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SUZI MARIA CASTILHO RUIZ GONÇALVES
NUMA E A NINFA: REPRESENTAÇAO LITERÁRIA E PARÓDIA
POLÍTICA NA PRIMEIRA REPÚBLICA
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO
CAMPUS DE MARÍLIA
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1
SUZI MARIA CASTILHO RUIZ GONÇALVES
NUMA E A NINFA: REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA E PARÓDIA NA
PRIMEIRA REPÚBLICA
Dissertação apresentada como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais
(Linha de Pesquisa: Pensamento Social e Político
Brasileiro) oferecido pelo Programa de Pós-graduação
em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho – Campus de Marilia, sob a
Orientação da Profa. Dra. Célia Aparecida Ferreira
Tolentino e co-orientação do Prof. Dr. Luís Antônio
Francisco Souza.
MARILIA, SP, 2005
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Agradecimentos
Célia
Fátima
Luís
Antônio Manoel
A gratidão de Suzi pelas preciosas colaborações.
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RESUMO
Neste trabalho pretendemos mostrar que uma leitura de Numa e a Ninfa à luz do
conceito de carnavalização coincide com o propósito de Lima Barreto literatura
como instrumento de divulgação de suas idéias no que diz respeito à crítica sócio-
política. Visamos ainda mostrar a relação íntima entre literatura e sociedade, tal
como sua importância para os estudos das ciências sociais.
Palavras chaves: literatura, sociedade, ideologia, república, carnavalização.
Abstract
Our intention in this paper is to show that a reading of Numa e a Ninfa under the
light of the concept of carnivalization coincide with Lima Barreto’s literary
purpose literature as a divulgind instrument of this his ideas of criticizing the
social aspect in the political system. We also aim to show the close relationship
between literature and the society, as well as its importance to social science
studies.
Key words: literature, society, ideology, republic, carnivalization.
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SUMÁRIO
Introdução………………………………………………………………………05
Primeira Parte
Capítulo I
A questão ideológica……………………………………………………………15
Capíltulo II
Recepção crítica da obra de Lima Barreto...........................................................39
Capítulo III
Lima Barreto – a marca de sua autonomia...........................................................48
Segunda Parte
Capítulo I
A carnavalização em Bakthin: aporte teórico na análise de Numa e a Ninfa.....60
Capítulo II
Numa e a Ninfa: elementos da paródia.............................................................. 68
Capítulo III
A margem política no romance Numa e a Ninfa...............................................86
Epílogo..............................................................................................................113
Referência bibliográfica....................................................................................114
Anexos...............................................................................................................120
5
O destino de nossa época que “provou da árvore do conhecimento” é ter de saber
que podemos falar a respeito do sentido do devir do mundo, não a partir do resultado
de uma investigação, por mais perfeita e acabada que seja, mas a partir de nós
próprios que temos de ser capazes de criar este sentido. Temos de admitir que
“cosmovisões” nunca podem ser o resultado de um avanço do conhecimento
empírico, e que, portanto, os ideais supremos que nos movem com a xima força
possível, existem, em todas as épocas, na forma de uma luta com outros ideais que
são, para outras pessoas, tão sagrados como o são para nós os nossos.
Max Weber
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INTRODUÇÃO
O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra
pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo.
João Guimarães Rosa
A primeira vez que minha atenção despertou para o fundamento social da arte literária foi,
ao ler os Manuscritos econômico-filosóficos de Karl Marx, verificar que este, ao discorrer
sobre o dinheiro, se apoia justamente nas metáforas de um texto literário extraído do Fausto,
de Goethe.
Que diabo! Claro que mãos e pés
E cabeça e traseiro são teus!
Mas tudo isto que eu tranqüilamente gozo
É por isso menos meu?
Se posso pagar seis cavalos,
Não são minhas tuas forças?
Ponho-me a correr e sou verdadeiro senhor
Como se tivesse vinte e quatro pernas!
(GOETHE, apud MARX: 1974, p. 35)
E, em seguida, Marx coloca lado a lado um texto de Shakespeare que se encontra em Timão
de Atenas, ato IV, cena 3:
Ouro! Amarelo, reluzente, precioso ouro!
Não, deuses, não faço súplicas em vão [...]
Assim, um tanto disto tornará o preto branco,
O repugnante belo, o errado certo, o vil nobre,
O velho jovem, o covarde valente [...]
Por que isso arrancará vossos sacerdotes e
Servidores de vossos lados, arrebatará coxins
De sob a cabeça de homens corpulentos; este
Escravo amarelo tecerá e despedaçará religiões
Abençoará os amaldiçoados; fará a alvacenta
Lepra adorada; levará ladrões, dando-lhes
Título, reverência e aprovação, ao banco
Dos senadores; isto é o que faz a desgastada
Viúva casar-se novamente; a ela para quem
O lazarento e ulcerosas feridas abririam
A goela, isto perfuma e condimenta para
O dia de abril novamente. Vem, elemento
Danado, tu, vulgar rameira da humanidade,
Que instalas a disputa na multidão de
Nações
[...]. (
SHAKSPEARE, apud MARX, 1974, p. 35/36.)
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Parece até que Shakespeare e Marx, em épocas diferentes, mas com identidade e
postura humana iguais, combinaram o mesmo conteúdo em relação a seus textos. Leiamos
isto: Ao nascimento da mecanização e da indústria moderna [...] seguiu-se um violento
abalo, como uma avalanche, em intensidade e extensão. Todos os limites da moral e da
natureza, de idade e sexo, de dia e noite, foram rompidos. O capital celebrou suas orgias”.
(MARX, O Capital, vol 1, apud BERMAN, 1986, p. 85.)
Vimos que Marx procura em Goethe e Shakespeare a definição da essência e do
paradoxo do dinheiro. O dinheiro adquire um novo significado nas sociedades capitalistas.
Este novo significado a força do indivíduo é medida pela força do dinheiro transforma a
relação do trabalho social gerando a crise social. O dinheiro adquire uma força transcendental,
transforma qualidades e propriedades humanas em seu contrário, preto em branco, repugnante
em belo, errado em certo, o vil em nobre, etc. Ele deixa de servir como um dos meios para
garantir o atendimento às necessidades básicas de sobrevivência humana – comer, vestir, estar
protegido sob um teto -, por um lado e, por outro, para diferenciar uma conquista de posição
passando a ganhar uma nova dimensão, que é o poder de comprar tudo. O dinheiro passa a ter
o poder de apropriação do modo de existência de todos os homens: “Se posso pagar seis
cavalos,/ não são minhas tuas forças?”
Esta transformação é essencial para Marx repensar todas as relações sociais implicadas
neste processo. A leitura marxiana, portanto, nos levou a perceber que, por meio de um texto
literário, é possível se aproximar ou tornar menos estranha a memória cultural em um dado
momento histórico. Mesmo porque o escritor o é uma personagem fora do tempo histórico,
e que por meio de suas metáforas e de sua arquitetura discursiva muitas vezes revela o drama
de uma sociedade com seus dilemas e contradições. O escritor afinal escreve com uma
tradição atrás de si. um tempo histórico e um espaço cultural fazendo a “moldura” de suas
metáforas e inquietações. Ao viajar por uma obra literária percebemos caminhos que se
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cruzam e que no nosso entendimento não se excluem. Um se refere a influências culturais,
valores que estão ligados às escolhas do autor, tais como as circunstâncias históricas, os
temas, os conteúdos, a “moldura” por assim dizer de sua construção narrativa. A outra
sempre é uma tentativa de sobrepor a esta “moldura” inserindo a lógica das variações
imaginativas expressas em metáforas. Não podemos nos esquecer que até as metáforas são
escolhas, e não estão, portanto, imunes a valores sociais.
Enfim, este foi o primeiro impulso de que me vali para a escolha de meu objeto: o
texto literário. Procurei amparar-me de romances onde as questões sociais são explicitamente
o centro da trama. Neste processo descobri Lima Barreto e a escolha de Numa e a Ninfa se
deu face a duas circunstâncias. A primeira, por se tratar de um romance em que a vida social e
política brasileira, com seus vícios e costumes era retratada com verossimilhanças. A matéria
do livro é o Brasil, que no dizer de João Ribeiro um Brasil em que “quase todos os ramos da
vida, o ‘arrivismo’ é uma arte consumada e perfeita; sem ela, seria impossível explicar o
triunfo e a evidência de indivíduos quase nulos, insignificantes, incultos e ridículos que,
entretanto, ocupam as melhores posições”. (RIBEIRO, 1956, p. 10.) A segunda, pela
incorporação ao romance das aventuras do Dr. Bogóloff. Esta incorporação introduziu no
romance o lúdico, o imaginário, o riso, o irônico, o cômico.
Das rias leituras que o objeto impôs para a condução teórica, optamos pela luz do
conceito de carnavalização proposto por Mikhael Bakhtin em Cultura Popular na Idade
Média e no Renascimento. Esta escolha se deu face a sinais claros na obra de Lima Barreto
que podem ser interpretada à luz da carnavalização. Estes sinais são expressos pelo exagero,
pelo gosto da sabedoria popular e sobretudo pela inversão de personagens históricas. Esta
inversão paródia que iremos caracterizar no corpo do texto, faz parte do processo de
carnavalização entendido por Bakhtin. Numa Pompílio é um herói retratado em Vidas
Paralelas, de Plutarco, um herói cujas virtudes morais o levaram a ser escolhido o sucessor de
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Rômulo , rei de Roma. O Numa Pompílio de Numa e a Ninfa de Lima Barreto se apresenta
exatamente como o avesso de Numa Pompílio, de Plutarco.
Este fato nos levou a formular a seguinte hipótese: Lima Barreto percebeu que
Plutarco oferecia um modelo para parodiar o comportamento de nossos personagens políticos,
e, como conseqüência, expô-los ao olhar da opinião pública devassando por dentro suas
artimanhas, suas espertezas, enfim, os jogos de sedução do poder político.
E qual a importância de Plutarco a este propósito?
Plutarco era um defensor do herói virtuoso, ou seja, da virtude entendida enquanto
uma ética centrada em valores morais. O bom rei deveria possuir qualidades morais e
intelectuais e governar a nação para a felicidade dos homens. Lima Barreto cita várias vezes
Bossuet numa concordância com este: que o fim da política é tornar a vida simples e os povos
felizes. Neste sentido, Lima Barreto ironiza a Primeira República em Numa e a Ninfa
evidenciando a corrosão do ideário republicano manifestado numa política de favores em que
uma classe minoritária se apropria do Estado em benefício próprio.
A leitura de Lima Barreto a partir de Plutarco também recoloca o simples fato da
verossimilhança.
Restou-me, entretanto, o maior desafio, que é o próprio romance. Acreditamos que a
literatura, sendo uma maneira particular de expressão humana, não tem por obrigação dar
respostas prontas aos problemas sociais, históricos, políticos enquanto tais, mas a de provocar
uma inquietação, uma dúvida, de suscitar perguntas que induzem seu leitor a buscar respostas
nas chamadas ciências humanas. Segundo Roland Barthes, em Crítica e Verdade, a história da
literatura é a história da pergunta. Ela é um modo de conhecimento e de ação diferente da
ciência à qual não pode nem poderá identificar-se, ela responde a necessidades sociais e
individuais, além de ter uma função necessária, revolucionária na medida em que responde a
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necessidades específicas de conhecimento e de transformação do mundo. Por conseqüência ,
nós precisamos dela para nos interrogar; para desconfiar de muitas possíveis respostas. A
literatura constitui um recurso a mais, especialmente no nosso caso, para termos uma
compreensão mais ampla daquilo que chamamos de realidade brasileira. E é, especificamente,
esta realidade que nos interessa. Sabemos dos riscos que corremos ao tomarmos como ponto
de partida um texto literário. Temos ciência que a literatura guarda suas especificidades
enquanto objeto de comunicação, e que por isso tentaremos cercar alguns temas paralelos que
acreditamos serem, por um lado, pertinentes para a nossa maneira de ver e, por outro, por
serem eles inerentes à proposta de estudo.
Estas questões, dispostas em interfaces, que envolvem conceitos tão caros à nossa
compreensão, tais como literatura, ideologia e as suas relações com o contexto social, foram a
via por onde transitou a dúvida do universo cultural provinciano na obra de Lima Barreto,
considerado por muitos desprovido de credibilidade literária. Nas discussões que se seguem,
não pretendemos camuflar” a escolha do eixo metodológico Mikhael Bakhtin ao
contrário, pretendemos mostrar que ao estudar um recorte é também entrever o conjunto, e
não para entrever nenhum fenômeno sem remeter à estrutura e à dinâmica de todo corpo e
a dinâmica desse corpo se concretiza por meio de uma linguagem social. A intenção de
discutir, mesmo que precariamente, alguns conceitos o caros à sociologia, tem apenas como
objetivo reforçar a importância do conceito em um determinado momento histórico, e, por
outro lado, observar o diálogo conceitual que pode ser considerado como um “avanço” e as
implicações interpretativas consequentes. É neste sentido que foram lidos Marx, Gramsci e
Bakhtin.
Alguns pressupostos de trabalho a partir dos quais procuramos nos apoiar encontram-
se também sinalizados por M. Bakhtin em Marxismo e filosofia da linguagem. Isto porque ele
oferece bases metodológicas para a compreensão do fenômeno ideológico direcionadas para a
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questão, em geral, da linguagem, e, em especial, da palavra – matéria bruta dos signos
lingüísticos.
A importância de Bakhtin nesta obra é que ele ideologiza” a palavra, a saber, ele
torna a palavra a matéria primordial, central, da ideologia, e como matéria, o símbolo vivo da
representação mais marcante do processo de comunicação. Dentre as infinitas possibilidades
de expressão escolhemos a literatura porque, “a literatura, tal como a entenderam todos os
mestres”, no dizer de Suleiman, “é uma interpretação da vida. Ela exclui a prova”.
(SULEIMAN, 1983, p. 36.) Mas ela não exclui as perguntas, as metáforas prenhes de outra
forma de conhecimento os fatos da vida na perspectiva das utopias, dos sonhos, do
imaginário em contraposição ao abafado, ao medíocre, à lacunas que são preenchidas por ela.
Lima Barreto, ao fazer de seu texto o registro da miséria republicana, se insere na
galeria dos escritores da revolta e da resistência. Seu texto de paródia ao vulgarizar Numa
Pompílio de Plutarco, foi um expediente literário que melhor se adequou às lacunas
percebidas por Lima e que foram dissimuladas por outros escritores com exceção de poucos
-, de certa forma “europeus”, fechados às estridências dos problemas nacionais.
A materialização da palavra em Lima Barreto ultrapassa a questão tangente do
brasileirismo provinciano; no conjunto ela revela a imposição de uma cultura capitalista
devastadora e a necessidade de uma união humana para superar as vicissitudes da nossa
marginalização social, cultural e econômica. A vinculação da obra de Lima Barreto ao
universo social brasileiro, na nossa perspectiva, constitui uma possibilidade de
enriquecimento para as ciências sociais. Podemos sustentar a idéia de que ler Lima Barreto é
ler o Brasil por dentro, com suas grandezas e misérias. Os estudos de sua obra não revelam
o jogo de pontos de vista da elite, mas reagem a ela ao mostrar que sua forma narrativa,
“imperfeita”, é a própria imperfeição da República brasileira – da exclusão da grande massa, a
mercê de sua própria sorte. Enquanto Euclides da Cunha em Os Sertões revela e mostra os
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explorados e oprimidos do sertão brasileiro, Lima Barreto nos revela os explorados e
oprimidos da cidade. E se quisermos compreender mais amplamente uma certa realidade,
temos que ultrapassar as relações específicas da economia, porque ela se constitui também no
campo vasto da cultura. No campo da literatura toda realidade é uma ficção, mas uma ficção
que provoca rumos, amplia a cultura facilitando seu trânsito nas teias que unem ou rompem as
relações humanas.
Outra questão a ressaltar é a modernidade presente na obra de Lima Barreto, vista
como uma forma imperfeita e o mal recebida pela crítica, acostumada à narrativa
consistente de Machado de Assis, Jode Alencar. O crítico Moisés Gicovate reconheceu o
valor e o caráter original na obra de Lima Barreto quando observou que o emprego da sátira,
da ironia, do humor e da caricatura estavam “dentro de um quadro real, de uma moldura rica.
Nessa moldura apresenta-nos aspectos que lhe davam oportunidade para examinar problemas
sociais, os mais variados: a forma de governo, a organização econômica, o preconceito de
raça, a burocracia, as influências pessoais na administração.” (GICOVATE, 1952, p. 44.) Não
devemos nos esquecer que o “nascedouro” e/ou o “princípio original” de qualquer coisa não é
perfeito. Ele se aprimora na travessia do espaço e do tempo. Este fato não escapou a Machado
de Assis na sua primeira fase de produção, e tão pouco queríamos um Lima Barreto
estruturalmente moderno, mesmo porque a sua vida curta não lhe deu a “chance” de aprimorar
mormente como deu a Machado de Assis. O modernismo de Lima avança, sobretudo, com
Mário de Andrade em Macunaíma. Se Macunaíma consiste em uma forma perfeita em si, ela
resulta mais do processo de criação artística do que social. Este continua ahoje à moda de
Lima Barreto: esgarçado. E é nesse esgarçamento que consiste o mérito de Lima, porque, de
um lado, ele promoveu o avanço da forma literária e, de outro, continua a desafiar o cientista
social, pois este problema não é da sociedade brasileira. A grande massa humana cada vez
mais marginalizada na nossa “aldeia” chamada Brasil, cresce assustadoramente em outros
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universos. Quando nos referimos a problemas humanos lembramos Tolstoi que ao falar de
nossa aldeia não deixamos de falar de alguma maneira do mundo.
Em resumo, a dissertação que apresento, especialmente centrada numa análise crítica
sobre o livro Numa e a Ninfa, complementado com outros textos de Lima Barreto, tenta
caminhar por um território extremamente movediço o de trazer a narrativa literária para o
campo da pesquisa político-social partindo do pressuposto de que o escritor, mesmo
“navegando” no interior de seu universo imaginário, está profundamente comprometido com
os impasses e contradições culturais de seu tempo.
Ao não aceitar o discurso consagrado dos dominantes, suas metáforas, sua arquitetura
literária, prenhe de ironias e insinuações críticas, Lima Barreto expõe ao olhar do leitor sua
revolta e resistência, e, ao instalar seu mundo à parte, ele assimila os ecos abafados dos males
que afligem as massas despossuídas.
Ao ler a paródia Numa e a Ninfa – na inversão de Numa, de Plutarco -, vimos a própria
paródia brasileira expressa na ordem política da Velha República. Neste quadro, Lima Barreto
relata como uma pequena e mesquinha oligarquia agrária manipula o poder da República
escamoteando seus interesses econômicos e ocultando suas mazelas.
Neste sentido, Numa e a Ninfa é interpretado como uma ferrenha análise do Brasil e
como tal, indispensável para a compreensão de nossa história político-social, enquanto
narrativa que se intercruza com outros textos: históricos, sociológicos, econômicos, etc. É
neste cruzamento que pensamos encontrar, se não a chave da “abóboda”, quem sabe a sua
abertura.
14
PRIMEIRA PARTE
15
[
] devemos lembrar a existência de um primeiro pressuposto de toda a
experiência humana e, portanto, de toda a história, a saber, que os homens devem
estar em condições de poder viver a fim de “fazer história”. Mas, para viver, é
necessário antes de mais beber, comer, ter um teto onde se abrigar, vestir-se, etc. O
primeiro fato histórico é pois a produção dos meios que permitem satisfazer essas
necessidades, a produção da própria vida material; trata-se de um fato histórico, de
uma condição fundamental de toda a história, que é necessário, tanto hoje como
milhares de anos, executar dia a dia, hora a hora, a fim de manter os homens vivos.
Karl Marx
Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente
descobertas “originais”. Significa também e especialmente difundir criticamente
verdades descobertas, “socializá-las”, por assim dizer, e fazer com que se tornem
bases de ações vitais, elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. Que
uma massa de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de uma maneira
unitária o real presente é um fato “filosófico” bem mais importante e original” do
que a descoberta, feita por um gênio” filosófico, de uma nova verdade que
permanece patrimônio de pequenos grupos intelectuais.
Antônio Gramsci
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CAPÍTULO I
A questão ideológica
E que senti que a ciência não é assim um cochicho de Deus aos homens da Europa
sobre a misteriosa organização do mundo.
Lima Barreto
1
A ideologia faz seu jogo duplo: de um lado ela comanda a nossa fala, o nosso discurso,
e, de outro, nos aprisiona ou nos liberta no próprio discurso da ideologia. Ela é o ser e o não-
ser de nossa presença como nome e como enunciado. Ao pronunciar sua fala, seu discurso, o
homem procura fazer a mediação entre ele e a realidade natural e social. Pelo discurso
repleto de chamadas ideológicas - , ele organiza suas idéias, procura um sentido para a sua
vida, como se ao discursar ele caminhasse e criasse a sua vida. Na análise do discurso,
reconhecemos a necessidade de estarmos atentos ao perigo das “evidências” produzidas pela
ideologia. Isto porque uma das funções da ideologia é também mais esconder do que revelar,
embora, paradoxalmente, ela venha a se constituir na relação necessária entre linguagem e
mundo. Daí a conclusão de que se fala da ideologia por meio de outra ideologia, pela
“interpretação” também ideológica, por um discurso que se volta a um outro discurso.
Para situar a questão ideológica, optamos por fazer uma pequena incursão sobre três
autores que tratam do mesmo tema, a ideologia, e que poderão nos fornecer matéria suficiente
por meio da qual se possa “decifrar” duas questões: a língua como matéria do discurso e como
instrumento do escritor para transmitir valores. Esses autores são Karl Marx, Antônio
Gramsci e Mikhail Bakhtin. O primeiro por ser aquele que abriu as mais intrigantes
discussões sobre o mapa da ideologia e sobre a qual rios de tinta já foram escritos. O segundo
porque “atualiza” a concepção ideológica, não mais a caracterizando como uma consciência
alienada do mundo, quando organiza o conceito de ideologia expresso em duas vertentes: uma
que ele chama de ideologia requerida e/ou arbitrária, outra de ideologia orgânica; o terceiro,
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por tratar a ideologia na linha de uma filosofia da linguagem, nomeando a palavra como a
matéria fundamento da ideologia.
O problema da ideologia em Marx é que ela é tratada, em princípio, como sendo uma
consciência alienada do mundo e que esta deve sua coesão, entre outras coisas, a seu repúdio
de todo controle racional. Sem entrar no mérito dos “equívocos” marxianos, o problema é que
nem sempre uma consciência do mundo pode ser alienada e que diferentes formas de
consciência social.
No entanto, para compreendermos a ideologia em Marx faz-se necessário retomar o
debate crítico deste em relação à filosofia, sobretudo, a alemã.
Marx constrói uma nova maneira de apreender o mundo a partir da “desconstrução”
crítica da dialética em Hegel e Feuerbach. o deixa, porém, de reconhecer pontos positivos
destas construções. Marx começa por examinar a fenomelogia em Hegel por ver nela a chave
de toda sua filosofia. O problema de Hegel, segundo Marx, é que ele parte do pensamento
puro e retorna a ele. O pensamento gira em torno da abstração em sua auto-objetivação – uma
espécie de deus absoluto. A relação dos homens em sua realidade concreta fica excluída desta
lógica. O homem se constitui na auto-consciência. Para Marx esta autoconsciência é alienada,
pois aparece como a história do pensamento abstrato, desvinculado do mundo histórico real,
do sistema social produtivo. Vejamos como Marx escreve:
[ ]
Hegel começa com a lógica, com o pensamento especulativo puro, e termina com
o saber Absoluto, com o Espírito autoconsciente, que se capta a si mesmo,
filosófico, Absoluto, isto é, com o Espírito sobre-humano. [ ] Todo movimento
termina assim com o saber Absoluto (MARX, 1974, p. 41, 42.)
Marx percebe que a superação em Hegel dá-se no pensamento em si: é o superar-se a si
mesmo, o movimento dialético é uma “oposição entre o em si e o para si, a consciência é a
autoconsciência, o sujeito e o objeto, isto é, a oposição, no interior do pensamento, entre o
pensamento Abstrato e a efetividade sensível ou sensibilidade efetiva.” (MARX, 1974, p. 42.)
18
A humanidade, ou a essência do homem, está associado ao Espírito pensante, o Espírito
lógico, especulativo.
Marx inverte esta lógica segundo ele, alienante e reivindica o mundo histórico,
objetivo, real, das relações de produção social. É a partir desta consciência sócio-histórica
produtiva que o pensamento se desaliena, se supera. Enquanto em Hegel, o objeto é
autoconsciência objetivada, em Marx, o objeto centra-se nas relações das atividades humanas,
sociais, efetivas. “Que o homem seja um ser corpóreo, dotado de forças naturais, vivo,
efetivo, sensível, objetivo, significa que tem como objeto de seu ser, de sua exteriorização da
vida, objetos, efetivos, sensíveis, ou que em objetos reais, sensíveis, pode exteriorizar sua
vida.” (MARX, 1974, p. 46.)
Marx, no entanto, não deixa de reconhecer o grande mérito da filosofia hegeliana,
porque seu princípio gerador é dialético e em última instância é o homem como ser humano
que aparece.
Em relação a Feuerbach, Marx diz que ele teve o mérito de uma crítica séria e
consistente em relação à filosofia hegeliana. No entanto, Feuerbach, “descontente com o
pensamento abstrato, recorre à intuição, mas não capta a sensibilidade como atividade prática,
humana, sensível”. (MARX, 1974, p. 58.)
E esta é a grande questão para Marx: a atividade prática humana a ação. É a partir
deste olhar que Marx reconstrói a dinâmica da dialética. A negação deixa de ser a negação da
consciência que gera a autoconsciência; ao contrário, é a negação da atividade prática que
possibilita uma outra consciência, uma consciência de luta social concreta, revolucionária.
Esta concepção revolucionária em Marx é fruto de sua profunda consciência crítica do
desenvolvimento histórico do capitalismo. Marx percebeu as contradições que este sistema
gerava e que pode ser apressadamente resumido no fetiche da mercadoria. Por isso, ele se
pergunta: “Qual é a substância social comum a todas as mercadorias?” E responde: É o
19
trabalho”. (MARX, 1974, p. 80.) Não qualquer trabalho, mas o trabalho social. É a partir da
categoria trabalho e das relações sociais implicadas nele que Marx constrói toda a lógica de
seu pensamento. Seu método tem como base real a crítica à economia política uma vez que a
potência econômica do capital na sociedade burguesa domina tudo. Marx resume, desta
maneira, o seu fio condutor:
Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas,
necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que
correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças
produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura
econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura
jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de
consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral
de vida social, política e espiritual. [ ] Com a transformação da base econômica, toda
a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez. Na
consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a
transformação material das condições econômicas de produção que pode ser objeto
de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas,
artísticas
ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens
tomam consciência desse conflito e o conduzem ao fim. [ ] Não se pode julgar
uma época de transformação a partir de sua própria consciência, ao contrário, é
preciso explicar essa consciência a partir das contradições da vida material, a partir
do conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção.
(MARX, 1982, p. 25/26.)
Ao explicar seu fio condutor, Marx define o único objeto passível de ser
rigorosamente científico: as relações de produção. Embora as formas jurídicas, políticas,
religiosas, artísticas e filosóficas as superestruturas se levantam a partir de uma realidade
concreta, elas são consideradas ideológicas. Marx nos lembra que “se em toda a ideologia os
homens e as suas relações nos surgem invertidas”, então ela não pode ser passível de
investigação científica, portanto não verdadeira?
Em termos concisos Marx propõe uma nova visão do mundo que sintetiza o
pensamento filosófico alemão, a economia clássica inglesa e a prática política francesa,
redirecionando assim a própria prática política, ou seja, de caráter revolucionária. A
concepção forte que Marx tem de ideologia se fundamenta na idéia de uma estrutura social
20
dividida em dois níveis: a infra-estrutura e a superestrutura. Na infra-estrutura o homem se
apresenta como um ser ativo, a saber, um ser que para sobreviver precisa produzir seus meios
de vida. Ao criar seus meios de vida, ele cria também uma linguagem cuja função é explicar e
interpretar suas ações e que vai compor uma vasta superestrutura de idéias abrigadas no
direito, na moral, na religião, na política, etc.
A produção de idéias [escreve Marx], de representações e da consciência está em
primeiro lugar direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio
material dos homens; é a linguagem da vida real. [ ] A consciência nunca pode ser
mais do que o Ser consciente; e o Ser dos homens é o seu processo de vida real. E se
em toda a ideologia os homens e as suas relações nos surgem invertidos, tal como
acontece numa câmara escura, isto é apenas o resultado do seu processo de vida
histórico, do mesmo modo que a imagem invertida dos objetos que se forma na
retina é uma conseqüência do seu processo de vida diretamente físico. [E completa
Marx]: não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a
consciência. (MARX & ENGELS, Ideologia Alemã, [198-?] 25/26)
O problema da ideologia em Marx é que ela é vista pelo ângulo de um único
determinante o econômico - e, em princípio, como sendo uma consciência alienada do
mundo e que esta deve sua coesão, entre outras coisas, a seu repúdio de todo controle
racional. Sem entrar no mérito dos “equívocos” marxianos, o problema é que nem sempre
uma consciência do mundo pode ser invertida e que diferentes formas de consciência
social.
Gramsci propõe a idéia de uma vontade coletiva nacional-popular para um
determinado fim político no príncipe moderno, ou seja, no partido político. Assim ele escreve:
O príncipe moderno [ ] pode ser apenas um organismo, um elemento de sociedade
complexo no qual tenha início a concretização de uma vontade coletiva
reconhecida e afirmada parcialmente na ação. Este organismo é dado pelo
desenvolvimento histórico e é o partido político: a primeira lula em que se
reassumem os germes de vontade
coletiva que tendem a tornar-se universais e totais.
(GRAMSCI, 1978, p. 151.)
A vontade coletiva e a vontade política em geral é resultado da vontade como consciência
atuante da necessidade histórica, como protagonista de um real e efetivo drama histórico.
(GRAMSC, 1978, p. 152.) Esta consciência histórica reconhece o papel da questão
intelectual, moral e religiosa.
21
O príncipe moderno deve, não pode deixar de ser, o promotor e organizador de uma
reforma intelectual e moral, o que também significa criar o terreno para um ulterior
desenvolvimento da vontade coletiva nacional-popular a caminho da concretização
de uma forma superior e total de civilização moderna. (GRAMSCI, 1978, p. 154,
155.)
Em Gramsci os pontos que levariam o homem a um maior desenvolvimento social
são: a organização de um partido ativo de caráter nacional-popular, a reforma intelectual e
moral. Este ponto é considerado muito importante, pois abre o leque da cultura e redireciona
o valor da ideologia implicitamente desfavorável na filosofia da práxis como elemento
sensitivo. Assim Gramsci distingue as ideologias historicamente orgânicas das arbitrárias
racionalistas, requeridas.
É preciso portanto [escreve Gramsci] distinguir entre ideologias historicamente
orgânicas, que são necessárias a uma certa estrutura, e ideologias arbitrárias,
racionalistas, queridas”. Enquanto historicamente necessárias, têm uma validade
que é validade “psicológica”, “organizam” as massas humanas, formam o terreno em
que os homens se movem, adquirem consciência da sua posição, lutam, etc.
Enquanto “arbitrárias” não criam outra coisa senão “movimentos” individuais,
polêmicos, etc. (não são completamente inúteis nem mesmo estas, porque o como
o erro que se contrapõe à verdade e a afirma. (GRAMSCI, 1978, p. 65.)
Independente das “revisões” ou “atualizações
marxianas, o que permanece como sua
contribuição, é que a ideologia não é uma teoria pura, uma ciência infalível dos valores de
cultura, e que o poder espiritual de toda classe dominante depende, em muito maior medida
que seu poder material, da existência de uma intelectualidade vinculada a ela, como reverbera
Gramsci (Ver Os intelectuais e a organização da cultura). E aqui entra toda e qualquer tipo
de atividade intelectual, inclusive a do escritor literário. A partir de Marx, portanto, nenhuma
análise da linha cultural pode prescindir de uma análise do contexto social e histórico.
1
No
entanto, é bastante discutível que a crítica áspera que Marx lançou ao modo de produção
capitalista possa alimentar a presunção de uma compreensão ampla dos fenômenos literários.
É certo que Marx se apoia em juízo de valor cunhado em fatos empíricos: o trabalho no
1.
H
á posições diferentes e dignas de crédito, como esta de Raymond Aron: “Para sobreviver, o indivíduo (ou o
grupo) deve lutar contra a natureza e retirar dela a sua sobrevivência. Sob este prisma a função econômica é, em
certo sentido, prioritária. que as sociedades, por mais simples que sejam, nunca realizam esta função sem se
organizarem segundo crenças não redutíveis à eficiência e portanto essa prioridade o eqüivale nem a uma
causalidade unilateral nem a um “primum movens”. (ARON, 1980, p. 213/214.)
22
interior da fábrica. Mas quem é que nos garante que outras formas de produção anteriores ao
capitalismo não foram também tão destrutivos à natureza humana.”? Correto talvez fosse
afirmar que o escritor foi vítima e cúmplice ao mesmo tempo do modo de produção
capitalista, e que a literatura expressou em todo esse período dramático do Século XIX e XX,
os momentos de maior lucidez contra” as formas de produção capitalista sem ter a
presunção histórica de tentar fazê-lo. A Literatura de Lima Barreto entra no rol do grito
abafado dos ofendidos e humilhados longe de ser o porta-voz de ideologias mal geridas e
distantes da realidade brasileira.
As proposições lançadas por Marx sobre ideologia, quando interpretadas fora do
contexto em que estas foram elaboradas, parecem nos levar a algumas ciladas. Uma delas é
que, se aceitarmos a proposição de que a ideologia representa uma consciência invertida do
mundo, portanto, uma alienada consciência, toda obra literária, por ser um discurso simbólico,
e, portanto, um discurso situado num segundo nível, não passaria também de um discurso
invertido, tecido de uma alienada consciência do mundo. Uma cilada perversa que nos
induziria assim a acreditar que somente o escritor engajado, comprometido com a práxis
revolucionária do mundo, estaria a salvo dessa cumplicidade.
O fato é que
a ideologia é um fenômeno insuperável da existência social, na medida
em que a realidade social sempre possuiu uma constituição simbólica e comporta uma
interpretação, em imagens e representações, do próprio vínculo social. E que, portanto, não
existe um lugar não-ideológico, de onde seja possível falar cientificamente da ideologia.
Toda crítica à ideologia parte do princípio teórico de uma contra ideologia, de um face a face.
A mais forte, aquela que mais se aproxima da realidade se estatui como a “verdadeira”, antes
que seja superada pela “praga” da instituição. O texto literário não é uma categoria ideológica
de segunda mão, ele apenas rompe com a linguagem vulgar do quotidiano, embora, num
processo de ida e volta, ele o retrate e o supere. A realidade no texto “se metamorfoseia”, se
23
transfigura em seu próprio espaço de luz e sombras, para retornar à realidade iluminando-a
e/ou, por efeito ideológico, torná-la mais sombria. A ideologia, portanto, está ligada à
necessidade de um grupo social de representar-se. Ela desempenha um papel mediador entre a
memória social de um acontecimento mobilização -, a convenção e a racionalização
justificadoras.
A divisão que Marx faz da estrutura social em dois blocos, longe de ser uma
diferenciação simplista, mecânica, percebemos que uma implicação dialética entre elas: a
infra-estrutura e a superestrutura, e que em grande parte teve o mérito de facilitar a
compreensão dos fenômenos de ordem histórico-social, mas que acabou por gerar uma
orquestração vulgar mecanicista segundo a qual uma obra artística está diretamente
determinada por fatores econômicos. Um dos problemas fundamentais do marxismo”,
escreve Bakhtin, o das relações entre a infra-estrutura e as superestruturas, acha-se
intimamente ligado, [...] aos problemas da filosofia da linguagem.” E quando se coloca a
questão de saber como a infra-estrutura determina a ideologia, a resposta é colocada na órbita
da causalidade. Para Bakhtin o movimento marxista elaborou uma resposta simplista demais,
contrária aos próprios fundamentos do materialismo dialético, contrário ao próprio pai da
idéia. Marx tinha consciência de que a determinação pela infra-estrutura pode ser mal
entendida como uma forma de reducionismo econômico, desigual e compatível com a eficácia
própria da superestrutura. Em teorias da mais-valia ele afirma que
para examinar a ligação entre a produção espiritual e a produção material, é acima
de tudo necessário compreender a última não como uma categoria geral, mas em sua
forma histórica definida. Assim, por exemplo, diferentes tipos de produção espiritual
correspondem ao modo capitalista de produção e ao modo de produção da Idade
Média. Se a própria produção material não for concebida em sua forma histórica
específica, é
impossível
compreender o que é específico à produção espiritual que
a ela corresponde e a influência recíproca de uma sobre a outra.” (Vol. I, cap. IV)
E Bakhtin, ao fazer um gancho com a própria concepção dialética, indica que “toda
esfera ideológica se apresenta como um conjunto único e indivisível cujos elementos, sem
24
exceção, reagem a uma transformação da infra-estrutura.” (BAKHTIN, 1981, p. 39.)
Portanto, a superestrutura das idéias não é considerada como simples reflexo passivo, mas
dotada de eficácia própria. O nosso cuidado é o de não considerá-la como um universo
próprio, um mundo a parte. Mesmo o imaginário é historicamente definido e determinado,
mas isto não pode cair no determinismo e esta é a tarefa do crítico desvendar.
A importância de uma aproximação com as temáticas de Bakhtin é que ele fornece um
rico paradigma no que diz respeito à ideologia. Ela é uma categoria que resulta não de
construções abstratas e se refugia num espaço aéreo inatingível aos homens, mas ela está
feito o ar que respiramos, ela circula, faz face, ela se concretiza em algo que se usa a todo
instante: a palavra. “O que Bakhtin chama de “a palavra”, escreve Robert Stam ,“ou seja, a
linguagem no sentido mais amplo, é o “fenômeno ideológico por excelência”, e o meio mais
puro e mais sensível de interação social” (STAN, 1992, p. 32.). A palavra é onipresente na
vida social, seja sob a forma de discurso interno, seja como texto escrito, e tem a capacidade
de registrar todas as fases transitórias do processo social. Assim, a concepção ampla que
Bakhtin tem da linguagem torna-se um veículo para evitar a armadilha do enconomicismo
mecanicista. O próprio Gramsci nos alerta, quando fala de intelectuais, sobre a necessidade
de um método que coloque em prática a seguinte postura:
Se se quer estudar o nascimento de uma concepção do mundo que nunca foi exposta
sistematicamente pelo seu fundador (e cuja coerência essencial se deve procurar não
em cada escrito particular ou em cada série de escritos mas no desenvolvimento
global do trabalho intelectual disperso em que estão implícitos os elementos da
concepção), é preciso fazer preliminarmente um trabalho filológico minucioso e
conduzi-lo com o máximo escrúpulo de exatidão, de honestidade científica, de
lealdade intelectual, de ausência de qualquer preconceito e apriorismo ou tomada de
posição. É preciso antes de mais nada reconstruir o processo do desenvolvimento
intelectual do pensador em questão, para identificar os elementos que se tornaram
estáveis e
“permanentes”, isto é, que foram assumidos como pensamento próprio,
diverso e superior ao “material” precedentemente estudado e que serviu de estímulo;
estes elementos são momentos essenciais do processo de desenvolvimento.
(GRAMSCI, 1978, p. 68.)
Bakhtin não retira a arte ao domínio da superestrutura, ele insiste na absoluta
imbricação de infra e superestrutura e para ele não significado literário externo à
25
comunicação social geral. A literatura retrata, ora de maneira difusa ora de maneira clara, o
conjunto do horizonte ideológico do qual ela própria faz parte. Por sua vez, ele considera a
lingüística uma parte do estudo das ideologias, pois “o domínio da ideologia coincide com o
domínio dos signos, “e também procura mostrar que o estudo das ideologia não deveria
apoiar-se na psicologia. Ele oferece uma crítica marxista do psicologismo e se mostra
igualmente crítico em relação a uma marxismo vulgar, mecanicista, que relega o mundo dos
signos e da ideologia a uma “superestrutura” determinada pela “base” econômica. Qualquer
signo ideológico, segundo Bakhtin, não é um reflexo, uma sombra da realidade, como
também é, ele próprio, um segmento material dessa realidade.
Abrindo um parêntesis, Roland Barthes, sobre este signo fundamental – a palavra -,
escreve:
A palavra não é nem um instrumento, nem um veículo: é uma estrutura, e
cada vez mais nos damos conta disso; mas o escritor é o único, por definição, a
perder sua própria estrutura e a do mundo na estrutura da palavra. Ora, essa palavra
é uma matéria (infinitamente) trabalhada; ela é, de certa forma, uma sobre-palavra, o
real lhe serve apenas de pretexto (para o escritor, escrever é um verbo intransitivo);
disso decorre que ela nunca possa explicar o mundo, ou pelo menos, quando ela
finge explicá-lo é somente para aumentar sua ambiguidade; a explicação fixada
numa obra (trabalhada), torna-se imediatamente um produto ambíguo do real, ao
qual ela está ligada com distância; em suma, a literatura é sempre irrealista, mas é
esse mesmo irrealismo que lhe permite freqüentemente fazer boas perguntas ao
mundo. (BARTHES, 1970, p. 33/34.)
E ainda, ao falar da palavra na perspectiva da linguagem especial, George Steiner
assim escreve:
[ ] a linguagem é o mistério que define o homem, de que nela a identidade e a
presença histórica do homem estão explicitadas de modo singular. É a linguagem
que separa o homem dos códigos de sinais deterministas, das inarticulações, dos
silêncios que habitam a maior parte do ser. Se o silêncio chegasse de novo a uma
civilização em ruína, seria um silêncio redobrado, ruidoso e desesperado com a
recordação da Palavra. (STEINER, 1988, p. 16/17.)
Fechando o parêntesis, enfim, a ideologia em Bakhtin é uma espécie de “ciência geral”
dos signos, antes que uma teoria da alienação da consciência, ou ainda, uma maneira de
delimitar o campo muito vasto de tudo o que o condiz com os procedimentos científicos e
se identifica muito mais com uma estratégia simbólica destinada a assegurar a aceitação de
26
um certo discurso por meio de regras de persuasão que é possível formular. A ideologia
constitui o “adubo” que alimenta o pensamento e a ação humanas. Ela não é simplesmente
uma “alienação da consciência”, uma representação ilusória da realidade; antes, é essa mesma
realidade que deve ser concebida como “ideológica”. A questão principal é ver como a
própria realidade não pode reproduzir-se sem essa paisagem” ideológica, sem essa rede de
comunicantes ideológicos e simbólicos.
Insistimos na questão ideológica, não porque ela acolhe tudo e “explica” ou justifica
tudo, mas porque todo e qualquer discurso o tem como prescindir do cimento ideológico
que o recobre e o sustenta. Temos consciência de que é impossível um discurso puro,
impermeável aos efeitos das representações ideológicas, até mesmo na literatura, objeto desta
dissertação.
A ideologia nesse sentido não se situa na consciência,
porque
tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de
si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não
existe ideologia. [ ] A própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade
mediante a encarnação material em signos. [ ] A consciência se torna consciência
quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente,
somente no processo de interação social. (BAKHTIN, 1981, ps.
31,33/34).
“A realidade dos fenômenos ideológicos” [portanto] “é a realidade objetiva dos signos
sociais” (Idem, p. 36). Esses signos são condicionados pelas palavras, embora nenhum signo
ideológico pode ser inteiramente substituído por palavras, eles dependem delas.
Bakhtin, portanto, ao analisar as concepções marxianas acerca da ideologia, desloca
seu ponto do interesse das classes dominantes para considerar o problema da ideologia em um
nível mais amplo, que é o da linguagem.
Voltando a Marx, outro destaque que nos interessa é a concepção da interlocução
presente no seu texto, ou no dizer de Bakhtin, o dialogismo e a versão de dialogismo em
27
intertextualidade em Júlia Kristeva. Considerando a especificidade dos diferentes modos de
discussão, no caso aqui o científico de Marx e o literário de Goethe e Shakespeare,
percebemos que esta interação verbal acha-se muito estreitamente ligada à problemática social
da época expressa na primeira grande crise social do capitalismo, objeto de estudo de Marx. O
capitalismo desloca o Deus invisível em um “deus” visível: o dinheiro (Lembremos o texto de
Lima Barreto, A Nova Califórmia, em que a questão do dinheiro ouro vem à tona),
Bakhtin nos lembra que as formas de comunicação verbal estão inteiramente “determinadas
pelas relações de produção e pela estrutura sócio-política”. (BAKHTIN, 1981, p. 43) Segundo
ele, no processo de interação verbal um componente hierárquico nas formas de enunciação
que diz respeito às “regras da etiqueta, do bem falar”. (BAKHTIN, 1981, p. 43)
A dominação econômica se utiliza de um discurso próprio, acabado, justificador que é
compartilhado com certos setores da sociedade. Como todo discurso se utiliza da palavra - e
por ser a palavra um componente ideológico por natureza –, de posse da palavra, podemos
localizar no corpo social a produção de contra-ideologias, aqui incluída a própria literatura
como relato de barbárie e de crítica social. Estas contra-ideologias que não deixam também
de serem ideológicas -, reagem a uma situação social dada de modo sensível produzindo um
“contra discurso” materializado na palavra que vai se disseminando no corpo social até
encontrar sua expressão máxima na produção de uma ideologia acabada. É importante saber,
no entanto, que essa “base econômica” não pode ser considerada o Leviatã da história, mesmo
porque, escreve Robert Stam, “para Bakhtin [...] a linguagem nunca se apresenta ordenada
com tanta nitidez; é “confusa”, como a própria história. Enquanto produto do incessante leva
e traz, do discurso cotidiano, resiste a uma sistematização rígida.”(STAM, 1992, p.32) E ainda
é importante lembrar que a arte, incluindo a literatura, é um ato de comunicação. “Distingue-
se do discurso cotidiano não através de ‘violência contra a linguagem’, como apregoavam os
formalistas, mas através de sua relativa independência do contexto imediato. O discurso
28
cotidiano depende daquilo que Bakhtin denomina ‘contexto extraverbal’.” (STAM, 1992, p.
27.)
Podemos dizer que esta dinâmica do signo expressa em palavras está associada à base
material de uma determinada sociedade, sua infra-estrutura. Porquanto, Goethe, Shakespeare
e Marx se interrogam sobre o mesmo “problema” o capitalismo expresso na palavra chave,
o dinheiro, produzindo diferentes discursos que não são excludentes, ao contrário, são
enriquecedores para uma compreensão mais ampla de uma determinada realidade social.
2
E como situaríamos Lima Barreto nessa paisagem ideológica? Como ele aparece? É
possível perceber em Lima uma tendência por determinada ideologia que venha a comandar
sua maneira de ver o mundo e se orientar em sua crítica, em suas escolhas?
Uma pequena incursão pelos caminhos da história cultural brasileira da época de Lima
Barreto, vemos que “o positivismo de Augusto Comte”, escreve Afrânio Coutinho, “oferecia
singular atração sintônica que era como o espírito da época”. Repelindo qualquer explicação
última, qualquer finalismo teológico ou metafísico e concentrado sobre o fatualismo
científico, o positivismo exaltou a ciência social ou sociológica, como a rainha das ciências,
dando-lhes como métodos e princípios os mesmos que caracterizam as ciênciassicas.
Spencer, por exemplo, viu,” ainda escreve Coutinho, a sociedade como um organismo em
evolução, e a luta pela existência como um constante antagonismo entre as forças sociais.”
(COUTINHO, 1968, p. 181.) Acresce também que o acontecimento mais importante na
história da cultura no Século XIX, com seus reflexos no Século XX, foi a convergência da
biologia e da sociologia, “que derramou por toda parte, na observação e interpretação da vida,
a atitude evolucionista. A revolução biológica efetuada por Darwin, que destarte reforçou a
tendência histórica do espírito romântico, colocou a biologia num posto de direção do
29
pensamento, mudando as concepções e os métodos científicos, no sentido naturalista: o
homem foi integrado no ambiente natural com origem e história natural.” (COUTINHO,
1968, p. 182.)
O complexo mundo espiritual, portanto, que caracterizou num traço único a geração da
época de Lima Barreto foi o culto quase místico da ciência, muito bem simbolizado no
positivismo cuja aspiração era transformada na nova religião do mundo. Por outro lado, se
fosse possível estabelecer uma lei de evolução da nossa vida espiritual”, escreve Antônio
Cândido, “poderíamos dizer que toda ela se rege pela dialética do localismo e do
cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos. Ora a afirmação premeditada e por
vezes violenta do “nacionalismo” literário, com veleidades de criar até uma língua diversa;
ora o declarado conformismo a imitação consciente dos padrões europeus.” (CÂNDIDO,
1965, p. 131.)
A absorção de uma filosofia de cunho positivista e “científica” por intelectuais,
jornalistas, tribunos, consistia, portanto, na elaboração de uma “filosofia científica” que
desvendasse os processos da natureza e suas conexões, esclarecesse o segredo da história e
revelasse ao homem, a partir dessas bases indispensáveis, a sua missão e o seu dever, a
missão, aliás, que o é propriamente o produto de uma opção livre, mas a conformação
necessária com a legalidade do mundo, “natural” ou “histórico”.
Assim, escreve Cruz Costa,
[...] pouco a pouco, principalmente nos primeiros anos do Século XX, sob a
influência de um positivismo difuso, como também do evolucionismo spenceriano,
as preocupações sociológicas iriam impor-se à inteligência brasileira, sempre ávida
de novidades e de sínteses. [ ] É mister considerar ainda que ao terminar o Século
XIX e nos começos do Século XX, a filosofia sofreu uma profunda crise. Os
sintomas desta crise são: o aparecimento de movimentos que se opõem às doutrinas
mais importantes do pensamento moderno, o mecanicismo materialista e o
subjetivismo’ (COSTA, 1956, p. 353/354.)
30
Neste mesmo período, Euclides da Cunha escreve, em carta a João Luís Alves, sobre o
“desencanto” da filosofia:
[]
a minha atividade intelectual agora converge toda para os livros práticos
– deixando provisoriamente de lado, os filósofos, o Comte, o Spencer, o Huxley, etc.
– magníficos amigos por certo mas que afinal não nos ajudam, eficazmente, a
atravessar esta vida cheia de tropeços e dominada quase que inteiramente pelo mais
ferrenho empirismo.” (CUNHA, 1966, p. 606.)
Ainda Euclides em carta a Oliveira Lima, datada de 12 e 3 dezembro de 1908, assim
se refere a Comte
[ ] revelou-se-me no agitar idéias preconcebidas e prenoções, e princípios,
um ideólogo, capaz de emparceirar-se ao mais vesânico dos escolásticos sem
distinção de nuances, em toda a linha agitada que vai de Roscelino a Santo Tomás
de Aquino. (CUNHA, 1966, p. 706.)
O “espírito cientificista” do mundo ocidental, no entanto, já em fins do Século XIX,
parece descer no Brasil por um declive cético oposto ao progressismo confiante dos primeiros
republicanos, ainda românticos e liberais. Alfredo Bosi escreve:
Para estes, a ciência caminharia sempre a serviço de uma Humanidade
livre. É ler Hugo, Tobias Barreto, Castro Alves, o jovem Rui Barbosa. Mas a
biologia do tempo detinha-se cada vez mais na discussão miúda de uma natureza
indiferente ao homem; a antropologia interpretava o destino deste como luta
selvagem pela sobrevivência da qual emergiriam as raças e os indivíduos mais
fortes. Trata-se de um conhecimento que nada promete: apenas reconhece as
estruturas da vida orgânica e das forças ambientais. É uma ciência que vai crescendo
seguida
da
própria sombra ideológica: a consciência infeliz
2
da cultura na época
áurea do colonialismo europeu.(BOSI, [196-?] p. 16.)
Antônio Paim faz uma síntese do positivismo no Brasil quando escreve:
A doutrina dos três estados e o ideário político de Augusto Comte constituem uma
tentativa conseqüente de atribuir ao processo histórico rigidez análoga à que a
ciência do Século XIX supunha existir no âmbito da natureza. Por simples inferência
lógica, alguns idólogos poderiam prever, com o necessário rigor científico, o curso
ulterior da evolução social. E como o seria dado a todos o acesso a semelhante
intuição com os imprescindíveis requisitos da evidência racional, aqueles que,
graças ao contato com a ciência, como que se colocariam acima do processo real, a
2
A metáfora machadiana do “emplasto Brás Cubas e a fina ironia expressa em seus personagens, parece retratar
essa “consciência infeliz”. E a paródia barretiana não serviria como exemplo?
31
ponto de poder contemplá-lo à distância, estariam automaticamente autorizados a
comandá-lo sem dar atenção a determinadas idéias metafísicas” popularizadas pela
Revolução Francesa. Deveriam marchar para a instauração de uma ditadura.”
(PAIM, 1967, p. 187/188.)
Lima Barreto não sustenta esta base ideológica dos militares – o positismo, que ele
chama de “nefasto” e “hipócrita”. Assim ele escreve:
um pedantismo tirânico [positivismo], limitado e estreito, que justificava todas as
violências, todos os assassínios, todas as ferocidades em nome da manutenção da
ordem, condição necessária, diz ele, ao progresso e ao advento do regime normal,
a religião da humanidade, adoração do grão-fetiche com fanhosas músicas de
cornetins e versos detestáveis [ ]. A matemática do positivismo foi sempre um puro
falatório que, naqueles tempos, amedrontava toda gente”. (BARRETO, 2001, p.
354.)
É dificil desvendar Lima Barreto protegido à sombra de uma ideologia. Difícil e inútil,
pois Lima Barreto é o tipo de intelectual-escritor avesso a paradigmas, - ele é o partidário do
olhar livre, o crítico das certezas definitivas que causam danos ao homem. Seu olhar se
dirige ao oprimido na condição de que ele mesmo é um oprimido. Talvez a influência de
muitas tendências ideológicas tenha apenas favorecido a ele esse clima de liberdade para a
crítica solta, aberta, livre do espírito conservador e reacionário da República Velha. Por isso
Lima Barreto se aproxima mais de uma postura anárquica, sem ser anarquista militante. Na
fala do narrador em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, ele diz:
Sou pela dúvida sistemática... Eu o sinto evidências. Não sofro daquilo que
Renan chamava a horrível mania da certeza... Tudo para mim foge, escapa, não se
colhe... O que são crenças, criações do
nosso espírito, feitas por ele para seu
gasto, estranhas ao mundo externo, que talvez não tenha nenhuma ordem para se
curvar à que criamos...(BARRETO, 2001, p. 617)
E mais adiante lá está:
E eu ascendi a todas as injustiças da nossa vida; eu colhi num momento todos
os males com que nos cobriam os conceitos e preconceitos, as organizações e as
disciplinas. Quis ali [Gonzaga assistia a uma parada militar], em segundos, organizar
a minha República, erguer a minha Utopia, e, por instantes, vi resplandecer sobre a
terra dias de Bem, de Satisfação e Contentamento. Vi todas as faces humanas sem
angústia, felizes, num baile. Tão depressa me veio tal sonho, tão depressa ele se
desfez. Não sei que diabólica lógica me dominava; não sei que inveterados hábitos
32
de reflexão vieram derrubar meus sonhos; eu abanei a cabeça desalentado. Tudo isto
era sem remédio. Morto um preconceito ou uma superstição, nasciam outros. Tudo
na terra concorre para criá-los: a Arte, a Ciência e a Religião são as suas fontes., as
matrizes de onde saem, e a morte dessas ilusões, o esquecimento dos seus
cânones, dos seus delírios e dos seus preceitos trariam à humanidade o reino feliz da
perfeita ausência de todas noções entibiadoras,. Seria
assim? [ ] Que me importa
hoje ter de sofrer com as noções de alguns universitários europeus e a burrice dos
meus concidadãos,
se amanhã asselvajado, de
azagaia e bodoque, iria sofrer da
mesma maneira com as da tribo minha vizinha ou mesmo com as da minha [ ] Para
mim, afinal, ficou-me a certeza de que sábio era o agir. (BARRETO, 2001, p.
619.)
Por ser de espírito aberto, contrário a tudo aquilo que significasse entre a uma
ideologia dominante sobretudo a uma ideologia de classe dominante -, Lima Barreto
escolhe, em vez das escritas científicas, do sociologismo de sua época, ele escolhe, por servir
melhor à sua personalidade libertária, o caminho do romance, por dar a ele a oportunidade de
escrever o que vê, sem as mediações suspeitas das idéia importadas da Europa. A esse
propósito, Lima Barreto escreve:
Resolvi, portanto, publicar alguma coisa [ ] das meditações, das minhas cogitações,
atacar em síntese os inimigos das minhas idéias e ridicularizar as suas superstições e
idéias feitas. Pensei em diversas formas, procurei modelos, mas me veio, ao fim
dessas cogitações todas, a convicção de que o romance ou a novela seria o gênero
literário mais próprio, mais acessível a exprimir o que eu pensava e atrair leitores,
amigos e inimigos. (BARRETO, 2001, p. 1454.)
Para essa tarefa Lima Barreto tinha que enfrentar um obstáculo grandioso. Dizia ele
que dominava nos
grandes jornais e revistas elegantes da província, a opinião de que a arte, sobretudo a
de escrever, só se deve ocupar com gente rica e chic, que os humildes, os médios, os
desgraçados, os feios, os infelizes o merecem atenção do artista e tratar deles
degrada a arte. De algum modo, tais estetas obedecem àquela regra da poética
clássica, quando exigia, para personagens da tragédia, a condição de pessoas reais e
principais. (BARRETO, 2001, p. 820.)
Aqui está um dos motivos do esquecimento da obra de Lima Barreto, plenamente
reconhecida após o movimento modernista de 22.
Enfim, Lima Barreto se enquadra apenas na epígrafe que ele mesmo escreveu: “Em
mim não existe absoluto, nem ausência de absoluto, porque não conheci nunca elemento
distinto do eu.” (BARRETO, 2001, p. 1305.)
33
3
Enfim, consideramos o discurso de Lima um discurso literário que acolhe, em termos
de intertextualidade um diálogo com outras formas de discursos, sejam elas de origem
literária ou ideológica e que se manifestam no Brasil no final do Século XIX, tais como o
liberalismo, o evolucionismo, o darwinismo social e sobretudo o positivismo. O discurso
positivista sustentava uma determinada visão de mundo associada ao poder do Estado. No
Brasil ele foi colocado de modo emblemático ao sustentar o programa ideológico
predominante dos líderes do movimento republicano e das práticas de certos governos
autoritários após a proclamação da República em 1889. Estes discursos ideológicos
forneceram combustível para movimentar dois modos de luta política: o primeiro, ao cumprir
com esquemas de revisão do Brasil país-nação
3
, princípio que vinha desde a Independência de
1822, mas que estava adormecido com a presença do comando da família imperial
portuguesa; o segundo, escamotear a ideologia do colonialismo “explicando” os malefícios
da inferioridade do povo brasileiro como conseqüência da mistura de raças. Vale lembrar que
foi exatamente estes discursos que forneceram matéria e não alinhamento - para as
metáforas irônicas da obra de Lima Barreto.
Não podemos negar, portanto, que este “leque” ideológico aliado a circunstâncias
econômica e política específicas, colaborou para transformações histórico-sociais importantes.
Mas, por outro lado, o grande agente social beneficiário das transformações ocorridas a partir
do final do Século XIX contexto de Lima Barreto -, continuou a ser a “vetusta” oligarquia
do campo. Esta, na sua aparente fortaleza, mantinha-se dependente do poder do Estado e dos
países capitalistas hegemônicos. Havia uma grande massa humana recentemente “liberta” do
regime escravista e abandonada à sua sorte, como o próprio Lima Barreto escreve:
34
Brancos, pretos, mulatos, caboclos, gente de todas as cores e de todos os
sentimentos, gente que se tinha metido em tal aventura pelo hábito de obedecer,
gente inteiramente estranha à questão em debate, gente arrancada à força aos lares
ou à calaçaria das ruas, pequeninos, tenros, ou que se haviam alistado por miséria;
gente ignara, simples, às vezes cruel e perversa como crianças inconscientes às
vezes boas e dócil como um cordeiro, mas enfim sem responsabilidade, sem anseio
político, sem vontade própria, simples autômatos nas mãos dos chefes e superiores
que a tinha abandonado à mercê do vencedor. (LIMA, M., 2001. p. 36, in Prosa
Seleta.)
Pode-se dizer que toda obra de Lima Barreto saiu do próprio centro do conflito da vida
social da época. Lima além de um observador arguto dos problemas humanos da recente
República, sofria ecos do ranço ideológico do darwinismo social que ultrapassavam seu
próprio ser e atingia sua produção literária negativamente a ponto de descaracterizá-la de seu
sentido primeiro. Leiamos o parecer de Medeiros de Albuquerque ao se referir ao autor de
Recordações do Escrivão Isaías Caminha:
[...] o que parece é que o autor quis provocar um escândalo em torno de sua obra. Se
este escândalo fosse por uma atrevida concepção literária, não haveria senão que
acolher-lhe a audácia com simpatia. Mas querer o escândalo para uma obra literária
por motivos extraliterários não é digno de um artista. (ALBUQUERQUE, M. 2001,
p. 29/30, in Prosa Seleta.)
Tentaremos ultrapassar algumas fronteiras limitadas que associam apenas Lima como
um autor vingador, revoltado face à sua condição racial, financeira, etc. Ao estudarmos certas
imagens na obra de Lima Barreto à luz da tradição da cultura popular, entendida a partir da
obra de Bakhtin, percebemos o quanto a crítica da época não estava suficientemente
capacitada para uma leitura mais justa de Lima. Pode-se dizer que, em sua obra, certas
imagens grotescas estão associadas ao profundo sentido crítico do autor em relação à
atualidade da vida social. Por trás das imagens grotescas estão acontecimentos reais, pessoas
reais que participam direta ou indiretamente da experiência pessoal do autor, mas nem por
3
Interessante observar que a discussão da idéia de país-nação alimentou um movimento nacionalista que
inclusive vai aparecer na obra de Lima Barreto, presente na figura caricata de Policarpo Quaresma que lutava
por incluir o tupi guarani como a legítima língua nacional.
35
isso Lima exclui seu propósito literário, a saber, elaborar uma narrativa que ultrapassasse as
vulgaridades de um certo ranço beletrista comum na época.
Lima, um arguto observador, captou o espírito” de sua época e o representou
amplamente em sua obra. No entanto, o sentido do concreto no realismo de Lima Barreto se
manifesta contrário ao realismo de um dos nossos maiores representantes literários que foi,
sem dúvida, Machado de Assis. Em Cultura e Sociedade no Brasil de Carlos Nelson
Coutinho, a diferença entre o realismo de Machado de Assis e Lima Barreto pode ser
compreendida a partir do empenho de Lima em combater “todas as manifestações do
intimismo à sombra do poder, contra todas as formas de esteticismo aristocratizante.”
(COUTINHO, 2000, p. 113)
A busca de Lima Barreto por um “autêntico realismo crítico nacional popular” (Idem,
114), se manifestava e se impunha face ao quadro histórico-social. Não é casual que a
concepção funcionalista e renovadora em Lima Barreto acerca da literatura o defina como um
escritor sui gêneris:
[ ] o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas
regras, toda a disciplina externa dos gêneros, e aproveitar de cada um deles o que
puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças,
sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e
altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a
humanidade, em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas
individuais e do que elas têm de comum e dependente entre si. (BARRETO, 2001, p.
79.)
Essa busca o leva a produzir um “novo” estilo de expressão realista contrária a
Machado de Assis (isto não quer dizer que Machado não tenha sido um perspicaz crítico
social), e que se desemboca no movimento modernista de 1922. Podemos dizer com Francisco
de Assis Barbosa que Lima capacita-se a “inaugurar revolucionariamente a base do romance
moderno no Brasil”. Se Assis Barbosa carrega um pouco na tinta nesta afirmação, Moisés
Gicovate nos a medida da modernidade na obra de Lima Barreto: [ele] pode ser
36
considerado como precursor do modernismo no Brasil, no sentido mais elevado, pela
concepção estética e social de sua obra. Havendo revolucionado as técnicas convencionais,
suscitou, por isso, a dos que se esforçavam por descobrir novos rumos da arte.” (GICOVATE,
1952, p. 49.)
Gicovate destaca também a linguagem inovadora em Lima Barreto: “a linguagem,
simples e precisa. A espontaneidade marca cada página. Não podia compreender o fato de
sacrificar a emoção às regras gramaticais.” (GICOVATE, 1952, p. 43)
É nosso objetivo central - como vimos anteriormente -, considerar que Lima
Barreto, com seu agudo senso crítico, deixou registrado em sua obra um quadro revelador da
estrutura social e política, sobretudo do Rio de Janeiro, e a associou de maneira variada às
imagens grotescas e cômicas que remete a uma concepção de mundo carnavalesco, contrária
à visão de mundo oficial. Por esta razão, acreditamos que alguns estudos acerca de sua obra
realizados a partir de posições metodológicas “severas”, desqualificou-o do parâmetro
metodológico crítico da época para aquilo que se convencionara como uma “boa literatura”, e
assim a contribuição de certas imagens grotescas na obra de Lima perdera sua força crítica e
ficara no limite associada ao grotesco pelo grotesco, ou seja, ao mau gosto e,
consequentemente o riso perdeu seu caráter provocador. O riso na obra de Lima, ora irônico e
sarcástico, não foi devidamente compreendido uma vez que ele era freqüentemente associado
às amarguras íntima do autor. O que determinados críticos não perceberam é que Lima ao rir
do mundo que o cercou, riu também da hipocrisia da humanidade presente em nós.
Afinal, o é nosso objetivo aqui entrar no mérito dessa discussão. Apenas queremos
ressaltar que certas maneiras metodológicas rigorosas de leitura do mundo”, sobretudo na
sua forma artística, pode desqualificá-la do ponto de vista formal e diminuir outras
contribuições que não da forma.
37
Não estamos negando com isso a fundamental importância dos estudos da estrutura
formal e sua inegável contribuição para avanço dos estudos literários enquanto objeto
específico. Apenas negamos a forma pela forma, como um exercício em si, desvinculado do
mundo social. Embora Barthes diga que a tarefa da arte é “retirar da língua do mundo, que é a
pobre e poderosa língua das paixões, uma outra fala, uma fala exata”, reconhece no entanto
que
ninguém pois pode escrever sem tomar apaixonadamente partido (qualquer
que seja o distanciamento aparente de sua mensagem) sobre tudo o que vai bem ou
mal no mundo; as infelicidades e as felicidades humanas, o que elas despertam em
nós, indignações, julgamentos, aceitações, sonhos, desejos, angústias, tudo isso é a
matéria única dos signos, mas esse poder que nos parece primeiramente
inexprimível, de tal forma é primeiro, esse poder é imediatamente apenas o
nomeado. (BARTHES, 1970, p. 21)
Para Barthes o problema da literatura é que ao tomar apaixonadamente a matéria dos
signos, alguns autores nem sempre preferem ser mais indiretos, ou seja, “retirar da língua do
mundo [...] uma outra fala”. Podemos dizer que escrever é um ato de paixão. Sabemos que
Lima disse que se casou com a literatura e ninguém mais do que ele escreveu mais
apaixonadamente, utilizando a poderosa língua das paixões e a transformando em matéria
signa.
Sabemos que aqui se encontra o grande nó” do problema da literatura. Indiretamente
nos referimos a ele anteriormente, consciente dos riscos de nossa escolha e de suas
conseqüências teóricas. Situando-se Lima Barreto no problemático contexto sócio-histórico e
lingüístico brasileiro podemos dizer que ele conscientemente utilizou o discurso literário
contra as grandes “certezas” da época tanto no campo da linguagem literária academicismo
exagerado - quanto no campo científico positivismo, darwinismo social, liberalismo, etc -
produzindo, assim, um contra discurso.
38
Lima, ao dar crédito à grande força de persuasão da literatura, utilizou-se dela como
um meio crítico da realidade sócio-política com o intuito de revelar o sofrimento dos homens
e uni-los numa dimensão utópica da harmonia humana. Como ele mesmo escreve:
[...] a arte literária se apresenta com um verdadeiro poder de contágio que a faz
facilmente passar de simples capricho individual, para traço de união, em força de
ligação entre os homens, sendo capaz, portanto, de concorrer para o estabelecimento
de uma harmonia entre eles, orientada para um ideal imenso em que se soldem as
almas, aparentemente mais
diferentes, reveladas, porém, por ela, como semelhantes
no sofrimento da imensa dor de serem humanos.” (BARRETO, 1956, p. 62.)
Isto não quer dizer que a obra de Lima não possui uma realidade que não outra além
da sócio-política. Pretendemos não descaracterizar o objeto literário, ou seja, admitimos que
existe também uma realidade literária que faz parte do universo imaginário criado pela obra
literária. É sobre este cruzamento tenso de realidade sócio-histórica e realidade literária que
tentamos debruçar nosso olhar.
39
[] se me fosse dado ter o dom completo de escritor, eu havia de ser assim um
Rousseau, ao meu jeito, pregando à massa um ideal de vigor, de violência, de força,
de coragem calculada, que lhes corrigisse a bondade e a doçura deprimente. Havia
de saturá-la de um individualismo feroz, de um ideal de ser como aquelas
trepadeiras de Java, amorosas de sol, que coleiam pelas grossas árvores da floresta e
vão por ela acima mais alto que os mais altos ramos para dar afinal a sua glória em
espetáculo.
Lima Barreto
40
CAPÍTULO II
Recepção crítica da obra de Lima Barreto
_________________________________________________________
[] Eu queria viver isolado, fora dessa paixão pela literatura, pelo estudo. Creio que
ela me faz mal e lastimo não ter outra forma de talento em que minha inteligência
pudesse trabalhar, absorver toda a minha atividade sem comunhão com os meus
semelhantes. Queria ser um geômetra, mesmo medíocre, mas da família de
Arquimedes , conforme o desenha Plutarco na vida de Marcellus.
Lima Barreto
Pensamos que as divergências de Lima Barreto face ao conceito e função da literatura
estavam associadas ao seu espírito transgressor, à sua necessidade de romper com os
esquemas e expectativas literárias vigentes em sua época.
A proposta inovadora de sua literatura nos revela que o conflito entre o “novo” e o “velho”
ultrapassa as fronteiras da linguagem. O embate entre a necessidade de modernização face a
atitudes conservadoras é ambíguo na medida em que nos revela a incapacidade da palavra se
transformar em ação. No próprio Lima Barreto encontramos: Eu tenho muita simpatia pela
gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor, mas não é possível transformar esta
simpatia literária, artística, por assim dizer em vida comum com eles, pelo menos com os que
vivo”. (BARRETO, 2001, p. 1242)
Como sabemos, seu propósito literário era de cunho político-social e sua angústia era
perceber que a literatura tal qual era concebida nos cânones da época era inoperante para
fomentar a crítica social e estabelecer a harmonia entre os homens. No entanto ele não
desistiu de realizar seu propósito de fazer da literatura um instrumento de luta social e iniciar
um processo revolucionário de romper com o arcaico e caminhar na direção do moderno.
Observamos em nosso estudo que esta ambigüidade arcaico e moderno é inerente ao
processo de desenvolvimento econômico e político no Brasil. Florestan Fernandes, em A
Revolução Burguesa no Brasil, escreve:
41
Sem dúvida, nenhuma revolução sepulta todo o passado de um Povo. Uma
revolução que adquiriu conteúdo e conseqüências sociais por sua natureza política,
estava fadada a projetar antigas estruturas sociais em um novo contexto político.
(FERNANDES, 1975, p. 46)
As considerações acima nos revelam o quanto o profundo enraizamento” cultural
herdado de um Brasil colonial funcionou como um verdadeiro entrave a uma modernização
efetiva. Se no campo das letras o impulso à modernidade dada por Lima se efetivou no
Movimento Modernista de 22, no campo político-social ainda persiste o embate entre o
arcaico e o moderno.
Tentaremos ilustrar de maneira breve a resistência da crítica literária à produção de
Lima Barreto com o objetivo de valorizar aquilo que os críticos desprezaram em sua obra, e
isto porque é exatamente neste ponto que percebemos o quanto Lima Barreto representou para
a “revolução” dos conteúdos da linguagem literária.
Vejamos como o crítico José Veríssimo, um dos mais conceituados crítico da época de
Lima Barreto, analisa sua obra:
Certamente há melhor, bem melhor, como composição, que a desta novela, se
referindo a [Recordações do Escrivão Isaías Caminha], [ela] é ainda laxa e
incoerente, como linguagem, que a desta ainda é incerta e descuidada, como estilo,
que ao desta, sem embargo de qualidades intrínsecas que só falta assentar e
desenvolver. [ ] Não há, porém, igual como inspiração, como originalidade, como
manifestação de uma personalidade literária. [ ] Quis o senhor Lima Barreto, saindo
da imitação da comum novela francesa e portuguesa [ ] representar num quadro de
romance certos aspectos sociais da nossa vida de grande capital, quiçá por demais
presumida de si, vista pelos olhos e sentimentos de um mesquinho rapaz que do
interior vem tentar a vida nela. O quadro saiu-lhe acanhado e defeituosamente
composto, e a representação sem serenidade, pessoalíssima. Disto resultou graves
máculas na transposição. [ ] Arte não é cópia, [ ], é a transposição do real, operada
sem dúvida como elemento do real, mas artisticamente recriados e não simplesmente
transferidos como da chapa fotográfica se transfere para o papel a imagem apanhada.
E infelizmente, foi o que principalmente fez o sr Lima Barreto. (VERÍSSIMO, 2001,
p. 30, 31.in Prosa Seleta.)
Prosseguindo na mesma linha do discurso anterior, João Ribeiro, membro da
Academia Brasileira de Letras, ao analisar Numa e a Ninfa, assim se expressa:
42
Numa e a Ninfa é um estudo da vida social e política do nosso tempo. [ ] No Brasil,
em quase todos os ramos de vida, o arrivismo é uma arte consumada e perfeita; sem
ela, seria impossível explicar o triunfo e a evidência de indivíduos quase nulos,
insignificantes, incultos e ridículos que, entretanto, ocupam as melhores posições. [ ]
Dessa desordem fundamental dos nossos costumes traçou Lima Barreto com mão
firme um esboço tão parecido à realidade que com ela se confunde. [ ] Entretanto, há
um defeito grave, neste, como em outros romances de Lima Barreto. Não
razoável acabamento; falta sempre a chave da abóbada que ele carpinteja
excelentemente. [ ] no Policarpo Quaresma [ ] os arabescos, toda a decoração é
esplêndida, mas a arquitetura é falha. (RIBEIRO, 2001, p. 31,32,33, in Prosa
Seleta).
Tristão de Ataíde, ao ser menos judicioso que Veríssimo, ao atribuir a Lima Barreto a
qualidade de ser o criador do romance social no Brasil, faz restrições ao aspecto “vulgar” de
sua obra:
[Lima] não fez literatura por vaidade ou solicitado por um ideal de beleza ou de
pitoresco. Escreveu para queixar-se da vida, também para vingar-se dos homens. []
Foi freqüentemente imperfeito e vulgar em sua arte, por vezes desleixada ou
desinteressante [ ], mas de tudo que viu e sentiu deixou documentos imperecíveis em
nossa literatura, onde ficará certamente como criador desse romance social que
viveu com tanta intensidade de sentimento e gravou com aquele agudo humorismo
da verdade. [ ] Seus livros hão de ficar, porque contêm um grande sopro de
humanidade, no qual se hão de reconhecer, através dos tempos, todos os que
sentiram o peso da contradição fundamental da vida (ATAIDE, 2001, p. 63, in Prosa
Seleta.)
Fábio Luz, embora trace elogios ao autor, chama-o de romancista esquisito ao dar
preferência pelas “ficções do ridículo”:
[ ]Romancista esquisito, à parte, único nas letras brasileiras, criador do romance
social de crítica acerba, irônica, ferina, em que ridendo, morde, caustica,
ridiculariza, expõe no pelouro da letra de forma as mazelas da nossa sociedade,
buscando de preferência as feições do ridículo (LUZ, 2001, p. 37, in Prosa Seleta.)
Podemos observar por meio das críticas apresentadas acima que duas questões
fundamentais, a saber, uma que se refere aos conteúdos, ao contexto sócio-político e outra à
linguagem. Quanto à primeira, os críticos reconhecem o caráter inovador dos conteúdos na
obra de Lima Barreto, sobretudo, ao “afirmar que ele é o criador do romance social no
Brasil”, mas segundo eles esses conteúdos são utilizados a partir da técnica do olho da
câmara, ou seja, uma fotografia da própria realidade. O que a crítica desconsiderou é que
43
Lima Barreto ao retratar essa realidade se utilizou do estilo grotesco, uma das marcas deste
estilo é o exagero e, como sabemos, o exagero fora a “regra” na obra de Lima Barreto, onde,
“où le moindre bruit s’enfle en une immense voïx.”
4
O exagero em Lima Barreto teve um
propósito claro que era descortinar a máscara civilizatória de certas classes que viviam, por
assim dizer, à sombra do poder. Enfim, o propósito social em sua narrativa, não o fez menos
literato, isto porque o exagero distorce a realidade justamente para que possamos voltar a ela
no mínimo com um olhar questionador. Esse exagero sinalizava para Fábio Luz o perfil de um
romancista “esquisito” e, pensamos, que esta postura está ligada a instrumentais de análise da
obra literária inerente a uma estética em que o riso, o grotesco, a paródia, eram categorias
inferiores da arte.
Como observamos nas questões acima a propósito dos conteúdos na obra de Lima, a
crítica está por um fio de navalha entre o reconhecimento e desmerecimento dela, e o mesmo
não acontece em relação à forma. A crítica é praticamente unânime quando se refere ao
acabamento da obra de Lima Barreto e repete isso em coro: a forma é imperfeita, a linguagem
descuidada, a sua arte é vulgar, etc. Falta na obra de Lima Barreto, como dissera João Ribeiro,
“a chave da abóbada”.
Qual chave? A chave das expectativas vigentes? Esta chave não abre as portas da obra
de Lima porque elas estão fora dos padrões. Sabemos que Lima combateu ardorosamente a
retórica rebuscada da época, o uso excessivo da metáfora, o apuro rigoroso da gramática.
Enfim, combateu a linguagem à moda de Coelho Neto, Rui Barbosa e Euclides da Cunha.
Vejamos como o próprio Lima escreve:
[Coelho Neto] transformou toda a arte de escrever em pura ‘chinoiserie’
5
de estilo e
fraseado. [Ele] fossilizou-se na bodega do que ele chama estilo, música do período,
imagens peregrinas e outras cousas que são o cortejo da arte de escrever.
(BARRETO, 1956, p. 189.)
4
Onde o menor ruído se transforma numa imensa voz. Guyau, citação por Lima Barreto.
5
Chinoiserie: pequenos objetos da china, fig., esquisitices, idéias estrambóticas.
44
Em relação a Euclides da Cunha ele se posiciona da seguinte maneira:
No seu escrever, pejado de metáforas e comparações científicas, sempre a
preocupação de demonstrar saber universal, desdém pelas impressões do primeiro
instante [ ]. Não se nota, no seu estilo, cambiantes abandono, suaves esbatimentos
nas transições. A sua alma era seca e árida e todo ele cheio de um orgulho intelectual
desmedido [ ]. [Euclides] literato até à medula, até a tortura de procurar um estilo
original e inconfundível, até ao rebuscamento dos vocábulos raros, tinha a pretensão
de filósofo, de homem de ciência que despreza o simples escritor, para ele sempre
um ignorante (BARRETO, 2001, p. 1022).
Lima se posiciona em relação à linguagem escrevendo:
Por toda parte tenho mostrado a minha insurreição contra o clicgrego e
sempre que posso desanco a cacetada dos clássicos portugueses que os médicos
literatos nos querem impingir como modelos de bela linguagem”. (BARRETO,
1956, p. 200).
Neste embate Lima introduz em sua literatura a linguagem coloquial, simples, clara
que para ele era essencial para atingir o grande público. Isto porque ele acreditava que a
literatura, a narrativa novelesca, era o melhor meio de divulgação dos seus ideais, de sua
concepção de arte literária, de soltar seu grito abafado.
O que Lima Barreto talvez não pensou é que ele foi, no dizer de Cavalcanti Proença,
no prefácio de Impressões de Leitura,
Um precursor da fervente polêmica modernista, pois é possível encontrar nas suas
opiniões o mesmo desejo de renovação literária. A mesma crítica feita aos médicos
escrevendo em língua do Século XVI e falando a linguagem coloquial de nossos dias
vai aparecer na carta que Macunaíma escreverá às Icamiabas (PROENÇA 1956, p.
38).
Lima Barreto ao propor novos temas por meio de uma literatura militante, expressa
numa linguagem transgressora, com o propósito de se interrogar acerca do homem numa
tentativa angustiada de conhecer a humanidade presente nele mesmo, nos revelou que a nossa
humanidade provém justamente de nossos defeitos”, e que somos realmente heróis, como
em Macunaíma de Mário de Andrade, heróis às avessas. A este respeito, assim se expressa
Lima Barreto: “Eu procurava e sondava os mistérios da nossa natureza moral, uma vontade de
45
descobrir nos nossos defeitos o seu núcleo primitivo de amor e de bondade” (BARRETO,
2001, p. 1462).
Insistamos neste ponto: é nos “defeitos” apontados pela crítica que reside a sua maior
virtude, a virtude inovadora. Seguindo esta tendência, Alice Martha, em seu texto A tessitura
satírica em Numa e Ninfa’, observa que o texto apresenta um desvio dos padrões da narrativa
vigente, a saber, o processo híbrido de criação. Ela define este processo da seguinte forma: “A
gênese da obra [Numa e a Ninfa] pode ser vista como híbrida na medida em que contém
elementos tanto do conto homônimo quanto das narrativas satíricas denominadas Aventuras
do Doutor Bogóloff.” (MARTHA, 1987, p. 55).
Segundo esta autora, este desvio foi recebido de maneira negativa pela crítica que
atribuiu a falha da arquitetura da obra ao jornalismo. No entanto, ela não considera esta
“falha” de maneira negativa, ao contrário, ela é considerada como elemento da organização
satírica e podemos dizer que esses desencontros podem acentuar a sua própria veia satírica:
[ ] O crítico não consegue perceber o alcance da influência jornalística na estrutura
narrativa. sempre com clareza a incongruência do texto, mas apenas tangencia as
causas, sem perceber a real conseqüência. O jornalismo pode ser visto como um dos
fatores dos desencontros da narrativa, porém não deve ser tomado como elemento
único e nefasto, pois é um dos aspectos a considerar na organização satírica da obra
(MARTHA, 1987, p. 58, 59.)
Mais à frente, ela ainda esclarece, que o defeito da incongruência defeito na
arquitetura da obra, porém defeito de forma apontado pela crítica é corroborado por Lima
como uma intencionalidade de desestruturação do texto. Neste sentido, a incongruência
significa avanço, transgressão na medida em que Lima Barreto a utilizou conscientemente.
Vejamos como o próprio Lima Barreto escreve a respeito em resposta às críticas de Veiga
Miranda:
agora tenho oportunidade de agradecer as referências que fez ao meu Numa. [ ]
Mas peço ao ilustre confrade licença para lhe lembrar que o que lhe pareceu de
desconexo nele, não é mais do que a procura da obscuridade, para mais ressaltar a
46
parlapatice de um meu personagem; e semelhante efeito eu encontro nos mestres
(BARRETO, apud MARTHA, 1987, p. 63).
Gostaríamos de considerar a relação histórica entre literatura e imprensa que não foi
explorada por Martha, como esta relação influenciou o caráter da literatura. Esta relação
inaugura a famosa série dos “feuilletons”, ou seja, a publicação de romances em séries.
Grandes nomes, conhecidos da literatura, forneceram romances para jornais, criando uma
verdadeira indústria literária. Hauser diz que entre os anos de 1837 e 1847 La Presse publica
as obras de Balzac. Le Siècle, concorrente de La Presse, lança as obras de Alexandre Dumas e
assim as coisas se davam e revelavam nomes. Em relação a Dumas, Hauser revela um fato no
mínimo curioso, a saber:
Numa ação judicial, fica provado que Dumas publica mais com seu próprio nome do
que poderia escrever mesmo que trabalhasse dias e noite a fio sem pausa. De fato,
ele emprega setenta e três colaboradores e entre eles um August Maquet, a quem
concede uma quase autonomia na produção. A obra literária converte-se agora em
“mercadoria”. [ ] Seus preços ajustam-se à demanda e nada têm a ver com o valor
artístico do que produzem. (HAUSER, 1998, p. 741).
Hoje Dumas está na galeria dos grandes autores. No caso Lima Barreto, esta relação
entre literatura e imprensa observada por Martha fora apreciada de maneira negativa pela
crítica, como vimos acima. Mas o romance no Brasil seguiu exatamente o mesmo caminho do
europeu. Machado de Assis não foi somente um romancista que teve suas obras publicadas
em folhetim de jornal, foi antes um grande colaborador deste fornecendo crônicas, críticas
literárias, etc. O grande contista e cronista machadiano fora a ponte para o grande romancista.
Como bem lembrou Hauser
A interrupção da história no final de cada número do jornal [ ] induz o autor a
adquirir uma espécie de cnica teatral e aproveitar do teatrólogo o método
descontínuo de apresentação em cenas separadas. [ ] A continuação do enredo de dia
para dia, a publicação das partes separadas usualmente sem um plano exato e sem a
possibilidade de alterar o que saiu a público e harmonizá-lo com os meros
ulteriores, produz, por outro lado, um estilo narrativo “não dramático”, episódico e
improvisador, uma seqüência interminável de eventos e um retrato inorgânico
freqüentemente contraditório dos personagens (HAUSER, 1998, p. 742).
47
Acrescentamos estas observações à de Martha e reforçamos que como Lima tinha a
predileção para o exagero, a força do cru e do excêntrico face à sua aproximação à cultura
popular, ele, de certa forma, aprofundou a técnica do descontínuo.
Enfim, estes exemplos estão longe de esgotar as questões referentes ao conteúdo e à
forma na obra de Lima Barreto. Pretendemos apenas mostrar que a partir de um
posicionamento crítico, legitimado por meio de uma noção estrutural de literatura, pode-se
tornar suspeita uma produção literária na medida em que a classifica de boa ou literatura,
seguindo o critério da homogeneização do discurso literário. Nosso propósito é fugir do
maniqueísmo tanto da arte com presunções de cientificidade - neste caso, a literatura -, como
da arte sem compromisso com teorias que a levem a ser menos repletas de penumbras. Vamos
dar a palavra judiciosa ao sociólogo Alfred Schutz quando escreve:
Todo conhecimento do mundo, quer ele seja científico ou que resulte do bom senso,
repousa sobre contradições mentais, sínteses, generalizações, formalizações e
idealizações próprias a cada vel de organização do pensamento. Assim o conceito
de natureza de que as ciências naturais deve dar conta corresponde, como mostrou
Husserl, a uma abstração idealizante do mundo vivo, uma abstração que, por
princípio, exclui a vida individual das pessoas e os objetos culturais nascidos do
próprio fato da atividade humana prática. (SCHUTZ, 1964 p.)
6
6
Tradução nossa.
48
Sem ser monarquista, não amo a república.
João Ribeiro disse-me, certa vez, que a república era a cultura parda; pois sou
como o senhor João Ribeiro; nunca houve anos no Brasil em que os pardos, os
malditos do seu Haeckel, fossem mais postos à margem.
O nosso regime atual é da mais brutal plutocracia, e da mais intensa adulação
aos elementos estranhos, aos capitalistas internacionais, aos agentes de negócios, aos
charlatães tintos com uma sabedoria de pacotilha.
Não há entre os ricos, entre os poderosos, nenhuma generosidade; não há
piedade, o vontade, por parte deles, desejo de atenuar a sua felicidade, que é
sempre uma injustiça, com a proteção aos outros, com o arrimo aos necessitados,
com o fervor religioso de fazer o bem.
Têm medo de ser generosos, têm medo de dar esmola, têm medo de ser bons.
Se a dissolução de costumes que todos anunciam como existência, há, antes
dela houve a dissolução do sentimento, do inacessível , sentimento de solidariedade
entre os homens.
Eu, mais de vinte anos, vi a implantação do regime. Vi-a com desgosto e
creio que tive razão.
Lima Barreto
49
CAPÍTULO III
Lima Barreto e a marca de sua autonomia literária
A literatura não existe no ar, e sim no Tempo, no Tempo histórico, que obedece ao
seu próprio ritmo dialético. A literatura não deixará de refletir este ritmo refletir,
mas não acompanhar.
[ ] A relação entre literatura e sociedade não é mera dependência; é uma relação
complicada, de dependência recíproca e de interdependência dos fatores espirituais
(ideológicos e estilísticos) e dos fatores materiais (estrutura sócial-econômica).
Otto Maria Carpeaux
Ao problematizar nosso objeto de estudo, procuramos evidenciar a complexidade do
conceito de literatura que, por um lado, reafirma-se a partir de elementos constitutivos do
sistema social e, por outro, propõe a dissolução desse ideário fundamentado na supremacia
da palavra enquanto tal o “deus” invisível que comanda a narrativa literária. Esta tensão
não escapa a fatores ideológicos. Importante reafirmar que a ideologia, em seu discurso,
nos é compreendida a partir de um conceito amplo e que de certa forma se aproxima do
conceito original, ou seja, um conjunto de idéias materializado na palavra, nos signos e que
compõe a superestrutura dos valores morais, religiosos, jurídico, etc. Em vez de “acusar” a
ideologia, consideramos e consideraremos a justaposição de idéias e realidade, de geral e
particular, de teoria e prática, como parte inerente do processo dialético de formação
cultural. E sua riqueza reside exatamente nesta tensão que ora pende de um lado, ora de
outro, mas que nunca se exclui, ao contrário, se complementa. Se a literatura persiste
mesmo sendo resultado de conflitos e contradições “ideológicos” em dado momento
histórico é porque ela no fundo permanece como uma necessidade de representação
humana. “A arte”, escreve Ernst Fischer, “é o meio indispensável para essa união do
indivíduo com o todo; reflete a infinita capacidade humana para a associação, para a
circulação de experiências e idéias.” (FISCHER, 1966, p. 13.)
50
Não nos importa, no momento, “investigar” este gênero de necessidade, mas sim
considerá-la como um fenômeno aproveitando o próprio termo empregado por Fischer de
circulação social. Um escritor o escreve para si, escreve para o público. Neste sentido a
obra de arte, e mais especificamente a literatura, não deixa de ser uma mercadoria, embora
esta mercadoria guarde um significado social diferenciado. este fato valeria uma
investigação sociológica, que não é o nosso caso. Nosso caso é perceber com Lucien
Goldmann que
A obra literária é [...] a expressão de uma visão do mundo, de uma maneira de ver e
de sentir um universo concreto de seres e de coisas, e o escritor é um homem que
encontra uma forma adequada para criar e expressar este universo. Pode ocorrer,
entretanto, uma defasagem maior ou menor e criar entre as intenções conscientes, as
idéias filosóficas, literárias ou políticas do escritor, e a maneira pela qual ele e
sente o universo que ele cria. (GOLDMANN, 1967, p. 112.)
Lima Barreto elabora uma narrativa que desconstrói a visão de mundo da elite cultural
e introduz sua visão de mundo que é a dos excluídos, representada por ele próprio. Este
projeto resulta em uma representação inovadora, coerente com a maneira pela qual ele e
sente o universo político brasileiro. Esta maneira de ver, de sentir, cria uma forma imperfeita
sobre o ponto de vista estético. Imperfeita porque paradoxalmente nova adequada à
sociedade brasileira que é imperfeita e nova. Ao propor a investigar este tipo de absorção
evidentemente se de muita maneira, ou seja, ora explicitamente, ora mais sutil. Assim,
nossa trajetória é simplesmente centralizar nossa atenção na relação teórica entre a obra e seu
ambiente social, enfim, seus espaços de “manobra”.
Esta defasagem’, termo usado por Goldmann, é que nos leva a propor um outro tipo
de investigação, que é a absorção da dimensão social pela estética.
Não nos cabe nenhuma decisão, mesmo porque o podemos nos iludir quanto a
decidir “cientificamente” sobre os valores culturais, porque eles são uma luta entre si. Como
bem lembrou Max Weber, são deuses diferentes que lutam entre si, agora e em todos os
51
tempos futuros”. (WEBER, 1974, p. 175.) É preciso evitar as nossas próprias certezas, as
determinações que de certa maneira escravizam nosso olhar. Ainda recorrendo a Goldmann:
[...] o indivíduo [escritor] é um ser muito complexo, suas funções no conjunto da
vida social são bastante múltiplas, as mediações entre seu pensamento e a realidade
econômica são muito numerosas e variadas para que se possa reduzi-lo ao esquema
vazio de uma sociologia mecânica e simplista. (GOLDMANN., 1967, p. 111.)
Antônio Cândido em Literatura e Sociedade nos fornece a primeira tentativa de
superar a luta de velhos “deuses”: os que proclamaram a presença de aspectos da realidade
social em primeiro plano e, por outro lado, os que deixaram este aspecto para as sombras de
um segundo plano. Deste modo, ele diz que só podemos entender uma obra na medida em que
o texto e o contexto sejam fundidos de maneira dialética, a saber:
Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas
visões dissociadas; e que a podemos entender fundindo texto e contexto numa
interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que
explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a
estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do
processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa,
não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um
certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (CÂNDIDO,
1965, p. 4.)
Para chegar a esta síntese, Cândido nos revela que os estímulos inerentes à tarefa do
escritor são relativos ao meio social e cultural. Desta forma, ele faz uma pequena incursão
histórica para mostrar que a atividade artística do homem primitivo e do homem rústico
mantém uma ligação íntima com a organização da vida social. Neste sentido, a literatura
destes grupos liga-se diretamente à vida coletiva e possui uma função social organizatória que
se move entre a realidade necessidades alimentares, por exemplo e sua transcendência
mitos, rituais de magia. Como bem expressou Ernst Fischer,
A função decisiva da arte nos seus primórdios foi, inequivocamente, a de conferir
poder: poder sobre a natureza, poder sobre os inimigos, poder sobre o parceiro de
relações sexuais, poder sobre a realidade, poder exercido no sentido de um
fortalecimento da coletividade humana. Nos alvores da humanidade, a arte pouco
tinha a ver com a “beleza” e nada tinha a ver com a contemplação estética, com o
52
desfrute estético: era um instrumento gico, uma arma da coletividade humana em
sua luta pela sobrevivência. (FISCHER, 1966, p. 45)
A literatura erudita possui fatores de condicionamentos outros e estes tendem a se
afastar cada vez mais da função primeira de organização social para adquirir uma autonomia
relativa em que os estímulos são quase totalmente dissolvidos. Vejamos como Cândido diz:
Podemos então concluir que as formas primitivas de literatura repousam mais
direta e perceptivelmente sobre estímulos imediatos da vida social, sobretudo os
fatos de infra-estrutura, que nas literaturas eruditas só aparecem como elemento
condicionante depois de filtrados aà desfiguração por uma longa série de outros
fatos. (CÂNDIDO, 1965. p.75.)
Podemos dizer que é aqui que o papel do sociólogo se torna importante para completar
a análise estética. Tentar compreender a esta desfiguração significa apreender como o
discurso literário reage às
transformações históricas e a arte em geral adquire uma função de
transcendência do ser, do logos” da suprema realização. Como nos recomenda Northrop
Frye,
[ ] considerar a literatura como uma unidade em si mesma o significa excluí-la de
um contexto social: ao contrário, torna-se bem mais fácil distinguir que lugar ela
ocupa na civilização. A crítica terá sempre dois aspectos, um voltado em direção à
estrutura da literatura e outro apontando para outros fenômenos culturais que
constituem o ambiente social da literatura. (FRYE, 1973, p. 22.)
Portanto, por mais revolucionária que seja a arte, ela pode ser reconhecida como arte
de seu tempo e de seu espaço. Ela é um produto que expressa no fundo preocupações
humanas que derivam de mudanças substantivas que ocorrem nas sociedades em geral.
Evidentemente, a “verdade” da arte não se reduz a essas mudanças, da mesma forma que ela
também não se reduz à sua verdade técnica.
Herbert Marcuse, mais recentemente, adiciona a esse horizonte crítico, um discurso
em contraposição à interpretação marxista ortodoxa, que considera a obra de arte como
representação de interesses e visões de mundo de classes particulares. Ele assinala que o
53
potencial político de uma obra de arte encontra-se na própria forma estética. Assim, a arte
adquire sua autonomia frente às relações sociais dadas, ultrapassando os interesses de classes,
as relações de produção e as experiências ordinárias. A estética, ao sublimar os conteúdos
imediatos, rompe com a objetividade reificada, e sobre esta base a percepção individual a
que ele chama de subjetividade rebelde – realiza a dessublimação dos valores dominantes.
Assim, a realidade da obra embora seja retirada da realidade, adquire uma nova
significação que é própria da estética. E é nessa realidade que se encontra a essência da
realidade humana, porque é por meio dela que o potencial reprimido do homem e da natureza
se manifesta. Desta forma, Marcuse recoloca o indivíduo como agente transformador, capaz
de construir uma forma estética cuja verdade é ser libertadora na medida em que compete à
arte o poder de romper com o monopólio da realidade estabelecida, transformando esta
própria realidade em realidade autônoma. Vejamos como ele próprio escreve:
Ces conditions historiques sont présentes dans l’oeuvre, dans son langage et dans
son imagerie, des différentes façons: explicitement ou en tant qu’arrièr–plan et
horizon. Mais elles sont des expressions et des manifestations historiques
spécifiques de la me substance transhistorique de l’art soit sa propre dimension
de vérité, de protestation et d’espoir, dimension constituée par la forme esthétique
même. Ainsi le Woyzeck de Büchner ou les pièces de Brecht,, mais aussi les romans
et les nouvelles de Kafka e de Beckett, sont-ils révolutionnaires en vertu de la forme
qui y est donnée au contenu. En fait, le contenu (la réalité établie) n’apparait dans
ces oeuvres que distancié et médiatisé. [...] le seul sens valable dans lequel ou peut
qualifier la littérature de “revolucionnaire” est celui que la renvoie à elle-même, en
tant que contenu devenu forme. (MARCUSE, 1979, p. 12.)
7
Prosseguindo mais adiante:
Selon la loi de la forme esthétique, la réalité reçue est nécessairement
sublimée: son contenu immédiat est stylisé, les “données” sont remodelées et
réordennées conformément aux exigences de la forme artistique, qui veulent que
même la représentation de la mort et de destruction évoquent le besoin d’un
espoir
7
Estas condições históricas estão presentes na obra, na sua linguagem e no seu imaginário de diferentes
maneiras: explicitamente ou enquanto previsão e horizonte. Mas elas são expressões e manifestações históricas
específicas da mesma substância transhistórica da arte seja sua própria dimensão de verdade, de protesto e de
esperança, dimensão constitutiva da própria forma estética. Assim, le Woyzeck de Büchner ou as peças de
Brecht, mas também os romances e as novelas de Kafka e de Beckett, são revolucionárias em virtude da forma
que é dado ao conteúdo. De fato, o conteúdo (a realidade estabelecida) não aparece nessas obras senão
distanciado e mediatizado. [...] o único sentido válido no qual se pode qualificar a literatura de “revolucionária” é
aquela que a ela própria se remete, enquanto conteúdo que se torna forma.” (tradução nossa)
54
besoin qui est au fond de la conscience nouvelle incarnée dans l’oeuvre d’art.”
(MARCUSE, 1979, p. 21)
8
Desta maneira Marcuse define mesmo que provisoriamente a forma estética como o
“résultat de la transformation d’un contenu reçu (fait présent ou historique, personnel ou
social) en un tout autosuffisant [...] L’oeuvre est ainsi retirée du processus constant de la
réalité, elle acquiert une significance et une vérité qui lui sont propres. (MARCUSE, 1979.
p. 21 e 22)
Cândido e Marcuse, portanto, consideram a literatura como resultado de um
intercâmbio entre realidades, a saber, a realidade estabelecida dos conteúdos sociais e a
realidade formal. Podemos dizer que o resultado deste intercâmbio é uma produção que por
mais paradoxal que seja, desloca o sentido de realidade histórico-social de percepção objetiva
do mundo para uma percepção outra, o da utopia princípio que pode ser compreendido e
comunicado através do conhecimento expresso pela arte. E sem a comunicabilidade da arte
nosso conhecimento estaria no mínimo incompleto, na medida em que ela trabalha o
complexo mundo aparente da “desrazão” humana que escapa à compreensão do contexto
cultural específico.
A maneira diferenciada como os escritores transformam os conteúdos sociais em
forma, que no caso Lima Barreto não pode ser totalmente desqualificado em favor da utopia,
as narrativas por mais cruas, imperfeitas na sua relação entre forma e conteúdo, em última
instância, não deixam de causar impactos e possíveis rompimentos. E por mais frágil qual seja
este rompimento, ele é condição para o surgimento de novas formas de expressão. A maneira
provocadora da obra de Lima Barreto obedece este princípio, porque propõe um novo
humanismo fundamentado na crítica da cultura, ou seja, dos costumes, dos sentimentos, da
8
“Segundo a lei da forma estética, a realidade admitida é necessariamente sublimada: seu conteúdo imediato é
estilizado, os “dados” são remodelados e reordenados conforme às exigências da forma artística, que requerem
55
ordem vigente, etc.. E ao fazê-lo, o faz com uma linguagem inovadora que, como foi dito,
fora essencial para o movimento modernista de 22. Desta forma, podemos dizer com Gramsci
que Lima Barreto cumpriu o papel de crítica literária própria à filosofia da práxis:
[ ] esta crítica deve fundir a luta por uma nova cultura, isto é, por um novo
humanismo, a crítica dos costumes, dos sentimentos e das concepções do mundo;
com a crítica estética ou puramente artística; deve realizar esta fusão com fervor
apaixonado, ainda que na forma do sarcasmo. (GRAMSCI, 1978. p. 6.)
A utilização de um discurso apaixonado e sarcástico por Lima Barreto o aproximou
muito mais da realidade sócio-política brasileira. Esta aproximação, além de explicitar as
nossas mazelas, revelou sobretudo a nossa fragilidade: a incapacidade da intelectualidade de
pensar sobre si mesma. Lima Barreto adiantou temas que seriam largamente trabalhados mais
tarde. Estes temas ultrapassam o nacionalismo vulgar. Eles evidenciam a necessidade de se
adentrar em nossa cultura para, se não produzirem idéias inovadoras, pelo menos adaptá-las
para que não aparecessem “fora de lugar”. Temas como a dependência econômica, a reforma
agrária, a fragilidade eleitoral, a inoperância das leis, etc., são recorrentes na obra de Lima
Barreto. Todos estes se unem em um objetivo maior que foi o de conhecer “as ânsias, as
dificuldades, as qualidade e os defeitos de seu [nosso] povo”, com o intuito de
romanticamente uni-los para aquilo que Lima acreditara, com Bossuet, que o verdadeiro fim
da política, era fazer os povos felizes.” Lima Barreto observou, no entanto, que as aspirações
e as dificuldades da maioria não foram consideradas e as qualidades foram transformadas em
defeitos e os defeitos em qualidades.
Daí a angústia de Lima ao dizer que “o verdadeiro fim das políticas dos políticos da
Bruzundanga é fazer os povos infelizes.” (BARRETO, 2001, p. 775.) Mesmo na periferia do
capitalismo ele percebera os efeitos devastadores do avanço da política do capitalismo.
que mesmo a representação da morte e da destruição evoque a necessidade de uma esperança – necessidade
que é no fundo da consciência nova incarnação na obra de arte.” (Trad. nossa)
56
Política esta que, segundo ele, tiraniza os homens na busca do dinheiro a qualquer custo e
limita a construção cultural.
Não há, portanto, na sociedade do momento, tradição, cultura acumulada e gosto
cultivado em um ambiente propício. São todos arrivistas e viveram a melhor parte da
vida tiranizados pela paixão de ganhar dinheiro, seja como for. Os melhores e mais
respeitáveis o aqueles que enriqueceram pelo comércio ou pela indústria,
honestamente, se é possível admitir que se enriqueça honestamente. (BARRETO,
2001, p. 801.)
A necessidade do dinheiro como medida de todas as coisas é brilhantemente
trabalhada por Lima Barreto no conto Nova Califórnia. Vamos voltar assim à questão
fundamental proposta no início do trabalho que é o papel do dinheiro nas sociedades
modernas.
A capacidade de ganhar dinheiro foi sorrateiramente fundamentada na capacidade
natural do indivíduo, eliminado assim as diferenças sociais e históricas. Lima Barreto
brilhantemente percebera esta ironia fundamentada na capacidade das “virtudes individuais”
de ganhar dinheiro. “Acentuava que ser apadrinhado, ou bajulador, ou ambas as coisas, era o
caminho mais curto para as promoções. [ ] O valor próprio, o valor intrínseco, de pouco valia,
pensava, porque as campanhas de silêncio poderiam asfixiar as vocações e obscurecer o
mérito.” (GICOVATE, 1952, p. 44.) Lembramos Gramsci neste ponto ao dizer que o
empresário capitalista cria consigo o cnico da indústria, o cientista da economia política, o
organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc. (GRAMSCI, 1978, p. 3, 4.) Esta
“nova” cultura que representa em sua maioria interesses específicos de um “novo” tipo social
no poder e que é fundamentado na capacidade discursiva de certos intelectuais, a que Gramsci
chamou intelectuais orgânicos, se sobrepõe a outras categorias culturais existentes como
medida de valor discursivo da sociedade em geral. É contra esta hegemonia discursiva em que
interesses particulares parecem coincidir com interesses gerais que a literatura de Lima
Barreto se constitui. A sua postura avessa aos critérios de valores da maioria da
intelectualidade brasileira, comprometida mesmo que inconscientemente em dar consistência
57
ao ideário de organização econômica, social e política do nosso tardio desenvolvimento
capitalista, gerou paradoxos literários da mesma ordem daqueles gerados pelas relações
sociais que não foram devidamente racionalizados no complexo universo do ideário do
desenvolvimento capitalista.
Este paradoxo, expresso no aumento da miséria humana, extrapola hoje os países
“periféricos” - como ainda continuamos a ser e atinge países tidos como centrais. A
miséria deixou de ser exclusividade de países “periféricos” e passou a desafiar o mundo com a
pertinente questão: por que o crescimento econômico não gera necessariamente um
desenvolvimento social? Lima Barreto tratara indiretamente deste fenômeno ao observar e
representar a cidade do Rio de Janeiro, que em sua época modernizava-se com o início da
industrialização, o desenvolvimento do comércio interno, as novas relações de trabalho, com
o planejamento urbano, as manifestações populares, etc. e por outro lado, a ocupação dos
morros, as tão conhecidas favelas, símbolo da exclusão do processo tido como “civilizatório”.
É evidente que a maneira escancarada, sarcástica, ridente dos conteúdos sociais não
aproxima Lima Barreto da cultura popular, mas também recoloca em outros termos a crítica
aos conteúdos sociais trabalhados anteriormente por Machado de Assis. Roberto Schwarz
observa que a
fórmula narrativa de Machado consiste em certa alternativa sistemática de
perspectivas, em que está apurado um jogo de pontos de vista produzido pelo
funcionamento mesmo da sociedade brasileira. O dispositivo literário capta e
dramatiza a estrutura do país, transformada em regra da escrita.” (SCHWARZ, 2000,
p. 11.)
A propósito das dificuldades de percepção do viés nacional, ou seja, a interiorização
do país e do seu tempo histórico – transformado em forma, por Machado, o diferencia
totalmente de Lima. Esta diferença pode ser considerada menos de conteúdo e mais de forma.
Notamos que esta diferença esna base da sustentação teórica de Antônio Cândido, Marcuse
e retomada por Schwarz. Consideramos que este viés discursivo, este ponto de vista que
58
sustenta análises críticas não pode invalidar outras maneiras de representar o tempo e o
espaço senão da transformação daqueles em um paradigma formal acabado.
Sabemos que a imparcialidade é impossível, mas sabemos também que podemos ser
parciais em certas circunstâncias. A propósito das dificuldades próprias dos discursos,
diríamos que sua força está na riqueza tensa de seus cruzamentos. Assim, Lima Barreto ao
retratar a realidade brasileira de modo caricato (sabemos que esta maneira de representação
desqualifica qualquer tipo de representação, seja ela literária ou não), não o fez entrar na
galeria dos grandes. Consideramos, no entanto, que é justamente neste tipo de representação
que reside a originalidade de Lima, porque além de abrir caminhos para o modernismo no
Brasil, o cruzamento da representação brasileira de sua obra com a de Machado de Assis nos
a “medida” do Brasil do final do século XIX e início do XX. Se um foi revolucionário
“dentro da ordem”, o outro queria subvertê-la pelo menos literariamente “fora da ordem”.
59
SEGUNDA PARTE
60
A troça e a maior arma de que nós podemos dispor e sempre que a pudermos
empregar, é bom e é útil.
Nada de violências, nem barbaridades. Troça e simplesmente troça, para que
tudo caia pelo ridículo.
O ridículo mata e mata sem sangue.
É o que aconselho a todos os revolucionários de todo o jaez.
Lima Barreto
61
CAPÍTULO I
A carnavalização em Bakhtin: aporte teórico na análise de Numa e a Ninfa
________________________________________________________________
Era uma vez um czar naturalista
Que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas
e andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade.
Carlos Drummond de Andrade
A discussão até então limitou-se à proposta de reafirmar a importância do texto
literário como um dos elementos essenciais para a compreensão mais ampla de realidades
histórico-sociais determinadas.
Vimos como a força imaginativa e libertadora em Goethe e Shakespeare sinalizaram
novas possibilidades de análise sócio-econômica que, reelaboradas no campo científico por
Marx, possibilitara o avanço do pensamento Ocidental do Século XIX. Vimos também como
Lima Barreto foi um renovador no campo da linguagem literária no Brasil. Esta renovação
nos foi considerada como a pedra de toque” para o movimento literário brasileiro que teve
seu divisor de águas no movimento modernista de 22. Supomos que este mérito esteja
relacionado à sua aproximação com a cultura popular. Essa hipótese nos levou a uma releitura
da obra de Lima à luz da teoria da carnavalização proposta por Bakhtin. Essa aproximação fez
com que Lima Barreto se utilizasse de elementos literários em contraponto ao que se
convencionou aceitar como sagrado” em seu tempo. Este fato nos impôs certos problemas
de ordem conceitual e nos levou a uma breve digressão, sem muitas pretensões, em torno da
ideologia e teoria literária. Breve porque ele o é objeto de nossa investigação, mas compõe
“um pano de fundo” a balizar nossa trajetória.
62
Pensamos que as incursões críticas elaboradas por Bakhtin sobre cultura popular
poderão nos ajudar em nosso objetivo, que é o de recolar Lima Barreto em seu “devido lugar”
e reafirmar o valor do texto literário como fonte de motivação para os estudos das ciências
sociais.
Vamos, então, à proposta de Bakhtin.
Em seus estudos sobre Rabelais, Bakhtin propõe um desafio: “decifrar” as imagens de
Rabelais a partir de um estudo em profundidade das características do riso popular na Idade
Média e Renascimento. Isso porque, segundo ele, o riso popular e suas formas constituem o
campo menos estudado da criação popular” (BAKHTIN, 2002, p. 3), face à sua quase
exclusão na época pré-romântica e romântica. A raiz do riso e do humor na praça pública é
retomada por Bakhtin com intuito de alargar as múltiplas facetas das manifestações da cultura
popular. Para tanto, ele subdivide essas manifestações em três grandes categorias:
1 As formas dos ritos e espetáculos (festejos carnavalescos, obras cômicas representadas nas
praças pública, etc.)
2 Obras cômicas verbais (inclusive as paródias) de diversa natureza, orais e escritas, em latim
ou em língua vulgar.
3 Diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro (insulto, juramentos,
fanfarronices populares, etc.)
As formas dos ritos e espetáculos cômicos na vida do homem medieval ultrapassara,
segundo Bakhtin, o carnaval propriamente dito. Celebravam-se também a ‘festa dos tolos’, a
‘festa do asno’, o ‘riso pascal’; as ‘festas do templo’, as ‘festas agrícolasvindimas e as
cerimonias e ritos civis da vida cotidiana.
Assim, os cerimoniais oficiais e sérios ligados à Igreja e ao Estado feudal eram sempre
parodiados e ofereciam, à maneira cômica, uma outra visão de mundo, do homem, das
63
relações humanas avessas ao mundo oficial, ou seja, ao poder da Igreja e do Estado. A visão
do mundo o oficial, construída à margem da oficial, a partir do riso, criava em ocasiões
especiais, segundo Bakhtin, uma espécie de dualidade do mundo”, uma segunda vida que se
não for devidamente examinada, a força da cultura na Idade Média, tal como seu processo
evolutivo ocidental, torna-se incompreensível. “A segunda vida, o segundo mundo da cultura
popular, constrói-se de certa forma como paródia da vida ordinária, como um mundo ao
revés” (BAKHTIN, 2002, p. 10)
A percepção dual do mundo e da vida humana – o sério e o cômico – segundo
Bakhtin, é anterior à civilização primitiva e era igualmente sagrada e oficial. No entanto, ao se
institucionalizar o regime de classes e do Estado, diz ele,
[ ] Torna-se impossível outorgar direitos iguais a ambos os aspectos, de modo que as
formas cômicas [ ] adquirem um caráter não oficial, seu sentido modifica-se, [ ] para
transformarem-se finalmente nas formas fundamentais de expressão da sensação
popular do mundo, da cultura popular. É o caso dos festejos carnavalescos no mundo
antigo, sobretudo as saturnais romanas, assim como os carnavais da Idade dia
que estão evidentemente muito distantes do riso ritual que a comunidade primitiva
conhecia. (BAKHTIN, 2002, p. 5.)
Na Idade Média o princípio cômico das formas carnavalescas são exteriores à Igreja -
paródia ao culto religioso e elas são libertadoras, porque o carnaval era uma forma de
existência – uma segunda vida – com suas leis próprias – leis da liberdade – que propriamente
funcionavam como uma espécie de fuga do mundo oficial. O carnaval possibilitava a
ressurreição e a renovação, uma festa que o povo temporariamente vivia no reino “utópico da
universalidade, igualdade e abundância” (BAKHTIN, 2002, p. 8). No entanto, o que
caracterizou a cultura da Idade Média foi o tom rio. O riso estava relegado para fora de
todos as esferas da ideologia. Ele teve sua existência paralela e tolerada pela Igreja em épocas
e espaços determinados. A efemeridade do riso festivo intensificava ainda mais a fantasia - a
renovação das vestimentas e da personagem social, a permutação do superior para o inferior
hierárquico -, radicalizava a utopia geradas nesse período específico; enfim, o mundo que se
64
apresentara através do riso era um mundo festivo, inacabado, dominado pela alegria e
renovação. Era, portanto, um riso que tinha um valor positivo, regenerador e criador. Em
conseqüência o carnaval produziu uma forma de linguagem ambivalente que nega e afirma,
amortalha e ressuscita ao mesmo tempo. “A negação”, segundo Bakhtin, “é quase sempre
alheia à cultura popular” (BAKHTIN, 2002, p.10)
Quanto às formas verbais escritas, estas, segundo Bakhtin, apesar das variações
sofridas no decorrer do milênio, manteve em maior ou menor medida a linguagem das formas
carnavalescas, a saber, representaram literariamente a ousadia ambivalente do riso festivo de
tipo carnavalesco. Geralmente esta literatura parodiava a ideologia oficial da igreja,
travestindo os elementos sagrados do culto religioso liturgias, cantos, orações, etc em
elementos ridentes. Outras variedades da literatura cômica latina são: as crônicas paródicas,
as disputas e diálogos paródicos, etc.
Igualmente rica, ainda segundo Bakhtin, era a literatura cômica em língua vulgar. Nela
o que predominava era o escarnecimento “ao regime feudal e sua epopéia heróica”.
(BAKHTIN, 2002, p. 13)
A outra forma de expressão cômica destacada por Bakhtin é a utilização de uma
linguagem grosseira e, sobretudo, blasfematória da praça pública durante o período do
carnaval. Esta linguagem durante este período da festa adquire um novo sentido. E é
justamente essa dinâmica que contribui para que os palavrões criassem uma “atmosfera de
liberdade e do aspecto cômico secundário do mundo” (BAKHTIN, 2002, p. 15).
Bakhtin, ao revisar as três principais formas de expressão da cultura cômica popular,
teve como propósito compreender a lógica original desta cultura para analisar as obras de
Rabelais à luz do que provisoriamente Bakhtin chama de realismo grotesco. Nesse sentido, as
imagens rabelesianas compreendidas a partir de outro parâmetro que não a “estética do belo”,
ganham outros sentidos. No sistema de imagens da cultura cômica popular realismo
65
grotesco -, o princípio material e corporal é extremamente exagerado. Esse exagero não é só
negativo, ao contrário, o riso degrada, mas também afirma e regenera.
9
Geralmente as
imagens do material corporal estão relacionadas ao baixo, ao plano da terra, do corpo, ou seja,
a necessidades alimentares e biológicas: o coito, a gravidez, o parto, a velhice, etc, em
oposição ao ideal espiritual, abstrato, do corpo perfeito e acabado. O riso na cultura cômica
popular é sempre ambivalente, universal, festivo e utópico universal no sentido em que o
riso não é privilégio do indivíduo ou de uma classe. O porta-voz do riso é o povo.
Estes traços no Renascimento, segundo Bakhtin, estão dispersos, desunidos,
individualizados, no entanto, sua vinculação à cultura cômica popular permanece como uma
maneira específica unidade contraditória de percepção do mundo. Contrariamente nas
grosserias contemporâneas não resta quase mais nada desse sentido ambivalente e
regenerador” isto é, positivo do riso grotesco da Idade Média e do Renascimento. O riso
contemporâneo limita-se à “negação pura e simples, o cinismo e o mero insulto.” (BAKHTIN,
2002, p. 25)
Essa dinâmica do riso, dinâmica “conceitual” por assim dizer, obedece à própria
dinâmica histórico-social e política. A literatura no Século XVII e XVIII perdeu o elo
essencial do ‘mundo’ grotesco, descaracterizou-se, perdeu o sentido primeiro das imagens de
um mundo unificado e universalizado pela utopia de uma segunda vida. Ela seguiu a história
do “homem”, ou seja, individualizou-se, fragmentou-se, descobriu o profundo, o complexo e
inesgotável universo subjetivo humano, descobriu também a angústia da morte anunciada, o
medo da vida proclamada pela razão. No entanto, o movimento histórico é uma das condições
para nos reafirmarmos, mesmo que contraditoriamente, isto porque o êxtase humano pela
“origem” das coisas ainda permanece. É nesta tentativa de busca da “origem” do sentido
9
São as grosserias blasfematórias dirigidas às divindades que interessam especialmente a Bakhtin, visto que elas
são ambivalentes, ou seja, degradam e mortificam, simultaneamente, regeneram e renovam. Bakhtin considera
que a obra de Rabailais representa o apogeu do realismo grotesco do Renascimento.
66
literário de percepção do mundo grotesco, tal como suas variantes históricas, tão bem
formuladas por Bakhtin, que tentaremos uma releitura mais próxima de Lima Barreto.
Estudar este autor à luz das regras literárias modernas como ficou evidente na recepção
crítica a Lima Barreto – ou seja, obedecer a critérios do que se convencionara de “boa
literatura” em sua época não tinha nada a ver com a sua proposta literária. Podemos dizer que
Lima Barreto foi o porta-voz literário da constituição histórico-social e política brasileira à
moda popular.
10
Aliás, era seu objetivo atingir o maior público possível num país de maioria
de analfabetos. Por isso, ele utilizou-se de recursos de origem popular, carnavalizados por
assim dizer, recursos que só podem ser totalmente reveladores à luz da história de um
realismo grotesco, uma estética que pretendeu ser tão séria quanto à história clássica. Neste
sentido, a produção de Lima Barreto escapa ao critério unívoco de interpretação literária. O
universo literário tem uma dimensão plural, e convive no espaço e tempo histórico diferentes
formas de escrituras. São justamente as diferenças que constituem para o olhar do sociólogo a
movente riqueza das possibilidades e manifestações culturais. São essas possibilidades vividas
ou imaginadas que permitem o retorno renovado, que no presente apresentam-se como
improváveis, mas que o devir histórico muitas vezes encarrega-se de torná-las prováveis.
Quem não se lembra de experiências literárias que antes fantásticas, “hoje”
apresentam-se como realidades concretas? Isso não implica que a “imaginação” guarda
consigo os germes de “verdades” futuras? Ainda, não é fato que a ciência guarda consigo uma
boa dose de imaginação?
Podemos dizer que respostas a estas perguntas, fomentadas no próprio Lima
Barreto. Por ora,o entraremos nestes detalhes, porque eles ultrapassam nosso objeto.
Enfim, a literatura constitui um conhecimento humano que é “real- histórico” e virtual” ao
mesmo tempo. As trajetórias de Bakhtin, quanto às suas análises sobre a carnavalização têm
10
Lembremos também Manuel A. de Almeida, em Memórias de um Sargento de Milícia.
67
o mérito de fornecer “pistas” para uma leitura - como disse - mais aproximada de Lima
Barreto, e que sumariamos assim:
A obra de Lima Barreto se insere dentro da tradição da cultura popular, cultura
popular no sentido de um discurso que representa os modos de ser de um povo, com suas
manifestações políticas, suas relações familiares, suas crises existenciais, seu grito abafado,
sua utopia, a qual gira no interior de um espaço extremamente limitado e que se sustenta por
meio de um discurso caracterizado pela estética da paródia, a saber, por um discurso que
rejeita a fria engenharia da linha clássica, apolínea - à moda de Machado de Assis – e que não
tem nenhum receio de ser julgado como literatura baixa, tais como aquelas descritas por
Bakhtin, sobretudo a de Rabelais.
Face à proposição acima, vamos agora ao centro da questão temática proposta nesta
dissertação: Numa e a Ninfa, de Lima Barreto. Para tanto, procuramos fazer um contra-ponto
entre Vidas Paralelas, de Plutarco e aquela obra, ressaltando sobretudo o tema da paródia.
68
Para os parodistas, tudo, sem a menor exceção, é cômico; o riso é tão universal
como a seriedade; ele abarca a totalidade do universo, a história, toda a sociedade, a
concepção do mundo. É uma verdade que se diz sobre o mundo, verdade que se
estende a todas as coisas e à qual nada escapa. É de alguma maneira o aspecto
festivo do mundo inteiro, em todos os seus níveis, uma espécie de segunda revelação
do mundo através do jogo e do riso.
[ ] essa tradição o desaparece, ela continua a viver e a lutar por seu direito à
existência, tanto nos gêneros canônicos inferiores (comédia, sátira, fábula) como
principalmente nos neros não canônicos (romance, a forma particular do diálogo
de costumes, os gêneros burlescos, etc); ela sobrevive também no teatro popular.
(Tabarin, Turlupin, etc.). Todos esses gêneros adquiriam em grau mais ou menos
elevado um caráter oposicionista, o que permitiu que a tradição grotesca penetrasse
neles.
Mikhail Bakhtin
69
CAPÍTULO II
Numa e a Ninfa: elementos da paródia
[] ele não largava o fogo de gelo daquela idéia.
J. Guimarães Rosa
Para caracterizar a paródia entendida no sentido estrito que Bakhtin ao termo, ou
seja, a inversão, aquilo que retoma e inverte como um dos elementos do realismo grotesco,
partimos do pressuposto que Lima Barreto inspirou-se na narrativa da vida de homens
ilustres, descritas comparativamente por Plutarco em Vidas Paralelas
11
, em especial da vida
de Numa. Por que Vidas Paralelas? Porque Plutarco compara o modelo de virtude dos heróis
que fizeram a história da Grécia e de Roma a fim de traçar as semelhanças e diferenças entre
seus povos, traçar seus costumes, suas instituições políticas e religiosas, etc. Assim, ele busca
na natureza, a essência por assim dizer, destes dois povos. Ao confrontar sob o pano de fundo
histórico a biografia de homens ilustres do mundo grego e romano, Plutarco nos oferece um
quadro de normas, valores e de critérios morais que se pretende universalizante – uma espécie
de modelo de virtude humana necessária para um bom governador do povo.
O grande propósito de Vidas Paralelas é tornar evidente que, apesar das diferenças,
uma identidade profunda que permite a comparação dos heróis e de seus grandes feitos. O que
identifica os grandes homens são os valores morais, sobretudo a virtude. Esta é um valor que
sustenta um bom governante e por meio dela, ele conduz o povo à conquista da civilização.
Plutarco mostra-se preocupado em sua obra com as questões humanas, em qual o caminho
que os homens devem trilhar para atingir a maior felicidade. Como diz Jean Sirinelle acerca
da obra de Plutarco: “Le mot important [ ] qui caractérise le mieux l’oeuvre de Plutarque:
l’humanité, l’amour des hommes.
12
(PLUTARQUE, 2001, p. VIII.)
Outra observação em
Plutarco é que as fronteiras entre a história e o ficcional, são muito tênues. Embora Plutarco
11
A data provável que Plutarco começou a escrever Vidas Paralelas são os anos 99-100.
70
coloque em dúvida certos mitos, os seus heróis são representações da sabedoria divina, são
homens superiores, verdadeiros deuses da terra. A relação entre história e ficção literatura
são muito antigas. Ela pode ser compreendida a partir da utilização de recursos narrativos
comuns e que envolvem escolhas, valores consagrados dentro de uma dada comunidade. A
autonomia da história, enquanto “narrativa” científica e seu conseqüente distanciamento da
ficção não diminui a contribuição para a inteligibilidade de ambas. A história político-social
brasileira não ficou alheia às influências do pensamento histórico de Plutarco. Como vimos, a
história em Plutarco é descrita a partir do grande herói, é a ele que por suas virtudes cabe a
arte de governar, de elaborar as leis, as regras morais que melhor conduzem à paz, à felicidade
e o amor dos homens. Encontramos esta concepção de história marcadamente em Gonçalves
de Magalhães:
O mérito da história não consiste no encadeamento dos fatos, nomes e datas. E a
isso não se reduz o nosso historiador. Consiste mais que tudo na justa apreciação dos
homens e dos acontecimentos, e na melhor lição moral e política que possa servir ao
aperfeiçoamento da ordem social, impedindo-a que recaia nos mesmos erros do
passado. O historiador de ser filósofo para bem indagar e julgar; poeta para bem
sentir, moralista para bem doutrinar, e político para bem aplicar. (MAGALHÃES,
G., apud: CEZAR, 2002, p. 157.)
Segundo Cezar, esta concepção de história será adotada pelo Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro (IHGB) e a partir dela se tentará criar um “modelo” de nacionalidade,
ou seja, o grande homem virtuoso, conhecedor da honra e de suas responsabilidades públicas,
moldando-se numa espécie de espelho para o povo, fonte inspiradora de formação de
cidadania. Cezar diz que o grande projeto do IHGB será a biografia de seus membros,
escolhidos entre aqueles de notório saber. Plutarco em Vidas Paralelas
é figurino que se casa
com os propósitos do IHGB, sua justificação erudita, pois acredita-se que o Brasil possui
grandes homens que possam servir como modelos de grandes virtudes e cabe ao historiador
brasileiro preservá-los e apresentá-los ao povo. E como escreve o primeiro secretário do
12
A mais importante palavra que caracteriza a melhor obra de Plutarco: a humanidade, o amor dos homens.
71
IHGB, Januário da Cunha Barbosa: “Este ramo de estudos, tão necessário à civilização dos
povos, faltava aos nossos patrícios.” (CESAR, 2002, p. 235.)
Resta-nos saber se a virtude mais que a glória foi a preocupação primeira de nossos
heróis que desempenharam um papel importante na organização do Estado brasileiro. O que
Lima Barreto percebera é que havia uma grande distância entre o modelo” virtuoso do herói
de Plutarco e do candidato a herói à brasileira, às vezes tão sarcasticamente representado em
sua obra. A paródia fora um recurso que Lima se utilizou como crítica social. Ao parodiar um
herói de Plutarco – no caso Numa Pompílio – ele revela os meandros da vida política nacional
que, ao invés de promover a “felicidade” dos homens, como disse Plutarco e muito mais tarde
Bossuet, promoveria exclusivamente a felicidade de seus dirigentes e comparsas. Isso não
quer dizer que Lima não reconheceu o talento de grandes dirigentes ou intelectuais. O que ele
percebe de maneira geral é que os nossos dirigentes são um arremedo de herói e bate de
frente com a concepção da história tecida por grandes homens, mas muito mais por certas
condições objetivas independentes da vontade dos povos. Se Lima Barreto não tinha isso
ainda claro na cabeça, pelo menos, por meio da paródia, tinha claro que os “heróis” narrados
pelo IHGB não explicavam a história brasileira, apenas faziam a sua sombria história pessoal.
E
como isso procede em sua obra?
A primeira brecha para caracterizar a paródia encontra-se no título da obra de Lima
Numa e a Ninfa -. Numa Pompílio é um herói de Plutarco e uma personagem do mesmo nome
em Lima Barreto. A ninfa em Plutarco é uma referência à ninfa Egéria, deusa que segundo a
lenda amava Numa e o aconselhava fazendo dele um homem venturoso, “instruído nas coisas
divinas.” (Plutarco, 1995, p. 136.) A ninfa em Lima Barreto é Edgarda, sua esposa, que o
aconselhava, fazendo dele um homem “instruído nas coisas políticas.”
72
Com respeito a Numa de Plutarco
13
, após deliberação entre os romanos e sabinos
cidadãos incorporados ao território de Roma designaram-no rei de Roma. Quais foram as
condições que levaram sabinos e romanos a deliberar a favor de Numa?
[Numa] naturalmente virtuoso, mercê de um caráter equilibrado, aperfeiçoou-se
mais ainda no exercício da austeridade e da filosofia. Desembaraçara a alma o
apenas das tendências comumente recriminadas, mas também daquelas que os
bárbaros soem estimar, a saber, a violência e a cupidez. Julgava que a verdadeira
coragem consiste em reprimir as paixões sob o império da razão. Seguindo esse
princípio, banira de sua casa o luxo e a magnificência, e todos, estrangeiros e
cidadãos, achavam nele um juiz e conselheiro inatacável. Não utilizava seus ócios na
aquisição de facilidades ou riquezas, preferindo honrar os deuses e elevar-se, pela
razão, à contemplação de sua natureza e poderio. Tamanha nomeada adquiriu que
Tácio, o rei colega de Rômulo, escolheu-o para marido de sua filha única, Tácia.
Entretanto, Numa não ficou muito orgulhoso dessa união e não foi morar na casa do
sogro; permaneceu na sua, em terras sabinas, a cuidar prestimosamente de seu velho
pai. A própria Tácia acabou preferindo a tranqüilidade da vida recolhida que levava
com o marido aos esplendores e glórias que teria podido gozar em Roma em virtude
da posição de seu pai. (PLUTARCO, 1995, p. 135/136.)
Numa é então convidado à realeza face às suas qualidades virtuosas. Mas ele tentou
afastar de si “o ônus da realeza”, até ser convencido pelo seu pai e Márcio a aceitá-la:
Não fujas, não te afastes do poder, que, para o homem sábio, constitui o âmbito das
belas e grandes ações. [ ] Quem sabe se a despeito das suas vitórias, o povo não está
cansado da guerra e, saciado de triunfos e despojos, não sonha com chefe pacífico e
amante da justiça para viver tranqüilo sob o império de boas leis? (PLUTARCO,
1995, p. 139.)
Dentre inúmeras reformas voltadas para o bem da população, destacamos aquela que
diz respeito à terra por ser recorrente na obra de Lima Barreto.
Numa dividiu-o [território de Roma] entre os cidadãos desapercebidos para suprimir
a indigência, que arrasta necessariamente para o mal e voltar o pensamento do povo
para a agricultura, pois os costumes se abrandam no trato com a terra. Não , em
verdade, ocupação que engendre um amor tão vigoroso e duradouro pela paz como a
vida no campo. (PLUTARCO, 1995, p. 154.)
Em contraposição ao Numa de Plutarco, eis como Lima Barreto traça o perfil e as
condições que levaram o “seu” Numa a participar do governo.
A desfaçatez judiciária de Numa dava medida do que ele seria capaz de fazer
quando o solicitassem grandes ambições. [] O processo da “Boa Vista” indicava bem
a alma de seu chefe de polícia. Flores, o coronel, por uma questão de gado, invadiu
13
Numa, governador de Roma, ano 714/641 a. C.
73
certa vez a estância do rival, matando-lhe filhas, filhos e criados e deixando que a
horda que o acompanhava saqueasse casas, moinhos, currais e estrebarias. [] Numa,
apesar das testemunhas, apesar
de todas as provas, despronunciou flores e seus
sequazes. (BARRETO, 1956, p. 36)
[]
Pouco tempo depois de eleito deputado estadual, Numa Pompílio de Castro casara
com a filha de Neves Cogominho. (BARRETO, 1956, p. 37)
[Numa] esperava [ ] que o casamento lhe desse o definitivo impurrão na vida.
Aproveitara sempre o seu estado civil para encarreirar-se. (BARRETO, 1956, p. 34)
[Como deputado] passou todos esses longos meses a dormitar na sua
bancada [] votando automaticamente com o der e designado pelos informados
como o genro do Congominho’ (BARRETO, 1956, p. 25) [] [pois] havia [em
Numa] tão somente a preguiça, preguiça física, preguiça mental. (BARRETO, 1956,
p. 51) [] O deputado Pieterzoon [ ] disse certa vez: - o Numa ainda não ouviu a
ninfa; quando o fizer ai de nós! [ ] Foi, portanto, com extraordinária surpresa
que se viu o deputado Numa tomar a palavra e fazer um discurso valioso.
Parecia um milagre ver aquele sujeito tão mudo, tão esquivo,o aparentemente sem
idéias, lidar com as palavras, organizá-las convenientemente exprimindo-se com
bastante lógica. (BARRETO, 1956. p. 25/26.)
[] Pieterzoon, entre os colegas dissera mesmo: vocês admiram-se? Não é coisa do
outro mundo. O Numa lá de Roma acertava
quando consultava a Ninfa; com este dá-
se a mesma coisa. (BARRETO, 1965, p. 262
)
Mas eis então a revelação surpreendente:
[Numa revelou para Edgarda] a necessidade que havia de fazer um discurso no dia
seguinte. A mulher concordou e dispôs-se a compô-lo completo e perfeito. [] O
deputado foi dormir e a mulher trancou-se na biblioteca trabalhando na oração do
marido. [] Dormiu, mas pelo meio da noite despertou. [] Pensou em ver a mulher. []
Seria uma surpresa. As mpadas dos corredores não tinha sido apagadas. Foi. Ao
aproximar-se, ouviu um cicio, vozes abafadas... Que seria? A porta estava fechada.
Abaixou-se e olhou pelo buraco da fechadura. Ergueu-se imediatamente... Seria
verdade? Olhou de novo. Quem era? Era o primo... Eles se beijavam, deixando de
beijar escreviam. As folhas de papel eram escritas por ele e passadas logo a limpo
pela mulher. Então era ele? Não era ela? Que devia fazer? Que descoberta! Que
devia fazer? A carreira...o prestígio... senador... presidente... Ora bolas!
E Numa voltou vagarosamente, ante pé, para o leito, onde sempre dormiu
tranqüilamente. (BARRETO, 1956, p. 263, 264, 265.)
Procuramos caracterizar por meio dos textos de Plutarco e Lima Barreto a paródia
como inversão um dos elementos do processo de carnavalização segundo a concepção de
Bakhtin.
74
Vimos que Numa de Plutarco é um herói face aos seus grandes feitos assegurado pelo
primado da virtude. Ele é naturalmente virtuoso
14
, a sua virtude está relacionada ao “exercício
da austeridade e da filosofia”; ao equilíbrio de caráter “reprimir as paixões sob o império da
razão -; a prática de boas ações todos, estrangeiros e cidadãos acham nele um juiz e
conselheiro inatacável” – e sobretudo, à vida política. Numa ao ser nomeado rei de Roma teve
por fim a união, a paz e a justiça entre os homens, assegurando assim um longo reinado que,
guiado por mão divina” Egéria e pelo espírito filosófico, garantiu o primado da virtude
sobre o vício e assegurou o justo para a sociedade humana, ou seja, a preservação da
sociedade política, a felicidade e as leis que o compõem.
A ética do herói em Plutarco relaciona-se a um estilo de vida, uma estética da
existência que consiste na educação dos desejos pela razão para obter uma vida moderada,
justa, bela e feliz. O bom rei, neste contexto, será aquele que introduz a prática destes valores
na cidade, tornando-a bela, justa, pacífica, ordenada tal como o cosmo. Desta forma uma
união perfeita entre governo e governados, afastando o perigo que as injustiças possam trazer
ao soberano. Em suma, Numa é a imagem do rei ideal grego, pois possui a virtude intelectual
centrada na razão, e a virtude moral adquirida pelo bom bito. O bem, o justo, o belo
contrapõem-se ao mau, ao injusto, ao feio. Estas questões são o registro da Ética na
antigüidade clássica e que aparecem na conduta humana do herói de Plutarco.
Em Lima Barreto, Numa é o “herói sem nenhum caráter” - usando uma expressão
lapidar de Mário de Andrade -, é o avesso de Numa de Plutarco.
Numa Pompílio de Castro caracteriza-se pelo vício. O vício entendido como oposição
à virtude, à razão e à sabedoria à moda antiga. Numa possui um caráter vicioso porque as suas
ações o estão voltadas para o justo, ao contrário, elas visam apenas seu próprio benefício, a
14
Aristóteles em Ética a Nicômaco (Livro II, 1973, p. 267, Os Pensadores) diz que a virtude é adquirida pelo
hábito, “que nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza.”
75
saber: Numa desmoralizou a Justiça ao despronunciar Flores sob provas de seu ato criminoso;
casou-se com Edgarda para viver profissionalmente de genro. Era marido por emprego”; o
legislava, não lhe despertava nenhum interesse pela filosofia ou qualquer espécie de
austeridade era preguiçoso física e mentalmente -; não conseguia por si pronunciar um
discurso qualquer. Quando pensa receber ajuda de sua “Ninfa” e constata que a ajuda provém
do amante de sua mulher Edgarda -, não hesita em pensar na carreira, no prestígio que o
casamento lhe trouxera e que ainda lhe traria. Por isso é que ele sempre dormiu
“tranqüilamente”.
Num pequeno parêntese, devemos lembrar que o conceito de virtude muda, sobretudo
a partir de Maquiavel. A virtude se desvincula dos critérios morais e passa a ser o êxito de
uma ação no momento exato, ou seja, no momento em que o conhecimento da
oportunidade pelo príncipe de como conquistar ou manter-se no poder. Maquiavel destaca o
“povo” como suporte para um bom governo, “é necessário a um príncipe que o povo lhe vote
amizade, do contrário fracassará nas adversidades” (MAQUIAVEL, 1973, p. 47.)
Isto não quer dizer que o príncipe deva exercer a profissão da bondade, porque se o
fizesse estaria arruinado:
Assim, é preciso a um príncipe para se manter no poder, que aprenda a ser mau e
que se valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade. [ ] Como é difícil
reunir ao mesmo tempo as qualidades [ser amado e temido] que dão aqueles
resultados [manter ditos unidos], é muito mais seguro ser temido que amado,
quando se tenha que falhar numa das duas. [ ] A prudência está justamente em saber
conhecer a natureza dos inconvenientes e adotar o menos prejudicial como sendo
bom. (MAQUIAVEL, 1973, p. 70, 76, 101)
Em Maquiavel, as questões tais como o bem, o mau, o justo, o injusto, etc, não se
colocam, desaparecem; assim como o sentido da virtude centrada na moral grega.
O grande valor que se proclama a partir da Revolução Francesa é o valor da forma
democrática. Este valor fundamenta-se no direito à igualdade e à liberdade do indivíduo. O
76
deslocamento do conceito de virtude grego como um valor “ideal” para uma forma
democrática suprema a um governo, desemboca contemporaneamente num cinismo que tem
como pano de fundo a garantia da liberdade e da igualdade para a “humanidade”. Sabemos
que a forma democrática pressupõe que todos os homens são iguais perante a lei, todos têm o
mesmo direito na democracia.
É claro que isto é uma abstração, pois a lei não garante que os homens, face a
determinadas circunstâncias históricas e sociais, venham a ter as mesmas garantias de
igualdade perante a proclamada lei. Por isso, paradoxalmente, num mundo tecnicamente
globalizado pela rede comunicativa, econômica e cultural, os homens em sua maioria
identificam-se menos com os valores democráticos e mais com a miséria econômica, cultural
e, porque não, com a “miséria da própria forma democrática” que não consegue garantir
brechas para promover uma vida mais digna para a grande massa humana qualificada como
povo. Os grandes valores, reconhecidamente importantes, da forma democrática são
conquistas de uma minoria que para a grande maioria mais parecem uma fantasia.
Portanto, o campo do poder político, da vida pública, do mando, revelam-se repletos
de antagonismo; são campos em lutas que idealmente se convergem no interesse pela
liberdade e igualdade dos homens, mas sutilmente os prendem numa teia invisível.
Metaforicamente somos as moscas que acumulados, lentamente seremos devorados. A obra
de Lima Barreto está toda marcada por essas questões, ou seja, questões ligadas à moral, aos
costumes, aos vícios da sociedade brasileira.
Fechemos o parênteses e voltemos a Lima Barreto.
No que diz respeito à paródia, as imagens carnavalizadas em Lima Barreto são marcadas
pelo exagero. Este exagero afasta-se da ambivalência, da segunda vida da praça pública
medieval, ou seja, da coexistência do negativo e do positivo, da morte que dá a vida. Em Lima
77
o riso está marcado pelo sentido moral, por isso, expressa apenas o seu lado negativo que vai
da ironia à caricatura.
A primeira imagem grotesca que nos chama a atenção em Numa e a Ninfa é a imagem
do ato de beber. A personagem Lucrécio Barba-de-Bode ao pedir um chope ao copeiro diz:
Dá-me uma “joça” dessas!
Sorveu o copo quase inteiramente de um trago
[ ] Mais um chope. [ ]
Falando e bebendo, Lucrécio sorveu uma dezena de copos de cerveja
[ ] Já bebeste como diabo, hem?
Veio-lhe um forte vômito e [ ] despejou-o ali mesmo, borrifando o peito do famoso
senador e a barra das saias daquelas grandes damas. Lançou, lançou tudo o que tinha
no estômago. (BARRETO, 1956, p. 132/133/134)
Segundo Bakhtin, “o comer e o beber são uma das manifestações mais importante da
vida do corpo grotesco” (BAKHTIN, 2002, p. 245). No entanto, o banquete estava ligado às
festas cômicas populares. Bakhtin também destaca que o comer e o beber no sistema de
imagens antigas estavam ligados à vitória do homem no mundo do trabalho, essa vitória era
coletiva e coletivamente degustava-se o mundo para renovar o corpo. O beber, porém, em
Lucrécio Barba-de-Bode se afasta da alegria da festa popular e não significa o coroamento da
absorção do mundo pela boca
15
para a renovação da vida. O vômito coincide com o momento
discursivo, ou melhor, ele interrompe este momento. Metaforicamente podemos dizer que um
mundo é devolvido pela excrescência, ele é jogado por terra porque não lhe pertence e o outro
(discurso) não chega a se constituir. Sobra então a imagem do ridículo que revela apenas uma
personagem grotesca sem saídas para reinventar-se. Neste sentido o exagero da imagem se
limita ao aspecto negativo. O comer e o beber tais como aparecem em Lucrécio Barba-de-
bode está preso ao estreito limite do gozo individual no interior de uma casa, ao contrário do
15
Em Bakhtin vimos: depois do ventre e do membro
viril
, é a boca que tem o papel mais importante no corpo
grotesco, pois ela devora o mundo. (p. 277)
78
banquete em Rabelais. Por isso em Lima Barreto a imagem aparece descaracterizada de um
valor simbólico universal.
Quanto ao vocabulário, a expressão “já bebeste como diabo”
16
, “joça”, o cognome
“Barba-de-Bode”, fazem parte da linguagem familiar vulgar que resistiu à praça pública e
sobrevive entre nós.
Ainda em relação às imagens marcadas pelo exagero, destacamos a personagem
Xandu. Este hiperboliza o seu trabalho cuja ação se limita a assinar decretos, regulamentos e
avisos com o intuito de resolver “os problemas” do país. O efeito que se tem é extremamente
irônico em relação à irregularidade da ação política brasileira. Vejamos:
Não sabe como ando atarefado. Hoje assinei 1.557 decretos...Sobre tudo! Sobre
tudo! Neste país tudo está por fazer! Tudo! Em dias, tenho feito mais que todos os
governos deste país. assinei 2.725.832 decretos, 78.345 regulamentos,
1.725.384.671 avisos... Um trabalho insano! (BARRETO, 1956, p. 160)
E mais adiante temos:
O que nos falta é o frio. [ ] E, se quero ser sempre ativo, tomo todo dia um banho de
frio. Sabe como? Tenho em casa uma câmara frigorífica, oito graus abaixo de zero,
onde me meto todas as manhãs. Precisamos de atividade e o frio nos pode dar.
Penso em instalar grandes câmaras frigoríficas nas escolas, para dar atividade aos
nossos rapazes. O frio é o elemento essencial às civilizações... [ ] Um dia em que
não o faço, volto a ser o brasileiro mole que os senhores conhecem. [ ] Este Brasil
precisa de frio, muito frio. (BARRETO, 1956, p.161/185)
Nem mesmo Floriano escapa da pecha da preguiça:
Dessa sua preguiça de pensar e de agir, vinha o seu mutismo, os seus mistérios
monossílabos, levados à altura de ditos sibilinos [ ] Essa doentia preguiça, fazio-o
16
Bakhtin faz referência ao uso do termo diabo do seguinte modo: A diabrura era parte do mistério que se
passava na praça blica. [ ] Mas o costume permitia que, antes da representação, às vezes mesmo alguns dias
antes ‘os diabos, isto é, os interpretes da diabrura, corressem pela cidade e pelas aldeias vizinhas com suas
roupas de cena [ ] Um ambiente de liberdade carnavalesca desenfreada criava-se assim ao redor deles. Os
“diabos”, na maior parte do tempo (d’onde a expressão pobre diabo”) que se consideram excluídos das leis
habituais, violavam às vezes o direito de propriedade, pilhavam os camponeses, aproveitavam a ocasião para se
arranjar. [ ] Em Bakhtin podemos elencar uma série de termos e expressões tendo como foco o termo diabo:
“fazer o diabo a quatro”, “fazer de um diabo dois”, “gritava como todos os diabos”, “gritavam e urravam como
diabos”, fazer o diabo” (BAKHTIN, 5ª ed. 2002, p232). Há um conto de Lima intitulado Um que vendeu a sua
alma, em que o valor econômico da venda quase perdeu o seu significado. O diabo se apresenta como uma figura
cavalheira que se aproxima do diabo de Goethe. Não há o atributo diabólico das grosserias bufas. Em História do
Diabo que foi ao Baile, o diabo nos parece mais carnavalizado, pois tem cheiro de enxofre e pés de pato.
79
andar de chinelos e deu-lhe aquele aspecto de calma superior, calma de grande
homem de Estado ou de guerreiro extraordinário. (BARRETO, 2001, p. 363
)
Neste texto percebemos o tom hilário do narrador ao utilizar-se da técnica do
rebaixamento: a imagem do grande homem de estado, conhecido como marechal de ferro, é
rebaixada à banal imagem dos chinelos. Contrastando as imagens, Lima nos revela que a
calma não é filha da virtude, mas da preguiça, e a preguiça é sinônimo de fraqueza contrária a
função de poder. Assim, o grande guerreiro mostra-se paradoxalmente sustentado em torno da
força das armas consentidas ao Estado. A imagem ambígua do homem Floriano, também é
constatada de maneira séria” quando Carone se refere ao comportamento de Floriano. Este
não se cercara totalmente da máquina partidária como fora prática política na República, ou
seja, “seguindo uma tática ambígua, característica de sua personalidade, Floriano escolhe
seus auxiliares entre pessoas não ligadas diretamente às forças que o ajudaram.” (CARONE,
[197-?] p.52) .
Percebemos também em Lima que, em relação ao riso, este é mais provocativo na
medida em que nos revela o “mito” da incapacidade do pensamento, da ação, da natureza
mole nos trópicos uma relação direta entre clima e personalidade -: o vigor, sobretudo,
civilizatório é “privilégio” de climas frios. É que o pensamento se constitui. Resta-nos
apenas a preguiça física e mental : o Numa Pompílio de Castro os corrobora. O riso torna-se
amargo na medida em que ele soa como uma condenação, sobretudo útil aos colonizadores. O
exagero nestes textos tem o propósito de escancarar a mediocridade das ações políticas e dos
mitos que se criaram em torno do Brasil. Ridente, o narrador apresenta o véu da morte dos
“tristes trópicos”, triste, que a ressurreição” depende da natureza (esta insuperável) e do
mito (este sim superável, mas que no caso brasileiro nunca chegou a ser uma transgressão),
que possibilitasse uma “Segunda vida”.
Destacamos a personagem Dr. Bogóloff, um imigrante russo que é indicado para
ocupar um lugar no Fomento agrícola. Diante do ministro, Bogóloff expõe suas idéias:
80
- Tenho até idéias especiais sobre pecuária.
- Quais?
- Penso em criar porcos do tamanho de bois e bois que chegam a elefantes.
- É maravilhoso! [ ]
- Por meio da fecundação artificial, Excelência [ ], injetando germes de uma em
outra espécie, consigo cabritos que são ao mesmo tempo carneiros e porcos que
são cabritos ou carneiros, à vontade.
- Singular! O doutor vai fazer uma revolução nos métodos de criar!
- [ ] Lido com as últimas descobertas da ciência e a ciência é infalível.
-Vai ser uma revolução!... [ ]
-Tenho outras idéias! [ ] Estudei um método de criar peixes em seco.
-Milagroso! Mas ficam peixes?
-Ficam... A ciência não faz milagres. (BARRETO, 1956, p. 158, 163, 164)
Este extravagante diálogo entre as personagens Xandu e Bogóloff criado por Lima nos
incita a pensar sobre várias questões, além do exagero propriamente dito. O exagero neste
texto está associado a uma espécie de salvação nacional, ou seja, uma revolução nos
métodos fantasiosos de criar. O próprio narrador diz que Bogóloff “não tinha nenhum
interesse em pôr em prática as suas fantásticas idéias” (p. 186), mesmo porque a ciência
não faz milagres, como ele mesmo diz. A salvação nacional pode estar na “infalível”
ciência, mas não em milagres. Bogóloff iria salvar o Brasil da mesma forma que o
emplasto de Brás Cubas iria salvar a humanidade. Lima ironiza como vimos - a
“ingenuidade” da época, ou da facilidade com que se assumiam certas posturas
“científicas” que vinham do exterior e, como diz Xandu, idéias tão brilhantes não poderiam
vir de um nacional.
É oportuno chamar o testemunho de Euclides da Cunha que tem uma visão bastante
judiciosa a respeito do problema da ciência “posivista”. Antes de Lima Barreto, ele escreve:
Os novos princípios [científicos] que chegavam não tinham o abrigo de uma cultura,
e ficavam no ar, inúteis como força admiráveis, mas sem pontos de apoio; e
tornaram-se frases decorativas sem sentido [ ]; e reduziram-se a fórmulas irritantes
de uma caturrice doutrinária inaturável; e acabaram fazendo-se palavras, meras
palavras [ ], disfarçando a pobreza com a vestimenta dos mais pretensiosos
maiúsculos do alfabeto. (CUNHA, 1966, p. 210.)
Em Lima Barreto a crítica à ciência é mais à “maneira” de como a ciência fora
assimilada no Brasil, ou seja, como ela “não se ajeitou” à cultura brasileira, e sustentou uma
81
política de paradoxos que se modernizava às custas de um estrutura social arcaica. Era o
fantasma da modernidade, pois não fora devidamente assimilada pela pequena burguesia
nascente, alinhadas aos setores mais retrógrados da nossa sociedade. Como glosava Euclides
da Cunha: “uma ventura radiosa [ ] o fausto gratuito de uma fantasmagoria simpática”. A
crítica em Lima, como vimos, ora é ridente, ora irônica, ora impetuosa, sempre a marca do
exagero, porque em Lima o uma pretensão intelectual, sim a pretensão de conhecer a
“alma”, o “espírito” que anima a nossa cultura, utilizando-se da estética do riso. Não sem
reflexão, mas de uma reflexão outra, já que os objetos, as idéias, a realidade por assim dizer,
podem ser examinados de diversas formas e todas elas contém uma “verdade” reveladora.
O exagero, guardado a sua devida proporção, é tão surpreendente que às vezes chega a
ser profético. É o caso das idéias fantasiosas do Dr. Bogóloff, idéias que antes impossíveis,
hoje se tornaram em parte possíveis e até viáveis comercialmente. A biogenética está para
comprovar que sempre devemos buscar o impossível eis a grande força do imaginário
literário que ao aguçar e desafiar o “imaginário” científico, move a roda das possibilidades.
No entanto, a grande roda movente, transformadora da narrativa à moda carnavalesca
que a obra de Lima nos proporcionou foi a desconstrução de uma tradição literária, iniciando
um processo de modernização lingüística tendo como pano de fundo o escancaramento do
complexo e contraditório universo social brasileiro. Como bem lembrou Carmem Lúcia, “os
valores da razão burguesa defendidos, em seu discurso, transformaram-se na prática, em
paródia da ordem racional
17
, porque perpetuaram a ideologia de corporações e irmandades
religiosas.”[FIGUEIREDO, 1995, p.47]
A utilização da linguagem grotesca, popular e a inserção de temas populares e
sobretudo, a observação urbana em sua obra, teve como mérito a busca de um “novo” Brasil,
82
e esta procura fora também o componente central do movimento modernista, que a levou às
últimas conseqüências e que ironicamente aconteceu no ano da morte de Lima.
Contrariamente ao romantismo de Jo de Alencar e Gonçalves Dias, Lima Barreto, sem
deixá-lo de ser totalmente, nos apresenta um Brasil subjetivo. A personagem Policarpo
Quaresma busca obsessivamente o Brasil ideal do imaginário poético, o Brasil de terras férteis
e de figuras exóticas, um Brasil “cordial”, e essa trajetória o levara à revelação da
“verdadeira” nação. Policarpo ao penetrar na raiz mais subjetiva do Brasil nos contos e
modinhas populares - tristemente chega ao seu fim ao descobrir que o nacionalismo não
passa de uma abstração, que vem de fora e que se impõe como uma razão interna, de luta
indelével, que se apoia na “pedra de toque” das diferenças humanas. Quaresma morre”
ingenuamente pela nação, mas da sua morte” brota a sua lúcida noção de nacionalismo:
“pareceu-lhe que essa idéia [ nacionalismo] como que fora explorada pelos conquistadores
por instantes sabedores das nossas subserviências psicológicas, no intuito de servir às suas
próprias ambições...” (BARRETO, 2001, p. 405) . O que verdadeiramente Quaresma descobre
nesta trajetória é que o Brasil subjetivo, não tinha o poder de força para formalizar um
conteúdo de valor interno específico de nação que fosse capaz de generalizar e abstrair ao
mesmo tempo.
Assim, a utilização à moda Lima Barreto da linguagem grotesca, da linguagem
popular e da inserção de temas populares, é uma busca, a nosso ver, de decifrar” o Brasil
através da “alma” dos brasileiros. Nesse sentido o que vem aos olhos é a consciência de um
Brasil que se transforma internamente na insuperável dor da colonização. No entanto, o olhar
crítico do narrador é um olhar urbano, isso porque o narrador de Policarpo Quaresma o
consegue escapar totalmente dos conceitos ideológicos da época ao olhar os miseráveis, os
16. Recomendamos a leitura dos contos A nova Califórnia, A Lagarta Rosada, Como Extinguir os Gafanhotos,
Criação de Gado, Cogumelos, O leite e seus derivados. Todos estes contos fazem referências hilárias ao
conhecimento científico.
83
pobres do campo que geralmente são negros, pardos, feios, etc. Estes são ambiguamente
descritos por um lado como sem moral, sem vigor físico, indolentes, preguiçosos _ mais ou
menos como os sertanejos descritos por Euclides, mas que ao final ele os descobre totalmente
diferente: “antes de tudo um forte” - e por outro, “eram capazes de dedicação, de lealdade e
bondade, mas o trabalho continuado, todo o dia, repugnava-lhes a natureza, como uma pena
ou um castigo” (BARRETO, 2001, p. 395). Ora os qualificativos são contratantes porque
podem ser entendidos como resistência e, ao mesmo tempo, como adaptação à estrutura social
de exploração agrária. Lembremos que a ética do trabalho é fruto da ideologia cristã,
convenientemente incorporada ao desenvolvimento industrial que necessita levar essa ética às
últimas conseqüências para o acúmulo de riquezas. Em sociedades tidas como arcaicas esses
conceitos não se colocam. Por isso ele é um fenômeno datado. O tema da nacionalidade
com todas implicações ideológicas - será constante até a década de trinta, mas tem seu ponto
alto na voz mais aguda de rio de Andrade que se dedicou à pesquisa folclorista em busca
da raiz mais profunda da nossa “alma” e a transformou conscientemente numa arte
genuinamente brasileira. Alfredo Bosi comenta:
[ ] A consciência de pertencer a um povo mestiço e pobre, em parte
marginal no concerto das grandes nações civilizadas, [ ] a consciência de ser
brasileiro em Mário muito viva desde o fim do decênio de 20, é o nervo exposto
desse complexo ideológico em que o é fácil distinguir o sentimento de
inferioridade de um romântico nacionalismo. O que ficou da intensa atividade do
folclorista e do crítico musical Mário de Andrade bastaria para fundamentar um
critério de historiografia “nacional” que, porém, nada deve aos seus predecessores
evolucionistas ainda envisgados em preconceitos raciais. A diferença crucial está na
visada popular e regional dos estudos de Mário de Andrade, que o preserva de
batalhar por um nacionalismo abstrato e partidário. (BOSI, 2002, p. 23.)
Essa consciência sofrida na própria pele fora o grande mote que irônica e
satiricamente comandara a narrativa de Lima Barreto e que avança, como diz Bosi, em “um
caminho sem retorno: o da liberdade, da pesquisa estética”. (Idem, ibidem.) Em Numa e a
Ninfa a incorporação do linguajar “caboclo” por meio da personagem satiricamente
chamada de Doutor Chaveco - nome sugestivo do chefe de polícia- . Eis alguns exemplos:
84
bebo... chama um poliça...mete ele no xadrez”[ ] e mais adiante temos,” Tem artéia, siá
dona? O Juca cum tosse. [ ] vai doutor? moço. Drumo cos pintos. É mais bom para
saúde”. (BARRETO, 1956.
p.134,135)
Os exemplos citados nos dão a medida da ousadia crítica de Lima que ao incorporar a
linguagem “incorreta” à cabocla, contrariando os princípios da norma culta, rebaixou a
autoridade e a competência não do doutor chefe de polícia, mas indiretamente glosara a
precária República que mantivera nos quadros administrativos a exclusividade de doutores
com saberes “duvidosos” para o desempenho eficiente da função pública, pois a regra que
sustentava geralmente as escolhas era o conluio político. Fora a República dos doutores como
disseram os historiadores. Este rebaixamento, além do riso que ele provoca, nos sugere a
pensar mais sobre a especificidade da cultura brasileira.
Em Diário Íntimo, os contos populares estão muito presentes, assim como o
comentário de um livro que Lima pensou , cuja personagem Tibau tinha adquirido um
grande amor do Brasil e acariciara o sonho de uma Sociedade de Folclore, que se destinava a
recolher os cantos, as tradições e a poesia popular da nossa terra.” (BARRETO, 2001,
p.1248/1249 )
Supomos que a aproximação de Lima Barreto à cultura popular foi uma aproximação
resistente e libertadora: libertadora do homem Lima, da linguagem, e resistente aos equívocos
da ciência de sua época, resistente ao revelar literariamente o contra-senso Republicano
manifestado apenas por uma idéia aparente de inovação e transformação. Por outro lado,
transgressora, pois a dimensão utópica do conhecimento da alma brasileira com intuito de
não conhecer o Brasil, mas de ajudar a despertá-lo para uma construção social mais justa,
mesmo que a partir de nossos defeitos, já que as desgastadas palavras Liberdade, Igualdade e
Fraternidade adquiriram o estatuto de mistério da “Santíssima Trindade”.
Concluímos com Lima Barreto:
85
O meu pensamento era para a humanidade toda, para a miséria, para o sofrimento,
para os que sofrem, para os que todos amaldiçoam. Eu sofri honestamente por um
sofrimento que ninguém podia adivinhar [ ]. Mas eu sentia que interiormente eu
resplandecia de bondade, de sonhos de atingir a verdade, do amor pelos outros, de
arrependimento dos meus erros e um desejo imenso de contribuir para que outros
fossem mais felizes do que eu, e procurava e sondava os mistérios da nossa natureza
moral, uma vontade de descobrir nos nossos defeitos o seu núcleo primitivo de amor
e de bondade. (BARRETO, 2001, p. 1462.)
86
O Numa e a Ninfa foi escrito em vinte e cinco dias, logo que saí do hospício. Não
copiei nem recopiei sequer um capítulo. Eu tinha pressa de entregá-lo, para ver se o
Marinho me pagava logo, mas não foi assim e recebi o dinheiro aos poucos. Escrevi-
o em outubro de 1914. O marinho era diretor da A Noite.
Lima Barreto
87
CAPÍTULO III
A margem política no romance Numa e a Ninfa
Oprimido com uma antevisão de miséria a passar, de humilhações a
tragar, o meu espírito deformava tudo o que via.
Lima Barreto
1
Vimos que o romance, Numa e a Ninfa, de Lima Barreto, pode ser lido como uma
paródia da vida de Numa, de Plutarco. A visão crítica de Lima Barreto desnuda a vida política
e social na Primeira República. Ao parodiar Plutarco, ele estaria ao mesmo tempo revelando a
dinâmica política do Brasil, pois a prática política brasileira, em sua grande maioria,
caracterizou-se pelo avesso da prática política descrita por Plutarco em vida de Numa e que
curiosamente servia de paradigma para alimentar o ideário político do Instituto Histórico e
Geográfico, criado na época de Dom Pedro II. O eixo temático de Numa e a Ninfa estrutura-
se em torno das relações políticas brasileiras, conscientemente exageradas, com propósito
ético-político, como indica a própria epígrafe do texto.
Antes de uma breve incursão sobre o contexto histórico e político da época de Lima
Barreto, vamos, à guisa de prévio registro, apresentar a própria narrativa Numa e a Ninfa.
Trata-se de um romance da vida contemporânea, segundo o próprio Lima Barreto, e que tem
como eixo central da estória de Numa Pompílio de Castro, um ávido candidato a ascensão ao
poder político. Para tanto conta com a ajuda de seu sogro oligarquia dos cogominhos -, de
sua esposa Edgarda e do primo desta, Benevenuto. A trajetória de Numa é marcada por duas
intrigas, uma política e outra, amorosa.
A intriga amorosa desenvolve-se em torno do triângulo amoroso das personagens
Numa Pompílio de Castro, Edgarda e Benevenuto. Numa Pompílio de Castro, estudante
88
medíocre, embora determinado, consegue o título de doutor título que é condição para o
ingresso ao poder. Casa-se com Edgarda, filha de um chefe político de Estado – Cogominho -,
elege-se após o casamento a deputado federal.
Numa, por ignorância e falta de talento, não participa dos debates na Câmara. Edgarda,
insatisfeita com a monotonia do casamento e a falta de atuação do marido, incentiva-o a
discursar no plenário. Mas ele se mostra incapaz de fazê-lo. Edgarda dispõe-se a ajudá-lo
(como na Egéria, conselheira de Numa, em Plutarco) na composição da oratória. O discurso é
elaborado e aprovado pelo sogro. Numa, ao pronunciá-lo, conhece a glória, sobretudo pela
imprensa que elogia o grande feito do deputado. No entanto, a falta de habilidade política de
Numa o torna incapaz de perceber o jogo político que ocorre em torno da escolha do
candidato à sucessão da presidência da República sucessão do Velho, que é historicamente
identificado com Afonso Pena.
Numa não sabe se comportar na Câmara, não sabe votar e, para fazê-lo, recebe sempre
a orientação da esposa Edgarda. Esta por sua vez recebe orientação do primo Benevenuto, que
se torna seu amante. Numa, ao falar de improviso na Câmara, comete um grande fiasco. Vê-se
por isso na obrigação de fazer um novo discurso na tentativa de reverter o fracasso. Edgarda
propõe-se a ajudá-lo. À noite prepararia o texto enquanto o marido dormisse. Mas é o amante,
ao encontrar-se com Edgarda, que vai prepará-lo.
Numa acorda no meio da noite e em solidariedade à mulher resolve agradecê-la. Ao
encontrar a porta de seu escritório fechada se surpreende ao olhar pelo buraco da fechadura e
descobrir Benevenuto que, entre um carinho e outro de Edgarda, redige o discurso. Face à
traição de sua mulher, nada faz, recua, pensa na sua carreira política, no poder e decide
retornar ao quarto e se põe a dormir tranqüilamente.
A narrativa da intriga política expõe os fatos ocorrido por ocasião da sucessão
presidencial do “Velho”. O conflito à sucessão gira em torno de uma candidatura civil e outra
89
militar. O presidente da República o Velho indica Xisto, um candidato civil. A indicação
não agrada os militares e alguns civis, que vêem o General Bentes como candidato ideal. O
chefe do Partido Republicano, Bastos, o com bons olhos a candidatura de Bentes. Este é
lançado candidato por Macieira e Fuas Bandeira. Diante dos conflitos, o “Velho” renuncia ao
cargo, Bastos e Cogominho, como não desejam perder seus domínios políticos, aceitam a
imposição da candidatura do General Bentes, e este ganha as eleições.
Interessante observar que Lima Barreto, na escolha dos nomes das personagens de sua
narrativa, o o faz aleatoriamente, mas dentro do espírito da paródia, do riso, da inversão,
como: Edgarda, inversão de Edgar, nome de homem, que se “casa” bem com a história em
suas decisões independentes diante de um marido frágil; Benevenuto, o bem vindo, para, com
sua peça oratória, salvar Numa; Cogominho, segundo a etimologia, pepino, símbolo do
político astuto, que, se não alisar a cabeça, pode envenenar seus correligionários; Xisto, rocha
metamórfica que exibe xistosidade ou laminação acentuadas, segundo os gregos indicava
local coberto onde exercitavam os atletas, - em Lima Barreto, Xisto entrava no lugar de David
Campista, ministro das finanças no Governo Afonso Pena e que por ser muito jovem, fora
rejeitado como candidato a presidência da República daí Xisto é x, é dúvida, são incertezas
políticas; Velho”, por ser de fato velho e doente, era assim chamado Afonso Pena; Lucrécio-
Barba-de-Bode - Lucrécio foi um eminente poeta-filósofo romano, seguidor do epicurismo,
aqui Lima Barreto o inverte para a figura de um cabo-eleitoral desiludido com a política. O
sobrenome Barba, simboliza bem a figura do intelectual da moda identificado no uso do
cavanhaque e Bode, àquele que, por dinheiro, faz a mediação entre o político e o eleitor (bode
expiatório); Bentes, de Bento, o bem vindo, General Hermes da Fonseca, e que não era bem
vindo assim, mesmo porque despertava temores junto às elites intelectuais, que viam nele o
filho bastardo da ditadura Floriano, segundo a expressão da chamada “ordempositivista de
sentido ditatorial; e etc.
90
2
Sobre o contexto histórico da época de Lima Barreto – os primeiros 20 anos do Século
XX -, é significativamente chamado de República Velha, isto porque no campo econômico a
República o passava de uma extensão da economia do Segundo Império, cuja característica
era centrada numa sociedade esmagadoramente agrária, fundada na produção e exportação de
matérias-primas e produtos agrícolas. O papel central da economia da República Velha reside
na intermediação comercial e financeira da agro-exportação, sobretudo do café. Na esfera
política, o novo baronato do poder situa-se nos Estados sobretudo Estados de São Paulo,
Minas Gerais e Rio Grande do Sul, os quais detinham significativa parcela do poder central da
República, fazendo da República a coisa pública o território sagrado de defesa de seus
interesses financeiros e econômicos. Francisco de Oliveira assim traça o perfil desses “novos”
donos do poder:
De classe dominante fundada pelo Estado, o baronato brasileiro (mais no sentido da
propriedade e posse dos meios de produção que no sentido da às vezes ridícula e
sempre pretensiosa aristocracia) passava à condição de classe dominante que
repudiava um tipo de Estado estranho aos seus interesses e, portanto, hostil. De
posse do principal meio de produção a terra essa classe detinha a total
virtualidade de mediar o emprego da mão-de-obra – escrava, decerto – e portanto de
autonomizar-se em relação ao Estado. (OLIVEIRA, 1975, p. 395.)
O estilo coronelista de comandar a República se incrusta no interior das assembléias
legislativas e no parlamento nacional, onde se travam as mais sombrias batalhas políticas
expressas numa retórica vazia de conteúdo, mas que tinha, paradoxalmente, uma função
importante para os donos do poder maquiar nossas mazelas sociais e fornecer combustível
para os críticos de plantão escritores, jornalistas -, cujas narrativas oram pendiam para o
universal pessimismo (Machado de Assis), ora para a paródia grotesca (Lima Barreto).
Os fatos narrados em Numa e a Ninfa de Lima Barreto se situam mais precisamente no
problema sucessório de Afonso Pena. No entanto, é preciso voltar brevemente o olhar ao
91
governo anterior - o de Rodrigues Alves 1902 a 1906, pois este é marco importante de
transformação urbana e revoltas populares.
Seu governo é marcado, por um lado, por grandes realizações administrativas e
políticas e, por outro, por manifestações populares a então nunca vistas. Dentre muitos
“feitos” materiais e acontecimentos sociais, destacamos apenas a reurbanização e o
saneamento da Capital Federal, o Rio de Janeiro (Lembremos aqui que o Brasil entrava
definitiva e escancaradamente no círculo da ciranda financeira do mercado capitalista
internacional, sobretudo, em relação à Inglaterra que nos ajudara” na independência de
Portugal. Limpar o Rio de Janeiro para acolher nossos parceiros comerciais era o objetivo
primordial. Era o surrado lema do famoso “para inglês ver” e para a pequena parcela rica da
população usufruir.) O projeto urbanístico de embelezamento do Rio de Janeiro
popularmente conhecido como bota-abaixo, mexeu com a população mais pobre da cidade.
Velhos casarões – denominados cortiços – são demolidos para a construção de grandes
avenidas. “A população pobre é duplamente punida: ela é obrigada a procurar lugares mais
distantes do trabalho, face ao aumento dos aluguéis. Junte a isto a obrigatoriedade da vacina.
Estes fatos que somados “à alta constante do custo de vida, resquícios do jacobinismo,
conduzem aos acontecimentos de 1904”. (CARONE, 1971, p. 199) a Revolta da Vacina.
Apesar de um governo conturbado e relativa estabilidade econômica, face à reurbanização do
Rio de Janeiro com altos custos para a população pobre, Rodrigues Alves sai do governo
aplaudido. Estes acontecimentos são discutidos na obra de Lima Barreto, sobretudo em suas
crônicas.
O governo posterior, o de Afonso Augusto Moreira Pena, centra a sua ação nos
problemas econômicos e financeiros. Adota a política de valorização do café em resposta ao
apoio da oligarquia cafeeira à sua candidatura. O ministro da Guerra, general Hermes da
Fonseca, incumbe-se de reorganizar o exército. Este fato o torna o ministro mais conhecido e
92
abre uma brecha para as pretensões militares da volta ao poder. Em conseqüência, acentua-se
o conflito do governo com o legislativo. A escolha de ministros jovens – Carlos Peixoto Filho
e David Campista, “levam a situações conflitantes, pois a escolha de jovens desgosta as
lideranças estaduais [ ] que preferem que a escolha recaísse em pessoas mais velhas e de
posições políticas destacadas.” (CARONE, 1971, p. 229) A rivalidade de grupos face à
competição pelo poder acentua-se com o problema sucessório com a indicação de Afonso
Pena ao jovem David Campista. As críticas se acentuam e este, diante da fragmentação
política, desiste de sua candidatura. Esta desistência “faz num momento em que outra
candidatura se apresenta com o respaldo de militares” (CARONE, 1971, p. 234.) Hermes da
Fonseca – o então ministro da Guerra.
A aceitação de Hermes da Fonseca a candidato e consequentemente sua apresentação
da carta de demissão choca profundamente Afonso Pena. Este, já idoso, falece em 14 de junho
de 1909. Assume o vice Nilo Peçanha e a discordância à candidatura militar leva grupos
políticos de São Paulo – que apoiavam antes David Campista – a lutar pela candidatura de Rui
Barbosa. Pinheiro Machado, líder político no legislativo, reconhece a candidatura de Hermes
da Fonseca e pressiona pequenos Estados que o aprovem e para isto ele vai usar de sua
influência na comissão e Verificação de Poderes no Congresso.” (CARONE, 1971, p. 239.) A
candidatura de Hermes da Fonseca e de Rui Barbosa se transforma numa acirrada luta pelo
poder de grupos políticos estaduais. São Paulo e Bahia pró Rui Barbosa e Minas Gerais, Rio
Grande do Sul liderança de Pinheiro Machado e Pernambuco em favor de Hermes da
Fonseca.
Segundo Carone, a acirrada divisão dos candidatos leva as partes a desfecharem
violentos ataques e manifestações. O Rio de Janeiro é palco constante de pequenos comícios
civilistas, seguidos imediatamente por outros de tendência hermista, ou vice-versa. Os
choques constantes provocam conflitos graves, sendo que a posição da polícia e forças do
93
Exército sempre são favoráveis aos situacionistas.” (CARONE, 1971, p. 246.) Vence o
general Hermes da Fonseca. Em junho, sob forte pressão, a vitória de Hermes da Fonseca é
reconhecida pelo Congresso.
Neste conturbado quadro político a luta pelo poder gira em torno de interesses
pessoais da oligarquia cafeeira deixando de lado a luta pela melhoria de vida da grande
população brasileira.
Essa “ironia republicana” de conflitos do poder pelo poder que marca não o
problema político da sucessão de Afonso Pena, mas também de toda a República Velha.
3
Numa e a Ninfa foi publicado primeiramente em folhetins de A Noite, jornal do Rio de
Janeiro em 1915. O romance gira em meio aos jogos políticos a nível estadual e municipal e
em meio a este jogo pelo poder - como vimos -, surge o triângulo amoroso entre as
personagens títulos Numa e Edgarda (Ninfa) e seu primo Benevenuto. Paralelamente há
personagens secundárias interessantes, tal como Lucrécio-Barba-de-Bode, por ser uma
espécie de exemplo de “capanga” político urbano. A narrativa consta de um grande universo
de personagens, mas centraremos naqueles que nos pareceram mais significativos ao nosso
propósito. Seguimos a ordem dos acontecimentos políticos da narrativa e procuramos
verificar até que ponto eles estão relacionados à realidade” política nacional. A narrativa
inicia-se num tom jornalístico impessoal. Leiamos o próprio texto:
O grande debate que provocara na câmara o projeto de formação de um novo Estado
na Federação Nacional apaixonou o só a opinião pública, mas também
extraordinário) os profissionais da política. Em torno do projeto, interesses de toda
ordem gravitavam. Um grande número de cargos políticos e administrativos iam ser
criados [ ]. Com a criação de um novo Estado nasceria naturalmente uma nova
bancada da representação nacional no Senado e na Câmara; e o partido dominante
republicano radical, temia não eleger a totalidade dela.
Bastos, o seu poderoso e temido chefe, que detinha o domínio político do país,
hesitava em apoiar ou contrariar francamente o projeto [ ]. Dizia-se à boca pequena
que o projeto tinha por fim acrescer a representação federal de jeito que, na próxima
94
legislatura, tivesse o congresso os dois terços necessários para rejeitar o veto’ ao
projeto de venda de um dos mais importantes próprios nacionais. Cochichavam que
tal influência receberia tanto; que tal outro havia recebido metade da gratificação
prometida. [ ]
A imitação dos Estados Unidos não ficou restrita à constituição [ ], a imitação se
estendeu aos escusos processos de traficâncias em votos e medidas do governo. A
massa da população interessava-se pelo debate, pesava os argumentos, sem suspeitar
que tanto esforço de inteligência escondesse uma vulgar mascateação ou um arranjo
de políticos. (BARRETO, 1956, ps. 23/24)
A chamada à moda de notícias em que Lima abre o romance nos a medida da
intenção de denúncia de práticas políticas antigas, que vêm do Império e que o governo
republicano tentou inová-las por meio de discursos de cunho liberal que na época sofria
acervas críticas na Europa. A Republica se concretiza com Floriano, e após o primeiro
governo civil chefiado por Prudente de Moraes (1894), segue o governo de Campos Sales
(1898), o qual tenta mudar os rumos da política ao instituir a política dos Estados, conhecida
como a política dos Governadores. A descentralização política não leva ao maior equilíbrio do
poder, ao contrário, ela reforça o poder tradicional porque o estende dos estados aos
municípios. Nas palavras de Carone,
Este sistema de apoio às oligarquias vai significar, entretanto, a permanência
daqueles que estão no poder. Não foi Campos Sales quem os criou; elas existiam na
Colônia e no Império; na República reforçam-se porque obtém o comando político
municipal e estadual. Porém, é a política dos governadores que solidificaria e
estimularia os grupos oligárquicos, seguros do domínio permanente, onde a
legalidade camufla a violência. [ ] A política dos governadores restringe todas as
possibilidades do jogo eleitoral e dos métodos de luta pelo poder. (CARONE, 1971,
ps. 178, 179.)
Assim, a narrativa irônica de Lima revela que a criação de um novo Estado significaria
a potencial prática de distribuição de empregos aos apaniguados, mas por outro lado poderia
colocar em risco o domínio do poder político na Câmara Federal.
18
A liderança política era
toda voltada ao interesse particular de pequenos grupos dominantes, o interesse público que é
o propósito da República nunca fora defendido a não ser por discursos. Na prática, o grosso
18
Neste período, o poder político na Câmara Federal, tivera como líder absoluto, Pinheiro Machado,
representante do Estado do Rio Grande do Sul, “associado” a São Paulo.
95
da população estava alheia aos arranjos políticos da “vulgar mascateação”, do princípio
republicano que é o do bem público.
O texto nos coloca de início, em forma de notícia, os problemas políticos mais em
evidência da Primeira República e que serão desenvolvidos ao longo do romance. Dentre eles,
enumeramos o predomínio político do poder oligárquico, ligado ao Estado e estendido ao
município com suas práticas de favores e agressão; a presença da plutocracia ligada ao
governo federal; os conluios políticos para aprovar ou desaprovar projetos; a corrupção
eleitoral e a ignorância política da grande massa brasileira. É este o quadro que indigna Lima,
e de modo consciente, o revela por meio de uma literatura de nuances jornalística, irônica e
sarcástica, acreditando ser a melhor via para atingir o maior número de pessoas e despertar o
ainda frágil mundo da cidadania. Portanto, o propósito é político, político entendido no seu
sentido mais puro que é conscientizar a grande massa da população para as contradições do
‘fim’ republicano.
O texto, portanto, estrutura-se em torno das bases que sustentam o poder e os meios de
atingi-lo. Numa será o grande “protagonista” da história (visto, na paródia, às avessas) não só
por representar a face perversa da política brasileira, mas também por constituir o avesso do
ideário republicano e que Lima Barreto, sutilmente, proclama nas palavras de Bossuet: “Cette
nation grave et sérieuse connut d’abord la vraie fin de la politique, qui est de rendre la vie
comode et les peuples heureux”(BOSSUET, apud BARRETO, 1956, in epígrafe). Não fora
este também o propósito do governo de Numa em Vidas Paralelas, de Plutarco?
Temos então o cruzamento de realidades das práticas antigas e modernas de governos
e a tensão de valores morais que sustentaram essas práticas políticas ora éticas – no caso de
Plutarco -, ora anti-éticas – como no caso de Lima.
96
O deputado Numa até então era praticamente desconhecido na Câmara. Por ocasião do
debate sobre a formação do novo Estado (Guaxupé),
19
surpreendendo a todos, profere um
discurso que é elogiado na Câmara e nos jornais e isto desculpa “um pouco o ser associado à
deslavada oligarquia dos Congominhos” (BARRETO, 1956, p.27). Após o sucesso do
discurso, Numa é reconhecido na rua e respeitado “com o alto respeito que se deve a um
grande orador parlamentar.” (BARRETO, 1956, p. 28) Do grande chefe recebeu o seguinte
elogio: - “Senhor Numa, o senhor é um republicano.” (BARRETO, 1956, p.30) O valor” dos
deputados aqui, especificamente, está ligado ao discurso e não em ações práticas. Ser
republicano, no caso, era proferir um grande discurso que lhe conferia o perfil de inteligência
e sabedoria.
No entanto, os discursos, mesmo com aparência “radical”, o foram aglutinantes o
suficiente para acuar o governo. Sabemos do grande número de revoltas na Primeira
República, todas elas foram vencidas pela força opressora do governo em conluio com a
oligarquia dominante. E os representantes da nação se não pertenciam às oligarquias
tradicionais, estavam ligadas a elas por laços como casamento, apadrinhamento e favores.
Numa é nossa testemunha histórica destas práticas políticas de garantia do poder. O discurso
em defesa da República, no que se refere à garantia da lei, da liberdade, educação para todos,
garantia, isto sim, a lei e a liberdade dos proprietários. Estes eram considerados cidadãos,
com direito de voto, mesmo após esse direito ser alargado, a exigência de ser alfabetizado
excluía do voto quase que a totalidade da população.
Aqui convém lembrar Resende que chama a atenção para o pensamento de Arendt
“para a permanência da íntima conexão entre propriedade e liberdade, ainda nos séculos
XVII, XVIII e mesmo XIX. Até , as funções das leis, afirma, não são prioritariamente
19
Este nome simboliza bem o espírito parodiano de Lima Barreto. Em termos etimológicos, guaxupé tem a
conotação de “abelhas da família dos meliponídeos”. Em termos metafóricos Guaxupé é favo de mel para onde
são atraídos os políticos interessados nas mordomias oferecidas pelo Estado.
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garantir direitos, mas sim proteger a propriedade; era a propriedade e não a lei propriamente
dita, que assegurava a liberdade”. (RESENDE, 2003, p. 99.)
Podemos estender este pensamento de Arendt ao Brasil até o Século XX. Numa ao se
associar à oligarquia dos Congominhos pelo casamento, torna-se um deles, cruzando
realidades entre texto e contexto.
Ao traçar o perfil de Numa, Lima Barreto descreve-o como de origem humilde, e que
se tornara bacharel em Direito com grandes sacrifícios. Estes, no entanto, não se tornaram em
energia positiva que o levassem a pensar sobre o caráter moral das virtudes humanas. Ele, ao
contrário, viu a formatura, o doutorado, isto é, ser um dos brâmanes privilegiados,
dominando sem grande luta e provas de valor, pois, com ele, afastaria uma grande parte dos
concorrentes.” (BARRETO, 1956, p. 30) Ser doutor era apenas um fácil trampolim para a
ascensão social, que essa condição a princípio excluía quaisquer provas de valor
sustentadas por uma ética vigente no núcleo do poder político. “Em breve tempo, graças à sua
insistência junto a um dos potentados da República [ ] foi despachado promotor de uma
Comarca de Estado longínquo. Aos poucos, com aquele seu faro de adivinhar onde estava o
vencedor [ ] foi subindo até Juiz de Direito.” (32)
Numa era do Norte e ele representava o figurino ideal para ingressar nos jogos dos
vícios políticos e atingir o núcleo da política de favoritismo, que era a moeda corrente dos
donos da República. O fato de Numa “descer” do Norte e se instalar no Rio de Janeiro, se
explica não por ser deputado da Federação, mas porque São Paulo, associado ao Rio
Grande do Sul e Minas Gerais, são os grandes-carros chefe do comando político sustentado
pelo “novo” poder dominante: o coronelismo. Este tinha seus representantes na Câmara
unindo interesses dos Estados e da Federação.
O federalismo, implantado em substituição ao centralismo do Império, confere aos
Estados uma enorme soma de poder, que se distribui entre o estado e os municípios.
Sobre esse princípio edifica-se a força política dos coronéis no nível municipal e
98
das oligarquias nos veis estadual e federal. A centralidade conferida aos direitos
individuais, deixando de lado a preocupação com o bem público, ou seja, a virtude
pública ou cívica que está no cerne da idéia de República, funciona como barreira no
processo de construção da cidadania
no
Brasil. (RESENDE, 2003, p.93.)
Para garantir essa sintonia de poderes, os deputados eleitos – sob toda forma de
cambalacho eleitoral precisavam da validação do diploma pela Câmara para garantir o
mandato. Deste modo, garantia-se a fidelidade entre os Estados e o Governo Federal, isto
porque, se os deputados não fossem de confiança desse sistema de forças não conseguiam
garantir o mandato, eram excluídos, ou “degolados”. Foi seguindo essa sintonia, como bom
farejador que era do poder, que Numa, “fazendo de sua vara de Juiz alfanje de emir, obediente
aos desígnios de Neves Cogominho, não estranharam que, eleito este presidente do Estado,
Numa fosse feito chefe de polícia.” (BARRETO, 1956, p. 33.) Assim , Numa aproxima-se da
filha (Edgarda) do governador Cogominho. Este “via com bons olhos a aproximação dos dois
e pareceu-lhe que o casamento de ambos seria útil à sua política [ ] Quando se fizeram as
eleições federais, o genro do presidente foi feito deputado federal e, como tal, partiu para o
Rio, apressado em tomar assento na Câmara Federal”. (BARRETO, 1956, p. 36-37)
A ascensão social de Numa não está associada a nenhum mérito pessoal, não há nele a
conduta moral, as virtudes cívicas que deveriam estar na base do poder político para ser um
agente do poder republicano, da coisa pública. Numa utiliza-se de todos os meios para
justificar seus fins, mas falta-lhe até a virtude proclamada por Maquiável, que é a capacidade
de organizar o Estado. O que nos revela Numa é que a estrutura republicana o foi resultado
de um processo histórico, a elite brasileira incorporou ideologias e padrões sociais europeus
sem ela mesma ter uma base “psicocultural e política”. Os modos de ser, pensar, e agir”,
como disse Florestan Fernandes, das novas forças sociais que surgiram na época, tais como
negociantes, banqueiros, funcionários da burocracia estatal, profissionais liberais, etc,
digamos, as novas classes sociais nascidas com o desenvolvimento urbano, e a incipiente
99
industrialização do país, não constituíra uma via de possibilidades políticas renovadas, na
medida em que estas classes incorporavam ainda em seus ombros os velhos vícios da conduta
psico-cultural e política da elite e que só vai ter seu refluxo após a Revolução de 30.
A República já nasceu velha. O verdadeiro espírito” republicano exigia uma avanço
não político, mas também cultural e social. Esta é a razão por tornar espírito democrático
totalmente inviável. Não havia, como diz Florestan Fernandes, agentes humanos capazes de
sustentar grandes transformações histórico-sociais, nem nas classes dirigentes e sobretudo
do povo, que assistiu a mudança de regime através de um desfile militar sem entender o que
estava acontecendo. Assim, o havia no Brasil uma classe social constituída historicamente
capaz de lutar pelo domínio do Estado em defesa da Nação, enquanto expressão hegemônica
do povo. Mesmo porque uma grande parte do “novo grupo” social, sobretudo, os profissionais
liberais, eram filhos dos grandes proprietários de terra, ou apadrinhado destes. Raymundo
Faoro em Os Donos do Poder, encontra no Estado patrimonial português as raízes do
comportamento da elite política brasileira. Sob a lógica patrimonial, a coisa pública é uma
extensão da propriedade territorial privada e a elite dirigente é um “patronato político”. Este
“patronato político”- que Faoro chama de “comunidade política” -, “conduz, comanda,
supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos
depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no
âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa
realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo
de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade assenta no tradicionalismo – assim é porque
sempre foi.” (FAORO, 1976, p. 733.)
Acrescem ainda os pequenos grupos de intelectuais burocráticos, jornalistas, escritores
girando na órbita das pregações de Benjamin Constant, sem representação política de peso
para fazer valer seus ideais republicanos. Daí se explica, em parte, a produção de uma
100
literatura pessimista “o legado de nossa miséria”, na expressão de Machado de Assis o
livro de Euclides da Cunha, Os Sertões -, o Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima
Barreto -, todos simbolicamente esboçando os traços sombrios de uma consciência infeliz,
resultado da visão de abismo entre uma República dos sonhos e os valores brutais da realidade
nacional.
20
Na Europa, ao contrário do que acontece no Brasil, os “novos grupos sociais”, com
muito mais poder de pressão política que os nossos, surgem a partir de conflitos ainda no
regime monárquico. A expressão de Gramsci em relação ao quadro europeu, mostra que
o monopólio das superestruturas por parte dos eclesiásticos não foi exercido sem
luta e limitações, e portanto deu-se o nascimento, [ ] sob várias formas de outras
categorias, favorecidas e engrandecidas pelo reforçamento do poder central do
monarca, até o absolutismo, assim se veio a formar a aristocracia de toga, com os
seus próprios privilégios, um grupo de administradores, etc.; cientistas, filósofos não
eclesiásticos. (GRAMSCI, 1978, p. 344/345).
No Brasil, o capital investido na indústria não fora somente estrangeiro, o que houve
foi o deslocamento do capital da oligarquia agrária para o setor comercial e industrial, e
consequentemente não foi possível formar essa categoria de toga – intelectuais independentes
capaz de se contrapor ao poder dessa oligarquia. A maneira, portanto, de como o Estado
Republicano “reordenou” a sociedade civil não gerou um maior equilíbrio de forças na
20
S
obre esta ambiguidade entre sonho e realidade, Joaquim Nabuco se posiciona da seguinte maneira: Nós
brasileiros, o mesmo pode-se dizer dos outros povos americanos – pertencemos à América pelo sentimento novo,
flutuante, do nosso espírito, e à Europa, por suas camadas estratificadas. Desde que temos a menor cultura,
começa o predomínio destas sobre aquela. A nossa imaginação o pode deixar de ser européia, isto é, de ser
humana; ela não pára na Primeira Missa no Brasil para continuar daí recompondo as tradições dos selvagens que
guarneciam as nossas praias no momento da descoberta; segue pelas civilizações todas da humanidade, como a
dos europeus, com quem temos o mesmo fundo comum de língua, religião, arte, direito e poesia, os mesmos
séculos de civilização acumulada, e portanto, desde que haja um raio de cultura a mesma imaginação histórica.
Estamos assim condenados à mais terrível das instabilidades, e é isto o que explica o fato de tantos
sulamericanos preferirem viver na Europa...[ ] A instabilidade a que me refiro provém de que na América falta à
paisagem, à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo o que nos cerca, o fundo histórico, a perspectiva humana; e
que na Europa nos falta a pátria, isto é, a fôrma em que cada um de nós foi vazado ao nascer. [ ] O sentimento
em nós é brasileiro, a imaginação européia.”( NABUCO, J. Minha Formação, 1960, Brasília: Univ. de Brasília,
p. 39 a 40.)
101
composição da conjuntura político nacional. A maioria da população negra, mestiça e até
branca, ficou excluída do “processo civilizatório” de padrão europeu.
A pobre vida cultural na Primeira República impediu o surgimento de um aparato
ideológico capaz de fazer face ao poder estatal. Um balanço historiográfico da Primeira
República revela, no entanto, a presença de uma literatura de resistência na qual os oprimidos
não mais têm seu grito abafado pelo poder – como em Euclides no episódio de Canudos e nas
paródias de Lima Barreto. A miséria se transforma em tema central dos livros e folhetins, e
permanece até hoje como relato duplo de barbárie e civilização. O pobre tem seus
representantes na literatura e surge como novos atores sociais, ao passo que a mesquinha
oligarquia dos ricos sofre seus primeiros abalos nas ironias machadianas e nas paródias de
Lima. Este, solidário às classes sociais mais sofridas, sobretudo o negro, compartilhou o
com a maioria – sua indignação face à estrutura social brasileira, sobretudo, no que se refere à
conduta moral da classe dirigente. Seu esforço para despertar uma nova visão do mundo por
via da literatura não fora suficiente para mobilizar qualquer mudança política, mesmo porque
não cabe à literatura o papel mobilizador de classes, o máximo que a literatura consegue é
adiantar uma visão crítica do mundo por ser o escritor no dizer do poeta Ezra Pound uma
espécie de antena do mundo. Esta função é uma espécie de luz para o conhecimento. Marx,
como vimos anteriormente, percebeu essa dimensão da literatura ao fazer a leitura de obras de
Shakespeare e Goethe.
Qualquer mudança, portanto, na vida social, passa do pensamento – ideologia – à ação
política. Somente esta operação conjunta, a saber, entre teoria e prática, ou ainda, na unidade
teoria e prática e que poderíamos chamar de práxis, é que a mudança ocorre. Há um mediador
para essa mudança, que Gramsci chama de intelectual orgânico, o organizador ideológico de
uma determinada classe capaz de desencadear linhas de ação no campo cultural em seu
sentido mais amplo.
102
Não podemos situar Lima Barreto nas categorias criadas por Gramsci no que se refere
ao papel do intelectual orgânico. No entanto, por ser um escritor do tipo engajado “surfando”
e vivendo no interior dos problemas sociais, sem exagerar, e talvez como metáfora,
poderíamos afirmar que Lima foi o intelectual “orgânico” do homem excluído, dos marginais
da nova e velha República. Ele foi o intelectual da resistência, e soube muito bem captar o
“drama” da infeliz consciência de um filho bastardo da República na figura de Numa quando,
então, escreve:
[Numa]examinou toda a sua vida de juiz e as claudicações lhe vieram com afinada
nitidez. Devia ter procedido de outra forma? Devia; mas que lhe adiantava? Ficar
pelo interior a vegetar em lugarejos . O que ele sentia bem o que lhe tocava, o que
penetrava nele, não eram as faltas no cumprimento dos seus deveres; era a sensação
de que estava em uma grande cidade, que tinha uma casa, que o dia de amanhã
estava garantido e para viver o precisava esforçar-se. De resto, discursando hoje,
falando amanhã, a ascensão era certa; e ele que quisera algum, tinha muito; e ele que
não ambicionara a celebridade, era célebre; e que não procurara os livros, os livros o
elevavam. (BARRETO, 1956, p. 42.)
A personagem Numa é, nas categorias de Gramsci, de fato o “intelectual orgânico”,
que “navega” no interior dos interesses da oligarquia agrária. Ele incorpora os interesses desse
patronado da terra e que faz da República uma empresa particular simbolizada na mulher
infiel que, por sua vez, não é punida no romance, porque, no fundo, o que interessa é gozar as
benesses do poder, a segurança de uma classe. O poder da Repúblicada mulher infiel está
acima de todos os poderes miúdos da condição humana.
A “crise” de consciência de Numa, é marcada pelo verbo dever”. O seu
procedimento antiético, portanto, não parece proceder do seu ser, mas da conjuntura política
do poder na República -, um poder que ditava uma ética particular, construída ao sabor dos
interesses sombrios da classe de poder, da ideologia consagrada pelos interesses econômicos
dos patrões da terra, dos manipuladores da coisa pública – a República. Ao sentir-se seguro no
interior desse poder, Numa afasta essa “crise” de consciência ética na frase: “Devia ter
procedido de outra forma? Devia; mas que lhe adiantava?” A ascensão social tão ambicionada
103
por ele, supera os seus “remorsos” éticos. A consciência de sua fragilidade é dominada pela
sua condição de “homem célebre”.
A consciência de Numa neste instante não o leva a nenhum tipo de sofrimento de seu
ser, pois a culpa é transferida para o social. Numa acaba sendo, como sua mulher, uma
espécie de “vítima” da sociedade. Quando Numa comete um fiasco na Câmara ao falar de
improviso, ele solicita à mulher, como vimos, para escrever um discurso na tentativa de
reparar a impressão causada na Casa e descobre que o verdadeiro redator de seu discurso
era o amante de sua mulher, o primo Benevenuto. Com grande espanto, assim ele reage:
Então era ele? Não era ela?
Que devia fazer? Que descoberta!
[ ] A carreira... O prestígio...senador... presidente... Ora bolas!
E Numa voltou, vagarosamente, pé ante pé, para o leito, onde sempre dormiu
tranqüilamente.(BARRETO,1956, p. 265.)
A conduta de Numa muda de foco. A sociedade extremamente conservadora,
sobretudo no contexto do romance, não permitiria, por questão de honra, o procedimento
“amoral” de Numa, ou seja, dormir sempre tranqüilamente face ao adultério. O próprio Lima
Barreto relata em rias crônicas, crimes em que a honra, se maculada, era “lavada” com
sangue. O código penal considerava crime o adultério, e aquele que praticava um crime em
razão do adultério não era criminoso, mas vítima. Vítima de uma situação subjetiva
individual, mas fundamentada por princípios de valores socialmente partilhados e corroborado
pela lei. Aceitar o adultério da esposa era, para Numa, ter a garantia e a segurança de uma
vida tranquila no interior do ‘bunker’ do poder. Em sua narrativa, Lima Barreto constrói a
figura do herói sem nenhum caráter. Esta figura vai surgir mais tarde na obra de Mário de
Andrade, em Macunaíma, com outro significado. A diferença é que naquele o herói tem a
consciência de seus vícios, de sua esperteza amoral, enquanto que neste o “sem caráter” diz
respeito a um herói em formação e que está ainda vivendo a busca de sua identidade nacional.
É o herói sem caráter porque ainda não se fez, enquanto o outro já se fez sem caráter.
104
Numa pode ser considerado a síntese da ambiguidade da imagem que genericamente a
literatura consagrou, o “ser brasileiro”: que ora justifica o fracasso da Nação ao seu povo
indolente, preguiçoso, sem caráter, ora a estrutura do Estado e sua forma de organização
propensa ao favorecimento de uns pequenos grupos em detrimento da maioria.
Sabemos que o problema da imagem de nação e de povo é muito mais amplo e
complexo que os colocados pelos conceitos de descompassos históricos e ideológicos,
sobretudo no que se convencionou chamar de idéias fora de lugar e/ou de ambiguidade
centrada na subjetividade do ser. Estes conceitos se cruzam permanentemente e sempre
haverá uma idéia fora de lugar, mesmo porque uma idéia pode adiantar-se no tempo e estar
fora de lugar em seu próprio lugar –, como bem expressa Marx: uma sociedade pode conter os
germes do passado, do presente e do futuro - A razão não medeia toda a ação humana, a
ambiguidade faz parte da condição humana. Estes conceitos são muito ricos para a análise
sócio-cultural. Eles, no entanto, devem ser associados a aspectos mais amplos da vida social,
tal como o econômico, o religioso que historicamente sustentaram a estrutura e a dinâmica
dos estados Ocidentais e consequentemente o modo de como estes
se
organizaram,
desenvolvendo-se as mais variadas formas culturais ou burocráticas além de suas formas de
resistência. Assim, podemos associar a preguiça a uma forma de resistência à exploração do
trabalho. O ócio antes do desenvolvimento industrial era uma condição necessária ao
desenvolvimento do homem, após isto ele passa a ser um grave “defeito” humano. Em Lima
Barreto encontramos o ócio dos filhos dos coronéis justificado pela base econômica, enquanto
o ócio dos pobres” é visto de maneira pejorativa. O ócio não pode, portanto, ser explicado
pela idéia de valor moral, porque este teria que ser igual para toda camada social. O valor
moral passa antes pelo valor econômico. Esta sutileza é percebida por Marx em Shakespeare e
Goethe. Ele desenvolve a fundo a raiz dos problemas sociais que passam, em última instância,
pelas relações econômicas.
105
A personagem Numa é fruto do processo de expansão capitalista europeu, do
desenvolvimento específico e tardio do capitalismo no Brasil, fora de sintonia com os países
capitalistas hegemônicos. Assim, ele “abriga” as mazelas conseqüentes desse processo
civilizatório das principais personagens dirigentes do país. Ele utiliza-se de todos os meios
ilícitos para atingir o poder, e ao expressar um certo sentimento amoroso pela esposa, esse
“amor” é superado pela força do poder político a máscara que o protege de sua miséria
moral.
Teve amor pela mulher, sentiu-a boa e o seu sentimento por ela se separava agora de
todo e qualquer interesse, de toda e qualquer ambição. Para que aquela teima? Devia
deixar a política, viver simplesmente com a sua mulher até que a morte o levasse.
Mais valia a vida assim do que ele estar a contrafazer-se a todo instante. Mas para
que fazer isto? Que seria ele? Nada. Devia continuar, devia não recuar. (BARRETO,
1956, p. 264.)
Fica claro o conflito interno da personagem entre o ser e o parecer. Vence, como
vimos, o seu “passar por cima” do adultério da mulher, o parecer-ser, o conforto de uma vida
economicamente resolvida, uma figura valorizada mesmo praticando o ócio numa sociedade
em que a preguiça era considerada ora um mal ora uma esperteza às avessas.
Subir, subir, este era o lema de Numa, cuja “esperteza” está associada não à sua
conduta, mas também ao fato de ele ser doutor. É o diploma de doutor o primeiro princípio a
abrir-lhe as portas, princípio este que não garante a sua integridade de homem, como ocorre
em Numa Pompílio de Plutarco. O amor à filosofia em Plutarco era o esteio de formação das
virtudes morais. O poder não está diretamente relacionado ao dinheiro em si, o contexto é
outro. Numa imita, assimila e incorpora a conduta do poder das sociedades capitalistas, segue
a utopia da igualdade de oportunidades, da capacidade individual no mundo do mercado
social, sob a guarda dos valores proclamados da democracia, mas não reais. Ora, por trás
desta lógica não é concebível uma prática social mais ampla, ou seja, cria-se o mito da
liberdade sob formas de governos democráticos. O avanço da forma democrática, sobretudo,
nas práticas comunicativas se tem mostrado frágil em relação ao problema da desigualdade
106
social, a cada dia mais gritante na América Latina. Estado, mercado, democracia e sociedade
civil são partes de um mesmo processo. Ao dar prioridade a um destes elementos encobrindo
outros, a história nos é testemunha dos fracassos sociais da qual Numa é uma das infinitas
representações.
Mas há, em relação a Numa, um contra ponto político na consciência de Benevenuto e
Bogoloff. Lima Barreto não parodia apenas a nossa miséria, em seu texto se apresentam
personagens que se podem salvar, como é o caso daqueles. A primeira observação a propósito
do pensamento ético-político de Benevenuto está associada pelo fato de ele não estar ligado
ao poder, embora é o seu discurso lúcido que, intermediado por Edgarda, sustenta a imagem
do poder de Numa. Esta observação vem de Mme Fanfaible:
- O doutor deve levar em muita conta a opinião do doutor Benevenuto.
Ela é desinteressada, perfeitamente desinteressada... Não é de oficial do mesmo
ofício... [ ] Bem fez o doutor Benevenuto que não quis ser nada.
- Não sou eu [Benevenuto] quem não quer , minha senhora; são os
obstáculos. A minha vocação não é para esse steeplechose de pistolões,
choradeiras, casamento, intrigas, abdicações, pedidos, mofinas... Para isso, há uma
raça especial... (BARRETO, 1956, p. 43, 44.)
Benevenuto confirma a prática política do conluio da qual Numa é seu representante.
Esta prática da qual ele chama de “obstáculos” o impede de participar do cenário político. O
que se entende é que Benevenuto não está de acordo com o poder pelo poder. A sua opinião é
desinteressada das relações “obrigatórias” que sustentam o poder.
Benevenuto “não é oficial do mesmo ofício”, por isso o seu olhar é de fora e como
olhar distante é o olhar crítico presente no livro. Mas o seu talento crítico não é
transformador, ao contrário, ele colabora com o poder da classe dominante ao alimentar, com
a sua retórica, a figura de Numa. Como diz Mme Fonfaible: “O talento serve muito, não
dúvida, mas é para ajudar os outros.” (BARRETO, 1956, p. 44.) Ora, o que se deduz desta
frase é que a posse do “pensamento” de uma certa produção intelectual por parte da classe
dominante pode servir de justificativa de seu poder de domínio. Não a prática de Numa
107
confirma esta hipótese: a obra de Lima é testemunho vivo desta prática ao denunciar, por
exemplo, o darwinismo social. Esta produção intelectual, no sentido de ser genericamente
reconhecida em várias sociedades como produção científica, “caiu como uma luva” para
classe dominante brasileira que a utilizou para reafirmar seu poder e justificar a incapacidade
do negro. Se certas produções intelectuais diretamente ou indiretamente saem do núcleo do
poder ou vêm ao encontro deste, isso não quer dizer que elas são hegemônicas. O contrário se
dá, mas devemos reconhecer a fragilidade de sua força política.
Benevenuto é a personagem que representa este contraponto. Nas discussões das
intrigas políticas acerca da sucessão presidencial que giram em torno da disputa pelo poder
entre militares e civis general Bentes e Xisto – o pano de fundo que sustenta essa intriga se
desenha no seguinte diálogo entre Benevenuto e Costa, cuja mania era a política:
- Costa, disse-lhe este [Benevenuto], não te parece semelhante conciliação
[liberdade e a ditadura] um tanto difícil?
- A ditadura não é isso que vocês pensam, é a ditadura republicana.
- Em que consiste a diferença?
- Em que consiste? Consiste em suprimir, em diminuir as atribuições desse
congresso, dessa justiça que perturbam o regime.
- Mas, Costa, você não quer conciliação da liberdade com o governo?
- É o que diz o Mestre, o maior pensador dos tempos modernos [ ].
- Sei, se você quer isso, deve querer Justiça e Congresso, porque assim se obtém a
conciliação. Todo o pensamento em criá-los e fazê-los independentes não foi
senão com esse fim. Você lembra-se bem da história da revolução... (BARRETO,
1956, p. 76.)
-
Benevenuto não vê com bons olhos a posição de Costa que através da voz do narrador
comenta:
Sabia que Costa passara pelo florianismo e essa concepção nacional de governo traz
no bojo, no fim de contas, um grande desprezo pela vida humana. [ ] O florianismo
dera-lhe a visão perfeita do que eram. Um esfacelamento da autoridade, um
pululamento de tiranos; e, no fim, um tirano em chefe que não podia nada. A
liberdade conciliada com a ditadura! Quem regulava essa conciliação, quem
determinava os limites de uma e de outra? Ninguém, ou antes: a vontade do tirano,
se fosse um, ou de dois mil tiranos, como era de esperar (BARRETO, 1956, p. 77,
78.)
108
A desconfiança de Benevenuto com a possibilidade da volta do governo militar está
relacionada ao sentimento atávico de sua memória, pois ele testemunhou aos 12 anos os
acontecimentos de 1893, e percebeu o espírito opressor que predominou no governo de
Floriano. Este sentimento inquieta-o, face à relação entre nacionalismo e intolerância que
chegou às vias de brutalidade desprezo pela vida humana confundindo o conceito de
autoridade com autoritarismo. A partir da sua experiência, Benevenuto se recusa a pensar em
um novo projeto nacional, que não fundamentado na liberdade social, na liberdade do
complexo universo plural da sociedade brasileira. A soberania social que curiosamente
fundamenta-se na coincidência do interesse público com o privado, ou como diz Harendt, “os
interesses privados assumem importância pública”, transforma-se apenas numa instituição
jurídica que de tão frágil não garante sequer o direito jurídico sico das diferenças humanas.
A soberania da lei perde sua eficácia uma vez que age diferentemente para cada classe social,
ultrapassa o espaço social e se insere no espaço puramente “político”, transformando a
República numa tirania, a tirania de Floriano. A tirania possibilita qualquer forma da
cidadania, pois esta se na esfera social, a partir de pequenas ações cotidianas, nas
variedades das vozes que manifestam seu descontentamento no espaço público.
A estrutura republicana em seus primórdios foi extremamente opressora, impedindo a
formação da cidadania e consequentemente de uma sociedade fortalecida. Não podemos
pensar a liberdade somente enquanto instituição jurídica, pois isto emperra qualquer
desenvolvimento. A sociedade brasileira da época de Lima Barreto que “assistiu bestializada”
a proclamação da República, continuou bestializada na sua conformação. Como bem percebeu
Florestan Fernandes, a revolução burguesa no Brasil não se deu porque a sua estrutura
impediu a integração dos agentes humanos num sentido amplo e profundo. A personagem
Benevenuto de Numa e a Ninfa é a expressão dessa consciência. Uma consciência crítica, uma
exceção à regra, que sabe que a política pode ser um meio transformador, ou, se possível, de
109
melhoria social. No entanto, como ele conhece bem o “jogo” de cartas marcadas da política
republicana, se recusa a participar dela.
Bogóloff, personagem citada anteriormente, também se espanta diante da confusão da
idéia de República expressa por Inácio Costa. Eis suas impressões:
[Bogóloff] verificou, com singular assombro que Inácio tinha do governo uma
concepção paternal de mujique; que o seu desejo era entregar todos os poderes a um
só, a um tirano e esse tirano fosse um militar. o compreendia que um homem
como ele, que se dizia republicano, democrata, tivesse semelhante idéia de
república. [ ] Inácio parecia não ter apercebido dessa feição dos governos modernos,
dessa necessidade de contrapesos, de recíproca fiscalização entre os depositários do
governo, para que nenhum fosse efetivamente governo.
[ ] Essa sua mórbida admiração por Floriano era tanto ingênua quanto sem razão.
Como esse homem era estadista eminente e não tinha deixado nenhuma obra de
estadista, obra que redundasse em benefício geral, que tendesse para a felicidade dos
povos, na expressão de Bossuet? Como ele tinha mantido a ordem republicana, se
atentara contra os tribunais, os parlamentos, as leis, e queria tudo isso curvado à
sua vontade? Não era bem a República que Costa queria; Costa desejava o regimem
russo ou melhor, dos canatos tártaros. (BARRETO,1956, p. 199, 200.)
Bogóloff é um imigrante russo que procura no Brasil o sonho da liberdade, pois fora
perseguido político em seu país de origem por ser considerado subversivo. A estranheza de
Bogóloff, sob um olhar crítico, possui uma trajetória diferente de Benevenuto. Benevenuto
tem recurso que o mantém confortavelmente. Bogóloff é um pobre imigrante sonhador que
na terra a possibilidade da sobrevivência, da fartura. Trabalha duro na terra, mas a falta de
incentivos do governo, aliada à falta de conhecimento da própria terra, o levam a desistir de
seu sonho. Desiludido, vai à capital federal em busca de um novo caminho. E percebe que a
única via fácil para a sua sobrevivência e ascensão social é a busca de “padrinhos” políticos.
Por intermédio de Lucrécio ingressa no universo político e de “russo puro”, torna-se um russo
espertalhão. Ele conscientemente entra na ciranda que tanto estranhara. A impressão que fica
é que, à moda de Rousseau, é a sociedade que corrompe, assim como corrompe Bogóloff,
Edgarda, Lucrécio, etc. No entanto, em seu sentido amplo, não havia uma sociedade civil
110
constituída. Lima, ao responder à crítica feita por João Ribeiro a propósito de sua personagem
Edgarda, na qual ele a qualificou de velhaca, diz:
Mas permita, como todo romancista que se preza, eu tenho amor e ódio pelos meus
personagens. Por isso eu pedia licença para protestar contra o qualificativo de
velhaca que o senhor opôs à minha Edgarda. Eu o a quis assim. Ela é vítima de
uma porção de influências sociais, de terrores em tradições familiares, quando aceita
o casamento com o Numa. Depois... Nós, dada a fraqueza do nosso caráter, não
podemos ter uma heroína de Ibsen e, se eu a fizesse assim, teria fugido daquilo que o
senhor tanto gabou em mim: o senso da vida, da realidade circundante. (BARRETO,
2001, p. 32, in Nota Rodapé.)
Acresce à observação de Lima Barreto que Edgarda, se vítima de sua própria classe
aristocracia agrária -, suas influências (tradições familiares) não eram partilhadas por toda
sociedade. A tese de fraqueza de caráter não se sustenta, porque ela no fundo se iguala ao da
preguiça, ou seja, é um modo muito simples para considerar um problema maior. A heroína
de Ibsen é heroína porque redescobre o seu verdadeiro papel e parte para exercer sua
liberdade-cidadã, no alvorecer da sociedade capitalista, onde a mulher surge com chances
para vender “livremente” sua força de trabalho. Edgarda, ao contrário da personagem Senhora
de José de Alencar, que se rebela face à situação de mulher-objeto, conscientemente se
acomoda à estrutura draconiana da oligarquia agrária, infinitamente superior às suas forças, e
se deixa levar por seu duplo papel de mulher e amante. Ela não era inocente, não era velhaca e
tão pouco fraca de caráter; ela era, naquela circunstância, mulher, ávida da proteção de um
rico lar. O que Lima não considerou são os liames da estreita relação entre política e
sociedade, o cinismo que há por trás da representação nacional, como bem diz Arendt:
O que chamamos anteriormente de ascensão do social coincidiu historicamente com
a transformação da preocupação individual com a propriedade privada em
preocupação pública. Logo que passou à esfera pública, a sociedade assumiu o
disfarce de uma organização de proprietários que, ao invés de se arrogarem acesso à
esfera pública em virtude de sua riqueza, exigiram dela proteção para o acúmulo de
mais riqueza. (ARENDT, 1981, p. 78.)
111
A última personagem que nos chama a atenção é Lucrécio Barba-de-Bode. Ele não era
um político no sentido “profissional”, mas uma espécie de capanga da política. Assim, Lima
Barreto lhe traça o perfil:
Fez-se eleitor e alistou-se no bando do Totonho, que trabalhava para Campelo. [ ]
Começou a usar armas, a habituar-se a rolos eleitorais, a auxiliar a soltura dos
conhecidos, pedindo e levando cartas deste ou daquele político para as autoridades.
Perdeu medo das leis, sentiu a injustiça do trabalho, a niilidade do bom
comportamento. Todo o seu sistema de idéias e noções sobre a vida e sociedade
modificou-se, se não se inverteu. [ ] Meteu-se numa questão de jogo com um rival
temido, matou-o. [ ] Foi a juri e, absolvido, por isto ou por aquilo, o Totonho fez
constar que o fora por empenho do doutor Campelo. [ ] Com o tempo, Lucrécio
ganhara certa inteligência política. Ele que, a custo, tinha ido até à tabuada, ficou
sabendo muito da difícil arte de governar os povos. Passara muito além a sua
inteligência do capítulo dessa arte que trata das desordens nas eleições e meetings,
com assassinatos consequentes, Lucrécio compreendia certas manobras da alta
estratégia dos deputados. (BARRETO, 1956, p. 59, 203.)
Lima sarcasticamente resume as estratégias políticas arcaicas que se pretendem
modernizantes na República. Os agenciadores políticos da República não assumem o papel de
desencadeadores de um processo civilizatório diferenciado face à pobreza do “capital”
humano. Como vimos a grosso modo, a burguesia que compunha o Estado era provenientes
do mundo rural, e como tal, os conflitos nunca ultrapassavam as barreiras culturais das velhas
oligarquias. Ao contrário, o “burguês” incorporou as práticas do mandonismo oligárquico.
Como escreve Florestan Fernandes, o mandonismo oligárquico reproduzia-se fora da
Oligarquia. O burguês que o repelia, por causa de interesses feridos, não deixava de -lo em
prática em suas relações sociais, já que aquilo fazia parte de sua segunda natureza humana.
(FLORESTAN, 1975, p. 205.) Lucrécio é a mais expressiva evidência desse processo. As
manobras que o livram do crime estão ligadas a grandes chefes partidários que extrapolam seu
território. A sua alcunha de Barba-de-Bode é o próprio bode expiatório das manobras políticas
ilícitas que tão bem expressam o nosso atraso político. Como tal, permanecerá pobre,
reconhece que a falta de oportunidades não se limitará a ele, se estenderá a seu filho, por ser
negro, por não ter uma boa escola. Por isso Lucrécio olha para seu filho preocupado e se
pergunta o que vai ser dele? “E logo lhe veio o ceticismo desesperado dos imprevidentes, dos
112
apaixonados e dos que erram; de ser como os outros, como eu e muita gente. É sina!”.
(BARRETO, 1956, p. 89.)
Esta dimensão aguda da consciência infeliz de Lucrécio, apesar de sua prática
sombria, nos revela que talento e mãos não são sinônimos de liberdade. Dificilmente o
talento conseguia superar a condição de ser negro ou mestiço numa sociedade em que
combinava o nascimento de uma burguesia dentro de um sistema oligárquico. A liberdade é
um construto histórico e Barba-de-Bode, seu filho e tantos outros de sua condição, não
obtiveram os espaços necessários para construírem sua própria história. Por isso, a palavra tão
forte: sina. Seguir atrás das trilhas marcadas pelos agentes políticos, muitos deles
corrompidos, era a única via que se abria para ele se proteger como cidadão. Ele mais se
assemelha a um Dom Quixote invertido, os famosos cabos-eleitorais que compõem o universo
até hoje da política nacional, e que Lima tão bem expressa em sua paródia.
113
EPÍLOGO
A leitura de Lima Barreto significou para mim uma aprendizagem renovada sobre o
Brasil, sobretudo, uma leitura feita, por via do romance literário, de uma página diferente de
nossa realidade político-social. Sua obra se parece a uma raiz que, ao ficar em si mesma, bebe
da água de todas as raízes. Lima quer conhecer a alma brasileira dentro de sua própria alma,
sem o olhar das ideologias de importação de sua época que nos levavam a ver o Brasil pelo
olhar da Europa. Ele sofreu as discriminações de sua cor, de sua situação de pobreza material,
de sua rebeldia inata, de sua revolta por consequência de sua sensibilidade intelectual, por
seu distanciamento em relação à “paisagem” ideológica expressa nas teorias cientificistas, tão
ao gosto de um escritor como Euclides da Cunha e das retóricas de um Coelho Neto e Rui
Barbosa. Lima foi o escritor que não se negou. Voltado para dentro de si e para o país, sem
nenhuma pretensão de universalidade, como garantia de expressar o Brasil com forte pintura
original, ele evidentemente o escapa de influências externas, mesmo inconsciente. Sob essa
influência é que Lima diz que pretendia escrever um Germinal brasileiro. Não escreveu, mas
acabou por se tornar indiretamente um Germinal no grito abafado de suas letras, mesmo sendo
reconhecido ironicamente como “literato”.
A leitura de Lima, enfim, nos obriga a renovar o próprio olhar sobre o Brasil, a
ficarmos atentos a ideologias sem o abrigo de uma cultura, sem a devida redução à nossa
realidade. O meu interesse por Lima Barreto está justamente nesse nó que pretende revelar um
Brasil real por meio de uma forma considerada imaginária que é o romance. Certo que o
devemos olhar a obra literária como um “documento”, mas como um relato, que foge ao
compromisso da “verdade científica”, enquanto mensuração da realidade, mas que não deixa
de dar as suas lições. Como relato, a literatura representa um veio cultural que expressa nossa
114
grandeza ou nossa miséria, e nos obriga a responder por suas provocações, dentre elas os
porquês de nossa fragilidade moral, das alienações políticas, das culpas não redimidas da
desigualdade social. O Brasil no contexto de Lima era constituído de uma população em sua
maioria de analfabetos. Sua literatura enquanto proposta de união do povo não interessava aos
letrados. Os letrados eram a classe dominante que não se julgava povo. Povo era sinônimo no
romance de “aquela gente”, “povinho”, ou seja, “o povo faz-se, faz-se graças à necessidade,
graças à ilusão do Estado e a simplicidade dos esmagados”. (BARRETO, 1956, p. 116.)
Lima era a exceção, o letrado que se sentia povo, por isso duplamente esmagado.
Numa e a Ninfa procura, às avessas, a moralidade política. Por meio da paródia ele reconstrói
o nosso passado de sombras que, feito uma nódoa, nos “agasalha” até hoje.
É contra a história da desigualdade social brasileira – contra o mito cheio de remendos
da primeira República, disfarçada na ditadura de oligarquias, que Lima Barreto se insurge.
Sua obra se transforma com o tempo num relato o de barbárie, mas também de
civilização. A compreensão de sua paródia em Numa e a Ninfa não suscita em nós o riso ou o
esquecimento do Brasil com suas mazelas, mas nos revela um passado que continua a nos
provocar o conhecimento de um presente de sombras. A obra de Lima Barreto, como toda
grande narrativa, pode ser representada na indicação de Jean Genet, quando escreve:
L’artiste n’a pas – ou le poète - pour fonction de trouver la solution des problèmes
du mal. Quils acceptent d’être maudits. Ils y perdront leur âme, s’ils en ont une, ça
ne fait rien. Mais l’euvre sera une explosion active, un acte à partir duquel le public
réagit, comme il veut, comme il peut. Si dans l’euvre d’art le “bien” doit apparaître,
cést par la grâce des pouvoirs du chant, dont la vigueur, à elle seule, saura magnifier
le mal exposé.
21
115
19 O artista o tem ou o poeta por função encontrar a solução para os problemas do mal. Que aceitem ser
malditos. Em consequência perderão sua alma, se eles a tem, o importa. Mas a obra será uma explosão de
vida, um ato a partir do qual o público reage, como deseja, como pode. Se na obra de arte o “bem” deve
aparecer, é graças aos poderes do canto, cujo vigor, somente a ele, será enaltecer o mal exposto. (Trad. nossa)
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121
ADENDO
Barreto, Afonso Henrique de Lima. Nasceu no Rio de Janeiro (13/5/1881). Morreu no Rio de
Janeiro (1/11/1922).
Mestiço de origem humilde. Curso secundário no Colégio Pedro II. Escola Politécnica, que
abandona no 3º ano, por falta de recursos. Passa a viver do jornalismo e do funcionalismo
público (amanuense do Ministério da Guerra) até o fim da vida. Sofrendo de uma neurose,
agravada com a loucura do pai, e posteriormente pela dipsomania, buscou refúgio na boêmia e
em excessos, que acabaram por levá-lo a várias vezes ao hospício e à morte prematura.
Pouco apreciado no seu tempo, é hoje um dos mais festejados romancistas Brasileiros. Deve-
se a sua descoberta e valorização aos modernistas, àqueles que, contrários à arte pela arte,
preconizavam uma literatura empenhada, social. Entretanto o verdadeiro triunfo de sua obra viria
bastante depois da vitória do Modernismo.
Pertence à linha de romancistas urbanos, psicológicos, sucessores de Machado de
Assis. Como este, Lima Barreto é romancista dos ambientes, costumes e tradições cariocas. O
mesmo pessimismo e humor, a mesma finura psicológica e sátira social. [ ] Fazendo sátira
política (Numa e a Ninfa), crítica social ao preconceito de cor (Clara dos Anjos), ou análises
de caracteres e costumes (Triste Fim de Policarpo Quaresma, Vida e Morte de Gonzaga de
Sá), Lima Barreto não se preocupa em geral com a efabulação romanesca; prefere a sondagem
psicológica, o mundo interior das personagens, pensamentos, sensações, reflexões. [ ]
Somadas qualidades e deficiências, a obra barretiana tem lastro suficiente para pesar entre as
mais significativas da ficção brasileira.
(LUFT, Celso Pedro. Dicionário de Literatura Portuguesa e Brasileira. Enciclopédia
Globo para os Cursos Fundamental e Médio. Organizada sob a direção do Professor Álvaro
Magalhães. Porto Alegre, Globo, 1979, p. 42/43.)
Egéria, na religião romana, uma deusa das fontes e também do parto. Foi-lhe dedicada uma
fonte sagrada, de onde as Vestais tiravam água para seu ritual, nas proximidades da porta
Capena. Nessa fonte, segundo a lenda, Égéria costumava encontrar-se com o rei Numa
durante a noite e o ajudava com seus conselhos. De acordo com outra versão da lenda ela era
a mulher de Numa.
(HARVEY, Paul.
Dicionário Oxford de Literatura Clássica.
Tradução de Mário da Gama
Cury. Rio de Janeiro: Zahar, 1987, p. 82/83.)
Numa Pompílio (L. N. Pompilius), na história romana semilendária, sucessor de Rômulo
como rei de Roma. De acordo com a tradição seu reinado foi longo e pacífico, visto em
épocas posteriores como uma espécie de Idade de Ouro, e os romanos lhe atribuem muitas de
122
suas instituições religiosas: festas, sacrifícios e outros ritos, os Pontífices, as Virgens Vestais e
os Sálios. Atribuem-se-lhes também a construção da Regia, ou Palácio Real (nas imediações
do Fórum), do templo de Vesta e de outros templos, além da reforma do calendário com o
acréscimo de janeiro e fevereiro aos dez meses do calendário primitivo. Segundo a lenda
Numa teve a ajuda dos conselhos da deusa Egéria, que o amou. Acredita-se que ele escreveu
numerosos livros sobre a lei sacra, e que esses livros teriam sido descobertos muitos séculos
mais tarde em sua tumba no Janículo. uma Vida de Numa escrita por Plutarco. (Idem, p.
358.)
O caráter de Numa em Lima Barreto e o caráter de Macunaíma em Mário de Andrade
Eis uma observação da Profa. Dra Raimunda Batista, membro da Banca, e que merece
registro: “O Numa de LB é um herói sem nenhum caráter, mas Macunaíma é sem nenhum
caráter no sentido marioandradiano, sem características ainda definidas, o herói
incaracterístico. Na verdade Mário fala do caráter, mas não se refere às boas ou más
qualidades atribuídas a um ser humano, e sim às características que ele pretende dar a
Macunaíma que é a encarnação da cultura brasileira: múltipla, cheia de nuances. O Numa de
LB está contaminado, é o ser sem boas qualidades mesmo. Como v. diz no ult. § é o ser de
“caráter vicioso”..., numa acepção mais maquiavélica como v. fala à p. 70.”
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