Download PDF
ads:
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
A CORRENTE SUICIDÓGENA DE DURKHEIM E SUAS RELAÇÕES COM AS
MANIFESTAÇÕES DA PULSÃO DE MORTE NA CULTURA EM FREUD E LACAN:
um percurso preliminar a um diálogo possível
Liliane Maria Alberto da Silva
Belo Horizonte
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Liliane Maria Alberto da Silva
A CORRENTE SUICIDÓGENA DE DURKHEIM E SUAS RELAÇÕES COM AS
MANIFESTAÇÕES DA PULSÃO DE MORTE NA CULTURA EM FREUD E LACAN:
um percurso preliminar a um diálogo possível
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da
Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em
Psicologia.
Orientador: Luis Flávio Silva e Couto
Belo Horizonte
2007
ads:
-
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Silva, Liliane Maria Alberto da
S586c A corrente suicidógena de Durkheim e suas relações com as
manifestações da pulsão de morte na cultura em Freud e Lacan: um percurso
preliminar a um diálogo possível/ Liliane Maria Alberto da Silva Belo Horizonte,
2007.
164f.: il.
Orientador: Prof. Luis Flávio Silva e Couto
Dissertação (mestrado)
Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Bibliografia.
1. Suicídio. 2. Psicanálise. 3. Durkheim, Émile, 1858-
1917. 4. Melancolia. 5. Instinto de morte. I Couto, Luis Flávio Silva. II. Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em
Psicologia III. Título.
CDU: 159.964.21
Bibliotecária: Mônica dos Santos Fernandes – CRB 6/1809
Liliane Maria Alberto da Silva
A CORRENTE SUICIDÓGENA DE DURKHEIM E SUAS RELAÇÕES COM AS
MANIFESTAÇÕES DA PULSÃO DE MORTE NA CULTURA EM FREUD E LACAN:
um percurso preliminar a um diálogo possível
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Belo Horizonte, 2007
Luis Flavio Silva e Couto (Orientador) – PUC Minas
Catherine Koltai
Regina Helena Freitas Campos
À Deus.
AGRADECIMENTOS
À Paula Marília Cabral Ribeiro Justo. Paula Justo. A Querida Paula, que por
saber sustentar o seu lugar com tanta doçura e paciência me proporcionou descobrir
que a vida não é uma mágica, é um Milagre.
À Arlete Diniz Campolina, cujo desejo de analista sustentou que eu não me
perdesse do meu próprio desejo de contribuir com o que a minha escuta trouxesse
sobre Durkheim.
Ao Luis Flávio Silva e Couto, que com entusiasmo me acolheu em meio ao
caminho, me apontou horizontes e não permitiu o temor à heresia.
À Catherina Koltai e Regina Helena Freitas, pela disponibilidade em acolher o
meu trabalho.
À Jacqueline Moreira Oliveira, Roberta Romaglioli e Ilka Franco Ferrari, pelos
exemplos de amor ao saber e à Ética, bem como pelo comprometimento com o ensino.
À Marília Rita, que com sua alegria e boa-vontade tantas vezes me deu suporte
para o trabalho que aqui apresento.
Às amigas/irmãs Carmem Virginia, Maria Flora, Maria e Teresa, por tantos
caminhos onde o sul sempre esteve ao sul, e a nossa amizade, inesquecível. A vocês o
meu amor e a minha gratidão.
Aos meus muito caros e queridos amigos, com quem estar ombro a ombro e
lado a lado tem sido antes de tudo um prazer: Carol, Cláudia, Cristiane Penélope,
Daniela, D. Edite e família, Edriane, Eliete, Everson, Fabiano, Fernando, Fred, Keila,
Kenia, Jairo, Jânio, João Jacques, Ladimir, Léo Chico, Luciana, Marie, Naia, Nívea,
Núbia Catarina, Raquel, Ricardo Alexandre, Rogério, Santuza, Selmara, Valéria. É uma
honra tê-los encontrado e alinhavado a minha história à de vocês.
Ao trio Antonio, Costantino e Sarah em cujos corações eu encontrei guarida,
cais de estrelas em turbulento mar.
Aos meus alunos, em cujo desejo de aprender eu também reencontro o meu
desejo de saber. E de transmitir.
Aos amados tios e primos. E em especial ao Padrinho Birín e Madrinha
Mariinha, Madrinha Ângela, Juninho e Roberta, Marcelo, Chris, Márcio José, Ju e
Angelo pela confiança e amor incondicionais.
Aos amores de casa: meu pai em cujo olhar eu me fortaleço, minha mãe em
quem a ternura fez morada, minha irmã Lucinha com quem aprendo sobre não desistir
dos sonhos, meu irmão André que me ensina a interlocução da justiça e da
generosidade, minha irmã Patrícia que trouxe o tempo de prosseguir para o futuro, meu
irmão Jamil que me lembrou a rapidez com que a vida passa, meu sobrinho Vitor que
não me deixa esquecer que uma pipoquinha com quem se ama é imperdível!
Ao amor Rodolfo, com quem eu descubro que sentir é a forma mais sábia de
saber.
Por último, eu não poderia deixar de registrar a minha homenagem aos que, ao
deixar-se cair da vida, terminam por nos convocar ao enigma que é viver.
“O que não sei fazer
desmancho em frases.
Eu fiz o nada aparecer.
(represente que o homem
é um poço escuro.
Aqui de cima não se vê
nada.
Mas quando se chega no
fundo do poço já se pode
ver o nada)
Perder o nada é um
empobrecimento.”
Manoel de Barros – 2004
RESUMO
Esta dissertação é resultado de uma pesquisa teórica acerca do conceito de
corrente suicidógena de Durkheim, e tem como objetivo analisar a aproximação
deste conceito e o que Freud e Lacan propõem como manifestação da pulsão de
morte na Cultura. Foram trabalhadas as formas de convergência e de divergência
entre dois pólos fundamentais para o campo tanto da ciência quanto da psicanálise.
Estes pontos são a noção de sujeito em cada uma e a relação que estes campos
mantêm com o saber e a verdade. Quanto a isto, sugere-se que o sujeito do
inconsciente, análogo ao sujeito do cogito cartesiano, possa ser aproximado do
conceito de indivíduo que Durkheim constrói e nomeia como uma “realidade psíquica
sem fundo e insaciável”. No que diz respeito à relação que estes campos
epistemológicos mantêm com o saber e a verdade, a divergência aparece no
investimento que a ciência faz em um saber que se pretende uma verdade universal,
ainda que provisória. Na psicanálise, de modo oposto, cada sujeito deve ser
convocado a produzir um saber a partir da verdade que emerge das manifestações
do inconsciente. Apesar da divergência na relação com o saber e a verdade, a
aproximação entre o sujeito da ciência e o da psicanálise tem o efeito de estabelecer
um campo de discussão entre ambas; deste modo entende-se que a pergunta inicial
desta pesquisa encontra sua fecundidade no campo que surge desta interseção. A
questão do suicídio na psicanálise é tratada a partir do entrelaçamento entre a
pulsão de morte e o laço social, dos conceitos de melancolia, de masoquismo moral,
de gozo, de passagem ao ato e de acting-out. O maior obstáculo para estabelecer
uma correspondência entre o conceito de corrente suicidógena e as manifestações
da pulsão de morte na cultura é a hipótese de o suicídio ter a função social de
restabelecer o laço social que Durkheim propõe. Este obstáculo não pôde ser
superado e conclui-se que é prematuro afirmar tal similaridade, baseado nos
conceitos psicanalíticos aqui utilizados. Entretanto, a possibilidade de utilizar o
arcabouço teórico psicanalítico para discutir a teoria sobre o suicídio em Durkheim
abre um novo campo de investigações sobre o ato suicida.
Palavras-chave: Suicídio, Psicanálise, Emile Durkheim, Melancolia, Pulsão de
morte
RÉSUMÉ
La présente étude est le résultat d'une recherche théorique sur le concept à chaînes
occasionnel du suicide de Durkeim, et a en tant qu'objectif pour analyser l'approche
de ce concept et quels Freud et Lacan considèrent comme manifestation de la
pulsion de mort dans la culture. Les points de convergence et de divergence entre
deux points fondamentaux pour les champs de la science et de la psychanalyse ont
été analysés. Ces points sont la notion du sujet dans chaque domaine et de la
relation entre ces champs et "savoir" et "vérité". On le suggère que le sujet du sans
connaissance, analogue au sujet du "cogitate cartésien", puisse être approché au
concept de l'individu que Durkheim construit et nomme comme " réalité psychique
sans fond et insatiable". Pour ce qui concerne la relation ces champs epistemological
maintiennent avec la "savoir" et la "vérité", la divergence surgit de la manière que la
science investit sous une forme de la connaissance qui s'énonce en tant
qu'universel, bien que provisory. Dans la psychanalyse, d'un côté, chaque sujet doit
produire la connaissance à partir de la vérité qui émerge des manifestations du sans
connaissance. Bien que la divergence en relation avec la "savoir" et la "vérité",
l'approche entre le sujet de la science et celle de la psychanalyse fasse établir l'effet
de un champ de discussion entre ces champs. Ainsi, on le comprend que la question
initiale de cette recherche trouve sa fécondité dans le domaine qui résulte de cette
intersection. La question du suicide dans la psychanalyse est traitée de l'intersection
entre la commande de la mort et la cravate sociale, les concepts de la mélancolie, le
masochisme moral, la joie, le passage par l'acte et l'action-dehors. Le plus grand
obstacle d'établir une correspondance entre le concept à chaînes occasionnel de
suicide et les manifestations de la commande de la mort dans la culture est
l'hypothèse que le suicide peut faire tablir la fonction sociale de la cravate sociale
proposée par Durkheim. Cet obstacle ne pourrait pas être surpassé dedans et on le
conclut qu'il est prématuré d'énoncer une telle similitude, basée sur les concepts
psychoanalytiques utilisés ici. Cependant, la possibilité d'employer le cadre théorique
de la psycho-analyse pour discuter la théorie sur le suicide dans Durkheim ouvre un
nouveau champ de recherche sur l'acte suicidaire.
Mot clef: Suicide, Psychanalyse, Emile Durkheim, Pulsion de mort
LISTA DE QUADROS E FIGURAS
Quadro 01 – Diferenças entre as Solidariedades Mecânica e Orgânica.....
Quadro 02 – O Indivíduo em Durkheim..........................................................
Quadro 03 – Tipos de Vínculo Social e os Tipos de Suicídios Análogos...
Quadro 04 – Os Três Tipos de Suicídio Altruísta..........................................
Quadro 5 – O Individuo de Durkheim e o Sujeito da Psicanálise................
Figura 1 – Os Quatro Discursos.....................................................................
Figura 2 – Estrutura do Discurso Capitalista................................................
42
47
50
57
90
116
117
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO: UM PERCURSO PRELIMINAR A ESTA PESQUISA......
2 O SUICÍDIO EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA..................................
2.1 O suicídio entre os povos primitivos....................................................
2.2 O suicídio entre os gregos e os romanos............................................
2.3 O suicídio entre os primeiros cristãos europeus................................
2.4 O suicídio entre os brasileiros: o suicídio não é mais um pecado,
o suicídio impede o progresso..................................................................
3 O SUICÍDIO EM DURKHEIM: O HOMEM DA CIÊNCIA É CAPTURADO
PELOS MECANISMOS DE RESTABELECIMENTO DA NORMA SOCIAL
3.1 A sociedade é resultado dos laços de solidariedade.......................
3.2 O indivíduo em Durkheim...................................................................
3.3 Vínculo social e os tipos de suicídio.................................................
3.3.1 O suicídio egoísta.............................................................................
3.3.2 O suicídio altruísta............................................................................
3.3.3 O suicídio anômico...........................................................................
3.4 Uma função social para o suicídio.....................................................
4 O ATO SUICIDA DO PONTO DE VISTA DA PSICANÁLISE E OS
POSSÍVEIS PONTOS DE APROXIMAÇÃO COM A TEORIA DE
DURKHEIM.....................................................................................................
4.1 Ciência e psicanálise: a diferença impede a discussão?...................
4.1.1 Os indivíduos de Durkheim e o sujeito da psicanálise....................
13
18
19
23
27
31
41
42
46
50
52
57
63
65
78
78
80
4.1.2 Saber e verdade na ciência e na psicanálise....................................
4.2 A pulsão de morte e o vínculo social do ponto de vista
psicanalítico..................................................................................................
4.2.1 A pulsão de morte e o vínculo social em Freud...............................
4.2.2 O Discurso Capitalista e a circulação de Gozo na Atualidade........
4.2.2.1 O discurso do analista e a resistência à quantificação do
suicídio na contemporaneidade..................................................................
4.3 O ato suicida do ponto de vista da psicanálise e o conceito de
corrente suicidógena de Durkheim.............................................................
5 ALINHAVAR UMA CONCLUSÃO: O QUE FOI POSSÍVEL ATÉ AQUI....
REFERÊNCIAS..............................................................................................
APÊNDICE A – Linha Histórica do Suicídio...............................................
APÊNDICE B – Tipos de Ato na Psicanálise..............................................
93
100
101
113
126
132
155
159
164
165
13
1 INTRODUÇÃO: UM PERCURSO PRELIMINAR A ESTA PESQUISA
Este trabalho pressupõe que é admissível estender a aposta da teoria
psicanalítica de que aquilo que é mais singular do sujeito é também o mais universal
à uma investigação sobre o suicídio e seus possíveis efeitos no campo social.
Baseando-se na ousadia freudiana de se endereçar aos outros campos de saber
para deles extrair questões e hipóteses e realizar interlocuções, o presente trabalho
recorta da teoria sociológica de Durkheim o conceito de corrente suicidógena para
analisar a possibilidade de existir algo semelhante no corpo teórico da psicanálise.
O trabalho de Durkheim sobre o suicídio constitui um marco no tratamento
social que tem sido dado a esta questão desde o culo XIX. As suas idéias foram
assimiladas nos mais diversos campos de pesquisa e têm servido de suporte para
considerar o suicídio como um fato regido por forças sociais e, a partir de tal
concepção, estabelecer estratégias políticas e científicas que venham oferecer
alguma solução ortopédica e preventiva àquilo que constitui, na atualidade, uma
questão de saúde pública.
Não que antes de Durkheim ninguém o tivesse teorizado; ele próprio
comenta que não notícia de uma cultura onde o suicídio não constituísse motivo
de alguma normatização. A questão jamais passou desapercebidamente. A
indiferença à morte voluntária não parece ter acontecido em qualquer momento,
nem para justificá-la nem para condená-la. Mas este autor é, de fato, original ao
propor não que o suicídio é resultado de uma captura do indivíduo por uma cota
de sacrifício voluntário, mas, também que o próprio suicídio desempenha uma
função social de fortalecer os laços sociais através dos rituais de punição àqueles
que infringem a lei.
14
O que justificaria, então, mais uma pesquisa sobre este tema?
O primeiro motivo é que apesar de ser alvo de tantos debates e políticas de
prevenção desde a revolução científica o suicídio tem se mostrado como um
fenômeno resistente às estratégias de tratamento científico ou social.
Além disto, não é apenas Durkheim (1897) que inscreve um novo modus
operandi a partir do qual o suicídio se reveste de nova envergadura. Neste mesmo
período, Freud propõe a ex-sistência
1
do sujeito do inconsciente e entre os muitos
efeitos que a sua teoria gera encontra-se a possibilidade de pensar o suicídio a partir
da gica psicanalítica, o que se caracteriza por uma escuta singular em relação aos
demais campos de saber. É possível, e também necessário, distinguir um campo de
discussão original sobre o ato suicida a partir da escuta deste sujeito que ex-siste ao
campo da razão e da consciência integradora no qual a ciência aposta suas fichas.
Esta pesquisa vem propor exatamente que se pergunte sobre a possibilidade
de uma interlocução entre a sociologia de Durkheim e a psicanálise. Como são
teorias distintas e algumas vezes divergentes foi necessário retomar alguns
conceitos em ambas.
As diferentes discursividades históricas sobre o suicídio são relevantes para a
análise sobre o modo como a ciência se apropria e propõe um tratamento social
deste tema na atualidade. Por isto, o capítulo 2 desta dissertação realiza um certo
percurso histórico sobre o suicídio. Para tanto buscou-se obras de alguns
historiadores que se dispuseram a escrever sobre o tema, a partir das quais foi
possível levantar informações sobre o suicídio entre os povos primitivos assim
1
A ex-sistência, embora se encontre no interior de um certo campo existe como um furo. Portanto,
como furo somente pode ex-sistir. Com isto, ex-existe dentro, pois, como furo, encontra-se fora
(embora internamente). Esse paradoxo aparente é respondido com o termo ex-sistência: algo que
existe ex, isto é, dentro, mas fora porquanto furo.
15
nomeados por estes autores –, os gregos e romanos e os primeiros cristãos
europeus.
A idéia é buscar informações para analisar a proposta Durkheimiana de o
suicídio ter uma função social, colocá-la frente a frente à teoria psicanalítica e avaliar
quão possível é aproximar o conceito de corrente suicidógena do de circulação da
pulsão de morte na psicanálise. No Brasil não se encontra muitas informações sobre
uma história do suicídio. Mas dois autores, cada um com seu trabalho específico
Fabio Henrique Lopes e Jackson André da Silva Ferreira realizam um trabalho de
identificação do modo como o suicídio foi apreendido no campo social e científico
em terras brasileiras. Este capítulo 2 é encerrado, deste modo, com uma breve
discussão sobre a inserção do suicídio como tema de pesquisa e bem como uma
preocupação na medicina social do Brasil no culo XIX, além dos desdobramentos
disto na atualidade.
O capítulo 3 tem como objetivo apresentar a teoria de Durkheim sobre o
suicídio. O cerne teórico deste capítulo é o livro “O suicídio estudo de sociologia”,
de 1897, onde o autor expõe suas hipóteses de o suicídio constituir um fenômeno
social cuja existência se enraíza na própria essência da sociedade. De modo a
melhor discutir a obra do sociólogo, foi necessário recorrer aos seus conceitos de
sociedade, indivíduo, tipos de suicídio entrelaçados a tipos de vínculo social e crime.
Em alguns momentos, sempre que possível, se deu início, no curso do presente
trabalho, a uma discussão entre estes conceitos e a teoria psicanalítica.
Durkheim é objeto de estudo e debates entre muitos outros autores da
sociologia e outros saberes, não apenas a respeito de sua teoria sobre o suicídio,
mas também pelas suas hipóteses acerca da sociedade e sua relação com o
indivíduo. Na presente pesquisa, no entanto, os debatedores de Durkheim não foram
16
buscados. Isto porque o único interesse em sua teoria é o conceito de corrente
suicidógena em contraposição direta à idéia psicanalítica de circulação de gozo no
campo da cultura. Apesar disto dois autores, Aloísio Magalhães e Carlos Magalhães,
foram utilizados por discutirem de modo bastante útil a esta investigação dois pontos
relevantes: os conceitos de indivíduo e de laço social em Durkheim.
Por último, neste capítulo 3 discutiu-se a função social do suicídio tal qual
Durkheim (1897) propõe. Segundo o autor existem duas forças sociais subjacentes
ao tecido social que sustentam as condições de entrelaçamento de sujeitos e
instituições. Ele nomeia estas forças como corrente otimista e corrente pessimista. É
no bojo desta corrente pessimista que a corrente suicidógena se situaria para, a
partir daí, se espraiar pelo campo social como uma das formas de crime. Ao associar
o suicídio ao crime, Durkheim (1897/2000) translada para este ato a função social da
re-inscrição da norma em cada integrante do grupo; sem isto o sujeito se encontrará
desamparado frente às forças psíquicas insaciáveis que o constituem e que são
hostis à cultura.
Esta realidade do sujeito, denominada por Durkheim (1897/2000) como
abissal, é ameaçadora tanto a si mesmo quanto à sociedade. A hipótese
durkheimiana de o suicídio desempenhar a função de restabelecimento de um laço
social esgarçado é inédita e não coaduna com a lógica científica e com o discurso
capitalista que apregoam uma ética do bem-estar fundido à do Bem Supremo
aristotélico. Nesta pesquisa, defende-se a hipótese de que a psicanálise possui os
recursos teóricos necessários para levar a hipótese durkheimiana aos seus
desdobramentos radicais. É neste ponto da discussão que o capítulo 4 é alcançado.
Neste capítulo 4, o eixo da discussão é o suicídio a partir da psicanálise.
Primeiro foi necessário analisar se seria admissível alguma interlocução entre a
17
sociologia de Durkheim e a psicanálise. Esta pergunta foi endereçada a dois pilares
destas teorias que são as noções de sujeito em cada uma delas e a relação que
ambas estabelecem com o saber e a verdade. Em seguida, é discutida a articulação
entre laço social e pulsão de morte. Na teoria freudiana isto apareceria no mal-estar
na cultura, e na teoria lacaniana na idéia de uma circulação de gozo na cultura.
Aproveitou-se para pontuar alguns efeitos da lógica científica associada ao Discurso
Capitalista, no tratamento social dado ao suicídio na atualidade.
Ainda neste capítulo 4, foram apresentadas as discussões sobre o suicídio no
campo da psicanálise. Para tanto, alguns conceitos psicanalíticos foram privilegiados
nesta análise: melancolia, luto, passagem ao ato, acting-out, masoquismo moral e
gozo. O motivo de mais um percurso, assim distinto do que havia sido elaborado
sobre o suicídio nos capítulos anteriores, é que não bastaria aproximar os conceitos
de sujeito e de laço social entre a psicanálise e a sociologia. É importante descobrir
se as hipóteses psicanalíticas específicas sobre o tema não desabonam tal
interlocução.
A conclusão apresenta as considerações e questões finais a que esta
investigação pôde chegar.
18
2 O SUICÍDIO EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA
“Homem tolo, de que te lamentas e de que tens medo?
Para onde quer que olhes existe um fim para os males.
Vês aquele precipício escancarado? Ele leva à liberdade.
Vês aquele oceano, aquele rio, aquele poço? A liberdade
mora dentro deles. Vês aquela pobre árvore mirrada e
seca? De cada galho seu pende a liberdade. Teu
pescoço, tua garganta, teu coração, todos oferecem
tantos meios para fugir da escravidão. [...] Indagas o
caminho para a liberdade? Tu o encontrarás em cada
veia de teu corpo.” (Sêneca)
É apenas a partir do século XIX que a cunhagem social do suicídio se reveste
de importância. No entanto, esta demarcação do suicídio como tema que diz
respeito à coletividade e aos órgãos governamentais é o reaparecimento nos dias de
hoje de antigos modelos de regulamentação da vida privada, acrescidos das
inovações discursivas características da contemporaneidade. Neste capítulo será
realizado um percurso histórico de modo a lançar luz sobre as formas como o
suicídio foi tratado em períodos anteriores ao atual. Com isto, se espera buscar
informações que permitam realizar a discussão sobre a possibilidade, ou não, de o
conceito de corrente suicidógena de Durkheim se aproximar da idéia psicanalítica
das variadas formas de circulação da pulsão de morte na cultura.
Este capítulo se divide em duas partes. Na primeira é realizada uma incursão
breve pela história do suicídio entre os povos primitivos – os povos assim chamados
pela Antropologia –, entre os gregos e romanos e entre os primeiros cristãos
europeus. Na segunda parte é apresentada uma análise do modo como a medicina
social brasileira, no século XIX, se apropria do tema da morte voluntária e dos
efeitos deste fato na produção de saber sobre o suicídio. Estes efeitos não
19
desapareceram; ao contrário, dão indicação de estar cada vez mais fortalecidos na
atualidade. Além disto, nesta segunda parte, também se comenta acerca dos
vínculos entre este saber médico e as estratégias políticas de prevenção e
tratamento ao suicídio que são organizadas desde a Modernidade.
2.1 O suicídio entre os povos primitivos
Uma pesquisa sobre a história do suicídio constantemente se mistura à
história da morte entre os povos. (Apêndice A).
Em “Totem e Tabu”, Freud (1913) realiza um trabalho minucioso sobre as
organizações sociais primitivas e entre os itens discutidos está o tabu
2
para com os
mortos. Segundo este autor o alvo principal desta proibição, nomeada tabu, é o
contato com os mortos. Os rituais funerais e de desinfecção daqueles que tiveram
contato com o defunto são organizados com a função de manter o espírito do morto
distante da aldeia e das pessoas de sua tribo. Este medo advém da idéia de que a
pessoa ao morrer se transt1 32995(n)-4.-2.16558( )-42.74( )-352.371( i)1.87122(t)7.84154(é)-4.33117(m)-42.188(f)-4.33117(o)5.67474()-0.295585( )-2.16436(d)5.67474(é)-4.33117ôuio.( )7.84154(o)-4.33117 t
20
Outro tipo de atitude preventiva do retorno dos mortos é a proibição de dizer o
nome deste, em uma clara demonstração de fusão entre a palavra que nomeia um
membro da tribo e a própria pessoa. Estes rituais surpreendem por demonstrarem
que uma mudança radical de percepção do grupo sobre aquele que morreu. Não
é importante o lugar social que esta pessoa tenha ocupado enquanto viva; a sua
morte a transforma em um inimigo que deve ser combatido e temido por todos da
tribo. Freud (1913) remete esta súbita mudança das qualidades daquele que morreu
a um mecanismo psíquico defensivo, chamado projeção, que ocorre quando um
sujeito projeta em outro seus próprios sentimentos inconscientes. Neste caso, em
especial, um deslocamento de um sentimento de agressividade inconsciente por
parte daquele que continua vivo em direção ao espírito do morto; agora, é este quem
odeia e deseja o mal de todos aqueles que sobreviveram à sua morte,
principalmente dos que lhe eram mais próximos.
Segundo este autor os sentimentos de amor entre os membros dos povos
primitivos seriam tão ambíguos quando os dos neuróticos modernos, e os tabus
viriam permitir ao grupo desfazer-se do sentimento de culpa por tais desejos de
morte em relação aos seus irmãos de clã. E, “uma vez que essa é a origem do
ressentimento da alma do morto, segue-se naturalmente que os sobreviventes que
mais terão a temer serão aqueles que eram anteriormente os seus mais chegados e
queridos” (FREUD, 1913, p.59). Para os homens primitivos, tal como para o
inconsciente, não diferença entre a morte natural e uma morte violenta, pois para
ambos foi um desejo mal, de um dos deuses ou de alguém da tribo, o que causou a
morte daquela pessoa. Esta ambivalência afetiva primitiva teria diminuído ao longo
dos tempos e restaria, nos dias atuais, uma cicatriz denominada piedade pela
cultura ocidental.
21
Este mecanismo de projeção inconsciente em direção aos mortos em geral,
por parte dos primitivos, poderia explicar também as reações sociais de punição ao
suicida? Neste caso, mais do que se tratar do dúbio amor que cada um é capaz de
sentir por outro sujeito, o que estaria em jogo seria o sentimento de ambigüidade
em relação, principalmente, à própria morte. Segundo Freud (1915) a própria
imortalidade é uma realidade no inconsciente, daí o sujeito que comete suicídio
deflagrar algum tipo de punição social, mesmo entre as culturas onde o suicídio faz
parte das ações tidas como virtuosas.
Esta pseudo-aceitação do suicídio como algo virtuoso é discutida por
Durkheim (1897/2000), que afirma ser interessante notar que mesmo quando
permitido legalmente, o suicídio deveria acontecer no limite do que uma legislação
rigorosa estabelece como correto, ainda que tais critérios parecessem absurdos aos
europeus. Havia entre eles regras rigorosas quanto à possibilidade de um sujeito dar
fim à sua vida e elas sempre diziam respeito à perda de um lugar ou de uma função
social.
Ainda sobre o suicídio entre os povos primitivos, A. Alvarez (1999) afirma que
a morte não possuía significado de término da vida e o suicídio era buscado como
um recurso de vingança contra os inimigos. Segundo ele o processo “é simples: ou o
fantasma do suicida vai destruir seu inimigo por ele, ou seu ato vai forçar os
parentes a perpetrarem a tarefa, ou as impiedosas leis da tribo irão forçar o inimigo a
matar-se da mesma forma” (ALVAREZ, 1999, p. 63). Seria possível pensar que a
exigência do cumprimento da regra que impõe a retaliação ao inimigo do suicida se
sustente no receio de que, caso isto não se dê, o morto, agora transformado em
demônio, venha a atormentar todo o grupo? Não parece impossível que isto se dê.
22
Entre os muitos exemplos possíveis de suicídio entre os povos primitivos é
interessante comentar um caso citado por Alvarez (1999). Este exemplo é o caso
dos aborígenes da Tasmânia que se recusaram a procriar por entenderem que o
mundo em que eles eram caçados como cangurus lhes era intolerável. Esta
explicação se assemelha a uma hipótese que, na atualidade, tenta explicar o
suicídio entre os índios brasileiros.
Entre os povos primitivos, portanto, a questão de cada um com a morte em si
ou de sua impossibilidade no inconsciente aparece deslocada no medo que o
morto causa aos integrantes de sua tribo. O espírito é retirado do lugar afetivo que
possuía quando vivo pela via de uma projeção inconsciente de agressividade por
parte dos membros de sua tribo, principalmente daqueles que lhe eram mais
próximos e queridos. O mesmo processo pode ser usado para explicar o caso citado
por Alvarez (1999) em que o indivíduo se matava para dar início a um processo de
vingança contra seu inimigo. Isto porque não é incoerente pensar que é o medo do
retorno do morto que sustenta o cumprimento da regra que impõe a morte ao
desafeto do suicida. Talvez este seja um exemplo explícito da impossibilidade da
morte em cada um em seu inconsciente, de que Freud (1915) fala. Não crendo na
própria morte, o indivíduo não pensa duas vezes antes de dar fim à sua própria vida
como recurso banal de represália.
O suicídio seria um tipo de morte que sempre convocaria todo o grupo a
algum tipo de projeção especialmente delicada. Isto porque evoca o apenas os
processos comuns de projeção inconsciente de agressividade em relação àquele
que morreu, mas também confronta o sujeito com própria morte, situação tida como
impossível em seu inconsciente. Daí a necessidade de submeter o suicídio a uma
rigorosa normatização, tal qual Durkheim (1897/2000) aponta.
23
O próximo passo neste texto é apresentar o modo como o suicídio é pensado
entre os povos grego e romano.
2.2 O suicídio entre os gregos e os romanos
É na Grécia que acontece pela primeira vez, segundo Georges Minois (1998),
um processo inédito de racionalização em torno do tema suicídio. As discussões se
dão em torno da questão da liberdade com que um sujeito pode e deve decidir sobre
si mesmo. A partir disto, cada grande escola defenderá um ponto de vista particular.
A indulgência transita da indicação do auto-extermínio frente a qualquer revés a uma
oposição contundente. Esta última opinião é defendida pelos pitagóricos e se
baseaia nas idéias de que “tendo a alma mergulhado no corpo na seqüência de um
pecado original, ela deve realizar sua expiação até o fim, [e de que] a associação da
alma e do corpo é regida por relações numéricas em que o suicídio poderia quebrar
a harmonia”. (MINOIS, 1998, p. 62).
Ainda de acordo com este autor, tanto Plantão quanto Aristóteles discordam
do suicídio como medida banal frente à indignidade.
Para Platão o principal elemento a ser considerado ao tomar uma decisão
deste porte é o dever de cada indivíduo frente aos deuses que lhe permitiram viver.
Ele chega a sugerir medidas punitivas àqueles que se matassem. No entanto, Platão
também estabelece uma zona de indulgência bastante ampla, no seu texto “As Leis”,
ao dizer que tais retaliações não visam os que se mataram “por mandado da Cidade,
nem pelos sofrimentos agudos de um mal acidental a que não pôde escapar, nem
24
sequer por a sorte que o espera ser uma ignomínia inviável e sem saída” (PLATÃO
in MINOIS, 1998, p. 63).
Em “Ética a Nicômaco”, no livro V, Aristóteles se manifesta sobre o suicídio:
[...] uma classe de atos justos se compõe de atos que estão em
consonância com alguma virtude e que são prescritos pel lei (põe exemplo,
a lei não permite expressamente o suicídio, e o que a lei não permite
expressamente, ela o proíbe). Além disso, quando uma pessoa, violando a
lei, causa dano a um outro voluntariamente (excetuados os casos de
retaliação), ela age injustamente; e um agente voluntário é aquele que
conhece tanto a pessoa a quem atinge com o seu ato como o instrumento
que está usando; e quem, em um acesso de forte emoção, voluntariamente
se apunhala, pratica esse ato contrariando a reta razão da vida, e isso a lei
não permite; age portanto injustamente. Mas contra quem? Certamente
contra a cidade, e não contra si mesmo, pois essa pessoa sofre
voluntariamente, e ninguém é voluntariamente tratado com injustiçado. Por
essa razão, a cidade pune o suicida, punindo-o com uma certa perda de
direitos civis, pois ele trata a cidade injustamente. (ARISTÓTELES, 2001, p.
126 [1138]).
Fica claro, então, que os aristotélicos pensam o suicídio como algo
condenável por se opor à virtude que deve ser materializada no perfeito
cumprimento dos deveres do cidadão para com a Cidade. Mas nem mesmo
Aristóteles deixa de entrever uma situação em que a própria virtude convoca o
homem a se despreocupar com manter-se vivo. Ainda em “Ética a Nicômaco”, desta
vez no livro IV, ele afirma que um homem virtuoso agirá em perfeira conformidade
com os interesses do grupo, da cidade. Então um dever, uma certa forma mais
virtuosa do que outra namanifestaçao daquele que busca a virtude, o suicídio pode
violar o dever do sujeito para com a cidade. “O homem magnânimo enfrentará
grandes perigos, e nesses casos não se deterá com a preocupação de salvar sua
vida, sabendo que há condições em que ela não é digna de ser vivida”.
(ARISTÓTELES, 2001, p. 92 [1124]).
Mas é entre os romanos que acontece um exemplo clássico deste tipo de
exceção à proibição do suicídio por parte dos aristotélicos: é a morte de Catão.
25
Maurice Pinguet (1987) comenta que é para defender a liberdade e a Cidade
que Catão se mata. Catão reconhece que sua morte poderia ser evitada, caso
abrisse mão da virtude:
Se eu quisesse salvar a minha vida pela graça de César, bastaria apenas
que eu próprio fosse perante ele, mas não quero dever favores nem
obrigação a um tirano por uma injustiça: pois é injustiça dele usurpar o
poder de salvar a vida, como senhor, àqueles a quem ele não tem nenhum
direito de comandar. (CATÃO in PINGUET, 1998, p. 12).
É, então, no lugar de um legítimo cidadão, que este político romano,
conhecido por sua inflexibilidade em defender a virtude, invoca o direito de se matar
ao dizer que a liberdade de agir precisa ser igualada à de se matar. Mas este direito
é exclusivo dos cidadãos gregos, isto é, dos homens livres. Deste modo, a
nomeação do suicídio como ato de valor ou de covardia depende em muito do fato
de ser o suicida um cidadão ou um escravo. No caso deste último, o ato de auto-
extermínio representa uma contestação ao poder de seu senhor, o que seria
condenável qualquer que fosse a situação causadora do suicídio ocorrido.
Entre os gregos, portanto, o suicídio é tomado como tema que diz respeito à
coletividade, seja em suas relações de dever para com os deuses ou para com o
Estado. A liberdade de que cada um dispunha deveria ser limitada por suas
obrigações sociais de acordo com o lugar de homem livre ou de escravo que
ocupava. O Estado, em última instância, era o responsável pela decisão; isto não
contraria o modo como a liberdade era entendida pelos gregos, já que esta se
encontra desde sempre limitada pelos deveres para com a Cidade e os deuses.
Aquele que não desejar mais viver deverá declarar suas razões ao Senado
e, após ter recebido permissão, poderá abandonar a vida. Se tua existência
te é insuportável, morre; se o destino te oprime, bebe a cicuta; se estás
esmagado pela dor, abandona a vida. Que os infelizes narrem os seus
26
infortúnios e que o magistrado lhes forneça o remédio para que sua aflição
chegue ao fim. (LIBÂNIO in Durkheim, 1897/2000, p. 427).
A serenidade com que o assunto é estudado entre os gregos, observada no
testemunho acima, é levada às últimas conseqüências no Império Romano, segundo
A. Alvarez (1999). As carnificinas e os suicídios como espetáculos de lazer urbano
se tornam comuns, e apenas os escravos, os soldados e os criminosos por dívidas
são proibidos de se matarem. Não havia retaliações jurídicas e o senado possuía um
estoque de cicuta para aqueles que conseguissem justificar a impossibilidade de
permanecerem vivos. O valor da vida terrena é diminuto e por isto a morte é
entendida como algo banal; mas ainda assim a decisão cabe ao Estado e o ao
indivíduo.
Contudo não constituía consenso entre os romanos ser o suicídio uma morte
sempre honrada; os soldados, por exemplo, são proibidos de se matarem. Além
destes um outro grupo também está interditado em seu desejo de buscar na morte a
solução de um problema: os escravos. O primeiro grupo cometeria um crime
patriótico e o segundo um crime econômico. A grande questão é se o motivo
alegado é justo e se mantém a honra daquele que pretende se matar. Um exemplo
da ambigüidade com que o suicídio era tratado entre os romanos é o fato de que
mesmo Sêneca, defensor da morte voluntária, não a prescreve sem um motivo justo;
ele mesmo cometeu suicídio apenas por ter recebido ordens de Nero para que
cortasse os seus pulsos.
27
2.3 O suicídio entre os primeiros cristãos europeus
As concepções grega e romana de morte não desaparecem; ao contrário,
podem ser observadas em algumas das idéias cristãs sobre o suicídio. Segundo
Alvarez (1999), estes últimos assimilaram o ponto de vista romano sobre a morte e o
suicídio e acrescentaram a ele a idéia da felicidade como algo pertencente a uma
vida após a morte. Nos século IV e V d.C, o culto ao martírio se materializa no
suicídio realizado entre os donatistas
3
logo após o batismo. Nesta auto-imolação era
percebida uma conciliação entre duas verdades cristãs: a salvação pelo batismo e a
entrada no paraíso através da mortificação. Gibbon, citado por Alvarez (1999),
apresenta a tragédia que se estabeleceu no conflito entre as duas igrejas cristãs:
A fúria dos donatistas foi inflamada por uma série extraordinária de frenesi,
e que, se de fato predominou entre eles em tão extravagante grau, não
pode por certo encontrar paralelos em nenhum outro país ou época. Muitos
desses fanáticos eram possuídos por um horror à vida e um desejo de
martírio; e pouca importância davam a por que meios ou por que mãos
morriam. (GIBBON in ALVAREZ, 1999, p. 80).
Entre motivos políticos, econômicos e religiosos Agostinho de Hipona, o maior
dos defensores da igreja romana se coloca contra as idéias donatistas. Assim é que,
apenas no século IV, apresenta-se a proibição do suicídio por parte do cristianismo.
É Agostinho quem provoca uma ruptura na ética cristã ao defender que o suicídio
3
BUSTAMANTE, Regina Maria Cunha. O donatismo foi um movimento, surgido no início do século
IV, que dividiu a Igreja Cristã na África do Norte. Iniciado com uma querela sucessória do episcopado
de Cartago, ou na expressão de Courtois (1955) como um simples conflito de sacristia”, acabou por
28
seria o maior de todos os pecados por atentar contra a própria divindade. Em um
período de 160 anos a Igreja Católica deslocou o suicídio do lugar de garantia de
pureza d´alma e entrada no paraíso para o de maior de todos os crimes contra a
sociedade e, principalmente, contra Deus. Em 533, no Concílio de Orléans, ficaram
proibidas quaisquer homenagens fúnebres àqueles que se matassem para fugir a
um julgamento. Mais tarde, em 562, no Concílio de Braga, todo e qualquer suicida
estava proibido de receber honras fúnebres e em 693 d.C, no Concílio de Toledo, as
sanções foram estendidas aos que, mesmo sem obter sucesso, tentavam na morte
uma saída.
Este período que vai do século V ao século XV d.C, ou seja, a Idade Média, é
um tempo de transição entre a noção do indivíduo imerso no coletivo, inclusive na
sua morte, e a construção de um espaço privado. Segundo Ariés (1989) a morte é
algo com que se lida de modo familiar, no continente europeu. Ela ocorre de acordo
com um planejamento da própria pessoa, que intui a aproximação do momento final
e reúne os familiares e os amigos, despede-se de um a um, distribui seus bens e
tem um fim tranqüilo em meio a preces e demonstrações de carinho. Apesar desta
intimidade o retorno dos mortos é motivo de preocupação e os ritos funerários têm
como objetivo impedir que aquele que morreu perturbe os vivos. Tais medidas
preventivas o necessárias principalmente em caso de suicidas, cujos funerais são
cercados de cuidados: não o enterrados juntos dos demais e sim em lugares que
possam confundir o espírito para que eles não localizem o caminho da cidade
encruzilhadas, por exemplo –, cortam suas mãos para que eles não consigam se
vingar dos vivos, amarra-se seus corpos com pedras e os jogam em rios.
Segundo Marcos Guedes Veneu (1994) é a criação do purgatório cristão,
ainda na Idade Média, que propicia uma nova apreensão do suicídio. A inscrição
29
deste terceiro espaço geográfico no mundo dos mortos redefine a percepção
temporal da vida e da morte; traz o tempo do Juízo Final da Humanidade para o da
morte pessoal, onde cada um deverá efetuar uma escolha entre o Bem e o Mal e
com isto definir sua eternidade particular. Ora, o purgatório é resultado de um
movimento de ensimesmamento em direção à noção filosófica da Antiguidade de um
indivíduo que se pensa e que por isto decide sobre si próprio. É neste contexto que
surge a idéia, no século XIII, do suicídio como uma doença, como loucura. A
concepção de loucura que aqui encontramos é diferente da que se organiza a partir
do século XVIII e que também é convocada a explicar o suicídio; neste primeiro
momento ela não possui um caráter patológico, uma doença a ser tratada, mas
apenas como desrazão.
A Reforma protestante, no século XVI, é apontada por Veneu (1994) como
provocadora de uma nova ruptura nos discursos sobre o suicídio. Apesar de ser
ainda mais rigorosa do que a igreja católica em sua punição àqueles que se
matavam, algumas de suas idéias permitiram o estabelecimento de um espaço laico
onde a idéia do suicídio como manifestação da liberdade do indivíduo tomou corpo,
idéia que se encontrava presente na Grécia Antiga. Os elementos éticos da nova
doutrina são: a ligação direta entre o indivíduo e Deus, o uso da razão na
interpretação das escrituras sagradas e a crença de a salvação ser obtida
exclusivamente através da absolvição da própria consciência.
Assim, apesar de o protestantismo se posicionar contra o suicídio, permite
uma série de reflexões no campo social que demarcam um espaço onde uma
garantia de liberdade se traduz em o indivíduo ter o direito de decidir sobre a própria
morte. Neste novo discurso é reencontrado um elemento da noção de suicídio como
um ato corajoso frente a algo insuportável e indigno, característica dos povos
30
primitivos e da antiguidade grega. Além disto, também é resgatada a racionalização
romana no estabelecimento de critérios lógicos para viver e a concepção feudalista
de que o suicídio é uma experiência radical de singularidade.
De acordo com Fabio Henrique Lopes (2003), o Iluminismo, no século XVIII,
inscreve uma mudança no discurso sobre o suicídio, proporcionando um debate
amplo que seculariza o tema convocado pelos filósofos sobre a liberdade humana e
seus limites. Desde que Agostinho, no século IV, deu o primeiro passo para a
proscrição do suicídio, a discussão passou a girar em torno de decidir em qual dos
crimes o suicídio melhor se encaixava: contra a sociedade, contra Deus ou contra as
Leis. No século das Luzes, sustentado pelo espaço laico engendrado no século
XVI pela Reforma Protestante, a questão da liberdade com a qual um indivíduo deve
contar para tomar suas decisões, inclusive a de se matar, volta à cena tal qual o era
na Grécia e em Roma. Veneu (1994) informa que é neste século XVIII que os
abades Prévort e Desfontaines utilizam pela primeira vez a palavra suicídio.
No século XIX há uma outra virada no discurso em torno do suicídio e todas
as discussões a aqui sustentadas serão influenciadas pela nova hipótese.
Durkheim (1897/2000) é o autor que, imbuído do espírito positivista da revolução
científica, transforma o tema suicídio em um objeto de estudo científico da recém
constituída sociologia. O suicídio, deste modo, passa a ser pensado não mais como
uma questão do indivíduo, mas como resultado da ação de forças sociais sobre
este. Este autor propõe a existência de uma corrente suicidógena, ou seja, uma cota
de sacrifícios voluntária característica a cada grupo. O suicídio, segundo este autor,
tem uma função social que é a de restabelecer o vínculo social, entre os vivos,
quando este se encontre fora do grau ideal de tensão que permite a harmonia social.
Durkheim é o autor objeto de análise nesta pesquisa e nos próximos capítulos
31
constitui a matéria prima do trabalho; por isto neste momento dar-se-á
prosseguimento ao texto discutindo-se quando e como o suicídio foi tomado como
tema de debates e intervenções no Brasil.
2.4 O suicídio entre os brasileiros. O suicídio não é mais um pecado. O
suicídio impede o progresso.
Realizar um percurso sobre o suicídio no Brasil encontra poucos subsídios,
por isto decidiu-se por dar relevo a uma discussão sobre como esta questão é
tomada como tema de debates no meio acadêmico. Então, como último momento
deste percurso histórico o presente trabalho vem discutir a razão pela qual o suicídio
se tornou pauta de debates no Brasil e suscitou, por parte da ciência e do d Eo
32
em torno do suicídio. Desqualificando os demais saberes para tratar de tais
questões a medicina social toma para si não apenas a responsabilidade de explicar
o suicídio através da loucura, mas também de tratá-lo através da prevenção. Ele é
incluído na lista dos inimigos do corpo social ao lado de criminosos, prostitutas,
homossexuais, loucos; enfim, os inimigos do corpo social. O eixo da discussão é
deslocado da liberdade humana para o de um indivíduo como corpo doente, que
deve ser tratado e curado. No século XIX fez-se silêncio e somente os que detêm o
saber científico, os médicos, podem se manifestar. E está dito: é loucura.
não é pecado. É obstáculo ao progresso bem planejado pela sociedade
iluminista igualitária, fraterna e livre. No entendimento desta ciência transformadora
da sociedade, e garantidora do progresso no país brasileiro, todos aqueles que,
loucamente, insistissem em esburacar a paisagem harmoniosa do futuro iluminado
deveriam ser reconduzidos ao bom caminho. Observemos a emergência deste
discurso na extração de conhecimento sobre o suicídio no Brasil.
De acordo com Jackson Ferreira (2004) as sanções sociais aos suicidas eram
influenciadas pelos valores judaico-cristãos, pelas culturas africanas e pela cultura
romântica européia, na Bahia do século XIX. Era sempre possível condenar e/ou
atenuar o ato suicida a partir de um diagnóstico de loucura. Nomear o suicídio de
alguém deste modo permitia oferecer ao morto todas as benesses religiosas. Os
próprios suicidas, ou loucos de acordo com a medicina, muitas vezes recorriam a
este diagnóstico em bilhetes deixados para salvaguardar os seus familiares de
futuras penalidades.
Lopes (1998) comenta que os jornais e a literatura eram tidos, no século
XIX, como grandes fontes de incentivo ao suicídio. As medidas preventivas sociais
ao suicídio sempre requeriam que este assunto não fosse publicado, ou pelo menos
33
proibido àqueles que fossem identificados como propícios a cometer tal ato. Jackson
(2004) também observa esta preocupação em relação à literatura romântica.
Apesar de alguns autores afirmarem que na Bahia não houve romantismo,
sendo Castro Alves mais influenciado por Recife e Rio de Janeiro, o que
não significa dizer que não houvesse produções literárias, o clima de
pessimismo, sentimentalismo e reflexões sobre o amor e a morte, e mais do
que isso, sobre a própria morte, esteve presente nas penas de Junqueira
Freire e de outros escritores. É nesse quadro de transformações e
permanências, de liberdade dos sentimentos individuais e de paternalismo,
que se insere uma discussão sobre o suicídio na sociedade baiana.
(FERREIRA, 2004, p.3).
Não poderia deixar de ser aqui considerada a realidade da escravatura no
Brasil, bem como do suicídio entre os escravos. Ferreira (2004) comenta que na
concepção africana os horrores a que os negros eram submetidos e a perda da
liberdade servia de justificativa àqueles que decidissem por fim à própria vida. Se os
dados estatísticos sobre a morte entre brancos é um procedimento tido como de
pouca confiabilidade, entre os escravos torna-se ainda mais delicado. É que o hábito
de declarar a morte de um escravo como sendo suicídio impedia que qualquer um
fosse responsabilizado por esta perda.
ainda que se considerar um outro personagem brasileiro e o seu encontro
com a morte voluntária. Trata-se do índio.
É conhecido, na literatura brasileira, o poema “I-Juca Pirama”, de Gonçalves
Dias (1851/1969), que narra a história trágica do índio que se lança à morte para
reaver a honra frente ao seu povo. O guerreiro Tupi, aprisionado pelos índios
Timbiras e prestes a morrer, canta seus feitos:
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi. (DIAS, 1969. P. 04).
34
Mas o canto traz não apenas as batalhas e inimigos vencidos, fala também
de seu pai, velho e cego, a quem restou este filho. É assim que o bravo, entre
lágrimas, implora para permanecer vivo e obtém a liberdade prometendo voltar
assim que o pai morresse. O chefe Timbira recusa tal oferecimento:
És livre; parte!
Ora não partirei; quero provar-te
Que um filho dos Tupis vive com honra,
E com honra maior, se acaso o vencem,
Da morte o passo glorioso afronta.
Mentiste que um Tupi não chora nunca,
E tu choraste!... parte; não queremos
Com carne vil enfraquecer os fortes.
(DIAS, 1969. P. 06).
O jovem volta à floresta ao encontro do pai que, percebendo algo errado e
após inteirar-se de todo o ocorrido, toma o filho pelas mãos e se encaminham de
volta à aldeia inimiga. Ali chegando o velho índio declara a sua admiração e gratidão
pelo ato de libertarem o rapaz e o devolve ao sacrifício, posto que assim a honra de
seu povo exigia que seu filho, na hora da morte, fosse entregue a mãos inimigas. O
chefe da tribo não volta atrás e conta ao pai o que o filho não tivera coragem que
ele chorara. Pela boca do pai fala toda a sua tribo:
Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de via Aimorés.
Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!.
(DIAS, 1969. P. 08).
35
O horror de tal maldição produz seu efeito de laço social: o jovem guerreiro se
lança em um ataque mortífero e suicida contra os inimigos timbiras para que o seu
povo permaneça honrado. Nenhum sofrimento se equipararia a não ser mais filho
dos Tupis.
O suicídio entre os indígenas brasileiros também é trágico fora da literatura.
Na década de 80 a epidemia de suicídios entre os índios Guaranis apontou o quão
escassa é a produção científica sobre o auto-extermínio nas tribos brasileiras
(OLIVEIRA e NETO, 2002). Para Anastácio Morgado (1991) uma possibilidade de
explicação seria a hipótese do recuo impossível (grifo do autor), onde se verifica
o esgotamento de qualquer possibilidade de recuar no espaço, diante da ‘civilização
ocidental’, e, simultaneamente, seus valores de dignidade humana são aviltados”
(MORGADO, 1991, pág. 585). O autor lembra que o é um gesto impulsivo, mas
sim a re-encenação de um mito indígena onde auto-imolar-se é a “última forma de
fazer sobreviver a sua cultura”(MORGADO, 1991, pág.594) ao chegarem ao fim do
mundo.
Em contraposição, Regina Maria de Carvalho Erthal (1998) considera que a
hipótese de Morgado (1991) não leva em conta as diferenças culturais das tribos e
não é suficiente para explicar o suicídio entre aqueles índios, uma vez que o é
36
teorias e propõem estratégias de tratamento que, a rigor, não se coadunam com a
ética psicanalítica. Segundo eles
Na medida em que o suicídio pode ser explicado como expressão da
psicopatologia, suscetível à intervenção, estaríamos diante da ocorrência de
mortes potencialmente evitáveis. Uma revisão recente dos estudos sobre
suicídio sugere que a melhoria do diagnóstico e do tratamento das doenças
mentais seria uma excelente estratégia para a prevenção de novos casos
na população geral (OLIVEIRA , C. e NETO, F. L. , 2002, p.8).
Esta concepção sobre o suicídio, bem como dos recursos científicos que
possam sanar esta chaga social e prevenir a humanidade deste desastre é coerente
ao que Lopes (2003) observa no século XIX. Para ele quatro momentos de
ruptura, desde o século XIX, no discurso científico brasileiro sobre o suicídio que
tecem e sustentam a discussão deste tema. O primeiro é quando o discurso médico-
científico patologiza o suicídio como um sintoma da loucura; o segundo momento é o
trabalho de Durkheim que aponta as forças sociais atravessando o indivíduo e
inserindo-o na cota voluntária de sacrifício de um grupo social; o terceiro é a
Psicanálise; e o quarto é o discurso eugênico da medicina social que serve de
sustentação discursiva científica aos projetos biopolíticos
4
do Estado moderno.
Recusando as continuidades históricas e atemporais, a pesquisa sugere
que os sujeitos que se fizeram responsáveis pelo início da tematização do
suicídio, os médicos, são os mesmos que produzem saber em nossos dias.
Mas, há uma mudança na maneira como o suicídio é problematizado, todo
um novo mundo conceptual foi criado e apropriado pelos médicos, entre
eles o proposto por Durkheim e por Freud. Hoje, os principais responsáveis
pela produção de sentidos e verdades sobre e para o suicídio fazem parte
da mesma área do saber que desde o século XIX é dominante no que diz
respeito à criação de sentidos, imagens e referências ao suicídio e ao
sujeito que o pratica, mas eles não dizem necessariamente a mesma coisa,
4
FOUCAULT, M.: o campo de existência biológico é tomado como mais um instrumento de poder
político. "O controle da sociedade sobre os indivíduos não se efetua somente pela consciência ou
pelo ideológico, mas também no corpo e com o corpo. Para a sociedade capitalista, é o biopolítico
que importava antes de mais, a biológica, o somático, o corporal. O corpo é uma realidade biopolítica;
a medicina é uma estratégia biopolítica". (1978, p.210).
37
pois não seguem a mesma perspectiva, tampouco perpetuam as mesmas
relações de poder e as mesmas tecnologias. (LOPES, 2003, pág. 20-21).
A medicina social no Brasil, ainda segundo Lopes (2003), é um instrumento
científico a serviço, direta ou indiretamente, do Estado. Nesta parceria a medicina
social se utiliza dos dispositivos estatais para sua prática de ordenamento social e o
Estado passa a contar com um instrumento especializado que não apenas se
incumbe de uma parte de suas responsabilidades, mas também lhe propicia a
credibilidade científica em seus projetos. o os primeiros desdobramentos
modernos da Biopolítica que tem seus rudimentos no século XVII em Londres,
quando as transformações no campo do conhecimento foram capazes de munir os
políticos de um novo instrumento: a estatística, palavra cuja origem etimológica é o
latim status (estado) e cuja função social desde o início é efetuar a “aritmética do
Estado” para buscar regularidade nos fenômenos estudados e estabelecer políticas
preventivas.
A política da felicidade é uma idéia defendida no século XVIII. Em plena
Revolução Francesa encontramos Louis Antoine Leon de Saint-Just defendendo o
governo como o patrono da felicidade geral da sociedade. Buscando dar corpo aos
ideais republicanos e democráticos, este jacobino é ainda hoje uma referência nos
debates sobre o papel do Estado na gerência da vida dos cidadãos. Em seu livro “O
espírito da Revolução e da Constituição na França(1792) encontram-se capítulos
nomeados como “dos casamentos clandestinos”, “das mulheres”, “dos suplícios e da
infância” e “do pacto de família, das alianças”. O propósito do ideário iluminista irá,
aos poucos, encontrando recursos teóricos e políticos para cumprir com o seu
objetivo de construir uma sociedade progressista, feliz e harmônica.
A medicina social no Brasil, deste modo, encontra-se respaldada na
experiência européia para estabelecer alianças com o Estado e levar adiante a
38
proposta de que homens e mulheres deveriam ser os reprodutores de proles sadias
e puras. É deste modo que qualquer acontecimento, ou pessoa, que colocasse em
risco estes projetos de um futuro feliz deveria ser identificado, controlado e curado
de si mesmo.
Assim, ao lado dos loucos, vagabundos, prostitutas, criminosos, alcoólatras,
ladrões, devassos, homossexuais e tantos outros considerados e feitos
“anormais”, os suicidas também foram focalizados e enquadrados entre os
infames, aqueles portadores e produtores de desordem, que precisavam ser
identificados, curados, regenerados e normalizados. (LOPES, 2003, pág.
28).
No Estado capitalista,
[...] a ciência é mais do que uma idéia dominante, é a sua idéia mais
brilhante. Além de organizar racionalmente a produção econômica, a
ciência ordenará progressivamente a produção de idéias, tenderá a
racionalizar o comportamento das classes e grupos sociais subordinados,
ditará modelos de concepção em todos os campos da atividade humana.
Por estas razões, a ciência guarda o privilégio de que a ideologia pode
desfrutar: o de, nascendo de interesses particulares e concretos, e
reproduzindo-os até certo ponto, ostentar uma face universal e abstrata, a
face do “estar acima da história”, de ser em face dela neutra, objetiva e
portanto, verdadeira. (LOPES, 2003, pág.33).
Segundo Santiago (2004) o Estado capitalista contemporâneo tem
encontrado nas biopolíticas o instrumental estratégico para exercer a antiga técnica
de poder pastoral cristã. Nesta modalidade de poder a vigilância deve se estender
até o mais íntimo do sujeito e se apossar de qualquer mecanismo que possa desviá-
lo de seu motivo maior de existir, que seria, na atualidade, constituir-se como uma
unidade útil para uma sociedade disciplinar. O discurso científico é transmutado em
religião, a submissão sustenta a promoção das “tecnologias do self”, e por isso tanto
a quantificação quanto a epidemiologia encontram uma demanda cada vez maior
entre aqueles que pretendem regulamentar os comportamentos humanos. De
acordo com Santiago (2004) tudo isto é a tradução da dominação contemporânea do
39
significante-mestre onde a singularidade do sujeito é apagada ao mesmo tempo em
que as “tentações neo-higienistas e autoritárias do mestre capitalista
contemporâneo” se tomam de luz, e purpurina, encarnando a fantasia do Um.
na política, como afirma Lacan (1970), “a idéia de que o saber possa
constituir uma totalidade” e de que esse saber dever estar atrelado aos interesses
desse algo comum que é maior que o sujeito, garantidor da liberdade e da satisfação
de seus cidadãos. É um engodo somente demarcado por Lacan (1970) que ao se
recusar a ler o laço social de outro lugar, que não a partir da estrutura dos discursos,
aponta para a perversão da relação do homem com o saber.
A quantificação é exatamente o recurso através do qual o suicídio é
deslocado do campo do misticismo e da religião para o da ciência. Emile Durkheim
(1897/2000) produz um levantamento minucioso em toda a Europa do século XVIII e
XIX dos dados estatísticos sobre o suicídio e, a partir destas informações, sustenta
suas hipóteses sociológicas, que dizem respeito às forças sociais exteriores ao
indivíduo como causa para a cota de sacrifício voluntária que existiria em toda
sociedade.
Apesar dos tantos cuidados sociais e científicos, a quantificação que serviu
para organizar saberes e serviços preventivos em torno do suicídio aparece
também, paradoxalmente, como índice denunciador de um certo fracasso de tais
políticas. Ora, estas políticas preventivas, e o saber científico produzido que
sustenta estas práticas, não escapam de serem atravessadas pelo modo como a
própria morte pode ser representada pelo sujeito. No capítulo 4, a questão sobre
como a própria morte é percebida pelo sujeito em seu inconsciente, segundo Freud
(1915), e que efeitos isto pode produzir na organização do conhecimento sobre o
suicídio, será analisada com maior aprofundamento.
40
Segundo Teixeira (2004), discutindo sobre a biopolítica que toma a vida nua
e a submete ao poder estatal, é importante sustentar que
[...] através do discurso analítico possamos finalmente formular uma
linguagem de resistência que o seja do protesto, nem tampouco da
nostalgia romântica das eras utópicas e do clamor pela crença no ideal
perdido. (TEIXEIRA, 2004. pág. 78).
O que é possível formular como resistência, a partir do discurso analítico,
sobre os efeitos da impostura da avaliação e da quantificação do suicídio na
contemporaneidade? No capítulo 4 haverá oportunidade de se retomar este debate.
Apresentar “O Suicídio Um estudo Sociológico” de Emile Durkheim
(1897/2000) constitui o próximo capítulo.
41
3 O SUICÍDIO EM DURKHEIM: O HOMEM DA CIÊNCIA É CAPTURADO PELOS
MECANISMOS DE RESTABELECIMENTO DA NORMA SOCIAL
Publicado em 1897 o livro “O Suicídio um estudo sociológico” de Émile
Durkheim é o resultado de seus esforços para instituir a Sociologia como uma
ciência. Durkheim definiu o suicídio como um fato social e o analisou a partir da
hipótese da submissão do indivíduo a uma realidade moral que o ultrapassa e cerne.
A partir disto conclui que o suicídio é um fenômeno cuja existência e regularidade se
sustentam no fato de desempenhar uma função social que permite restabelecer o
poder de coerção das normas sociais sobre o indivíduo. São estas as duas
hipóteses durkheimianas sobre o suicídio: ser um fato social e ocupar a função de
restabelecer o poder de coerção das normas sociais.
Durkheim organiza, neste livro, o conceito de corrente suicidógena para
explicar a presença do suicídio em todas as sociedades. E, segundo ele, dizer que
uma corrente suicidógena é dizer que “cada povo tem, coletivamente, uma
tendência ao suicídio que lhe é própria e da qual depende a importância do tributo
que ele paga à morte voluntária” (DURKHEIM, 1897/2000, p. 392). Por que toda
sociedade teria de pagar um tributo na forma de morte voluntária? De que tributo
Durkheim está falando? Estas são algumas das questões que se discutirá nesta
pesquisa ao buscar compreender se é possível uma aproximação entre o conceito
de corrente suicidógena e o que Freud (1929) denomina circulação da pulsão de
morte na cultura.
Para compreender de que modo o suicídio Durkheim (1897) é tomado como
um objeto de estudo científico e porque lhe é designada uma função social em sua
42
teoria é preciso percorrer os conceitos durkheimianos de sociedade, indivíduo,
vínculo social.
3.1 A sociedade é resultado de laços de solidariedade
Em “A Divisão do Trabalho Social” (1893/1999) a sociedade é definida, por
Durkheim, como uma força viva e atuante, uma realidade lingüística que atravessa o
indivíduo em sua existência biológica e funda o indivíduo social. Diferentemente da
Psicanálise, para a qual não existe uma realidade social a priori, a noção sociológica
de sociedade é a de que esta constitui uma força moral reguladora externa ao
indivíduo, o “único poder moral superior ao indivíduo, e cuja superioridade este
último aceita” (DURKHEIM, 1897/2000, p. 315). No entanto, “do fato de que as
crenças e práticas morais nos penetram a partir do exterior, não se segue que a
recebamos passivamente e sem lhes imprimir modificação” (DURKHEIM, 1895/1999,
p.155). Isto significa que, também para o autor, a produção de subjetividade não
exclui a possibilidade de singularização dos indivíduos. A maior ou menor
probabilidade de cada integrante de uma sociedade em se apropriar de modo
particular do que lhe chega como força moral coercitiva não fica ao acaso, de acordo
com Durkheim (1897/2000).
Na teoria durkheimiana a sociedade se materializa na forma de liens de
solidarité
5
que atrelam os indivíduos em uma relação de interdependência, isto
porque “os homens não podem viver juntos sem se entenderem e, por conseguinte,
5
LAROUSSE. 1957. lien: ligadura, atadura, laço, vínculo, parentesco. Solidarité: solidariedade.
43
sem fazerem sacrifícios mútuos, sem se ligarem uns aos outros de maneira forte e
duradoura”; assim, “Toda sociedade é uma sociedade moral” (DURKHEIM,
1893/2000, p. 218). Haveria dois tipos de laços de solidariedade, o mecânico e o
orgânico. Estas duas amarrações sociais propiciam outros dois tipos de vínculos
sociais: o egoísta e o altruísta.
Na tessitura, tanto de um tipo de solidariedade quanto de outra, é
fundamental manter um grau ótimo de tensão na amarração entre os indivíduos.
Caso isto não se sustente, os dois tipos sobrepostos de vínculo social, egoísta e
altruísta, se tornarão patológicos. ainda um terceiro tipo que por si é produto
da desarmonia social; este tipo Durkheim (1897/2000) nomeou anômico. Estes três
tipos de laço patológicos, então, podem existir tanto em uma sociedade estruturada
pela solidariedade mecânica quanto pela solidariedade orgânica. Os tipos de
suicídio durkheimianos são equivalentes a estes tipos de patologia do vínculo social.
As características dos tipos de solidariedade podem ser observadas no
quadro abaixo.
Solidariedade Mecânica Solidariedade Orgânica
Tipo de
sociedade
pré-capitalista capitalista
Características
a família, a religião e o estado
constituem o eixo da
construção de subjetividade
a fusão identificatória entre os
membros é a única
possibilidade de sobrevivência
a multiplicação dos
lugares na cadeia
de produção de
bens exige um
indivíduo
singularizado
44
do grupo
Efeitos sobre a
subjetividadade
Predominância da consciência
coletiva sobre a consciência
individual
Consciência individual se
sobrepõe à coletiva
Quadro 01 – Diferenças entre as Solidariedades Mecânica e Orgânica
Fonte: Durkheim. 1893/2003
A solidariedade mecânica caracteriza sociedades pré-capitalistas em que a
identidade de uma pessoa equivale à manifestação de um corpus coletivo; a
singularidade existe entre os grupos, mas não entre os membros de cada grupo.
neste tipo de sociedade a predominância do que Durkheim (1893/1999) denomina
“consciência coletiva”, que é o conjunto das regras e valores de um determinado
grupo a que os integrantes estão submetidos. Neste mesmo texto ele afirma que
embora a sociedade se componha de seus membros não é possível confundi-la com
uma somatória das subjetividades dos indivíduos que aí estão, pois uma nova
realidade independente é criada no estabelecimento da relação social.
A solidariedade mecânica adquire sua força na medida em que maior espaço
puder ocupar na consciência individual. Instituições como a religião, a família e a
tradição são eixos em torno dos quais cada integrante organizará sua subjetividade,
de tal modo que existe a convicção nestes indivíduos de que eles corporificam uma
unidade; e de que é esta fusão identificatória que os mantém vivos, como indivíduos
ou como grupo. Segundo Durkheim (1893/1999) é por isto que qualquer
possibilidade de singularização será percebia como potencialmente mortífera a
ambos.
E se o fortalecimento da solidariedade mecânica é proporcional ao aumento
do poder de interferência da consciência coletiva sobre a consciência individual,
45
então o ápice da deste tipo de laço é a confluência do poder coercitivo social em um
determinado órgão social. Assim, as novas formas de poder apenas proporcionaram
a convergência em uma figura específica de um poder antes difuso da consciência
comum. A singularidade subjetiva continua a não ser desejável para estas
sociedades.
É somente a divisão do trabalho social, com o surgimento do capitalismo, que
promoverá uma ruptura nesta identidade coletiva e dará origem ao outro tipo de
solidariedade que é a orgânica.
Durkheim (1893/1999) nomeia este tipo de solidariedade como orgânica em
uma analogia ao funcionamento do corpo biológico onde duas características são
essenciais: a diferenciação de um todo em partes singulares e a interdependência
entre elas, gerada exatamente pela especificidade de função de cada uma daí em
diante.
A diferenciação, antes imaginada como letal pelos integrantes de uma
sociedade, é uma necessidade surgida da multiplicação dos diferentes lugares na
cadeia de produção de bens. A emergência da individualidade na Modernidade é o
encolhimento da consciência coletiva em cada um e atende apenas à nova demanda
de operários sociais especializados. Aqui a individualidade se faz a partir da
diferença e não mais existem apenas grupos distintos; mas em cada sociedade
haverá pessoas com gostos, projetos, necessidades e potenciais próprios.
Deste modo, o modelo social capitalista exige a reprodução não apenas de
um novo modelo de trabalho, mas também de um novo tipo de subjetividade. São
necessários tipos específicos de indivíduos, pois o “diversas as funções” no
intrincado sistema de produção de bens. A própria coletividade, no formato da
solidariedade mecânica, é convocada a deixar a descoberto uma parcela maior do
46
indivíduo. Mais do que a possibilidade de uma maior liberdade para o indivíduo, no
capitalismo, o que Durkheim (1893/1999 e 1897/2000) pontua é a necessidade
econômica e social do aumento da liberdade individual. O tipo coletivo já o atende
à sociedade e o sacrifício exigido a cada integrante de uma sociedade será outro; o
preço agora é o fato de que cada um tede se haver com a solidão e o desamparo
provocados como efeitos desta nova modalidade de enlaçamento.
3.2 O indivíduo em Durkheim
Compreender o conceito de indivíduo com o qual Durkheim (1897/2000,
1893/1999 e 1895/1999) trabalha ao sustentar a sua hipótese sobre o suicídio como
um fato social é basilar. Permite vislumbrar o modo como ele articula um ato
individual, o suicídio, a uma necessidade social que se manifesta na corrente
suicidógena.
Nos livros “Da Divisão do Trabalho Social” (1893/1999) e “O suicídio”
(1897/2000) Durkheim por diversas vezes distingue dois tipos de consciências, de
esferas de vida psíquica, de indivíduos. Tais nomenclaturas se mesclam ao longo
dos textos. Algumas vezes ele cita dois indivíduos, um biológico e outro social, e
este último se divide em uma consciência individual e outra coletiva. Outras vezes é
um indivíduo que possui dois tipos de consciência social, uma individual e outra
coletiva, que se organizam a partir das condições que a estrutura biológica oferece.
Apesar das diferentes formas de nomear, fica patente que Durkheim pensa o
indivíduo como cindido entre uma realidade psíquica individual e outra coletiva, mas
47
ambas se organizam em um espaço intersticial entre a constituição orgânica e uma
realidade social específica. Observe-se:
em nós duas consciências: uma contém apenas estados que são
pessoais a cada um de nós e nos caracterizam, ao passo que os estados
que a outra compreende são comuns a toda a sociedade. A primeira
representa apenas a nossa personalidade individual e a constitui; a
segunda representa o tipo coletivo, e, por conseguinte, a sociedade sem a
qual ele não existiria (...) embora distintas, essas duas consciências são
ligadas uma à outra, pois, em suma, elas constituem uma coisa, tendo
para as duas um e mesmo substrato orgânico. (DURKHEIM, 1893/1999,
p. 79).
Mas, por outro lado, na mesma obra é possível encontrar o indivíduo como
sinônimo de consciência individual em oposição a uma consciência coletiva externa.
Se nos lembramos a que ponto, nas sociedades inferiores, a consciência do
individuo é invadida pela consciência coletiva, seremos até mesmo tentados
a crer que ela é toda outra coisa que não ela, que é toda altruísmo, como
diria Condillac. Essa conclusão, porém, seria exagerada, uma esfera da
vida psíquica que, qualquer que seja o desenvolvimento do tipo coletivo,
varia de um homem a outro e pertence em particular a cada um: uma que é
formada pelas representações, os sentimentos e as tendências que se
referem ao organismo e aos estados do organismo: é o mundo das
sensações internas e externas e dos movimentos que são ligados
diretamente a elas. Essa primeira base de toda individualidade é inalienável
e não depende do estado social. (DURKHEIM, 1893/1999, p. 183).
Aloísio bio Magalhães (2003) defende que Durkheim trabalha com a noção
de dois tipos de indivíduos, um biológico e outro social. Este último, por sua vez, é
cindido entre uma consciência individual e outra coletiva.
O Quadro seguinte apresenta esta subdivisão a partir do texto durkheimiano
de que fala Magalhães (2003).
48
Quadro 02 – O indivíduo em Durkheim
Fonte: Durkheim, 1893/1999 e 1897/2000
.
Para Durkheim (1893/1999 e 1897/2000), então, não apenas um
indivíduo como também há neste indivíduo uma esfera psíquica que escapa a toda
regulação social, e permanece como um limbo entre o que é da constituição
orgânica e o que é adquirido socialmente através da educação formal ou informal. É
exatamente este aspecto psíquico inesgotável o elemento a ser extraído para a
discussão sobre o suicídio. Isto porque este puro real sem fundo estrutural em cada
integrante de uma sociedade precisará ser continuamente contido, interditado; esta
característica de ser insaciável o faz a maior das ameaças a que uma sociedade se
encontra exposta. Caso esta realidade interna transborde dos limites impostos pela
coerção social produzirá um esgarçamento mortífero em seu próprio lien social; caso
esta situação seja generalizada toda a estrutura social se encontrará em risco de
INDIVÍDUO DURKHEIMIANO
BIOLÓGICO
SOCIAL
Pura realidade
biológica é
apenas uma
hipótese
Base da individualidade.
Campo das
representações,
sentimentos e tendências
que se referem ao
organismo em livre trama
do desejo para além do
mínimo dispensável.
Abismo sem fundo que
nada é capaz de
preencher
Consciência
Individual
Adquirida socialmente
através do processo
de educação.
Uso da racionalidade
que liberta das forças
opressoras da
natureza
Consciência
Coletiva
49
morte. Este transbordamento significa que as normas sociais não mais capazes de
limitar as necessidades a que o indivíduo sente que tem direito de satisfazer e isto
constitui um obstáculo instransponível ao lien social.
Além disto, o sofrimento individual advindo deste estado psíquico seria
insuportável e constituiria, de acordo com Durkheim (1897/2000), um dos fatores do
suicídio.
A natureza humana é sensivelmente a mesma em todos os cidadãos. Não é
ela, portanto, que pode atribuir às necessidades o limite variável que lhes
seria obrigatório. Por conseguinte, na medida em que dependem apenas
dos indivíduos, elas são ilimitadas. Em si mesma, abstraindo-se todo poder
exterior que a regula, nossa sensibilidade é um abismo sem fundo que nada
é capaz de preencher. Mas então, se nada vem conte-la de fora, ela
pode ser uma fonte de tormentos para si mesma. (DURKHEIM, 1897/2000,
p. 313).
A consciência social no indivíduo, portanto, desdobra-se em dois aspectos.
Um singular e portador de necessidades insaciáveis e que, por isso, está sempre em
embate com as normas sociais que se lhe interpõe como obstáculo à satisfação
plena. O outro aspecto do indivíduo social é resultado de uma conciliação entre essa
realidade interna ameaçadora ao bem-estar social e a consciência coletiva externa;
é nesta segunda faceta de sua realidade que o indivíduo se reconhece como
partícipe de uma sociedade.
Neste reconhecimento ocorre entre o indivíduo e a sociedade uma parceria
sem a qual os dois pereceriam. Isto seria verdadeiro tanto para as culturas
mecânicas quanto para as orgânicas. O grau de influência entre um e outro pode ser
observado na citação abaixo:
Em uma sociedade coerente e viva, entre todos e cada um, e entre cada
um e todos, uma troca contínua de idéias e de sentimentos e como que
uma assistência moral mútua, que faz com que o indivíduo, em vez de ficar
reduzido a suas próprias forças, participe da energia coletiva e nela venha
50
recompor a sua quando esta chega ao fim. (DURKHEIM, 1897/2000.
Pág.259).
Apesar da proeminência da figura do indivíduo na atualidade, a consciência
coletiva não desapareceu. Segundo Magalhães (2003) esta consciência coletiva
será assimilada pelas corporações profissionais. Sobre este novo tipo de
representante das normas sociais discutir-se-á adiante ao analisarmos o que
Durkheim (1897/2000) denomina Anomia e os efeitos deste tipo específico de laço
social sobre o fenômeno do suicídio.
Fica claro, então, que o nculo social, mecânico ou orgânico, não apenas
enlaça os indivíduos compondo o tecido social, mas também desempenha a função
de impedir uma manifestação excessiva da realidade interna caótica de cada um.
Esta faceta psíquica deverá ser mantida sob controle, alimentando no indivíduo a
ânsia de progresso, mas delimitando seus sonhos de modo que ele não deseje mais
do que a sua função social específica lhe permite. Esta função de contenção
psíquica do vínculo social é fundamental a ponto de Durkheim (1897/2000)
identificar um tipo de mal-estar peculiar à Modernidade gerado exatamente por uma
anomalia em seu funcionamento. Este mal-estar é denominado anomia.
3.3 Vínculo Social e os tipos de suicídio
Segundo Durkheim (1897/2000), a coesão social é diretamente proporcional
a um grau ótimo de tensão do lien social. Isto acontece porque é este grau de
tensão que indicará uma maior ou menor competência da norma em inibir a
manifestação da realidade psíquica caótica do indivíduo. três tipos de amarração
51
social sobrepostas ao tipo de solidariedade que caracteriza uma sociedade: a
egoísta, a altruísta e a anômica. Cada uma delas traz em si um efeito de prejuízo
tanto ao indivíduo quanto à sociedade. Os três tipos de amarração social produzem
tipos distintos de suicídio: o egoísta, o altruísta e o anômico. Apenas o terceiro tipo,
o anômico, é por si mesmo patológico.
Apresenta-se no presente quadro cada um dos tipos de vínculo social e o
suicídio característico a eles.
Quadro 03 – Tipos de Vínculo Social e os tipos de Suicídios análogos
Fonte: Durkheim. 1897/2000
No tipo de vínculo social egoísta o laço que une o indivíduo à sociedade se
torna frouxo e o desamparo na construção de um sentido para a vida se torna uma
marca para a experiência de estar vivo. Foi dito que a solidariedade orgânica exigiu
da própria coletividade uma maior autonomia de cada indivíduo, que isto é que
permite a manutenção dos mecanismos sociais e de produção do capitalismo; no
entanto, caso este indivíduo seja deixado à deriva, sem que esta mesma sociedade
lhe condições de produzir um sentido social para a própria existência, o grau
VÍNCULO SOCIAL E
TIPOS DE SUICÍDIO
EGOÍSTA
ALTRUÍSTA ANÔMICO
Perda de coesão social.
Individuação excessiva
Af
rouxamento do
vínculo social
Individuação insuficiente
Obrigatório
Facultativo
Estado
agudo
Crise repentina
impede que as
normas coíbam as
paixões individuais
52
ótimo de tensão do vínculo social egoísta será perdido. É neste momento que o
suicídio pode vir a ocorrer.
Já no caso de a amarração entre o indivíduo e a sociedade ser excessiva não
haverá nenhum espaço para manifestações singulares, e isto é o que Durkheim
(1897/2000) chama de altruísmo. Este altruísmo é a característica fundamental das
primeiras civilizações, das culturas pré-capitalistas, ou seja, de solidariedade
mecânica. No mesmo texto o autor comenta que são poucas as instituições, ou
sociedades, modernas que apresentação este tipo de enlaçamento.
A anomia é o terceiro tipo de amarração e constitui um estado patológico do
laço social; nele a norma social se encontra repentinamente impotente para manter
sob coerção a realidade psíquica caótica do indivíduo e as suas exigências de
satisfação se tornam impossíveis de serem atendidas. Isto acarreta um aumento
insuportável de frustração, que com o transbordamento das paixões individuais o
indivíduo fica à mercê de si mesmo e deste “sem fundo” de que fala Durkheim
(1897/2000). A anomia constitui o principal fator para a ocorrência do suicídio.
O primeiro tipo de vínculo social a ser analisado é o egoísta.
3.3.1 O Suicídio Egoísta
Para apresentar o suicídio egoísta Durkheim (1897/2000) estabelece uma
discussão em torno da religião, do advento da ciência, da família e das sociedades
políticas.
53
Ao iniciar a análise deste tipo de suicídio, articulando-o com o vínculo social
característico, Durkheim (1897/2000) se dirige às religiões católica, protestante e
judaica. Ele pensa os efeitos do enlaçamento que estes grupos religiosos promovem
ao indivíduo e que articulação é possível realizar entre este fenômeno e as taxas de
suicídio.
Os protestantes, segundo as estatísticas do culo XIX utilizadas por
Durkheim (1897/2000), detêm as maiores taxas entre todas as religiões. Os judeus
compõem o povo que apresenta um menor índice até 1870; a partir desta data
algumas vezes alcançará ou ultrapassará o número de suicídios entre os católicos.
De acordo com Durkheim (1897/2000), o fator preponderante na religião
judaica que serviria de vacina contra o suicídio é o maior grau de moralidade
6
a que
este grupo foi obrigado a se submeter como recurso para sobreviver em meio à
hostilidade social externa de muitos séculos.
Durkheim (1897/2000) prossegue analisando os fatores que poderiam
explicar a regularidade entre as diferenças encontradas nas taxas de suicídio entre
as religiões. Passa a analisar o catolicismo e o protestantismo lembrando que em
ambos a proibição do suicídio possui caráter divino. Aqui ele se aproxima da
hipótese dos historiadores e assume o livre pensamento protestante, o
individualismo religioso característico desta religião, como um campo propiciador ao
suicídio, pois “quanto mais um grupo confessional deixa ao julgamento dos
indivíduos, mais ele está ausente de sua vida, menos tem coesão e vitalidade”
(DURKHEIM, 1897/2000, p. 188). No capítulo anterior, foi dito que para Marcos
Guedes Veneu (1994) o espaço laico institucionalizado pela Reforma Protestante
defende a liberdade que o indivíduo deve ter para decidir sobre sua vida, ou sua
6
Por maior moralidade Durkheim entende maior grau de coerção social sobre os indivíduos.
54
morte. É sobre este tipo de discurso que Durkheim (1897/2000) se refere ao dizer
que o grupo religioso pode terminar por deixar o indivíduo sozinho para dar um
significado à sua existência. Estas características são exatamente o que ele nomeia
como vínculo social egoísta, gerador do suicídio egoísta.
O aparecimento deste tipo de individualismo teria como causa a livre reflexão
que surge da cisão da antiga unidade religiosa. Mas, no lugar de suturar a fenda que
apareceu, o individualismo religioso passa a reproduzi-la quando diz a cada um
que a sua deverá ter como guia a própria consciência. A coesão social no grupo
protestante tona-se pouco consistente na medida em que diminui o espaço da
consciência coletiva em cada membro do grupo.
A religião, de modo geral, teria um efeito profilático sobre o suicídio por ser
uma sociedade que promove uma vida coletiva intensa que protege o indivíduo de
ter de se haver sozinho com a vida.
A idéia da livre reflexão vinculada ao suicídio é levada mais longe. Durkheim
apresenta a ciência como o ápice dos novos horizontes de liberdade intelectual e
afirma que onde ela puder ser considerada a forma mais comum de compreender o
mundo também será um lugar de altas taxas de suicídio. A necessidade de instrução
corresponderia a um enfraquecimento da fé, com exceção dos judeus que buscam
na maior escolaridade um recurso a mais de sobrevivência social.
Durkheim (1897/2000) com isto não pretende dizer que a ciência é a
causadora de um maior número de suicídios.
Em primeiro lugar vemos porque, em geral, o suicídio progride com a
ciência. Não é ela que determina esse progresso. A ciência é inocente, e
não nada mais injusto do que acusá-la; o exemplo do judeu é
demonstrativo quanto a este aspecto. Mas esses dois fatos são produtos
simultâneos de uma mesma situação geral, que eles traduzem sob formas
diferentes. O homem procura se instruir e se mata porque a sociedade
religiosa de que ele faz parte perdeu sua coesão; mas ele não se mata por
se instruir. Também não é a instrução que ele adquire que desorganiza a
55
religião; mas é porque a religião se desorganiza que surge a necessidade
da instrução [...] não é com demonstrações dialéticas que se desenraiza a
fé; é preciso que ela já esteja profundamente abalada por outras causas
para poder o resistir ao choque dos argumentos. (DURKHEIM,
1897/2000. Pág. 201).
Ele defenderá a idéia de que se a ciência surge como tentativa de reorganizar
o caos advindo da perda de coesão das instituições religiosas, ela se faz o único
remédio de que a humanidade dispõe para reconstituir a consciência coletiva. Não
deve ser tomada como uma meta em si mesma, mas um recurso de fortalecimento
da civilização sobre o indivíduo. As tradições perdidas não se restabelecerão e a
ciência é o único recurso com que é possível contar contra a dissolução de que ela
mesma deriva.
Quanto à família, Durkheim (1897/2000) descobre que de modo geral os
casados cometem menos suicídio do que os solteiros e do que os viúvos. Mas o
amparo que o casamento oferece se sustenta com a chegada e a presença dos
filhos; são estes que propiciam à sociedade conjugal a possibilidade desta se tornar
um grupo coeso. Exemplos disto, segundo o autor, seriam os índices de suicídio das
mulheres sem filhos e dos homens casados se apresentarem mais altos do que o
das mulheres solteiras e dos homens viúvos com filhos, respectivamente. Tal qual a
instituição religiosa, a família é capaz de proteger o indivíduo do suicídio.
O próximo passo para Durkheim (1897/2000) é discutir se as mudanças
políticas influenciam os índices de suicídio. Conclui que algumas crises políticas são
capazes de mobilizar as paixões, avivar os sentimentos coletivos e patrióticos e
promover, então, uma integração mais forte da sociedade. As vidas pessoais são
requisitadas na batalha contra o inimigo que ameaça a existência do grupo e as
taxas de suicídio caem, tanto entre os vencedores quanto entre perdedores no
conflito. O movimento característico das taxas de suicídio seria inversamente
56
proporcional ao grau de integração dos grupos sociais de que os indivíduos
participam. Quanto menos um grupo é capaz de significar a vida de um indivíduo
mais este último estará entregue aos seus próprios interesses.
Esta idéia característica do suicídio egoísta como resultado de um
ensimesmamento, e da liberdade individual, Veneu (1994) a registra entre os gregos
na Antiguidade e com a demarcação de um espaço laico a partir do individualismo
religioso protestante. No campo da História, portanto, o suicídio egoísta seria um
progresso, pois é o próprio indivíduo que passa a decidir de acordo com a sua
consciência e seus interesses, e não mais está completamente submetido a algum
dever social que fatalmente o impelirá ao suicídio. Mas Durkheim (1897/2000) afirma
que mesmo ao se perceber livre da determinação social o indivíduo não lhe escapa,
pois a proposta do suicídio como ápice do livre-arbítrio é efeito do desmoronamento
social e faz parte dos mecanismos que tentarão restabelecer o poder de coerção
nas normas. Este último aspecto será discutido mais adiante quando apresentarmos
de que modo o suicídio desempenha uma função social e se encontra entre as
necessidades naturais de uma sociedade.
O suicídio egoísta seria praticamente inexistente nas sociedades mecânicas,
pois aí a consciência coletiva é uma característica marcante.
Segundo o sociólogo:
A vida, diz-se, só é tolerável quando percebemos nela alguma razão de ser,
quando ela tem um objetivo, e que valha a pena. Ora, o indivíduo, por si só,
não é um fim suficiente para sua atividade. Ele é muito pouca coisa. Além
de ser limitado no espaço, é estreitamente limitado no tempo. Portanto,
quando não temos outro objetivo além de nós mesmos, não podemos
escapar à idéia de que nossos esforços estão, afinal, destinados a se
perder no nada, pois a ele devemos voltar. Mas a anulação nos apavora.
Nessas condições, não conseguimos ter coragem para viver, ou seja, para
agir e lutar, uma vez que, de todo esse trabalho que temos nada irá restar,
em suma, o estado de egoísmo estaria em contradição com a natureza
humana e, por conseguinte, seria precário demais para ter possibilidades de
perdurar. (DURKHEIM. 1897/2000, pág. 260).
57
Durkheim (1897/2000) aponta que este tipo de suicídio seria comum nas
solidariedades orgânicas, que a individualização é exigida como fator de
adaptação do indivíduo e de manutenção da cadeia de interdependência. A questão
que se coloca, então, é sobre o grau ótimo de tensão para este tipo de vínculo de
modo que a sociedade seja atendida, mas não capture o indivíduo na corrente
suicidógena. Em tese, isto seria impossível que a corrente suicidógena faz parte
das engrenagens de sustentação de uma sociedade e seja qual for o tipo de
enlaçamento algum deverá oferecer aqueles que comporão a cota de sacrifício
voluntário a que toda sociedade está submetida. Durkheim (1897/2000) é taxativo:
há um tributo a ser pago.
Neste momento o texto terá prosseguimento com o segundo tipo de nculo
social e seu respectivo tipo de suicídio que é o Altruísta.
3.3.2 O Suicídio Altruísta
A definição do suicídio altruísta é encontrada logo no início do capítulo IV do
livro “O Suicídio”. O texto inicia lembrando que no capítulo anterior foi dito que um
processo de individuação pode se tornar excessivo e com isto provocar efeitos
patológicos ao indivíduo e à sociedade. Continua sua introdução avisando que o
oposto do vínculo egoísta pode ser também mortífero, pois o altruísmo em excesso
fará com que o indivíduo o veja sentido em viver a o ser em função do que a
sociedade lhe estabelece como sagrado ou mesmo minimamente coerente; viver ou
morrer deixam de ser questões que dizem respeito ao próprio indivíduo e são da
58
alçada exclusiva do grupo social a que pertence. Nas palavras de Durkheim
(1897/2000):
Uma vez que chamamos de egoísmo o estado em que se encontra o eu
quando vive sua vida pessoal e só obedece a si mesmo a palavra altruísmo
expressa o estado contrário, aquele em que o eu o se pertence, em que
se confunde com outra coisa que não ele, em que o pólo de sua conduta
está situado fora dele, ou seja, em um dos grupos de que faz parte, por isso
chamaremos de suicídio altruísta aquele que resulta de um altruísmo
intenso. (DURKHEIM, 1897/2000, pág.275).
Por altruísmo intenso o autor entende um tipo de laço social onde o indivíduo
não é percebido como possuindo uma existência pessoal, não possui valor por si
mesmo e a sua vida é apenas materialização da sociedade a que pertence.
Analisando sociedades definidas por ele como primitivas, bem como a história
recente da Europa, Durkheim (1897/2000) conclui ser possível subdividir o suicídio
altruísta em três tipos, de acordo com o modo como o grupo estabelece para o
suicida o instante e os motivos para se matar. O quadro 04 resume tais
modalidades.
Quadro 04 – Os três tipos de suicídio altruísta
Fonte: Durkheim. 1897/2000
SUICÍDIO ALTRUÍSTA
OBRIGATÓRIO FACULTATIVO AGUDO
O indivíduo não
possui valor em si
mesmo
A sociedade obriga e
determina o momento
e a forma como a
morte volun
tária deve
se dar
O sacrifício em si é
considerado louvável.
Concretização da
virtude da renúncia e
desapego
O suicídio místico. O
indivíduo para existir
se encaminha à fonte
de sua essência,
localizada em outra
existência.
59
O suicídio altruísta obrigatório acontece nas sociedades onde é pré-
estabelecido que diante da impossibilidade de continuar a exercer a sua função na
sociedade, tornando-se um peso para os demais integrantes, o indivíduo deve se
matar. Durkheim (1897/2000) narra o caso das viúvas na Índia que como esposas
honradas deveriam acompanhar seus maridos, dos guerreiros dinamarqueses
quando doentes ou velhos, dos visigodos que se atiravam da Pedra dos Ancestrais
quando idosos, dos homens de Ceos que em adiantada idade se reuniam em um
banquete para aí tomarem juntos cicuta. O indivíduo representa um componente
necessário enquanto for útil a uma sociedade; na medida em que perde esta
capacidade não faz sentido que sua vida continue, nem para o grupo e nem para
ele próprio.
Nem todo suicídio altruísta é obrigatório e ocorre de uma sociedade não
impor como um dever a morte aos seus membros, mas valorizar de tal modo o
desapego à vida terrena que buscar o suicídio é entendido como um ato virtuoso. A
este tipo Durkheim (1897/2000) denomina como suicídio altruísta facultativo, tendo
em vista que o indivíduo desfruta de algum grau liberdade para escolher a morte ou
a vida.
O Japão medieval oferece, em especial, exemplos deste tipo de suicídio
altruísta facultativo. De acordo com Maurice Pinguet (1987), no século XII a
eventração
7
era um tipo de morte raro e sem maiores significados. Esta modalidade
de suicídio irá ocupar, aos poucos, um lugar de manifestação virtuosa, de bravura
durante as batalhas, de triunfo diante da morte que o inimigo poderia lhe infringir.
Não é o inimigo que mata, mas o próprio senhor que, mais senhor de si do que
nunca, sustenta a honra de seu grupo até o fim. Mas ainda não é possível dizer que
7
PINGUET (1987): O mesmo que haraquiri ou seppuku, mas nomeado deste modo antes de adquirir
o lugar social e os significados de que se revestiu a partir do século XIX.
60
estas mortes sejam o seppuku, morria-se pelas próprias mãos ou pela de algum
amigo ou familiar como uma oposição decente e possível ao destino.
Segundo este autor, é ao longo dos séculos que este momento se reveste de
uma solenidade que o localiza entre as artes de combate, a mais árdua delas.
Vencer-se, dominar em si o desejo de viver e transformar o gesto de dar-se à morte
em uma última escrita de bravura, harmonia e beleza.
[...] não bastava mais espetar-se às pressas ou cortar-se a garganta, levar-
se-ia mais tempo, abrir-se-ia o ventre, extirpar-se-iam as entranhas sem
se mover. Foi o procedimento que se impôs sob o nome de seppuku: leitura
à moda chinesa, portanto sempre elegante e sábia, das duas palavras
ventre cortado, cuja leitura vulgar, harakiri, nos é mais familiar. (PINGUET,
1987, pág. 127).
Este fenômeno social, que é o seppuku na história do Japão, foi num
crescendo e chegou a uma outra forma denominada seppuku coletivo. No ano de
1333 d.C, após uma série de batalhas, há um jantar entre os generais e senhores
fiéis ao xogum
8
de Kamakura, Minamoto-no-Yoritomo. Takashije se mata e
conclama os companheiros a segui-lo no único ato honrado possível a eles que
haviam perdido a batalha. Um fragmento da descrição trazida por Pinguet (1987):
Nesse momento Takashige pôs-se a correr por todos os lados gritando:
“Depressa! Depressa! Matai-vos! Eu, Takashige, vou primeiro para lhes dar
exemplo!” Assim que acabou de falar, tirou a couraça, da qual restava
apenas o platrom, e jogou-a para longe de si. Pegou a taça que esstava
diante de Sua Senhoria o regente [Takatoki], mandou-a encher três vezes
por seu irmão caçula Shin-uemon, depois colocou-a diante do senhor de
Settsu, adjunto ao Departamento de Justiça, que se havia ordenado com o
nome de Dojun: “para aquele a quem vai minha amizade” disse ele. “E isto,
para acompanhar a bebida!Com essas palavras, plantou o sabre no flanco
esquerdo, cortou-se largamente o ventre até o lado direito, tirou as
entranhas com as próprias mãos, e caiu diante de Dojun. Este último
levantou a taça gritando: Ah! Que belo acompanhamento para o saquê! O
mais medíocre bebedor não poderia recusar-se a beber!” Assim brincando
8
PINGUET (1987): O equivalente ao senhor feudal europeu ou ao general na nomenclatura ocidental
moderna. Os xoguns constituíam a elite social, militar e mesmo religiosa do Japão feudal. Guerreiros
e defensores de um código de honra.
61
esvaziou a taça pela metade e colocou-a diante do monge Suwa, depois,
por sua vez, matou-se abrindo o próprio ventre. (PINGUET, 1987, p. 134).
O que se segue é uma noite de suicídios causados por punhais e pelo fogo. A
tragédia não teve fim entre os seiscentos homens que ali estavam naquele
momento; seus servos, suas famílias e seus fiéis os seguiram e o registro histórico
informa que foram, apenas em Kamakura, mais de seis mil mortes. Ainda que a
possibilidade de permanecer vivo fosse uma realidade, não era aceitável; a
consciência coletiva desta sociedade lhes dizia que uma vida desprovida dos valores
e das condições que a tornavam honrada não merecia continuar. É o suicídio
altruísta facultativo.
Mas não é entre os orientais que este tipo de suicídio pode ser observado
no campo social. Para Durkheim (1897/2000) alguns casos de mártires cristãos, em
suas mortes sacrificiais, podem ser classificados como suicidas altruístas
facultativos. É somente com a Reforma Protestante e o surgimento do individualismo
religioso que o cristianismo reveste-se da característica marcante da religião teísta
9
,
que é pensar o indivíduo como um ser que possui existência por si. Este fato é
capaz de oferecer outros recursos de louvor e remissão de pecados aos seus fiéis
que não o suicídio. Então, se por um lado a livre reflexão protestante permite a idéia
do suicídio como ato consciente e de direito e por este motivo apresenta uma alta
taxa de suicídio, por outro lado é a diminuição do poder de coerção coletivo da
religião cristã que permite ao cristianismo sustentar a proibição do suicídio. Para
este autor, entre os povos de religião teísta, politeísta ou monoteísta, este tipo de
suicídio é raro.
9
Religião que tem um ou mais deuses como núcleo de fé. Acreditam que os homens são criaturas
distintas do (s) criador (s).
62
Já entre as religiões não teístas o terceiro tipo de suicídio altruísta, o agudo, é
característico e nele o indivíduo está completamente fundido à sociedade e não se
percebe como possuindo uma essência diferenciada. A morte é o retorno à unidade
a que pertence naturalmente. A característica do que Durkheim (1897/2000)
denominou altruísmo encontra seu ápice neste tipo de suicídio, que se concretiza na
aspiração individual à morte pelo motivo mesmo de que a vida terrena nada vale. Há
neste tipo uma esperança e uma convicção plena de um estado de graça no
encontro com a morte.
Na modernidade Durkheim (1897/2000) identifica uma sociedade onde o
suicídio altruísta ele não especifica qual dos três – ainda existe em estado crônico:
o exército. O autor defende a idéia de que o exército é um remanescente das
sociedades primitivas para quem a vida de cada integrante está à disposição do
grupo. O mesmo espírito de corporação que serviria para salvar os indivíduos
egoístas na modernidade torna-se causa do suicídio entre os militares. O
treinamento a que os soldados são submetidos atravessa a linha divisória a partir da
qual a fusão da identidade dos participantes de uma sociedade é prejudicial.
Durkheim (1897/2000) observa que o individualismo crescente da modernidade
passa a exigir um novo enlaçamento no interior das corporações militares e também
começa a diminuir o espaço para a consciência coletiva, mas sem ameaçar a
característica altruísta desta corporação.
O suicídio altruísta, não importa se obrigatório, facultativo ou agudo, sempre
se apresentará no terreno social onde a individualidade, definida como autonomia
frente ao grupo, seja considerada desnecessária ou ameaçadora ao grupo social.
Analisando as crises sociais Durkheim (1897/2000) conclui haver mais uma
classificação, a última, para o suicídio, que ele chama de anômico.
63
3.3.3 O suicídio Anômico
No início deste capítulo foi apresentado o conceito de indivíduo em Durkheim
(1893/1999 e 1897/2000). Assim ficou explicitado que, para ele, o indivíduo é cindido
entre duas realidades, uma resultante da submissão às normas sociais e outra que
permanece alheia aos deveres deste para com seu grupo. Esta segunda faceta de
sua realidade psíquica é tão perigosa ao homem quanto à sociedade, e se for
permitida a sua manifestação, além do mínimo necessário para manter o indivíduo
em busca do progresso social de seu grupo, acarretará um desnível entre o que ele
deseja e o que a sociedade pode lhe oferecer.
Em caso de uma crise social repentina, benévola ou dolorosa, ocorre uma
fragilização do poder das normas sociais de coibir a realidade caótica e instaura-se o
que Durkheim (1897/2000) nomeia como estado anômico social, ou anomia. Este
estado de desregramento social, por deixar sem contenção as tendências humanas
que ameaçam a sociedade, é responsável pelas bruscas ascensões das taxas de
suicídio. Isto porque
[...] qualquer ser vivo só pode ser feliz ou até pode viver se suas
necessidades têm uma relação suficiente com seus meios. Caso contrário,
se elas exigem mais do que lhes pode ser oferecido ou simplesmente algo
diferente, estarão constantemente em atrito e não poderão funcionar sem
dor. (DURKHEIM, 1897/2000, pág. 311).
Esta natureza interna, em si mesma, é “um abismo sem fundo que nada é
capaz de preencher” (Durkheim,1897/2000, p. 313) e a sua manifestação desinibida
leva a um suplício perpetuamente renovado, insuportável; que as frustrações às
quais o indivíduo fica submetido não têm esperanças de findar um dia.
64
Como não nada no indivíduo que lhe possa fixar um limite, este deve
necessariamente vir de alguma força exterior ao indivíduo. É preciso que
uma força reguladora desempenhe para as necessidades morais o mesmo
papel que o organismo para as necessidades físicas. Isto significa que esta
força pode ser moral (...) os indivíduos devem recebê-la de uma
autoridade que respeitem e diante da qual se inclinem espontaneamente.
(...) a sociedade, seja diretamente e em seu conjunto, seja por
intermédio de um de seus órgãos, está em condições de desempenhar esse
papel moderador, pois ela é o único poder moral superior ao indivíduo, e
cuja superioridade este último aceita. ela tem a autoridade necessária
para dizer o direito e para marcar o ponto além do qual não devem ir as
paixões. (DURKHEIM, 1897/2000, pág. 315).
Fica claro, então, que uma das funções da sociedade é regular as
necessidades do indivíduo para que ele ocupe o seu lugar no processo de
interdependência originado com a divisão do trabalho e o estabelecimento da
solidariedade orgânica, característica da modernidade.
Caso o domínio moral da sociedade sobre o indivíduo não seja considerada
justo por este último, a paz e a harmonia reinante serão falsas e desmoronarão se
alguma outra crise repentina, além desta latente, vier a ocorrer. De acordo com
Durkheim (1897/2000) a anomia é um estado crônico na sociedade moderna e
também um fator regular e específico do suicídio. A anomia teria este efeito sobre as
taxas de suicídio porque o individualismo característico do laço solidário orgânico
coloca cada integrante em confronto com a tarefa de regulamentar a si mesmo
repentinamente, à mercê do transbordamento de sua realidade interna e do
sofrimento resultante disto.
Mas foi dito no início que Durkheim (1897/2000) tem duas hipóteses acerca
do suicídio: de que ele é determinado pelas forças sociais que regulamentam o
indivíduo e que existe uma função social para a cota de sacrifícios voluntários em
cada sociedade. Sobre a primeira Durkheim se debruça com esmero e praticamente
todo o livro é dedicado a demonstrar a força desta idéia. Sobre a segunda hipótese
ele a comenta rapidamente, no último dos três livros que compõe o volume, sobre
65
a categorização do suicídio como crime e o efeito disto, que é desempenhar a
função de restabelecer o poder coercitivo das normas sociais.
Esta segunda hipótese é a que mais interessa a esta pesquisa. Entende-se
que discutir esta idéia do suicídio como um elemento da estabilidade social pode
abrir um novo campo de pesquisas e trazer alguma contribuição para o debate em
torno do suicídio e de suas características na atualidade.
3.4 Uma função social para o suicídio
Qual é a função social que o suicídio desempenha e de que modo o faz? Esta
pergunta se toma de relevância especial aos que consideram como legítima a teoria
psicanalítica e seu conceito de pulsão de morte, no campo do sujeito e no campo da
cultura tal qual Freud (1914, 1915, 1919) propõe. Mesmo com as diferenças e as
divergências epistemológicas que impedem a transposição de conceitos entre a
psicanálise e a sociologia de Durkheim, não se pode deixar de pensar como foi
possível a este propor, no bojo de sua teoria positivista, uma instância social para
além de seus próprios limites.
Sustentar que a morte voluntária possui uma função social, que uma cota de
sacrifício é da natureza de toda sociedade não importa quão avançada seja uma
cultura, isto é o que de mais original se pode ler na obra durkheimiana, mas o que
tão pouco se comenta e discute acerca de sua teoria. Talvez porque para considerar
esta idéia em seu devido peso seja necessário escutar a partir de uma lógica capaz
de pensar o modo como a morte pode ser representada em cada sujeito, e quais os
66
efeitos disto na produção humana, incluindo aí a produção científica acerca do
suicídio. Pode ser que para além das divergências epistemológicas entre a
sociologia e a psicanálise algo tenha restado, um ponto.
Durkheim (1897/2000) entende que em todas as sociedades, mesmo
naquelas onde o suicídio altruísta obrigatório ocorre sistematicamente, a morte
voluntária não é algo banal e não deixa de ser regulada rigorosamente. No capítulo
III do Livro III de “O Suicídio estudo de sociologia” Durkheim (1897/2000) coloca a
pergunta sobre a situação do suicídio na modernidade. Seria normal ou anormal? E
considera que
[...] se o suicídio choca a consciência moral, parece impossível não o
67
Sustentado por esta presença irremediável do crime nas sociedades é que o
autor propõe a sua normalidade, um “fator de saúde pública, uma parte integrante de
toda sociedade sadia” (Durkheim, 1895/1999, p, 53). O suicídio, deste modo, faz
parte da própria natureza de uma sociedade, um acontecimento que não pode ser
excluído de modo completo e que no máximo, tendo em vista os prejuízos tanto
individuais quanto sociais que acarreta, deverá ser mantido em uma taxa mínima
necessária.
Um dos motivos para denominar o crime como normal, se for entendido
como crime a transposição de um limite estabelecido por um grupo social, é que
toda e qualquer escolha que descole o indivíduo do que lhe foi outorgado como de
direito deve ser registrada no campo da criminalidade. Algumas das infrações ao
instituído como correto podem vir a promover o progresso de uma sociedade e
assim as transformações sociais teriam sua gênese em algum tipo de violação à
norma. É sobre este primeiro aspecto da utilidade do crime que Durkheim
(1897/2000) comenta:
O crime é, portanto necessário; ele está ligado às condições fundamentais
de toda vida social e, por isso mesmo, é útil; pois as condições de que ele é
solidário são elas mesmas indispensáveis à evolução normal da moral e do
direito. (DURKHEIM, 1895/1999 p, 55
).
Ou ainda:
Imaginem uma sociedade de santos, um claustro exemplar e perfeito. Os
crimes propriamente ditos nela serão desconhecidos; mas as faltas que
parecem veniais ao vulgo causarão o mesmo escândalo que produz o delito
ordinário nas consciências ordinárias. Portanto, se essa sociedade estiver
armada do poder de julgar e de punir, ela qualificará esses atos de
criminosos e os tratará como tais. É pela mesma razão que o homem
honesto julga suas menores fraquezas morais com uma severidade que a
multidão reserva aos atos verdadeiramente delituosos. (Durkheim,
1895/1999 p, 54).
68
Sobre este aspecto da utilidade social do crime Durkheim (1897/2000) não
apresenta de modo minucioso que efeitos o suicídio, como infração às normas
sociais, teria sobre o indivíduo. No entanto, ao igualar suicídio e crime insere o
primeiro entre os mecanismos sociais que são capazes de restabelecer a harmonia
social e que contribuem para a saúde pública. Aqui se deve entender por saúde
pública a harmonia e manutenção de uma consistência ideal das forças sociais que
enlaçam cada indivíduo aos seus pares.
Mas, segundo Durkheim (1895/1999), o crime não carrega em si algum poder
natural de harmonização e para que desempenhe esta sua função social precisa ser
capturado pela rede de sanções de uma dada cultura, neste caso as condições para
a segunda utilidade do crime estão organizadas.
um segundo fator que permite pensar o crime, e, portanto também o
suicídio, como um fator de saúde pública. Segundo Collins (1992) apud Magalhães
(1996) esta segunda utilidade instituída, por Durkheim (1897/2000 e 1895/1999), é
que a punição do crime, e, portanto, da morte voluntária, é um ritual onde se re-
atualiza, em cada integrante do grupo, o poder das normas sociais como mecanismo
de coerção das realidades internas destes indivíduos. Esta realidade insaciável é
percebida como ameaçadora não apenas pelo grupo social, mas também pelo
próprio individuo já que pode levá-lo a um estado de sofrimento insuportável.
Mostramos como o crime pode ser útil. Contudo ele só é útil se reprovado e
reprimido (...) Se é normal que haja crimes, é normal que sejam punidos. A
penalidade e o crime são os dois termos de um par inseparável. Um não
pode falar mais do que o outro. Qualquer afrouxamento anormal do sistema
repressivo tem por efeito estimular a criminalidade e lhe conferir um grau de
intensidade anormal. Apliquemos esta idéia ao suicídio. (DURKHEIM,
1897/2000, p, 473).
69
Durkheim (1897/2000), desta forma, estabelece um ponto de tangência entre
um mal-estar cultural que é a crise das normas de um grupo –, um mal-estar do
indivíduo que é o transbordamento de sua realidade caótica e insaciável e, por
último, a necessidade para a sociedade e para o indivíduo tanto da manutenção de
um funcionamento ótimo das normas quanto do restabelecimento de seu poder de
coerção sobre o indivíduo. Este mecanismo de re-harmonização sofre variações em
sua eficácia em função do grau de sensibilidade do grupo à gravidade da infração
cometida. Acontece que
[...] a reação social que constitui a pena é devida à intensidade dos
sentimentos coletivos que o crime ofende; mas, por outro lado, ela tem por
função útil manter esses sentimentos no mesmo grau de intensidade, pois
estes não tardariam a se debilitar se as ofensas que sofrem não fossem
castigadas. (Durkheim, 1895/ xxx (é alguma data que falta pesquisar???), p,
74).
Fica posto, deste modo, que certa dose deste mal-estar é necessária e seria
prejudicial à sociedade se desaparecesse por completo o crime, e o suicídio. Uma
sociedade cujo otimismo seja desmesurado é uma sociedade em decadência, pois
[...] ao lado da corrente otimista que leva os homens a encararem o mundo
com confiança, é necessário que haja uma corrente contrária, menos
intensa, sem dúvida, e menos geral que a anterior, todavia que tenha
condições de a conter parcialmente; pois a tendência o se limita a si
mesma, ela pode ser limitada por uma outra tendência. (DURKHEIM,
1897/2000, PG. 478).
Para sustentar essa corrente “é preciso que haja grupos que representem
mais especialmente essa disposição do humor coletivo. Mas a parte da população
que desempenha esse papel é necessariamente aquela em que as idéias de suicídio
germinam facilmente” (DURKHEIM, 1897/2000, pg. 478). O que tornaria estas
pessoas mais suscetíveis a esta corrente pessimista, à corrente suicidógena em si,
Durkheim (1893/1999, 1895/1999 e 1897/2000) não investiga. Nem pretende. Deixa
70
claro em “O suicídio – estudo de sociologia” (1897/2000) que seu interesse é dirigido
às forças sociais e não a fatores psicológicos que regem um fato social.
Frente a esta questão novamente a psicanálise pode ser convocada.
Havendo uma corrente social pessimista, e Freud (1915, 1920, 1924, 1927, 1929)
concorda com esta idéia, de que modo um sujeito e não outro poderia ser capturado
por ela? E o suicídio poderia ser um dos efeitos disto? Discutir sobre as formas que
o mal-estar na civilização pode assumir e de que modo o suicídio poderia ser
incluído ou não, isto será feito no próximo capítulo.
De acordo com Durkheim (1897/2000) este mal-estar generalizado, advindo
de uma anomia crônica e da disseminação desta corrente pessimista, se consolida
em uma dessensibilização social ao crime, incluindo o suicídio. Além disto, este
mal-estar, acrescido dos referidos fatores, torna tênues os sentimentos que
valorizariam nas pessoas o ato de permanecerem vivas apesar de quaisquer
dificuldades. Na modernidade, deste modo, o grau de anomia é patológico e isto
termina por exigir do suicídio, como mecanismo restaurador da consistência da lei,
uma manifestação ainda mais acentuada
[...] para que os sentimentos coletivos protegidos pelo direito penal de um
povo, num momento determinado de sua história, consigam penetrar nas
consciências que lhes eram então fechadas ou ter mais influência onde
não tinham bastante, é preciso que eles adquiram uma intensidade superior
à que possuíam até então. É preciso que a comunidade como um todo os
sinta com mais ardor; pois eles não podem obter de outra fonte a força
maior que lhes permite impor-se aos indivíduos que até então lhes eram
mais refratários. Para que os assassinos desapareçam, é preciso que o
horror do sangue derramado torne-se maior naquelas camadas sociais em
que se recrutam os assassinos; mas, para tanto, é preciso que ele se torne
maior em toda a extensão da sociedade. Aliás, a ausência mesma do crime
contribuiria diretamente para produzir esse resultado; pois um sentimento
mostra-se muito mais respeitável quando ele é sempre e uniformemente
respeitado. Mas não se percebe que esses estados fortes da consciência
comum não podem ser assim reforçados sem que os estados mais fracos,
cuja violação dava antes origem apenas a faltas puramente morais, sejam
igualmente reforçados; pois os segundos são apenas o prolongamento, a
forma atenuada dos primeiros. (Durkheim, 1895/1999 p, 54).
71
Caso as taxas de suicídio fossem baixas, ou razoáveis, na modernidade
orgânica e portadora de uma anomia crônica, elas não seriam suficientes para
deflagrar os mecanismos de restabelecimento da harmonia social. As taxas neste
volume caracterizariam o suicídio apenas como um gesto extremista de sentimentos
presentes na maioria da população. Com as transformações na tessitura social
moderna o limiar social à morte voluntária, a partir do qual é necessário que seja
deflagrado o processo de re-harmonização, é colocado em um patamar superior.
Torna-se imperioso que as taxas de suicídio se elevem o suficiente para re-
sensibilizar a moral social. Aquele ponto de tangência entre o mal-estar social e o
mal-estar individual, então, é ocupado pelo suicídio, que emerge ali com a função de
dar intensidade suficiente à violação da lei para que, ao ser reprovado ou reprimido,
reafirme-se a necessidade da norma e, com isto, o seu poder de coerção sobre o
indivíduo.
Na Modernidade teríamos, pois, segundo Durkheim (1897/2000), uma
situação singular: o suicídio é um fenômeno normal, posto que necessário à
sociedade, em estado patológico. O motivo da morbidez é que ele resulta de um alto
grau de corrente pessimista presente nos vínculos sociais modernos. Dissemina-se
um estado coletivo de melancolia onde a indulgência para com o suicídio é
excessiva e a sua imoralidade o é sentida com o mesmo vigor dos períodos
históricos anteriores. o causa a mesma indignação. Isto porque, neste contexto,
não se pode condenar o suicídio ou o suicida sem condenar a si mesmo, os valores
e sentimentos que levaram o indivíduo a se matar são recorrentes entre os
indivíduos na sociedade moderna.
Com efeito, em menos de cinqüenta anos os suicídios triplicaram,
quadruplicaram, a quintuplicaram, conforme os países. Por outro lado,
sabemos que estão ligados ao que de mais inveterado na constituição
72
das sociedades, uma vez que exprimem seu humor, e o humor dos povos,
tal como o dos indivíduos, reflete o estado do organismo no que ele tem de
mais fundamental. É preciso, portanto, que nossa civilização social tenha se
alterado profundamente no decorrer deste século para ter determinado um
tal crescimento da taxa de suicídio. Ora, é impossível que uma alteração tão
grave e tão rápida, não seja mórbida, pois uma sociedade não pode mudar
de estrutura tão subitamente. (DURKHEIM, 1897/2000, pág. 482).
Dizer que o suicídio se encontra em estado patológico é apontar a
possibilidade de alguma intervenção que sirva de tratamento. Durkheim (1897/2000)
pensa algumas.
A primeira intervenção seria no campo de uma ação pedagógica. Morselli
citado por Durkheim (1897/2000) propõe um tratamento profilático que busca
desenvolver no homem um espírito mais forte e objetivo, um caráter moral mais
vigoroso. Esta lógica interventiva se assemelha à de Oliveira e Neto (2002),
discutidos no capítulo 2, que pensam ser uma questão de desenvolvimento dos
recurso de diagnóstico e de tratamento das doenças mentais de modo que as
pessoas possam ser fortalecidas em seu ego e capazes de superar as frustrações
que a sociedade modernas lhes apresentar.
Este tipo de lógica pedagógica também é citada por Lopes (1998) ao
comentar sobre os recursos que alguns cientistas brasileiros, entre eles Alvim e Ellis
Junior (1929), consideravam importantes como medidas intervenção e prevenção do
suicídio. Estas medidas seria tanto de caráter social quanto individual:
As medidas de caráter social propunham: a) tornar acessíveis a todas as
classes sociais os conhecimentos sobre higiene mental preventiva; b)
administrar ensinarmentos, por intermédio de publicações e dos
Ambulatórios de Profilaxia Mental, sobre leis biológicas que regiam a
herança e a consangüinidade; c) difundir, pro meio de artigos e
conferências, os males do alcoolismo; d) conter a expansão do alcoolismo
no Estado; e) prevenir a entrada de imigrantes tarados [foi observado que o
grupo de brancos imigrantes era o que mais suicidava, concluiu-se que isto
se devia ao fato de ter desequilibrados mentais entre estes e uma medida
necessária seria realizar um exame ao aqui chegarem); f) contribuir para
que o número de postos preventivos e de tratamento da sífilis fosse
ampliado. A profilaxia individual cuidaria de: a) afastar, pelos recursos
terapeuticos, psicoterapeuticos e postos especializados, as perturbações
73
psíquicas, mesmo ligeirias; b) indicar internação precoce dos indivíduos que
manifestassem idéias de suicídio. (LOPES, 1998, 106).
Mas Durkheim (1897/2000) não concorda com estas propostas pedagógicas e
afirma que a educação não possui meios de se descolar do discurso social em que
se encontra. Se o pessimismo e o individualismo são as amarrações características
da sociedade moderna, eles serão também os recursos ideológicos com os quais a
pedagogia trabalhará. Para Durkheim (1897/2000) a única possibilidade seria
[...] devolver aos grupos sociais consistência suficiente para que apóiem
mais vigorosamente o indivíduo e para que ele próprio se apóie neles. É
preciso que o indivíduo se sinta solidário de um ser coletivo que o tenha
precedido no tempo, que lhe sobreviva e que o transborde por todos os
lados. (DURKHEIM, 1897/2000, pág., 489).
Segundo ele a sociedade política, no Estado moderno, se encontraria muito
distante dos indivíduos para agir sobre eles eficazmente. Somente em situações
graves obteria algum efeito. A sociedade religiosa em tempos de solidariedade
orgânica não possui o mesmo poder de coerção sobre os seus fiéis e, a menos
que haja um retrocesso na estrutura do vínculo social, ela não o recuperará. Quanto
à família esta também é uma instituição social que sofreu profundas modificações;
sua estrutura moderna comporta o indivíduo autônomo e não tem mais o mesmo
efeito de enlaçamento anterior.
Mas para Durkheim (1897/2000) ainda restaria uma oportunidade à sociedade
moderna de resgatar um grau de enlaçamento social ideal e com isto o retorno do
suicídio à níveis razoáveis. Nenhuma das ações anteriores poderia ser efetiva por
não se dirigir à fonte do mal que se concretiza nas mortes voluntárias. Em todas elas
ainda é possível deixar escapar aquilo que é o ponto de radicalidade do ato suicida.
Isto aconteceria porque, em última instância, no interior destas lógicas, o suicido é
74
apreendido apenas como a generalização de um estado de espírito que é corrente
na atualidade. Deste modo
O único meio de nos tornar mais severos é agir diretamente sobre a
corrente pessimista, leva-la de volta a seu leito natural e faze-la conter-se
nele, subtrair à sua ação a generalidade das consciências e solidifica-las.
Uma vez que tiverem reencontrado sua base moral, elas reagirão
convenientemente contra tudo o que as ofenda. (DURKHEIM. 1897/2000, p.
486).
Ao retomar a questão das possibilidades maiores ou menores das instituições
prevenirem o suicídio, Durkheim (1897/2000) pensa que para alcançar este objetivo
o principal recurso é a capacidade destas instituições de promover a coesão social.
Identifica um grupo na organização social moderna capaz de restaurar a amarração
social para que as taxas de suicídio retornem a um estado normal: a corporação
profissional.
Definida por ele como “a única descentralização que, sem romper a unidade
nacional, permitiria multiplicar os centros da vida comum” (DURKHEIM, 1897/2000,
pág. 511), ela possuiria três vantagens: existir em todos os tempos, em todos os
lugares e na maior parte da existência do indivíduo. Com isto reuniria as condições
necessárias para se impor ao indivíduo como fonte de normatização moral.
As necessidades sociais, os deveres e direitos de cada indivíduo voltariam
a ser normatizados e assim se estabeleceria um disciplina moral, de um
novo gênero, sem a qual todas as descobertas da ciência e todos os
progressos do bem-estar poderão produzir insatisfeitos. (DURKHEIM,
1897/2000, pág.501).
Durkheim (1897/2000) percebe na corporação profissional um valor social
tão significativo que insiste em defendê-la na página seguinte:
[...] uma força moral capaz de constituir a lei para os homens; mas
ainda assim é preciso que ela esteja suficientemente envolvida com as
coisas deste mundo para poder estimar seu verdadeiro valor. O grupo
75
profissional apresenta esta dupla característica. Por ser um grupo, domina
os homens de uma altura suficiente para estabelecer limites a suas cobiças;
mas vive muito de sua vida para não simpatizar com suas necessidades.
Por outro lado, ainda é verdade que o Estado também tem funções
importantes a cumprir. ele pode opor ao particularismo de cada
corporação o sentimento da utilidade geral e as necessidades do equilíbrio
orgânico. (DURKHEIM, 1897/2000, pág.502).
Entretanto, é preciso lembrar que, para Durkheim (1897/2000), o sucesso
deste processo moderno de coerção sobre o indivíduo não implicaria,
necessariamente, no desaparecimento do suicídio; mas apenas na diminuição da
cota de sacrifício a que todo grupo se submete como mecanismo de sustentação de
sua existência, ou seja, fazer a corrente suicidógena retornar a um patamar normal.
O suicídio permaneceria como fator de saúde pública, pois certo grau de anomia
seria essencial ao progresso social e a esta anomia ter-se-ia como resposta a
ocorrência do suicídio. É o que se pode extrair desta fala de Durkheim:
Qualquer moral de progresso e aperfeiçoamento é, pois, inseparável de um
certo grau de anomia. Assim, uma constituição moral determinada
corresponde a cada tipo de suicídio e é solidária a ele. Uma não pode existir
sem o outro, pois o suicídio é simplesmente a forma necessariamente
assumida por cada uma delas em certas condições particulares, mas que
não podem deixar de se produzir. (DURKHEIM, 1897/2000, p. 475).
Além disto, segundo o autor,
É de acreditar, portanto, que esse agravamento se deva, não à natureza
intrínseca do progresso, mas às condições particulares em que ele se
efetua nos dia de hoje, e nada nos garante que sejam normais. Pois não
devemos nos deixar ofuscar pelo brilhante desenvolvimento das ciências,
das artes e da indústria que testemunhamos; certamente ele se realiza em
meio a uma efervescência maléfica cujos contragolpes dolorosos todos nós
sentimos. Portanto, é muito possível, até provável, que o movimento
ascendente dos suicídios tenha origem num estado patológico que
atualmente acompanha o avanço da civilização, não sendo, contudo sua
condição necessária. A rapidez com que têm aumentado nem mesmo
permite outra hipótese. (DURKHEIM, 1897/2000, pág. 481).
76
Um efeito, não pensado por Durkheim (1897/2000), deste espraiamento da
corrente pessimista em uma sociedade individualista como a moderna é o resgate
do tipo de vínculo altruísta na atualidade. no final do seu texto ele comenta que
este seria o único tipo com o qual não se precisaria mais preocupar na modernidade.
No entanto, o atentado terrorista às torres gêmeas na cidade de Nova York, nos
Estados Unidos da América, no ano de 2001, cabe como um exemplo não do
individualismo moderno levado às últimas conseqüências, mas de um altruísmo
facultativo com as roupagens discursivas e tecnológicas contemporâneas.
As duas hipóteses durkheimianas, de o suicídio ser um fato social e de
cumprir a função de restabelecer o poder coercitivo da norma social, constituem um
marco divisor nos modos de pensar o suicídio a partir do século XIX. Entretanto, é
misterioso como este aspecto enigmático de o suicídio ser necessário à sociedade
parece ter ficado à margem da produção científica. Lopes (2003) localiza na teoria
durkheimiana uma das rupturas sofridas pelo discurso médico do século XIX sobre o
suicídio, mas o que a medicina social assimila é apenas a idéia de que este
fenômeno precisa ser considerado também nos seus efeitos e nas suas causas
sociais. É possível que a medicina tenha encontrado no discurso sociológico de
Durkheim uma justificativa a mais para incluí-lo entre as preocupações da
Biopolítica.
O texto de Durkheim é claro:
Mostramos como o crime pode ser útil. Contudo ele só é útil se reprovado e
reprimido (...) Se é normal que haja crimes, é normal que sejam punidos. A
penalidade e o crime são os dois termos de um par inseparável. Um não
pode falar mais do que o outro. Qualquer afrouxamento anormal do sistema
repressivo tem por efeito estimular a criminalidade e lhe conferir um grau de
intensidade anormal. Apliquemos esta idéia ao suicídio. (DURKHEIM,
1897/2000, p, 473).
77
Mas sobre a morte voluntária como um possível fator de sustentação do
vínculo social recai um véu. Nenhuma palavra. Nenhuma pergunta.
78
4 O ATO SUICIDA DO PONTO DE VISTA DA PSICANÁLISE E OS POSSÍVEIS
PONTOS DE APROXIMAÇÃO COM A TEORIA DE DURKHEIM
“A gente não se casa com a verdade;
com ela, nada de contrato
menos ainda de união livre.
Ela não suporta nada disso.
A verdade é primeiro sedução, e para
engrupi-los.
Para não se deixar pegar, preciso ser
forte.” (LACAN, [1959-1960] 1997 )
4.1 Ciência e Psicanálise: a diferença impede a discussão?
Discutir sobre uma interlocução entre o conceito de corrente suicidógena e
as manifestações da pulsão de morte na cultura exige responder uma primeira
pergunta: entre a ciência e a psicanálise é possível estabelecer algum tipo de
proximidade?
É importante relembrar que este texto recortou a sociologia de Durkheim do
campo científico, e do trabalho deste autor trata-se de analisar o seu conceito de
corrente suicidógena. Deste modo, este capítulo se compõe de quatro partes:
analisar a pertinência de uma discussão entre a ciência e a psicanálise,
compreender de que modo a psicanálise articula vínculo social e pulsão de morte,
apresentar a questão do ato suicida para a psicanálise e, finalmente, colocar frente a
frente o conceito de corrente suicidógena e a circulação da pulsão de morte na
cultura.
79
O primeiro passo, portanto, é avaliar a credibilidade de uma discussão entre
a psicanálise e a ciência.
A relevância da discussão sobre o estatuto da psicanálise em sua relação
com o discurso da ciência moderna advém de dois motivos, segundo Antonio
Teixeira (2000). O primeiro constitui-se do fato de que a teoria psicanalítica não seria
possível antes da instituição disto que se denomina saber científico, na medida em
que vem se contrapor à idéia de que a investigação sobre o funcionamento psíquico
estava circunscrita a uma consciência transparente e acessível. O segundo motivo é
dar relevo ao sujeito da ciência recortado no sujeito cartesiano por Lacan (1966),
que entende que o sujeito da psicanálise e o sujeito de Descartes coincidem em sua
ausência de substância e de consciência.
Não haveria, portanto, um rompimento entre a teoria freudiana e o
cientificismo de sua época. Ao contrário, Lacan (1966) defende a idéia de que a
psicanálise é o saber que sustenta o sujeito do cogito cartesiano em sua
radicalidade. É a partir deste discurso científico, o cartesiano, que Freud pode
constituir a sua teoria.
A subjetividade com que lida a ciência moderna é a construção de um
homem da ciência, um homem para a ciência aplicar sua metodologia de avaliação e
quantificação. Mas este homem da ciência e o sujeito da ciência não coincidiriam,
pois o primeiro é uma tentativa de encarná-lo mais do que o necessário e que
aparece como resultado da dúvida fundamental e última que faz Descartes afirmar:
penso, logo existo. Não é na certeza que o sujeito da ciência se funda mas, antes,
na dúvida. Deste modo “não ciência do homem, o que nos convém entender no
mesmo tom do ‘não existem pequenas economias’. Não há ciência do homem
80
porque o homem da ciência não existe, mas apenas seu sujeito”. (LACAN, 1966, p.
873).
81
pode ser estabelecido à revelia do próprio sujeito. Além disto, para estes campos de
saber o papel da ciência é trazer de volta ao caminho normal aqueles que se
desviem do que seria o objetivo primordial da existência. Para a psicanálise, no
entanto, não é possível descolar o sintoma de um sujeito de seu desejo, e isto que é
compreendido como desvio de um padrão de felicidade, ou bem-estar, pode ser
significado a partir da imbricação que aí acontece.
A consciência, instância tão preciosa à psicologia, é entendida pela teoria
psicanalítica como um engodo onde o sujeito é capturado na ilusão de completude,
de transparência e suficiência. A teoria freudiana se coloca como um campo de
saber portador de um sujeito próprio. Um sujeito sem consciência, um sujeito sem
consistência, cuja verdade deverá ser inventada e sustentada a partir de uma ética
cuja fonte é o desejo que o está atrelado ao bem-estar. Esta seria a revolução
radical instaurada por Freud ao revelar o inconsciente como a instância privilegiada
da existência. Marcos André Vieira (2005) aponta que para além de uma localização
topográfica Lacan constituiu um aparato conceitual que sustenta a não entificação
do inconsciente. Isto é importante porque, segundo Lacan (1954), não faltaram
tentativas de reabsorver a psicanálise nas diversas teorias da psicologia.
No Seminário “O eu na teoria de Freud e na cnica da psicanálise” (1954),
Lacan é categórico ao afirmar que a teorização freudiana sobre o eu é radicalmente
nova; mas que ainda assim corre o risco de submergir em meio às teorias
psicológicas de um eu integral, inaugurado com a subjetividade extraída pela ciência
moderna do sujeito que Descartes funda com seu “penso, logo sou
11
. Aqui é
terá maiores chances de alcançar este patamar de conquista quanto mais virtuoso for. O mais
sublime dos homens é aquele que utilize de modo mais sublime a capacidade natural do homem que
é a razão. Característica que o distingue dos outros seres da natureza.
11
DESCARTES, R. (1641/1999, p. 258): “mas eu me convenci de que nada existia no mundo, que
não havia u algum, terra alguma, espíritos alguns, nem corpos alguns; logo, não me convenci
82
necessário lembrar que para Lacan (1966) há uma distinção entre o sujeito da
ciência, ou sujeito cartesiano, e o homem da ciência. Segundo ele “o sujeito sobre
quem operamos em psicanálise pode ser o sujeito da ciência” (LACAN, 1966, p.
873) e quanto ao homem da ciência, este não existe; é apenas a ilusão de um eu
capaz de saber de si, consciente e racional. A ciência em seu discurso pretende
suturar o sujeito da ciência, ela o foraclui
12
. Lacan (1966) interpreta o sujeito de
Descartes como um sujeito sem consciência e sem consistência, que emerge na
dúvida promovedora de um esvaziamento de todo sentido a priori.
Quanto ao sujeito cartesiano, se admitirmos que ele é o da ciência “devemos
reconhecer que ele emerge esvaziado de todo saber. É o que Descartes
compreendeu em seu primeiro meditar: uma operação de esvaziamento de saber”.
(MILLER, 1981, p. 113).
Então, a instituição de um sujeito do inconsciente comparável ao cartesiano
estabelece um novo modus operandi que se sustenta na aposta de que o
inconsciente é uma instância fora do campo das certezas. Segundo Lacan (1954) é
“justamente aqui o que é o mais não-reconhecido no campo do eu que na análise,
se chega a formular como sendo [eu] propriamente dito”. (LACAN, 1954, p. 15).
Ainda em Lacan (1954) observa-se que quanto mais Freud avança em sua
teorização menos algo como um local específico da mente para a consciência faz
sentido. Cada vez mais o eu é distinto de si mesmo. A partir de Freud algo se torna
indelével: o sujeito é diferente do indivíduo. Ele, o sujeito, não é a sua inteligência e
também de que eu não existia? Com certeza, não; sem dúvida eu existia (...) de maneira que, depois
de haver pensado bastante nisto e analisado cuidadosamente todas as coisas, se faz necessário
concluir e ter por inalterável que esta proposição, eu sou, eu existo, é obrigatoriamente verdadeira
todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito”.
12
RABINOVITCH, Solal (2001, p. 17): “foracluir consiste em expulsar alguém ou alguma coisa para
fora dos limites de um reino, de um indivíduo, ou de um princípio abstrato tal como a vida ou a
liberdade; foracluir implica também que o lugar, qualquer que ele seja, do qual se é expulso, seja
fechado para todo o sempre”.
83
não é passível de ser medido ou avaliado; o pode ser definido a partir de um
comportamento adaptativo. Ainda que não se possa deixar de pensar na existência
da subjetividade atravessada por uma historicidade nas mudanças que sofre, a
verdade (areté) do sujeito é uma ex-sistência. Não se ater a esta ética é permitir que
a idéia de um ego autônomo desemboque em uma “entificação segundo a qual o
os indivíduos existem como tais, mas ainda alguns existem mais do que outros”.
(Lacan, 1954, p. 20).
Como entre o inconsciente e a consciência há uma dissimetria radical, e estes
sistemas não podem ser considerados como o avesso um do outro, a psicanálise
entende que a eficácia de uma intervenção é possível jamais garantida quando
se dirige a este nível descentrado do sujeito. Lacan (1954) é taxativo ao afirmar que
a psicanálise não deve afastar-se do campo de descentramento do sujeito em suas
intervenções.
Lacan (1954) não tem pejo em afirmar que o sintoma pode se localizar
neste campo de descentramento do sujeito. Daí a radicalidade em presumir o
fracasso de uma intervenção que não se dirija a este nível do funcionamento
psíquico, pois fora do campo do inconsciente o sujeito não é. Em 1970 o autor
asseverará que:
O passo dado pela psicanálise, seguramente, foi o de fazer-nos afirmar que
o sujeito não é unívoco (...) o sujeito é posto diante desse véu que se
exprime pelo ou não penso, ou não sou. Ali onde penso não me reconheço,
não sou é o inconsciente. Ali onde sou, é mais do que evidente que me
perco. (LACAN, 1970, p. 96).
O sujeito científico se sustenta na certeza do pensamento e da consciência.
É a partir desta certeza que se torna crível ao discurso científico não apenas
desvendar o que é a humanidade nesta dimensão da razão, mas também supor
84
como finalidade da ciência a previsão do que a humanidade pode vir a ser, vir a
querer ser. Estas probabilidades são recusadas pela psicanálise, pois ela sustenta
que a dúvida é a sinalização da emergência do sujeito; é aí, nesta dúvida, que Freud
localiza um pensamento; é a uma razão inconsciente que deve se dirigir a atenção
do psicanalista.
A psicanálise, deste modo, critica a convocação da transparência da
consciência como sendo a instância do sujeito que exija o trabalho do analista.
Lacan (1959) pontua que a verdade libertadora que a psicanálise busca aparece
num ponto de sonegação do sujeito, em uma particularidade irredutível. Não é
possível estabelecer uma intercessão entre o homem universal da ciência e a
singularidade do sujeito do inconsciente na psicanálise.
Isto posto, é necessário retomar agora a questão do indivíduo em Durkheim
(1893/1999). O indivíduo com o qual Durkheim (1897/2000) escolhe trabalhar ao
pesquisar sobre o ato suicida é o homem da ciência, sem dúvida. Entretanto, é
preciso distinguir que o homem da ciência presente no indivíduo de Durkheim
(1893/1999) é o indivíduo social-coletivo. Quanto ao indivíduo social-individual, isto
é, a base da individualidade em livre trama do desejo para além do mínimo
dispensável ou, ainda, o abismo sem fundo que nada é capaz de preencher,
Durkheim (1897/2000) afirma que este não deve ser motivo de atenção da
sociologia, pois esta esfera psíquica pertence ao campo da psicologia. O autor não
se dá conta de que um indivíduo para além da regulação social é de tão pouco
interesse para a psicologia quanto o é para a sociologia. É a psicanálise que irá não
apenas tomar como objeto de estudo o sujeito que está fora do campo da
consciência transparente e integradora, mas também sustentar os desdobramentos
disto em uma clínica do singular, mas que é capaz de ir do particular ao universal.
85
Como compreender as palavras do sociólogo? Duas citações literais feitas
no capítulo 3 desta dissertação precisam ser resgatadas neste momento. A primeira:
uma esfera da vida psíquica que, qualquer que seja o desenvolvimento
do tipo coletivo, varia de um homem a outro e pertence em particular a cada
um: uma que é formada pelas representações, os sentimentos e as
tendências que se referem ao organismo e aos estados do organismo: é o
mundo das sensações internas e externas e dos movimentos que são
ligados diretamente a elas. Essa primeira base de toda individualidade é
inalienável e não depende do estado social. (DURKHEIM, 1893/1999, p.
183).
Então, Durkheim (1893/1999) de fato percebe a existência de uma realidade
psíquica que ultrapassa o poder de coerção ou de intromissão social. Não apenas
isto, mas a única possibilidade de contenção desta esfera da vida psíquica, proposta
por ele, é a externa; não há nada no próprio sujeito que o interdite. Nada de
definitivo se inscreve desta intervenção alienígena ao seu desejo. O vínculo social é
a única fonte de barragem constante da natureza insaciável do indivíduo. Isto tanto é
verdadeiro que Durkheim (1897/2000) sustenta que a sobrevivência da sociedade
como um todo depende do processo de re-atualização do poder desta norma em
coibir o indivíduo. É por isto que a anomia, ou seja, a perda do poder de coerção das
normas sociais sobre o indivíduo, é mortífera ao sujeito e à cultura; pois caso não
haja a devida insistência no processo de impedir a manifestação livre do indivíduo
social-individual o que aparece é tudo quanto no sujeito o impedirá de participar da
comunidade humana, de fazer e sustentar o vínculo social.
Na segunda citação feita no capítulo 3 desta dissertação mais uma vez
encontra-se Durkheim (1897/2000) explicando porque escolhe trabalhar com o
indivíduo social-coletivo. As suas considerações sobre quem é o indivíduo com o
qual a sociologia lida faz restar um outro que, por sua natureza, não cabe na
discursividade científica:
86
A natureza humana é sensivelmente a mesma em todos os cidadãos. Não é
ela, portanto, que pode atribuir às necessidades o limite variável que lhes
seria obrigatório. Por conseguinte, na medida em que dependem apenas
dos indivíduos, elas são ilimitadas. Em si mesma, abstraindo-se todo poder
exterior que a regula, nossa sensibilidade é um abismo sem fundo que nada
é capaz de preencher. Mas então, se nada vem conte-la de fora, ela
pode ser uma fonte de tormentos para si mesma. (DURKHEIM, 1897/2000,
p. 313).
O autor, no seu texto de 1893, afirma que uma esfera da vida psíquica
que é singular e inalienável. No texto de 1897, deixa claro que o que há de universal
na natureza humana é a impossibilidade do sujeito limitar-se por si mesmo.
É importante compilar o que foi dito aaqui sobre a teoria durkheimiana:
um sujeito singular e inalienável que não encontra condições em si mesmo para
realizar a contenção necessária para a sua inserção na civilização; por ser assim a
cultura desenvolve mecanismos que re-atualizarão o poder de coerção das normas
sociais em cada indivíduo. Este processo ocorre no ritual de punição ao crime que
fortalece em cada indivíduo o vínculo social com o grupo; a situação de anomia
crônica gera uma dessensibilização destes mecanismos que passam a exigir, para
serem deflagrados, taxas de crime em níveis impensáveis. Durkheim (1897/2000)
explica deste modo a situação patológica do suicídio na modernidade, que apesar
de constituir um fenômeno social normal se apresenta em níveis inaceitáveis.
Sobre este indivíduo inalienável, o que a psicanálise poderia dizer?
Apesar de não ser possível realizar uma transfusão entre os campos de
saber da sociologia e da psicanálise, o objetivo da discussão nesta parte do capítulo
4 é exatamente pensar quais os encontros ou desencontros são plausíveis entre
elas, no que tange às noções de indivíduo e sujeito, respectivamente. Esta realidade
durkheimiana para além da interdição cultural se assemelharia ao campo de
descentramento do sujeito?
87
Lacan (1959) avisa que a psicanálise trata de algo que ao mesmo tempo
compõe o universal e o particular, cujos imperativos o paradoxais e mórbidos. O
ponto da verdade do sujeito seria sem fundo, sem qualidade ou consistência, por
não depender nem mesmo do sujeito. Quanto à interdição social destes imperativos,
em Freud (1924) acontece uma análise do surgimento do vínculo social como
resultado do controle da manifestação dos seus impulsos mais primitivos e de
inscrever um sentimento de culpa inconsciente. Em Freud (1929) a insatisfação
que decorre desta renúncia pulsional é uma fonte inexorável de tormentos porque o
conflito entre o sujeito e a cultura é insolúvel, que as solicitações do sujeito jamais
poderão ser satisfeitas plenamente.
Grande parte das lutas da humanidade centralizam-se em torno da tarefa
única de encontrar uma acomodação conveniente isto é, uma
acomodação que traga felicidade entre essa reivindicação do indivíduo e
as reivindicações culturais do grupo, e um dos problemas que incide sobre
o destino da humanidade é o de saber se tal acomodação pode ser
alcançada por meio de alguma forma específica de civilização ou se esse
conflito é irreconciliável. (FREUD, 1929, p. 27).
Deste modo, diferentemente do que Durkheim (1897/2000) propõe com o
conceito de anomia, os transbordamentos desta realidade não resultam de
momentos episódicos em que a cultura perde o seu poder de coerção; ao contrário,
um não cessar de transbordamentos deste campo que topograficamente está
para além do que as normas sociais conseguem conter do sujeito. Ou seja, também
para a psicanálise há uma ameaça constante de dissolução da civilização e a fonte
desta ameaça é a hostilidade inerente ao sujeito. Mas a domesticação dos impulsos
hostis do sujeito não se encontra apenas sob a responsabilidade da cultura; algo
na estrutura psíquica do sujeito que estabelece as condições para a instauração
desta barra interditora.
88
A psicanálise e a sociologia durkheimiana concordam, portanto, que uma
realidade psíquica que ultrapassa a capacidade da civilização de normatização e
que esta instância é uma ameaça constante aos projetos sociais de progresso e
harmonia. Também é ponto comum a idéia de que o mal-estar social advindo deste
conflito entre sujeito e cultura é inerente ao vínculo social. Mas, para Durkheim
(1893/2000), é por não haver nenhuma inscrição definitiva da interdição cultural à
natureza insaciável do homem e por haver uma corrente pessimista na sociedade
que se torna necessária a re-atualização do poder de coerção das normas sociais.
para Freud (1929) nem mesmo a inscrição indelével da lei no instante da
estruturação psíquica do sujeito é suficiente para dissolver o que na natureza
humana é antagônico à cultura.
Para a psicanálise o máximo que a civilização pode alcançar, em sua
intenção de barrar as manifestações de uma realidade abismal do sujeito, é o frágil
revestimento de civilidade que cada um apresenta como um eu organizado e
consistente. Seria o eu moi que Lacan (1954) avisa ser apenas uma ilusão
enganadora sem consistência alguma e que se desfaz na insistência da pulsão de
morte, na disjunção entre Bem e bem-estar. Para Vieira (2001) “se há ética da
psicanálise, essa ética não poderia ser a de um Soberano Bem. A psicanálise parte
de uma falta primeira: falta o Soberano Bem”. (VIEIRA, 2001, p. 120).
Feita a pontuação de que o sujeito na psicanálise ex-siste à ilusão de um eu
integral e consciente, e de que seus transbordamentos são percebidos pela
civilização como ameaçadores, é importante retornar a Durkheim (1897/2000) e ao
seu indivíduo abissal. Foi dito pouco: é por o indivíduo durkheimiano não possuir
uma inscrição definitiva da barra social que se faz imprescindível o fortalecimento da
norma social em cada um. Poder-se-ia dizer que este indivíduo seria para sempre e
89
desde sempre fluido? Não haveria nenhum ponto de estofo a partir do qual este
sujeito pudesse se enlaçar ao campo social de modo singular? Toda e qualquer
singularidade no indivíduo de Durkheim (1893/1999) que o empurre para a corrente
suicidógena deve ser pensada como efeito de um grau específico de tensão do laço
social? Quais os efeitos na teorização sobre o suicídio de levar às últimas
conseqüências a presença de uma singularidade no indivíduo durkheimiano?
Ao levantar tais questões um ponto resiste como obstáculo a uma resposta
afirmativa e imediata sobre o grau de tensão do laço social ser suficiente para gerar
um ponto de singularidade no sujeito que o faça mais susceptível do que os outros
de ser apanhado na cota de sacrifício voluntária.
É que, mesmo na teoria de Durkheim (1897/2000), não basta a ação da
corrente suicidógena para a execução da corrente suicidógena; e isto seria coerente
com a idéia de um sujeito capturado à sua revelia pelas forças sociais externas. Em
“O Suicídio estudo sociológico” (1897/2000) fica claro que para ser capturado pela
rede de mortes voluntárias há necessidade de o sujeito se aproximar em demasia da
corrente suicidógena. Portanto, resta na teoria durkheimiana um ponto que distingue
o seu indivíduo social-coletivo instituído pelas normas sociais externas do
indivíduo social-individual para além do que as normas sociais podem coibir no
homem. Este resto de indivíduo durkheimiano termina por impedir um encontro
completo entre o homem que Durkheim (1897/2000) escolhe como objeto de estudo
da sociologia e o homem da ciência. Mas este possível desencontro talvez
aproximasse este indivíduo social-individual do sujeito da ciência, sendo este último
entendido como propõe Lacan (1966). algo neste sujeito de Durkheim
(1893/2000) que o encaminha, e não a outro qualquer, a ser capturado pela corrente
suicidógena. A captura deste sujeito não é efeito apenas de um grau de tensão
90
específico do vínculo social, mas de uma intercessão entre esta situação e algo no
sujeito que o empurra exageradamente em direção à corrente suicidógena.
Neste caso seria crível dizer que na corrente suicidógena qualquer indivíduo
poderia ser capturado, mas não um indivíduo qualquer. Na singularidade do
indivíduo social-individual de Durkheim (1893/1999) há algo que não pode ser
resultado apenas do grau de tensão do laço social, pois isto faria com que todos os
participantes de um grupo estivessem exatamente da mesma maneira expostos aos
efeitos da corrente suicidógena, e não é isto que Durkheim (1897/2000) afirma.
algo na captura que a corrente empreende que diz respeito única e exclusivamente
àquele sujeito e ele não é um qualquer. Resta saber até que ponto este sujeito que
irrompe na teoria do sociólogo poderia se aproximar
91
Quadro 5 - O Individuo de Durkheim e o Sujeito da Psicanálise
Se for levada às últimas conseqüências a existência de uma singularidade
no indivíduo social-individual de Durkheim (1893/1999) que o empurra em direção à
corrente suicidógena isto implicaria, necessariamente, em afirmar que um sujeito-
suicida a priori? Caso isto se então a dissimetria entre o indivíduo social-
individual, em sua realidade abismal, e o sujeito da psicanálise se manteria no
mesmo nível da que existe entre o indivíduo social-coletivo e o sujeito da
psicanálise. Isto porque para a psicanálise a hipótese de um sujeito suicida em sua
estrutura psíquica não se sustenta.
Um possível efeito de realizar uma aproximação entre estes sujeitos é
viabilizar a ética da psicanálise como recurso teórico e clínico para compreender a
existência de uma cota social de sacrifício, na forma da morte voluntária. As idéias
durkheimianas sobre uma função social para o suicídio e sobre o sujeito se
aproximar exageradamente da corrente suicidógena tomam outro peso ao serem
Sujeito durkheimiano social-individual
Sujeito da psicanálise
Inscrição da Lei o constitui como
sujeito cindido entre a razão e o
inconsciente.
O inconsciente escapa totalmente a
este círculo de cer
tezas no qual o
homem se reconhece como um eu.
Os pensamentos conscientes são
uma ilusão de completude.
A extração do S
1
constitui o ponto
de singularidade do sujeito e
ainda que não se possa deixar de
pensar na existência da
subjetividade atravessada
por uma
historicidade nas mudanças que
sofre, a areté do sujeito é uma ex-
sistência.
Campo das representações, sentimentos
e tendências que se referem ao
organismo em livre trama do desejo para
além do mínimo dispensável.
Abismo sem fundo que nada é ca
paz de
preencher
A singularidade de que trata o genial
sociólogo é resultado não de uma
inscrição única e própria a cada pessoa,
mas antes do que a contingência de um
estado de tensão específico do lien
social lhe impinge.
Mundo das sensações internas e
externas e dos movimentos que são
ligados diretamente a elas. Essa
primeira base de toda individualidade é
inalienável e não depende do estado
social.
92
consideradas em um campo epistemológico que disjunta o Bem Supremo do bem-
estar.
Teria Durkheim (1897/2000), mesmo sem o saber ou querer, registrado em
sua teoria a idéia de que para pensar o ato suicida é necessário considerar um
sujeito que escapa aos limites do que a lógica científica permite? Pensar este ponto
da teoria durkheimiana como destituído de importância faz sentido no interior da
lógica científica que foraclui o sujeito.
Daí a relevância de retomar o texto de Durkheim a partir de uma
epistemologia que tem como cerne exatamente este sujeito descentrado. Esta
epistemologia não é outra senão a psicanálise.
Retomaremos estas questões ao final deste capítulo.
Esta pesquisa se propôs a analisar quais as possibilidades de uma
interlocução entre o conceito de suicídio na teoria de Durkheim (1897/2000) e a
articulação feita pela psicanálise entre a pulsão de morte e o vínculo social. Na
primeira parte deste capítulo foram apresentados e discutidos os indivíduos
durkheimianos e o sujeito do inconsciente. ainda duas outras questões basilares
a serem tratadas para que a pergunta central desta pesquisa possa ser enfrentada.
Estas questões são a relação que a ciência e a psicanálise estabelecem com a
verdade e o saber, e a teoria psicanalítica acerca do laço social e da pulsão de
morte.
O próximo momento é pensar se as diferentes formas da ciência e da
psicanálise lidarem com o saber e a verdade constituem, de fato, uma
impossibilidade à discussão entre ambas.
93
4.1.2 Saber e verdade na ciência e na psicanálise
Foi dito no início deste capítulo que um ponto importante para sustentar a
análise a que esta pesquisa se propõe é confrontar os percursos entre a ciência e a
psicanálise, no que tange ao saber e à verdade. Discutir isto significa, aqui, analisar
as possibilidades de encontro entre teoria psicanalítica e a sociologia durkheimiana.
Durkheim constitui a sociologia nos moldes da ciência positivista do século
XIX; para fazê-lo descobre no tema do suicídio um fato social que caberia nos
moldes científicos do que seria objeto de estudo passível aos métodos de avaliação
e quantificação da época. Até que ponto o desejo do pai da sociologia de
circunscrever o seu saber aos paradigmas da cientificidade positivista podem
impedi-lo de escapar aos domínios desta? Freud também desejou que a psicanálise
sustentasse suas descobertas nas pesquisas da neurologia e da fisiologia. É
interessante lembrar que foi Breuer quem primeiro se deu conta da etiologia sexual
das psiconeuroses e que Freud (1895) resistiu em acatar tal possibilidade. Mas
Freud (1895) sustenta que um saber que não se sabe, que vai contra as suas
esperanças de ser reconhecido como um cientista legítimo, mas que atende ao rigor
do espírito científico, que exige não deixar de admitir o fracasso de uma teoria que
não se mostra suficiente para explicar uma realidade que escape aos recursos
teóricos de explicação. A honestidade intelectual também convoca a novos esforços.
Freud os fez, até o fim vida.
A sociologia tem garantido um espaço acadêmico. Durkheim obteve sucesso
em seu empreendimento. A psicanálise tem cada vez mais se aproximado da
universidade; no entanto, a legitimidade deste movimento não é um consenso. Posto
94
que a (in)viabilidade de uma aproximação entre os dois campos de saber é um dos
aspectos da discussão desta pesquisa, este tema é o primeiro ponto a ser analisado.
Para Jacques-Alain Miller (1981) não se pode confundir ciência e
universidade, pois a segunda, ao surgir no século XII na Europa, se apodera da
ciência que existia. No que diz respeito às diferentes formas de lidar com o saber
e a verdade Miller (1981) afirma que há, entre os dois espaços, uma divergência
fomentada pelo fato de nesta última ser ensinado um saber que encarna a relação
onde um mestre é o detentor de uma verdade universal. Na psicanálise, de modo
oposto, cada sujeito deve ser convocado a produzir um saber a partir da verdade
que o colhe a partir das manifestações do inconsciente; e por isto não ninguém
que possa ocupar o lugar de quem tudo sabe sobre todas as verdades. O
comentário deste autor sobre este ponto de desencontro entre a universidade e a
psicanálise é esclarecedor.
O sujeito na experiência psicanalítica imagina-se procurando a verdade,
aquém ou além do saber. Não a encontra; mas ela, sim, o encontra. A isso
chamamos lapso, chiste, ato falho: momento em que o sujeito se depara
ultrapassado pela palavra (...) é constitutivo do saber cientifico a ruptura
com as aderências ligadas com a verdade nascente. A psicanálise o
pode romper suas aderências com a verdade, pois é isso que constitui sua
própria experiência, cujas fulgurações, iluminações que não supõem
nenhuma adequação da coisa ao espírito. (MILLER, 1981, p. 114 -116).
A questão sobre haver ou não um lugar para a psicanálise na universidade
também é discutida por Lícia Mara Dias Moreira Penna (2003). Segundo a autora
uma tirania do saber se desenvolve desde o século XIX e torna-se preciso tudo
saber sobre todas as coisas. O homem fica incluído como objeto desta investigação
e cada vez mais uma preocupação com a produção de um conhecimento que
estabeleça padrões de normalidade; com quais seriam os comportamentos
desviantes e, principalmente, com o desenvolvimento de técnicas e medidas de
95
tratamento para aqueles que, por algum motivo, não se mantiveram no interior do
bem social. Para atender a esta demanda sempre crescente teriam surgido as
Ciências Humanas, com seus métodos e técnicas de avaliação e mensuração.
Como foi discutido no capítulo 2 desta dissertação uma aliança entre a
ciência, com seu saber exposto, e o jogo social capitalista. Neste jogo entre o
Estado e a ciência é engendrado um certo tratamento social para o suicídio desde o
século XIX, quando a medicina social se propõe a reproduzir no campo social a
mesma gica positivista. Isto é o que fez com que o suicídio fosse incluído na lista
dos fatores de risco social e, desde então, algo das biopolíticas. A aproximação
entre a ciência e o estado também pode ser lida em Bottomore (1988) citado por
Penna (2003):
Uma vez submetido o domínio das ciências humanas às disciplinas da
ciência empírica cessará a anarquia intelectual e uma nova ordem
institucional adquirirá estabilidade graças ao consenso. O conhecimento
das leis da sociedade permitirá aos cidadãos verem os limites das reformas
possíveis, ao passo que os governos serão capazes de usar o
conhecimento cientifico como base para e formas paulatinas e efetivas, que
aumentarão ainda mais o consenso. A nova ordem da sociedade – a
sociedade científico-industrial teria a ciência como sua religião secular,
funcionalmente análoga ao catolicismo da velha ordem social.
(BOTTOMORE, 1988, p. 29 apud DIAS, 2003, p. 34).
Opondo-se vigorosamente a esta aproximação entre a ciência e o discurso
capitalista a psicanálise sustenta ser necessário construir um saber que considere o
sujeito em sua singularidade e que rejeite a ortopedia social. A verdade do sujeito
não é recoberta pelo conhecimento. Os psicanalistas são avisados por Freud desde
1916 sobre a pouca possibilidade de contar com a boa vontade da academia e do
Estado moderno. Isto porque para imprimir o selo da política da felicidade
progressista com que a modernidade sonha para a humanidade é necessário que o
sujeito, alvo de tantos cuidados e projetos, seja um sujeito consciente. E Freud
96
(1916) não abre mão de defender que não se pode, nem mesmo para angariar
simpatias para a psicanálise, deixar de apontar que um pensar que é
inconsciente.
No que diz respeito à uma interlocução entre a sociologia e a psicanálise um
efeito possível é colocar em xeque uma das ferramentas mais caras à primeira, que
são os recursos estatísticos com que lida com a realidade na extração de saber. Um
efeito bastante complicado e que provavelmente coloca os sociólogos de sobre-
aviso quanto a psicanalistas que se aventurem a deter o olhar ou desejem
compartilhar de um mesmo objeto de estudo. Os psicanalistas, por outro lado,
também podem justificar com alguma tranqüilidade a impossibilidade de diálogo com
um saber que se encontra na margem oposta de uma certa lógica do sujeito e de um
tratamento da verdade. Sujeitos diferentes e topografias distintas quanto à verdade
são, sem dúvida, argumentos consistentes para impedir maiores esforços entre
ambos para um encontro profícuo. Sobre estas dificuldades Freud (1916) antevia
que não estariam resolvidas facilmente:
A psicanálise, porém, não pode aceitar a identidade do consciente como o
mental. Ela define o que é mental, enquanto processos como o sentir, o
pensar e o querer, e é obrigada a sustentar que existe o pensar
inconsciente e o desejar não apreendido. Dizendo isso, de saída e
inutilmente, ela perde a simpatia de todos os amigos do pensamento
científico solene, e incorre abertamente na suspeita de tratar-se de uma
doutrina esotérica, fantástica, ávida de engendrar mistérios e de pescar em
águas turvas. (FREUD, 1916, p. 34).
A foraclusão do sujeito em sua realidade inconsciente de que fala Freud
(1916) na citação acima se torna, de fato, um obstáculo entre a psicanálise e a
ciência, dado que a consciência não pode servir de lastro para a verdade. Na
verdade que a psicanálise acolhe e convoca obtém-se a incompletude do saber.
97
O conhecimento e a verdade são, então, divergentes entre os dois campos.
A busca de conhecimento se torna busca da verdade na ciência. O encontro com o
conhecimento na psicanálise é contingente, não garantido, imprevisível e singular;
traz, além disto, a cura como uma possibilidade deste encontro. O saber, na teoria
98
em nosso inconsciente somos imortais. Ainda neste capítulo isto será pauta de
análise.
Mesmo que não haja uma relação unívoca entre o saber e a verdade para a
psicanálise, é preciso distinguir com qual saber se lida no campo psicanalítico.
Lacan (1959) afirma, com tal veemência, que frente ao saber é preciso “conservar a
mais severa disciplina para não deixar adulterar o sentido, em suma profundamente
inconsciente, dessa demanda” (LACAN, 1959, p.10), que uma sensação de não
serem necessárias maiores explicações. No entanto, o consenso sobre os limites
entre os campos epistemológicos da ciência e da psicanálise não é a realidade nem
mesmo entre os psicanalistas. em 1954, no texto “Psicologia e Metapsicologia”,
Lacan alertava para uma cacofonia teórica gerada por uma leitura às avessas do
descentramento do sujeito da metapsicologia de Freud. O perigo de a psicanálise
ser reabsorvida em uma psicologia geral esteve aí desde sempre e não se
dissolveu. A partir deste mesmo texto não é possível ignorar que “a questão é,
portanto, saber se a psicanálise vai pouco a pouco se relaxando até abandonar o
que foi por um instante entreaberto ou se, pelo contrário, ela vai tornar a patentear
seu relevo, e de maneira que o renove”. (LACAN, 1954, p. 10).
A pergunta inicial desta parte do capítulo 4 deve ser retomada neste
momento. O fato de o sujeito do inconsciente se opor ao homem da ciência, bem
como destes referidos campos tomarem a verdade e o saber de modo oposto
deveria desobrigar a psicanálise de qualquer interlocução com a ciência ou com a
universidade?
pelo menos um psicanalista, e não é qualquer um, que aposta na
possibilidade de atravessar o precipício entre a ciência e a psicanálise. Uma ponte
entre estas margens opostas é construída por Lacan (1966) na extração de um
99
sujeito sem qualidades e sem consciência no sujeito do cogito cartesiano, ou seja, o
mesmo sujeito sem qualidades do inconsciente freudiano. Além disto, para este
autor o saber é uma produção atravessada pela verdade singular do sujeito, mas o
que de mais particular ao sujeito é também o que de mais universal. Então,
nenhum dos dois obstáculos estabelece um campo de impossibilidades a uma
interlocução entre a psicanálise e a ciência, e a presença cada vez mais significativa
da psicanálise na universidade, ainda que não haja um consenso sobre qual seria o
seu lugar e função aí, talvez seja resultado do trabalho dos que, assim como Lacan,
não dêem como solucionado o universo de questões a serem pensadas sobre o
sujeito e suas relações sociais.
Então, apesar dos pontos de divergência entre a psicanálise e a ciência no
relacionamento que cada uma mantém com o saber e a verdade, Lacan (1959)
sustenta uma possível interseção entre ambas na medida em que percebe a
psicanálise como a práxis que verdadeiramente convoca ao trabalho e acolhe o
sujeito da ciência. Observe-se este fragmento do seu texto “A ciência e a verdade”
de 1965:
Repetimos que alguma coisa no status do objeto da ciência que não nos
parece ter sido elucidada desde que a ciência nasceu. E lembramos que se,
certamente, levantar agora a questão do objeto da psicanálise é retomar a
questão que introduzimos a partir de nossa vinda para esta tribuna, pela
posição da psicanálise, dentro ou fora da ciência, indicamos também que
essa questão não pode ser resolvida sem que, sem dúvida, modifique-se
nela a questão do objeto na ciência como tal. (LACAN, 1965, p. 877).
Em uma interpretação original a teoria lacaniana afirma que a proposição
cartesiana, de tornar análogo o existir e o pensar, estabelece uma nova relação com
a verdade. Esta relação poderá ser sustentada no campo da psicanálise, segundo
Lacan (1965), pois a lógica científica moderna investe em suturar este mesmo
100
sujeito. A tentativa de sutura aparece na relação que a ciência mantém com a
verdade. Diferentemente da psicanálise, a ciência ejeta a verdade e sobre esta nada
quer saber.
Na teoria psicanalítica, portanto, é plausível supor uma interlocução entre a
teoria psicanalítica e a ciência. Isto responde à questão indicada no título desta parte
do capítulo 4 sobre se as diferenças entre estes campos de saber impediriam uma
discussão entre a psicanálise e a sociologia de Durkheim.
Sustenta-se, então, a proposta desta pesquisa de tomar o conceito de
corrente suicidógena durkheimiano e analisar se poderia haver algo semelhante
entre as manifestações da circulação da pulsão de morte na cultura.
Até aqui, neste capítulo, tratou-se de duas questões: os conceitos de
indivíduos em Durkheim (1893/1999) em contraposição ao de sujeito da psicanálise;
e a relação estabelecida com a verdade e o saber pela psicanálise e pela ciência.
É importante, neste momento, analisar os conceitos de pulsão de morte e de
vínculo social, bem como as ligações existentes entre eles.
4.2 A Pulsão de morte e o vínculo social do ponto de vista psicanalítico
Na medida em que foi demonstrado que é viável uma discussão entre a
sociologia e a psicanálise, a partir da aproximação entre o sujeito do cogito
cartesiano/sujeito do inconsciente e do individuo social-invidual de Durkheim, é hora
de verificarmos se há algum ponto de convergência entre o conceito de corrente
suicidógena e as manifestações da pulsão de morte na cultura.
101
Em um primeiro momento os textos freudianos constituem o material para
tanto. Em seguida a Teoria dos Quatro Discursos de Lacan será apresentada como
recurso para pensar a circulação do gozo no campo social atual. Foi adotado o
conceito lacaniano de gozo como uma forma de articular os conceitos freudianos de
pulsão de vida e pulsão de morte. Será também apresentado o que se convencionou
chamar de um quinto discurso, o Discurso Capitalista, constituído por Lacan na sua
Conferência de Milão de 1972.
4.2.1 Vínculo social e pulsão de morte em Freud
Durkheim (1897/2000) presume que a corrente suicidógena acontece no
bojo de um confronto de forças sociais. Propõe que duas correntes uma otimista e
outra pessimista se contrapõem de modo a manter um grau ótimo de expectativas
sociais e de têmpera ideal no caráter de cada um. Um excesso de otimismo tornaria
tanto o indivíduo menos resistente aos embates da vida quanto a sociedade menos
atenta a seus valores morais mais importantes. Haveria no campo da psicanálise
algo semelhante?
A idéia de um entrelaçamento entre pulsão de morte e vínculo social es
presente na obra de Freud. A própria origem da civilização se a partir do
parricídio causado por irmãos que dão vazão ao que havia de mortal na
ambigüidade do laço que os mantinha submetidos a um pai tirânico. Por isto, a
análise aqui empreendida se dá a partir do texto de 1914, o Totem e Tabu, quando
102
Freud estuda dois fenômenos sociais entre os povos primitivos, o totemismo e o
tabu
13
.
Ele lembra que interlocuções entre outro saber e a psicanálise são de
grande valia para ambos, ainda que nem sempre os resultados sejam os esperados.
Observe-se:
não podem oferecer a ambos os lados o que a cada um falta: ao primeiro,
uma iniciação adequada na nova técnica psicológica; ao último, uma
compreensão suficiente do material que se encontra à espera de
tratamento. Devem assim contentar-se em atrair a atenção das duas partes
e em incentivar a crença de que uma cooperação ocasional entre ambas
não poderá deixar de ser proveitosa para a pesquisa. (Freud, 1914, p.05).
Segundo ele uma das justificativas para tomar o tabu entre os povos
primitivos, como tema de estudo, é que as proibições morais, as convenções
culturais modernas e até os elementos da neurose obsessiva podem estar ligados a
ele. Este fenômeno faz referência à relação incestuosa e ao sentimento ambíguo de
amor e ódio que o filho sente em relação ao pai e a refeição totêmica
14
é a chave
para Freud propor o animal totêmico como um substituto para o pai. Esta cerimônia
sacrificial é a re-encenação do parricídio que funda a civilização.
O parricídio fundante da civilização não seria um episódio único em que o
homem agiu diferente da sua natureza. Em “Totem e Tabu” (1914) já aparece a idéia
de que o jogo social de progresso e harmonia entre os homens é uma mise-en-
scêne em que a solidariedade vem recobrir a culpa que surge como desdobramento
13
No totemismo a organização social de uma cultura se faz a partir de laços simbólicos que os unem
em torno de um animal, ou raramente um vegetal, tido como sagrado e com quem os membros do
grupo compartilhavam características de caráter. O tabu é uma questão central do totemismo, a base
do tabu é uma proibição de uma ão específica para a qual o sujeito apresenta uma disposição
inconsciente. No caso do totemismo o tabu sempre diz respeito aos rituais com que uma pessoa ou
situação devem ser tratadas.
14
Quando o grupo estabelece um momento de exceção no tabu, isto permite matar e devorar o
animal totêmico acreditando que com isto reforçam tanto a sua identificação com o animal quanto
entre si.
103
do parricídio, vem servir de instrumento para impedir o transbordamento da
destrutividade humana não apenas cerceando as suas manifestações, mas
oferecendo alguns benefícios àqueles que se mostrarem devidamente
domesticados.
É uma teoria bastante distinta da de Durkheim, apesar de este autor
defender a necessidade de uma corrente social pessimista que mantenha os
indivíduos rijos e resistentes aos embates da vida. As sociedades primitivas são
tidas por ele como organizações solidárias e altruístas, no sentido de que os
integrantes de uma comunidade constituem um mesmo corpo consciencial, os
indivíduos são uma mesma organização psíquica. É o que o autor denomina
consciência coletiva.
Voltando a Freud (1914), sua conclusão é que as famílias patriarcais são
uma re-atualização da horda primeva e dos vínculos sociais que existiram. Pouco
depois de escrever este texto Freud (1915) conclui, desiludido, que a tentativa
cultural de manter estas destrutivas forças adormecidas do sujeito fracassa, que não
é possível erradicar o mal da natureza humana, e que o conflito entre a civilização e
o homem é insolúvel.
A ambigüidade afetiva do amor e do ódio presente no vínculo social como
uma ameaça à cultura se associa a um sentimento de culpa inconsciente. Esta
questão é retomada por ele quinze anos depois em seu texto “O Mal-estar na
Civilização” (1929). A cultura não passaria de uma tentativa de proteger o homem
contra as forças da natureza, e para isto é imprescindível submeter a realidade
primitiva e insaciável do sujeito a um controle rigoroso.
Como não é possível um controle absoluto sobre esta dimensão psíquica do
sujeito uma ameaça constante de desmoronamento geradora de uma tensão
104
entre o sujeito e a civilização que Freud (1929) nomeia como um mal-estar: o mal-
estar na civilização. Para falar deste mal-estar ele escolhe a discrepância entre a
fala e a ação dos sujeitos sobre a felicidade. Lembra que o sujeito buscará diversos
recursos com o intuito de escapar das fontes de sofrimento para dar conta deste
desencontro entre o que está posto como felicidade e o que de fato é permitido ao
sujeito obter disto através da obediência às normas sociais. O autor localiza três
fontes de desprazer com as quais o sujeito deverá se haver ao longo da sua vida: o
próprio corpo, o mundo externo e o relacionamento social. Quanto aos recursos de
que se utiliza para minorar as agruras que a vida lhe impinge, Freud (1929)
considera que
A vida tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos
muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la,
não podemos dispensar as medidas paliativas. ‘Não podemos passar sem
construções auxiliares’, diz-nos Theodor Fontane. Existem talvez três
medidas deste tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de
nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias
tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. (FREUD, 1929, p. 31).
Apesar de encontrar ou criar tais recursos para minorar o seu sofrimento em
nenhum deles o homem encontrará garantias de felicidade e de não sofrer. Não
satisfeito com a precisão cirúrgica do primeiro ponto tratado no texto, que é o
desencontro entre o que a civilização propõe como critérios para a felicidade e o que
de fato faz um ser humano feliz, Freud (1929) se encaminha a uma preciosidade da
cultura: a religião. O leitor, deste modo, está avisado que não será poupado em
nenhum de seus sonhos ou de suas esperanças.
Ao analisar o sentimento oceânico é na fala de um suicida
15
que Freud
(1929) busca o exemplo para o vínculo indissolúvel de um sujeito com o mundo
15
Romain Rolland: o seu personagem ao enfrentar a própria morte afirma “não podemos pular fora do
mundo”.
105
externo. Na intenção de analisar as origens deste sentimento ele não se preserva da
antipatia geral e põe-se a fazer um trabalho minucioso de análise e crítica em torno
de valores máximos da cultura cristã tais como o do “amor ao próximo como a si
mesmo”, por exemplo.
Cinco anos antes ele escrevera “O Problema Econômico do Masoquismo”
(1924), apontando um sentimento de culpa inconsciente como o elemento primordial
do mais importante tipo de masoquismo: o moral. Neste tipo de masoquismo o
nenhuma necessidade de que o prazer obtido através do sofrimento esteja vinculado
à atividade sexual; é através do vínculo social que ele encontrará as oportunidades
que deseja. No masoquismo moral “o indivíduo presume que cometeu algum crime –
cuja natureza é deixada indefinida –, a ser expiado por todos aqueles procedimentos
penosos e atormentadores onde o sujeito busca punições” (Freud, 1924, p.04). É
também a este conteúdo inconsciente que Freud (1929) convoca ao examinar a
existência de uma corrente de mal-estar no campo social, na estrutura da relação
entre o sujeito e a civilização. O destaque ao sentimento de culpa inconsciente é
inquestionável: o principal problema entre a cultura e o sujeito.
Para a psicanálise, deste modo, a culpa é tida como um elemento importante
no vínculo social. Ela é o recurso de que se utiliza o superego para canalizar a
agressividade contra o próprio sujeito; a necessidade de autopunição o mantém
submisso às exigências culturais que impedem a satisfação plena de suas pulsões
mais primitivas. Este mecanismo teve destaque na constituição da civilização e
permanece como um recurso precioso no embate entre cada sujeito e a sociedade.
Este sentimento de culpa obtém seu poder de coerção por ser instrumento
de uma instância psíquica poderosa que é o superego
16
. Ao discutir sobre o
16
Não se trata da vertente arcaica do superego tal como proposto por Melanie Klein, mas do
superego ao qual Lacan associará o imperativo do gozo, o superego que ordena: GOZA!
106
superego Freud (1929) aponta uma outra analogia entre os processos da civilização
e os da neurose; ele levanta a hipótese da existência de um Superego Cultural
semelhante ao do sujeito, com uma mesma origem e função de tal modo que discutir
sobre um implica em compreender também o outro. É o que pode ser lido no
fragmento de um texto freudiano abaixo:
[...] quando a tensão cresce, é apenas a agressividade do superego que,
sob a forma de censuras, se faz ruidosamente ouvida, com freqüência, suas
exigências reais permanecem inconscientes no segundo plano. Se as
trazemos ao conhecimento consciente, descobrimos que elas coincidem
com os preceitos do superego cultural predominante. Neste ponto os dois
processos, o do desenvolvimento cultural do grupo e o do desenvolvimento
cultural do indivíduo, se acham, por assim dizer, sempre interligados. Daí
algumas das manifestações e propriedades do superego poderem ser mais
facilmente detectadas em seu comportamento na comunidade cultural do
que no indivíduo isolado. (FREUD, 1929, p. 105).
Durkheim o comenta em sua teoria sobre os laços de solidariedade algo
que pudesse ser comparado à estrutura do superego. Mas, tal qual na teoria
psicanalítica, compreende-se a partir de Durkheim (1893/1999) que toda sociedade
precisa se manter coesa para sobreviver e que a manutenção deste estado de
tensão do vínculo social é obtido através de mecanismos que submetem o individuo
aos interesses da cultura. Na sociologia é o ritual de punição de um crime que
manteria os indivíduos em sintonia com os interesses sociais, ainda que estes sejam
contrários aos seus interesses pessoais. Daí ele propor o crime e o suicídio como
elementos fundamentais a toda sociedade, por propiciarem o ritual onde as normas
sociais são reafirmadas como necessárias ao grupo. Além disto, o autor comenta
que os indivíduos que participassem de uma sociedade altamente moralizada, ao
contrário do que o senso comum imaginaria, desenvolveriam um sentimento de
culpa tão aguçado que eventos e fatos tidos como normais em outras sociedades
seriam considerados como inadmissíveis entre eles.
107
Retornando à teoria freudiana, entende-se, então, que deste processo de
tratamento social das pulsões resta a culpa como gancho que manterá o sujeito
fisgado às exigências culturais que lhe chegam. Freud (1929) pensa duas origens
para o sentimento de culpa: uma externa e outra interna. Observe-se a citação
abaixo:
[...] uma que surge do medo de uma autoridade, e outra, posterior, que
surge do medo do superego. A primeira insiste numa renúncia às
satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo tempo em que faz isso exige
punição, de uma vez que a continuação dos desejos proibidos não pode ser
escondida do superego. Aprendemos também o modo como a severidade
do superego — as exigências da consciência — deve ser entendida. (Freud,
1929, p.48).
Quanto à hipótese de um Superego cultural Freud (1929) considera que não
seria de todo absurdo transportar a psicanálise para a comunidade cultural, mas
alerta que são muitos os obstáculos a serem superados em um diagnóstico e em
uma intervenção cultural. Apesar disto o autor propõe não ser impossível ou inútil o
exercício de utilizar a teoria psicanalítica para compreender questões que se
apresentem no campo cultural.
A partir daí é possível dizer que a psicanálise, assim como a sociologia de
Durkheim, afirma não apenas que o sujeito é atravessado por um ponto abissal e
mortífero, mas que também a cultura o é. Este ponto é a natureza psíquica
insaciável e sem fundo do sujeito e que constitui a ameaça maior à estabilidade e
progresso social. Durkheim não trata da agressividade enquanto tal e não discute
explicitamente sobre a sua presença na realidade psíquica do sujeito. Afirma apenas
que no sujeito algo de insaciável que vai contra as necessidades e interesses da
sociedade. Caso esta dimensão do indivíduo não for mantida sob controle impedirá
o indivíduo de participar da comunidade e colocará todo o grupo em risco de
108
dissolução. Para Durkheim (1893/2000) é de tal modo imprescindível que o individuo
seja mantido submisso à civilização que o individualismo, característico da
sociedade moderna e capitalista, é interpretado por ele como uma tradução de uma
nova necessidade social de operários especializados para a produção de bens e a
manutenção do grau de coesão social imprescindível.
Mas se a teoria durkheimiana não o fez, a psicanálise desdobra a discussão
sobre a destrutividade do sujeito em seus efeitos não apenas individuais, mas
também no campo social. É uma questão central, que pode ser entendida apenas a
partir de uma ética que percebe o sujeito envolto em questões que confrontam os
valores culturais e as necessidades absolutamente singulares e divergentes do que
a lógica do Bem estabelece como padrão de felicidade. O texto abaixo é um
exemplo do quão a sério Freud (1929) toma a questão da pulsão de morte no
funcionamento do sujeito e da cultura.
Em tudo o que se segue, adoto, portanto, o ponto de vista de que a
inclinação para a agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva
original e auto-subsistente, e retorno à minha opinião, de que ela é o maior
impedimento à civilização (...) o natural instinto agressivo do homem, a
hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, se opõe
a esse programa da civilização. Esse instinto agressivo é o derivado e o
principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado
de Eros e que com este divide o domínio do mundo. (FREUD, 1929, p 44).
O ponto de encontro das pulsões de vida e de morte no sujeito pode tomar
uma forma específica de funcionamento, de tal modo que nem mesmo o encontro
com a morte real pode ser pensado distante da obtenção de prazer. O masoquismo
moral, pois é dele que se trata, é explicado pelo autor como um empuxo à praticar
atos considerados criminosos e que colocam o sujeito na condição de ser punido por
uma consciência sádica. O masoquista moral não conhece limites e buscará toda
109
situação em que possa encontrar o sofrimento, porque é no encontro com este que
ele também encontrará prazer. Até mesmo aniquilar a própria existência.
Para a psicanálise, portanto, não se trata mais de discutir sobre a presença
ou ausência da pulsão de morte no vínculo social. Mas de levar às suas últimas
conseqüências a realidade da ambigüidade pulsional no entrelaçamento social.
O entrelaçamento entre as pulsões de vida e de morte desvelado pela teoria
psicanalítica pode vir a favorecer ou dificultar o ato suicida, pelo menos em algumas
de suas modalidades. um aspecto do laço social na teoria psicanalítica que não
foi abordado até aqui de modo mais detalhado e que pode lançar luzes sobre esta
discussão, em especial sobre o ato suicida altruísta durkheimiano. Trata-se da
função do líder na constituição e sustentação do vínculo social. Ao discutir este
tema, Freud (1921), em seu texto “Psicologia das Massas e análise do eu”
acrescenta a identificação ao líder e entre os integrantes do grupo como novo
elemento entre os fatores que promovem o enlaçamento social.
A identificação desponta como o laço emocional mais antigo que um sujeito
realiza, e não é com qualquer pessoa, mas com o pai
17
. Ele é o primeiro a atrair o
amor da criança. Neste texto Freud (1921) especial destaque ao sentimento de
amor que primeiro une o sujeito ao pai e mais tarde irá enlaçar os integrantes de um
grupo entre si e ao seu líder. O autor não deixa de registrar a presença da
ambigüidade afetiva deste laço e a relevância desta figura paterna, algo que fora
demarcado desde 1914, no texto “Totem e Tabu”.
Lacan (1970) comenta sobre esta identificação primeira do sujeito com o pai
e sobre a ambigüidade deste laço. Segundo ele na obra freudiana o mito do totem
17
Ao discutir sobre a identificação pré-edipiana Freud não possui palavras que possam descrever o
algo que ele percebe como alvo de uma identificação feita pelo sujeito. Então ele nomeia com a
palavra “pai” a identificação com o traço único deste pai, isto hoje é entendido como o S
1
com o qual
a criança inscreve a falta.
110
vem dissimular a castração do pai que aparece no mito do Édipo. Para que o pai
possa ser assassinado e ocupar o lugar de instaurador da ordem e da fraternidade é
preciso que este pai não tenha sido castrado algum dia.
Lacan (1970) retoma os mitos freudianos de Édipo, de Moisés e do pai da
horda. Segundo ele, no lugar da verdade inacessível o mito aparece para semi-dizer
a epopéia que produziu um sujeito, uma civilização. Freud (1939) registrara que
na origem de quase todas as civilizações existe um mito envolvendo a figura paterna
como algo terrível que é vencido pelo filho portador de grandes virtudes e força; “o
herói é alguém que teve a coragem de rebelar-se contra o pai e, ao final,
sobrepujou-o vitoriosamente”. (Freud, 1939, p. 04).
O mito para Lacan (1970) pode ser equiparado ao conteúdo manifesto que
tenta traduzir o saber que não se sabe, dar sustentação ao que permite à civilização
existir. Toda a fraternidade divulgada e defendida vem tentar recobrir e suturar as
placas tectônicas do gozo em relação à mãe e ao assassinato do pai. O terremoto
destroçador do progresso cultural se faz sentir de vez em quando, não é possível
esquecer-se da fragilidade de tudo quanto se construiu aí em cima. A desgraça
maior de Édipo não é ter cumprido o destino que não sabia, mas de ter descoberto a
verdade não no seu semi-dizer, mas a verdade toda.
Tal como o sujeito que se apavora na ilusão de que a verdade pode vir à
tona e usa de todos os meios para protelar ou se esquivar deste momento, a
civilização reproduziria no campo social o mesmo jogo do sobre isto nada querer
saber. Para Lacan (1970) o universo com o qual a psicanálise lida possui uma chave
que é a morte deste pai. Esta morte é tão importante porque mascara o fato de que
é este pai real o agente da castração; com o recobrimento produzido pelo mito de
um pai mítico assassinado torna-se possível a identificação terna do sujeito ao pai
111
real. Esta identificação gera uma resignação em ser castrado e acesso ao gozo,
um gozo agora cernido pela barra que a castração vem inscrever no sujeito. O gozo
assim contido não é a ameaça que o gozo pleno do desejo de morte sobre o pai
significava. Mas o sujeito é iludido, ele não sabe que a fonte da castração é seu
amado pai, deslocou para o pai mítico o desejo de morte, e ainda por cima este pai
está morto. Resta a proibição do gozo em relação à mãe, resta a barra interditora,
resta o gozo possível. Se a castração vem barrar o gozo, isto diz respeito apenas ao
gozo ilimitado, pois a identificação ao pai real, ou a um traço deste pai que a criança
toma para fazer sua entrada na cultura.
Deste modo, tanto em Freud (1921) quanto em Lacan (1970) a identificação
que o sujeito realiza na figura do pai real é com algo do pai mítico e a ocorrência
disto é o que estabelece a entrada deste sujeito no campo da cultura, na forma do
vínculo social. Em Freud (1921) o que aparece de inédito quanto ao laço social é a
idéia de que a identificação ao líder/pai, ou a uma idéia, faz com que um mesmo
ideal de ego se constitua como um ponto de fusão de desejo para todos os
integrantes do grupo. É nisto que estes sujeitos se transformam em irmãos que
amam um mesmo pai. Isto promove uma vinculação libidinal de tal ordem que o
sujeito relega a um plano menor o seu próprio ideal de ego e assume como seu
aquele que é o do grupo e que percebe encarnado no líder.
Os limites que a interdição cultural tenha obtido sucesso em instalar podem
ser ignorados nesta situação e esta informação é de especial valor para
compreender alguns suicídios ditos altruístas por Durkheim (1897/2000). Na
atualidade talvez seja possível identificar este tipo de suicídio entre os que são
realizados por homens-bomba. A teoria de Durkheim (1897/2000) diz que é por
muito amarem o grupo e não possuírem autonomia consciencial frente à sociedade
112
que o indivíduo não distingue um valor para a sua vida distinto do valor da existência
do grupo a que pertence. Como foi dito no parágrafo anterior, para Freud (1921) o
sujeito poderá em nome deste amor ao pai/líder assumir como ideal de ego de modo
indistinto o que este pai lhe outorga, e não limites para os sacrifícios que isto
pode lhe exigir. Tanto na sociologia quanto na psicanálise, é um excesso no laço
libidinal que retira do sujeito a possibilidade de se perceber como possuindo valor
em si e não apenas na imersão em uma realidade psíquica/social coletiva.
Recapitulando o que foi discutido aqui sobre o vínculo social e a pulsão de
morte em Freud, verificamos que o laço social é uma relação libidinal ambígua que
tem como primeiro movimento a identificação do sujeito ao pai; que entre cada
um e a cultura um conflito insolúvel devido às exigências pulsionais que esta faz aos
seus membros; que as forças psíquicas da agressividade e da sexualidade inerentes
ao ser humano constituem uma ameaça à sociedade e por isto precisam ser
mantidas sob controle constante. Apesar de todos os esforços da civilização a
pulsão de morte não se esgota e permanece circulando no campo social de modo
silencioso.
De que modo a circulação da pulsão de morte na cultura, tal qual Freud
(1924 e 1929) propõe, se diferencia da corrente pessimista de Durkheim
(1897/2000)? Caso seja admissível alguma aproximação entre ambas então a
corrente suicidógena poderia ser incluída entre uma das manifestações desta
circulação da pulsão de morte na cultura?
O obstáculo maior para admitir tal hipótese é que isto tem o efeito de dar à
morte voluntária uma função social pensada por Durkheim (1895/1999 e 1897/2000),
mas pouco discutida, que é a de promover um fortalecimento do vínculo social.
113
Sobre o vínculo social Lacan (1970) propõe uma estrutura fundamental, a
estrutura discursiva, onde o sujeito surge e transita no campo social. Apresentar a
teoria dos discursos de Lacan é o próximo passo deste capítulo.
Com isto se estabelecem as condições necessárias para, enfim, retomar a
questão de percebermos se é razoável admitir alguma analogia entre a corrente
suicidógena e as manifestações da pulsão de morte na cultura.
4.2.2 O discurso capitalista e a circulação de gozo na Atualidade
A idéia freudiana de um mal-estar na cultura se manifestando das mais
variadas formas é sustentada em Lacan na discussão sobre a circulação de gozo na
cultura. O gozo, compreendido na articulação entre as pulsões de vida e de morte
freudianas, permearia a relação do sujeito com o mundo e neste sentido o laço
social o escaparia de seus efeitos. Na sociedade capitalista este circuito mortífero
possui características inéditas e produz efeitos de foraclusão do sujeito. no laço
social do discurso capitalista um recurso de captura do sujeito que é a lógica da
quantificação, utilizada inclusive no tratamento social dado ao suicídio na atualidade.
Esta parte do capítulo se propôs a apresentar a circulação de gozo na cultura e a
pensar este tratamento social contemporâneo ao suicídio.
Na teoria lacaniana o conceito de vínculo social emerge e se sustenta na
formalização de uma estrutura discursiva da relação fundamental a partir da qual um
sujeito surge. Esta relação é aquela onde um significante representa um sujeito para
114
outro significante
18
. Esta estrutura discursiva possui quatro possibilidades e em cada
uma delas o sujeito urde um laço social específico. o quatro lugares de produção
singular que aparecem na medida em que quatro termos diferentes por aí circulam.
A Teoria dos Discursos foi estabelecida por Lacan em seu “Seminário 17 – O
avesso da Psicanálise” (1970). A estrutura, na qual o sujeito é forjado, não possui
sentido em si; trata-se de um discurso sem palavras que torna possível ao sujeito
falar, produzir sentidos, transitar por um campo social. Lacan (1970) constrói um
instrumento rigoroso de análise do lugar ocupado por um sujeito em determinado
laço social e dos possíveis desdobramentos na cultura da produção desta estrutura
discursiva. Aqui nos interessa, em especial, o modo com que estes laços sociais
permitem a circulação de gozo no campo social.
Sobre o gozo, no “Seminário 20” (1958), Lacan afirma que se trata de uma
instância negativa, aquilo que não serve para nada. Sem transformar as duas
pulsões em uma; ele, no entanto, aposta em uma antinomia interna à pulsão, onde
satisfação e sofrimento estão em um nó indissolúvel; “com a palavra gozo, Lacan
oferece-nos uma palavra para as duas satisfações. E torna-se a central questão
do sadismo e do masoquismo”. (MILLER, 1997, p. 375).
Patrick Valas (2001) lembra que
Freud não conceituou o gozo, mas definiu o seu campo (que ele situa mais-
além do princípio do prazer, regulando o funcionamento do aparelho
psíquico), no qual se manifestam como prazer na dor, fenômenos
repetitivos que podem ser remetidos à pulsão de morte. A pulsão de morte
seria redefinida por Lacan como sendo uma pulsação de gozo que insiste
na repetição da cadeia significante inconsciente. O prazer e o gozo não
pertencem ao mesmo registro. O prazer é uma barreira ao gozo, que se
manifesta sempre como excesso em relação ao prazer, confinando a dor.
(VALAS, 2001, p. 07).
18
No sujeito, para Lacan, o máximo de consistência possível é um significante extraído na forma de S
1
que o representa para um outro significante S
1
de um outro sujeito.
115
Nesta pesquisa a questão do gozo é tomada para pensar a sua circulação
no campo social como uma discussão que continuidade à idéia freudiana da
circulação da pulsão de morte na cultura. Prosseguir o debate sobre o mal-estar
social no campo lacaniano é levar às últimas conseqüências o desvelamento da
pulsão de morte entremeada à pulsão de vida no laço social. Algo que Freud (1914)
começa a vislumbrar em “Totem e Tabu”.
Quanto ao campo social, Sonia Alberti (2000) afirma que a psicanálise o
trata como um “particular de sujeito a sujeito inexistente para além das relações de
projeção, identificação e incorporação” (ALBERTI, 2000, p.03). Apesar disto um
“campo social” estabelecido nos Discursos, enquanto laços sociais, que permite aos
sujeitos se influenciarem.
No Discurso, tanto quanto no sintoma, a verdade permanece velada. Meio
dita. Alberti (2000) lembra que Lacan, praticamente de dois em dois anos, aponta
que, antes de Freud, foi Marx quem demarcou este ponto de furo da verdade, do
sintoma. Esta autora organiza a herança marxista na teoria lacaniana em torno de
três eixos: a mais-valia, a invenção do sintoma e o semblante no discurso capitalista.
Lacan (1970) diz que apesar de não ter sido Marx quem inventou a mais-
valia é somente a partir do trabalho deste que fica clara sua função de memorial do
mais-de-gozar
19
. Deste modo o discurso pode estar ligado aos interesses do
sujeito, e, tal qual a ética da psicanálise propõe, não é possível desresponsabilizá-lo
seja qual for o lugar que ocupe na estrutura discursiva. Tanto em Lacan quanto em
Marx a formalização destes conceitos análogos vem marcar que algo que escapa
de qualquer tentativa de contabilização, de quantificação.
19
Extração a mais de gozo que escapa/resta do gozo que se obtém. Uma analogia possível é a idéia
marxista de mais-valia.
116
Quando ocorre a divisão entre o sujeito e o Outro algo que resta; esta
divisão jamais é justa para o sujeito e o capitalismo. Segundo Alberti (2000) é a
maximização do “lucro” desta divisão. Nesta maximização todos os recursos serão
utilizados de modo a manter o sujeito como usuário dos gadgets
20
, ou latusas,
alienado deste lugar a ele destinado e confundindo demanda com desejo.
Enganadoramente ele se percebe como sujeito desejante, sem saber que o seu
querer é aquilo que o capitalismo quer que ele queira.
É importante pontuar que o que muda sempre são os elementos que
circulam nos quarto lugares. Com exceção do lugar da verdade, que permanece
como tal, Lacan (1970) estabelece duas nomenclatura5032(e)-4.331ust Nesa
117
Semblante gozo
Verdade mais-de-gozar na segunda nomenclatura de Lacan
Para melhor visualizar esta apropriação do “a mais”, resultante da divisão do
sujeito, pelo capitalismo, discutir-se-á a singularidade do discurso capitalista em
relação aos outros discursos. Em primeiro lugar serão apresentados os quatro
discursos, as quatro modalidades de laço social:
Figura 1 - Os Quatro Discursos.
Fonte: Lacan (1969-1970)
Ao movimentar na forma de giros de progressão ou regressão de cada um,
estes termos circularão de um lugar ao outro, produzindo efeitos discursivos
diferentes. Não há aqui a idéia de finalidade progressista nestes giros, mas de
trânsito entre diferentes postos de trabalho desembocando em eixos discursivos
diferentes. Entre os giros um quinto giro possível que apaga o sujeito e o
aprisiona em uma circulação mortífera de gozo; trata-se, como bem se imagina,
do discurso capitalista. Esta é a sua estrutura:
118
Figura 2 – Estrutura do Discurso Capitalista
Fonte: Lacan (1969-1970)
Então, no discurso capitalista, o sujeito está iludido sobre esta posição de
agente/semblante que ocupa. Imagina que isto lhe liberdade de escolha e
desejo, mas o fato de no lugar da verdade estar o mestre capitalista tem como efeito
o “querer”, que circula nada mais ser do que a manipulação do desejo do sujeito
por esse mestre. A verdade que sustenta o sujeito no discurso capitalista não é a
sua própria. Trata-se de um engodo; ela é desqualificada por este mais-de-
gozar/produção.
Esta localização no discurso capitalista do sujeito no lugar de agente
também ocorre no discurso histérico, mas neste último o lugar da verdade é
ocupado pelo objeto minúsculo a e isto legitima o endereçamento feito ao
Outro/gozo como resultante de um movimento singular de cada um. Diferença
relevante em relação ao discurso capitalista onde, apesar do sujeito ocupar o
mesmo lugar que no da histeria, busca-se apagar a singularidade do desejo,
transformar o sujeito em unidade contábil.
Para transformar o sujeito nessa unidade contábil o discurso capitalista se
apropria do sujeito do discurso do mestre e o coloca sob sua orientação. O
Outro/gozo que antes do capitalismo era circundado por algum saber agora é
apenas meio de justificar a contabilização. A vida nua Zoe que se encontrava
119
fora da lei passa a ser englobada na política do Estado contemporâneo,
transformando a política em biopolítica tal qual Teixeira (2003) denuncia. É o
discurso do mestre a serviço do cientificismo.
Esta subversão do discurso do mestre é possível a partir da instauração do
discurso universitário e com ela a mudança radical na relação do homem com o
saber. A diferença fundamental entre estes dois discursos aparece exatamente
neste ponto, pois no discurso universitário o mestre que está se sustenta
meramente nos títulos que compõe esse S1 ocupante do lugar da verdade. E não,
tal como no discurso do mestre, na divisão fundamental que ampara um sujeito em
sua produção de saber.
Para Lacan (1970) a crise que o discurso universitário atravessa na
contemporaneidade é devida ao fato de o discurso do mestre ter sido fragilizado pela
mais-valia, na medida em que ela esvazia a impotência da produção/mais-de-
gozar em ter acesso à verdade. Em sua estrutura o discurso universitário servirá de
pedra angular ao discurso da ciência que tem como termo da verdade um mestre
que ordena: “vai, continua, a saber, sempre mais” e com isso toda pergunta sobre a
verdade é silenciada. O enigma sobre este signo que aí está não pode aparecer.
Retornemos ao discurso capitalista em si para em seguida abordarmos o do
analista e pensarmos um movimento de resistência que não seja o do protesto ou o
do saudosismo. Lacan (1972) afirma que este discurso é o substituto do discurso do
mestre, uma pequena subversão entre o sujeito e o S
1
. Mudança quase
imperceptível, mas que impede a este eixo discursivo cumprir sua função de laço
social.
De acordo com Alberti (2000) o S
1
ainda é o mestre no discurso capitalista,
mas são apenas marcas dos gadgets, “S
1
gadgets”, e não pode ser confundido com
120
o mestre do discurso do mestre. Outra diferença é o lugar que o S
1
ocupa: o da
verdade no primeiro e de agente/semblante no segundo. O efeito daí advindo é, no
discurso capitalista, o sujeito crer-se agente sem sê-lo e o de lhe caber, neste
latifúndio, apenas o produção/mais-de-gozar que o mantém preso em um ciclo
vicioso.
Será importante, para a discussão aqui empreendida, desdobrar a questão
da ausência de saída do discurso capitalista e de porque considerar o discurso do
analista poderia constituir a única via. Este circuito seexplicitado em esquemas
seqüenciais.
No discurso capitalista o mestre não se endereça ao agente, mas sim ao
Outro no seu lugar de gozo:
Isto porque ele põe o Outro/gozo, ou lucro não contabilizado, a seu serviço,
de modo que o Outro/gozo não é mais por onde circula algum saber ao contrário
de quando era o escravo que estava antes do capitalismo e fica reduzido a
apenas gozar.
Este endereçamento de S
1
a S
2
traz como produção/mais-de-gozar os
gadgets:
Há uma diferença fundamental na produção/mais-de-gozar do discurso
capitalista para os demais e em especial quanto ao discurso do mestre.
S S
2
S
1
a
S S
2
S
1
a
121
Quanto aos quatro discursos em todos eles a marca da castração que
impede que o sujeito tenha o acesso à verdade advinda da produção/mais-de-
gozar. A verdade é inacessível a toda produção.
Esta barra está registrada nas duas nomenclaturas lacanianas dos
discursos:
No discurso capitalista, entretanto, a produção/mais-de-gozar não está
impedida de alcançar o sujeito, porque a barra da castração que nos demais
discursos impede o acesso da produção/mais-de-gozar à verdade foi esvaziada
pela contabilização efetuada pelo capitalismo. O sujeito está exposto no lugar de
agente e sustentado não pela divisão fundamental da castração, tal qual no discurso
da histeria, mas pelo S
1
do mestre capitalista.
O ciclo sem saída do discurso capitalista é concluído no próximo movimento
quando o sujeito, no lugar de agente, não se endereça ao Outro/gozo e segue em
Primeira Nomenclatura
agente Outro
verdade
produção
Segunda Nomenclatura
semblante gozo
verdade
mais-de-gozar
S S
2
S
1
a
122
direção a este mestre capitalista da verdade que ele é o determinante de seu
querer, causador de seu desejo.
É possível observar que o sujeito tem acesso a duas coisas no discurso
capitalista: à ordem do mestre capitalista que nomeia e qualifica o seu desejo e aos
objetos mais-de-gozar que o mantém no engodo da liberdade.
Rodopiando em uma circulação da pulsão de morte que não encontra barra,
o laço social contemporâneo é um paradoxo na impossibilidade do discurso
capitalista de fazer laço e “se hoje nos sentimos tão melancolicamente livres, é que
nos falta tinta vermelha
22
, falta-nos linguagem para formular a verdade relativa à
nossa ausência de liberdade”. (TEIXEIRA, 2003. Pág. 39).
Segundo Lacan (1970) o Nirvana, pulsão de morte em Freud, é uma
experiência discursiva na medida em que se trata do percurso da vida que retorna
ao inanimado, de um saber sobre um percurso já realizado pelo sujeito.
Quanto ao encontro do sujeito com o campo social atravessado por este
circuito mortífero Miller (1997) propõe que a culpa é o fundamento da ação social, na
medida em que o sujeito se sente responsável por algo, se não realizado ao menos
desejado em seu inconsciente. É a responsabilidade em uma manifestação de
singularidade incondicional que não se trata aqui de responder por uma
materialização deste sujeito no plano social, mas de um comprometimento deste
22
Referência a uma anedota onde um rapaz que viaja para a Sibéria e sabedor da censura que sua
correspondência sofreria combina com os amigos escrever as boas notícias em azul e as ruins em
vermelho. Os amigos recebem uma carta em azul contando de quão maravilhosa e livre era a Sibéria
e que tudo seria perfeito se não faltasse tinta vermelha.
S S
2
S
1
a
123
com o seu próprio desejo no que ele nem mesmo sabe sobre isto. Esta questão faz
pensar que a afirmativa de Durkheim (1897/2000) sobre a existência da corrente
suicidógena no bojo de uma corrente pessimista não é suficiente para definir a
questão principal, que é como o sujeito pode ser capturado por esta corrente. Assim
não bastaria visualizar que existe uma “corrente pessimista” tal qual Durkheim o faz,
nem mesmo para manter a discussão no campo do universal, pois se um sujeito é
capturado nesta corrente não o é sem algum comprometimento deste com o seu
próprio desejo. Se a sociologia não conta de levar às últimas conseqüências a
hipótese durkheimiana de uma força social mortífera necessária à sociedade, mas
incoerente aos projetos de uma civilização higienizada de suas maleficências, é
porque está atrelada a esta lógica do Bem maior, foracluindo a dimensão do sujeito
e da cultura que nem mesmo por serem deste modo ignorados deixam de agir e
produzir o sujeito e o laço social. É a psicanálise que possui os recursos teóricos e
éticos para desdobrar o sujeito durkheimiano e a idéia de uma corrente suicidógena
na radicalidade que estas idéias apresentam. Trata-se, como foi dito no início
deste capítulo, não do sujeito que Durkheim (1897/2000) escolhe para trabalhar,
mas o que ele deixa restar para a psicologia, não atento ao o grau de semelhança e
de diferença entre os dois saberes.
Ainda em Durkheim (1897/2000), há uma discussão sobre a norma social
como um instrumento social para coibir o sujeito; ou como recurso discursivo no
estabelecimento de padrões de normalidade social e psíquica e de um lugar bom e
útil ao sujeito no progresso do grupo. É por defender estas normais sociais e
restabelecer o seu poder de coação sobre cada integrante do grupo que os rituais de
punição ao crime são tão significativos. Nestes processos o sujeito é
responsabilizado pelo grau de individualidade que possui, mas não é no sentido de
124
que o sujeito deve estar comprometido com algum ponto de singularidade em seu
desejo, mas ele é convocado a manter as suas necessidades adequadas ao que as
expectativas sociais nomeiam como ideal para ele. É uma responsabilização que o
mantém alienado de si mesmo.
Quando a medicina social, no século XIX, se apropria do suicídio como
questão é na da teoria durkheimiana que ela encontra o recurso teórico necessário
para demarcar um campo social adoecido por alguns elementos que precisam ser
extirpados daí, de modo que o progresso não fique comprometido. Surge a idéia
de que é preciso responsabilizar o sujeito, preveni-lo dos limites éticos que foram
ultrapassados por sua conduta criminosa ou inadequada.
De acordo com Lopes (1998), em 1927 a Liga Paulista de Higiene Mental
estabelece como tratamento social ao suicídio o estabelecimento de postos para o
estudo, a observação, o exame físico e mental da população. São sugeridas duas
vertentes para que o problema do suicídio fosse resolvido completamente. A
primeira são as medidas de caráter social que incluem, basicamente, divulgar
medidas de higiene mental preventiva através da explicação à população sobre
genética, dos efeitos danosos do alcoolismo e ampliar os postos de tratamento da
sífilis. A segunda diz respeito a uma profilaxia individual onde seriam resolvidos os
pequenos distúrbios psíquicos e internar imediatamente aqueles que apresentassem
idéias suicidas, ou seja, este não é capaz de responder por si mesmo. Este é o
exemplo da lógica de responsabilização que o discurso sociológico, em sua leitura
tradicional, permite. Uma perspectiva claramente adequada ao discurso científico
que vem fazer as suas alianças com o Estado moderno na organização da
Biopolítica.
125
Na psicanálise a norma social é o ponto de convergência entre a medicina e
a ética; é que a normalidade é engendrada como condição sine qua non para um
sujeito estar apto ao status de cidadão pleno, principalmente no seu dever de
responsabilidade por suas escolhas. Em “Patologia da Ética” (1989) Miller diz que a
questão da saúde mental é, antes de tudo, a de se o sujeito pode ser castigado ou
se é irresponsável. A saúde mental não encontra no psicanalista um operário, pois
ele se dirige ao sujeito de direito, um sujeito ético que sempre é responsável por
seus atos. Sobre a origem da cultura o autor lembra que Freud (1923) inventa um
mito primordial, o do assassinato do pai que acontece no nível da pulsão onde o
sujeito ético fica anulado. Sob a face sublime da fraternidade e do progresso social
Freud (1929) desvela a face da morte como ponto de fundação da civilização. Não
apenas naquele tempo mítico, mas na desnaturação de cada sujeito que faz sua
entrada na civilização.
Na medida em que a teoria lacaniana permite escutar o fracasso do discurso
capitalista nesta circulação de gozo singular, exige que o analista se coloque em
uma ética que venha a fazer resistência a isto.
É esta a discussão que se pretende estabelecer neste momento: pensar o
que esta circulação de gozo na atualidade tem propiciado como instrumento de
tratamento social do suicídio.
4.2.2.1 O discurso do analista e a resistência à quantificação do suicídio na
contemporaneidade
126
Quando no século XIX o suicídio é tomado como objeto de estudo da ciência
sociológica, tal proposta não apenas é acatada como permite localizá-lo entre as
temática sociais da medicina. Sobre isto falou-se no capítulo 2 da presente
dissertação. A proposta é retomar este aspecto histórico do tratamento social dado
ao suicídio a fim de compreender o modo como o discurso capitalista, na sua
vertente de Estado articulado ao discurso cientifico, ou seja, a biopolítica, trata este
acontecimento. Também aparece algo que concerne ao analista e a um certo
compromisso da psicanálise em não se colocar à margem do debate e ocupar o seu
lugar no campo social.
O discurso do analista é o giro seguinte ao do discurso da histeria.
Neste discurso, o do analista, o sujeito deve produzir a partir de seu próprio
desejo; ele é convocado a isto por este agente objeto a e do lugar de trabalho não
se evadirá sem que a sua produção traga algo de um significante-mestre, o seu
próprio S
1.
No momento em que o analista ocupa o lugar de agente passa a estar na
função de objeto a, causa de desejo para este sujeito que agora está no lugar do
Outro/gozo. A liberdade possível, aqui, não se coaduna com um desejo que não
seja o do próprio sujeito. A singularidade desta produção está não apenas
resguardada, mas também sustentada na medida em que o sujeito que aparece na
clínica da psicanálise é o mesmo que constrói um nome-do-pai para si.
da
a
S
S
2
S
1
dh
S S
1
a
S
2
127
O saber que sustenta o analista e que aqui circula surge na escuta do
analisante ou adquirindo um savoir-faire. O S
2
no lugar da verdade permite não uma
pergunta, mas um enigma em sua função de semi-dizer e que pode ser dito por
este novo mestre na estrutura discursiva que é o sujeito barrado.
A opacidade do agente no discurso analítico evoca a verdade na rara
possibilidade de ser capturada que é a de lhe colocar sal na cauda
23
, mas Lacan
lembra: ela não tem cauda. É preciso inventar uma, pois a verdade levanta vôo.
Inventar uma cauda para inventar uma verdade que se sustente na invenção de um
nome-do-pai que o atravessamento do desejo permitiu em cada sujeito.
A partir do Discurso do Analista o sujeito é sempre um sujeito responsável. É
um sujeito ético que se opõe a toda subordinação ao Bem supremo e onde o mais
particular é o mais universal. Esta noção de sujeito exigiu da Psicanálise reconhecer
uma Ética que não se dirija em princípio ao pensamento, mas ao ato digo ato e
não ação, digo ato e não acting out que se ocorre pressupõe o atravessamento de
um umbral significante. Do outro lado é outro o sujeito que aparece.
O campo onde a idéia de ato equivale a uma manifestação do pensamento
permite o equívoco de pensar um indivíduo que busca na vida o Bem, senão o seu
próprio bem. E se acontece o fracasso em construção tão sublime, os fatores
causais levantados são muitos, mas não passam pelo próprio sujeito.
Ao comentar a questão da passagem ao ato na teoria lacaniana Miller (1988)
localiza o ato suicida como uma oposição máxima à lógica ingênua de confluência
entre pensamento e ação. O ato aponta para o coração do ser: o gozo. O suicídio
escancara a estrutura do ato, da passagem ao ato. Nele se abandonou por completo
[completo = não falho e ato não falho, exitoso é como Lacan o definiu em “Televisão”
23
Lacan (1970) no capítulo IV lembra de certos pássaros que seriam capturados se o caçador
conseguisse colocar sal em sua cauda. E Lacan continua: Mas a verdade ela é um chiste, palavra
sem pé, nem cabeça, nem cauda”.
128
(1974)] o equívoco da palavra, a possibilidade de furo do simbólico. O sujeito almeja
o definitivo. A desaparição definitiva.
Tudo isto conhecemos desde Freud; por exemplo, no seu texto “O
Problema Econômico do Masoquismo” (1924) quando, discorrendo sobre o
masoquismo moral, alerta para o fato de o objetivo deste tipo ser o próprio
sofrimento. O sujeito buscará todas as oportunidades em que puder obtê-lo e que
ainda assim nem mesmo a sua autodestruição poderá ser pensada sem a presença
de certa cota de satisfação libidinal.
no âmago de todo ato um não. Ao Outro. Este atravessamento destina-se
a separá-lo do Outro. O suicídio, como um ato não falho, é uma recusa irredutível a
qualquer coisa deste Outro, ele não quer saber nada de mais nada. Uma ruptura
radical.
Que chances teria a biopolítica de obter sucesso junto a tão singular e radical
movimento psíquico do sujeito? Por outro lado, análise do suicídio como uma
passagem ao ato, como recusa irredutível ao outro e ruptura radical do laço social. É
este o ponto final do que é possível dizer sobre o suicídio na contemporaneidade
pela Psicanálise?
Lacan (1970) aponta que o discurso da ciência se sustenta fazendo da
verdade um jogo de valores e que o discurso analítico se distingue exatamente por
questionar os usos de um saber que exclui a dinâmica da verdade. Ele serviria para
“recalcar aquilo que habita o saber mítico”, ou seja, calar o enigma que habita o
lugar da verdade no discurso, pois o saber disjunto inconsciente é forasteiro ao
discurso da ciência. As verdades que interessam à psicanálise estão condenadas a
serem obscuras. Nos mitos de Édipo e do assassinato do pai da horda primeva
129
Freud localiza aquilo de que trata a psicanálise. Um ponto de não saber é o que
sustenta a vida, já que a morte se coloca como incognoscível a quem quer que seja.
Um jogo de valores, Lacan diz. Um jogo onde algumas unidades valem mais
que outras, onde haverá aquelas que não valem. Onde é preciso estabelecer
critérios e organizar um padrão a ser alcançado. Reencontramos o ponto da
quantificação e das biopolíticas que, esvaziando a impotência da produção/mais-
de-gozar em alcançar a verdade, impossibilitam que esta última seja tomada em
sua condição enigmática.
Palavras como kamikaze, terroristas, homens-bomba, fanáticos, loucos,
vítimas, auto-homicidas já são conhecidas do público leigo e dos psicanalistas, como
se nestas definições se houvesse explicado do que se trata. É a fantasia do Um
sustentando a interdisciplinaridade na produção de conhecimento sobre o suicídio.
Observe-se:
O suicídio burla a ordem natural da vida em escala abrangente. Sua
ocorrência dá-se nas mais variadas faixas etárias e nas mais diversas
culturas - da adolescência à velhice e mais raramente na infância; ocorre
desde que o homem deu-se conta de existir enquanto ser pensante e dono
de seus atos. Constata-se a existência do suicídio a partir dos primórdios da
humanidade; na antiguidade greco-romana; na era cristã; na renascença e
na contemporaneidade. (BRANDÃO, 2004. p. 09).
Um exemplo característico da tipificação do suicídio a partir de dados
numéricos, estabelecimento de perfis adequados, da idéia de um sujeito senhor de
si tal qual o discurso universitário promove e sustenta. Articulação fiel ao discurso da
ciência que se esfalfa para convencer o homem a usar seus tantos predicados
subjetivos, mas racionais, na construção de uma vida feliz e de uma sociedade justa,
igualitária e fraterna. É a biopolítica com seus multiplicadores da “tecnologia do self”
de que Santiago (2004) nos fala.
130
Na Idade Média o discurso em torno do suicídio começa a tomar ares de tema
científico e, segundo Lopes (2003), na medicina social, no século XIX, e o suicida
é tido como um fator de contaminação social. A medicina é política e precisa do
poder do Estado para realizar seu projeto de uma sociedade sadia, normal e feliz, ao
mesmo tempo em que o Estado encontra neste saber a sustentação científica que
lhe fornece argumentos, instrumentos e credibilidade. Sobre isto já discutiu em
detalhes no capítulo 2 desta dissertação.
Qualquer fenômeno ou sujeito que conturbe a ordem social deverá ser
identificado, normalizado e vigiado. É deste modo que o suicídio, após ter sido
transportado oficialmente por Durkheim (1897/2000) para o campo da ciência, se
incluído entre os fatores eugênicos sobre os quais o Estado, e a ciência, devem se
debruçar para garantir a concretização do que foi um projeto Moderno social. São os
primórdios do engodo magnífico e sem saída do discurso capitalista traduzido na
biopolítica contemporânea. No capitalismo a ciência não é apenas uma idéia
brilhante, ela é a parceira ideal, a sua outra metade, tal qual no mito platônico.
Para concluir esta análise da biopolítica como estratégia social resultante da
articulação entre ciência e Estado presente no seio do discurso capitalista, em sua
tentativa de dar um tratamento ao ato suicida, temos que verificar:
1. Se o discurso capitalista captura o sujeito e não permite o laço social,
2. Se o discurso da ciência é a perversão do discurso universitário à serviço do
capitalismo,
3. Se a biopolítica, através da quantificação como recurso privilegiado do
discurso científico, apaga a singularidade do sujeito na ilusão do Um,
4. Se o mal-estar na civilização que Freud aponta é otimizado pela circulação de
gozo no discurso capitalista,
131
5. Se o suicídio é passagem ao ato que porta um não radical e feroz ao Outro,
6. Se o discurso analítico é a única saída possível ao discurso capitalista.
Podemos pensar que quanto mais a biopolítica desapropria o sujeito de seu
desejo, recobrindo a falta com os gadgets governamentais do discurso capitalista,
mais o fragiliza?
Podemos pensar que esta fragilização torna ainda mais perigosa a circulação
do gozo no discurso capitalista e que o suicídio, por isso, se coloca cada vez mais
como uma saída aos sujeitos?
A presença deste Outro talvez tenha se tornado temerária a ponto de exigir
do sujeito uma recusa de igual porte. Não apenas uma passagem ao ato, o que por
si constitui uma radicalização, mas um ato não-falho em que o sujeito faça “o não
querer saber nada de mais nada”, como bem define Miller (1988).
Resta, então, o compromisso ético da psicanálise de se colocar a pensar e
resistir à esta lógica da quantificação do suicídio.
Até aqui neste capítulo 4 se discutiu a possibilidade de interlocução entre a
sociologia e a psicanálise em uma pesquisa sobre a corrente suicidógena de
Durkheim. Um capítulo inteiro foi dedicado à teoria sobre o suicídio que este autor
elabora; as principais idéias foram apresentadas, discutidas e articuladas à questão
do suicídio: sociedade, indivíduo, anomia, crime e função social para o crime.
Buscou-se deixar claro que na psicanálise uma associação entre vínculo social e
a pulsão de morte tal qual em Durkheim (1897/2000). Além disto, talvez seja
possível dizer que no indivíduo do sociólogo resta um ponto que possa aproximá-lo
do sujeito do inconsciente. Mas não é suficiente que os conceitos de sujeito do
inconsciente e de laço social possam se encontrar entre as duas teorias. Seria
132
preciso que a teoria psicanalítica sobre o suicídio não desabonasse as
aproximações realizadas.
O próximo passo é buscar a discussão que a psicanálise, em Freud e Lacan,
propõe sobre o ato suicida. Tendo em vista que Durkheim (1897/2000) não se
interessa em investigar o ato suicida no campo do particular, uma parte deste texto
teve de ficar restrito à discussão exclusiva no cam
133
Compreender de que modo o ato suicida é pensado na psicanálise é a
condição última neste trabalho para analisar se as articulações realizadas até aqui
entre a corrente suicidógena e a circulação da pulsão de morte na cultura são
pertinentes. Não é suficiente que o sujeito durkheimiano extraído nesta pesquisa e
as teorias de vínculo social atravessados por uma força mortífera se assemelhem, é
necessário que o modo como o encontro do sujeito com o ato suicida é pensado na
psicanálise não inviabilize a interlocução.
Em Freud alguns pressupostos essenciais na teorização sobre o suicídio
que são os conceitos de melancolia, de inexistência da representação da morte no
inconsciente, de passagem ao ato, de masoquismo moral e, claro, daquele
relacionado ao jogo entre a pulsão de vida e a de morte que acontece em cada uma
destas experiências.
Em “Contribuições para uma discussão acerca do suicídio”, de 1910, Freud
produz o único texto específico sobre o suicídio. Nele Freud aponta que a falha na
sustentação do lugar de mestre pode ser letal para aquele que se encontre
desamparado, no limbo, em um momento em que atravessa o umbral entre um lugar
subjetivo e outro. Diz ainda ser preferível deixar em suspenso alguma conclusão
sobre as causas pelas quais alguém se mata até que os processos do luto e da
melancolia sejam melhor esclarecidos. Mas, desde o início, ele sustenta que o
suicídio não pode ser desenraizado do percurso libidinal do sujeito. O mesmo sentido
aparece nas discussões dos textos de 1896 e de 1901, quando ele aponta uma
convergência entre um desejo inconsciente e uma situação fortuita do cotidiano que
vem servir de justificativa para os casos em que a causa da morte voluntária parece
clara ou, ainda, o caráter mortífero de pequenos atos autolesivos. Uma discussão
minuciosa sobre os efeitos da perda de um objeto amoroso na economia psíquica e
134
as possibilidades do suicídio como desfecho irá aparecer somente em 1917, no texto
“Luto e Melancolia”.
Freud (1917) explicará que a melancolia é um estado relacionado a uma
perda objetal inconsciente. Nesta condição o sujeito não é capaz de localizar o quê
de si foi perdido naquele objeto que não mais possui. Ao identificar-se com este
objeto perdido o sujeito passa a desviar para si as recriminações endereçadas a
este objeto amado. A ambivalência afetiva de amor e de ódio acrescida da
identificação a este objeto perdido e de uma regressão da libido ao eu torna possível
buscar a vingança contra este agindo contra si mesmo. Entre os efeitos de tal
vingança dirigida contra si pode estar o suicídio. É o que se pode ler na referida obra
freudiana:
A catexia erótica do melancólico no tocante a seu objeto sofreu assim uma
dupla vicissitude: parte dela retrocedeu à identificação, mas a outra parte,
sob a influência do conflito devido à ‘ambivalência’, foi levada de volta à
etapa de sadismo que se acha mais próxima do conflito. É exclusivamente
esse sadismo que soluciona o enigma da tendência ao suicídio, (...)De
muito, é verdade, sabemos que nenhum neurótico abriga pensamentos de
suicídio que o consistam em impulsos assassinos contra outros, que ele
volta contra si mesmo, mas jamais fomos capazes de explicar que forças
interagem para levar a cabo esse propósito. A análise da melancolia mostra
agora que o ego pode se matar se, devido ao retorno da catexia objetal,
puder tratar a si mesmo como um objeto se for capaz de dirigir contra si
mesmo a hostilidade relacionada a um objeto, e que representa a reação
original do ego para com objetos do mundo externo. (Freud, 1917, p.10).
Esta hipótese será retomada no texto “Psicogênese de um caso de
homossexualismo em uma mulher” (1920). O exemplo aqui é de uma jovem que
tenta se matar ao dirigir a si mesma o desejo de vingança contra o pai. Ou seja,
reafirma-se que o sujeito é capaz de se matar porque, na verdade, está matando
um objeto com o qual está identificada, porque volta contra si mesma o ódio e o
desejo de morte que nutre por outrem, no caso, o pai.
135
A literatura sempre foi uma fonte extraordinária de material para a
psicanálise e mais uma vez ela é convocada a auxiliar. A poesia de Sylvia Plath
24
,
segundo Ana Cecília Carvalho (2003), constitui matéria rica para compreender a
identificação melancólica. Ao longo de todo o texto de Plath pode-se notar que a
identificação com a perda do objeto aparece na identificação com um eu sempre
reinventado, porque esvaziado de qualquer consistência. o fica claro se o desejo
de morte, de desaparecimento, que aparece na escrita da poetisa é uma invenção
ou se leitor está de fato presenciando a sua morte. Após uma tentativa de suicídio,
Sylvia teria escrito sobre uma moça que, apesar de escapar da morte, permanece
aprisionada ao que já havia morrido em si mesma.
Em seu seminário sobre a angústia Lacan (1963) comenta que o sujeito tem
saudade não é de algo exterior, e sim de si mesmo,
136
[...] rechaçada para o inferno do seu corpo morto. Como um Lázaro, do
meio dos mortos inertes, corrompida pelo bafo da tumba, macilenta, com
vergões roxos e inchados nos braços e nas coxas e na face uma cicatriz
aberta e funda. (PLATH, 1955 in CARVALHO, 2003, p. 83).
Identificada à perda do objeto, Sylvia Plath paradoxalmente é salva, embora
mortificada na escrita produzida no contato com o vazio que restou no lugar daquilo
que era amado. Amor e poesia são para ela “o último véu de beleza que recobre a
morte” (PLATH, in CARVALHO, 2003, p83). Lacan (1960) afirma que não é apenas
o bem que é capaz de oferecer uma rede frente ao horror do real; o belo, com seu
esplendor, permite uma incursão ainda mais profunda do que o bem em direção ao
centro da experiência moral. É por isto que a escrita para a poetisa teria
proporcionado ao mesmo tempo possibilidade de organização e de dissolução
definitiva do eu. Na beleza poética plathiana a morte não pôde ser anulada, pois “o
jato de sangue é poesia” (PLAHT in KINDNESS, 1994). É o que a escrita a que a
poetisa se percebe impelida diz:
A perfeição é horrível, ela não pode ter filhos.
Fria como o hálito da neve, ela tapa o útero
Onde os teixos inflam como hidras,
A árvore da vida e a árvore da vida.
Desprendendo suas luas, mês após mês,
sem nenhum objetivo.
O jorro de sangue é o jorro do amor,
O sacrifício absoluto. (PLATH, 1963, in CARVALHO, 2003).
Seu texto de gozo, tal como Carvalho (2003) propõe, se constrói no
estilhaçamento da subjetividade, na instabilidade atada aos primórdios do ser, no
hiato vazio da representação da morte no inconsciente. Para Lacan (1960), o ponto
de convergência entre o luto e a melancolia não é o objeto, mas um sentimento de
remorso quanto ao desaparecimento do objeto que instaura uma catástrofe iminente
da qual o sujeito sente que não poderá escapar. Suas forças vitais são exauridas
137
enquanto se arrasta à espera da tragédia que se abaterá sobre ele a qualquer
momento.
Em um outro texto, pode-se perceber que em Plath a escrita melancólica
não ra de espraiar o vazio e a dor que lhe são, ao mesmo tempo, fonte de
inspiração e mortificação:
Meu mundo cai aos pedaços, o “centro não se mantém”. Não nenhuma
força integradora, o medo nu da necessidade de autopreservação.
Tenho medo. Não sou sólida, mas vazia. Sinto atrás dos meus olhos uma
caverna entorpecida, paralisada, um buraco do inferno, um nada imitativo.
(PLATH, p.149 in CARVALHO, 2003, p.187).
Casos como os da escrita da poetisa americana endereçam à afirmativa de
Freud (1896) de que até mesmo o suicídio claramente justificado tem as suas raízes
não na presente situação insuportável, mas na conjunção desta com um desejo
inconsciente. Frente a esta idéia seria razoável imaginar que algo do sujeito a priori
o determinaria à morte voluntária.
No entanto, não é possível sustentar a existência de um sujeito desde
sempre destinado a se matar. Se a literatura serviu de campo para visualizar a
hemorragia libidinal de que fala Freud (1917) num quadro de melancolia que termina
em suicídio, o mesmo recurso pode ser utilizado no sentido inverso. Qual seja o de
vislumbrar o sujeito que se avizinha, que é inundado por este nada, que realiza um
mesmo trabalho de escansão, mas para quem isto não é mortal. A questão que se
coloca é de se um encontro com o horror do real seria inapelavelmente letal. A
resposta a isto é negativa, pois há, por exemplo, a possibilidade de sucesso na
sublimação da pulsão de morte. Poderia-se pensar que por não haver representação
para a morte no inconsciente (1915) alguns sujeitos que por estarem desavisados
dos perigos de uma aproximação demasiada com o real terminariam por encontrar o
138
suicídio de modo trágico, mas casual. Algo semelhante é recusado de modo
contundente por Alberti (1999), porque tal hipótese desconsidera por completo os
efeitos da pulsão de morte sobre o sujeito.
No texto “Os arruinados pelo êxito”, Freud (1914) afirma que o sentimento de
culpa impede o sujeito de se comprazer com um sucesso longamente almejado e
que a origem deste sentimento é relacionada à experiência edípica. O melancólico
poderia bem se encaixar neste caso, pois além de não identificar o que perdeu sente
que é sua responsabilidade, sua culpa, que o Outro não o tenha desejado.
Toda esta discussão poderá auxiliar a compreender porque alguns sujeitos
se aproximam em demasia da possibilidade da morte, tal qual Freud (1896) e
Durkheim (1897) apontam, feita a ressalva de que o fazem restritos a seus
respectivos campos teóricos. Freud aponta esta questão ao discutir sobre os atos
falhos que explicitam um desejo inconsciente de autopunição e Durkheim em um
dos poucos momentos em que considera a questão de uma certa particularidade no
individuo que o encaminha ao encontro da corrente suicidógena. Talvez os conceitos
de passagem ao ato e acting-out possam se articular ao de masoquismo moral e
melancolia, e disto se extraia um novo saber sobre o ato suicida. Mas, antes, é
interessante recolher uma outra experiência literária que possa servir de contraponto
ao que Sylvia Plath proporcionou.
Entre os muitos escritores que poderiam aqui comparecer, escolheu-se
Manoel de Barros
25
. Como Barros (2003) afirma, o seu escrito se imiscui em meio
aos trastes para escovar palavras, como os arqueólogos escovam ossos, e
encontrar as coisas “desimportantes” de que se ocupa. Em sua poesia não
25
Manoel de Barros: poeta nascido em Cuiabá/MT é, além de poeta, advogado e fazendeiro. Mora
em Campo Grande/MS.
139
receio do desconhecimento; ao contrário, avisa que “aonde eu não estou as palavras
me acham”:
Sou um sujeito desacontecido
Rolando borra abaixo como bosta de cobra.
Fui relatado no capítulo da borra.
Em aba de chapéu velho só nasce flor taciturna.
Tudo é noite no meu canto.
(tinha a voz encostada no escuro. Falava putamente)
Estou sem eternidades.
Não tenho mais cupidez.
Ando cheio de lodo pelas juntas como os velhos navios naufragados.
Não sirvo mais pra pessoa.
Sou uma ruína concupiscente.
Crescem urtigas sobre meus ombros.
Nascem goteiras por todo canto.
Entram morcegos aranhas ganfanhotos na minha alma.
Nos lepramentos dos rebocos dorme baratas torvas.
Falo sem alarmes.
Meu olhar tem odor de extinção.
Tenho abandonos por dentro e por fora.
Meu desnome é Antônio Ninguém.
Eu pareço com nada parecido. (BARROS, 2004, p.79).
A partir dos dois textos é possível analisar se aparecem na escrita de
Manoel de Barros os mesmos traços da escrita de Plath, que são considerados
indicadores de algo que a destinava ao suicídio. Também em Barros (2004) aparece
uma perda cujo objeto é inapreensível, bem como a identificação errante por aquilo
que possa ser de menor-valia. Uma tentativa de gozar menos? A ausência do olhar
desejante do Outro é dita: ele é um “antonio ninguém” (BARROS, 2004, p.79), um
nome sem sobrenome diz de um sujeito que não sabe de onde veio, é sem filiação,
não foi reconhecido pelo Outro. A auto-recriminação melancólica também está na
escrita do poeta: “não sirvo mais pra pessoa, flor taciturna em cujos ombros crescem
urtigas, uma ruína concupiscente sem eternidades” (BARROS, 2004, p.79). Em
Carvalho (2003) encontramos o melancólico se defendendo de um novo
desfalecimento do Outro cuja responsabilidade ele sente que sempre foi a sua.
Ainda sem saber por qual motivo foi rechaçado, ignorado do desejo deste Outro, fica
140
registrado o desamparo absoluto em que se percebe. Por exemplo, na fala de
Manoel quando este diz que tem “abandonos por dentro e por fora”. Os limites do eu
se mostram fluidos também no poeta Manoel de Barros (2002) que é “desbravado
pela poesia e alinhavado com águas.”
Em ambos, Sylvia Plath e Manoel de Barros
26
, observa-se a busca por uma
escrita que tenha efeito de soerguer o que o desmoronamento do desejo do Outro
provocou. Tentativas de dar forma ao vazio e de escapar do destino do “homem
[que] tinha sido escolhido, desde criança, para ser ninguém e nem nunca (...) de
modo que se fechou esse homem: na pedra: como ostra: frase por frase, ferida por
ferida, musgo por musgo” (BARROS, 2002, p. 17). O objeto com o qual o
melancólico está identificado não cumpre os requisitos de ser agalma. pode ser
objeto não amável, rebotalho em uma existência nua, desmascarada, na pulsão. Daí
o despudor com que o sujeito se denuncia ao Outro, ele é uma “ruína
concupiscente”. (BARROS, 2004, p.79).
Os mesmos traços indicadores de uma escrita melancólica em Plath e
Barros indicam em ambos uma incursão excessiva pelos meandros da pulsão de
morte. No entanto, a escrita em Manoel de Barros parece servir de limite a uma
expansão desmesurada da pulsão de morte que habita o seu texto, apontando que
não é inapelavelmente letal o encontro com o horror do real, que não é possível
saber a priori os efeitos que isto provocará no sujeito. A psicanálise, longe de
estabelecer determinismos a qualquer sujeito, pressupõe e defende a possibilidade
do recomeço a partir de qualquer ponto. O sujeito poderá retomar um percurso onde
26
A discussão sobre os processos de criação a partir da sublimação poderia ser aqui aventada,
inclusive para justificar porque um autor obtém maior sucesso do que outro em cernir a pulsão de
morte através da escrita. É em torno do conceito de sublimação que Carvalho (2003) analisa a vida e
a obra de Sylvia Plath. No entanto, como a sublimação não é sinônima de dissolução do sofrimento
que o contato com o real gera, as questões em torno dos traços de melancolia se mantêm como
principais nesta discussão.
141
a pulsão de vida seja mais pujante
,
inclusive na produção de um sintoma que lhe
traga um gozo de punição em cujo bojo se dê a satisfação do sentimento
inconsciente de culpa que impinge o masoquista a transformar o sofrimento em seu
bem mais precioso.
Sobre esta posição masoquista Freud (1924) aponta que é possível o
142
se matar, torna ainda mais enigmática a idéia de Durkheim de uma aproximação
excessiva da corrente suicidógena, pois afinal qual seria o limite para esta incursão?
A resposta que a psicanálise fornece é a de que não há recursos teóricos suficientes
para estabelecer tais limites. O sujeito sempre faz uma aposta e os efeitos disto são
imprevisíveis.
No caso de Raskolnikof, ele comete um crime que o submerge em tal
sofrimento que o leitor não consegue desvendar até a última página quais os rumos
que o personagem conseguirá dar a tal situação. Após fracassar vergonhosamente
na construção de um futuro promissor com o qual socorreria a mãe e a irmã pobres,
assassina uma senhora idosa para lhe roubar alguns poucos pertences. Após o ato
assassino ele é acolhido por Sônia, uma moça pobre, virtuosa, embora prostituta,
que lhe serve de sustentáculo para que ele consiga se haver com as suas culpas. A
cena em que ele conta para ela que é o assassino que todos buscam é
especialmente esclarecedora de um encontro fortuito e feliz entre dois masoquistas
morais, e de como o sofrimento pode vir a impedir o ato suicida em vez de produzi-
lo.
Durkheim (1897), aliás, comenta que o sofrimento possui mesmo este efeito.
Em seus dados estatísticos observa que é entre os mais abastados e “felizes” que o
suicídio aparece de forma mais recorrrente. Nos países mais prósperos e civilizados
é que as taxas da morte voluntária são mais altas. Neste exemplo literário a cena
recortada é esta:
_ [...] Então queres que eu para a Sibéria, Sônia? Preciso denunciar-me,
não é? Perguntou sombrio.
- É preciso que aceites a expiação, e que te regeneres por meio dela.
- Não, não o farei jamais!
- E viver? Como viverás? Replicou ela com força. É possível agora? Como
poderás suportar o olhar de tua mãe? Oh! O que será delas agora? Mas o
que digo eu? abandonaste tua mãe e tua irmã. Por isto é que quebraste
143
os laços de família! Oh, Senhor! Exclamou: Ele próprio compreendeu
tudo! E agora, como ficarás da humanidade? Que há de ser de ti? (...)
Um sorriso orgulhoso apareceu-lhe nos lábios.
- carregar este fardo! E por toda a vida; toda a vida! (DOSTOIEVSKI, 1996,
p. 254).
Os resultados da conversa o sabidos pelos leitores. É assim plenamente
garantido o sofrimento de que os personagens se sentem merecedores. É o supereu
o ordenador da ordem implacável: GOZA!. Nada a mais, a não ser o supereu,
manifesto no sentimento de culpa inconsciente, que os impele a isto. Sobre este
império da instância superegóica no encontro do sujeito com o gozo, Lacan (1972)
permite entender que é na submissão à ordem tirânica que o sujeito encontrará a
contenção do seu gozo. Com isto, a ameaça de ser engolido pelo gozo pleno e
ilimitado é afastada, talvez temporariamente. Nada garante que este gozo limitado
não se faça também letal. É o que sugerem os conceitos de passagem ao ato e de
acting-out que dentro em breve serão discutidos.
Foi dito que entre os três tipos de masoquismo, o masoquismo moral é o que
possui vínculos mais frouxos com a sexualidade, ainda que estes não estejam
rompidos. O efeito disto é que não necessidade de o sofrimento advir de uma
pessoa amada pelo sujeito masoquista, mas ainda assim este tipo de organização
psíquica carrega em seu bojo algo de uma mescla entre a pulsão de morte e a libido.
Daí o encontro amoroso entre os personagens acima ser tão promissor a ambos. O
sentimento inconsciente de culpa que o sujeito traz em si é referente ao desejo que
sente em relação ao par parental. Desejo este pelo qual deve ser castigado. Esta
necessidade de castigo coloca o masoquista no “contra-senso de trabalhar contra o
seu próprio benefício de destruir as chances que se abrem para ele no mundo real e
eventualmente de aniquilar sua própria existência real”. (FREUD, 1924, p. 133).
144
Se Raskolnikof e Sônia não chegam ao suicídio, também não se descolam
do sofrimento onde gozam o castigo do crime cometido. Isto não traria maiores
reflexões, pois o assassinato cometido parece justificar o sentimento de culpa que
os personagens apresentam. Entretanto, não se pode esquecer que Freud (1896 e
1901) alerta sobre os mecanismos onde um desejo inconsciente de autopunição
pode se conjugar a uma situação da realidade objetiva de modo que o sujeito
obtenha da vida, ou da morte, a justificativa plausível para a sua mortificação.
Segundo a teoria psicanalítica isto se manifesta desde atos corriqueiros, em que o
sujeito sofre pequenas dores, até o ato suicida em si, seja ele consciente ou não.
Durkheim (1893/1999, 1895/1999, 1897/2000), na medida em que exclui de
discussões o do indivíduo, não pode oferece referências sobre o assunto. O máximo
que se pode obter de sua teoria é que o sujeito se aproxima excessivamente da
corrente suicidógena e que a manifestação da sua realidade psíquica abissal é
motivo de um sofrimento atroz. Entretanto, não considera da alçada da sociologia
ampliar esta discussão. Teria sido interessante, que o ato suicida esteve como
uma possibilidade real ao longo de todo o livro, ler os comentários de Durkheim
(1897) para realizar aqui um confronto entre as suas hipóteses e as da psicanálise.
Se Durkheim (1897/2000) restringe a análise do suicídio ao fenômeno
sociológico é por entender que apenas o que de universal no fenômeno do
suicídio é relevante para a sua compreensão. Ou, ainda, que se algo que diga
respeito ao indivíduo, isto não está na alçada da sociologia. A psicanálise,
entretanto, entende que o que de mais singular no sujeito é também o mais
universal e o conceito de ato, nas modalidades de acting-out e de passagem ao ato,
oferece oportunidades de se perguntar sobre o suicídio tanto no seu aspecto de uma
145
escolha absolutamente singular ao sujeito quanto de sua inserção na universalidade
humana.
Na passagem ao ato se coloca como enigma ao Outro, o sujeito é
arremessado no real, isto é, para fora do encadeamento semiótico, de toda
representação possível, e a ausência de substância ou de qualidade do sujeito é
experenciada em sua forma nua. Uma tentativa em Sylvia Plath de dizer disto é:
Estase no escuro
E um fluir azul sem substância
De penhascos e distâncias.
(PLATH in CARVALHO, 2003, p. 198).
no acting-out o sujeito transforma a cena em palco para uma mostração
de sua relação específica com algo que é para ele um objeto pequeno a. O acting-
out propicia ao sujeito um encontro com aquilo que vem realizar o desejo de obter,
ou mostrar que obteve, o falo que ele sabe não possuir. O que o sujeito quer é se
mostrar de outro modo, como um outro e na intenção de velar a ficção deste objeto
pequeno a ele termina por deixá-la ainda mais visível. Há uma petrificação no campo
da ficção do sujeito no que ele concebe como sendo o Outro, e ele sabe muito bem
o que há aí.
Lacan (1963) identifica um posicionamento distinto do sujeito em relação ao
objeto pequeno a e ao Outro na distinção entre o que é a passagem ao ato e o
acting-out. Segundo ele, a marca da passagem ao ato é um “deixar cair” tal como
extraído por Freud (1920) da tentativa de suicídio da Jovem Homossexual. O que
aparece neste deixar “cair” é a defenestração do campo da cena para o da
construção do sujeito por ele mesmo, ou seja, para o campo que possui estrutura de
ficção, no fantasma de cada um.
146
Sonia Alberti (1999) extrai da obra freudiana os usos da palavra ato e
localiza uma lógica no uso de cinco termos para se referir ao ato. Estes termos o:
aktion, handlung, akt, tat e agieren. (Apêndice B).
O que aparece da reunião destes conceitos psicanalíticos aqui trazidos é
que, na relação do sujeito com o Outro e com o objeto pequeno a que resta da
operação de barra ao gozo –, duas possibilidades de ato como modo do sujeito
se haver com o horror de se deparar com o real. Tanto a passagem ao ato quanto o
acting-out cumprem uma função a partir do objeto a em relação ao Outro: ou a de
produzir um corte ou a de realizar uma fusão. No primeiro caso, trata-se do rechaço
absoluto que o sujeito encarna na passagem ao ato; e no segundo a fusão com o
Outro é a tentativa de aparecer como alguém que alcançou alguma coisa daquilo
que lhe faltava.
O conceito de ato permite aproximar e estabelecer zonas de intercessão entre
os conceitos de masoquismo moral, pulsão de morte, melancolia e o de gozo.
Isolados, estes conceitos permanecem explicando apenas o encontro e a
permanência do sujeito com o sofrimento como recurso para um namoro com o
prazer. Mas não elucidam como o sujeito se mata ao atravessar e subverter o
adiamento que a pulsão de vida submete a pulsão de morte. A pulsão de vida
sustenta a permanência da cadeia significante. Ela se coloca, assim, como uma
espécie de anteparo para o ato suicida. Nesta direção, Miller (1988) afirma não
haver surpresa que ao ideal racional o que se oponha seja o ato suicida. Entretanto,
isto não significa que se poderia concordar com a hipótese de uma espécie de
prevenção educativa para o ato suicida. Na medida em que ele se relaciona a uma
responsabilização do sujeito apenas no tratamento do sujeito do inconsciente é
que algo da ordem de uma certa prevenção poderia ocorrer.
147
O ideal racional, por apostar na continuidade entre o pensamento e a ação,
afirma que pode manter o controle social sobre alguma realidade do sujeito que não
coadunasse com os seus objetivos de felicidade, a partir de uma pedagogia
ortopédica. Tais pressupostos aparecem na aposta das políticas de prevenção ao
suicídio.
Contrapondo-se a isto, a psicanálise vem afirmar que este algo do sujeito em
desacordo com as intenções da cultura, a pulsão de morte, não é inofensivo, e sua
manifestação traz necessariamente um quê de destruição não avaliável
previamente, ou seja, não é apenas um retorno pacífico e passivo ao inanimado. O
sujeito não é regido por querer o seu próprio bem, e o que ele quer Freud (1929)
acredita não haver qualquer relação com o que a civilização está disposta a lhe
oferecer. no ato que o sujeito produz uma vontade de Outra-coisa. Segundo
Miller (1988), o ato em Lacan deve ser entendido como “aquele que aponta ao
coração do ser: o gozo. É o suicídio” (MILLER, 1988, p. 06). No ato suicida a
oposição máxima à lógica ingênua da confluência entre o pensamento e a ação. O
suicídio escancara a estrutura do ato, da passagem ao ato, pois nele se abandonou
por completo
27
o equívoco da palavra, a possibilidade do furo do simbólico. O sujeito
almeja o definitivo. A desaparição definitiva. Frente a isto Durkheim (1897/2000),
coerente ao sujeito com o qual escolhe trabalhar para pensar o suicídio, pareia a sua
proposta à da lógica científica e aposta na possibilidade de os mecanismos sociais
manterem o poder de coerção da norma social sobre a realidade psíquica do sujeito.
No entanto, é levado a se defrontar com algo que escapa a esta pedagogia social,
que é o indivíduo social-individual. Adviria daí a necessidade do suicídio, entre os
outros crimes, pois permite o ritual onde é reafirmado o poder de coerção da norma.
27
Completo = não falho. Ato não falho, exitoso é como Lacan o definiu em Televisão.
148
A explicação para tal ambigüidade teórica talvez possa ser explicada pela
psicanálise, já que aposta em um saber que não se sabe, mas que aparece, que não
cessa de não se escrever.
Como se pode perceber, ao endereçar-se à questão da passagem ao ato um
pouco mais se pôde caminhar na questão do suicídio, pois permite estabelecer
campos de sobreposição e intercessão na subjetividade do sujeito, onde o ato
suicida pode vir a ocorrer. A passagem ao ato e o acting-out são possibilidades a
todo sujeito, e não apenas a poetas melancólicos ou aqueles que apresentem traços
fortes de masoquismo moral.
Foi dito que tanto a passagem ao ato quanto o acting-out são efeitos de um
certo posicionamento do sujeito frente ao Outro e ao objeto pequeno a. Isto permite
dizer que o suicídio é um desdobramento mortífero de uma localização do sujeito no
engendramento de seu laço social. Não é social o fato de o sujeito está referido ao
Outro em uma relação de alienação ou de corte? Isto significa que o ato suicida não
pode ser retirado de um modo de funcionamento da cultura, pois não é sem efeito
sobre o sujeito a possibilidade discursiva histórica de existência deste Outro. Se uma
discussão sobre o suicídio tem como referência os hindus, os gregos da
Antiguidade, os índios brasileiros, os primeiros cristãos ou a sociedade capitalista
atual, que se considerar esta forma histórica que o Outro tomará para estes
sujeitos. Se, portanto, na atualidade, o suicídio se constitui um fenômeno social
importante, é relevante que uma investigação considere o modo como o Outro pode
aparecer aos sujeitos. Daí ter sido incluído neste texto uma discussão sobre os
modos de gozo no Discurso Capitalista e a lógica de quantificação no tratamento
social contemporâneo ao ato suicida. Se o Discurso Capitalista foraclui o sujeito,
149
medidas de tratamento que coadunam com isto bem pouco poderão fazer, caso não
agrave o caso.
As discussões sobre o suicídio na psicanálise, portanto, possuem motivos e
recursos para estender as suas investigações ao campo social.
Pensar o suicídio como um elemento de coesão social, tal qual Durkheim
(1897/2000) propõe exige compreendê-lo a partir o do sujeito que se mata, pois
150
o sujeito seria capturado à sua revelia, ou, para solucionar isto, seria preciso
considerar que sujeitos suicidas em sua estrutura. Nem uma solução nem outra
são plausíveis para a psicanálise. Entretanto, caso seja possível utilizar o conceito
de ato, tal como é trabalhado na teoria psicanalítica, para analisar o conceito de
corrente suicidógena de Durkheim, poder-se-ia tornar mais clara esta idéia de uma
cota de morte voluntária em toda sociedade e da função que isto desempenha na
harmonia social. O efeito original desta interlocução é que com o conceito de ato os
dois obstáculos poderiam ser superados: nem o sujeito seria capturado à sua revelia
e nem possuiria em si algo que o impelisse, desde sempre, ao suicídio.
Tanto a passagem ao ato quanto o acting-out são possíveis a qualquer
sujeito, e isto quer dizer que todos estariam de um mesmo modo suscetíveis de
serem capturados na rede mortífera. No ato este “qualquer um” não é mais “um
qualquer” em relação ao que seria um ponto em que, ao mesmo tempo, tanto a
vitalidade da sociedade se esvai nas diversas formas de manifestação do mal-estar
quanto sustenta um esforço de fortalecer o laço social.
Mas a passagem ao ato e o acting-out são atos falhos e Lacan (1974), ao
comentar sobre o suicídio
29
, ao contrário, chega a defini-lo como “o único ato capaz
de ter êxito sem qualquer falha. Se ninguém sabe nada disto, é por partir da
prevenção de nada saber” (LACAN, 1974, p. 541). Segundo Miller (1988) o suicídio
é um ato limite, pois nele irrompe algo do inconsciente. Isto faria dele um ato falho
lançando o sujeito para fora da cena ou Outrificando-o. Mas, ao fazê-lo, o permite
um a posteriori. O sujeito não retorna deste ato – falho. A passagem feita é definitiva
e o ato torna-se não falho. O dito que poderia ter havido é o outro que deverá
29
Em uma entrevista à rede de tv francesa que mais tarde foi publicada sob o título Televisão.
151
extraí-lo, “será o morto, quem mirará aos outros e lhes delineará sua pergunta, e
lhes fará sentir o porquê de seu olhar”. (MILLER, 1988, p.7).
Foi dito que o suicídio acontece em uma passagem ao ato ou em um acting-
out bem sucedido, e em ambos não se escapa do que abruptamente emerge: o
sujeito é lançado no real. Isto parece bem distinto dos atentados terroristas que têm
se tornado cada vez mais recorrentes na atualidade. Mas não se deve esquecer que
Freud (1901) analisa que mesmo os suicídios premeditados, mesmo as situações
políticas de um suicídio, não estão isentas de terem sido escolhidas por um desejo
inconsciente de um sujeito que se aliou a esta, enxergando uma oportunidade
preciosa para a sua manifestação. Em 1921 a idéia de um poderoso laço libidinal
entre os integrantes de um grupo entre si e com o seu líder viabiliza uma discussão
sobre os atos terroristas que têm no suicídio, individual ou coletivo, o principal
armamento.
De acordo com Arturo Roldán (1996), sustentado pelo texto Psicologia das
massas (1921) e pela teoria lacaniana, é a comunhão de um mesmo ideal que
estabelece um mesmo gozo e uma mesma forma de gozar entre sujeitos. O amor ao
pai, ao Outro real, que instaura o laço social, pode terminar por estabelecer uma
epidemia onde o desejo do sujeito é apagado e o impossível fica escamoteado em
uma restituição de sentido que tenta remendar o furo do Outro. Os atentados
terroristas suicidas resultam da potencialização do sacrifício exigido aos irmãos
como prova do amor ao pai, da honra devida ao Nome-do-Pai. Roldán (1996)
comenta:
Foi possível ver na televisão uma mãe orgulhosa pelo martírio de seu filho,
mais que orgulho, já que rezou para que seu filho fosse um mártir. E aqui
que escrever o óbvio, o gozo da mãe não deixa indiferente o filho.Esta
forma de entender a auto-imolação cujas coordenadas são o amor ao pai, e
o sacrifício como um gozo para serem dignos do amor não esgota todas as
152
considerações possíveis que a psicanálise pode realizar sobre Deus.
(ROLDÁN, 1996, p. 8).
A teoria durkheimiana classificaria este tipo de suicídio como altruísta
facultativo. O sujeito se sente comprometido com os valores de seu grupo a ponto
de não perceber sentido em existir dele descolado. Tanto para ele quanto para o seu
grupo morrer em nome da sua verdade é algo louvável, oferece àquele que se
sacrifica um lugar de destaque e garante recompensas na vida após a morte. O que
se sucede após o ato fica como um tempo de reencontro com os antepassados
frente a quem é preciso se mostrar valoroso.
Tanto em Durkheim quanto para a psicanálise o acaso não é colocado como
possível explicação para o terrorismo suicida e, principalmente, porque foi este o
sujeito e não outro que se matou em nome de uma causa. Mais uma vez, se forem
escusadas as limitações oficiais entre os campos epistemológicos, parece haver
alguns pontos em comum entre a leitura psicanalítica e a durkheimiana. em
ambas a noção de que é por um laço afetivo levado ás últimas conseqüências que o
sujeito se auto-imola. Na sociologia nomeia-se isto como uma grande influência da
consciência coletiva sobre o indivíduo e, além disto, o fato de que foi este sujeito
quem se aproximou mais do que o devido da corrente suicidógena. Na psicanálise
entende-se que este laço é o da identificação ao líder que visa tamponar a falta do
Outro e que o sujeito não é fisgado ao acaso por este tipo de identificação;
mecanismos como o masoquismo moral, a melancolia, o gozo, a inexistência da
morte no inconsciente, passagem ao ato e acting-out se articularão em um jogo
mortífero e produzirão as condições necessárias para que, tanto no campo do
particular quanto no campo do universal, o ato suicida seja engendrado.
É possível fazer um uso livre dos fragmentos literários utilizados neste
capítulo e dizer que alguns sujeitos ao “não servirem pra pessoa e se descobrirem
153
ruína concupiscente” (BARROS, 2004, p. 79) têm pelo menos duas possibilidades:
se sentirem regozijosos por encontrarem um sacrifício que lhes exija “carregar este
fardo! E por toda a vida; toda a vida!” (DOSTOIEVSKI, 1996, p. 254); ou se lançarem
desta cena que lhes é insuportável, procurando dar alguma consistência ao “fluir
azul de penhascos e distâncias” e construindo no “jorro de sangue o amor” (PLATH
in CARVALHO, 2003).
Pensa-se que o caminho percorrido até aqui foi suficiente para algumas
conclusões, ainda que não se tenha esgotado a discussão possível. Neste capítulo
foram rompidas algumas barreiras que diziam respeito às questões sobre a
impossibilidade de uma interlocução entre a sociologia de Durkheim e a psicanálise;
sobre a imbricação entre o laço social e pulsão de morte e, por último, sobre uma
escuta do ato suicida a partir da psicanálise.
O objetivo foi dar visibilidade aos conceitos que permitem especificar o ato
suicida no campo do singular e do universal. Na medida em que se trata de um
sujeito o legítimo proprietário de sua passagem ao ato, ou de seu acting-out, é do
singular que se trata no suicídio. Mas, por outro lado, na medida em que a
passagem ao ato, ou ainda o acting-out, são desdobramentos das maneiras como
este sujeito se relaciona com o Outro e o objeto pequeno a, isto implica na
localização do ato suicida também no campo do universal.
Durkheim foi convocado, que o propósito maior é de analisar uma possível
interlocução entre o seu conceito de corrente suicidógena e as manifestações da
pulsão de morte. Buscou-se também levantar os desdobramentos não apenas para
um ou outro campo de saber, mas no que tange à ampliação do saber sobre o ato
suicida. Quanto ao conceito de corrente suicidógena, não se sustenta a recusa em
questionar uma interlocução entre esta e a circulação de gozo.
154
É hora de concluir e apresentar as considerações finais sobre o encontro
proposto nesta pesquisa entre Durkheim e a psicanálise. É o do que se trata neste
capítulo 5, denominado Conclusão.
155
5 ALINHAVAR UMA CONCLUSÃO: O QUE FOI POSSÍVEL AAQUI
Propor uma pesquisa sobre o suicídio na psicanálise que tivesse como
objeto de estudo um conceito da sociologia é uma tarefa árdua e desafiadora.
O primeiro obstáculo foi avaliar a pertinência epistemológica de uma
pergunta que coloca em questão alguns pressupostos teóricos tidos como
acertados. Mas este não foi o único; outros apareceram:
que o sujeito da ciência é distinto do da psicanálise,
que os recursos metodológicos da sociologia (a estatística, por exemplo) não
cabem no trabalho do caso a caso da psicanálise,
que o suicídio enquanto fenômeno social não interessa à psicanálise,
que muitos tomaram Durkheim como objeto de estudo e que sua teoria
não tem hoje o mesmo peso,
que uma pesquisa em psicanálise pode partir da clínica e que isto
inviabiliza uma investigação sobre o suicídio no campo social,
que se a psicanálise trabalha com o sujeito particular então é impossível um
trabalho sobre o suicídio – pelo óbvio: o suicida está morto, não fala.
Cada um destes obstáculos teve de ser enfrentado.
Quanto à questão de os sujeitos da sociologia e da psicanálise serem
distintos, pôde-se responder que na teoria lacaniana a extração de um sujeito no
homem da ciência que é o sujeito do cogito cartesiano, e que este é análogo ao
sujeito do inconsciente. Então é admissível uma interlocução entre os sujeitos da
ciência e da psicanálise. Mas Durkheim desenvolveu uma concepção própria de
indivíduo e foi necessário analisar se ainda assim era possível estabelecer uma
156
ponte deste, tanto com o sujeito da ciência quanto com o da psicanálise. Observou-
se que Durkheim identifica no seu indivíduo uma realidade psíquica que não cabe no
homem da ciência, mas que o aproxima do sujeito que ex-siste na psicanálise. Este
sujeito da sociologia é um sujeito abissal que precisa ser contido pela norma social,
e o transbordamento deste real sem fundo é ameaçador tanto ao sujeito quanto à
sociedade.
Acontece que é a descoberta de um sujeito com as mesmas características
que marca o surgimento da psicanálise, mas, ao contrário de Durkheim, que exclui
este real do seu campo de investigação, Freud aponta no para-além o axioma de
seu saber.
Um outro ponto importante precisava ser considerado na sustentação da
pergunta desta pesquisa: o modo como cada campo lida com a verdade e o saber.
De fato, eles se mostraram divergentes. Mas a possibilidade de uma interlocução é
proposta pela psicanálise exatamente no ponto de convergência dos sujeitos entre
uma e outra.
O suicídio enquanto fenômeno sociológico não traz um primeiro interesse à
psicanálise, pois esta teria como objeto somente o ato suicida, na singularidade de
cada sujeito que se mata. Entretanto, a psicanálise aponta que o que de mais
singular no sujeito é também o que de mais universal. Além disto, entre os
conceitos fundamentais com os quais o suicídio é analisado na psicanálise está o
conceito de ato, passagem ao ato e acting-out, que faz referência à relação que o
sujeito mantém com o Outro e com o objeto pequeno a. Ou seja, o ato suicida na
psicanálise está inserido como uma questão do laço social, pois ele é trabalhado
como um desdobramento de um posicionamento específico no laço social.
157
Deste modo os obstáculos a investigar se o conceito de corrente
suicidógena poderia se assemelhar a alguma forma de manifestação da pulsão de
morte na cultura, ou circulação de gozo na cultura, se mostraram suficientes para
que algumas questões preliminares fossem percorridas.
A conclusão de que é possível aproximar o sujeito de Durkheim, no seu
individuo social-individual, do sujeito da psicanálise, e de que tanto em uma teoria
quanto na outra o laço social é percebido como inextricavelmente entrançado a algo
mortífero em Durkheim nomeado como corrente pessimista e na psicanálise como
pulsão de morte, ou gozo por si abre um novo campo de discussão sobre o
suicídio.
A relevância desta conclusão aparece na possibilidade de ser admissível
utilizar a ética da psicanálise para escutar a hipótese durkheimiana da necessidade
de existir uma cota de sacrifício voluntária em toda sociedade na sua radicalidade e
levar às últimas conseqüências tal idéia. Pensa-se que a psicanálise, que por
disjuntar os interesses da civilização e os do sujeito, pode oferecer condições para
levar adiante a proposta de Durkheim.
O conceito de ato nas suas faces de passagem ao ato e acting-out
158
que o tratamento social ortopédico e educativo a esta questão obtenha completo
sucesso.
Quanto à pergunta fundamental desta pesquisa, se a corrente suicidógena
poderia ser assemelhada à um tipo de manifestação da pulsão de morte na cultura,
não foi possível respondê-la de modo direto.
Também não foi possível responder a partir da psicanálise se a função
social apontada por Durkheim para o suicídio, qual seja a de restabelecer o laço
social, pode ser considerada como pertinente. Para Durkheim é esta função social
que torna o suicídio um fenômeno necessário a toda cultura. Para a psicanálise é a
realidade da pulsão de morte no sujeito e no laço social que torna impraticável
imaginar que acontecimentos tais como o suicídio, e outros, venham a desaparecer
um dia. Mas não na psicanálise a idéia de que a própria pulsão de morte, ou
gozo, e suas manifestações tenham uma função e por isto não possam ser extintas.
Conclui-se que novas investigações sobre o ato suicida articulando os dois
campos de saber possam lançar novas luzes sobre a questão. O que resta como
tema para um momento posterior de trabalho, posto que na presente investigação foi
possível obter maior clareza sobre o entorno desta que era a pergunta central.
Conclui-se, finalmente, que, é possível afirmar a existência de uma
interlocução entre a sociologia de Durkheim e a psicanálise e que isto seja uma
contribuição interessante aos que têm se debruçado sobre a questão de por que
alguns sujeitos, e não se sabe quem a priori, no encontro com o horror do real
“deixam-se cair” ou então “deixam cair” o ponto a partir do qual poderiam recomeçar.
159
REFERÊNCIAS
ALBERTI, Sonia. Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Rios ambiciosos, 1999.
ALBERTI, Sonia. O Discurso Capitalista e o Mal-estar na cultura. Le Etats
generaux de la Psycanalyses. 2001. Disponível em:
<http://www.etatsgeneraux-psychanalyse.net/mag/archives/paris2000/texte210.html>
ALVAREZ, Adolfo. O Deus selvagem - um estudo do suicídio. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
ARIÉS, Philippe. Sobre a História da morte no Ocidente desde a Idade Média.
Lisboa: Teorema, 1989.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. (Tradução de Pietro Nasseti). São Paulo,
Martins Claret, 2001.
ARREGUY, Marilia E. e GARCIA, Claudia A. Algumas aproximações entre o
ciúme, a melancolia e o masoquismo. Belo Horizonte Psicologia em Revista, vol.
8, n 11, jun. 2002.
BARROS, Manoel de. Arranjos para assobio. Rio de Janeiro: Record, 2002.
BARROS, Manoel de. O guardador das águas. Rio de Janeiro: Record , 2003.
BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 2004.
BRANDÃO, Alice Kolachinski. Psicopatologia: suicídio. Revista Sinergia, 5, Julho a
Dezembro de 2004. Disponível em <http://www.cefetsp.br/edu/sinergia/5indice.html>
BENNETI, A. Suicídio e Sinthome. Texto inédito in Aula proferida no dia 27 de Abril
de 2006 na PUC Minas.
BUSTAMANTE, Regina M. da Cunha. Violência e “terrorismo”: os circunceliões
na África romana. Campinas: (Boletim do CPA , nº. 11. jan./jun). 2001.
CARVALHO, Ana Cecília. A poética do suicídio em Sylvia Plaht. Belo Horizonte:
UFMG, 2003.
CASSORLA, R. M. S. O que é o suicídio. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2005.
DESCARTES. Meditações. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural,
1999.
DIAS, Gonçalves. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Agir, 1969.
DIAS, Maria das Graças L. V. sinthome. Rio de Janeiro: Àgora (vol. 9, n. 1,
jan/jun), 2006.
160
DIAS, Maria Luiza. Suicídio - Testemunhos do Adeus. São Paulo: Brasiliense, 1997.
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Crime e castigo. (Tradução de Luiz Cláudio de Castro) Rio
de Janeiro: Ediouro, 1996.
DURKHEIM, Emile - O Suicídio, Estudo de Sociologia. São Paulo: Ed. Martins
Fontes, 2000.
DURKHEIM, Emile. O suicídio – estudo sociológico. São Paulo: Ed. Martins
Fontes, 2000.
DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Ed. Martins Fontes,
1999.
ERTHAL, Regina Maria Carvalho. O suicídio Ticuna na região do Alto Solimões -
AM. Tese de Doutorado. Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde
Pública, 1998.
FEIJÓ, Marcelo. Entre a razão e a loucura. São Paulo: Lemos, 1998.
FERRARI, Ilka. Melancolia de Freud a Lacan, a dor de existir. Latin-American
Journal of Fundamental Psychopatology on Line, VI, 1, maio, 2006.
FERREIRA, Jackson André da Silva. Loucos e Pecadores: Suicídio na Bahia do
século XIX. Dissertação (Mestrado em História Social) Universidade Federal da
Bahia, 2004.
FIGUEIREDO A.C. e VIEIRA, M.A. Psicanálise e Ciência: uma questão de método.
In Psicanálise - pesquisa e universidade. BEIVIDAS, Waldir. Org. Rio de Janeiro.
Contra Capa Livraria, 2002.
FINK, Bruce. Ciência e psicanálise. In Para ler o Seminário 11 de Lacan, org.
FELDSTEIN, FINK B., JAANUS. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas uma arqueologia das ciências
humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1985
FRICHE, Maria Augusta. Topologia e Discurso. In Transfinitos a experiência da
Psicanálise. Org. GODOY, Heloisa Costa e JUSTO, Paula. Belo Horizonte:
Autêntica, 2004.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. (1929) Vol. XXI. Obras Completas. Rio de
Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. In Além do Princípio do Prazer,
Psicologia das massas e outros Trabalhos (1930). Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Espanca-se uma Criança. (1919) Obras Completas. Rio de
Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. O eu e o Isso. (1923) Vol. XIX. Obras Completas. Rio de Janeiro:
Ed. Imago, 1976.
161
FREUD, Sigmund. Observação de um caso grave de hemianestesia em um
homem histérico. (1886) Vol. I. Obras Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Esboço de Psicanálise. (1938) Vol. XXIII. Obras Completas. Rio
de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. O Problema Econômico do Masoquismo. (1924) Obras
Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Etiologia da Histeria. (1896) Vol. III. Obras Completas. Rio de
Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria. (1895) Vol. II. Obras Completas. Rio
de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa.
(1896) Vol. III. Obras Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Fragmento da análise de um caso de histeria. (1905) Vol. VII.
Obras Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso de neurose obsessiva. (1909) Vol. X.
Obras Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. A ocorrência em sonhos de material oriundo de contos de
fadas. (1913) Vol. XII. Obras Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Os sonhos no folclore. (1911) Vol. XII. Obras Completas. Rio de
Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. O estranho. (1919) Vol. XVII. Obras Completas. Rio de Janeiro:
Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Psicanálise e Telepatia. (1921) Vol. XVII. Obras Completas. Rio
de Janeiro: Ed. Imago, 1976
FREUD, Sigmund. Reflexões para Tempos de Guerra e Morte. (1915) Vol. XIV.
Obras Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. (1913-1914) Vol. XIII. Obras Completas. Rio de
Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. (1917) Vol. XIV. Obras Completas. Rio de
Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Moisés e o Monoteísmo. (1939) Vol. XXIII. Obras Completas.
Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Dostoievski e o Parricídio. (1928) Vol. XXI. Obras Completas.
Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
162
FREUD, Sigmund. Novas leituras introdutórias da Psicanálise. (1932) Vol. XXII.
Obras Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Esboço de Psicanálise. (1938) Vol. XXIII. Obras Completas. Rio
de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Os arruinados pelo êxito. (1914-1916) Vol. XIV. Obras
Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Psicopatologia da Vida cotidiana. (1901) Vol. VI. Obras
Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher.
(1920) Vol. XVIII. Obras Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e análise do eu. (1921) Vol. XVIII.
Obras Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Rascunho G. (1895) Vol. I. Obras Completas. Rio de Janeiro: Ed.
Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Recordar repetir e elaborar. (1914) Vol. XII. Obras Completas.
Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Conferência XXVI. A teoria da libido e do narcisismo. (1917)
Vol. XVI. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Conferência XXXV. (1932) Vol. XXII. Rio de Janeiro: Ed. Imago,
1976.
FREUD, Sigmund. Contribuições para uma discussão acerca do Suicídio. (1910)
Vol. XI. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.
GOETHE, J.W. Werther. São Paulo: Abril , 1971.
GUILLON, C. e BONNIEC, Y. Suicídio: modo de usar. São Paulo: Ed. EMW, 1984.
JAPIASSU, Hilton. Psicanálise - ciência ou contraciência? Rio de Janeiro: Imago,
1998.
LACAN, Jacques. Televisão. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1993.
LACAN, Jacques. Seminário 7: A Ética da Psicanálise. (1959-1960) Rio de
Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1997.
LACAN, Jacques. Seminário 17: O avesso da Psicanálise. (1970) Rio de Janeiro:
Ed. Jorge Zahar, 1992.
LACAN, Jacques. Conferência de Milão. Salamandra, 1972
LACAN, Jacques. Seminário 20: Mais, Ainda. (1972-1973) Rio de Janeiro: Ed.
Jorge Zahar, 1985.
163
LACAN, Jacques. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, Jacques. Seminário 11 - Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, Jacques. Seminário 2 - O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise. (1954-1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LAROUSSE, Dictionnaire Français Portugais. Par Fernando V. Peixoto. Paris:
Larousse, 1957.
LOPES, Fabio Henrique. O suicídio sem fronteiras: entre a razão e a desordem
mental. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Estadual de Campinas,
1998.
LOPES, Fabio Henrique. A experiência do suicídio: discursos médicos no Brasil,
1830 1900. Tese (Doutorado em História) Universidade Estadual de Campinas,
2003.
MAGALHÃES, Aloisio Fábio A sociologia de Durkheim e a problemática do
indivíduo. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) Universidade Federal de
Minas Gerais. Belo Horizonte, 2003.
MAGALHÃES, Carlos A. T. Crime, Sociologia e Políticas Públicas. Dissertação
(Mestrado em Ciências Sociais) Universidade Federal de Minas Gerais. Belo
Horizonte, 1996.
MARX, Karl. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006.
MILLER, J-Allan. Jacques Lacan: observaciones sobre su concepto de pasaje al
acto. Infortunios del acto analítico. Coleción Algoritmo. Buenos Aires: Atuel, 1993.
MILLER, J-Allan. Lacan elucidado Palestras no Brasil. Campo Freudiano no
Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
MILLER, J-Allan e MILNER Jean-Claude. Você quer mesmo ser avaliado?
Entrevistas sobre uma máquina de impostura. São Paulo: Manole, 2006.
MINOIS, Georges. História do Suicídio. Lisboa: Teorema, 1998.
MORGADO, Anastácio F. Epidemia de suicídio entre os Gurarani- Kaiwá:
indagando duas causas e avançando a hipótese do Recuo Impossível. Cadernos de
Saúde Pública, vol. 7, out/dez, 1991.
MOURA, Maria Cristina Martins. Os discursos e a direção do tratamento. In
Transfinitos a experiência da Psicanálise. Org. GODOY, Heloisa Costa e JUSTO,
Paula. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
NETO, Gustavo A. R. M. e MARTINEZ, Viviana C. V. Angústia e Sociedade na
obra de Freud. Psicologia em Estudo, vol. 7, n. 2, jul/dez, 2002.
164
OLIVEIRA, Cleane S. e NETO, Francisco Lotufo. Suicídio entre os povos
indígenas: um panorama estatístico brasileiro. Rev. Psiquiatria Clínica. Vol. 30,
2003.
PENNA, Lícia Mara Dias. Psicanálise e Universidade transmissão sem
clínica? Belo Horizonte: Autêntica (FUMEC), 2003.
PINGUET, Maurice. A morte voluntária no Japão. Tradução de Regina Abujamra
Machado. Rio de Janeiro, 1987.
RABINOVITCH, Diana. O Psicanalistaentre o Mestre e o Pedagogo (texto
reorganizado). Inédito Versão de Luis F. Silva e Couto, (s.d)
RABINOVITCH, Solal. A foraclusão, presos do lado de fora. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001.
ROLDÁN, Arturo. El sacrifício del suicida homicida. Freudiana No 17. Cataluña,
1996.
SAINT-JUST, Esprit de la Révolution et de la Constitution de France
Povos
primitivos
A morte não
existe como
fim, mas
apenas
como
mudança de
um estado
de vida para
outro. O
suicídio
deflagra um
processo de
vingança
onde o
inimigo será
levado a
morrer
também
e/ou
garante a
entrada no
paraíso
Grécia
Antiga
O suicídio é
percebido
como uma
saída
honrosa
para uma
situação
intolerável.
A questão
não é se a
pessoa
deve se
matar ou
não, mas
quais as
formas mais
dignas de
fazê-lo. A
questão do
suicídio é
esvaziada
de emoção
e discutida
de modo
racional
Império
Romano
O suicídio
não
inspirava
medo ou
repulsa. O
suicídio
racional era
um
corolário de
uma vida
digna. Não
havia
retaliações
jurídicas.
Os
escravos,
os militares
e os
criminosos
eram
proibidos de
suicidar,
pelo
prejuízo
econômico
que
causariam.
A morte era
algo banal,
motivo de
diversão
nas festas
públicas.
TIPOS DE ATO NA PSICANÁLISE
FONTE: Alberti (1999)
Tipo Causa Manifestação
Spezifische
aktion
Aumento de
excitação no
interior do
organismo
Uma ação específica que funciona a partir de uma descarga de energia e tem como objetivo transformar a
realidade para recompor o estado anterior de homeostase. Introduz uma ética, pois é uma resposta do sujeito ao
desejo da mãe. Aparece em meio ao desamparo total como ato fundante do ser.
Handlung Inauguração da
diferença entre o
desejo e a vontade
Exige armazenagem de energia e prorrogação da descarga motora. Tem sua raiz no Princípio do Prazer, mas é
graças ao Princípio de Realidade que pode ser efetuada.
Esta ação não é o ato, é uma tentativa do eu à escolha feita no aktion. O autor da ação é o sujeito da razão, por
isto ela não porta a verdade do sujeito, é preciso buscá-la em outro lugar.
Akt O não cessar de
não se inscrever
do gozo
Está ligado à relação sexual no início da teoria freudiana. Permite associar diretamente Freud e Lacan, na medida
em que se vincula à repetição, não apenas como algo antigo que insiste em aparecer, mas como algo que não pode
ser deixado para trás, transformando o ato de repetição em eternização do desejo.
Tat O não cessar de
não se inscrever
do gozo
A realidade como verdade, equivale ao pensamento, é o ato que cria o objeto de desejo, ato sem barra da cultura e
que não espera para se concretizar. Não se produz na repetição, ao contrário é ele que a funda. É o ato fundante
por excelência, que toca o irremediável, pode ser o equivalente ao ato-não falho que Lacan escolhe para definir o
suicídio.
Agieren A impotência de
dizer
É o ato que, quando ocorre na transferência, estabelece a mudança no sujeito por instalar a verdade em direção ao
“eu não sou”. Fora da transferência reinstala a alienação no sintoma. No momento em que ocorre o sujeito “não
está lá” e a única presença é a do Outro, é o acting-out lacaniano.
REFERÊNCIAS AO SUICÍDIO NA OBRA DE FREUD
Fonte: Obras Completas de Sigmund Freud - 1976
Vol. Ano Texto Capítulo
I 1886
Publicações pré-psicanalíticas e esboços
inéditos
Observação de um caso
grave de hemianestesia
em um homem histérico
II 1895 Estudos sobre a histeria Casos clínicos – caso 1
III 1896 Observações adicionais sobre as neuropsicoses
de defesa
A etiologia da histeria
VI 1901 Psicopatologia da Vida Cotidiana Cap. V: Lapsos da fala
VI 1901 Psicopatologia da Vida Cotidiana Cap. VIII: Equívocos na
ação
VII 1905 Fragmento da análise de um caso de histeria O quadro clínico
X 1909 Notas sobre um caso de neurose obsessiva Registro Original do
Caso
X 1909 Notas sobre um caso de neurose obsessiva Iniciação da natureza do
tratamento
XI 1910 Contribuições para uma discussão acerca do
suicídio
-
XII 1911 Os sonhos no folclore Simbolismo do pênis em
sonhos que ocorrem no
folclore
XII 1913 A ocorrência em sonhos de material oriundo de
contos de fadas
O tema dos três
escrínios
XIV 1917 Luto e Melancolia Todo o texto
XVI 1917 Conferências Introdutórias sobre Psicanálise Conferência XXVI A
teoria da libido e o
narcisismo
XVII 1919 O estranho -
XVII 1920 A psicogênese de um caso de homossexualismo -
XVII 1921 Psicanálise e Telepatia -
XIX 1923 O eu e o isso As relações dependentes
do ego
XXI 1928 Dostoievski e o parricídio -
XXII 1932 Novas leituras introdutórias da Psicanálise Conferência XXXV a
questão de uma
Weltanschauung
XXII 1933 Novas leituras introdutórias da Psicanálise Conferência XXX
sonhos e ocultismo
XXIII 1938 Esboço de Psicanálise A técnica da Psicanálise
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo