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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
LINHA DE PESQUISA III
“...ARTE OU VANDALISMO? VOCÊ DECIDE...”
O que nos ensinam os grafismos urbanos sobre paz e violência
Leonete Cassol
São Leopoldo/RS - Brasil
2006
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Leonete Cassol
“...ARTE OU VANDALISMO? VOCÊ DECIDE...”
O que nos ensinam os grafismos urbanos sobre paz e violência
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Educação da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos – RS.
Linha de pesquisa III:
Currículo, Cultura e Sociedade
Orientadora:
Profª Drª Cecília Irene Osowski.
São Leopoldo/RS - Brasil
2006
PARA CONTINUAR RECEBENDO...
...AGRADEÇO
A vida tem se feito educadora e
tem me feito aprendiz de que só é possível agradecer quando se experimenta a necessidade de
receber.
Recebi muito, muito fui ajudada.
Muitas mãos “picharam” este desenho e na mistura de tintas se fizeram cor, brilho, crítica, silêncio,
parceria nas escolhas.
A todos, principalmente, a todas
, sem (o risco do esquecimento ao) citar nomes, meu sincero: MUITO
OBRIGADA!
No compromisso de cada ajuda, retomo, retorno sempre e me fortaleço para outras buscas.
RESUMO
Busco, na presente dissertação - “...Arte ou vandalismo? Você decide...” o que nos ensinam os
grafismos urbanos sobre paz e violência -, mostrar como as práticas culturais dos grafismos urbanos
fazem circular discursos em torno das noções paz e violência e como verdades são instituídas. Para a
análise descrevo os enunciados presentes em registros fotográficos realizados na cidade de Porto
Alegre (RS), durante o período de um ano.
Diante da materialidade de oitocentos textos culturais, elegi aqueles que me pareciam mais
significativos para a minha investigação. Compus quatro conjuntos de significados: sofrimentos e morte
diante do humano, conflitividade da presença das armas, multiplicidade de caminhos e ambivalência
das guerras. Organizei cada um destes conjuntos com quatro textos culturais onde percebia
recorrências enunciativas que os interligavam e que condensavam a conflitividade das noções paz e
violência imbricadas na dinâmica das experiências de vidas como acontecimentos contemporâneos.
Mostro que um consenso possível é o da transitoriedade e da pluralidade dos discursos e dos sentidos
atribuídos.
Procuro mostrar o enredo que paz e violência podem ter quando pensadas como projetos de
convivência num mundo que nos mergulha no jogo da linguagem e nos produz, fornecendo-nos
discursos que nos colocam diante de múltiplas possibilidades de posições com as quais podemos nos
identificar e rejeitar. Nesse jogo, paz e violência soam como projetos discursivos e como ferramentas
para se pensar uma pedagogia cultural agindo na construção de subjetividades através dos textos
culturais dos grafismos urbanos expostos na epiderme da cidade.
Palavras-chave:
Grafismos urbanos. Discurso. Paz. Violência. Pedagogia cultural.
ABSTRACT
Through this dissertation-“...Art or vandalism? You decide...”what the urban grafisms on “peace
and violence” teaches us-, i intend to show how the cultural practices of urban grafisms cause the
circulation of speeches around the notions “peace and violence”, and how truth is instituted. For this
analysis I describe the statements present in photographic registrations taken in the city of Porto Alegre
(RS), during the elapsed period of one year.
Before of the materiality of eight hundred cultural texts, i chose those that i thought were more
significant to my investigation. I composed four groups of significance: suffering and death in the
presence of human kind, conflict of the weapons presence, multiplicity of ways and ambivalence of
wars. I organized each one of these groups with four cultural texts where I could notice appeals that
interconnected them and that condensed the conflicts on the notion of peace and violence, put in
context with the dynamics of the experiences of live in the plurality of the speeches and the attributed
senses is possible to have a consensus.
I tried to plot that peace and violence can exist, as thought as coexistence projects about a
world, that dips us in the game of the language, supplying us with in the speeches that put us before
multiple possibilities that we can either identify or reject. In this game, peace and violence sound as
discursive projects and tools to think a cultural pedagogy, acting in the construction of subjectivities,
though the cultural texts of the urban grafisms, exposed in the epidermis of the city.
Word-key:
Urban Grafisms. Speech. Peace. Violence. Cultural Pedagogy.
SUMÁRIO
ÍNDICE DE TEXTOS CULTURAIS ........................................................................................................ 04
RESUMO ............................................................................................................................................... 05
ABSTRACT ............................................................................................................................................ 06
APRESENTAÇÃO .................................................................................................................................. 07
Parte I
RISCANDO UM POSSÍVEL DESENHO
Capítulo 1: Esboçando ........................................................................................................................ 14
1.1 Riscando uma trajetória de vida ...................................................................................................... 15
1.2 Conflitada por leituras na perspectiva pós-estruturalista ................................................................. 21
Capítulo 2: Procurando suportes ....................................................................................................... 27
2.1 Riscos e rabiscos sobre grafitagens e pichações ............................................................................ 29
2.2 Desenhando significações sobre grafismos urbanos ....................................................................... 35
2.3 Marcas tatuadas sobre o corpo da cidade ....................................................................................... 52
Parte II
CONTINUANDO RABISCOS
Capítulo 3: Dispondo tintas .............................................................................................................................. 59
3.1 Definindo cores conceituais ...........................................................................................................................
60
3.2 Tracejando sentidos sobre paz e violência .................................................................................................... 67
3.3 Delineando contornos metodológicos ............................................................................................................. 85
Capítulo 4: Ro(n)dando a cidade ........................................................................................................ 95
4.1 Ampliando o olhar através do ato de fotografar o olhar ................................................................... 96
4.2 Descaminhos da ronda ...................................................................................................................102
Parte III
PINTANDO SOBRE RISCOS E RABISCOS
Capítulo 5: Acentuando tonalidades e caminhos............................................................................ 113
5.1 Transitoriedade da investigação .................................................................................................... 114
5.2 Examinando discursos em torno de paz e de violência ................................................................. 123
Capítulo 6: Matizando ....................................................................................................................... 158
6.1 Enredando paz e violência na relação “nós” e “eles” ..................................................................... 159
6.2 Grafismos urbanos: uma pedagogia cultural?.................................................................................163
Para manter incertezas produtivas .......................................................................................................169
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 173
ÍNDICE DE TEXTOS CULTURAIS
Texto cultural 1 ....................................................................................................................................... 13
Texto cultural 2 ....................................................................................................................................... 38
Texto cultural 3 ....................................................................................................................................... 38
Texto cultural 4 ....................................................................................................................................... 40
Texto cultural 5 ....................................................................................................................................... 40
Texto cultural 6 ....................................................................................................................................... 50
Texto cultural 7 ....................................................................................................................................... 54
Texto cultural 8........................................................................................................................................ 58
Texto cultural 9 ....................................................................................................................................... 64
Texto cultural 10 ..................................................................................................................................... 72
Texto cultural 11 ..................................................................................................................................... 91
Texto cultural 12 ..................................................................................................................................... 91
Texto cultural 13 ..................................................................................................................................... 91
Texto cultural 14 ....................................................................................................................................108
Texto cultural 15 ....................................................................................................................................108
Texto cultural 16 ....................................................................................................................................112
Texto cultural 17 ....................................................................................................................................115
Texto cultural 18 ....................................................................................................................................115
Texto cultural 19 ................................................................................................................................... 115
Texto cultural 20 ................................................................................................................................... 115
Texto cultural 21 ................................................................................................................................... 118
Texto cultural 22 ................................................................................................................................... 120
Texto cultural 23 ................................................................................................................................... 125
Texto cultural 24 ................................................................................................................................... 127
Texto cultural 25 ................................................................................................................................... 128
Texto cultural 26 ................................................................................................................................... 130
Texto cultural 27 ................................................................................................................................... 132
Texto cultural 28 ................................................................................................................................... 134
Texto cultural 29 ................................................................................................................................... 136
Texto cultural 30 ................................................................................................................................... 138
Texto cultural 31 ................................................................................................................................... 141
Texto cultural 32 ................................................................................................................................... 143
Texto cultural 33 ................................................................................................................................... 145
Texto cultural 34 ................................................................................................................................... 147
Texto cultural 35 ................................................................................................................................... 149
Texto cultural 36 ................................................................................................................................... 152
Texto cultural 37 ................................................................................................................................... 153
Texto cultural 38 ................................................................................................................................... 156
Texto cultural 39 ................................................................................................................................... 169
Texto cultural 40 ................................................................................................................................... 172
APRESENTAÇÃO
O escrito (e o lido) não é senão um traço visível
e sempre decepcionante de uma aventura
que, enfim, se revelou impossível.
E, no entanto, voltamos transformados.
(LARROSA, 2002, p. 160)
Volto ao começo para tornar visível o traço da apresentação desta dissertação e, conforme
sugere a epígrafe que me utilizo, volto transformada, mas não satisfeita. O exercício da escrita e das
muitas leituras tem me tornado diferente de mim mesma e me exposto ao aprendizado do
estranhamento, do convívio com a insatisfação contínua e arriscada de quem se coloca ao sabor do
acontecimento, não entendido aqui como causa e efeito, mas como algo que se “produz em certas
condições de possibilidade, mas não se subordina ao possível” (LARROSA, 2002, p. 147) da
experiência
1
.
A experiência de fazer pesquisa, as buscas, os silêncios, a cacofonia de vozes que soaram e
continuam ressoando em mim, pluralizam-me e redefinem-me na impossibilidade de ser definida pelo
próprio ato de ler e de escrever, de ser lida e de ser escrita, de escolher e de ser escolhida. Coloco-me
num lugar de incertezas como quem se constitui no caminho, como quem fez e faz conexões na
medida das interpelações que surgem e face às insatisfações que teimam em não cessar.
Encontro-me traduzida nas leituras e diluída nas escritas como parte do estudo que me propus
a realizar e com o entendimento de que a forma da minha abordagem não se pretende disciplinar, pois
recorto bocados em diversos campos para compor minha investigação e vou procurando enredar os
sentidos que vou produzindo e que vão me produzindo nas relações que estabeleço com meu objeto
de pesquisa. Faço interlocuções com as noções que elegi para traduzir as experiências nas tentativas
de delimitar, acercar-me e tornar visível os discursos presentes nos textos culturais dos grafismos
1
Larrosa (2002) trata da noção de experiência com a leitura como uma possibilidade de re-significação plural que libera a
diferença sem capturá-la, pois produz sentidos múltiplos e nômades, que sempre se deslocam e escapam frente qualquer
tentativa de aprisionamento.
urbanos, tanto para mim quanto para outros leitores
2
, procurando mostrar os constantes
tensionamentos e as ambivalências que comportou a produção.
Estamos num mundo caracterizado por contínuas mudanças e marcado por contradições cada
vez mais veementes. Testemunhamos “uma globalização irresistível e irreversível de trocas
econômicas e culturais” (HARDT & NEGRI, 2004, p. 11), provocadoras de transformações aceleradas,
de identidades e fronteiras matizadas que produzem formas diferenciadas de nos relacionarmos. Viver
no mundo globalizado é viver de forma paradoxal. Se por um lado, ele se mostra com infinitas
possibilidades de cruzamentos e trocas culturais de alargamento dos espaços e encurtamento de
distâncias, de emergência de grupos sociais, de manifestação de identidades antes apagadas, de
transgressão de tabus e criação de novas formas de convivência; por outro, é também um mundo onde
se acirram as lutas por sobrevivência, os medos e as inseguranças aumentam, as tragédias se
assomam, os conflitos étnicos, religiosos recrudescem em fanatismos, terrorismos e múltiplas formas
de violências. Dentro desse paradoxo é que nos movemos e somos produzidos, somos incluídos e
excluídos, somos obrigados a viver e agir em condições de incertezas. O mais curioso disto é que este
mundo não surgiu naturalmente, é produto da nossa invenção humana.
Neste cenário de invenção, esse mesmo mundo globalizado coloca dentro de nossas vidas e
dentro de nossas casas, através das forças da comunicação midiática, discursos sobre as violências
globais e locais multiplicam-se e mostram as inseguranças nas cidades, versões fabricadas e
disseminadas por textos não menos múltiplos. A velocidade da comunicação vinculada ao enredo
inextrincável da cultura, do político e do econômico, movem nossas experiências, conduzem nossos
comportamentos, controlam a vulnerabilidade de nossas vidas. “A economia em rápida globalização e
cada vez mais extraterritorial produz sabidamente diferenças sempre maiores de riqueza e de renda
entre setores abastados da população mundial e em cada sociedade” (BAUMAN, 2000, p. 177),
gerando, como também sabemos, um número cada vez maior de pessoas refugadas, de misérias e de
violências. São justamente essas condições que colocam a vida sob certos domínios políticos de
inseguranças e de incertezas e nos atravessam com o imprevisto e o contingente batendo
continuamente à nossa porta. Estar no mundo hoje, é estar vivendo na perspectiva da velocidade com
que as coisas nos atingem, é estar em constante tensionamento e viver na ambivalência das cidades
líquido-modernas.
2
Sinalizo que não desconheço o sexismo da linguagem e as questões de gênero implicadas nessa relação, bem como o
vigor teórico que ela comporta, muito menos credito à gramática a condição de neutralidade. Contudo, neste trabalho, opto
por flexionar no feminino apenas quando eu estiver imbricada diretamente.
Nas grandes cidades somos confrontados simultaneamente com as questões globais e locais,
com as diferenças e desigualdades, com o exótico e o incompreensível, com a ordem e o caos, com
atrações e repulsas, com possibilidades e impossibilidades produzidas pelas novas segmentações que
tornam a vida urbana “intrínseca e irreparavelmente ambivalente” (BAUMAN, 2004, p. 135). É nessa
heterogeneidade e ambivalência da cidade que procuro articular os discursos crescentes em torno de
paz e de violência.
Minhas inquietações de pesquisa se inscrevem no cenário urbano, nos discursos que estão
sendo produzidos sobre violências e paz também pluralizada. A minha impressão é a de que, na
contemporaneidade, é preciso colocar as noções paz e violência sob suspeita, desnaturalizando e
problematizando compreensões universalizantes. É necessário situá-las, portanto, na centralidade da
cultura, na ordem da linguagem como lugar de constituição dos objetos que nomeia, na conflitividade
das relações de poder e enredadas na luta por imposição de significados. É o que procuro examinar,
ao longo desta pesquisa que está direcionada, predominantemente, para a análise dos enunciados que
produzem significados sobre paz e violência como um caminho para problematização dos discursos.
Dentre tantos aspectos do nosso presente, elegi como objeto histórico de enunciação de
discursos sobre paz e violência, a prática cultural dos grafismos urbanos, aqui nomeados como textos
culturais, a partir do momento de sua captura realizada por mim. Denomino-os assim porque os
compreendo como textos abertos a muitas leituras, a interferências discursivas, a possibilidades de
sentidos e mobilizadores de outros sistemas discursivos. Penso que a leitura que faço sobre os
registros fotográficos que arquivei mergulhada no corpo tatuado da cidade, traduz-se como multifocal e
fragmentada, pois o meu esforço comporta operar com as noções paz e violência no jogo das
contradições “por que o mundo em que vivemos continua a nos enviar esses sinais evidentemente
contraditórios. E é importante saber como podemos viver com essa contradição” (BAUMAN, 2000, p.
9), principalmente entender porque muitas vezes ignoramos e não nos preocupamos com elas,
considerando-as naturais.
Na cidade ordenam-se e dispõem-se objetos segundo funções classificatórias que normatizam
relações sociais e estabelecem-se regimes de verdade. Compreendo que as práticas de grafitagens e
pichações tensionam as relações na cidade e rediscutem as possibilidades de convivência humana nas
tramas do social e do público, impregnando-a de uma outra visibilidade com seus traços, imagens,
signos, riscos e rabiscos. “Produz-se uma cidade outra, contemporânea” (PINHEIRO, 2004, 2), não
mais a cidade como um espaço organizado, onde alguns decidem quem pode, ou não, circular neste
ou naquele lugar, onde se seleciona o que pode, ou não, ser mostrado.
Na modernidade e nos discursos tidos como oficiais, a cidade aparece como um lugar de
limpeza e de ordem, mas essa assepsia urbana propagada por tais discursos não funciona na
perspectiva da vida social, “pois se quer genérica e unidimensional, o que nega o caráter
metamorfoseador, dinâmico e complexo da cidade” (PINHEIRO, 2004, p. 1) e da própria profusão de
práticas que nela se traduzem. De um modo específico, diria que percebo a utilização dos espaços
urbanos, pelas práticas dos grafismos, como uma interferência transgressora em seus múltiplos
suportes
3
, usados para dizer coisas, expressar necessidades, expor desejos que mobilizam discursos
provocadores de sentidos múltiplos.
Mostro que as práticas dos grafismos urbanos não têm um lugar permitido para existir, mas
elas existem. Voltam no movimento do acontecimento como lugares que sobram à instantaneidade
4
e
se dão à exterioridade do discurso, “de sua aparição e de sua regularidade” (FOUCAULT, 1996, p. 53).
Sobram à regularidade de continuar usando diversos suportes, transgridem a fronteira da ordem,
borram os espaços, sujam aquilo que se apresenta como asséptico e fazem dos espaços lugares para
dizer coisas. Assim, um muro é um espaço para uma ação, não apenas para quem diz e se diz através
dele, mas também sobre aquilo que ele diz de nós e nos faz dizer.
Percebo, na leitura dos textos culturais dos grafismos urbanos, múltiplas possibilidades de
perguntar sobre a constituição dos significados em torno de paz e de violência e vários focos
assimétricos entre si que me conduziram a utilizar ferramentais analíticos inspirados em Michel
Foucault em articulação com noções de pensadores contemporâneos como Zygmunt Bauman, Stuart
Hall, Johan Galtung, dentre outros.
Inspirada nos referenciais sobre o meu objeto histórico, utilizo como uma metáfora
organizadora do sumário e, conseqüentemente, da minha pesquisa a questão do desenho e do
desenhar no caminho, por isso trabalho com a idéia de riscos, rabiscos, contornos e tintas que vão se
3
Entendo suporte como o espaço, o lugar onde são materializadas as grafitagens e as pichações. Lugar que pode ser um
muro, uma parede, uma escola, uma estátua, um monumento, uma casa, uma igreja, um carro, um trem, um portão, um
prédio, uma placa, um banheiro.
4
Bauman, em sua obra Modernidade Líquida (2001), aponta que a instantaneidade é realização imediata, e aqueles que se
movem e agem com maior rapidez são aqueles que agora mandam; contudo, buscar o instante pode significar evitar as
conseqüências e as responsabilidades dessas conseqüências. “A duração deixa de ser um recurso para tornar-se um risco;
o mesmo pode ser dito de tudo o que é volumoso, sólido e pesado – tudo o que impede o movimento” (p. 148).
matizando e forjando aquilo que se pretende materializar no exercício de pensar sobre o próprio
pensamento.
Esboço o trabalho em três partes, distribuídas em seis capítulos, para funcionarem como
ordenadores do texto e como um sinal para não perder de vista o problema a ser investigado. Utilizo
como palavra de abertura para introduzir cada uma das três partes, textos culturais em construção,
marcados pela presença da pessoa do grafiteiro e da grafiteira. Tais textos culturais foram capturados
enquanto acompanhava uma produção que reunia grafiteiros e grafiteiras de diversos estados do país
5
.
Faço essa escolha para materializar as lutas semânticas que se travam quando somos tomados pelo
acontecimento e pelo acaso. A primeira parte – Riscando um possível desenho - compreende os
capítulos um: Esboçando e dois: Procurando suportes; a segunda parte – Continuando rabiscos - está
composta dos capítulos três: Dispondo tintas e quatro: Ro(n)dando a cidade; e, por último, a terceira
parte, constitui-se dos capítulos cinco: Acentuando tonalidades e caminhos e seis: Matizando.
Na primeira parte, intitulada Riscando um possível desenho, mostro como paz e violência
foram contaminando minha trajetória de vida e coloco em evidência os desafios que se somaram com
as leituras que fiz e se tornaram alvo da minha interrogação. Trago a mobilidade produtiva das práticas
culturais de grafitagens e pichações, faço algumas caracterizações, descrevendo as transformações
ocorridas nos grafismos urbanos, problematizo como essas práticas vêm sendo circuladas e como se
tornam um lugar para pensar paz e violência.
No capítulo um, Esboçando, faço alguns recortes históricos para mostrar como vim tratando as
noções violência e paz, como fui sendo enredada nesse tema até chegar ao mestrado e falo dos
motivos que me levaram a escolhê-lo para pesquisa. Falo como fui sendo deslocada e conflitada por
leituras na perspectiva pós-estruturalistas e procuro dar sinais de como paz e violência entram na roda
viva da contradição e da polissemia de sentidos que eles suscitam.
No capítulo dois, Procurando suportes, situo historicamente os grafismos urbanos, mostrando
suas fases, estilos, modos como são expressos e como se inserem no movimento da contracultura,
espalhando-se desde a Europa ao resto do mundo, especialmente no Brasil. Mostro como foram sendo
5
Por ocasião do Fórum Social Mundial, no mês de janeiro de 2005, através do projeto “Trocando idéia”, promovido pela
Prefeitura Municipal de Porto Alegre (RS), alguns jovens dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul, combinaram a “produção” no muro lateral de uma escola municipal do bairro Restinga, realizada com a
devida licença da direção da escola. Acompanhei, durante parte do trabalho, conversando e aprendendo com os grafiteiros
e com as transformações que iam ocorrendo no muro, que de cinza passou a ter uma multiplicidade discursiva, trazendo
para o cenário da escola fragmentos das relações vividas no mundo contemporâneo.
produzidas as diferenciações entre grafitagens e pichações, examino terminologias usadas por alguns
autores, optando por aquela que usarei e problematizo as pesquisas sobre o tema, sinalizando
algumas posições que começo assumir frente ao corpo tatuado da cidade e as possibilidades
discursivas que se operam nele em torno de paz e de violência.
A segunda parte intitula-se Continuando rabiscos. Nesta parte procuro enredar as noções de
discurso, paz e violência, mostrando como me servirão de baliza para operar nas análises e informo
como fiz alguns percursos na captura de registros fotográficos que me remetessem ao foco de minha
investigação.
No capítulo, Dispondo cores, discuto os conceitos que elegi dentro da perspectiva pós-
estruturalista para operar na relação com o meu objeto, aprofundo as noções de discurso, paz e
violência entrelaçando-as na centralidade da cultura e como produtos da linguagem. Aponto os
caminhos metodológicos, delineio os contornos do questionamento a que me proponho para produzir
olhares sobre paz e violência e digo como vou compor o corpus da pesquisa desde os enunciados
recorrentes nos grafismos urbanos e como pretendo ler os enunciados que emergem dos registros
fotográficos que arquivei.
No capítulo quatro, Ro(n)dando a cidade, amplio o campo do meu olhar e digo como me tornei
fotógrafa pesquisadora no duplo movimento de rodar e rondar a cidade na procura por grafismos
urbanos, cujo interesse me remetia a operar com significados de paz e de violência. Mostro como fiz
algumas cesuras para recortar sobre os materiais fotografados e informo como fiz os primeiros
agrupamentos de sentidos sobre os textos culturais dos grafismos urbanos.
Na terceira parte, Pintando sobre riscos e rabiscos, apresento a transitoriedade da
investigação, mostro como cheguei aos quatro conjuntos de significados que constituí e passo a
descrever e examinar os discursos que emergem das leituras que faço em torno dos textos culturais ao
operar com as noções de paz e de violência na atribuição de sentidos. Procuro enredar as verdades
que circulam nos grafismos urbanos na perspectiva analítica de que paz e violência mostram-se como
discursos heterogêneos e abertos a uma diversidade semântica. Expresso algumas compreensões e
posicionamentos diante da possibilidade de uma pedagogia cultural nos grafismos urbanos.
No capítulo cinco, Acentuando tonalidades e caminhos, destaco como fui materializando
possibilidades de respostas aos questionamentos que realizei ao longo da pesquisa, primeiramente,
apresento alguns textos culturais na transitoriedade da investigação e começo a operar com paz e
violência na tradução dos discursos que circulam nos grafismos urbanos. Trabalho com quatro
conjuntos de significados que denominei: sofrimento e morte diante do humano, conflitividade da
presença das armas, multiplicidade de caminhos e ambivalência das guerras. Em cada conjunto, opero
como quatro registros fotográficos e examino os significados que vejo acerca dos discursos em torno
de paz e de violência, mostrando que há uma diversidade discursiva que impossibilita uma definição a
não ser a definição de que elas são plurais e transgridem a enquadramentos.
No capítulo seis, Matizando, minha tentativa e a de misturar-me um pouco mais com os textos
culturais dos grafismos urbanos e matizá-los com as tintas da imprevisibilidade que lhes é singular.
Aceno, na emergência dos discursos, uma pedagogia cultural irreverente e transgressora, cuja
linguagem pode estar produzindo-nos para uma convivência marcada por violências e pazes como
faces discursivas que se entrecruzam no espaço urbano na produção da ordem e do caos, na
separação do “nós” e do “eles”, do desejável e do indesejável. Nesse jogo, mostro que paz e violência
soam como projetos discursivos instalados na condição da redundância que produz seres humanos
refugados.
Em suma, o que me proponho, no exercício da escrita e da leitura, é colocar em circulação um
pensar que volte sempre transformado pela experiência do imprevisto e uma experiência matizada pelo
imprevisto do pensar.
Parte I
RISCANDO UM POSSÍVEL DESENHO
Sim, há uma cacofonia de vozes e nenhuma canção será cantada em
uníssono, mas não se preocupe: nenhuma canção é melhor que a próxima, e,
se fosse, não haveria maneira de sabê-lo – por isso fique à vontade para
cantar (compor se puder) sua própria canção (de qualquer maneira você não
aumentará a cacofonia; ela já é ensurdecedora e uma canção a mais não fará
a diferença) (BAUMAN, 2003, p. 112).
Capítulo 1
ESBOÇANDO
É preciso começar o desenho
para saber o que se quer desenhar.
(PICASSO)
6
Encontro-me impactada pela idéia de começo de um desenho ao me colocar diante do papel,
pois gostaria de estar “bem além de todo começo possível” (FOUCAULT, 1996, p. 6) e poder me furtar
desta estranha falta no dizer. Há forças em mim que me empurram para dizer meus primeiros rabiscos
na tentativa de fazer fluir o meu pensamento e há forças em mim que me amarram e me prensam na
jaula do antever um desenho para então dar início à escrita.
6
Citação atribuída a Pablo Picasso. Disponível no site <http://www.espirito.org.br/portal/artigos/diversos/frases/coletanea-
01.html>. Acesso em 16.10.2004.
Texto cultural - 1
Ao buscar esse esboço de desenho, coloco-me diante de um emaranhado de riscos, de
relações possíveis que de alguma forma me impossibilitam indicar onde se deu o risco inicial e como fui
tecendo a tela da temática que me encontrou nessa tentativa de ir desenhando sentidos à minha
pesquisa e ao meu próprio viver.
Não posso precisar agora o desenho, tampouco é isso que pretendo, entretanto sei que me
encontro desenhando já há algum tempo a temática que fisgou o meu olhar, ainda que um tanto sem
forma e sem contornos, e cujos efeitos foram se constituindo e fazendo parte do meu pensar,
permitindo-me eleger discursos sobre paz e violência que circulam em grafitagens e pichações
produzindo significados.
Passo a narrar, como enxergo hoje, a minha trajetória para que o leitor possa compreender de
que modo os acontecimentos se fizeram escolhas e constituíram o meu tema. Ao tentar expressar tal
obra – depois de vivida, por certo – estarei, de algum modo, compactando fragmentos que a memória
não apagou para redizer alguns acontecimentos fazendo fissuras ao olhar na direção do tema que me
proponho discutir nesta dissertação.
Mesmo que a minha forma de olhar mostre rabiscos envolvendo uma certa seqüência
cronológica de um desenho, quero dizer que não me interessa tanto o cronológico para construir minha
argumentação, mas sim a maneira como fui me aproximando do tema, importa o jeito como ele entrou
no meu pincel, como tem se desdobrado em minhas tintas, como se imbricou nos espaços de
convivência e vem compondo significados e inquietações mobilizadoras do meu estar no mundo,
vivendo sentidos.
De um jeito aleatório, dado ao acaso, discursos sobre paz e violência foram se desenhando e
fazendo-se acontecimento no meu cotidiano a partir do meu desejo marcadamente moderno de “fazer
um mundo melhor para todos e livre da violência”. Com esse horizonte em mente inseri-me em grupos
de estudos, atuei na educação popular e em Ongs. No exercício da profissão de professora, desde
minha relação com a escola em diferentes funções e, particularmente, como orientadora pedagógica
articulava paz e cultura de paz como uma possibilidade pedagógica de estudo e de vivência no campo
do currículo escolar.
Passo a descrever alguns recortes que considero marcadores de minha opção e que foram
forjando talvez um jeito de pensar a própria vida, um modo de vivê-la, de problematizá-la abrindo
lacunas, colocando em risco convicções e certezas, produzindo deslocamentos.
1.1 RISCANDO UMA TRAJETÓRIA DE VIDA
Diria que os discursos sobre paz e violência têm cruzado os meus caminhos desde muito cedo,
fazendo-se “inquietação de supor lutas, vitórias, ferimentos” (FOUCAULT, 1996, p. 8), trazendo para o
meu viver um dilema contínuo e paradoxal que tem mobilizado múltiplos significados acerca de paz e
de violência.
Num primeiro instante, paz e violência encontram eco em mim devido às opções políticas ditas
de esquerda da minha família. No final dos anos sessenta e nos anos setenta do século XX, no
contexto da cultura imigrante italiana cuja descendência marca minha trajetória, junto com os sonhos
do meu pai, lutava por liberdade de expressão de idéias e era empurrada a imaginar e acreditar futuros
de mais justiça social, igualdade de direitos e paz. Isso se dava nos cruzamentos de violências, de
silêncios e de controles impostos pela ditadura militar.
Vivendo dessas circunstâncias, situada numa pequena cidade do interior do RS onde trabalhava
com a agricultura na zona rural e iniciava a vida escolar, em classe multiseriada, fui sendo constituída
por discursos de familiares, de amigos e, especialmente, da professora, como “menina inteligente e
valente”. Subjetivada e fabricada desse modo, dizia-se que não poderia deixar a vida “encerrada na
roça”, portanto deveria dar continuidade aos estudos para “ser alguém na vida”. Fiz um êxodo social e
cultural ao ir residir na região da fronteira com a Argentina: necessitei me (re)conhecer em outros,
forjar-me nova desde a língua falada e seus diversos sotaques ao modo de ser, comer, vestir. O sonho
de fazer a paz doía e soava como martelada contínua que marcava um sentido de vida e de existir por
alguma causa.
Acreditava firmemente que a minha vida deveria estar a serviço de um bem maior para a
humanidade: a paz. Esse bem poderia alcançá-lo no exercício da profissão de professora, por isso fiz
magistério no então segundo grau. Durante o curso, levada pelas práticas da escola, envolvi-me em
diversas ações relacionadas à formação de lideranças juvenis. Esses acontecimentos despertaram-me
para associar paz aos direitos humanos e ao exercício da solidariedade, em atividades tais como:
assistência a idosos em asilos, levantamento de dados sócio-econômico de famílias residentes em
periferias da cidade para projetos de ajuda aos mais necessitados. Tais atividades configuravam-se
como alternativa à violência e como verdadeiro processo humanitário de construir a paz no vigor do
sonho de juventude.
No auge da juventude, momento de fazer escolhas, operava-se em mim um duplo
questionamento frente ao projeto de vida que deveria assumir: mover-me pelo campo da política
partidária ou adentrar pelo campo da fé. Pelo campo da política, paz se delineava como luta social. Já
pelo campo da fé vinha vestida de bem para todos e adornada de um ideal que valeria a própria vida.
Mesmo trabalhando no meio da política partidária como funcionária do legislativo, na cidade de Itaqui
(RS), escolhi trilhar a estrada da fé, talvez porque considerasse, naquela época, o campo da política
partidária como frágil e quebradiço e buscasse a segurança do Absoluto como uma essência forte e
inquebrantável na dimensão da fé.
Pelo viés da opção voltada ao campo da fé, no meio da década de oitenta, como
materialização de uma entrega total ao sonho de paz (como se fosse possível uma paz total e
universal), inseri-me especificamente na vida religiosa numa congregação da comunidade católica. A
partir daí, comecei a caminhar junto a causas relacionadas aos movimentos sociais e às comunidades
eclesiais de base, época marcada pela ascendência da Teologia da Libertação na América Latina, em
cujos referenciais teóricos bebi abundantemente. Situada nesse lugar, entendia paz como um ideal
colocado no horizonte e a ser alcançado, no sentido bíblico-hebraico de shalom – plenitude de todos os
bens para a vida -, especialmente para a vida dos menos favorecidos.
Acompanhando essa reflexão, envolvi-me muito nas Campanhas da Fraternidade
7
que
tangenciavam o tema da paz associado a outros como comunicação para a verdade e a paz (1989),
política e justiça voltada à paz (1996), educação e paz (1998), dignidade humana e paz para um novo
milênio sem exclusões e com paz (2000), dentre outras urgências sociais entendidas como combate à
violência e ao aviltamento do humano. Sentia-me convocada a dar respostas às situações de
violências, colocando como pressuposto para tanto a superação de toda forma de violência,
referendada na idéia de que “não se alcança o bem que é a paz pela exclusão dos outros, pela
mentira, pela fome, pela guerra, pela imposição da vontade do mais forte, pela construção de muros
7
São campanhas assumidas, desde 1964, pela Igreja Católica do Brasil, no período específico da Quaresma, que trazem
temas de relevância social na convivência humana e que pedem uma resposta de justiça, paz e direitos para todos como
sinal de transformação.
defensivos” (CNBB, 2000, p. 23). A paz era a alternativa que me direcionava para encontrar caminhos
não violentos.
Outras escolhas foram se apresentando na minha trajetória. Riscos e rabiscos acrescentavam-
se no caminho e o desenho da vida, que parecia estável e duradouro, teve outros contornos e adquiriu
outras possibilidades de acontecer. Saí da vida religiosa, mas continuei, como professora e como
orientadora pedagógica, sentindo-me ligada ao tema da paz e da violência.
Outra aproximação importante com a temática aconteceu no ano de 1997 quando, através de
um jornal
8
que veiculava notícias e propostas para construir a paz, tive notícias de um grupo chamado
Em busca da paz, na cidade de Santa Cruz do Sul (RS). Esse grupo organizava-se em torno de ações
para a construção de uma cultura de paz e promoção dos direitos humanos a partir de “cinco bandeiras
de luta”, assim descritas: ações para a cidadania, luta contra o armamentismo, solidariedade com os
povos em conflito, objeção de consciência e educação para a paz. Fui acercando-me da dimensão
teórica e aproximando-me das pessoas que faziam parte do grupo, dos momentos de formação e das
práticas que concretizavam: escola da paz, jejum pela paz, retiros, caminhadas. Nesse período,
comecei a estudar temas direcionados mais especificamente para a área da educação e que se
articulavam com a questão da paz.
Estudei, desde a perspectiva das Teorias Críticas, inserida num grupo de estudos
9
para a paz
em Porto Alegre (RS), alguns textos que faziam sentido para pensar a educação para a paz: Muller
(1995), Brandão (1995), Maldonado (1997), Guimarães (1998). Esses estudos colaboraram para
fortalecer em mim a convicção de que a educação para a paz deveria ser entendida como uma
construção e que seus conteúdos e sentidos deveriam ser aprendidos e ensinados. Por conseguinte,
deveríamos ver-nos como sujeitos e, solidariamente, co-autores da paz e da cultura da paz.
Brandão (1995, p. 37), ao desenvolver o tema propostas pedagógicas para culturas de vocação
da paz, lembra que a construção e o entendimento de paz concorrem na direção da supressão das
desigualdades sociais, no fortalecimento da justiça, na multiplicação autônoma das diferenças,
embasando-se no diálogo como método para torná-la consistente. Os discursos sobre a paz se
apresentavam como um espaço e uma possibilidade de fazer frente às violências, inserida na dinâmica
global de uma humanidade que caminharia para a paz articulada com outras lutas por direitos.
Com esse entendimento, marcada pelos discursos das Teorias Críticas, fui olhando para o
tema como um caminho para, desde dentro da escola, mobilizar educadores, jovens e crianças a se
inserirem em lutas sociais por mais vida e a favor da construção de uma cultura de paz e não-violência,
8
O jornal que menciono tinha um caráter informativo e pedagógico em torno do tema da paz. Intitulava-se Palavra de Paz e
chegava na escola que trabalhava, através de assinatura realizada pelo no Setor de Pastoral Escolar. Sua procedência era
da Diocese do Município de Santa Cruz (RS) e produzido mensalmente pelo referido grupo Em busca da paz.
9
O grupo de estudos de que falo formou-se com educadores provenientes da organização não-governamental Em busca da
paz com sede em Santa Cruz do Sul (RS) e com outros educadores das redes particular e municipal de Porto Alegre (RS)
que tinham trabalhos ou afinidades em relação ao tema. A preocupação do grupo era a de aprofundar o tema da paz como
alternativa para se fazer uma Educação para a Paz. Desse grupo, como anuncio mais tarde, forjou-se uma organização
não-governamental que se denomina Educadores para a paz.
a partir da relação que fazia de paz com solidariedade e de paz com direitos humanos. Buscava
mobilizar o tema nas conexões com o currículo escolar, tornando-o eixo em projetos pedagógicos
escolares.
Nesta época, inseri-me e envolvi professores e alunos em campanhas pelo banimento de
minas terrestres, em caminhadas pela paz, assinaturas do manifesto 2000 por uma cultura de paz,
divulgação do manifesto de Sevilha, dos 50 pontos do programa de Haia de Paz e Justiça para o
século XXI
10
, dentre outros movimentos que se somavam e vêm se somando na causa e na luta pela
paz como os propostos pela ONU, quando declara o ano 2000, o ano internacional por uma cultura de
paz e não-violência, e a década de 2001-2010, para se trabalhar no mundo inteiro em favor da
construção e do desenvolvimento de uma cultura de paz
11
.
O tema da paz vem marcando sobremaneira a minha forma de olhar as múltiplas situações que
se fazem presentes no mundo globalizado com seus movimentos políticos e culturais, com conflitos
bélicos, disputas por territórios, por frações econômicas, a forma como líderes políticos, religiosos e
governantes vêm discursando e assumindo posições diante das realidades. O tema da paz permeia o
meu cotidiano e se faz desafio na vida profissional, nas relações estabelecidas e tem me inquietado
como desejo de colocá-lo sob o crivo de uma problematização mais acadêmica que colabore para que
eu possa percebê-lo com lentes diferenciadas das que até então tenho procurado ver.
Dessas muitas inquietações, dos debates e questionamentos do referido grupo de estudos, da
vontade de fazer a paz, da compreensão de que somos educados culturalmente sob o paradigma da
violência e de que paz se aprende, colaborei no processo de pensar e fundar uma organização não-
governamental, cujo nome é Educadores Para a Paz
12
, da qual faço parte até hoje e fui membro da
diretoria, no período de 2002-2004, na qualidade de Coordenadora de Projetos. Trabalhamos com a
idéia de multiplicar educadores na área da educação para a paz e a não-violência, de contribuir para a
prevenção e o combate à violência, através de programas e propostas metodológicas de educação
para a paz e a não-violência e de desenvolver estudos e pesquisas, na perspectiva da construção de
uma cultura de paz em intercâmbio com instituições acadêmicas e de desenvolvimento social.
Seguindo tal compreensão, “trata-se de ativar em nós a capacidade que todos temos de operar a paz”
10
Tais campanhas e programas encontram-se integralmente citados nos apêndices da tese de doutorado de Guimarães
(2003), listada nas referências deste trabalho.
11
As referidas resoluções que estimulam o trabalho para o desenvolvimento de uma cultura de paz e não-violência no
mundo, respectivamente, são: a resolução número 52/125, de 20 de novembro de 1997 e a resolução número 53/25, de 10
de dezembro de 1998.
12
A Educadores Para a Paz foi fundada no dia 30 de janeiro de 2002, data escolhida por ser o dia da morte de Gandhi,
referencial da não-violência para essa instituição. Para outras informações consultar o site: htpp//: www.educapaz.org.br.
(GUIMARÃES, 2004, p.13), isto é, envolver o maior número possível de pessoas na responsabilidade
coletiva e criativa para tornar a paz agenda cotidiana.
Como membro da Educadores Para a Paz, participo dos seminários internos de formação aos
sócios
13
, atuo na realização de seminários de estudos e cursos sobre o tema da educação para a paz.
Junto com os demais sócios, desde a sua fundação em 2002, desenvolvi projetos envolvendo o
assunto, colaborei na construção de cursos, subsídios, oficinas e trabalhei como assessora em escolas
da rede pública e privada, bem como em comunidades de periferia
14
na perspectiva de fortalecer a
construção de uma cultura de paz, tendo a educação como eixo para instrumentalizar pessoas a serem
ativistas da não-violência.
Mais recentemente, comecei a defrontar-me comigo mesma e a problematizar de forma mais
intensa o tema da paz. Incomodava-me num duplo sentido: por fazer-se senso comum e consenso de
todos que atuam em diferentes campos e se somam a essa luta. Não há quem não queira ou não
deseje a paz, fala-se de paz em muitos recantos e com uma multiplicidade de sentidos. Por tal motivo,
apresentava-se a mim como elemento de saturação, de vontade de manter um distanciamento, de já
não trazer mais o tema à mesa, por estar entendendo-o talvez como mais um desses modismos em
que nos apegamos em educação e por vê-lo vir à baila carregado de emocionalismos e intimismos que,
de acordo com Guimarães (2003), essa noção de paz volta-se a uma perspectiva romântica pautada
em idealismos, culto ao eu, sensibilidade para com as coisas da natureza, marcando uma interiorização
e uma idéia de naturalização da paz. Essa noção causava em mim mal-estar e um grande desconforto.
Justamente nesse desconforto, começo a perceber um outro sentido mobilizador, instigando-
me a pensar, a examinar se aí existem outros discursos sendo produzidos, outras forças em ação e
que no momento me escapam aos sentidos. Por conseguinte, valeria investir tempo de busca, de
problematização sobre aquilo que já estava dado a mim. Queria por em “funcionamento outra máquina
de pensar, de significar, de analisar, de desejar, de atribuir e produzir sentidos, de interrogar em que
sentidos há sentidos” (CORAZZA, 2002, p. 111), e foi então que a possibilidade de fazer mestrado em
educação se atravessou no meu caminhar como forma de engajar-me nessa prática de pôr em
funcionamento um outro modo de pensar.
13
Além dos cursos externos oferecidos a outras instituições ou grupos, a organização não-governamental Educadores Para
a Paz prevê formação continuada aos sócios com a finalidade de aprofundar os referenciais e manter os seus membros
preparados para ministrar seminários, cursos, debates, oficinas, estudos que costuma ofertar. No site http:
www.educapaz.org.br
é possível observar dados e números de cursos e educadores que já passaram pelas formações
referidas neste parágrafo.
14
Em termos de ação na periferia, atualmente tenho marcado minha colaboração no Centro Social Antônio Gianelli. Essa
instituição, ajudei a construir desde a escolha de um terreno, no final de 2002, até a obra como se constitui hoje, no ano de
2006, um Centro de Atendimento a crianças, adolescentes e mulheres em situação de risco social no Bairro Belém Velho –
Rincão, num assentamento irregular, na cidade de Porto Alegre (RS). Nesse espaço que atende 170 crianças e
adolescentes, mais grupos de mulheres, educadoras populares, famílias, atuo como responsável pela dimensão pedagógica
na qualidade de voluntária e realizo a formação de educadores voltada para uma educação para a paz.
É preciso dizer que a minha forma de ver e compreender paz, nesse período, não diferia muito
das visões dominantes que existiam e ainda existem a seu respeito sustentadas pelas teorias críticas.
Entendia mais como ausência de guerra e de perturbação, como atributo que se possui ou se alcança
no esforço pessoal ou coletivo de se ter paz e de resolver conflitos e violências nas diversas formas de
relações, fundamentada especialmente na perspectiva de Paulo Freire (1986) de que paz se cria, se
constrói na construção incessante da justiça social, na e pela superação das realidades sociais
perversas.
Nessas circunstâncias, digamos, fui introduzida na dinâmica da paz e da cultura de paz
como alternativa à violência e à cultura da violência. Creio ser importante dizer que tanto
violência quanto cultura de violência são entendidas como construções culturais, portanto
constituídas por pessoas, não de “forma exterior a elas, como se agisse por si própria. [...] A
violência apenas existe e age através do homem; é sempre o homem que é responsável por
ela” (MULLER, 1995, p. 30). Assim, não há como pensar a violência fora das relações
humanas e de observar que, muitas vezes, ela se torna um modo de vida para alguns, sendo
compreendida como um processo naturalizado.
Nesse esboço, com essas tintas, cheguei ao mestrado trazendo comigo algumas
certezas forjadas no exercício profissional de fazer-me professora e de trabalhar com a
formação de educadores. Trazia comigo convicções, como por exemplo, a de saber qual o
melhor referencial para se consolidar uma educação humana e transformadora, qual a melhor
metodologia para se chegar a isso, e tinha também o entendimento sobre como colaborar na
instituição de uma cultura de paz na escola e na sociedade.
Se até então eu me via como sujeito, centro dos discursos e das ações, encontrei-me com
obstáculos a essas minhas certezas que foram sendo problematizadas pelos Estudos Culturais em sua
vertente pós-estruturalista e pelos discursos foucaultianos. Uma vez jogada para fora do reconhecível,
falo a seguir do intranqüilizador que tem sido estar ao sabor dessa perspectiva, que não se apresenta
como resposta às indagações que carrego comigo, mas coloca em funcionamento e amplia minhas
inquietações.
1.2 CONFLITADA POR LEITURAS NA PERSPECTIVA PÓS-ESTRUTURALISTA
Ao ser conflitada pelas leituras dentro da perspectiva pós-estruturalista, percebi-me sendo
deslocada para outros caminhos, não sem resistência, sem medos, sem barulhos quase paralisantes.
Esses deslocamentos vêm provocando rupturas, desmonte de certezas e convicções, mobilizando
outros modos de pensar o meu tema de pesquisa, colocando-me “para fora do reconhecível e
tranqüilizador” (FISCHER, 2002, p. 69) e fazendo-me desviar o olhar para outras possibilidades
imprevisíveis e cujo traçado do desenho parece colocar a meu dispor rabiscos que se farão escolhas
no próprio movimento de riscar.
Aquilo que já não se apresentava mais como um lugar de tranqüilidade do pensar agora es
sendo colocado em crise pelas leituras filiadas ao pensamento de Michel Foucalut. Colocar a noção de
paz nesse campo, bem como a de violência provoca uma conflitividade desconcertante e um estado de
espera que vem me mobilizando a enfrentar outros modos de pensar e problematizar o tema de meu
interesse.
Em Hall (1997), fui deslocada para entender a centralidade da cultura na produção dos objetos
e daquilo que somos e fazemos. A chamada ‘virada cultural’, comenta esse autor, revoluciona o papel
da linguagem, colocando-a numa posição de destaque na construção e circulação de significados nas
diversas práticas culturais. Cabe ressaltar a importância, pois, da linguagem uma vez que ela deixa de
apenas relatar os fatos como se eles fossem anteriores. Ela passa a atuar na produção dos
significados, constituindo o “sentido que damos às coisas, à nossa experiência, ao mundo” (VEIGA-
NETO, 2003, p. 107). Ao ocupar esse lugar privilegiado, a linguagem toma um caráter discursivo e
permite inferir mobilidade à cultura colocando sempre novas práticas em funcionamento.
Nessa compreensão de cultura percebi que uma tensão possível se enroscava com a noção de
paz, entendida como caminho de superação da violência, que até então marcava minha compreensão.
Isso era colocado sob suspeita, uma vez que não poderia esquecer que os objetos se constituem nas
práticas. Era preciso revitalizar os sentidos colocando-os numa outra dinâmica de produção e
problematização, pois a cultura era agora o elemento organizador e constitutivo da vida social. Aqui o
desafio era o de romper com o olhar binário de paz e violência.
Quando se afirma a ‘centralidade da cultura’ na constituição de significados, não implica que se
está reduzindo tudo à cultura, mas implica dizer que toda prática tem uma dimensão cultural. Já não
temos mais uma identidade essencializada, permanente, unificada em torno de um eu fixado e
coerente. Concordo com o entendimento de Hall (2004, p. 13) de que “somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais
poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente”. Isso se dá na medida em que, nessa
perspectiva, estamos sempre sendo interpelados e deslocados pelas contingências históricas que nos
empurram e nos tensionam em diversas direções e nos proporcionam viver contradições.
Na cultura os significados são compartilhados e ativados, tornando-se impossível desvincular
ou isolar as práticas que instituem os processos históricos, uma vez que em nosso modo de enxergar
as coisas está também a maneira como as vivemos, sem que desconsideremos presentes aí crises,
tensões, intervenções, transformações que provocam e engendram outros significados. Agendar,
portanto, a noção de paz como entendimento instituídos na centralidade da cultura – compreendida
aqui como práticas sociais vividas e implicadas por relações de poder – leva-me a pensar na
produtividade mobilizada nesse cruzamento na luta pela fabricação e imposição de significados em
confrontos estabelecidos com a noção de violência também posta nesta dinâmica.
Outra inquietação que me movia era a de examinar essas noções fora dos espaços que vinha
pensando de maneira que se fizesse um acontecimento novo e que provocasse rachaduras naquilo
que estava acostumada a produzir nas relações com a escola e com a Educadores para a paz.
Surpreendia-me pensar a possibilidade de fazer pesquisa em educação fora da escola e entender
outros espaços como lugares onde se fabricam pedagogias e que, portanto, se constituíam em
espaços de aprendizagem e produção de saberes.
O maior desafio para mim era o de estar me inscrevendo na perspectiva dos Estudos Culturais
pós-estruturalistas como alguém que elege um lugar para falar, porque se constitui um desafio para
algo novo, porque eles questionam o pensamento formalizado pelas metanarrativas modernas
iluministas. No entendimento de Nelson, Treichler e Grossberg (1995), apresentam-se como
possibilidade de suspeitar do sujeito centrado, da ordem universalizante, de um único modelo de
racionalidade, de uma cultura privilegiada como lugar de pensar as demais. Faziam-se, por
conseguinte, uma possibilidade de tracejar sentidos sobre cultura de paz e cultura de violência a partir
da contingência e da ambivalência de significados e não da transcendência.
Fui assim procurando deslocar o meu modo de ver as noções paz e violência fazendo
tentativas de desvinculá-las dos entendimentos universalizantes, ou seja, colocando-as sob tensão e
em articulação com a compreensão de cultura que descrevi, onde os sentidos já não poderiam mais
estar dados e o sujeito já não seria mais o centro irradiador dessa produção, uma vez que ele mesmo é
produzido pela linguagem consoante com o que problematiza Foucault (1996) quando diz que o
discurso, conduzido por um conjunto de práticas, é que inventa e institui sentidos que nos assujeitam.
Compreendi, ainda nessas leituras, que os Estudos Culturais abrangem um conjunto de
abordagens envolvendo diversos campos conceituais, “percorrem disciplinas e metodologias para dar
conta de suas preocupações, motivações e interesses teóricos e políticos” (COSTA, 2003, p. 40), cujas
problematizações, pesquisas e reflexões rompem com concepções cristalizadas e promovem uma
hibridização e inventam caminhos para compor seus objetos de estudo. Foi assim que me senti o
suficientemente desconfortável para continuar minha busca para fora do campo escolar, mas
incrustada em práticas culturais como lugares conflitantes, marcados por disputas em torno dos
sentidos.
Necessitava me adentrar na compreensão de que os saberes assim como a cultura não são
heranças que recebemos prontas e acabadas. Logo não poderia deixar de continuar desestabilizando
as noções sobre paz e violência. Nessa perspectiva, Veiga-Neto (2000), diz que não faz sentido afirmar
que a espécie humana é uma espécie cultural, sem falar que a cultura e o próprio processo de
significá-la estão submetidos a permanentes tensões e conflitos de relações de poder. Percebi que
precisava caminhar compreendendo que na pluralização de cultura e na imprecisão de sua definição, o
meu tema se inscrevia e se abria para múltiplas e cambiantes composições.
Nesse movimento contínuo de realizar leituras, deixar-me interrogar por elas, intercambiar
sentidos com colegas do Mestrado e com professores, nas práticas profissionais dentro da escola e
nas lutas de forças postas pelo meu desconforto de ir e vir na procura de um lócus para ir constituindo
mais adequadamente o meu tema de pesquisa é que fui tomada pela noção de discurso foucaultiana
como um conceito instigante, deslocando-me para a revitalização de verdades em torno de paz e
violência como uma ferramenta produtiva para empreender leituras.
Penso que é produtivo expor que entendo o risco que corro, de reforçar um entendimento
binário, ao trazer sempre juntas as noções de paz e de violência. No entanto, é exatamente essa forma
de ver que quero colocar sob suspeição na medida em que desejo lê-las na centralidade da cultura e
como produtos da linguagem. O que demanda uma outra compreensão de conhecimento, isto é, ele
não se dá a priori, ele mesmo precisa ser visto como uma invenção dos discursos, que articulados em
tempos e espaços distintos, geram entendimentos distintos e posições distintas na vida social. Essa
questão envolvendo binarismos em torno de paz e de violência, deixo para abordá-la mais à frente
quando eu for especificar compreensões acerca disso e, assim, talvez tornar mais visíveis algumas
comparações e rupturas.
Por ora, creio eu, cabe dizer que minha pretensão é a de instalá-las na condição de crise
proposta por Bauman (2000), em sua obra Em busca da política, ao mencionar que
quando falamos de crise no sentido moderno de incompreensão e incerteza, a
mensagem que passamos às vezes abertamente, porém mais comumente de
forma implícita, é de que os instrumentos que nos acostumamos a usar com bons
resultados e sem refletir parecem agora estranhos em nossas mãos e não parecem
funcionar. Sentimos assim a necessidade de descobrir quais eram as condições
que os tornavam eficazes no passado e o que deve ser feito para restaurá-las ou,
então, mudar de instrumentos (p. 146).
A crise, entendida como desafio e condição permanente, será justamente a de mudar os
instrumentos para olhar para o tema e oxigená-lo. Entendo que paz e violência devem vir juntas não
como contrários, mas para indicar a condição de crise, porque me parecem atravessadas por uma
conflitividade produtiva numa dinâmica, num jogo de poder e saber que disputam interesses e sentidos
no espaço urbano e nas práticas que as constituem.
Dessa forma, tomada pelo acontecimento, por sua “multiplicidade aberta” (FOUCAULT, 1996,
p. 26), seduzida pelos discursos que circulam ao nosso redor em diferentes espaços e associada com
a minha vontade de saber, fui capturada pelo urbano exposto na epiderme da cidade através de uma
de suas práticas culturais que são as grafitagens e pichações. Nelas vi um lugar para fazer leituras e
viver experiências, um lugar que carrega uma multiplicidade aberta, uma possibilidade de edificar
significados na condição do acaso.
Compreendo que no espaço urbano, em meio a nosso mundo em rápido processo de
globalização, “a experiência humana é formada e compilada, a partilha da vida é administrada, seu
significado é absorvido e negociado em torno de lugares” (BAUMAN, 2004, p.125). Desta forma, o
urbano apresenta-se a mim como um lugar de busca onde pretendo realizar um mergulho, intercambiar
sentidos e correr o risco de enfrentar as contingências de viver contemporaneamente, sendo produzida
e produzindo outros jeitos de pensar e experimentar frustrações, conhecimentos e desejos.
Percebi-me enroscada numa mobilidade líquida: grafitagens e pichações e os discursos que as
constituem, paz e violência e sua desvinculação do caráter binário e essencialista, os processos vividos
no urbano em tempos de globalização onde a incerteza e a angústia parecem ser seus produtos e onde
as relações se complexificam e, conforme Bauman (2004), os desejos humanos são gerados e
incubados, vivem na esperança de se realizarem, correm riscos e vivem frustrações. Dessa forma, o
espaço urbano se apresenta conflitivo e como lugar onde saberes estão em disputa, identidades estão
sendo produzidas, discursos circulam inventando verdades.
Os discursos sobre ditas cidades grandes cada vez as instituem mais como um campo de
batalha, onde possibilidades estão sendo edificadas, mas também como um local que requer cuidado e
vigilância, onde a violência circula a solta. Estar nas cidades na contemporaneidade, ainda que não na
mesma intensidade, torna-se sinônimo de viver em constante perigo sob ameaças e inseguranças que
tolhem o direito de alguns de ir e vir, ou dito de outra forma,
as cidades contemporâneas são campos de batalha em que os poderes globais e
os significados e identidades obstinadamente locais se encontram, se chocam,
lutam e buscam um acordo que se mostre satisfatório ou pelo menos tolerável – um
modo de coabitação que encerre a esperança de uma paz duradoura, mas que, em
geral, se revela um simples armistício, um intervalo para reparar as defesas
avariadas e redistribuir as unidade de combate (BAUMAN, 2004, 125).
Parece-me que o movimento que conduz o modo de estar na cidade contemporânea é
justamente o de estar em permanente situação de confronto, cujos intervalos, de que fala o autor
citado, traduzem-se em tensões e espaços para grupos se dizerem e colocarem em movimento seus
discursos através de múltiplas práticas.
Orientada pelo caráter do não reconhecível é que me permiti e permito-me ser atingida pelas
contingências do urbano e nele pelas práticas culturais de grafitagens e pichações que começam a se
tornar um campo instigante e um lugar possível para pensar questões em torno das minhas
interrogações sobre paz e violência, porque começo a entendê-las como práticas carregadas de uma
conflitividade discursiva, portanto produtora de sentidos múltiplos e aberta ao inesperado.
Encaminho-me para, no próximo capítulo, examinar os discursos constituídos em torno das
práticas culturais de grafitagens e pichações, trazendo presente algumas pesquisas realizadas e os
sentidos que os autores atribuem a essas práticas, buscando problematizar e enredar uma produção
de saber no exercício de fazer-me pesquisadora.
Capítulo 2
PROCURANDO SUPORTES
Apagaram tudo
pintaram tudo de cinza
só ficou no muro
tristeza e tinta fresca.
Nós que passamos apressados
pelas ruas da cidade
merecemos ver as letras
e as palavras de Gentileza[...]
Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro
Ficou coberta de tinta
15
.
Apagaram tudo, pintaram tudo de cinza apresenta-se como um paradoxo para iniciar este
capítulo em que desejo expor a palavra de outros e a minha própria como uma possibilidade de
efervescência de discursos e significações na palavra do muro, isto é, nas grafitagens e pichações e
nos enunciados que aí estão sendo produzidos e que me interessam. Marisa Monte, com a música
Gentileza, imortaliza o chamado “profeta Gentileza”
16
, que durante mais de trinta anos percorreu ruas
pela cidade do Rio de Janeiro, disseminando discursos sobre paz e gentileza através de frases
pichadas em diferentes suportes. Palavras, frases, signos, é assim que o andar pelo espaço da cidade
constitui-se dessas e de outras infinitas marcas, as mais variadas e passíveis da imaginação humana.
Tintas são sobrepostas, podem apagar, cobrir de cinza como diz a música, mas continuarão falando.
Compreendo que a ação de apagar carrega consigo o enfrentamento da volta, do retorno renovado de
riscar outros riscos, nem melhores e nem piores, apenas outros riscos que se sobrepõem a tantos
rabiscos, abrindo-se às tintas que podem ser mobilizadas pelos processos de significar e enroscar
sentidos.
15
MONTE, Marisa. Gentileza (10). In: CD - Memórias, crônicas e declarações de amor -. EMI – MUSIC DISC - LTDA.
Guarulhos - São Paulo, 2000.
16
José Datrino, o Profeta Gentileza, como era conhecido, nasceu em Cafelândia, São Paulo, e foi um personagem
andarilho que buscou disseminar mensagens sobre valores altruístas e de solidariedade pichando a cidade do Rio de
Janeiro. Esse artista faleceu em maio de 1996 e seus trabalhos encontram-se ainda hoje preservados, em placas de
concreto urbano, sendo vistos por muitos como um grito em favor da paz. Seus escritos encontram-se estampados numa
espécie de livro urbano que são as pilastras que o abrigam no Viaduto do Caju, na Avenida Brasil, mostram-se aberto
àqueles que chegam ao Rio de Janeiro. É um local de passagem, árido e cinzento, onde os dizeres são vistos por quem
anda na velocidade dos carros. Cf http://www.livrourbano.hpg.ig.com.br/historia.htm.
A cidade mostra-se, muitos são os discursos que se articulam, que nos miram e se
entrecruzam com nossos olhares e passos, com olhares e passos de tantos outros e com nossas
próprias marcas deixadas ao percorrer tempos e lugares nos caminhos e descaminhos que vamos
traçando, rabiscando e problematizando a vida.
O urbano contemporâneo tornou-se desesperadamente sobrecarregado, apresenta-se com
placas, anúncios, campanhas, muros pintados, rabiscados, manifestações políticas, religiosas,
econômicas, indicadores mostrando idas, chegadas, retornos e voltas: retratos fragmentados
colocando em cena as múltiplas formas de se viver e de se produzir sentidos manifestadas pelos
muitos grupos que contracenam. Muitas coisas parecem estar sendo enunciadas, pichadas, marcadas,
publicizadas numa sobreposição caótica de acontecimentos. Há uma profusão de estímulos aos
sabores e saberes do humano fincados em cada um de nós pela instantaneidade de tempos e espaços
passando, chegando, ficando e saindo, em que nos encontramos, inexoravelmente, imersos.
Em torno desse cáustico do cotidiano da cidade, marcado por múltiplas expressões e discursos
postos em também não menos múltiplos suportes é que focalizo o meu olhar para as práticas de
grafitagens e pichações, deixo-me seduzir por elas e fico observando a cidade como um desafio a
mover-me dentro dela e, desde ela, colocar-me de frente a suas interpelações. Entendo que esse
movimento mobiliza em cada viandante uma enormidade de conexões que se articulam em efeitos e
produzem uma economia de sentidos. Em mim, mobilizam sentidos que me conduzem a tomar as
práticas de grafitagens e pichações, não apenas como interferência sobre os suportes da cidade, mas
como uma interferência sobre os próprios significados que elas provocam em mim.
Conduzida pela minha vontade de saber, neste capítulo, mostro como as práticas de
grafitagens e pichações vêm sendo produzidas pelos discursos que as constituem nos jogos das
relações de poder e de saber, digo como tais discursos estabelecem diferenciações e porque escolho
denominá-las de grafismos urbanos nesta pesquisa. Também proponho-me a trazer elementos
conceituais que me instigam e me conduzem a um pensar ou, dito de outra forma, problematizo as
questões culturais sobre as práticas dos grafismos urbanos nas suas interlocuções com os autores e
com o meu olhar direcionado para a produtividade dos discursos focados em torno de paz e violência.
2.1 RISCOS E RABISCOS SOBRE GRAFITAGENS E PICHAÇÕES
É com a possibilidade de pensar riscos e rabiscos, anônimos e efêmeros, intervindo sobre o
corpo da cidade, que inicio minha referência sobre o conhecimento produzido em torno de grafitagens e
de pichações, buscando colocá-las dentro de um olhar específico para, talvez, também submetê-las ao
meu rabisco.
Ao realizar leituras sobre esse campo de intervenções na paisagem urbana, defrontei-me com
inúmeras formas de denominações dadas à grafitagem e à pichação, quais sejam elas: escrita urbana,
graffiti, pichação, picho, grafismos urbanos, arte de rua, arte urbana, grapicho, grafite. Tais
denominações são descritas e analisadas principalmente por Lara (1996), Gitahy (1999), Pennachin
(2003), Duarte (2001). A pesquisadora Munhoz (2003), informa que as interferências realizadas em
diferentes suportes da cidade são denominadas por seus atores como escrita urbana e que essa
terminologia engloba tanto o grafite quanto a pichação. Contudo, continua essa autora, graffiti é a forma
mais utilizada pelos que a praticam, além de ser a grafia mais adotada no Brasil e em outros países
pelo mundo afora, tornando-se uma nomenclatura considerada mais “universal”.
Minha discussão principia com o debate sobre a própria expressão utilizada para introduzir
concepções diferenciadas entre grafite e pichação que, segundo Calazans (2003), poderia originar-se
da palavra sgraffito, técnica usada para decoração mural do renascimento que consistia em passar um
revestimento claro sobre um suporte escuro, onde raspavam-se formas, depois de seco, de desenhos
desejados. Já Gitahy (1999), informa que graffiti é o plural de graffito, palavra que dá nome às
máscaras feitas com carvão ou pontas afiadas nas pedras e monumentos da idade média. Esse autor
opta por fazer uso da expressão graffiti, entendendo que algumas palavras devem permanecer em sua
grafia, no caso a de procedência italiana, por carregarem a “intensidade significativa com a qual se
textualizam dentro de um contexto” (GITAHY, 1999, p. 13).
A palavra, portanto, vem do italiano graffito e tem origem grego-latina: graphein que significa
escrever e grafhium, gravado com estilete. Também é denominado de grafite, o material cor de chumbo
que compõe o lápis. Outros, como Lara (1996), decidem simplesmente pelo uso da palavra grafite
considerando sua tradução para o português como inscrição urbana: algumas vezes, usada como
grafito no singular ou grafitos no plural. Nessas tentativas de definição, temos ainda aquela dada pelo
dicionário Aurélio
17
, que a entende como inscrição urbana, considerando alguns significados
anteriormente referidos e seus lugares tidos como de procedência. No campo científico da arqueologia,
para nominar as pinturas e desenhos que diziam da existência de grupos culturais primitivos e da
sobrevivência de linguagens, rituais e cultos, utilizou-se a palavra graffiti para organizar e datar essas
representações encontradas.
Esclareço que estarei usando a terminologia grafismos urbanos, cunhada e significada por
Pennachin (2003) como prática hibridizada que se refere a traços que representam grafitagem e picho
num processo de interpenetração. Assumo tal denominação, primeiramente porque, ao analisar e
capturar algumas grafitagens e pichações, percebo que elas se materializam mescladas, tornando-se
difícil realizar distinções entre ambas. Um segundo motivo que me leva a assumir a nomeação
grafismos urbanos é porque para aquilo que me proponho desenvolver nesta pesquisa, entendo que
estarei marcando uma diferenciação que me possibilitará compreender o movimento culturalmente
inventado por essas práticas.
Alem disso, talvez, estarei fazendo mais um acréscimo às denominações, porque as considero
como textos culturais escritos por muitas mãos em tintas urbanas. Textos porque têm uma
materialidade discursiva inscrita culturalmente, portanto instituidora de sentidos. Tintas porque se
apresentam sempre abertos a outras misturas, outros matizes e novas tonalidades, porque carregam
consigo o inesperado, o volátil, o acontecimento, promovendo uma elasticidade de significações dadas
à emergência do olhar que é interpelado e interpela. No meu caso, essa imbricação se direciona na
perspectiva de olhar e fazer operar as noções paz e violência como discursos perpassando essas
práticas.
17
Verbete, esse, que se encontra dicionarizado apenas a partir do ano de 1988 no dicionário Aurélio, trazendo como
definição para grafite a expressão inscrição urbana, conforme informação retirada, em 28.01.2005, do site:
http://www2.labore/hibridos_grafite_meiop8.htm.
Adensando-me dentro desse emaranhado discursivo sobre grafitagens e pichações, percebi
que há autores que entendem essa terminologia como sinônimos, isto é, tratam ambas como inscrições
urbanas. Outros, no entanto, parecem conseguir distinção entre uma e outra, manifestando
entendimentos sobre suas formas de existir, seus usos e costumes buscando precisão e
distanciamento. Ao longo de minha argumentação, neste capítulo, trarei essas questões e outras para
problematizá-las, pois não pretendo entrar nesta briga por definições e dizer o que é mesmo pichação
ou o que é mesmo grafitagem.
Por certo a vida não se dissocia daquilo que nela se expressa. Sendo assim, parece-me
impossível dissociar grafitagem e pichação de uma forma de expressão da vida, pois elas dizem
“respeito a uma necessidade humana como dançar, falar, dormir, comer etc” (GITAHY, 1999, p.13) e
não se aprisionam a nomenclaturas, extrapolam possibilidades de construção e significação, conforme
quem as produz e segundo os sentidos atribuídos por diferentes grupos.
Ao empreender leituras, passei a considerar como foram se constituindo alguns saberes sobre
grafitagem e pichação. Por isso, não penso em perguntar sobre a origem dessas práticas como solo
inicial de uma experiência fundante, nem trazer aqui detalhes das especificidades desta história da
origem dos grafismos urbanos, porque acredito que não é esse o objetivo deste trabalho, pois
considero que “o mais interessante não é ver que projeto está na base de tudo isto, mas em termos de
estratégia, como as peças foram dispostas” (FOUCAULT, 2004c, p. 152), para que fôssemos
construindo os entendimentos que hoje se tornaram regimes de verdade sobre essa questão.
Por isso, vejo como imprescindível mostrar como algumas peças foram sendo dispostas acerca
de grafitagem e pichação para compreender sua produção examinando rupturas, formas, processos
culturais que se instituíram e que serão explicitados nos interstícios das análises que vou
empreendendo. Talvez, para este fim, torne-se útil examinar lugares de tessituras e descontinuidades
dessa prática cultural para poder atribuir outros sentidos e dizer dos efeitos que poderão se entrecruzar
nos rabiscos desta proposta de dissertação.
Quando, em seus escritos, Gitahy (1999) busca pela origem do que denomina de graffiti,
assinala como lugar de seu nascimento os tempos das cavernas escuras. Remonta-se às pinturas
rupestres, encontradas na pré-história, tempo em que se pintava nas paredes das cavernas imagens
de caças, rituais de festas e símbolos, cujos significados faziam sentido para aqueles grupos.
Expressavam-se no pouco espaço existente dentro das cavernas com materiais retirados do seu
entorno: diferentes tipos de terra, tonalidades de plantas, misturas de água com gordura de animais e
outros objetos encontrados na natureza. Segundo esse mesmo autor, existia um movimento de intervir
nas imagens para nelas ir sobrepondo novas imagens sobre as antigas, a fim de revelar a dinâmica do
cotidiano experimentado pelos grupos de então.
Essa argumentação também é trazida por outros autores como Lara (1996, p. 32), quando diz
que “o ato da inscrição anônima é tão antigo quanto à descoberta do fogo”, reforçando a idéia de que
isso é parte do processo vivido pelos humanos, acrescentando que desde a infância realizamos as
garatujas. No entanto, parece que Lara opera uma pequena ruptura em relação ao significado dado
primeiramente, lembrando que estas incisões, sinais e desenhos mudam com a própria história da
humanidade. No período das cavernas, segundo esse autor, significavam a vida mesmo das pessoas
que as faziam e que as viam, aqui elas significam a pessoas e a grupos específicos que as fazem ou
são conhecedores dessa linguagem. Contudo, eu suponho que, mais do que sugerir, elas produzem
significados para aqueles que as fazem, para aqueles que as observam e para os que passam por elas
e se deixam capturar por sua rede de sentidos.
Observa-se que a grafitagem e a pichação foi útil para designar formas de vida, práticas
cotidianas e para, de certa forma, datar ruínas como é o caso dos murais descobertos em Pompéia ou
dos próprios símbolos grafitados pelos primeiros cristãos nas catacumbas de Roma como lugar de
encontro secreto. Desses discursos, interessa-me perceber que há coisas sendo ditas, há significados
sendo fabricados, que devem ser consideradas para que eu possa “ao mesmo tempo distinguir os
acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e
fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros” (FOUCAULT, 2004b, p. 5). Nesse processo de
garimpagem, meu desafio é o de não fazer um relato linear da história da grafitagem e da pichação,
mas sim tramar os acontecimentos para reconstituir os fios que os ligam.
Ao me enredar por esse campo da grafitagem e da pichação em busca de pesquisas, pouco
tenho encontrado em minhas garimpagens, na perspectiva dos Estudos Culturais pós-estruturalistas e,
especificamente, no campo da educação. Defrontei-me, por certo, com pesquisas e compreensões
sobre grafitagem e pichação, mas muitas delas voltadas para as ciências das artes e da comunicação
(Lara, 1996), (Costa, 2000), (Ramos,1993), (Duarte, 2001); algumas caminhando para o campo da
antropologia (Silveira, 1991), (Garcez, 2000), (Munhoz, 2003); da psicologia (Mascarenhas,1996),
Barbosa (1984) e outras chegando, mansamente, a interlocuções com a educação Bernardes (1991),
(Goldgrub,1998). No campo da educação, eu encontrei apenas dois trabalhos, lugar que também me
inscrevo para realizar esta pesquisa.
Aproximei-me da pesquisa de Bernardes (1991), intitulada: A compreensão do grafite na
escola, para ver como ela problematizava a temática. Percebi que o lugar de onde falava e a forma
como construiu sua pesquisa distanciavam-na do meu objetivo. Ela o fez, utilizando o grafite como
forma de expressão artística e de aproximação ao contexto das experiências de alunos. Organizou-se
a partir da pergunta, feita a alunos de uma escola de ensino fundamental: o que é o grafite para você?.
Valendo-se dessa pergunta, descreveu entendimentos que as crianças tinham e realizou uma
experiência com grafitagem dentro do espaço escolar, utilizando o grafite como parte do currículo na
disciplina de artes, traduzindo em projeto pedagógico nos referenciais das Teorias Críticas. Não
poderia permanecer nesse terreno de quem pergunta sobre o quê?, pois ao compreender assim os
grafismos urbanos, eu estaria encerrando o sentido e apagando sua produtividade cultural.
Encontrei trabalhos entre o período da década de oitenta, do século XX, até a atualidade, em
vários campos, como já referi. Um dos que sempre é referendado pelos autores, talvez por ser um dos
primeiros no Brasil, é o trabalho Grafitos de banheiro realizado por Barbosa (1984), com acento na
análise mais psicológica e antropológica. Percorre banheiros masculinos e femininos de várias
instituições (repartições públicas, fábricas, terminais de passageiros, bibliotecas, bares, cinemas) em
diversas capitais do Brasil, durante um ano inteiro. Denomina essas inscrições latrinárias de literatura
proibida e as trata como resultado possível da repressão sexual e de degradação da sexualidade, da
culpa, da proibição versus transgressão, investindo tempo em ordená-las, classificá-las e descrevê-las.
Observa que o grafiteiro, como material de escrita, utiliza caneta esferográfica ou hidrográfica, lápis
grafite e, ainda, conforme a superfície, instrumentos pontiagudos: estilete, canivete, compasso. Em
alguns casos, segundo esse autor, usavam as próprias fezes como material de escrita. Os suportes
visados para fazer as inscrições eram, principalmente, as portas e as paredes, mas também os vasos,
os assentos sanitários, as caixas de descarga, o teto e até o chão. A forma como o autor mobiliza essa
prática, ajuda-me a olhar para cidade e enxergar classificações e transgressões, na ordem do político e
do social, sendo expressas em suportes tais como muros, paredes, placas.
Duarte (2001), em sua obra Paredes... que falam: as pichações como comunicação alternativa,
faz uma análise interpretativa das manifestações culturais verbais ou imagéticas expostas no cenário
da urbe dentro dos domínios de compreensão da semiótica. Centra sua abordagem nas pichações e
faz suas análises a partir de fotografias que tira e de entrevistas que realiza com grupos de pichadores
do Brasil e do Uruguai. Entende as pichações como processos comunicativos alternativos nos quais
estão inseridos não só as mensagens produzidas, “mas os sujeitos, produtores e receptores, os
cenários e os suportes urbanos onde se manifestam, as linguagens empregadas na construção das
mensagens pichadas” (DUARTE, 2001, p. 7). O que busca realizar é a inserção das condições de
produção e de reconhecimento dos sentidos dessas mensagens dentro do contexto da metáfora da
sociedade midiática e de informação
18
. Acredita que os espaços ocupados pelas pichações, no
percurso de suas manifestações em diferentes contextos e lugares, são caracterizados como não
oficiais ou não convencionais, balizando sua argumentação na noção de espaço e lugar em De
Certeau
19
. O que no meu entender, pode ser problematizado uma vez que esses grupos culturais
compreendem a exterioridade dos suportes urbanos como espaços para se dizerem e abertos a novas
expressões.
Dentre os trabalhos que tive acesso, opto por me deter mais no de Arthur Hunold Lara (1996)
intitulado: Arte urbana em movimento, realizado dentro das Ciências da Comunicação. Faço essa
escolha por acreditar que ele me fornece mais elementos conceituais que trarei para este trabalho e
que colaboram para compreender meu objeto histórico. Mesmo assim, não será o único trabalho, pois
me valerei de Pennachin (2003), Silveira (1991), Gitahy (1999) e outros para as construções que
realizarei.
Em sua pesquisa, Lara (1996) investiga as origens do grafite, trazendo elementos históricos,
significações, tensões, eventos e vertentes diferenciadas presentes no mundo e no Brasil. Entende-o
como arte, como movimento e como um processo comunicacional contextualizado no interior de um
quadro mais amplo de desenvolvimento dos meios de comunicação e da produção cultural nas grandes
cidades. É um processo comunicacional, segundo Lara (1996), através do qual o indivíduo massificado
procura sua própria identificação e valorização. Localiza sua pesquisa em São Paulo, focalizando
especialmente o período entre 1990 a 1995.
Além da coleta de dados e da pesquisa bibliográfica, ele mesmo discute e interfere na arte
urbana, como grafiteiro, alguém envolvido diretamente nesse processo, realizando três “Mostras
Paulistas de Grafite”, nos anos de 1992, 1993 e 1994, utilizando o espaço do Museu da Imagem e do
Som em São Paulo. Com isso, observo que, esse autor, colabora para retirar o grafite das ruas e
confere-lhe o estatuto de arte, permitindo-me reconhecer nos acontecimentos da história a
18
Esse autor, usa tal expressão no sentido dado por Martín Barbero em sua obra: Mediações urbanas e novos cenários de
comunicação, quando diz que os movimentos de desterritorialização e internacionalização dos mundos simbólicos e do
alargamento das fronteiras é experimentado pelos fluxos fortemente determinados pelas transformações da comunicação e
da tecnologias entre as culturas modernas/tradicional, local/global, popular/erudita, letrada/audiovisual.
19
Na obra A invenção do cotidiano Michel De Certeau diz que o espaço “é o efeito produzido pelas operações que o
orientam, o circunstanciam, o temporalizam e levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de
proximidades contratuais” (1998, p. 200)
reconstituição de fios para que eu possa olhar para os grafismos urbanos como prática cultural
discursiva em movimento.
Insisto que ao recuar na história não estou buscando o alicerce originário como uma identidade
recolhida em si sobre grafitagem e pichação. Não pretendo tomar a história como uma sucessão de
fatos que fundamentam o conceito primeiro dessa prática, pois isso seria “tomar por acidental todas as
peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces” (FOUCAULT, 2004c, p.
17), seria querer responder sobre a identidade primeira da grafitagem e da pichação, sua essência
exata e fixá-la. Opto pelo caminho da história porque acredito que me ajudará a perceber fios que
interligam sentidos no movimento de mostrar como o meu tema foi percebido e como vem sendo
problematizado. É o que faço na próxima etapa de minha escrita ao trazer fragmentos e localizar os
grafismos urbanos em determinados recortes históricos.
2.2 DESENHANDO SIGNIFICAÇÕES SOBRE GRAFISMOS URBANOS
Se as pinturas rupestres feitas no interior das cavernas, nas paredes de pedra, carregavam
simbologias de expressões da vida, da organização social e da cultura da época, podemos assegurar,
seguindo esse modo de pensar, que os grafismos urbanos são igualmente práticas discursivas
contemporâneas, assinalando enfrentamentos cotidianos e visibilizando modos de viver.
Provavelmente, se no futuro permanecerem registros de grafitagens e pichações no tempo, muitos
poderão vir a se perguntar e a se debater em decifrações, buscando nessas práticas culturais
explicações para as linguagens e os costumes de uma época ou de um grupo cultural da mesma forma
como muitos se detêm hoje em relação àquelas que sobreviveram na história.
Faço um recorte histórico para trazer presente o movimento cultural vivido na segunda metade
do século XX como lugar onde os discursos sobre grafitagens e pichações começam a se proliferar e
tomar contornos que se assemelham com a produtividade discursiva que eles têm na
contemporaneidade segundo as indicações dos autores Lara (1996) e Gitahy (1999).
Cabe mencionar novamente, agora adentrando um pouco mais neste contexto, que as formas
como hoje são conhecidas as práticas de grafitagem e pichação, entram em cena em meados da
década de 60 e como indica a pesquisa de Lara (1996), eclodem repentinamente a partir do movimento
estudantil dos jovens franceses, no século passado, em maio de 68. Nesse período, os grafismos
urbanos utilizavam frases poéticas e políticas inscritas em muros para manifestar seu repúdio contra o
sistema e as forças repressivas da época. O sentimento anti-imperialista vivido naquele contexto, a
guerra fria e o desconforto dos jovens estudantes diante das guerras coloniais, fizeram o movimento se
internacionalizar e ser apoiado nas universidades européias, nos Estados Unidos e na América Latina.
É interessante observar que o caminho percorrido pela grafitagem e pela pichação, segundo a
configuração atual, inscreve-se na Europa e nos Estados Unidos, extrapolando fronteiras e gerando
efeitos inesperados: tornaram-se alvo de pesquisas universitárias em todo mundo, expressam modos
de viver de certos grupos, soam como enunciação de determinados discursos.
A contracultura
20
, movimento de contestação pacifista que envolvia jovens universitários,
escritores e intelectuais do mundo inteiro com seu ápice no final da década de 60 do século XX,
colocava em circulação discursos que se manifestavam contrários à ordem que estava instaurada,
queria ser uma ferramenta, um instrumento de luta e de reconstrução da identidade cultural daqueles
indivíduos que não se sabiam representados pelo contexto industrial, massificador e excludente dos
grandes centros urbanos de então. A contracultura era “uma maneira de se revoltar contra a ordem vigente;
a anarquia e a revolta pacífica eram pregadas pelos movimentos dos estudantes contra o ‘sistema’; as armas
eram as idéias, as atitudes, o grafite e as flores”
(LARA,1996, p. 51).
Nesse sentido, o grafite era um instrumento que possibilitava a rebeldia e a transgressão como
forma de dizer-se e de deixar marcas pelos muros e paredes das cidades na efervescência de um
sistema que silenciava. No contexto da contracultura, terreno fértil das comunidades hippies, da
produção independente, da vida alternativa e fazia frente à vida burguesa, à mediocridade, à repressão
do sistema capitalista é que essa prática ganhou visibilidade e importância, chegando à rua como
forma de comunicação diferenciada, como protesto para reivindicar direitos, para dizer o que se
pensava, para denunciar questões sociais e políticas, para discutir a arte, a arquitetura, as relações de
exclusão no espaço urbano.
Nos anos oitenta, no Brasil e no mundo, pesquisadores como Castleman (1982), Barbosa
(1984), Durham (1986), dentre outros, escrevem dissertações e teses de mestrado e doutorado
procurando entender a pichação e o grafite, seus movimentos e autores, como era sua forma de ser e
de se organizar, bem como sua linguagem, suas influências e seus diferentes modos de se manifestar
e intervir na cidade e na ocupação de seus espaços. Percebo aqui um outro deslocamento que faz
surgir discursos e institui verdades sobre as práticas culturais dos grafismos urbanos, conferindo-lhes
um lugar na academia como objeto de investigação.
O caráter de canal paralelo de informação com os pés na contracultura adquirido pelo grafite,
tornava-o aberto a múltiplas possibilidades de comunicação vividas através de impressões sensoriais
provocadas em seus observadores. O grafite não fica fechado a fronteiras e demarcações, pois na
ebulição desse movimento e constituído por ele, torna-se “
parte da bandeira anarquista européia que, ao
ultrapassar as fronteiras continentais, encontrou nos EUA uma sociedade aberta à contra-cultura e às novas
influências e um mercado de arte carente de novas tendências” (LARA, 1996, p. 53).
Nessas circunstâncias, pode-se dizer que o grafite se difunde de forma intensa, rápida e
profusa por todos os centros urbanos. O grafite ganha as ruas das cidades, utiliza inúmeros suportes:
paredes, muros, banheiros, viadutos, como forma de expressão plástica e política. Através de uma
infinidade de suportes, as manifestações acontecem e expressam as transformações, os muros tinham
a palavra e a usavam
20
A contracultura é entendida historicamente como um movimento que rejeitava abertamente tudo que provinha da
sociedade tecnocrática, competitiva, individualista e consumista apregoada pelo capitalismo norte-americano que muitas
vezes recorria a uma argumentação pseudo-humanitária para encobrir os bombardeios, os massacres e outras atrocidades
das guerras que vinha provocando, especialmente a guerra do Vietnã. Quem aderia ao movimento da contracultura queria
de alguma forma extrapolar as regras vigentes, surpreender por comportamentos não esperados, impressionar por posições
que explicitavam preconceitos diversos. A ordem era mudar costumes através de manifestações pacifistas, como foi o caso
do surgimento dos movimentos negro, feminista, hippie, objeção ao serviço militar e do movimento contra a guerra.
desafiando a concepção funcionalista dos espaços públicos, foram usados para
contestar o Estado, a Política, a Mídia. A intervenção urbana foi de tamanha
grandeza que saiu do movimento estudantil e foi empregada por anarco-
sindicalistas e artistas plásticos, espalhando-se pelo mundo espontaneamente, do
pincel atômico ao spray, chagando ao bastão punk
(CALAZANS, 2003, p. 2).
Ligados a essas novas tendências e pelas possibilidades de manifestar-se, de dizer-se e de
sair do gueto, os jovens de Nova Iorque começaram a pichar as paredes, imprimindo uma marca que
criava uma identidade aos grupos, a qual denominavam tag ou assinatura, que inicialmente era feita
com pincel atômico e depois com spray. Espalhavam essas tags nos muros dos bairros e nas paredes
dos metrôs, atingindo tapumes, trens, carros, caminhões, postes e tudo que viesse a servir de suporte
para suas inscrições e que dessa identidade à gangue como forma de demonstrar o domínio daquele
território. A tag era uma
marca adotada de uma forma elaborada, signo distintivo simples e facilmente
reconhecível, ele é traçado de início com pincel atômico e depois com spray por
toda a cidade. Um dos mais célebres é o TAKI 183 (Taki é um garoto que se tornou
famoso após espalhar sua Tag
pela cidade, sobre muros, portas, placas, metrô,
etc., e ser descoberto e entrevistado pelo jornal The New York Times
em 71)
(SILVEIRA, 1991, p.12).
Muitas vezes o pichador juntava o número de sua casa ou o número das ruas freqüentadas
pelos grafiteiros à assinatura (tag). Quanto mais assinaturas mais visibilidade para aquele determinado
grupo. Isso provocou uma disputa acirrada por espaço, por realizar o maior número possível de
assinaturas e nos lugares sempre de mais difícil acesso. Pode-se dizer que todo esse processo
demarca uma produção cultural de identidades, marca espaços, forjando estilos de vida, modos de
pensar, de viver no multifacetado mundo urbano.
Ao manusear alguns grafismos urbanos, observo que alguns traços se mantêm em suas
práticas: tags, números, sobreposição de traços indicando disputas por espaço, letras estilizadas,
proliferação de uma mesma tag.
Apresento a seguir alguns grafismos urbanos que mostram a produtividade do que referi até
aqui. Tomo-os como textos culturais que se inserem no movimento de produção de sentidos postos por
esta investigação. Logo não são meras ilustrações, são textos que me fazem realizar leituras, articular
conhecimentos e que me possibilitam novos retornos para enfrentar o caráter conflitivo que os
grafismos urbanos têm por serem “uma prática vista de forma ambivalente, tanto em termos estéticos
quanto morais” (MUNHOZ, 2003, p. 15).
Nos textos culturais dois e três procuro apresentar as chamadas tags ou assinaturas como são
denominadas por grafiteiros e pichadores e dizer que as capturei isoladamente do corpo tatuado da
cidade, mas que essas mesmas tags podem ser vistas de forma espalhada em diferentes bairros da
cidade, apontando para uma proliferação e uma demarcação de espaço de um determinado grupo. No
caso apresentado no texto dois, a assinatura “TEXERA 04” é realizada na parte lateral de um prédio
residencial no bairro Menino Deus, rua Vicente Lopes dos Santos.
Nessa materialidade, a letra é possível ser compreendida e o número no canto direito superior
da assinatura pode estar marcando uma identidade pessoal do grupo ou pessoa que o fez, pode ser
um número que indique a quantidade de assinaturas desse grupo no bairro, pode ser o número da casa
ou outro significado que designa algo particular da pessoa ou do grupo. O texto três situa-se na parede
de um muro, na praça Princesa Isabel, no bairro Azenha, Porto Alegre (RS), cuja tag leio como “DANO”
e logo abaixo dela aparece um outro grafismo que suscita o entendimento de ter sido realizado
posteriormente.
Constatei a presença dessas mesmas assinaturas em outros bairros: Cidade Baixa, Menino
Deus, Bom Fim, Independência, Santo Antônio, Azenha. O que me leva perceber um fio que liga os
grafismos urbanos contemporâneos com aqueles que surgiram no contexto do movimento da
contracultura que colocava em dúvida os valores vigentes e centrais do ideário instituído pela cultura
ocidental. Há uma materialização que se extravasa em abundância em muitos suportes pela cidade,
gravando suas marcas numa intensidade que se propaga e se reproduz.
Também percebo que a grafitagem e a pichação vêm sofrendo rupturas e transformações, pois
as próprias tags passaram a ser desenhadas de modo a dificultar a compreensão dos que não
pertencem àquele grupo e cada vez com estilos mais complexos. Introduziram-se às assinaturas e às
letras imagens coloridas com motivações e estilos múltiplos. Alguns estilos foram sendo copiados e
tornaram-se comuns na maneira de fazê-los por causa da forma da letra utilizada, da legibilidade, das
cores, dos efeitos, da estética, dos contornos, da perspectiva.
Através dos muros e de sua formas de se pronunciar pode-se expressar qualquer coisa que se
deseje e também pode-se intervir sobre os demais textos que já estão escritos. “Não raro, acontece de
uma pichação de um muro dar início a várias outras, provocando uma interminável seqüência de
apelidos e siglas de crews” (PENNACHIN, 2003, p. 5). É o que quero mostrar a seguir quando
Texto cultural - 2 Texto cultural - 3
disponibilizo à leitura os textos culturais quatro e cinco com sua produtividade de traços, mas mais do
que isso; cabe observar que essas práticas também misturam estilos, letras, deixam recados,
entrelaçando-se com outros grupos como bem podemos observar nestes textos que apresento.
Nos textos culturais quatro e cinco, o primeiro situado na rua General Salustino e o segundo da
rua Washington Luis, ambos do centro de Porto Alegre (RS), são múltiplas as assinaturas que se
sobrepõem e os próprios estilos de “largar a tinta”. Essa expressão é normalmente utilizada pelos
autores destas práticas, segundo a entrevista realizada por Munhoz (2003), em sua pesquisa, junto a
grafiteiros. Nesses grafismos urbanos também nota-se a multiplicidade de ações realizadas por
diferentes mãos: letras mais elaboradas, mais difíceis de significar, recados em torno de
questionamentos como é o caso “quanto vale a sua opinião?”, ou “PROS PARCERO SÓ TENHO A
OFERECER MINHA PRESENÇA. TALVEZ CONFUSA, MAS LEAL E INTENSA”, ainda aparecem
máscaras sobrepostas, números, signos variados que, como bem lembra Pennachin (2003), dizem algo
a alguém. Abrem-se a leituras e abrem-se a outras manifestações.
Com essa mobilização, as grafitagens e pichações espraiam-se com asas transgressoras pelo
mundo e “são uma resposta ao estilo de vida pós-moderno, e não apenas interferem na metrópole, mas
esta também, em igual medida, se encontra nelas” (PENNACHIN, 2003, p. 2). Tenho aqui uma pista
para compreender os cruzamentos e os atravessamentos discursivos na perspectiva de que há um
exercício de constituição de significados nos grafismos urbanos: dizem-nos e dizem-se a si mesmas
frente ao turbilhão de ditos supostos pelo ritmo da existência, permeados pela incerteza e pelas
ininterruptas transformações e não permanência das coisas. Assim, posso começar a ver discursos
sobre paz e violência sendo significados pelos textos culturais dos grafismos urbanos .
As práticas de grafitagem e pichação, desde seu surgimento, foram consideradas atividades
clandestinas e sujeitas a alguma forma de perseguição por causa de sua interferência no espaço
urbano. Do ponto de vista do discurso jurídico, no Brasil, ambas são tidas como atividades ilícitas
desde que foi sancionada a lei ambiental número 9.605
21
, durante o governo do presidente Fernando
21
Essa lei dispõe sobre as: sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente
e à comunidade. Supõe a suspensão da atividade e apreensão do produto que leva ao crime e causar poluição de qualquer
Texto cultural - 4 Texto cultural - 5
Henrique Cardoso, em vigor desde o início de 1998. Tal lei declara a pichação e a grafitagem como
crimes contra o meio ambiente e, por conseguinte, sujeitas a penalidades e não estabelece nenhuma
distinção entre ambas.
Querendo, ou não, distinções vão sendo feitas, pontos de contatos estabelecem-se por olhares
que se cruzam, vendo como pichação e grafitagem usam a cidade e seus espaços, os objetos que nela
estão dispostos, ociosos, ou não, como lugares para dizerem-se e como suportes de expressão.
Segundo Pereira
22
, o que lhes confere semelhança é o fato de ambas desejarem subverter o
espaço urbano; mas, o mesmo autor, informa que a grafitagem foi de certa forma cooptada pelo poder
público, pela arte e pela publicidade, enquanto que a pichação foi renegada:
assim como o graffiti, a pichação interfere no espaço, subverte valores, é
espontânea, gratuita e efêmera. Uma das diferenças entre o graffiti e a pichação é
que o primeiro advém das artes plásticas e o segundo da escrita, ou seja, o graffiti
privilegia a imagem; a pichação, a palavra e/ou a letra (GITAHY, 1999, p. 19).
Parece-me haver um jogo de verdades nessas disputas que posiciona a pichação mais na
ordem de escritas: não é desenho nem tem mensagem, por isso, torna-se marginalizada, uma negação
da arte; enquanto que a grafitagem é entendida como arte por alguns.
Entendo que essa apropriação do espaço urbano promove uma discussão, imprime uma
interferência, subverte espontaneamente a arquitetura da cidade, proporcionando uma acessibilidade
plural e aberta, bem humorada e irônica entre os diferentes personagens, entre aqueles que tatuam o
espaço e aqueles que por ele são tatuados, tornando a urbe também um corpo tatuado
23
, uma galeria
aberta aos múltiplos olhares e a pluralidade de sentidos. Grafitagem e pichação compõem um universo
de atividades imbricadas entre si, interpenetram-se e podem resultar em estilos diferentes, ambas
possuem elementos comuns e ambas são obras abertas a tantos outros traços possíveis que podem
ser adicionados, e também se dão ao estranhamento para todas as pessoas que circulam nos espaços,
indistintamente.
Envolvida com a questão da diferenciação, Pennachin (2003), confere ao grafite uma
conotação mais voltada a arena artística, dizendo de suas preocupações estéticas e formais com
técnicas de pintura mais elaboradas, e atribui para a pichação um caráter mais transgressor e de fácil
reconhecimento, apesar de compreender a preocupação de ordem estética dos pichadores ao
natureza. A seção 4, da lei 9.605/1998, trata dos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural. Informa, no
artigo 65, que pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano é crime sujeito a pena de
detenção, de 3 meses a 1 ano, e multa. Parágrafo único: se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada, em
virtude de seu valor artístico, arqueológico, ou histórico, a pena é de 6 meses a 1 ano de detenção, e multa. Cf.
http://www.carrocinhanuncamais.com/lei_crimes_ambientais.html . Acesso em 20.11.2004.
22
Cf. PEREIRA, Alexandre Barbosa. Site: http://www.n-a-au.org/NaunamidiaBarbosa.html. Núcleo de Antropologia Urbana –
USP. Acesso em 10.01.2005.
23
Pretendo me valer dessa metáfora de enxergar a cidade como um corpo tatuado e a desenvolverei com mais vagar
adiante. Antecipo que ao compreender a cidade como corpo sujeito a muitas marcas, portanto ação sobre outras ações,
suscito condições de relações de poder provocando lutas e significações.
elaborarem alfabetos próprios e ao buscarem o aperfeiçoamento do traço com o spray. Nomeia-os, no
entanto, de grafismos urbanos por compreender a dificuldade de classificar e porque entende que se
assim denominar estará sempre se remetendo aos dois.
O graffiti e a pichação são formas de linguagem marcadas pela
heterogeneidade e pela sobreposição e interpenetração de elementos, o que em
certa medida é um reflexo do modo mesmo como ocorrem, isto é, em meio às mais
variadas interseções sociais e sempre potencialmente abertos a novas
interferências (PENNACHIN, 2003, p. 5).
Mesmo concordando com as idéias de Pennachin sobre o fato de que a pichação é obra de
arte coletiva, atual, espontânea, desmanchada e anônima, e que o grafite tem autoria e utiliza-se de
planejamento, exigindo tempo para isso, Calazans ressalta que ambas têm o mesmo valor, afirmando
que “muitos teóricos que não vivenciam o processo insistem em diferenciar a pichação do grafite,
quando desde os banheiros públicos de Pompéia as frases convivem com desenhos” (2003, p. 3).
Segundo esse autor, as práticas de grafitagem e pichação entrelaçam-se escapando a classificações e
a diferenciações que tenderiam a ser sempre superficiais.
Pode-se dizer, ao percorrer esses autores e as próprias marcas postas na epiderme da cidade,
que são vários os estilos de grafite e os cruzamentos com a arte, a dança, a música como o hip-hop, o
break dance, o rap, DJ’ing que se misturam num sincretismo de formas e expressões, chamando a
atenção para a interferência que suas atividades provocam no ambiente, ocupando os espaços e fluxos
urbanos culturais para suas manifestações.
O trabalho de Gorczevski (2002), focado no Hip-Hop, mostra justamente os atravessamentos
existentes dessa cultura de rua com outras formas de comunicação, fazendo conexões dos hip-hoppers
com suas produções midiáticas: grafite, dança, sites, vídeos, música, etc. Gorczevski examinou
hábitos, rotinas, aspectos da condição de vida e inserção no trabalho, produções de sentido midiático e
cultural consideradas constitutivas de subjetividades de jovens no Centro Cultural Redenção na
capital gaúcha, Porto Alegre, no bairro Bom Fim. Fez sua pesquisa através de entrevistas e da
convivência com os jovens, observando como recriavam modos de ser no processo de criação e
produção videográfico.
Os estudos que venho realizando mostram que essas formas de expressão de vida são
produzidas nos contextos pós-guerra, nos movimentos pacifistas e nas lutas a favor da não-violência,
na contramão da droga, pela não segregação racial, enfim na busca por direitos sociais, políticos,
religiosos, econômicos, culturais etc. Isso é confirmado por Lara (1996) quando em sua investigação
associa o grafite ao movimento hip-hop e diz que esse, por exemplo,
soube aproveitar o grafite para colocar de forma colorida suas reivindicações,
utilizando-o como elemento de identidade e meio para a internacionalização de
suas questões, especialmente as raciais e as ligadas ao consumo exagerado de
drogas pesadas
(p. 55).
Em diferentes momentos e com propósitos distintos, o engendramento dos grafismos urbanos
com outras práticas tem mobilizado grupos culturais a estabelecer conexões que produzem sentidos
sociais e políticos e colocam em circulação regimes de verdade que instituem lugares a serem
ocupados conforme a posição de sujeito em que se encontram na trama discursiva. Assim, nas
interlocuções com outras práticas, no rastro dos acontecimentos tramados com questões conflitivas da
vida social e política como a droga, a violência, o racismo, a exclusão, os discursos vão produzindo
sentidos sobre os grafismos urbanos.
Como tentativa de mostrar a mobilidade dessa prática, arrisco-me a anunciar os processos de
transformação e as rupturas pelos quais grafitagens e a pichações têm passado no Brasil, não para
que os olhemos como momentos em separado, onde um anula ao outro, ou o anterior é melhor do que
o posterior numa ordem sucessiva e isolada, mas para que observemos suas lutas, suas marcas e
como elas contracenam desde os suportes em que se encontram inseridas nesse movimento cultural
de interferências e de produção de discursos.
Gatahy (1999), em sua pesquisa, argumenta que se pode destacar quatro fases da pichação.
Primeiramente consiste em carimbar exaustivamente o próprio nome em qualquer tipo de suporte pela
cidade afora com a intenção visível de chamar atenção sobre si; no segundo momento entra em jogo
as disputas por espaço, diferentemente do primeiro, agora em lugar do nome alguns usam apelidos ou
símbolos, que servem de código para dizer do pertencimento a um grupo. Nesta fase, cada gangue
inventa letras diferentes e chamativas para ser mais conhecida do que outras.
O terceiro momento é marcado pela ousadia, os pichadores decidem driblar porteiros,
zeladores, guardas de edifícios públicos ou privados e o que contava então era a transgressão, era
encontrar o lugar mais alto, aquele que proporcionava maior grau de dificuldade e mostrava-se
obstáculo à realização. O pichador tinha de ser seguro pelas pernas e, rapidamente, deixar sua marca.
A imprensa, nessa fase, começa a se manifestar combatendo essa prática com artigos de página
inteira e com fotografias das pichações que agora atacavam também monumentos históricos. Isso
contribui para incentivar e exacerbar a prática da pichação.
A notoriedade dada pela imprensa deu passagem para o quarto momento: era preciso atingir a
mídia. Aquele que conseguisse mais destaque pela ousadia de realizar obras inusitadas, que gerasse
maior controvérsia e que desafiasse as autoridades no exercício da atividade aparecia e acontecia
mais. Isso passou a ser a ordem dia para o pichador ou para os grupos de pichadores. Nessa época,
início dos anos 90, o recém reformado Teatro Municipal de São Paulo e o Cristo Redentor no Rio de
Janeiro foram pichados, alcançando grande repercussão na mídia televisiva e na imprensa jornalística
nacional
24
. Os pichadores acabavam de atingir seu auge como acontecimento da mídia e como
questão polêmica na sociedade, colocando-se discussões na ordem do vandalismo e da violência, aqui
entendida como depredação do patrimônio público e privado, por um lado, e abrindo para pensar outras
formas de conviver com os grafismos, por outro.
24
Os jornais do Brasil e o Globo do Rio de Janeiro fizeram matérias e a Folha de São Paulo também fez reportagem
indicando a polêmica e até mesmo fomentando a prática e a reação dos grupos de pichadores e da sociedade de modo
geral. As matérias referidas datam de 20 de novembro de 1991, conforme pesquisa feita por Gitahy (1999).
Ainda, nessa época, têm-se notícias de um grupo de artistas de rua em São Paulo
25
que foi
preso quando às vésperas do aniversário da cidade, em 1988, decidem grafitar uma homenagem para
ela no túnel da praça Roosevelt. Além de terem sido autuados e fichados por crime contra o patrimônio
público, tiveram seus materiais de pintura apreendidos sendo somente liberados através do pagamento
de fiança.
Nesses descaminhos da grafitagem e da pichação tenho notado uma produtividade entre os
autores que tenho embasado minha discussão em torno de classificações em fases, estilos,
procedências, significações, o que tem me levado, freqüentemente, a retomar, corrigir, ajustar e, no
exercício do estranhamento, exercer a curiosidade porque se apresenta a mim, nesse momento, “a
questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do
que se pensa” (FOUCAULT, 1984, p.13) para continuar problematizando os grafismos urbanos e a
própria forma de investigar.
Com isso, reitero que a grafitagem, considerada como uma prática marginal pelas instituições
governamentais e pela própria sociedade civil, desde o seu surgimento era feita de forma ilegal,
escondida, fora do permitido. Seus autores agiam normalmente à noite e clandestinamente, embora
com o passar do tempo, tenha migrado para o circuito estabelecido da arte, transformando-se numa
vertente estética dessa, passando a figurar como obra em museus e galerias, sendo admirada por
alguns e reconhecida como elemento artístico.
A primeira galeria dedicada inteiramente ao graffiti foi a Fun Gallery no East
Village, dirigida por uma atriz de cinema underground Patty Astor. Pouco a pouco,
outras galerias começaram a requisitar artistas do graffiti, transformando alguns em
verdadeiros astros da arte contemporânea. Antes de chegar à galeria, o graffiti é
spray art (pichação de signos), em seguida, é stencil art – o artista utiliza um cartão
com formas recortadas que, ao receber o jato do spray, só deixa vazar a tinta pelos
orifícios. A primeira operação valoriza o desenho; a segunda, a cor (GITAHY, 1999,
p. 39)
Ao adquirir estatuto de arte contemporânea, o grafite entra nos espaços do circuito da arte e
começa a ser divulgado e comercializado. Mesmo adquirindo tal estatuto, é bom recordar que
manifestações ligadas ao movimento inicial da grafitagem nos Estados Unidos, informa Costa (2002),
significaram a invasão de áreas nobres das grandes cidades por aqueles que viviam segregados nos
guetos e subúrbios pobres da cidade de Nova Iorque. Eles deixavam os sinais visíveis de sua presença
através dos muros e paredes pintadas no lugar que era destinado aos brancos em Nova Iorque, uma
vez que esses nunca visitavam as partes negras ou hispânicas da cidade. A grafitagem foi uma espécie
de visitação, de invasão simbólica do centro da cidade, feita pelos jovens imigrantes, negros e porto-
riquenhos, o que nos leva a perceber seu caráter radical de romper com as regras dos discursos
etnocêntricos como é próprio da contracultura que produziu e vem produzindo continuidades e
descontinuidades históricas.
25
Os artistas que sofrem repressão da Guarda Municipal de São Paulo encontram-se citados na obra: O que é Graffiti de
Celso Gitahy (1999).
Duarte (2001) aponta que existem dois tipos de grafite: um relacionado ao modelo europeu
francês, que ele denomina de pichação; e outro ao modelo norte-americano. Constata que as duas
formas de expressão, quando deslocam-se para outros países inserem influências particulares,
materializam expressões culturais, sustentando uma textualidade dada pelas condições de produção e
reconhecimento dessas mensagens, pela função social e coletiva dessas interações.
No Brasil, o meio urbano começa a ser marcado pela grafitagem motivado por essas duas
vertentes: a européia com base no movimento estudantil de 68 na França e a norte-americana,
referendada pelos guetos de imigrantes de Nova Iorque. Assim, a grafitagem percorre um caminho
revelando estilos e gerações. Como resultado da produção de alguns artistas, três estilos são
apontados por Gitahy (1999, p. 71): “o estilo das máscaras – escola vallauriana; o estilo americano –
ligado ao movimento hip hop; o estilo a mão livre – escola Keith Harinh”. No estilo máscaras, o artista
procura encher vários espaços urbanos pela reprodução de um signo ou objeto que o identifica; mão
livre faz parte do processo de criar segundo um significado, um desejo do artista, usando spray no
momento mesmo de materializar; o estilo americano mistura estilos, traz para cena materializada
elementos peculiares do hip hop.
Lara (1996), identifica três gerações de grafiteiros organizados por décadas e com expressões
próprias. Nos anos 70, sugere esse autor, floresce o estilo mais contestatório com conteúdo social,
alicerçado no movimento da contracultura, em atividades políticas, poéticas, artísticas. Passaram a ser
expressão de uma cultura alternativa e irreverente, fruto da necessidade de fugir da repressão que,
nesse tempo, era extremada pelo regime ditatorial em que o país estava submetido.
A forma da grafitagem se caracteriza pelo requinte técnico e pelo
planejamento, que resulta em uma maior qualidade das frases poéticas ou dos
desenhos, elaborados com máscaras ou a mão livre. O tempo de execução e o
lugar são anteriormente estudados e a ação é premeditada e cuidadosamente
planejada, diminuindo os riscos. Os suportes utilizados são os que atingem de
alguma forma o grupo ou o espaço onde o grupo se relaciona com a cidade. Assim
muros, portas, paredes, placas e cartazes são grafitados com tinta, spray, carvão,
giz, etc (LARA, 1996, p.78).
Nesse período, considerava-se a pichação como sinônimo da grafitagem, mas já se iniciava um
processo de diferenciação, visto que começam a surgir novos grupos com letras próprias e quase
indecifráveis. A grafitagem se faz com características plásticas, encontrando em Alex Vallauri, uma das
figuras mais expressivas da grafitagem, alguém que usa abundantemente elementos do cotidiano para
realizar o contorno de suas máscaras, tais como, o telefone, a bota, o cachorrinho, atingindo um grande
público, especialmente em São Paulo. Com um tom mais humorístico, entram em cena outros trabalhos
e outros artistas.
Valorizando a plasticidade e com influência nas artes gráficas, motivados por artistas
franceses e norte-americanos da livre figuração, temos como representantes nomes como o de John
Howard, Rui Amaral, Ciro Cozzolino. Esses realizam suas inscrições com inspiração em personagens
de histórias em quadrinhos e elaborados com máscaras ou técnicas de stencil art, valorizando,
portanto, a repetição e a ilustração. Temos autores situados nesta última vertente, tais como: Carlos
Matuck, Júlio Barreto e Maurício Villaça, de São Paulo.
Esses artistas fizeram seguidores e também ofereceram oficinas ao público jovem em casas de
cultura ou em seus próprios espaços de trabalho. Nos apontamentos de Gitahy (1999), temos a
informação de que Vallauri, Zaidler e Matuck foram os primeiros autores reconhecidos como artistas da
grafitagem e a serem convidados a expor suas obras em galerias e bienais, especialmente em São
Paulo.
Ainda conforme referências de Lara (1996), nos anos 80, a segunda geração de grafiteiros, faz
seus trabalhos inspirando-se no artista francês Di Rosa e no norte-americano Keitc Haring. Desta
forma, a livre figuração alcança seu grande momento e uma geração jovem começa a se aproximar das
galerias e do mercado seguindo os estilos europeu e norte-americano. Mantém acentos da primeira
geração como a repetição, a ilustração, o uso de personagens de histórias em quadrinhos,
acrescentando outros elementos e trazendo como novidade os grafites com influência no hip hop ou
street art e das pichações, normalmente com frases ou palavras que significam só para o grupo que as
realizou.
A profissionalização dos grafiteiros da segunda geração, associada a
desdobramentos do movimento, como o hip hop, fez com que o graffiti fosse
absorvido, passando a atuar totalmente fora da marginalidade. Muitos jovens
passaram a ter no grafite, agora em grafia portuguesa e plenamente incorporado à
linguagem cotidiana, uma alternativa econômica e a possibilidade de participação
social. Seja pela fama adquirida ou pela saída do anonimato, o movimento grafite
se alastrou também pelos bairros populares e ganhou novos conteúdos (LARA,
1996, p. 106).
Assim como a primeira geração tem seus expoentes na arte de grafitar e de fazer escola com
seus sucessores preparados através de oficinas que ensinam técnicas e conteúdos, também a
chamada segunda geração, representada por Marcelo Bassarani, Celso Gitahy, dentre outros, faz
escola e introduz novos artistas no cenário do grafite, já aportando nos anos 90. O que se pode
observar nesses atravessamentos é que cada geração mantém características da anterior e introduz
novidades e variações. É o que faz também a terceira geração: conserva situações e temas do
cotidiano, valoriza a sutileza, o humor caricato, como nos trabalhos de Brisola e Kobra na capital
paulista; conserva as máscaras e o stencil com ênfase nos quadrinhos, valoriza a repetição, a
ilustração. Persistem obras baseadas no hip hop, nas artes cênicas, nas pichações e proliferam-se
oficinas por todos os recantos que fortalecem o movimento da grafitagem.
Como resultado desse processo de expansão e de rupturas lhes são introduzidas diferentes
técnicas, sendo que alguns aprendem acompanhando e olhando, outros fazem oficinas em que
aspectos conceituais e a técnica são ensinados para quem deseja ser um possível grafiteiro. Nesse
sentido, ao ler a análise que Costa (2002) faz de uma grafitagem, inspirei-me para compreender um
pouco e melhor os estilos e os materiais utilizados para praticar grafitagens. Esse autor cita quatro
estilos: Throw-Up, Free-Style, 3D Style e Pieces.
O Throw-Up, também chamado de vômito, é o grafite feito na maioria das vezes com letras
gordas, usa-se no máximo três cores, ou então é feito a base de tinta látex (por isso o nome vômito)
para preencher as letras. Caracteriza-se por um estilo feito só com letras e contorno, é um grafite mais
econômico, mais fácil de fazer e mais rápido.
Como o nome em inglês já diz, o Free Style é um estilo livre onde se pode misturar de tudo,
bonecos, letras, tags, cores, por isso é denominado de livre; já o 3D Style é um grafite em terceira
dimensão, um grafite virtual, parece ter sido feito em computador, ele dá a dimensão de volume. É o
estilo mais difícil, pois exige um conhecimento de técnica de sombra e luz e trabalha muito com
profundidade. Não se usa contorno nas letras, o volume dela se dá pelos efeitos criados com as cores,
e é claro, ele exige pleno controle com o spray.
Pieces é um estilo de grafite mais elaborado, feito com várias cores, onde muitas vezes os
nomes são ilegíveis devido à variedade de detalhes, efeitos, sombras e também porque as letras são
muito juntas, às vezes, emboladas umas por cima das outras. Esse estilo dá mais trabalho e exige mais
prática. Assim, quanto mais espaço, mais material e criatividade, melhor resultado terá a arte final
porque também precisa de mais tempo para ser feito
26
.
Apresento um texto cultural que mobiliza alguns estilos descritos até aqui e traz mescladas as
duas práticas e de alguma forma, na minha forma de ver, referendam o interseccionamento de ambas.
Também procuro usar termos específicos dos grafismos urbanos, trazendo-os ao conhecimento do
leitor como uma espécie de glossário
27
, referenciada na nomenclatura criada e usada pelos próprios
grafiteiros e pichadores, para lermos juntos alguns elementos do texto cultural seis, aliando certas
observações que sou capaz de realizar e deixando outras por fazer.
Ressalto que no texto cultural seis, que materializado a seguir, percebo uma diversidade de
elementos que me possibilitarão trabalhar no decorrer desta dissertação na medida das análises que
vou empreendendo sobre os registros de fotografias de grafismos urbanos que tenho feito circulando
pelas ruas da cidade de Porto Alegre (RS), na busca por entendimentos dentro desse campo empírico.
Cabe dizer ainda que os quatro estilos supra descritos, por vezes, podem estar interagindo ao
mesmo tempo na mesma prática, que quando empreendida por mais de um escritor é denominada de
“produção”, seja porque houve sobreposição e ensaios de técnicas e habilidades que vão sendo
criadas, ou porque o trabalho foi realizado por pessoas e grupos diferenciados que foram interferindo e
provocando alterações inesperadas, ainda porque o lugar e o suporte aonde se encontra o grafismo
possibilita a circulação de muitas pessoas e contribui para que sejam atingidos os fins buscados pelos
escritores urbanos, que é o de atingir sempre o maior número.
O que vemos multifacetada, na produção que segue, é uma profusão de riscos e rabiscos
produzindo possibilidades de leituras e enunciadas na prática dos escritores denominados de all city e
toy. Os primeiros são aqueles que escrevem por toda a cidade e até mesmo pelo país afora. Tal
denominação pode se referendar a uma pessoa individualmente ou a um grupo, que além de escrever
26
Cf. Informação retirada do site http://www2.uerj.br/~labore/hibridos_grafite_meiop8.htm. Acesso 28.01.2005
27
No texto Notas sobre a mais velha arte do mundo, Jorge Bacelar apresenta um glossário usado pelos grafiteiros, pode-se
consultá-lo no site http://bocc.ubi.pt/pag/bacelar-jorge-notas-mais-velha-arte-mundo.html.
por todos os lugares, deve usar vários tipos de escritas. Os segundos, chamados de toy, são os
considerados iniciantes na prática de grafitar e pichar que, justamente pela inexperiência, procuram
copiar aqueles outros mais desenvolvidos usar diferentes tintas.
THORW-UP:
Grafismos
urbanos feitos de
forma rápida ou
ilegal, geralmente
são pintados à
noite.
TAGS de grupos ou
CREWS: são a marca
básica dos grafismos.
São como se fossem o
logotipo de um grupo ou
de uma pessoa.
ATROPELAR:
pintar sobre o
desenho de outro.
CHARACTER: boneco, desenho
no qual se representa um ser
vivo, podendo ser humano ou
não.
ETIQUETAS: forma de bombear
os lugares públicos, onde seria
muito flagrante usar um
marcador. Usa-se então
adesivos.
CARIMBOS:
máscaras feitas
em stencil para
facilitar a
reprodução.
Texto cultural - 6
GRAFISMO URBANO situado na rua
Gomes Carneiro, no bairro Medianeira, na
capital gaúcha. Estava materializado
sobre as paredes de um ginásio de
esportes. Neste texto cultural vemos
mobilizada uma intensa prática de riscos
e rabiscos intervindo uns sobre os
outros, assinaturas, recados, máscaras,
símbolos de grupos, frases, interagindo
de forma contínua e feitos por muitos
escritores.
WILD STYLE: chama-se assim
um grafite com letras todas
estilizadas e entrelaçadas,
tornando-o praticamente
ilegível, que não é o caso
nesse grafismo, pois se pode
ler “TUNDER”.
Esse movimento em torno da grafitagem e da pichação e esse recuo na história até aqui feito
permitiu-me, como ensina Foucault (2004b), estudar a emergência deste objeto, considerar como foi
entendido de um e não de outro modo, observar as condições de sua produção, acercando-me de sua
efervescência cultural. Aproximei-me, portanto, de como tem sido mobilizado esse surgimento nas
ruas, nos muros, nos painéis, hoje adentrando nos museus, nas galerias, nas lojas, nas roupas, em
decorações internas e externas, nos shoppings, penetrando outros espaços como é o caso do espaço
virtual da Internet
28
e permanecendo aberto a inúmeras outras possibilidades e considerações.
Tanto a grafitagem quanto a pichação movem pessoas, promovem tensões, reforçam práticas,
dividem opiniões, estabelecem pontos de contato, aproximam e alargam distâncias. Talvez o maior dos
tensionamentos seja estabelecido pela polêmica posta pela questão de serem elas práticas voltadas à
arte ou ao vandalismo. O fato é que carregam consigo uma produtividade e parece impossível julgá-las
sem o risco de cometer deslizes ou autoritarismos. Observei que os discursos sobre os grafismos
urbanos são cruzados por uma conflitividade que os distingue, ou como diz Munhoz (2003, p. 78) “o
universo exterior ao movimento apresenta uma forte tendência a valorizar o grafite como arte em
detrimento da pichação”: há discursos que consideram a pichação vandalismo, agressão, mau-gosto,
sujeira, irracionalismo, crime. Há outros que atribuem para a grafitagem estatuto de arte, pois dizem
que não suja, não denigre, ao contrário, abre espaço à criatividade, enfeita, colore, decora, entretém o
passante.
Nesse sentido, percebo que os discursos da mídia e de alguns pesquisadores, bem como de
membros da sociedade em geral mobilizam-se para subjetivar o grafite como arte e a pichação como
vandalismo. Observa-se a constituição de um entendimento que
busca transformar o grafite na forma legal da escrita urbana. Tem forte tendência
em querer regulamentar o grafite, tentando enquadrá-lo nos referenciais aceitos
pela sociedade em geral. Visa claramente ter as rédeas da escrita urbana através
do enquadramento do grafite. Para tal condução coloca o grafite em oposição total
à pichação (MUNHOZ, 2003, p. 78).
Penso que a oposição que se atribui entre uma e outra é produtiva no sentido de colaborar
para colocar em circulação outros entendimentos e outras possibilidades de pesquisa e significação.
Entendo que o debate permanece aberto e procuro mobilizá-lo olhando a epiderme da cidade como um
corpo tatuado onde se inscrevem relações de poder e de saber.
28
www.cenaurbana.com.br/atitude/espacoconstrucao_02.htm;www.xenia.com.br/jornal/grafite2.htm; hhh//:www.n-a-au.org;
www.atlantistendamix.com.br/arte/htm
; www.graffiti.org/fag.br; www.spraynaveia.terra.com.br. www.n-a-u.org.html
3.3 MARCAS TATUADAS SOBRE O CORPO DA CIDADE
Volto meu olhar para a cidade. Olho para ela como um corpo tatuado, como um espaço
dinâmico, aberto a interações, aberto às atualizações postas pela contemporaneidade a partir dos seus
múltiplos interesses, desde os muitos grupos culturais que se manifestam por suas fendas. Olho para a
cidade como um corpo onde se exercitam relações de saber e de poder. Por isso, um espaço onde “o
poder, longe de impedir o saber, o produz” (FOUCAULT, 2004c, p.148) e o coloca em circulação no
movimento dos acontecimentos.
Sobre esse corpo tatuado discursos estão sendo edificados. O corpo da cidade é a superfície
onde se inscrevem os acontecimentos, não como herança recebida, que nos é transmitida de geração
em geração, solidificando um bem, mas antes como “um conjunto de falhas, de fissuras, de camadas
heterogêneas que a tornaram instável” (FOUCAULT, 2004c, p. 21). É nessa dispersão e instabilidade
que pretendo edificar sentidos sobre violência e paz, na fragilidade de quem olha e nem sempre tem
condições de ver as fragmentações dessa singularidade paradoxalmente plural que é o corpo da
cidade.
Entendo que interesses distintos disputam espaços para fazer circular seus ditos, e é no
movimento da cidade que
os interesses mercantis cruzam-se com os históricos, estéticos e comunicacionais.
As lutas semânticas para naturalizar, perturbar a mensagem dos outros ou mudar
seu significado, e subordinar os demais à própria lógica, são encenações dos
conflitos entre as forças sociais
(CANCLINI, 2003, p. 301).
Na cidade, os sentidos multiplicam-se e dissolvem-se na luta pela imposição de significados.
Ela é um corpo tatuado, marcado por discursos que travam disputas, na cidade se edificam modos de
ser, seus suportes podem ser vistos como lugares onde se materializam discursos: contra a injustiça, a
corrupção, a violência, a fome, o sufoco do desemprego, da miséria; discursa-se por fatias cada vez
maiores no mercado de capitais, na compra e venda de todos os tipos de produtos; discursa-se
também por paz, por justiça, por solidariedade, por direitos como elementos de um mesmo corpo, cujo
funcionamento é dado por uma linguagem operando em busca de significações.
Se a cidade é um corpo onde se registram marcas, também é em igual medida o lugar onde se
dissolvem tais registros. Não há como aprisioná-los em um único sentido, é preciso entrar no jogo do
acontecimento e mostrar a heterogeneidade do que se imaginava imóvel. Perceber que esse corpo
tatuado não é estéril, mas é acometido de uma fecundidade, portanto é preciso por em evidência essa
fecundidade, isso é o que torna o corpo produtivo, sugere-lhe alcance político e imprime-lhe
possibilidades de viver relações assimétricas de poder.
A cidade e seus espaços vivem em constante metamorfose, são uma tela aberta a todos e a
todas as manifestações, sejam elas consideradas adequadas ou inadequadas, irreverentes ou não. A
cidade é uma galeria a céu aberto, permeada pelo esfacelamento dos limites instituídos, pelas tensões
entre espaços público e privado, entre transgressão e permissão, materializando o engendramento do
cáustico cotidiano. Muros, fachadas, monumentos, paredes, placas, marquises, pontes, portas, carros,
viadutos mostram a epiderme da urbe que se faz discursos e sugere confrontos, encontros,
compreensões, significados.
Observo que os grafismos urbanos transgridem a ordem, a classificação, o lugar específico que
a modernidade insistentemente indicou e impôs para cada coisa. Transgridem também
comportamentos esperados, agem de modo singular, fora dos parâmetros considerados binariamente
como certos ou errados. Eles propõem outros modos de ser, múltiplas presenças, proliferando
perplexidades e estranhamentos.
O que venho trabalhando até aqui direciona meu olhar para considerar os discursos envolvidos
nas práticas culturais dos grafismos urbanos como espaços e tempos de produção, de fabricação de
significados. Os suportes onde se inscrevem multiplicam sentidos a cada retorno, a cada olhar atingem-
nos e podem ser atingidos. Os grafismos urbanos fazem-nos conviver com a ambivalência de estar
nesse espaço e nesse tempo de instantaneidade, de conviver com o político, o estético, o ético, o
banal, o reprimido, o transgressor. Comportam o desafio da convivência com o caos visual, do pensar e
aprender com suas relações, às vezes óbvias, outras sutis, postas à epiderme da urbe, de seus tantos
objetos, postas na epiderme dos próprios sentidos em provocações multiplicadas por muitos outros
sentidos que se entrelaçam nessa trama do andar e ver, do ser visto e capturado.
Ao observar as marcar expostas pela cidade com um pouco de atenção, como anteriormente
dei visibilidade no texto cultural seis, é possível perceber o quanto é comum grafismos urbanos, postos
em determinados suportes, suscitarem o surgimento de outras e mais outras tatuagens, infinitamente,
seja para uma crew (como se autodenominam) ou grupo demarcar o seu território, ou para
autodivulgar-se visando atingir a mídia, ou simplesmente provocar outros grupos com sua tag ou
assinatura. Muitas vezes, uns cobrem as tags dos outros, gerando uma convivência permeada por
conflitos, outras vezes pautada por acordos e pactos de um não sujar o trabalho do outro, respeitando,
cada grupo, seu território usual e suas manifestações.
No meio desses confrontos, na superfície dessas disputas, encontram-se grupos culturais,
encontram-se pessoas - grafiteiros e pichadores - que deixam suas marcas. Não se podem esquecer
as tensões presentes entre os próprios grafiteiros e pichadores, as rivalidades, as disputas por
espaços, lugares, territórios, a sobreposição de riscos e rabiscos que “resultam na aproximação da
grafitagem com a arte institucional, enquanto que a pichação se torna isolada e marginalizada” (Lara,
1996, p. 82). Por certo tal polêmica existe e se materializa também por aqueles que inscrevem os
textos culturais, basta observar o texto cultural sete que agora apresento.
Grafiteiros e pichadores entram nessa discussão e tentam estabelecer fronteiras entre o que é
uma prática e o que é a outra, muitas vezes, localizam tal discussão através do próprio ato de “largar a
tinta” como é o caso de questionamentos que encontrei em produções num muro, que dizia: “Não seja
+ 1 pilantra... Arte ou vandalismo? Faça sua escolha!!”
29
. Essa escolha, esse juízo de valor, parece-me
que se mostra conflitivo nos espaços onde se inscrevem. Eu também deixo para o leitor problematizar
significados na ordem da conceituação dessas práticas. Interessa-me a produtividade presente nos
grafismos urbanos, mais do que ordenar grafite como arte e pichação como vandalismo.
Nesse mesmo texto cultural, pode-se perceber o movimento posto em circulação pelo grafiteiro
e pelo pichador que se dá “um estado sempre alerta visando locais onde seja possível fazer uma
pintura, poder se expressar, conseguir interferir. Como o resultado de suas ações, despertam críticas
por parte da sociedade, e eles acabam por ganhar voz” (MUNHOZ, 2003, p. 105). Os autores dos
grafismos urbanos vivem sob a mira do fugaz, do passageiro, do instante, vivem da incerteza, da
ausência de garantia que suas práticas no amanhecer do dia seguinte estarão lá. Impossível prever se
o suporte utilizado não será pintado ou higienizado pelo seu proprietário ou por órgãos públicos e
institucionais, ou se não serão sobrepostos panfletos, cartazes, outdoors, desenhos, tintas,
propagandas que cobrirão suas obras que vivem ao sabor da interferência e da efemeridade.
Torna-se interessante compreender as disputas discursivas entre aqueles que jogam tintas
para dizer-se e dizer coisas e aqueles que desfazem e limpam, igualmente pincelando tintas, também
dizendo coisas, envolvidos por relações de poder que se instalam nas fendas por buscas de verdades.
Em alguns casos, vive uma dupla ambigüidade visto que aquilo que era feito sob a égide do ritual da
proibição deixa de ser transgressão e passa a ser realizado pela via da permissão; o que era negação
sujeita a assepsia, torna-se consentimento e arte que embeleza. “Existe um espaço entreaberto, uma
situação especial ente o momento legal e ilegal. [...] onde os transgressores transitam entre a
legalidade e a ilegalidade” (MUNHOZ, 2003, p. 123), pois em certas circunstâncias grafiteiros e
pichadores são convidados a pintar determinados suportes por instituições, donos de casas, lojas.
Assim, aquilo que precisava antes ser reprimido e punido é sujeitado a si próprio à luz do
visível, adestrado pelo jogo do olhar e cooptado por práticas consentidas em suportes considerados
privados. Em suma: usa-se desse controle que é o consentimento para docilizar e sujeitar as práticas
29
Esse grafismo urbano encontrava-se situado, no dia 06 de fevereiro de 2005, no bairro Menino Deus, na capital gaúcha,
direcionado para uma pequena praça pública com algumas árvores, brinquedos de crianças e bancos para sentar.
Texto cultural - 7
da grafitagem e da pichação a determinados regimes de verdade, onde o próprio proprietário contrata
aquele que grafita para colorir um determinado suporte.
Ao percorrer com um clicar do mouse sites na internet conectados ao tema grafitagem e
pichação, encontrei muitas informações sendo divulgadas e variados projetos em andamento
30
. Nessa
perspectiva, existem projetos pelo Brasil afora que se utilizam dessa prática, mais especificamente nos
grandes centros urbanos, incentivados por secretarias da Cultura e da Educação, por organizações não
governamentais, por associações de bairros, por escolas públicas e privadas, cada instituição
mantendo motivações e compreensões diferenciadas sobre grafitagem e pichação.
Notei, através da descrição de seus projetos
31
, que algumas dessas instituições promovem
atividades com grafismos urbanos visando evitar expressões não desejadas em seus muros, paredes e
portas com o desejo de ver esses espaços livres dos chamados “vandalismos” e das ações incontidas
de pichadores, outras com fins curriculares voltados a conteúdos e temas explícitos que julgam
necessários e desejam publicar como verdade, tais como: solidariedade, meio ambiente, aids, drogas,
paz, direitos humanos. Outros ainda são usados como meio educativo e voltam-se para os aspectos de
preservação da cultura do grupo ao qual se dirigem.
Em minhas buscas por grafismos urbanos pude perceber muitas coisas sendo ditas, dadas a
muitas diferenciações e classificações. Por isso, se quisermos atentamente cruzar nosso olhar sobre os
espaços urbanos, veremos grafitagens e pichações multiplicando sentidos. Algumas divulgam e
vendem determinados produtos e serviços; outras enunciam discursos políticos, religiosos,
econômicos; outras mostram-se como marcas da irreverência e como ações transgressoras registradas
como marcadores de determinados grupos sob a forma de uma palavra, de uma frase, de um desenho,
um gesto.
Esses e, provavelmente, outros sentidos são expostos nos diferentes espaços urbanos e nos
diversos suportes que os abrigam e compõem o cenário urbano, que fala desde os seus sem número
de lugares e das diversas posições ocupadas pelos sujeitos que circulam pela urbe.
Depois de chegar até aqui, sinto-me encorajada a dizer que os grafismos urbanos constituem
discursos provocadores de sentidos no tecido urbano, que eles não podem ser tratados isoladamente
como simples atos de vandalismos e violências contra o patrimônio e o espaço social como diz o
discurso jurídico posto pela lei número 9.605/98, tampouco como somente uma sucessão evolutiva no
campo da arte como dizem algumas pesquisas, ou apenas como uma forma de comunicação
alternativa segundo outros autores que vim referendando. Suponho que essa prática cultural mobiliza
uma rede de conhecimentos e interesses que se articulam e produzem significações, inventando
verdades sobre os objetos, tanto para aqueles que as praticam quanto para aqueles que se deixam
afetar por elas.
30
Permito-me deixar assinalados alguns sites que corroboram com a afirmação que fiz e que foram consultados entre os
meses de outubro de 2004 e janeiro de 2005 quando pesquisava sobre as possíveis intersecções dos grafites como a vida
cotidiana na escola: <http://www.artenaescola.org.br>; <http://www.somdomanque.uol.com.br/entrevistas/entregrafite.php
>;
http://www.xenia.com.br/jornal/grafite2.htm
>;<http://www.permambucoestadodepaz.org.br>;<http://www.eco.ufrj.br/semios>;
<http://www.usfpa.br/beiradorio/arquivo/beiraonze
>; <http:// www.artgaragem.com.br/grafite/paginas/introdod.doc>.
31
Cf. <http://www.modulo.br/home/2005/08-2005/411.htm> - “O objetivo do projeto ‘Pichação ontem, grafitagem hoje’ é
instruir as crianças sobre a importância de manter a cidade bonita e limpa, ensinando que pichação é sujeira e grafitagem é
arte”.
Nesse sentido, ao olhar para os materiais que possuo, permito-me problematizar enunciados
que, conjugados, podem estar compondo discursos sobre paz e violência, e procuro perceber
elementos que podem estar atravessando, constituindo e modificando esses discursos. A análise a ser
feita inscreve-se nas condições de possibilidade em que os discursos são materializados por essas
práticas culturais. Desejo fazer uso dessa materialidade cultural, entendendo que tais inscrições podem
adquirir vida própria, multiplicar significados, produzir efeitos conforme a rede de sentidos
experimentados na travessia pelos espaços urbanos.
Não pretendo compreender grafitagem e pichação como duas coisas diferentes, conforme já
mencionei, tampouco priorizar uma em detrimento da outra. Penso-as juntas por entender que são
práticas que se interseccionam e se cruzam continuamente entre si e também com outros discursos
como o da literatura, da música, da arquitetura, da dança, da arte, da educação. Portanto, são
hibridizadas, impuras, destinadas à mestiçagem e, na afirmação de Canclini, são
um meio sincrético e transcultural. Alguns fundem a palavra e a imagem com estilo
descontínuo: a aglomeração de signos de diversos autores em uma mesma parede
é como uma versão artesanal do ritmo fragmentado e heteróclito do videoclip. [...]
um modo marginal desinstitucionalizado, efêmero de assumir as novas relações
entre o privado e o público, entre a vida cotidiana e a política (2003, p. 338-339).
Os grafismos urbanos comportam cruzamentos culturais, fragmentam sentidos, entrecruzam
discursos, produzem tensionamentos. No jogo do acontecimento, envolvida com esses cruzamentos,
no movimento de ir e vir pela cidade, desejo encontrar uma produção cultural que me permita operar
com os discursos produzidos pelos grafismos urbanos que tenho registrado. Por isso, no próximo
capítulo, mobilizo a noção de discurso foucaultiana para operar como ferramenta de análise, em
diferentes momentos, sobre esse corpo tatuado que é a urbe e ir esboçando sentidos provocados em
mim por esses textos culturais.
Parte II
CONTINUANDO RABISCOS
Texto cultural - 8
Capítulo 3
DISPONDO TINTAS
Não se volta ao aquém do discurso – lá onde nada ainda foi dito
e onde as coisas apenas despontam sob uma
luminosidade cinzenta; não se vai além para reencontrar
as formas que ele dispôs e deixou atrás de si;
fica-se, tenta-se ficar no nível do próprio discurso.
(FOUCAULT, 2004b, p. 54)
Para enfrentar o percurso que estou fazendo, tenho me colocado diante de múltiplas
alternativas de caminhos. E, algumas vezes, carrego comigo a sensação de que meus passos estão
ainda trôpegos, muitas idas e vindas, e a cada novo toque no chão da investigação, percebo-me
afetada pelos respingos dessa materialidade que ora me aponta para uma direção e ora me volta para
outra. Por isso, não tem sido nada fácil eleger alguns conceitos para que venham atuar como
ferramentas de análise na pesquisa que me proponho realizar. As leituras que tenho feito me desafiam
para novos campos de discussão e provocam em mim uma falta, uma incompletude conectada a uma
vontade de saber que me deixam colecionando rabiscos e me fazem retomar tintas para este desenho.
Começo agora a entender, ao menos parece, que os discursos sobre paz e violência são o
meu foco de pesquisa. O que me interessa, como diz a epígrafe deste capítulo, é procurar ficar ao nível
do discurso, dos significados que são aí produzidos no momento mesmo em que se fazem
acontecimento e circunscrevem modos de existir. Ficar ao nível da materialidade como elemento de
aparição e coexistência dos objetos e da repetição de enunciados.
Trago presente, nesta parte da investigação, alguns conceitos que me serão úteis para operar
nas análises de enunciados presentes nos grafismos urbanos. Balizada em Michel Foucault, apresento
meu entendimento de discurso, procurando mostrar de que modo ele me servirá de ferramenta
analítica. Mobilizo paz e violência, a partir de Jean Marie Muller e Johan Galtung, entrecruzando-os
com percepções de Zygmunt Bauman, dentre outros, e procuro ir tramando com os discursos
produzidos pelos grafismos urbanos, que, conforme mostro no capítulo dois, são práticas culturais
marcadas pela instantaneidade e efemeridade. Ainda problematizo significado em sua trama com a
centralidade da cultura e como produto da linguagem, através da compreensão proposta por Stuart Hall
e de outros autores que também se referenciam nele e vou procurando dispor de referencias como
caminho de aproximação do objeto em estudo.
Entendo que a possibilidade analítica de caráter provisório e instável colocada pelos Estudos
Culturais pós-estruturalistas entrelaçada com inspirações no pensamento foucaultiano, constitui-se um
desafio produtivo que me permitirá entender como os discursos estão sendo mobilizados pelos
grafismos urbanos na produção de sentidos sobre paz e violência.
3.1 DEFININDO CORES CONCEITUAIS
Situada numa de minhas primeiras leituras em Foucault (1996), gostaria de insinuar, logo de
início, que pretendo me orientar pela compreensão de que “o discurso não é simplesmente aquilo que
traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar” (p. 10). Olhar para a materialidade dos discursos, escutar a emergência dos
significados que estão sendo produzidos pela prática cultural dos grafismos urbanos leva-me a
perceber que não existe discurso fora das relações de poder. Manuseando os prováveis materiais de
pesquisa, percebi que os discursos estão constituindo sentidos sobre paz e violência num jogo de
disputa por significação, mobilizando espaços, anunciando grupos que deixam suas marcas e dizem
coisas.
Nos registros que tenho realizado de grafismos urbanos, observo a recorrência de enunciados
que me inquietam e me fazem perceber que um enunciado não existe sozinho. Ele correlaciona-se a
outros que me fazem atribuir sentidos relacionados a sofrimento, morte, segurança, tranqüilidade,
medo, paz, o que me conduz a pensar que não existe um a priori que se possa recorrer para garantir
uma essência dada, independente dos grupos sociais nos quais se inscrevem determinados discursos.
Lembro que eu mesma faço cesuras no olhar que lanço sobre os grafismos urbanos, posto
que, conforme recorda o próprio Foucault (1996), importa manter a cesura para que a escuta dos
discursos se exerça, pois é sempre na cesura que a separação acontece de diferentes modos e produz
efeitos de sentido que nunca são os mesmos. A cesura que exerço, está direcionada à forma como fui
e estou sendo conduzida por alguns enunciados presentes em grafitagens e pichações no momento
mesmo das escolhas de imagens que capturei quando fotografava as que me interessavam e que me
subjetivavam a fazer leituras em torno de paz e violência.
Cercada pela materialidade dos enunciados visibilizados nos grafismos urbanos, observei que
estava sendo empurrada ao entendimento de discurso como uma “prática que forma sistematicamente
os objetos de que fala” (FOUCAULT, 2004b, p. 55), compreendo que é o próprio discurso que produz
sentidos para paz e violência. Portanto, informo que não estarei tratando discurso como um conjunto de
signos que emergem dessas práticas e que comportam representações mentais anteriores que
necessitam ser descobertas, reveladas. Não desconheço, por certo, que os discursos são feitos
também de signos, mas pretendo trabalhar com a noção de que são mais que simplesmente signos
designando coisas, reduzidos à fala ou ao ato da escrita. São eles próprios, os discursos, que se
apropriam do sujeito, instituem-no tanto com o dito, como com o não-dito. Importa a tarefa de fazer
aparecer e descrever um conjunto de relações próprias da prática discursiva, lugar onde emerge,
apaga-se, forma-se uma pluralidade emaranhada de objetos, enredados de sentidos.
O que quero argumentar aqui é que todas as práticas sociais têm um caráter discursivo e que
todo discurso tem uma dimensão cultural. Portanto, há que se perguntar sobre as condições
constitutivas da produção dos significados uma vez que somos seres instituidores de sentido, embora
não sejamos sua origem. Entendo que os discursos se transformam, se exercem e circulam sempre
permeados por relações de poder que se exercitam por canais muito mais sutis e se mostram na
produção mesma dos discursos conforme a posição ocupada pelos sujeitos dentro da trama social.
Há todo um conjunto de circunstâncias que importam ao se dizer determinados discursos, pois
cada um faz suas próprias leituras, os discursos produzem efeitos sobre o imaginário social conforme o
lugar de seu pronunciamento, de sua emergência. Os sentidos são móveis, nômades, há uma
dispersão possível de leituras, embora nem todas sejam viáveis, pois o sentido não se antecipa, “não é
dado a priori, uma vez que as palavras só significam no interior da formação discursiva, isto é, no jogo
de relações com outras palavras, expressões ou construções dessa mesma formação” (FISCHER,
1995, p. 25). Os significados são produzidos numa rede de relações em que se inserem tensões e
conflitos entre os vários campos de produção do discurso.
Considerando a centralidade do discurso, o lugar de onde os sujeitos falam e as disputas postas na
trama discursiva, o discurso não será a voz de um sujeito, mas um lugar de sua dispersão. Essa
multiplicidade, esse derramamento de possibilidades aponta para a questão de que o sujeito
sempre fala de algum lugar, que nunca é o mesmo.
Ao falar desde muitos lugares, é preciso ter presente que aí há jeitos de existir, formas de luta, jogos
de poder, interditos, separações, vontades de verdade, produzindo os discursos que são, segundo
Foucault (1996, p. 9), “procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar
seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”. Ao trabalhar com esses
procedimentos, considerados internos ao discurso, porque são os discursos que exercem o controle
de si mesmos, o autor salienta que estão em jogo o poder e o desejo, funcionando como sistemas
de exclusão.
Se for assim, nem todos podem dizer tudo e nem tudo pode ser dito. Há princípios que regulam,
controlam, classificam, ordenam e distribuem os discursos: o acontecimento e o acaso. Talvez por
isso seja restituído ao discurso o caráter de acontecimento: “o novo não está no que é dito, mas no
acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 1996, p. 26). Essa volta, essa repetição não é fechada,
não é a mesma coisa, traz consigo uma multiplicidade aberta de possibilidades de dizer, mesmo
que sejam sempre rascunhos contaminados de provisoriedade, indicando continuidades ou
descontinuidades.
Não se deve imaginar, percorrendo o mundo e entrelaçando-se em todas as
suas formas e acontecimentos, um não-dito ou um impensado que se deveria,
enfim articular ou pensar. Os discursos devem ser tratados como práticas
descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem.
[...] Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como
uma prática que lhes impomos em todo o caso; e é nesta prática que os
acontecimentos do discurso encontram o princípio da regularidade (FOUCAULT,
1996, p. 52-53).
O desafio é, portanto, perceber os cruzamentos, as regularidades, as descontinuidades em
torno de sentidos sobre paz e violência postos em circulação pelo acontecimento. Parece-me que fica
posto aqui o entendimento de que os discursos são contingentes, que somos derivados dessa
contingência discursiva, dessa arbitrariedade da linguagem que nos faz dar sentido às coisas. “É
justamente porque são contingentes que os discursos não podem se colocar por fora do acontecimento
e, por isso, dos poderes que o acontecimento coloca em circulação” (VEIGA-NETO, 2002, p. 111).
Ressalto que acontecimento não é compreendido aqui como uma sucessão de fatos no tempo,
nem como um jogo de causas e conseqüências, tampouco como uma substância, uma idéia norteando
o mundo, muito menos como um acidente. Circunscrevo o acontecimento na contingência e no acaso,
conforme propõe Foucault (1996), para olhar e entrecruzar as condições de sua aparição, para
problematizar significados nas práticas culturais dos grafismos urbanos acerca do que se entende por
paz e violência.
A idéia de descrever enunciados presentes nos grafismos urbanos para analisar significados
que estão sendo produzidos, leva-me a necessidade de compreendê-los em suas especificidades, de
“apreendê-lo como acontecimento, como algo que irrompe num certo tempo, num certo lugar”
(FISCHER,1995, p. 20), conforme determinadas condições de possibilidade para que seu aparecimento
se efetive. É preciso entender que um enunciado não existe sozinho, ele entra “num jogo de relações
com outros elementos semelhantes a ele; como um ponto sem superfície, mas que pode ser
demarcado em planos de repartição e em formas de grupamentos” (FOUCAULT, 2004b, p. 90). Ele
aparece no jogo de visibilidades e invisibilidades, nos atravessamentos de frases, signos, atos de
linguagem, proposições, nunca isoladamente, sempre correlacionado com outros enunciados da
mesma ordem discursiva e de forma complexa, fragmentária e inacabada.
No caso desta pesquisa, trata-se de mapear os ditos e não-ditos das práticas culturais de
grafismos urbanos, trata-se de olhar os enunciados como acontecimento que nem a língua e nem o
sentido podem esgotar inteiramente, trata-se de olhá-los como uma materialidade repetível em um
campo de coexistência, funcionando como manifestação de um saber possível, multiplicando as
relações aí sugeridas na constituição de sentidos. Buscar por enunciados que constituem significados
sobre paz e violência, não é buscar por uma unidade, mas é compreender, na acepção de Foucault
(2004b, p. 98), “uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz
com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço”.
Ainda que jogada às incertezas e aos medos de olhar, começo a querer entender as
interpelações do acontecimento no acaso de sua aparição para mim. Utilizo interpelação para dizer que
somos atingidos, mobilizados pelos discursos conforme a posição de sujeito que ocupamos na rede
discursiva no instante mesmo em que somos provocados a atribuir determinados sentidos. A
interpelação nos coloca no jogo produtivo do pensar, mostrando que, nessa trama complexa e
provisória de ser interrogado e interrogar, ocupamos alguns lugares e rejeitamos outros conforme o
sentido de pertencimento a um ou outro grupo social, ainda que temporariamente. Assim, os
enunciados não aparecem “como resultado de uma ação ou de uma operação individual, mas como um
jogo de posições possíveis para um sujeito” (FOUCAULT, 2004b, p.123) na trama política e social.
Senti-me interpelada especificamente por um grafismo materializado num muro branco.
Seduzida pelo contato, olho no olho, com aquela materialidade, a partir do momento que a capturei
através de registro fotográfico, passei a nomeá-la de texto cultural porque percebi que era possível
fazer diferentes leituras daquilo que estava dito ou não-dito, ainda porque naquela prática matizavam-
se frases, letras, imagens, assinaturas, signos, proposições, que multiplicavam entendimentos e
faziam-me transformá-los em textos a serem lidos a cada acontecimento.
Este muro branco que ora apresento na forma de texto cultural, impactou-me com o discurso
inscrito e que se apresentava a mim dizendo: “Cada criança com seu próprio canivete”
32
, e cuja
assinatura, paradoxalmente, era intitulada “boneco”. Tal discurso foi esboçando em mim inquietações
que me faziam ler enunciados sobre paz e violência que traduzia, naquele momento, deste modo: a
criança deve se armar para defender-se; arma na mão de criança vira brinquedo; bonecos e não armas
poderiam ser os brinquedos; lia incentivos a armar as pessoas desde a infância; via presente no texto
uma intenção pedagógica de ensinar sobre violência ou um alerta para a própria violência; também
percebia uma possibilidade de ensinar sobre paz; no muro branco, enxergava contradições com a
questão do canivete que via como arma na relação posta pela idéia de paz branca que temos no
ocidente. Comecei então a capturar e manusear esses materiais e a perceber que fronteiras
matizavam-se e borravam-se como alternativas de problematizar paz e violência.
Diante disso, enfrento a questão de como são construídos os significados enredando as
práticas de grafismos urbanos na centralidade da cultura, compreendendo-a imbricada em todas as
manifestações e lugares. Hall (1997, p. 5) afirma que “ela penetra em cada canto da vida social
32
Primeiro texto cultural capturado por mim através de registro fotográfico que o acaso me proporcionou ver e cujo impacto
provocado fez com eu elegesse grafitagem e pichação como locus de minha pesquisa. Encontrava-se - em junho de 2004 -
localizado num espaço de um dos muros da rua Bispo Laranjeira nas proximidades da sinaleira que cruza a rua Carlos
Barbosa, no município de Porto Alegre (RS).
Texto cultural - 9
contemporânea, fazendo proliferar ambientes sociais secundários, mediando tudo”. A cultura passa a
ocupar lugar constitutivo na vida social, provocando, a partir da segunda metade do século XX,
diferentes deslocamentos.
Com esses deslocamentos, borram-se as fronteiras, rompem-se com espaços e territórios
demarcados, fixados, interpenetram-se culturas. Nesse processo de interpenetração, nota-se que os
diferentes grupos sociais começam a buscar formas de se apresentarem à sociedade, pois “é na
cultura que se dá a luta pela significação” (COSTA, 2002, p.138), é dentro dela que os significados são
negociados, fazem sentido e sustentam os interesses dos grupos. Isso significa muito, pois corrobora
com a idéia de que somos um empreendimento da linguagem, mostrando que ao nominar as coisas,
não só apontamos para a compreensão que temos sobre elas, como também inventamos as
“realidades”. Somos assujeitados pelas múltiplas linguagens que circulam nos grafismos urbanos e a
partir deles, fazendo-nos ser o que somos e inventando domínios nas arenas dos jogos sociais em que
estamos inseridos.
Assim, considero que os textos de grafismos urbanos encontram-se ligados ao âmbito da
política cultural
33
, nas disputas permeados por relações de poder na busca por significação e produção
de conhecimentos no âmbito da cultura. Os significados são fabricados, são colocados em movimento
pelas práticas culturais que os instituem.
Em resposta ao questionamento sobre aonde são produzidos os significados, Hall (1997) afirma que
não existe um lugar fixo e designado para tal produtividade, pois ele transborda, expande-se
constantemente, há um constante intercâmbio em cada interação social e pessoal da qual tomamos
parte, em outras palavras, acrescenta que
a questão do significado surge em relação a todos os diferentes momentos ou
práticas de nosso “circuito da cultura” – na construção da identidade e na
delimitação da diferença, na produção e consumo, bem como na regulação das
condutas sociais. Todavia, em todas estas instâncias e em todas estas localizações
institucionais, a linguagem é dos “meios” privilegiados através dos quais é
produzido e circula (HALL, 1997b, p. 3).
Considero importante retomar e afirmar a compreensão de que para mim não existem
significados concluídos, prontos, acabados, pois essa investigação não pertence ao domínio dessa
33
Conforme Costa (2002, p. 139), a expressão política cultural vem sendo utilizada para referir-se às estratégias políticas
implicadas nas relações entre o discurso e o poder. Em geral, diz respeito a como as identidades e as subjetividades são
produzidas e como elas circulam nas arenas políticas daquelas formas sociais nas quais as pessoas se movem.
forma de fazer pesquisa em que se busca colocar um ponto final no significado. Ele é cambiante, “é
inerentemente instável” (HALL, 2004, p. 40), vive sendo adiado pelos processos mesmos de significar,
justamente porque foge do controle ao se submeter aos arranjos da contingência e do acontecimento,
ao viver relações de poder, produtivas e provocadoras, que operam em torno da busca sempre
continuada por significação. Portanto, mesmo que nos esforcemos para encerrar determinados
significados num processo de assepsia em relação a outros, eles sempre estarão lambuzados de
muitos outros, carregarão tintas dispostas a novos matizes.
Seguindo a direção apontada por Costa (2002, p. 141), quando diz que “a significação é um
processo social de conhecimento” e, por ser assim, não podemos considerar os objetos como
anteriores à significação, eles são na e da história e vivem dela e de sua dinâmica. Os objetos só
existem porque de alguma forma cruzaram os caminhos da significação, tornaram-se uma invenção
dada a reinvenções que não podem ser estancadas, tampouco congeladas.
Dentro de certos campos do discurso, ao menos temporariamente, os significados tendem a se
impor como regimes de verdade
34
e, dependendo do lugar que nos situamos na rede discursiva, somos
mais ou menos interpelados por alguns discursos do que por outros, por alguns sentidos do que por
outros. Dessas lutas, resultam verdades que nos capturam e nos assujeitam na trama das relações de
poder como um dos seus efeitos, como ações produtivas sobre outras ações também produtivas.
Posso dizer que entendo como necessário problematizar verdades que circulam nas práticas
culturais de grafismos urbanos e que considero importante, para poder trabalhar com esses saberes,
dispor de elementos conceituais sobre as noções de paz e violência, vendo como elas vêm sendo
significadas e como eu as entendo operando nas condições de aparição da materialidade desses
discursos, uma vez que “os sentidos são necessariamente históricos: eles se transformam ao longo do
tempo” (VEIGA-NETO, 2002, p. 38), vivem das experiências, são compartilhados pela linguagem, por
conseguinte, eles são produzidos na história e na cultura.
3.2 TRACEJANDO SENTIDOS SOBRE PAZ E VIOLÊNCIA
34
Veiga-Neto afirma, alicerçado em Foucault, que um regime de verdade é constituído por séries discursivas, famílias cujos
enunciados (verdadeiros e não verdadeiros) estabelecem o pensável como um campo de possibilidades fora do qual nada
faz sentido – pelo menos até que aí se estabeleça um outro regime de verdade (2001, p. 57).
Meu interesse, nesta parte da pesquisa, configura-se no exercício de transitar por entre os
discursos sobre paz e violência como fronteiras escorregadias, como espaços complexos e
interdependentes, que exigirão uma aprendizagem de desaprender, um esforço de não fixá-las,
encerrando-as numa coisa única. As reflexões que pretendo trazer não se apresentam na perspectiva
da denúncia, tampouco de lamúrias e lamentações sobre a atual situação de violência que estamos
vivendo. Não estou antevendo, para tanto, um ideal de paz que funda a necessidade do sonho de uma
sociedade não-violenta, segundo a qual a escola e a sociedade, de algum modo, desviaram-se ou não
se vincularam como deveriam e, por isso, ainda não o atingiram.
Contudo também não pretendo retirar em nada a importância da procura de certos referenciais
para se viver tanto na sociedade quanto na escola. O que digo significa apenas que não tomo uma
origem de paz e de violência como fundamento, mas que busco me enredar pelo campo da
problematização e da análise, pensando como essas noções foram e continuam sendo fabricadas e
circuladas pelos discursos.
Na contemporaneidade, estamos cercados por medos, violências, desejos que atravessam
nossos modos de estar no mundo de forma abissal e paradoxal. Se por um lado, no enfrentamento do
cotidiano, o medo se apresenta como materialidade pelas condições de insegurança e violências
postas pela mais diversas situações de disputa entre os humanos; por outro, somos mobilizados, talvez
por esse mesmo medo, a pensar diferentes alternativas que corroborem para se viver com certa
segurança.
Bauman (2000) diz que “o mundo contemporâneo é um recipiente cheio até a borda de medo e
frustração à solta que buscam desesperadamente uma válvula de escape” (p. 22). Vivemos, sim,
atravessados por uma experiência de insegurança profunda e por um desejo quase que insaciável de
segurança em meio às durezas e sofrimentos que se apresentam na vida. Se por um lado, aqui e
acolá, próximo e distante vemos e experimentamos situações de violências, seja como espetáculo a
ser assistido ou como expressão de modos de existir; por outro, também observamos e vivenciamos
situações que atribuímos sentidos de paz pelo que provocam em nós em termos de significações e
formas de proceder. Nesse sentido, parece ser a repulsa o motor da história e não a atração, mesmo
que de alguma forma saibamos que “o balanço do passado, a avaliação do presente e a previsão dos
futuros são atravessados pelo conflito e eivados de ambivalência” (BAUMAN, 2003, p. 33). Nós,
humanos, vivemos querendo nos livrar daquilo que nos causa qualquer tipo de dor, de vulnerabilidade,
de sofrimento, pois conviver com na ambivalência nos causa medo e estranheza.
Procuro mover-me no campo das relações históricas e culturais, não sem tensões e
dificuldades dada à complexidade do conceito de cultura por se tratar de um local de interesses
convergentes, em vez de uma idéia lógica ou conceitualmente clara. Assim, se considerarmos “cultura
como algo que se entrelaça a todas as práticas sociais; e essas práticas, por sua vez, como uma forma
comum de atividade humana” (HALL, 2003, p.142), não nos furta a idéia de que os sentidos e os
valores são instituídos pelas formas segundo as quais lidamos e respondemos às condições de
existência e como incorporamos, ou não, as práticas e as tradições experimentadas.
Entendo que a expansão da compreensão do significado de cultura sugere que cada lugar
possui suas próprias práticas sociais, engendrando significados para funcionarem como constituidores
de uma produção subjetiva. Pode-se, então, falar em cultura empresarial, cultura familiar, cultura da
sexualidade, como também se pode acrescentar cultura de paz, cultura de violência, dentre outras,
onde determinados grupos sociais estariam organizados através de discursos que estruturam e dão
sentido à sua vida social.
Meu argumento é o de que a produção discursiva acerca de paz e violência se dá na luta por
significação, portanto, se exerce nas rachaduras da cultura provocando efeitos de sentido e produzindo
modos de ser. Como venho afirmando que as práticas culturais são produtivas, são do domínio da
cultura e da história, parece-me indispensável problematizar entendimentos sobre paz e violência para
constituir essa desconstrução a fim de fazê-las operar nos discursos presentes nas práticas dos
grafismos urbanos. Tomo a noção da desconstrução aqui, como o faz Costa (2002), para me referir às
operações que visam se afastar dos procedimentos relacionados às verdades absolutas,
essencializadas, inquestionáveis postas pela modernidade. “A desconstrução tem possibilitado
vislumbrar com nitidez as relações entre os discursos e o poder. Ao contrário do que muitas pessoas
pensam, desconstruir não significa destruir” (COSTA, 2002, p.140). Desconstruir, no caso de minha
pesquisa, significa uma tentativa de operar com uma estratégia de “desmontar” para poder enxergar
possibilidades de montar o objeto de minha investigação, segundo um olhar interessado.
Como caminho de desconstrução, opto por tomar a via da problematização dos sentidos que
temos atribuído ao viver em sociedade no mundo globalizado. É preciso entender que a sociedade e as
relações nela estabelecidas não podem mais ser pensadas como alguns sociólogos a pensaram; “um
todo unificado e bem delimitado, uma totalidade, produzindo-se através de mudanças evolucionárias a
partir de si mesma” (HaLL, 1997, p. 17). Com os deslocamentos provocados pelos processos de
globalização, o centro deixa de existir, tal estrutura é recolocada e temos uma pluralidade de centros,
ou como diz Harvey (2002), estamos vivendo tempos caracterizados por rupturas sem fim e
fragmentações atravessadas por conflitos e antagonismos, que em certas circunstâncias, podem
mostrar-se articulados.
Parece-me que esses tempos de rompimento de territórios, de dilatação dos espaços, de
fronteiras escorregadias, da expansão da cultura, de alargamento do papel da linguagem, de
identidades hibridizadas que fazem parte do nosso viver no chamado mundo globalizado, mostram-se
como um caminho de releitura do significado de sociedade e de viver em sociedade. Apresentam-se
como tempos incertos e como tempos de desengajamento onde somos confrontados e afetados por
múltiplas relações e disputas que se acirram e que colocam em funcionamento um estado de crise
permanente como bem assinala Bauman (2000). Nisso não reside a dificuldade, continua esse autor,
uma vez que a crise apenas invalida os instrumentos com que se vinha olhando a sociedade. A
dificuldade está posta sobre a necessidade de viver na ambivalência e na incerteza como modos de
estar hoje no mundo globalizado, por isso a questão se coloca na invenção de outros jeitos de viver, na
produção de outros instrumentos que nos dêem condições de prosseguir.
No entanto, observo que certos instrumentos que têm operado na produção das relações e dos
sentidos parecem ser uma recorrência de discursos que inventam velhas maquinarias de controle e de
vigilância, agora mais sutis dados os avanços tecnológicos e a condição de instantaneidade com que
as coisas se movem. Estamos vivendo imersos na dinâmica do Império
35
que se apresenta como “um
concerto global, sob a direção de um único maestro, um poder unitário que mantém a paz social e
produz verdades éticas” (HARDT & NEGRI, 2004, p. 28). Nessa compreensão, poderíamos dizer que
ao Império é permitido agir conforme as verdades que produz e, nesse caso, para atingir os seus fins
poderia inclusive, na sua lógica ética, promover ‘guerras justas’. Vejo aqui uma possibilidade de pensar
paz e violência, pois me parece que pensá-las nesses tempos de Império é enredá-las como formas de
poder atuando e regulando a vida social e política por dentro, articulando-se continuamente como
modos de acompanhar e de envolver a vida, administrando-a.
35
Hardt e Negri desenvolvem o conceito de Império para analisar as condições políticas contemporâneas, mostrando como
isso se constituiu na passagem da sociedade moderna para a sociedade pós-moderna.
Talvez um dos problemas da contemporaneidade seja o fato de insistirmos no uso dos mesmos
instrumentos no enfrentamento da vida. Recupero, como exemplo desse argumento, o acontecimento
emblemático do onze de setembro de 2001 e as tramas daí decorrentes em torno da dualização entre
bem e mal, entre paz e violência, entre ordem e caos, entre bons e ruins. Para dar visibilidade a isso,
recorto um excerto do discurso de Bush
36
que se expressa dizendo:
minha esperança é que todas as nações atendam ao nosso chamado e eliminem
os parasitas terroristas que ameaçam os nossos e seus próprios países [...]. O
Iraque continua ostentando sua hostilidade contra os Estados Unidos [...] Estados
como estes e seus aliados formam um eixo de maldade que se arma para ameaçar
a paz do mundo (BUSH, apud JARES, 2005, p. 54).
Temos assistidos que os instrumentos usados para pensar as relações entre alguns povos
mostram-se uma recorrência à tradição do Império Romano, essa recrudescida na Idade Média através
do conceito de ‘guerra justa’. Parece que ao se voltar a dualização entre o bem e o mal, volta-se a por
em circulação o discurso em torno da guerra justa que tem sua genealogia na tradição bíblica e que
segundo Hardt e Negri (2004, p. 30) “envolve a banalização da guerra e a celebração da luta como
instrumento ético. Idéias que o pensamento político moderno e a comunidade internacional de Estados-
nação repudiam com energia”. Esse reaparecimento do direito à guerra em nosso mundo, implica
também, na minha forma de ver, um recrudescimento dos discursos em torno das muitas faces que
pode ter a noção de violência em suas interfaces com os sentidos de paz. Entendo ainda que esses
discursos tendem a classificar, a ordenar e a regular a vida entre pessoas e povos a partir de critérios
binários que julgam entre bons e maus, entre violentos e não violentos, entre aqueles que podem ou
não dizer o que é e o que não é paz, o que é e o que não é violência.
Ao tomar o excerto do discurso de Bush, anteriormente referido, posso ler enunciados que
significam paz como eliminação do outro e do conflito que ele provoca, bem como a idéia que uma
nação que abriga terroristas é ela toda violenta e coloca-se contrária à paz. Paz, neste caso, seria o
banimento do mal que é a nação e o próprio terrorismo que ela abriga. Um outro enunciado que torno
visível é o de só uma nação poder dizer o que é paz e saber a melhor maneira de agir em nome dela.
Provavelmente, os sentidos que Bush e os que o apóiam atribuem à paz não são os mesmos que eu e
talvez outros atribuiríamos, o que expõe a complexidade de mobilizar os discursos em torno dessa
36
Jorge W. Bush era no 11 de setembro de 2001, quando houve o atentado às torres gêmeas do Wold Trade Center, em
Nova Iorque, presidente dos Estados Unidos e continua sendo atualmente, pois foi reeleito. Esse discurso foi proferido na
Assembléia Geral das Nações Unidas no dia 23 de setembro de 2003.
noção, posto que paz aqui pode ser violência e violência pode ser paz, dependendo da posição de
sujeito ocupada para significar.
Vejo como um desafio colocar luz sobre o discurso binário com que paz e violência têm sido
compreendidas. É preciso provocar rupturas neste entendimento que as trata isoladamente, uma vez
que as transformações que estão ocorrendo no mundo contemporâneo têm desencadeado crises em
muitos âmbitos de nossa existência, abalando convicções e fundamentos da chamada Modernidade. “A
essência das coisas nada mais é do que uma invenção humana, instituída nas trocas e negociações de
sentido que estabelecemos intersubjetivamente” (BUJES, 2005, p. 186), por isso, já não nos cabem
mais certas indagações de cunho essencialista que visam desvelar significados que são atribuídos a
uma qualidade essencial dos objetos, assim como, a verdade não pode estar calcada numa única fonte
que todos têm de beber.
Trago presente, para examinar esta forma de leitura, um texto cultural que encontrei
materializado em um muro de escola da rede particular de ensino
37
, onde enxergo a configuração de
uma visão binária em torno de paz e violência e que poderia estar sinalizando uma recorrência
marcada pelos discursos etnocêntricos provenientes da Modernidade e de seu modo de lidar com os
objetos. Não deve nos espantar que tal materialidade tenha sido publicizada num muro de escola, uma
vez que esta é uma das invenções da Modernidade, parecendo coerente que sustente seus discursos.
Nele é possível perceber uma intenção pedagógica, sugerindo a apropriação da prática da grafitagem
pelo currículo escolar uma vez que se enxerga materializada a assinatura da turma que fez o grafismo
urbano, o ano que fez e o grupo de alunos que fez. Carrega um estilo livre e simples mostrando traços
feitos com pincel e conduzidos por mãos não versadas nesta prática cultural.
Ao trazer o texto cultural dez para constituir minha desconstrução, o faço porque a meu ver,
ele expressa a solidificação de uma concepção binária acerca de como foram e, muitas vezes,
continuam sendo produzidas as verdades. Busco problematizar paz e violência, colocando em
37
Em setembro de 2004, o grafismo urbano que denomino de ‘texto cultural 10’, encontrava-se materializado na rua José
Otão, no bairro Independência, no muro dos fundos do um colégio particular, em Porto Alegre (RS).
tensionamentos esta separação. De um lado, coloca-se a violência e de outro a paz, e aqui me parece
importante o artigo definido ‘a’ indicando um discurso produzido pela razão metafísica que pensa e
quer chegar à essência mesma das coisas, através de uma verdade universal. Seguindo tal raciocínio,
dentro daquilo que posso ler, o ser humano aparece no centro, como o sujeito da ação e do discurso
que separa, ordena, classifica. Esse humano não é qualquer humano. É ‘ele’, portanto masculino.
Homem, não mulher, que tem um corpo jovem e, além disso, é branco, ocupando uma posição
culturalmente privilegiada: a daquele que pode fazer valer sua vontade de verdade, de que fala
Foucault (1996), e instaurar saberes.
Através dos meus olhos, convido o leitor a ler essa noção de sujeito centro, irradiador de uma
subjetividade racional, unificada e coerente, invenção da Modernidade, que vem sendo problematizada
pelos discursos pós-metafísicos junto aos quais me filio para examinar discursos postos em circulação
pelos grafismos urbanos.
Ainda tomando a oposição lado direito do registro fotográfico VIOLÊNCIA e lado esquerdo
PAZ, ambas colocadas sobre banners que vejo dependuradas em forcas. Uma escrita em vermelho,
outra em branco sugerindo uma oposição inclusive de cores, embora apareçam as letras das duas com
contorno preto, permitindo-me ver enunciados opondo uma à outra: o vermelho lembra sangue, dor,
sofrimento, morte, por isso ligado à violência, e o branco traz a idéia de pureza, limpeza, ordem
relacionando-o à paz, cor que o ocidente atribui para ela. No centro desta oposição surge a pessoa de
um jovem que com a mão direita faz o conhecido sinal de “paz e amor”, criado no contexto do
movimento da contracultura, voltado para o lado em que se inscreve paz, já na mão esquerda parece
carregar uma arma que aponta para o chão e para o lado onde está escrito violência. Aqui vejo uma
conflitividade que parece dividir o humano ora como propagador de violência e ora como instaurador de
paz. Esse texto cultural também carrega a possibilidade de olhar para os espaços em que se situam as
mãos do jovem: na parte superior aquilo que é considerado bom, aceitável, que traz o bem-estar, na
parte inferior aquilo que é entendido como ruim, que fere, mata, traz sofrimento, reforçando a oposição
que compreende a paz como um bem e a violência como um mal a ser extirpado.
Em torno disso, procuro examinar alguns sentidos atribuídos para paz, em certos momentos da
história, de modo que isso possa colaborar para percorrer caminhos de análise. Tradicionalmente,
conforme mostra a pesquisa de Jares (2002), a noção mais recorrente de paz, provém da razão
ocidental fabricada a partir dos discursos da pax romana, que tinha como baliza um “conceito negativo
definido pela ausência de conflitos bélicos entre estados, ou como estado de não-guerra” (JARES,
2002, p.122). Nesta perspectiva, a paz suponha a manutenção da ordem e da unidade em torno dos
interesses do Estado e era função dele atuar em nome da paz, reservando-se a si próprio decidir em
que condições atuar e o que considerar como paz. Tais considerações continuam tendo efeitos sobre
os modos como significamos as relações sociais e nelas interferimos. Trata-se de posturas auto-
suficientes, etnocêntricas próprias da conceituação ocidental que compreende paz como ausência de
Texto cultural - 10
alguma coisa, como tranqüilidade da ordem exterior e tranqüilidade como harmonia na ordem da
interioridade. Há limites nesse entendimento, pois a paz não pode apenas ser a garantia do equilíbrio
de forças adversas, ou somente ausência de guerra e de violência, como tampouco o exercício de um
antigo e renovado colonialismo sobre certos povos em nome da paz internacional.
É evidente a matiz totalitária impressa por essa visão e sustentada por domínios
monoculturistas que aludem e insistem em etnocentrismos tais como são aqueles que circulam na paz
proposta por determinados discursos contemporâneos como, por exemplo, o estadunidense e de seus
aliados frente às questões decorrentes dos atentados terroristas a partir do acontecimento de onze de
setembro, já referido. Percebo que o elemento que se entrelaça com esta paz parece ser o da força,
que segundo Muller (1995), encontra sustentação nos clássicos da filosofia passando por Maquiavel
em sua obra O príncipe, que entende o uso da força como necessários para se instaurar a paz,
balizado, na idéia clássica do império romano “se queres a paz, prepara a guerra”. O importante era
aplicar o uso da força, com o conhecimento adequado, e cujo resultado era a exaltação da vitória sobre
o vencido. Não se pode esquecer que o discurso religioso, desta época, sustentava a visão de pax
romana, caminhando lado a lado na dinâmica de assegurar a paz por meios militares e estabelecer a
harmonia dos povos apaziguados pelo discurso de paz proposto por Roma.
Concordo com Hardt e Negri (2004) quando dizem que o reaparecimento de certos
procedimentos de poder giram em torno da nova noção de Império que “não nasce por vontade própria;
é convocado a nascer e constituído com base em sua capacidade resolver conflitos” (p. 33). Isso
aponta para procedimentos que se dirigem para o estabelecimento da paz, do equilíbrio e do fim dos
conflitos, não mais com base na força de que referi acima, mas balizados na capacidade de fazer a
força aparecer e operar como expressão de algo que é colocado a serviço do direito e da paz. Por isso,
deve mobilizar-se para ampliar uma cadeia de relações e consensos que favoreçam e apóiem o seu
próprio poder de solução dos conflitos existentes.
A noção de paz como estado de direito é trazida por Kant em sua obra À paz perpétua, escrita
em 1795. Propõe a discussão sobre paz no domínio da razão e sugere a instauração de uma paz
perpétua através do estado de direito e não através de tratados de paz entre os povos como até então
se vinha fazendo na Europa desta época, que vivia em constantes guerras. A paz deveria ser pensada,
articulada pela razão, por isso assinala: “a razão, de cima de seu trono do poder legislativo moralmente
supremo, condena absolutamente a guerra como procedimento de direito e torna, ao contrário, o
estado de paz um dever imediato” (KANT, 1989, p. 40-41). Assim, pode-se dizer que Kant provoca uma
ruptura ao desenlaçar a compreensão acerca de paz do discurso religioso, colocando-a como uma
possibilidade epistemológica. Contudo, vejo que seus discursos articulam e fabricam a idéia de uma
comunidade pacífica universal quando propõe artigos definitivos para a garantia da paz perpétua
(KANT, 1989, p. 32- 47), resultando numa visão que dá ênfase a pactos estáveis que implicariam
uma fundação político-jurídica da paz através da instituição de relações
duradouras; seja internas ao um Estado, mediante a democracia; seja externas ao
Estado, através de uma liga entre os povos; sejam universais e relativas a todos,
cidadãos e Estados, mediante um relacionamento cosmopolita entre homens e
Estados (GUIMARÃES, 2003, p. 74).
Com as proposições de Kant, vejo instaurada uma chave de leitura dos ideais iluministas do
projeto da modernidade de superação da crueldade humana, de suas barbáries, colocando como
garantia para tanto, a instauração de um estado de paz a ser alcançado pela humanidade que parece
viver em estado natural de ameaças, de guerras, de hostilidades que sabotam a paz.
Talvez uma outra ruptura provocada pelos discursos kantianos se dê no sentido de que ele
coloca em dúvida a funcionalidade da violência, especialmente pelo meio da guerra, para o
estabelecimento da paz, sugerindo a elaboração de princípios para que as nações vivam em estado de
direito. No entanto, entendo que mantém um ideal e um conceito de unificação de paz a ser obtido pela
razão como um conhecimento verdadeiro e, ainda, ao separar paz e violência, favorece o discurso
metafísico que atribui uma essência ao ser humano e lhe dá uma ética, o que reforça e torna a
compreensão de paz do ocidente preferencialmente metafísica.
Outras compreensões de paz vêm sendo produzidas, por exemplo, pelo pensamento liberal
que a coloca como sinônimo de desenvolvimento e de progresso aliados à ciência. Seus benefícios,
portanto, estariam associados ao crescimento econômico, de modo particular, a determinadas variáveis
quantitativas como seria o caso do produto interno bruto, ainda poderia estar arrolada à produção
científica de certas sociedades e à qualidade de acesso às tecnologias. Seguindo esse pensamento,
seus defensores, entendem a guerra como um prejuízo, esquecendo-se talvez que em muitos
momentos da história em nome do desenvolvimento engendraram-se dizimações, guerras, extermínio
de muitos grupos culturais. A sociedade industrial do século XIX, diz Muller (1995), acreditou depressa
demais em Comte e na escola positivista que acreditava firmemente que tornando as guerras de
conquistas não rentáveis e generalizando o bem-estar, a sociedade inevitavelmente eliminaria os
conflitos armados.
Acredito que, “sob uma forma menos simplista e menos ingênua que a de A. Comte sobre a
natureza pacífica da sociedade industrial” (BOSC, 1977, p. 29), esse ainda é atualmente, um discurso
que move instituições que crêem no desenvolvimento como um novo nome da paz e que entrelaçam
capitalismo e paz. Nessa perspectiva, Guimarães (2003) aponta como acontecimento histórico o
surgimento do prêmio Nobel da Paz, constituindo-se uma invenção que corrobora com a idéia de que
expandir o capital era expandir a paz, tornando-a uma justificativa para ampliar redes de comércio e
capitais.
Entendido num sentido mais amplo, Jares (2002) vincula discursos sobre o desenvolvimento
com discursos de paz de diversas formas: “a paz como sinônimo de justiça social; a paz como
superação das violências estruturais, começando pelas que têm a ver com as próprias necessidades
básicas; a paz como plena realização das potencialidades humanas, etc.” (p.127). Neste sentido, paz e
desenvolvimento não se limitam à dimensão puramente econômica, o que suscitou pesquisas que
analisaram os processos de paz
38
com as relações entre desenvolvimento e direitos humanos;
desenvolvimento e corrida armamentista; desenvolvimento e dignidade humana, desenvolvimento e
coexistência de altas taxas de gastos militares; desenvolvimento e desarmamento, dentre outras,
associando paz à cidadania, à democracia, à justiça, como contraponto à violência, etc.
Ao enfrentar o difícil empreendimento de conceituar paz, Galtung (1985) diz que poucas
palavras são usadas com tanta freqüência quanto paz, chegando-se quase à saturação, talvez porque,
continua o autor, seja praticamente impossível encontrar alguém que seja completamente contra ela e
também porque paz tornou-se uma espécie de meio para se encontrar determinados consensos na
ordem da oralidade nas relações entre os humanos, entre as nações, entre distintas instituições e
grupos culturais. Disto resultam ambigüidades, compreensões diversas, ações múltiplas e
contraditórias e corre-se o risco da banalização e da fetichização da paz.
Para pensar a paz, Galtung (1985) propõe dois conceitos que chama de paz negativa e paz
positiva. A primeira estaria relacionada à violência
39
direta e pessoal, aquela considerada visível tal
38
Xesús Jares (2002), em sua obra Educação para a paz, sua teoria e sua prática, informa que a partir dos estudos da
Pesquisa para a Paz (PP), através de uma publicação, em 1964, do Journal of Peace Research pelo Internacional Peace
Researcha Institute (PRIO) de Oslo, deu-se destaque à divulgação de estudos e pesquisas em torno da paz, tendo como
seu principal expoente o norueguês Johan Galtung, que já no primeiro número apresenta diferentes conceitos de paz e
insiste para que as pesquisas avancem e extrapolem apenas os limites das relações com os conflitos internacionais.
39
Ao falar de violência, Galtung ao iniciar a pesquisa em torno de paz, nos anos 60 do século XX, para além da violência
pessoal ou direta, criou a expressão violência estrutural para debater as estruturas políticas, econômicas e sociais
resultantes das desigualdades e da injustiça social. A violência estrutural, conforme esse autor, distingue países entre
países centrais e países periféricos, entre centro e periferia dentro deles, distingue pessoas. E acrescenta ainda, o que
como a guerra; a segunda estaria referendada ao que chama de violência indireta, estrutural, nem
sempre visível às pessoas. Segundo esse autor, a paz negativa consiste na ausência de guerra ou
daquilo que elimina a predisposição para ela, o que seria feito através da busca de meios para por fim
à guerra, porque a entende como desumana e inefetiva; a paz positiva estaria voltada para o
estabelecimento de condições de justiça social, igualdade, satisfação das necessidades básicas,
diálogo, solidariedade, possibilidades de integração e cooperação. Por isso, diz que "os aspectos
positivos da paz levar-nos-ão a considerar não apenas a ausência de violência direta e estrutural, mas
também a presença de um tipo de cooperação não violenta, igualitária, não exploradora, não
repressiva, entre nações ou pessoas" (GALTUNG, 1985, p. 39). Parece-me que a chamada paz
positiva levaria ao enfrentamento de uma postura estatocêntrica e focaria mais uma busca de
transformação guiada pela não-violência onde diversas instituições e grupos culturais agiriam pela
identificação e resolução favorável de problemas caracterizados por algum tipo de violência.
Para Gandhi (1869-1948), a não-violência se dá na busca pela verdade. Seu entendimento
sobre a verdade não está vinculado ao mundo das idéias abstratas, mas vincula-a como verdades
instituídas nas práticas que as produzem e diz que são sempre relativas, fragmentárias, parciais e
imperfeitas, por isso considera que a “não-violência é um corolário necessário” (GANDHI, apud de
MULLER, 1995, p. 227). A não-violência não deve ser vista como o oposto da violência, como também
não deve ser confundida com passividade. Comporta a recusa de recursos que recorram à violência e
ao ódio como forma de ação, mas supõe a existência de um modo de vida que considera a ação em
favor da paz como uma alternativa indispensável, para tanto, mergulha as relações na perspectiva de
que o outro não é um inimigo a destruir.
chama de violência cultural, que se traduzia nos comportamentos e nas normas que instituem as duas anteriores. A primeira
seria um fato, a segunda um processo e a última uma invariância, uma permanência.
Os movimentos de não-violência, especialmente os referendados em Gandhi, imprimem novos
significados em torno da paz, produzindo certas tensões com o pensamento ocidental reforçado por
uma razão bélica na forma de enfrentar conflitos. Há um deslocamento, provocado pelos discursos dos
movimentos da não-violência, na forma de lidar com os conflitos e com interfaces da violência, é
deslocada para outros modos de resolução e transformação, outras formaa de pensar as questões em
torno, recolocando que
a simbólica da paz ganha um caráter de rebeldia e contestação, garantia de sua
própria eficácia. A paz atinge uma dimensão material, expressa numa
multidiversidade de símbolos e gestos: brinquedos de guerra queimados; rifles
quebrados; luzes acesas para lembrar vítimas; sapatos espalhados em memória
dos mortos no holocausto; sinos tocam em luto ou em alegria (GUIMARÃES,
2003,
p. 81).
Nessa perspectiva da não-violência é possível associar o surgimento de um conjunto de outros
movimentos
40
que articularam suas práticas como forma de produzir paz. Vale retomar que as práticas
de grafitagens e pichações também surgem enroscadas com os diversos movimentos da não-violência
usando da contestação e da irreverência para dizer seus discursos.
No entender de Muller (1995), só é possível significar não-violência significando violência.
Contudo, entendo que não é sabendo o que pode ser a violência que saberemos o que ela não é.
Múltiplos são os discursos que atribuem significados à violência e muitas são as diferenciações que se
pode perceber entre eles dada a linguagem e os conflitos culturais que emergem dos sentidos. Por
exemplo, Arendt (1994, p. 36) lembra que “os termos poder, vigor, força, autoridade e violência são
tomados como sinônimos porque têm, na compreensão comum, a mesma função, isto é, indicar quem
domina quem”. Nesse sentido, a autora propõe uma revisão conceitual para que se manifeste a
40
Conforme relata a pesquisa de Guimarães (2003), dentre os movimentos que surgem a partir dos referenciais gandhianos
de não-violência encontram-se o movimento pela igualdade racial, o movimento antinuclear, o movimento antimilitarista, o
movimento ecológico, o movimento pelos direitos humanos. Esses movimentos mobilizam-se e baseiam suas ações em
torno de protestos, de atitudes de não-cooperação, de greves, da objeção ao serviço militar, da desobediência civil, enfim
de atitudes que não usem a violência como forma de mobilização, mas a não-violência como meio, pois entendem como
necessária a relação de coerência entre meios e fins.
arbitrariedade da violência e se evitem reducionismos simplistas que considerem qualquer ato humano
de incivilidade como violência.
Violência ainda pode estar associada a conflitos, a agressividades, a lutas. Muller (1995)
problematiza isso, esclarecendo que a existência humana é marcada por conflitos porque a existência
humana é mais que simplesmente estar no mundo, é estar no mundo com os outros. Isso é conflitivo,
pois é atravessado por relações de poder, de medo, de inquietação, de busca. Por certo, acredito que
conflitos podem ser destruidores, mas isso não implica dizer que todo conflito destrói, implica sim,
trabalhar com a produtividade do conflito e compreendê-lo como elemento constitutivo da vida social.
Por isso, “paz não é, nem pode ser nem nunca será a ausência de conflitos, mas [...] a resolução dos
conflitos por meios diferentes da violência destruidora e mortífera” (MULLER, p. 18-19). Torna-se
problemático, portanto, atrelar paz com a negação de conflitos e, mesmo tempo, associar violência à
presença de conflito.
Parece ser do humano a energia da agressividade como movimento que o direciona a agir;
essa atuação pode ser criadora e produtiva, o que não significa que deva ser uma operação violenta. A
violência pode ser uma forma de expressão da agressividade, não seria natural exprimir-se apenas
pela violência. Se assim fosse, estaríamos inscrevendo a natureza humana, como forma de ser,
apenas na violência e essa seria “natural”, não constituída culturalmente. Nesse sentido, penso que
vale dizer, concordando com Galtung (2003, p. 178) que “a violência parece natural, a não-violência
parece bizarra”, pois fomos constituídos para uma leitura de nós mesmos e dos acontecimentos que
envolvem a banalização da violência, envolvendo-a numa aura de fascínio. É na recusa em aceitar a
violência com algo naturalizado e legítimo que se pode pensar a não-violência como uma forma de
relação.
Resta-nos pensar não tanto se somos mais mobilizados pelos acontecimentos que envolvem
discursos sobre violências ou por circunstâncias que produzem condições de paz. O que importa,
parece-me, não é medir se nossas práticas produzem mais violência ou mais paz, mas sim pensar
como nos tornamos o que somos e o que nos faz agir como agimos frente às contingências da vida.
A não-violência não nega, portanto, a capacidade de sermos agressivos, ela nega antes, na
reflexão de Muller (1995), a passividade e a resignação diante das injustiças do que a própria violência.
Ela recusa discursos que requeiram para si a verdade em torno de um modo de estabelecer a paz, o
que seria uma forma de violência sobre o outro. Uma vez que toda sorte de violência não deixa de ser
um processo de fazer calar, de aniquilar, de privar, porque
toda violência é um processo de homicídio, de aniquilamento. Talvez o processo
não vá até o fim, mas o desejo de eliminar o adversário, de o afastar, de o excluir,
de o reduzir ao silêncio, de o suprimir, vai tornar-se mais forte do que a vontade de
chegar a um acordo com ele. Do insulto à humilhação, da tortura ao homicídio, são
múltiplas as forma de violência e múltiplas as formas de morte. Atacar a dignidade
humana é já atacar a vida (MULLER, p. 30).
Colocada desta forma, não há como supor que a violência é una nem se pode compreendê-la
como se existisse por si mesma, desvencilhada da ação humana. Os discursos que a instituem são
marcados por uma produtividade, distribuída historicamente, numa rede de significações que se
apresenta como violências de uns e de outros.
Entrelaçados com os espetáculos das violências, globais, locais e pessoais, conduzidos pela
força dos discursos da mídia e associados à idéia, culturalmente construída, de que precisamos
defender a pátria, a cidade, a comunidade, o grupo, a nós mesmos a qualquer preço diante de
determinadas ameaças, somos levados a naturalizar, banalizar as violências, a crer que fazem parte de
nós e de nossa forma de proceder. Assim, vivemos imersos num paradoxo que mistura medo,
indiferença e conformismo, pois já não nos espantam mais as violências, e onde quer que aconteçam
as situações, a velocidade da comunicação nos coloca simultaneamente diante dos fatos como
espetáculo a ser assistido. Parece que a mídia vive a espreita aguardando acontecimentos que
manifestem violência e, desta forma, ela torna-se
[...] a matéria-prima da atualidade, o melhor ingrediente do sensacional. A cada dia
que passa, somos informados das violências que, neste ou naquele ponto do
mundo, brutalizam e martirizam os nossos semelhantes. A informação a que somos
submetidos faz de nós voyeurs que vêem os outros sofrer e morrer. Já não temos
qualquer distanciamento em relação ao acontecimento que se desenrola sob os
nossos olhos em tempo real. Sem ele, já não há lugar para o pensamento. Os
meios de comunicação de massa não nos informam sobre as razões e riscos da
violência, mas sobre a própria violência. Não suscitam uma opinião pública, mas
uma emoção pública (MULLER, 1995, p. 9).
É justamente essa comoção e essa fatalidade da violência que entendo ser necessário
desconstruir e colocar sob tensionamento e sob crítica, examinando a produção da linguagem que a
constitui como expressão cultural de vida, como parte dos comportamentos, dos modos de estabelecer
relações entre os humanos e os grupos culturais a que pertencem cuja constituição parece ininterrupta,
tornando-a uma fatalidade inexorável. Hardt e Negri (2004, p. 360) lembram que “o medo da violência,
da pobreza e do desemprego é, no fim das contas, a força primária e imediata que cria e mantém
novas segmentações”, sendo ele hoje o conteúdo fundamental da política da comunicação que as
grandes empresas midiáticas apresentam, tornando-se uma força que cria disputas e produz tensões
fazendo com que nos sintamos em permanente situação de perigo.
A vida parece estar sendo regulada pelos discursos que fabricam medo e insegurança, o que
cria em nós uma ameaça constante que corta, segmenta e acelera divisões apesar da proximidade
possível e da compressão dos tempos e espaços no mundo globalizado.
A insegurança afeta a todos nós, imersos que estamos num mundo fluido e
imprevisível de desregulamentação, flexibilidade, competitividade e incerteza, mas
cada um de nós sofre a ansiedade por conta própria, como problema privado, como
resultado de falhas pessoais e como desafio ao nosso savoir faire e à nossa
agilidade (BAUMAN, 2003, p. 129).
Mover-se neste mundo de violências, de inseguranças e de medos produz novas
segmentações que, paradoxalmente, estariam sendo criadas pela busca de segurança, haja vista as
novas tecnologias empregadas, os controles, as câmaras, as configurações arquitetônicas que se
formam como meio de garantir separações e afastar “os estranhos”, que na acepção de Bauman
(2004), são a variável desconhecida e desconfortável, componentes permanentes da vida urbana, cuja
visibilidade e proximidade são inegáveis, porque é com eles que os espaços são compartilhados,
porém é da companhia deles que desejamos nos livrar, uma vez que ela é ameaçadora e impertinente.
Observo que esse tensinamento aparece também nas práticas dos grafismos urbanos,
sobretudo nos discursos que circulam na mídia
41
e que os colocam como formas de violência e
depredação contra o patrimônio público, cuja alternativa seria a sociedade civil proteger-se e cooperar
na vigilância, através do disque-pichação, para que a segurança pública possa atuar punindo quando
necessário. Grafiteiros e pichadores aparecem como estranhos, como os outros que estão do lado de
fora da cerca, dos muros que protegem aqueles que estão do lado de dentro. Vejo isso como uma
mostra do funcionamento do panoptismo Foucaultiano, descrito na obra Vigiar e punir, da sociedade
contemporânea: fornece-se ao indivíduo a possibilidade de agir e, ao fazer isso, ele funciona como o
vigia de Bentham em favor de colaborar para manter a ordem, a assepsia, a disciplina.
Frente a isso, pode-se perceber que vicejam compreensões que reforçam sobremaneira certos
binarismos e relações de paz com o verbo apaziguar, significando-o justamente como uma ação de
pacificação, de eliminação de conflitos indesejáveis frente à ordem que deve ser mantida. Apaziguar
como um dos sentidos atribuídos à paz estaria sendo usado para sustentar expressões transcendentais
que opõem paz a conflitos e justificam violências como presença de conflitos.
41
No Jornal do almoço, produzido pela RBS, filiada da Rede Globo, situada em Porto Alegre(RS), no dia 24 de janeiro de
2006, apontava-se a pichação como uma forma de violência contra o patrimônio público, contra casas e prédios e se
convidava toda a população para vigiar através de denúncia ao recém criado disque-pichação, projeto da Secretaria
Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana (SMDHSU) em conjunto com a Brigada Militar (que será acionada no
momento da denúncia) e Polícia Civil (para onde serão encaminhados os vândalos)”. Apaziguar as relações entre os
diferentes grupos através do estabelecimento de “ordem e da segurança” parece se manifestar como um sinônimo de
promoção da paz.
Ao referir-se sobre os sentidos que comunidade pode ter, Bauman (2003) diz que as palavras
têm significados e esses não são independentes. Além de significados, algumas das palavras, segundo
ele, guardam sensações. Analogamente, penso que as coisas que se enunciam sobre paz e violência
soam como discursos que parecem guardar sensações, ecoam movimentando uma enormidade de
sentidos. Suspeito que tais sentidos podem estar sendo focados nos grafismos urbanos. Entendo que é
no mergulho sobre os materiais que a visibilidade de enunciados me permitirá operar com violência e
de paz, examinando como esses discursos estão sendo produzidos e, neste sentido, tomá-los como
acontecimentos contemporâneos carregados de significações.
Observo, nos meus percursos de ir e vir pela cidade, que há discursos que posso atribuir
significados sobre paz tramados com segurança e bem-estar por um lado, carregando-a de sensações
de aconchego, de uma espécie de lugar onde reina tranqüilidade, conforto, estabilidade, ausência de
conflito. Por outro, há também discursos que colocam em circulação sentidos para violência,
interligando-a a sensações de medo, fechamento, insegurança, morte, desespero, violação, sofrimento,
reforçando o binarismo que se faz presente em nossa compreensão ocidental. Relacionado a isso, vejo
que em expressões do cotidiano, por exemplo, não duvidamos que é bom ter paz, que é uma sensação
agradável estar em paz, como também não titubeamos, diante de certas circunstâncias, que não é
nada agradável conviver com as sensações que a violência provoca. Contudo, percebo que não é
possível reduzir os discursos de paz e violência a sensações, sejam elas de segurança e de
tranqüilidade, de medo e insegurança.
O que tenho argumentado até aqui é que os discursos em torno de paz e de violência sofrem
contínuas transformações, assim como os conflitos e as tensões entre elas sofrem alterações e
mudanças conforme os sentidos que lhes são atribuídos em cada momento histórico através de suas
práticas. E tenho buscado desvencilhar-me o quanto possível da compreensão metafísica com que
ambas têm sido tratadas. Suponho que os discursos sobre violência não se reduzem a cenários onde
necessariamente se produzem discursos sobre paz, por sua vez paz não é seu contraponto onde
obrigatoriamente violências são extirpadas. Meu argumento aqui é o de que os discursos sobre
violência instituem a possibilidade de pensar sobre paz, enquanto que os discursos sobre paz instituem
sentidos para se pensar sobre violência.
O que examinei até agora teve a pretensão de mostrar que compreendo paz e violência como
construções históricas e culturais, que se provocam e se evocam, imbricadas por vínculos discursivos e
que são eminentemente atravessadas por relações de poder e saber. Escolho olhar para paz e
violência sempre juntas, não para dicotomizá-las, mas por entender que no mundo contemporâneo elas
se mostram matizadas, misturadas feito os grafismos urbanos na epiderme da cidade, frente às
condições da desordem da vida, posto que vivemos tempos que exalam ambivalência, mesmo que a
luta pela ordem, seja a “luta da determinação contra a ambigüidade, da precisão semântica contra a
ambivalência, da transparência contra a obscuridade, da clareza contra a confusão” (BAUMAN, 1999,
p. 14). Apesar de toda busca de ordem, a nossa existência é permeada pela imprevisibilidade, é
marcada pela tensão, pela sobreposição de significados.
Não penso em paz como o outro da violência e nem como uma noção postulando para si uma
ordem e vice-versa. Minha tentativa é a de entendê-las como discursos tramados: violência e paz
apresentam-se como acontecimento surgindo e ressurgindo com suas múltiplas faces, produzindo
discursos não menos múltiplos e que também sempre voltam nos contextos onde se inscrevem. Ambas
mobilizam a convivência humana em suas muitas formas de vida, nas diferentes sociedades, e
definem-se pelo saber que elas mesmas formam através de suas práticas discursivas. Creio que não
se pensam tais noções simplesmente porque não se quer a violência, pensa-se porque se deseja a
vida.
Em tempos de pós-modernidade a verdade está condenada a finitude, é produzida por
múltiplos constrangimentos, como diz Foucault (2004), é deste mundo e abre-se a outras verdades que
estão sendo fabricadas. Os discursos sobre violência e paz também deixam de ser universais e
infalíveis, tornam-se plurais e falíveis como é a condição humana. Não podemos encerrá-las, tampouco
dicionarizá-las, pois se fizéssemos isso paz seria entendida como calma, quietude, placidez, sossego,
tranqüilidade, serenidade, manter-se-ia próxima da compreensão metafísica, distanciando-se, portanto,
da compreensão plural que desejo fortalecer e que não se vincula ao ato de apaziguar, aquietar, mas
se faz acontecimento na medida das lutas que se travam pelos caminhos de significação. Violência
seria o seu oposto, indicaria desordem, coação, agressão, uso da força.
Reafirmo que violência e paz são constituídas na trama do social e do cultural por práticas
discursivas, e isto deve mobilizar-nos a perceber que não estamos condenados a um destino
inexorável, inflexível e fixado numa essência abstrata. Colocar a cultura no centro da produção de
significados é entender que “violência e paz são construídas, ensinadas, aprendidas. [...] há uma
produção cultural da violência e da guerra nos processos cotidianos da sociedade” (GUIMARÃES,
2004, p. 11), cabendo-nos problematizar a contingência, mantendo-nos alertas para viver verdades
plurais, passíveis de críticas e transformações.
Falo então de violências e de pazes. O lugar desde onde procuro olhar leva-me a declarar que
não existe uma definição para paz, assim como não existe uma definição para violência, não se pode
mais usar o artigo definido para referir-se a elas. Cabe, especialmente, a condição de tensionamento,
de conflitividade, ou se quisermos, no dizer de Bauman (2000), olhá-las como crise nas condições de
ambivalência e de fronteiras escorregadias onde o líquido da pós-modernidade apresenta-se mais
como possibilidade do que o sólido proposto pela modernidade, onde a instantaneidade
42
e a
fugacidade dão lugar ao duradouro. Fixar paz e violência seria lançar um olhar de forma dura,
cristalizada, desvinculado da idéia de crise que, como bem retrata Bauman (2000, p. 148) “não é um
estado de indecisão, mas o de impossibilidade de decisão” dada a não permanência das coisas.
Entendo, pois, que pensar tais noções na atualidade é colocá-las sob o crivo do permanente estado de
crise como atributo indispensável inscrito na ordem da cultura e dos discursos que as propõem.
42
Bauman, em sua obra Modernidade Líquida (2001), aponta que a instantaneidade é realização imediata, e aqueles que
se movem e agem com maior rapidez são aqueles que agora mandam; contudo, buscar o instante pode significar evitar as
conseqüências e as responsabilidades dessas conseqüências. “A duração deixa de ser um recurso para tornar-se um risco;
o mesmo pode ser dito de tudo o que é volumoso, sólido e pesado – tudo o que impede o movimento” (p. 148).
Ressalto que entendo paz em seu caráter dinâmico, não como algo que se adquire, que se
toma posse e se conquista de uma vez por todas, mas como algo que é produzido sem cessar nas
rachaduras da cultura em tempos e espaços concretos e que se vai materializando por práticas
tangíveis como é a própria vida e o direito de vivê-la na sua conflitividade. Do mesmo modo, trabalho
com uma compreensão multifacetada de violência e procuro entendê-la na dinâmica do medo instalada
pelos discursos que circulam a solta como forma de um poder atuando sobre a vida. A violência é
produtiva e funciona através de seus muitos meios sofridos ou praticados.
Nos percursos que fiz pela cidade de Porto Alegre (RS), fui observando algumas recorrências
nas práticas de grafismos urbanos que me inquietavam e começavam a me fazer operar com paz e
violência como ferramentas para ler enunciados. Considerando a polifonia de sentidos atribuídos à paz
e à violência, é que me pergunto sobre como esses significados produzem-nos para que tenhamos
determinados entendimentos e não outros acerca de paz e violência. Para tanto, elegi e constituí
alguns grafismos urbanos que fui capturando através de registros fotográficos. Ao manusear esses
materiais, a minha suposição inicial e provisória é a de que ao mesmo tempo em que se busca paz e
sobre ela se produzem discursos, há uma convivência intrínseca que se tensiona com a produção da
violência.
Com esse olhar e como alguém que se sentiu provocada a usar outras lentes para olhar o já
visto sob um novo prisma, tornou o trabalho de investigação possível. Mobilizada por este olhar,
empenhei esforços para buscar possibilidades de realização de uma pesquisa que pudesse reunir a
análise discursiva em torno das práticas dos grafismos urbanos, surpreender-me e deixar-me atingir
por eles e seus discursos, operando com paz e violência sobre a produtividade de seus textos culturais,
inscritos no corpo tatuado da cidade.
Desta forma, creio ter apresentado elementos conceituais que apontam para a constituição
desta pesquisa. A seguir trago presente meu entendimento sobre os contornos metodológicos que
acredito deva ter esta pesquisa, bem como retomo as ferramentas, o locus, o corpus e volto sobre as
questões que me mobilizam para tornar mais claros os caminhos que pretendo empreender nas
análises dos enunciados presentes nos grafismos urbanos.
Digo especialmente que as metodologias no campo das análises culturais é feito sobre os
próprios materiais e comporta riscos que supõe o viver nas fronteiras da não estabilidade de aplicar
regras a um conhecimento.
3.3 DELINEANDO CONTORNOS METODOLÓGICOS
Na busca de ir contornando o desenho da pesquisa e de ir atribuindo sentidos a forma de fazer
as análises, coloco-me diante da questão da metodologia. Considerando as leituras que tenho feito
sobre isso, observei que no campo de pesquisa onde me encontro “não escolhemos, de um arsenal de
métodos, aquele que melhor nos atende” (CORAZZA, 2002, p. 124), mas somos subjetivados por ele e
pelo que ele é capaz de enunciar e nos fazer produzir. Não há a fixação de um método como lugar que
nos assegure o caminho para as análises, há sim uma prática que coloca em funcionamento alguns
procedimentos para pensar, sentir, significar o problema em questão: significados de paz e violência
em grafismos urbanos.
É preciso entender as próprias metodologias como construções históricas e culturais,
intimamente relacionadas a experiências de vida, com sua produtividade, falhas, acertos, silêncios,
resistências na busca de suscitar conhecimentos e de exercitar vontades de verdades, ao acaso da
luta, entremeadas por relações de saber e poder. A questão é que escolhemos e somos escolhidos, e
precisamos enfrentar o abismo do desconhecido, pois
entre uma linguagem e outra (isto é, entre uma prática de pesquisa e outra;
ou se se quiser, entre uma metodologia e outra) existem pontos de silêncio,
vazios de linguagem, vácuos de ângulos classificatórios, pontos de vista não
perspectivados, enunciados ainda a serem articulados (CORAZZA, 2002, p.
125).
Os caminhos a serem enfrentados por esse modo de fazer pesquisa implicam na não
dissociação entre teoria e prática, no não antever uma realidade a qual se pretende chegar. Do lugar
onde estou olhando, teoria e prática são produzidas conjuntamente e interpenetram-se fazendo-nos
operar com nossos próprios modos de subjetivação como forma de produção de uma outra vontade de
verdade. Se possível, considerando os procedimentos já construídos, deixando-os escancarados à
imprevisibilidade e ao acontecimento nos processos constitutivos das análises.
Olhando para os procedimentos arqueológicos e genealógicos utilizados pelo filósofo Michel
Foucault, vemos que ele não reivindicou para si um método único, preferiu manter um caminho aberto
a múltiplas formas de olhar para os objetos a serem investigados, procurou como um caminho a prática
para enfrentar percursos e fazer suas investigações e problematizações. Trabalhou sobre documentos,
sobre coisas ditas e não-ditas, não para ver o que estava oculto, mas para considerar sempre sua
produção histórica, edificando sobre a prática. Isso vem me inspirando nos “rumos” de minha
investigação.
A recusa de demarcar um único caminho para andar, torna o caminhar produtivo, aberto à
criação e a outras escolhas, segundo a materialidade que se apresenta no próprio caminhar, pois não
existe o método através do qual os resultados já estão previstos, restando-nos a constatação da
verdade.
Importa dizer que me arrisco a utilizar noções foucaultianas, como é o caso do discurso. Faço
isso na medida da minha capacidade de lidar, ao menos parcialmente, com alguns desses conceitos
para fazer relações e operar com as forças que atuam com outras forças como tentativa de atribuir
outros sentidos que me permitam agenciar diferentemente as práticas culturais dos grafismos urbanos
para fazer aparecer formas de saber.
Apóio-me em Veiga-Neto (2003) para anunciar os domínios foucaultianos que podem me servir
de pontes para a travessia que estou empreendendo ao explorar significados sobre paz e violência nos
grafismos urbanos. Na arqueologia, primeiro domínio, Foucault procurou mostrar como os saberes
apareciam historicamente através da análise das condições de aparição dos discursos, ocupando-se
em perceber continuidades, descontinuidades, diferenciações e transformações das práticas
discursivas. Nesse sentido, “faz uma arqueologia dos sistemas de procedimentos ordenados que têm
por fim produzir, distribuir, fazer circular e regular enunciados” (VEIGA-NETO, 2003, p. 53),
assinalando, através de fragmentos de documentos históricos, como se constituem saberes que fazem
ser o que somos.
Para fazer aparecer relações de poder, Foucault utiliza como ferramenta de análise a
genealogia. Nesse segundo domínio, retira o poder do centro e o coloca como peça em relação,
“tentando apreender as suas manifestações nas múltiplas práticas (discursivas ou não) que se
articulam e se combinam e nos atravessam e nos conformam, ao nível individual e político” (VEIGA-
NETO, 2003, p.144). O que lhe interessa, portanto, é compreender como as relações de poder
funcionam na produção de saberes e como nos tornamos o que somos na tensão entre um e outro. No
terceiro domínio, Foucault combina os procedimentos arqueológicos e genealógicos para fazer brotar o
que chamou de modos de relação consigo. O que procura responder aqui é como nos tornamos
pessoas de desejo e nos enroscamos no jogo do falso e do verdadeiro e como essas relações “balizam
o entendimento que cada um tem do mundo e de si mesmo” (VEIGA-NETO, 2003, p. 98).
Baseada na argumentação que fiz até aqui e nas possibilidades de operar com algumas peças
pertencentes aos domínios foucaultianos, entendo que a minha investigação se caracteriza por um
modo de agir próprio, que se edifica na prática e que carrega consigo matizes de incerteza e
provisoriedade e que, nem por isso, deixa de ter um rigor e uma vigilância epistemológica que implica
seu caráter acadêmico. Ao contrário, percebo-me envolvida ininterruptamente a retomar os elementos
conceituais como um conjunto de ferramentas a serem utilizadas para discorrer sobre o meu problema
de pesquisa.
Com o entendimento de que a produção de um saber não está centrada no sujeito que seria
sua origem e que não existe conhecimento possível fora das relações de poder, porque todo
conhecimento e o próprio sujeito são constituídos politicamente na articulação entre o poder e o saber,
coloco-me ao sabor do acontecimento para edificar um modo próprio de operar em minhas análises.
Saliento que na perspectiva dos Estudos Culturais pós-estruturalista onde busco realizar o meu
trabalho não há como conceituar de modo definitivo e universal nenhum objeto de conhecimento.
Nesse sentido, quero dizer que ao procurar por enunciados que produzem significados sobre paz e
violência, não estarei capturando a “verdade” que emerge daí, mas estarei sim trabalhando com o
entendimento, mencionado por Foucault na Microfisica do poder, que as verdades são deste mundo e
são construídas na centralidade da cultura, portanto dentro das relações de poder, pois não é possível
a constituição de significados senão nas lutas travadas por diferentes grupos sociais.
Concordo com Foucault (2004) quando diz que é no limite do que está dito, no lugar onde são
ditos e na instância em que os enunciados surgem é que eles devem ser estudados e problematizados.
Preciso considerar, não quem os pronunciou, mas o lugar que ocupava aquele que disse e porque
aquele e não outro enunciado foi proclamado. Trata-se de não querer acordar enunciados de um sono
profundo, “de fazer falar o mutismo que os cerca” (FOUCAULT, 2004b, p.135), tampouco de fazer
interpretações daquilo que poderá estar oculto ou que ainda não foi desvendado. Trata-se de
compreender aquilo que se encontra na superfície, na exterioridade dos discursos ditos. Isso significa
dizer que os enunciados falam aquilo que devem falar, anunciam o que é para ser anunciado, não se
encontram escondidos à espera de alguém que os desvele e os ligue a uma origem e a uma finalidade.
Minha investigação se enreda pelo conjunto das práticas culturais expostas na epiderme da
cidade, em diferentes suportes, conectada com os procedimentos da ordem do discurso que coloca em
jogo interdições, separações e exclusões. Observo isso dentro do recorte temporal de junho de 2004
até julho de 2005 feitos nos descaminhos que circunscreveram o meu processo de rodar e rondar a
cidade de Porto Alegre (RS). A minha análise incide sobre os discursos publicizados pelos grafismos
urbanos e sobre o feixe complexo de sentidos que não cessam de se cruzar, reforçar, tensionar,
transformar. Parafraseando Foucault (1996), diria que minha investigação procura explicitar a produção
discursiva em torno de paz e violência, caso contrário ela corre o risco de ficar circunscrita no reino das
tautologias. Procuro escrever os enunciados no exercício de dar conta de suas especificidades, de
fazê-los aparecer como elementos em um campo de coexistência e percebê-los “não como um
acontecimento passageiro e um objeto inerte, mas como uma materialidade repetível” (FOUCAULT,
2004b, p.123) que irrompe num certo tempo, num certo lugar, dentro de uma mesma formação
discursiva.
Concordando com Foucault (2004), entendo que uma formação discursiva não está encerrada
sobre si mesma, nem pode ser vista como homogênea e fixada. É preciso vê-la no jogo da rarefação e
no jogo das disputas por significação, enredada com outras verdades, com outros discursos num feixe
de relações.
Elegi os grafismos urbanos como locus para fazer minhas análises, por isso apresentei a
constituição histórica desse objeto e mostrei as condições de sua emergência e o que produziam, bem
como os deslocamentos e o que hoje estão produzindo. Sobre eles me propus a construir uma analítica
acerca dos enunciados sobre paz e violência que não pretende ficar fechada sobre si mesma e que se
compreende permeada por relações de poder articuladas com a produção de um saber em mútuas e
constantes implicações.
Para a constituição dos saberes sobre os grafismos urbanos foi preciso fazer aparecer
enunciados que inventaram a possibilidade de seu aparecimento, foi preciso fazer emergir na
contingência dos acontecimentos as transformações e as relações entre saber e poder, pois
um saber é, também, o espaço em que sujeito pode tomar posição para falar dos
objetos de que se ocupa em seu discurso, [...] um saber é também um campo de
coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem,
se definem, se aplicam e se transformam, [...] um saber se define por possibilidades
de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso (FOUCAULT, 2004b, p.
206).
Enroscada com a compreensão de que para aparição de determinados saberes é sempre
necessário o estabelecimento de uma prática discursiva, não isolada sobre si mesma, mas em
constante articulação com outros saberes em suas descontinuidades e dispersões, definindo-se pelo
saber que ela própria forma, é que tomo os grafismos urbanos como materiais de pesquisa e como um
lugar de produção de saberes. A prática discursiva vincula-se, para Foucault (2004c, p. 136), “num
conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço”. Entendo que os
grafismos urbanos atuam diretamente na organização e distribuição de certos saberes sobre paz e
violência, porque estabelecem uma prática que se apóia na correlação como parte do mesmo conjunto
de regras que enunciam possibilidades de materializar esses discursos.
Um segundo motivo que me leva a considerá-los como materiais de pesquisa é o fato de
compelirem-me para fora do reconhecível que é a escola para mim como lugar da produção de um
saber pedagógico. Nesse sentido, buscar por enunciados nos textos culturais dos grafismos urbanos é,
de certa forma, fugir à convencionalidade da escola como lugar de onde sempre falei, pessoal e
profissionalmente, é tornar-me “mal comportada”, entrar no jogo das relações de poder e saber, tal
qual os próprios grafismos urbanos se apresentam e, tramada com eles, aprender outros saberes,
provavelmente, não menos pedagógicos.
Cabe-me, ainda, considerar um terceiro motivo para olhar para os grafismos urbanos,
articulado com os dois anteriores, que se inscreve no acontecimento como movimento de sedução
produzido em mim. O que significa dizer que estou inextricavelmente ligada aos procedimentos do
discurso com interdições, separações e vontade de verdade.
Ao levar em conta a necessidade da descrição dos enunciados, Foucault (2004) fala que é
preciso uma certa conversão do olhar e da atitude para conseguir reconhecê-los e considerá-los como
tais, porque “o enunciado não é imediatamente visível; não se apresenta de forma tão manifesta quanto
uma estrutura gramatical ou lógica” (p. 124). Por isso, quero reafirmar que em minha procura por
enunciados, dadas às condições de existência desses e de quem os busca, poderá haver lacunas,
exclusões e limites na visibilidade de seus traços.
Assim, reafirmo o que já disse de outros modos: a investigação que me proponho realizar nesta
pesquisa está sendo formulada, mais especificamente no sentido de poder analisar enunciados que
produzem significados sobre paz e violência nos grafismos urbanos, problematizando os discursos que
colocam em circulação regimes de verdade. Retomo que não estou em busca de soluções
salvacionistas para os problemas que enfrentamos no cotidiano, nem estarei tomando discursos de paz
como superação de violências, muito menos buscando encontrar definições que posicionem paz como
fundamento a ser alcançado e violência como seu contrário a ser extirpado. Não me enveredo por
esses caminhos, embora não os desconheça e nem os exclua, posto que já anunciei que paz e
violência soam polifônicas e estão abertas a novas possibilidades de significar. Suponho que os textos
culturais dos grafismos urbanos carregam uma pedagogia cultural que coloca em movimento discursos
que ensinam sobre paz e violência.
Mesmo correndo o risco de ser repetitiva, materializo novamente a conflitividade que emerge
dos discursos dos materiais como exercício de organizar o movimento de estabelecer relações de
poder, de mostrar minhas inquietações e de ir produzindo um provável conhecimento a partir das
práticas de grafitagens e pichações. Faço os próprios textos culturais se pronunciarem sobre si
mesmos ao trazer três registros fotográficos que no meu entender marcam a fugacidade e a
interferência discursiva sobre o corpo da cidade, o que me faz considerá-los como práticas culturais em
movimento que multiplicam formas de olhar e significados, mostrando, para mim, como discursos sobre
paz e violência podem estar produzindo, em certos grafismos urbanos, formas de saber.
Observo que são os próprios materiais que põem em circulação discursos sobre si e
interrogam sobre o que podem ser. Eu os tomo como textos culturais que se inserem no movimento da
produção de sentidos postos por esta investigação onde é viável realizar leituras, articular
conhecimentos e retornar sobre eles para enfrentar o caráter conflitivo que os grafismos urbanos têm
por serem “uma prática vista de forma ambivalente, tanto em termos estéticos quanto morais”
(MUNHOZ, 2003, p. 15) e por serem textos onde a marca para lê-los do ponto de vista do
conhecimento e da produtividade discursiva é a polifonia de sentidos vista no plural.
Trago a seguir textos culturais, encontrados em diferentes suportes e espaços da cidade, para
compor os caminhos metodológicos por entender que são uma recorrência que me ajudam, neste
momento, a mostrar como se tornou possível utilizar como ferramentas analíticas paz e violência
concomitante com meu interesse, já referido no início deste texto. Fui enxergando no próprio fato de
grafiteiros e pichadores se autodenominarem de uma ou de outra forma e na interlocução com outros
discursos que os posicionam, formas de fazer aparecer enunciados que compunham sentidos para o
meu tema.
Texto cultural - 12 Texto cultural - 13
Texto cultural - 11
No texto cultural onze
43
é possível ver duas tags diferenciadas: uma utilizando o estilo throw-up
que leio como “boca”, pois o “a” de boca parece se prolongar numa língua sobre uma forca. Uma outra
em signos estilizados, que provavelmente tenha sido a assinatura do grupo que enunciou “...ARTE OU
VANDALISMO? VOCÊ DECIDE...” publicizando assim o conflito emergente dessas práticas. Lembro
que ao jogar com esses elementos, dependendo da posição de sujeito ocupada, o fato da língua estar
sob a forca, carrega um enunciado possível em torno da violência e da impossibilidade de se dizer de
que fala Muller (1995). Contudo, a materialização do discurso sugere sentidos, indícios de contestação
e de expressão como forma de não-violência.
Nele também leio a emergência de um outro conflito importante para tecer o percurso das
análises, pois quando se acentua, antecedido de reticências, o questionamento: “...ARTE OU
VANDALISMO?” sugere-me que antes desta opção dada pelo escritor da parede, podem ser outra
coisa que não arte e vandalismo, e depois, também poderão sê-lo uma vez que as reticências se
repetem após ser lançada a decisão ao leitor, quando diz: “VOCÊ DECIDE...”. Emerge daí o que diz o
próprio grafiteiro “qualquer forma de definir graffiti seria uma limitação. Graffiti é uma forma de
expressão livre. Não vamos prendê-las com palavras”
44
. Entendo assim que outras problematizações
podem ser feitas e outras respostas podem ser dadas. Nesse intuito, trago esse texto para compor o
título da minha investigação.
Se colocarmos em relação os textos culturais doze e treze, observam-se recorrências e
algumas semelhanças entre ambos e também com o texto onze. No texto doze
45
também aparece uma
tag em estilo throw-up cuja marca é expressa pelas letras SK, indicando um grupo ou crew como está
posto no canto inferior do grafismo urbano que mostra a intersecção com outras práticas como o hip-
hop, colocando-se em articulação com os outros grupos culturais e nomeando-se de “SPRAY DE
RUA”. Aqui parece haver uma afirmação de como quer ser visto, negando a condição de vandalismo e
violência que certos discursos lhe atribuem como é o caso do discurso jurídico e o da mídia. Este
texto já não está mais materializado, deu lugar a um outro, mostrando sua impermanência.
43
Este grafismo estava registrado no dia 06 de fevereiro de 2005, no bairro Menino Deus, na capital gaúcha, na rua Múcio
Teixeira sobre as paredes laterais de um prédio residencial e direcionadas para uma rua, antecedida de um pequeno
terreno sem construções.
44
Frase atribuída ao um escritor de rua anônimo que se encontra citada como epígrafe inicial da pesquisa de MUNHOZ
(2003).
45
Este texto foi fotografado no bairro Cidade Baixa, no muro de uma casa antiga, situada na rua da República, em agosto
de 2004.
No texto cultural treze
46
, quem o produziu, afirma sua prática como “ARTE URBANA”,
assinalando sua tag e um estilo próprio de produção. Observo que os próprios grafiteiros urbanos
deixam a marca da rebeldia de sua ação e a cidade viabiliza o espaço, em diferentes suportes, para
que essa “trama majoritariamente urbana, em que se dispõe uma oferta simbólica heterogênea,
renovada por uma constante intervenção” (CANCLINI, 2003, p. 285), possa ir possibilitando leituras na
dinâmica de sua exterioridade.
Apresentei tais textos culturais, neste momento, porque me pareceram significativos não
apenas como uma resposta do que sejam, mas como questionamento dos discursos que circulam
sobre o que fazem eles ser o que são: transitórios, abertos, transgressores; e, também, porque são
eles mesmos que articulam possibilidades de se denominarem, sem se denominar, de se designarem
sem se fechar. São manifestações que surgem “da vontade de seus escritores de pintar, seja pelo
interesse artístico ou pelo vandalismo [...] não aguardam um chamado para agirem, realizam suas
pinturas independente ou não da vontade e da permissão alheia” (MUNHOZ, 2003, p. 106). Assim,
grafiteiros marcam uma posição de sujeito sem descartar outras nas rachaduras do que enunciam e do
que é recorrente sobre suas práticas, constituindo um saber colocado em circulação pelo ato de
grafitar.
Entendo ainda que, ao mostrar esses três textos em articulação, torno visível a efervescência
de um conjunto de enunciados que mobilizam sentidos sobre o que os grafismos urbanos podem ser:
Arte urbana? Vandalismo? Sujeira? Spray de rua? Violência contra o patrimônio particular e público?
Depredação? Movimento cultural? Manifestação artística? Formas de enunciar paz? Meios de dizer
verdades? Enredada com esses e outros questionamentos, constituí parte do texto onze para titular
esta pesquisa e, assim, na própria constituição sobre o que podem ou não ser, observo a mobilização
de sentidos posta por grafiteiros em confronto com as pessoas que se deixam atingir por suas
materialidades.
Esclareço que o corpus que analisarei será composto pelos registros fotográficos de grafismos
urbanos que foram capturados por mim e sobre os quais pretendo edificar sentidos operando com os
ferramentais discurso, paz e violência na problematização de verdades posta em circulação através da
leitura de enunciados. Não pretendo arrancar “o discurso da inércia e reencontrar, num momento, algo
46
A captura deste texto aconteceu no bairro Restinga em 27 de janeiro de 2005. Estava escrito nas paredes de um
supermercado, situado na parte de baixo mais próximo ao chão.
de sua vivacidade perdida” (FOUCAULT, 2004, p. 139), pretendo operar sobre eles não como quem
busca a claridade primeira da origem, trata-se de segui-los como práticas históricas investidas de
técnicas que os instituíram, modificaram e transformaram. Olho para essas verdades sobre paz e
violência como constituídas por relações de poder, por isso, exercitando-se na perspectiva de uma
estar produzindo a outra.
A leitura que faço dos textos culturais dos grafismos urbanos dar-se-á conforme as condições
que me possibilitam leituras sobre os discursos materializados e nas ênfases que estabeleço quando
da descrição da análise. Considero os enunciados como atos discursivos pertencentes a uma formação
discursiva em função de seus conteúdos de verdade. Entendo que o meu trabalho é o de constituir,
desde o meu arquivo
47
, regras de uma prática que permite ver regularidades e dispersões dos
enunciados para compor unidades de análise a partir das quais será produtivo descrever e
problematizar os discursos sobre paz e violência que subsistiram e, ao mesmo tempo, transformaram-
se no interior dos processos de significação.
No próximo capítulo, busco explicitar como fui sendo guiada pelos enunciados presentes no
corpo tatuado da cidade, descrevendo o modo como me constituí metodologicamente, fotógrafa
pesquisadora, acionada pelos discursos dos grafismos urbanos que fui focando e escolhendo para
fazer parte do corpus desta dissertação.
47
O arquivo, informa Foucault (2004, p. 147), se define por uma prática bem particular que “faz surgir uma multiplicidade de
enunciados como tantos acontecimentos regulares, como tantas coisas oferecidas ao tratamento e à manipulação”.
Capítulo 4
RO(N)DANDO A CIDADE
É preciso saber,de tempo em tempo,
perder-se - e depois reencontrar-se.
(Nietzsche, apud Sátiro, 1999, p. 362.)
Situada na confluência de vários campos, como é próprio das abordagens dos Estudos
Culturais pós-estruturalistas, sinto-me aconchegada para rodar e rondar pela cidade atrás das práticas
contemporâneas dos grafismos urbanos. A epígrafe adensa-se quando colocada em relação com a
dificuldade que tenho de perder-me, pois me é mais tranqüilizador andar por estradas seguras, mesmo
que me pareça intelectualmente excitante o desconhecido. Esses intervalos, de tempo em tempo, são
quase que um transpirar incessante por busca de alguma resposta de caminho e de sentidos
inventados no ato de andar.
Mais uma vez me coloco diante do não sabido e frente a interrogações. De tempo em tempo,
novas garimpagens apresentam-se ao caminhar, novas interrogações vêm fazer companhia às
anteriores, agora é a vez da fotografia. Preciso mesmo saber sobre fotografia? Meu objeto não são os
grafismos urbanos? Fotografia não é apenas uma forma de registro? De que modo e como capturar
iconograficamente o que pretendo analisar? Como irei compor o meu material de pesquisa? Frente a
isso, comecei a ler sobre fotografia e vi que tal movimento mostrava-se como parte do processo
metodológico e o que eu faria em termos operacionais consistia na produção de registros fotográficos e
de material de análise.
Nesse capítulo, quero expressar e problematizar o movimento que julgo ter posto na ação de
titulá-lo: rodar e rondar a cidade. Primeiramente rodei. Isso fiz e fiz muito. Circulei de um lado para
outro, andei de cá para lá, de lá para cá, girei por diversos bairros e avenidas, retornei a rodar, percorri
distâncias, contornei ruas, suportes, apenas rodando e aspirando encontrar sentidos. Lentamente, ao
rodar começava a olhar, observava e deixava-me arrastar pelas possibilidades discursivas presentes
nos grafismos urbanos. Rondar era preciso: tarefa um pouco mais difícil, pois o desafio era manter o
olhar sob observação e vigilância. Arrolada nos discursos que até então me constituíam (e vem me
constituindo) comecei a lançar um olhar direcionado, um olhar de quem espreita alguma coisa, um
olhar de quem vigia atentamente o objeto de seu interesse e também é espreitada e vigiada por ele.
Era preciso rodear o meu objeto de cuidados de olhar, acercar-me e acercar o olhar para então, ao
cercar o objeto, deixar-me ser apreendida por ele e permitir-me problematizar leituras que poderiam
estar circulando nos grafismos urbanos.
Mostro agora como fui fazendo a captura de grafismos urbanos e como, na ambivalência de
significados, fui constituindo um olhar focado em torno de paz e violência sobre aqueles que se tornam
meus materiais de pesquisa.
4.1 AMPLIANDO O OLHAR ATRAVÉS DO ATO DE FOTOGRAFAR O OLHAR
Ampliar a visão significa não perder o foco na busca. Preciso, agora, direcionar o olhar para
torná-lo multifocal. A forma de olhar está intimamente relacionada com o lugar que nos situamos para
olhar, lugar que ocupamos e nos posicionamos para significar, representar e dizer nossos discursos.
Cabe dizer desde agora que não sou fotógrafa, raramente utilizo-me da câmara fotográfica para fazer
fotografias e também, até iniciar esta pesquisa, não era grande apreciadora dessa tecnologia.
Pensar a fotografia como um jeito de focar o cotidiano, um jeito de olhar para os grafismos
urbanos, de certa forma, foi me constituindo como uma fotógrafa pesquisadora, sem de fato sê-lo. Não
o faço, certamente, no sentido que faz o especialista, o fotógrafo profissional, que tem conhecimentos
para buscar o melhor enquadramento, “as condições de luz, do ângulo, do posicionamento do fotógrafo
e do fotografado, e até mesmo as interferências diretas na imagem, para produzir determinado efeito”
(PAES, 2000, p. 51). Posso dizer que mesmo com as leituras que tenho realizado, ainda pouco
compreendo da arte de bem fotografar e dos domínios de suas técnicas, portanto, nesse sentido, o
“amadorismo” é o que melhor designa o meu gesto de fotografar.
Estarei fotografando aquilo que escolho e que me escolhe, direcionando tal escolha para a
cidade que se apresenta a mim como um corpo tatuado, desafiando-me a capturar determinados
lugares aos quais atribuo significações. Entendo que fotografar alguns espaços da urbe é de alguma
maneira colocar luz sobre certos grafismos urbanos, que elejo e me elegem, traduzindo-os como textos
culturais a serem analisados a partir da noção de discurso e dos sentidos que componho em torno de
paz e violência.
Avancini (1999) informa que o termo fotografia aloja-se no grego photos, que quer dizer luz e
graphein, que significa escrita. Podemos, assim, descrever a fotografia literalmente como ‘a grafia da
luz’, ou como a escrita da luz. Ela é entendida como o ‘desenho da luz’, criado pela reflexão da luz. No
meu caso, ao fotografar, estarei colocando luz sobre enunciados que percebo através de tudo aquilo
que vem me constituindo e que carrego no meu corpo, no meu olhar e que se lança sobre o corpo
tatuado da cidade no enfrentamento de suas marcas. O que faço é, principalmente, focar o meu
holofote sobre as tatuagens da urbe que escolho e me escolhem como discursos sobre paz e violência.
No olhar materializam-se possibilidades de interpelações: “o que se vê depende de onde se
está e quando, ou seja, o que se vê é relativo à posição ocupada pelo fotógrafo e pelo observador no
tempo e no espaço” (LEITE, 2000, p. 146), pois no olhar colocamos luz, fragmentamos sentidos, a
validade não se dá apenas pelo instante, tem caráter de acontecimento, carrega consigo recortes de
realidades multifacetadas.
Historicamente a invenção da fotografia
48
deu-se no contexto da revolução industrial. Desde
então, ela vem possibilitando de forma inovadora, o acesso a novas informações e conhecimentos,
instigando e servindo de instrumento para pesquisas em diferentes campos do saber. Ela tornou-se um
jeito de representar o mundo, de evocar emoções, de significar mudanças, de produzir sujeitos e
identidades, de documentar processos em ebulição na vida cotidiana, de mobilizar grupos culturais
distintos, de fabricar moda e comportamentos, de multiplicar discursos.
A fotografia, como material e fonte de pesquisa, permite a visualização e a análise tanto em
seu aspecto de documento cultural por fornecer elementos descontínuos e heterogêneos, como em seu
aspecto de imagem estética instigadora por possibilitar “um contato sensual, materializado, com várias
temporalidades, com vários espaços e maneiras de estar no mundo” (QUEIROZ, 2000, p. 57). A
fotografia é hoje parte da vida e do cotidiano das pessoas e pode ser compreendida sem palavras, pois
impacta, provoca, comove, faz pensar, enuncia instantaneamente.
Em sua pesquisa sobre retratos de família, Leite (2000)
49
mostra como a técnica fotográfica
tem sido usada nas pesquisas. Aponta que a utilização da fotografia tem acontecido como ampliação
do olhar do pesquisador, como instrumento complementar dos fins da pesquisa, como mecanismo de
ilustração servindo de mostruário ou vitrine para o texto escrito, como descrição de um realismo
imobilizado num quadro único, como foco central de um problema a ser estudado, como elemento
comparativo de dados conforme tempos históricos. Ressalta que quando olhamos uma fotografia é
48
Atribui-se a invenção da fotografia a Louis Jacques Mandré Daguerre (1787-1851), embora tenha sido seu colega de
pesquisa, Nicéphore Niépce, no início do século XIX, o responsável por conseguir gravar imagens fotográficas escurecendo
cloreto de prata sobre o papel, cujo resultado nomeou de heliógrafo. Daguerre e Niépce trabalharam juntos e foram criando
mecanismos cada vez mais precisos para capturar imagens. Kossoy vai afirmar que “com a descoberta da fotografia e,
mais tarde, com o desenvolvimento da indústria gráfica, que possibilitou a multiplicação da imagem fotográfica em
quantidades cada vez maiores através da via impressa, iniciou-se um novo processo de conhecimento do mundo, porém de
um mundo em detalhe, posto que fragmentário em termos visuais e, portanto, contextuais” (2001, p. 26).
49
A autora aprofunda os usos da fotografia na pesquisa (2000, p. 25-144), posto que trago aqui apenas algumas idéias que
me interessam, neste momento.
indispensável estar ciente de que nunca se olha apenas uma coisa e sim as relações presentes das
coisas entre si com outros elementos e também com as coisas que carrega o próprio observador.
Ao vermos uma fotografia somos movidos por seu conteúdo e pelas forças que ela carrega
consigo. Cada fotografia representa um recorte de um determinado entorno espacial, dentro de uma
dinâmica temporal, não apenas limitados ao campo visual de quem fotografa, pois olho e câmara
cruzam-se, um é de certo modo a extensão do outro. “O olho é uma câmara. A câmara é um olho. O
que torna a percepção fotográfica um processo criativo” (QUEIROZ, 2000, p. 59). A câmara fotográfica
deixa de ser apenas instrumento de retenção de imagens para também ser parte prática do olhar do
fotógrafo, ambos implicam-se e dilatam-se mutuamente na captura do texto imagético. Foi nessa
relação que fui adentrando no campo empírico e rondando sentidos que me mobilizavam.
Nesse processo, subjetividades estão em jogo, disputando escolhas implicadas pela cultura e
pelas vozes que estão em cena, juntas com outras que também entrarão em cena pelos olhares
observadores dos que se debruçarem sobre o texto fotográfico; todas, no exercício de atribuir sentidos
frente às tantas possibilidades de representação dadas pelas condições em que se encontra quem
estiver examinando. Por mais abstrata que pareça, lembra Leite (2000), a fotografia é sempre imagem
de alguma coisa, além de que, tudo o que se vê parece estar ao alcance, pelo menos, do olhar de
quem vê, ou seja:
uma fotografia não parte do nada. Ainda que o acontecimento que retrate seja
inédito. Nela é sempre possível encontrar um gesto, um movimento, uma forma
corporal, um estilo fotográfico, evocadores de outros gestos, movimentos, formas,
fotografias. A fotografia é sempre registro (...). Pessoas retratadas envelhecem e
morrem. Cenários se transformam, desaparecem. (QUEIROZ, 2000, p. 59).
A vida sobrevive no registro sugerido pela fotografia, assim como o contexto por ela evocado;
contudo, os discursos presentes em cada fragmento fotográfico põem em ação outros sentidos e
mobilizam experiências, entendimentos acerca de si e das realidades, enfim a própria história daquele
que vê e se vê através dos enunciados que circulam no texto cultural capturado e representado.
Embora os textos fotográficos carreguem como possibilidade um olhar hermético, fechado,
imutável, eles transportam consigo, ao longo dos tempos, diferentes sentidos. O fato mesmo do
distanciamento pode evocar deslocamentos, agenciar outros significados, provocar intervenções e
produzir regimes de verdade segundo os discursos que aí se mobilizam.
A fotografia é portadora de uma ambigüidade porque nela vivem-se escolhas, cruzam-se
interesses, enfrentam-se circunstâncias, fazem-se opções por certos enquadramentos em detrimento
de outros, elegem-se preferências. Nesse sentido, ela assume caráter próprio como documento e como
significação. Independente da intenção de seu autor, ela se materializa no registro de um microaspecto,
filtrando escolhas de fragmentos colocados fora da pretensão de abarcar a totalidade dentro de um
contexto.
A fotografia é um produto da cultura, uma invenção que, segundo Flusser (2002), pode ser
comparada com a da escrita dada a sua importância histórica. Invenção que ao longo destes dois
últimos séculos passou por processos contínuos de mudanças a partir do desenvolvimento da
tecnologia e da técnica fotográfica.
A acessibilidade da fotografia, de que fala Kossoy (2001), mesmo que em fragmentos da vida
cotidiana, retoma e torna possível outras formas de entender hábitos, valores, costumes,
comportamentos, preservando frações da memória de personagens e cenários na trama de
significações em que estão imersos, expressando rupturas, continuidades e transformações inscritas
na cultura. Ela deixa de ser apenas uma fonte linear da história e passa a ser instrumento cultural e
político, uma tecnologia que se enreda na vida social e produz significados interpelando diversos
campos do saber.
A fotografia constitui-se num invento que marca sobremaneira as experiências em tempos e
espaços de sobrecarga imagética ocorridos em velocidade ímpar, tendendo ao excesso do olhar
humano. Talvez por isso, dizem Fischaman e Cruder (2003), exista um crescente interesse da
pesquisa acadêmica pelas experiências visuais e a multiplicação de estudos dirigidos aos processos de
ver e ser visto como formas de produção de “realidades” culturais.
Inscrita nessa perspectiva, ao pesquisar possibilidades de leitura de surdo e de surdez através
de imagens fotográficas, Lopes (2002, p. 53) entende a “fotografia como um ‘produto’ cultural e como
uma ‘produtora’ de cultura que, ao registrar acontecimentos e pessoas, está materializando
possibilidades de significados que se configuram de acordo com aquele que é interpelado pela
imagem”. Diante disso, faz um alerta para que seu uso em pesquisas não seja fixado na busca de uma
verdade escondida atrás do registro fotográfico ou que se remeta a simplesmente capturar a intenção
do fotógrafo.
Sua investigação se dá sobre registros fotográficos de cenas cotidianas da vida da escola para
surdos que pesquisou, denominados de instantâneos anônimos por se tratar de fotografias feitas de
forma anônima por pessoas envolvidas naqueles contextos, com a finalidade de servir de recordação.
Estarei, no caso de minha investigação, ocupando o lugar de fotógrafa ao realizar os registros
fotográficos, situada na posição de sujeito que filtra o que será ou deixará de ser registrado, como
também escolhendo em que momento retratar ou não retratar os grafismos urbanos. Foi assim que
frente ao excesso de grafismos urbanos postos no corpo da cidade, fui elegendo aqueles que constitui
como textos culturais voltados à produção de discursos sobre paz e violência.
Toda fotografia é portadora de uma história, nos dizeres de Kossoy (2001), traz consigo
resíduos de tempos e espaços de onde foi e por quem foi materializada, o que ao olhá-la supõe situar
pelo menos três elementos: o da intenção que fez com que a foto existisse, o do registro para que ela
tivesse uma materialidade e o dos caminhos percorridos por ela depois de ter sido materializada. Assim
fiz, trazendo para minha captura o elemento da intenção, relaciono-o com o motivo que me levou a
fotografar aquela imagem, a escolher o foco paz e violência para realizar meus registros; o segundo
elemento carrega consigo as razões pelas quais o ato da materialidade fosse efetivado naquele
espaço, naquele tempo e naquelas condições, pois o instante do registro se fez acontecimento e
interpelação sobre mim, permitindo-me a captura sob a marca do que era capaz de ler naquele
momento direcionada ao foco que me proponho. Por fim, o terceiro elemento comporta os caminhos
percorridos pelo registro realizado, o que significa o não aprisionamento da fotografia ao momento da
intenção e do registro. Por isso, acredito que aquele momento da captura não aprisiona sentidos, ao
contrário, o ato de voltar sobre a materialidade permitirá a emergência de novos enunciados e novas
leituras.
Entendo que nos registros fotográficos situam-se as mãos de quem a eles se dedicou, a
emoção que provocou, as significações que dela emergem conforme as relações tramadas pelo olhar
de quem registra e de quem vê. Assim, os caminhos percorridos pelas fotografias podem ser os porta-
retratos que a emolduram, os álbuns que servem de suporte para guardá-las, dentre outras
imprevisíveis situações e possibilidades de se fazerem caminhos segundo os espaços e tempos por ela
percorridos e os olhares que se deixaram interpelar por ela, isto porque
a
fotografia não está enclausurada à condição de registro iconográfico dos
cenários, personagens e fatos da mais diversas naturezas que configuram os
infinitos assuntos a circundar os fotógrafos, onde quer que se movimentem. A
fotografia, por ser um meio de expressão individual, sempre se prestou a incursões
estéticas; a imaginação criadora é, pois, inerente a essa forma de expressão; não
pode ser entendida apenas como registro da realidade dita factual (KOSSOY,
2001, p. 49).
Na fotografia vive-se um paradoxo: nela fixa-se um instante que é irreversível, está ali
cristalizado, congelado, não volta mais como experiência datada, localizada. Contudo, torna-se
impossível enclausurar o seu sentido, esse escorrega, caminha, joga-se a infinitas percepções, lança-
se a inquietações, movimenta olhares, conhecimentos, não fica fechada à filiação inicial da forma
retangular em que é materializada, abre-se a outras tintas, a outras misturas e significações.
Interpenetram-se leituras sobre a materialidade do registro, evocando sentidos outros que inventam
realidades ao sabor dos acontecimentos vividos.
A cena registrada na imagem é irreversível. Àquele instante nega-se a idéia de repetição, não
poderá jamais ser revertido, e também não dá para saber o que o fotógrafo e o espaço fotografado
viveram lá, o ato de seu registro se esvaiu no tempo... fica o acontecimento, a possibilidade de ler,
compreender, significar... Resta a descrição da materialidade, restam interpelações frente ao que se
deseja olhar ou silenciar, restam as criações, o inédito, as leituras.
Ligada ao texto fotográfico e por ele interpelada, não me interessa aqui responder se a
fotografia e seus conteúdos são verdadeiros, nem vou utilizá-la como instrumento de investigação e
interpretação de uma história linear, tampouco vou situar as imagens num tempo e num espaço fixos,
que me proporcione o conhecimento “de fato” da cena representada. Entendo que as imagens
produzem sentidos, estão enredadas em redes de representações e significações ininterruptas,
desencadeando formas de pensar, possibilidades de ver e não ver, impactando desde filtros culturais
que as perpassam.
Tenho usado a câmara fotográfica como instrumento para realizar registros fotográficos a fim
de capturar práticas culturais de grafitagens e pichações. O gesto de fotografar se tornou uma forma de
ler e narrar cenas de paz e violência, recortadas em tempos e espaços do corpo tatuado que é a
cidade. Faço o registro de alguma coisa que carrega consigo um paradoxo: o estudo cultural do objeto
fotografado em sua relação comigo mesma, isto é, com as crenças que foram mobilizadas no instante
em que me fiz obturadora. Vivo, em cada registro fotográfico que realizei, a ambigüidade de estar
culturalmente enquadrada dentro dele, portanto, simultaneamente, preciso olhar sempre para a relação
entre mim e a fotografia, para as relações multiplicadas por ela mesma, o contexto em que se inscreve
e aqueles em que eu a escrevo.
4.2 DESCAMINHOS DA RONDA
Com as reflexões até aqui feitas sobre a fotografia, sobre o ato de fotografar e os movimentos
daí decorrentes, julgo poder descrever de forma mais detalhada os descaminhos da ronda que fiz pela
capital gaúcha, Porto Alegre (RS), percorrendo espaços para fazer registros de grafismos urbanos.
Inscrevo-me nestas buscas interessadamente e de muitas formas: na escolha da temática, na eleição
de determinados suportes a serem fotografados, nas ruas e avenidas a serem visitadas, nos percursos
e trajetórias de retornos, no descarte de imagens, na significação de grafismos urbanos, nos tempos de
procura, na exaustão de imagens, na forma de registrar, nos medos enfrentados, nos silêncios de
procura, nos sentidos experimentados, no movimento do olhar operando com paz e violência.
Retorno aqui ao momento, já anunciado, quando fui tomada pelo discurso: “Cada criança com
seu próprio canivete”, situada na rua Bispo Laranjeira, no bairro Medianeira, em Porto Alegre. Esse
grafismo urbano, feito sobre a “limpidez” de um muro branco, impactou-me e, naquele momento,
apontava-me para uma leitura que me fazia crer na disseminação de violências, armando e incitando
crianças a agir violentamente. Nesses começos, ao fotografar, buscava capturar o máximo possível do
contexto em que o grafismo urbano estava materializado, isto é, registrava o suporte em se encontra,
mas também o entorno desse lugar.
Para realizar os registros fotográficos dos grafismos urbanos necessitei organizar-me e
dispensar tempo e instrumentos: olhos atentos sobre o corpo tatuado da urbe, carro para circular,
câmara fotográfica, filme(s), tecnologia. Saía quase que obcecada pela cidade e, na minha ânsia
moderna queria retratar “tudo” que via pela frente. Minha câmara manual em instantes impossibilitava-
me de fazê-lo, pois devorava filmes de trinta e seis poses, deixando-me perplexa e, por vezes,
assustada com os custos financeiros que começava a ter com filmes, revelações e tempo que isso
demandava. Após revelar os filmes e olhar as imagens, percebia que alguns dos registros precisavam
ser descartados, porque praticamente nada dava para ver. Algumas vezes, ao voltar para novamente
fazer o registro, deparava-me com a desagradável frustração de não mais existir o objeto desejado.
Isso me fazia recordar que os grafismos urbanos são uma intervenção sobre cidade marcada pelo
caráter da efemeridade, da provisoriedade da sua permanência nos suportes. Munhoz (2003) diz que
uma escrita urbana não permanece estática e inalterável nos suportes onde está inscrita, podendo
inclusive desaparecer após o momento de secar sua primeira tinta.
Senti na carne aquilo que Leite (2000) diz sobre a questão de que quando lidamos com a fotografia
lidamos com aquilo que continuamente desaparece e, ao desaparecer, não tem como voltar. Eu não
tinha mais como registrar o grafismo a que se tinha sobreposto uma camada de pintura sobre a
parede, porque não havia como copiar a experiência do dia anterior. Percebi que estava no meio de
dois objetos complexos e com movimentos, em certa medida, semelhantes: grafismos urbanos e
fotografia, ambos dados ao imprevisível, à instantaneidade, ambos dados ao desaparecimento, à
dispersão de sentidos e à dificuldade de captura.
Observei que precisava de uma câmara com maior qualidade tecnológica, não como garantia de
banir surpresas e empecilhos, mas como uma possibilidade de capturar mais facilmente imagens
desejadas, otimizar tempo, qualidade de imagens e recursos financeiros. Foi então que tomei
emprestada uma máquina fotográfica digital, pois naquela ocasião não tinha condições de comprar
uma.
Dentro dessa empreitada fotográfica, imbuída de câmara digital, saí clicando como alguém que
acabara de “descobrir” a máquina, a fotografia e as próprias práticas de grafitagens e pichações. Podia
ver “tudo” e questionar a mim mesma sobre o fato de não enxergar no entorno e nos lugares que
costumava circular tanta coisa sendo dita. Ao mesmo tempo, aquilo que observava chegava a mim
como se fosse o mesmo, os riscos e rabiscos encontrados em diferentes lugares pareciam-me
ilegíveis, indecifráveis, inquietavam-me e, aos meus sentidos, pareciam não fazer sentido algum,
mantendo-me na espera.
Enquanto fotografava traços, riscos, desenhos me vi paralisada diante do meu instrumento de
trabalho: a máquina. Desta feita, ela dava sinal de ocupado e só tinha guardado na memória vinte e
oito imagens. Foi aí que entendi Flusser quando diz que “o gesto fotográfico é um jogo de permutação
com as categorias do aparelho” (2002, p. 30). O que podia ou não fotografar estava subordinado à
minha compreensão do funcionamento do aparelho, da sua capacidade de memória, do
enquadramento que tinha dado sem saber muito bem como, dos mecanismos e comandos
necessários, da resolução definida para cada imagem capturada. Outra vez lá se ia o meu tempo, que
era pouco para tal objetivo. Comecei a ser incitada a pensar outras formas de olhar e capturar.
Afora os entraves técnicos e os custos financeiros altos, outros complicadores se somavam na
trajetória de pesquisa: algumas vezes dependia de outras pessoas para realizar aprendizagens
necessárias como para operar com as tecnologias envolvidas nesses processos. Em determinadas
circunstâncias, perdi imagens por problemas de ordem técnica no computador e na máquina
fotográfica, que ao voltar nos espaços para refazer não conseguia recuperar porque não existiam mais,
conforme já explicitei.
Nessas lutas por entendimentos e questionamentos diante dos textos culturais, havia uma
insatisfação: não podia continuar correndo por todos os lados da cidade. Foi então que me coloquei
diante de um outro de jeito de olhar: capturava apenas imagens que explicitassem compreensões de
paz que já estavam dadas a mim. Buscava uma ordem para o caos que me encontrava, associando
cada imagem a compreensões e simbologias que me traziam o conforto de saber que terreno pisava.
Fotografava aquilo que materializava sentidos de paz associada à justiça, à solidariedade, a
referenciais como a cor branca, a pomba, a arma expressa com o símbolo da negação sobreposto.
Fazia pensando em perceber elementos voltados às tradições de paz
50
como a tradição romana que
considera a paz ligada ao poder: “paz é a paz estabelecida pelo centro do poder, desejada
politicamente pelo imperador e estabelecida e garantida militarmente pelo exército romano”
(GUIMARÃES, 2003, p. 63). Essa compreensão, como explicitei no capítulo três, entende ainda a paz
como um dom a ser concedido pelo vencedor sobre o vencido, produzindo discursos que relacionam
paz ao verbo apaziguar, colocando em jogo uma ambigüidade de sentidos sobre o que pode ser
entendido como paz.
Em torno das tradições, procurava por sentidos direcionados à concepção judaico-cristã onde a
paz é entendida “positivamente como totalidade e completude da vida“ (GUIMARÃES, 2003, p. 65), isto
é, consolida-se como um lugar de fartura de todos os bens materiais e espirituais, de bênçãos, de
segurança e da aliança das pessoas com o Deus que promove a paz. Esse autor afirma que é dessa
compreensão da paz como aliança que se fundem os símbolos da paz: pomba e ramo de oliveira.
Sobre o corpo tatuado da urbe direcionava meu olhar para encontrar também grafismos que eu
pudesse associar à tradição dos movimentos pacifistas cuja perspectiva volta-se para significar paz
através da contestação e de lutas por direitos por meios não-violentos: protesto, persuasão, não
cooperação política e econômica. Mobilizava-me dentro desses conhecimentos, classificando, nessas e
noutras compreensões, portanto incluindo e excluindo grafismos urbanos no ato mesmo de fotografar.
Atravessou-se no meu caminho uma outra inquietação: era preciso ir mais fundo do que
apenas classificar os grafismos urbanos nos referenciais das tradições de paz. Senti-me
problematizada por Bauman (1999, p. 9) sobre a minha busca de ordem: “classificar é dar ao mundo
uma estrutura: manipular suas probabilidades, tornar alguns eventos mais prováveis do que outros,
comportar-se como se os eventos não fossem casuais ou limitar ou eliminar sua casualidade”. Percebi
que estava manipulando probabilidades de sentidos, talvez encerrando o significado, limitando e
eliminando outras possibilidades de leitura. Deslocava-me para entender o significado de viver e fazer
50
Guimarães (2003) explicita doze tradições de paz: grega, romana, judaico-cristã, estóica, platônica-agostiniana, do
humanismo renascentista, da modernidade, romântica, socialista, liberal, dos movimentos pacifistas e, por fim, da
contracultura, da New Age e das religiões orientais. Agora, opto por usar apenas algumas delas que julgo fazer sentido para
o momento da pesquisa.
pesquisa na ambivalência, de colocar-me sob a mira do contingente e do acaso, de enredar-me na
relação inextrincável entre teoria e prática, de entender a radicalidade de separar-me de mim mesma e
das compreensões que tinha.
O fato é que vivi engasgada, por algum tempo, num duplo movimento de disputa comigo. Por
um lado, estava difícil separar-me da ordem que classificava conforme as tendências e tradições de
paz, por outro, esse enquadramento já trazia insatisfações diante dos referenciais que me inscrevi para
fazer a pesquisa e lançava-me para enfrentar outras direções. Precisava deixar de ver apenas as
mesmas coisas e atribuir apenas os mesmos sentidos.
Considerando as inquietações de estar fixando sentidos e eliminando outras formas de olhar,
tomei decisões: abandonei leituras dentro das abordagens que fortaleciam tais compreensões, reforcei
leituras dentro da perspectiva pós-estruturalista, parei de rodar por todas as direções da cidade,
aproximei-me mais do que desejava obter para materiais de análise, deixei fluir um outro modo de
problematizar o meu objeto, arriscando-me no domínio das incertezas como uma possibilidade de
lançar-me no jogo da imprevisibilidade criadora.
Aquilo que era óbvio precisava ser estranhado, eu deveria provocar rachaduras no visível que
se materializava nos grafismos urbanos e submeter a interrogações: Quais grafismos urbanos
fotografar? Quais cruzamentos eleger para melhor olhar enunciados sem perder de vista o foco? Onde
me localizar para não haver tanta dispersão? Como realizar agrupamentos que me ajudassem a
perceber unidades de sentido? Discursos sobre paz estariam sendo enunciados? Quais os
tensionamentos estariam presentes nos grafismos? Que significados eles poderiam estar produzindo?
Violências estariam sendo produzidas pelos grafismos?
Como se pode observar, a minha aproximação dos grafismos urbanos como campo de
pesquisa se tornava um acontecimento cada vez mais intenso, dado a muitas idas e vindas, tanto no
campo empírico quanto no campo dos conhecimentos registrados e com as relações e cruzamentos
discursivos que devo fazer na produção que ora realizo.
Quero recordar que vinha e ainda venho me desfazendo de entendimentos que me
enclausuravam e me impediam de redirecionar o olhar. Encontrava-me mergulhada no campo empírico
tentando alargar minha visão referendada nas teorias críticas, marcada pela idéia da paz como
alternativa à violência. Precisava redirecionar o jeito de olhar para as práticas de grafitagens e
pichações, pois também as considerava como uma forma de agressão à idéia de limpeza, de assepsia,
de organização, de estética e de beleza que tinha sobre a cidade e seus suportes. Em suma, o que
quero dizer aqui é que os modos de existir entram na dinâmica da vida e convivem numa luta de forças
para fazer valer seus discursos. Eu não estou apartada dessas construções culturais, por isso me vi
sendo mobilizada, no caminho, a ressignificar entendimentos.
Muitas perguntas caminhavam comigo nas andanças pela cidade a cada retorno ao ofício de
fotógrafa pesquisadora nos tempos disponíveis. Fazia escolhas diferenciadas na trajetória: ora
seduzida pelos enquadramentos deste ou daquele grafismo, ora tentando abarcar os contextos, ora
apenas parte de um grafismo, enfim, sabendo que “a fotografia é resultante de uma escolha, de uma
ocasião ou de um aspecto” (LEITE, 2000, p. 95). Cuidava, no entanto, para datar, localizar a rua e o
suporte em que estava inscrita, isto porque as experiências, as práticas, os discursos são sempre
históricos e conforme assinala Foucault (2004), produzem-se em determinados tempos e espaços e
carregam consigo as marcas de sua emergência.
Depois desses percursos, tinha uma infinidade de fotografias, em torno de oitocentas
considerando os contextos. Precisava recortar, escolher desde dentro daquele conjunto de materiais
aqueles que focassem melhor a temática de meu interesse, que fossem úteis para produzir alguns
significados sobre paz e violência e que também fizessem sentido no campo da política e da pedagogia
cultural. Isto porque, eu estava tomando como parte do meu problema de investigação, a hipótese de
que os textos culturais produzidos por grafismos urbanos, estariam ensinando, signficando paz e
violência. Assim tomados como textos culturais, os grafismos urbanos passariam a ser meus
interlocutores na constituição de significados, fazendo-me operar com “a idéia de que no mundo
contemporâneo a educação se dá em outros espaços além da escola” (COSTA, 2005, p. 2) e, por
conseguinte, eles se mostravam e eu os considerava como espaços para aprender sentidos de paz e
violência na materialidade de seus discursos.
Considerando os estudos feitos, a pesquisa de diferentes autores, meu envolvimento pessoal e
profissional com a temática em estudo, olhava para os materiais, revia suas marcas e novamente
cruzava os olhos nas tatuagens da cidade: assim comecei a realizar agrupamentos provisórios, que se
desmanchavam, voltando a compor outros. Empreender uma forma de organização significava atribuir
significados ainda que temporários. Ao atribuir sentidos, muitos cruzamentos provocavam uma
dispersão que me desafiava a tomar as fotografias como brinquedo, como cartas de baralho, conforme
sugere Flusser (2002), para no ato de brincar fazer fluir a criatividade e os sentidos.
Fiz um primeiro agrupamento geral utilizando como critério aleatório o lugar da materialidade
do grafismo. Então, separei aquelas que correspondiam primeiramente a: muros e paredes de escolas,
a partir daí fui separando escolas públicas e privadas para ver diferenciações, pois pensava em
analisar apenas esse material. Depois aquelas que se encontravam em avenidas de grande circulação
de pessoas e de carros, comparando semelhanças com os contextos do centro da cidade;
posteriormente, fixei meu agrupamento dos grafismos urbanos por bairros. Realizados esses primeiros
agrupamentos, continuei a olhar para o material querendo enxergar outras relações que até então
ainda não era capaz de ver. Procurava por recorrências, semelhanças, diferenças; observava,
procurando por constatações de informações que havia lido nos textos e nas pesquisas sobre
grafitagens e pichações. No jogo das possibilidades de leituras, tentava decifrar escritas e desafiava-
me a atribuir significados sobre o que se apresentava compreensível a mim nas materialidades dos
registros fotográficos.
Apresento dois grafismos urbanos sobre os quais me debrucei para realizar algumas
observações. Lembro que não estou usando aqui esses registros fotográficos como ilustração, mas
como textos culturais que me permitem realizar algumas leituras. Coloco-os contracenando com minha
forma de enxergar e com outras possibilidades dos leitores.
Reparei que havia diferenças entre os grafismos urbanos feitos em muros das escolas da rede
pública e das da rede privada. O texto cultural catorze estava localizado num muro de uma escola
estadual na avenida Bento Gonçalves, bairro Partenon, e o texto quinze procede de um muro de escola
particular, na rua José Otão, bairro Independência, ambos de Porto Alegre (RS). Observei que
normalmente nos muros de escolas particulares eles estavam datados, assinados por turmas e por
alunos, quase sempre relacionados a questões de direitos humanos, justiça, meio ambiente, paz,
solidariedade, violência. Voltados a projetos da disciplina de artes, indicando que haviam sido
apropriados pelo currículo escolar. Sempre que voltava a esses espaços, os grafismos urbanos ainda
estavam lá, fugiam ao caráter de transitoriedade que lhes é atribuído, embora fosse possível observar
que outras assinaturas estavam sobrepostas à frente do que parecia ter sido primeiramente pintado
sobre aquele muro.
Já em escolas da rede pública em que eu havia feito registros, pude observar que os grafismos
urbanos eram mais elaborados, mostravam que haviam sido realizados por alguém que tinha certo
domínio das técnicas e dos estilos próprios que mencionei no capítulo dois. O texto cultural catorze,
que mostro na interlocução com o de número quinze, mostra movimentos que matizam os estilos
denominados: free style e 3d style, pois observa-se o aparecimento de sombra, profundidade,
elementos como a nave espacial, o extraterrestre dentro dela, outras quatro naves menores circulando
em torno da nave maior, parecendo luminárias que protegem o sono daquele que está dentro, sendo
guardado. Esses e outros traços no jogo de sombras e luzes podem ser visualizados e são ímpares, o
que mostra o domínio do uso do spray por parte de quem o materializou a fim de compor o desejado.
Nesses de escolas públicas, quase sempre, precisava debater-me em tentativas de entender as
escritas, de produzir significados, pois os grafismos eram compostos por escritas de diferentes estilos,
às vezes, em três dimensões, para mim, indecifráveis.
Outra diferença que me era possível perceber é que nem sempre as obras eram assinadas e,
quando assinadas, nem sempre eu podia ler a assinatura, porque se assemelhavam a tags individuais
ou de algum grupo. Seu caráter fugaz evidenciava-se de forma mais acentuada, pois por mais de uma
vez vi os muros se transformarem em outros grafismos urbanos que não aquele que tinha capturado no
meu registro fotográfico, como é o caso do texto cultural catorze que já não se encontra mais naquele
espaço, cedendo lugar para uma nova prática.
Nesse momento da pesquisa, mostro como fui sendo mobilizada na travessia que vinha e
venho fazendo para construir caminhos e saberes. Operava-se em mim movimentos, indícios de
análises. Ainda não satisfeita procurava e continuo procurando por outros jeitos de ver e de agrupar.
Texto cultural - 14 Texto cultural - 15
Insisto com os materiais, recortando mais e mais e a cada novo recorte, novas construções
metodológicas parecem emergir, mas sinto na carne aquilo que diz Foucault (2000, p. 255) sobre “o
saber [...] ele decepciona, inquieta, secciona, fere”. Por isso, continuo minhas buscas e meus recortes
na tentativa de fazer fluir um modo de pensar sobre os grafismos urbanos escolhidos na articulação
com violência e paz. Olho para as mais de setenta fotografias e procuro fazer recortes e leituras
através do exercício de descrever a materialidade, indicar relações, identificar elementos que suscitem
significações, o que se tem apresentado como um desafio contínuo nessas buscas de sentidos sobre
paz e violência operando nos textos culturais capturados por mim.
Neste processo de múltiplos retornos tenho cruzado sentidos ao cercar sempre mais meu
objeto e continuo operando cesuras sobre os grafismos urbanos, olhando para aqueles cujos
significados sou capaz de atribuir e que mais sentidos mobilizavam em mim sobre violência e paz.
Nessa perspectiva, por exemplo, se volto os sentidos sobre os textos culturais catorze e quinze, no
exercício de começar a descrevê-los, vejo uma emergência de interrogações que me interpelam e que
me fazem perceber a inter-relação entre ambos e entre os elementos que compõem cada um. No texto
quinze, “SOLIDARIEDADE” e “PAZ” se inscrevem sobre uma página vermelha que traz à esquerda
uma pessoa armada de faca e com a face coberta, de frente para a pessoa há uma mão se lança como
que pedindo a faca. Outra pessoa no canto superior direito está sentada, cabisbaixa e uma terceira
pessoa aponta para essa. Diante dessa materialidade descrita, interrogo-me continuamente: paz é algo
que se materializa sobre a violência? Só é possível pensar a paz nos contextos onde há ameaças de
pessoas contra pessoas, de armas? A violência é causadora de desânimo, sofrimento, dor? Isso
conduz ao imobilismo expresso na forma daquele que se põe de cabeça baixa e braços sobre os
joelhos? São apenas as armas instrumentos de violência? Para haver paz é preciso desarmar as
pessoas? Outro nome para paz poderia ser solidariedade? Elas, paz e violência, afinal não são
produtos da cultura convivendo no cáustico do urbano?
Nessa efervescência de questionamentos, deixo-me ao sabor da sedução dos discursos e
começo a operar com paz e violência como ferramentas atuando nos materiais e que me ajudam a ir
constituindo sentidos presentes nos grafismos urbanos. Tais sentidos têm marcado meu interesse
como lentes que direcionam o olhar e cruzam-se com tintas que carregam uma conflitividade
provocada pelo imprevisível que tem sido lidar com as tatuagens materializadas no corpo da cidade.
Se direciono o meu olhar sobre o que descrevi no texto catorze, debato-me em outros
questionamentos, pois ao capturá-lo fui particularmente acionada pela assinatura que se encontra no
canto superior à direita: “PAX”. Isso conduziu-me a pensar que uma tag ou uma crew, assim nominada,
mobilizava sentidos de paz uma vez que é o que significa pax traduzida do latim. Diante disso,
perguntava-me e ainda pergunto-me: paz é algo que se alcança no isolamento de uma nave? É só para
extraterrestres? Só há paz se há quietude, sono tranqüilo? Isso significaria a eliminação de conflitos? E
dos próprios humanos, ou de sua condição humana terrena?
Assim, envolvida com esses grafismos urbanos e com outros dos mais de setecentos
registrados, com essas e outras questões, acentua-se a minha suspeita de que os discursos, nessas
práticas culturais, aparecem tramados numa rede de significações na qual sentidos estão em disputa e
podem estar enunciando e discutindo os múltiplos conflitos presentes na vida, tais como armamento,
sofrimento, desejos de paz, morte, guerra, assaltos, violências, tristeza, vida urbana. Nos grafismos
urbanos materializam-se escritas, riscos, imagens, assinaturas, tintas, movimentos, signos que me
deixavam e ainda me deixam em silêncios de espera e de emergência de enunciados.
O movimento que tenho realizado pode ser caracterizado como multifocal e enredado em
descaminhos. Fui investigando e procurando entender os contornos metodológicos e nuances de
respostas a meus questionamentos sobre os sentidos mobilizados pelos grafismos urbanos e, desde os
registros fotográficos, operar com paz e violência na complexidade que supõe as disputas em torno
desses discursos. Posso traduzir a forma como constituí o processo metodológico e os próprios
materiais de análises como um movimento de: rodar e rondar a cidade, munir-me de máquina
fotográfica, compreender algo sobre o campo de conhecimento da fotografia, capturar imagens de
grafismos urbanos, voltar muitas vezes sobre o material, realizar leituras interessadas, retornar a
conflitividade envolvida nos discursos em torno de paz e violência, aprofundar discussões, deixar-me
conduzir e permitir-me atribuir sentidos. Ressalto que isso não foi um movimento linear: olhar e ser
olhada, observar e ser observada, significar e ser significada, focar e ser focada, fotografar e ser
fotografada constituiu-se (permanece em constituição) num movimento relacional que tenho
estabelecido com os grafismos urbanos nas condições do acaso em que significados são atribuídos
nessa imbricação.
Percebi que ao olhar para a imagem a ser capturada, significava já ter atribuído sentidos,
passar pelo crivo do meu interesse, escolher, selecionar pelo meu filtro e pelo filtro do foco da câmara
fotográfica, capturar dentro de um certo enquadramento e não de outro, reproduzir a imagem, olhar
novamente a imagem, voltar a olhar, significar, descartar aquelas que julgava dispensáveis para os fins
desta investigação. Todo esse movimento, implicava em constantes transformações, tanto da imagem
como do olhar e da própria pessoa implicada na leitura: sentidos, significações e ressignificações
estavam sendo constituídas a cada retorno sobre os textos culturais dos grafismos urbanos que,
segundo Foucault (1996), supõe procedimentos da ordem do próprio discurso que coloca em evidência
determinados enunciados que os produzem.
Do registro, da análise e das significações que emergiram desse processo que me constituiu
fotógrafa pesquisadora, e que apresentei até agora, creio que alguns caminhos foram construídos e
outros vão se constituir na medida em que eu adentrar e aprofundar nas leituras em torno dos quase
oitocentos grafismos urbanos que registrei. Manuseando esses materiais de pesquisa, percebo uma
recorrência de enunciados sobre paz e violência, que me leva trabalhar com a hipótese que os textos
dos grafismos urbanos carregam uma pedagogia cultural onde algumas verdades estão sendo
produzidas, talvez provisórias e efêmeras, mas que para certos grupos culturais podem ser a
expressão de modos de viver e de materializar significados. É o que me proponho examinar e
problematizar na próxima parte desta dissertação.
Parte III
PINTANDO SOBRE RISCOS E RABISCOS
Texto cultural - 16
51
Capítulo 5
ACENTUANDO TONALIDADES E CAMINHOS
O saber não é feito para compreender,
ele é feito para cortar.
(FOUCAULT, 2004, p. 28)
Neste momento da pesquisa, proponho-me a acentuar tonalidades nos riscos e rabiscos que
vim traçando para compor esta investigação, porque entendo que minha abordagem não é disciplinar,
nem é possível enquadrar o que venho realizando dentro de apenas um discurso que se queira como
verdadeiro. O que procurei fazer até aqui foi, como diz a epígrafe, cortar saberes em vários campos
como o da filosofia, da arte, da antropologia, da educação, da sociologia para compor não uma
continuidade e repousar nessa obstinação, mas para, no caminho, acrescentar tonalidades e, segundo
propõe Foucault (2004), deixar fluir as relações de poder no jogo dos discursos.
Na perspectiva do acaso, considero-me envolvida nesses cortes de
conhecimentos já feitos e ainda por fazer. Compreendo que o conhecimento é contingente e
provisório, por isso, minha análise será apenas uma entre tantas outras possíveis. Para
dizer dessa fugacidade e dessa não finitude do conhecimento, aproximo-me do texto
cultural em construção posto na abertura desta terceira parte, mostrando na ação do
grafiteiro com o spray na mão, que o desenho ao se fazer vai se fazendo na abertura de
outros riscos e rabiscos e na imprevisibilidade do urbano. Dessa forma, entendo que estou
retornando, não para dizer e viver o mesmo, mas como diz Foucault (1996) sobre o
acontecimento, volto para fazê-lo novo. Retomo, portanto, para compor sentidos e
manifestar, criticamente, as transformações ocorridas no ato de pintar este desenho.
Na trajetória que venho fazendo ao longo deste texto, tive o cuidado de não afirmar que os
grafismos urbanos são o meu foco de pesquisa. A rigor, os grafismos urbanos foram mais um objeto
51
Este grafismo urbano em construção estava sendo realizado pelo grafiteiro no dia 27 de janeiro de 2005, no bairro
Restinga em Porto Alegre, sobre uma parte do muro lateral da Escola Municipal Dolores. É o mesmo grafiteiro dando
continuidade ao grafismo da abertura da parte I desta pesquisa, que agora se mostra mais para o final do desenho.
histórico que serviram para que eu compreendesse como significados sobre paz e violência podem
constituir-se, permitindo-me que diferentes sentidos fossem problematizados.
Importa dizer que agrupei e reagrupei inúmeras vezes os materiais que compõem a pesquisa,
como exercício de olhar para a materialidade dos registros fotográficos dos grafismos urbanos, para
descrever e problematizar enunciados e discursos que inventam verdades sobre paz e violência. A
seguir torno visível a materialidade e a transitoriedade das análises que realizo ao examinar os
enunciados presentes nos textos culturais dos grafismos urbanos.
5.1 TRANSITORIEDADE DA INVESTIGAÇÃO
Esta pesquisa quer mostrar como os enunciados produzem significados em torno de paz e
violência nas práticas culturais dos grafismos urbanos. Tomo-os como campo empírico em torno dos
quais busquei elaborar minhas interrogações. A busca pelos materiais deu-se durante o período
aproximadamente de um ano, junho de 2004 até julho de 2005, na cidade de Porto Alegre. Escolhi esta
cidade porque aí resido e trabalho e por entender que as práticas culturais que elegi são
eminentemente de um universo urbano entendido como grandes centros de concentração populacional.
Concordo com Canclini (2003), que os grandes centros são uma vitrine onde se pode expor múltiplas
linguagens, e os grafismos urbanos não deixam de ser uma linguagem produtiva inserida na vida
contemporânea, atuando sobre a cidade.
Durante esse espaço de tempo, fotografei em torno de oitocentas grafitagens e pichações.
Muitos destes registros fotográficos foram descartados no ato de selecionar, classificar, operar com a
produtividade dos discursos que se apresentavam a mim. Mostro como fui organizando os materiais
apresentando fragmentos dos descartes realizados, juntamente com as razões que me levaram a ir
tomando decisões para constituir o corpus.
A prática de rodar e rondar a cidade, que descrevi no capítulo anterior, despertou em mim
interesses diversos no instante mesmo de circular e ser tomada pelo acontecimento. Interrogava-me o
derramamento de algumas tags por todos os cantos da cidade. Interessei-me em registrar aquelas que
eu pudesse ler sem me debater em tentativas de tradução e decifrações, como foi o caso das
assinaturas, “topera”, “boneco”, “viros”, “dano”, “tunder”, “D-Z”, “riscos”, “pragas”. Fotografei, também,
outras além dessas estão expostas em diferentes suportes, desde que atendessem a esse critério de
legibilidade. Nelas percebia a insistência de certos grupos ocuparem espaços, os mais inusitados,
imprevisíveis como são suas práticas, então colecionei várias destas tags registradas em diferentes
pontos da cidade.
Trouxe tais textos culturais não apenas por sua proliferação dada a abundância no corpo da
cidade, mas porque comecei a me perguntar sobre sentidos que poderiam estar sendo dados tanto por
aqueles que picham como por aqueles que têm suas casas, prédios, muros pichados. Nesses
questionamentos, percebi que a separação que fazia era típica da atual sociedade que deseja por “fim
a toda contingência, disputa, ambivalência e conseqüências imprevistas das iniciativas humanas”
(BAUMAN, 2001, p. 37). Foi aqui, novamente, que me percebi mesmo como pesquisadora atenta às
questões cultuais, sendo carregada por aqueles discursos e movimentos classificatórios e separatistas:
eu mesma colocava de um lado “nós” e de outro “eles”. Nós, aqueles que não pichamos; eles, aqueles
que picham, envoltos todos pelas tramas das distinções que separam e criam segmentações. Dispondo
desta forma, “eles” passavam a ser constituídos como os estranhos que estavam do lado de fora e que,
paradoxalmente, atingiam o nosso lado de dentro, estando de fora. Inscrever essa efervescência de
tags nessa perspectiva era como situá-las em condição de ameaça à ordem e limpeza que luta e
deseja a modernidade e retirar-lhes o caráter de texto cultural produtivo.
Texto cultural - 17 Texto cultural - 18
Texto cultural - 19
Texto cultural - 20
Quando voltava o olhar sobre os lugares onde se manifestavam observava que extrapolavam
toda e qualquer ordem estabelecida e os próprios limites do alcance do corpo. Em andares de prédios
bem acima da abrangência das mãos, em corredores de ônibus, pontes, monumentos, marquises. Aos
poucos, nessa separação nós e eles, público e privado, permitido e proibido, comecei a me interrogar
sobre a concepção que temos de cidade e de quem pode ou não agir sobre ela e ocupar ou não
determinados espaços. De fato, os nomes escolhido pelas crews que constam assinalados no texto
cultural dezessete
52
, “viros”, e no vinte
53
, “pragas”, sugerem uma multiplicação posta pela evidência
gramatical de auto-referência: vírus e pragas se proliferam “naturalmente”. Coloquei esse “natural” ao
sabor do estranhamento e sob a ordem discursiva em torno de paz e de violência. Perguntava-me se
era “natural” que esses grupos se espraiassem pelo urbano deixando suas marcas; se não seriam suas
marcas sinais do próprio urbano que procura calá-los e descartá-los; se nestas disputas por espaços e
por se dizer numa cidade líquido-moderna essas tags não estariam fabricando discursos sobre a
violência que atinge a uns e a outros em suas múltiplas imbricações. Interessante é verificar que
“viros”, neste caso, está numa ponte e “pragas” num corredor de ônibus, lugares de passagem, de fluxo
intenso indicando que muitas pessoas são atingidas por seu discurso e muitos sentidos podem estar
sendo atribuídos.
Assim o atributo de “natural” caía por terra. Começava a perceber as assinaturas produzindo,
“profanando” os lugares no advento da instantaneidade com que somos tocados por elas e com que
elas tocam os lugares, retirando-lhe a limpeza e colocando em destaque seu caráter de
transbordamento e inventividade. Percebi que elas desafiam e derretem o sólido da modernidade de
que fala Bauman (2001), propondo, assim, um novo arranjo para a convivência na cidade. Observei
que de certo modo elas atualizam a cidade e a fazem nova, incitando-a a um outro entrelaçamento que
não se estabelece ao nível do duradouro, tampouco de relações puras como quer o discurso da
modernidade.
Ampliando um pouco mais o olhar na perspectiva foucaultiana de que um enunciado nunca
existe sozinho, correlaciono as demais tags que mostro nos textos dezoito
54
e dezenove
55
,
respectivamente à “texera” e à “topera”, bem como a outras que compõem seus entornos como é o
52
O registro deste texto aconteceu em março de 2005, na avenida Ipiranga, sobre uma das pontes que faz passagem de
uma via à outra da avenida, uma vez que por ela cruza o Arroio Dilúvio.
53
Texto capturado no Bairro Menino Deus, na rua Botafogo, em outubro de 2004. Inscrevia-se num prédio residencial e sua
assinatura estava acima do primeiro andar, sugerindo o uso de algum instrumento para poder pichar.
54
Texto fotografado em setembro de 2004, na Avenida Azenha, bairro de mesmo nome, em Porto Alegre. Estava sobre o
muro de uma instituição pública.
55
Quando registrado, encontrava-se no corredor central de ônibus na avenida Bento Gonçalves, no bairro Partenon, no mês
de fevereiro de 2005.
caso de “dano”, “d-z”, “ovo”, para compreender a dinâmica da produção discursiva dos diferentes
grupos. Apóio-me em Bauman quando diz ser “a apresentação dos membros como indivíduos a marca
registrada da sociedade moderna” (2001, p. 39), contudo, para esses grupos, apresentar-se não parece
ser tarefa de uma única vez, é uma atividade reencenada quase que ininterruptamente e, no caso, das
práticas dos grafismos urbanos parece que é uma atividade onde seus atores, em contínuo processo
de “individualização” e encenação de si mesmos através de suas tags, colocam-se em desacordo com
o modo de entender o uso dos espaços urbanos. Entram em cena sem a devida permissão e vão
atualizando os espaços urbanos provocando uma ruptura no modo de entendê-lo.
Posto isso, posso dizer que junto com a utilização de letras estilizadas, tintas, imagens, frases,
signos como já referi no capítulo dois, os grafismos urbanos são práticas textuais permeadas de
possibilidades de leituras. Entendo que tais leituras não estão isentas do olhar de quem vê e das
condições e posições que ocupa a cada momento ao atribuir sentidos. Movo-me pelo chão
escorregadio no qual me instalei e o que estou tentando destacar é a ausência de estabilidade ao
andar por este chão, pois como bem diz Foucault (2004), trata-se de pisar no solo e inventar sentidos.
Mostro o texto cultural vinte e um
56
para dar visibilidade aos tensionamentos que
foram me movendo ao longo da investigação. Esse texto já não existe mais no local de sua
materialidade, pois foi edificada uma nova interferência sobre ele, destacando, assim, a
efemeridade que circunda a prática cultural dos grafismos urbanos.
Aponto esse grafismo para tornar visível a transitoriedade e o efêmero que marcam o ato
mesmo e o processo dessa investigação. Um primeiro movimento que fiz foi o de olhar para os
materiais, dispondo-os para de um lado ler significados acerca da noção de paz e de outro ler a noção
de violência. Em minha forma inicial de leitura, o texto cultural vinte e um direcionava-se para
multiplicar sentidos em torno de paz e via articulações com discursos da literatura ao trazer presente a
transcrição do poema: “ÀS VEZES FALO COM A VIDA, ÀS VEZES É ELA QUE DIZ, QUAL A PAZ
QUE EU NÃO QUERO CONSERVAR PRÁ TENTAR SER FELIZ...”. A cabeça de uma figura humana,
desenhada ao lado esquerdo da poesia, sugaria-me uma espécie de composição conjunta com o
poema: olhos fechados, um “X” sobre a boca sugerindo o impedimento da fala, uma anulação da
capacidade de pronunciar-se, o que pode ter suscitado a “voz” da escrita que enuncia uma procura de
paz na interlocução com a vida. Entre a pessoa e o texto escrito um elemento da natureza, parecendo
um besouro focando a luz do olho sobre o poema e no canto superior à direita encontra-se a
assinatura, neste texto, visível e compreensível “JOTA PAX.04.”, indicando a pessoa ou grupo que fez
o grafismo.
56
Este grafismo estava materializado numa das partes de um muro que cerca uma escola estadual, localizava-se na parte
direiita próximo ao chão, na rua da República, no bairro Cidade Baixa, no mês de marco de 2005.
Ao colocar, em interlocução o poema, a figura humana, o besouro, a assinatura, as cores e
comigo mesma, interrogações produziam-se em mim, por um lado, dizendo-me da paz que alguém
busca para ser feliz. Por isso, via enunciados que apontavam para paz como uma busca solitária; como
negação do silêncio posto pelo “x” sobre a boca; não há paz de olhos fechados; paz como um
sentimento que as pessoas se apoderam; para haver paz é preciso estar de olhos abertos e usar a voz
como instrumento de ação; a paz da ação que conserva a felicidade. Por um lado, isso me fazia ler paz
enroscada com compreensões que recrudesciam um certo intimismo individualista ou espécie de
romantismo proposto pela “paz que eu quero conservar” expressa no poema. Aparecia um entrejogo
dado pelo sentimento de querê-la e pela “realidade” da vida “como um sentimento natural de paz”
(GUIMARÃES, 2003, p. 75), entendida como algo que posso me apoderar porque está dado a mim.
Observava ainda que era possível deixar-se conflitar pela própria vida que é múltipla, pois o
poema diz “às vezes falo com a vida” outras “é ela quem diz”. Nisso via sentidos provenientes de quem
se deixa interpelar pelas circunstâncias da vida e assim outras problematizações emergiam deste
movimento. Então me perguntava: não seria uma violência o impedimento de falar? O estar de olhos
fechados não seria uma forma de imobilizar o sujeito, impedindo-o de agir? O que o faz ficar de olhos
fechados? O medo? A própria violência do cotidiano: fome, assaltos, injustiças, sofrimento? Não seria
uma violência não ver ou não querer ver as violências? Tomava tais questões como enunciados que se
correlacionavam a proposições vindas das Teorias Críticas, especialmente na compreensão de que “a
paz deve construir-se na cultura e na estrutura, não apenas na mente humana” (JARES, 2003, p. 126),
por isso deveria ser luta incessante contra toda injustiça social, contra violências, portanto pela
presença de igualdade, reciprocidade, respeito e liberdade. Mesmo paz e violência não aparecendo
como uma referência estática, imóvel, elas apareciam como horizontes e buscas de perfeição, uma
como algo a ser banido da convivência humana, outra como expressão de bem-estar vindouro, “de
algum tipo de sociedade, boa, de sociedade justa e sem conflitos” (BAUMAN, 2001, P. 37), postulados
próprios do projeto da modernidade.
Compreendia cada vez mais que os textos culturais estão enroscados com os tempos
históricos em que se inscrevem. Nosso tempo é entendido como um espaço de violências, de ameaças
contínuas ao bem-estar dadas às forças que se movem na contemporaneidade e a rapidez com que se
movem, pois o colapso de uma modernidade que desejava a tolerância, o declínio de suas ilusões na
Texto cultural - 21
crença de um fim de caminho, o surgimento de guerras étnicas e religiosas, de conflitos urbanos
provocados pelas novas segmentações travam batalhas na ordem da ambivalência e da instabilidade
relacional entre os humanos e seus grupos de pertencimento.
Assim, começava a observar que tais disputas faziam-se materializar nos grafismos urbanos na
medida em que retorna em freqüentes visitas sobre seus textos culturais. Foi desta maneira que fiz um
agrupamento, separando de modo geral o que eu significava de um lado como paz e de outro como
violência e, aparentemente, meu campo de análise estava dado e determinado. Mas no próprio
exercício de colocar de um lado apenas registros fotográficos de grafismos urbanos sobre paz e de
outro apenas registros fotográficos de grafismos urbanos sobre violência, encontrava dificuldades de
efetivar a separação, pois naquilo que parecia estar significando violência, eu começava a encontrar
possibilidades de interrogar sobre paz, naquilo que parecia paz eu mobilizava sentidos para violência.
Percebi que se estabelecia um novo conflito na forma de realizar minhas incursões analíticas.
Poderia estar caindo em considerações binárias e excludentes que fixassem um sentido à paz e outro à
violência. Precisava colocá-las em relação, entendê-las constituídas por práticas discursivas onde os
processos de significação nada têm de natural, nada têm de pronto e determinado. Os sentidos tramar-
se-iam nos direcionamentos mesmos de ir transitando por eles e seriam irredutíveis a um ponto fixado
de antemão. As duas noções são formas de poder atuando e, conseqüentemente, se entendidas deste
modo não é algo que se possua ou que se perca, é algo que se vai constituindo e desconstituindo,
tramando e esmaecendo, fazendo parte de processos relacionais, que “possuem, lá onde atuam, um
papel diretamente produtor” (FOUCAULT, 1985, p. 90), uma está produzindo a outra, ambas sofrem e
exercem formas de poder e se definem no exercício de resistências, múltiplas são as correlações de
força que provocam tensionamentos e acionam sentidos em torno delas.
Mostro agora o texto cultural vinte e dois justamente porque o coloquei em separado para
designar significados acerca de violência em relação ao anterior que estava fixado para pensar paz.
Neste jogo fui sendo conduzida para outros arranjos.
Vale dizer que o grafismo urbano, que nomeio de texto cultural vinte e dois, estava situado no
bairro Partenon, na rua Bento Gonçalves. Capturei esse registro em fevereiro de 2005 de um muro de
uma escola estadual. Na parte inferior aparece uma tag cuja marca apresenta-se para mim indecifrável
e no centro da cuia, abaixo da faixa, um conjunto de letras “SCF” que pode indicar um código de
inscrição entre os grupo ou uma outra assinatura; da mesma forma, o número “03” que está situado no
lado esquerdo inferior pode estar designando a pessoa que o fez, o espaço que costuma usar, o
número de grafismos que fez naquela região ou simplesmente o espaço que pode usar na relação com
outros grafiteiros sobre a extensão daquele mesmo muro.
Nele, a primeira vista, apenas enxergava possibilidades de ver violências que logo associava à
morte e a armas pelo que o texto enuncia: “TAMBÉM MORRE, QUEM ATIRA!”. Isso associado ao
sangue que atinge a pessoa, à expressão de dor e espanto do rosto, à própria curvatura do corpo, à
arma que o homem tem na mão, relacionava com violência explicitada a mim no conjunto: arma,
pessoa, sangue, texto.
Quando posicionava o sujeito na qualidade de atirador, lia enunciados em torno das crueldades
que os humanos são capazes de operar contra seus semelhantes, quando o colocava no lugar de
quem sofre o tiro, via-o como vítima das violências sociais e culturais contemporâneas frente a
complexa questão de à quem atribuir violências sofridas ou praticadas nas disputas por sobrevivência
em tempos de Império em que o poder atua sobre a vida e, neste caso, parece atuar localmente
movido pelas circunstâncias de inseguranças provocadas pelos contextos globais. A percepção de que
a arma poderia ser um instrumento de defesa da vida se conflitava com a idéia de que é, ao mesmo
tempo, instrumento de morte dependendo da posição de sujeito ocupada para pensá-la.
Ao mesmo tempo, nesse texto cultural brotavam-me questões que eu cruzava com sentidos
atribuídos à paz, pois ao observar o grafismo, via ao fundo vindo de cima a projeção de luzes sobre a
pessoa e muita água jorrando da cuia como que inundando a cena da frente onde se encontra a
pessoa com a arma, atingida provavelmente por outra arma que faz jorrar sangue como resultado do
estilhaço. A luz que se lança sobre o cenário de violência e a água que parece lavá-lo, articulavam em
mim sentidos para problematizar paz: A paz seria algo a se esperar como que uma iluminação vinda do
céu, proveniente de uma divindade? A paz é algo que lava, bane, elimina toda situação de violência? A
violência precisa ser iluminada pela paz?
Envolvida com essas interrogações, com indícios de respostas implicadas por minha leitura da
ambivalência posta pelo texto cultural, via que era possível considerar enunciados que ampliavam
outras compreensões em torno da paz: ela poderia ser apresentada como iluminadora, entendida como
clamor universal que lavaria e purificaria “a realidade” violenta. Tais entendimentos manifestavam-se a
mim inscritos nas condições discursiva próprias do projeto da modernidade, era preciso colocar a
irracionalidade da violência sob a limpidez da água da razão que põe em funcionamento a paz como
verdade iluminando a escuridão da violência. Atrelava ainda a uma espécie de chamado à
“conscientização sobre a realidade” dita violenta numa perspectiva de luta sóciopolítica do discurso de
Paulo Freire (1986) quando diz que “a paz se constrói na superação das realidades sociais perversas,
na construção incessante da justiça social”. Nesse sentido, aqui os discursos sobre paz estariam
Texto cultural - 22
vinculados à superação das contradições sociais num contexto de contínua busca por transformação
das perversidades da violência.
Assim, investida de provisoriedade e continuando minhas buscas na dispersão que é peculiar
aos enunciados, continuei insatisfeita e procurando outros jeitos de olhar para os grafismos urbanos.
Nesta construção que vinha fazendo, fui sendo conduzida a entender que o mesmo grafismo urbano
que atribuía significados de violência era plausível problematizar possibilidades de significar paz.
Emergia uma conflitividade que não me permitia isolá-los em grafismos urbanos sobre paz e grafismos
urbanos sobre violência. Foi a emergência dessa conflitividade e essa relação que me conduziu a
levantar a hipótese de que paz e violência são significadas em constantes tensionamentos nos
grafismos urbanos: os discursos que pretendem inventar a paz não estariam, ao mesmo tempo,
fabricando a violência e vice-versa?
Rodeada de interrogações, fui observando que os textos culturais que compunham o meu
corpus estavam permeados pela condição de crise e insegurança a que estamos submetidos na
contemporaneidade. Por isso, ao colocar em relação paz e violência nos textos culturais ampliavam-se
as possibilidades de pensá-las e multiplicavam-se sentidos, o que me fazia considerar o inextrincável
envolvimento de ambas nas tramas do poder que produz e as produz, produzindo-as numa política de
vida e de morte que emerge dos conflitos de vivê-las. Isto que poderia estar permitindo sempre novos
discursos talvez arrolados pelo princípio do comentário que permite “dizer algo além do texto mesmo,
mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado” (FOUCAULT, 1996, p.
26) a cada retorno de sua materialidade posto pelas circunstâncias do acontecimento.
Agenciados nesta ordem, pode-se dizer que existem múltiplos discursos que circulam ao nosso
redor, dentre os muitos estão os que posicionam o tensionamento paz e violência como elementos
produtivos da vida e as entremesclam por práticas que atuam sobre os indivíduos, fazendo-os
compreender de determinado modo as coisas. Assim, os discursos que para uns produzem sentidos
em torno de paz, para outros podem estar produzindo sentidos em torno de violência.
Nessas tentativas de realizar novas leituras foi que constituí aquilo que chamo de conjuntos de
significados, que organizei para olhar os discursos que constituem verdades em torno noções paz e
violência nos grafismos urbanos e ir edificando sentidos. Fiz isso enroscada com a transitoriedade que
materializei até aqui no percurso de idas e vindas, no ato de agrupar e desagrupar, na tarefa
incessante de e ir estabelecendo correlações, de perceber recorrências e de construir análises
provisórias e contingentes.
Instalo os discursos em torno de paz e violências na cultura e esta não é algo dado ou recebido
de herança, é algo que se inventa. Portanto, as noções discursivas sobre paz e violência são instituídas
de uma mobilidade cultural, cujas compreensões situam-se no terreno da história e das práticas que as
produzem e as fazem ser o que são. Proponho-me, então, a partir de agora descrever e problematizar
os conjuntos de significados que constituí para dar visibilidade aos entendimentos que venho fazendo
ao longo da pesquisa, bem como articulá-los na interlocução com os referenciais que norteiam a
pesquisa. Lembro que na transitoriedade da pesquisa, observei a impossibilidade de separar paz e
violência, uma vez que as percebo em constante tensionamento produtivo.
5.2 EXAMINANDO DISCURSOS EM TORNO DE PAZ E DE VIOLÊNCIA
O que considero mais instigante, neste momento, é entrar no jogo do discurso como prática
produtiva que inventa o que produz e que vive os tensionametos entre relações de poder e formas de
saber. Para fazer isso, retomo a conflitividade e a efemeridade que rondam as práticas culturais dos
grafismos urbanos e seus múltiplos sentidos. Lembro que o corpus que compõe os conjuntos de
significados que vou explicitar são interessados, marcados por escolhas, pelas teorizações que escolhi
para problematizar as relações tensionantes entre paz e de violência, seduzida pela própria
produtividade discursiva da análise e pelos grafismos que constituí para compor estes sentidos e não
outros.
Esclareço que este conjunto de significados que fui conduzida a realizar não se apresenta
fechado na medida em que os produzo na interlocução com os sentidos visibilizados nos textos
culturais, com outros saberes e outros ainda poderão ser acrescidos. Venho insistindo, apoiada em
Foucault (1996, p. 52-53), que “os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se
cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem”. Entendo minha produção de significados
implicada por tal entendimento, por isso, nesse exercício de busca por enunciados que compõem os
discursos, quero não perder de vista o caráter de acontecimento atribuído ao discurso, para capturá-lo
em suas condições de existência. Assim, os significados veiculados nos textos culturais podem
deslizar, serem adiados, modificados e transformados na própria prática de atribuir sentidos. Faço isso
lembrando que “o estudo de uma prática discursiva deve ser um exercício de descoberta e não de
dedução, se entendermos como dedução o processo que pode nos levar a uma conclusão verdadeira,
graças à correta aplicação de regras lógicas” (VEIGA-NETO, 2003, p. 115). Nas análises que faço,
considero oportuno dizer que minha procura por enunciados mostra-se permeada por um sentimento
de humildade intelectual. Deste modo, minhas análises estão dispostas como num desenho aberto às
tonalidades de tintas postas pelos grafismos urbanos e pela polifonia que ronda os discursos sobre paz
e violência que estão materializados no mundo contemporâneo.
Larrosa pode então introduzir a análise dos conjuntos de significados quando fala que “não
pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade
ou inteligência, mas a partir de nossas palavras” (2002, p. 21). Enroscada com esta compreensão da
linguagem como produtora de saberes, desprovida da pretensão da genialidade, é que torno concreto e
componho quatro conjuntos de significados. Cada conjunto está organizado em torno de quatro
registros fotográficos que opto por tramá-los como recorrências enunciativas produtoras de significados
em torno de paz e violência como parte do mesmo corpo tatuado que é a cidade e as facetas do
urbano.
Passo a descrever e examinar os discursos que consigo tornar recorrentes e visíveis nos
quatro conjuntos de significados que constituí para operar com os tensionamentos discursivos entre
paz e violência na perspectiva da análise do discurso foucaultiana.
Sofrimento e morte diante do humano
57
- Para a composição deste conjunto de significados
tomo inicialmente o texto cultural vinte e três que situo em torno de sofrimento humano e morte. Vejo as
uma produtividade discursiva em torno de paz e violência como faces de uma mesma busca e
permeadas por um enredo constituído numa mesma produção, assinalando para a suposição levantada
de que os discursos que tendem a atribuir sentidos a uma estão, ao mesmo tempo, possibilitando a
existência da outra numa mútua implicação discursiva através de retratos fragmentários de cenas do
cotidiano urbano experimentado por diferentes pessoas.
O grafismo vinte e três foi fotografado no bairro Restinga, na rua Arizoly Fagundes, no dia 24
de janeiro de 2005, inscrevia-se na parede de um supermercado, na sua entrada principal à direita,
cujo entorno remetia a uma escola da rede municipal, portanto lugar de grande circulação de pessoas.
O que me leva a pensar que na qualidade de texto cultural atingiu pelo menos parte das pessoas que
por aí transitaram, agindo sobre elas e fazendo-as agir sobre o texto na dinâmica da produção de
sentidos. A técnica usada para realizá-lo carrega um free style fazendo conexão com a habilidade do
grafiteiro em lidar com o spray e fazer aparecer seus traços numa materialidade que compreende a
junção de múltiplas leituras.
57
Destaco em negrito cada conjunto de significados que compus para olhar os grafismos urbanos que passo a apresentar a
partir de agora.
Esse grafismo apresenta-se a mim como uma espécie de “Pietá contemporânea”, com as
marcas do sofrimento humano que se projeta desde a cidade. Aqui, a “mãe”, não é como a Maria de
Michelangelo que se apresenta com feições e com sinais de dor. Esta não tem um rosto definido com
olhos, boca, nariz, sobrancelhas e mostra-se divinizada, posto que se colocam asas de anjo sobre suas
costas, indicando talvez a idéia de que o sofrimento materno é parte da vida e se assemelha ao da mãe
de Cristo. Como ela, o “anjo-mãe”, carrega um corpo, provavelmente morto, esquálido, frágil, observo
que esse corpo mostra-se como aniquilamento da vida, suscitando-me uma possibilidade de
compreensão proposta pelos discursos metafísicos que implicam atitudes de resignação e conformismo
diante da dor e do sofrimento como se o humano estivesse fadado à aceitação e incapacitado de
alguma forma de reação.
O conjunto de imagens: casas, anjos, prédios, escadas, montanhas, signos, objetos, pessoas,
assinatura, letras, flores parecem querer compor um cenário para indicar a saída da vida urbana
marcada pela dor, pela morte, pela fome uma vez que o corpo está esmaecido e frágil. Ao longe, à
esquerda e à direita, parecem-me cenas de violência praticadas pelos humanos que aparecem como
sombras pretas em meio ao caos do urbano, às tensões e relações escorregadias entre vida e morte,
violências e cudados, um anjo parece velar a cidade. No conjunto da cena, encontra-se escrito ao
fundo: “DEUS CRIOU O HOMEM. O HOMEM CRIOU AS ARMAS. É DEUS QUE JUNTA OS CORPOS
NO CHÃO”. Percebo nessa inscrição enunciados permeados pelo discurso religioso que coloca em
tensão a criação de Deus com a criação da humanidade: percebo que há discursos colando Deus
como criador do humano para produzir paz. No entanto, o humano cria armas. Armas matam,
produzem dor e sofrimentos. Deus recolhe o produto dessa contradição e dessa ambivalência. Ainda
leio de outro modo: Deus pode ser o culpado pelo sofrimento e pela morte gerados pela sua criação,
logo a paz não pode ser deste mundo, será sempre uma meta para depois desta vida. Outra vez,
estariam compondo-se discursos com a marca da transcendência proposta pelo humanismo cristão,
reforçando discursos que conduzem a entendimentos de paz relacionados a um bem vindouro, onde
justificativas são plausíveis para as violências e mortes que atravessam a vida no presente.
Percebo nesse grafismo urbano enunciados que fazer circular possibilidades de compreender
como a atualidade apresenta-se inseguranças, anunciando a provisoriedade da vida frente às
condições de luta pela sobrevivência. “As durezas e sofrimentos contemporâneos são fragmentados e
dispersos; e assim também a dissensão que eles geram” (BAUMAN, 2000, p. 22), as dores da vida não
estão mais ancoradas numa causa universal única e isto faz com elas se tornem cada vez mais
amargas e duras, assombrando a nossa existência com medos e inseguranças em função de sua
imprecisão, de sua falta de contornos específicos. Torna-se cada vez mais difícil encontrar
ancoradouros para proteger a vida, uma vez que a modernidade se iguala a um estado de
ambivalência e agitação que parece não ter fim, imprime características de estar em situações de
desordem e caos, conforme sugere Bauman (1999), que de algum modo se fragmentam em lutas
infinitas por busca de ordem. Nessas lutas e buscas somos confrontados com uma multiplicidade de
demandas comportamentais que apresentam o canal da insegurança como um estado de permanência
deste enfrentamento.
Texto cultural - 23
Para adensar o conjunto de significados em torno de sofrimento e morte posta diante do
humano, apresento o texto cultural vinte e quatro, materializado na Avenida Getúlio Vargas, em julho
de 2005, nas paredes do muro dos fundos de abrigo municipal da FASC
58
. O texto cultural foi realizado
numa mistura de estilos que podem ser descritos como um grafismo em profundidade, usando
características de dimensões e sombreados, ajustando-se a uma produção feita à mão livre. A tag que
aparece do lado direito “CHD”, sobre o texto, feita com spray indica que houve um atropelo depois do
escritor ter realizado o desenho, portanto é uma marca sobreposta.
Parece que quer traduzir a situação daqueles que estão jogados na rua, trazida pela expressão
de sofrimento e desolação proposta pelas condições de violência em que se encontram os corpos nus:
o corpo feminino dorme num dos degraus da longa escadaria, recolhido praticamente à posição fetal
como condição de aconchego e procura pela vida perdida. Sentada no mesmo degrau da longa
escadaria, surge a figura masculina, indicando que a condição de dor não diz respeito ao gênero, mas
à contingência em que estão inseridas essas vidas, tanto a feminina como a masculina. Ele prostra-se
sobre suas próprias pernas, como que impossibilitado de andar com o peso da sombra da dor, do
sofrimento e das violências sofridas, o que pode ser traduzido pelo cinza contornando o seu corpo. O
58
A FASC é a Fundação de Assistencial Social e Cidadania, órgão que visa atender as situações de risco social em que se
encontram homens, mulheres, crianças ou famílias inteiras no município de Porto Alegre (RS).
Texto cultural - 24
cenário é um horizonte que se mostra em tonalidades desprovidas do brilho do céu azul, das estrelas
da noite, do luar, do sol amarelo radiante, encontra-se esfumaçado pelos matizes de cinzas que
parecem ser o tom predominante na relação sofrimento, espera, morte, abandono, desespero,
incerteza.
Parece que a os discursos dos grafismos urbanos, nos registros que venho apresentando,
traduzem a incerteza de estar neste mundo a procura de certos referenciais para se viver nele,
traduzem a incerteza de um abrigo, da idéia de comunidade em tempos de globalização. O texto
cultural vinte e quatro coloca em evidência esse processo de apartação e de apagamento dos laços
sociais provocados pelo individualismo e efervescência de limites imaginários que demarcam os
espaços de convivência (2001), como caminho que produzem diferenças e solicitam uma separação do
outro pelo afastamento desse outro e da visibilidade dos sofrimentos e das inseguranças que ele
produz.
Lembro que o texto cultural vinte e cinco que trago a seguir, situava-se na rua Praia de Belas,
em julho de 2005, no bairro Cidade Baixa. Sua materialidade estava visibilizada junto ao muro de uma
escola de cunho assistencial e profissionalizante, pertencente a uma instituição privada.
Texto cultural - 25
Ao olhar para esse texto, entendo que enunciados podem ser visibilizados pela força
surpreendente com que se manifestam na instantaneidade de sua comunicação que vejo assumir um
caráter volátil, aludindo à velocidade da luz, fazendo com que os significados sejam continuamente
adiados.
Percebo enunciados aparecendo como marca do espanto posto no rosto da pessoa e como
forma da pressão que comprime o humano e o aprisiona em si mesmo, fazendo-o expressar-se pelas
lágrimas que já não deslizam, mas soltam-se em gotas sugerindo angústia e desespero. Acima, do lado
esquerdo do rosto, surge uma inscrição “MEIO DE COMUNICAÇÃO”, que leio como um meio, uma
forma desse humano manifestar suas inseguranças e suas dores, onde parece restar-lhe, nas
circunstâncias em que se encontra, o caminho da resignação das lágrimas, do gesto de quase de
desespero quem se põe frente à vida na espera de algum tipo de salvação que viria de fora de si. Ou,
quem sabe, as lágrimas como meio de comunicação para mostrar a teimosia em resistir nas
ambivalências e contingências de sua existência.
O “grito” posto do lado direito parece querer enunciar o desejo de mudança, de saída da
situação de sofrimento: “PAZ”, poderia dizer que me soa como um grito, colocado como está, ao lado
do ouvido, para atingir uma determinada escuta das condições das violências que a pessoa está
submetida. Contudo, desta paz escorrem riscos de tinta vermelha, que correlaciono com sangue, o que
poderia significar um certo preço a ser pago no processo de intercambiar: lutas, sofrimentos,
desespero, morte, paz na dinâmica da vida que comunica e quer ou não quer mudanças.
Vejo o homem com uma face multirracial: nariz com características da etnia negra, boca rasa
de cunho mais europeu, os cabelos rapados, sugerindo estereótipos orientais. Isso mobiliza saberes
em torno da compreensão de que sofrer, temer, morrer, desejar são elementos de abrangem o humano
independente da identidade que assume, independente da vida que leva. Comunicar é característica
do humano, potencializado neste texto, onde os discursos são tensionados com silêncios da fala, com
presença de palavras, com visibilidade de lágrimas, de expressões faciais, de sofrimentos que me
fazem considerar condições de existência atravessadas por medos. O medo aqui parece ser parte dos
discursos que produzem a violência, pois observo que se “manifesta como elemento paralisante que
mergulha o indivíduo na angústia do desconhecido e na ameaça da morte” (JARES, 2005, p. 115)
frente à própria vida e os significados que são produzidos pela linguagem que comprime o sujeito a um
modo de ser na circunstância mostrada pelo grafismo. No entanto, entrecruzam-se discursos que
geram possibilidades de ver uma paz pedida e impedida pelas mesmas condições de vida que estão
produzindo medos, inseguranças, sofrimentos.
Fui tomada de surpresa pelo enunciado do texto cultural vinte e seis quando consegui ler a
frase: “É NOIS ATÉ MORRE”. “Nós quem?” Esse “nois” seriam os que estão postos do lado de fora do
muro e que perambulam pelo espaço urbano a procura de um lugar para fugir da morte? Esse “nois”
seriam os que participam desse grupo cultural de grafiteiros urbanos? Ou poderiam ser os que não
grafitam? Ou seriam justamente os que estão fora que provocam a morte nas disputas com os que
estão dentro do mundo?
A força desse enunciado apresenta-se como caminho para pensar as relações escorregadias
no mundo urbano e examinar a cidade como um lugar onde, segundo Bauman (2004, p. 127),
“estranhos se encontram, permanecem próximos uns dos outros e interagem por longo tempo sem
deixarem de ser estranhos”. Na convivência no espaço urbano, independente das condições em que
vivem os habitantes da cidade, a presença de estranhos aumenta o medo do desconhecido, o acúmulo
de sofrimentos, a proliferação das angústias que podem ser despejadas na forma de agressões aos
estranhos ou até para produzir outros estranhos e tornar “explicáveis” e “necessárias” mortes,
enfrentamentos, violências, medos.
Texto cultural - 26
O texto cultural vinte e seis é um grafismo estilo bomb, feito rapidamente, como rápidas são as
mudanças que se operam nos contextos da cidade. O grafiteiro deixou sua tag na bandeira traduzida
pelas letras “AUC”, que, no contexto, poderia sugerir, se arrolada com a boca aberta, um uivo de dor
diante daqueles que morrem, que no caso “é nois”, associado também com um uivo de quem empunha
a bandeira branca bradando pela paz, símbolo facilmente identificável em nossa cultura como
instrumento de paz nas lutas contra as violências. Mas também poderia ser um grito por paz onde o “A”
expandiria, a pleno pulmões, um clamor contra a morte, manifestando um desejo de vida. Aqui
novamente os discursos se cruzam, escorregam entre si, implicam-se pela simbolicamente,
manchando as fronteiras entre paz e violência.
Os sofrimentos e as incertezas de hoje são fabricados e colocam a vida no cadinho da
imprecisão, de tal modo que “viver na incerteza revela-se um estilo de vida, o único estilo da única vida
disponível” (BAUMAN, 2000, p. 26). Assim, a busca por segurança em tempos de incerteza, apresenta-
se como um estado de agonia, como um estado de contínuas opções e de assumir as implicações e os
riscos que elas supõem, o que poderia estar nos conduzindo para criar supostos culpados contra os
quais deveríamos nos rebelar diante das desesperanças e das violências impostas pelas rotinas da
existência.
Conflitividade da presença de armas - Neste segundo conjunto de significados procuro
analisar enunciados que produzem verdades e manifestam as relações tensionantes e escorregadias
em torno da presença de armas. Mostro quatro registros fotográficos que os associo enredados com
discursos que fragmentam sentidos em torno de armas, sangue, violências, pessoas e seus desejos de
estabelecer possibilidades de convivências não-violentas. Faço aparecer a conflitividade e a
ambivalência que são produzidas pelo uso e presença de armas quando se entrelaçam os discursos
sobre paz e violência.
Para expressar este movimento e tornar visíveis tais elementos, introduzo o texto cultural vinte
e sete olhando para seus múltiplos matizes e suas inúmeras possibilidades de enunciados para a
produção de sentidos. Esse texto cultural foi capturado no bairro Restinga, no Acesso E, em 28 de
janeiro de 2005 e apresenta uma mistura de estilos que podem ser caracterizados como 3d style,
piaces, free style e throw-up: são feitos com spray, matizes de cores, sombras, projeção de fundo e
frente, detalhes de elementos, efeitos de luz, riscos e rabiscos livres, colocados uns sobre os outros.
Estava materializado sobre uma parede de uma associação de bairro que faz vizinhança com uma
escola da rede municipal de ensino e com um supermercado, indicando novamente a enorme
capacidade produtiva que têm os textos culturais dos grafismos urbanos desde o lugar onde se
inscrevem.
Esse grafismos urbano materializa várias cabeças de pessoas como que querendo ser diluídas
ou sugadas pelo redemoinho que parece vir de outro planeta, configurado pela presença de um
extraterrestre posto sobre os humanos: o redemoinho puxa os rostos das pessoas desmanchando-os,
esticando-os num movimento de serem desfigurados. Em meu exercício de leitura, após muitas
tentativas, consegui ler o que estava escrito na frase, que diz: “SE TODOS DEREM AS MÃOS... QUEM
SACARÁ AS ARMAS?”, bem como a tag do canto inferior à direita que pode ser lida como “Homero”.
Nesse texto, vejo enunciados que me remetem ao entendimento de paz como eliminação das
armas e das mortes que as armas produzem. A idéia “se todos” significo como se fosse uma prescrição
universal de uma paz a ser atingida num horizonte longínquo como o quer o projeto da modernidade.
Parece que deseja negar a trama da violência em que o cotidiano está envolto pelo banimento de
armas e com um toque mágico de mãos, aliás, de todas as mãos. Desde a palavra “ARMAS” e no
canto da direita abaixo do ponto de interrogação, na mistura das cores vermelha e branca, parece
escorregar o sangue gerado pela violência das armas. Isso problematiza o polêmico debate em torno
da proliferação de armas na mão da população, da produção de armamentos, do desarmamento como
Texto cultural - 27
redução das violências e das mortes entre os humanos, suas guerras e a capacidade de
autodestruição da vida que tudo isso move.
As pessoas que aparecem não têm corpo, apenas cabeça: seriam os discursos sobre paz e
violência do domínio da razão? Ou estaria enunciando que tanto para fabricar paz como para inventar
violência pode-se prescindir do corpo? Seriam paz e violência desprovidas de lutas corporais? Aparece
sobreposta às cabeças dos humanos uma outra cabeça: a de um extraterrestre que mostra os dentes
num sorriso de canto como quem quer se colocar num lugar privilegiado em relação aos demais.
Outros riscos mobilizam-se e espalham-se compondo o cenário deste grafismo urbano com tons em
verde, vermelho, cinza, marrom enredando sentidos sobre a trama paz e violência.
Entendo que tal grafismo aponta para a problematização e para a discussão de uma sociedade
que tem investido na produção de armas como crença de segurança, de controle, de prevenção de
violências e meio de estabelecer a paz. Estamos diante de sinais cada vez mais contraditórios dessa
garantia de segurança através das armas ou da eliminação delas como garantia de segurança e
ancoradouro para a vida. Debate atual e premente, uma vez que as instituições políticas que foram
inventadas para manter um estado de segurança entram em colapso e tem sido de pouca ajuda. Os
discursos que propagam segurança mais parecem estar produzindo divisões, inseguranças e
desconfianças que separam as pessoas, “dispondo-as a farejar inimigos e conspiradores por trás de
toda discordância e divergência” (BAUMAN, 2000, p.13). Nesse sentido, as instituições pouco podem
fazer para prover garantias de estabilidade e mitigar inseguranças decorrentes dos riscos da existência.
Convido o leitor a observar os fragmentos do mosaico urbano que o autor do texto cultural vinte
e oito chama de “REALIDADE URBANA...”, mobilizando a presença das violências pressupostas pelo
uso de armas no cenário urbano. Nesse texto cultural torna-se viável uma leitura fechada do sentido
que pode ter a idéia de “realidade”; ao ler, vemos um humano estilizado, reduzido a uma espécie de
boneco com mãos, corpo, pernas e pés descaracterizados do que temos como normal. O que pode
estar indicando uma certa desfiguração frente ao uso que faz da arma, pois a seta volta-se para si
rodeada da fumaça decorrente do tiro dado, remetendo aquele que atira a uma condição de possível
vítima da situação.
Este é um grafismo gerado num estilo bomb rápido, mesclando pincel e spray como quem
cruza, deixa uma marca e volta sobre ela para acrescentar outras cores e novos rabiscos na
composição da produção. Na seta, direcionada à figura humana, aparece o registro de uma provável
crew “RAMETOSCO”, remetendo ao que disparou a arma uma ambigüidade contida como parte do
nome da crew, isto é, o atirador seria um “tosco”, um alguém rude ou atingido pela dureza do urbano.
Outros grupos agiram sobre ele, fato plausível pelas tags que aparecem no canto superior direito
“TDK”, “FZ” ao meio sobre o branco e mais abaixo, sobre o vermelho, quase invisível “XF”. Como
outros já mencionados, este texto também não mais existe na materialidade da parede do prédio onde
o registrei. Na época, janeiro de 2005, situava-se na rua Professor Ofredy Strenge Torgo, quase
esquina com a Lima e Silva, lugar de muito movimentação noturna e de funcionamento de muitos
bares, bem como de acesso ao centro da cidade.
Observo que o humano caricato sobressai-se do urbano posto ao fundo e das diversas cores
compostas pelo mosaico que parece estilhaçar a cidade em tonalidades de vermelho a partir do início
do cano da arma. Sobre a cabeça desse humano temos três pontos de exclamação na cor branca que
simbolicamente recorda paz, ao menos, para nós ocidentais. Esta contracena com a fumaça do tiro
saído do revólver empunhado pela pessoa e enuncia a conflitividade paz, arma, “realidade urbana”,
enroscando-as como prováveis faces de diferentes realidades. Logo não pode ser una e única o que o
grafiteiro denomina de “realidade urbana”. De fato, não há como negar que aí se encontra retratada
uma das faces possíveis da realidade urbana, porém afirmar que “a realidade” pode ser expressa
Texto cultural - 28
apenas num sujeito armado, que puxa o gatilho de seu revólver disparando sobre alguém, ou sobre
muitos, ou ainda sobre “toda” a chamada realidade urbana seria no mínimo um retorno ao projeto de
universalização da realidade, negando seu caráter constitutivo e múltiplo.
Vattimo (1991) afirma que é preciso considerar o caráter de constituição da realidade porque
ela “é, antes, o resultado do entrecruzar-se, do contaminar-se das múltiplas imagens, interpretações e
reconstruções que competem entre si ou que, de qualquer maneira, sem coordenação central alguma,
são distribuídas pela mídia” (p. 53) e pelas diversas práticas culturais e suas formas de representação
e atribuição de sentidos. Isso leva-nos a considerar que não temos mais a realidade como princípio,
como uma totalidade no terreno do agir e do dizer, não mais existe a realidade, existe uma dissolução
da realidade em tantas realidades quanto formos capazes de criar. Pode-se dizer que ela desvanece e
expande-se, tal expansão provoca, na sociedade midiática que vivemos, uma pluralização de sentidos
e inúmeras possibilidades de produção de realidades que não permitem uma única compreensão.
Nesse sentido, parece-me problemático concordar com o significado sugerido pelo texto
cultural vinte e sete e afirmar que tão somente a “realidade urbana” é violenta, da mesma forma que
também não podemos negar a violência como uma das possíveis faces da realidade. O que quero
argumentar aqui é que a realidade é uma invenção construída sob determinadas condições de
inventabilidade e sempre cruzada, engendrada por jogos de poder na luta por imposição de saberes.
Logo não há um imperativo de realidade, de violência e um imperativo de paz como imunização contra
o vírus da realidade violenta. A afirmação coloquial “a realidade é violenta”, furta a possibilidade de ver
outras realidades, posto que leva a uma adaptabilidade e naturalizam-se violências. Retira-se, assim, a
possibilidades de compreender em que condições essa produtividade se deu e como foram sendo
fabricados os significados.
Entendo que ao colocar a arma na mão do humano, o grafiteiro anuncia outras possibilidades,
outras verdades sobre as tramas discursivas em torno de violência e paz que sugerem um olhar para o
tensionamento: arma, paz, violência, realidade, urbano entrelaçados numa dinâmica que os produz e
os imbricam como partes dos mesmos discursos que se somam às incertezas e ambivalências da
existência “líquido-moderna”.
Acrescento, neste conjunto de significados, o texto vinte e nove porque o entendo enredado na
conflitividade das armas e nos jogos que geram ora violência, ora paz ou ambas, escorregadiamente.
Escolho este texto fotografado em março de 2005, desde um muro na Avenida José Bonifácio, nas
imediações do Parque Farroupilha. Estava sobre um muro alto, de larga extensão, quase na esquina
com a Avenida João Pessoa, como também estendida encontrava-se a grafitagem que aqui apenas
aparece um recorte do conjunto. Vale lembrar que este texto mostra-se num ponto de muita circulação
de pessoas, pois está na rua onde acontece o Brique da Redenção
59
, lugar de manifestações culturais
diversas.
Neste texto cultural, vejo materializados enunciados que parecem querer explicitar o que fazer
contra o monstro da violência e das armas, trazendo para o mesmo cenário o entrecruzamento
discursivo do que pode ser paz e do pode ser violência, evidenciando uma simbólica que temos
naturalizadas. Entendo que a violência colocada em cena na forma de um monstro que parece carregar
o desejo de devorar o humano, poderia estar indicando que o humano se desumaniza quando age com
violência. Por outro lado, o monstro, que pode ser lido como significando violência, mostra-se com
expressão de susto e surpresa ao ser empurrado pela mão humana, indicando um atravessamento
entre o humano, a violência que deseja afastar, a violência que produz e a paz que ele quer fazer.
59
O Brique da Redenção funciona todos os domingos a partir das 9:00 horas no Parque Farroupilha, lugar onde o Porto
Alegrense passeia, conversa e toma seu chimarrão. Ali se encontram dezenas de barracas de artesanato, artes plásticas,
alimentação, antiguidades, ao longo de toda Avenida José Bonifácio.
Texto cultural - 29
Enxergo o mostro semelhante a um jacaré e vejo na forma como está pintado, no estilo com
que foi feito, uma analogia com o cavalo da obra de Pablo Picasso, a grande tela intitulada Guernica,
pintada para manifestar os horrores da guerra quando a cidade espanhola, de mesmo nome da tela, foi
bombardeada pelos nazistas. Vale recordar que na obra de Picasso, ao simbolismo do cavalo,
costumeiramente se atribui a dor e o sofrimento do povo esmagado pelos horrores da guerra, pelo
terror das armas que dizimavam as vidas. Transpondo para esse texto cultural, posso dizer ao mesmo
tempo que o jacaré parece ser um devorador que se lança sobre o humano, pode ser o devorado ou o
destruído pelo humano, isto se nos atermos na expressão de espanto e angústia dada pelo seu olhar.
Diante desta leitura, vejo recrudescer uma ambigüidade e uma indecisão diante do que pode ou não
ser paz e violência, colocando-as num jogo de entrelaçamento, deixando que o sujeito ocupe posições
neste jogo de conferir significados.
Neste grafismo urbano, ainda pode-se ler enunciados em torno da violência, circunscritos no
conjunto monstro, arma, mão, suástica nazista, cores cinzas e vermelho representado com traços
pontiagudos, em oposição ao amarelo, ao rosa que circunda o humano branco, engrandecido,
onipotente empurrando para fora do mundo as situações que representam violências. Dentro do corpo
humano pintado de branco e de seu centro inscreve-se: “O MUNDO PELA PAZ”. Resta-nos a questão
se esse mundo de que fala o escritor é apenas o mundo do branco, se a paz que se deseja é apenas
uma paz branca, se há grupos, povos que ficam de fora dessa compreensão de paz. Parece que a
noção de paz com o escritor trabalha já está dada de antemão e é universal, por conseguinte todos
querem a mesma paz. E os discursos que a produzem aqui, nesta perspectiva, estariam indicando que
a paz que se alcança extirpando o monstro da violência e expulsando do mundo aqueles que a
produzem. Outra vez estaria surgindo a dicotomização que separa “eles”, os violentos, de “nós”,
aqueles que fazem a paz. “Eles”, os violentos, neste conjunto de significados, seriam os que
empunham armas, matam, devastam, são os ruins. “Nós”, os bons, seriam aqueles que lutam para
extirpar a violência pelo esforço das próprias mãos na ação de usar as armas em favor da paz ou de
tirá-las do cenário mundial.
Pode-se observar no grafismo vinte e nove, que os discursos sobre um projeto de paz
universal, apresenta-se como uma invenção na procura de ordenamento contra o caos provocado pela
violência. Essa separação aqui vejo traduzida pela recorrência enunciativa “o mundo pela paz”,
instaurando a presença do discurso da modernidade que traduz a ordem como “a luta da determinação
contra a ambigüidade, da precisão semântica contra ambivalência, da transparência contra a
obscuridade, da clareza contra a confusão” (BAUMAN, 1999, p. 14). Subtrai-se a contingência e o
acaso das experiências culturais, coloca-se em oposição paz e violência, retirando-se a conflitividade
própria de seu enredo produtivo.
Observa-se no canto esquerdo, na parte inferior, a interferência de outro pichador. Na sombra
da arma, materializa-se o símbolo do nazismo que prontamente atrelamos ao holocausto,
mundialmente identificado como uma das grandes violências que a humanidade já foi capaz de
produzir. Saber o que este simbolismo continua produzindo na situação de sua inscrição e no jogo com
as demais imagens torna-se no mínimo uma imprecisão, encerrá-lo não é possível, posto que a
significação é um processo cultural sempre instável e móvel, a linguagem pode ter inúmeras traduções.
Mostro ainda o texto cultural de número trinta por compreender que ele move várias interfaces
em torno das violências urbanas do mundo contemporâneo. Traz à cena as “armas brancas ou leves”,
assim denominadas pelo discurso jurídico, como é o caso da faca que se encontra materializada no
vidro do meio da janela e correlacionada com a suposta agressão sofrida e/ou pratica pelas pessoas
que estão em cena. O grafismo urbano que aponto a seguir foi capturado em janeiro de 2005, na Rua
Edgar Pires de Castro, no bairro Restinga Nova.
Texto cultural - 30
As circunstâncias que são apresentadas na cena conduzem-me a ver o que está dentro das
paredes como se fosse uma situação de delegacia. Observo, através da janela, a figura de um policial
contendo um homem negro que mesmo contido parece falar com o policial. Do outro lado, uma mulher
de olho roxo, com sangue na boca e na roupa, escorrendo entre os seios; no meio, um outro homem
que poderia ser o delegado, observa o entorno e a própria mulher, acima dele uma folha com
anotações realizadas, uma faca suja de sangue, indicando que pode ter sido usada na mulher ou pela
própria mulher. Tal cena, se assim compreendida, retoma a presença do conflito relacional indicando a
violência e a conflitividade da presença de armas como único meio possível de geri-lo e administrá-lo.
Parece que há um apagamento da Idéia de que a vida social é marcada pelo conflito e que este não
necessariamente tem de ser destrutivo, nem precisa ser solucionado através do uso de armas. Vejo
que a presença de “armas leves” aqui neste texto cultural mostra-se enredado com as relações e com
os conflitos da convivência humana.
Pode-se ler a cena enunciada como faces de várias situações provenientes dos conflitos e
disputas da rua: assaltos, roubos, brigas, ou pode-se ler como uma mostragem de uma mesma cena,
pois o fato de aparecem outros elementos correlacionados sugere que a briga e as agressões
aconteceram entre o casal, isto é, com o homem é a mulher, que no momento aparece sendo mediada
pela ação policial que coloca em destaque a presença e o uso da arma, a faca. Assim, a faca de
simples instrumento do uso cotidiano, toma outro significado: torna-se uma arma que arranca a vida de
sua aparente tranqüilidade, joga-a no cáustico da convivência no mundo urbano, instrumentalizando-a
e colocando-a como produtora de violências.
O grafiteiro, ao meu ver, compõe a cena como que retirando desde dentro da cidade um
pequeno retalho de vida e de acontecimentos para dar visibilidade ao que não se vê, ou não se quer
ver, ou que se vê sob a perspectiva da ordem e da tranqüilidade: mostrada através do branco e do azul
que rodeiam os prédios atrás da cena deslocada para frente. Sobre ela a materialidade da palavra
“HARMONIA” pairando como linguagem que marca uma noite escura, talvez indicando como a cidade
produz laços sociais e o que os laços sociais que ela produz produzem quando traduzidos em
experiência. Harmonia aqui poderia estar sugerindo o abandono da violência pelo uso das armas de
qualquer tipo, pela não agressão dos humanos entre si, tramando nas violências urbanas,
possibilidades de produzir paz.
Ainda nesse cenário urbano, surge a figura da criança que parece ter sido deixada do lado de
fora. Ela observa, desde o lugar que ocupa, e pode estar se perguntando “POR QUE TANTA
VIOLÊNCIA?”, concluindo quem sabe, ao lançar o olhar na direção do que está dentro da provável
delegacia: “SOMOS NOSSAS PRÓPRIAS RESPOSTAS”. Parece, como diz Bauman (2005, p. 125),
que na “farmácia da linguagem, o pote de veneno tende a vir acompanhado do antídoto”. No caso o
veneno fabricado pela linguagem é a violência que se apresenta com múltiplas linguagens, e o antídoto
dessa dor da linguagem é uma outra linguagem representada pelo chão vermelho sugerindo a
presença da violência e do sofrimento que ela traz. O antídoto parece ser o enunciado “somos nossas
próprias respostas”. Entre a pergunta e a resposta tramam-se discursos sobre paz e violência, que
assentam o menino no vermelho do sangue como linguagem que possibilita pensar uma outra
existência desarmada e que elimina a linearidade como caminho de resposta a dura questão da
violência. Nesse sentido, talvez o enunciado “por que tanta violência?” pudesse ser colocado no
exercício da crítica e ser olhado sob outra perspectiva que não pergunte pelo porquê, mas que se
considere as condições de possibilidades dessa existência para compreender o seu funcionamento e,
então, fazer valer outras respostas também inventadas e compradas da “farmácia da linguagem”.
Parece interessante atentar que no meio dos dois enunciados referidos, aparece um terceiro
indicando a emergência do discurso religioso: “FÉ EM DEUS”. Esse, por sua vez, está sobre a cabeça
do menino contornado pela cor amarela, sugerindo ser uma “luz divina” que acompanha e protege a
infância à mercê das armas e das violências que elas produzem. A frase enunciada, “fé em Deus”, é
atingida pelas gotas d’água que pingam do alto vindas do chuveiro que pode ser lido como que lavando
e purificando o menino que vive e se interroga frente àquela circunstância. Atento-me em outro
elemento que vejo como importante no exame deste grafismo: a cor vermelha onde se pinta a
experiência contrastando com o branco, o azul, o amarelo e o preto, este último aparece aqui
problematizando o horizonte colocado ao fundo. Contrasta com a cidade desenhada no grafismo e
contracena com a cidade de fato que aparece no detalhe no lado direito e mobiliza sentidos sobre paz
e violência nas circunstâncias de contínuas mudanças que o humano vive nas relações estabelecida
com o lugar “cidade” e que a cidade vive e sofre nas relações com o humano.
Vejo que esses grafismos urbanos que apresentei, neste conjunto de significados, leva-me a
trazer para o cenário discursos que têm circulado na mídia e em diferentes grupos culturais sobre a
violência urbana, associados com os discursos em torno do armamento e do desarmamento, da
segurança pública e da segurança privada e de seus aparatos eletrônicos, dos gastos na produção de
armas em relação aos gastos em projetos sociais, das violências domésticas com armas ditas leves,
regados de dados estatísticos de homicídios, índices de criminalidade, dentre outros. São discursos
que disseminam uma espécie de contaminação crescente fazendo com que aumentem o medo e as
angústias em relação à violência, potencializando o esfacelamento dos laços sociais e de práticas de
intolerâncias na forma de viver as relações. São discursos que se atrelam a discursos sobre paz que,
por sua vez, também crescem como movimentos enredados em disputas permeadas pelas relações de
poder e de saber.
Apresento a seguir meu terceiro conjunto de significados que acredito estar encharcado da
multiplicidade discursiva com que se apresentam as práticas culturais dos grafismos urbanos como
parte que são das contingências históricas contemporâneas onde muitas práticas agem fabricando
verdades que instituem modos de ser como atributos da linguagem.
Multiplicidade de caminhos – Apresento este conjunto de significados para mostrar que
percebo que a proliferação discursiva em torno de paz e violência comporta uma rede complexa e
frágil, caracterizada por infinitas possibilidades de atribuir sentidos. Os discursos sobre paz e violência
parecem estar administrando formas de vida e mobilizando vidas para agir na instauração de sentidos
no entrecruzar de suas práticas.
Trago o texto cultural trinta e um que capturei desde os muros que guardam o cais do porto
na Avenida Mauá, no centro de Porto Alegre, durante o mês de fevereiro de 2005. Neste texto vi
materializados enunciados que carregam uma multiplicidade de sentidos possíveis de serem atribuídos.
Vejo enunciados que relacionam paz com: fé, solidariedade, esperança, oração, meditação
como expressão de um desejo a ser atingido e como manifestação de um pedido que se cruza com as
experiências da violência. Elegi esse texto cultural por observar nele uma intersecção de paz com
“ORAÇÃO”, aliada a um pedido feito de forma imperativa: “ROGAI”, “meditai”, direcionando a existência
de paz como uma prática voltada às experiências espirituais.
Pode-se observar que o enunciado “PAZ” aparece escrito na cor branca da ponta de cima a
ponta de baixo do muro, intercalando a direcionalidade das letras, para frente e para trás, num
movimento contínuo “PAZ”, “ZAP” como que não permitindo perder de vista o movimento da paz no
exercício de meditar e pedir por ela. Isto sugere que tais enunciados apresentam-se providos do
discurso daquele que crê na força espiritual como caminho para fazer a paz, trazendo-a em cena como
discurso que pode ser relacionado a uma crença. Uma crença é sempre
uma crença inventada, conforme propõe Bauman (1999, p. 179), “pode ser
desafiada, criticada e em última análise desacreditada e rejeitada”, uma vez que as crenças carregam
preferências por uma ou outra forma de interação e são produtos da cultura. No caso, a crença aqui se
dá pela força do enunciado “oração”, o que poderia estar sinalizando para uma busca de paz no plano
individual e interior, ou acenando para a oração como um movimento diante da vida e da busca da
tranqüilidade para vivê-la. Talvez uma recorrência discursiva marcada por um discurso sobre paz como
“referência à necessidade do resgate de valores e a centralidade do sentimento interior como alcance
da paz” (GUIMARÃES, 2003, p. 77).
Realizo uma outra leitura proveniente dos enunciados que me sugerem o esqueleto da pessoa
materializado na cor vermelha que se projeta saindo de trás do fundo preto, marcando uma relação
matizada pela compreensão de que os discursos de paz mexem com humano e podem constituí-lo na
relação com suas experiências e com os sentidos que são fabricados para vivê-la. Além disso, mexe
com o próprio corpo humano como lugar onde se operam relações de poder e saber, aqui expresso
com contornos em preto que parecem ser um prolongamento da parte preta do muro que se preenche
com o vermelho, lembrando a carne, o sangue circulando e sendo derramado, que poderia ser o lugar
da violência e ao mesmo tempo lugar da materialização do imperativo de paz, sugerido pelo enunciado.
Texto cultural - 31
Ainda vejo sentidos sendo produzidos por uma paz que, nesse texto, aparece como alguma
coisa a ser alcançada pela prática da oração e da meditação, significado sugerido pelo caminho que se
apresenta iluminado pelo amarelo contrastando com o preto, “iluminado” porque as palavras: paz,
oração, meditai, rogai, são escritas em branco carregando sentidos de purificação sobre a negritude
que pode estar envolvida a vida e as violências que a tensionam.
Registrei o texto cultural trinta e dois, que apresento abaixo, desde uma parede de um prédio
empresarial no centro da cidade, na Travessa Araújo Ribeiro, durante o mês de fevereiro de 2005. No
momento da captura, significava a concretização dos múltiplos movimentos pela e da paz presentes na
contemporaneidade que os relacionava com a idéia trazida por Galtung (2003) de que nunca se viu
tanto apelo por paz como nos dias de hoje e, por isso, sua conseqüente pluralidade de entendimentos
e práticas. Ao me debruçar em novas leituras sobre o registro fotográfico que apresento a seguir,
coloco em funcionamento outros modos de operar com os discursos sobre paz e violência, amplio o
campo de minha visão, e passo a ver, por exemplo, elementos em correlação como é o caso da espiral
que se projeta vindo entre a pessoa e o fundo azul, que pode ser lido como um “céu”, colocado como
cenário de fundo.
Texto cultural - 32
Parece que o grafiteiro usa a parede de tijolos para provocar rachaduras neste “céu” onde se
inscrevem os discursos culturais acerca da e pela paz onde diferentes grupos culturais atuam na
contemporaneidade com seus múltiplos movimento e lutas contra as violências. Também poderiam ser
lidas como rachaduras provocadas pela espiral das violências, da qual soltam-se raios em explosão,
em oposição à paz, por isso a necessidade de “...MOVIMENTOS DA PAZ...” e que sejam muitos não
importando quais forem, indicando isso pelo enunciado da ordem gramatical dado pelas reticências
antes e depois da frase.
Leio enunciados sobre o homem que está à frente como se ele se colocasse numa atitude de
enfrentamento das violências: um dos braços encontra-se colocado atrás do corpo, outro aponta uma
direção que parece estar sendo produzida por sua palavra dado ao fato da boca manifestar-se aberta,
em movimento articulando alguma fala. Esse homem encontra-se pintado com tons esverdeados que
podem ser lidos como sinais da expressão popular “verde de raiva”, ou traduzidos por uma indignação
frente às violências presentes no mundo que o mobilizariam para a ação em favor da paz na inserção
em algum dos movimentos que o texto pode estar evocando.
Por outro lado, novamente a conflitividade discursiva gerada pelo tensionamento paz e
violência nos textos culturais, é colocada em cena pelo fato do homem apresentar-se vestindo um
vermelho todo tracejado de riscos e rabiscos diversos, tornando viável uma outra leitura, uma vez que o
vermelho rapidamente é associado ao produto das violências. Pode-se dizer que a materialização que
o grafiteiro faz, sugere uma análise discursiva que coloca este mesmo homem como produtor de
violências em suas formas de convivência e buscas de paz, ou dito de outro modo, conjugando com o
entendimento de Muller (1995), se é o homem que produz violências e as reforça culturalmente e se
deixa produzir por elas, somente ele é capaz de produzir paz e se deixar produzir pela paz, também
marcada por atravessamentos culturais que nos compõem nos circuitos onde vivemos.
Olhando para o lado esquerdo do grafismo temos a presença de um character que possui um
só olho e muitos dentes, e aparece conjugado com o número treze. Pelo jeito como posiciona o olhar,
vejo significado uma espécie de estado de náusea, de enjôo ao direcionar-se para a espiral que agora,
nesta relação, poderia ser lida como os monstrinhos dos desenhos animados que se confrontam nas
lutas entre o bem e o mal. Nesse sentido, ainda haveria lugar para o turbilhão que está entre o
character e o homem ser um ciclone, não mais apenas uma espiral, o que conduziria ao entendimento
de que a violência pode ser comparada a fenômenos da natureza, tais como furacões, ciclones, tufões,
indicando que a violência pode ser definida como um ímpeto veemente, impetuoso como um vento
forte que rapidamente destrói. Isso estaria apontando para discursos que outra vez incorreriam em
processos de naturalização, olvidando que tanto violência quanto paz são produtos da cultura e devem
ser entendidas nas condições históricas de sua emergência.
Há uma mobilidade discursiva presente no corpo tatuado da cidade. No texto cultural trinta e
três, registrado na parede lateral de um supermercado, numa pequena travessa do bairro Restinga
Nova, denominada
Acesso E, encontrei um grafismo simples de fácil feitura, mas que exigiu domínio
na prática de grafitar porque mistura diversas cores e diversas sombras, visibilizando o uso hábil do
grafiteiro ao lidar com o spray.
Aparecem três assinaturas “BOI”, “SR” e uma terceira que não sou capaz de traduzir. A tag
“BOI” é feita predominantemente com preto e rosa, a “SR” apenas em verde e a do meio mistura as
cores das duas, supondo que está produção foi realizada a várias mãos, talvez por esta razão o
enunciado “NÓS PEDIMOS!!!”, seguido do grito em caixa alta “PAZ”. Atualmente, enunciar tal desejo
de paz não deixa de ser um lugar comum da humanidade, cada um a seu modo, cada um com seu
caminho, cada um com sua concepção parece estar pedindo paz.
O curioso da paz transcrita neste texto é o fato dela se mostrar “gasosa”, com bolhas prontas
para explodir, ou quem sabe uma paz embriagada pelos contextos de medo e insegurança decorrentes
Texto cultural - 33
dos processos de globalização de nossos tempos, indicando o surgimento de uma paz “líquida”, posto
que diferentemente dos sólidos, os líquidos não conseguem manter sua forma. Bauman (2001) quando
olha para os tempos de hoje, examinando a ordem duradoura que propunha a solidez da modernidade
para tornar o mundo previsível e de pronta administração, diz que vivemos sob a perspectiva da fluidez
dos líquidos, tempos que escorregam, transbordam e são associados com a idéia de leveza, de
realização imediata, instantânea, de experiências datadas, diferentemente das experiências com os
sólidos, porque estes são duradouros.
Neste texto cultural parece que paz vem atravessada pelo gasoso próprios da fluidez e da
mobilidade dos gases e, assim, fica-se diante da impossibilidade de seguir fielmente uma noção, uma
conduta, um modo de entender paz como correto e apropriado. Desta forma, acredito que paz é aqui
materializada no jogo da “modernidade líquida”, apresenta-se derretida e explodindo em bolhas no fogo
da fluidez dada pelos “elos que entrelaçam as escolhas individuais em projeto e ações coletivas – os
padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente de um
lado, e as ações políticas de coletividades humanas, de outro” (BAUMAN, 2001, p. 12). A mobilidade
das relações e dos elos estabelecidos parece propor uma “paz líquida”, que respinga entrelaçada com
a produção das violências urbanas no jogo de encontrar caminhos sem fixar espaços e tempos. No
jogo de tramar discursos em disputas por verdades, no desejo de querer paz sem poder se apoderar
dela, pois em tempos de instantaneidade a velocidade marca a infinitas possibilidades a serem
extraídas de cada momento.
No registro do grafismo urbano trinta e três, o enunciado “paz” tem vários contornos de tintas e
as letras que compõem a palavra insinuam infinitas possibilidades de significar. Os contornos começam
com cores mais suaves e na medida em que as letras vão sendo preenchidas, as tonalidades tornam-
se mais quentes, estendem-se do quase branco ao vermelho do fogo como se a força da paz pudesse
ir incendiando, queimando as forças presentes, no caso aqui invisíveis, da violência. A inscrição “PAZ”
é disforme, apesar das letras serem gordas e estilizadas, não são iguais, têm contornos e cantos
diferenciados, apontando para uma paz multifacetada, ou seja, este texto faz circular enunciados que
expressam uma paz pedida, implorada, exigida, clamada: uma paz que se apresenta líquida.
Dentro deste conjunto, apresento um último texto cultural para indicar a mobilidade que paz e
violência são capazes de ter nos grafismos que circundam os suportes na cidade de Porto Alegre. O
registro fotográfico trinta e quatro foi capturado na rua Coronel Neves, no bairro Medianeira, no muro
de um centro comunitário, no mês de janeiro de 2005. É um grafismo urbano com traços simplificados,
provavelmente, produzido por um iniciante na prática de grafitar, justamente por isso é que ele se torna
instigante como produção discursiva, visto que tal centro atende práticas de esporte e lazer voltadas a
comunidades ditas carentes.
Observa-se que a materialização do grafismo urbano deu-se num muro “cru”, isto é, não há
sobreposição de tintas anteriores, manifesta-se desde a camada de cimento que o escritor usa como
suporte e faz aquilo que se chama de produção limpa, legível para quem é letrado, o sugere que o
escrito deseja uma comunicação com todos os leitores que passarem pelo seu texto. Basicamente, o
texto cultural trinta e quatro, apresenta quatro elementos que podem ser descritos como: pessoa, sol,
balão de diálogo e letras, se associados podemos lê-los como recorrências de determinados discursos
em torno de paz. A frase, por exemplo, aponta para os discursos proclamados pelos movimentos
pacifistas e por movimentos de direitos humanos que afirmam a voz como instrumento de luta e de
busca por condições dignas de vida e justiça social, por isso, afirmam “sem direitos humanos não há
paz!” (GUIMARÃES, 2004, p. 87). Neste sentido, aponta-se como caminho para a paz a participação
das pessoas, dos grupos e das instituições como exercício da cidadania em sua construção e
promoção.
Quando o autor inscreve “PAZ” no sol estilizado, podemos talvez ler sob o prisma de que há
um desejo explícito que a paz ilumine as experiências de vida, que se mostra conflitada por angústias e
Texto cultural - 34
medos, quando correlacionada ao enunciado da frase porque talvez: “PAZ SEM VOZ NÃO É PAZ É
MEDO!!!”. É possível ler também na direção de uma paz como horizonte utópico, inatingível, como uma
prospecção de vida iluminando a superação daquilo escrito no centro do balão em cor rosa, este como
que suavizando o medo inscrito no olhar arregalado da pessoa, nos cabelos arrepiados e estilhaçados
em vermelho com pontas agudas, revelando as condições de incertezas da existência hodierna
mescladas com a insistente busca de estabilidade e eliminação dos conflitos. Coisa pouco provável,
pois viver hoje é viver em situação de crise e, nessas circunstâncias, “não temos domínio sobre o fluxo
dos acontecimentos” (BAUMAN, 2000, p. 145), não temos resultados previsíveis, vivemos na
indefinição apesar de nossas tentativas de definição. A crise faz com que as coisas fujam do nosso
controle, paz aqui neste texto cultural também pode ser inscrita na condição de crise, no confronto da
busca de uma falta de regularidade para se viver ou de um estado de anormalidade. A crise, no
contexto da modernidade, sugere o avesso da normalidade, as coisas já não parecem as mesmas, os
instrumentos em uso já não têm o mesmo resultado, então, como diz Bauman (2000), talvez torne-se
necessário mudar de instrumentos para operar sobre os acontecimentos e sobre as experiências de
vida.
No caso do texto cultural trinta e quatro, a inquietação diante da vida aponta para uma situação
de crise, para um impedimento da palavra, para uma descontinuidade discursiva, isto é, para uma
necessidade de usar outros instrumentos que nos permitam traduzir as experiências de vida, pois
talvez a palavra impedida seja justamente a que se deseja definida pelo artigo “a”, a única palavra. Paz
como “a” paz deixa de existir e os instrumentos para operá-la deixam de ser únicos. Mais do que isso,
talvez seja preciso aprender a olhar para paz pelo seu avesso, eu retoma aqui o texto cultural trinta
quando enuncia que somo nossas próprias respostas. Por que tanta violência? As respostas
apresentam-se como plurais da mesma forma que plurais são os caminhos que se matizam com as
formas de interagir, conviver e fazer intercâmbios culturais nas sociedades.
Ambivalência das guerras – Apresento o quarto conjunto de significados que organizei a
partir das recorrências que observei em diversos lugares da cidade sobre o tema da guerra-paz-
violência. Denomino de ambivalência das guerras, porque acredito que os discursos que circulam em
torno delas produzem ambivalências em diferentes tempos históricos e na atual sociedade.
Compreendo as práticas culturais dos grafismos urbanos como práticas históricas, portanto, de alguma
forma também significam, nas condições da ordem discursiva que lhes é peculiar, as experiências que
vamos materializando nos percursos da vida. Uma das experiências que vejo problematizada através
de seus textos é a experiência das guerras e suas prováveis conexões com as batalhas travadas no
mundo urbano na luta pela sobrevivência.
Deste modo, aponto na entrada deste conjunto, o texto cultural trinta e cinco que capturei na
Avenida Érico Veríssimo, no bairro Menino Deus, em julho de 2005. Depois de muito olhar para o muro
na perspectiva de operar com os discursos sobre paz e violência, fui seduzida pela frase que enuncia:
“OS HUMANOS, E SUAS GUERRAS OBSOLETAS. HUM...?”. Em cada retorno a este texto cultural,
vejo-me movida por novas leituras e disponho as lentes para novas relações. É o que vou procurar
examinar a partir de agora.
Inicio pelo estilo do grafismo urbano que envolve técnica apurada e mostra o domínio do
grafiteiro na arte de realizar este tipo de produção. O grafiteiro joga com cores, sombras, profundidade,
traz para cena vários elementos do universo do grafite como é o caso da presença do extraterrestre e
das letras estilizadas, conformei demonstrei no capítulo dois. Poderíamos dizer que realiza um grafismo
dentro do estilo pieces, trazendo para o cenário acontecimentos históricos, carregados de sentidos e
sentidos carregados de simbolismos que se dilatam nas relações com o corpo social urbano.
Texto cultural - 35
Ao percorrer esse texto, num longo processo de interlocução na dinâmica de ver e ser vista,
vejo-me envolvida pela profusão de significações que emergem desta relação. O extraterrestre senta-
se sobre o planeta Terra para viver a experiência do acontecimento como retorno dado ao acaso e à
contingência, e diante dele, parece fazer leituras sobre as experiências vividas pelos humanos;
manifesta-se reticente e interroga-se através do enunciado “HUM...?”. Tal conjunção, seguida das
reticências e do ponto de interrogação direcionam meu olhar para cruzar esse enunciado com os
discursos que estão em andamento e movimentam determinadas sociedades e grupos culturais
fabricando e seduzindo à incorporação da necessidade da guerra para o enfrentamento de conflitos.
Relaciono este texto com os discursos produzidos por certos países sobre a necessidade da “guerra
preventiva” para combater inseguranças. Conceito este, segundo informa Jares (2005), fabricado no
corolário do combate ao terrorismo de forma unilateral e fragmentaria, usado como estratégia e como
uma forma de poder em tempos que se “supõe a globalização da guerra e a guerra contínua” (p. 66)
como meio para se obter segurança. Nesta situação, a segurança supõe a eliminação do outro, esse
outro é personificado no terrorismo como sendo a ameaça das ameaças que provoca inseguranças e
denigre a paz. Os discursos de acontecimentos contemporâneos podem assim ser cruzados com o
texto cultural trinta e cinco e com outros, permanecendo aberto a novos entrelaçamentos.
Curioso é observar o local que o extraterrestre elege para sentar e examinar a prática da
guerra. Na ordem imposta pelo discurso da geografia, está na parte superior do mapa mundial, mas
não em qualquer parte desta cartografia, escolhe a América do Norte para, desde tal posição de
sujeito, observar as “guerras obsoletas” provocadas pelos humanos. Isso sugere uma leitura que
considera a violência das guerras, mesmo que obsoletas, a partir de um centro irradiador. Neste caso,
o centro seria do domínio estadunidense, que contracena com o deslocamento apontado pela história
do nazismo, colocado no latão do lixo, mas ainda respingando sobre o mundo. Intriga-me o fato de
proclamar a guerra como “obsoleta”, parece indicar que só os humanos ainda não aprenderam que ela
é obsoleta, uma vez que mesmo tendo experimentado de forma abundante as violências e as dores
dela ainda a buscam como linguagem e como prática para resolver seus conflitos.
Por outro ângulo de visão, poderíamos ler tais reticências e interrogações sob os auspícios de
acontecimentos passados como bem mostra o já mencionado tonel vermelho posto do lado esquerdo
do planeta, rememorando historicamente a Segunda Guerra Mundial através da simbólica nazista e dos
horrores do holocausto. Aí algo intrigante torna-se visível, o tonel serviria para o lixo (ou seria lixo o
próprio tonel!?), para o refugo de alguns humanos, traduzido pelo verde que culturalmente costumamos
significar como reciclável e como expressão de vida. É de dentro do latão cheio de morte provocada
pela guerra, que a vida escorre e se insinua, sugerindo uma certa teimosia em resistir e manifestar-se
na sua fluidez e imprevisibilidade, sugerindo a persistência da vida em si mesma. Seria então a
violência da guerra apenas mais um meio para eliminar o refugo humano em nome da paz e da
segurança de alguns? Quem determina o que passa a ser refugo? Soam como questões que merecem
atenção especial e sugerem uma leitura à luz do que Bauman (2005) propõe quando sugere que o
projeto da modernidade se articula de tal modo que passa a descartar vidas.
Existem pontos de luz, no texto cultural trinta e cinco, que se estendem sobre o planeta,
todavia se localizam preferencialmente perto dos instrumentos que a humanidade tem usado para fazer
as guerras: uma foice, um machado, um cano de espingarda, uma cruz ou uma espada. O uso feito de
todos esses instrumentos faz pensar na produção das bolhas de sangue inscritas no canto superior
direito e que se derramam sobre o planeta. Ainda percebo enunciações provenientes da associação
que faço do extraterrestre com seus três dedos sobre a face, do mapa que se apresenta em preto e
branco e do espaço no qual o planeta está posto, lembrando uma espécie de berço em que repousa o
planeta, agora para se pensar, desconstruir-se e reconstituir-se novo desde os acontecimentos vividos.
Vejo discursos sendo produzidos e matizando sentidos que conduzem a tensionamentos
constantes enredados nas (im)possibilidades de fazer a paz pela guerra e da guerra a paz pela
violência, mostrando a obsolescência desse cruzamento quando tramado com a destruição da vida.
Transcrevo o texto cultural trinta e seis na visibilidade do enunciado “ABRIGO E VIVÊNCIA” e
atravessada pelo impacto que me causou, para compor este conjunto das ambivalências das guerras,
sejam elas travadas no cotidiano da vida, sejam elas feitas pelo uso de armas pesadas e contra povos
inteiros, sejam elas realizadas de batalhas nas disputas por sobrevivência. É um texto que mescla
estilos, mas o inusitado se dá pelo fato de ter sido jogado um balde de tinta vermelha sobre o rosto
como que apontando um “acabamento” da obra, técnica também tratada de throw-up por grupos de
grafiteiros, significada também como vômito. Este grafismo estava situado na Avenida Érico Veríssimo
e realizei o registro fotográfico no mês de junho de 2005.
Neste grafismo, a humanidade parece ser colocada face à face através do enunciado que
envolve a cabeça: “abrigo e vivência”, ao passo que esse mesmo enunciado, para mim, apresenta-se
sucedido de um questionamento, apenas acrescentando-lhe o sinal de interrogação: abrigo e vivência?
Isso transformado em pergunta torna possível problematizar as ambivalências em que a vida é
mergulhada, nas batalhas e nas guerras por disputas de espaços para colocar a vida em sobrevivência.
Assim, a bandana que circunda a cabeça da pessoa pode ser transformada em um mundo
desfigurado, mundo que os discursos produzem como lugar de acolhida e de expansão de nossas
capacidades humanas, por isso abrigo como lugar de aconchego, e vivência como lugar de produção e
reprodução da vida. Contudo, assim materializado, apesar das tonalidades sinalizando um horizonte
azulado, tons amarelos indicando sol e brancos de nuvens, mostra-se paradoxalmente um peso sobre
a face humana dada a expressividade do olhar, que se mostra atônito e penetrante. Aquilo que deveria
ser abrigo e vivência, sinaliza para uma conflitividade alterando a visão, isto é, o mundo desabriga e é
tramado pela vivência da dor, do medo, da incerteza, o corpo é atingido pelo “sangue” que encobre e
anuvia o olhar. A materialidade que atingiu o rosto, escorrega como é próprio dos líquidos, não fica
apenas na face vai tomando o corpo sugerindo que não pode ser contida, da mesma forma, são as
batalhas pela sobrevivência em tempos de refugo de algumas vidas já consideradas descartáveis.
O desejo de segurança, indicado pela frase, torna-se esguio, desvanece porque viver não se
apresenta seguro, supõe lutas e ferimentos, supõe atingir e ser atingido. Não se passa pela vida
incólume e as buscas hoje acontecem num campo de batalha aberto, heterogêneo, de fronteiras
escorregadias e na velocidade do instante. Nesse campo de batalha onde a vida se inscreve,
Texto cultural - 36
continuamos procurando por abrigos e por vivências que nos tragam certo sentimento de acolhimento
como enfrentamento do caos e do abandono em meio a multidões. A vida mostra-se marcada e
produzida pelo esfacelamento dos “abrigos” e dos espaços de “vivência”. Esses são cada vez mais
incertos e cada vez mais assinalados por ambivalências e tensionamentos.
Mobilizo, neste momento, o texto cultural tinta e sete, que estava materializado na Avenida
Ipiranga sobre uma parte do muro que contorna um centro de distribuição de energia elétrica, nas
proximidades do shopping Praia de Belas. Lugar de intensa circulação de pessoas, denotando uma
articulação com muitos sujeitos que cruzam por aquele espaço, portanto capaz de uma produtividade
na construção de significados.
A materialidade deste texto cultural apresenta um estilo de grafismo urbano mais simples e
feito à mão livre com pincel e mistura de várias cores de tintas, expressando que o seu escritor é
alguém menos treinado nas práticas de grafitagens. Vemos inscrita uma crew, isto é, a marca de um
grupo que deixou seu traço denominada de “RIOS”, provavelmente escrita sobre o grafismo inicial visto
que as letras em branco assinalam o uso de pincel e é uma marca que se multiplica pela cidade em por
outros espaços.
Texto cultura - 37
Observa-se a frase que enuncia uma paz que não venha pelos artifícios e aparatos decorrentes
das guerras: “PAZ SEM GUERRA”. O que poderia estar apontando para um sentido de paz como
simples ausência de guerra, neste caso, eliminando-se a guerra, a paz aconteceria. Se assim for vista,
diz Jares (2002) que ela seria reduzida a uma antítese da guerra, que é apenas uma prática das
múltiplas formas que a violência tem. Por isso, continua esse autor, não pode ser encarada “apenas
como ausência de relações não-desejadas, mas também como presença de condições e circunstâncias
desejadas” (p. 131). Ela move-se na vida e nas suas experiências encontra sua tangibilidade.
É sobre a marca do acontecimento e dos sentidos que ele provoca que paz e violência tornam-
se tangíveis. Retrata-se, mais uma vez, acima no canto direito do grafismo, a inscrição em preto do
desenho da suástica nazista, encontra-se cruzada por um traço de proibição que aqui apenas visualiza-
se metade dele. Nesta perspectiva da proibição de um dos símbolos culturalmente identificado como
uma baliza da guerra e capacidade destruidora que ela tem, vejo enunciados que tendem a banir a
guerra como meio de resolução de conflitos, retomando acontecimentos históricos passados,
atualizando para traduções no presente. Lembra ainda que a guerra é uma invenção como outra
qualquer, uma invenção feita para matar os vencidos, muito embora ela tenha sofrido deslocamentos
históricos na medida em que se percebeu que as vidas poderiam ser conservadas e usadas para tirar-
lhes proveito, submetendo-as a duros trabalhos.
Os pontos pretos sobre o amarelo presentes no texto poderiam estar lembrando lugares onde
haveria necessidade de eliminar a guerra que ainda se faz presente em diferentes contextos do mundo
contemporâneo, a parte onde o fundo é preto se inscrevem pontos amarelos como que opondo esse ao
anterior, trazendo novamente um enunciado de que sobre a violência da guerra deve-se inscrever a
paz como um antídoto da guerra. Mas a ausência da guerra, diz Muller (1995), não impossibilita a
presença de conflitos, o fato de suprimir-se a guerra como meio de resolvê-los não indica a solução dos
conflitos, apenas muda-se o instrumento para agir no conflito, o que não indica que outros instrumentos
sejam mais ou menos violentos, mais ou menos eficazes, apenas são outros instrumentos.
Observa-se ainda um rosto de menino branco. Este se estende sobre a aparência de um
mastro de bandeira olhando na direção do campo verde e amarelo, manifestando uma possibilidade de
leitura voltada à esperança de instaurar a paz como quem empunha uma bandeira feita de rosto
humano. Isso sugere um cancelamento dos conflitos, ao menos temporário, sinalizando uma espécie
de bem-estar apontado pelo símbolo do equilíbrio que está sobre os pontos pretos na parte em
amarelo. A idéia da harmonia proposta pela simbólica da paz dos movimentos da contracultura com
seu celebre bordão “faça amor, não faça guerra”, surgido no contexto histórico da guerra do Vietnã,
onde também se tornam conhecidas e se espalham as práticas de grafitagens como sinal de protesto,
conforme já referi.
Lançando outro olhar sobre esse texto cultural, poderia dizer que ele se apresenta como um
projeto para a humanidade. Faz circular discursos que se amarram nos pressupostos da modernidade
na medida em que propõe a superação da guerra por uma idéia de paz fundada na perspectiva da
universal de “realidade futura”, atrela paz a um modelo de racionalidade ocidental cuja simbólica que
carrega é da bandeira branca e cujo sistema que a explicaria seria o de uma ordem discursiva
totalizante, ou seja, um lugar privilegiado para olhar e instaurar um tipo de paz. Talvez isso se
apresente como, no mínimo problemático, pois como diz Bauman (2005), onde há projeto há
concomitantemente a produção de refugo. Atrelada a essa idéia de refugo caminho para explicitação
do meu último registro fotográfico.
Passo a descrever o texto cultural de número trinta e oito como último registro que compõe
meus conjuntos de significados. Escolho o texto intitulado “Desaparecidos” porque dele emergem
acontecimentos provocados pelas guerras e regimes vividos em determinadas sociedades, em certos
tempos históricos, porque traz para a cena e problematiza o debate da produção do refugo humano de
que fala Bauman (2005) e parece delimitar as condições da vida na atualidade, indicando uma
recorrência presente em todas as descrições que vim realizando até agora. Capturei tal grafismo na
Avenida Getúlio Vargas, nas imediações da Vila Lupcínio Rodrigues, pintado sobre um muro de
proporções extensas, colocado quase no fim do muro, indicando um efetivo desaparecimento do
humano, inclusive do próprio muro. Do ponto de vista da técnica, é um grafismo simples, de fácil
execução, provavelmente realizado por apenas uma pessoa. Sobre ele há interferências feitas
posteriormente de crews que deixaram suas assinaturas, mostrando ser mais de um grupo pelo sinal
matemático “mais” que medeia cada novo traço. As marcas apresentam-se concretizadas com letras
estilo gótico, na parte inferior do muro, como que indicando uma busca de identidade do humano
desaparecido.
A materialidade da cena enunciada pelo grafismo urbano mostra-se aparentemente contida
numa espécie de abóbada que parece esconder os “desaparecidos” que de alguma forma já estão
escondidos pela própria ausência de rosto que cada humano tem, já perderam suas identidades,
especificamente, parece que deixaram de ser humanos passando à condição de refugos.
Acima do enunciado “desaparecidos” há uma espécie de nuvem preta, que parece querer
dissipar, impedir a visão dos já desaparecidos e projeta sua sombra, tornando-se maior na parte de
baixo. Eles, os “desaparecidos”, são homens, mulheres, jovens e crianças. Não têm rosto, todavia
parecem guardar certas características de etnicidade dadas pelos adereços que lhes são colocados
como é o caso do primeiro homem da direita para a esquerda que usa barba, podendo ser designado
pelo simbolismo estereotipado que temos em nossa cultura ocidental, como um judeu; o terceiro, na
mesma direção, parece ter um turbante na cabeça, sugerindo do mesmo modo ser um oriental.
De outro ângulo, cabem leituras das violências sofridas daqueles que desapareceram,
continuam desaparecendo, como daqueles que procuram porque têm seus familiares desaparecidos.
Há uma enorme interrogação advinda dessa condição de desaparecimento das vidas da qual seguem
três gotas que leio como manifestação da dor de saber-se desaparecendo, como produto das
violências de saber-se descartados, sem escolha. Isso novamente traz a questão de existem alguns
que precisam ceder espaço para que outros apareçam. “Eles”, diz Bauman (2005), são pessoas que
têm demais no mundo, deveriam desaparecer para que haja um número suficiente de “nós”. Aqui
parece residir um paradoxo: a descartabilidade “deles”, dos outros que são demais, que se insinua a
paz para “nós”, esses que devem ser mais que apenas alguns.
Texto cultural - 38
Olhando para o texto, “eles”, os humanos sem rosto, sem braços, deveriam desaparecer, sumir
como sombras vazadas nas contingências das guerras travadas no cotidiano. São apenas sombras,
perambulam como se fossem espectros sem vida e impossibilitados de ação, já não atingem o “nós”,
pois perderam a capacidade de olhar face a face. Entretanto, apesar da descartabilidade aponta-se
para um vestígio de vida: resta a capacidade de interrogar-se. Suponho que na interrogação há
linguagem produzindo modos de viver, há disputas se tramando em meio às incertezas e as
inseguranças de viver, desaparecer e morrer em tempos de “modernidade líquida”.
É no líquido da interrogação que outras relações podem acontecer e podem constituir-se
tangíveis pelas noções paz e violência como um enredo produtivo considerando o jogo de disputa entre
o estabelecimento da ordem e a convivência com o caos, entre a busca por segurança em tempos de
insegurança, entre o estado permanente de crise e a busca de instrumentos para aprender estar nela.
É nesta condição de movimento contínuo que busco enredar os discursos em torno de paz e violência
mobilizados pelos grafismos urbanos.
Diante das questões que fui levantado ao longo dos percursos que tenho feito nesta
dissertação, vejo-me agora frente a um possível enredo que se constitui no ato mesmo de ir
caminhando. Mobilizada pelos atravessamentos que foram acontecendo nas contingências do andar e
de ir expondo os passos dados, enfrento agora o retorno como acontecimento que se traduz em
perspectiva de respostas transitórias sobre a produção discursiva dos textos culturais postos em
circulação nos grafismos urbanos. Com esta intenção dirijo-me ao último capítulo para matizar e
reapresentar as compreensões que vim fazendo.
Capítulo 6
MATIZANDO
Quando se trata de projetar as formas de convívio humano,
O refugo são seres humanos.
(BAUMAN, 2005, p. 42)
Compartilhar a vida em tempos e espaços de globalização é viver na perspectiva do risco do
descarte, é viver na condição de angústia, é estar no jogo da vida disputando (im)possibilidades de
sobrevivência, onde o derradeiro propósito da sobrevivência, apresenta-se como sobrevivência aos
outros. A expansão tecnológica e econômica que a modernidade colocou diante de nossos olhos
mostra-se arrasadora e produtora de uma espetacular multiplicação de riscos, onde o maior dos riscos
talvez seja o risco do refugo humano como uma das violências mais complexas que a humanidade já
foi capaz de produzir em suas formas de convivência.
Como diz a epígrafe acima, quando há projetos que inventam modos de convivência, há
também que se ter em conta uma produção concomitante daqueles que não se ajustam ao que é
determinado no projeto. A determinação supõe uma separação entre os que podem e os que não
podem fazer parte do projeto de convivência. Supõe um “nós” e um “eles”; supõe um espaço ordenado
onde é determinado o que pode e o que não pode acontecer. Os discursos que descrevi em torno dos
tensionamentos paz e violência nos textos culturais dos grafismos urbanos, parecem ajustar-se à essa
forma de pensamento como um modo de projetar e inventar laços sociais para o convívio humano.
Matizar esses discursos é o que pretendo fazer nesta última parte da dissertação. Procuro
mostrar o enredo que os tensionamentos discursivos entre paz e violência provocam produzindo
convivências difusas e rotas, num mundo que nos mergulha nos jogos da linguagem. Discursos que
colocam-nos em diferentes posições com as quais podemos nos identificar e rejeitar. Esse jogo
discursivo produz relações escorregadias entre paz e violência, contaminando pedagogias culturais que
agem na construção de subjetividades através dos textos culturais dos grafismos urbanos. É o que
pretendo aprofundar neste momento da escrita.
6.1 ENREDANDO PAZ E VIOLÊNCIA NA RELAÇÃO “NÓS” E “ELES”
Nos percursos que fiz, minhas suposições sobre as práticas dos grafismos urbanos enredaram-
se no caminho de que são marcas produtivas sobre o corpo da cidade. Nesse corpo há disputas sendo
travadas, nele se investem relações de poder e de saber. O corpo “está diretamente mergulhado num
campo político, as relações de poder tem alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o
dirigem” (FOUCAULT, 2004a, p. 25). Apoiada nisso, meu argumento é que tal investimento sobre o
corpo da cidade é acometido de uma política cultural complexa, resultado das relações de poder entre
as tramas de saberes que produzem múltiplos sentidos tensionando escorregadiamente paz e
violência. Sentidos que fabricam modos de ser, pontos de instabilidade, comportando riscos e conflitos,
discursos heterogêneos e difusos em torno de paz e de violência.
O corpo da cidade, tatuado pelos grafismos urbanos, apresenta-se como superfície investida
de procedimentos de poder que funcionam como uma rede de relações, colocados sempre em
atividade através de seus textos e pelas relações postas entre os habitantes da cidade, os textos
culturais e as articulações com os acontecimentos do mundo contemporâneo. São procedimentos que
colocam em tensionamento entre paz e violência expostos sobre o corpo da cidade para lutas que
implicam a emergência de forças colocando em cena diferentes grupos disputando sentidos. Cada
grupo, com seu vigor e força, é manifestação de discursos que circulam entre eles e dos sentidos
tensionados pelos discursos que são produzidos.
O que procurei fazer até aqui foi dar visibilidade aos discursos dos grafismos urbanos que
significavam relações entre paz e violência e, assim, ir mostrando as construções possíveis em torno
dos enunciados e das significações diversas que provocaram as leituras que realizei e os
desdobramentos que fiz, e ainda faço, tomada pela produtividade da linguagem. Parece-me que disto
resulta uma certa organização, um fio que conduz os discursos que tramei a partir dos textos culturais
descritos e analisados: paz e violência podem estar surgindo como discursos que servem para exercer
certo controle sobre a vida, operando como marcadores que separam e ordenam a própria vida e que
se distribuem como linguagem que produz, nos contextos em que se inserem, um “eles”, os violentos, e
“nós”, os não-violentos, portanto os fazedores de paz.
Para enredar esse argumento chamo para a interlocução a palavra de Bauman (2005) quando
fala que na sociedade de normalização o mundo precisa ser administrável e exige ser administrado. A
norma quer se impor para bem administrar e controlar, para proibir e excluir, pois o surgimento do caos
indica que algo não vai bem. Entretanto, por si só o mundo não é nem caótico, nem ordenado. É o
projeto humano que coloca em evidência tanto a ordem, como a desordem, é para isso que se precisa
de projetos. Desta forma, a produção de projetos faz sentido uma vez que “a modernidade, pode-se
dizer, é um estado de perpétua emergência” (BAUMAN, 2005, p. 41) e tem vigor na contínua fabricação
de projetos para a alimentação da ordem como forma de negação do caos. No entanto, parece que
encontra em seus projetos de aperfeiçoamento da convivência humana, a instabilidade do caos. Se
algo não vai bem novos projetos precisam ser empreendidos.
Parece-me que os discursos que fazem proliferar violências globais e locais no mundo de hoje
apresentam-se como produto da linguagem, desse “algo que não vai bem” e que instala o caos do
medo e da insegurança, provocando rachaduras no projeto da modernidade que se mostrava como
processo evolutivo, fazia-se um projeto de modernização perene e manifestava-se como condição
universal para toda a humanidade. É justamente esse processo de expansão global proposto pelas
formas de vida da modernidade que “pôs em movimento quantidades enormes e crescentes de seres
humanos destituídos de formas e meios de sobrevivência” (BAUMAN, 2005, p. 14), daí a fragilidade, a
vulnerabilidade e a deterioração da segurança.
Na afirmação “nosso planeta está cheio”, utilizada por Bauman (2005, p. 11), encontro
argumentação para pensar nos discursos sobre paz e violência convivendo produtivamente. Esse
cheio não corresponde à perspectiva territorial em termos de espaço, mas o cheio diz respeito aos
discursos em torno dos progressos econômicos e tecnológicos que produzem modos de existência
inviáveis para alguns, cujo resultado é “a produção do ‘refugo humano’, ou, mais propriamente, de
seres humanos refugados” (BAUMAN, 2005, p. 12). Da mesma forma que a norma surge como
estratégia para pensar e regular a vida, e sua atividade incessante é a de separar, classificar e
controlar, pode-se dizer que um dos produtos de sua atividade é exatamente promover o que pode, ou
não, ser descartado, o que pode, ou não, ser aceito, o que pode, ou não, ser considerado como bom e
ruim, o que pode, ou não, ser considerado violento e não-violento, o que pode ou não ser incluído e
excluído num mundo feito para “nós”, não para “eles”.
Entendo que é necessário lembrar que tanto o “eles” como o “nós” são produzidos
discursivamente e que fazem emergir uma separação que aponta para uma necessária
problematização da produção de refugo. Parece que “sempre há um número demasiado deles. “Eles”
são os sujeitos dos quais deveria haver menos – ou, melhor ainda, nenhum. E nunca há um número
suficiente de nós. “Nós” são as pessoas das quais deveria haver mais” (BAUMAN, 2005, p. 47). Trago
esse “nós” e esse “eles” para estabelecer relações com os tensionamentos discursivos que emergem
dos textos culturais que examinei no capítulo cinco.
Transpondo tal dinâmica de compreensão para os discursos em torno de paz e violência, pode-
se dizer que há elementos que tensionam a relação “nós” e “eles” nos textos culturais. Por um lado,
parece que “eles” surge materializado como cruzamento das violências humanas que compõem
discursos sobre sofrimentos, guerras, armas, mortes, direcionando-os para a produção do refugo
humano. Por outro lado, potencializa-se o “nós” como produto dos discursos que (im)pedem a paz, a
segurança e a ordem. Eliminar seria um verbo que, cuja ação contida nele, apresenta-se como
necessidade de subtrair as inseguranças que “eles” provocam para “nós”. Considerando os discursos
presentes nos textos culturais que compõem os conjuntos de significados, pode-se apontar que eles
traduzem insistentemente esse tensionamento entre o “nós” e o “eles” e, nesse sentido, não seria
leviano afirmar que há uma produção interdependente, ou seja, no “admirável e líquido mundo
moderno” (BAUMAN, 2005, p.17) em que as pessoas humanas são refugadas, os discursos que
produzem o refugo se cruzam e fazem parte do mesmo projeto. Dito de outro modo, os discursos sobre
violência e paz produzem-se a si mesmos ao mesmo tempo, isto é, soam ambivalentes: ora reforçam o
“nós” e ora reforçam o “eles”, provocando rupturas de fronteiras, tensionando-as e fazendo-as deslizar
e escorregar continuamente.
Essa produção discursiva se faz acontecimento de modo específico na dinâmica das cidades
através das práticas culturais dos grafismos urbanos que traduzem o tensionamento provocado pelos
contornos de inseguranças e pelos riscos de viver no limite da descartabilidade provocado pela
velocidade das mudanças que ocorrem na cidade e nas relações que nela são traduzidas. Os
discursos em torno de paz e violência manifestam-se como produtos das práticas sociais vividas pelos
diversos grupos que atuam sobre seu corpo. Desta produção recorrente poderia dizer que sobram
discursos que soam como paz e como violência, traduzindo uma certa redundância enunciativa que
sugere uma regularidade, tal como a eliminação dos conflitos, das armas, do sofrimento. Outros
sugerem uma dispersão colocando medos, inseguranças, buscas por seguranças e bem-estar como
produtos das ambivalências discursivas nas tramas discursivas entre violência e paz. Outros ainda
indicam uma fugacidade entre paz e/ou violência, como é o caso do texto cultural trinta e oito que trazia
o enunciado “desaparecidos”. Associo o prefixo “des” como condição de ausência de normalidade,
conforme propõe Bauman (2005) quando alerta que esse prefixo anuncia um estado temporário
indesejável. O normal não é “des-aparecer”, isto seria uma condição imposta pela não normalidade que
supõe a violência quando subtrai o aparecimento da vida. Subtraindo o prefixo “des”, restaria a
normalidade, o “aparecer” da vida, que no caso desta pesquisa poderíamos associar aos discursos
materializados nos textos culturais em torno de paz. Nisto reside uma fugacidade e uma conflitividade
em permanente invenção e entrelaçamento nas práticas sociais e culturais.
Vejo que alguns conjuntos que constitui articulam a possibilidade de colocar os discursos
acerca de paz e de violência sob a perspectiva da “redundância”, pois soam como discursos que se
dão ao excesso e agem em constante interação e tensionamento, do que resulta uma recorrência
marcadamente plural e ambivalente. Na compreensão de Bauman, a redundância
sugere permanência e aponta para a regularidade da condição. Nomeia uma
condição sem oferecer um antônimo prontamente disponível. Sugere uma nova
forma de normalidade geral, e o formato das coisas que são imanentes e que
tendem a permanecer como são (
BAUMAN, 2005, p. 20).
Os discursos sobre paz e violência surgem e ressurgem nas contingências das lutas pela
sobrevivência, são materializados num movimento que mistura atração e repulsa no corpo tatuado da
cidade, que é produzido na constituição de verdades que acionam, por vezes, o medo e a insegurança
e, por vezes, a segurança e a harmonia. A redundância faz parte do conjunto de sentidos que
compartilha da idéia de “restos”, “lixo”, “refugo”. Deste modo, pode-se afirmar que aqueles que são
considerados redundantes sobram, são desperdiçados, destinados ao lixo, viram dejetos, ou “refugo
humano”, na acepção de Bauman. Neste caso, a redundância e o refugo são produtos que
acompanham os processos de modernização e são efeitos da busca de ordem que não deixam de ser
processos permeados por violências, uma vez que o que está em jogo é uma política da vida.
Poderia dizer que os discursos em torno de paz e violência, apresentam-se como necessários
para manter a redundância. Soam como uma regularidade atravessada por relações de poder e de
saber e mostram-se úteis para pensar as pessoas redundantes, alimentam-se da redundância e do
refugo para a própria criação, visto que os textos culturais traduzem discursos que significam
experiências vividas e abertas a se fazerem novas experiências no acaso e na contingência.
Os grafismos são textos eminentemente urbanos, dotados das experiências do urbano, de
seus conflitos, de suas violências sofridas e praticadas, de suas alegrias, de suas produções.
Traduzem de forma irreverente e paradoxal as faces do mundo urbano contemporâneo, conjugando-se
no movimento da cidade como uma grande tela exposta em sua epiderme, retratando-lhe a vida. Com
eles é possível aprender o ritmo frenético da vida na cidade, nas condições de velocidade instantânea,
de impermanência das coisas. Soam como um convite a mudar de instrumentos para operar com a
vida, ao deixar a própria vida ao sabor do acontecimento e da transitoriedade de seus riscos e rabiscos,
ao transgredirem a ordem asséptica desejada pelo projeto da modernidade, ao proporem lutas
semânticas e provocarem discursos em torno de suas práticas.
Ocupo-me, a seguir, com a suposição levantada no decorrer da pesquisa de que os grafismos
urbanos produzem verdades e essas ensinam sobre paz e violência, podendo ou não se constituir uma
pedagogia cultural.
6.2 GRAFISMOS URBANOS: UMA PEDAGOGIA CULTURAL?
Ao falar em pedagogia de imediato ocorre uma relação primeira com a invenção moderna
chamada escola, como se fosse o lugar determinado da pedagogia e como se não houvesse outros
lugares para aprender. Atualmente, sabemos que “existe e ocorre ‘pedagogia’ em todo o espaço social
em que saberes são construídos, relações de poder são vividas, experiências são interpretadas,
verdades são disputadas” (CORAZZA, 2005, p. 2). Romper com a escola como o único espaço de
educação, é deixar-se levar a diferentes luares onde se vivem experiências humanas. É estar ao sabor
da sedução de uma pedagogia cultural que rompe com a fixação e a formulação de significados e se
apresenta adjetivada do “cultural”, fazendo-nos pensar nos atravessamentos que supõem as diversas
formas históricas e sociais que hoje reconhecemos como espaços onde aprendemos algo.
Venho afirmando que os grafismos urbanos, entendidos como prática cultural, propõem formas
de convivência no e com o espaço urbano, propõem experiências de vida nas contingências do
acontecimento em que surgem. Explicitam e conflituam discursos, colocam em questão o caráter de
limpeza e de ordem da cidade, rompem imobilidades ao usar diferentes suportes como cenário para
deixar seus textos, engendrando neles o abrasador do mundo contemporâneo. Deste modo, a forma
como se encontram distribuídos torna-se interpeladora e relacional, torna-se uma ação sobre outras
ações no jogo das relações de poder, inventam saberes, sentidos e significados regulados por
procedimentos da ordem do discurso que exclui, institui, classifica, inverte, seduz.
Nos grafismos urbanos as relações de poder insistentemente se fazem presentes, exercitam-se
em suas práticas discursivas, contaminam-se e entrecruzam-se produzindo efeitos ao nível do político
e do individual. Mais do que isso, os textos culturais dos grafismos urbanos operam sobre o corpo da
cidade com essa noção de poder disseminado aventada por Foucault, e operando na produção do
corpo, que é o elemento onde se articulam “os efeitos de um tipo de poder e a referência de um saber,
a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e
reforça os efeitos de um poder” (FOUCAULT, 2004a, p. 28), eles constituem verdades. Assim, o corpo
é permanentemente produzido não como substância, mas como peça no domínio exercido pelo poder,
na superfície e em torno do corpo. Nessa perspectiva de argumentação é que coloco a emergência de
uma pedagogia cultural atuando através dos grafismos urbanos como um modo de produzir verdades
sobre o corpo da cidade e desde aí sobre o corpo dos indivíduos articulados com a cidade e com a
invenção de “realidades” que os textos culturais comportam.
Ao propor a existência de uma pedagogia cultural no âmbito das práticas dos grafismos
urbanos, cabe-me pensar que a existência de uma pedagogia está implicada na fabricação de seres
humanos que atuam culturalmente, exercendo relações de poder como interferências produtivas sobre
o mundo em que vivem. Considerando a produtividade dos textos culturais impressos sobre o corpo da
cidade, posso dizer que carregam possibilidades de leituras, traduzem-se numa pedagogia porque
seus discursos, conforme examinei no capítulo cinco, articulam saberes sobre o corpo político e cultural
da cidade, evidenciando o quanto nossas vidas constituem-se produtos da cultura e são marcadas por
suas práticas e pela linguagem que as instala. As práticas dos grafismos urbanos fragmentam e
pluralizam formas de olhar o mundo, apresentam narrativas de experiências humanas e deixam-se
abertos a cruzamentos culturais diversos. Não pretendem uma definição, ao contrário, a indefinição
procede como forma de definição no modo de existir de seus textos e práticas.
A pedagogia peculiar aos grafismos urbanos investigados é uma pedagogia da transgressão,
da fugacidade, da irreverência como formas de constituição de comportamentos diante da vida e meio
de colocar em cena debates sobre os problemas instaurados nos tempos de globalização, trazendo-os
como textos para serem lidos no cáustico cotidiano da cidade. Os grafismos urbanos apresentam a
vida em seu caráter de instabilidade e crise, de invenção e dissolução de violências e verdades. Seus
discursos são múltiplos e seus textos são “gêneros impuros” (CANCLINI, 2003, p. 321) que se mesclam
e traduzem a ambivalência de estar num mundo movido pela instantaneidade e pelas contradições. De
cara com a instantaneidade, a própria pedagogia dos grafismos urbanos torna-se instantânea e
pulveriza comportamentos e éticas, jogando com as noções de paz e violência num tabuleiro
multifacetado.
o advento da instantaneidade conduz a cultura e a ética humanas a um território
não-mapeado inexplorado, onde a maioria dos hábitos aprendidos para lidar com
os afazeres da vida perdeu sua utilidade e sentido. [...] a memória do passado e a
confiança no futuro forma até aqui os dois pilares em que se apoiaram as pontes
culturais e morais entre a transitoriedade e a durabilidade, a mortalidade humana e
a imortalidade das realizações humanas, e também entre assumir a
responsabilidade e viver o momento (BAUMAN, 2001, p. 149).
Vejo que os grafismos urbanos enfrentam o risco de ser uma prática pedagógica que vive entre a
transitoriedade e a durabilidade, entre o instante e a permanência incerta, pois seus textos
“perambulam pelo espaço e atualizam os muros a cada tempo, estão sempre em movimento, em
trânsito permanente” (CALAZANS, 2004, p. 4), arriscam-se em proliferar assinaturas, imagens,
textos, fazendo com que cada momento se apresente com infinita capacidade produtiva, porque por
mais breve e fugaz que possa sê-lo, sempre será o lugar onde se travam as batalhas
contemporâneas pelas forças da aceleração e do adiamento de sentidos.
Deste modo, os grafismos urbanos tomam o corpo da cidade e reapresentam-na como um
tabuleiro multifacetado onde se inscrevem situações de falta de paz e de presença de violências, ligam-
nas umas às outras como parte do mesmo corpo, apagando o óbvio na atribuição de seus significados.
Manifestam-se como uma pedagogia relativizadora dos espaços e o uso que deles fazemos,
atualizando seus textos na cidade com uma velocidade espetacular e com uma força irreverente,
atuando e fazendo-nos atuar com outros olhos diante do inusitado dos acontecimentos.
Seus textos são antidisciplinares, versáteis e hibridizados como são os significados em torno
de paz e de violência que eles enunciam. Praticam uma pedagogia cultural, “na medida em que
envolvem nosso desejo, capturam nossa imaginação e vão construindo nossa consciência” (COSTA,
2002, p. 144), conduzindo-nos a processos de subjetivação que apontam para a constituição de
verdades em torno do que pode ser paz e do pode ser violência. Fabricam sentidos ao sabor das
experiências, narrando-nos através de seus textos que constituem formas de ser e de compreender os
movimentos vividos na cidade. Isso significa dizer que os grafismos urbanos são uma intervenção ao
nível do cultural e do discursivo e que tal intervenção dissemina condutas que nos fazem entender as
coisas de um modo e não de outro.
O que se abre nesta pedagogia irreverente, própria dos grafismos urbanos, é uma perspectiva
nova às análises do cotidiano, não mais ancorada em compreensões cristalizadas e naturalizadas.
Provocam uma reatualização do debate em tornos dos discursos sobre paz e violência através de
práticas que engendram a crise e a polifonia como condição para pensá-las, problematizando o
enfrentamento de discursos que vêem suas próprias práticas e a si mesmos como violências. Fazem-
se críticos desta verdade, recolocando esse entendimento e criando outras possibilidades de
resistência e de leitura de si como autores, de suas práticas e das próprias violências. Recolocam o
debate das violências urbanas na sua complexidade mutifacética e retomam discursos de em torno de
paz tomados como estabelecimento da ordem e da tranqüilidade, mostrando-a interconectada com as
inseguranças e as injustiças provocadas pela impossibilidade de direitos.
A idéia recorrente nos textos culturais que procurei problematizar e significar é a de que eles
distribuem discursos que dizem de nossas práticas, de nossas experiências, de nossas inseguranças,
de nossos medos, portanto de nós mesmos, de nossos grupos culturais, de nossas formas de conviver
em sociedade. Retomam os diferentes discursos sobre paz e violência como acontecimentos
históricos e culturais, portanto produtos da linguagem que usa “palavras como fios” (BAUMAN, 2005,
p. 125) para tecer e inventar verdades na condição de efemeridade de seus textos, como efêmeros e
frágeis são os laços sociais que hoje estabelecemos.
Aprender sob a condição de transitoriedade dos textos culturais dos grafismos urbanos pode
se apresentar como uma pedagogia irreverente e transgressora, pois somos capturados por outro
currículo cultural que transpõe as barreiras da permanência e da estabilidade que comporta o currículo
escolar e joga nossas vidas para fora do reconhecível, deixando-a na condição de “des-vínculo” como
condição de transitoriedade das coisas, retomando o prefixo “des”, proposto por Bauman (2005), como
estado de impermanência. O “des-vínculo” mostra a condição volátil e frágil que o mundo
contemporâneo, através de suas práticas inscreve nossas vidas, fazendo-nos crer que o que acontece
é algo espontâneo, natural, fugaz e sem história, fazendo-nos crer nisso como marca de nossa
história, isto é, se os vínculos podem ser rompidos a qualquer momento, parece não há razão para
gastar tempo e energia para estabelecê-los.
Se diferentes significados de violência, nos textos culturais, constituem-se daqueles discursos
que as produzem, produzindo ao mesmo tempo um estado de “des-vínculo”, de anomalia da
sociedade e das formas dos humanos se relacionarem, paz também é produzida pelos mesmos e/ou
por outros discursos como outros significados e sentidos conforme apresentei nesta dissertação.
Compreendei, ao pesquisar, que verdades vão sendo produzidas na transitoriedade dos
grafismos urbanos. Se há uma pedagogia que produz o “des-vínculo”, há a idéia de discursos que
inventam, que fabricam e o que “sempre” se disse sobre paz e violência não é algo naturalizado, único
e imutável. Pela produtividade é que vejo a força da pedagogia cultural dos grafismos urbanos quando
colocam em circulação discursos fabricando diferentes sentidos para paz e violência. Seus sentidos
mostram-se enredados, não há como compreendê-los de forma compartimentada e dualista: num
mesmo texto circulam discursos que produzem sentidos para paz e sentidos para violência, num
mesmo texto discursos inventam práticas culturais para significar paz e violência, num mesmo texto
discursos podem inverter e entrelaçar paz e violência, num mesmo texto acontecimentos históricos e
circunstâncias do presente borram relações entre discursos sobre paz e violência, mostrando como
são possíveis diferentes leituras que indicam o que Foucault (2004b) chama de fios que conduzem e
reforçam os discursos.
Não há como negar que existe um conhecimento sendo produzido pelos grafismos urbanos.
Um conhecimento inscrito na ordem da cultura, tramado por lutas de poder e saber na materialidade
de seus textos culturais que se mostram híbridos, impuros, matizados por características
marcadamente heterogêneas e, por conseguinte, provocadores de discursos não menos plurais.
Relações tensionantes, difusas e matizadas entre violência e paz parece ser a condição discursiva que
o urbano supõe diante da imposição da redundância e do engajamento frágil e superficial dos
humanos. Seus textos surgem e circulam com a velocidade do hoje, sem projetos de amanhã ou de
garantias futuras, dão-se ao instante e permitem significar e ser significados ao sabor do lugar que se
ocupa para fazê-lo.
Nos conjuntos de significados que constituí procurei mostrar significados que são postos em
circulação pelos grafismos urbanos. Pode-se dizer que seus textos têm uma relação direta com a
aprendizagem, são parte das disputas postas pela ordem da cultura visual e traduzem modos de
pensar de certos grupos, apostando na evidência de seus discursos que se somam e interagem no
urbano, mostrando o caráter molecular que violência e paz assumem ao fragmentar a vida, deixando-a
exposta às batalhas cotidianas: sofrimentos, esperanças, mortes, agressões, contradições, desejos,
medos, depressões, angústias, poesia, fé, arte, humanização, transgressões, rupturas. Nesse sentido,
circula uma pedagogia cultural difusa que, às vezes, consiste em desconstruir e reconstruir relações
sociais, articulando “permanentemente uma política cultural” (CORAZZA, 2005, p. 4) inscrita na
hipercrítica das práticas da globalização instauradas pelo projeto neoliberal que produz seres
humanos refugados, expondo formas de refugo nos suportes da cidade para que seus habitantes
atribuam sentidos e possam viver, ou não, interrogações e alternativas.
Minha leitura sobre os grafismos urbanos sugere que seus textos estão preocupados em
apontar para a fragilidade e a incerteza da vida, sugerindo a transgressão como comportamento para
desconstruir a ordem proposta tanto pelos discursos que traduzem violências como pelos que mostram
diferentes compreensões em torno de paz. Estão interessados em nos fazer ver essa produção de
seres humanos refugados como formas de violências e lembram-nos que fazemos parte do processo
de “mineração”, de que fala Bauman (2005), que criou e continua criando o supérfluo, o descartável.
Desta maneira, como consumidores que somos de nossos próprios dejetos, os muros, as paredes, as
pontes, as marquises da cidade, a cada manhã, permitem-nos leituras sobre seus textos, conduzem
nosso olhar para uma ruptura, um avesso do refugo, isto é, um “uso” do material refugado para se
produzir algo novo. O novo não sabemos o que será, não há como prever se será mais desejável ou
menos desejável, mas sabemos que não será o mesmo.
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