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(...) afinal de contas, a vida do injusto é muito melhor do que a do justo
no dizer deles. Porque a mim ó Sócrates não me parece desse modo
(...). Dizem que uma injustiça é, por natureza um bem e sofrê-la um mal,
mas que ser vítima de injustiça é um mal maior do que o bem que há em
cometê-la (...). Daí se originou o estabelecimento de leis e convicções
entre elas e a designação de legal e justo para as prescrições das leis.
Tal seria a gênese e essência da justiça, que se situa a meio caminho
entre o maior bem – não pagar a pena das injustiças – e o maior mal –
ser incapaz de se vingar de uma injustiça”. (A República, II ; 358 a; 359
a; trad. Maria Helena da Rocha Pereira, sem data, pp.54-55).
Sócrates responde que a justiça é uma das coisas boas a serem perseguidas,
porque conduz a felicidade e talvez não um fim em si mesma. O que importa não é o valor
da justiça em si, mas suas conseqüências, pois ela promove um bem, ou seja, o senso de
justiça é uma virtude humana. Não contentes com a resposta de Sócrates, Glauco e seu
irmão Adimanto, questiona a posição socrática, utilizando a Fábula do Anel de Giges,
para apresentar que a injustiça impera sobre a justiça:
(Giges) era ele um pastor que servia em casa do que era então
soberano da Lídia. Devido a uma grande tempestade e temor de terra,
rasgou-se o solo e abriu-se uma fenda onde ele apascentava o rebanho.
Admirado ao ver tal coisa, desceu por lá e contemplou, entre outras
maravilhas que para aí, fantasiam, um cavalo de bronze, oco, com umas
aberturas, espreitando através das quais viu lá dentro um cadáver,
aparentemente maior que um homem, e que tinha mais nada senão um
anel de ouro na mão. Arrancou-lhe o anel e saiu. Ora, como os pastores
se tivessem reunidos, da maneira habitual, a fim de comunicarem ao rei,
todos os meses, o que dizia respeito aos rebanhos, Giges foi lá também
com o seu anel. Estando ele, pois, sentado no meio dos outros, deu por
acaso uma volta no engaste
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do anel para dentro, em direção a parte
interna da mão, e ao fazer isso, tornou-se invisível para os que estava
ao lado, os quais falavam dele como se tivesse ido embora. Admirado,
passou de novo a mão pelo anel e, virou para fora o engaste. Assim que
o fez tornou-se visível. Tendo observado estes fatos, experimentou a ver
o anel tinha aquele poder, e verificou que, se voltasse o engaste para
dentro, se tornava invisível; se voltasse para fora, ficava visível. Assim
senhor de si, logo fez com que fosse um dos delegados que iam junto
ao rei. Uma vez lá chegado, seduziu a mulher do soberano, atacou-o e
matou-o, e assim assenhoreou do poder
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. (A República, II; 359d-360a;
trad. Maria Helena da Rocha Pereira, sem data, pp.56-57).
Portanto, a partir da Fábula do Anel de Giges, Glauco conclui que se houvessem
dois anéis, se um fosse dado a um homem de boa índole e o outro ao homem de má
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Engaste: guarnição de metal que segura a pedraria nas jóias. Ver Dicionário de Língua
Portuguesa: HOLANDA, Aurélio, (1993).
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Giges foi rei da Lídia de 687-651 a.C, depois de ter assassinado o monarca anterior,
Candaules, e de ter desposado a viúva deste.