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parte do que fomos da nossa memória perdida, que deslizou nos intervalos da nossa mente.
Para Dionne Brand, esquecemos o nosso nome familiar, o lugar de origem e da memória
ancestral, porque não sabemos dizer precisamente de onde viemos. Não somos daqui, das
Américas, nem de lá, da África? Pertencemos a dois lugares, a duas almas. Vivemos no
“entre-lugar” da história (Santiago, 2000, p.9). Na verdade, não somos ainda o que desejamos
ser neste lugar de encruzilhadas. Quando muito, chegamos a descobrir o nome dos nossos
triavós. Mas não sabemos precisamente de que lugar da África vieram nossos ancestrais, seu
nome tribal ou a que povo pertenceram: “Nós não éramos do lugar onde vivíamos e não
conseguíamos lembrar de onde éramos ou quem éramos” (Brand, 2002, p. 5).
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Um povo sem memória não terá certamente o que esperar do presente, tampouco do
futuro. A literatura da diáspora deseja refazer esse retorno por uma porta de entrada e saída,
caldeando a sutura, o elo de ligação da memória perdida. Isso ao modo estético de um ferreiro
que caldeia
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o aço no ferro trincado, restaurando as trincaduras deste metal. A poesia negra
transita no campo de fundição da memória despedaçada, evocando imagens e lembranças da
história silenciada pela não-relembrança do lugar e do nome ancestral, esquecidos no entre-
mar a caminho do Novo Mundo. Fomos recriados neste “não-lugar” que é também o lugar de
fundação da Diáspora negra - um “lugar esvaziado de começos” (Brand, 2002, p. 5), território
de ressignificação da identidade cultural do africano e seus descendentes, onde é instalada
uma dupla relação “num campo de pertencimento ou não-pertencimento” (Idem) do ser e do
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Tradução nossa. “We were not from the place where we lived and we could not remember where we were from
or who we were” (Dionne Brand, idem, p. 5).
7 Do verbo caldear. Processo rudimentar utilizado pelos antigos ferreiros para fazer o ligamento de uma barra de
aço noutra de ferro, com o intuito de dar maior consistência à ponta de uma alavanca, picareta, ponteira ou outro
tipo de instrumento de escavação. Caldeia-se com areia grossa, lavada, limpa, tirada do leito dos rios ou riachos.
Faz-se uma cavidade na extremidade das barras de ferro ou de aço, introduzindo uma dentro da outra. Depois são
levadas ao fogo até atingir uma temperatura bastante elevada. Ambas são mergulhadas rapidamente num
recipiente com areia, ou seja, pulverizadas com areia, levada de volta ao fogo e malhadas na bigorna. Hoje, este
processo de ligamento alquímico é substituído pela solda elétrica dos metalúrgicos modernos, embora os
ferreiros das pequenas cidades do Nordeste e de outras regiões do Brasil ainda continuem preservando essa
antiga tradição. Por exemplo, Vitorino Ferreira, meu irmão, que vive em Floriano/PI, domina os dois processos:
o antigo e o moderno, ou seja, caldeia o ferro com areia e faz a solda elétrica.