caracterizar um garçom típico de mulheres. O termo
garçom, do franc ês garçon (rapaz), designa, em língua portuguesa, um empregado que serve à
mesa dos restaurantes. No contexto da peça, Pola Negri é um empregado. Curioso é o
qualificativo “típico de mulher es”. O adjetivo “típico” m arca a alteridade da personagem,
expressando que o tipo de Pola Negri equivale ao dos empregados que cuidam de mulheres
76
.
Teoricamente, a personagem é classificada como tipo, mas a informação da didascália remete
especificamente a um tipo social estigmatizado. Assim, a tipificação demarca o outro como
diferente, particular.
Em outra didascália, Pola Negri, na sua frenética
volubilidade, não pára. Desgrenha-se,
espreguiça-se
, boceja, estira as pernas, abre os braços (grifos nossos). Mais uma vez o adjetivo,
aqui, é relevante para nossas conclusões. “Frenético” deriva de frenesi, o que é delirante,
desvairado, extravagante. É um qualificativo que modifica o nome “volubilidade”, mas
caracteriza o sujeito de que se fala — o próprio Pola Negri. Esse “desvario” se justifica pela
seqüência de ações físicas da personagem, o que demonstra que ela é, no mínimo, afetada.
Apesar de o dramaturgo não usar a palavra, o comportamento de Pola Negri, pela descrição da
didascália, é de uma “bicha louca”, expressão popularmente conhecida, sobretudo na época em
que a peça foi encenada
77
. Segue-se a essa cena outra em que Pola Negri começa a falar com
grandes atitudes, rasgando gestos imensos, com mil e uma inflexões. Vê-se que se mantém
coerente o paradigma de signos referentes à “bicha ” desvairada, que se enriquece com a me nção
à gargalhada esganiçadíssima. O uso do superlativo expressa o valor ideológico subscrito no
discurso dramático em questão. A gargalhada é exageradamente esganiçada, o que fere o bom-
tom e a imagem que se tem de um homem viril. Ser “louco” e “desvairado” constitui atributos de
75
Green delimitou seu universo d e análise, investigando a vida social dos homossexuais masculinos nos espaços Rio
de Janeiro- São Paulo, ao longo do século XX.
76
No bairro da Lapa, só para citar um exemplo de contexto urbano carioca, em que se insere o espaço físico da peça
rodriguiana, muitos homossexuais ofereciam serviço de empregado nas pensões e cabarés há pelo menos um século.
Outro exemplo ilustrativo é o filme Amarelo Manga (2002), do pernambucano Cláudio Assis, que, ao retratar o
universo popular e underground do Recife, apresenta, entre outros, a personagem Dunga (interpretada por Matheus
Nachtergaele), um empregado de uma pe nsão de última classe, no bairro do Recife Antigo: trata-se de um
“homossexual” de trejeitos e comportamentos femininos.
77
Green (2000), no capítulo in titulado “ Sexo e vi da noturna, 1 920-1945”, dedica um tópico para discutir a insurgência
e o sentido dos nomes dados ao homossexual masculino. “Bicha”, termo de origem controversa, designa o
homossexual passivo, efeminado.
163
sujeitos que, sendo homens, desafiam as representações do masculino varonil. Tais atributos
dados à personagem geram, no contexto da peça, o riso e o ridículo. Nesse momento, a peça
delimita bem o que é o pa drão de ref erência e o que se ins creve, com relação a esse pa drão, como
o diferente, o outro. Nada ob stan te, em virtud e do es tilo natu ralista com que a pers onag em é
construída, a cena não chega a ser agressiva nem cens ura diretamente o comportamento da
personagem, mas demarca o espaço de uma alteridade. Pola Negri tem uma forma camp de ser,
mas a cena rodriguiana não aposta no estilo camp. As didascálias revelam um discurso
masculino que toma — a nosso ver, com certa reserva — as ações do outro como extravagantes,
superlativas.
o parece ser o mesmo tratamento que o dramaturgo dá ao tema homossexualismo,
presente em sua outra peça, O beijo no asfalto. Arandir beija um homem que acabara de ser
atropelado por um lotação; logo depois, esse homem morre. O acontecimento é a ssistido pelas
pessoas presentes na Praça da Bandeira. Entre os espectadores esta va um repórter sem
escrúpulo, que se vale da cena para, em conluio com um delegado corrupto, forjar um ca so de
amor. Isso viria a ser no ticiado, o que ga rantiria o sucesso de venda gem do jornal Ultima Hora,
onde trabalhava Amado Ribeiro, o referido jornalista. Apesar de não ser o tema da peça, o
homossexualismo nela está presente na medida em que constitui o assunto a partir do qual se
início à intriga. O tema da peça, na verdade, gira em torno da ação irresponsável da mídia
sensacionalista, no s eu poder de cria r verdades e de interfer ir na opinião pública
78
.
Isso nos leva a refletir sobre a imprensa e sua função nas sociedades mo derna e
contemporânea. A esfera pública burguesa, nas palavras de Sandra Jovchelovitch (2000, p. 55),
é constituída por indivíduos privados que se reúnem para formar um público,
ou para discutir questões de interesse púb lico. Aqui, indivíduo privado assum e
o sentido que lhe dá Habermas (1 984; 1989): atores de uma esfera privad a que
envolve tanto a troca de mercadorias como de trabalho social. Os elementos que
78
Ruy Castro (2001), afirma que a peça “não é sobre o homossexualismo, nem sobre os abusos da imprensa. É uma
peça sobre a unanimidade – uma das desgraças modernas na visão de seu autor. A frase que a resume – ‘Toda
unanimidade é burra’ – tornou-se a mais famosa de Nelson”. Estamos de acordo que não se sustenta mais a visão
apocalíptica ingênua segundo a qual “a imprensa” é responvel por formar a opinião pública, como se o mal estivesse
contido na natureza dos meios de comunicação de massa. Acreditamos que a imprensa se constitui da opinião pública
e, ao mesmo tempo, a constitui, numa relação dialética. Num raciocínio coerente, a peça de Nelson Rodrigues nos leva
a pensar, em última instância, a respeito da opinião pública (unanimidade, na interpretação de Ruy Castro). No
entanto, a intriga da peça é estabelecida a partir da “vontade” (valendo-nos do termo empregado por Hegel, 1997) de
um jornalista da imprensa marrom em criar um fato, guiado por objetivos purame nte lucrativos, sem leva r em conta o
que isso pudesse vir a acarretar na vida das pessoas envolvidas na história. Isso nos leva a supor que a crítica
rodriguiana incide sobre a ação sórdida e inconseqüente da imprensa sensacionalista. Para Nelson Rodrigues, como
atestam muitas das suas entrevistas e obras, a imprensa tem o poder de criar verdades. Não podemos, pois, concordar
com Ruy Castro que o tema da peça é, a rigo r, a unanimidade.
164
conduzem à formação de um novo público capaz de construir e sustentar uma
discussão política de caráter crítico se encontram no desenvolvimento do
capitalismo moderno.
Essa esfera pública inaugura uma nova forma de organização social. Temos a formação de uma
sociedade civil que reivindica a participação po lítica e uma relação direta com o Estado. O
desenvolvimento da imprensa contribuiu para a co nsolidação da esfera pública burguesa, na
medida em que o meio de comunicação de massa possibilitou um diálogo racional entre os
cidadãos. A imprensa se valia de pressupostos fundamentais, tais como: “1) o debate no espaço
público deve ser aberto e acessível a todos; 2) as questões em pauta devem ser de interesse
comum a todos os participantes; interesses meramente privados eram inadmissíveis”
(J
OVCHELOVITCH, 2000, p. 56-57). Seria, portanto, es se o gérmen do co nceito de opinião pública .
No entanto, a mídia impressa — assim co mo a mídia de maneira geral — f oi assumindo
novos rumos, que redundaram nas práticas caracter ísticas dos meios d e comunicação na
contemporaneidade. Na leitura de Thompson (apud J
OVCHELOVITCH, 2000, p. 90),
o desenvolvimento da comunicação de massa transformou a própria natureza
do que é público no mundo moderno. (...) A mídia criou uma nova forma de
esfera pública que é deses pacializada e não-dialógica qu anto a seu caráter: ela é
divorciada da idéia de conversação dialógica em um mesmo local e é
potencialmente global em seu espectro.
Sob o discurso original de que a comunicação massiva promoveria o debate público,
desenvolveu-se, de fato, uma prática jornalística contraditoriamente nã o-dialógica, na medida
em que os veículos de comunicação de massa tiveram de estar sempre subordinados a interesses
políticos de seus proprietários. Testemunha direta dessas atividades, Nelson Rodrigues, num de
seus depoimentos, se refere à imprensa de seu tempo do seguinte modo: “Naquele tempo um
dono de jornal era um dono de jornal (...). Para começar, os revolucionários escreviam uma coisa
mais reacionária porque sabiam que o diretor do jornal ia mandar assim. O
SUJEITO NÃO P ENSAVA
QUANDO ESTAVA NA REDAÇÃO
79
.
79
apud http://reposcom .portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/18648/1/2002_NP2MAIA.pdf, consultado em
15/08/2006.
165
Poderíamos dizer, sem com isso pretendermos problematizar o assunto, que é a
declarada preocupação com os lucros o que conduz muitas das práticas jornalísticas nos tempos
contemporâneos. Paulatinam ente, essa imprensa deixa de ser um mecanismo racional para o
estabelecimento das discussões públicas, envolvendo cidadãos críticos constitutivos da sociedad e
civil (como ela foi idealmente concebida nos primórdios da sociedade moder na), e passa a ser
produto de uma sociedade de consumo. No terceiro estágio do Capitalismo, fazendo uso do
termo adotado por Jameson (2000), desenvolve-se uma sociedade ávida pelo consumo não só de
informações rápidas, vale salientar, mas de modo s de entrete nimento. Daí a tendência de
determinado ramo jornalístico em investir na “espetacularização da notícia”, valendo-se de
efeitos folhetinescos para atrair o público consumidor pagante
80
.
De qualquer forma, não devemos subestimar o poder que a mídia, de modo geral, ainda
hoje detém de produzir e de repro duzir valo res hegemônicos, pelas maneiras como define e
transforma a circulação de bens simbólicos nas so ciedades contemporâneas. No caso específico
da imprensa, Jovchelovitch (2000, p. 109) ana lisa a relação do veículo com as representações
sociais do seguinte modo:
subjacente à cobertura da esfera pública podemos encontrar um sistema
organizado de significados — estes significados não são apenas encontrados na
impr ensa. Pel o con trár io, ao cir cular , e les t amb ém pro duz em um s istem a de
conhecimento e reconhecimento sobre a realidade da vida pública (...) que
permite à comunidade perpetuar sua identidade e susten tar seu padrão
cultural.
No ofício jornalístico, também, é possível observar as condições por meio das quais a
sociedade se confronta com sua realidade e a processa. As mais das vezes, o jornal assimila a
opinião pública de tal maneira que o s significados construídos são possivelmente reco nhecidos,
retro-alimentados pela massa de leito res. Nesse ponto, a imprensa, como instituição, e a ma ssa,
como opinião pública, costumam compa rtilhar das representa ções sociais dos mais variado s
assuntos. Admitamos que as representações sociais estão estreitamente ligadas ao senso comum,
na medida em que co rrespondem a idé ias ou conceitos pro venientes da relaçã o direta do g rupo e
de seus membros com a realidade circundante. Como afirma Moscovici (2003, p. 31), “nossas
reações aos acontecimentos, nossas respostas aos estímulo s, estão relacionadas a determinada
80
Fazemos uso do termo espetacularização da notícia a partir do conceito de “sociedade do espetáculo”, desenvolvido
pelo filósofo fran cês Guy Debord (1997).
166
definição, co mum a todos os membros de um a comunidade à qual nós pertencemos”. Essa
definição, muitas vezes, se cristaliza em estereótipos.
Tomando como respaldo a concepção de Van Dijk (2003) a respeito de ideo logia,
declaramos, por ora, que a ideologia, entendida como um sistema de crenças advindas de um
grupo , afeta a s estrut uras me ntais que intervêm na produção e com posição de discursos , e
interfer em na s r epr es ent aç ões que o s s uje it os co n st ro em da rea lida de e do c ont ex to so c ial. D es s a
forma, a imprensa contribui para a manutenção ou transformação paulatina das representações
sociais.
No caso específico do Última Hora, jornal que em O beijo no asfalto vende a matéria
deflagradora da ação dramática, trata-se de um veículo que teve sua existência real no Brasil da
segunda metade do século XX. Fundado em 1951 por Samuel Wainer (1912-1980), o Última
Hora colocou-se como porta-voz do g overno populista de Getúlio Va rgas, não escondendo sua
posição pró-varguista. O jornal introduziu algumas técnicas, bem sucedidas, que o tornaram
mais atraente às classes populares: a seção de cartas dos leitores, o uso de uma editoria
específica para tratar de problemas locais dos bairros do Rio de Janeiro. Última hora conquistou
credibilidade, e com isso queremos dizer que a dquiriu prestígio e aceitação nã o somente das
classes populares, mas sobretudo da elite política, o que lhe garantiu sucesso de tirag em. Sua
linha editorial reproduzia e reforçava valores ideológicos comungados pela massa de leitores.
Em O beijo no asfalto, Amado Ribeiro, personagem criada a partir de um modelo
empírico — tra tava-se do jornalista homônimo, colega de N elson Rodrigues no Última Hora até
o ano de 1961, quando o dramaturgo ped e demissão do jorna l devido à atmosfera
constrangedora que sua peça gerara em seu ambient e de trabalho — faz o papel de um repórter
desonesto que, em busca de um furo jornalístico, atribui um sentido fictício a um fato e o
transforma em notícia, o que renderá ao jornal sucesso de venda. Profissionais que ferem a ética
não são próprios apenas desse tipo de jornalismo, mas de qualquer profissão. No entanto, é
curioso observar que, mantendo-se no empreg o, esses profissionais recebem, de certa forma, o
assentimento de seus patrões, uma vez que conseg uem alcançar a popularidade do jornal,
engordando, conseqüentemente, os cofres da em presa.
Na verdade, o fato, entendido como acontecimento tes temunhado publicamente, em
dado local, num dado momento, e xistiu no contex to da peça: na praça da Bandeira, um lotação
atropela um homem e outro homem se ajoelha e lhe dá um beijo na boca. Todavia, por mais que
tivesse sido um fato atípico e estranho, só despertaria a curiosidade da população carioca a partir
do momento em que foi divulgado pelo veículo de comunicação de massa, com o viés
167
sentimental e moralista que a matéria de Amado Ribeiro lhe emprestou. Dessa forma, foi
atribuído um sentido ao beijo no asfalto: os dois homens eram amantes. A matéria, ao perseguir
as causas desse fenômeno, dá a ele um significado absolutament e arbitrário. Em vez de pro ceder
às investigações jornalísticas para chegar às conclusões do fato, Amado Ribeiro parte de
conclusões pré-estabelecidas (que lhe garantiria um furo jornalístico, vale repetir) para perseguir
e chantagear, juntamente com o delegado Cunha, quem pudesse servir de testemunha do caso de
amor.
Saliente-se que tanto Amado Ribeiro quanto o delegado Cunha sabem que divulgar uma
matéria de um caso público envolvendo um casal de homossexuais geraria escândalo, log o a
venda maciça do jornal, o que beneficiaria o repórter. Paralelamente a isso, o beijo de dois
homens num espaço público constitui , para a legisla ção brasileira androcêntrica, sobretudo na
época em que a peça f oi escr ita , um ul traj e públ ico ao pudo r, enqua drand o-s e no crime c ont ra o s
costumes, previsto no Código Penal brasileiro de 1940. Investigar esse caso contribuiria para
salvaguardar a imagem positiva da polícia carioca, o que beneficiaria o delegado Cunha,
envolvido num recente escândalo, ao agir violenta mente contra uma mulher g rávida,
provocando-lhe o aborto. A polícia carioca, desde o início do s éculo XX, como atesta Gree n
(2000), persegue e prende homossexuais que, em lo cais públi cos viven ciam u ma so ciab ilid ade
sexual, sob a alegação de estarem eles cometendo crime de atentado ao pudor. Dessa maneira ,
um beijo entre dois homens con stituía, para a sociedade brasileira à época de O beijo no Asfalto,
um ato obsceno.
Além dos interesses particulares do repórter e do delegado no caso, a forma como eles
expressa m a h omofob ia é revelad ora de um disc urso ma sculino d omina nte, como podemo s
observar no trecho a seguir:
(4)
C
UNHA (lançando a pergunta como uma chicotada) —Você é casado, rap az?
(...)
A
MADO — Casado há quanto tempo?
A
RANDIR — Eu?
C
UNHA — Gosta de mulher, rapaz?
A
RANDIR (desesperado) — Quase um ano!
(...)
C
UNHA (caricioso e ignóbil) — Escuta. O que significa para ti. Sim, o que
significa par a “você” uma mulher!?
168
ARANDIR (lento e olhando em torno) — Mas eu estou preso?
C
UNHA (sem ouvi-lo e sempre melífluo) — Rap az, escuta! Uma hipótese. Se
aparecesse, aqui, agora, uma mulher, uma “boa”. Nua. Completamente nua.
Qual seria. É uma curiosidade. Seria a tua reação?
(Arandir olha, ora o Cunha, ora o Amado. Silêncio.)
A
MADO — Com medo, rapaz?
C
UNHA — Fala!
A
MADO — Não fala?
(...)
A
MADO — Praticamente, em lua-de-mel. Em lua-de-mel! Você larga a sua
mulher. E vem beijar outro homem na boca, rapaz!
A
RANDIR (atônito) — O senhor está pensando que...
A
MADO (exaltadíssimo) — E você olha. Fazer isso em público! Tinha gente pra
burro, lá. Cinco horas da tarde. Praça da Bandeira. Assim de povo. E você dá um
show! Uma cidade inteira viu!
(...)
A
MADO (furioso) — Escuta! Se um de nós, aqui, foss e atropelado. Se o lotação
passasse por cima de um de nós. (Amado começa a rir com ferocidade) Um de
nós. O delegado. Diz pra mim? Você faria o mesmo? Você beijaria um de nós,
rapaz?
(Riso abjeto. Arandir tem um repelão selvagem.) (R
ODRIGUES, 1993, p. 951-
953)
A primeira pergunta que o delegado faz a Arandir, para dar início ao interrogatório, é se o
rapaz era casado. Levando em consideração que, de uma série de questões possíveis, Cunha lhe
pergunta primeiramente se era casado, podemos inferir que o interrogatório já estabelece de
princípio o tópico das questões. Nesse contexto, perguntar se o interrogado era casado pressupõe
duas coisas, que se confirmarão no desenrolar da cena: 1) ser casado é uma afirmação de sua
própria masculinidade; 2) ser casado implica ser amadurecido, responsável.
Sua segunda pergunta confirma o pressuposto de que o homem casado reforça e ostenta
sua masculinidade: Cunha adentra ainda mais na vida íntima de Arandir, perguntando -lhe se
“gostava de mulher”. Note-se o extremo realismo dessa cena, na medida exata em que o
dramaturgo procura, aqui, oferecer a representação mais fiel do ambiente policial,
predominantemente ma sculino. Com essa pergunta, no tom em que é feita, o delegado procura
constranger Arandir, o que consegue. Há uma expressão popular, própria do universo
masculino, que parece estar subentendida no contexto de fa la das personagens — Cunha age
169
como se estivesse ordenando a Arandir: “Va mos ter uma conversa de homem para homem!”.
Percebendo que Arandir está atônito, Cunha e Amado Ribeiro procuram confundir ainda mais o
rapaz, lançando-lhe perguntas indiscretas sobre sua experiência com mulh eres.
Amado Ribeiro censur a duas vezes o i nterroga do. Primeiramente, critica Arandir por
estar em lua-de-mel e beijar um homem na rua. Apesar de ser um va lor simbólico nas mais
diversas culturas e nos mais variados períodos históricos, a lua-de-mel assume o cará ter idealista
do Romantismo que, até hoje, fa z parte do substrato ideológico do sistema familiar pequeno-
burguês. Trata-se de um período sagrado do casamento; infringi-lo corresponde, pois, a atentar
contra algo sagrado. Arandir estaria corrompendo a sacralidade da lua-de-mel, fazendo algo que
não era digno de um homem: beijar outro homem. Nã o bastasse isso, o faz pub licamente, num
espaço muito freqüentado pelos transeuntes, tornando se u ato um show. De ac ordo com os
códigos morais rígidos da burguesia, é compreensível, apesar de não aconselhável, que um
homem e uma mulher se beij em na rua; dois homens, no entanto, constitui um es cândalo e, por
extensão, um espetáculo. Amado Ribeiro critica Arandir pelo show oferecido naquela manhã ,
mas se vale desse show para elaborar uma matéria ‘espetacular’, no que de mais sensacionalista
o termo pode conter.
Aqui vale retomar, mais uma vez, as questões que Van Dijk (2003) salienta como
fundamentais para o estabelecimento de um conjunto de crenças ideológicas. O interrogatório
do delegado e do r epórter explicita uma adesão total dessa s personagens ao conjunto de crença s
sobre ser masculino. Pela natureza dos questio namentos, naquele momento, num da do distrito
policial, Cunha e Amado implicitamente exp ressa m que Arandir, a g indo co mo a giu, nã o pertence
ao grupo masculino, pois: 1) fez o que um homem não deve fazer — beijar outro home m na boca;
2) estaria sentindo desejo por outro homem, o que é inconcebível num “macho” que se preza; 3)
prefere beijar outro homem a viver plenamente a lua-de-mel com a esposa ; 4) acha que é bom e
normal beijar publicamente um homem na boca; 5) finalmente, não a cede aos pressupostos d o
grupo de “homens”. A última pergunta de Amado Ribeiro, em (4), p or exemplo, procura
investigar até que ponto Arandir acha natural beijar um homem na boca.
É revelador que as respostas de Arandir parecem não ser ouvidas pelos inquiridores.
Apesar de negar qualquer impulso homoerótico, afirmando ser casado, Arandir é recriminado
pelo beijo. Certamente Cunha e Amado Ribeiro estão jogando com Arandir, fechando-lhe o
cerco, de forma que não houvesse outra possibilidade de interpretação senão que Arandir beijou
outro homem porque era “invertido”. Isso contribuiria para o sucesso do furo jornalístico e daria
razões à polícia de combater atos ilícitos. Contud o, em última análise, é o beijo “abjeto” que está
sendo punido, castigado.
170
Não obstante se valer de uma lente realista, na pintura de algumas cenas, como já
mencionamos, Nelson Rodrigues transcende a estética realista e constrói um quadro que, pela
composição da cena, prenuncia os efeitos expressionistas da peça. Destaq uemos, nas didascálias
a seguir, o contraste entre a figura de Arandir (texto 5) e a dos interrogadores (texto 6):
(5)
(Luz sobre o distrito policial. Arandir acaba de
ser interrogado. Uma figura jovem, de uma
sofrida simpatia que faz pensar num coração
atormentado e puro. Arandir ergue-se no
momento em que aparecem, na sala do
comissário, o Cunha e o Amado Ribeiro.)
(...)
(Arandir senta-se, une os joelhos.)
(...)
ARANDIR (com sofrida humildade)
(...)
ARANDIR (atarantado)
(...)
ARANDIR (quase chorando)
(...)
(Arandir olha, ora o Cunha, ora o Amado.
Silêncio.) (RODRIGUES, 1993, pp. 950-953)
(6)
CUNHA (lançando a pergunta como uma
chicotada)
(...)
CUNHA (num berro)
(...)
AMADO (inclinando-se para o rapaz)
(...)
CUNHA (com agressividade policial)
(...)
CUNHA (mais forte)
(...)
(Cunha ergue-se.)
(...)
CUNHA (aos berros)
(...)
CUNHA (exagerando) — Por essas e outras é que
a polícia baixa o pau. E tem que baixar!
(...)
AMADO (furioso) (RODRIGUES, 1993, pp . 951-9 53)
A didas cál ia, co mo já dissem os, é um el emen to constitutivo do texto dramático. Não
obstante sua rara ocorrência em textos anteriores ao século XIX, representa, para a dramaturgia
moderna, sobretudo a do século XX, um componente fundamental para explicitar as condições
de enunciação. Aliás, o papel metalingüístico da didascália consiste, so bretudo, nas duas funções
básicas que ela desempenha na escrita dramática. Ela apresenta as condições de produção da
fala, considerando que a enunciação oral contempla não somente os enunciados lingüísticos,
mas também os elementos não-lingüíst icos, como os paralingüístico s e os extralingüíst icos.
Assim, podemos dizer que as didascálias desempenham o papel de indicar ao leitor os traços
171
característicos da comunicação não-verbal, a fim de que a compreensão do enunciado lingüístico
se faça de forma mais abrangente, tendo em vista o contexto enunciativo total. Ao mesmo tempo,
a didascália apresenta as condições de produção da cena, considerando que o diálogo teatral é
uma construçã o lingüíst ica com fin alidades e stéticas. Essa ambigüidade que encerra o conceito
de didascália nos reporta à duplicidade própria da natureza enunciativa do texto dramático.
Segundo Maingueneau (1996, p. 159), o traço característico da escrita teatral é a sua duplicidade,
que se verifica em duas situações de enunciação simultâneas: 1) o autor se dirige a um público
mediante a representação, que constitui o ato de enunciação; 2) na situação representada, “as
personagens trocam frases num contexto enunciativo supostamente autônomo com relação à
representação”. No momento da leitura, o leitor deve apreender os enunciados sob dois aspectos:
enquant o diálo go entr e perso nagens (o u ent re perso nagem cons igo mes ma, no ca so do
monólogo) e enquanto diálogo entre autor e seu público ouvinte/leitor.
Gallèpe (1997) distingue quatro g randes grupos de didascálias em função de sua
incidência: metaenun ciativo; meta-interacional; meta-situa cional; e técnico. Para os propósitos
de nossa análise, tomemos como foco o seg undo grupo, ou, mais precisamente, as didascálias
centradas sobre o não-verbal. Apesar de ela s constituírem diversos tipos de ref erência, Gallèpe
(1997) registra apenas oito: olhar; postura; mímica; atividades paraverb ais; kinésica; p roxêmica;
teor dos propósitos da interação; e intenções do interactante. Delimitaremos , para a a nálise de
(5) e (6), as didascálias que se referem às atividades paraverbais, à kinésica e à proxêmica
81
.
Como veremos, e nisso se encontra o sentido da análise, esses signos não-verbais podem ser
apreendidos como veículo do implícito e do não-dito . Os estados e mocionais do lo cutor, em
conexão com os valores ideológicos, são suscetíveis de virem à tona através da postura, da
entonação, dos gestos, da proximid ade dos corpos dos fala ntes.
Em (5), as didascálias apontam para os movimentos e posturas corporais de Arandir, e
suas atividades paraverbais. Assim, Arandir ergue-se no momento em que aparecem, na sala do
comissário, o Cunha e o Amado Ribeiro e, com a ordem de Cunha para se sentar, Arandir senta-
se, une os joelhos. Todos os seus movimentos corporais confirmam a imagem delicada e passiva
que a própria didascália deixa prever, quando descreve a personagem como uma figura jovem,
de uma sofrida simpatia que faz pensar num coração atormentado e puro. Essa suscetibilidade
é ainda mais reforçada na cena quando lemos nas didascálias que Arandir ora f ala com sofrida
81
Tomando por base as concepções de Cosnier; Brossard (1984) e Scherer (1984), entendemos por atividades
paraverbais os signos não-verbais que participam, juntamente com os verbais, da estruturação do enunciado oral, tais
como inflexões, alterações de volume, entre outros. Por kinésica, estamos querendo referir os movimentos, ou seja, os
modos de mover e de utilizar o corpo. O termo proxêmica, enfim, está sendo usado para se referir à relação dos
interactantes com o espaço.
172
humildade, ora atarantado, ora quase chorando. Como já foi dito, a própria situação é
constrangedora. Além disso, o delegado detém, naquele ambiente, o poder de decidir sobre a
liberdade de Arandir, assim como Amado Ribeiro, que abusa do p oder sobre o outro, com o
apoio do delegado, cheg ando a humilhar o interrogado. É normal que, inserido nesse contexto,
qualquer homem se colocaria numa posição de passividade ou de respeito à hierarquia; caso
contrário, seria punido por “desacato à autoridade”. No enta nto, é r eleva nte a reun ião, f eita pelo
dramaturgo, de uma série de signos que referem a fragilidade física e psicológica da personagem
Arandir, o qual se encontra numa situação em que o poder co ncedido à ação dos policiais se
sustenta por pressupostos ideológicos da masculinidade.
Em (6), movimentos, postura s, usos do corpo no espaço mostram que as personagens
Cunha e Amado Ribeiro se encontram numa posição ativa. O poder policial e masculino
assegura-lhe a autoridade. Há duas menções nas didascálias do uso que as personagens fazem do
corpo no espaço: Amado Ribeiro, inclinando-se para o rapaz, pretende intimidá-lo, pois sabe
que ali, de acordo com o jogo armado, ele se encontra indef eso. Cunha, demo nstrando
impaciência pelo fato de o rapa z estar desviando o rumo da “conversa”, pelo menos do ponto
aonde o delegado desej a chegar, ergue-se. O movimento ascendente, nesse contexto de fala,
veicula uma informação implícita: o delegado quer demo nstrar poder a Arandir, o que é
reforçado quando Cunha interrompe a fala do interrogado [“A
RANDIR — Mas doutor! Já estava
aberto o sinal amarelo quando o lotação.// C
UNHA — Ó rapaz! O lotação não interessa.
Compreendeu? Não interessa. O que interessa é você.” (R
ODRIGUES, 1993, p. 952)]. Além desses
elementos kinésicos e proxemá ticos, as inflexões e as ações ilocucionais de s uas falas, descritas
nas didascálias, reportam-nos à agressividade masculina, ativa. Cunha lança uma pergunta como
uma chicotada (atente-se para o símbolo fálico do chicote, objeto de tortura física), fala num
berro, com agressividade policial, cada vez mais forte, aos berros, exagerando. Apesar de essas
ações serem conhecidas ou reconhecidas por nós ao nos reporta rmos a alguns ambiente s
policiais, assumem, no contexto da p eça, propor ções quase caricaturais, em razão do acúmulo de
signos numa mesma personagem e numa m esma cena. Além disso, tra em um discurso que se
vale de valores ideológicos ma sculinos: deve-s
173
coloca numa posição “superior” [haute], de dominante, enquanto o outro é colocado numa
posição “inferior” [basse], de domina do. Evidentemente, esses lugares sã o determinados no
contexto interacional e reforçados por estratégia s lingüística s. O dramaturgo amplifica a imagem
do dominador ativo e do passivo subjugado e indefeso. Projetando essa imagem para a cena,
perceberíamos que ela geraria um ef eito visual perturbador, contribuindo para o cará ter
expressionista da peça. Arandir é mergulhado numa trama e não compreende por que se
encontra naquela situação, o que nos faz lembrar a angústia vivida pela personagem kafkaniana,
Joseph K., que é acusado de algo cujas razões ele e o leitor do romance desconhecem
82
. No caso
de O beijo no asfalto, nós, leitores, sabemos por que Arandir está passando por aquilo que
constituirá sua ruína mo ral.
A matéria de Amado Ribeiro é veiculada no jornal do dia seguinte, com a manchete, na
primeira capa: Beijo no Asfalto. Reforçando os valores mora is hegemônicos da massa, esse tipo
de jornal, do qual Última Hora foi apenas um exemplo, catalisa as emoções dos leitores,
despertando-a s com espataculares denúncias do que se chama atentado à ordem pública. A
publicação da notícia desperta indignação em diversas personagens que participam direta ou
indiretamente da vida do acusado. Em seu trabalho, Arandir se torna alvo de chacota por parte
de seus companheiros. Sabe-se que o “homossexual” na soc iedade brasileira, além de ser ainda
hoje vítima de violência física, costuma estar submetido a gracejos e piadas as mais grosseiras.
Werneck, colega de trabalho de Arandir , chama-o de viúvo e, maliciosamente, coloca a dúvida:
“Ou viúva! Beijou o sujeito na boca. O sujeito morreu. É a viuvez. Batata!”, isso depois de
anunciar: “Rapaz! A tua viuvez está aqui! Em manchete! (...) Em manchete, rapaz!” (R
ODRIGUES,
1993, p. 961). Arandir é colocado no lugar do outro, mediante estratégias discursivas que apelam
para a ironia, para o sarcasmo, para o humor sardônico. Quando chama seu colega de “viúva”,
Werneck faz realçar a crença de que um homem que beija outro faz papel de mulher, logo não se
insere no grupo masculino. Como Arandir é biologicamente um homem, o título de viúva gera o
riso, uma vez que apela para o caráter ridículo que a personagem estaria assumindo socialmente.
O que não pertence à formação discursiva própria do discurso masculino hegemônico é passível
de censura, restrições. Esse suje ito, que ocupa o lugar do outro, é visto por seu grupo como
diferente e, por isso, discrimi nado. A indignação por parte de quem o rodeia vem do fato de que
Arandir oferecia uma im agem positiva de si — era um homem casado, em lua-de-mel, e tinha,
aparentemente, uma vida social co nforme o q ue se espera de um homem — e essa imagem foi
contradita pelas informações que de sua pessoa o jornal divulgou. Essa indignação é flagrante
quando Werneck, sardonicamente, reclama por Arandir ter escondido a notícia da morte do
82
Kafka (1992).
174
amante: “Mas então, seu Arandir! O senhor! (...) Você fica viúvo e não avisa , nã o pa rtic ipa ?”
(R
ODRIGUES, 1993, p. 961). Sua fala pressupõe, pelo uso dos verbos ‘avisar’ e ‘participar’, que
175
ARANDIR (sôfrego) — Eu te contei. Propriamente, eu não. Escuta. Quando eu me
abaixei. O rapaz me pediu um beijo. Um beijo. Quase sem voz. E passou a mão
por trás da minha cabeça, assim. E puxou. E, na agonia, ele me bei jou.
S
ELM IN HA — Na boca?
A
RANDIR — Já respondi.
S
ELM IN HA (recuando) — E por que é que você, ontem!
A
RANDIR — Selminha.
S
ELM IN HA (chorando) — Não foi assim que você me contou. Discuti com meu
pai. Jurei que você não me escondia nada!
A
RANDIR — Era alguém! Escuta! Alguém que est ava morrendo, Selminha.
Querida, olha! (Arandir agarra a mulher. Procura beijá-la. Selminha foge com
o rosto) Um beijo.
S
ELM IN HA (debatendo-se) — Não!
(Selminha desprende-se com violência. Instintivamente, sem consciência do
próprio gesto, passa as costas da mão nos lábios, como se os limpasse.)
A
RANDIR — Você m e nega um beijo?
S
ELM IN HA — Na boca, não! (ROD RIGUES, 1993, p. 970-971)
Arandir revela à esposa que abandonara o emprego, porque, depois da matéria do Última
Hora, seus colegas haviam-no insultado e ridicularizado. É ostensiva a indignação de Selminha
diante do que seu marido acabara de contar, daí o diálogo que se desenvolve em (7). De acordo
com a didascália que apresenta a personagem no primeiro ato da peça, sabemos que Selminha é
a imagem fina, frágil de uma moça, de uma intensa feminilidade (R
ODRIGUES, 1993, p. 946).
Nelson Rodrigues constrói a personagem de forma a realçar-lhe a feminilidade, mostrando, com
isso, que ela corresponde às representações socialmente construídas sobre a imagem feminina.
Os adjetivos empregados para qualificar o perfil da personagem reforçam a crença de que
mulher é frágil e precisa da p roteçã o do marido. Por essa razão, sua dignidade feminina é afetada
quando as pessoa s que estão em seu entorno toma m conhecimento, p or meio de uma matéria
espúria, do beijo que seu marido dera num homem, o qual, pelo teor da notícia, era
provavelmente amante de Arandir. Ela duvida do conteúdo da matéria, mas começ a, a contra-
gosto, a identificar indícios que comprovavam a verdade da acusação. Um desses indícios foi o
fato de Arandir não ter reagido, como homem, às brincadeiras dos colegas de trabalho. Além
disso, ainda pediu demissão do emprego.
Mas o que se espera de um homem nessas horas? Ele deverá fazer valer a sua honra e, de
acordo com a ideologia dominante, a honra de um homem está relaciona da também à sua
176
heterossexualidade. Ferido em sua honra, como, no caso, ser alvo de piadinhas a respeito da sua
sexualidade, o homem deve desforrar-se e enfrentar o acusador, preferencialmente partindo
para uma disputa física. É o que se subentende da fala de Selminha, qua ndo diz, furiosamente,
que Arandir devia lhe ter quebrado a cara! (grifo nosso) . O uso desse modalizador indica o
grau de imperati vidade que o enunc iador (Selminh a) atribui ao conteúdo proposicional. Ou seja,
era preciso que Arandir espancasse quem o tinha “ofendido”, quem tinha duvidado de sua
“honrosa” orientação sexua l. A modalização, aqui, é um elemento metadiscursi vo e, como tal,
expressa a posição ideológica do enunciador diante do conteúdo de seu enunciado. Selminha f az
parte da opinião pública de que o homem deve honrar sua heterosexualidade.
Do p apel de mocinha frágil, Selminha passa a assumir o papel “ativo” de defensora da
honra de seu marido. E insiste, pedindo ao ma rido que volta sse ao traba lho e quebrasse a cara de
quem o ofendera. A didascália informa que Selminha está segurando Aran dir com energia, o
que chama a atenção para a postura ativa e viril da esposa. No terceiro ato, questionada por
Cunha e Amado Ribeiro a respeito da homossexualidad e de Arandir, Selminha defende a honra
do marido, com uma fala que já chocou muita gente da platéia, como vimos no capítulo anterior
— “Eu conheço muitas que é uma vez por semana, duas e, até, quin ze em q uinze dias. Mas meu
marido todo o dia! Todo o dia! Todo o dia! (num berro selvagem) Meu marido é homem!
Homem!” (R
ODRIGUES, 1993, p. 970). Ela reforça como verdadeira a relação inquestionável entr e
ser homem e ser heteros sexual.
Todavia, se para a esfera pública Selminha se empenha em defender Arandir das falsas
acusações, na vida privada ela o questiona e demonstra nojo pelo fato de ele ter beijado um
homem na boca, como podemos observar em (8). Sua repulsa é tanta, que ao pedir ao marido
para confirmar a versão do jornal, suspende a frase sem conseguir articular o nome “boca” — “Eu
sou tua mulher. Você beijou na... ” (atente-s e para a marca formal da reticência). É inconceb ível
para a personagem imaginar que seu marido beij ara um homem na boca. Isso contraria a crença
que ela tem do que vem a ser um homem e frustr a todas as suas expectativas a respeito do
casamento. Ela não compreende a explicação de Arandir e fixa-se apenas no beijo. Um beijo
proibido. Selminha carrega consigo as representações socialmente compartilhadas e geradora s
da opinião pública heg emônica. Como ela mesma , depois, vai expressa r para Dália (no terceiro
ato): “Uma coisa que me dá vontade de morrer. Como é que um hom em pode desejar outro
homem” (R
ODRIGUES, 1993, p. 984). Com isso, ela faz com que valores da esfera pública
interfiram na sua vida privada com Arandir.
De acordo com nossa concepção, a ideologia af eta as estruturas mentais que intervêm na
produção e composição de discursos, e interferem nas representa ções que os sujeitos constroem
177
da realidade e do cont exto social. No contexto da peça rodriguiana , a adesão incondicional d e
Selminha ao sistema de crenças pequeno-burguês não a permite processar e dar sentido ao que o
marido fizera. Seu discurso se manifesta, inclusive, pelas reações corpóreas. Ela recusa o b eijo
que o marido lh e quer da r, desprendendo -se, segund o a didascália, com violência e,
instintivamente, sem consciência do próprio gesto, passando as costas da mão nos lábios, como
se os limpasse. O beijo, que antes era concebido como símbolo sagra do da união espiritual entre
os dois, se torna profano e abjeto. O beijo no atropelado deixou uma nódoa indelével na relação
conjugal, com a qual Selminha nutria a expectativa de uma vida “normal” e feliz. Ela confessa à
irmã, no terceiro ato da peça, que não q uer mais ver Arandir e justifica sua decisão: “Se eu for, já
sei. Ele vai querer beijar. Na certa. Eu não quero um beijo sabendo que. (hirta de nojo) O beijo
do meu marido ai nda tem a sa liva de outro homem! ” (R
ODRIGUES, 1993, p. 984). Selminha
marca a homoafetividade como uma alteridade. Mesmo sa bendo que seu marido pode ter sido
vítima de calúnia e difamação, repugna -lhe saber que o beijo foi r eal e confessado pelo próprio
Arandir. O beijo era imperdoável. O casamento se desfaz sem que Selminha viesse a
compreender as razões do marido.
A nosso ver, Arandir f az parte da gama das perso nagens mais intensa mente
expressionistas da obra teatral de Nelson Rodrigues. Levado por um impulso íntimo
momentâneo, realiza um ato que s erá decisivo para o seu mergulho no abismo. Liberando os
“demônios” que carrega dentro de si, a personagem trilhará por um caminho que a levará ao
aniquilamento . Na opinião de Magaldi (1992, p. 34), Arandir “cumpre a caminha da do equívoco,
até o aniquilamento final, imposto pela sociedade”. O equívoco é que, em no me do impulso,
Arandir é levado a fazer algo que a sociedade condena. E segue sua via crucis até a crucificação
final. A via crucis corresponde ao sofrimento vivido por Arandir em virtude da publicidade de
seu ato (divulgação da notícia pelo jornal), a acusação de que ele era homossexual (quando ele
simplesmen te não se considera va um) e a incomun icabilidade com se us conhecidos, que n unca o
escutavam.
Há três momentos em que Arandir tenta explicar a seus acusadores (às personagens que
o acusam de homossexualismo) as razões de seu ato. Apesar de um pouco longas, vale conferir as
citações abaixo:
(9)
[(...) Arandir tem um repelão selvagem.]
178
ARANDIR — Era alguém! Alguém! Que morreu! Que eu vi morrer! (RODRIGUES,
1993, p. 953)
(10)
A
RANDIR (sôfrego) — Eu te contei. Propriamente, eu não. Escuta. Quando eu me
abaixei. O rapaz me pediu um beijo. Um beijo. Quase sem voz. E passou a mão
por trás da minha cabeça, assim. E puxou. E, na agonia, ele me bei jou.
(...)
A
RANDIR — Era alguém! Escuta! Alguém que est ava morrendo, Selminha.
Querida, olha! (Arandir agarra a mulher. Procura beijá-la. Selminha foge com
o rosto) Um beijo. (R
ODRIGUES, 199 3, pp. 9 70-971)
(11)
A
RANDIR (repetindo para si mesmo) — [...] Me chamam de assa ssino e. (com
súbita ira) Eu sei o que “eles” q uerem, esses cretinos! (bate no peito com a mão
aberta) Querem que eu duvide de mim mesmo! Querem que eu duvide de um
beijo que. (baixo e atônito, para a cunhada) Eu não dormi, Dália, não dormi.
Passei a noite em clar o! Vi ama nhecer. (com fundo sentimento) Só pensando no
beijo no asfalto! (com mais violência) Perguntei a mim mesmo, a mim, mil
vezes: se en trasse aqui, agora, um homem. Um homem. E. (numa espécie de
uivo)o! Nunca! Eu não beijaria na boca um homem que. (Arandir passa as
costas da mão na própria boca, com um nojo feroz) Eu não beijaria um homem
que não estivesse morrendo! Morrendo aos meus p és! Beijei porque! Alguém
morria! “Eles” não percebem que alguém morria?
(...)
A
RANDIR (numa alucinação) — Dália, faz o seguinte. Olha o seguinte: diz à
Selminha. (violento) Diz que em toda minha vida, a ún ica coisa que se salva é o
beijo no asfalto. Pela primeira vez.lia, escuta! Pela primeira vez, na vida! Por
um momento, eu me senti bom! (furioso) Eu me se nti q uase , nem sei! Escu ta,
escuta! Quando eu te v i no banheiro, eu não fui bom, en tende? Desejei você.
Naquele momento, você d evia ser a irmã nua. E eu desejei. Saí logo, mas desejei
a cunh ada. Na pr aça da Bandeira, não. Lá , eu fui bom. É lindo! É lindo, eles não
entendem. Lindo beijar q uem está morrendo (grita). Eu não me arrependo! Eu
não me arrependo! (R
ODRIGUES, 1993, p. 986)
179
Em (9), Arandir se encontra na delegacia, durante a cena já analisada nos exemplos (4),
(5) e (6). Depois de ser submetido a toda sorte de humilhação, Arandir termina a cena gritando,
num repelão selvagem, a fala citada no exemplo (9). Como já referimos, Jurandir Freire Costa
(1995; 2002) discute o surgimento do conceito de homossexual, id ent ific and o sua s o rigen s n o
berço da Idade Moderna, com a ascensão política da burguesia européia. O termo, que
primeiramente qualificou as prática s sexuais “anormais” de sujeitos do me smo sexo biológico ,
passa a assumir um caráter ontológico, referindo-se, essencialisticamente, ao próprio sujeito que
realiza tais práticas. Como herói ingênuo de ntro de um mundo de valores morais pré-fixados,
Arandir realiza um ato que, de acordo com o sistema de crenças de seu grupo, é imediatamente
caracterizado como de um “homossexual” e, por isso, a personagem deve ser exposta à opinião
pública. Vimos há pouco que Amado Ribeiro e Cunha se valem dessas mesmas crenças para
coagir Arandir a confessar sua homossexualida de. Este, diante da pressão que as outra s
perso nag ens est ava m faz end o, re age num repelão selvagem às acusações, gritando suas razões.
Primeiramente, Arandir nega a condição de alteridade que os outros estavam querendo
lhe imputar. Respondendo às perg untas dos interrogadores, diz qu e é casado há um a no, que
amava a esposa. O ímpeto de negar a acusação advém do fato de, primeiramente, ele não se
sentir homossexual. Como podemos ler no exemplo (11), Arandir, num ambiente já privado,
diante apenas de sua cunhada, confessa: “Perguntei a mim mesmo, a mim, mil vezes: se entrasse
aqui, agora, um homem. Um homem. E. (numa espécie de uivo) Não! Nunca! Eu não beijaria na
boca um homem que.” Ele poderia estar querendo salvag uardar, diante da cunhada, uma
imagem falsa de si. No entanto, o teor da conversa, no contexto da c ena, é tão sincero, que não
teríamos indício para concluir que a personagem está se enganando e enganando os outros.
Em s egundo lug ar, a personagem, no contexto cultural e histórico em que se encontra,
sabe que receber a pecha de “homossexual” selaria o destino de um homem na so ciedade: um
destino amargo, solitário, em que o sujeito será discrim inado como dif erente, doente, anormal.
Nem a calúnia nem o desprezo social Arandir os queria. A personagem compartilhava, também,
do sistema de crenças hegemônico sobre o assunto (note-se, no diálogo com Dá lia, como a
didascália indica um signo não-verval que a personagem expressa para garantir que nunca
beijaria um homem qualquer — numa espécie de uivo, ou seja , re pug na-l he a id éia) . Daí s eu
“repelão selvagem”.
No entanto, essas parecem ser as razões mais imediatas de sua reaçã o. As razões mais
profundas encontram-se, na verdade, no conteúdo do próprio enunciado: Era alguém! Alguém!
Que morreu! Que eu vi morrer! Esse mesmo enunciado, expresso de forma ligeiramente
diferente, é proferido qu ando a cena se passa na casa de Arandir e ele está p rocurando justificar-
180
se para a esposa, como está citado no exemplo (10) — Era alguém! Escuta! Alguém que estava
morrendo, Selminha. Arandir foi tomado por um sentimento puro, caridoso, que o levou a beijar
a boca de um moribund o. Se bu sca rmos o eco dess e s entimento numa versão rabínica , segundo a
qual certos justos, tal como Moisés, foram poupados da agonia e da morte, tendo partido do
mundo terrestre no arroubo extático do beijo de Deus, como menciona Chevalier; Gheerbran t
(1993), podemos compreender que a personagem foi movida por um impulso que a ela
significava algo sagrado. O beijo num moribundo é expressão máxima do sentimento de piedade
e de solidariedade que Arandir acreditou vivenciar. Arandir, por um curto momento, a bdicou do
sistema de valores morais da sociedade que o circundava para vivenciar o que era a mais pura
manifestação de amor pelo outro: um beijo em alguém que estava morrendo.
É significativo o uso do pronome indef inido alguém, por não ser marcado pelo feminino
ou masculino; ou seja, o pronome funciona como dêitico, que adquire valor s emântico quando
inserido num contexto específico. O beijo se justifica, para a personagem, por ter sido dado não
num sujeito do sexo feminino ou masculino, mas numa pessoa, e, vale salientar, de uma p essoa
que estava à beira da morte. Arandir, em suas explicações, sempre se refere ao beijo que dera em
alguém. Naquele mom ento, a personagem vivencia uma experiência e uma consciência
existencial, ao perceber que outro ser humano, como ele, estava morrendo nesse plano da
existência, o que veio a sensibilizar p rofundamente Arand ir. O beijo foi uma atitude instintiva,
pelo que narram as personagens, mas um instinto guiado pelo sentimento ex istencia l de aliviar
as dores, angústias e sensação de desamparo de alguém que está prestes a morrer. Parece claro
que, numa explicação de ordem psicanalítica, o sentimento e o ato da personagem podem ser
interpretados como manifestação do na rcisismo [leia-se quando fala a Dália: “Por um momento,
eu me senti bom! (furioso) Eu me senti quase, nem sei!]
83
. Satisfaz à personagem sentir-se
solidário com alguém, saber que alguém pode depender de sua solidariedade, sobretudo no
momento em que esse alg uém está morrendo.
Na mentalidade pequeno- burguesa, como a que insiste ainda hoje em se ma nter na
cultura brasileira, um beijo na boca entre dois homens sign ifica um ato ho mossexua l
84
. A opinião
pública, herdeira dos valores burgueses sobre a masculinidade, não admite a pureza de um beijo
que um homem dá noutro, mesmo sendo esse outro uma pessoa que vai morrer. O discurso de
Arandir ultrapassa as restrições características do campo discursivo majoritário, do discurso
83
Sobre esse viés específico, ler Martuscello (1993).
84
É relevante situar tal mentalidade em culturas como a br asileira, pois o beijo é simbolizado de diferentes maneiras
nas mais diversas culturas. Só para citar dois exemplos, que poderão ser facilmente reconhecidos, na Rússia é normal
dois homens se saudarem com um beijo na boca; no Kazakistão, o beijo na boca entre dois homens significa um ato
viril, ao passo que o beijo na face é algo de natur eza íntima.
181
masculino pequeno-burguês. A interincompreensão se estabelece não pela negação do discurso
do outro, mas pela interpretação de alguns semas do discur so alheio, de acordo com a formação
discursiva do discurso q ue se toma como referê ncia. Arandir não é ouvido pelos outros porque
seu ato é interpretado pela opinião pública como algo execrável. Seu discurso é apreendido
apenas no que equivale às forças semânticas da formação discursiva que a opinião pública
compartilha: é apenas retida a confissão do acusado de que dera um beijo noutro homem. Essa
confissão basta para a mesma formação discursiva atribuir o sentido de que se tratava de um
caso de pederastia. Tomando como parâmetro o discurso sobre a masculinidade, as razões que
Arandir procura dar aos outros não são processadas pela formação discursiva vigente.
Essa interincompreensã o gera, na peça, uma situação de incomun icabilidade.
Impossibilitadas as vias de interação entre os dois discursos, as per sonagens não conseguem s e
comunicar. Por um lado, a opinião pública, que se sustenta em crenças muito particulares e
hegemônicas sobre o que vem a ser homem; por outro, Arandir, que ostenta um discurs o
baseado na pureza d os sentim entos, na pieda de, na solida driedade, indep endentemente de
estarem sendo dirigidos a um homem ou a uma mulher. Pureza, piedade, solidariedade
constituem semas de um discurso r eligioso, mas a religiosidade de Arandir se expressa mediante
um discurso que valoriza atos inaceitáveis para a ideologia geral da opinião pública.
No momento em que constata sua absoluta solidão , quando Dália vem informá-lo de que
Selminha não mais o quer ver, Arandir mergulha em sua própria intimidade atormentada e
começa a proferir um discurso sentencioso, quase num delírio [diz à Selminha. (violento) Diz
que em toda minha vida, a única coisa que se salva é o beijo no asfalto. (...) É lindo! É lindo, eles
não entend em. L indo bei jar quem está mo rre ndo (grita). Eu não me arrependo! Eu não me
arrependo!]. Trata-se do reconhecimento por pa rte da personagem: ninguém en tende nem
nunca entenderá o valor de seu ato (lembremos que, no exemplo 7, Arandir chega a dizer para a
esposa: “Acho que em todos os empregos, os caras vão me olhar como se. As mesmas piadinhas,
em toda a parte”). Revolta do, Arandir renega a opinião pública e diz não se arrepender. Sua
sensação de aniquilamento faz com que se sustente ainda no valor sagrado de seu ato, que não é
entendido pelos outros.
Ma s o destino trágico da personagem precisa ser ainda rematado. Como diz Magaldi
(1992, p. 34), “é necessário conspurcar tudo: se ninguém é inocente, eu me eximo de m eu
pecado. Esse racioc ínio conduz ao sa crifício de Arandir, assa ssinado pela coletividade, qu e
utilizou a mão do sogro”. Sem que isto implique uma comparação forçada, acreditamos que o
destino de Arandir tem um paralelo com a vida de Jesus Cristo. Incompreendido pelas pessoas
pecadoras e detentoras do poder no plano terreno, Jesus Cristo é condena do à crucificação. De
182
acordo com o discurso do Novo Testamento, Jesus morreu por incentivar e pregar o amor ao
próximo, assim como por cultivar o bem entre os homens. Arandir diz ter sido o beijo a única
coisa que o salva e, em nossa interpretação, ele s ubentende q ue essa salvaçã o o livrará do mal, da
mesquinhez e da corrupção dos valores humanos consagrados. Amado Ribeiro teria sido o seu
Pilatos, entregando-o à opinião pública, que decide por crucif icá-lo. Considerando que o discurs o
religioso sempre atravessa o discurso dramático do autor, não nos pa rece de todo absurda essa
comparação.
Embo ra Green (2000) considere Arandir homossexual, estamos convictos de que o único
“homossexual” da peça é o sogro, Aprígio
85
. Nelson Rodrigues deixa para revelar essa informação
no final da peça, momentos antes d e as cortinas se fecharem, numa espécie de coup de théâtre.
O sogro, que sempre implicara com o genro, em vez de ódio, sentia por ele amor. No en tanto,
apesar do lance melodramático que o f inal da peça comporta, com a revelação de que Apr ígio
sempre amara o genro e a morte de Arandir um tiro disparado pelo sogro , Nelso n Rodr igue s
deixa, ao longo do texto, alguns indícios que apontam para o remate da história
86
. No en tan to, só
compreendemos as pistas oferecidas pelo dramaturgo quando nos deparamos com a revelação
de Aprígio e recapitulamos os fatos. Então percebemos que Aprígio tinha um comportamento
por vezes muito estranho, e isso era expresso não somente pela sua fa la, mas também pelas
indicações das didascálias. Citemos, a título de exemplo, alguns tre chos da peça que funciona m
como índices dos sentimentos de Aprígio:
(12)
(E então, sozinho com a filha mais velha, Aprígio anda de um lado pra outro e
vai falando. Sente-se, em tudo o que começa a dizer, uma certa perplexidade e,
mesmo, uma surda irritação.) (R
ODRIGUES, 1993, p. 947)
85
Green afirma que, nos anos 60, surgiram muitos produtos culturais com “temática homossexual”, como livros e
peças. O autor comenta duas peças, Nosso filho vai ser mãe, de Walmir Ayala, e O beijo no asfalto, de Nelson
Rodrigues, e conclui que “embora os protagonistas de ambas as peças sofram um preconceito social, a inten ção dos
autores foi despertar a compaixão e a simpatia do público por sua condição” (G
REEN, 2000, p. 414) (grifos nossos) .
Primeiramente discordamos que a “temática” de O beijo no Asfalto seja a homossexualidade, como já sustentamos
antes. Em segundo lugar, não há nenhum indício na pa de que Arandir seja homossexual, como nos faz supor Green
quando se refere à “condição” do protagonista.
86
Esse des fecho não constitui o que Aris tóteles (1987b) chama de deus ex machina. Ou seja, não consiste num
desfecho que independ e da lógica causal dos atos.
183
(13)
A
PRÍGIO (com súbita energia) Vem cá. Responde! Você viu o retrato do
atropelado? (suplicante e violento) Diz! Você o reconheceu? Preciso saber.
Olha! Entre as a mizades do teu ma rido. (mais forte) Entre as relações
masculinas do teu marido, tinha alguém parecido? Alguém parecido com esse
retrato? O lha bem! (R
ODRIGUES, 19 93, p. 965)
(14)
A
PRÍGIO (violento) Escuta! Deixa eu falar, menina! Ontem, eu vim aqui,
pessoalmente. Podia ter dado o recado pelo telefone. Mas vim pra te perguntar
se. Selminha, eles se conhec iam?
(...)
A
PRÍGIO (com violência total) — Não foi o primeiro beijo! Não foi a primeira
vez! (R
ODRIGUES, 1993, p. 966)
Quando Aprígio va i à casa da filha para relatar-lhe o que ocorrera na quela manhã, está
profundamente tenso e confuso , como nos indica o ex emplo (12). Or a, o leitor ate nto identifica
esse comportamento como estranho, mas nã o é capaz ainda de tirar concl usões a respeito da
personagem . A perplexidade poderia advir do inusitado da cena do beijo. A irritação poderia ter
sido provocada pelo preconceito. Quando, em (13), se dirige a Selminha e apela para a memória
da filha, pedindo -lhe que se lembra sse do rost o daquele homem, Aprígio mostra-se muito mais
preocupado com o morto do que com a homossexualidade do genro. Essa informação para ele se
impunha imperativamente, como fica pressup osto pelo uso do modalizado r “ Preciso
sabe r”
(grifo nosso). Em (14), volta a fazer a mesma pergunta para a filha: “eles se conheciam?”,
insistindo para que ela se lembrasse da fisionomia do atropela do. Depois, se mostra
descontrolado, gritand o, com violência total, que ele sabia não ter sido aquela a primeira vez que
o genro beijara um homem. Mas ele não dispunha de indícios para supor isso. Por que essa
conclusão? São questões que ainda não ficam claras pa ra o leitor. O escla recimento vem no final ,
quando ele se diz apaixonado p or Arandir. Compreendemos que o beijo o afetara tanto quanto
afetara o protagonista da história. Mas o afetara pelo viés do ciúme.
Aprígio é uma personagem construída a pa rtir da angustiada tensã o en tre esf era pública e
esfera privada. Em sua vida íntima, privada, nutre uma paixão secreta e incontrolável pelo genro.
Public amen te é um pai ex empla r (a rel ação afetuo sa ent re el e e as f ilha s demo nstra i sso) ,
184
ocupando o espaço que a opinião pública constrói para um “homem” resp eitável. A ima gem de si
que oferece aos outro s e os seus sent imentos são inconciliáveis, levando em conta as
representações sociais que se tem do “homem”, do masculino. Sem aceitar seus sentimentos
homoeróticos, Aprígio desconta sua impotência no genro, devotando -lhe indisfa rçável rancor.
No final, a personagem está em crise, sentin do-se traída em seu a mor, e deci de revelar o que
sentia a Arandir. “Sem conseguir conviver co m sua homossexua lidade confessada”, mata o
objeto de seu amor
87
.
Aprígio é vítima de seu próprio sistema de crenças. Participando de uma prática
discursiva, vale lembrar, segundo a qual o ho mem deve se dar ao respeito, não s e entregando a
sentimentos e comporta mentos mórb idos e anormais, jamais poderá admitir, muito menos
revelar, seu amor por outro homem.
Muitos cr íticos reprovaram o desf echo de O beijo no asfalto, alegando que a peça
descamba para um melodrama que enfraquece a ação dramática. Sábato Magaldi foi um dos que
se incomodara m com o lance melodramá tico do final da peça, chegando a confessar isso ao
dramaturgo e a aconselhá-lo a mudar o desfecho
88
. Nelson Rodrigues, claro, não mudou,
alegando gostar de melodramas.
De fato, considerando que algumas das características estruturais do m elodrama são o
acúmulo de elementos que contribuem para transbordar as emoções do leitor /espectador e o
reconhecimento, qu e só vem à tona, com mui ta emoç ão e lágrimas, nas últimas cenas o u no final
do último ato, pode mos dizer que O Beijo no asfalto é melodramático no momento em que
acaba
89
. Do ponto de vista trágico, temos apenas um único reconhecimento, quando Arandir se
depara com sua solidão e conc lui, sem arrependimento, ter s ido o beijo, que cons iderara um ato
tão puro, o responsável pela sua ruína moral. No entanto, Nelson Rodrigues apela para o excesso
e, na última cena, revela algo que ainda estava oculto, o que acarretará a morte do protagonista.
Tudo isso num tom grandiloqüe nte, de grande emoção.
Estamos convencido, entretanto, de que esse desfecho é muito apropriado e muito
produtivo para o tema de O beijo no asfalto. A mídia sensacio nalista, no contexto da peça, a tiçou
a opinião pública contra o comportamento de um sujeito que cometera o crime de praticar
publicamente sua homossexualida de (depois, com o desenrolar dos fatos, o Última Hora chega a
sugerir que o atropelamento foi um crime passional, indicando Arandir como o responsável).
Fica claro que esse tipo de mídia, s obretudo na época em que Nelson Rodrigues es creveu sua
87
A expressão aspeada corresponde à interpretação de Magaldi (1992, p. 34).
88
Esse fato se encontr a relatado, entre ou tros, em Magaldi (1993).
89
Sobre o melodrama, baseamo-nos no estudo capital de Jean-Mar ie Thomassea u (2005) .
185
tragédia carioca, não raras vezes é inconseqüente e irresponsável na apuração dos fatos. A
personagem Amado Ribeiro é a caricatura dos jornalista s desonestos, capazes de atribuir aos
fatos o sentido necessário, mesmo que arbitrário, para garantir o consumo do jorna l. Com esse
objetivo, os jornais mais populares apostam nas técnicas folhetinescas, a fim de prender o leitor,
que deseja consumir for mas de entretenimento. Se a demanda apela para o folhetim é porque a
vida é, para esse público, passível de um enredo folhetinesco. Não importa se Arandir era ou não
homossexual. Não importa se ele empurrara ou não seu amante para debaixo da s rodas de um
lotação. O que importa é que ele se tornou personagem de um folhetim que, no contexto da peça,
está sendo c onsumido a vidamente p ela massa de leitores. Em nossa interpretação, o desfecho de
O beijo no asfalto é muito irônico, pois, ao se valer de estr atégias folhetinescas e
melodramáticas, mostra que a vida de Arandir se tornou, depois do escândalo do beijo, o enredo
de um folhetim. A imprensa popular, como o folhetim, precisa estab elecer o que é o bem e o mal;
é capaz de transformar vítimas em criminosos, sujeitos racionais em ob jetos de consumo (é
possível identificar aqui um eco do conceito marxista de processo de alienação). Eis a visão que
Nelson Rodrigues nos a presenta em sua peça
90
.
Finalizada a análise, podemos destacar alguns pontos conclusivos a respeito do discurso
da masculinidade nas duas peças rodriguianas. Em Perdoa-me por me traíres, constatamos que
o final trágico da personagem Gilberto se deu pelo choque entre duas vontades: por um lado, o
poder instituído, que impõe aos indivíduo s um discurso masculino ma rcado por valores
ideológicos precisos — Tio Raul é o representante mais forte desse poder; por outro, o
comportamento da personag em Gilberto, cujo discurso, s ustentado e m determinad o momento
de sua vida, vai de encontro aos press upostos do que se deve esperar de um homem. Nelson
Rodrigues constrói uma personagem, responsável, inclusive, pela criação da frase-título da peça,
que ganha nossa simpatia, não obstante sua cena ter adq uirido contornos amplifica dos pela
mente obsessiva de Tio Raul (lembr emos que Gilberto, persona gem de um passado remoto, só
aparece em cena mediante flashback realizado por Tio Raul). Tio Raul é porta-voz da o pinião
pública e reproduz, autoritariamente, os valores consagrados pela sociedade burguesa. Quem
ousa infringir os valores que correspondem às crenças sobre o masculino , deve ser punido. Foi o
que aconteceu com Gilberto. O poder hegemônico vence seus “detratores”. No enta nto, toda a
peça é construída de forma que a figura de Tio Raul possa expressar, na esfera privada, o
máximo de hipocrisia, obsessão, perturbação. Assim, o leitor nutrirá uma simpatia maior pela
90
Em 1998, foi lançado nos cinemas O Show de Truman, filme dirigido por Peter Weir. A história se assemelha ao
enredo de O beijo no asfalto, pois, no filme, Truman Burbank é um homem que, sem o saber, foi tomado como
experiência de uma rede televisiva. As câmeras o acompanham vinte e quatro horas por dia, desde o momento em que
nasceu até a fase madura da personagem. Truman se torna uma criatura de um reality show que conquistou sucesso
de público. O filme abre a discussão sobre os limites éticos da mídia televisiva.
186
personagem Gilberto, contrariamente à antipatia gerada pela figura de Tio Ra ul. Se no final da
peça as máscaras caem e Tio Raul demonstra um comportamento não condizente com o discurso
que sustenta, fica-nos a conclusão de que o discurso de Gilberto, mesmo se chocando com a
moral pequeno-burguesa, revela uma pureza nostálgica. Mais vale perseguir os sentimentos
puros do que negá-los e se subjugar a valores impostos por uma sociedade com interesses
bastante particulares. Desconsiderar essa premissa é assum ir comportamentos h ipócritas (os
indivíduos terminam sempre pra ticando aq uilo que condenam) o u psicopatológico s, como foi o
caso de Tio Raul. Não obstante isso, o texto de Nelson Rodrigues, ao se valer da personagem Pola
Negri, na cena de abertura da peça, revela valores ideológicos que mantêm vínculos com as
representações hegemô nicas sobre o masculino, pelo menos no que tange ao comporta mento
sexual da personagem. Apresentada pelo viés do cômico e do ridículo, ela faz parte da tradicional
galeria de personagens “homossexuais” que são construídas como alteridade pelo olhar
androcêntrico da literatura dramática brasileira de então.
O beijo no asfalto, por sua vez, conta a história de um homem que tem sua vida destruída
por ter realizado um ato interpretado como de homossexualismo. A imprensa marrom teve
papel-chave para mobilizar a opinião pública contra o comportamento desse homem. Nessa
peça, Nelson Rodrigues expõe o contraste entre os valores ideológicos e morais de uma
sociedade burguesa androcêntrica e os sentimentos mais puros e sublimes de um homem cujo
único equívoco fo i confrontar-se, de forma nã o consciente, com a mor al masculina vigente. O
texto mostra que a opinião pública prevalece so bre co mporta mentos que não se adeq uam à s
crenças hegemonicamente sustentadas pelo grupo social. Arandir acaba morto pelo próprio
sogro, que, apaixonado pelo genro, decide eliminá-lo. Aprígio é tão submisso à opinião pública,
que opta por silenciar sua paixão, em vez de viver conforme determinam seus sentimentos e
desejos íntimos. Apesar disso, o dramaturgo desperta nos leitores compaixão e simpatia pelo
protagonista, Arandir. Ao tomar partido contra a atitude de vigilância opressora por parte da
moral machista, Nelson Rodrigues abre espaço para uma valorização dos sentimentos humanos,
sobretudo 4( ).6(4(1)5.6 idosãm)-6.9o brem i-6.9(n)-5.3(leno)-6.2(i)69(do)-5.5na(dosue,)592( )-5.6(contrm)-6.9d(i)69(tor )-5.6(i-6.9rm)-6.9mente,mral i-6.9(n)-5.3(lerpe(tado)-551(s)562(.)0.3(( )]TJ0 20.2338 TD0.001 Tc0.401 Tw[l )27412.1 A)6.8(o)-5((cont)-6.1áa)-6.4(rio)-5(dio)-5((quep)-5.6(o)-5(c01(ocre)6.8Ara)-6.4, cor)-6 rae rl em
187
socialmente construídas sobre o homem, apesa r de nutrir um sentimento que contraria as
crenças mobilizadoras dessas mesmas representações. O senso comum opera, ainda hoje, uma
cisão entre homossexual e bicha. Considerando que os dois termos referem e definem um tipo de
pessoa, ser homossexual é tolerável; ser bicha é degradante e vergonhoso . Nelson Rodrigues
parece compartilhar dessa crença.
Não obstante isso, é inegável que o dramaturgo, ao contrário do que se via até então,
constrói em seus dramas perso nagens masculinas comple xas. Considerando especifica mente
Gilberto e Arandir, trata-se de dois anti-heróis, na medida em que se constituem como a anti-
norma da masculinidade, longe, porta nto, das aspirações idealistas da burg uesia quanto à
imagem do homem mo derno. Sã o persona gens q ue sinalizam u ma crise da noção mo ra l do que m
vem a ser um homem. Essa interpretaçã o só é possível se considerarmos que o discurso
dramático rodriguiano as constrói de forma que elas funcionem como vítimas de seu próprio
impulso espontâneo, a gindo em nome de uma verdade que, para elas, mostrava-se como
sagrada. Em última análise, a simpatia que o dramaturgo infunde nessas personagens mostra, de
certa forma, uma a desão ideológica ao discurso que elas sustentam para justificar as razões de
suas ações.
É certo que o discurso religioso, conf orme vimos, dialog a com os discursos ma sculinos
nas duas peças. Também é certo que, na formação da sociedade burguesa, o discurso religioso foi
usado para garantir à população uma formação moral e que esse mesmo discurso constrói
valores androcêntricos sobre o homem equivalentes aos valores cultivados pela sociedade
burguesa em ascensão. Discutimos, em capítulo s anteriores , que as crenças sobre a
masculinidade na sociedade ca pitalista se val em de princípio s mora is comungado s pela ideologia
católica. No entanto, nas duas peças analisadas aqui, a representação que se tem do masculino
ganha novas luzes com a interf erência muito particular do discurso religioso. De um lado, ele é
utilizado como fundamento moral para caracterizar o discurso sustentado pela gama de
personagens que, ao reafirmarem os valores masculinos hegemônicos, se portam como
adversárias dos anti-heróis (os Sujeitos da história, na l eitura estruturalista de Greimas, 1976).
Por outro lado, em vez de ser concebido como verdade supr ema, a partir da qual se compreende
o universo dos dramas, o discurso religioso, tanto em Perdoa-me por me traíres quanto em O
beijo no asfalto, é tomado para enfatizar o valor metafísico das chamadas “verdades supremas”
do homem, o que se relaciona ao amor “absoluto”. Dessa forma, mesmo contrariando a moral
burguesa e católica em muitos de seus pressupostos, as personag ens masculinas em questão
atribuem valor sagrado ao amor, independentemente de se o sentimento se dirige a “alguém”
(lembremos de Ara ndir) do sex o masculino ou feminino. As personagens masculina s
188
martirizadas procuram vencer todos os obstáculos, mas são aniquiladas em nom e daquilo que
lhes é mais sagrado: o sentimento puro. Em se tratando de “homens”, eles divergem do senso
comum, logo do sistema de crenças hegemônico sobre a masculinidade.
189
6. Plínio Marcos
PACO — Mas, poxa, Tonho... Nós sempre fomos amigos...
T
ONHO — Quem tem amigo é puta de zona.
(Plínio Marcos, Dois Perdidos numa Noite Suja)
V
ADO — Fuma essa merda! Fuma! Não escutou eu mandar? (Vado vai
tentando, desesperadamente, colocar o cigarro na boca de Veludo,
para que ele fume. Veludo não deixa.)
V
ELUDO — Me mata, meu homem!
(Plínio Marcos, Navalha na Carne)
Mencionamos, no capítulo 4, a leitura que Paulo Vieira (1994) fez das personagens
plinianas em comparação com as de Nelson Rodrigues. Ambos os autores trabalharam, de fato,
com personagens que se encontram, cada uma a seu modo, à margem da sociedade. Vale aqui
uma explicação ao que parece, em princípio, um truísmo. Quando nos referimos à margem, não
estamos incluindo apenas os anátemas da sociedade, como é o caso das personagens de Plínio
Marcos. Consideramos também o espa ço ocupado pelos indivíduos que confro ntam, por meio de
atitudes e discursos, aspectos fulcrais do sistema de crenças hegemônico. Nesse caso, também as
personagens rodriguianas analisadas enco ntram-se à ma rgem. Tanto num autor quanto noutr o
as personagens masculinas assumem um jogo perigoso com a imagem de alteridade, que podem
redundar na ruína dessas mesmas personagens. No entanto, como bem assinalou Vieira, as
personagens de Plínio Marcos são personalidades autênticas naquilo que fa zem, não precisando
esconder os impulsos do sentimento, do eros e da violência. Em Nelson Rodrigues, as
personagens são construídas mediante jogo de nuances, de forma que procuram “negociar” com
o senso comum e a hipocrisia s ocial para vivencia rem o próprio instinto, violenta mente
controlado. As peças dos dois autores são resultado de opções estéticas e ideológicas particulares
a cada um. Ou, numa outra perspectiva, são o ponto de partida para a criação de efeitos estéticos
determinados. Em Nelson, a concepção da realidade e dos sentimentos “sagrados” e “absolutos
190
o orienta no tratament o expressionista da cena , rompendo a superfície da realidade medíocre
para investigar a s motivações psic ológicas e e xistenciais de sua s personagens. Em Plínio, o
tratamento naturalista da cena se propõe a exercer um imp acto sobre a platéia, de forma que a
realidade abjeta de suas personagens seja desnudada, sem meio-tom, diante do público.
Analisemos, porta nto, suas duas peças, não esquecendo que nos orientaremos em direção ao
discurso masculino que elas sustentam.
Em Dois Perdidos numa Noite Suja, o espaço se restringe, ao longo do texto, a um quarto
de hospedaria de última categoria, em que se encontram as personagens Tonho e Paco. A ação
dramática gira em torno de um elemento simbólico que aponta para um conflito soc ial: a posse
ou não de um par de sapatos novos. A peça está dividida em dois atos: no primeiro, composto de
cinco quadros, Tonho tenta convencer Paco a emprestar-lhe o par de sapatos novos que o
companheiro de quarto havia ganho. Tonho precisa conseguir um emprego que o faça melhorar
de condição de vida, e acredita que um pa r de sapatos novos iria proporcionar-lhe uma image m
favorável diante do empregador. Paco não quer empresta r os sapatos ao companheiro e os dois
brigam, até que ambos decidem participar de um assalto, de forma que Tonho pudesse obter o
que tanto deseja va: um par de sapatos novos. Encerra-se o primeiro ato. O segundo ato
transcorre num único quadro, quando eles já estã o de volta ao quarto, depois de terem assaltado
um casal. Começam, então, a dividir os pertences roubados e Tonho fica com o par de sapatos do
homem. Decide ir embora de vez daq uele local e tenta calçar os sapatos, sem, no entanto,
conseguir, pois são muito pequenos para o seu pé. Desespera-se e, diante das brincadeiras d e
Paco, saca o revólver e atira no compa nheiro. Fim do segundo ato.
Navalha na Carne, oitava peça do dramaturgo, apresenta, num único ato, um enredo
simples, que pode ser resumido em po ucas linhas: uma prostituta chega ao seu quarto de hotel
de quinta classe, depois de uma noite de trabalho. Encontra seu cafetão deitado na cama.
Apanha de seu companheiro sem saber por quê. Toma conhecimento, log o em seguida, de que o
mau-humor se devia ao fato de ela não ter deixado dinheiro para ele, forçando-o a ficar preso no
quarto a noite inteira. Defende-se, diz endo que havia deixado o dinheiro no criado-mudo e
começa a desconfiar do camareiro. O cafetão manda-a chamá-lo. O camareiro, ao chegar ao
quarto, passa a ser ag redido fisicamente pelo caf etão, que lhe exige o dinheiro ro ubado.
Ameaçado por uma navalha que a prostituta sust enta, termina confessa ndo o delito e promete
devolver tudo. Entrega ao cafetão a maconha que havia comprado com metade do dinheiro
roubado — a outra metade tinha sido entregue a um rapaz, em troca de sexo. Em torno do
cigarro de maconha, desenvolve-se um jogo de sedução entre o caf etão e o camareiro,
191
interro mpido p ela p rostitu ta. El a exp ulsa do q uarto o emp regad o do h otel e é a gred ida físic a e
moralmente pelo cafetão, que sai sem dizer se irá voltar ou não.
Na primeira peça, um aspecto importante da intriga a ser considerado é a busca obsessiva
de Tonho por um par de sapatos novos, desejo que constitui toda a ação dramática. Os sa patos
adqu irem u m es tatuto s imbó lico: de ixam de se r objetos concretos da realidade e assumem um
valor indicativo de posição social. Ecos desse simbolismo remontam às antigas civilizações
gregas e hebraicas, nas quais, no dizer de Servier (apud C
HEVALIER; GHEERBRA NT, 1993, p. 8 01),
“andar de sapatos é toma r posse da terra”. Os sapatos torna m-se o símbolo do direito de
propriedade, seja da identidade social da pessoa que os calça, seja dos bens mater iais que a
pessoa possui ou parece possuir. A representação que se faz de um “cavalheiro distinto”
compreende, entre algumas características, a forma como ele se apresenta à sociedade. Um
indivíduo que usa bons sa patos e se veste bem, conforme valores sociais, é um sujeito elegante e
fino, sobretudo para os hábitos comportamentais dos homens na décad a de 1960, contexto em
que se insere a peça de Plínio Marc os. O fato de não possuir um bom par de sapatos constitui
para Tonho um empecilho para melhorar de vida. Ele se sente excluído de uma sociedade que
privilegia a “boa aparência” e discrimina os que não apresentam esse perfil. Tonho possui um
subemprego que não lhe oferece condições de uma vida social digna, enquadrando- o numa
situação de pobreza com pouca perspectiva de mudança. A imagem da pobreza é reforçada pelo
preconceito em relação à aparência dos indivíduos. Explica-se, assim, a necessidade que sente a
personagem de adquirir um par de sapatos, assegurando-se a manutenção da ideologia burguesa
da boa aparência como fator de sucesso na vida social.
Paralelamente, é possível reconhecer no par de sapatos uma representação dotada de
simbolismo fálico. O pé é a parte da nossa anatomia que mais costuma ser investida de desejo, ao
ponto de psicanalistas como Freud e Jung considerarem-no o símbolo infantil do falo
91
. No caso
da personagem Tonho, o desejo de possuir um par de sapatos denuncia uma realidade social
cruel: sem sapatos novos, a persona gem não consegue um em prego. No entanto, sub-
repticiamente, ele estaria desejando reacender seu próprio org ulho masculino, macerado pelas
91
Em nosso contexto social, é freqüente usar-se o termo “tripé” para referir vulgarmente o homem com o pênis
avantajado. Uso semelhante se dá em algumas línguas eslavas, como a russa, em que “третья нога” (terceira perna) é
um termo que designa pênis. Num dos sentidos psicanalíticos, os sapatos constituem símbolo feminino, objeto por
onde entra o pé. Mas, não nos sendo válida tal exegese, preferimos compreender, por exemplo, os sapatos como
objetos que representam metonimicamente o pé, pelo contato que mantém com esse membro do corpo humano. A
título de exemplo, transcrevem os um soneto do poeta paulista Glauco Mattoso, intitulado Solado: “Patrão, posso
engraxar o seu pisante?/ Sapato, bota ou tênis, tanto faz./ Não cobro nada e limpo até demais,/ pois vou lambendo e o
pé fica brilhante.// Bem sei que meu serviço é degradante./ Sou cego, o que me humilha ainda mais./Mas é assim que
a coisa satisfaz/ alguém como você, tão arrogante.//Na sola minha língua se revela/ o mais macio e sórdido capacho./
Vo vai ver a cena numa tela://Ao vivo ou não, Pato, eu só lhe engraxo,/ me imaginando preso numa cela,/ porque
cê tem visão e pé de macho.” (sites.uol.com.br/formattoso/informative.htm). Saliente-se que o vocábulo gírico
“pisante”, no soneto, é também usado na peça de Plínio Marcos, conforme veremos na análise.
192
condições degradantes da vida em que se encontra. Se o sapato pode ser revestido de conotação
fálica, é porque, no contexto da peça, a força, a fecundidade, a virilidade, valores que
acompanham o símbolo do falo, faltam à personagem — ele se vê incapaz, pelas condições
materiais, de assumir a plena posse desses valores —, e só podem ser simbolicamente
recuperados se Tonho viesse a possuir o par de sapatos novos
92
.
Em Navalha na Carne, o simbolismo da navalha, acessório presente no texto e que dá
título à peça, nos remonta ao que dizem Chevalier e Gheerbrant (1993, p. 414) a respeito da faca:
“princípio ativo modificando a matéria passi va” . Essa r epr esen tação é muit o co mum na s
sociedades orientais e ocidentais, incluindo aí a sociedade bra sileira. Há, po rtanto, uma
conotação de ordem sexual, em que a faca assume a imagem fálica (princípio ativo) em contraste
com a carne do corpo (princ ípio passivo). Não é por acaso que Neusa Sueli possui uma navalha,
pois as prostitutas procuram se defender pelo uso de objet os cortantes. Porque na noite não há
quem a defenda dos riscos que corre, ela mesma assume o princípio ativo, fálico, portando, para
isso, uma navalha. É com a navalha que ela subjuga Veludo e faz com que ele assuma o roubo. É
com a navalha que Neusa Sueli, nas últimas cenas da peça, procura obrigar Vado a manter com
ela relação sexual, comporta mento corriqueiramente mascul ino no universo da marginalidade
93
.
Noutra perspectiva, a navalha constitui elem ento fálico e representa, simbolicam ente, as relações
de poder sob as quais se encontram o primidas as personagens desse am biente underground. S e
se trata de uma gama de personagens representando um grupo humano marginalizado, os que
na sociedade não têm voz, a navalh a constituiria o poder ativo que, para se ma nter rela tivamente
estável, sufoca os que vêm lhe contrariar as diretrizes em outras palavras, penetra na carne
dos que estão impossibilitados de ultrapassar a condição soci al de passividade.
Nossa aná lise se valerá desses dois elementos fálicos, os sapa tos e a navalha, para
construir um raciocínio que nos possibilite a lcançar conclusões razoáveis a respeito das
representações masculinas em a mbas as p eças de Plínio Marcos.
Comecemos por Dois Perdidos numa Noite Suja. Vale salientar que as d uas personagens
são masculinas e reproduzem em seus diálogos valores próprios do m ito da mascul inidad e, como
veremos a partir de agora. A peça começa pela descrição do cenário, nos colocando diante de um
locus intensa mente masculino. A rubrica inicial informa q ue os fatos se passam num quarto de
hospedaria de última categoria, em cujas “paredes estão colados recortes, fotografias de time de
futebol e de mulheres nuas” (M
ARCOS, 2003, p . 64 ). Há referê ncia a dois elem entos explí cito s
92
Para os valores simbó licos do falo, consultamos o verbete phallus, em Sillamy (1967).
93
Não queremos afirmar que tal comportamento se restrinja ao universo da marginalidade. Coagir alguém a manter
relações sexuais mediante uma arma constitui ação observada em todas as classes sociais. No entanto, como nosso
propósito é investigar o ambient e marginal, id enti ficamos o estupro como um fato corriqueiro nesse meio.
193
atribuídos à socialização masculina, pelo menos no que tange à cultura brasileira: futebol e
mulher. O primeiro remete à prática de esportes associados, na modernidade, aos valores
masculinos, conexã o que se estende ainda aos dias de hoje. N o século X VIII, por exemplo, os
esportes foram revalorizados com o objetivo último de “atingir o vigor e a força masculina de
forma disciplinad a” (O
LIVEI RA, 2004, p. 61), idéia que nos reporta à cultura grega
94
. O segundo
elemento, mulher, é o objeto de desejo do verdadeiro “macho”. O qualificativo “nua” evidencia o
aspecto da mulher-objeto, disponível, pelo menos na imagem, ao deleite masculino. A mídia tem
apostado nesse filão, desde a produção de quadrinhos, da qual Carlos Zéfiro (1921-1992) é um
dos representantes brasileiros mais notáveis, à exploração da nudez feminina em revistas
especializada s no assunto e na indústria cinematográfica e tel evisiva. Atualment e, as imagens
eróticas são fornecid as pelas e armazena das nas mídias d igitais, no entanto, princip almente em
alguns setores freqüentados pelas camadas populares, tais como oficina mecânica, bares de
subúrbio, celas de presídio, entre outros, ainda se verifica a prática de recorte e colagem de fotos
de nudez feminina. Trata-se, portanto, de uma forma de demonstrar e assumir o cará ter
masculino, pois “quem gosta de mulher é homem”, conforme a representação social hegemônica
que se tem da masculinidade.
A peça, escrita em 1966, assimila, na construção mimética da cena, valores do verdadeiro
“macho” para compor uma ambientação masculinizada. No entanto, é na construção das falas
que melhor captamos a reprodução de muitos dos valores burgueses do masculino, mesmo que o
comportamento das personag ens contradiga o discurso que sustentam, como ver emos.
Tonho é um sujeito pobre que teve a oportunidade de fazer seus estudos primários e, por
isso, sabe ler e até datilograf ar, como ele mesmo costuma ostentar. Saiu do interior e foi morar
em São Paulo, pois sua cidade natal nã o oferecia condições de emprego. Acredita ndo encontra r
melhores condições na cidade grande, nela se depa ra com sua ruína física e psicológ ica. Assim
como Paco, Tonho é um homem inserido na massa de pobres que c ompõe a geografia da
metrópole p aulistana.
94
194
Quando se fala da pobreza, o pobre é sempre associado ao outro, no sentido em que
entende Van Dijk (2003), e à massa , sem nome ou rosto. A fala sobre a pobreza deriva, pois,
sempre da perspectiva da alteridade, de quem não pa rticipa desse estrato social. A ideologia
burguesa marca o sujeito pobre como uma alteridade, um outro em relação ao grupo
privilegiado pelo poder econômico.
Por ser pobre, Tonho não dispõe de condições concretas para partic ipar da sociedade de
consumo. Lembremos que, de acordo com Oliveira (2004), o homem pertencente à esfera
popular, como não pode conquistar uma identidade num mundo merc adificado (ele não disp õe
da senha para entrar neste mundo: o dinheiro, valor de compra), se a pega a valores como
família e masculinidade, por exemplo, sendo essa a forma de g arantir respeito po r parte dos
próprios companheiros. Consideran do que em nossa so ciedade os valores burg ueses atribuído s à
família e ao homem são hegemônicos e consag rados, ser porta-voz desses mesmos valores,
portanto, confere respeito ao sujeito. Isso quer dizer que tal sujeito será respeitado pelos outros
em virtude dos valores morais que carrega.
Não bastasse isso, ao lo ngo de toda a pe ça, Paco, seu compan heiro de quarto, incita-o
constantemente, com brincadeiras que põem e m dúvida a masculinidade de Tonho. Para o que
nos interessa, analisaremos alguns fragmentos do texto, a fim de investigar a configuração de um
discurso sobre o masculino que se ancora na formação discursiva própria dos valores burgueses
modernos, valores esses que começaram a entrar em crise, como vimos, a partir da Segunda
Guerra Mundial.
No primeiro quadro da peça, Tonho discut e com Paco por causa do som da gaita que o
companheiro está tocando. Tonho chega ao quarto, aborrecido, d epois de um dia estafante de
trabalho pesado e mal remunerado — tanto um quanto outro trabalham num mercado como
carregadores de caixotes. Não querendo ser perturbado no seu sono, Tonho se irrita com o
colega por conta da música. Como Paco se recusa a parar de tocar o instrumento, os dois se
agridem fisicamente, duas vezes no mesmo quadro , e Tonho sai vitorioso das dua s contendas,
levando-nos a inferir que ele é fis icamente ma is forte do que o companheiro. No segundo
quadro, Tonho está chegando novamente ao qua rto, enquanto Paco está deitado na cama, o que
indica a passagem de mais um dia e a rotina imperturbável da vida de ambos. Paco avisa ao
companheiro que o “negrão”, outro carrega dor do mercado, “que usa gorrinho de meia de
mulher para alisar o cabelo” (M
ARCOS, 2003, p. 76), est ava furio so e q uerendo dar “muita
porrada” em Tonho. Diant e da reação do colega, que não entende por que esta va sendo
ameaçado, Paco trava com ele o seguinte diálogo:
195
(15)
P
ACO[...] Você tem medo do negrão?
T
ONHO (sem convicção.) Eu, não.
P
ACO — Boa, Tonho. Assim é que é. Homem macho não tem medo de homem. O
negrão é grande, mas não é dois. (Pausa.) Você vai enca rar ele?
T
ONHO — Sei lá! Ele não me fez nada. Nem eu pra ele.
P
ACO — Poxa, ele d isse que você é fresco. Vai lá e briga. Ele é que quer.
T
ONHO — Você só pensa em briga.
P
ACO — Eu, n ão. Mas se um cara começa a dizer pra todo mundo que eu sou
fresco e os cambaus, eu ferro o miser ável. Comigo é assim. Pode ser quem for;
folgou, dou pau. (Pausa.) Como é? Você vai fazer como eu, ou vai dar pra trás?
(M
ARCOS, 2003, p. 77-78)
Um pouco antes desse diálogo, Tonho perguntara se o companheiro estava amedrontado,
uma vez que havia parado de tocar a gaita quando ele chegara ao quarto, ao que Paco responde:
“Eu, ter medo de homem? No dia que eu tiver medo de homem, nã o uso mais calça com
braguilha, nem saio mai s na rua” (M
ARCOS, 2003, p. 76). Fica implícito nessa fala que o medo
não é atributo de homem . Até a década de 1960, calça comprida “com braguilha” era uma
indumentária restrita, ma joritariamente, ao universo masculino, daí, pa ra provar sua
masculinidade, Paco afirmar que se um dia sentir medo de homem, deixará de usar calças com
braguilha. Numa leitura paralela, diz que deix ará de ser, ele mesmo, homem. Há, aqui,
referência ao outro do masculino, especifica mente ao não-ma sculino, c aracteriza do, na fa la, pelo
sentimento de covardia. O homem, conforme representação social, deve ser corajoso e enfrentar
o inimigo, isto é, quem venha a lhe ameaçar o poder. Paco se vale do discurso corr ente sobre o
conceito de h omem para leg itimar toda a viol ência que acompanha boa parte de suas falas.
Eleger a coragem e a desforra como valores consagrados do verdadeiro homem corresponde a
uma formação discursiva muito anterior ao período moderno, apesar de esse discurso estar
presente, com características particulares, na história moderna da masculinidade. Vimos que
coragem e bravura, para o homem medievo, eram qualidades indissociáveis ao caráter de
violência explícita, co nforme testemunham os inúmeros relatos sobr e as contend as envolvendo
cavaleiros medievais. No período moderno, sobretudo depois das revoluções burguesas, a
violência explícita era justificada, nos discursos, somente para proteger a Nação — o caso do
196
discurso militar, por exemplo. Paco assume o comportamento de “olho por olho, dente por
dente”, muito característico da realidade masculina medieval, para af irmar-se como “homem”
95
.
No diálogo que se desenvolve em
(15) , o tema da corag em é novamente levantado, só que,
dessa vez, é Paco quem p ergunta a Tonho se ele estava com medo do “negrã o”. A resposta de
Tonho é precedida, no texto, de uma rubrica, indicando que a fala da personagem deve expressar
falta de convicção. Ora, a entoação anula, de certa maneira, a força da negativa (“Eu, não”). A
função dessa rubrica é cara cterizar o ato de fala da personagem. Assim, quando Tonho nega,
“sem convicção”, que tem medo do negrão, essa aparente contra dição entre o dito e o não-dito
nos conduz a uma implicatura: a personagem, tomada de surpresa, ficou a ssustada com a
ameaça do “negrão”, mas não podia revelar isso ao companheiro de quarto
96
. A pergunta de
Paco, também ela, encerra implicitamente uma ameaça, na medida em que põe à pro va a
coragem de Tonho. A resposta de Tonho é, por sua vez, ambígua, se examinarmos os
movimentos de sentido contrários: explicitamente, o texto contém uma negação categórica (“Eu,
não”), mas a reaçã o da personagem é de hesita ção (“sem convicção”). Manter uma informação
implicitada, de a cordo com Van Dijk ( 2003), não é uma opçã o neutra. No caso da ambigüi dade,
poderá haver uma razão política para tal. Os enunciados ambíguos muitas vezes são construídos
para preservar a imagem positiva do falante: evita-se explicitar opiniões que não são, para
95
A máxima “olho por olho, dente por dente” nos reporta ao discurso bíblico do Velho Testamento (A Bíblia de
Jerusalém, Êxodo, 21, 24), que faz parte do “Código da Aliança”, um texto referente ao Decálogo. Considerando que a
mentalidade medieval era dominada pelo discurso religioso da Igreja Católica, certamente o comportamento
masculino, nesse período, do “olho por olho, dente por dente” encontra-se fundamentado também em pressupostos
religiosos.
96
Grice (1982) trata do funcionamento da conversação, oferecendo uma abordagem do processo de interação
conversacional. Ele parte do suposto de que numa situação discursiva, paralelamente à significação convencional das
palavras, são veiculadas informações implícitas, que são interpretadas no momento da interação. O autor distingue o
que ele chama de implicaturas convencionais e implicaturas não-convencionais ou implicaturas conversacionais. As
primeiras são determinadas pela significação convencional das palavras; as outras se relacionam a certos traços gerais
do discurso. Vale salientar que o propósito declarado de Grice é tratar a fala como uma variedade do comportamento
intencional. Ele formula um princípio geral do discurso, o Princípio de Cooperação (PC), nos seguintes termos: “Faça
sua contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre, pelo propósito ou direção do
intercâmbio conversacional em que você está engajado” (1982, p. 86). Assumindo este princípio com o a base de seu
raciocínio, Grice (1982, p. 86-88) estabelece quatro categorias, tomadas de empréstimo a Kant, às quais estão ligadas
máximas e submáximas, que, uma vez infringidas, produzirão determinados efeitos de sentido. São elas: 1) Categoria
de quantidade; 2) Categoria de qualidade; 3 ) Categoria de relação; 4) Categoria de modo. Estabelecidas as máximas
conversacionais, Grice (1982, p. 92) caracteriza com maior precisão as implicaturas conversacionais: “Se uma pessoa,
ao (por, quando) dizer (ou fazer como se tivesse dito) que p, implicitou que q, pode-se dizer que ela implicitou
conversacionalmente q desde que (1) pode-se presumir que ela esteja obedecendo às máximas conversacionais ou pelo
menos ao Princípio de Cooperação; (2) a suposição de que ela esteja consciente de que (ou pense que) q é necessária
para tornar o seu dizer p ou fazer como se dissesse p (ou fazê-lo NAQUELES termos) consistente com a presunção
acima; e (3) o falante pensa (e espera que o ouvinte pense que ele pensa) que faz parte da competência do ouvinte
deduzir, ou compreender intuitivamente, que a suposição mencionada em (2) é necessária”. A implicatura
conversacional deve ser inte rpretada pelo ouvinte mediante um cálculo, que levará em consideração: 1) o significado
convencional das palavras usadas, juntamente com a identidade de quaisquer referentes pertinentes; 2) o Princípio de
Cooperação e suas máximas; 3) o contexto, lingüístico ou extralingüístico, da enunciação; 4) outros itens de seu
conhecimento anterior (background); 5) o fato (ou fato suposto) de que todos os itens relevantes cobertos por (1)-(4)
são acessíveis a ambos os participantes, e ambos sabem ou s u põem que isto ocorra.
197
determinado grupo, legítimas, mas podem ser veiculadas im plicitamente, conforme os interesses
em jogo. O comportamento de Tonho sinaliza justament e essa ambigüidade: não querer se
encontrar com o negrão pode ser compreendido por Paco como ato de covardia, impróprio a um
“homem que se preze”. Por isso nega que tenha medo. Mas sua reação expressa que ele não está
tão convicto disso, o que se revelará no desenrolar da ação dramática. Tonho não queria ser alvo
da galhofa de seu companheiro. A coragem como valor próprio do homem é tema subentendido
na fala de Paco, quando diz “Homem macho não tem medo de ho mem”. Saliente-se o
qualificativo “macho”: não basta ser homem para se valorizar, é preciso ser homem “macho”, ou
seja, sem medo, disposto a lutar pela honra masculina. A interação no s leva a duas conclusõ es
possíveis: pertencentes a uma estrutura social que mantém a hegemonia do homem, como
sujeito superior com relação à mulher, as personag ens se inserem numa formação discursiva que
rechaça a possibilidade de o homem adm itir que tem medo; daí por que Tonho diz, “ sem
convicção”, que não tinha medo. A segunda conclusão diz respeito à construção de uma
identidade mediante o discurso masculino. Com sua fala, Paco revela o sistema de crenças a que
pertence. Dizer que “homem macho não tem medo de homem” preenche os esquemas que
organizam as ideologias masculinas, ta is como foram discutidos por Van Dijk (2003): mostra
que o sujeito pertence ao grupo masculino (critério de pertinência), que não tem medo, q ue
precisa demonstrar valentia (normas e valores).
Essa s duas conclusões ficam ainda mais evidentes, quando, sem saber se iria de fato
“encarar” o “negrão”, Tonho ouve de Paco o seguinte co mentário: “Poxa , ele disse que você é
fresco. Vai lá e briga. Ele é que quer”. “Fresco”, gíria usada para identificar o sujeito de
sexualidade homo-orientada, como já foi referido, marca o espaço da alteridade, no qual não se
inserem o s que pert encem ao grupo dos “hom ens”, ou s eja, os que têm um a sexua lida de hetero -
orientada, por isso digno de privilégios e de poder em nossa sociedade falocêntrica. Como se r
chamado de “fresco”, n esse contexto, co nstitui um insul to inaceitável, a única sol ução para o
homem é partir para a desforra, por meio da agressão física, para demonstrar valentia e atitude
demacho, norma que parece ser prescrita ao sujeito do sexo masculino, mais evidentemente
aos das classes populares, pelas razões a que já nos referimos.
Enquanto Paco assume o ethos guerreiro, ca racterizado pela ag ressividade e bravura do
homem, Tonho revela-se comedido. Agressividade e comedimento, na visão de Oliveira (2004),
reportam aos valores ressaltados pela sociedade burguesa em ascensão: de um lado, o guerreiro;
do outro, o homem co medido, sereno, protótipo do pai d e família. No caso de Dois Perdidos
numa Noite Suja, essa s duas representações são verossím eis se levarmos em conta o cará ter das
personagens. Tonho se sente diferente de Paco, e na verdad e o é, pelo fato de ter passado pela
198
educação escolar, como informa sua fala, inserida no primeiro quadro: “Quem pen sa que eu sou?
Um estúpido da sua laia? Eu estudei. Estou aqui por pouco tempo. Logo arranjo um serviço
legal” (M
ARCOS, 2003, p. 73). Por ter estudo , Tonho sente-se diferente do colega de quarto, que
não concluiu nem a alfabetização. A fala de To nho insinua que o sujeito estuda do é distinto e
merecedor de respeito. Instaura-se nessa fala o p oder de uma personagem sobre a outra. O
poder que Tonho exerce sobre o amigo advém, pois, do discurso que preza a formação escolar do
sujeito como um status privilegiado. A ideologia de um grup o intelectual exerc e um poder muito
forte na sociedade (cf. G
RAMSCI, 1991), de tal forma que as pessoas que não passara m pelo
estudo formal se sentem inferiorizadas. O comedimento parece ser requisito de quem passou
pela formação escolar; o não-comedimento, de quem é inculto. Por isso, em
(15), Tonho reclama
que o colega só pensava em brigar, atitude indigna de um homem “estudado”.
Paco, reagindo ao comentário crítico do companheiro, tenta argumentar da seguinte
maneira:Eu, não. Mas se um cara começa a dizer pra todo mundo que eu sou fresco e os
cambaus, eu ferro o miserável. Comigo é assim. Pode ser quem for; folgou, dou pau. (Pausa.)
Como é? Você vai fazer como eu, ou vai dar pra trás?”. Como se observa, a personagem procura
se justificar, ressaltando os valores que, para ela, são p róprios do homem “macho”, valores que,
pelo visto, são também salvaguardados pelo imaginário b u rg uês da ma s cul in i dad e . Va le de sta ca r
a seleção vocabular na fala da personagem: “fresco”, “ferro”, “pau”, “dar pra trás”. Verificamos,
mediante o uso do léxico, a instauração de dois paradigmas distintos: o que representa valores
de “macho”, na visão da personagem — “f erro” e “pau” — , e o que identifica o outro do
masculino — “fresco” e “dar pra trás”. Constituem duas formações discursivas que se opõem no
contexto ideológico de nossa cultura. Curioso é que a expressão para o primeiro paradigma
refere símbolos fálicos. “Dar para trás” é uma expressã o que significa retroceder, fugir do
desafio, o que não é bem visto quando se tra ta de um “macho”. Acrescente-se q ue o sintagma
verbal mantém com os símbolos fálicos do primeiro paradigma uma relação dialética: dar para
trás constitui um comportamento passivo, que permite a o desafiante vencer pelo poder da força
(pelo Falo, na perspectiva freudo-lacaniana) ao mesmo tempo que conota a submissão do
desafiado. Aquele que “dá pra trás” é associado, portanto, ao “fresco”. Paco se localiza no grupo
dos “machos”, quando diz: “Você vai fazer como eu, ou vai da r pra trás”. Ao mesmo tempo,
indica, pelo operador disjuntivo, a escolha entre duas alternativas: ou Tonho resolve fazer como
ele (agir como “homem”) ou “vai dar pra trás” (agir como “fresco”). Pela interação entre as
personagens, vê-se, portanto, duas concepções distintas sobre o que vem a ser homem.
O comportamento distinto de ambas é flagrante num momento subseqüente ao diálogo,
como podemos conferir na passagem a seguir:
199
(16)
P
ACO — Poxa, ele anda d izendo que você é fresco. Deixa barato, vai deixando.
Um dia a turma começa a passar a mão no teu rabo, daí vai querer gritar, mas já
é tarde, ninguém mais respeita.
(Pausa.)
T
ONHO — Eu não poss o brigar com o n egrão! Será que você não se manca? O
negrão é um cara sem eira nem beira, não tem onde cair morto. Para ele tanto
faz, como tanto fez. Não conta com o azar, entendeu? (M
ARCOS, 2003, p. 80)
Ser c hamado de “fresco” fa z com que o homem est eja em des vanta gem com relaçã o aos
que se inserem no grupo dos “machos”, o que o to rna alvo de pilhéria entre os membros do
grupo. Paco adverte o companheiro do perigo que corre se não reagir. Tonho, por sua vez, como
se considera um homem educado, não quer se envolver com uma pessoa que julga inculta. Para
ele, os estudos lhe garantiriam uma chance na vida. Se agisse dif erentemente do que se espera de
um homem educado, ele poderia perder muitas oportunidades, ao passo que o “negrão”, “sem
eira nem beira”, não teria o que perder, pois as oportunidades de sucesso estão vedada s a esse
tipo de gente. A expressão “sem eira nem beira” nos reporta a uma realidade histórica que nos
auxiliará a compreender melhor o sistema de valores da personagem Tonho . Remonta à
arquitetura das casas brasileiras do período imperial, em que a “beira”, ou seja, a aba do telhado,
indicava um acabamento sofisticado, inferindo-se daí que se tratava de propriedades
pertencentes às pessoas ricas. Considerando que Tonho, do ponto de vista econômico, está no
mesmo nível que o negrão (ambos são carregadores do mercado), sem lugar para habitar senão
um quarto de pensão de quinta categ oria que divide com um co mpanhe iro, o que o faz se sentir
diferente do “negrão”? A noção de propriedade que subjaz na expressão “sem eira nem beira”
alcança um estatuto simbólico: o conhecimen to que a personagem julga ter const itui sua
“propriedade”, da qual se orgulha e o faz se sentir diferente dos companheiros, razão por que não
se sente à vontade para brigar co m um sujeito “inferior”, sem perspectiva de vida. Tonho não
quer brigar; ele pretende mostrar aos outros o qu e a sociedade tanto prestigia: a imagem de um
homem educado e comedido, respeitador do s princípios familiares e sociais, de maneira geral.
Os dois co mportamentos revelam uma int erincompreensão entre os discursos das duas
personagens, pois o que uma acredita ser valor do “macho ” não é exatamente o mesmo que a
outra acredita. Ou seja, o que representa comedimento e cordialidade para um é interpretado
200
pelo outro como sinal de fraqueza, coisa de “fresco”. Em contra partida, o valor da briga para
Paco é interpretado por Tonho como signo de bestialidade, próprio de quem é “inculto”. Verifica-
se que, numa mesma ideologia masculina, há duas formações discursivas que se encontram em
situação polêmica. Não resta dúvida, po rtanto, que, a despei to da p olêmi ca, cons titue m
discursos que implicam comportamentos não-excludentes de uma prática da masculinidade
conforme as normas da sociedade burguesa moderna. A tensão se justifica, conforme Mosse
(1996), porque a sociedade burguesa, em sua constituição, precisava manter a força guerreira
para defender os interesses de uma classe em ascensão (citemos, apenas a título de exemplo, o
comportamento guerr eiro de Napoleão no se u projeto expansioni sta), mas, ao mesmo tempo,
carecia de ostentar um tipo de comportamento que herdou da aristocracia: uma finesse e um
comedimento próprios de quem é moderno e civilizado.
Um exemplo de co mo Tonho está preso a valores cultivados pela burgue sia:
(17)
P
ACO — Quem tem papai é bicha.
T
ONHO — Você não tem pai, por acaso?
P
ACO Claro q ue eu tive um pai. Não sou fi lho de chocadeira. Só que não sei
quem é. Pai pode ser qualquer um. Mã e é que a gente sabe quem é.
T
ONHO — Eu sei q uem é meu pai.
P
ACO — Quem é te u pai?
T
ONHO — Qu em você queria que fosse? Meu pai é meu pai.
P
ACO — Sei lá se é. Sua v elha pode trepar com qualquer um.
T
ONHO — Olha lá, miserável. Minha mãe é uma santa, e eu não admito que você
fale mal d ela .
P
ACO — Guarda seus gritos pro negrã o.
T
ONHO — Não vou enfrentar negrão nenhum.
P
ACO — Então volta pro rabo da saia da tua mãe. (MARCOS, 2003, p. 80-81)
Neste diálogo, encontr amos o tema “família”, tão caro aos ideólogos burgueses. Cada
personagem parece ter uma concepção pa rticular de família. Paco, abandonado pelo pai e órfão
de mãe, um a prostituta, é criado p or uma cafetina e depois pelo reformatório. Tonho, por sua
vez, foi criado pela sua própria família: tem pai e mãe, por quem nutre grande respeito. Do ponto
de vista dos valores burgueses, Tonho é o que mais se aproxima do ideal de masculinidade, pela
valorização da estrutura f a miliar patriarcal. Como visto a ntes, no capítulo sobre a masculinidade ,
201
seria a educação familiar, conforme valores modernos, responsável pela felicidade e sucesso de
seus membros. É ainda nisso que acredita, de maneira geral, a esfera popular de nossa
sociedade. É, portanto, nisso que Tonho deposita sua fé. A figura da mãe no seio familiar é
revestida de um caráter de santidade, o que nos permite flagrar o discurso religioso que
atravessa o discurso burguês sobre a fa mília. Quando Paco considera que a mãe de Tonho pode
ter “trepado” com qualquer um, o companheiro interpreta isso como insulto, e ameaça Paco.
Tanto o homem quanto a mulher teriam, em tese, disposição biológica para manter relação
sexual com qualquer um, ma s, numa sociedade burguesa, sobretudo a nossa, profunda mente
marcada pelo discurso religioso, a mulher-mã e deve ter o comportamento irretocável de uma
santa, cujos maiores valores são a pureza e, sobretudo, a contenção da libido. Nã o é por acaso
que Tonho considera sua mãe uma sa nta, com comportamento semelhante ao da Virgem Mar ia.
Paco desvaloriza a família, possivelmente porque nunca tivera uma de f ato. E expressa o
desprezo por meio da agressividade: “Quem tem papai é bicha”. A personagem ridiculariza o
termo afetuoso “papai” e assoc ia-o ao universo nã o-masculino, nesse caso, ao universo gay. O
insulto ao compa nheiro se estende à última fa la de
(17): “Então volta pro rab o da saia da tua
mãe”. Não enfrentar o “negrão”, ou seja, não aceitar a briga, é sinal, como já afirma mos, de
covardia, de submissão, logo de comportamentos não condizentes com a idéia do h omem viril.
Daí por que Tonho deveria voltar “pro rabo da saia da mãe”, ou seja, abandonar o projeto de ser
homem viril, forte, bravo e destemido, para viver protegido pela mãe, como um “f resco”.
Percebe-se que a agressão ao companheiro sempre redunda num único insulto: pôr em dúvida a
masculinidade do outro. Há uma obsessão da personagem em repetir que o colega não é
“homem”, sobretudo depois que to ma conhecimento, no terceiro quadro, que Tonho repartira o
dinheiro da c arg a de pe ixe c om o “neg rã o”, como uma forma de acalmar os ânimos do adversário
e resolver toda a contenda de forma amigável. Pa co interpreta a atitude do companheiro como a
de uma prostituta que paga metade de s ua renda ao cafetão:
(18)
P
ACO — Muito bonito pra sua cara. O sujeito te cafetina, você ainda paga bebida
pra ele. Você é um otário. Deu a grana do peixe pro negrão. Quem trabalha pra
homem é relógio de ponto ou bicha. Depois que voc ê se arrancou, ele tirou um
bom sarro às tuas custas. Todo mundo mijo u de rir.
[...]
T
ONHO — Só dei metade. Foi pra evitar briga. Eu estudei, não preciso me meter
em encrenca.
202
[...]
P
ACO — Só que todo dia ele vai te dar uma prensa.
T
ONHO — Não sei por quê.
P
ACO — Porq ue você é um trouxa. Ele disse que não pega mais no pesado É só
ver você num caminhão, ele chega como quem não quer nada e diz que er a
carreto dele. Daí, te achaca. Se você achar ruim, te sapeca o braço e leva toda a
grana. Se você ficar bonzinho, é tudo meio a meio. (Pausa.) O negrão é um
suje ito de s orte. Arranj ou uma m ina. O ap elido d ele fi cou “Negr ão Ca fifa”. B ota
as negas dele pra se virar, enquanto el e fica no bem-bom enchendo a cara d e
cachaça. (Pausa.) Você está frito e mal pago. Otário só entra bem.
[...]
P
ACO — Quem mandou você afinar? Agora é dureza fazer a moçada pensar que
você é de alguma coisa. Seu apelido lá no mercado agora é “Boneca do Negrão”.
T
ONHO — Boneca do Negrão é a mãe!
P
ACO(Avançando.) A mãe d e quem?
T
ONHO — Sei lá! A mãe de q uem falou.
P
ACO — Veja lá, Boneca do Negrão! Não folga comigo, não. Já tenho bronca sua
porque inveja o meu sapato. Se me enche o saco, te dou umas porradas. Depois,
não adianta contar pro teu macho, que eu não tenho medo de neg rão nenhum.
(M
ARCOS, 2003, p. 83-86)
Valendo- se da a ção do coleg a, considerada covarde e ind igna de “mac ho”, Paco dirige a
Tonho uma série de ag ressões desbragadamente vulgares, q ue se estendem até perto do f inal da
peça. É certo que o discurso de Paco dialoga com os mesmos valores c ompartilhados por muitos
homens de sua classe social. Por sua fala, inferimos que muitos dos trabalhado res do mercado
compartilham da mesma crença da personagem: “Depois qu e você se a rrancou, ele tirou um bom
sarro às tuas custas. Todo mundo mijou de rir
” (grifo nosso). Logo, tanto o “negrão” quanto os
outros trabalhadores acreditam ser “fresco” o homem que, p ara evitar briga, oferece dinheiro a
outro: “Quem mandou você afinar? Ag ora é dureza fazer a moçada pensar que você é de alguma
coisa. Seu apelido lá no mercado agora é ‘Boneca do Negrão’”. O termo “boneca” é usado
também, como já observamos, com o gíria para “homossexual”. “Boneca do Negrão” indica, nesse
contexto, que o “homossexual”, no c aso Tonho, sustenta financeiramente o “negrão”. Saliente-se
o tom desmoralizante que a expressão encerra num universo hegemonicamente masculino.
Estamos co nsiderando o discurso, de acordo c om a perspectiva de Fairclough, como uma
prática social, que constitui e constrói o mundo em significados. Nesse sentido, analisemos o
203
discurso masculino no contexto da peça pliniana. Salta-nos à vista uma contradição que merece
uma análise mais detida. Tomando como foco o sintagma “boneca do negrão”, verificamos que,
para o grupo de homens do qual Tonho e Paco fazem parte, o que se dispõe a oferecer dinheiro a
outro homem, sem nenhuma razão aparente, é considerado “fresco”. Uma vez que o termo
“boneca de” é falado por todos os membros daquele grupo, supõe-se que se trata de uma prática
de relação comum e aceitável, pelo m enos para quem “possui” a “propriedade”. Para quem é
“possuído”, no entanto, o termo significa ultraje, vergonha, motivo d e pilhéria. Ora, a ideologia
masculina, na tentativa de dema rcar o espa ço do Nós e rechaçar o Outro, não admitiria, em
princípio, relaçõ es amistosas entre o Nós e o Outro, ou seja, entre o “homem” e o “homossexual”,
por exemplo, sob o risco de comprometer a esta bilidade do grupo. Como podemos, então,
dilucidar a aparente co ntradição, existente na peça, entre o que reza o discurso burguês sobre o
homem e o comportamento dos que adotam os valores desse discurso? Comecemos pela seguinte
consideração: pa ra manter a estabilidade do sis tema de crenças, o grupo masculino precisa estar
atento às tensões internas a esse mesmo sistema. Ostentar valores masculinos e eleger um
“inimigo” representante da anti-norma é uma atitude necessária para garantir a unidade do
grupo de “homens”, que ainda goza de um prestígio social muito grande em no sso meio. O não-
eu, no entanto, deixa de representar um risco aos q ue se vêem inseridos no grupo masculino, que
se mantêm convictos de suas crenças sobre ser ou não ser homem na sociedade moderna,
quando oferece vantagens ao “macho”, assumindo o papel atribuído, pel a cultura, à mulher — o
de proporcionar prazer ao homem.
Vamos por parte. Nessa ideologia masculina, o “homem” jamais poderá oferecer prazer a
outro que pertença ao mesmo grupo. Se o sujeito não é considerado “homem”, não será aceito no
grupo masculino. Toda via, se ele assume explicitament e sua condição de outro, por meio de
comportamentos tido s como femininos , poderá ser tolerado pelos c ompanheiros “homens”.
Além disso, há uma incidência grande, sobretudo na esfera popular de nossa sociedade,
representada realisticamente no texto de Plínio Marcos, de os “homens” assumirem relação com
um “veado”, mas sem abdicar das p rerrogativas do verdadeiro “ma cho”. Para manter o status de
homem viril, esse sujeito deverá assumir uma postura ativa na relação, tal como o faz com uma
mulher. Diante de seus companheiros, ostentará as vantagens que o não-homem oferece
(dinheiro, conforto, segura nça), a fim de demo nstrar que a relação se dá apenas por interesses
financeiros. Daí por que, no caso da peça, todos receberem favoravelmente o co mportamento do
Negrão ao aceitar que uma “boneca” o sustentasse. Pa co chega a admitir, de forma sarcástica,
que o “negrão” é “um s ujeito de sorte” e “está bem servido” . Esse tipo de comportamento vai de
encontro ao discurso masculino mo derno, apesar de não constituir, para a lógica do grupo de
204
que fazem parte as personagens da peça, uma contradição de fato. Essa lógica parece esta r
apoiada num esquema segundo o qual as relações se resumem ao par homem/mulher. O sujeito
que assume o pa radigma feminino, comporta-se como uma “f êmea” e não oferece ne nhum risco
à virilidade do “homem macho” será concebido como mulher, com quem o “homem” se sentirá à
vontade para esta belecer co ntatos mais íntimos.
Vale aqui fazer nova menção ao estudo de Green (2000), especificamente quando analisa
a socialização dos homossexuais brasileiros nos anos de 1945 a 1968. Para o autor, é
característico da sociedade brasileira estabelecer fronteiras tão nítidas entre homens ativos e
passivos. A sexualidade, vista sob o ângulo da penetra ção, é exerc ida por quem age (penetra nte)
e por quem recebe (penetrado). Arriscamos afirmar que nossa história de colonização contribuiu
decisivamente para o estabelecimento dessa mentalidade dualista a respeito do sexo. Os homens
tiveram de demonstrar força para “domar” a terra colonizada; as mulheres, por sua vez, ficavam
cuidando do lar e da prole. Esses doi s paradigmas comporta mentais serviram de modelo para se
estabelecer o que é masculino e o que é feminino. A assimilação da ideologia burguesa no século
XIX veio a reforçar essa divisão, a fim de se poder alcançar, mediante estrutura familiar
(homem, mulher e filhos) um maior controle dos meios de produção e do acúmulo do capital.
No contexto do Brasil pó s-Segunda Guerra Mundial, a socialização homossexual
reproduzia os valores pautados na divisão entr e homens “ativos” e “passivos”. Green (2000, p.
301) identifica que já nessa época, de uma forma geral, “a construção boneca/bofe predominava
entre homens das classes pobres e operárias”. Pela representação socialmente dominante nesse
contexto, o “bofe” sintetizava a essência da masculinidade, ao passo que a “boneca”, a essência
da feminilid ade. Ressalte-se, a qui, o estabelec imento de uma fo rmação discurs iva, que orga niza
o discurso sobre o homem a partir da dualidade ativo-passivo. Os “bofes”, também chamados
pelas “bonecas” de “homens verdadeiros”, dividiam o espaço com os “homossexuais”, embora se
identificassem, em última instância, com a vida “heterossexual”. Muitos deles tinham
namoradas, com as quais pouco mantinham relações sexuais, haja vista os códigos morais
pequeno-burgueses, segundo os quais as mulheres deveriam se ma nter “virgens” até o
casamento. Segundo pesquisa realizada pelo brasilianista, esses “bofes” muitas vezes saíam da
casm dPTw[(na)7eee
205
chegassem ao conhecimento do público. Embora seu papel sexual como
penetradores assegurasse sua masculinidade e os tornasse o objeto de desejo
dos bichas, eles tentavam confinar suas aventuras aos seus círculos sociais
restritos.
No contexto específico da classe popular, a pobreza, o desemprego e a falta de
oportunidades numa sociedade estratificada faziam, ainda segundo Green (2000), os “homens
verdadeiros” se aventura rem com “homossexuais” por troca de favores. Freqüentemente esses
favores eram oferecidos pelas “tias”, designação dada aos homossexuais mais velhos que
pertenciam à classe média ou alta e que tinham alguma segurança financeira para sustentar um
homem ma is jovem e m troca de s exo. “Os b ichas mais jovens e bo necas que busca vam bofes ou
rapazes podiam eventualmente pagar-lhes alguma bebida, emprestar-lhe uma pequena soma, ou
hospedá-los durante alguns dias, mas geralmente não tinham recursos financeiros para
sustentar um bofe em troca de serviços sexuais” (G
REEN, 20 00, p. 304 ).
É certo que o estabelecimento de rígidos papéis na relação entre dois homens é de ordem
discursiva e, por extensão, cultural, de característica predominantemente falocêntrica,
responsável pela produção, reprodução e cir culação da ideologia masculina: a divisão dos
sujeitos entre “ativos” o u “passivos”. Se deslocarmos esse tipo de relação do contexto em que se
insere e analisarmos o fenômeno erótico per se, constataremos que há uma prática homoerótica,
tal como sustenta Costa (2002). No entanto, porque nosso contexto so cial ainda é refratário a
esse tipo de prática, o “homem verdadeiro” que se envolve com um “bicha ”, sobretudo em alguns
agrupamentos ma sculinos, só será admitido no seu próprio grupo se ostentar as vantagens dessa
relação aos seus colegas e amigos.
Uma contra dição, no entanto, nos pa rece flagrante: se o discurso hegemônico que
sustenta a relação entre os “homoss exuais” e “heterossexuais” se b aseia na divisão pa dronizada
entre o “ativo” e o “passivo”, estaria sendo a “bicha pagante” um sujeito ativo, não ob stante as
expectativas. Desafiada a conquistar esses “homens sexualmente quentes” (G
REEN, 2000, p.
278), a “boneca” paga va-lhes alguns drinques, p rocurando conduzi-lo s ao sexo, comporta mento
que, na sociedade burg uesa, representaria o papel do “homem” “heterossexual”. O “h omem
verdadeiro” representa, desse modo, o papel do conquistado passivo (atitude típica, em nossa
cultura, das mulheres), ap enas relutantemente concordando em fazer sexo com um “ veado”.
Essa inversão dos “papéis” é um dos fatores que põem em cheque a divisão simplista entre
passivos e ativos.
206
Em Dois Perdidos Numa Noite Suja, tal sistema de referência fica ainda mais
evidenciado quando, no quarto quadro, Paco volta do trabalho. Ao se deparar com Tonho, que
não tivera ido naquele dia ao serviço, deitado na cama, relata-lhe o que acontecera no mercado:
“Todo mundo tirou sarro. Falavam: Poxa, negrã o, cadê a Boneca? Secou? A mina te passou pra
trás? O negrão não dizia nada, mas se via que ele estava uma vara”. Tonho, que de modo algum
se assumia como “homossexual”, muito pelo contrário, começa a ser tratado pelos companheiros
como “mina”, gíria popular referente à mulher. Vê-se que o estigma de “mina” ou “boneca” se
deve ao fato, como diss emos, de Ton ho, a fim de evitar briga , ter dividido seu ordena do com o ta l
negrão.
As motivações psicológic as de Paco ao agredir o amigo, chamando-o de “fresco”, “mina”,
“boneca, “bicha”, não estão suficientemente claras. Podemos levantar como hipótese de
interpretação que, de forma nã o-consciente, a personagem nutre por Tonho uma afeição, que
pode ser de ordem sexual ou simplesmente de companheirismo. Vejamos alguns arg umentos
que sirvam de base para essa interpretação. Prado (1987), crítico teatral de O Estado de S. Paulo
até 1968, escreveu, em 1967, uma resenha crítica a partir do espetáculo de Benjamim Cattan,
Dois Perdidos numa Noite Suja. Como era muit o próprio do seu método crítico, Prado reserva
boa parte do seu texto à análise da peça do dramaturg o santista. Segundo o crítico,
em Dois Perdidos numa Noite Suja, Plínio Marcos explora um filão típico do
teatro moderno, a partir de Esperando Godot: dois farrapos humanos ligad os
por uma relação complexa, de companheirismo e in imizade, de ódio vis ível e,
também, quem sabe, de afeição subterrânea. Juntos, não chegam a constituir
um par de amigos. Mas, separados, mergulhariam na solidão, o que seria ainda
pior. (P
RADO, 1987, p. 152) (grifo nosso)
O termo companheirismo — derivado de companheiro, vocábulo usado pelo próprio drama turgo
e por nós, ao lo ngo dessa análise — denota um convívio cordial, a fetuoso, interpretação que
Prado faz da relação de Tonho e Paco. Serem companheiros de quarto não implica,
necessariamente, que haja uma relação cordial e afetuosa entre eles; no entanto, tem razão
Prado quando diz que as duas personagens estão ligadas por uma relação complexa de
“companheirismo e inimizade”. A informação grifada no trecho mostra que, por trás do ó dio
visível, pode-se esconder uma afeição, sobretudo, diríamos, da parte de Paco. Vale repetir que o
tipo de afeição poderá ser de qualquer ordem. O que é importante salientar é a existência de um
207
sentimento homoafetivo, sentimento que, de acordo com a ideologia masculina hegemônica,
deve ser sustentado com muitas reservas, para nã o colocar em risco a virilidade dos parceiros. É
provável que Paco estivesse expressando o ódio a Tonho porque o colega representaria sua
própria “desgraça”. Ou seja, o possível sentimento afetuoso que Paco nutria ,
“subterraneamente”, por Tonho constituiria, para o primeiro , a perda da id entidade masculina ,
uma vez que o “homem” jamais deveria alimentar qualquer tipo de afeto com relação ao outro.
Em dois momentos, quando Tonho se refere ao companheiro comoamigo, Paco reage
violen tam ente:
PACO — Quem tem amigo é puta de zona. (MAR COS, 2003, p.75)
P
ACO — Amigo o cacete! Eu não sou amigo de homem. (MARCOS, 2003, p.107)
Por essas falas, fica claro que Pa co não poderia nutrir pelo companheiro nenhum tipo de af eto.
No entanto, não é isso o que demonstra a personagem quando, no último ato, Tonho recolhe
suas coisas e o produto do assalto, um par de sapatos masculinos, e diz que vai embora:
(19)
P
ACO — Pensa que vai embora?
T
ONHO Pen so, não. V ou.
P
ACO — Você não pode ir.
T
ONHO —Quem falou?
P
ACO — Eu.
T
ONHO — Bela merda
P
ACO — Pois é, mas você não vai se mandar.
T
ONHO — E por que não?
P
ACO — Porque nós temos que ficar juntos.
T
ONHO — Você é besta. Não te agüento nem mais um minuto.
P
ACO — Mas vai ter que ag üentar. Onde vai um, vai o outro.
T
ONHO — Não me faça rir. Só de olhar pro teu focinho, me dá vontade de
vomitar.
[...]
P
ACO — Pronto. (Pausa.) Você vai se mandar já?
T
ONHO — Agora mesmo.
208
PACO — Dorme aí hoje. Já pagou o quarto mesmo.
T
ONHO — N ão q uer o nem sa ber. Vou já.
P
ACO — Poxa, mas você não tem lugar p ra ficar.
T
ONHO — Me viro.
P
ACO — Pra onde v ocê está querendo ir?
T
ONHO — Não é da sua conta.
P
ACO — Eu sei que não é, mas você podia dizer.
T
ONHO — Pra quê?
P
ACO Pra mim ir lá de vez em quando bater um papinho com vo. (MARCOS,
2003, p. 122-124)
Paco não quer permitir que o compa nheiro vá embora, dizendo-lhe: “Porque nós temo s que ficar
juntos”. A necessidade que sente da co mpanhia de Tonho é inferida pelo mo dalizador “temos
que”, indica ndo o grau de imperatividade a tribuído ao co nteúdo proposicional: “ficar juntos”.
Paco tenta justificar-se, colocando em dúvida a lealdade do comparsa: Tonho poderia entregá-lo
à polícia. Como Tonho o tranqüiliza e tenta encerrar o assunto, Paco vol ta a insistir para o
companheiro ficar: “Dorme aí hoje. Já pagou o quarto mes mo”. Convite recusado por Tonho,
Paco alega que eles não podem se separar, perguntando repetidamente aonde Tonho iria. “Pra
mim ir lá de vez em quando bater um papinho com você” demonstra o quanto a presença do
outro é necessária.
Por um viés psicanalítico, Costa (1992, p. 82) analisa o homoerotismo, a partir dos
trabalhos clínicos de Stoll er. Segundo este autor, “do p onto de vista da intensidade da a tração, o
homoerotismo variava desde um forte apelo por relações físicas até um mitigado desejo de
companheirismo erotizado, batizado de amizade”. Se compararmos os resultados desse estudo
psicanalítico com a dinâmica dos a fetos em Dois Perdidos numa Noite Suja, pod emos constatar
que não há nenhum apelo forte por relações físicas, senão pela necessidade que ambos têm de
estarem se agredindo fisicamente. Mesmo em se tratando de violência explícita, é um tipo de
comportamento movido pelo pathos, no sentido em qu e Aristóteles (1987b) emprest a à palavra:
paixões, em sua acepção ma is geral. O ódio, pelos mo vimentos do desejo psíquico, é a contra-
face do que concebemo s como amor , sendo os do is impulsos enquadrad os, conceitualmente, na
categoria das paixões. Dessa forma, o contato dos corpos, s eja no impulso sexual (de vida), seja
num agressivo (instinto de morte), é atra vessado pelo desejo. Paco e Tonho se agride m
violentamente, mas o primeiro não admite a idéia de ser abandona do pelo companh eiro. Um não
tinha amizade pelo outro, ou pelo menos não reconheciam isso, não obstante os dois apelarem,
209
em alguns momentos de tensão dramática, para o fato de serem amigos. Mas o que nos chama a
atenção nas pesquisas de Stoller é identificar “um mitiga do desejo de com panheirismo
erotizado” — entre homens, vale salientar — como um sintoma da homoerótica. No caso
específico da peça plinia na, as duas personagens alimentam um desejo de companheirismo,
sentimento compreensível sobretudo se co nsiderarmos que se tr ata de um instinto de
sobrevivência dessa gente num co ntexto absoluta mente hostil e adverso do submundo. Desejo
que se revela menos discreto em Pa co, quando, no final da peça, nos deparamos com o
comportamento da personagem, c omo (19) deixa ver. O medo da solidão parece perturbá-lo.
Tonho é um sujeito que , malgrado as brigas travadas constantemente co m Paco, é tido por esse,
em última instância, como seu único companheiro . Esse sentiment o é, conforme pudemo s
verificar, atravessado pelo desejo e se torna erotizado, ainda que não seja esse o sentido que
ambas as personagens atribuam conscientemente aos seus próprios sentimentos. Achamos mais
coerente, juntamente com Stoller e Costa, qualifica r esse fenôme no não co mo uma sexualidade
homo-orientada (perspectiva que estigmatiza o sujeito como homossexual), mas como uma
erotização homo- orient ada, uma homoa fetivid ade, sa tisfação, indireta no caso, de um impulso
homoafetivo, sem que isso implique clas sificações estanq ues.
Qua ndo To nho vai p ôr os sa pat os roubad os pa ra ir emb ora, constata q ue são mu ito
pequenos para seus pés. Fica em silêncio e depois se instaura o seguinte diálogo:
(20)
P
ACO — Não vai se mandar?
T
ONHO — Com essa dr oga não dá.
(Paco estoura de rir. Começa a dançar e a cantar.) (M
ARCOS, 2003, p. 126)
O momento tenso pelo qual Paco estava passando, co m a constatação de que o companheiro iria
embora, é rompido quando Tonho declara que não poderia sair com aqueles sapatos pequenos. A
reação de Paco é sintomática: como informa a didascália, ele “estoura de rir” e “começa a dançar
e a cantar”, numa demo nstração de euforia digna de atenção, visto que, até momentos antes, ele
demonstrava pelo companheiro um “ódio visível”, para usar das palavras de Prado. Quando
dança e canta , Paco demonstra que não consegue conter a euforia. A interpreta ção que Prado faz
da relação de ambos é, de fato, muito justa: trata-se de uma relação complexa “de ódio vis ível e,
também, quem sabe, de afeição subterrânea”. Ao que no s interessa especificamente, val e
destacar que essa afeição subterrânea é de um homem com relação a outro homem.
210
Tonho, sem suportar mais as humilha ções pelas quais a vida e o companheiro o fazem
passar, saca do revólver e declara a Paco que vai matá-lo. Muito curiosa é a súplica de Paco e
muito irônica a resposta de Tonho:
(21)
P
ACO — Mas, p oxa, Tonho... Nós sempre fomos amigos...
T
ONHO — Quem tem amigo é puta de zon a. (MARCOS, 2003, p. 132)
Seja por apelo, seja por confissão sincera, Paco tenta persuadir o companheiro, dizendo que eles
sempre foram amigos. Tonho repr oduz o que Paco dissera antes: “Quem tem amigo é puta de
zona”. Na pe ça, a amiza de é ne gada , exp licit ament e, duas vez es por Paco , e a ter ceira vez, de
forma definitiva, por Tonho. A r elação entre um possível sentimento de amizade, traição e morte
envolve o drama nos seus últimos momentos. A amizade é negada duas vezes pela personagem
mais agressiva, que nutria, porém, afeição sub-reptícia pelo companheiro; e a derradeira vez por
Tonho, que confirma o fato de não s erem amigos. Ele mata o companheiro logo em seguida. O
sentido de traição está subjacente no apelo de Paco, pois quem não age como amigo é aquele por
quem Paco tomou como companheiro. A afetividade que esse nu tria intimamente por Tonho é
ferida pelo comportamento assassino do companheiro. Tonho estaria, sob a ótica da personagem
Paco, traindo-lhe o companheirismo. O culto a uma amizade leal é fa to presente nas relações
entre homens, isso desde a Gréc ia Antiga. O grande ato de traição no Novo Testamento, depois
de Judas, foi o de Pedro, ao nega r três vezes que conhecia o Cristo
97
. De acordo com a
interpretação dos apóstolos, Pedro traiu a amizade do Messias. À diferença da repudiada tra ição
de Judas, que vendeu Cr isto aos romanos, Pedro teria cometido um ato de fraqueza humana, não
um crime contra o filho de Deus, o que lhe teria rendido o perdão do Pai. Vê-se que a fidelidad e
de um homem com rela ção a out ro é, há mu ito, razão de honra. Em Dois Perdidos numa Noite
Suja, um trái a amizade do outro. No entanto, é uma interpretação que só faz sentid o se nos
colocarmos sob a perspectiva de Paco, a vítima. O que confere à personagem um certo grau de
complexidade são as motivações psicológicas nã o reveladas, mas pressupostas. Elas são
responsáveis por tornar o comportamento d e Paco surpreendente. S e a personagem tende, em
seu desenho geral, à categoria de tipo, as discretas filigranas que envol vem movimentos de
desejo — ressalte-se, aqui, desejo masculino — surpreendem o leitor crítico. E esse desejo foi
97
Cf. N’A Bíblia de Jerusalém (198 5) a parte referente ao Novo Testamento.
211
uma questão que a sociedade moderna procurou abafar. Como ele implica considerar as relações
masculinas sob o viés da erótica, melhor fora rechaçá- lo do código moral burguês. Amizade
entre homens é possível, mas, sobretudo em c ertas culturas, como a nossa , demonstrações de
afeto precisam ser bastante reguladas pelos diversos mecanismos de poder ideológico. Paco
sustenta um discurso masculino que faz eco a o estereótipo da ideologia burguesa moderna, ma s
que deixa entrever brechas num tip o de comportamento e de sentimento de certa forma
incompatíveis com esse mesmo discurso.
Quanto a Tonho, sem condições de se inserir na sociedade de consumo, humilhado e
marginalizado por isso, a única coisa que não lhe poderiam tirar era o orgulho de ser homem. A
todo momento, no ent anto, era agredido por Paco, que o insultava, chamando-o de “bicha”,
“fresco”, “mina”, “boneca”. Vendo sua última esperança se esvair — os sapatos roubados não
eram de seu número — e não suportando ma is as brincadeiras do co mpanheiro, reage da forma
mais violenta: o que antes era um h omem cord ia l, s ensa to e com edido se transforma num sujeit o
violento, bestial, perigoso. Essa última peripécia pode ser avaliada como inverossímil, uma vez
que a mudança da personagem foi muito súbita; mas podemos aceitá-la se considerarmos que a
angústia da personagem Tonho foi, ao longo do drama, crescendo e enfraquecendo-o, vedando-
lhe até a possibilidade de assumir-se homem, a ponto de chegar a atingir uma tensão máxima.
Isso fez com que a personagem fosse tomada pelo sentimento de ódio e, diante das brincadeiras
grosseiras do companheiro, resolve desforrar-se, matando-o. Ironicamente, é no momento final
da peça que Tonho assume as características do “macho” tanto reclamadas por Paco. Fica, no
fim, a conclusão de que a personagem perdeu tudo na vida, menos o direito de ser “homem”. A
masculinidade, motivo de honra, não foi, portanto, af etada.
Um último aspecto em que gostaríamos de nos det er const itui o valor ideoló gico e
discursivo da intertex tualidade presente nesta p eça de Plínio Marcos. Sobre o assunto, muitos
estudos foram realizados desde quando Bakhtin (1981) apresentou, de forma sistematizada, sua
teoria sobre o d ialogismo e a pol ifonia, e quan do Kristeva introduziu na academia fra ncesa os
estudos do teórico russ o, criando o termo intertextualidade, de forte inspiração bakhtiniana,
como proposta para o desenvolvimento de uma semiótica do romance. Não retomaremos essas
primeiras pesquisas nem discutiremos as diversas concepções de intertextualidade. Valemo-nos
da perspectiva de Flairclough (2001) sobre o tema, na medida em que pretendemos identificar as
relações entre a intertextualidade e a prática do poder. Para o autor, “o conceito de
intertextualidade ap onta para a p rodutividade dos textos, para como os textos podem
transformar textos anteriores e reestruturar as convenções existentes (gêneros discursivos) para
gerar novos textos” (F
AIRCLOUGH, 2001, p. 135). No entanto, esse processo de transformação não
212
está livre das injunções so ciais, uma vez que se encontra regulado pelas diversas formações e
ordens discursivas.
Assim como Fairclough (2001), concebemos a intertextualidade como um fenômeno que
diz respeito às estratégias lingüísticas de construção do discurso, mas que não se encontr a
expresso apenas na superfície lingüística
98
. Valendo-se dos termos intertextualidade manifesta e
intertextualidade constitutiva
99
, sendo a primeira manifesta explicitamen te no texto e a seg unda
relacionada à configuração das convenções discursivas que entram em sua p rodução, Fla irclough
passa a usar a palavra intertextualidade a penas para o primeiro caso; para o segundo caso, ele
adota o termo interdiscursividade. Apesar de coincidir em muitos aspectos com o conceito
cria do po r Ma ingu enea u (200 5), a con cepçã o d e intertextualidade em F lairc loug h é pa rtic ular ,
pois se restringe às convenções discursivas, ao passo que, em Maingueneau, este é apenas um
aspecto da interdiscursividade. Não problematizaremos o conceito aqui e dele fa remos uso
apenas a partir do que nos interessa. Analisemos dois el ementos inter discur sivos e m Dois
Perdidos numa Noite Suja.
Não é desconhecido o fato de ter Plínio Marcos se inspirado, para a escritura de sua peça,
num conto de Alberto Moravia (1907-1990), “O Terror d e Roma”, inserido na coletâ nia Contos
Romanos, de 19 54
100
. O próprio dramaturgo já admitiu isso em algumas de suas entrevistas. As
duas histórias são muito semelhantes, a despeito do a mbiente em que ocorrem: uma no Brasil,
outra na Itália. Frisemos que a peça pliniana (o intertexto), em sua forma dramática, se inspira
num texto anterior uma narra tiva. Apesar de ambos os textos se caracterizarem por contar
uma história, é relevante apontar as diferenças entre os dois gêneros. Prado (1992, 84), apesar
de não ser um teórico do romance, ma s um crítico do teatro, chama a atenção para um a specto
do fenômeno romanesco que pode ser útil na cara cterização do conto:
No romance, a personagem é um elemento entre vários outros, ainda que seja o
principal. Romances há que têm nome de cidades (Roma, de Zola) ou qu e
pretendem apan har um segmento da vida social de um país (E.U.A., de John
Dos Passos) ou mesmo de uma zona geograficamente delimitada (São Jorge de
Ilheus, de Jorge Amado), não querendo, ao menos em princípio, centralizar ou
restringir o seu interesse sobre os indivíduos. No teatro, ao contrário, as
98
Kristeva (19 74) acredita que o analista deverá esta r atento ao procedimento translingüístico de análise intertextual
quando se trata de alguns fenômenos, como o estudo do sistema de gêneros lit erários.
99
O autor utiliz a a te rmino logi a ado tada po r Auth ier- Rév uz (19 82). Para a au tora , cara cter izam- se os discur sos por
uma “heterogeneidade manifesta” e/ou por uma “heterogeneidade constitutiva”.
100
No Brasil, o livro foi reeditado, em 2002, pela Berlendis & Vertecchia Editores. Ver referência bibliográfica.
213
personagens constituem praticamente a totalidade d a obra: nada existe a não
ser através dela.
De fato, são muitas as semelhanças entre a narrativa romanesca e a dramática, mas a
centralização da persona gem no drama é muito mais imperi osa do que no texto romanesco. Em
Aristóteles (1987b), a diferença entre ambas as espécies a épica (de onde teria vindo a forma
romanesca) e a dramática está s obret udo no m odo d e imitar : a p oesia epop éica assume o
modo narrativo, em que o poeta usa a sua própria voz ou a dos outros; na tragédia e na comédia,
os homens imitados são apresentados operando e agindo eles mesmos. Se os fatos romanescos
são realizados por personagens e narrados por um enunciador, que pode ser tanto a própria
personagem quanto um outro locutor, ou mesmo um locutor indeterminado, no teatro a
presença física da personagem é co ndição sine qua non para que ha ja a próp ria ação dra mática
(lembremos que a origem etimológica do nome drama é aç ã o)
101
.
Considerando o conto como uma espécie particular derivada da forma romanesca ,
apresentemos aspectos da narrativa mora viana
102
. O narrador é o próprio protagonista, que
almeja obsessivamente possuir um novo par de sapatos. Dorme no sótão de um edifício, onde o
porteiro lhe aluga uma cama de campanha. Outra cama está sendo o cupada por Lorusso.
Nenhuma das duas personagens tinha emprego fixo: faziam um pouco de tudo e ganhavam
muito pouco. O narrador-protagonista (desconhecemos seu nome) tem a idéia de convidar
Lorusso para, juntos, re alizarem um assalto na Villa Borg hese, local freqüentado por casais de
namorados. Eles pouco tempo passam no sótão. Dois terços do conto são dedicados aos fato s
ocorridos na Villa Borghese. Eles assaltam um casal, roubam-lhe os pertences (incluindo os
sapatos do rapaz) e Lorusso termina espancando o sujeito assaltado. De volta ao sótão, frustrado
por não conseguir calçar os sapatos, pois eram muito pequenos para seus pés, o narrador-
protagonista tenta roubar o par de sapatos do comparsa enquanto este dormia. Flagra do por
101
Estamos considerando os dois gêneros como macroestruturas e, como tais, regulados por determinadas leis de
composição para se alcançar um efeito estético determinado. Não entraremos, por ora, nos casos limites, sobretudo
nos textos mais contemporâneos, em que todas essas noções por nós retoma das podem variar , não de ixando de gera r,
em conseqüência, uma remodelação do próprio gênero de onde são respectivamente originados. Discutiremos esse
aspecto por ocasião da análise do teatro de Newton Moreno.
102
Só a título de exemplo, citemos uma comparação, pouco ortodoxa, entre romance e conto, feita por Julio Cortazar
(1993, p. 151), um autor que, pelo seu ofício de escritor literário, é bastante auto rizado para afirmar o que se segue:
“Assinala-se, por exemplo, que o romance se desenvolve no papel, e, portanto, no tempo da leitura, sem outros limites
que o esgotamento da matéria romanceada; por sua vez, o conto parte da noção de limite, e, em primeiro lugar, de
limite físico (...). Nesse sentido, o romance e o conto se deixam comparar analogicamente com o cinem a e a fotografia,
na medida em que um filme é em princípio uma ‘ordem aberta’, romanesca, enquanto que uma fotografia bem
realizada pressupõe uma justa limitação prévia, imposta em parte pelo reduzido campo que a câmara abrange e pela
forma com que o fotógrafo utiliza esteticamente essa limitação.”
214
Lorusso, entram numa contenda, que os levará à delegacia, onde são reconhecidos como os
assaltantes do parque e, em seguida, presos.
Como se vê, o texto de Moravia distende as ações (considerando, claro, os limites do
conto), fazendo com que ela transcorra em diversos espaços, muitos dos quais descr itos
minuciosamente. As p ersonagens se movi mentam num co ntexto narrativo em que têm de se
relacionar com outros elementos , como o f o co narra tivo e o espaço, por exemplo.
Plínio Marcos, por sua vez, ao se valer da história de Mora via, concentra-se no conflito
entre as perso nage ns, extr aindo de sse conf lit o o pathos
215
Para Magaldi (1998, p. 215), Plínio Marcos não f icou somente preso à fonte mo raviana, mas se
valeu de sua rica experiência circense, na medida em que “Paco e Tonho revive m a dupla do
clown e Toni, na técnica de puxar as falas, impedindo que a tensão caia”.
Ou seja, para esses críticos, a peça de Plínio Marcos transcende o texto moraviano na
medida em que se fixa nas convençõ es do texto dramático , fazendo com que a história italiana
seja assimilada num novo sistema textual, mas reatuazilada. O que é valido, para o dramaturgo
santista, é explora r as tensões psicológicas entr e as suas personag ens.
Fazendo uso do sentido de que se vale Anatol Rosenfeld (1976, p. 45) ao empregar o
termo, podemos dizer que Dois Perdidos numa Noite Suja const itui um “teatro agress ivo”. Sua
agressividade mantêm-s e “dentro dos limites do pa lco, atacando o público de um modo indireto,
pelo palavrão, a obscenidade”
103
. Essa agressividade nos parece sintoma de crise, de convulsão
social. Se nada é feito por essa gente que persiste na luta pela s obrevi vência e é, na so ciedad e
idealment e estabelec ida, mantida no ano nimato, faz-se urgent e a g ir pela arte no caso de Plínio
Marcos liberando a “ira recalcada”, a violência. O diálogo é tenso e construído a partir de uma
variante lingüística não prestigiada: procura representar a fala do po vo, particularmente a dos
párias da sociedade. O uso de gírias e devulgarismos” desagradou a burguesia brasileira do
período da ditadura militar, mas foi um dos recursos drama túrgicos utilizados para representar
um tipo de ambiente que não pode ser vedado à arte
104
. Parece transparecer “a vonta de de,
através do choque, romper a moldura estética a fim de tocar a realidade” (R
OSENFELD, 1976, p.
53)
105
. Chamar a atenção para essa realidade do submundo constitui o maior projeto político de
Plínio Marcos através de sua dramaturgia.
103
O outro sentido de teatro agressivo empregado por Rosenfeld (1976) diz respeito às peças mais contemporâneas,
que levam a violência para além do palco, agredindo diretamente o público mediante ofensas e ultrajes. Como
exemplo desse tipo de teatro, temos a antológica montagem de Roda Viva, de 1968, c om dir eção de José Ce lso
Martinez Corrêa, que, segundo relatos, dedica o momento em que o “herói” morre para fazer com que as outras
personagens joguem fígado bovino na platéia, simulando um banquete antropofágico.
104
É importante mencionar o ambicioso livro de Marcos Bagno, Preconceito lingüístico: o que é, como se faz, que,
muito lucidamente, faz ver que o preconceito lingüístico é, antes de mais nada, um preconceito social. A variante não-
padrão da língua falada por gente da classe popular costuma ser, assim como essa gente, estigmatizada na sociedade.
Em Navalha na Carne, as gírias e os “vulgarismos” horrorizaram e continuam a horrorizar, hoje um pouco menos,
muitos leitores da peça, porque esses leitores têm horror ao que representa socialm ente a gente que fala dessa forma.
Basta verificar o valor negativo atribuído ao conceito de vulgarismo, que algumas gramáticas e manuais de estilística
ainda insistem em sustentar. O termo, derivado do nome latino vulgo (povo), compreende o uso lingüístico popular
em contraposição às doutrinas da norma culta. Como a norma culta é o padrão lingüístico de prestígio, o vulgarismo
torna-se algo que deve ser, se não eliminado, ao menos evitado. Reforçando a contigüidade entre o preconceito
lingüístico e o social, podemos considerar que a reação negativa costumeira do público de Navalha na Carne esconde
o desejo que muitas pessoas têm deeliminar ouevitar as pessoas que fazem uso desse tipo de variante,
merecedoras de repúdio e, por isso, de desprezo.
105
Tratando da linguagem usada na peça, Prado (1987, p. 152) confessa que “não poderíamos imaginá-la [a linguagem
suja da peça] abrandada porque nível mental e expressão acabam por se confundir. A gíria e o palavrão, em casos
como este, passam a ser a pr ópria forma de pensamento”. Apesar de se mostrar favorável a esse uso, Prado dispõe de
216
Essa agressividade estaria associada ao masculino. Dois Perdidos numa Noite Suja é uma
peça em que os valor es masc ulinos se enco ntram m uito p resente s no dis curs o de suas
personagens. É inegável a denúnc ia social que Plínio Marcos f az quanto à realidade deg radante
daqueles que não têm condiçõ es de se inserir na socieda de de mercado, ficando, portanto, à
margem do sistema sócio-político-econômico. Mas o drama íntimo vivido pelas duas
personagens é significativo, sobretudo no que se refere às relações complexas de af eto e ódio
vividas pelas duas figuras masculinas, que se digladiam constantemente, mas que estão ligadas
pelo instinto de companheirismo, pelo afã de evitar a solidão absoluta.
Caráter semelhante foi conferido à peça Navalha na carne. Muito se tem escrito sobr e
ela, tomando-se como foco as questões só cio-econômicas que o texto engendra. Não nos
ateremos a essas questões, senão no que poderão contribuir na análise dos valores masculinos
que estão presentes no discurso das personagens.
Realizaremos uma abo rdagem dos discursos masculinos nesta peça, sem perder de vista
que o discurso contribui, conforme Faircloug h (2001), para a construção de identidades sociais,
das relações sociais entre sujeitos e dos sistemas de conhecimento e de crença. Procederemos a
uma análise da interação das personagens e do discurso que pressupõe as relações de poder
nesta interação, co nsiderando, para tanto, o tr iângulo:
Vado
Neusa Sueli Veludo
Examinaremos as extremidades de cada lado desse tr iângulo, a saber, a relação entre Vado e
Neusa Sueli, primeiramente; em seguida, a inte ração entre Vado e Veludo; por f im, o diálogo
entre Neusa Sueli e Veludo.
um argumento que trái uma visão equivocada e contraditoriamente preconceituosa, quando associa livremente
expressão com nível mental. Sabe-se que uma das mais antigas concepções de linguagem é a que a concebe como
expressão do pensamento, fazendo supor que o pensamento é anterior à linguagem. Se a língua, por exemplo, não é a
norma culta padrão, sua expressão seria um sintoma de estreiteza do pensamento. Autores como Vygotsky (2000)
sustentam a tese, com a qual concordamos, de que pe nsamento e linguagem são dois fenômenos mutuamente
dependentes. Mas constitui preconceito pensar que a variante nã o-padrão é uma expressão limitada porque reflete a
ignorância do povo (em outras palavras, “o povo fala assim porque é ignorante”). Não obstante isso, e fazendo coro ao
apoio explícito de Prado à linguagem “suja” nas peças de Plínio Marcos, estamos convictos de que a língua usada em
Navalha na Carne, assim como em Dois Perdidos numa Noite Suja, reflete a experiência particular de quem vive no
submundo.
217
Va do e Neusa Sueli mantêm uma relação com algumas peculiaridades. Comecemos pela
natureza da parceria: Vado é um caf etão e Neusa Sueli, uma prostituta. O relacionamento de
ambos é mediado pela troca de favores. Neusa Sueli elegeu Vado como seu companheiro, mas,
para isso, precisa sustentá-lo financeiramente, dividindo com seu homem o dinheiro que, a cada
noite, receb e de seus clientes. Trata-se d e um contrato claro nesse tipo de ligação. A prostituta
que, pela necessidade de segurança no universo hostil e violento das noites de trabalho, recorre à
proteção de um rufião, mas sabe que terá de arcar com as despesas do companheiro.
Como em Dois Perdidos numa Noite Suja, a pe ça já se inicia num c lima de alta tensão.
edoa agri(de)6.4(fe)-5.7(i16.4(s)50.6(i)(ca)-6.1(a)-127(mente)6.4( )-5.6( eance)6.4(tao sc)-5.6(e)6.4gc)-7.1udente .
218
Do ponto de vista lexical, a peça oferece um material rico. Se tomarmos o léxico como foco da
análise crítica do discurso sobre o masculino, chegaremos a alguns resultado s reveladores. O
fragmento (22), só para citar um exemplo, está eivado de termos que marcam um discurso de
caráter eminentemente masculino. Ressalte-se que o espaço revelado pela peça é o dos
desvalidos, dos sujeitos miseráveis postos à margem da sociedade, o que contribuirá para
caracterizarmos o discurso masculino nesse tipo de classe de agentes.
Na sociedade androcêntrica moderna, como já o dissemos, o “homem” assume o papel de
chefe de família no relacionamento conjugal, o que implica que é dado ao sujeito masculino o
poder de, no “lar”, toma r a iniciativa de ordenar, estruturar a ordem fam iliar, prover o sustento e
determinar o destino dos entes a ele subordinado. Até meados do século XX, esse caráter do
funcionamento familiar, respaldado pela ideologia burguesa mo derna, era hegemônico e fazia
parte do sistema de crenças dos diversos agrupamentos sociais. Assim, a maioria da população
tomava essa idéia como assente, constituindo a “verdade” sobre a relação “homem”/“mulher”.
No contexto da peça Navalha na Carne, as personagens pertencem a uma classe popular
das mais miseráveis da sociedade brasileira. Não é por acaso que a interação entre elas revela, de
forma caricaturada, as relações orienta das pelo poder mascul ino. Vado trata Neusa S ueli como
sua propriedade e precisa firmar seu poder de “ma cho”. Para tanto, dir ige-se à companheira,
como se observa em (22), usando termos como “puta s em-vergonha”, “puta sem-calça”, “puta
nojenta”, “vaca”, “vagabunda miserável”. O palavrão, nesse contexto, cola bora para intensificar a
agressão masculina. Notemos que, até aproximadamente os anos sessenta do século XX, era
vedado à mulher o direito de expressar-se numa linguagem tida como baixo calão, lingua gem de
homem “inculto” e d e prostituta s. Na peça, a pesar de Neu sa Sueli ser prostituta , ela s e sente
humilhada com a forma como Vado lhe fala, sobretudo quando associada às ameaças
verbalizadas — “Diz de uma vez, antes que te arrebente“; “te arrebento o focinho”. Neusa Sueli
age como vítima, pois apanhara do seu homem, estava ameaçada de receber outra surra, além de
estar sendo chamada de nomes que explicitam, pela agressividade, sua própria condição de
prostituta. Nessa situação, Vado, como “homem” e cafetão, se sente no direito de vilipendiar a
mulher, enquanto ela o trata pelo diminutivo “Vadinho”. Vê-se, portanto, que a assimetria entre
os gêneros é inquestionável.
Curiosamente, é a mulher tida como objeto/propriedade do homem que, em Navalha na
Carne, o sustenta financ eiramente. Percebemos uma inversão de “papéis” que contra ria um dos
princípios do mito moderno de masculinidade, o dever do h omem de prover o “lar”, sustentar a
família ou a mulher com quem convive. A peça de Plínio Marcos representa um tipo de relação
muito comum, principalmente nas classes populares, como já tivemos ocasião de mencionar
219
neste trabalho: em virtude das condições econômicas as mais lastimáveis, o homem aceita ser
objeto sexual de quem lhe propõe dinheiro, desde que isso não compro meta seu “papel” de
“macho”. Não podemos, em absoluto, qualificar de “lar” a vida do casal Vado e Neusa Sueli,
muito menos considerá-los como uma “família”, tal como a sociedade moderna passou a
concebê-la. Trata-se de uma união de interesses: ele lhe oferece proteção e satisfação por andar
com um “ca ra linh a de fr ent e”, e el a lhe p aga os “fa vores ” co m dinhei ro
106
. O contrato é tã o claro,
que Vado, num determina do momento do conflito, chega a dizer à companheira: “Poxa , será que
tenho cara de trouxa? Sou te u macho, se não t enho um puto de um tostão, quem está errado ?”
(M
ARCOS, 2003, p. 143). O certo é, portanto, que a mulher assuma o “macho”, fornecendo-lh e
dinheiro. Como se pode ler em (22), ele lhe per gunta por que razão vivia co m ela e a atura va.
Neusa Sueli reluta em dizer, ma s confessa que era por “causa da grana”, ao que ele, num tom
autoritário, quase “pedagógico”, exige que ela repita mais três vezes, de forma a não deixar
dúvidas sobre a espécie de contra to estabel ecido. No tipo de re lacionamento que propõe, Vado
estaria à margem da sociedade burguesa, não somente porque s ua condição de pobre não lhe
permite inserir-se em tal contexto, como também porque os valores, hábitos e comportamentos
que possui não se equivalem aos dos burgueses. Vado desemp enha seu papel de “machã o”,
sustentando valores estereotipados e costum es bestiais, violentos, sem correspond er à imagem
que a sociedade procurou afirmar quanto ao homem moderno e civilizado.
Va do possui todos os requisitos do estereótipo do verdadeiro “macho”: é fo rte, viril,
corajoso, valente, bruto; enfim, trata-se de uma “autoridade” que d everá ser respeitada na
relação homem/mulher, como podemos identificar no trech o a seguir . O diálog o demonstra o
poder que Vado exerce sobre sua mulher. Preparando-se para fumar o cigarro de maconha que
Veludo havia comp rado com o dinheiro roubado, Vado ouve a reclamação da companheira:
(23)
N
EUS A SUELI — Não vai queimar essa porcaria aqui.
V
ADO — Você cala a boca.
N
EUS A SUELI — Dona Tereza não gosta de bagunça aqui na pensão. VADO
Quero que ela vá à merda!
V
ELUDO — Ai, que homem doidão.
106
Vado diz para Neusa Sueli:É a lei. Mulher que quer se bacanear com cara linha de frente como eu tem de se virar
certinho” (Marcos, 2003, p. 144).
220
NEUS A SUELI Depois, quem se estrepa sou eu. Quand o você se arranca, ela
vem aqui reclamar.
V
ADO — Manda ela à merda!
N
EUS A SUELI — Ela me põe na rua.
V
ADO — Azar!
N
EUS A SUELI — Azar meu, né?
V
ADO — Porra, pára de me torrar o saco. Foi você que arrumou toda a confusão
e ainda resmunga. Não quero escutar um pio contra a maconha. Gosto de curtir
minha onda de leve. (M
ARCO S, 2003, p. 152-153)
As falas de Va do estão recheadas de atitudes e verbos imp erativos: “cala a boca”, “manda ela à
merda!”, “pára de me torrar o saco”. A ameaça “Não quero escutar um pio contra a maconha”
revela a voz da autoridade exerc ida pelo mais forte, o “homem”. Fazendo ecoar na memória de
Neusa Sueli a surra que tomara momentos antes, essa ameaça se to rna ainda mais assusta dora
para a personagem. Dessa forma, o homem exerce domínio sobre a compa nheira mediante força
bruta, agressividade, de ixando bem claro quem “manda no pedaço”. Esse pa radigma do ho mem
violento, como dissemo s, é anterior ao ideal b urguês de masculinidade e dele se d istancia. No
entanto, vale aqui uma consideração. A violência estaria associada, no imaginário social, à
virilidade, basta lembrar, por exemplo, o fascínio que muitos gladiadores exerciam sobre suas
senhoras e seus senhores romanos, por demo nstrar coragem, bravura, destreza, enfim ,
virilidade. Na era moderna, apesar de a burguesia pretender instaurar um novo padrão
comportamental, esses mesmos valores continuaram sendo cultuados nas diversas esferas
sociais, sobremaneira nas populares. Assim, o homem violento seria aquele dotado de virilidade,
representante aut êntico do “mac o”. Vado, mesmo com toda a violência, e talvez po r isso
mesmo, exerce fascínio sobre a mulher e o camareiro, como veremos mais adiante.
Não bastasse isso, a personagem se vale do clichê e do slogan social para mostrar sua
superioridade em relação à mulher: “Eu sou o Vadinho das Candongas, te tiro de letra fácil,
fácil”
107
. Com esse slogan, pretende mostra r-se como invencível, mala ndro, capaz de vencer pela
esperteza. Sente-se irresistível, porque a malandragem é um traço que costuma seduzir as
mulheres, sobretudo as da classe popular. Como o sistema de crenças masculino ainda é o
dominante, até mesmo as mulheres, freqüentemente, reproduzem valores que sã o sustentados
pela maioria dos homens, mantendo-se, dessa forma, o ciclo de dominaçã o masculina. Vejamos
como isso é representado na personagem Neusa Sueli.
107
Segundo Prado (1987, p. 217), “ele [Vado] se vê e se descreve através de clichês e slogans sociais: é o Wadinho [sic]
das Candongas, capaz de tirar de letra qualquer jogada, que judia d as mulheres para elas gamarem”.
221
A p eça pode ser dividida em três grandes situações: na primeira, Neusa Sueli chega à
pensão, briga com Vado e chama Veludo ao quarto; na segunda, Veludo chega ao quarto,
envolve-se num conflito com o casal e sai; na terceira, Neusa Sueli volta a ficar sozinha com
Vado, discute novamente com o companheiro, que sai sem dizer se voltará ou não. Nessa terceira
parte, tendo presenciado um jogo de sedução entre Vado e Veludo, Neusa Sueli abdica de sua
condição de submissa ao homem e o trata com certa autoridade, criticando-lhe a atitude. O texto
a seguir flagra o momento exato desse conflito:
(24)
V
ADO — Está me achando bonito ou me botando quebrante?
N
EUSA SUELI — Nojento!
V
ADO — Não começa a me encher o saco.
N
EUSA SUELI — Você é um sacana.
V
ADO — Você é uma cortadora de onda.
N
EUSA SUELI — Nunca pensei que você pudesse ser tão miserável.
V
ADO — E eu n unca pensei que você fosse tão chata.
N
EUSA SUELI — Não sou é descarada.
V
ADO — Vai ser freira, então.
N
EUSA SUELI — Eu tenho moral.
V
ADO — Depois de velha, até eu.
[...]
N
EUSA SUELI — Porco! Nojento! Você pensa que não manjei a tua jogada com o
Veludo?
V
ADO — Deixa de história. Vocês antigas vêem malícia em tudo.
N
EUSA SUELI — Só sei que me embrulhou o est ômago.
V
ADO — A vovó das put as todas é metida a família, é?
N
EUSA SUELI — Vovó das pulas é a vaca que te pariu.
V
ADO Limpa essa boca quando falar da minha mãe. Se folgar comigo, te
arrebento. (M
ARCOS, 2003, p. 158-159)
Antes da pri meira fala de Vado, a didascália info rma que Neusa Sueli, após a saída de Veludo,
olha o companheiro por longo tempo. O silêncio da mulher contém uma carga de censura em
relação ao comportamento dele, verba lizada pelo insulto “Nojento!”, expressão com que rompe o
silêncio. Além dess e insulto, há uma série de críticas dirigida s a Vado, que demonstram a
reprovação quanto a seu comporta mento homoerótico com Veludo. Vejamo-las:
222
a) “Você é um sacana”: a idéia do envol vimento erótico do companheiro com outro
homem é uma a titud e que c ontra ria o es tereó tipo d e ma sculinid ade. O ter mo
“sacana” pode ter, entre outras, duas acepções que nos interessa m: devasso,
libidinoso; homossexual [expressão própria do nordeste bra sileiro, segundo Ferreira
(1986)]. Os dois sentidos parecem convergir para uma única idéia: Vado era devasso,
por se envolver com homossexual. Ao usar o termo “sacana”, Neusa Sueli coloca, pois,
em xeq ue a ma sculin idade d e Vado .
b) “Nunca pensei que você pudesse ser tão miserável”: a fala revela surpresa,
seguida de reprovação, por parte da mulher. A ex pect ativa de qu e seu h omem e ra
“macho” a fazia se sentir segura e até se submeter, como verificamos em (22), ao
abuso de autoridade por parte dele. Quando essa expectativa é rompida, por conta do
jogo homoerótico em que Vado se envolveu, Neusa Sueli o recrimina, colocando-o ao
nível de um sujeito “miserável”. O ho moerotismo, como vimos assevera ndo, é um
fenômeno que põe os sujeitos numa condição abjeta, bestial, de mis éria humana (o
que é ratificado pelos insultos “Porco! Nojento!”). É esse sentimento que, no contexto
de fala da personagem, está pressuposto no adjetivo “miserá vel”.
c) “Não sou é descarada”; “Eu tenho moral”: “de sca ra da” e “ mor al ” sã o vo cá bulo s
que remetem a mesma formação discursiva: o primeiro, sinônimo de
“desavergonhada”, é um atributo que a personagem diz nã o possuir porque tem
moral. É necessário salientar que o termo “m oral”, muito abrangente, toma um
sentido muito particular nesse cont exto. Conforme a moral burguesa vigente ainda
hoje, vender o próprio corpo, como Neusa Sueli o faz, constitui um atentado à moral e
aos “bons costumes”, segundo os quais o sujeito deve preservar o próprio corpo e
entregá-lo apenas por “amor”. Quando Neusa Sueli diz ter moral, se refere a pontos
específicos da moral burguesa masculina, como à idéia de “homossexual” ser algo
ultrajante. Dessa forma, ter vergonha e agir conforme padrões morais masculinos, ou
seja, ser “heterossexual”, por exemplo, são informações subjacentes nas duas falas de
Neusa Sueli. Valendo-se da crença que o “homossexua lismo”, possivelmente
praticado pelo seu companheiro, é sinal de fraqueza, Neusa Sueli repudia Vado,
mostrando-se nauseada: “Só sei que me embrulho u o estômago”. O homem escolhido
para protegê-la mostrava-se ultrajante, o que provoca na personagem feminina uma
reação física de enjôo.
Diante das acusações da mulh er, Vado reag e da maneira mais tranqüila. Imp licitamente
223
“malícia” nas coisas. O termo “malícia”, que denota tendência para o mal, é usado para se referir
ao comportamento homoerótico . Vado, não obstan te o jogo homoerótico f lagrante que manté m
com Veludo, como veremos mais adiante, sustenta indiretamente que o “homossexualismo” é o
“mal”. Como ele estaria distante desse “mal”, acusa a companheira de ver malícia na brincadeira
que ele estaria realizando com Veludo, uma brincadeira destituída de “ma ldades”, ou seja, livre
de conotaç ões er ót icas . Pa ra tor nar Neusa Sueli mais s usc etí vel, la nça mão de um ins ulto ef et ivo ,
desvia o assunto para uma série de agressões psicológicas, que fazem a companheira se sentir
humilh ada: ela er a um a “vel ha”. Zo mba ndo das c ondiç ões fí sicas da mulh er, ele co nseg ue
desestabilizá-la até colocá-la num nível de miséria absoluta.
O jogo de d ominador X domi nado, sendo Vado o primeiro e Neusa Suely o segundo, se
mantém até o momento em que N eusa Sueli, humi lhada, vendo seu homem s e arrumar para sair,
toma a navalha, fecha a porta do quarto, e força o amante a manter relações sexuais com ela,
alegando que sempre o paga va para ele fazer o serviço de homem, coisa que há muito ele não
fazia. A mulher passa, portanto, à condição de dominadora, mostrando que o dinheiro a faz ter
poder sobre o companheiro. Essa reação torna Vado desconcertado, sobretudo diante da a meaça
da navalha. A rápida mudança de condição se r everte quando Vado , usando da manha e da
malandragem, começa a envolver eroticamente a mulher, desarmando-a, o que lhe per mite
recuperar a chave e sair do quarto sem se despedir de Neusa Sueli. Ela corre até a porta e, num
tom de sub missão, pergunta se o companheiro voltará mais tarde, mas ele nã o responde.
Termina a peça sozinha, comendo desconsoladamente seu sanduíche de mortadela, qual uma
Penélope do subúrbio paulistano, esperando o retorno de seu “macho”.
O discurso fortemente masculino sustentado por Vado e, implicitamente, por Neusa
Sueli, a despeito de alguma contrariedade quanto ao mito de que o homem deve sustentar a
mulher e assumir a con dição de provedor “heteross exual”, nos conduz a algumas conclusões.
Primeiramente é um discurso que contribui p ara construir a identidade masculina de Vado e sua
postura de “machão” diante dos outros sujeitos sociais, que, no contexto da peça, se restringem a
Neusa Sueli e Veludo. É bem verdade que esse discurso se baseia no estereótipo da
masculinidade, de caráter muito mais medieval que moderno. Em segundo lugar, contribui
também para construir a s relações so cia is com os outros, estabelecendo o s pa péis cabíveis a cada
um. Em Navalha na Carne
224
Passemos, agora, à análise da interação entre Vado e o camareiro
108
. Quando Veludo
chega ao quarto, trava um diálogo tenso com Vado, que o acusa, furiosamente, de ter roubado o
dinheiro deixado sob o criado-mudo. O cafetão, assim como vem fazendo com Neusa Sueli, trata
Veludo de forma ag ressiva, chamando-o por termos que denotam a orientação sexual do
camareiro: bichona, bicha, veado, fresco. Veludo não esco nde sua identidade sex ual, e é com
essa identidade que ele interage socialmente. Enquanto Vado pretende exercer seu poder de
“macho”, agredindo o camareiro com insultos que nos reportam à ideologia tipicamente
masculina, Veludo se opõe a ele, valendo-se de uma forma verbal ma rcada pelo uso do feminino.
Leiam-se as seguintes passagens:
(25)
V
ADO — Filho-da-puta! Veado nojento!
[...]
(Veludo tenta sair, Vado o agarra com violência.)
V
ELUDO — Bruto! Cafajeste! (MARCOS, 2003, p. 147)
(26)
V
ADO — Confessa logo, bicha, senão vou botar pimenta no teu rabo.
V
ELUDO Pelo amor de Deus, Neusa Sueli, não deixa esse tarado me judiar!
(M
ARCOS, 2003, p. 149)
(27)
V
ELUDO — Socorr o! Socorro! Monstro! Por que você não faz isso com um
homem, seu nojento? Ai, esse tarado está me matando! (M
ARCOS, 2003, p. 149)
108
A maioria das críticas sobre Navalha na Carne identifica o tipo assum ido pelas personagens como a prostituta
(Neusa Sueli), o cafetão/cáften (Vado) e o homossexual (Veludo). Percebemos que, apesar do ranço moralista que
acompanha os termos para os dois primeiros tipos, eles identificam, respectivamente, profissões específicas, não
sendo esse o caso do nome pelo qual Veludo é referido. A prostituta é a profissional do sexo, trabalho tão antigo
quanto a formação das civilizações. O cafetão (gíria derivada do vocábulo cáften, também conhecida pelos nomes
cafifa, proxeneta, rufião) é o empresário das meretrizes, ou seja, vive às custas das prostitutas. O homossexual é um
termo de origem clínica/moralista, conforme salientamos em nossa fundamentação teórica, e não denota, como ocorre
na designação das outras personagens desta peça, um trabalho específico. O que provavelmente tenha chamado a
atenção dos críticos foi a conotação sexual subjacente à interação de Vado e Veludo — que de fato existe, como
veremos adiante —, daí chamá-los de cafetão e homossexual. Procurando conferir simetria ao tratamento dado a esses
indivíduos e abdicando da associação entre “homossexual” e sua imagem estereotipada, designaremos, portanto, as
personagens como a prostituta, o cafetão e o camareiro.
225
A partir das falas de Veludo, seguindo essa mesma ordem das citações, podemos verifica r
nas ações d a personagem um contínuo que vai do comportamento próximo ao fe minino até a
negação total da condição masculina. Em (25), Vado se refere ao outro comofilho-da-puta,
“veado nojento”, nomes que pertencem ao universo lingüístico mascul ino e marcam a posição de
“homem” de quem, nesse contexto, os enunc ia
109
. “Veado”, como já verificamos na análise de
Dois Perdidos numa noite Suja, é um nome que marca alteridade. O homem que fala “veado”
para outro afirma sua posição de “macho” e a do outro como estrang eira, adversária (para nos
valermos de uma perspectiva psico-social). Por sua vez, Veludo se defende verbalmente,
chamando Vado de bruto, cafajeste. Já vimos que, conforme o estereótipo da masculinidade, se
o homem tem sua “honra ” ameaçada, deverá desforrar-se por af rontas verbais próprias do
masculino (ou seja, revidar com termos semelhantes) ou m esmo físicas
110
. Veludo, ao contrário,
se coloca na posiçã o do mais fraco e, em vez de recorrer à violência, chama o outro de bruto e
cafajeste. Os insultos de ambas as personagens revelam poderes assimétricos. Vado impõe seu
poder por meio de ações e linguagem extremamente vio lentas, ao passo que Veludo revida o
insulto de forma atenuada, com termos que designam tão-somente o comportamento violento do
cafetão. Não chegam a ser expressões que põem em risco a honra e a dignidade de Vado , como
“filho da puta” e “veado nojento”. São termos menos violentos que esses, indicando mais uma
posição de defesa que de agressão. Isso é pertinente, pois a didascália informa que “Vado o
agarra com violência”, impondo, porta nto, seu p oder não so mente pela linguagem ag ressiva, ma s
também por ações físicas violentas; enquanto Velu do só rea ge com um in sulto verba l, sem
revidar a agressão física. Essa assimetria a ponta para o lugar do domin ador e o do domi nado,
sendo este ocupado por Veludo e aquele por Vado. A relação dominador vs. dominado tem, nesse
contexto, conotações sexuais, revelando um sujeito com atitudes de “homem” e outro co m
atitudes não-ma sculinas, pelo menos do qu e se espera de um autêntico “homem”.
Desd e esse primeiro contato das duas personagens masculinas, verificamos que elas
ocupam espaços diferentes e assimétricos na interação aqui mais uma vez nos referimos à
noção de place. No contexto da peça analisa da, Veludo se encontra no quarto do casal e assume
ostensivamente sua identidade “homossexual”, do is fatores que favorecem sua condição
inferiorizada. Vado, por sua vez, encontra-se em seu próprio qua rto e ostenta sua virilidade
109
Quando nos repor tamos ao “universo lingüístico masculino”, vale salientar, não estamos adotando uma perspectiva
estrutural da língua; reportamo-nos aos seus usos, uma vez que se trata de um registro que, sobretudo até a década de
sessenta no Brasil, era tolerado apenas aos homens. A mulher jamais poderia se valer desses usos, sob o risco de ser
considerada sem moral, uma “meretriz”. Era comum, e isso se estende ainda aos dias de hoje, ver mães repreendendo
as filhas com o seguinte comentário: “Esse tipo de linguagem não é para mocinhas”.
110
Também é comum nos dias autuais ouvirmos pais e mães ameaçando os filhos: “Quem voltar pra casa apanhado,
vai apanhar quando chegar”, o que demonstra que os homens são educados para salvaguardar a masculinidade por
meio da violência, quando esta é necessári a.
226
mediante violência, alçando-se a uma posição de superioridade. Isso se torna mais claro nas
demais citações.
Em (26),
por ex emplo , qua ndo Va do amea ça o ca mareiro , dizendo que vai bota r
“pimenta” no seu “rabo”, Veludo implora socorro a Neusa Sueli. Podemos extrair daí algumas
implicações no que diz resp eito à ideo logia ma sculina. Primeiramente, Veludo não obedece ao
estereótipo da masculinidade, de “enfrentar” o desafio lanç ado por outro homem, a fim de nã o
macular sua moral ma sculina. Em vez de assim fazer, recorre à mulher, para que ela interceda a
seu favor, não deixando Vado maltratá -lo. Diante de Vado, protótipo do “macho”, Vel udo se
coloca na condição de alteridade — o outro do masculino, o submisso —, fazendo j us, conforme
ideologia masculina, a o apelido de “veado”, afem inado. Saliente-se como a ordem discursiva
dominante do ma sculino elege d eterminados sign os de alteridade e lhes atribui um valor
semântico condizente co m o sistema de crenças do grupo de h omens.
Retomando o estudo de Kerbrat-Orecchioni ( 1988), os indicadores esp aciais podem se r
destacados ao nível do conteúdo p ragmático da interaçã o. Para a autora, funciona como
indicador [taxème] de posição todo ato de linguagem q ue constitu i ameaça a uma da s faces do
interlocutor
111
. Na fala de Vado, a ordem (“co nfessa logo”) e a intim idação (“senão vou bota r
pimenta no teu rabo”) — ameaças à fa ce negativa da personagem Veludo —, bem co mo o insulto
(“bicha”) — ameaça à face positiva do camareiro —, são atos de fala que fixam o locutor nu m
patamar superior. Na fala de Veludo, a súplica (“Pelo amor de Deus, Neusa Sueli”) constitui uma
ameaça à sua própria imagem positiva, o que serve para estabelecer o lugar de inferioridade que
o camareiro está ocupando na interação. Aqui, o poder n o jogo interacional a ssume valor es
masculinos, uma vez que o tom sup erior de um i mplica sua co ndição de “macho” e fixa o outro
sujeito no espaço da alteridade, do não-masculino, logo de inferioridade.
Além disso, quando Vado, no momento da fúria, ameaça colocar pimenta norabo do
camareiro, o que pode ser uma força de expressão — nitidamente masculina , vale destacar —,
Veludo atribui uma conotação sexual à fala do cafetão. A junção dos termos “judiar” e “ta rado”
nos permite inferir que a personagem alude a uma situação de estupro, de violência sexual.
Simbolicamente, a “pimenta no rabo ” conota um ato de so domia, haja vista a natureza fálica da
pimenta nesse contexto. Mesmo se considerarmos o valor denotativo da expressão, constitui um
ato de crueldade, p erversidade (“judiar”), por intermédio d o contato sexua l, pois o “rabo” — o
111
Quanto à noção da face, reportamo-nos a Goffman (1974, p. 9), segundo o qual “pode-se definir face como sendo
um valor social positivo que uma pessoa reivindica efetivamente através da linha de ação que os outros supõem que
ela tenha adotado ao longo de um contato particular. A face é uma imagem do eu delineada segundo certos atributos
sociais apreciados”. Para Goffman, a face negativa corresponde ao território de cada sujeito (seu corpo, sua vida
íntima); a face positiva, por sua vez, corresponde à imagem que oferece mos ou pretendemos of erecer aos outros.
227
anus — é uma região do corpo que pode ser usada como objeto de pra zer sexual (sodomia).
Veludo age como se ele corresse o risco de ser estuprado por Vado, o que reafirma sua condição
feminina, sobretudo quando recorre à m ulher para salvá-lo, em vez de reagir à agressão. Um
dado contextual cur ioso é que, na nossa sociedade androcêntrica, os casos de estupro de homens
adultos por outros homens ocorrem em d uas situações: quando o criminoso, portando arma
branca ou de fogo, subjuga outro homem; quando há uma curra, ou seja, um grupo de homens
subjuga, pela força física, outro homem, que, sem poder reagir, é estuprado
112
. Se não for uma
dessas situações, o homem adulto que é estuprado demonstra fraqueza e tendência à
homossexualidade. Veludo se enquadra perfeitamente nesse caso, até porque a própria
personagem se considera uma mulher indefesa nas mã os de um homem “bruto” e “tara do”, o que
parece lhe proporcionar prazer.
Isso é confirma do em (27),
quando Veludo quer deixar claro ao seu interlocutor que não é
“homem”. Ao perguntar para Vado , numa reação desesperada, “Por que você não faz isso com
um homem, seu nojento?”, Veludo afirma, implicita mente, não pertencer ao sexo masculino.
Somente um homem teria disposição física suficiente para enfrentar outro homem. Não é o caso
de Veludo, que nã o se sente homem e se consid era tão frágil como uma mulher. O vocativo
“nojento”, no contexto dessa fala , assume um valor de uso f eminino, o que demarca o espaço
ocupado pelo não- masculino. Va le insisti r que, pelos estereótipos masculinos, um homem não
deve reagir a uma agressão física com o insulto “nojento”. Em nossa cultura, um tal
comportamento implica impotência, valor distante, portanto, do universo ideológico da
masculinidade.
Todos os gestos da personagem indicam um compo rtamento feminino. N o momento em
que Neusa Sueli toma da navalha, ameaçando-l he cortar o p escoço, Veludo, apavorado, acede em
contar a verdade. Antes de fazê-lo, porém, procura ganhar tempo , como revela o tre cho a seguir:
(28)
V
ADO — Fala logo, anda!
V
ELUDO — Estou sem ar.
V
ADO — Não vem com frescura! Não vem com frescura! (MARCOS, 2003, p. 150-
151)
112
A primeira peça de Plínio Marcos aborda o tema da curra contra um jovem que é colocado numa cela de prisão,
onde há seis presos. Barrela, título do texto, é uma gíria do submundo que expressa o estupro coletivo contra uma
vítima.
228
Os espaços de dominador e dominado se mantêm, como se vê, desde o início dessa intensa
situação dramática: Vado exerce seu poder de “macho” sobre o outro, que se mostra indefeso. Ao
dizer que está sem ar, quando o cafetão o obrig a a falar, Veludo, ao mesmo tempo em que
procura adiar a confissão, refere-se à sua frágil disposição f ísica, que procura ostenta r
afetadamente para as outras duas personagens, reforçando a idéia de que ele é como uma
mulher, frágil e indefesa. A falta de ar conota um corpo delicado, mu ito diferente das
representações que se têm do corpo masculino, de acordo, é claro, com os estereótipos sociais. A
imagem feminina que pretende oferecer de si aos demais é percebida p or Vado, que lhe
repreende mais uma vez: “Não vem com frescura! Não vem com frescura!”. Ou seja, Vado
confirma o sistema de crenças sobre o masculino, ordenando que o outro deixasse de “frescura”,
uma vez que, para esse sistema, fraqueza é atributo da mulher e do “fresco”.
Depois da confissão, Veludo passa a se sentir um p ouco mais relaxa do. A partir desse
momento, assume, de forma mais enfática, sua “feminilidade”, o que redundará num jogo
homoerótico entre ele e Vado, profunda mente comprometedor pa ra a condição masculina
assumida pelo segundo. Em princípio, o camareiro começa a referir a si mesmo por termos
marcadamente femininos. Quando Va do inquire se ele já tinha fumado o cigarro de maconha
comprado com o dinheiro roubado, Veludo responde: “Nem biquei ainda. Não trato disso
quando estou trabalhando. Eu fico muito louca
quando estou chapada (MARCOS, 2003, p. 152,
grifo nosso). Os adjetivos estão com a marca do feminino, revelando que o locutor se apresenta
como mulher. Com esse registro, Veludo afirma o fosso que o separa de Vado: este, “homem”;
aquele, “mulher”. Os espaços estão bem demarcados. Colocando-se na po sição passiva de uma
“fêmea”, procura se valer de um tom ca utelosamente desc ontraído, de forma q ue Vado não se
sinta ameaçado. Como a cena transcorre num espaço privado, sem a vigilância do olhar público,
o “veado” nã o constitui ameaça ao terr itório masculino d e Vado. Salvaguarda da sua
masculinidade (ou seja, reaf irmada sua situação de comando, de domínio), Vado trata Veludo
até com certa simpatia, como se pode verificar no texto a seguir:
(29)
V
ADO — Você gosta mais d e maconha ou de moleque?
V
ELUDO — Cada coisa tem sua hora.
V
ADO — Bichona malandra!
V
ELUDO — Deixa eu bicar, S eu Vado.
229
VADO — Pega aq ui. Na minha mão.
V
ELUDO — Que bom.
(Tenta agarrar o cigarro.)
V
ADO — Não vale s egurar.
V
ELUDO — Como o senhor é mau, S eu Vado.
(A cena repete-se várias vezes, sempre Veludo tentando alcançar com a boca, o
cigarro que está na mão de Vado. Veludo fica cada vez mais agoniado. Vado ri
cada vez mais. Neusa Sueli permanece indiferente. Veludo agarra a mão de
Vado, que lhe dá um violento empurrão.) (M
ARCOS, 2003, p. 153-154)
Vado mostra-se curioso a respeito das preferências de Veludo, e continua tratando-o
como alteridade. Veludo, nesse momento, revela um tipo de comporta mento mais manhoso,
ainda mais submisso — “Ah, Seu Vado...” (M
ARCOS, 2003, p. 154). V ado comp reende a manha e
se torna mais maleável, o que se c onfirma pela expressão “Bichona malandra”. Quando fala
“bichona”, continua demarca ndo o espa ço do outro; mas cur ioso é o acréscimo do qualificati vo
“malandra”, em que, no contexto das massas populares envolvidas com a marginalidade, subjaz
um valor mais positivo: algo ou alguém digno de simpatia. Se não fosse essa simpatia, próp ria
do “homem”, Veludo não insistir ia em pedir um trago do cig arro. O cafetão finalmente acede.
Nas condições degra dantes em que se encont ram as personagens, o f ato de Veludo
assumir abertamente sua “homossexualidade” é necessário até para conseguir obter satisfação
sexual. Já vimos que o dito “machã o” só se envolve homoeroticamente quando sua s próprias
características de “homem” sã o preservadas. Como já trata mos durante a análise de Dois
Perdidos numa Noite Suja, estabelece-se aqui a relação “bofe/boneca”, que reproduz outros
pares num mesmo paradigma: homem/mulher, ativo/passivo, penetrador/penetrado. Sabendo
disso, Veludo, vítima de escárn io pelos que pertencem a o grupo de “homens” , ostenta sua
“homossexualidade”, não deixando dúvidas sobre suas opções de prazer. Ao mesmo tempo, joga
com a sedução, aproveitando-se que Vado já se encontra “cha pado”
113
e, por isso, propenso à
alegria e ao prazer.
Vel udo, sob a condição que Vado impõe, vai tragar o cigarro na mão do cafetão, mas
antes procura lançar um charme ao “homem”: “Que bom”. O adjetivo “bom” é ambíguo, podendo
se referir tanto ao fato de Vado o ter deixado fumar, como também à satisfação de fumar na mão
de um “homem”. Essa tática erótica não é a primeira que Veludo usa com relação a Vado. Antes ,
quando o cafetão decide fumar no quarto e reprime violentamente Neusa Sueli, que tenta
113
Gíria que designa o estado de “embriaguez” proporcionado pelos efeitos do fumo da maconha.
230
dissuadi-lo da idéia, Veludo expressa admiração pelo “homem” [“ Ai, que homem doidão”
(M
ARCOS, 2003, p. 152) ]. O ho mem “d oidã o” é a ssociado à virilidade, potênc ia; isso costuma
seduzir muitas mulheres e muitos outros homens de sexualidade homo-orientada — lembremos
da pesquisa de Green (2000), quando identifica as “bonecas” que estão em busca do “home m
verdadeiro”. Mais do que um qualificativo que expressa o sujeito “maconhado”, “doidão” se
refere ao homem impetuoso, destemido, que age conforme seus impulsos. Como Veludo se
coloca em posição passiva, o homem destemido e impulsivo é sinal de “macheza”, logo de sujeito
ativo, o que vem a encanta r o camareiro. O cigarro é um objeto fálico que prop orciona prazer,
sobretudo quando se trata de maconha, cujo efeito é provocar uma super-dimensão da realidade.
É Vado quem propõe o jogo: Veludo poderia fumar, desde que o fizesse na mão do outro. Fumar
na mão de um homem parece gerar prazer ao camareiro, que aceita o jogo, simplesmente
dizendo, num tom que não deixa de ser manhoso: “Como o senhor é mau, Seu Vado”. A relação
entre o “ativo” e o “pa ssivo” é mediada, pelo ima ginário masculino, por uma dose de sadismo: o
“homem” detém o poder e domina o “outro”, subjugando-o ao seu pra zer. O pró prio Veludo, que
assimila e reproduz, direta o u indiretamente, essa ideologia, joga com o masoquismo e, mesmo
tendo sido agredido física e psicolog icamente por Vado, mostra-se atra ído pelo cafetão. É
possível que só assim estivesse ocupando um lug ar que lhe cabe: o da “mulher”. O sadismo de
um casa-se com o masoquismo do ou tro, conferindo à peça um caráter neo-na turalista
114
.
A última didascália em (29), com função kinésica,
exp ressa um movimento corpóreo que
sugere um ato sexual simbólico. Veludo tenta alca nçar com a boca o cigarro que se encontra na
mão de Vado. A rubrica diz que a cena se repete várias vezes. Considerando o cigarro como um
símbolo fálico e a boca como uma zona erógena, podemos interpretar a cena como sug erindo um
ato frustrado de felação: Vado brinca com Veludo, tira ndo-lhe o cigarro da boca, adiando o
prazer do camareiro, que, pela didascália, fica cada vez mais angustiado. O ca fetão se diverte
com a situação, o que nos leva a concluir o seguinte: ele possui o poder de manipular o prazer do
outro, pois detém aquilo que o camareiro mais deseja, o ciga rro de maconha, ou, numa outra
leitura, o falo
115
.
114
Prado (1987, p. 217), ao analisar a personagem Veludo, tece o seguinte comentário: “O seu masoquismo casa-se
perfeitamente com o sadismo de Wado [sic] — mas é isso paradoxalmente que o torna imbatível: qualquer ato de
violência física ou verbal é imediatamente transfigurado por ele em dúbio prazer sexual, envolvendo o agressor,
voluntár ia ou invo luntar iamente, e m seu univ erso part icular” .
115
A primeira adaptação para o cinema deste texto de Plínio Marcos foi feita em 1969, com direção de Braz Chediak.
No nosso ponto de vista, é, até hoje, a melhor adaptação de uma peça do dramaturgo santista. A conotação sexual do
diálogo entre Vado, vivido por Jece Valadão, e Veludo, interpretado brilhantemente po r Emiliano Queiroz, é muito
explorada pelo diretor. Nesta cena, por exemplo, Vado está de pé, enquanto Veludo se ajoelha, para tentar tragar o
cigarro na mão do outro. Depois de várias investidas de Veludo, o cafetão aproxima o cigarro a seu pr óprio pênis,
como que oferecendo-o ao camareiro. Veludo olha manhosamente para Vado e lança um sorriso malicioso. Continua
tentando pegar o cigarro até colocar a mão sob a região do pênis de Vado, quando este, depois de alguns segundos,
lança-lhe um violento repelão.
231
Depois que Veludo é empurrado violentamente, decide enfrentar Va do, que o esbofeteia.
O camareiro afronta o cafetão, pedindo-lhe que batesse mais, ao que Vado se recusa,
desorientado. Essa desorientação é muito reveladora pa ra compreendermos a dinâ mica do mito
da masculinidade. Vado domina Neusa Sueli porque ela se mostra submissa e temerosa. Veludo,
no entanto, pela a mbigüidade sex ual e sobretudo porque decide enfrentá-lo , deixa Vado
perturbado, confuso, inclusive, sobre sua própria virilidade
116
. Veludo não era nem o “machão”
que estaria em condições de brigar com Vado, nem era mais a “fêmea” submissa, sobre quem o
cafetão costuma exercer seu domínio e virilidade, papel que desempenhara até então . O
camareiro estava enfrentando o caf etão, mas pedindo para que o outro lhe batesse, em vez de
bater, ele mesmo, no adversário. Sem conseguir fazer com que o outro lhe obedec esse, Vado só
expressa um insulto que, naquele contexto, mostra-se superficial, não correspondendo ao que
deveria um “macho” fazer nessa situação: expulsar o camareiro, para evita r contato com
homossexual. “Bicha é uma desgraça” (M
ARCOS, 2003, p. 155) é o seu modesto insulto,
permitindo a Veludo sentir-se superior em relação ao outro e falar o que se segue:
(30)
V
ELUDO — Você viu como eu encabulei o homem, Neusa Sueli? Tadinho dele!
Ficou sem jeito. Coitadinho! Vê a carinha do Vado, Neusa Sueli. Vai fazer um
carinho pra ele. Ele está tristinho. Vai lá, bobona. Vai agradar teu homem. Vai,
Neusa Sueli. (M
ARCOS, 2003, p. 154-155)
Qua ndo Veludo enfrenta Vado, está desafiando a masculinida de do cafetão. A ordem que
lança [“Bate, seu bobo, bate.” (M
ARCOS, 2003, p. 155)] ameaça a face negativa de Vado, ao
mesmo temp o que lh e confe re, a Vel udo, um e spa ço de supe rior idade. Ora, até ent ão o luga r de
superior fora ocupado pelo cafetão. No contex to interacional, entretanto, os lugares, como
assevera Kerbrat-Orecchioni (1988), são objeto de negociações permanentes entre os
interactantes: podem ser redistribuídos, subvertidos, reafirmados. Essa forma de a personagem
agir parece esconder uma estratégia de desforra. Ele não tem mais nada que perder: confessara
seu crime, fora e continua sendo humilhado. Ele reivindica o luga r de superior, desafiando o
proxeneta. Dessa forma, consegue desestabilizar Vado e deslocá-lo pa ra o lugar de inferior.
A forma sarcástica como o cama reiro trata o cafetão demonstra que ele está dominando a
situação. Ao chegar ao quarto, fora insultado e agredido fisicamente, mante ndo-se numa posição
116
cf. Prado (1987).
232
passiva, até o momento em que começa a mudar a tática do jogo e a usar as maneiras
abrutalhadas do cafetão como estímulo ao prazer. Mostra, dessa forma, que pode se valer do
masoquismo para satisfazer o sadismo do cafetão. Isso torna Vado confuso, pois uma situação de
briga “doméstica” estava conduzin do-o a uma interação que, contraditoriamente, lhe
proporcionava prazer, o que viria a abalar o sistema de crenças sobre o “macho”. O s arcasmo de
Veludo, mesmo que afrontoso, se expressa no uso de diminutivos: “tadinho”, “coitadinho”,
“carinha”, “tristinho”, o que marca sua forma feminina de falar. No entanto, no contexto irônico
em que é pronunciado, o diminutivo gera, por pa rte do falante, um efeito de superioridade.
Quando Ne usa Suel i ex pulsa do quar to o ca mareir o, Vado exig e que Vel udo pe rma neça
no mesmo lug ar, a legando que ele nã o sairia do quarto sem fumar. O cafetão demonstra
claramente não haver interesse algum em encerrar a “brinca deira” antes interrompida. Vado diz:
“Ela agora vai queimar o fumo. Nã o vou deixar ela sair daqui de presa seca. V em fumar,
bichinha!” (M
ARCOS, 2003, p. 156). No jogo das ambigüidades, o cafetão trata Veludo por “ela”,
num tom jocoso, para confirmar que o camareiro não pertence definitivamente ao grupo dos
“homens”. Mas o “ela” não tem a “mulh er” como referente. “Ela” s e refere ao termo “bichinha”,
colocando a personagem numa categoria entre a “mulh er” e o “homem”: nem tão “submissa
quanto a mulher, nem tão viril qua nto se pensa do “homem”. Pode parecer uma o pção erótica
sedutor a par a Va do, uma ve z qu e, sub jugan do a “b ichi nha”, es taria exerc itan do em s i a
virilidade. Se ele não pode admitir que está sentindo prazer com u m homem, trata-o como
mulher”, disponível para satisfazê-lo eroticamente.
Veludo, no entanto, muda novam ente de tá tica e reje ita o ciga rro que o outro está lh e
oferecendo, mostrando-se orgulhoso
117
. Vado exige que o outro fum e o cigarro, donde se
desenrola o seguinte diálogo:
(31)
V
ELUDO — Você não é meu homem, não me manda nada.
V
ADO — Chupa essa fumaça!
V
ELUDO — Nem por bem, nem por mal.
(Vado desespera-se e começa a bater em Veludo.)
V
ELUDO — Bate! Bate! Bate!
V
ADO — Eu te mato! Eu te mato!
117
No filme de Chediak (1969), Veludo toma o cigarro e solta-o, deixando-o cair no chão, permitindo-nos fazer uma
relação entre o desprezo pelo cigarro e o desprezo pelo falo.
233
VELUDO — Mata! Mata! Mata mesmo, homem, mas eu não fumo tua maconha!
Não fumo!
V
ADO — Fuma essa merda! Fuma! Não escutou eu mandar? (Vado vai tentando,
desesperadamente, colocar o cigarro na boca de Veludo, para que ele fume.
Veludo não deixa.)
V
ELUDO — Me mata, meu homem!
[...]
V
ADO — Por favor, Veludo, fuma essa droga, se não eu faço uma desgraça! Por
favor, fuma!
V
ELUDO Nem você me pedindo de joelhos.
[...]
V
ADO — Sueli, meu amor, me ajuda! Sueli, minha santa, me ajuda! Sueli, segura
esse veado nojento. Segura ele, Sueli! Eu quero faz er ele fumar maconha. Eu
quero que ele fume! Eu quero! Por favor, S ueli, segura ele! (M
ARCOS , 2003, p.
156-158)
O diálogo é muito ambíguo, estimulado ma is ainda pelo jogo de Veludo, que deixa implícita a
informação de que, se Vado fosse seu homem, ele poderia obedecer. Sentindo-se impotente,
Vado começa a bater no camareiro, numa reação extrema mente oposta, ao mesmo tempo que
dialética, ao prazer que a brincadeira estaria lhe proporcio nando (Saliente-se que Vado ria
prazerosamente da brincadeira antes de ter sido interrompida.). A violência física é a forma mais
comum para o “homem” demonstrar sua virilidade e su perioridade. Vado bate em Veludo,
porque o camareiro ousa desobedecer-lhe e querer assumir uma posição de domínio.
Concomitantemente e de forma não-consciente, estaria extravasando o rancor por estar sendo
preterido. Em nenhum momento Veludo enfrenta Vado como um “homem”. Ao ser ameaçado
pelo cafetão, Veludo o estimula: “Mata! Mata! Mata mesmo, homem, mas eu não fumo tua
maconha!”. O vocativo “homem” marca uma oposição entre o sujeito ma sculino e Ve ludo, sujeito
não-masculino”. No entanto, mes mo não sendo um “homem”, Veludo está assumindo o lugar
de superioridade, antes ocupado pelo cafetão. Vado não admite a impertinência do camareiro e
tenta forçá-lo a fumar, colocando “desesperadamente” o cigarro na boca do outro. A informação
da didascália é reveladora, pois expressa um sujeito, antes apresentado como “macho” e “durão”,
agora fragilizado, tomado pelo desespero diante da preterição advinda de outro “homem”. O teor
erótico é flagrante, quando int erpretamos o cigarro, posse do ca fetão, sobre a boca de Veludo.
Contribui para essa atmosfera a seleção vocabular para se referir ao ato de fumar, quando Vado
ordena a Veludo: “Chupa
essa fumaça” (grifo nosso). O verb o “chupar”, no contexto erótico, é
234
uma gíria que corresponde à felação; no contexto das pessoas que fumam ma conha, significa
tragar a fumaça. A ambigüidade, nesse caso, é inquestionável.
Contrariando a primeira fala do trecho, Veludo parece zombar de Vado, dizendo-lh e: “Me
mata, meu homem!”. Ele trata Vado como “seu” homem e mostra, implicitamente, que o cafetão
está se comportando como tal: agarrado a Veludo, Vado “emp urra”-lhe o “cigarro” na “bo ca”,
como se estivesse insistindo em subjugá-lo sexualmente, tal como os homens costumam f azer
com as mulheres. Negando, Veludo sai do jogo como vencedor e superior. Se quando entrara no
quarto assumira o lugar de vítima, ao sair, passa a ocupar o lugar do vencedor, pois fora ele
mesmo quem subjugara o “machão” mediante cha rme e manha.
Vado fica tão descontrolado com a situação que, contrariamente ao que se espera, recorre
a Neusa Sueli, implorando-lhe que intercedesse a seu favor. Contrariamente porque o “machão”
apela à “fêmea” para ela convencer a “bichinha” a ceder; com isso o prazer de Vado seria
garantido. Lembremos que, em (24), após Neusa Sueli expulsar Veludo do quarto, Vado acusa a
companheira de ser “cortadora de onda”. Considerando q ue o termo “onda” é um a gíria que
indica prazer, Neusa Sueli estaria interferindo no prazer da brincadeira que Vado estabeleceu
com Veludo. Um homem se mostra r frágil, pedir “socorro” à mulher para ajudá-lo a dominar a
“bichinha”, que, ironicamente, sai vitoriosa do jogo, revela uma contradição aos pressupostos
morais do mito moderno da masculinidade. Como vimos, é somente no período moderno que as
relações homoeróticas, pela criação da fig ura do “homossexual”, vão ser estigmatizadas como
anti-norma e dotadas de valor mora lista. É por isso que Neusa Sueli reage de forma agressiva,
sentindo-se nauseada diante da atmosfera erótica envolvendo se u “homem” e uma torpe
“bichinha”.
Fica-nos, então, a conclusão de que, no contexto de Navalha na Carne, as próprias
condições subumanas em que vivem as personagens masculinas, no caso, lhes permitem agir
conforme o instinto de sobrevivência, no qual se insere o instinto s exual, contrariando em
muitos aspectos o que se espera de um homem moderno
118
. Vado procura sustentar discurso e
comportamentos típicos do “machão”, mas se vê enredado pela manha de Veludo, um homem,
que a todo momento põe à prova a viril idade do cafetão. O discurso mascul ino vulnerável de um
estimula no outro um instinto sad o-masoquista, que apela constantem ente para a fragilidade
desse mesmo discurso. No entanto, a interação entre Vado e Veludo mantém, ainda que na
superfície, as imagens do “eu” que as personagens procuram ostentar: Vado, apesar da angústia
e do desespero no trato com o camareiro, ainda se most ra como “machão”; Veludo se sustenta no
118
A relação entre violência e sexualidade já foi tratada por Freud, em seu livro Além do princípio do prazer. Como
foge ao nosso enfoque uma abordagem psicanalítica, não remontaremos a esse estudo.
235
lugar do outro, do não-masculino, do “homossexual”. Reveladora é sua sagacidade ao virar o
jogo, deixando de ser vítima indefesa para sair-se vitorioso, com poder sobre o cafetão. Ess as
imagens são responsáveis pela própria interação estabelecida entre as personagens masculinas,
pois, se Veludo não fosse ess e outro do masculino, diverso seria o tratamento que receberia de
Vado. O comportament o de Vado, no entanto, é que f ere a crença que se tem do masculino. As
aparências revelam características que o comportamento da personagem vem contrariar.
“Homem” não se envolve eroticamente com out ro homem, muito menos se desespera por outro
homem: eis os requisitos do “macho”. Va do, contudo, mostro u sentir prazer com Veludo e se
perturbou com isso, sobretudo quando o camareiro, indiretamente, o preteriu. Falta-nos
conhecer como se processa o diálogo entre Neusa Sueli e Veludo .
Na nossa sociedade, o senso-comum a respeito do caráter do “homossexual” é que se
trata de um sujeito patológico, pois, sem “querer” admitir sua natureza de “homem”, procura se
espelhar na mulher, opondo-se ao que a Natureza generosamente ofereceu a o ser humano: a
“dádiva” de um homem poder se relacionar com a mulher para, daí, gerar frutos. V erificamos
que se trata de uma ideologia muito cara à burguesia, que se vale do discurso religioso e de uma
“ética naturalista” para construir a imagem idea l do masculino
119
.
Em comparação com os homens que se inserem no grupo demachões, as mulheres
costumam ser mais tolerantes co m os de sexualidad e homo-orientada
120
. É comum aos gays
tomarem a mulher com o opção de amizade, visto que os dois estariam comungando dos mes mos
gostos. No entanto, como há na relação entre amigas o risco de infidelida de, o gay poderá ser
também visto como concorre nte em potencial no s jogos eróticos em que estão envolvidas as
mulheres.
Todavia é difícil encontra rmos mulheres q ue vêem no homossexual um co ncorrente. Em
muitos contextos, o seu “homem” poderá, pelo co mportamento, divergir dos p rincípios da “ética ”
masculina, mas a mulher continua acreditando no discurso masculino que o companheiro
sustenta. As mulheres, pela sua própria história, constituem um grupo fértil para se reproduzir o
estereótipo da masculinidade. Cons tantemente dominada pelo poder masculino, a mulher, ao
longo dos tempos, costumou reproduzir valo res que são próprios do sistema de crença s
119
Sobre a ética natur alista, consultamo s sobretudo Costa (1992) , que, num artigo intitula do “Impasses da Étic a
Naturalista: Gide e o Homoerotismo”, analisa o discurso naturalista burguês sobre a condição moral e sexual do
homem.
120
Valemo-nos mais uma vez da generalização. É certo haver casos em que a mulher é muito intolerante com os
chamados “gays”. Também se evidenciam ocorrências de mães que não aceitam a “homossexualidade” do filho; por
vezes, apesar de raro, os pais aceitam isso mais do que as mães. No entanto, percebe-se ainda hoje que, no geral, os
“homens” são muito mais in tolerantes com os gays do que as mulheres.
236
pertencente ao grupo dos homens. Por isso a virilidade do seu companheiro costuma ser sagrada
e inquestionável.
Quanto ao homem de sexualidade homo-orientada, a mulher poderá manter uma relação
de intimidade, por meio da co rdialidade ou da amizade. É o que se pode fla grar em alguns
momentos do diálogo entre Neusa Sue li e Veludo, no caso de Navalha na Carne. Observemos os
seguintes fragmentos:
(32)
N
EUSA SUELI — Ve ludi nho, é m elh or pr a vo contar tudo direitinh o. É pro seu
bem, querida. (M
ARCOS, 2003, p. 151)
(33)
V
ELUDO — Não fica triste, Neusa Sueli. Homem é assim mesmo. Todos uns
brutos. (M
ARCOS, 2003, p. 153)
Saliente-s e que a fala de Neusa Sueli em (32) ocorre no momento em que Veludo está sendo
pressionado a confessar o furto. O tom amistoso se dá como estratégia retórica, a fim de deixar o
interlocutor seguro de que nada acontecerá se admitir o delito. É esse tom de intimidade que nos
interessa para compreendermos a imagem que o camareiro oferece e assume para a mulher. Há
dois diminutivos, “Veludinho” e “d ireitinho”, cujo efeito é de gerar afetividade, característica do
uso social que a mulher faz da língua. Mas o vocativo “querida”, com marca do feminino,
demonstra que, além da suavidade no modo de falar, Neusa Sueli o considera uma “amiga”. Essa
intimidade também se verifica em (33), quando Veludo consola a prostituta, que acabara de
receber gritos do cafetão. Ao falar do homem, Veludo não se ins ere na categoria. “Homem é
assim mesmo. Todos uns brutos” é a constatação de algo que o camareiro não é, porque não se
considera um homem.
Trata-se, entretanto, de uma afetividade fingida, pois nem a prostituta é amiga, de fato,
de Veludo, nem Veludo é seu amigo. No bas-fond, a amizade é objeto raríssimo, não porque
esteja alheia ao univer so dessas pessoas , mas porque a luta pela sobrevivência muitas vezes
desloca para um segundo plano valores como o da amizade. Na primeira parte da peça, por
exemplo, podemos constatar a forma como Neusa Sueli se refere ao camareiro: “sacana”,
“desgraçado”. Note-se, porém, que p ara convencer Vado de que Vel udo pode ter roubado o
237
dinheiro, ela refere que “há muito tempo ele vem cozinhando o garoto [do bar] e não arrumava
nada porque estava duro. O garo to cobrava caro pa ra entrar na dele” (M
ARCOS, 2003, p. 145). Tal
informação nos permite inferir que esse t ipo de diálogo acontecia en tre ela e Veludo, numa
espécie de relação de coleguismo, de “pol ítica da boa vizinhança”. Amiza de propriamente dita
não é o termo mais apropriado para se referir à relação que Veludo tem com Neusa S ueli.
Tomando como referência essa informação que Neusa Sueli dá a Vado, analisemos as
atitud es que Ve ludo ap resenta no contexto socia l em que se ins ere. A cu mplic idade en tre a
prostituta e o camareiro vai além de uma mera simpatia. Eles assumem, diante do “homem”, um
comportamento muito semelhante. N eusa Sueli trabalh a, ganha dinheiro e sustenta o cafetã o,
eleito como seu companheiro. Veludo, por sua vez, trabalha e paga os homens com quem deseja
estabelecer uma relação erótica. Como visto, em muitas situações, sobretudo nas classes
populares, para não admitir que sexo com “veado” lhe proporciona prazer, o “machão” cobra do
parceiro dinheiro ou presentes. É o caso do garoto do ba r: para “transar” com Veludo, cobrou
caro. Assim, tanto a mulher quanto o “veado” trabalham para manter junto a si um homem que
lhes dê prazer e segurança. Vado e o garoto do bar, osmachões, recebem dinheiro desuas
parceiras” para satisfazer-lhes o desejo. A virilidade de ixa de ser a penas motivo d e orgulho
masculino para se transformar em valor de troca, numa mercadoria posta à venda. A
cumplicidade entre Neusa Sueli e Veludo advém, provavelmente, daí, da mesma forma que, pelo
tipo de comportamento masculino, os dois homens seriam cúmplices.
Mas essa cumplicidade é rompida pela simple s mudança de humor, so bretudo quando
Neusa Su eli come ça a p erceb er que Veludo es tá jog ando cha rme par a seu ho mem. Dois trecho s
são significativos:
(34)
(Neusa Sueli arranha o rosto de Veludo.)
V
ELUDO — Ai, você me paga, sua porca! Você vai ver!
V
ADO — Você não vai pegar ninguém.
V
ELUDO — Ela é mu lher . Com ela eu po sso. (MAR COS, 2003, p . 150)
(35)
V
ELUDO — Não sei por que as mulheres me detestam tanto.
V
ADO — Ai, ai! (MARCOS, 2003, p. 156)
238
Para o camareiro, sentir-se mulher é tão forte que ele não se vê preparado para brigar com um
“homem ”, mas está dis post o a enfr entar N eusa Sueli, q ue é mulh er e, n as pa lavras dele, “co m ela
eu posso”. A ordem é restabelecida pelo poder do “macho”, que o manda ficar quieto, ao que
Veludo obedece.
Momentos apó s, passado o primeiro jogo do cigarro de maconha, Neusa Sueli manda
Veludo sair. O camareiro, para se vingar da prostituta e t en tando i nc itar o ca fetão cont ra ela, diz:
“Pensei que era o homem deste galinheiro que cantava de galo. Entrei bem. Quem manda aqui é
a galinha velha” (M
ARCOS, 2003, p. 155-156). Ele apela ao orgulho do homem, qu e, de acordo
com o estereótipo, deveria “cantar de galo em seu galinheiro”, ou seja, o homem deve mandar no
lar. Além disso, chama a mulher de “galinha velha”, denegrindo a imagem de Neusa Sueli, que
esconde, através de maquiagem pesada, as marcas do tempo. Ela, ao que a peça nos permite
inferir, é mais velha do que as outras personagens, mas se ofende quando é chamada de velha.
O primeiro jog o do cigarro, o insulto de Veludo e a ordem de Vado para que o camareiro
ficasse levam Neusa Sueli a compreender o que estava se passando: Veludo estava coopta ndo seu
homem [“Você vai me pagar, sua bicha. Está botando o meu hom em contra mim” (M
ARCOS,
2003, p. 156)]. Os dois estavam disputando o mesmo homem. Veludo parece querer conspurcar
a relação de ambos, ao mesmo tempo em que se satisfaz em perceber que está conseguindo
conquistar o cafetão. Então vem a fala em (35), precedida por um insulto que Neusa Sueli lança
ao camareiro (“Nojento!”). Quando Vado intercede por ele, Veludo se sente co m o poder em suas
mãos: ele está dominando o “ma cho”. E para demonstrar esse poder, trava o segundo jogo do
cigarro, em que rejeita o fumo oferecido pelo cafetão , como já ficou analisado.
Neusa Sueli sabe que poderá perder a vez para o “veado”, pois ela constata que Vado,
maconhado, se encontrava completa mente envolvido no jogo que Veludo esta va fazendo. Em vez
de outra mulher , era o “vea do” que passa va a ser, nesse contexto, o r ival da prostituta.
Os efeitos do discurso masculino se mantêm os mesmos. Neusa S ueli é a mulher,
dominada pelo “homem” (Va do); Veludo, o outro do masculino. No entanto, a f eminilidade que
Veludo ostenta o faz assumir a identidade de mulher, apesa r de con tinuar sendo constantemen te
chamado de “bichinha” e de muitos dos nomes derivados do mesmo ca mpo semântico. Quando
Neusa Sueli constata que o camareiro está tentando ganhar Vado — assim como a “vadia do
102”, que “dá em cima de tudo que é homem”, como a própria personagem se refere no início da
peça (M
ARCOS, 2003, p. 139) —, projeta nele a imagem de uma rival. Curioso é que, apesar de
censurar Vado por se ter deixado envolver com um “veado”, Neusa Sueli canaliza seu ódio para o
239
camareiro, pois o vê como um rival na conquista do seu homem. Dessa forma, restaura-se e
fortifica-se o mito da masculinidade, na medida em que a culpa da traição deixa de pesar sobre o
homem adúltero para recair sobre a “mulher” que o seduz, no caso, Veludo
121
. “O homem nasc eu
para ter várias mulheres”. Com essa ideologia ainda domina nte, sobretudo em alguns contextos,
as mulheres, mesmo não gostando, se co nformam a essa “realidade” e passam a se vingar da
amante.
Com relação a Vado, Neusa Sueli pretende, no final da peça, como vimos, subjugá-lo, a
fim de obrigá-lo a manter relações sexuais com ela, já que o sustentava financeira mente. Se é a
mulher que, no relacionamento, provê seu “mach o”, valendo-se disso para cobrar-lhe sexo, ela
está cumprindo o papel que, de acordo com o sistema de crenças burguês, é atribuído ao homem.
Não bastasse se submeter ao “papel” que deveria ser cumprido pelo companheiro, Neusa Sueli se
vale da força b ruta, ameaçando seu homem com uma na valha. É reveladora a inversão dos
“papéis”, pois Neusa Sueli, no auge do desesper o, faz o mes mo que o ho mem ao longo da história
costumou fazer sobretudo com as mulheres: o estupro sob ameaça de uma a rma. No entanto,
mais do que uma mera satisfação do apetite sexual, Neusa Sueli procura, de forma angustiada,
salvaguardar sua honra, mostrando ao homem que ela, uma mulher, pode se defender sozinha.
Toda via é difíci l à mulher, sobr etudo a da dé cada de ses senta do século passado,
enfrentar o poder masculino e sair vitoriosa. Trata-se de casos raros, que foram, aos poucos, se
tornando numerosos, até chega r, no Brasil, à revolu ção f eminina. Dessa forma , Vado, sabendo
como lidar com sua fê mea, a envolve eroticamente e a convence a largar a navalha, ou seja, a
destituir-se do poder, do falo. Quando assim o faz, Neusa Sueli volta a ficar vulnerável aos
caprichos do cafetão, que recupera a chave do quarto e sai para a rua, deixando a prostitua, mais
uma vez, sozinha.
No final da peça, comendo um sanduíche de mortadela, Neusa Sueli expressa sua
completa solidão e sua dependência emocional em relação ao cafetão, voltando a assumir a
posição de fêmea passiva, enquanto Vado, o “macho”, a abandona, sem dizer se vai voltar ou não,
como um homem que é seguro do poder que a so ciedade lhe outorga.
No final de nossa análise, retomando a metáfora do s sapatos e da navalha, podemos
constatar alguns aspectos presentes em ambas as peças, os quais apr esentaremos a título d e
considerações finais. Numa l eitura mais ampla, o pa r de sapatos, como símbolo de prestígio
social, é almeja do, explicita mente, pela perso nagem Tonho, mas po demos estender o alcance
121
Lembremos que, ao analisar Perdoa-me por me traíres, mencionamos o valor patriarcalista que a Bíblia atribui à
traição.
240
dessa simbologia, dizendo que também as personagens em Navalha na Carne desejam sobreviver
e transcender a realidade em que vivem. Quanto ao prestígio social, nos pa rece ser um sonho
mais explicitamente present e na personagem V ado, pela forma como se refere a ele próprio.
Quando diz a Neusa Suely que “Mulher que quer se bacanear com cara linha de frente como eu
tem de se virar certinho”, Vado deixa subentender que é um sujeito vistoso, admirado.
Certamente a personagem pode estar querendo contar vanta gens de si para a prostituta , mas não
dispomos de nenhum indício que no s faça p ensar diferente. Pelo co ntrário, ao acei tar que
“Vadinho” se dirija assim a ela, chamando-a, inclusive, noutra ocasião, de “velha”, Neusa Suely
nos faz acreditar que o seu homem é um indivíduo sedutor e disputado. Vado se orgulha disso, o
que nos faz pensar que sua imagem é seu próp rio marketing pessoal e que, não fossem as
condições adversas do ambiente onde se encontra, promoveria sua ascensão social. Está com
Neusa Suely porque ela o sustenta, mas deixa bem claro para a companheira que, se não fosse
pela “grana”, ele estaria investindo em outras relações.
Quanto à navalha, tanto as pessoas podem usá-la para auto-defesa quanto para auto-
satisfação (quando a usam para exigir que os outros lhes satisfaçam algum desejo). É o que faz
Neusa Suely ao usar a própria navalha. Em Dois Perdidos numa Noite Suja, a navalha é
substituída pelo revólver, que Tonho usará para assaltar o ca sal no parque e, no final da peça,
matar Paco, a fim de defender sua própria “honra”.
No entanto, é a leitura mais particular da simbologia dess es dois elementos o q ue nos
interessa, conforme impõem os ob jetivos desta análise. Sendo o sapato objeto fálico, em Dois
Perdidos numa Noite Suja estaria representando o desejo de Tonho de recuperar sua própria
dignidade masculina, po sta em prova co tidianamente pelas condições mesquinhas do mundo em
que está inserido, o underground, de acordo com o que foi visto. Paco tinha um sofisticado par
de sapatos que ga nhara, mas esses lhe ficavam g randes nos pés, o que revela uma desproporção.
Paco, da mesma forma que calça os sapatos porque lhe dão, acredita a personagem, maior
visibilidade, veste uma armadura de “macho”, que lhe permite gabar-se e humilhar o
companheiro. No entanto, assim como os sapatos lhe são grandes, a sua “macheza” se mostra,
também ela, desproporcional, postiça, como s e torna flag rante na mudança de atitud e da
personagem qua ndo Tonho confess a que vai embora. Paco demo nstra não admitir a idéia de o
companheiro partir.
Em Navalha na Carne, o símbolo fálico é a própria navalha. Neusa Suely se vale da
navalha para demonstrar um comportamento mais viril, quando a leva para o serviço na rua ,
quando a usa para ameaçar Veludo e para f orçar Vado a fazer sexo com ela. A despeito disso,
termina a peça sozinha, impotente, comendo um sanduíche de mortadela. Vado, pela
241
malandragem, escapa do poder da navalha e do domínio que a mulher quer exercer sobre ele
(valor simbólico do falo). Confiante de que é o “Vadinho das Candong as”, que possui a vantagem
de ser “macho”, Vado deixa para trás a prostituta porque sabe que, mesmo separado dela, poderá
conquistar outras mulheres e, como vimos, “veados” que estejam dispostos a pagar pelo seu
serviço. Nessa peça, é o falo masculino que sai vitorioso. Mesmo assim, no decorrer do drama,
constatamos que o poder do falo é desestabilizado em vários momentos. A sedução por parte de
Veludo, por ex emplo , faz co m que Va do, deses pera do, ap ele par a a mulhe r, par a que ela pudess e
interceder na briga, de caráter eminentemente erótico, entre ele e Veludo.
As duas peças de Plínio Marcos assumem uma atmosfera muito masculinizada, como se a
agressividade, atitude social e ideologicamente relaciona da à masculinidade, fosse o único
expediente para manter as personagens vivas no submund o de onde emergem. No entanto,
fazem ver que alguns comportamentos e sentimentos muito sutis das suas personagens
masculinas contradizem o mito moderno da masculinidade, o padrão burguês do que se entende
por masculino, como constatamos ao longo da análise. Ao revelar a realidade do submundo,
Plínio Marcos nos possibilita ver que os discursos para nossos propósitos, o discurso
masculino sustentados pelas personagens reproduzem os mesmos valores ideológicos
hegemônicos das classes média e alta, e se configuram de forma hiperbólica, quase caricatural, já
que a virilidade é uma arma exigida para que continuem sobrevivendo em seus habitats.
No entanto, ta nto numa quanto noutra, verificamos que o discurso sobre o masculino ,
valendo-se do estereótipo, aponta para uma complexidade quanto à idéia do que vem a ser
“homem”. É certo que o discurso dominante é o que se vale do sistema de crenças heg emônico
quanto à imagem masculina. A despeito disso, cada peça insere a alteridade, o outro do
masculino, de forma significativa, na medida em que esse outro se relaciona dialeticamente com
o sistema de referência (cf. P
ATERSON, 2004), a ponto de problematizar a concepção do “homem”
que se tem por modelo.
Em mom entos flagrantes, os discurso s verbalizados pelas persona gens não equivalem ao
comportamento que elas manifestam e m cena. Paco, por exemplo , exprime um discurso de vi és
machista, ridiculariza Tonho, colocando-o freq üentemente no espa ço do outro, ma s, no
momento em que se vê diante d a possibilid ade de ser abandonad o, demonstra o qua nto
necessita da presença do companheiro. Sua homoafetividade (mais uma vez reforçamos, o termo
não apresenta necessariamente conotações de sexualidade, pelo menos da forma triádica como
nossa sociedade concebe a questão hetero, ho mo e bissexualidade) se expressa pelos diversos
artifícios de que se vale para evitar que o amigo seja bem sucedido e o abandone. Como se vê, a
afetividade masculina não pode ser reduzida e controlada, de fato, por um sistema de referências
242
hegemonicamente compartilhadas. A personagem Vado, por sua vez, se configura a partir do
estereótipo do “machão”. No entanto, o jogo homoerótico que enceta com Veludo abala o mesmo
estereótipo e a ponta para a complexida de do des e jo masculino, muito além das redutoras formas
modernas de classificar a sexualidade humana.
Assim como Nelson Rodrigues, Plínio Marcos constrói personagens masculinas cujos
discursos põem em crise a própria noção moderna de masculinidade. Há, porém, diferenças
consideráveis. Em Nelson Rodrigues, nas duas peças enfo cadas, essa crise surge como um
pequeno cancro que brota do seio do senso comum. As personagens masculinas são movidas por
forças instintivamente imperiosas, que se choca m com a ordem androcênt rica vigente, o que
provocará a ruína f ísica e moral dess as persona gens. Em Perdoa-me por me traíres, como vimos
no capítulo anterior, o discurso de Gilberto, por exemplo, é expresso como o outro do masculino.
Inserido no contexto da pequena-burguesia, c om sua rígida moral e representa ções sociais
particulares, a voz d e Gilberto é violenta mente silenciada: a personagem é consid erada louca e,
por isso, internada numa casa de saúde. Nelson se vale do confronto trágico entre senso comu m
e alteridade e da conseqü ente punição à alteridade para mostrar personagens que, mesmo
infringindo a moral burguesa padrão, merecem atenção especial.
Enquanto Nelson R odrigues enfatiza a alteridade que representa o nã o-masculino para a
ideologia burguesa, Plínio Marcos focaliza a figura do pobre marginalizado, construído como
alteridade a partir do q ue se tem por referênc ias sociais dominantes . No entanto, ao inserir
personagens num ambiente underground, ter mina por demonstrar q ue os valores masculinos
sustentados por essas personagens converg em, geralmente, para um único ponto: a
agressividade, necessária para a sobrevivência num mundo obscuro e adverso. A sexualidade é
usada como instrumento de poder e, nesse caso, é o “homem machão” quem impera. Valores
machistas próprios do mundo burguês são incorporado s pelas personagens masculinas, mas elas
subvertem esses mesmos valores quando assumem um comportamento, uma afetividade, um
erotismo não-condizentes com a ideologia burguesa. Dessa forma , revela que o universo
masculino é muito mais complexo do que o sistema de crença s burguês deixa prever.
Para investigar mais um aspecto dessa crise dos valores modernos da masculinidade, a
partir de sua expressão no teatro, focalizaremos, no próximo capítulo, duas peças de Newton
Moreno.
243
7. Newton Moreno
Arranhei na parede de dentro meu nome e o dele. Na carne mais
íntima.
(Newton Moreno, Dentro)
CONTADOR(A)
Súbito, uma multidão fez fila na porta do quarto. Uma mulher
despida sob a cama e outra de costas olhando o retrato de Jesus.
A viúva não entendia nada. Não entendia a morte. Não entendia
homem. Naquele momento, só entendia a perda. Incrédulos, alguns
faziam o sinal da cruz, outros se penduravam na janela para
procurar atentos pelo peru. Já havia quem tomasse partido dela.
VOZ1
“Foi enganada a coitadinha. A sem-vergonha iludiu a bichinha”.
(Newton Moreno, Agreste)
A obra de Nelson Rodrigues e a de Plínio Marcos se inserem no que chamamos de
dramaturgia brasileira moderna, compreendendo por essa expressão a produção dramática que,
no Brasil, apresentaram inovações condizent es com a arte moderna (o u modernista). Newton
Moreno, por sua vez, faz p arte da leva de dra maturgos brasileiros contemporâneos, ou seja, que
surgiram a partir dos anos 90, co m obras profundamente marcadas por um olhar e por uma
postura contemporâneos, como tivemos a oportunidade de verificar.
Neste capítulo, tomaremos como foco de nossa análise os discursos sobre a
masculinidade contemporânea que se encontram presentes nas duas obras do autor, escolhidas
para compor nosso corpus, Dentro e Agreste. Esse discur so está subjacente, como veremos
adiante, à forma como o dramaturgo enfoca em suas peças o tema homoerotismo. Nem por isso
deixaremos de considerar a elaboração estética do texto, qu e dialoga, in condicionalmen te, com
os avatares da dramaturgia contemporânea. Assim, poderemos chegar a conclusões plausíveis de
como as formas estéticas no teatro pro põem uma concepçã o particular sobre os temas com que
trabalham. No caso específico de Newton Moreno, o homoerotismo.
244
Como instrumento de análise, usaremos a categoria de alteridade, tal como vimos em
Van Dijk (2003) e em Paterson (2004). Tomaremos como parâmetro maior a perspectiva do
outro em Van Dijk, já q ue está associada à discussão sobre ideologia, que pr essupõe um
conhecimento do discurso como forma de apreensão e d e transformação do real.
Nas análises precedentes, fizemos uma síntese da fábula de cada peça, uma vez que o s
textos — com menos intensidade em Nelson e com maior em Plínio — respeitavam as diretrizes
da Dramática, apresentando uma fábula realizad a pelas próprias persona g ens. Neste capítulo, no
entanto, não poderemos fazer o mesmo para as duas peça s de Newton Moreno, porque elas
pertencem a um momento histórico em que a dramaturgia se encontra cada vez mais longe da
concepção de drama e m Aristóteles (especifica mente da concepção de tragédia) e na Er a
Moderna. Ou seja, em nenhuma das peças há uma fábula no sentido dramático do termo:
composição das ações no presente da enunciação, de forma que elas apresentem uma unidade,
com in ício , me io e fim. É ine gáv el qu e nos t ext os de Newton Moreno encontramos uma fábula,
mas essa compreendida num sentido épico . Explicamos melhor. Se tomarmos o tempo presente
como o tempo em que transcorrem as ações do drama ortodo xo, constataremos que Dentro e
Agreste dispõem de uma ação dramática ínfima, esgarçada. Vejamos cada caso.
Em Dentro, o dramaturgo pretende u criar um ex perimento tomando como refer ência a
filosofia da Body Art, espécie de arte visual performática em que o corpo do artista é utilizado
como suporte ou meio de expressã o. Como criação conc eitual, a Body Art é um convite à
reflexão, podendo o espectador atuar de forma pa ssiva, mas também como voyeur ou agente
interativo. De acordo com Merleau-Ponty (apud M
ORENO, 2003, p. 100), “em se tratando do meu
próprio corpo ou de algum outro, não tenho nenhum mo do de conhec er o corpo humano senão
vivendo-o. Isso significa assumir total responsab ilidade do drama que flui através de mim, e
fundir -me c om ele” . O univ erso teó rico da Body Art es timulou a concepção drama túrgica de
Moreno, apesa r de, estritam ente, a peça não se inserir nesse t ipo de manifestaçã o artística
122
.
Como dissemos, trata-se de uma referência, uma vez que, em Dentro, o discurso amoroso da
personagem se desenvolve durante a prática de um ato erótico que age, de forma não-
convencional, sobre a “carne” do parceiro, buscando a transcendência mediante o físico
(concreto), o interior do outro (daí o título da peça) a partir de sua superf ície corpórea.
A ação se passa ao longo de um ato de fist-fucking, num curto período de temp o. São
duas as personagens presentes, que não mantêm entre s i diálogo algum, no sentido estrito da
palavra, isto é, não há troca verbal. Como sustentaremos no desenvolver da análise, concebemos
122
Diz o dramaturgo ter se inspirado, também, na curta peça de Heiner Muller, Peça-Coração, que, por su a ve z, foi
inspirada no poema dramático Vênus e Adônis, de William Shakespeare (cf. M
ORENO, 2003) .
245
essas duas personagens como reflexo s prismáticos provenientes de uma única voz enunciativa.
Essa voz, claro, encontra-se cindida, fraturada, assim como se encontra a personagem Homem,
emocional e existenc ialmente. A fal a do Homem mistura e lementos líricos (quando se realça a
força expressiva/emotiva da linguagem) co m a narrativa de fatos passados, quando a
personagem viveu s ua inesquecível história erótico-amorosa com Binho. A fábula é trazida como
objeto épico, narrativa dos fatos distanciados do momento presente da ação dramática. E é
justamente essa fábula que se torna o veículo para a performance do ator que, por ventura,
venha a desempenhar a personagem.
A segunda voz, apesar de conter traços épicos (fragmentos de narrativa, como veremos),
funciona como exp ressão lírica, semelhante a uma das f unções desempenhadas pelo coro nas
tragédias gregas. Ou melhor, é uma voz que interrompe a narrativa oferecida pelo Homem para
exprimir, liricamente, um fluxo de senti mentos amorosos. Por outro lado, as interrupções do
Rapaz compreendem um procedimento épico, por duas razões comp lementares: propõem um
distanciamento do que está sendo narra do e, ao mes mo tempo , come ntam, po r meio de uma
locução lírica, as emoçõ es vividas pe la personagem Homem.
Tomando a fábula como objeto epicamente trabalhado, podemos assim resumi-la: num
passado remoto, o Homem brincava com seu amigo , Binho, de “pôr o dedo no seu cu [no “cu” de
Binho]” (A
NEXO 1). O H omem, que nunca tocara outro sexualmente, se ap aixona por Binho e
começa a pagar ao garoto para fazer o fist-fucking. Binho usava o dinheiro recebido para
comprar presentes para si e p ara sua namoradinha preferida. Pelo que fica suposto no relato, os
encontros íntimos entre os dois, Homem e Binho, dura ram algum tempo. Logo depois, eles
perdem contato um do outro. O Homem diz ter procurado Binho durante anos. Finalmente o
encontra, já com 35 ano s de idade, numa esquina escura, “ zonzo de crack” (A
NEXO 1). Pro põe a
Binho pagar-lhe um fist-fucking e termina chorando, sem tocar no objeto de seu amor. Binho
ergue as calças e não percebe que o Homem nada fizera. Caminha trôpego para dentro da noite.
O homem fica só.
O que nos chama primeiramente a atenção é o que as persona gens fazem no palco. Como
a nossa moral é ainda fortemente marcada pela moral burguesa moderna, ela nos impele a
reagir, diante da ação cênica, com certo estranhamento. Uma das idé ias contempo râneas mais
defendidas pelo compo rtamento “politicamente co rreto ” é que todos têm o d ireit o de g ozar co mo
bem lhes aprouver. No entanto, apesar de a liberdade sexua l estar sendo propalada no Ocidente
há quatro décadas, tornar um a to de fist-fucking como ação cênica, ao longo do qual se passa
toda a peça, ainda gera em algumas pessoas da platéia um certo incômodo. A opção
246
dramatúrgica foi concentrar toda a narrativa durante esse tipo de ato sexual. Dessa forma, o
dramaturgo trabalha o tema na perspectiva da alteridade.
No que diz respeito ao sexo, as diversas opções de prazer são inconcebíveis para a maior
parte da população que vive sob a égide da moral burguesa tardia. De a cordo com essa moral,
como já vimos, a única relação sexual possível é a hetero-orientada. Dispondo a sexualidade
como uma das grandes áreas de questionamentos e de problematizações, como demonstra
Foucault (2001a, p. 139), a sociedade burguesa a coloca “ao lado da norma, do saber, da vida, do
sentido, das disciplinas e das regulamentações”. As atividades sexuais passam a ser reguladas e
controladas, a fim de se poderem “determinar os bons casamentos, de provocar as fecundidade s
desejadas, de gara ntir a saúde e a longevidade d as crianças” (F
OUCAULT, 2001a, p. 139). Apesar
de se denominarem Estados seculares, as nações burguesas deram continuidade ao ascetismo
cristão, usando o seu discurso e desviando-o quando possível, a fim de responder aos
imperativos de uma economia liberal.
Como um dos propósitos fundam entais da civilização b urguesa é a constituição de
famílias, que procriarão para garantir a produção e o acúmulo do capital, a única forma de
satisfação sexual publicamente falada [vale aqui lembrar a noção de formação discursiva em
Foucault (1995); ou seja, o que é ou não possível fa lar numa dada instituição] é a dec orrente da
penetração falo vs. vagina. Depois da revolução sex ual dos anos de 1960 e de 1970, abriu-se
espaço para se falar de felação e de penetração anal, considerados atos impudicos e proibidos
para as famílias tradicionais.
A partir de Costa (1995), Green (2000), Trevisan (2002) e Oliveira (2004), por exemplo,
tomamos co nhecimento de que as prát icas homo erótica s, profunda mente vigia das e punida s na
sociedade burguesa do século XIX, são tomadas como pato logias passíveis de investigações
médico-legais. Essas pesquisas deram prosseguimento até meados do século XX. Tudo o que
dizia respeito à economia sexual dos pederastas inter essava aos ó rgãos financiados pelo Estado
burguês e propagadores da moral e da ideologia burguesas. Como vimos, os homossexuais eram
considerados doentes, desviantes, po rtadores de taras comprometedoras da saúde sexual do
sujeito.
As pessoas que comung am dos padrões da moral sexual m oderna concebem o ritual de
fist-fucking como uma aberração, como algo patologicamente diferente, uma vez que abdica da
relação ideologicamente sustentada entre s exo e procriação. É um ritual praticado tanto por
homens quanto por mulheres, uma vez que consiste na penetração, da vagina ou do anus, pelo
punho, podendo chegar ao ante-braço. Portanto não é algo que se restringe apenas à vivência
247
sexual homo-orientada. O que torna sua imagem desfavorável às ditas pessoas “normais”,
praticantes do sexo “natural”, é a atmosfera underground que ele carrega , provavelmente
oriunda de suas origens: era um ritual muito praticado em sessões de sado-masoquismo. O sado-
masoquismo é uma prática que contraria a moral burguesa do casamento e do “respeito” entre
os cônjuges ; contra ria a ideolo gia româ ntica do amor, im portante para sedimenta r a união
conjugal monogâmica, instrumento de interesse da economia moderna. Como patologia , deveria
ser tratado; do contrário, dever ia ser interditado e se limitar, quando muito, a ambientes
privados, distantes do convívio público das pessoas “civilizadas”. Apesar de ser praticado
também por mulheres, vale repetir, o fist-fucking costuma ser, pelas crenças sociais majoritárias,
associado a uma prática sado-masoquista e esta, à vida sexual dos “pederastas”. Vale mencionar
que, na peça de Newton Moreno, o Homem conf essa: “Só uma certeza me fortalecia: elas nunca
veriam pelo mesmo ângulo que eu via. Isso elas jamais teriam. E eu tive. Eu e quase todo o
bairro.” (A
NEXO 1). Esse “ângulo”, refer indo-se ao orifício anal, não poderia ser visto pe las
meninas, não porque elas nã o pudessem fazer a mesma prática, mas porque, nas interações
sexuais hetero-orientadas, determinadas leis são soc ialme nt e imp osta s, com o a in vio lab ilida de
da zona anal masculina, a despeito dos novos di scursos feministas que investem no prazer que a
mulher pode proporcionar ao homem, tocando e instrumentalizando a região anal de seu
parceiro.
Ao opta r pelo fist-fucking como ação reguladora da cena, em que se expõe um
personagem-narrador praticante dessa modalidade de s exo, o dramaturgo destaca a alteridade ,
não tanto na perspectiva de Paterso n (2004, p. 27), p ara a qual a diferença pa ssa a ser alter idade
quando “o grupo de r eferência dispõe de um inventário d e traços pertinentes que constituem a
alteridade de uma personagem”. Na peça de Newton Moreno, a alteridade não é tão marcada por
um grupo de referência, apesar dos trechos abaixo sug erirem algo diferente:
(36)
Tem gente que só tira fezes do rabo; Binho tirou uma bicicleta, patins, comprou
até boneca para sua preferida, Neide. Ele a adorava. Acho que pensava nela
enquanto se prostituía. Deu-lhe uma bo neca embrulhada em papel de presente
no aniversário. Com laço e tudo. Nem o pai dela tin ha dinheiro para tanto. Se
eles soubessem de onde vinha o dinheiro. (ANEXO 1) (grifo nosso)
248
Chamamos a atenção, no trecho grifado, para a suspensão f rasal, encerrando, com isso,
uma informação implícita: “eles” (namorada, pai da namorada e demais pessoas conhecidas do
garoto) não sa biam como Binho co nseguia ta nto dinheiro; se soubessem, ficaria m
“escandalizados”. Mas ficariam escandalizados por quê? Primeiramente porque Binho está
mantendo relações sexuais com um homem; em segundo lugar, porque essas relações,
“naturalmente” “patológicas”, se realizam por atos considerados bizarros (o fist-fucking); em
terceiro, porque Binho ainda recebe dinheiro por isso, o que revela seu comportamento d e
prostituto.
Mesmo assim, o texto não chega a estabelecer um determinado grupo de referência como
signo relevante para a histór ia que se desenrola. Não há dra ma, no sentido estrito da palavra.
Não há choque de vontades, choque de idéias, choque de concepções. Pelo menos isso não chega
a ser um dado considerá vel no texto. O fist-fucking, como motivo propulsor da peça, assume
caráter de alteridade na medida em q ue se cruza com um interdiscurso, qual seja, o discurso da
moral burguesa. Não que esse discurso esteja exatamente expresso no texto ; pelo contrário, ele é
exterior, mas mantém com o texto uma relação dialógica e, dessa maneira, conforme Bakhtin
(1981), encontra-se nele inserido. Ao centralizar a cena no ato do fist-fucking, o dramaturgo fa z
uma opção não somente estética, mas sobretudo política
123
. Contemporaneamen te, há um maior
espaço nas mídias e nas artes para se discutir a realidade das minorias sociais, nas quais se
enquadra o “homossexual”. Se antes o tema era tabu, a partir dos anos 60 começam a proliferar
no Ocidente as expressões ar tísticas que tomavam o homossexualismo como tema central.
Assim, com a arte, pretende-se promover uma discussão de ordem política, econômica e
ideológica: a existência de práticas ho moafetivas comp lexas, plurais, que contrariam o que
estamos chamando de moral burguesa moderna e se afirmam como legítimas tanto quanto essa.
A arte se torna um espaço privilegiado para revelar tudo que sempre estivera interdito na
sociedade burguesa. E a realidade plural de nossa cultura vai se tornando, em virtude da
ativ id a de a r t í st ica , ca d a v ez ma is c o n h e c i d a .
O fist-fucking se torna alteridade também porque há um discurso de referência
subentendido a partir de certos momentos do texto, segundo o qual as “perversões sexuais”
devem ser mantidas em ambiente privado, de preferência num quarto fechado à chave. Mais
uma vez asseveramos que o interdiscurso (formação discursiva da moral burguesa) está presente
na peça na medida em que se coloca co mo dado da exterioridade com o qual dialoga o motivo-
123
Para esta afirmação, embasamo-nos em Van Dijk (2003), para quem a escolha temática ou dos motivos constitui,
como já vimos no Capítulo 2, uma opção de ordem ideológica. No caso de Newton Moreno, o foco dado à intimidade
de um sujeito pertencente à minoria social um “homossexual” consti tui u ma de lim itaçã o tem átic a a par tir d e uma
opção ideológica.
249
pivô da ação cênica . Esse diálogo é flagra do em, pelo menos, dois momentos. No prime iro, como
vimos no exemplo (36), quando o discurso da homoafetividade faz referência à voz da opinião
pública, que se menciona como instituiçã o de referência. O segundo momento é o que dispomos
abaixo:
(37)
Me acostumei com a idéia de um homem nu na minha frente, oferecendo as
vísceras. Cresci com essa vontade. Em decúbito, agachado, sepa rando
cuidadosamente as polpas de suas nádegas, amaciado, amanteigado,
entorpecido, pronto para uma viagem íntima.
Pelo menos sempre foi sexo seguro. E sem luvas, nem pensar. Acho que a Bíblia
nem fala nada sobre isso. Ou será que fala ? ( pausa )
Não, definitivamente não fala.
Mas m atar am t ant a gen te po r co loca r o “s acr ossa nt o órg ão r epr odu tor” no
“vaso traseiro”. Teriam misericórdia se puséssemos a mão ? O punho? Duvido.
Eles nunca tiveram compaixão alguma com o prazer. De nenhum tipo.
O coitado do cu já sofreu muita perseguição. Ele é só mais uma porta.
(A
NEXO 1)
Aqui a interdiscursividade é mais fl agrante e mais palpável. Ao consid erar a Bíblia, o
campo discursivo da homoafetividade interage com uma formação discursiva de o utra ordem,
advinda do universo discursivo religioso , especificamente d e orientação judaico- cristã. Es se
discurso é assimilado pelo viés de uma dupla ironia. Quando q uestiona se a Bíblia fa z referência
a tal ato “libidinoso”, o sujeito discursivo se vale de um artifício retórico, pois sabe que o “livro
sagrado” não menciona nada a respeito (como ele conclui, “Não, definitivamente não fala”), mas
a personagem se mostra hesitante, até co ncluir que nada é menciona do. Essa hesitação é, a
nosso ver, uma encena ção que ironiza a natureza discurs iva da Bíblia, haja vista que, nesse
campo discursivo, o fist-fucking não seria jamais levado em consideração, tamanha é a abjeção a
uma prática que parece não ser recente. Trata-se de um tipo de informação vetada pela formação
discursiva que compreende o chamado “livro sagrado”.
Além disso, ao se referir ao “‘sacrossanto órg ão reprodutor’ no ‘vaso traseiro ’”, a
personagem faz pairar em seu discurso um intertexto oriundo dos discursos inquisitórios, como
podemos conferir, por exemplo, em Trevisan (2002). ‘Sacrossanto órgão reprodutor’
corresponde, como se pode prever, à forma como o s clérigos s e referiam ao pênis. ‘Vas o tra seiro’,
250
como também é possível inferir, ao ânus. É clar o que a ironia assume, aqui, um caráter paródico,
na medida em que toma por séria a razão de já terem matado “tanta gente por colocar o
‘sacrossanto órgão reprodutor’ no ‘vaso traseiro’”, ao passo que se verifica, logo depois, uma
crítica a esse discurso religioso. O enunciado “O coitado do cu já sofreu muita perseguição”,
demonstra, pelo nome ‘coitado’, uma evidente t omada de partido por essa parte do corpo e po r
sua perseguição ao longo da história da Igreja medieval e pós-medieval. O contraste estilístico
entre “vaso traseiro” (estilo rococó) e “cu” (est ilo vulgar) — é com essa última pa lavra que ele
encerra seu discurso em (37) — mostra uma ironia sarcástica, um desprezo absoluto ao discurso
judaico-cristão. E, saliente-se, o negrito é do próprio texto, o que evidencia o propósito de
assinalar a palavra “cu”. Trata-se, no caso da homoafetividade presente na peça, de um discurso
que se impõe e se vê no direito de fazê-lo. Não há , aqui, uma tensão entre o que é certo ou
errado. Há, sim, uma menção irônica à Bíblia e aos trabalhos da “Santa Inquisição”, que se
rever te em at itude cr ítica e afirma ção de sent imen tos e com porta ment os legít imos , ou seja , da
homo-erotização.
Sobre sua peça, diz o autor:
A vocação desta dramaturgia parece- me mais conciliadora. Menos vulcânica e
de ruptura, mas de uma sutil manipulação, de uma conquista de novos ‘leitores’
para a dramaturgia homoerótica. Talvez tenha um parentesco mais próximo
com espetáculos como VIOLETA VITA e NOSSA SENHORA DAS FLORES,
situando-se num campo minado entre eles. Estas peças, cada qual a sua
maneira, implodiam a defesa de um público menos acostumado ao poder
transgressor da margem, educando-lhes o olhar, seduzindo-os elegantemente —
com o irresistível charme do casal lésbico de VIOLETA — ou mesmo cedendo ao
transe poético imposto p elo exército de travestis e ‘pervertid os’ de NOSSA
SENHORA. (M
ORENO, 2003, p. 99)
Com essas palavras, Newton Moreno mo stra-se completamente favorá vel à prática de
uma dramaturgia homoerótica, partindo da “constatação de que existe uma literatura que é
gerada sob o ponto de vista da margem, do lado de lá. Dos que não foram convida dos para a
festa” (
MORENO, 2003, p. 21). Em sua opinião, há uma arte gay, criadora de referências que
promovem a identificação da comunidade gay (oprimi da po r modelos he teross exuais) e,
concomitantemente, fomentadora de uma discussão, de ordem cultural , a partir do ângulo da
margem. Nesses termos, a chamada “arte gay”, se não encontra espaço no status quo, inventa
251
um novo espaço para si, um espaço à margem. É com essa perspectiva estético-política que
Newton Moreno trabalhará sua dramaturgia homoerótica.
O uso da paródia, em (37), é um expediente político que não foge ao nosso foco de análise
crítica do discurso sobre o masculino. De ac ordo com Linda Hutc heon (1989), a paródia,
entendida como “contra-canto” (para + odos), caracteriz a-se por se referir a um discurso
codificado e por constituir uma inversã o irônica desse discurso. Nesse caso, tendo em vista a
forma como o Homem encerra a menção à s perseguições sofridas pelo “ cu” dura nte muito tempo
da história da Igreja, podemos dizer também que, na peça, a paródia veicula uma sátira aos
costumes e modos de pensar de uma época e de uma instituição intra nsigente. Enquanto a
paródia dialoga com os discursos codifi cados, a sá tira se dirige a q uestões de ordem so cial ou
moral. Ainda conforme Hutcheon (1989, p.77), existe na sátira, além da postura destrutiva, u ma
certo idealis mo implícito, na medida em que ela é, “com freqüência, ‘descaradamente didática e
seriamente empenhada numa esperança no seu próprio poder de efetuar mudança ’ (Bloom e
Bloom 1979, 16)”. Se em Dentro a paródia é veiculo da sátira, acreditamos que a voz enunciati va
coloca-se numa condição didática de provar que a forma de pensar, hoje, mudou. A distância no
tempo, entre o texto e o intertexto, permite ao Homem o lhar o pa ssado com maior ob jetividade e
maior criticidade. Essa crítica se fundamenta num discur so de convicta defesa à a fetividade
homo-orientada e se coloca como refratário à moral que sustenta, como um dos pilares, o
discurso católico. Em Dentro, o discurso da homoafetividade ou do homoerotis mo (no caso da
peça se ver ificam os dois) se ap óiam num sistema de crenças onde esse tipo de af etividade ou de
erotismo é legítimo e provável de acontecer a qua lquer ser humano, sem, com isso, p recisarmos
qualificar de doente o sujeito que os vivenc ia.
Vê-se que esse tipo de discurso entra em choque com o discurso moderno ( leia-se
burguês) sobre a masculinidade. O sujeito do discurso em Dentro se assume como o outro da
masculinidade moderna. Em sua s egunda fala, O Homem, ao se referir aos ga rotos de sua
juventude, diz: “com os meninos, eram só negócios” (A
NEXO 1). Os “men inos” já reproduziam o
sistema de crenças sobre o masculino e, como fica implícito no texto da personagem, aceitavam
fazer sexo com outro desde que houvesse negociação, e, com isso, se impunha a venda do sexo
como condição. Para obter satisfação, o Homem tinha de paga r a quem l he of erec esse s exo, co mo
Binho. Mas a peça valoriza o sentimento amoroso da personagem, não sua condição de
“humilhado e ofendido”. A alteridade se a ssume como forma legítima de exercer outro aspecto
da masculinidade.
Cur ioso é que a personagem se chama “Homem”. Ao confessa r verdadeiramente seu
amor e sua nostalgia, ela não deixa de ser o “Homem”, mesmo que seus sentimentos contrariem
252
a ordem do sistema de crenças burguês. Esse Homem é mais uma afirmação das diversas formas
que o sujeito tem de exercer sua própria masculinidade, para além das restrições do discurso
moderno sobre o tema.
O ritual de fist-fucking, presente na cena, contém um valor simbólico merece dor de
atenção. Antes de mais nada , o punho (ou a mão), com o qual o Homem penetra seu parceiro
sexual, assume evidentes conotações fálicas. Simb olica ment e — e é por meio, inc lusi ve, do
simbólico que podemos alcançar o sistema de crenças masculinas —, a mão exprime as idéias de
atividade, de poder, de dominação e de supremacia. Para o Antigo Testamento, “cair nas mãos de
Deus ou de determinado homem significa estar à sua mercê; poder ser criado o u elimina do por
ele” (C
HEVALIER; GHERBRANT, 1993, p. 591). Compreende-se que esses valores atribuídos à mão
correspondem às idéias sobre a imagem masculina compartilhada pelo mundo ocidental
moderno: sujeito ativo, capaz de exercer, pelo poder concedido ao homem, domínio e
supremacia sobre os mais fracos. Em Dentro, a personag em Homem assume seu caráter de
alteridade, ma s desempenha uma ação revestida de um gestus mascul ino
124
. Na cena, o gesto do
Homem com relação ao Rapaz consiste numa tomada de atitude. É ele quem paga pelo sexo; é
ele quem quer se satisfazer da forma como lhe apraz. Valendo-nos do imaginário social
brasileiro, podemos dizer que a atitude da personagem é ativa. Vê-se que ele paga para realizar a
penetração, a qual equivale, como já enfatizamos, a uma tomada de posição masculina, conforme
sistema de crenças em questão. Dessa forma, ao agenciar e centralizar os signos da cena, o ritual
de fist-fucking, simbolicamente masculino, marca um g esto do sujeito Home m. Ao mesm o
tempo, o ato do fist, tido como agressivo e violento , implica um tro ca de muita confiança e
cuidado com o parceiro. Essa ambivalência é relevante na construção da dramaturgia. A
personag em é refer ida como Homem, ag e, simbolica mente, como ho mem e vi vencia a
homoafetividade e o homoerotismo. Não que a peça, como um todo, jogue com a inversão
satírica, mas ela aponta (ou deixa brechas para isto) para as formas diversas que o homem pode
viver e exercer sua mascul inidade.
Mas nã o é somente pela fala d o Homem qu e nós encontr amos certos índices para a
compreensão de como o discurso sobre o masculino é construído na peça. Já vimos que o fist-
fucking participa, como elemento cê nico, desse discurso, na medida em que é colocado como
indicativo de alteridade. Além disso, outra voz é enunciada junto à do Homem. Como indicamos
124
Faze mo s uso da pal avra gestus no mesmo sentido em que Brecht (2005, p. 155) a emprega no seu Pequeno
órganon para o teatro: “Chamamos esfera do gesto aquela a que pertencem as atitudes que as personagens assumem
em relação umas às outras. (...) às atitudes tomadas de homem para homem pertencem, mesmo, as que, na aparência,
são absolutamente privadas (...)”.
253
anterior mente, um Rapaz p artic ipa da cena c om o Homem. El e se colo ca como mais uma
personagem.
Prado (1992), fazendo menção aos manuais de playwriting, declara que há três vias
principais de acesso à personagem dramática: 1) O que a personagem revela sobre si mesma?; 2)
O que faz a personagem?; e 3) O que os outros dizem a seu respeito? Para o crítico, a primeira via
corresponde a uma estratégia dramática muito comum no teatro até o século XIX, tornando-se
mais rareada a partir da eclosão do Natura lismo, que faz parecerem artif iciais as técnicas
freqüentemente utilizad as, como a presença de um confidente, pa ra que a personagem possa se
expor diante dele e, assim, nos passar indiretamente informações sobre si; como o aparte, que
permite, pelo estabelec imento do jog o cênico, que a personagem comunique algo da ação ao
público, sem que seja percebida pelas demais personagens; e como o monólogo, que permite à
personagem revelar aspectos de sua personalidade, a fim de que a platéia possa melhor
compreendê-la.
Considerando o sentido etimológico da palavra drama (ação), a análise da personagem
dramática, ou seja, o ato de delinear dramaticamente a personagem deve nos levar, também, a
focalizar a esfera do comportamento , a psicologia extrospec tiva e nã o introspectiva
dessa personagem. Dessa forma temos condições de melhor analisá-la a partir do que ela faz em
cena. Por fim, o que os outros diz em a respeito da personagem? Tomando po r base a concepção
dialógica da linguagem, o que os outros dizem de mim contribui para a criação de uma auto-
imagem, assim como o que eu digo dos outros contribui para compreender o outro e me
compreender como sujeito social. Dessa forma, sobre uma determinada personagem, mostram-
se valiosas as informaçõ es que colhemos da fala de outros ag entes presentes na cena.
No entanto, em Dentro, o Rapaz faz interferências que não se dirigem exatamente ao
Homem. Vejamos alguns exemplos:
(38)
RAPAZ
Ele agarrou seu amante com firmeza. Rasgava-lhe os olhos, destemperado de
gula no peito. Destroçava a construção de se u rosto, quer ia enten der sua c arne,
decompô-la em lâm inas ao sol para desfilar sua língua com força. Queria
estudar o coração enquanto sugava-lhe o suco e garimpava suas veias com os
dentes.
Ele escavaria toda aquela matéria at é resgatar a si mesmo. (A
NEXO 1)
254
(39)
RAPAZ
Pode começar por onde quiser: todo o meu corpo é orifício. Várias portas. Cada
poro deve ser penetrado pelo suor do outro com a mesma sensação de um
membro, de uma língua, de dedos, mãos. Cada poro existe para me dar prazer.
Sabe quantas pessoas existem no mundo ? Eu e os meus amantes. Os que já
estiveram em mim e as minhas promessas.
Moro na cama de cada um deles. Moro no corpo de cada um deles. Moro no
músculo de cada um deles e hospedo todos entre minhas pernas. (A
NEXO 1)
(40)
RAPAZ
Costuraram-se, pelos lábios, sangue e sa liva num beijo. Dois amantes
ensinando: o único alimento é o sentim ento. (A
NEXO 1)
Vale salientar um dado cênico importante oferecido pelas didascálias. As elocuções do
Rapaz são preced idas pela mesma dida scália : “Luz no rapaz que transa com o Homem. Só seu
rosto, voltado para o público, está iluminado.”, com uma pequena variação no texto (38) —
correspondente à primeira fala da personagem na peça —, cuja didascália informa: “Luz no
rapaz que transa com o Homem. Só seu rosto, voltado para o público, visivelmente entorpecido
de poppers e prazer.”. No final de cada fala, segue-se a didascália: Luz volta ao movimento
inicial.”. Unindo os dados contextua is da cena com a enunciação do rapaz, p odemos deduzir daí
algumas interpretaçõ es.
Valendo-se da técnica cinematográfica do close-up, a cena focaliza apenas o rosto do
Rapa z. Finali zada a fala , a luz “volta ” ao “movimento inicial”. Esse close-up recorta todas a s
cenas, deslocando-as do contexto maior da peça. Vê-se que as elocuções do Ra paz se inserem
num espaço plástico de um tableau. Como se lê em (38), (39) e (40), o distanciamento
promovido, na cena, pelo efeito de luz é reforça do pela fala do Rapaz, que não se dirige ao seu
possível interlocutor, o Homem. Mesmo que em (39) haja marcas formais de que o locutor se
dirige a um outro, como o verbo poder (modalizador) na terceira pessoa do singular, elidindo o
sujeito “você” (por exemplo); e a p ergunta retórica, que apela para a atenção do espectador —
nas demais citações essas marcas inexistem, referindo-se a personagem a uma terceira pessoa,
255
“ele”, “amantes” —, a fragmentação cubista da cena (os tableaus) distancia sujeito falante,
Rapaz, do possível interlocutor na cena. A encenação proposta pelas didascálias não nos autoriza
associar, no trecho (39),você a Homem; pelo menos, não há uma associação de forma que
configure o gérmen dramático (ação gerada pela troca de falas entre locutores).
Da citação (38) destaco um aspecto: “Ele escavaria toda aquela matéria até resgatar a si
mesmo”. Pela descrição metafórica da ma neira como o amante o “devorava” sexualmente, que
tem para lelo com a forma c omo o Ho mem costu ma ag ir e se se ntir na prática do fist-fucking,
podemos inferir que o dêitico “ele” assume, no contexto da enunciação, a referência do Homem.
O uso do pronome “ele” promove distanciamento, uma vez que implica estar o enunciador
fazendo um comentário a respeito de alguém que se encontra fora da enunciação. Em vez de
estar se dirigindo a um interlocutor (“tu”), o Rapaz comenta as ações de um “ele”, a nosso ver, o
Homem. Isso não impossibilita que esteja se refer indo, simultaneamente, a qualquer outro
possível amante masculino. Da mesma maneira como se sente o Homem no ato sexual, esse “ele”
“escavaria toda aquela matéria [a carne do Rapaz] até resgatar a si mesmo
”. A parte grifada
aponta para a necessidade de o “ele”/Homem, por meio do ato antropofágico do sexo , recuperar-
se, salvar-se. Como se ele quisesse “devorar” toda a carne do amante para chegar ao coraçã o,
para estudar o coração. Há, aqui, um jogo de espelhos muito interessante. “Escava-se” a carne do
outro até chegar ao coração , representação simbólica do amor. Mas o “resgatar-se” é, n o
contexto, um verbo polissêmico. Tanto pode conter a acepção de “salvar-se”, como pode assumir
o sentido de conseguir, com muita dificuldade, “obter” a si mesmo. Nessa segunda acepção, o
enunciado evoca, intertextualmente, o mito de N arciso — de acordo com a psicanálise, uma das
chaves para se “desvendar” o “mistério” da “homossexualidade” [cf. leitura crítica que faz Costa
(1995) da interpreta ção psicanalítica do “ho mossexualismo”]. S eduzido pelo reflex o de sua
própria imagem, Narcis o entra na água para se fundir co m ele mesmo (con-fundir), e morre
afogado. Fazendo um paralelo, o “ele”/Homem “rasga” a carne do amante (metaforicamente,
mergulha em sua carne) para buscar o coração e, com isso, se resgatar a si próprio. A morte
simbólica corresponderia ao fracasso dessa busca, uma vez que, como se supõe, ele tem o hábito
de pagar prostitutos para fazer o fist-fucking; assim, cada busca redunda num prazer
momentâneo e num sentimento de des ilusão. Ca da experiência é fugaz, impossibilitando ao
“ele”/Homem a plena satisfação.
Além das nossas inferências, podemos verificar que a expressão radical dos sentimentos,
tanto no Ra paz quanto no Hom em, ma ntém uma ordem estilística que acen tua a ex istência de
uma única voz. Comparemos os tr ês fragmentos anteriores com est e, pertencente à fala do
Homem:
256
(41)
Primeiro, sonhei que me vestia de Binho como se fosse uma pele. Encaixava-me
entre ossos e feixes, abotoando-o em mim. Habitava-o. Como
parasita/hospedeiro. Vivendo dele, nele, pra ele.
257
vozes ideológicas dissonantes. Há um discurso que se encontra fraturado e que se projeta por
meio de duas vozes e m linhas paralel as.
Gostaríamos de sa lientar um aspecto que, a nosso ver, torna o discurso da alteridade, na
peça, mais eficiente do ponto de vista político. O texto de Newton Mo reno, ao optar pelo fist-
fucking como signo agenciador da c ena, não dispõe a questão como algo sujo, fétido, objeto de
reprovação. Pelo contrário, o dramaturgo apo sta na liricidade do “grot esco”, opção sustentada
por muitos dos escritores a quem Newton Moreno se mostra afiliado, dentre eles, Jean Genet, na
França, e João Silvério Trevisan, no Brasil. Em Notre Dame des Fleurs, por exemplo, deparamo-
nos com uma I-mora lidade que se pretende sagrada; em Vagas Notícias de Melinha Merchiotti,
com a apologia do amor às f ezes do amante. Em a mbos os romances, a afronta à rígida mora l
burguesa se reveste de um estilo barroco (ma is expl icita men te em G enet) e pro funda ment e
lírico-amoroso. Newton Moreno não se centra na estética do gro tesco. Como ele mesmo expôs,
“há uma poesia escura, urdida de ntro do ‘cancro’, q ue nos é di fíci l aceita r e ap recia r. Um a poe sia
que sai do eu e encanta. Uma poesia suja, mas s ublime. Onde o que me repulsa no início é o que
me atrái logo em seguida” (M
ORENO, 2003, p. 98). Portanto, se há uma leitura da cena como algo
estritamente grotesco, isso se deve, provavelmente, à resistência moral, por parte do
leitor/espectador, em presenciar uma relação homoerótica e uma moda lidade de sexo abjeta,
conforme o “bom gosto” da “normalidade”. O lirismo chega a assumir um tom grandiloqüente.
Ora excessivo, ora kitsch, o estilo constrói a atmosfera lírica do texto, na exposição, sem pejo, de
uma voz masculina que confessa seu amor profundamente nostálgico por um homem, como se
constata no excerto aba ix o:
(
42)
HOMEM
(...) Me apaixonei por ele nos primeiros c entímetros do indicador, enquanto ele
desabrochava (seu ânus) em ton sur ton de rosas e violetas, sempre um jardim
de surpresas. Alguns dias mais rosa, outros mais viol eta. Florescia nossa
curiosidade juvenil em manh ãs decoradas de suas flores. Atrás d e cercas, em
cima de árvores, embaixo das camas. Toda flor tem perfume próprio. Nunca
esqueci o perfume de Binho, coroando meu amor com os vapores de seus botõ es
em flor. (A
NEXO 1)
258
O amor juvenil é associado a imag ens coloridas e olfativas, ressaltando-se o clima
primaveril da juventude (ro sa, violeta, flor, florescer, perfume , botão em flor). O efeito lírico do
discurso se dá pela ênf ase da sinestesia, que poetiza um espa ço da memória onde habita um
sujeito, o qual, pela distâ ncia temporal, já não mais constitui o mesmo da enunciação. O sujeit o
desse espaço da memória, o sujeito do passado, conheceu o prazer e o amor. O sujeito da
enunciação é o Homem do presente, que envelheceu, não alcançou satisfação na sua vida
sentimental e vive a procurar, nas ruas, nas madrugadas, o que o utrora havia perdido.
Se do ponto de vista das “belas letras” esse lirismo pode parecer excessivo, imaturo, com
imagens que a pelam para o luga r-comum, do ponto de vista cênico proporciona um efeito
impactante, sob retudo quando a leveza simbólica e romântica das imag ens contrasta com o
naturalismo da cena do fist-fucking. A alta literatura, nesse contexto, deixa de ser condição sine
qua non. O que vale, aqui, é o efeito cênico provocado pelo choque entre a expressividade
romântica e a referencialidade da ação naturalista, entre o caráter físico e metafísico do a mor.
O k itsch é conc ebido co mo um dos el emento s que f azem parte daquel e tipo de
ambientação construído pela peça; um componente possível e legítimo. Um pouco do que se
entende como paraliteratura, caracterizada, nesse caso, como uma poética de apelo fácil aos
sentimentos, usando co mo ingrediente imagen s que ex pres sem o tra nsbo rdar do amor e d a
paixão. Lembremos que o poeta Fernando Pessoa, na voz de Álvaro de Campos, já chamava a
atenção do caráter “ridículo” das ca rtas de amor, no entanto, admite, “Só as criaturas que nunc a
escreveram/ Cartas de amor/ É que são/ Ridículas”
125
. Adaptando ao co ntexto da peça Dentro, a
expressão do amor, de tão sincera, pode parecer, aos olhos críticos severos, ridículas.
Ma s, aqui, nos lembramos também de Barthes (1991), que, ao empreender o desafio de,
como acadêmico e cientista da linguag em, se debruçar sobre o discurso amoroso, escreveu, e m
nota introdutória, que o discurso amoroso foi le vado à deriva do ina tual, sendo a bandonado
pelas linguagens circunvizinhas, excluído nã o somente do po der, mas também de seu s
mecanismos ( ciências, conheci mentos, artes)
126
. O discurso amoroso, não obstante sua
125
“Todas as cartas de amor são/ Riculas./ Não seriam cartas de amor se não fossem/ Ridículas. // Também escrevi
em meu temp o cartas de amor,/ Como as outras, Ridícul as.// As cartas de amor, s e há amor,/ Têm de ser/
Ridículas.// Mas, afinal,/ Só as criaturas que nunca escreveram/ Cartas de amor/ É que são/ Ridículas.// Quem me
dera no tempo/ em que escrevia/ Sem dar por isso/ Cartas de amor/ Ridículas.// A ver dade é que hoje/ As minhas
memórias/ Dessas cartas de amor/ É que são/ Ridículas.// (Todas as palavras esdrúxulas,/ Como os sentimentos
esdrúxulos,/ São naturalmente/ Ridículas.)” (Álvaro de Campos in P
ESSOA, 2006, p. 399-400)
126
O texto integral da nota é o seguinte: “A necessidade de ste livro se apóia na seguinte consideração: o discurso
amoro so é hoje em dia de uma extrema solidão. Este discurso talvez seja falado por milhares de pessoas (quem
sabe?), mas não é sustentado por ninguém; foi completamente abandonado pelas linguagens circunvizinhas: ou
ignorado, depreciado, ironizado por elas, excluído não somente do poder, mas também de seus mecanismos (ciências,
conhecimentos, artes). Quando um discurso é dessa maneira levado por sua própria força à deriva do inatual, banido
259
pluralidade, caracteriza-se, no geral, por ser uma prática em que se abrem possibilidades de os
sujeitos “a moro sos” se ex pressar em incondic ional mente. A resistência habitual a esse discurso
advém das áreas que privilegiam a produção racional em contrapo sição à vivência das emoções.
O d iscur so am oroso desbra gado é ass umido na peça de Newton Moreno como mais um
aspecto da alteridade, e, como vimos, regulado por uma ação de natureza diversa: a cena
naturalista do fist-fucking. Quando ess es dois discursos se en contram conjug ados na cena, gera-
se, dial etica ment e, um no vo viés do discur so am oroso . Em Dentro, o amor e o se xo são dois
elementos que se pressupõem, a o contrário do discurs o religioso, que os concebe como
realidades bem distinta s (espírito vs. carne). É também contrário à perspectiva romântica, já que
não se parte, aqui, de um amor que resulta no ato sexual, mas do ato sexual que persegue o
amor.
Essa inversão da ordem amor/sexo no s parece condizente com alguns a spectos
semânticos da ideologia masculina. Em sociedade, os homens, entre si, costumam fazer apologia
ao sexo, relegando o amor às vicissitudes femininas. Essas diferentes formas de socialização
geram sistemas de crenças particulares. Para o imaginário feminino ainda vigente, o amor é o
princípio e um fim; o sexo , uma pa rticularidade. Para o imaginário masculino, o se xo é o ponto
de partida; o amor, uma conseqüência.
Em Dentro, o amor é o ponto de partida, pois o Ho mem compra cada um de seus
amantes com a esperança de encontrar, em cada corpo, a imagem perdida de Binho. É, também,
o ponto de culminância, como vemos nas últi mas linhas do texto:
(43)
RAPAZ
Sinto passos dentro de mim, mas quem alcança o meu coração ? Quem alcança
o meu coração ? Quem alcança o meu coração ?
de todo espírito gregário, só lhe resta ser o lugar, por mais exíguo que seja, de uma afirmação. Essa afirmação é em
suma o assunto do livro que começa.” (B
ARTHES , 1991, nota introdutória).
Consideramos, assim como Barthes, que o discurso amoroso no Ocidente foi levado, ao longo do século vinte, à
deriva do inatual. Não é nosso propósito, por ora, apesar de bastante interessante, elencar todas as vertentes trilhadas,
ao longo da História Ocidental, pelo que se chama “discurso amoroso”. Par tindo do suposto de que há diver sos
discursos, alguns dos quais excludentes , que se inserem sob o rótulo “ discur so amoroso” , compree ndemos por tal o
conjunto de discursos que versam sobre o tema “amor”, independentemente da História e da ordem discursiva em que
se encontram inseridos. Caberia, portanto, ao analista crítico do discurso amoroso particularizar, conforme sejam os
propósitos, cada espécie e cada f ormação discursiva.
260
Luz apaga no rapaz. Volta para o homem com a mão fora do rapaz, só que
segurando um coração na mão.
Luz morre aos poucos. (A
NEXO 1)
O final da peça aposta, como em todo o texto, num lirismo simbólico e kitsch. Trata-se de um
final aberto, pois tanto pode estar representa ndo simbolicamente o desejo do Homem d e
alcançar o coração de seu amante, quanto po de ser interpretado como uma espécie de “auto-
resgate”. Tendendo para essa segunda interpretação, acreditamos que a narrativa apresentada
pelo Homem o ajudou, como numa espécie de catarse, a resgatar a si mesmo, como sugere esse
trecho de sua última fala na peça:Recito minha história como uma prece sempre que outros
vêm a mim. Esto u preso a ela como um ma ntra, um câ nt ico , uma ma rca de nasc ença .”
(ANEXO 1).
Se o ato sexual não mais o resgata, reviver sua história com Binho o faz recuperar-se
momentaneamente, como num mantra.
Todavia é o a mor , em ú ltim a a ná lis e, q ue o H om em p ers egu e , se ja físi co (o q ue v iveu com
Binho), seja o cultuado pela memória (sentimento que se adensa à medida que o tempo vai
passando e ele se vê cada vez mais dista nte de Binho). O discurso masculino, em Dentro, se
mostra, portanto, numa nova perspectiva: sem categorizar mais os sujeitos de homossexual e
heterossexual, o discurso parte das vivências homoafetivas profundas para estabelecer uma nova
ordem no imaginário masculino: o sexo e o a mor estão entra nhado s, de tal maneira que é preciso
“rasgar a carne” para se alcançar o “coração.
Pela via do ânus, pode-se alcançar o coração do outro: e is a síntese que o texto parec e
propor. Em outras palavras, a persecução do amor se torna um imperativo existencial, daí
qualquer meio ser válido para alcançá-lo. No caso da peça, o caminho, para tanto, não é
ortodoxo. De acordo com o dramaturgo,
no amor que se p rocessa pelo ânus, este amor de aberração, também pode-se
chegar ao coração. É esta uma de nossas portas. (...) A voracidade das carnes em
jogos fortuitos atrás de mais carne. Talvez como única alternativa para um
encontro. Através de um mar de carne eu posso ancorar em algum af eto
consistente. (MORENO, 2003, p. 97) (grifo nosso)
Assim, sem querer qualificar dessa forma a vivência homoerótica, podemos reconhecer aí um de
seus traços. A “carne” e o afeto não podem ser desvinculados: são faces da mesma moeda. Vê-se
que esse tipo de visão de mundo vai de encont ro à ideologia judaico -cristã, dicotômica, que
261
dissocia a alma (de onde proviria o afeto) da carne, como se fossem duas categorias
impermeáveis entre si. Essa visão dicotômica converge com aspectos ideológicos da moral
burguesa, cujas representações reforçam, por um lado, a rela ção “masculino” vs. “carne” e, por
outro, “feminino” vs. “afeto”. A arte romântica, de certa forma , contribuiu para o
estabe lecim ento des se si stema de cr enças. A vi vência homo erótic a ex pressa na pe ça pr opõe um
salto qualitativo desse sistema de crenças burguês a uma concepção mais abrangente e complexa
da afetivi d ade masc u lina.
Enfa tizamos, mais uma vez, qu e o mérito do texto de Newton Moreno não se encontra
exatamente num tipo de elaboração literária requintada, que abdica da cena. Pelo contrário,
como literatura, pura e simplesmente (como se isso fosse poss ível no tocante ao gênero
dramático!), a peça, a no sso ver, é frágil e inconsistente. No entanto, como ela se inscre ve numa
vertente dramatúrgica contemporânea da conjunção texto-cena, havemos de apreendê-la sob
outro ângulo, diferente do foco que costumam da r os estudos literários ortodoxos. Além disso,
trabalha a alteridade de forma tão espontânea e vigorosa, que termina por contribuir nas
discussões sobre estética e cultura masculina.
A segunda peça de Newton Moreno, Agreste, que será doravante analisada, apesar de
trabalhar o mesmo tema da primeira, a homoafetividade, apresenta uma estrutura diferente.
Como Dentro, Agreste ap osta na epicização da cena. No entanto , se se pode ainda identificar na
peça Dentro uma pálida situação dramática — toda a história é contada pelo homem enquanto
ele pratica com o Rapaz o fist-fucking —, em Agreste a estrutura dramática é definitivam ente
implodida, enfatizando-se o caráter performático da cena. A proposta é investir n o trabalho do
ator, na sua habilidade em contar história no “aqui-agora”, ou seja, na experiência única que o
espetáculo proporciona. A experiência estética resulta da configuração de uma cena
radicalmente épica. Vejamos, a seguir, o elem ento didascálico que serve co mo prefácio:
(44)
A idéia deste texto é servir como exercício ( solo ) de narrativa para um ator-
contador (atriz) e dispor de outro(s) ator(es) que cria(m) uma partitura
física para determinados momentos da estória. Da união destas duas
linguagens - a oralidade e a dança-teatro; verbo e movimento – será feito o
espetáculo.
Um(a) narrador(a).
262
Velho(a) contador(a) de estórias. Daqueles que reúnem um grupo ao redor da
fogueira ou embaixo de uma árvore com uma viola/sanfona, pontua suas
histórias com as músicas e acordes que saem de seu instrumento. Ele(a) recebe
o público, dá o clima de cada passagem do texto, pausas; enfim, é o grande
condutor da cena.
O narrador pode fazer as vozes de todas as outras personagens, até mesmo do
casal, e ainda representar o padre, o delegado, ou as vozes dos moradores,
entrando na cena para contracenar com a atriz e depois voltar ao seu posto de
narrador. (A
NEXO 2)
Como se vê, a proposta é servir o espetáculo comoexercício de narrativa. De acordo como a
teoria dos gêneros literários foi co ncebida pelos cla ssic ista s , é inimag inável que a dr a má tica sirva
de suporte para expressar um material épico, ou vice-versa. Mas a narrativa, na peça, nos parece
o mote para a realização de um trabalho performático do ator e, conseqüentemente, da cena
[exercício de narrativa para um ator-contador (atriz), com outro(s) ator(es) que cria(m) uma
263
O narrador/Contador, em Agreste, é concebido como um sujeito popular ( Daqueles que
reúnem um grupo ao redor da fogueira ou embaixo de uma árvore com uma viola/sanfona),
um indivíduo do povo, que reúne um público ouvinte para contar um “causo”. Esse sujeito
popular é, no entanto, construído estilizadamente, de forma que o trabalho do ator seja
inconfundível com a concepção naturalista de um contador de histórias popular. Isso se ver ifica
quando, após o prefácio (onde há a descrição de um homem popular), dá-se início à fala do
Contador. Percebemos que o estilo em que seu texto é elaborado expressa , quase sempre,
correção gramatical e, com isso, o padrã o culto da língua. Além disso, nã o se constata nenhuma
tentativa de imitação da estrutura característica da modalidade oral da língua, salvo nu m
acentuado ritmo da oralida de que um contador de h istórias costuma imprimir em s eus textos, ou
quando a personagem Conta dor/narrador representa, ela mesma, suas próprias personagens ,
como se vê abaixo:
(45)
VE 1
Oxente, cadê?.
CONTADOR(A)
A viúva já tinha entregue o p aletó.
VE1
Maria de Deus, cadê a trouxa ?
CONTADOR(A)
Assustou-se a velha.
VE1
Faz tempo que eu num vejo um, mas isso aqui não é peru.
VE2
Não s e ave xe n ão. Esp ie mel hor. P roc ur e dire ito .
CONTADOR(A)
De costas, a viúva se perguntava...
VIÚVA
Que trouxa?
VE2
Deve de tá escondido. Às vez tem que ajudar pro bichinho flor escer.
VE1
Mulé, ou eu perdi a vista de vez ou a piroca dele é do tamanho de um cabelo de
sapo.
VE2
Deixe eu lhe ajudar ... (A
NEXO 2)
264
O estilo popular é tornado gestus quando o dramaturgo faz uso de alguns raros e esparsos
termos populares, como a expressão às vez e o vocábulo amostrado. Há distanciamento uma
vez que a fala não é estilisticamente adequada ao registro lingüístico de acordo com o perfil
social desse contador de história (pelo menos no que faz supor o prefácio), logo se expõe o jogo
teatral e se afirma o propósito da peça de não propor uma ilusão de realidade ao público. Tal
como reivindica Brecht, o ator, aqui, não deve “personificar” e se confundir com a personagem,
alimentando a ilusão de que ela constituiria uma figura real, de “carne e osso”; mas apresentá-la
ao público como artefato, objeto de criação.
Consideremos que, em nosso cotidiano, a narrativa oral geralmente se insere numa
situação comunicativa em que um locutor toma para si o turno conversacional e oferece uma
história a seus interlocutores. Guardadas as devidas proporções, a narra tiva literária expressa
alguns traços que têm sido identificados como característicos do discurso oral. Não nos ateremos
a todos esses traços, senão a dois que nos parecem elucidativos.
O primeiro deles diz respeito à enunciação. Se o falante, numa situação qualquer, desvia
para si o turno conversacional a fim de relatar um fa to, espera-se que ele faça jus ao espaço
concedido, deixando claro , no final ou mesmo a o longo da narrativa, por que está contando a
história; o que pretende revelar. Evidentemente que estamos enfocando uma situação co ncreta
de conversação, em que os inter locutores cria m entre si alguma s expecta tivas. Ass im, mes mo
que, do ponto de vista filosófico, não faça hoje mais sentido falar de “intencionalida de”, é fato
indiscutível que os falantes, numa comunicação o rdinária, prática, do dia-a-dia, sempre
procuram estabelecer, entre si, propósitos, objetivos ou intenções. No caso da narrativa oral,
todo “narrador” procur a, consciente ou não -conscientem ente, evitar, de seus ouvintes, a
pergunta “e daí?”
127
.
O segundo traço é estrutural. Para ca racterizá-lo, tomaremos de empréstimo o termo
avaliação, tal como é concebido em Labov; Waletzky (1967)
128
. Em toda narrativa oral existe um
127
Para um estudo sociolingüístico da narrativa , indicamos LABOV; WALETZKY (1967), LABOV (1972) e L IRA (1987).
128
Segundo os autores, a narrativa se caracteriza por ser “um método de recapitular uma experiência passada pela
equivalência de uma seqüência verbal de orações à seqüência de acontecimentos que realmente ocorreram” (LABOV;
WALETZKY, 1967, p. 20). Mais adiante, definem com maior precisão: “qualquer seqüência de orações que contém
pelo menos uma juntura temporal é uma narrativa” (LABOV; WALETZKY, 1967, p. 28).
A estrutura global da narrativa é descrita pelas seguintes etapas: 1. resumo - marca o in ício de uma narrativa
e funciona como uma espécie de sumário, anunciando sobre o que a história versará; 2. orientação - componente da
narrativa que orienta o ouvinte com referência a pessoa, lugar, tempo e situação comportamental; 3. ação de
complicação - é o corpo principal da narrativa, compreendendo uma série de eventos que se sucedem; 4.
avaliação - está relacionada aos meios usados pelo narrador a fim de indicar a relevância da história, o point daquilo
que está sendo narrado; 5. resolução - formalmente definida como a seção da narrativa que segue a avaliação; 6.
265
esforço por parte do narrador para que fique claro o point, o ponto f ulcral, aonde a narra tiva
pretende levar. A narrativa detém um caráter argumentativo, pois ela estará func ionando, no
tema da conversa, como ilustração, demonstração, explicação, etc. De forma cautelosa, podemos
dizer que as narrativas literárias costumam apresentar um point. É clar o que nem todas se valem
do recurso dos contos de fadas, em que o escritor, no final da história, destaca sua moral. Mas
podemos dizer que a narrativa costuma nos conduzir a um point, que pode vir mais ou menos
explícito, dependendo da proposta da o bra. Enfatizando a relação leitor vs. narrativa literária,
costumeira é a pergunta: por que essa narrativa está sendo contada?
Na verdade, trata-se de uma pergunta que encobre uma questão contra a qual investe,
sobretudo, a filosofia da linguag em e a teoria literária contemporâneas — a intencionalidade da
obra. Com que inte nção a obra foi escr ita? Essa não é uma questão que a teoria literá ria, por
exemplo, levantaria atualmente. N o entanto, admitimos que, em se trata ndo de Agreste, em
virtude de todos os recursos épicos utilizados na encenação, o “causo” contado pretende
esclarecer algum ponto de vista. Desenvolvamos, então, nossa análise do discurso masculino
nessa peça, partindo dessa premissa.
Comecemos pela história
129
. Um sertanejo e uma sertaneja se flertam, mas nenhum tem
coragem de atravessar a cerca que os separa. Um dia, a cerca apresenta um buraco. Os dois se
encontram e resolvem fugir juntos. Correm até se perderem. No calor abrasador do sol, caem e
começam a delirar, até que chega uma mulher que os leva para a aldeia mais próxima. Nessa
aldeia, eles assentam casa e passam a viver lá, como marido e mulher, durante vinte e dois anos.
Ele morre. O velór io é em sua casa. Co nsolada pelos vizinhos, a viúva pede que as mulheres
troquem a roupa do defunto, pois ela não queria fazer isso. Qua ndo as vizinhas tir am toda a
roupa do homem morto, descobrem que se tra ta de uma mulher. Humilham a viúva. O p adre se
nega a dar a extrema -unção, o delegado da cidade chega logo após e repreende violentamente a
coda - elemento adicional da narrativa , é um mecanismo funcional para fazer retornar a perspectiva verbal ao
momento presente.
Os elementos avaliativos, conforme os autores, formam uma estrutura secundária, que pode se concentrar na
seção de av al iaçã o , m as po de se c once n trar , sob várias fo rm as , ao longo d e toda a na rr ati va . Mui ta s v e ze s, o q ue oc o rr e
é e star a na rra tiva em funç ão das estr até gi as av al iati vas . Va le sal ientar que La bov; Waletzky (1967) e Labov (1972)
tentam descrever as estratégias avaliativas numa perspectiva lingüístico-formal. No entanto, chegam a admitir que a
definição de avaliação deve ser semântica, embora sejam suas implicações estruturais. Assim, a avaliação “revela a
atitude do narrador frente à narrativa ao salientar a importância relativa de algumas unidades narrativas quando
comparadas a outras” (LABOV; WALETZKY, 1967, p. 37).
Para Lira (1987, p.99-100), “qualquer elemento que indique o valor de certos eventos em relação ao ponto de
vista da es tória ou que dê r elevo de a lguma forma ao narrador, ao s protagonis tas e à situaç ão, pode ser considerad o
como um elemento avaliativo do texto. Assim a definição fundamental da avaliação deve ser semântica”. Mais adiante,
enfatiza a questão de que “a avaliação deve ser relacionada ao fato narrado. Quando este for significativo para o
narrador — seja ele protagonista ou testemunha do mesmo — vai haver uma avali ação” (LIRA, 1987, p.107).
129
Apoiamo-nos em Culler (1985), para quem a história numa na rra tiva c onsti tui o co njun to de aconte cim entos
organizados cronologicamente, localizados espacialmente e relacionados a personagens que os motivam ou os
experienciam.
266
viúva, salientando que o coronel da região não tinha gostado de saber da notícia. A turba,
enraivecida, ateia fogo na casa. A viúva não foge e morre com aquela que tinha sido seu marido
ao longo de toda a vida.
Para efeitos de a nálise, tomemos o discurso narrativo como prática sígnica responsável
pela apresentação dos fato s passados (os que configuram a história )
130
. Na cons trução do
discurso narrativo, a avaliação é localizada na forma como o narrado r realça determinados
detalhes para chegar a um point. Ainda para efeitos de análise, nos valeremos da concepção
estruturalista e tradicional da narrativa, segundo a qual a ação de complicação costuma ser
expressa pelo verbo no pretérito perfeito. No geral, as circunstâncias da história ou os
comentários do narrador são expressos em orações com ver bo no pretérito imperfeito (ou em
outros tempos que não sejam o pretérito perfeito). Destaquemos alguns comentá rios do
narrador e expliquemos por que eles são avaliativos:
a) Tin h a alguma coisa n o am or deles que não dev ia ac o n tecer.
(ANEXO 2)
b) Às vez, é preciso muita coragem para dar um passo.
(ANEXO 2)
c) Mas o Nordeste surpreende a gente.
(ANEXO 2)
d) Era como se inspirassem alegria e expirassem receio.
(ANEXO 2)
e) O sol já lhes roubara o senso, o tino.
(ANEXO 2)
f) Algo morno crescia na alma. Era um vapor no forno, no berço, na fôrma do
novo afeto.
(ANEXO 2)
g) Cercaram com arame, mas para se prender por dentro
.
Não queriam conhecer os outros, antes de sabe rem de si. (
ANEXO 2, g rifo nosso)
h) Amuada e com fome, a viúva remendava o terno puído para o enterro. O que
deveria vesti-lo no casamento.
(ANEXO 2)
i) Construi u uma figura triste. D o nada
, irrompeu numa careta grotesca e
chorou. É muito triste uma mulher comendo e chorando
. (ANEXO 2, grifo nosso)
j) E era a primeira vez que ela falava com alguém mais que duas sentenças.
(ANEXO 2)
130
Concepção adotada a partir de Culle r (1985).
267
l) Uma mulher despida sob a cama e outra de costas olhando o retrato de Jesus.
(ANEXO 2)
m) A viúva não enten dia nada. Nã o entendia a morte. Não entendia homem .
Naq uele mo mento , só e ntend ia a p erda.
(ANEXO 2)
n) Ela se sentia um prato de comida estragada. Uma carniça. Um penico. Um
escarro. Uma doença. Um pus. Um cancro. Uma gota. Suja, suja, imunda. E não
entendia por quê.
(ANEXO 2)
o) A única imagem era a da mãe. Que fechava feridas com um sopro e ervas.
(A
NEXO 2)
p) Envergonhavam-se delas. Queriam apagá-las de suas memórias. Enterravam-
nas vivas.
Mal sabiam que
, dentro, a viúva agradecia a benção de mo rrer com Et evaldo .
Temia muito mais viver sem ele por certo. Tinha cantado bonito, De us tinha lhe
ouvido afinal. O fogo já empenava as paredes.
Mesmo assim
, a viúva acendeu o candeeiro. (ANEXO 2, grifo nosso)
q) O que nunca tinha feito.
Abriu os olho s no meio do b eijo, enquanto o fogo
ganhava a casa inteira. (ANEXO 2, grifo nosso)
Segundo Labov (1972), muitas das marcas avaliativas teriam o efeito de suspender a ação
da narrativa. Em Agreste, por exemplo, o narrador realiza muito s comentários que estão
encaixados no relato dos fatos, como se vê em a, b, c e d. O conteúdo semâ ntico desses
comentários funciona m como índices que apontam, cata foricamente, para o que será revelado no
desenvolver da narrativa: um amor que não deveria acontecer mas que, pela coragem do casal,
aconteceu. Esses índ ices contribuem para criar suspense na narrativa, uma atmosfera mais
dramática, para chamar atenção sobre o caso amoroso envolvendo duas mulheres. Saliente-se
que não há, nesses quatro enunciados, nenhuma marca de que o narrado r se posiciona
ideologicamente contrário a esse caso amoroso.
Os exemplos f, m, e n constituem estra tégias avaliati vas, pois, fa zendo uso da
enumeração, imprimem nos ouvintes maior emoção e, conseqüentemente, os conduzem ao
ponto fulcral. O enunciado Era um vapor no forno, no berço, na fôrma do novo afeto, pela
enumeração, dá-nos a dimensão da intensidade do amor que as duas personag ens sentiam uma
268
pela outra. Em m, a neg a çã o é inten sif ica da pela enum era ç ão da s c oisa s q ue a viú va de sco nh ec ia .
Do ponto de vista semânti co, é significativo q ue, depois do indefinido nada, as duas neg açõ es
sucessivas destacam dois objetos desconhecidos da viúva: a morte e o homem. Essa
intensificação apela para a cooperação do ouvinte, de forma que ele fique atento ao fato de que a
viúva era ingênua quanto a muitos dos valores morais sustentado s hegemonicamente. Logo
após, chama a atenção de que a viúva “naquele momento, só entendia a perda”. Ou seja, para
além dos códigos morais, a única coisa certa era que a persona gem estava sofrendo. Seu amor é
destacado pelo narrador, ao frisar a dor da perda, sentida pela viúva. No exemplo n, há uma
enumeração de termos que se encontram dentro de um mesmo paradigma semâ ntico, conforme
nossos valores culturais: o abjeto (prato de comida estragada; carniça; penico; escarro;
doença; pus; cancro; gota; suja; imunda). A ênfase é dada para provocar um efeito
estético/catá rtico no ouvinte, de forma que ele tenha a oportunidade de sentir exatamente o que
a personagem estava sentindo, a humilhação pela qual passava. Depois da enumeração, mais um
destaque para a ingenuidade da viú va: E não entendia por q.
Não obstante a objetividade a que pre tende o épico, vê-se, nesses exemplos, que o
narrador, mediante estratégias avaliativas, se posiciona ideologicamente diante do que relata .
Ele parece tomar o partido da viúva, rea lçando-lhe a pureza, a ignorância e, acima de tudo, o
sentimento de amor (como se lê em l, o come n t á rio do nar r ad o r cria uma im a gem de p ure za para
mulher, reforçada pelo f ato de a viúva estar olhando o retrato de Jesus, enqua nto a turba
começava a se agitar furiosamente). Sua simpatia pela mulher sofrida é realçada quando
confrontamos seus comentários com outro el emento, que constitui, também, uma ação
avaliativa: o diálogo entre personagens. A avaliação, nesse caso, é efeito de uma dramatização
com que a própria narrativa opera: ao dar voz aos vizinhos, padre e delegado, a narrativa reforça
o senso comum intransigente e refratário a um tipo de relacionamento como o que a viúva
mantinha com a defunta. O contraste entr e a fala dos vizinhos enfurecidos e a imagem ingênua
da viúva nos conduz a duas interpretações que se complementam: 1) desviar-se dos códigos
sociais implica arriscar-se a se tornar alvo de discriminação e de incrimina ção (destaque-se que
o delegado decreta voz de prisão à viúva); 2) o senso comum não compreen de a intensidade do
amor quando é fruto de um r ela cionamento não previsto pelos códigos sociais.
Investiguemos, primeiramente, a natureza desses valores sociais hegemônicos, para, em
seguida, analisarmos o discurso dominante na fala do narrador. O s istema de crenças
compartilhado pelos vizinhos é falocêntrico e a ndrocêntrico. O falocentrismo se torna saliente
quando, ao tirarem a roupa do defunto , as vizinhas constatam que ele não possui um pênis. A
quantidade de vocábulos usados para se referir a o órgão sexual masculino, ao mesmo tempo em
269
que realça o poder do falo e do sistema de crenças ma sculino, provoca, pela profusão de nomes,
um efeito qua se cômi co — trouxa, peru, bichinho, piroca, bilola, bilunga, bimba, ganso,
macaca, peia, maranhão, manjuba, macaxeira, pomba, pororó, quiri. Destaque-se a
alçDvb5(tra./)11.2l7156 Tf4.7931 07 TD-00517.1746 em82(o)-jogo o-s3(f( 71iTT1 -5.8874.1(8s3(ra.88 alt02 v7e6-074.ridlusd u6de./TT1l.0m./TT1l.5ho)-o)-5q.85.6e com)-1.76(e)11.-2l7156 6( )]TJ0 -931 04 TD0.1746 oT8761-nT1)1 Troce(ul2(nT1)1 t.8874.r1(7bçis6(n)-4(4(a)-6.1(n)-4 que c8761-racteri96 1 z.073(aD./TT1l.ide(ul2(olo5.8(73(i96 1 c6-07)-lmj-ul)--4./, o(di96 1 scj-ul5.6r/TT17.5reprofque )5e(ul2(r(6( )sido6.8(e)6pe(ul2(los 6.8(e)viz/TT13(i96 1 nhus5.ool17.2( )up5..2s,)-5.6n)2533f1.07325 TD-7931 52.1746 6.2983 7(E)ca)6s626 Twse(n)-4 an637)5d(o)-5r)5Tv)o)3(ocj-1Tv78651176(6)v-t)141(r(6( 4.0016(s 6( 64(4(3(o, fa)-./(o)-lp865117s626 Twar)5Tv).de)1174.1(e)1174.r)5Tv)./TT1l.0n5(o)-c626 2 5.6( 476(6)v-t)141(r(5Tv)Tj3l-4dT64.5.)6( 47./TT1l.06n)-4m6a)4../(o)-ou)1.76t)141(r(5Tv)os)5Tv). p(q5Tv)í016(4(3(odT64.5.s)5Tv)./(o)-hi)(o)-s 5Tv)t)1(ó(q5Tv)i5(o)-c626 2 5s)5Tv)./(o)-al(3(oé6n)-4m6a)4..88 e2
270
masculino. Depois de asseverar que a viúva provocou uma “desordem arretada nos arredores”
(A
NEXO 2), o Delegado impõe seu poder, dizendo quem ele é e a que ve io.
Sua fala nos fornece um rico material para nos debruçarmos sobre o discurso masculino
hegemônico. Reportando-se aos comentários gerais que o povo fazia com relação ao casal, o
Delegado expressa a voz do senso comum, num discurso ideologicamente masculino, tomando
como parâmetro o masculino moderno: Disseram que a senhora nunca que pegou bucho
. Uns
até desconfiavam
, mas acharam que a gala de seu marido era rala (ANEXO 2, grifo nosso). A
vida íntima é constantemente vigiada pela vizinhança, pretensa detentora da moral cristã e, por
extensão, da moral androcêntrica. É motivo de questionam entos e de desconfianças o fato de a
viúva nunca ter “pego bucho”. Sabemos que, de acordo com nossas representações sociais sobre
o matrimônio, os cônjuges assume m um compromisso tácito de ter filhos e de criá-los conforme
interesses políticos, econômicos e ideológicos do Estado. “Pegar bucho” é uma expressão de
origem popular para “engravidar”. Os vizinhos, “picados” pela curiosida de, chegam a criar a
hipótese de que o marido tinha “gala rala”. Também de origem muito popular e nordestina, o
termo “gala rala” se refere, pejorativamente, ao homem que não tem sêmen suficiente para gerar
filhos. “Gala”, nesse caso, é sinônimo de “esperma”, sêmen
133
.
Além disso, encontram-se em sua fala construções absoluta mente valorativas, sobretudo
quando ele está se re ferindo à relaç ão ho mo-afe tiva en tre as duas mu lhere s — sem-vergonhice;
esfregação de fêmea com fêmea; saboeira. O Delegado chega a comparar as duas mulheres às
prostitutas [Vocês são que nem as quenga, as rapariga, as catráias, as sapuringa (A
NEXO 2)].
Em Ferreira (1986), a palavra “saboeira” corresponde à “vendedora de sabã o”; por sua vez,
sabão, numa das suas acepções, corresponde ao ato sexual lésbico (de acordo com o autor, esse
uso é de origem maranhense). Corresponde a um termo gírico, muito popularizado no Nordeste,
para se referir ao ato sexual praticado entre mulheres. “Sem- vergonhice”, por sua vez, pela
própria construção mórfica , corresponde ao ato das duas mulheres, d estituído de “vergonha”,
termo aqui usado numa ordem discursiva de cunho moral, referente ao sentimento de dignidade,
ao brio, à honra. Lembremos que, n o capítulo anterior, vimos como Plínio Marcos, em Navalha
na carne, imprimiu valores morais semelhantes no discurso de Neusa Sueli. Lá, a suposta
homoafetividade de Vado é avaliada pela prostituta como “sacanagem”, miséria, descaramento.
Nesses valores, reverbera o sistema de crenças falocêntrico de viés marcadamente burguês.
A relação entre duas mulheres, na ótica do Delegado e do senso com um, é des tituída de
dignidade, de brio, de honra. Por quê? Porque honrosa e digna é apenas a relação conjugal
133
No Rio de Janeiro, o uso popular da palavra sêmen é “porra”, daí a expressão “porra rala” para se referir ao homem
que não consegue engravidar a esposa.
271
hetero-orientada, valor ideológico ao qual a sociedade burg uesa faz apologia. Com o sintagma
“esfrega ção de fêmea com f êmea”, o Delega do, p rotótipo do “macho”, rebaixa a mulher à
condiçã o de anima l. Ap esar d e tam bém alu dir à m ulher, “ fêm ea” é, antes de tudo , um te rmo
usado para designar “qualquer animal do sexo femi nino” (F
ERREIRA, 1986, p. 768). “Esfregação”
(ato sexua l) de “ fême a com fêm ea” re duz o ero tismo entre as duas a mantes (me smo
considerando que uma delas era inocente diante do que acontecia) à condição biológica de
satisfação do instinto sexual. É válido lembrar que, a despeito do investimento do Estado
moderno no sentido de canalizar o instinto sexual para finalidades reprodutivas, é concedido aos
homens o poder de, “caindo em tentação”, assegurar sua honra, desde que se respeitem as
prerrogativas da ideologia masculina dominante. No caso das mulheres, um tipo de “deslize” em
nome do instinto sexual é, na conce pção burguesa e cristã, objeto de reprovação e de opróbrio.
Sobretudo qua ndo esse instinto des afia o poder fálico hegemônico , como foi o ca so das duas
mulheres na peça de Moreno.
A equivalência entre “sabo eira” e “quenga” revel a a condição de alteridade que assumem,
em nosso contexto sócio -ideológico, tanto o homoerotismo quanto a prostituição. O discurs o
masculino contra o homoerotismo te nde a construir a ve rdade de que, nos casos envolvendo
mulheres, elas são “homossexuais” por não terem conhecido ainda um “verdadeiro” homem.
Trata-se de um discurso androcêntrico, que interpreta o outro, o diferente conforme in junções
da formação discursi va hegemônica. Ou seja, o funcionamento do discurso ideológico se dá,
como vimos em Van Dijk (2003), a partir da estratégia polarizadora, em que um Nós sempre se
confrontará com um Eles (alteridade). Dessa forma , salientam-se sempre ‘Nossos’ aspectos
positivos em contraposição aos ‘Seus’ aspectos negativos. O homo erotismo é, para o discurso
androcêntrico moderno, um tipo de comportamento não compreendido de fato. Não se
entendem as razões para um erotismo homo-orientado. Os sujeitos sociais que compartilham a
mesma ideologia androcêntrica não simbolizam o erotismo da mesma maneira que os de
sexualidade homo-orientada. Daí o estranhamento. Atribui-se, em prol do sistema de crenças em
que o Nós se insere, um valor moral negativo para o diferente, o outro. E sustenta-se a crença de
que há cura para esse “mal”: no caso das mulheres, conhecer um “macho” de verdade.
O Delegado se sente tão furioso co m aq uele incidente, que, e m princípio, anuncia a prisão
da viúva, depois expressa seu desejo de punir fisicamente — e violentamente — a mulher
incriminada . Ele a a meaça, dizendo-lhe: “Amanhã , na ca deia, a senho r a vai conhecer ma cho para
nunca mais se confundir” (A
NEXO 2). Ou seja, anunc ia que ela será violentada por um h omem
(atente-se para a associação entre “homem” e “delegacia”, que nos repo rta, simbolicamente, ao
estereótipo do macho) para ap render a exercer o papel de mulher. O ponto de referência desse
272
discurso é, pois, o que toma, a seu modo, o homem como modelo, centro das decisões e da s
interdições. Não bastasse isso, o Delegado parece comprazer-se ao anunciar à viúva: “E para
gente num se confundir, para todo mundo saber qual é a tua raça, coronel quer lhe marcar a cara
[a cara da viúva], como deve se ser feito com todas as vacas do rebanho” (A
NEXO 2). A p unição
física de marcar o rosto com ferro quente, tal como é feito com as vacas, contém dois efeitos
pedagógicos: alertar o povo para o que pode acontecer com aqueles que ousam fugir às injunções
do poder dominante (nesse caso, um coronelismo com fortes valores ideológicos burgueses); e
ensinar ao infrator que ele também é, assim como as vacas, propriedade do coronel, detentor do
poder econômico e político. Ao que nos sugere o Delegado, a população daquela vila habitava nas
terras do coronel e a ele devia favores e obediência. Consideremos, ainda, uma terceira
implicação, de cunho mais ofensivo: ao ser comparada às vacas, a mulher deve estar ciente d e
que não somente é propriedade do coronel, mas é uma fêmea, um animal, que age tão-somente
pelo inst into; uma mulh er à to a.
Em Agreste, diferentemente de Dentro, o homoerotismo é marcado como alteridade. N a s
palavras de Patterson (2005), há na narrativa a presença de um grupo de referência que demarca
o outro. Não somente o Delegado representa a imagem violenta do macho. Toda a população é
tomada por um ódio intenso, numa defesa caricata dos valores fálicos. Uma Voz chega a chamar
aquilo tudo de “mundiça”, ma rcando o espaço do casal co mo refugo social. Vale destacar um
trecho da peça, já próximo ao final da história:
(46)
Um grupo velou a madrugada inteira com impropérios, xingamentos, escárnios,
maldições, pragas. Criaram um ódio.
Desenterraram a pior parte de les.
Desenterraram as piores palavras da língua. (A
NEXO 2)
Um grupo se comportou como se estivesse prestes a linchar a viúva, tida como criminosa.
Seu crime: viver um tipo de rela ção tabu para a moral andro cêntrica. Esse “desvio” da no rma
moral padrão é interpretado pela populaçã o como o Mal, uma grande afronta ao povo, que
procura se comportar conforme os códigos morais vigentes (androcêntricos, vale ressaltar). Daí
por que o ódio, desent errando “a pior pa rte deles” , “a s piore s pa la vras da língua”. Lem bremo s do
que foi discutido no capítulo três: a cama da social mais popular costuma se car acterizar por
sustentar um discurso conservador quanto a determinados valores morais, valendo-se as mais
273
das vezes, para isso, do discurso religioso. Esse conservado rismo é expresso na peça pela reação
violenta da população com relação às duas mulheres, ao ponto de atearem fogo no seu ca sebre. A
necessidade era de expurgar o Mal, ou seja, o que se diferencia do modelo comportamental
padrão.
Voltemos, ag ora, ao discurso da narrativa; ou melhor, ao discurso do narrador. Que
valores sustenta? Para onde o Contador pretende nos co nduzir? O conflito que ele apresenta
reve la uma concepçã o bipolar da realidade, ex pressament e maniqu eísta, ao colo car, de um lad o,
a vit imi zaç ão da vi úva e, d e ou tro , a in tol erâ nc ia e violência da população contra a viúva. Com
esse contraste, a nosso ver, de caráter didático, entre vítima e algozes (os que não compreendem
o amor diferente da norma padrão instituída; os que agem agressivamente em nome de uma
moral), o narrador leva os ouvintes a se sensibilizarem com a viúva e a tomarem partido de sua
dor. Vimos, pelos exemplos de a a q, como seus enunciados são sema nticamente destituídos d e
qualquer valor discriminatório. Ele salienta, sim, a discriminaçã o por parte do povo,
repres entant e do sen so comum .
Nesse ponto, o método de que se vale a dramaturgia de Newton Moreno se distancia do
método dialético no teatro épico brechtiano. Em Brecht, a realidade é disposta de forma
complexa, de maneira que o dramaturgo transcende o mero esquemati smo maniqu eísta. Se h á
nessa dramaturgia épica o conflito de classes, as personag ens envolvidas, independenetemente
do estrato social em que se insere m, apresentam motivações que impossibilitam um juízo de
valor que as qualifique como “boas” ou “más”; vít imas ou algozes. Todas as personagens estão
imersas num sistema político e econômico que as engolfa inexoravelmente. Dessa forma ,
ultrapassar esse sistema, oferecendo possibilidades de um contexto social mais justo, se converte
no propósito político último das pe ças brechtianas. Em Ne wton Moreno, o relato do Contado r
assimila o universo maniqueísta geralmente característico do grupo que pertence à camada
desprivilegia da, de forma que, forja ndo uma simplicidade na representação da realidade, p elo
viés do maniqueísmo, possa sensibilizar mais o público, promovendo mais facilmente a catarse e,
conseqüentemente, a tomada de posição política. É f ora de propósito, aqui, identificar qual seria
o melhor método, tendo em mira os objetivos visados em cada autor. Dessa forma, fixemo-nos
na dramatur gia de Newton More no.
A representação dos vizinhos e autoridades se oferece com traços carregados,
caricaturados, de forma que a intolerância dessa gente seja o efe ito de sentido mais evide nte. Em
contraposição, a viúva é pinta da com traços mais suaves, destacando-lhe, como dissemos, a
ingenuidade, a candura, a inocênc ia. Seu momento de luci dez acontece quando a casa em que se
encontra está sendo incendiada. Ela está prestes a morrer quando o narrador nos conta:
274
(47)
Viu-se por inteiro pela primeira vez. Descobriu ent ão o que era mulher. Pôs-se
ao lado de Etevaldo.
Beijou-o. Na boca. O que nunca tinha feito. Abriu os olhos no meio do beijo,
enquanto o fogo g anhava a casa inteira. (A
NEXO 2)
Ela passa a entender que é mulher, que Etevaldo er a mulh er e o q ue repr esen tava para a
sociedade o contato íntimo entre duas mulheres — ela e Etevaldo. O desfecho da narrativa revela
que a viúva, consciente ag ora, resolve defender seu amor e morrer junto com o esposo, não sem
antes selar o contato entre ambos com um último beijo, dessa vez com olhos abertos, sem
procurar encobrir na consciência a alteridade de seu amor .
Todos esses elementos analisados nos possibilitam chegar ao que constitui, a nosso ver, o
point da narrativa: a intolerância das pessoas que compartilham o mesmo sistema de crenças
androcêntricas sobre o masculino não permite conceber a p ossibilidade de que a relação entre
duas pessoas do mesmo sexo pode ser fruto de um sentimento puro e verdadeiro. Com ess e
point, o narrador se posiciona ideologicamente contra a intol erância e a favor do amor,
independentemente da s formas variadas de vi venciá-lo. Com esse discurso, ele s e afasta
ideologicamente do grupo masculino burguês e adota o homoerotismo como forma possível de
experienciar o amor. Ele assume a alteridade como tema de sua narrativa, realça-lhe o caráter de
alteridade, ao confrontá-la com o discurso mascul ino heg emô nico, e procur a, sub -rept iciame nte ,
desmitificar, diante dos ouvin tes, a própria alteridade, torna ndo-a “familiar”. As duas mulheres
foram, antes de mais nada, duas pessoas que se amaram. É o amor, em última instância, o
elemento temático de destaque nessa narrativa, como os versos da quadra (na estrutura do texto,
essa quadra funciona como uma esp écie de coda
134
), no final da narrativa, nos permitem ver:
(48)
Cruel, a natureza é
Dá o sol na desmedida
Dá um corpo na desmedida
Dá o amor na desmedida
(A
NEXO 2, grif o nosso)
134
Sobre o conceito de coda, consultar nota 169.
275
Assumindo, agora, uma perspectiva mais abrangente, analisemos a peça em sua estrutura
global. O dramaturgo, da mesma forma que o Contador/narrador, toma a alteridade como tema
central e expressa-o de modo favorável, diferentemente da forma como a moral burg uesa
abordaria a mesma questão. O título e o subtítulo de sua peça revelam um c urioso contraste.
“Agreste” é uma palavra que se refere tanto à área na Região Nordeste do Brasil (transição entre
a Zona da Mata e o Sertão), quanto ao que é rude, tosco, rúst ico, inclemente, áspero. “Malva-
Rosa” é o nome vulgar para algumas espécies de p lanta, que servem como orname nto ou como
medicamentos. Paralelamente a essa acepção, há uma outra, não dicionarizada, usada por alguns
círculos gays: pelo cheiro adocicado, a malva-rosa é símbolo de feminilidade e se refer e,
metonimicamente, ao homem que assume uma identidade “homossexual”. A relação título vs.
subtítulo, ou seja, agreste vs. malva-rosa é contrastiva, não somente do ponto de vista físico mas
também simbólico. A malva-rosa é muito delicada para a região e o clima agrestinos. O rude, o
tosco e o rústico agridem a doc ilidade feminil da flor. Por extensão, a intol erância e a
inclemência desfiguram violentamente o amor homoerót ico.
Ao mesmo tempo , o título e o subtítulo no s fazem supor que a malva-rosa floresce (ou
floresceu) no agreste. Curioso é que o vocábulo que constitui o título é “Agreste”, ficando o termo
“Malva-Rosa” no subtítulo. Dessa forma, há uma ênf ase do nome “Agreste”, orientando
semanticamente o leitor a perceber em que condições adversas brota a “malva-rosa”. Num
sentido mais profundo da metáfora, é nas condições so ciais adversas que brota o amor
homoerótico entre duas personagens femininas.
A partir desses do is elementos metadiscursivos (título e subtítulo), começam a germinar,
na mente do leitor, os processos cognitivos que serão necessários para ele interagir com o
discurso da alteridade que s erá sustentado pela peça. O termo “Agreste”, em relevo no título,
converge semanticamente para a “intolerância” da população agrestina, que será destaque na
narrativa do Contado r, como já tivemos a oportunida de de co nferir. Ao realça r o ca ráter rúst ico e
agressivo da região (e, por extensão, de seu povo), tanto o dramaturgo quanto sua criatura (o
Contador) chamam a atenção para a delicadeza e a pureza do amor-flor, mostrando, co m isso,
posicionamento favorável à afetivida de e, conseqüentemente, desfavorável à intolerâ ncia. Essa
tomada de posição estética e política provém da crença de que não há no amor uma única forma
de experiência. Contrariamente à ideologia masculina burguesa, o discurso em Newton Moreno
sustenta a pluralidade de manifestações de a feto. O discurso masculino mo derno é apresentado,
na peça, de forma estereotipada, para propor, didaticamente, uma reflexão sobre a intolerância
diante das práticas consideradas de alteridade, como o homoerotismo.
276
Al ém d isso , h á, em Agreste, outros processos na teia complexa do discurso que versa
sobre a alteridade. Segundo palavras do dramaturgo,
Tenho uma amiga do Recife que trabalha com mulheres do interior, dando
orienta ção sexual n o Sertão, e ela me c ontou umas histó rias mu ito cur iosas
sobre o quant o as pessoas ainda desc onhecem elas mesmas. Não sabem como
funciona o corpo feminino. Fiquei muito impressionado com essas histórias e a
medida dessa ignorância.
(http://www.nordesteweb.c om/not01_0304/ne_not_20040324b.htm)
Esse sentimento parece ter conduzido Newton Moreno a criar Agreste. Mas se, de certa maneira ,
a peça foi baseada num fato real, ela se vale de um tema que tem um pass ado histórico
longínquo, o travestismo feminino. Já no século XVII, o número de mulh eres que se disfarçavam
de homem era surpree ndente. Houve caso s de mulheres que, sob a camuflagem masculina ,
ganhavam até patentes nas Forças Armadas européias. Para exigir os privilégios oferecidos
apenas aos homens de sua classe, algumas mulheres usavam disfarces masculinos
convincentes
135
.
No entanto, interessa-no s particularmente o diálogo intertextual entre Agreste e uma
obra que faz parte do cânone da literatura brasileira, Grande Sertão: Veredas. Citemos um
trecho dessa obra, retirado dum mo mento próximo ao final da narrativa:
Diadorim — nu de tudo. E ela disse:
— "A Deus dada. Pobrezinha…"
E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor
— e mercê peço: — mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de
tanto segredo, sabendo somente no átimo em qu e eu também só soube… Que
Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita… Estarreci. A dor não pode
mais do que a surpresa. A coice d'arma, de coronha…
Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e
levantei mão para me benzer — mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as
lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era
mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia, como eu solucei meu
desespero.
135
cf. MORENO, 2003.
277
O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem
termo real. (R
OSA, 1994, p. 380)
Participando do mesmo grup o de jagunços em que se afiliava s eu amigo Reinaldo, intimamente
chamado de Diadorim, Riobaldo passa a viver a sorte da jagunçaria, muito por razão de seu
amigo, por quem Riobaldo nutria carinho, amor e atração física. No entanto, por se tratar de um
“homem”, Riobaldo nunca o toc ou e procurava desviar o “mal” pensamento . No final do
romance, em combate contra o grupo inimigo, Diadorim termina morrendo. Só então, Riobaldo
fica sabendo da verdadeira identidade de Reinaldo: na verdade, tratava-se de uma mulher
disfarçada de homem. Chamava-se Maria Deodorina da Fé Bittancourt Marins. O trecho acima
citado corresponde a esse momento do reconhecimento. Riobaldo vê que a pessoa por quem
sempre nutriu amor estava morta. Diante da dor, constata o que sempre havia desejado:
Diadorim era mulher. Ma s nesse momento o tempo não pode retroceder e Riobaldo amargura o
fato de nunca antes ter tomado uma atitude decisiva qua nto ao amor que sentia pelo amigo.
A ambigüidade mulher/homem, present e em Grande Sertão Veredas, gera inúmeras
leituras. Citemos apenas duas, com as quais nos afinamos. A primeira delas é particularmente
social: querendo seguir os passos do pai, Joca Ramiro, famoso chefe de jagunços, Ma ria
Deodorina, uma mulher, precisou s e travestir de homem, pois na c ultura machista em que se
inserem os ja gunços, uma mulher não poderia jama is ser, agir e s e comportar como um del es.
Dessa forma, o travestimento se torna símbolo do “vestir”-se da imagem e gestus ma sculino s
para participar com os “homens ” de uma mesm a causa política. A segunda leitura é de ordem
mais simbólica: ao trabalhar com a ambigüidade mulher/homem, Guimarã es Rosa
conseqüentemen te põe em jogo a condiçã o multiforme do amor. Expliq uemos melhor. Riobaldo
sentia amor por Reinaldo, ma s não admitia jamais p ensar na possibilidade de ma terializá-lo,
pois, diante das convençõ es sociais e morais, um homem não poderia manter com o utro vínculo
erótico. Esse amor nunca confesso não surgia apenas no plano metafísico, platônico: Riobaldo
em diversos momentos expressa uma atração física pelo amigo, mas trata de reprimi-la, para não
se comprometer. O amor existe e é, nesse caso, de natureza homoerótica. Ind ependen temente do
fato de ser Diadorim uma mulher, Riobaldo nutria um afeto p or uma pessoa que ele acreditava
ser do sexo masculino, não obstante desejar que o amigo fosse uma mulher. Por acreditar que
Diadorim não era uma mulher , Riob aldo r eprim e seu pró prio amor, submet endo- se às in jun ções
morais de uma sociedade machista. Ao saber da verdadeira identidade do amigo, Rioba ldo
proc ura im plic itam ent e ju stif icar seu a mor: na verda de, esco ndia- se u m co rpo d e mu lher po r
debaixo das roupas de Reinaldo. Sofre porque nunca mais terá a oportunidade de c onfessar a ela
278
o amor reprimido. Tentando compreender a dinâmica dos sentimentos de Riobaldo, percebemos
que seu amor, do momento que conhece o Reinaldo adolescente até a morte do amigo, caminha
por uma curva ascendente. Dessa forma, o sentimento amoroso é, no caso de Riobaldo, um fato
inalienável. Esse amor ora se dirige a uma imagem masculina (Diadorim, ao longo de sua vida
junto com Riobaldo) ora a uma feminina (Diadorim, D eodorina, a mulher que Riobaldo
confundira com um homem, e de quem se lembrará e falará, amorosamente, para o resto de sua
vida).
Esse afeto que Riobaldo sente com relação a Diadorim é posto na obra como alteridade.
Ao contrário de Agreste, em que o amor entre as duas mulheres é concretamente realizado, em
Grande Sertão: Veredas o sistema de crença padrão em contexto social preciso não permitia que
Rioba ldo o usas se toma r q ualque r ini cia tiva de sedução em direção a outro homem. Mas, assim
como na obra de Guima rães Rosa, a na rrativa em Agreste apresenta uma personagem feminina
que, frente à intolerância social, teve de se travestir de homem para alcançar seus próprios
objetivos. O padrão cultural hegemônico é assimilado pela personagem feminina, que se traveste
de homem e age como esposo. A divisão de papéis é necessária para forjar uma imagem
satisfatória de acordo com a moral vigente naqu ele meio social. O reconhecimento , tanto numa
obra quanto noutra, ger a perturbação e dá ensejo à peripé Tc-9.3(t)-9mcâjp6(rjac0.085TJ21.6672 02 TD0.1306 Tc0.Gc)-6.6( pa)-6.7n6(c)Grand81(nrtãoesentare Vere)5.7(das)]TJ/T(m 483 Tf7.2992 0 TD0.0005 Tc0.07 vigenttanto n4ma 767J-26.9435 -1.70802 TD0.32002 Tc06 To vige9nage5.1(2 T2(a)-v6(d)i-6(5.6.5 éssá)-7(rost(t)2.7(óri mane5(tolr vige9n sublimin vige9nr,na)-7.(a)6.9 Tf7.29927 0 TD03104 Tc0.t)2.7(ós)-10.3e.1( é autra)s)( )5.67-11.2e)5.2af)enta Guim6-5.6(pa)-6.5(a)d6.5(a) .67-11xa mle Veredas
279
Abençoe o sono dele (ANEXO 2). Ao ser abandonada pelo padre, que não reza pela alma de
Etevaldo, e ameaçada, logo em seguida, pelo Delegado, a viúva decide não abandonar o corpo
daquela que fora se u marido ao long o da vida conjugal. Mesmo com o incêndio da ca sa,
provocado pelo povo em fúria, a viúva não abandona Etevaldo e resolve morrer junto com ele.
Esse comporta mento nos fa z lembrar o mito clássico de Antígona, ta l como fo i
assimilado, por exemplo, por Sófocles (1996). Antígona, filha de Édipo e Jocasta, é uma
personagem que ousou desafiar as ordens de Creonte, rei de Tebas, o qual decidira não enterrar
o corpo de Polinice, irmão da her oína, acusado de traição contra o Estado. Des obedecendo à
decisão real, Antígona enterra, ela mesma, o irmão, alegando que Polinice, caso não recebesse os
rituais fúnebres (libações sagrada s), seria condenado a vagar cem anos nas marg ens do rio
Hades, sem poder seguir o curso em direção ao mundo dos morto s. Pelo seu ato de insurreição,
Antígona é condenada a ser enterrada viva.
Vemos que a ação das duas histórias, Agreste e Antígona, se cruza em alguns po ntos.
Nelas, duas mulheres insistem, por amor, que seus resp ectivos defuntos sejam enterrados. Em
ambas, também, as personagens preferem morrer a abandonar o ente morto. A diferença entre
as duas obras é que, em Antígona, trata-se de uma irmã que morre por defender a alma do
irmão; e em Agreste, há uma viúva que insiste em não abandonar o co rpo do marido. Numa, o
amor é fraternal; noutra, é conjugal. Mas ambas se colocam como figuras de alteridade, na
medida em que desafiam o po der masculino local. Antígona desafia Creonte e fa z pouco caso do
discurso do rei sobre a traição. A viúva, mesmo tendo ignorado o fato, desafiou a sociedade por
viver um amor proibido com outra mulher e não se deixa abalar pela agressão que os outros lhe
dirigem, mantendo-se junta ao seu “marido” até a morte.
O discurso das duas peças converge, portanto, no tocante ao tema alteridade. Em ambas,
as personagens femininas desafiam o poder fálico e são construídas de forma que seu
comportamento seja compreendido como justo e legítimo. Esse poder fálico, contrariamente, é
realçado nessas peças pelo que há nele de intolerante, violento e cruel, sendo ca paz de punir
severamente quem ousa desobedecer às normas instituídas e confrontá-lo.
Vê-se que essa peça de Newton Moreno encontra-se no contínuo de uma série d e
discursos que convergem para a valorização da alteridade, o que sugere um posicionamento
político claro por parte do dramaturgo. Ademais, ela foi escrita num co ntexto sócio-político -
econômico e ideológico f avorável à exposição da voz dos excluídos. Isso lhe confere um poder
muito maior para propor, às claras, uma discussão sobre o centro e a ma rgem.
280
Todavia o texto, como nos propomos a de monstrar, não se restringe ap enas ao valor
polít ico. El e ofe rece um a cons trução que conj uga , assim co mo Dentro, a literatur a e a cena,
dentro da perspectiva dramatúrgica co ntemporâ nea, conforme leitura de Costa Filho (2005).
Sem considerar a proposta estética de Agreste, a discussão política que a peça promove resultará
em mais uma voz entre tanta s outras que sustentam o discurso da alteridade. O dramaturgo
investe numa cena mais performática, apostando no lúdico como instrumen to imperioso para se
abordar questões de ordem mais diretamente social. O teatro continuará sendo um espaço
dedicado à magia, ao prazer, ao divertimento. Mas, à semelhança de Brecht, o teatro concebido
por Moreno é tamb ém o local de reflexão e de consc ientização política. E esse deba te gira em
torno, tanto em Dentro quanto em Agreste, do tem a homoerotismo.
Com a a nálise dos dois textos de Moreno, podemos interpretar como o dramaturgo,
indiretamente, levanta uma discussão sobre o masculino. Em Dentro, é posto um homem e m
cena, que expõe de forma loquaz sentimentos cuja natur eza diverge da que a ordem moral da
burguesia valoriza como norma l. No entanto, ao contrário de Nelson Rodrigues, a personagem
Homem não entra num processo de decadê ncia física ou mor al em razão da s pressões sociais e
ideológicas que sofre. A concepção burguesa da masculinidade não está cenicamente
representada como um sistema de referência, salvo quando surge a penas numa menção, como
procuramos deixar claro na análise. Para além desse momento, tal sistema emerge apenas
indiretamente, se levarmos em consideração a própria condição de alteridade em que vive a
personagem. A compra do sexo resulta, nesse caso, da impossibilidade de a personagem viver
abertamente seus impulsos erótic os e suas in vestidas sexuais, um a vez que ainda no s
encontramos sob a égide da moral burguesa, com todas as suas restrições. A personagem s e
posiciona à margem desse sistema de crenças. Mas, a despeito disso, mantém com a
masculinidade hegemônica uma relação dialética que põe e m crise a concepção de homem.
O que afirmamo s com relaçã o à Agreste é válid o para Dentro: sem uma apreciação dos
elementos estéticos, deixaríamos de compreender a extensão do discurso político que a peça
sustenta. O fist-fucking, usado como eixo nortea dor da cena, ap ela para uma vivência não-
convencional do corpo. Essa vivência é radicalmente homoerotizada. Se a homoerotização ocorre
entre dois homens, o palco finda por revelar aspectos di vergentes da condi ção social mascul ina,
descentralizando o poder hegemônico da ideologia burguesa.
Quanto à peça Agreste, a alteridade é representada, como assinalamos, pelo
homoerotismo feminino. São duas mulheres que são colocadas sob o foco da narrativa. No
entanto, a discussão sobre a mascul inidade é sugerida na medida em qu e o sistema de referênc ia
de que se vale a população para julga r as personagens enfocadas é ma rcadamente androcêntric o.
281
Além disso, a personagem morta, que cumpria a função de marido, precisou de, em vida, se
travestir de homem para poder viver, através do disfarce, seus sentimentos. Numa sociedade
moderna que institui o modelo “heterossexual” como natural e normal, sobretud o num contexto
popular rural, que se caracteriza pela absorção e pela conservação dos valores morais
hegemônicos, muito mais do que em outras esferas sociais, a mulher precisa se disfarçar, se
pretende viver diferentemente do que impõe a moral padrã o, a fim de poder ser aceita
socialmente. Considerando que a moral burguesa institui uma concepção de homem e de
mulher, conforme interesses e represe ntações particulares, e que o homem é dotado de um
poder social muito maior que a mulher, só podemos acreditar que essa dicotomia é f ruto de um
olhar masculino sobre o mundo. Assim, se a imagem do homem é modelar, a mulher tem de se
valer de um ethos masculino para luta r por seus direitos.
Como em Nelson Rodrigues e em Plínio Marcos, nas peças de Newton Moreno o embate
ideológico q ue o discurso de alteridade tra va com o discurso masculino hegemônico se dá
mediante uma inter incompreensão. Os valor es de ca da formação discursiva variam, no entanto,
de um dramaturgo a outro.
Tanto em Perdoa-me por me traíres qua nto em Dentro, há a presença de um amor
absoluto, idealizado. Esse amor é, nas duas peças, revelador de uma condição de alteridade.
Entretanto, uma diferença é fundamental, o que nos permite cons truir uma interpretação
distinta entre uma peça e outra. Na primeira, a personagem Gilberto expressa insatisfação pela
forma em que o s outros costumam viver os sentim entos, a afetividade, o amor. Essa insatisfação
se transforma em inconformis mo e faz com que a personag em se rebele contra a ordem mo ral
vigente. Ao defender o amor absoluto e irrestrito, demonstra um tipo de comportamento
condenável, conforme o que se tem por “honra” masculina. A busca obsessiva por esse amor faz
que o discurso da personag em seja compreendido como de um louco, c ondição posta à margem
pela ideologia burguesa como não co ndizente com o modelo de homem em nossa sociedade.
Em Dentro, a persona gem Homem é po sta numa situação exis tencial particular. Como
observou Sílvia Fernandes, em crítica mencionada no capítulo 4, a peça lança luz sobre aspectos
do “comportamento marginal e da vida de riscos”. A personagem tem uma vivência homoerótica
e exerce uma sociabilida de homoerótica, assumindo uma identidade social que se configura
como Outro do mascul ino. O amo r é por ele idealizado , alçado a o nível do absoluto. To davia a
forma como esse amor é concebido expressa uma característica muito particular à vivência
homoerótica. Sendo o homoerotismo uma prática ainda proscrita pelo sist ema de crenças
hegemônico a respeito da masculinidade, o homem que o pratica é forçado a criar um tipo de
sociabilidade também ela marginal. O sexo se torna, muitas vezes, a porta de acesso a uma
282
experiência amorosa. A personagem Homem “caça” outros homens nas ruas em busca do amor .
Esse tipo de sociab ilidade é interpreta do pela ideologia hegemônica como algo “sujo ”, “doentio”,
“patológico”. Nesse ponto o louco e o “homossexual” são tipos que, diante do sistema de crenças
burguês, se configuram como alteridade.
Como vimos, Nelson Rodrigues expressa com muita simpatia a “loucura” da personagem
Gilberto, acentuando os tons de seu destino trágico no contexto da peça para realçar-lhe a pureza
dos sentimentos. Newton Moreno, por sua vez, tanto em Dentro quanto em Agreste, constrói um
discurso favoravelmente político em defesa do homoerotismo. Na primeira peça,
compreendemos que o jogo entre o ma sculino e o não-masculino é realçado como aspecto da
própria condição masculina e não m ais como confronto de duas realidades opostas. Em Agreste,
no entanto, as person agens femininas q ue vivem um erotismo ho mo-orientado s ão dispostas
como figura de alteridade, pois se confrontam com a ordem ideológica vigente no grupo a que
pertencem — a ordem androcêntrica. São punidas pela fúria da população, que não aceita aq uele
tipo de relação. Mesmo assim, o destino trágico, sobretudo da viúva, que passa por toda a
humilhação pública, funciona para lançar luz sobre a intolerância s ocial contra a prá tica
homoerótica, a nosso ver, o tema central da peça. Os dois dramaturgos, pelos textos analisados,
apontam, cada um a seu modo, pa ra a isustentab ilidade dos valores burg ueses no mundo
contemporâneo e terminam por construir um discurso político sobre novas formas de exercer a
masculinidade.
Na atmo sfera em que ocorre a ação dra mática nas peças de Plínio Marcos não há espaço,
como nas peças dos out ros dois dramaturgos, para o culto a um amor idea l. Pelo menos não f oi
isso o que o dramaturgo ressaltou. As suas persona gens, de certa maneira, fazem eco à fala de
Riobaldo, no Grande Sertão: Veredas, qua ndo declara: “Vivi puxando difícil de difícel, peix e
vivo no moquém: quem mói no asp’ro, nã o fantasêia” (R
OSA, 1994, p. 12). São personagens que
estão mais empenhadas na busca pela sobrevivência num mundo hostil, não lhes restando
condições de cultivar veleidades que não se ap resentem como solução plausível. No entanto, é
pelo viés da homoerotização e da homoafetividade associadas às personagens masculinas, além
dos comportamentos não condizentes com a moral burguesa, que as tornam alteridades. F oi
verificado que elas procuram apelar para a agressividade como fo rma de viril idade, a fim de
poderem sobreviver na margem onde se encontram. Para tanto, sustentam um tipo de discurso
de valores marcadamente burgueses, um discurso que, na prá tica social, não lhes pertence de
fato, mas que se rve de arma dura para enfrentar os inúmeros re veses da vida. Como é um
discurso a elas estrangeiro, não sur preende o fato de terem instintos, inclusive eróticos, que s e
contrapõem aos valor es burgueses. R evelador, no enta nto, é que o confronto entre vivênc ias
283
afetivas ou eróticas e moralidade burguesa abre espaço para interpretarmos a condição
masculina como uma realidade complexa, multifacetada, ao contrário do que nos fazem crer as
representações sociais burguesas.
Como vi mos a firmando, Newto n Moreno se encontra num tempo histórico muito mais
favorável para expor publicamente, no pa lco, questões até então tabus para a sociedade
brasileira. Do ponto de vista político, suas peças parecem apostar que, lançando holofotes sobre
assuntos até então abafado s em nome da boa moral burguesa, contribuirão para desmitificar a
vivência homoerótica, atenuando a carga negativa imposta socialmente à condição de alteridade
que esse tipo de vivência supõe. Pelo viés do homoerotismo, o dramaturgo termina por lançar
questões sobre o homem no mundo co ntemporâneo. Ultrapassando o estereótipo dos valores
masculinos burgueses, seu discur so é muito mais de caráter humanista, abrindo espaço para um
debate sobre a diversidade co mo cara cterística inaliená vel da condição humana.
284
Considerações Finais
Como procuramos demo nstrar ao longo deste tra balho, a literatura — no nosso ca so, a
literatura dramático-teatral — é uma prática social e, como ta l, veicu la e pro blematiza, p or meio
da experiência estética, pontos de vista ideológicos sobre questões que fazem parte, num
determinado momento histórico, de um debate social mais amplo.
No que concerne, de forma particular, ao discurso sobre a masculinidade moderna e
contemporânea, mostramos como a dramaturgia brasileira, notadamente a de Nelson R odrigues,
de Plínio Marcos e de Newton Moreno contr ibuiu e contin ua contribuindo para revela r a crise
dos valores masculinos burgueses. As peças analisadas aprese ntam, toda s elas, um confronto
entre o que se tem por moral andro cêntrica moderna e a prática discursiva e comportamental das
respectivas personagens, que tendem a infringir, em algum aspecto, os códigos dessa mesma
moral. Além disso, todas as peças se mostraram ideologicamente favoráveis, em graus diversos, à
figura do Outro da masculinidade burguesa. Esse Outro nos permite deflagrar os valo res
ideológicos da burguesia, cujas representações reforçavam a idéia de que o homem é
naturalmente heterossexual, viril, superior à mulher, etc. O discurso sobre o masculino vem se
descentralizando, se desconstruindo. Consequentemente, a concepção do que vem a ser um
homem afasta-se gradativamente da unidade de sentido e encaminha-se para a fragmentação e a
relativização. Esse é o sentido que damos à expressão “crise do masculino”.
Pretendíamos demonstrar, em última instância, que o teatro brasileiro moderno,
representado aqui pela dramaturgia de Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e Newton Moreno, além
das inovações formais, trataram de temas pertinentes ao homem contemporâneo, oferecendo
uma concepção lúcida do mundo pós-segunda guerra e de suas contradições. Entre os aspectos
da contemporaneidade sugeridos p elas peças analisadas, enfocamos a imagem masculina.
Constatamos que o discurso masculino nessas dramatur gias converge para a idéia de que o
homem inserido no mundo contemporâneo se depara com situações e tipos de relações sociais
não mais condizen tes com o quadro de referências q ue ele tinha de sua pró pria imagem
masculina.
285
Se em Nelson Rodrigues as personagens masculinas, po r serem julgadas como
alteridades perigosas, são punidas pela mora l androcêntrica ainda vigente em meados do século
XX, reconhecemos que o dramaturgo lhes devota uma simpática atenção, realçando-lh es
idealistica mente a pureza do s sentimentos .
Plínio Marcos, por sua vez, ao localizar suas personagens no ambiente do subm undo,
acentua-lhes o caráter de alteridade. Como párias, são o outro da clas se burg uesa , log o de s eu
sistema de crenças. Mesmo assim, confirmando nossa hipótese de que a camada popular tende a
ser mais conservadora quanto a os valores masculinos vigentes, as peças de Plínio Marcos
apresentam, no cômputo geral, três homens que se valem da agressividade, do poder fálico, da
honra masculina como mecanismos de socialização e, também, de dominação. O dramaturgo,
porém, trabalha em suas personagens determinadas sutilezas reveladoras de um comportamento
não adequado ao discurso masculino que sustentam.
Ao contrário de Nelson Rodrigues, não percebemos em Plínio Marcos nenhuma defesa de
valores absolutos e metafísicos. Isso é reforçado pela proposta estética com a qual cada um
elabora sua própria dramaturgia. O primeiro, carregando nas pinceladas expressionistas, propõe
um mergulho na intimidade de suas persona gens; dessa forma, a crise existencial de cada uma é
expressa com gra ndiloqüência. Resulta daí uma concepç ão de mundo em que a realidade se
revela em absoluta crise de valores. O segundo dramaturgo apresenta, p or meio de suas peças,
uma discussão política tão incisiva quanto o projeto estético que a comporta. São peças que
investem numa construçã o naturalista da cen a, p ara re força r, num ma teria lism o concr eto, o
ambiente sórdido em que a sociedade brasileira encerra seus párias. Nesse contexto, não se
encontra muita brecha para estar divagando a respeito das veleidades do amor, pelo menos nã o
com o enfoque temático com o qual trabalha Plínio Marcos. A cena é sintética, precisa e até
grosseira, a fim de que seu impacto sobre a platéia seja decisivo para uma tomada de consciência
política.
Com relação a Newton Moreno, o enfo que dado em suas peças ao homoerotismo revela
duas características paralelas. Por um lado, há, em Dentro, uma busca do amor absoluto, mas a
própria situação existencial em que a prática homoerótica é socialmente enquadrada nos faz
perceber a condição particular desse amor. A peça não apela para a vitimizaçã o da personagem,
não dispondo de um sistema de ref erências hegemô nico como contraponto dra mático às
experiências homoeróticas da personagem. O acentuado teor lírico é tomado como opção
estética, a fim de, com esse artifício, poder construir uma enunciação que funcione mais como
expressão direta dos sentimentos íntimos e homo afetivos e menos como embate de f orças
antagônicas, responsáveis pelo jogo dramático. A peça reivindica um espaço em que uma
286
personagem possa expressar legitimamente sua alteridade. Em Agreste, por outro lado, há um
choque dramático entr e o comportamento homoerótico e a intolerância de uma sociedade rural
pautada em valores ma sculinos ainda forteme nte vigentes. O int eressante é que a forma épico-
performática em que o dramaturgo elabora seu texto nos convida a um distanciamento da cena e
a uma reflexão sobre os efeitos danosos para quem ousa se confro ntar com os valores ideológicos
cerrados de uma meio social intolerante. A discussão ganha foros políticos, mas a peça não deixa
de cumprir seu papel lúdico de diversão.
A Análise crítica do Discurso, tal como foi apresentada no capítulo 1, se mostrou um
instrumento útil e necessário para os nossos propósitos. Mais uma vez reforçamos, a literatura é
por nós concebida como discurso, uma prática social específica por se valer de recursos estéticos
determinados. Como discurso, ela está assentada num contexto social específico, veiculando
valores que fazem parte dos mais amplos debates sociais. Ao mesmo tempo e dialeticamente, ela
tende a agir sobre seus leitores, contribuindo para construir representações sociais
determinadas. Vimos como as dramaturgias aqui estudadas agem, cada uma a seu modo, sobre
os valores masculinos consagrados na sociedade burguesa, problematiza ndo-os e expressando a
crise em que se encontram esses m es mos valores na contempora neidade.
A abordagem sociológica da literatura proposta por Bakhtin (1981a; 1981b; 1992) nos
ajudou a caracterizar o discurso literário como uma produção ideológica. No e ntanto, dois
autores específicos contribuíram para a definição do métod o de aborda gem.
Van Dijk (2003), além de ter oferecido a concepção de ideologia aqui adotada, foi de
grande importância para o ca minho trilhado nesta tese, pois, como a nalista do discurso, propô s
uma abordagem lingüística do discurso ideológico e nos possibilitou delimitar com maior justeza
nossa própria compreensão de alteridade. Além dele, nos ajudou nesta empreitada a concepçã o
que Paterson (2004) apresenta sobre o Outro, sobretudo porque a autora, tomando um corpus
constituído de romances quebequenses, empreende uma abordagem discursiva da alteridade. A
partir desses elementos discursivos, traçamos o percurso metodológico para a análise das peças
que fazem parte de nosso próprio corpus.
O risco a que nós, analista s críticos do discurso, estamos su jeitos é sermos tomado s por
pretensiosos, na medida em que, valendo-nos d e um enfoque objet ivo acerca dos mecanismo s
ideológicos do discurso, p assaríamos a idéia de estarmos acima de qualquer ideologia. Isso não é
verdade, e a nossa discussão dos capítulos 1 e 2 dá prova disso. Sendo a linguag em um processo
de interação social, não podemos deixar de considerar o caráter ideológico do signo. Essa é, a
nosso ver, uma concepção inalienável. Não podemos, então, fazer uso da linguagem sem
287
investirmos ideologicamente os signo s que a compõem. Não se trat a necessariamente de uma
decisão racional, mas de uma to mada de posição quanto ao sistema de crenças que nos pareça
mais coerente e mais plausível para um determinado momento histórico.
Dessa forma, o nosso reco rte sobre o discurso mascul ino é ideológico. Se, por um lado, os
valores burgueses ainda se mostram hegemônicos, não obstante a crise por que vêm passando há
pelo menos meio século, por outro, nos encontramos num momento propício para discutir a
própria imagem do masculino burg uês, q ue não consegue mais acompanhar o curso nem a tend er
às expectativas do m undo contempo râneo. Por se revestir ainda de um poder ideológico inc isivo,
o discurso burguês para a imagem ideal do home m precisa ser criticamente questionado. Valores
que correspondem às aspirações de uma cla sse particular são toma dos como naturais ou
advindos das leis divinas. Acr editamos, no entanto, que, num mundo que instaura a
desconfiança pelas grandes narrativa s, no sentido que Homi Bhabha (2003) dá ao termo, ou s eja,
de discursos absolutos sobre a verdade, não po demos mais tomar como parâmetro de verdade o
discurso burguês sobre o masculino.
O que é taxado como o não -masculino da masculinidade burg uesa está mostrando, num
espaço e tempo favoráveis ao seu apa recimento público, que é tão legítimo quanto os valor es
burgueses são para a classe burguesa. Dessa forma, a diversidade, o multiculturalismo e o
interculturalismo sã o concepções politica mente necessárias para se buscar um convívio
satisfatório e produtivo entre homens numa mesma sociedade. E a literatura muito tem
contribuído para esse fim.
288
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303
Anexos
304
Anexo 1
DENTRO
de Newton Moreno
305
DENTRO
Um HOMEM de meia-idade coloca uma luva comprida em uma das mãos, esticando-a até o antebraço.
Luz até seu quadril. Cheira um poppers ( estimulante químico ). Desce a mão com a luva abaixo do
quadril. Parece que vai enfiá-la em alguém. Pode-se ouvir os gemidos de um rapaz, que num primeiro
instante não vemos. São adeptos de fist-fucking, preparando-se para transa. Durante o texto, a mão vai
desaparecendo mais e mais. Luz alterna-se entre homem e rapaz, nunca focalizando-os juntos.
HOMEM
A gente quer pôr a mão em tudo. Na Lua, em Marte, em Deus. Até no que não nos pertence. No que o
tempo nos tirou. No que está longe. Quanto mais distante, mais vontade de tocar. Todo mundo tem
saudades de um toque. De uma carne. Eu sinto falta de Binho. Às vezes, quando minha mão tem cãibra,
ela está doendo de saudades de Binho.
O rapaz geme. O Homem desce a mão um pouco mais.
HOMEM
Nunca mais a mesma temperatura, a mesma suavidade, nem o mesmo espaço. Binho sabia me receber.
Era meu vizinho. Um belo galego que tinha tara por dinheiro. Loirinho, quase albino, olhos verdes, voz
rouca. Olhar para ele já era correr um risco. No jeito que ele olhava, já sugeria um crime.
Quando criança brincava de pôr o dedo no seu cu.
Na verdade, eu pagava. Pagava por uma rápida sensação de suas entranhas mornas e tépidas. Uns
poucos minutos que me abasteciam por dias. Binho foi meu único amor. Eu nunca havia tocado outro
homem. Me apaixonei por ele nos primeiros centímetros do indicador, enquanto ele desabrochava (seu
ânus) em ton sur ton de rosas e violetas, sempre um jardim de surpresas. Alguns dias mais rosa, outros
mais violeta. Florescia nossa curiosidade juvenil em manhãs decoradas de suas flores. Atrás de cercas,
em cima de árvores, embaixo das camas. Toda flor tem perfume próprio. Nunca esqueci o perfume de
Binho, coroando meu amor com os vapores de seus botões em flor.
Mas com os meninos, eram só negócios. Conosco juntava os tostões para comprar beijos pueris de suas
namoradinhas, com sorvetes e doces. Angélicas, Martas, Anas, várias. Às vezes, batia à nossa porta,
disponibilizando-se pela manhã e, à tarde, já estava a passear de mãos dadas e algodão doce com suas
meninas. Só uma certeza me fortalecia: elas nunca veriam pelo mesmo ângulo que eu via. Isso elas
jamais teriam. E eu tive. Eu e quase todo o bairro.
306
Tem gente que só tira fezes do rabo; Binho tirou uma bicicleta, patins, comprou até boneca para sua
preferida, Neide. Ele a adorava. Acho que pensava nela enquanto se prostituía. Deu-lhe uma boneca
embrulhada em papel de presente no aniversário. Com laço e tudo. Nem o pai dela tinha dinheiro para
tanto. Se eles soubessem de onde vinha o dinheiro.
O rapaz geme de novo. O Homem desce mais um pouco.
Enquanto procurava Binho, achei verdadeiras cartolas de mágico, operando milagres de elasticidade.
Uma coisa eu descobri: os homens têm carne demais, demais !
Me acostumei com a idéia de um homem nu na minha frente, oferecendo as vísceras. Cresci com essa
vontade. Em decúbito, agachado, separando cuidadosamente as polpas de suas nádegas, amaciado,
amanteigado, entorpecido, pronto para uma viagem íntima.
Pelo menos sempre foi sexo seguro. E sem luvas, nem pensar. Acho que a Bíblia nem fala nada sobre
isso. Ou será que fala ? ( pausa )
Não, definitivamente não fala.
Mas mataram tanta gente por colocar o “sacrossanto órgão reprodutor” no “vaso traseiro”. Teriam
misericórdia se puséssemos a mão ? O punho ? Duvido. Eles nunca tiveram compaixão alguma com o
prazer. De nenhum tipo.
O coitado do cu já sofreu muita perseguição. Ele é só mais uma porta.
Me transportou para Binho.
Mas até onde ir ?
Seria tão bom encontrar alguém e perguntar-lhe, antes que fosse tarde : até onde ir ?
Luz no rapaz que transa com o Homem. Só seu rosto, voltado para o público, visivelmente entorpecido
de poppers e prazer.
RAPAZ
Ele agarrou seu amante com firmeza. Rasgava-lhe os olhos, destemperado de gula no peito. Destroçava
a construção de seu rosto, queria entender sua carne, decompô-la em lâminas ao sol para desfilar sua
língua com força. Queria estudar o coração enquanto sugava-lhe o suco e garimpava suas veias com os
dentes.
Ele escavaria toda aquela matéria até resgatar a si mesmo.
Luz volta ao movimento inicial.
HOMEM
Como se descobre a fronteira ? Quando se machuca ? ( Pausa ) Será que eu o machuquei ?
307
Luz no rapaz que transa com o Homem. Só seu rosto, voltado para o público, está iluminado.
RAPAZ
Pode começar por onde quiser : todo o meu corpo é orifício. Várias portas. Cada poro deve ser penetrado
pelo suor do outro com a mesma sensação de um membro, de uma língua, de dedos, mãos. Cada poro
existe para me dar prazer.
Sabe quantas pessoas existem no mundo ? Eu e os meus amantes. Os que já estiveram em mim e as
minhas promessas.
Moro na cama de cada um deles. Moro no corpo de cada um deles. Moro no músculo de cada um deles e
hospedo todos entre minhas pernas.
Luz volta ao movimento inicial.
HOMEM
De que adianta ter alguém ao lado se não posso perfurar-lhe o
núcleo ! Evoluí meu apetite por Binho.
Primeiro, sonhei que me vestia de Binho como se fosse uma pele. Encaixava-me entre ossos e feixes,
abotoando-o em mim. Habitava-o. Como parasita/hospedeiro. Vivendo dele, nele, pra ele.
Depois, sonhei que comia seus pedaços, alimentando-me de sua proteína albina. Casando nossas
células, banhando-nos em nossas placas sanguíneas.
Seria ele tão lindo do avesso ?
Experimentei uma vontade de comê-lo. Sabê-lo inteiro: sabor, textura, tempero. Eu queria me imprimir em
Binho, mostrar-lhe minha fome.
Bati à sua porta, à noite. Subimos num galho bem alto. Paguei mais uma vez e mergulhei com fôlego.
Ancorei longe, como nunca tivera feito antes.
Arranhei na parede de dentro meu nome e o dele. Na carne mais íntima. No canto sujo. Sangrei nossos
nomes. Eternas cicatrizes. Desenhei meu segredo. Binho não gritou, aceitou minha assinatura.
Ele se foi depois do que fiz sem nada dizer.
Fugiu. Levando meu nome. E eu fui com ele.
Luz no rapaz que transa com o Homem. Só seu rosto, voltado para o público, está iluminado.
RAPAZ
Costuraram-se, pelos lábios, sangue e saliva num beijo. Dois amantes ensinando: o único alimento é o
sentimento.
Luz volta ao movimento inicial.
308
HOMEM
Procurei anos por Binho. Muitos. Especializei-me na procura. Tem gente que se acomoda em procurar.
Vicia na espera. Mas o pior é que eu o achei.
Aos 35 anos, ainda se escondia nas esquinas, calças baixas, tentando garimpar o resto de fascínio de
seu reto.
Binho envelheceu na profissão. Paguei-lhe de novo. Não me reconheceu. Zonzo de crack, deu as costas,
separou-me os montes. Olhei meu antigo ninho e tremi de nostalgia daquelas tardes. De púrpura
brilhante e viçoso, apodreceu. Murchou. Adquiriu um aspecto de lodo esverdeado. Gasto. Usado.
E chorei. Chorei tanto que metade de mim se foi naquelas águas. Desidratei naquela tristeza. Binho
vestiu-se, pegou o dinheiro e perguntou: “Gostou ?”. Nem sentiu que nada acontecera.
Caminhou trôpego para dentro da noite.
Luz no rapaz que transa com o Homem. Só seu rosto, voltado para o público, está iluminado.
RAPAZ
Tempo é o frio que faz entre o calor de um corpo e o próximo.
Luz volta ao movimento inicial.
HOMEM
Sumiu. Dele só tenho a vontade. Ele me plantou a sede.
Recito minha história como uma prece sempre que outros vêm a mim. Estou preso a ela como um
mantra, um cântico, uma marca de nascença. ( Pausa )
Coloco minha mão à luz do sol, olhando a palma, as linhas, mas o que me impressiona é sua firmeza.
Sólida. Solto-a ao mar como uma rede de pesca. Curiosa. Á vida.
E eu a perdê-la de vista. Minha mão dentro do outro. Até o pulso. Ou além.
Homem começa movimento de retirar a mão.
Luz no rapaz que transa com o Homem. Só seu rosto, voltado para o público, está iluminado.
RAPAZ
Toda vez que eu beijo, quero descobrir a sensação exata do primeiro beijo. Não do meu, o primeiro beijo
de todos os tempos. O primeiro encontro de salivas, o despertar do desejo dos homens, as primeiras
línguas que se amaciaram e se comprometeram.
O universo inteiro deve ter gozado em uníssono. Desesperada e organicamente. Todas as forças da
natureza gozando através daquelas bocas.
309
O resto é eco. Distante. Que vai se amarelando em mofo e fingimento.
Eu quero um homem que me traga a ereção de Deus quando criou o mundo,
o prazer de Deus quando criou o homem e o prazer do homem quando criou o prazer.
( Para alguns homens da platéia ) Dê-me um grito de prazer nunca antes dado. Dê-me um beijo mais
espesso e mais molhado. Dê-me algo deste impulso dos teus músculos. Dê-me um pouco do tesão que
movimenta o teu sangue. Dê-me teu corpo sem saber o que eu devolvo. Dê-me algo que eu possa
chamar de vida, que eu possa injetar em meu tecido, que eu possa diluir em meus líquidos.
Sinto passos dentro de mim, mas quem alcança o meu coração ? Quem alcança o meu coração ? Quem
alcança o meu coração ?
Luz apaga no rapaz. Volta para o homem com a mão fora do rapaz, só que segurando um coração na
mão.
Luz morre aos poucos.
310
Anexo 2
AGRESTE
( Malva-Rosa )
de Newton Moreno
311
AGRESTE
(MALVA-ROSA)
A idéia deste texto é servir como exercício ( solo ) de narrativa para um ator-contador ( atriz) e dispor de
outro(s) ator(es) que cria(m) uma partitura física para determinados momentos da estória. Da união
destas duas linguagens - a oralidade e a dança-teatro; verbo e movimento – será feito o espetáculo.
Um(a) narrador(a).
Velho(a) contador(a) de estórias. Daqueles que reúnem um grupo ao redor da fogueira ou embaixo de
uma árvore com uma viola/sanfona, pontua suas histórias com as músicas e acordes que saem de seu
instrumento. Ele(a) recebe o público, dá o clima de cada passagem do texto, pausas; enfim, é o grande
condutor da cena.
O narrador pode fazer as vozes de todas as outras personagens, até mesmo do casal, e ainda
representar o padre, o delegado, ou as vozes dos moradores, entrando na cena para contracenar com a
atriz e depois voltar ao seu posto de narrador.
CONTADOR(A)
( Depois que recebe e cumprimenta o público, sentado num canto do palco. )
Ele andava muito para encontrá-la. Mas quando se viam, ficavam, no mínimo, a cinco metros de
distância. Nem um centímetro a mais ou a menos. Exatos 5 metros. Sempre. Uma cerca os separava.
Ela sorria de um lado, ele, do outro.
Ele deixava uma flor na cerca, ela ia buscar.
Ela deixava seu perfume na cerca, ele ia buscar.
Eram tímidos como caramujo. Precaviam-se. Se chegassem muito perto, Deus sabe o que aconteceria.
Tinha alguma coisa no amor deles que não devia acontecer. Mas aconteceu.
Por meses, anos. Eles e a cerca.
Ele deixava um beijo na madeira do cercado, ela colhia.
Foram se estreitando. Chocando sua intimidade. Confiavam um no outro, que nem a terra na chuva.
Ele deixava sangue no arame da cerca, ela ia enxugá-lo.
Às vez, podia demorar um mês para se encontrarem. Ela deixava um pedaço de chita do vestido, ele
amarrava na enxada. Era lavrador no Nordeste mais castigado do país. Reino de areia e de sede. Era
honesto. Forte. De pele marcada. Não dá para saber a idade. Eram como rochas velhas secando na
espera. Sua cultura era o sol. Sua família era o sol.
Ele deixava cuia. Ela colocava cuscuz. Ele comia, sorrindo. Ele devolvia a cuia e ela ia buscar e...
descobriram um furo na cerca !!!
312
Música. Os atores que representam o casal estudam o buraco, cada um do seu lado. Tempo.
CONTADOR(A)
Incertos. Fingiram não vê-lo. Era um buraco enorme como o sertão. Fingiram por uma semana. Duas. Um
mês. A dúvida.
Mas o buraco crescia, como querendo se exibir. Amostrado. A cada vez que voltavam, estava maior.
E eles de butuca no furo. Parecia um açude, tentando-os com sua água escura, escura, cor de enigma.
Se ele tocasse nela ? Se ela aceitasse ele ?
Às vez, é preciso muita coragem para dar um passo.
Tempo. Ação dos atores estudando o buraco.
CONTADOR(A)
Naquela manhã, ela foi sozinha. Firmou-se frente ao buraco. Tomou coragem e cruzou. Acalmou-se aos
poucos. Respirou, deu um passo, dois. Agia como um astronauta movimentando-se pela primeira vez na
Lua. O ar é o mesmo. O Sol é o mesmo. O coração era outro. Uma criança brincando onde não devia.
Trelosa. O que ela não sabia era que ele estava lá. Olhando-a boquiaberto detrás do arbusto. Ela
dançava, grunhia, sujava-se de terra.
Ele sorria.
Quando se perceberam, paralisaram. Mas muito, muito tempo. Ele ultrapassou o limite dos 5 metros, aos
poucos. Alcançou o hálito nervoso dela. Talvez 45 centímetros. Atravessaram !
Música. Poeira subindo.
CONTADOR(A)
Correram. De tanta euforia e medo. Levantando uma nuvem de poeira por onde passavam. Uma nuvem
como há muito o Nordeste não via.
Fugiram para longe.
Pensaram: chegariam no mar de tanto passo.
Chegariam, se tivessem corrido esse tanto de chão pro outro lado.
Avexaram-se no passo com medo de mudar de idéia. O medo deu pressa. As lágrimas dela tentavam
marcar no chão um caminho de volta. Num determinado ponto, deram-se as mãos e tranqüilizaram-se.
Perfuraram o Brasil mais fundo. Desmontaram dos pés no meio da seca. E pensaram que não devia
existir um lugar mais árido que aquele. Mas o Nordeste surpreende a gente. Vai ter sempre uma rês mais
murcha e um filho mais moribundo. O peito arfava de contentamento e pavor. Era como se inspirassem
alegria e expirassem receio. Uma pausa de um silêncio pesado.
313
Desviavam olhares, cabisbaixos. Não queriam mostrar a dúvida passeando dentro dos seus olhos. Pior:
não queriam ver nos olhos do outro a dúvida.
Voltar ? Mesmo se quisessem, não saberiam como. As pegadas úmidas já nem existiam; foram sorvidas
com força por aquela terra saudosa da água.
Deitaram os corpos na sombra de um mandacaru. Na margem do que fora um riacho. O sol já lhes
roubara o senso, o tino.
Algo morno crescia na alma. Era um vapor no forno, no berço, na fôrma do novo afeto. Estavam à beira
de um desmaio. A razão já se afogava com o sol a pino quando uma mulher se desenhava ao longe feito
miragem. Veio lenta como a justiça. Aproximou-se.
Falava com eles, mas eles não ouviam uma só palavra. Em lugar das palavras, só conseguiam escutar
os sons das águas. Da sua boca tudo soava gotas de chuva, barreiros cheios, açude vazando, água da
calha. Os sons dela eram todos molhados. Ela falava como um rio, aquosa. Foi essa mulher quem os
salvou.
Levou ao povoado e tratou de acomodá-los.
Apearam neste arraial. Um pouco de jabá, sombra e água barrenta, e recobraram o prumo.
Lá, eles plantaram a vida.
Música pára. O texto segue com a poeira ainda alta.
Construíram um casebre.
Cercaram com arame, mas para se prender por dentro.
Não queriam conhecer os outros, antes de saberem de si.
Até então, nada das coisas que se permitem marido e mulher. A carne é um compromisso mais definitivo.
Passou esta cerca, o gado é marcado.
E a noite chegou mais clara que o dia. E os olhos não se prendiam num abraço de jeito maneira. Mas os
dois foram se descobrindo aos poucos.
Ela começou pelo seu rosto. Os cabelos dele. Escuros, cabeleira cabocla de filho de índio brabo. Farto e
espesso. Devia de pesar na mão. Devia de quebrar pente fraco.
Ele fazia o percurso inverso. Pôs os olho nos cambito da moça. Umas canela fina, mas bronzeada, que
lhe agradaram os sentido.
E assim se seguiu a malemolente investigação : ela descendo os olhos, ele subindo a vista.
Ela admirava era a dentição dele. Perfeitinha. Os dentes que faltavam em cima, ele tinha embaixo; e vice-
versa. De modo que quando ele sorria, os dentes se encaixavam num sorriso de um fileira só, mas sem
buraco. Mas sorria bonito ele !
Uma semana depois, eles se tocaram. Antes disso, só as mãos no meio da correria.
Ouvia-se uma pele rachando na outra, acostumando-se um ao outro,
314
deixando o tempo passar. Um dia, ela se escondeu embaixo do lençol; ele apagou o candeeiro. Por anos,
este foi o sinal, o código. Sumir-se embaixo do lençol. Cobrir a luz com o escuro. E ele apagou muito
aquele pavio.
Como marido e mulher, viveram por vinte e dois anos.
Até hoje.
Música cessa. Poeira baixa. Homem deitado, mulher a seu lado.
Velhinhas entoam incelenças.
CONTADOR(A)
Morto, ainda vestido para o trabalho, ele dormia sob a mesa da sala. Uns candeeiros velavam o corpo,
resguardando sua imagem.
As vizinhas foram adentrando. Já cantavam em suas casas e traziam seus cantos no suspiro da noite.
Todas empregavam as melhores palavras de um parco vocabulário para defini-lo.
VOZES
“Da mais alta estima”, “Pareia de Anjo”, “Elegante como Jesus”, “Íntegro como uma rocha”.
CONTADOR(A)
Era o mais elaborado do seu idioma. O resto era oração e cântico.
Uma vizinha sentenciou triste:
VE1
Ele desapareceu a ela.
CONTADOR(A)
Eram um casal benquisto. Discreto. Pouco festivos. Trabalhadores. Sem filhos. Nem seus nomes eram
conhecidos. Seu Zé, Dona Maria, chamavam eles. ( Pausa )
Quieta. A noite parecia uma pergunta difícil. Armava um bote/arataca.
( Pausa )
A sala povoou de mosquito e de mulher. Nunca tão farta. Nem de um nem de outro. Os homens
explodiam seus sentimentos em rojões. Segredavam às estrelas saudades e estima. Desenhavam
lágrimas de luz no céu.
O padre estava a caminho para a extrema-unção. Amuada e com fome, a viúva remendava o terno puído
para o enterro. O que deveria vesti-lo no casamento. Alguém lhe trouxe um pedaço de cuscuz com leite.
Estacionou agulha e linha e comeu. Construiu uma figura triste. Do nada, irrompeu numa careta grotesca
e chorou. É muito triste uma mulher comendo e chorando. Ainda mais viúva. Comeu até a última gota.
315
Levantou-se e caminhou até Jesus. Beijou o quadro na altura do coração. A vela apagou-se, só se via a
luz no coração de Cristo. Deus !! Jogaria terra sob o morto. Murmurando, pedia força para fazê-lo.
Um cortejo entornou na cama o corpo. Cabisbaixos, retiraram-se. O silêncio. Um silêncio que esfriava o
sangue e que parecia nunca mais ir embora.
VE1
Quer vesti-lo, fia ?
VE2
Ou quer que nóis ajude ?
VIÚVA
Não. Pode trocá.
CONTADOR(A)
Um minuto depois, deixou escapar...
VIÚVA
Nunca que vi Etevaldo nu.
CONTADOR(A)
Revelou. Como se nem ela mesma quisesse ouvir aquela confissão.
VIÚVA
Fechava os olhos quando ele me machucava.
CONTADOR(A)
À noite. No breu. Através do lençol. Desconhecia aquele corpo, mas amava-o. Confessou, roxa de
vergonha. E era a primeira vez que ela falava com alguém mais que duas sentenças.
VIÚVA
Se for pra eu trocá, vou ter que apagar o candeeiro. Aí vai dar uma trabalheira da gota serena.
CONTADOR(A)
Pediu que ficassem. Virou de costas e instrumentalizou-as com o terno. Recolhida. Como se houvesse
alguma indecência em ver o marido nu. As velhinhas começaram a descascá-lo com técnica e
indisfarçável contentamento
316
VE2
Quanta virtude, meu amor.
VE1
Mas quem viu já conhece...
VE2
...Quem nunca viu não sabe o que é.
VE 1
Oxente, cadê?.
CONTADOR(A)
A viúva já tinha entregue o paletó.
VE1
Maria de Deus, cadê a trouxa ?
CONTADOR(A)
Assustou-se a velha.
VE1
Faz tempo que eu num vejo um, mas isso aqui não é peru.
VE2
Não se avexe não. Espie melhor. Procure direito.
CONTADOR(A)
De costas, a viúva se perguntava ...
VIÚVA
Que trouxa?
VE2
Deve de tá escondido. Às vez tem que ajudar pro bichinho florescer.
VE1
Mulé, ou eu perdi a vista de vez ou a piroca dele é do tamanho de um cabelo de sapo.
317
VE2
Deixe eu lhe ajudar ...
VE1
Menina, cadê a bilola ?
VE2
...a bilunga ?
VE1
...a bimba ?
VE2
....o ganso ?
VE1
....a macaca ?
VE2
....a peia ?
VE1
...o maranhão ?
VE1
...a manjuba ?
VE2
....a macaxeira ?
VE1
....a pomba ?
VE2
....o pororó ?
VE1
o quiri ? Olhe ali.
318
VE2
Não, não tá.
VE1
Creio em Deus Pai todo Poderoso.
VE2
Olhe a teta.
VE1
Menino, isso parece uma quirica
VE2
Creio em Deus Pai, mulher. É um tabaco.
VE1
É mulher. É mulher.
CONTADOR(A)
Disse e saíram correndo casa a fora.
AS VELHAS
O MARIDO DELA É FÊMEA !!
VIÚVA
Posso me virar ?
CONTADOR(A)
Súbito, uma multidão fez fila na porta do quarto. Uma mulher despida sob a cama e outra de costas
olhando o retrato de Jesus.
A viúva não entendia nada. Não entendia a morte. Não entendia homem. Naquele momento, só entendia
a perda. Incrédulos, alguns faziam o sinal da cruz, outros se penduravam na janela para procurar atentos
pelo peru. Já havia quem tomasse partido dela.
VOZ1
“Foi enganada a coitadinha. A sem-vergonha iludiu a bichinha”.
319
CONTADOR(A)
Outros mais radicais :
VOZ2
“Elas vieram foi fugida para sujar nosso lugar com essa mundiça”.
CONTADOR(A)
Facções se formavam e a notícia galopava.
Nisso, o padre chegou e foi direto cobrir o defunto, ou melhor, a defunta. Expulsou a todos. Trancou-se
mais ela. Ressuscitou um candeeiro. Tomou coragem várias vezes para falar algo. Ponderado, começou:
PADRE
Minha filha, você dormiu com uma mulher.
ViÚVA
Não, seu padre, eu dormi com Etevaldo. E nunca que gostei. Sabia que num devia.
PADRE
Creio em Deus Pai.
VIÚVA
É por isso que o senhor tá brabo ?
PADRE
Não.
VIÚVA
Dormimo junto porque ele gostava. Mas ele me jurou casamento. Se o senhor quiser eu me caso com ele
morto mesmo. O vestido tá aqui guardado.
PADRE
Não é ele, mocinha. É ela.
VIÚVA
É Etevaldo! Benza ele, benza.
PADRE
Nunca!
320
VIÚVA
Benza, padre, ele é devoto de Santo Antônio. Temente a Deus. Queria até casar na Igreja.
PADRE
Vou rezar por você.
VIÚVA
Por mim, não, padre. Reze por ele. Ajude ele a morrer.
PADRE
Não posso. Morreu em pecado escuro.
VIÚVA
Dê descanso a sua alma.
PADRE
Tenho que chamar o bispo na capital.
VIÚVA
Abençoe o sono dele.
PADRE
Não posso! Todo mundo sabe que eu a vi sem roupa.
VIÚVA ( chorando e corrigindo )
Etevaldo...
PADRE
Etevaldo. Eles sabem que eu sei que ele é mulé. Pelo menos se tivesse me chamado antes, nós
teríamos feito de outro jeito. Ninguém tomaria conhecimento, minha filha. Já enterrei gente que nem você
e ela ... Etevaldo. Gente que morreu fazendo menos barulho.
( Pausa ) Você o ama ?
VIÚVA
Num sei o que é isso não. Eu queria ir mais ele.
321
PADRE
Que Deus lhe abençoe. ( Abre a porta aos gritos ) Herege ! Herege !!
CONTADOR(A)
Estatelada no chão, viu o padre sair da casa. Levantou-se a custo. A casa estava vazia agora. Escura.
Agarrou-se ao candeeiro. Cobriu seu marido. Sem investigar-lhe a nudez. Incomodou-a estar só. Queria
cantar para ouvir alguém. Não sabia se Jesus estava com ela ou não. Tinha Deus como uma certeza,
mas às vezes achava que Deus podia aparecer, tomar um café, enrolar um fumo. Ficar mais íntimo.
Gritos rodeavam a casa.
VOZES
“Belzebu!”, “Filhas do Demo!” .
CONTADOR(A)
O delegado apeou na porta dela. Disparou uns três tiros pro alto para tanger o gado revolto. Mugiram
contrafeitos, mas desmilingüiram-se para dentro das moitas. Entrou chutando a porta. Arrastava-se e
trazia uma nuvem de mosquito em torno do seu cheiro. Sentou-se de frente para a viúva. Nem olhou o
defunto.
DELEGADO
A senhora provocou uma desordem arretada nos arredores. Sabe quem eu sou ? Num me conhece, não
? Pois eu sou o delegado. Vim a mando do Coronel Heráclito, conhece ? Conhece, sim. Trabalhou nas
terra dele. Foi ele quem lhe deu sustento.
Disseram que a senhora nunca que pegou bucho.
Uns até desconfiavam, mas acharam que a gala de seu marido era rala. Coronel num gostou de saber de
sua historinha, não.
Mandou vim ver de perto essa sem-vergonhice. A senhora deve de saber que amanhã findando o
enterro, a senhora vai presa. Isso quer dizer, depois que a senhora arranjar um lugar para enterrar seu
macho.
( ri ).
Ele mandou dizer que nas terra dele não se enterra. Vocês são que nem as quenga, as rapariga, as
catráias, as sapuringa, que são tudo enterrada longe, no eito, nas brenha esquecida.
Nas terra dele só esterco bom. E vocês fedem a adubo estragado.
Vai ter que arranjar outro chão para enfiar esse corpo. Se enterrou nesta terra, erva daninha nasce.
( olhando o caixão )
Menino, não é que ele é mulher mesmo ? Mas é feio feito um macho. E tu ainda tratou bem dessa mulé.
Tá gorda que nem filho de ladrão quando o pai tá solto. E tu num sabia que coronel num gosta dessa
322
esfregação de fêmea com fêmea. Sua saboeira safada! Amanhã, na cadeia, a senhora vai conhecer
macho para nunca mais se confundir.
( Sai o delegado )
E para gente num se confundir, para todo mundo saber qual é a tua raça, coronel quer lhe marcar a cara,
como deve se ser feito com todas as vacas do rebanho.
CONTADOR(A)
Ela se sentia um prato de comida estragada. Uma carniça. Um penico. Um escarro. Uma doença. Um
pus. Um cancro. Uma gota. Suja, suja, imunda. E não entendia por quê. Não tinha cabeça para
entendimentos.
Se pudesse falaria no ouvido de Deus. Cantou sua fé com devoção sincera, o que dá no mesmo. Olhe,
Música e Deus ninguém vê. Fé ninguém toca, nem se mede. Mas juro: acontecia livre cada centímetro de
Jesus na voz dela.
Tempo de seu canto. Cena parada. Contador a acompanha com instrumento.
CONTADOR(A)
Lembrou da dor e do alívio. A única imagem era a da mãe. Que fechava feridas com um sopro e ervas.
Lembrou quando sangrou de Chico da primeira vez. Ela gritava : “Mãe, tô vazando sangue.” E a mãe
dizia : “É assim mesmo, fia. Crescer dói, de vez em quando”. Era a imagem de ninho que precisava para
dar-lhe forças. E parecia ter o rosto da mãe desenhado na parede interna da pálpebra. Sua mãe
cuidando da prole. Morrendo de fome, mas alimentando a cria. Sabia que ela cortaria uma mão se lhes
faltasse carne pra comer. Amor ? O que seria isso ? Dor e alívio ? Quando dava de chover, sua mãe
punha os filhos tudo na chuva para aguar. Para crescer rápido. E só saíam de lá quando a chuva
minguasse.
Queria estar com a mãe, queria ter ido no lugar dela quando morreu. Assim como trocaria de lugar com
Etevaldo agora.
( Pausa )
Foi só delegado sair latindo pelo serrado/caatinga, e os gritos voltaram. Um grupo velou a madrugada
inteira com impropérios, xingamentos, escárnios, maldições, pragas. Criaram um ódio.
Desenterraram a pior parte deles.
Desenterraram as piores palavras da língua.
Nem bem a madrugada se punha, trancaram portas e janelas da casa delas. Envergonhavam-se delas.
Queriam apagá-las de suas memórias. Cercaram a casa por fora. Enterravam-nas vivas.
Não se sabe quem foi, quantos eram. Nem quem acendeu o primeiro fósforo. Começaram a incendiar o
casebre.
Mal sabiam que, dentro, a viúva agradecia a benção de morrer com Etevaldo.
323
Temia muito mais viver sem ele por certo. Tinha cantado bonito, Deus tinha lhe ouvido afinal. O fogo já
empenava as paredes.
Mesmo assim, a viúva acendeu o candeeiro. Viu-se por inteiro pela primeira vez. Descobriu então o que
era mulher. Pôs-se ao lado de Etevaldo.
Beijou-o. Na boca. O que nunca tinha feito. Abriu os olhos no meio do beijo, enquanto o fogo ganhava a
casa inteira.
Pausa.
O dia amanhecia e as fagulhas resistiram queimando por dias. Cinzas. Silêncio. As fagulhas, em
suspenso, como um eco, pairavam, sobre lavouras, varais e gerações.
Poeira sobe, durante texto final. Música cresce.
Quando a poeira baixa, não tem ninguém no palco.
FIM
324
Cruel, a natureza é
Dá o sol na desmedida
Dá um corpo na desmedida
Dá o amor na desmedida
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