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Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
A AUTO-ESTIMA DA CRIANÇA QUE SOFRE VIOLÊNCIA FÍSICA PELA
FAMÍLIA
Syrleine Maria Penaforte Bastos Bonavides
Natal- RN
2005
Syrleine Maria Penaforte Bastos Bonavides
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2
A AUTO-ESTIMA DA CRIANÇA QUE SOFRE VIOLÊNCIA FÍSICA PELA
FAMÍLIA
Dissertação elaborada sob orientação da
Prof.ª Dr.ª Rosângela Francischini e
apresentada ao Programa de Pós- graduação
em Psicologia da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, como requisito
parcial a obtenção do título de Mestre em
Psicologia.
Natal
2005
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3
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
A dissertação “A Auto-Estima da Criança que sofre violência física pela Família”,
elaborada por Syrleine Maria Penaforte Bastos Bonavides foi considerada aprovada por
todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em
Psicologia, como requisito básico à obtenção do título de MESTRE EM
PSICOLOGIA.
Natal, RN, 02 de setembro de 2005.
BANCA EXAMINADORA
Dr.ª Rosângela Francischini __________________________________
Dr.ª Maria Célia Correia Nicolau __________________________________
Dr.ª Maria de Fátima Pereira Alberto ___________________________________
4
O homem deseja ser confirmado em seu ser
pelo homem, e anseia por ter uma presença
no ser do outro...- secreta e timidamente, ele
espera por um Sim que lhe permita ser, e que
só pode vir de uma pessoa humana a outra
(Martin Buber).
5
DEDICATÓRIA
Para meus pais, que ao longo de minha vida
me enviaram reflexos positivos desde cedo que
me fizeram acreditar no meu valor como
pessoa.
Para Annibal, companheiro e cúmplice, por
conseguirmos reinventar todos os dias nossa
história e seguir crescendo, compartilhando
erros e acertos, desejos e realizações.
Para meus filhos, Renata, Lucas, Davi e
Natália, pela existência em minha vida.
Para minhas irmãs, pela segurança de ser
amada.
6
AGRADECIMENTOS
À professora doutora Rosângela Francischini, pesquisadora admirável, por seus
ensinamentos, suas orientações sempre tão seguras e precisas; e, principalmente, por
acreditar no meu projeto e pela confiança em mim depositada no caminho trilhado.
Ao S. O . S. criança e às escolas pesquisadas, que possibilitaram esse trabalho e,
em especial, às crianças, que, por meio de suas falas, me permitiram penetrar suas vidas,
levando-me a conhecer várias de suas imagens que possibilitaram esta discussão.
Aos professores e colegas do mestrado, com quem compartilhei tantos saberes.
À professora doutora Magda Dimenstein, pelas contribuições no Seminário de
Dissertação.
A Cilene, por sempre atender minhas solicitações com paciência, simpatia e
carinho.
Às amigas Teresa, Sandra, Ana Lúcia, Rosymeire, Lecy e Jemima, por dividirem comigo
alguns momentos de minhas angústias.
Aos pesquisadores de Iniciação Científica, Cíntia Lobato, Cinara Ribeiro e Léo
pela amizade e colaboração na elaboração dos dados.
À minha irmã Selene, que, em meus momentos de baixa auto-estima, me servia
como fonte de provisão.
Muito obrigada.
“Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento;
assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade”
(Fernando Pessoa).
7
RESUMO
Esta pesquisa investiga a auto-estima das crianças que sofreram violência física tendo
como agente membro da família. Participaram como sujeitos da pesquisa 7 crianças - 3
do sexo masculino e 4 do feminino - com idade entre 6 anos completos e 12 anos,
incompletos. As análises foram feitas a partir dos dados obtidos em entrevista semi-
estruturada, atividades sobre os sentimentos humanos, atividades que incluíam expressões
faciais, frases inacabadas, história de Pinóquio, o desenho de uma família e o desenho da
família do sujeito. Os indicadores foram analisados a partir da análise do conteúdo. As
unidades temáticas foram: violência, violência intrafamiliar e auto-estima. A síntese das
categorias estudadas evidenciou que a violência física e a violência psicológica presentes
na vida das crianças comprometem o desenvolvimento positivo de seu autoconceito e,
conseqüentemente, de sua auto-estima. Dentre os resultados, destacamos vários
sentimentos negativos que permeiam a vida das crianças, entre eles, medo, culpa, tristeza
decorrentes das situações de violência vivenciada.
Palavras-chaves: auto-estima, criança, violência intrafamiliar
8
ABSTRACT
This research investigates the self-esteem of children who suffered physical violence by
family members. Seven children took part in the research: three boys and four girls, aged
between six and twelve years old. The analysis were done from the constructed data
obtained from: semi-structured interview, activities about human feelings, activities that
included facial expressions, unfinished phrases, Pinocchio’s story, a drawing of a family
and a drawing of their own family. Data were analyzed from the Content Analysis. The
Thematic Units were: violence, intrafamily violence, and self-esteem. The synthesis of
the categories studied evidenced that the physical violence and the psychological violence
present in the lives of children affect the positive development of their self-concept and,
consequently, of their self-esteem. Among the results, we emphasize some negative
feelings that are present in children’s lives such as fear, a sense of guilt, and sadness,
arising out of the situations of violence they have experienced.
Key words: violence intrafamily, children, self-esteem.
9
SUMÁRIO
RESUMO 7
ABSTRACT 8
1. Introdução
10
2. Violência: algumas questões
19
2.1. Tipos de violência: classificações e explicações teóricas 23
2.2. Violência: realidade brasileira e relações sociais
30
2.3. Violência intrafamiliar: conceitos e notificações
37
2.4. Violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente: histórico e conseqüências 51
2.5. Família, conceitos e funções 72
3. Subjetividade e auto-estima
87
3.1. Emoções e auto-estima 99
3.2. Auto-estima e autoconceito: questões conceituais 107
3.3. Importância, formação e elementos da auto-estima 123
4. Metodologia de Trabalho 138
4.1. A pesquisa 138
4.2. O caminho percorrido 139
4.3. A pesquisa empírica e os sujeitos 140
4.4. As escolas 144
4.5. Condições de realização das atividades 146
4.6. Procedimentos 147
4.7. As atividades 149
5. Análise e discussão dos dados 154
5.1. Violência 154
5.2. Violência intrafamiliar 168
5.3. Auto-estima 203
6. Considerações finais 253
7. Referências bibliográficas 259
Anexos
10
1- Introdução
Um novo tempo, apesar dos perigos,
estamos em cena, estamos na luta...
(Ivan Lins)
A violência constitui, atualmente, um dos mais graves problemas sociais. Muitas
explicações fazem-se presentes a respeito de suas causas, conseqüências e formas de
manifestação, principalmente na literatura acadêmica. Também vem sendo abordada nos
meios de comunicação, apresentando-se na pauta do dia em jornais, televisão e revistas e
torna-se, cada vez mais, alvo de conversas cotidianas entre as pessoas.
Embora o tema da violência seja bastante discutido nos dias atuais, ele acompanha a
sociedade desde sempre; não é um fenômeno contemporâneo. Como fenômeno amplo,
apresenta-se desde os primórdios da história e modifica-se ao longo dos tempos.
Recuando na história, podemos perceber que a vida em sociedade foi sempre com
violência. Não se tem notícia de nenhum período da humanidade em que alguma
sociedade tivesse vivido sem violência, embora se fale do matriarcado
1
, quando as
escavações demonstram que não havia guerra, o modelo social era ordenado, não se
sacrificavam humanos nem animais, não havia provas de morte violentas (Singer, 1994,
citado por Fagùndez, s/d).
1 Segundo Héritier, (1996), o matriarcado deriva das teses de Bachofen que, em 1861, escreve que teria existido um estado inicial da
humanidade marcado pela ignorância da paternidade fisiológica, o culto das deusas
- mães e que o poder feminino era muito grande,
sobre o político, econômico, ideológico e sobre os homens.
11
Retrocedendo no tempo, para a época dos primatas, verificamos a presença da
violência original praticada como uma necessidade de sobrevivência, na qual a força
física era substituída pelo trabalho de fabricação de instrumentos de defesa e ataque
(Odália,1983). A violência original era praticada como uma necessidade no processo de
luta pela sobrevivência, na qual não havia outras saídas e possibilidades de ação/relação.
Essa violência era estruturante e constitutiva do equilíbrio e ordem na vida. Existia
porque havia uma precariedade da razão humana diante dos desafios da natureza.
Hoje partimos dessa forma de violência primária para uma secundária, que existe de
forma desestruturante e desagregadora (Fraga, 2002), não decorrente das adversidades da
natureza, mas como resultado dos desequilíbrios existente nas relações sociais desiguais.
Esse autor sinaliza-nos o fato de que, diante de uma sociedade na qual há um
reinado da razão e que, embora o avanço tecnológico e cultural seja evidente, a violência
ainda não foi diminuída; ao contrário, agravou-se, principalmente no plano material, em
relação às pessoas menos favorecidas, atingidas por uma sociedade globalizada e
extremamente consumista, que traz como uma de suas marcas um difícil acesso às
pessoas, aos recursos materiais mínimos à sobrevivência, como moradia, saúde, educação
e alimentação.
Fraga (2002) argumenta: “se a violência original, primária, era fruto, em última
instância, da precária estatura racional do homem frente aos desafios da natureza, por que,
se vivemos sob o reinado da razão, a violência tornou-se não menor, mas infinitamente
maior e mais refinada?” (p.46).
Assim, hoje, com todo o desenvolvimento em curso, não conseguimos ainda retirar
da violência nem ao menos seu caráter primitivo de forma de sobrevivência, como vemos
12
na era dos primatas, quando a violência era uma forma natural de defesa frente a um
mundo hostil. Sabemos que para muitas pessoas a violência (de forma bem específica) é
um recurso de sobrevivência e que estas a utilizam como instrumento para chegar a um
fim: suprir necessidades de sobrevivência, que é a satisfação de necessidades básicas,
como comer, beber, reproduzir, abrigar-se etc. Neste sentido, uma questão a se pensar é:
será que não mudamos apenas os parâmetros do que sejam sobrevivência e defesa?
Vemos, por exemplo, quantas pessoas hoje em dia utilizam o narcotráfico como
recurso de sobrevivência, embora saibam de sua ilegalidade e riscos, pessoas essas
marcadas por condições indignas de vida que alimentam e são alimentadas pela violência.
Nesse contexto, lembramos também da existência de muitas pessoas que se envolvem no
mundo do tráfico, não pela sobrevivência, mas por questões de poder e controle sobre as
coisas e pessoas, conseqüência de uma sociedade competitiva.
Ao longo de nossa história, observamos episódios, cenas e marcas da violência que
se apresentam com formas e contornos diferentes, que vão desde os escritos bíblicos
2
passando pela mitologia greco-romana
3
. Na Idade Média, encontramos a violência
presente nas invasões, guerras e ainda nas manifestações de exclusão social de judeus,
homossexuais, prostitutas e bruxas.
2 Temos, como exemplo, o livro dos Gêneses “A criação do universo e da raça humana”. Depois de Deus dar a Adão e Eva o Jardim do
Éden
, os proíbe de comer os frutos da árvore do bem e do mal. Ocorre a desobediência e o primeiro casal é castigado e expulso do
paraíso (Bíblia
Sagrada, 1998), ficando o caminho aberto para as punições (Odália, 1983). Outras passagens bíblicas: “Aquele que
poupa a vara, quer mal ao seu filho, mas o que o ama, corrige-o continuamente (...). Castigando-o com a vara, salvarás sua vida da
morada dos mortos” (Guerra, 1998, p.52). “Não deixe de corrigir o jovem. Se você o corrige com vara, ele não morrerá. Quanto a você,
corrija com vara o jovem e o estará livrando da morte” (Bíblia Sagrada, Provérbios, 22-23, 1998).
3 O mito de Chronos, assimilado pelos romanos como Saturno, devora os próprios filhos, e na verdade, destrói tudo o que ele próprio
cria. Na saga do mais conhecido dos heróis gregos, Hércules, a violência é presença constante (Thomas, 2002).
13
Pensando mais especificamente na violência contemporânea, vemos como esta se
propaga de forma institucionalizada
4
e banalizada. Em nossa sociedade, a violência atinge
de forma cruel boa parte da população, incluindo crianças, jovens, homens, mulheres e
pessoas idosas, independente de classe social, raça, idade e sexo.
O simples fato de vivermos em uma sociedade globalizada, caracterizada pela
desigualdade social, implica, de alguma forma, um viver violento, no qual as pessoas
experimentam a violência da desigualdade, da exclusão, da discriminação
5
.
Este fato contribui para pensarmos que a violência em nossa sociedade está inserida
no espaço público e privado, no cotidiano das pessoas, na linguagem, pensamentos e
ações e “no mundo de hoje, parece tão entranhada em nosso dia-a dia que pensar e agir
em função dela deixou de ser um ato circunstancial, para se transformar numa forma de
modo de ver e de viver o mundo do homem” (Odália, 1983, p.9).
A cada dia observamos diversos sentimentos por parte das pessoas, relacionados à
violência, que podem ser traduzidos em inquietação, impotência e falta de controle, medo
e insegurança. As pessoas, além de não se sentirem amparadas, não vislumbram a
possibilidade de escapar da violência em suas várias formas de manifestação.
Ilustrando nossa compreensão, Adorno & Cárdia (2002), observam que
“Em todo o mundo, acentua-se o sentimento de medo e
insegurança coletiva à proporção em que as políticas de
segurança e justiça tradicionais e convencionais se revelam
inadequadas e ineficientes para garantir lei e ordem, por um
4 Segundo Berger & Luckmann (1988) “a institucionalização ocorre quando há uma tipificação recíproca de ações habituais por tipos
de atores”(p.79). (...) “Dizer que um segmento da atividade humana foi institucionalizado já é dizer que este segmento humano foi
submetido ao controle social ” (p.80).
5 A posição de uma boa parte da população tem como característica a desigualdade de oportunidades de vida, tanto no que se refere ao
acesso a recursos, como na vivência de situações sociais desiguais que incluem saúde, habitação, trabalho, educação, relações de
sociabilidade, segurança, informação, conhecimento e participação pública (Santos, 2002).
14
lado; e promover os direitos fundamentais da pessoa
humana, por outro (p. 20)”.
Na verdade, o fracasso de uma política de segurança pública que atenda às
necessidades de segurança da população faz com que esta busque mecanismos de defesa
muitas vezes dispendiosos e ilegais, como é o caso do acesso às armas (por parte da
sta busque msqu (as (por , p2TjETBT03esta b )]TJ-0.o0 Ttenda 3n-0.009C Bnda pousque mecanismos de de(por i[005 Tw T*no18.595 0 Td[(o caso do (usque m)9Bnda pousque m)9(eca 4h9(o*a )]T8.595 pousq4ososfTJstarNt1star2a681.l3n-0.009C ea busque m)9(12m)9(os de de(pore u -19e5sitas vezesverd )]TJ-/6e0 )9(12m)pc0s arm)/Top ]>>BDC /OC /MC0 BDCso 1ltasD9poe defesa
15
de baixa renda que faziam parte de uma parceria da instituição escolar com outra
instituição sem fins lucrativos que acolhia crianças.
Nessa escola atuávamos como psicóloga escolar e um dos nossos trabalhos
desenvolvidos era ministrar palestras para profissionais de Educação, sendo que um dos
temas mais solicitados era auto-estima. Para tal, tivemos que nos debruçar em busca de
um referencial que pudesse nos embasar nessa atividade, que foi uma grande dificuldade,
pois o que encontrávamos de produção era apenas material de auto-ajuda.
Outra atividade desenvolvida por nós na escola era o atendimento às famílias dos
alunos. Nesses atendimentos, pudemos observar, ainda muito presente na prática de
educação dos pais para com os filhos, a utilização dos castigos físicos, como recurso
pedagógico.
Nosso contato maior com o tema da violência intrafamiliar deu-se quando
participamos de uma disciplina como aluna especial, oferecida pela base de pesquisa –
NESCIA – Núcleo de Estudos Sócioculturais da Infância e Adolescência do
Departamento de Psicologia da UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte –
que nos possibilitou enxergar a lacuna, em termos de pesquisas sobre as conseqüências
psicológicas desse tipo de violência e, mais especificamente, da violência física cometida
contra crianças e adolescentes.
Verificamos na literatura que a auto-estima é uma dessas conseqüências e então
decidimos nos aproximar dessa discussão, debruçando-nos sobre as produções acerca do
tema e encontramos muito material de auto-ajuda, fato este que contribui para elegermos
como objeto de estudo a relação de dois aspectos – violência e auto-estima. Em se
tratando da violência, muitas questões ainda são discutidas, como causas, conseqüências,
16
conceitos, dentre outros. Compreender o que seja auto-estima, como se forma, qual a
importância na vida das pessoas, essas foram algumas de nossas preocupações.
Para melhor responder a essas questões, sentimos necessidade de maior
aprofundamento teórico, que se materializou mediante nossa entrada no curso de
mestrado de Psicologia, o qual finalizamos agora com este trabalho, que nos possibilitou
uma visão mais clara, segura e necessária a respeito da problemática da auto-estima da
criança feita vítima pela família. Em seminários, disciplinas e outras formas de estudo,
fomos, aos poucos, elucidando nossas inquietações iniciais e também abrindo caminhos
para novas formulações conceituais.
Neste sentido, o curso ampliou consideravelmente a compreensão dos elementos
teóricos que constituem a problemática da violência como um todo, mais particularmente,
da violência intrafamiliar e da auto-estima.
Tendo como objeto de estudo nesta pesquisa o estudo da auto-estima da criança
vitimizada pela família, procuraremos analisar a auto-estima como uma emoção,
fenômeno humano de caráter sócio-histórico. Falar de auto-estima é falar de
subjetividade, de singularidade e não de padronizações. Baseamo-nos na teoria sócio-
histórica de Vygotsky e seus seguidores, como Gonzáles Rey, dentre outros.
A necessidade desta pesquisa se impõe visto que a auto-estima é considerada uma
necessidade humana (Branden, 2001) e influi consideravelmente nas atividades e relações
do sujeitos consigo e com o mundo. Acerca da problemática da auto-estima, alguns já
estudaram e escreveram, principalmente autores internacionais, que puderam contribuir
para ampliar a literatura sobre o assunto. No Brasil, porém, tanto a produção teórica,
17
quanto no campo da investigação, pouco existe, sistematizado, sobre a análise da auto-
estima com crianças que sofreram violência física advinda da família.
Utilizamos, como estratégias para a exposição dos discursos das crianças, a
produção de desenhos, frases incompletas referentes ao tema, atividades com ilustrações
de expressões e sentimentos humanos e uma história. Esses recursos fizeram emergir
mais facilmente a temática estudada por se tratarem de materiais lúdicos que,
complementados com a linguagem verbal, nos possibilitou acessar aspectos subjetivos da
violência intrafamiliar vivenciada pelos sujeitos no interior de suas casas.
A intenção desta pesquisa é, também, ampliar os esforços de investigação no que
diz respeito à violência intrafamiliar contra a criança, visto ser esse tema de grande
relevância para a saúde pública e a educação. A auto-estima nesse contexto, tem para nós
um papel de destaque, pois se configura como marca profunda e determinante no
desenvolvimento das crianças. Entender, conviver e modificar essa marca constitui um
desafio para nós, profissionais de saúde e educação.
Essa pesquisa busca, ainda, contribuir como suporte de sensibilização de
profissionais para a formulação de uma proposta de intervenção preventiva no que se
refere às práticas educativas na família, bem como nortear caminhos e possibilidades para
promoção de uma auto-estima saudável nas crianças.
No primeiro capítulo deste estudo, apresentamos o fenômeno da violência em sua
realidade diversificada, plural e complexa, alguns conceitos e definições, seus
tipos,classificações e algumas teorias que o explicam. Em outra seção desse capítulo,
situamos a violência no Brasil e, em seguida, discorremos sobre a violência e as relações
sociais.
18
No segundo módulo damos ênfase à violência intrafamiliar, conceito, modalidade e
notificação. Nas suas seções, escrevemos sobre o histórico da violência contra crianças e
adolescentes, acerca das conseqüências no seu desenvolvimento os fatores de risco
associados a esse tipo de violência. Introduzimos, também, uma discussão sobre a família
abusiva e concluímos com a referência a alguns artigos do Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA – no que se refere à violência contra a criança e o adolescente.
Finalizamos essa parte, tratando de algumas funções da família, juntamente com uma
discussão referente à dinâmica da família abusiva.
O terceiro segmento constitui-se de uma discussão sobre a subjetividade, essa sendo
percebida vinculada a processos sociais e históricos. Introduzimos o conceito de emoções
baseados em teóricos sócio-históricos como Vygotsky, Wallon, Rey e outros e fechamos
a seção do debate a respeito da auto-estima. Há outra seção, nesse capítulo enfatizando a
auto-estima, seu conceito, histórico e definições. A parte final traz considerações
concernentes à importância e formação da auto-estima.
No quarto bloco discutimos os caminhos percorridos nesta pesquisa, onde
descrevemos o contexto da busca de campo e a caracterização dos sujeitos envolvidos.
Dedicamos o quinto capítulo à análise dos indicadores, com esteio nas falas dos
entrevistados e observações feitas por nós, confrontando e discutindo os pontos
pertinentes à auto-estima e à violência intrafamiliar. Finalmente, nas considerações finais,
procuramos destacar sinteticamente os aspectos relevantes que puderam ser constatados
no contexto pesquisado, bem como as contribuições que o presente ensaio pode trazer à
grande área de Saúde e Educação, principalmente no que concerne à promoção, nas
crianças, de uma auto-estima saudável.
19
4. Violência: algumas questões
Não há somente a violência aberta, exposta,
belicosa, a dos punhos cerrados e da demonstração
militar. Há também a violência dissimulada, a que
disfarça atrás do hábito, da ordem, da polidez social,
do anonimato dos escritórios. Há a violência que
ameaça e a que seduz
(Jean-Marie Domenach).
Na extensa literatura e em pesquisas sobre violência, principalmente desenvolvidas
na América do Norte e na Europa, percebemos que definir, caracterizar, compreender o
fenômeno da violência e suas causas não é uma tarefa simples, (Adorno & Cárdia 2002),
uma vez que há múltiplas conceituações no espectro das diversas áreas científicas
(Antropologia, Sociologia, Psicologia, Direito, dentre outras) que contribuem para a
compreensão do fenômeno com diferentes visões e variados termos.
Qualquer reflexão sobre o vocábulo ‘violência’ exige que se considere sua realidade
plural, complexa e multifacetada, pois esse fenômeno guarda em si variadas
possibilidades conceituais e de seu emprego, por abarcar diversos sentidos, envolver
diferentes teorias explicativas, bem como por possuir distintas ênfases dadas por autores
diversos, em muitas ciências. Dessa maneira, várias dificuldades foram encontradas por
estudiosos sobre a conceituação do fenômeno, que examinaremos a seguir.
Segundo Emery e Laumann-Billings (1998, citado por Ristum & Bastos, 2004),
uma questão subjacente à dificuldade de definição do fenômeno da violência consiste no
fato de esta ser dirigida “pelo julgamento social, cuja pluralidade quase impede uma
formulação consensual. Além disso, muitas definições são direcionadas pelos objetivos
dos trabalhos e da aplicabilidade de seus resultados, o que amplia o leque de
possibilidades" (p.1).
20
A violência carrega em si uma grande impossibilidade de conceituação, também,
por se tratar de um fenômeno da ordem do vivido, que inclui quem a comete, quem a
sofre, quem a presencia e quem teoriza sobre ela, provocando em todos esses sujeitos,
intensa carga emocional (Minayo, 2003).
Apesar de a palavra violência possuir muitos significados, atualmente seu uso ainda
conserva duas características que não se modificaram através dos tempos e da história. A
primeira diz respeito a como se usa o termo, e a outra contra quem ele é usado; ou seja,
dificilmente alguém se denomina violento (a não ser por sentimento de culpa).
Designamos de violento o outro. O emprego do vocábulo violência, segundo Misse (s/d),
é performativo, não é neutro; quando o empregamos, denunciamos uma ação ou uma
pessoa, ou acusamos um fato ou um indivíduo. O argumento do autor destaca:
Violência não é uma expressão apenas descritiva ou neutra,
ela já toma partido, se engaja na própria definição do ato ou
do ator. O emprego socialmente denunciador da palavra
violência, por isso, tende a reter através dos tempos um
significado duro, que em última análise não pode ser
negociado ou atenuado: o de um ato que viola (do latim
violens) a integridade de um indivíduo, que não lhe permite
a reação e que, portanto transforma-o em mero objeto,
numa coisa qualquer a que se pode fazer o que se quiser
(p.1).
O que significa a palavra violência? É uma questão aparentemente simples e óbvia,
até porque é uma palavra com a qual convivemos e empregamos cotidianamente (talvez,
por isso, seja tão importante sua compreensão), mas que traz consigo uma pluralidade de
significações.
A seguir, apresentaremos algumas definições do termo violência e, posteriormente,
apontaremos aquela que adotaremos neste trabalho.
21
Tratando, pois, da definição formal do termo (Aurélio, s/d) violência significa –
“Qualidade de violento; Ato violento; Ato de violentar”. No aspecto jurídico, o mesmo
dicionário define violência como um “constrangimento físico ou moral; uso da força;
coação”.
Esta significação acima não consegue abraçar toda a complexidade do fenômeno,
por não contemplar uma elaboração conceitual capaz de situá-lo num âmbito sócio-
histórico e subjetivo, que se origina nas relações sociais difusas e esparsas do locus social,
apresentando-se em diversos países de vários continentes da América Latina à América
do Norte, da Europa à África (Santos, 2002).
Para Minayo & Sousa (1997), a violência consiste “em ações humanas de
indivíduos, grupos classes, nações que ocasionam a morte de outros seres humanos ou
que afetam sua integridade física e moral, mental ou espiritual” (p. 1).
A unidade de idéias violência, tal como usado por essas autoras acima, denota a
intensidade de ações que podem ocasionar a morte; a definição nos remete a atos que
destituem um dos direitos humanos primordiais que é a vida. A violência social,
entretanto, tira o direito à vida pensando esta em sua plenitude na qual as pessoas
deveriam satisfazer suas necessidades básicas e ainda buscar satisfação de outras; refere-
se indiretamente ao aspecto da força e coerção, elementos encontrados na raiz do
vocábulo violência. As autoras, de forma ampla, fazem alusões às dimensões física,
moral, mental e espiritual da violência.
Segundo Michaud (2001), existe violência quando,
(...) em uma situação de interação, um ou vários atores
agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa,
causando danos a uma ou a mais pessoas em graus
22
variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua
integridade moral, em suas posses, ou em suas
participações simbólicas e culturais (p. 10).
Esse autor define, inicialmente, violência, situando-a na interação social; não
especifica, no entanto, quais os atores que cometeriam a violência, se o Estado poderia ser
considerado como ator e, quando fala de danos, é de forma abrangente, incluindo as
dimensões física, moral, econômica, cultural e simbólica.
Diante das várias possibilidades de conceitos de violência apontados pela literatura,
em nosso trabalho utilizaremos o conceito de Chauí (1999) por tratá-lo de forma
multifacetada, abarcando a violência física, psicológica; expressa relações hierárquicas de
dominação, onde há a negação, a reificação do outro que não é visto como sujeito de
direito nem é reconhecido sujeito de sua própria história.
Para a autora, violência é:
(...) 1) tudo o que age usando a força para ir contra a
natureza de algum ser (é desnaturar)
2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a
liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar,
brutalizar);
3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma
coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é
violar);
4) todo ato de transgressão contra o que alguém ou uma
sociedade define como justo e como um direito ( p.1).
Para Chauí, a violência também “é um ato de brutalidade, sevícia e abuso
6
físico e
/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela
6 Mesmo reconhecendo que os conceitos maus-tratos e abuso são termos utilizados na literatura sobre o assunto, neste trabalho
empregaremos o conceito de abuso, pois , maus-tratos mostra-se inadequado , por inserir o fenômeno em termos morais, como sendo
uma questão de bondade ou maldade individual. Também o que seria um mau ou bom trato é uma questão de definição geralmente no
campo jurídico (Azevedo, 2002).
23
opressão e intimidação, pelo medo e o terror” (p.1). Observamos nos seus conceitos,
quão ampla é sua definição de violência que perpassa questões estruturais e relacionais,
envolvendo aspectos jurídicos, físicos e psicológicos. A autora não se refere à intensidade
e intencionalidade dos atos violentos, mas faz alusão a direitos socialmente conquistados.
Na subseção a seguir, discutiremos alguns tipos de violência, bem como algumas
classificações delineadas por alguns estudiosos do tema.
4.1. Tipos de violência: classificações e explicações teóricas
Assim como a definição de violência, a sua classificação não é tarefa simples. Isso,
porque, além das possibilidades plurais de referenciais teóricos, ou mesmo no interior
desses referenciais, os critérios empregados para essa taxionomia são os mais
diferenciados possíveis. As classificações apresentadas a seguir refletem esta afirmação.
Para Odália (1983), a violência apresenta-se de várias formas:
Violência social – “certos atos violentos que: ou atingem, seletiva e
preferencialmente, certos segmentos da população – os mais desprotegidos,
evidentemente – ou, se possuem um alcance mais geral, são apresentados e justificados
como condições necessárias para o futuro da sociedade”, por exemplo, quando os
governantes dão prioridades ao desenvolvimento econômico e desprezam as medidas, ou
essas se apresentam de forma incipiente em relação à fome, ao analfabetismo, ao trabalho
infantil, à violência intrafamiliar e outros (p.38);
Violência política - não é somente a ação dos terroristas; “pode ser um assassinato
político, a invasão de um país por outro, o desaparecimento de dissidentes, legislação
24
eleitoral que frauda a opinião pública, leis que não permitem às classes sociais,
especialmente operariado, organizar seus sindicatos” (p.48);
Violência Revolucionária
7
- “pode expressar-se tanto pelo atentado político
individualizado, pelo terrorismo contra grupos, por lutas armadas, greves, quanto por
ações de grupos ou indivíduos que antes expressam suas frustrações e confusões
ideológicas e mentais do que propriamente suas convicções políticas de transformação
social” (p.76).
Pensando sobre o conceito de violência e o quanto esta é objeto de preocupação não
somente das ciências, mas também do senso comum, Chesnais (1981, citado por Minayo,
2003) diferencia, no discurso contemporâneo próprio do imaginário social, três
classificações de violência que incluem tanto o individual quanto o coletivo: a violência
física, aquela que atinge a integridade corporal traduzida por homicídios, agressões,
violações, roubos a mão armada; violência econômica, que é o desrespeito e a
apropriação de bens contra a vontade dos donos; violência moral e simbólica,
8
aquela que
se refere à dominação cultural, ao desrespeito dos direitos e que ofende a dignidade.
Minayo (1994) também nos oferece sua contribuição sobre esse aspecto da
classificação da violência, conforme mostrado a seguir:
A violência estrutural se refere às estruturas organizadas e institucionalizadas
como, por exemplo, à família, bem como sistemas econômicos, culturais e políticos que
7 Para o autor, a violência revolucionária é também uma violência política.
8 A violência simbólica, segundo Bourdieu (1999), “se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder
ao dominante (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com
ele, mais que de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que não sendo mais que a forma incorporada da relação de
dominação, fazem esta relação ser vista como natural” (p.47).
25
levam à opressão de grupos, classes, nações e indivíduos, sendo-lhes negados direitos
sociais tornando esses mais vulneráveis que outros em relação ao sofrimento e à morte.
A violência de resistência é entendida pela autora como uma resposta dos grupos,
classes, nações e indivíduos oprimidos à violência estrutural, sendo contestada e
reprimida pelos que detêm o poder político, econômico e/ou cultural e mobiliza
controvérsias por se responder à violência com violência.
A violência da delinqüência constitui-se como aquela que se expressa nas ações
fora das leis legitimadas pela sociedade e que não podem ser compreendidas isoladas da
violência estrutural, que dentro traz aspectos que contribuem para sua expansão, dentre
eles, desigualdade, consumismo, machismo, alienação, menosprezo de valores e normas.
Pensando sobre as duas classificações acima – de Odália (1983) e Minayo (1994) –
os autores convergem quando incluem as populações mais atingidas, que são aquelas
mais vulneráveis, nas quais são violados seus direitos. Odália, quando descreve violência
social, e Minayo, violência estrutural em relação aos direitos sociais violados. Somente
Minayo, entrentanto, remete às estruturas que sustentam esse tipo de violência.
A posição de Odália é próxima à feita por Minayo quando se refere à violência
revolucionária e violência da resistência. Ambos situam a violência sendo reparadora,
como forma de mudar a opressão estrutural.
Minayo (2003), citando uma interpretação feita por Soares e Carneiro, de uma
pesquisa de opinião realizada pela Rede Globo, no Rio de Janeiro em 1994, revela-nos
que há uma classificação de quatro palavras que remetem à violência: crime, pecado,
corrupção e miséria. A primeira classificação é a violência reduzida à delinqüência; a
segunda, ao pecado, que corresponde à violência interpretada pelo código religioso e
26
expressa a condição humana passível de perversão. Corrupção é a terceira classificação,
que é a violência relativa à moralidade deteriorada e à tradição de valores. Miséria é a
violência vista pela óptica política, marcada pela desigualdade e exclusão.
Podemos dizer que, apesar dessa classificação remeter-se à representação popular
carioca, não seria muito diferente da taxionomia de outras grandes cidades brasileiras, já
que essas quatro palavras – crime, pecado, corrupção e miséria – são uma constante na
vida dos brasileiros e estão presentes também nos processos sociais (Minayo, 2003).
O fenômeno da violência tem como característica uma pluralidade de
interpretações, por isso, várias são as tentativas de explicação. Nos próximos parágrafos,
vamos nos deter nas teorias que explicam a violência, pois de um lado, estão as que
sustentam a violência como resultado de necessidades biológicas, psicológicas ou sociais
e, de outro, a violência como causa apenas do social.
As dificuldades em se conseguir definições e classificações consensuais sobre
violência resultam também em muitas interpretações e explicações de suas causas, sendo
aquelas um dos problemas principais que o fenômeno apresenta.
Temos as teorias considerando que a violência resulta de necessidades psicológicas,
biológicas ou sociais e são fundamentadas na Sociobiologia ou na Etologia, às quais
subordinam questões sociais às determinações da natureza. Existem outras teorias que
justificam a violência como sendo um fenômeno decorrente apenas do social.
Minayo (1997) e Keltai (2003) discorrem sobre essas teorias e as separam em
quatro grupos, conforme está descrito logo na seqüência.
As teorias do primeiro grupo assumem violência como um fenômeno
extraclassista, universal, a-histórico, e acreditam que a agressividade é uma qualidade
27
inata da natureza humana e “portanto, os conflitos da vida social, seja qual for a etapa do
desenvolvimento histórico, são de caráter eterno e natural” (Minayo, 2004, p.514).
Algumas teorias vindas da biologia defendida por Flores (2002), da Medicina, da
Genética e da Etologia são fundamentadas no pressuposto de que a violência é natural e
inevitável. Referem-se à categoria agressividade como sendo parte do instinto de
sobrevivência e a naturalizam como uma reação dos animais em certas condições e
situações.
Essas teorias que consideram a agressividade e a violência como inatas ao humano
possuem como expoentes mais importantes, durante o século XIX e XX, Freud, os
etólogos Konrad Lorent e Raymond Dart, dentre outros (Keltai, 2003).
Encontramos na etologia social desenvolvida por Konrad Lorent alguns aspectos
que sustentam a teoria de Freud, ao conceber o instinto como determinante da agressão.
Para Lorent, a agressividade é necessária à preservação da espécie, sendo natural, como a
fome e o instinto sexual; ou seja, essa teoria transfere os conhecimentos sobre a
agressividade animal, de forma linear, para a atividade/comportamento humano (Minayo
& Souza 1997).
A teoria de Konrad Lorent postula a noção de que praticamente toda conduta
animal, incluída a humana, está determinada de forma endógena e é instintiva. Essa teoria
demonstra que o conceito de agressão é semelhante ao de Freud, ao pensá-lo dentro de
um modelo energético de motivação. Lorent, porém, não concorda com o conceito de
instinto de morte de Freud, pois, para o primeiro, o impulso agressivo é espontâneo,
acumula-se, necessita expressar-se e pode ou não se dirigir a atividades agressivas
(Keltai, 2003).
28
Nessa mesma linha de pensamento, temos a Biologia social, que se fundamenta na
vitalidade humana social, priorizando os problemas individuais em detrimento dos da
sociedade, transferindo fenômenos biológicos para o social, como, por exemplo, dados da
Etologia para as relações humanas, havendo assim uma “biologização” dos fenômenos e
processos que são sociais. Na Biologia social, os ritmos biológicos e sociais são
incompatíveis, pois os indivíduos são geneticamente incapazes de se adaptar às mudanças
e ao desenvolvimento social e tecnológico. Assim, “os genes reproduzidos de geração em
geração, nos seres humanos, transmitem uma informação de sentido e conteúdos
determinados, levando os indivíduos a reagir em condições concretas do ambiente de
forma a garantir a sua sobrevivência” (Minayo & Souza, 1997, p.514).
Outro grupo de teoria busca explicar as raízes da violência com base no argumento
de que as grandes mudanças sociais, como, por exemplo, a industrialização, provocam
correntes migratórias para as cidades, onde essas populações passam a viver sob grande
pobreza, ficando expostas a novos comportamentos e sem condições econômicas de
realizar suas aspirações. A grande cidade é o locus da dissociação entre aspirações e
condições sociais precárias, tornando-se assim um solo propício para o incremento da
violência.
Essa corrente de pensamento possui, tal como o primeiro grupo de teorias, um teor
ideológico; primeiro porque é assentada numa visão saudosista e nostálgica de retorno
temporal, presente em algumas teorias sociológicas, e, segundo, por ver o urbano, a
favela e a periferia como o locus da violência. Justificam a violência decorrente das
mudanças das sociedades escamoteando a violência estrutural do Estado (Minayo &
Souza, 1997).
29
Segundo essa autora, existe o terceiro grupo de teorias que busca explicar a
violência como sendo estratégias de sobrevivência das camadas atingidas pelas
contradições e desigualdades sociais. Nesse sentido, esse grupo não enxerga outros
aspectos da violência social, por exemplo, os aspectos sócioculturais, cujas raízes
estruturais são profundas e encontram-se internalizadas em todos nós.
Um quarto grupo de teorias compreende a violência decorrente da falta de
autoridade do Estado em seu poder repressivo e dissuasivo. Tal corrente descarta o papel
da violência como um instrumento de domínio político e econômico e acredita em um
Estado neutro, independente de interesses econômicos e políticos. Assim, essa teoria
reduz a violência à delinqüência e comunga com o senso comum na idéia de que, para
que haja ordem, é necessária a repressão.
Com efeito, ao buscarmos explicação para o fenômeno da violência que possibilite
uma compreensão mais abrangente acerca da questão, devemos levar em conta todos os
aspectos envolvidos, sejam eles culturais, psicológicos, econômicos, políticos, jurídicos e
biológicos. É necessário analisá-la em seus diversos contextos e significados, não nos
possibilitando generalização em relação a conceitos, classificação, causas e
conseqüências.
É importante se investir no conhecimento específico e empírico do problema,
considerando-o como um fenômeno humano-histórico. Para isso é necessário levar em
conta o tempo em que ocorre, o espaço, os grupos atingidos, sua gravidade e
representação. “A violência está aí para dramatizar causas, trazê-las à opinião pública e,
incomodamente, propor e exigir mudanças (Minayo, 2003, p.43).
30
Em seguida, discutiremos sobre a realidade brasileira da violência. Vemos que esse
fenômeno em nosso País não é recente, assim como em outras sociedades, mas, perpassa
toda nossa história. Finalizaremos a seção apresentando de forma sucinta, algumas
questões acerca da visão de violência como um fenômeno social, que expressa padrões
sociais, bem como formas de sociabilidade.
4.2. Violência: realidade brasileira e relações sociais
Analisando a violência no Brasil, percebemos que esta atravessa toda a nossa
história, desde o “descobrimento”, em que podemos verificar a sua presença na realidade
dos primeiros habitantes, os índios, quando milhões deles foram massacrados pelo
colonizador português. Retornando na nossa história, verificamos que não foram poucas
as situações de conflitos, lutas e guerras; mencionamos, a título de ilustração, a Guerra
dos Farrapos, a Balaiada, a Guerra de Canudos. Assim, a violência nos acompanha ao
longo do tempo.
Assistimos, a cada dia, ao crescimento de homicídios, agressão física e emocional,
abusos contra a mulher, criança, adolescente e idoso, cenas e situações de violência, seja
nas ruas, nos meios de comunicação de massa, ou no interior das famílias, tornando-se
uma constante na vida das pessoas.
O atual quadro brasileiro da violência é preocupante. A violência está na pauta do
dia, mais presente do que nunca na vida das pessoas; invade suas cidades, famílias,
escolas e suas ruas. Presenciar cenas de violência virou rotina. Diariamente, deparam-se
nos jornais e noticiários com índices de violência alarmantes, principalmente em áreas
com maior pobreza e maior concentração de favelas (Adorno & Cárdia, 2002).
31
Sousa (2001) explica que, “embora perpasse outros segmentos sociais, a violência é
predominante nas camadas mais pobres da população, estando sua severidade fortemente
associada a níveis maiores de pobreza” (p.125).
Neste sentido, Izumino & Neme (2002) advertem para o fato de que, embora muitas
vezes o senso comum vincule o aumento da criminalidade ao crescimento da pobreza,
não podemos negar o fato de que o empobrecimento de certas camadas da população é
decorrente de um crescimento econômico desordenado e da distribuição desigual de
renda, configurando um cenário favorável ao desenvolvimento da violência ligada à
delinqüência, como centro das relações sociais (Nascimento, 1999). Quando fazemos a
distribuição espacial desse tipo de violência, encontramo-la de forma bem mais clara e
ampla na periferia e nos bairros que a compõem e, de imediato, estabelecemos uma
correlação entre pobreza e violência, sendo a pobreza como causa, pelo que ela contribui
para a violência. Com efeito, procuramos sustentar essa correlação dentro de uma noção
sociológica de desigualdade socioeconômica e podemos pensar também nas diferenças
sociais que nos possibilitam fazer a correlação entre pobreza e violência, verificando o
aspecto da cultura e da etnia, que comentaremos à frente.
Saffiotti (1997) declara que existe toda uma ideologia que sustenta uma vinculação
perversa entre pobreza e criminalidade, embora comungue com a idéia de que uma alta
taxa de desemprego contribui para aumentar o número de furtos e roubos, o que se torna
diferente de afirmar que miséria é causa da criminalidade. A autora completa suas
palavras afirmando que não há estudos que provem que a violência é mais praticada por
pobres do que pelos ricos, até porque os dados sobre violência são imprecisos, não
32
articulam dados com classe e gênero, ou com classe, gênero e etnia e não são separados
por faixa etária.
Do ponto de vista teórico, é de suma importância considerar não só o aspecto de
classes sociais, mas também de raça/etnia/gênero até para que possamos desmistificar
crenças preconceituosas, pois “o imaginário social, carregado de conteúdos da ideologia
de classe/raça/gênero hegenômica, pinta o retrato do marginal com as características das
categorias sociais dominadas/exploradas, ou seja, oprimidas” (Saffiotti, 1997, p. 144). É
necessário ressaltar, porém que esse imaginário
9
não predomina em todos os estratos
sociais, mas, principalmente, entre os mais ricos e os mais pobres.
Relacionar pobreza e violência justifica a violência cometida por parte de policiais e
grupos de extermínio dentro de uma lógica mascarada de que, para acabar com a
criminalidade e a violência, é necessário eliminar e / ou punir/ o criminoso
10
.
Deste modo, observamos que a violência se manifesta em todos os estratos sociais,
público ou privado, e apresenta-se como um fenômeno multifacetado, que atinge não só a
integridade física, mas também a inteireza emocional e simbólica de pessoas e/ou grupos.
Hoje podemos evidenciá-la em situações que “passavam anteriormente por práticas
costumeiras de regulamentação das relações sociais” (Abramovay, et all, 2002, p. 27)
como a violência intrafamiliar contra a mulher, crianças e jovens e a violência simbólica
contra grupos sociais.
9 Segundo o conceito de Castoriadis (1982), o imaginário é quando queremos falar de uma coisa “inventada”, ou de um deslocamento,
de um deslocamento de sentido, onde símbolos já disponíveis são investidos de outras significações que não suas significações
“normais” ou “canônicas” (p.154).
10 De acordo com Saffiotti (1997), os dados de uma investigação sobre homicídio doloso de crianças de 0 a 11 anos, no ano de 1990,
feita pelo Núcleo de Estudos da Violência de São Paulo, estimou-se em 2700 mortes de crianças, o que equivale a 2,7 crianças
assassinadas por dia.
33
Dando prosseguimento à nossa discussão, apresentamos de forma breve algumas
questões considerando a violência um fenômeno social, que expressa padrões sociais e
contribui para novas formas de sociabilidade na sociedade.
A violência pode ser pensada dentro de um novo paradigma, principalmente a partir
das conquistas democráticas efetivadas pelos movimentos sociais desde 1970, que
reivindicaram, além dos direitos políticos, direitos humanos e sociais, e com isso
contribuíram para maior visibilidade do fenômeno. Ações que antes passavam
desapercebidas e não eram consideradas violentas, com o reconhecimento dos direitos
humanos e sociais, passaram a ter a visão global da coletividade, e se configuram como
ações inaceitáveis. Temos, como exemplo, o abuso dirigido às mulheres e crianças
ocorridos dentro da família, a discriminação de negros e homossexuais, dentre outros
(Wailselfisz, 1998).
A exposição desse autor a esse respeito é bastante apropriada:
As transformações na natureza do social, na percepção dos
direitos humanos, levam a uma nova conceitualização da
violência, que passa a englobar uma série de
manifestações.Atos de violência apresentam-se não apenas
como crimes, roubos, delinqüência, mas nas relações
familiares, nas relações de gênero, na escola, nos diversos
aspectos da vida social (p.149).
Noel e Yam (1992, p.871, citados por Gonçalves, 2001) defendem a noção de que
historicamente “a visibilidade da violência doméstica na sociedade está relacionada às
reformas que fizeram as mulheres ultrapassarem a esfera doméstica, alcançando o espaço
público”. O Movimento Feminista no século XIX e seu retorno nos anos 60 revelou
“preocupações com relação à violência familiar e especificamente denunciaram o abuso
de crianças e o espancamento de mulheres como problemas relevantes” (p.94).
34
Então, a violência não é um fenômeno natural inerente à natureza humana, mas está
atado à forma de organização social, que é historicamente estruturada (Oliveira, 2001).
Adorno (1988, citado por Guerra 1998), a este respeito, sinaliza que (...) “a violência é
uma forma de relação social; está inexoravelmente atada ao modo pelo qual os homens
produzem e reproduzem suas condições sociais de existência” (p.31).
Nesse sentido, a violência expressa padrões sociais, modos de vida, modelos de
comportamentos vigentes em uma sociedade, em um determinado momento de seu
processo histórico. Cada período histórico inaugura seus modos de sociabilidade e suas
formas de relação.
Não poderemos falar de uma forma geral de violência, mas, de outro modo, de
múltiplas violências, situadas cada uma num contexto e numa relação (Faleiros, 1998).
Compreender o fenômeno da violência genericamente, sem que ela esteja contextualizada
num processo sócio-histórico, implicará limites, pois acreditamos que tal fenômeno não
acontece de forma individual, mas é gestado no interior das relações sociais.
Deste modo, para compreendermos a violência, temos que partir da sociedade que a
produz (...) “porque ela se nutre dos fatos políticos, econômicos e culturais, traduzidos
nas relações micro e macrossociais” (Minayo, 2003, p.25). Entendendo a violência
nutrida também pela cultura da globalização, vemos o surgimento da chamada “cultura da
violência” (Almeida, 2002, Espinheira, 2001, Goirand, 2001).
Almeida, (2002), a esse respeito, comenta que a cultura da violência e do terror
penetra os “espaços mais íntimos aos mais coletivos da vida social, o que torna esta
cultura o solo no qual se enraíza uma das formas de sociabilidade dominantes no mundo
contemporâneo” (p.46).
35
No que tange à sociabilidade e violência, vários autores demonstram suas
preocupações com essa nova forma de interação que passou a predominar nas grandes
cidades (Almeida, 2002; Espinheira, 2001; Fraga, 2002; Minayo & Sousa, 1997; Silva,
2002; Silva, 1999; Waiselfisz, 1998).
Discutindo sobre sociabilidade e cultura da violência, Espinheira (2001) nega a
idéia de uma ‘cultura da violência’, em seu estudo sobre Sociabilidade e violência na vida
cotidiana em Salvador, mas privilegia a expressão ‘condição de violência’ atrelada à
urbanização da violência. As hipóteses do autor abrangem as situações de vida das
pessoas ou grupos em duas direções: a primeira, a violência é necessária e instrumental,
decorrente da marginalidade e exclusão. É a violência como necessidade para
determinados indivíduos ou grupos que não têm condições de realizar seus projetos.
Deste modo, para realização desses, não vêem outro caminho, senão mediante a execução
de ações transgressoras e criminosas. Além disso, também não dispõem de possibilidades
– habilidades – para o trabalho e “internalizam a disposição para a violência como meio
de sobrevivência, agressividade necessária para superar agressões, medo e frustrações no
cotidiano de vida (p.10).
A outra direção sobre a violência em relação às condições de vida situa-se como a
violência desnecessária, sendo aquela que se manifesta por via da intolerância, decorrente
de motivos fúteis, e resulta em crimes e eliminação do outro. Neste caso, o valor da vida
para essas pessoas ou grupos é insignificante e, por mais que as suas ações os situem em
risco, é a única forma de poderem realizar seus objetivos, desejos e aspirações.
Essa forma de violência, a desnecessária, Espinheira (2001) situa no plano cultural,
descrevendo que ela é expressa na diversão, no lúdico e na festa, da qual os jovens são as
36
maiores vítimas: cerca de 41%. Eles clamam por satisfazer as necessidades corriqueiras e,
nesse contexto, o dinheiro tem um significado especial para proverem-se de alimentação,
lazer, vestuário, transporte, educação e outras necessidades cotidianas nas quais o
dinheiro tem importância. As condições existentes, em nossa sociedade, de um grande
número de jovens são dramáticas e adversas: privações, humilhações e agressões e muitos
avaliam que nada têm a perder, de que vão se vingar do que a vida fez com eles
(Espinheira, 2001).
Nesse contexto, as práticas transgressoras muitas vezes são utilizadas como única
saída para a obtenção de recursos e “são formas culturais de resistência social à exclusão,
agressividade, no sentido da inclusão, da participação efetiva, do sentar junto, do
compartilhar as emoções” (Espinheira 2001, p.11).
Essas duas abordagens do problema da violência urbana enfatizam as desigualdades
sociais e econômicas, a discriminação das diferenças, como decorrentes da urbanização
da violência, constituída pelas condições sociais. É como uma resposta social que se
expressa em muitas ações e direções, constituída por situações sociais precárias de
indivíduos ou grupos, bem como condições de abandono, de privações e humilhações,
que contribuem para uma nova sociabilidade, um novo jeito de viver.
Para Espinheira (2001), a violência está relacionada à negação de um referencial
civilizatório, a mecanismos de coesão social, a uma sociabilidade junto a possibilidades
de execução de projetos de vida, pois frustrações e obstáculos nessa direção
desencadeiam ações violentas. Assim, é necessário pensarmos nas condições de vida “em
que os indivíduos jogam com possibilidades de escolha ou vivem a determinação de
37
situações que os aprisionam a um modo de ser, e desse modo, não têm poder de decisão”
(p.14).
A pesquisa de Espinheira sinaliza para a importância de pensarmos sobre a
urbanização da violência e mostra que esta também está atrelada às condições que os
indivíduos estão submetidos, “particularizando modos de ser, de sentir e de resolver
problemas que se apresentam na vida cotidiana” (Espinheira, 2001, p.3).
Além do estado precário e indigno em que os sujeitos estão envolvidos, a violência
apresenta-se para esses como palco no qual transitam todos os moradores e que, de
alguma forma, são circundados por várias expressões da violência, contribuindo para uma
barbárie urbana. “Não se trata, pois de situar a violência como um componente intrínseco
à natureza humana, mas às condições sociais que desumanizam, que embrutecem”
(Espinheira, 2001, p.13).
Dando continuidade à nossa discussão, apresentaremos na seção subseqüente
algumas questões referentes à violência intrafamiliar, considerada por nós, como um dos
grandes problemas sociais.
4.3. Violência intrafamiliar: conceitos e notificações
Hoje, a violência intrafamiliar situa-se como um dos sérios problemas sociais que
mobiliza várias organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas, o
Comitê de Conselhos de Ministros da Europa, a Organização dos Estados Americanos,
dentre outras, todas dispostas a promover encontros e debates no sentido de discutirem
políticas públicas para o enfrentamento dessa questão e suas principais manifestações: na
criança e na mulher (Keltai, 2003).
38
Ao nos referir ao problema social da violência que atinge mulheres, jovens, crianças
e idosos, emergem questões a respeito do uso de termos que são utilizados na literatura
especializada da área, não havendo consenso entre os autores. A seguir, descreveremos
algumas expressões empregadas por alguns autores na literatura que fazem referência a
esse tipo de violência.
Encontram-se as expressões violência de gênero, que se refere a todas as formas de
perpetuação do sistema de hierarquia, principalmente imposto pela cultura patriarcal com
o objetivo de manter a subordinação do gênero masculino hegemônico; violência
doméstica, que se relaciona a uma das formas da violência de gênero que tem lugar no
espaço doméstico; não se refere somente ao espaço físico da casa, do domicílio. O espaço
doméstico é delimitado pelas interações em contextos privados, associando-se com uma
relação de noivado, de casal com ou sem convivência ou os vínculos com os descasados.
E, por último, a expressão violência familiar ou violência intrafamiliar, que se refere a
todas as formas de abuso de poder que acontecem no contexto das relações familiares
(Corsi, 2003).
Na perspectiva de Araújo (2002), também há especificidade desses termos. A
violência intrafamiliar é aquela ocorrente na família e que envolve parentes que vivem
ou não sob o mesmo teto. A violência doméstica não se limita à família, mas envolve
todas as pessoas que convivem no mesmo espaço doméstico, tendo essas ou não laços de
parentesco. E a violência contra a mulher, embora ocorra freqüentemente no espaço
doméstico e familiar, não se restringe a esse.
39
Guerra, (1998), referindo-se à violência doméstica
11
, diz que essa
(...) representa todo ato ou omissão praticado por pais,
parentes ou responsáveis contra crianças/adolescentes que -
sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico
à vítima - implica, de um lado, uma transgressão do
poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma
coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que
crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e
pessoas em condição peculiar de desenvolvimento (p.32).
Este conceito nos parece satisfatório, pois a autora enfatiza vários tipos de violência
perpetradas contra crianças e adolescentes, a especificidade do desenvolvimento desses
grupos e faz alusão aos direitos garantidos pelo ECA – Estatuto da Criança e do
Adolescente – de serem tratados como sujeitos
Na literatura, constam várias classificações para o fenômeno da violência
intrafamiliar. Adotaremos em nosso trabalho, porém, o conceito utilizado por Shrader &
Sagot (1998, citado em Ribeiro, 2001) que consideram violência intrafamiliar
Toda ação ou omissão que prejudique o bem estar, a
integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao
pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode
ser cometida dentro e fora de casa por algum membro da
família, incluindo pessoas que passam a assumir função
parental, ainda que sem laços de consangüinidade, e em
relação de poder à outra. (...) não se refere apenas ao espaço
físico onde a violência ocorre mas também às relações em
que se constrói e efetua (p.15).
Em Violência intrafamiliar – orientações para a prática em serviço (Ministério da
Saúde, 2002), são apontados os tipos de violência intrafamiliar, dentre os quais elegemos
o conceito de violência física para este trabalho.
11 Entendemos que a autora se refere a termo violência doméstica contra criança e adolescentes no mesmo sentido de violência na
família, embora se limite aos autores, parentes ou responsáveis contra crianças/adolescentes e não se refere ao domicílio dessas pessoas.
40
violência física (tapas, empurrões, socos, mordidas, queimaduras, cortes,
dentre outras);
violência sexual (carícias não desejadas, penetração forçada, com pênis ou
objetos, exposição a material pornográfico, exibicionismo ou masturbação
forçados etc);
violência psicológica (insultos, humilhações, desvalorização, chantagem,
ridiculização, isolamento de amigos e/ou familiares,negligência _ atos de
omissão a cuidados e proteção contra agravos evitáveis como situações de
perigo, doença, etc.;
violência econômica ou financeira (roubo, destruição de bens pessoais,
etc.);
violência institucional (várias formas de violência dos direitos, exercida
por ação ou omissão dos serviços públicos).
No caso do Brasil, Minayo (2002) nos aponta algumas formas e expressões de
violência, dando ênfase à criança e ao adolescente. Existem a: violência estrutural –
incidente sobre as condições de vida da criança e do adolescente, partindo de decisões
histórico-econômicas e sociais e que situam essas populações em condições de
vulnerabilidade em relação ao seu desenvolvimento e crescimento; violência doméstica –
seria a violência praticada contra a criança e o adolescente na esfera privada; e a violência
infanto-juvenil, que a imprensa nos evidencia com o nome de delinqüência infanto-
juvenil, transgressões feitas por crianças e jovens. Embora esse tipo de violência apareça
em todas as classes sociais, essa aflora freqüentemente associada à questão de classe,
41
sendo atribuída aos pobres e a meninos e meninas que perambulam ou trabalham nas
ruas. Esse tipo de violência pode ser articulado à violência estrutural.
Minayo, ainda, especifica a violência familiar
12
acometida contra a criança:
Violência física, é o uso da força física contra a criança e
o adolescente causando-lhes desde uma leve dor, passando
por danos e ferimentos de média gravidade, até a tentativa
ou execução do homicídio (p.103); violência sexual
configura-se como todo ato ou jogo sexual, relação hetero
ou homossexual entre um adulto (ou mais) com uma
criança ou adolescente, tendo por finalidade estimulá-los
sexualmente e obter estímulo para si ou outrem (p.104);
violência psicológica ocorre quando os adultos
sistematicamente depreciam as crianças, bloqueiam seus
esforços de auto-estima e realização, ou as ameaçam de
abandono e crueldade (p.105); negligências (...)
representam uma omissão em relação às obrigações da
família e da sociedade de proverem as necessidades físicas
e emocionais de uma criança (Minayo, 2002, p. 106).
Embora seja uma tarefa difícil separar as diferentes formas de violência que
acontecem no espaço familiar, é importante e facilita o estudo do fenômeno. Costuma-se
classificá-las em violência física – aquela que é cometida diretamente no corpo da vítima
– e violência psicológica – a que visa a ofender, reprimir, humilhar etc, a vítima.
Não há como estabelecer, no entanto, uma distinção rigorosa entre os dois tipos, já que
não raro elas aparecem de forma simultânea. Por exemplo, quando a mãe comete
violência física com uma criança juntamente com palavras rotuladoras e adjetivos que
descrevem a criança pejorativamente, a insultam e humilham, não se trata apenas de
violência física, mas também psicológica (Scodelario, 2002). Vemos ainda que “uma
vítima de violência psicológica pode somatizar, ou seja, o corpo aparece como território
42
do ato violento mesmo quando seu espaço material não tenha sido literalmente invadido”
(Sluzki, 1996, p.230).
Diante do exposto, podemos perceber que a violência familiar é um fenômeno de
larga amplitude e variabilidade de manifestação, sendo, muitas vezes, difícil isolar um
tipo de violência. Vimos há pouco, inclusive, tipos de violência que ultrapassam o
contexto familiar ou doméstico.
Nesse contexto, ao pensarmos na criança vitimizada pela família, estamos diante de
uma forma de violência a que se refere Bourdieu (1999) – a simbólica – quando impõe a
violência física como forma eficaz de educação, fazendo os dominados aceitarem as
regras e sanções sem serem capazes de conhecer as regras de direito ou morais
(Vasconcelos, 2002)
De acordo com dados de Vecina & Silva (2002), 69,64% de violência física têm por
agressor pessoas do núcleo familiar. Sendo assim, a proposta de pesquisa aqui delimitada
reflete o lugar de destaque que a violência intrafamiliar ocupa entre as demais.
Vemos que o fenômeno da violência intrafamiliar atinge uma parcela significativa
da população no Brasil, incidindo principalmente na criança. Isso traz graves
conseqüências não somente para o desenvolvimento desta, mas também para o seu
exercício da cidadania e respeito aos seus direitos, o que afeta o desenvolvimento
econômico e social de nosso País. Este fato tem chamado a atenção de pediatras,
traumatologistas, psicólogos, pesquisadores, educadores, enfim, da sociedade, que
12 A autora utiliza o termo violência doméstica para referir-se à violência exercida contra a criança e o adolescente na esfera privada do
domicílio.
43
pressiona o Estado e a mídia por uma maior visibilidade do fenômeno verificado
mediante de denúncias, ocorrências e inquéritos.
Segundo Azevedo & Guerra (2000), temos dois processos de fabricação da criança
–vítima, caracterizando as várias formas de violência por elas sofridas em nossa
sociedade: o primeiro é o processo de “vitimação” e o segundo processo é o de
“vitimização”. Passeti (1999, citado por Barros & Suguihiro, s/d), utiliza o termo
44
de estereótipos e preconceitos relacionados a esse segmento (Barros, & Suguihiro, s/d).
O segundo processo é o de “vitimização”, – vocábulo também não dicionarizado –
cuja resultante são as que denominamos ‘crianças em estado de sítio’ ”(Azevedo &
Guerra, 2000, p.26). Esse processo, decorrente das relações interpessoais, pressupõe o
abuso de um adulto que produz dano físico ou psicológico à criança. Tais processos não
são excludentes, podendo uma criança ser vitimada e vitimizada ao mesmo tempo.
As autoras Barros, & Suguihiro (s/d) concordam que a expressão “vitimização”
usada por Azevedo é pertinente, pois “alcança uma dimensão mais concreta, abrangendo
as relações proximais da realidade da criança, detectadas principalmente em suas casas e
escolas” (p.6). Fazem uma crítica ao termo vitimizado, pois Azevedo e Guerra utilizam o
verbo no particípio, cristalizando-o, evidenciando como algo estanque e estável, não
sendo passível assim, interferência. Também demonstram a viabilidade do termo
vitimizado quando postulam que “parece ser o termo mais adequado quando se analisa a
violência não como um desajuste, mas como um processo de caráter transferencial da
prática que resulta em um violentador que antes fora violentado (p.6). Na verdade, como
já nos referimos, esses termos não possuem registros na língua portuguesa, motivo porque
os empregamos em itálico.
De lado, o problema lingüístico, no entanto, percebemos que a expressão, como
quer conotar, privilegia a passividade do sujeito no que se refere aos acontecimentos de
sua história (pregressa), impedindo-o de modificar o seu presente e devir (Barros, &
Suguihiro s/d).
As autoras enfatizam que o vocábulo utilizado por Passeti para designar crianças e
adolescentes em situação de violência – violentados – torna- se apropriado dando um
45
caráter mais dinâmico. “Violentador, conjugado no infinitivo só pode ser utilizado no
cerne da relação que se instala entre aquele que emprega a violência e sobre aquele ao
qual ela incide, abarcando, nessa concepção, o homem como ser ativo, social e histórico e
a intervenção é possível” (Barros, & Suguihiro s/d,p.6.).
Caracterizando um pouco os dados de violência intrafamiliar envolvendo as
crianças vitimizadas de zero a quatorze anos, na cidade de Porto Alegre, foram
identificados (Amencar, citado por Ministério da Saúde, 2002) 1754 casos, sendo 80%
desses com ocorrência dentro de casa. Apenas, 263 delas, porém, receberam alguma
forma de tratamento. Vemos que de três entre cada dez crianças de zero a doze anos
sofrem algum tipo de abuso cometido por pais, padrastos ou parentes (Silva, 2002).
Levantamentos feitos pelo Laboratório de Estudos da Criança e do Adolescente, –
LACRI – da Universidade de São Paulo – USP demonstraram que houve aumento
significativo de notificações de 1996 a 2000, principalmente em relação à violência física
e sexual no Brasil. Na modalidade da violência física intrafamiliar, temos, em 1996, 525
casos de denúncias e, em 2000, 4330; já na violência sexual, houve em 1996, 95 casos e
em 2000, 978 casos denunciados (Azevedo, 2002).
No Rio Grande do Norte, de acordo com dados da FUNDAC
13
/ S.O.S CRIANÇA,
as denúncias de violência contra a criança e adolescentes, de acordo com a faixa etária,
foram as seguintes: de 0-18 anos: 2003 - 305 espancamentos e 801 maus-tratos; 2004 -
13 Fundação Estadual da Criança e do Adolescente.
46
320 espancamentos e 952 maus-tratos
14
. De acordo com a estatística fornecida pela
instituição, temos como agente violador em primeiro lugar a mãe, seguida pelo pai.
Um levantamento sobre a violência intrafamiliar realizado por um grupo de
professores da Universidade Católica de Brasília – UCB enfoca as mulheres, as crianças e
adolescentes como vítimas de violência, enquanto o homem tem sido, em geral,
identificado como o “algoz” e agressor da mulher e seus filhos no âmbito da família
15
.
Ele, no entanto, também pode ser vítima, como mostra um estudo realizado em
Brasília/DF, por Rodrigues (citado por Ribeiro, s/d)
16
.
Além da violência intrafamiliar contra a criança, mulher e o homem, uma das
formas mais cruéis desse tido de violência é a perpetrada contra as pessoas idosas.
Lobo (2004) comenta sobre um estudo realizado em 1997 pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – INPEA e pela Organização Mundial de Saúde – OMS em quatro
estados brasileiros (Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Paraná). Trata-se de uma
pesquisa sobre a percepção que o idoso tem do que são maus-tratos. O resultado foi que
os idosos percebem os abusos como forma preconceituosa de como são tratados pela
sociedade em geral e o abandono por parte das famílias
17
.
A quantidade de denúncias e registros de violência no âmbito da família leva-nos a
questionar se esses números refletem o aumento da violência em si ou uma consciência
14 A Instituição considera maus-tratos, uma negligência propositada, em que há uma intenção por parte do abusador (a), e estão ligados
ao não- cumprimento das responsabilidades cabíveis ao genitor ou responsável e o espancamento é, quando existe lesão corporal.
15 Não são apenas as crianças vítimas da violência, mas as mulheres também. Em Natal, segundo as estatísticas da Delegacia
Especializada em Defesa da Mulher, 70% das denúncias referem-se a lesões corporais e ameaças de morte. De acordo com os relatórios
de boletins de ocorrência dessa delegacia de 2001 a 2003, ocorreram 11.806 denúncias.
16 Para maiores esclarecimentos, vede Ribeiro (2004).
17 Em quatro meses, o SOS idoso do Distrito Federal recebeu 267 denúncias de maus- tratos contra o idoso. Mais detalhes, ver em
Lobo (2004, p.2).
47
maior sobre o abuso e uma mudança na percepção popular do que é o fenômeno, como
anotam Emery & Laumann-Bellings (citado em Ribeiro, 2001). Há também uma menor
tolerância social frente ao fenômeno da violência, no entanto, isso não significa que sobre
esse fato estejamos numa situação satisfatória mas que as denúncias representam somente
a ponta de um iceberg
18
.
De acordo com um estudo feito nos Estados Unidos pelo U.S. Departament of Healt
and Human Services (1981, citado por Fuscher 2002),
19
muitas das denúncias de abusos
familiares feitas eram arquivadas por não serem consideradas suficientemente sérias.
Com essa justificativa, arquivaram-se nada menos do que 39% das denúncias. O que
chamou a atenção nesse estudo, porém, foi que esses casos arquivados foram todos
reconhecidos como maus-tratos. Para nós, esse resultado demonstra a relatividade que
existe no julgamento do ato e que este fato contribui para sua invisibilidade.
Do ponto de vista histórico, a dificuldade para compreender e reconhecer a
violência presente na família tem sido estruturada a partir de dois processos básicos
citados por Corsi (2003): a invisibilização e a naturalização.
A respeito do primeiro processo, consideramos que a visibilidade de um fenômeno
depende de uma série de fatores que vão determinar a percepção social. Para que um
objeto seja visível ou invisível temos que verificar duas condições fundamentais: se o
18 Esta metáfora do iceberg utilizada por Fuscher (2002) reflete as diferenças entre os dados de incidência registrados e a incidência real
estimada. De acordo com o autor, as denúncias oficiais representam somente uma mínima parte do problema da violência familiar em
nossa sociedade, pois a maior parte dos casos desse tipo de violência não seriam nem institucionalmente nem socialmente visíveis, mas
ficariam abaixo da ‘linha de flutuação do iceberg’. Para o autor, levando em consideração esta imagem comum os tipos de violência
familiar, em que só se conhece uma pequena parte desta violência, a visibilidade da violência familiar ainda é extremamente reduzida.
19 Os resultados desse estudo revelaram também suspeitas de um grande número de casos de abusos por diferentes instituições, como,
por exemplo, escola e hospitais, que não haviam sido denunciadas.
48
objeto tem inscrições materiais que o tornem perceptível e que o observador disponha de
ferramenta e instrumentos necessários para percebê-lo.
Neste sentido, se formos ver o percurso da história a respeito das ações violentas, os
estudiosos (Henry Kempe, 1960; Lenore Walker, 1970, citados por Corsi, 2003) somente
consideravam os danos materiais produzidos pela violência física. Assim, vemos que as
primeiras referências sobre o problema da violência familiar utilizaram uma terminologia
que se referia exclusivamente ao abuso físico. Na perspectiva do observador, a
invisibilização da violência familiar está diretamente relacionada à ausência de
ferramentas conceituais que permitirem identificar e recortar o fenômeno como objeto de
estudo (Corsi, 2003).
Corsi nos relata que um dos maiores obstáculos que encontramos ao longo da
história da visibilidade da violência intrafamiliar reside na noção de ‘família’. Sabemos
que, durante muito tempo, associar as palavras família e violência representava um
paradoxo incompreensível, já que a violência quase sempre é associada ao espaço
público, e a família é um lugar privado por excelência, além de ser um espaço idealizado
de segurança, afeto e estímulos positivos.
Essa visão da família como algo sagrado dificultou e retardou em muitos anos a
possibilidade de podermos enxergar a família também como lugar de insegurança,
violência e como instituição violadora dos direitos humanos, dificultando assim sua
denúncia e visão pública
20
.
20 Apesar de ter sido antecipado esse ponto sobre a família, retomaremos com maior profundidade ao assunto no momento oportuno.
49
O segundo processo citado por Corsi (2003) é complementar, que é a naturalização
da violência, e se apóia em algumas elaborações culturais de significados que atravessam
e estruturam nosso modo de perceber a realidade, como as concepções acerca da infância
e do poder adulto, os estereótipos de gênero, a homofobia cultural, a concepção acerca do
bom (nós) e do mal (os outros).
Todas essas ideações são apoiadas por eixos conceituais: a estruturação de
hierarquias e a discriminação dos diferentes. Temos, como parâmetros culturais de
normalidade, o homem adulto de raça branca e heterossexual. Então, a violência contra
mulheres, crianças, idosos, minorias sexuais e étnicas é justificada como um modo de
exercer controle sobre tudo aquilo que foge do padrão vigente. Assim, o uso da força é
legitimado pelo exercício do poder, que transforma a violência contra esses grupos em
algo natural, dentro de uma lógica social e cultural do poder.
Cabe-nos perguntar: que condições particulares, individuais ou coletivas podem
favorecer a prática da violência intrafamiliar ou sua perpetuação?
Um dos motivos que faz com que o ciclo da violência seja alimentado é a
impunidade. “A desqualificação do delito de tentativa de homicídio para lesão corporal
dolosa ou desta para a ameaça, sempre com penas mais suaves a serem cumpridas, é fator
freqüente e perpetuante do ciclo violento”(Rechtman & Phebo, s/d, p.8 ). A lentidão da
Justiça, o silêncio das famílias e o tratamento da discriminação por que passam as vítimas
também auxiliam na perpetuação do ciclo.
Para Corsi (2003), existem alguns fatores de risco associados aos diversos tipos de
violência intrafamiliar, os quais são apresentados em três níveis.
50
No primeiro nível encontram-se os fatores de risco com eficácia causal primária,
que são aqueles constituídos, principalmente, por aspectos culturais e educacionais e
sobre os quais se baseia a violência, de forma naturalizada, nas relações de poder
interpessoal, por exemplo, crenças culturais as quais definem que os pais são donos de
seus filhos, uso do castigo como método pedagógico no sistema educativo, etc.
No segundo patamar temos os fatores de riscos associados; não se constituem de
elementos causais para a violência, mas sua presença aumenta a probabilidade de sua
ocorrência e da gravidade de sua manifestação. Aqui, temos como exemplos fatores
estressantes (econômicos, conjugais etc.), falta de suporte familiar e social, uso de álcool
e drogas.
No terceiro estádio, registram-se os fatores que contribuem para a perpetuação do
problema, aqueles que, derivados do funcionamento das instituições, dificultam sua
identificação prematura e uma resposta eficaz a esse; por exemplo, falta de capacidade
dos profissionais de saúde e de educação, ausências de redes comunitárias e de apoio.
Com efeito entendemos que, apesar de algumas conquistas nas áreas política e
jurídica, a violência intrafamiliar continua presente e se conserva também pela
impunidade dos agressores, muitas vezes, em razão do silêncio dos envolvidos (vítima,
agressor), dos parentes, dos profissionais que atuam na área, e em virtude da ineficácia
das políticas sociais de intervenção e prevenção (Araújo, 2002).
Diante do exposto, é necessário averiguarmos mais diretamente desde quando o
fenômeno da violência intrafamiliar passou a ser preocupação da sociedade e objeto de
estudo, tópico que será discutido na próxima seção, juntamente com uma discussão sobre
as conseqüências desse fenômeno.
51
2.4. Violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente: histórico e
conseqüências.
A existência da violência intrafamiliar física contra a criança tem sido uma
preocupação de estudo. Sabe-se que esta foi mencionada em vários escritos:
(...) nos provérbios bíblicos: “aquele que poupa a vara, quer
o mal do seu filho; mas o que o ama, corrige-o
continuamente" 13:24;em relatos históricos, por exemplo:
A história social da criança e da família, de P. Ariès, Casa
grande e senzala, de Gilberto Freire, Los Ninõs olvidados;
relaciones entre padres y hijos de 1500 a 1900, de Pollock,
Ordem médica e norma familiar, de Jurandir Freire Costa e
The history of childhood, de De Mause; e mesmo na
literatura internacional, por exemplo: Os irmãos
Karamazov, de Dostoievsk, os miseráveis, de Vitor Hugo,
Carta ao pai, de Kafka, e nacional, por exemplo: o meu pé
de laranja lima, de J. M. Vasconcelos, Infância, de
Graciliano Ramos, Menino de engenho, de José Lins do
Rêgo, Negrinha, de Monteiro Lobato, O mito da infância
feliz, de F. Abramovich e “Nota” de Cora Coralina (citado
por Sousa, 2001, p. 15).
Estes escritos ilustram a presença da violência intrafamiliar que os pais ou
responsáveis infligem às suas crianças e adolescentes, geralmente justificada e defendida
como recurso de proteção
21
e como tentativa de disciplinamento.
Ainda hoje vemos nos jornais e revistas notícias que focalizam a violência física de
pais contra a criança. Entretanto, de acordo com Guerra (1998), este fenômeno torna-se
objeto de estudo em 1860, na França, quando o presidente da Academia de Medicina de
Paris, o médico legista Ambroise Tardieu, publicou Étude médico-legale sur les sevices et
mauvais traitements sur des enfants, criou o conceito de criança maltratada ao constatar a
52
presença de fraturas, hematomas, queimaduras (dentre outros) em um estudo que realizou
com 32 crianças vitimizadas pela família, na qual dezoito foram a óbito. Nesse trabalho,
havia a preocupação não só com a violência contra a criança ocorrida no espaço familiar,
também a outros fatores incluindo a ordem pública (Gonçalves, 2001).
Nesta época, a pesquisa do Dr. Tardieu não teve repercussão científica, pois seus
trabalhos emergiram num contexto de grande conservadorismo em termos de idéias sobre
a infância e a família, no qual essa última tinha que ser preservada e a criança, nesse
âmbito, vivia em constante submissão.
Assim, em decorrência do estado sócio-político da época, a importância do
fenômeno como estudo científico ocorreu somente 100 anos depois, em 1962, nos
Estados Unidos, quando os Drs. Kemp e Silvermann conceituaram o fenômeno da
violência física contra a criança de síndrome da criança espancada. Esse trabalho trouxe
repercussões internacionais. Em 1975, esta síndrome foi classificada pela Organização
Mundial de Saúde (OMS), na Classificação Internacional de Doenças (CID), que
influenciou a criação de uma legislação americana em termos de notificação,
representando um grande avanço na preservação à vida e aos direitos da infância (Guerra,
1998).
Fontana, médico em 1971, amplia o conceito de Kemp e Silvermann, criando o
conceito de síndrome dos maus-tratos e postula a idéia de que, para a ocorrência do
fenômeno, bastava haver privações de natureza emocional, nutricional, negligência e
abuso, sendo o espancamento o último grau da síndrome (Couto, 2004).
21 Ver trabalho de Gonçalves, (2001).
53
No Brasil, o primeiro ensaio sobre o tema ocorreu em 1973. Referia-se à descrição
de um caso de espancamento, publicada por professores da Faculdade de Ciências
Médicas da Santa Casa de São Paulo. Nessa direção, em 1984, foi publicado o primeiro
livro sobre o assunto – Violência de pais contra filho – procura-se vítimas – da Dra.
Viviane N. de Azevedo Guerra (Ferreira, 2002).
Desde então, muitos outros estudos foram publicados em nosso País sobre o tema,
juntamente com a criação de espaços que objetivavam denunciar e encaminhar os casos
de violência praticada por pais ou responsáveis contra seus filhos, como o Laboratório de
Estudos da Criança – LACRI – (USP – SP), o Centro Regional de Atenção aos Maus-
Tratos – CRAMI – (Campinas – SP), o Centro de Combate à Violência Infantil –
CECOVI – (Curitiba – PR , dentre outros).
Podemos observar, nesta breve retrospectiva histórica, a evolução do conceito de
violência física intrafamiliar, que, no início de sua socialização via MCS (Meios de
Comunicação Social), compreendia apenas severas formas de abusos. Atualmente os
estudiosos mais modernos repudiam qualquer forma de abuso, inclusive a chamada
palmada. Esta evolução deve-se a uma grande caminhada na desconstrução de mitos
22
,
que vão cedendo lugar à cidadania de nossas crianças e adolescentes, que passaram a ser
vistos como sujeitos de direitos.
As conseqüências da violência em crianças e jovens viriam segundo o (os) tipo(s)
de violência(s) que eles sofrem, o tempo que estiveram submetidos à agressão, o acúmulo
22 É válido mencionar como principais mitos em relação à violência na família: mitos da perfeição familiar mito do amor natural dos
pais, do fator econômico como causa da violência doméstica, religioso, das estatísticas (Couto, 2004).
54
de situações de risco, os atributos pessoais e o suporte social de que dispõem
(Assis,2002).
Na mesma direção, Ferrari (2002) expressa o argumento de que as conseqüências da
violência na infância e adolescência dependem da idade da pessoa agredida e da que
agride, do tipo de relação entre elas, da personalidade da vítima, da duração e da
freqüência da agressão, do tipo de gravidade do ato e da reação do ambiente.
Sobre as conseqüências psicológicas, que nos interessa diretamente, é fácil referi-las
em seus diversos aspectos encontrados na literatura. Temos algumas conseqüências mais
significativas encontradas nesse tipo de fenômeno como (Guerra, 1998; Corsi, 2003;
Assis, 2002): sentimentos de raiva ou medo quanto ao agressor (fatos identificados em
nossa pesquisa), dificuldades escolares, autoritarismo, delinqüência, violência doméstica,
suicídio, parricídio/matricídio, dificuldade em confiar nos outros (fato este ligado
diretamente à auto-estima), depressão, ansiedade, transtorno de conduta e transtornos
alimentares, e, dentre outras, baixa auto-estima, o que será objeto de nossa discussão.
Uma questão relevante a pensar é sobre as conseqüências desse tipo de violência
para o desenvolvimento da criança e a constituição de sua subjetividade, aspecto que
abordaremos na próxima seção. “Esta subjetividade é um dos fenômenos que mais
dificulta a compreensão da forma como a violência afeta o ser humano” (Assis, 2002, p.
117).Um dos fatores importantes para se compreender como a criança sobrevive à
violência é sua relação com os pais ou cuidadores, que é um fator de risco significativo
quando esses não conseguem prover segurança e laços afetivos constante e estáveis.
Outro posicionamento é pensar numa questão anterior aos efeitos e conseqüências
da violência na criança – até porque esses não podem ser vistos de forma linear, pois
55
vários fatores medeiam esse processo – percebendo o fenômeno como um problema de
valor, pois a criança vitimizada é um sujeito de direitos, está em momento especial de seu
desenvolvimento e necessita ser reconhecida como tal.
Outro aspecto que deve ser levado em conta, verificado por Davidson & Smith
(1990, citado por Assis, 2002) em suas pesquisas, é que crianças da pré-escola tendem a
diminuir a verbalização e a ter enurese noturna em resposta à violência. As crianças
escolares, neste caso, demonstram mais agressão do que inibição, desenvolvem queixas
somáticas e dificuldades de aprendizagem como resultado da experiência com a
violência. Foi verificado também, nesse estudo, que os adolescentes ingressam mais cedo
na vida adulta e apresentam comportamentos destrutivos, como uso de drogas,
promiscuidade, delinqüência, dentre outros.
Deste modo, observamos que as crianças que tiveram a experiência de terem sido
vítimas ou presenciaram violência ficam com marcas difíceis de se modificar, que se
estruturam de acordo com a forma como organizam tal experiência (Ravazzola, 1999).
Segundo a autora, quando ocorre, por exemplo, de a criança sofrer ou testemunhar
violência provocada por um membro da família significativo para ela, ou seja, alguém
importante para a criança, provavelmente se sentirá duplamente confusa e afetada,
principalmente se aquele demonstrar comportamentos diferentes: ora ser carinhoso, ora
agente opressor. Isso acarretará um sentimento de desproteção, medo e desconfiança para
com o agressor e outras figuras de autoridade.
Para Salomon (2002) as crianças vitimizadas pela família crescem e tendem a reagir
com duas formas de reação ou oscilar entre elas. Na primeira as crianças podem se voltar
para si mesmas, refugiando-se e abafando sua dor e raiva para aliviar seu sofrimento.
56
Com isso ficam deprimidas, se vêem como malvadas e acham que merecem punição (fato
verificado em nossa pesquisa), são medrosas, ansiosas, possuem baixa auto-estima, não
possuem confiança em si, nem sabem lidar com a vida, possuem pensamentos e práticas
suicidas (mau-trato de si). Na segunda reação, a violência se torna para elas um modo de
vida, pois aprenderam a ter medo das pessoas e evitam se envolver, já que, ao confiarem
no outro (pais), isto resulta no perigo e na dor, prejudicando sua capacidade de fazerem
amizades e se relacionarem amorosamente com alguém.
Quando a situação abusiva é freqüente, a criança poderá acreditar que a violência
que sofre, por exemplo, por parte de sua mãe, é justificada: não é mais do que seu papel,
seu dever; ou, ainda, passa a nem considerar como dano a violência que sofre, pois, em
sua visão, alguém amado não traria danos a ela. Assim, a criança chega a esconder ou até
negar o dano para os estranhos, gradualmente deixa de perceber o dano, não havendo,
então, registro deste evento e passa a acreditar que quem ama não maltrata.
Na mesma direção, Sluzki (1996) postula a idéia de que, quando a violência é
extrema e reiterada (por exemplo, crianças que experienciam cotidianamente a violência
física na família), o efeito é o embotamento psíquico, ou seja:
(...) um viver sem passado e sem futuro, desconectado dos
próprios sentimentos, em submissão e, freqüentemente, em
empatia com ou identificação com o agressor (...) esse
último efeito possui um valor para a sobrevivência da auto-
imagem do sujeito às expensas da perpetuação do processo
de vimitização, tal como se observa com tanta freqüência
na descrição autodepreciativa e a justificativa da agressão
de que são vítimas (Sluzki,1996, p. 237).
As palavras de Sluzki nos induzem a pensar sobre as ações e perspectivas da criança
vitimizada em seu cotidiano pela família, já que, para sobreviver, tem que se identificar
57
(autoconceito) com o agressor, afetando a sua auto-estima. Conseqüentemente, aumentará
a possibilidade da reprodução da violência em seu entorno.
Para Ravazzola (1999), algumas vezes essa negação se transforma em ataque visível
contra a própria vítima, que assume a culpa pela situação. Também ocorre que algumas
crianças se identificam com o agressor, passando a apresentar conduta semelhante, por
exemplo, na escola, com outras crianças menores ou de sua idade. Também aprendem a
não levar em consideração as pessoas mais frágeis, como acontece no contexto familiar
onde é vítima.
De acordo com a autora, a criança, mesmo tendo sido vitimizada pela família, não
consegue reagir às agressões recebidas e assumir a própria defesa, principalmente por
querer proteger o agressor (quando este é um membro da família significativo para ela) de
qualquer ataque. A família, para a vítima, é um grupo a qual ela pertence e a cujos
membros deve lealdade. Além disso, esse grupo é significado de unidade, e ela é, acima
de tudo, um elemento dessa fusão.
A criança vitimizada, então, para sobreviver a esse dilema, justifica os abusos
elaborando uma explicação que dê sentido à ação de que é vítima (Ravazzola,1999)
buscando o erro em si mesma – fato este verificado nas nossas análises, em algumas
crianças, e que será retomado oportunamente.
58
Nesse contexto da criança vitimizada, como poderá ela valorizar-se sentir-se digna,
estando numa relação na qual não pode se defender de danos que muitas vezes são
injustificáveis ou aplicados sob qualquer pretexto?
23
Corsi (2003) comenta que, para compreender a importância do fenômeno da
violência intrafamiliar, com vistas ao desenvolvimento de políticas públicas, é necessário
conhecermos as conseqüências que este problema acarreta em diferentes âmbitos da
realidade social. Sinaliza para a noção de que os resultados das principais investigações
sobre o tema, nos últimos vinte anos, podem se resumir em conseqüências no âmbito do
trabalho em relação ao aumento do absenteísmo e diminuição do rendimento; da
educação, no crescimento do absenteísmo e evasão escolar, transtorno de condutas e
aprendizagem, violência na escola; da saúde, com certas conseqüências físicas e
psicológicas; no social, com mudanças de domicilio, gravidez na adolescência, crianças
em situações de risco, prostituição; na segurança, com violência social e juvenil, condutas
anti-sociais, homicídios e lesões na família, delitos sexuais; na economia, com o
incremento de gastos nos setores de saúde, educação, segurança e justiça, diminuição da
produção.
Guerra (1998) relata as conseqüências (orgânicas e psicológicas) do fenômeno da
violência física na família, bem como aspectos de sua direção e natureza. Os efeitos
orgânicos são vários, desde as seqüelas derivadas de lesões abdominais, oculares, de
fraturas dos membros, do crânio, queimaduras, (dentre outras), chegando até a violência
fatal – a morte.
23 Para a autora, a pessoa agredida só passa a se diferenciar quando puder se indignar e sentir raiva do agressor. Por exemplo, no caso
de abuso sexual, é comum que a pessoa vitimizada só se indigne e acuse o abusador quando esse ou essa abusa também uma irmã
59
Quanto à direção, as vítimas podem ser de ambos os sexos. Segundo a autora, há o
predomínio do sexo feminino, principalmente na adolescência, como uma forma de
repressão à sexualidade, e acontece menos no sexo masculino, pelo fato de os homens
muitas vezes superarem os agressores em força. Estes geralmente são as figuras do pai,
mãe, padrastos, madrastas e pais adotivos. O cônjuge que agride mais os filhos é a mãe,
fato que acontece porque a criança passa geralmente a maior parte do tempo em sua
companhia. O pai, como agressor, comete por sua força física, lesões mais graves (Couto,
2004). A idade das vítimas varia entre 0 a 18 anos, porém, segundo uma pesquisa feita
por Guerra na cidade de São Paulo, em 1981, houve maior incidência entre as idades de 7
a 13 anos intervalo etário que contempla a faixa etária eleita por nós neste trabalho.
Quanto aos agressores, segundo a autora, somente 10% apresentavam quadros de
perturbações psiquiátricas de natureza grave (Gelles, 1973; e Kempe, 1978, citado por
Guerra, 1998), o que desmistifica o entendimento existente do fenômeno sobre a
centralidade do problema estar somente no agressor (situa-o no plano individual), quando
na verdade se trata principalmente de um problema social.
Conforme a natureza, as relações – agressor – pais/vítima – criança (filhos)
caracterizam-se por ser uma interação do sujeito com o objeto, na qual os filhos (objetos)
devem satisfazer as necessidades dos pais. Há uma expectativa de desempenho para com
os filhos maior do que a que estes conseguem satisfazer. Eles são vistos como ‘criadores
de problemas’. Pode haver também uma idealização dos filhos, segundo a qual os pais
imaginam uma criança ou adolescente que não corresponde à realidade, seja em relação
ao sexo, aos aspectos físicos, ao caráter etc., o que se torna motivo para rejeição.
menor.
60
As crianças ou os adolescentes, nesse contexto, aprendem que são ‘responsáveis’
pela violência, individualizando o problema. Também nessas famílias abusivas há
conflitos familiares significativos entre seus membros. O disciplinamento físico é louvado
pelos pais como método educativo e os instrumentos mais utilizados pelos agressores são:
chicote, fio elétrico, fivela, cinto, escova de cabelos, cabide, colher, faca, chinelo ou
sapato, mãos, dedos, nós dos dedos, barra de ferro etc (Couto, 2004). Outro aspecto a
considerar é que nessas famílias há uma cumplicidade silenciosa que faz com que
mantenham segredo sobre a violência.
Existe um consenso, tanto entre os estudiosos quanto entre as instituições que
trabalham com menores, de que é muito grande a probabilidade de que crianças que
foram maltratadas ou testemunhas de violência feita por seus pais, quando se tornarem
adultos, serão violentos em seus lares e no meio social, pois o comportamento de
agressão é internalizado como natural em seu processo de socialização primária (Corsi,
2003).
Quando queremos explicar o impacto da violência familiar sobre o
desenvolvimento das crianças, faz sentido pensar de forma sistêmica, ou seja, não linear.
Vale considerar a violência como um fenômeno multifatorial que implica não pensá-la
como um produto de uma determinada dinâmica familiar ou mesmo como questão
individual.
Na Psicologia, o pensamento sistêmico
24
tem mostrado sua eficácia para analisar os
aspectos repetitivos nas condutas dos membros de um sistema social, como a família,
24 Esse pensamento enfatiza o sistema de relações e das interações presentes em toda a vida do ser humano. Para maior
aprofundamento desta questão, ver Esteves (2002).
61
para descrever e explicar as relações entre os seus componentes e traçar formas de
constituir novas interações.
A abordagem sistêmica considera a família como um sistema entre tantos, ou seja,
representa um subsistema dentro de um maior sistema que é o contexto cultural onde se
encontra o grupo familiar. De acordo com Calil (1987), a família participa e recebe
influência de outros sistemas humanos, como a família de origem, trabalho, escola,
instituições religiosas etc. O grupo familiar primário também é constituído por
subsistemas internos – parental, conjugal, filial e fraternal – que contribuem para o
sistema realizar e diferenciar suas tarefas específicas (Minuchin, 1999). Para que a
diferenciação e as características daqueles subsistemas se mantenham, as fronteiras
25
devem ser delimitadas, mas também possuir permeabilidade para assentir interações dos
membros dos subsistemas e do sistema familiar com o meio externo.
Assim, para que possamos compreender o comportamento de um membro da
família, temos que analisar as relações interpessoais e as normas que regulam o
funcionamento deste sistema. O comportamento de cada membro da família está
relacionado com os procederes dos demais.
Na perspectiva de Ribeiro (2001, p. 16), na família há padrões repetitivos que
desencadeiam e mantêm as ações e os comportamentos:
(...) a família opera através de padrões transacionais. Essas
transações, na medida em que vão sendo repetidas, criam
padrões que determinam quando, como e com quem as
pessoas devem se relacionar. Os comportamentos das
pessoas dentro da família vão formando, com o tempo,
padrões constantes e repetitivos.
25 De acordo com Minuchin (1999), fronteiras são linhas imaginárias que delimitam o espaço de cada um na família e indicam como
alguém deve se comportar. As regras que vão direcionar o estabelecimento dos subsistemas familiares são as fronteiras.
62
Os padrões que organizam as posições de poder e de autoridade, que aparecem em
toda família, refletem as hierarquias da sociedade e são aspectos importantes da
organização familiar porque carregam potencial para a harmonia e para o conflito e
“definem os caminhos que a família utiliza para tomar decisões e controlar
comportamentos” (Baptista, 2002, p. 189). No caso da violência familiar, vemos um
padrão de comportamento abusivo que chega mesmo a se repetir por gerações.
Goldrik e Gerson (citados por Cerveny, 1994) assinalam que “as famílias repetem-
se a si mesmas. Questões que aparecem numa geração podem passar à geração seguinte
sobre outra forma” (p. 34). Elkaïm (1998) ensina que, independentemente da
singularidade ou especificidade de cada família em transmitir e elaborar seus modelos,
não existe dúvida na transmissão desses padrões. Seria possível afirmar, categoricamente,
que toda família transmite o seu modelo; mesmo aquelas que cuidam muito para não o
difundir.
Uma das dificuldades percebidas pelos terapeutas de famílias frente aos padrões
interacionais de repetição é a possibilidade do seu retorno ao sistema, apesar de terem
sido trabalhados terapeuticamente, revelando a força que as repetições têm no sistema
familiar (Cerveny, 1994). Vários autores enfatizam a tendência para a repetição da
violência na família, ou seja, as crianças que foram vitimizadas tendem, quando adultas, a
apresentar comportamento abusivo, seja com seus próprios filhos, seja com outras
pessoas (Faleiros, 1998; Corsi, 2003, Ribeiro, 2001, Baptista, 2002; dentre outros).
Estudo realizado por Borges, Santana & Borges (2000, citado em Ribeiro, 2001),
utilizando seis famílias com história de violência intrafamiliar, conclui que há um ciclo,
63
um padrão de comportamentos dos membros da família que, por meio de um processo de
retroalimentação, tem como desfecho a violência. Portanto, todos estão envolvidos, seja
de forma ativa (tendo um comportamento violento), passiva (sofrendo a violência) ou
como observadores do que está acontecendo entre os membros.
Essas posições, segundo os autores, são alternadas – o mesmo membro pode
assumir mais de um papel. A forma como um responde à agressão do outro pode
colaborar para a perpetuação da violência dentro da família. Todos os componentes
sofrem as conseqüências diretas ou indiretas da convivência em um contexto no qual há
violência (ibidem).
Vários teóricos contribuíram para o aprofundamento e análise do fenômeno da
violência intrafamiliar contra a criança (Fontana, 1971; Gil, 1978; Gelles, 1979;
Ochotorena, 1988; Straus, 1994, citado por Guerra, 1998) e, conseqüentemente,
concorreram para a promulgação de leis que possibilitassem que a criança fosse vista
como um sujeito de direitos e que garantissem seu bem-estar.
Hoje, no Brasil, desde a Constituição Federal de 1988, temos leis que objetivam
proteger a criança e o adolescente. Há o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA,
1990) um dos instrumentos criados pela sociedade brasileira que dispõe sobre a proteção
integral dessa parcela da população. A seguir referir-nos-emos aos dispostos do Estatuto
da Criança e do Adolescente – ECA, que tratam da questão da violência contra as
crianças e os adolescentes.
Conforme o artigo 5
o
. “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido
na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.
64
Observamos que o Estatuto diferencia violência de negligência, prevê punição tanto
para quem atentar contra esses direitos quanto para quem se omitir de denunciar o seu
não-cumprimento.
Mais adiante, a lei traz a discussão do abuso.
Consoante o artigo 13, “Os casos de suspeita ou confirmação de abuso contra
crianças ou adolescentes serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da
respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais”.
Vemos neste artigo que mesmo a simples suspeita de abuso já legitima a
notificação. O Conselho Tutelar tem que ser comunicado e isso não impede que sejam
tomadas outras providências legais.
No artigo 17, vemos que “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade de
integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a
preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos
espaços e objetos pessoais”.
Refere-se ao direito, ao respeito, que engloba a inviolabilidade da integridade, não
somente física, mas também moral e psíquica da criança e do adolescente, levando em
conta aspectos subjetivos e culturais.
No artigo 22 está expresso que “Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e
educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de
cumprir as determinações judiciais”. Já o artigo 24 comenta que “A perda e a suspensão
do pátrio poder serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos
previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos
deveres e obrigações a que alude o art.22”.
65
Esses dois artigos regulam as obrigações e responsabilidades dos pais expressando a
idéia de que o descumprimento dessas poderá levar às punições previstas no artigo 24.
Aí está um dispositivo conquistado pela sociedade, que demonstra a atitude desta
em relação aos cuidados e proteção à criança e ao adolescente, compreendendo-os como
sujeitos de direitos. Essa preocupação para com a infância, porém, seu lugar reservado na
família e seus direitos garantidos pela legislação é, de certo modo, recente e nos faz
questionar a forma como aconteceu a privatização da vida familiar, a que fizemos
referência anteriormente, noutra passagem deste escrito. A noção de privado nos remete
ao período que compreende desde a Idade média até o século XIX.
O francês Philipe Ariès (1981) elaborou uma análise iconográfica sobre a trajetória
da infância desde a Época Medieval, exame que julgamos importante para a história da
discussão em foco.
Na Idade média, por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância.
Nas representações de crianças da época, essas são retratadas vestindo-se como adultos e
até com os traços deles, estando praticamente a única diferença na estatura.
Segundo Ariès (1981), na aristocracia dos séculos XVI e XVII não havia separação
entre o público e o privado. As famílias viviam nas ruas, nas festas, não se isolavam.
Muitos atos da vida cotidiana se realizavam em público, bem como o trabalho e o lazer.
As funções da família eram a reprodução, a conservação dos bens e a prática de um
ofício. Atribuía-se pouco valor à privacidade e aos cuidados maternos. A afetividade não
existia entre pais e filhos.
Ariès nos revela que, por volta do final do século XVIII, a família mudou de sentido
e passou a desenvolver outras funções, absorvendo o indivíduo, defendendo-o e
66
separando-se claramente do espaço público, tornando-se um lugar de refúgio, proteção e
afetividade, quando se estabeleceram relações de sentimento entre o casal e os filhos,
surgindo assim a família moderna.
No Brasil (Ferrari, 2002), o sentimento de infância como uma etapa especial e
67
Na perspectiva da autora, as primeiras famílias brasileiras foram se formando com
diferentes configurações nas regiões, mas tinham em comum algumas características – o
homem, pai – era o senhor absoluto e tanto as mulheres quanto os filhos e escravos
deviam-lhe obediência e submissão. Assim, as relações familiares eram pautadas por uma
disciplina rígida, mantida com castigos físicos, sendo esses muitas vezes cruéis, com o
endosso da igreja.
Deste modo, essa forma de educar e de exercer o poder ultrapassou todos os
modelos políticos brasileiros, mantendo-se até hoje. Permanece, pois, presente em nossos
dias, seja com crianças e adolescentes, brancas, negras, ricas, pobres, do sexo feminino e
masculino.
Nesse contexto, devemos considerar que as experiências educativas, bem como as
estratégias que os pais utilizam com seus filhos, são diferentes de uma família para outra.
No tocante a esse aspecto, Moreno & Cubero (1990, citado por Gallart, 1999) postulam
sobre algumas dimensões (como tendências, não existindo um determinismo, pois essas
são estabelecidas também por diversos fatores culturais) que diferenciam as práticas
educativas
26
familiares.
Na seqüência inventariamos essas dimensões.
Grau de controle – esta dimensão é decisiva sobre o desenvolvimento dos filhos,
pois, sob orientação da família aprendem a controlar e regular suas condutas. O
controle sobre o comportamento dos filhos exercido pelos pais deverá combinar
26 Práticas educativas são definidas como “ações contínuas e habituais, realizadas pelos membros mais velhos da família, nas trocas
intersubjetivas, com o sentido de possibilitar a construção e apropriação de saberes, práticas e hábitos sociais pelos mais jovens,
trazendo, em seu interior, uma compreensão e uma proposta de ser-no-mundo com o outro” (Szymanski, 2001, p. 14).
68
firmeza e razão, que levam aqueles a ter autocontrole, diferentemente quando a
intervenção é pautada no autoritarismo ou na permissividade.
Ambiente comunicativo – a existência de uma dinâmica na qual há espaço para
explicar e justificar as normas e as decisões tomadas pelos pais, porém, levando-
se em conta os pontos de vista da criança. Essa dinâmica possibilita compartilhar
problemas, dúvidas, conflitos, ansiedades, expectativas e satisfações. Esse
ambiente comunicativo se estende também à possibilidades de expressar e
manifestar sentimentos positivos e negativos.
Grau de maturidade que exigem de seus filhos – os pais que possuem
expectativas otimistas em relação aos seus filhos (sem serem excessivamente
elevadas) confiam em suas possibilidades e os ajudam para que aproveitem o
máximo de suas competências, contribuem para impulsionar seu
desenvolvimento, no sentido de experiências mais ricas que conduzirão aqueles à
sua autonomia.
Afeto da relação – esta última dimensão é primogênia e estruturante das
experiências educativas da família e impõe influência sobre as outras citadas. Por
exemplo, um controle exercido em um contexto afetuoso não é o mesmo
praticado em um ambiente frio e distante.
Todas estas dimensões, bem como suas combinações influenciarão as experiências
educativas da família e influirão no desenvolvimento do autoconceito e da auto-estima da
criança. Para Gallart (1999), as dimensões comentadas podem admitir uma ou qualquer
das práticas educativas que os pais estruturam e que interferirão na auto-estima da
criança, descritas na seqüência.
69
A primeira classificação refere-se a práticas educativas em que os pais exercem um
controle considerável sobre os comportamentos da criança, forte exigência de maturidade
nos filhos, no ambiente no qual a comunicação é escassa e o afeto é pouco manifestado.
Essas práticas se referem a pais nomeados de ‘autoritários’, que tendem a promover na
criança uma baixa auto-estima, seguida de sentimentos de tristeza, infelicidade e
dependência excessiva.
Na segunda prática educativa, os pais exercem pouco controle sobre os filhos e
aqueles não exigem a estes a maturidade, o ambiente comunicativo e elevadas
demonstrações de afeto. Essas práticas sinalizam para o perfil dos pais intitulados
‘permissivos’ e, no caso destas práticas, a criança geralmente tem baixa auto-estima, não
tem controle sobre si e são imaturas.
Na última prática educativa, há um elevado grau de controle, exigência de
maturidade, combinados com uma comunicação suficiente na qual há manifestação do
afeto. Este é o estilo de pais que chamamos de ‘democratas’ e que favorecem a auto-
estima da criança, bem como sua autonomia.
Diante disso, temos que nos dar conta de que “o afeto e a comunicação não são
opostos à exigência ajustada e o controle ajuda a compreender melhor as condições que
contribuem para o desenvolvimento das crianças no contexto familiar” (Gallart, 1999, p.
166). Esses fatores, como vimos, contribuem para que a criança tenha um autoconceito
positivo, veja-se como alguém capaz de superar as dificuldades encontradas pela vida e
possa ter aptidão para demonstrar afetos aos outros e de lhes oferecer ajuda quando esses
precisarem (Gardner, 1993, citado por Gallart, 1999).
70
Ainda discorrendo sobre as práticas educativas, nos questionamos sobre o que faz
com que alguns pais ofereçam experiências educativas diferentes quando possuem mais
de um filho. Embora não nos detenhamos sobre este ângulo, cremos ser importante fazer
algumas considerações.
A este respeito, Palácios (1987, citado por Gallart, 1999) nos ajuda a pensar. Para o
autor, não há apenas uma única causa que faz com que os pais eduquem diferentemente
seus filhos, mas muitas outras razões, dentre as quais estão os fatores relativos ao filho –
por exemplo, a ordem do nascimento, o sexo e fatores sociais. Neste caso, citamos a
influência dos modelos oferecidos pela tv e outros meios de comunicações. Outro fator
importante é o relativo aos pais, como as características de personalidade, nível
educativo, experiência anterior e etc. bem como as idéias que os pais também possuem
sobre o processo de desenvolvimento de seus filhos e sobre sua educação.
Com efeito, não poderemos pensar sobre a violência física, utilizada como recurso
pedagógico pela família, sem analisarmos o fenômeno como sendo um ato de produção
de sentido (Gonçalves, 2001). Para muitos pais (Shnit, 2002, Gonçalves, 2001), a punição
física é uma forma de estabelecer limites para uma conduta inadequada da criança e,
subjacente àquela, está presente um motivo educacional, que é o argumento de que é para
o bem da criança. É uma forma de proteção contra a violência no espaço público, a
marginalidade e o perigo.
Assim a violência, como expresso anteriormente, regulamenta-se como uma forma
de manifestação cultural naturalizada nas relações, comportamentos e atitudes,
remetendo-se ao seu significado dentro de cada cultura.
71
Nesse sentido, em cada sociedade há princípios e regras estabelecidos pelo seu
sistema legal com relação aos limites da autoridade do Estado de intervir na maneira de a
família educar a criança. Em vários países, por exemplo, Israel, Suécia, é proibida a
utilização de punição física por parte dos pais ou responsável (Shnit, 2002). Nessa
perspectiva, temos reconhecido os direitos da criança (respeito, proteção, dignidade,
liberdade etc.) acima dos direitos da família de educar seus membros de acordo com suas
convicções, valores e princípios.
Existem alguns países ocidentais, como Estados Unidos, Inglaterra e Canadá onde
há permissão de se empregar a violência física para educar a criança se essa for aplicada
de forma razoável (moderada), de acordo com as circunstâncias (o bem-estar e disciplina)
e sem a intenção de causar dano à criança (Shnit, 2002).
Nesse contexto, cada caso deve ser examinado de forma a verificar se o motivo de
tal ato deu-se de forma razoável. Essa questão nos remete à dificuldade para se avaliar o
fenômeno, já que tal julgamento se reveste da subjetividade de quem julga e está sujeito
aos critérios por aquele estabelecidos. No Brasil, há tramitando um projeto de lei n. 2654
de dezembro de 2003
27
da deputada Maria do Rosário – (PT – RS), – que implica
modificações no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, – fazendo-nos refletir
sobre o processo de educação expresso de várias formas. Dentre as mudanças sugeridas, o
documento traz a proibição da punição física, inclusive a palmada, mesmo que essa seja
27 O projeto de lei nº 2654, de 2 de dezembro de 2003, que dispõe sobre a alteração da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto
da Criança e do Adolescente, e da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, o Novo Código Civil, estabelecendo o direito da criança e do
adolescente a não serem submetidos a qualquer forma de punição corporal, mediante a adoção de castigos moderados ou imoderados,
sob a alegação de quaisquer propósitos, ainda que pedagógicos, e dá outras providências. Aguardando parecer
do Congresso Nacional.
72
utilizada para fins pedagógicos, cometidos pelos pais e pelos responsáveis, e que esses
ficarão sujeitos às medidas previstas no art. 129 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Com isso, verificamos uma questão que merece destaque subjacente a esta
discussão, referente à forma como a cultura endossa ou condena a prática de violência
contra crianças e adolescentes. Verificando este problema, Korbin, (1991, citado por
Gonçalves, 2001), postula três situações diferentes que permeiam esse campo, que são:
comportamentos aceitos na cultura, mas condenados fora dela; os que são condenados por
ela (práticas que divergem dos padrões estabelecidos social e culturalmente) e condições
(sociais e econômicas) que causam dano à criança e também aos seus pais ou
responsáveis (essa última não diz respeito diretamente à violência familiar).
Na primeira condição, lê-se a cultura apoiando os atos violentos. Na realidade
brasileira, a violência física é assumida e aceita pelos pais ou responsáveis, tornando
difícil modificar as práticas educativas, numa sociedade que faz apologia a este tipo de
violência.
Na segunda situação, a violência contra a criança e o adolescente deveria ser
solucionada na própria cultura, por exemplo, com medidas e sanções legais. No caso
brasileiro, há a Constituição de 1988 e o Estatuto da criança e do Adolescente, porém, se
por um lado há comportamentos violentos contra a criança, aceitáveis culturalmente, por
outro existem as normas que proíbem esses comportamentos, surgindo uma contradição
de que embora os direitos da criança sejam estabelecido pela lei, estão em curso práticas
aceitas socialmente que se chocam com o compromisso da legislação e de sua aplicação
na prática (Shnit, 2002).
73
A família, pois, em sua função de educar e socializar a criança, sente-se solitária
28
neste processo, decorrente da ausência do Estado, e assenta suas práticas educativas em
princípios esteados em uma cultura que legitima a assimetria das relações de gênero e
possui um caráter adultocêntrico, ou seja, predomínio do poder do adulto, nas quais
permeia o par dominação-exploração.
Consideramos que o ato de bater em criança – a violência física intrafamiliar –
mesmo que seja com fins pedagógicos, deve ser repudiado por vários motivos: é um ato
que viola os direitos da criança citados anteriormente; institucionaliza a violência no lar; é
um ato de covardia, já que a criança não pode se defender; não educa, é uma mera
estratégia de controle e contenção do comportamento dos filhos, desperta na criança
sentimentos negativos
29
de raiva, medo, revolta etc,; leva à reprodução da violência
sofrida para outras relações, como vimos anteriormente, e pode ser fatal para as vítimas.
No decorrer das próximas linhas, discutiremos sobre a família, conceitos e funções.
2.4. Família, conceitos e funções
Para a palavra família, não há um conceito unívoco; podemos até dizer que não há
definições claras, mas descrições, ou seja, podemos descrever as várias estruturas ou
modalidades assumidas pelas famílias hoje e através dos tempos.
A palavra família não está ligada a uma instituição fixa, imutável, padronizada.
Através dos tempos, a família vai adotando e criando formas e mecanismos diversos,
28 Ver em Gonçalves (2001).
29 Sobre este aspecto, alguns autores (Lamano-Adamo, 1999; Assis, 1994, 1999; Guerra, 1996, citados por Minayo, 2002) esclarecem
que os sentimentos gerados pelo sofrimento derivado das agressões físicas dos adultos contra crianças, geralmente reprimidos e
negados, não desaparecem, mas se mantêm gravados em seu íntimo e permeiam suas vidas.
74
novas configurações, variando segundo a época, lugares, fatores políticos, econômicos e
religiosos existentes em um determinado momento histórico.
Neste trabalho, consideramos família como Medeiros e Otávio (2002), que
defendem que a idéia de que é entendida como “grupos de parentes (incluindo-se aí as
filiações não biológicas e as alianças conjugais) que se relacionam com alguma
regularidade e intensidade e, portanto, não são limitados pelas fronteiras do domicílio” (p.
14).
Etimologicamente a palavra ‘família’ vem do latim ‘famulus’, que significa servo,
escravo, a nos sugerir que primitivamente se considerava a família como um conjunto de
escravos pertencentes a uma pessoa. Essa raiz etimológica nos remete à natureza
possessiva das relações primitivas, em que a mulher deveria obedecer ao marido e os
filhos pertenciam aos pais, que tinham direitos absolutos sobre eles (Osório, 2002).
Esse conceito de família evoluiu e a lei tem acompanhado essa evolução, no que se
refere aos direitos da criança e do adolescente, em que a legislação, especificamente o
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, não reconhece que os pais tratem seus
filhos como sua propriedade.
Segundo Kaloustian (2002), a família é um lugar absolutamente necessário para a
garantia da sobrevivência, desenvolvimento e proteção integral de seus membros,
independentemente do arranjo familiar. É um “espaço privilegiado de socialização, de
prática de tolerância e divisão de responsabilidades, de busca coletiva de estratégias de
sobrevivência e lugar inicial para o exercício da cidadania sob o parâmetro da igualdade,
do respeito e dos direitos humanos” (p.11).
75
O autor reafirma em seu conceito sobre a importância da família no processo de
socialização e desenvolvimento das crianças. Na verdade, quando fala na família como
um contexto de socialização, isso implica sua relevância para a criança, pois se configura
como o primeiro grupo responsável pela função socializadora na qual aquela vai
vivenciar aprendizagens de valores, padrões e normas sociais. Durante muitos anos será o
principal, senão o único, espaço para o crescimento da criança.
Ao incluir a divisão de responsabilidades e busca coletiva de estratégias de
sobrevivência, Kaloustian já nos antecipa sobre os papéis e funções da família e de seus
membros, que são delimitados no processo de socialização; além disso, a família, para o
autor, é um espaço de desenvolvimento da cidadania.
Esse último aspecto nos situa sobre a situação de muitas famílias brasileiras,
caracterizadas por vários problemas sociais, que remetem diretamente à violação dos
direitos humanos, como, por exemplo, um dos mais básicos – o direitos à vida. Todo dia
vemos nos meios de comunicação crianças, jovens e adultos que morrem em decorrência
dos mais diversos tipos de violência.
Kaloustian (2002) também inclui em seus escritos a família como um espaço no
qual são absorvidos os valores éticos, culturais, humanitários. Abrange também, em seu
conceito de família, o lugar do suporte afetivo e material necessário ao desenvolvimento e
bem - estar de seus membros.
Outro entendimento de família é manifesto por Maturana (1997), biólogo e cientista
chileno, que compreende a família como um sistema social e, como todo sistema social, é
constituído sob a emoção do amor.O amor é a fonte da socialização humana, pois só há
socialização se houver amor e esse amor a que o autor se refere não é um sentimento
76
romântico e espiritual, mas uma emoção de aceitar o outro envolvendo relações de
justiça, respeito, honestidade e colaboração.
O amor
30
, para o autor, não é um fenômeno especial dos humanos, mas é um
fenômeno biológico, fundamento do fenômeno social e não conseqüência dele. É um
espaço em que se aceita o outro como legítimo outro na convivência. A rejeição se
constitui como um espaço de condutas que negam o outro na convivência. A propósito
dessas reflexões do autor, podemos pensar na violência familiar contra a criança como
instrumento de socialização (de rejeição) em que, nessa relação, a criança é tratada como
objeto, não sendo reconhecida como alguém de direitos.
Assim, sistemas de convivência que não sejam fundados no amor não são sistemas
sociais. Sistemas de convivência hierárquicos ou de poder, “que são sistemas de
convivência constituídos sob a emoção que configura as ações de autonegação do outro
na aceitação da submissão própria ou da do outro, numa dinâmica de ordem e
obediência” (Maturana, 1997, p.177) não são sistema sociais. Nesta perspectiva, temos a
violência familiar que se constitui em relações de poder, hierárquicas de dominação, nas
quais imperam a negação e a coisificação do outro, que não é reconhecido como sujeito
de direito.
De acordo com Badinter (1985), antes da metade do século XVIII, o amor, como
sendo espontâneo de toda mãe para o filho existia no seio da célula familiar de forma
quase despercebida. O que era novo em relação aos dois séculos anteriores é que havia a
exaltação do amor materno como um valor natural. A autora não nega esse sentimento,
mas acredita que ele não tinha a importância que lhe atribuímos hoje.
77
Em lugar de ternura, é o medo que domina no âmago de
todas as relações familiares. À menor desobediência filial, o
pai, ou aquele que o substitui, recorre ao açoite. (...)
Violência e severidade eram o quinhão da esposa e do filho.
A mãe não escapava a estes costumes. (Badinter, 1985,
p.43).
Observamos, com esta citação de Elisabeth Badinter, a presença da violência
familiar como prática nas relações familiares. Essas práticas, inseridas nessas relações,
divergem do que prega a Constituição Brasileira (1988), que é uma lei democrática no
que diz respeito à família, ou seja, o tratamento dado pela lei para a família é igual para
todas as famílias brasileiras, indistintivamente; independentemente de seus arranjos e
configurações. A Constituição, além de conceituar a família – base e tudo – evidencia
seus direitos e deveres e os vincula ao Estado:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado. § 8º - O Estado assegurará a assistência
à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando
mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas
relações.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado
assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela
necessitar, independentemente de contribuição à seguridade
social, e tem por objetivos: – a proteção à família, à
maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de
amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na
comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e
garantindo-lhes o direito à vida.
30 Para maior aprofundamento sobre o tema ver Maturana (1997).
78
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e
da família, será promovida e incentivada com a colaboração
da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho.
No Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), a família também é
referendada:
Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser
criado e educado no seio da sua família e,
excepcionalmente, em família substituta, assegurada a
convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da
presença de pessoas dependentes de substâncias
entorpecentes.
Se a Lei é democrática em relação à família, entretanto, essa democracia não é
garantida pelo nosso Estado. O que se vê são milhões de famílias abandonadas, entregues
à própria sorte, que não conseguem desempenhar suas funções para com seus membros.
Em nosso País, milhares de famílias vivem sem teto, trabalho, alimento, sem emprego e a
cada dia enfrentam situações e problemas para os quais nem sempre conseguem respostas
(e muitas vezes nem o identificam como tais), como, por exemplo, a violência familiar.
Assim, a violência familiar contra a criança e o adolescente que acompanha a
história da nossa civilização esteve ligada, além do arbítrio, à socialização como
instrumento de educação. Não só a família utilizava métodos disciplinares para educar a
criança, incluindo a violência física, mas também algumas instituições como, por
exemplo, a escola e os hospitais
31
.
Um aspecto a considerar refere-se às funções da família. Embora possamos aduzir
as diversas funções da família – legais, religiosas, econômicas, etc – não o faremos, pois
31 Ver Fuster (2002), Foucault (1977),
Goffman, (1996).
79
para nós, são pertinentes as funções que Cataldo (1987, citado por Gallart, 1999) elencou
depois de extensa revisão da literatura.
O autor enfatiza a existência de, no mínimo, quatro funções (não estão separadas
entre si) que a maioria dos autores reconhece relacionadas com a criança, que para nós,
por um lado, evidencia a grande importância da família como lugar privilegiado de
desenvolvimento e socialização; por outro, as aprendizagens adquiridas no contexto
familiar propiciam à criança possibilidades de estabelecer uma rede de relações e de
sentimentos positivos primordiais para seu desenvolvimento.
A seguir eis as funções da família apontadas por Cataldo (1987, citado por Gallart,
1999).
Cabe à família a função de oferecer cuidado e proteção às crianças, garantindo-
lhes subsistência em condições dignas.
A família (juntamente com a escola) deve contribuir para a socialização,
possibilitando aos seus filhos a assimilação dos valores e conhecimentos culturais.
É função da família dar suporte às crianças em seu processo de escolarização e de
instruções progressivas em outros âmbitos e instituições sociais.
Outro encargo da família é o de ajudar e dar apoio às crianças para que essas
possam estabelecer vínculos afetivos satisfatórios consigo e com os outros.
A família contemporânea apresenta inúmeras dificuldades para cumprir suas
funções psicossociais, e, em muitas situações, transforma-se na maior fonte de violência,
envolvendo todos os seus membros, principalmente crianças, adolescentes, mulheres,
idosos, entre outros.
80
Nesse cenário, a família desempenha uma função especialmente relevante no que
foca à socialização da criança, pois deve satisfazer suas necessidades e assimilar a
cultura, que pressupõe a aquisição de valores, normas, regras, costumes, papéis. Essas
experiências possibilitadas pela família não podem ser analisadas de forma isolada do
contexto social mais amplo. Quando essas funções não puderem ser cumpridas por parte
deste sistema, o Estado deve desenvolver mecanismos de intervenção que possam
garantir à criança esses direitos.
A sociedade atual passa por transformações profundas nos mais diversos setores -
econômico, político, cultural, espiritual, educacional. O sistema familiar, como parte
desse contexto, também foi substancialmente modificado. Surgem variações nas
características das famílias brasileiras e nas modificações ocorridas na composição dos
arranjos domiciliares
32
, bem como em seu ciclo vital, que repercutem nos papéis, funções
e tarefas dos membros do sistema familiar.
Na opinião abalizada de Takashima (2002), a família deve ser o eixo básico no qual
o Estado há de ser não um substituto, mas um aliado e fortalecedor desse sistema,
subsidiando-o para que possa desempenhar suas responsabilidades e funções. Esse
sistema, de acordo com o autor ora citado, sempre foi alvo de intervenções – salvo raras
exceções – fragilizadas, fragmentadas, com uma compreensão isolada de seu contexto e
dos valores sócioculturais, num enfoque assistencialista e tutelar, no qual a distribuição de
32 Medeiros & Otávio (2002) falam que, sob uma perspectiva demográfica, a composição dos arranjos domiciliares no Brasil variou de
1978 a 1998. Os autores sinalizam dados referentes ao comportamento de vários tipos de arranjo domiciliar. Nesse período, ocorreram
algumas transformações relacionadas a determinantes da composição dos arranjos, tais como: a queda da fecundidade, a legalização dos
divórcios e as mudanças em alguns valores da sociedade referentes à vida familiar.
81
cestas alimentares é um exemplo de uma política social movida pela compaixão
(Carvalho, 2002).
Observamos anteriormente que a família não é uma instituição natural. Possuiu
configurações diversificadas na sociedade, sendo a mutabilidade uma das características
do grupo familiar. É no cotidiano da vida em grupo que aparecem as aprendizagens, os
hábitos, idéias, crenças e valores. Falar em família geralmente significa referir-se a um
lugar de proteção, afeto, segurança e cuidados.
A família, todavia, pode ser um lugar de desamparo, violência, desproteção,
dificuldades, conflitos e violência – esta vista, neste trabalho, como imperante desde os
tempos remotos.
Fuster (2002) postula que possivelmente a família é um dos lugares mais perigosos
da sociedade e diz que é mais provável que uma pessoa seja assassinada ou atacada
fisicamente em seu próprio lar por um membro da família do que em qualquer outro
lugar, por qualquer pessoa da sociedade (p.25). Estatisticamente, e independentemente
de sexo e idade, é a maior probabilidade de uma pessoa ser atacada fisicamente em sua
própria casa do que em uma rua, à noite.
A família, para o autor, é uma das instituições sociais com altos níveis de conflito e
violência; e, assim, propõe duas imagens aparentemente opostas: a família como um lugar
de refúgio, no qual se pode aliviar as tensões e como um campo de batalha.
Nessa mesma direção, Richar Gelles e Murrayo Struas (s/d; citados por Fuscher,
2002), consideram a família também como uma das instituições mais violentas da
sociedade atual; antes, só viu o exército em tempo de guerra.
82
Gonçalves (2001), em seu estudo sobre As práticas de educação em lares do Rio de
Janeiro (2001) sinaliza que não há evidências de que a casa é mais perigosa para a
criança do que a rua, que configura lugar de homicídios, de desaparecimento de crianças
etc. A casa, para as famílias entrevistadas pela autora, é um lugar de proteção contra a
violência do espaço público.
Percebendo a família como parte de um sistema de relações, existem algumas
condições familiares que impulsionam as crianças a terem uma visão de si
significativamente mais negativa do que se comparadas àquelas que percebem sua família
de maneira mais positiva (Coopersmith, 1967; Rosenberg, 1989, citados por Assis &
Avanci, 2004, p. 35).
Perceber a família como conflituosa; viver em ambiente
familiar empobrecido física, emocional e intelectualmente;
ter pais que tendem a depreciar os filhos, encarando-os
como um fardo e lhes dando um tratamento desatento e
negligente; viver em uma família em que não há o
estabelecimento de diretrizes e que possui um sistema de
punição baseado na força e na perda de amor.
Scodelario (2002), além de considerar que a violência intrafamiliar é um fenômeno
multicausal (experiência de socialização, características patológicas, fatores situacionais
de estresse, fatores culturais, sociais e políticos, características particulares dos
pais/filhos), tenta compreender mais claramente o motivo que faz uma pessoa e / ou uma
família possuir uma dinâmica que inclui a violência em seu relacionamento.
A autora relaciona alguns aspectos que contribuem para a compreensão deste
fenômeno, como: comunicação, complô do silêncio, dificuldade em respeitar limites,
isolamento social acentuado e auto-estima rebaixada, fator ligado diretamente a este
estudo.
83
Na seqüência, discorremos a respeito de cada um desses fatores.
A) Quanto à comunicação
Este é um aspecto evidenciador de disfuncionalidade da família que inclui a
violência em sua dinâmica. Há grande dificuldade de comunicação entre os membros da
família, geralmente em relação às vivências emocionais. A comunicação, algumas vezes,
ocorre de forma indireta por meio de terceiros, ou de formas não verbais como, por
exemplo, um gesto ou uma palavra que vem acompanhada da ação. Essas formas servem
para avisar a criança do que virá a seguir. Assim, os membros da família não expressam
seus sentimentos de forma espontânea, utilizam padrões de comunicação baseados em
mentiras, segredos e mensagens confusas e com duplo sentidos.
Nessa mesma direção, uma das dimensões da dinâmica familiar apresentada como
disfuncional nas famílias estudadas por Borges, “et al” (citado em Ribeiro, 2001) é a
comunicação, que tem como características principais a desqualificação, a incongruência
e o duplo vínculo
33
. Esse estilo de comunicação, aliado a outras características da
dinâmica familiar, certamente contribui para a auto-estima dos filhos – crianças e
adolescentes – e para a falta de confiança mútua, o que pode estar relacionado com o
comportamento que provoca ou desencadeia a reação violenta. Mais uma vez, vimos,
com esta autora, a relação estreita entre violência e auto-estima.
B) Quanto ao complô do silêncio
Este é um dos fatores que mais favorece a reprodução da violência na família,
podendo se estender por várias gerações. Esse silêncio é produzido e sustentado tanto
33 Expressão empregada por Gregory Batson, que trata da comunicação, na qual duas mensagens são enviadas simultaneamente sempre
de forma contraditória. É a maneira de negar e afirmar algo ao mesmo tempo (Mariotti, 1999).
84
pelo agressor quanto pela vítima e demais pessoas envolvidas na dinâmica familiar. A
razão sobre a manutenção desse silêncio por anos ou décadas decorre de algumas
possibilidades: a) silêncio da parceira ou cônjuge não agressor – medo do agressor;
ataque às próprias percepções; quer manter o equilíbrio e a unidade familiar; não quer
enfrentar perdas, (possibilidade de ter que perder o companheiro ou a criança);
cumplicidade inconsciente pela identificação com o agressor; papel de protetora
fragilizado; b) silêncio da criança ou do adolescente, vítima – acha que ninguém vai
protegê-la, apoiada em seu sentimento de que a mãe é testemunha e não impede a
violência; medo de perder o afeto do agressor e que quanto mais próximo mais silencia;
medo de não ser acreditada pelos outros; medo de represálias.
C) Quanto ao uso intenso de mecanismo de defesa
Entre os mecanismos de defesa encontram-se a negação e a identificação projetiva.
A mãe, por exemplo, tenta negar a violência para se proteger de conflitos internos de ter
que escolher entre a criança e o companheiro, entre proteger a filha e uma suposta
unidade do sistema. A vítima também nega o que ocorre, pois pedir ajuda poderá ter
como conseqüência a desestruturação da família, a perda do pai e da mãe e, ainda,
aparecerá o sentimento de culpa por estes fatos. O agressor dificilmente reconhece e
assume responsabilidade pela agressão, alegando que não prejudicaria alguém da família
ou uma pessoa de quem goste. Esses pais acham que as crianças e adolescentes têm que
satisfazer suas necessidades. Pode haver uma expectativa de desempenho superior às
capacidades desses e assim são vistos como os problemáticos por não corresponderem a
essas expectativas.A identificação projetiva como defesa existe quando o agressor projeta
85
na vítima sua ansiedade mediante a violência e como uma tentativa de comunicação. O
agressor, por intermédio da violência, tenta comunicar seu estado mental.
D) Quanto à dificuldade de limites.
As famílias têm sérias questões em relação a reconhecer, aceitar e respeitar os
limites, o que ocasiona muitos problemas na dinâmica da relação: abuso de poder,
omissão no exercício da função interditora que se dá tanto pelo pai como pela mãe, falta
de limites entre as gerações, ocasionando indiscriminação de papéis, ou seja, crianças e
adolescentes realizam tarefas ou assumem responsabilidades próprias dos adultos dessa
família.
E) Isolamento social acentuado
Com relação a esse aspecto, as famílias apresentam dificuldades em socializar e
inserir culturalmente seus filhos. É como se a família suprisse as necessidades de seus
membros e esses não tivessem nem pudessem ir buscar nada além da própria casa. Os
sentimentos e as emoções que fazem parte das relações ficam aprisionados rigidamente
entre as pessoas da família, ocasionando empobrecimento e restrição nas trocas afetivas.
F) Quanto à auto-estima rebaixada
É comum o agressor desvalorizar a criança que foi vitimizada. Isso contribui para
que esse possa ter o controle e poder sobre ela. Essa depreciação acarreta uma diminuição
da confiança nas percepções da criança, originando, também, sentimentos de impotência,
aspectos que afetam diretamente a auto-estima da criança.
Assim, diante do exposto, vemos que estudar a violência intrafamiliar na verdade é
estudar a família, sua função social, a dinâmica das relações de seus membros, bem como
ambiência onde esse grupo se encontra. É preciso enxergar o problema da violência física
86
intrafamiliar contra a criança como uma forma de violência traduzida por um tipo de
relações sociais marcadas pelo autoritarismo em que a criança é vista como coisa. É nesse
contexto que sua subjetividade está sendo apresentada.
No próximo capítulo abordaremos o tema da subjetividade considerando-a
constituída nos processos sociais e históricos. Discutiremos o conceito de emoção, bem
como introduziremos a auto-estima, objeto privilegiado em nosso trabalho.
87
5. Subjetividade e auto-estima
Os atributos individuais, a influência da família, o
meio social, o espírito de época se juntam numa
síntese pessoal, configurando em cada ser humano
um microcosmo sui generis (Claves- Centro Latino-
Americano de Estudos de Violência e Saúde).
O tema da constituição do sujeito e da subjetividade tem sido discutido pelas
Ciências Sociais e Ciências Humanas, e é debatido em várias áreas, como Religião,
Filosofia, Psicologia, Economia, Psicanálise, dentre outras.
A noção de subjetividade tornou-se presente nas áreas de conhecimento citadas,
mas também, transformou-se recentemente em objeto de estudo em vários contextos, tais
como a família, a sexualidade, a violência, as relações de poder e outros (Rocha, 2001).
Neste sentido, o tema da subjetividade merece considerações neste ensaio, pois
envolve discussões sobre a violência intrafamiliar contra a criança, uma vez que, dentre
as conseqüências desse fenômeno, já assinalado por nós, estão as relativas à subjetividade
de quem o vivencia, bem como sobre os sentimentos decorrentes do dano iminente.
Verificaremos a questão da subjetividade não de forma reducionista, focalizando
apenas o próprio sujeito, mas percebendo-a vinculada a processos sociais e históricos.
Desse modo, nos propomos neste contexto discutir algumas questões referentes à
constituição do sujeito e da subjetividade e, nessa direção de análise, buscaremos na obra
de Vygotsky e de alguns teóricos sócio-históricos contribuições importantes para o exame
do referido tema.
Retomando o desenvolvimento da Psicologia, vemos sua inserção em um modelo
científico natural da ciência, cuja propensão predominante era tratar a subjetividade e os
88
processos psíquicos de forma intimista, reducionista, intrapsíquica, numa visão
determinista e dicotômica em relação aos processos sociais, nos quais eram separados
sujeito do objeto, o individual do coletivo, o corpo da mente.
Recorrendo a categorias correlatas, como indivíduo, individualismo,
individualidade, vemos que estas se traduzem em muitos significados, decorrentes de
várias doutrinas, teorias e análises diferentes, principalmente quando levamos em conta as
mudanças registradas ao longo da história (Mancebo, 2002).
Divisamos um momento específico – a Modernidade – na qual a ideologia
individualista viabilizou muitas ideações respeitantes ao sujeito e sobre a subjetividade,
atravessa a história a partir do século XVI, consolidando-se no século XVIII e mantém-se
nessa perspectiva de mudanças até os dias de hoje.
Segundo Mancebo (2002), encontramos a partir do século XVI um mundo diferente
da Época Medieval, mais heterogêneo, sendo percebido sob diversas vertentes e menos
hierarquizado em termos de política, religião e cultura, configurando novos contornos e
referências relativamente à constituição da subjetividade.
Há, segundo a autora há pouco mencionada, como primeira referência, a
consolidação do capitalismo configurado como um modo de produção que traz
mudanças, não somente no âmbito econômico e material, mas um ideário de liberdade e
igualdade, produzindo conseqüências para a formação da subjetividade.
34
O capitalismo “altera a sensibilidade que é modelada sob a lógica do capital,
ficando o desejo de alteridade modelizado em função do consumo de produtos e da posse
de objetos, resultando em relações coisificadas” (Mance, 1998, p.123); modifica
89
esteticamente a subjetividade quando cria padrões de belo; e modela também a dimensão
ética, ao mutilar a sensibilidade das pessoas diante, por exemplo, do sofrimento de outros
e perante a morte; transforma as noções do que é ou deixa de ser justo, inculpando o
sujeito pela sua exclusão e seu insucesso, escondendo-lhe as reais causas estruturais desse
processo.
A Reforma Protestante, no século XVI, liderada por Lutero, merece também
atenção nas análises da subjetividade moderna, pois situou o indivíduo no mundo,
abolindo os rituais, escamoteando a emoção, havendo um intercâmbio do indivíduo com
Deus, não necessitando mais da mediação da Igreja para a salvação humana,
intensificando assim, a experiência individualizada e uma soberania do sujeito; ou seja,
para Marinho Lutero, era possível conseguir a salvação divina sem intermediários e essa
podia ser alcançada por meio da fé (Weber, 1996).
De acordo com Mancebo, (2002), o modelo da ciência moderna, tendo como
expoentes Descartes e Bacon, também modificou a esfera da subjetividade, introduzindo
novas relações entre sujeito e objeto do conhecimento, em que o sujeito autoconsciente e
possuidor de vontade se apresentava de maneira mais definida. A nova ordem econômica
e social decorrente da organização dos Estados Nacionais nas diversas regiões da Europa
também contribuiu para uma subjetividade individualizada.
Mancebo prossegue sua discussão mostrando-nos que, nos séculos XVII e XVIII, o
conceito de indivíduo é posto em relevo pelo liberalismo, com seus princípios de
liberdade, igualdade e consciência individual, e enfatizando a participação do sujeito e
considerando-o como célula básica da sociedade.
34 Para melhor aprofundamento sobre o tema, ver em Mance .
90
No Romantismo do início do século XIX, movimento que se expressou no campo
das Artes e da Filosofia, houve o reconhecimento das diferenças entre os indivíduos e a
‘liberdade’ era a liberdade de ser diferente. Apesar de cada um ser diferente do outro, era
possível a comunicação, pois, para os românticos, nas Artes, na Religião e no
Patriotismo, as diferenças se anulariam. Os sentimentos verdadeiros poderiam reunir as
pessoas apesar de suas diferenças (Figueiredo, 1997).
Para esse autor referido, esse pensamento, a reflexão liberal, reflete muito as
experiências da subjetividade privatizada numa sociedade mercantil em pleno
desenvolvimento.
A partir do século XX, nas Ciências Sociais, Físicas e Naturais, iniciou-se uma
tentativa da valorização da autonomia, bem como de uma subjetividade que se integrasse
ao objeto da ciência, surgindo, assim, na Modernidade, a subjetividade como eixo para
discussão, inserida em uma perspectiva de sujeito social, cultural e coletivo, em
detrimento de um sujeito percebido com características pessoais e individuais (Zippin, &
Nyrma, s/d).
Desde então, há uma tentativa de considerar o fenômeno da subjetividade a partir de
uma visão cultural e histórica, despojando-a de seu caráter determinista e reducionista,
que envolveu algumas escolas psicológicas, como, por exemplo, o behaviorismo e
Psicanálise.
Deste modo, pensar o desenvolvimento da subjetividade numa perspectiva sócio-
histórica é refleti-la no âmbito de uma nova concepção de sujeito, esse situado e
constituído em um processo social, em uma história e uma cultura, e que inclui sua
91
condição ontológica
35
. É um sujeito determinado historicamente em um contexto,
devendo ser entendido em suas relações.
Esta perspectiva rompe com os limites do pensamento da cultura ocidental,
influenciado pelas correntes filosóficas do racionalismo cartesiano e do e positivismo
comteano, que se recusavam a aceitar a subjetividade, incluindo os aspectos
singularidade, flexibilidade e dialética, inclusos nessa nova noção de subjetividade (Rey,
2003).
A idéia de subjetividade, numa perspectiva sócio-histórica, bem como uma nova
concepção de desenvolvimento, foi desenvolvida pela Psicologia russa, que tinha como
representante principal Lev Semenocitch Vygotsky. Este, em de seus trabalhos, junto com
colaboradores, possibilitou novas discussões desenvolvidas por vários teóricos, como:
Aabuljánova, 1973; Bozhovich, 1976, Gonzáles Rey, 1985, 1989, 1995, 1997, 2000;
Gonzáles & Mitjáns Martíniz, 1989; Mitjáns Martinez, 2000 (citados por Martinez,
2001).
Embora o tema da subjetividade não tenha aparecido de forma clara na obra de
Vygotsky e seu colaborador S. L. Rubinstein, ambos se fundamentaram em uma
concepção do psiquismo humano dentro de uma compreensão histórico-social e de forma
dialética, aspectos antes excluídos pela Psicologia tradicional, como o social e o
individual, o cognitivo e o afetivo, superando a concepção de uma natureza humana
inerente ao indivíduo. “Essa transformação facilitava uma representação da psique
35 A especificidade da subjetividade em sua dimensão ontológica significa (...) que sua constituição, organização, funcionamento e
desenvolvimento não são explicados em função das leis, regularidades e formas de funcionamento de outros segmentos da realidade
(Martinez, 2001, p.238).
92
humana como processo subjetivo, instância em que o social e o biológico não
desapareciam, mas entravam como momentos de um novo sistema qualitativo”(Rey,
2003, p.77).
Os autores enfatizaram o argumento de que o social não se refere a uma dimensão
externa ao sujeito, não é algo que vem de fora e aparece dentro do sujeito de forma
internalizada, e, se assim fosse, resultaria em dualidade.
Deste modo, seria diferente, então, pensar que a própria cultura, na qual o sujeito se
constitui e é também constituinte produziria a subjetividade. Então, substituiremos a visão
mecanicista na qual temos o sujeito separado de subjetividade e cultura, por uma que
concebe esses aspectos de forma interdependente, embora se relacionam de forma
sistêmica e dialética. Essa visão rompe com a dicotomia entre o social e o subjetivo e
entre o social e o individual (Rey, 2003).
A subjetividade pode ser considerada um macroconceito para a compreensão da
psique, inserida num nível histórico-cultural, no qual se constitui como um sistema
complexo, apresentado como um processo de organização permanente de significados e
sentidos. Segundo Rey,
O tema da subjetividade nos conduz a colocar o indivíduo e
a sociedade numa relação indivisível, em que ambos
aparecem como momentos da subjetividade social e da
subjetividade individual. A subjetividade social e individual
atuam na qualidade de constituintes e constituídos do outro
e pelo outro. Isto conduz a uma representação do indivíduo
na qual, a condição e o momento atual de sua ação,
expressa o tempo todo sentidos subjetivos procedentes de
áreas diferentes de sua experiência social , as que passam a
se constituir como elementos de sentido de sua expressão
atual “(Rey, s/d, p.1)”.
93
Nesta perspectiva, a subjetividade refere-se à (...) “organização dos processos de
sentidos e significados que aparecem e se organizam de diferentes formas e em diferentes
níveis no sujeito e em sua personalidade assim como nos diferentes espaços sociais em
que o sujeito atua” (Gonzáles Rey, p.108, 1999, citado por Martinez, 2001, p. 238).
Para Martinez (2001), essa nova concepção de subjetividade releva uma outra forma
de conceituar o psicológico em toda sua especificidade e complexidade, no plano
individual e social, que se configura em suas relações dinâmicas e em diferentes níveis de
complexidade os quais se articulam e inter-relacionam. A subjetividade não é o somatório
do social e do biológico, mas resulta de interações concretas e diferenciadas em que o
sujeito participa em seus múltiplos e simultâneos contextos, resultando em complexas
configurações.
A subjetividade aparece atrelada não somente a algo no âmbito individual. Assim,
sua compreensão exige-nos pensar que também a própria cultura constitui o sujeito, da
qual também é constituinte, e é geradora de subjetividade. Seria passarmos a perceber a
cultura não separada das relações sujeito-subjetividade, mas de forma integrada (Rey,
2003).
Dimenstein (2000), nesta mesma direção, defende o argumento de que a
subjetividade é uma forma específica de estar no mundo e não pode ser reduzida à
dimensão individual, pois é decorrente do social constituído a partir dos processos de
subjetivação e produzido por determinantes sociais, sejam eles históricos, políticos,
religiosos, dentre outros.
Vygotsky, apesar de não haver tratado diretamente da questão da subjetividade, nos
oferece em seu enfoque, pressupostos que se objetivam no conceito de subjetividade,
94
relação constitutiva Eu-Outro, intersubjetividade, dentre outros. Um desses pressupostos
é a mediação simbólica
36
que nos remete a uma das principais idéias de Vygotsky: a de
que a relação do sujeito com o mundo não é direta, mas mediada por instrumentos e
signos, que provocam mudanças externas e internas e que são impregnados de
significados concebidos e transmitidos em uma dada cultura e que são constitutivos do
psiquismo humano, que é sempre mediado, constituído na e pelas relações sociais, não
sendo simplesmente produtos delas (Molon, 2003).
No seu desenvolvimento, desde que a criança nasce, se relaciona com a cultura pela
mediação, que acontece de maneiras diferentes. Internaliza, em atividades conjuntas, os
conhecimentos e condutas culturalmente dadas. Para Vygotsky (1984), internalização é
um processo no qual certos aspectos da estrutura da atividade, realizados em um plano
externo, passam depois a ocorrer internamente, ou seja, é um processo que por sua vez,
“implica na transformação dos processos externos (concretizado nas atividades entre as
pessoas), em um processo intrapsicológico (no qual a atividade é construída
internamente) (Rego, 1997, p.109)”.
Neste sentido, à medida que a criança domina e interioriza os instrumentos de
mediação, ela se desenvolve e ocorre um avanço em suas funções psicológicas superiores
(pensamento, linguagem, afetividade, memória, atenção, dentre outras) (Molon, 2003).
De maneira geral, pensamos na subjetividade como sendo um modo de ser, de
36 Segundo Molon, (2003), a busca do conceito de mediação na obra de Vygotsky é uma tarefa difícil, até porque não se trata de um
conceito, e sim de um pressuposto norteador de todo o seu arcabouço teórico-metodológico. Para a autora, mediação “É processo, não é
o ato em que alguma coisa se interpõe; mediação não está entre dois termos que estabelece uma relação. É a própria relação. (..) A
mediação não é a presença física do outro, não é a corporeidade do outro que estabelece a relação mediatizada, mas ela ocorre através
dos signos, da palavra, da semiótica, dos instrumentos de mediação (p.118) ”.
95
pensar, agir, sonhar, falar, de amar, “por sua vez ocupa um espaço, formado de um
interior e de um exterior (Rolnik, 1997, p.25). Assim, há uma necessidade de ampliarmos
nossas reflexões e inseri-las em um conjunto integrado de aspectos supostamente opostos
– o nível social e o individual – mas que formam a subjetividade, entendida como um
sistema complexo e plurideterminado.
Portanto, o sujeito produz paralelamente o seu mundo social, mas também o social
constitui-se em subjetivo na história singular de cada sujeito. No percurso histórico de
cada sujeito, todas as suas experiências sociais estão integradas e a subjetividade existe
como condição processual que se confirma e se modifica (Rocha, 2001).
Falar de subjetividade, então, é falar de singularidade e não de padronizações,
generalizações, pois essa constitui sujeitos singulares e particulares. Significa pensar em
sujeitos que possuem diferentes momentos de atuação de sua experiência individual,
sendo a subjetividade decorrente de um complexo em que se estruturam aspectos de
formas diferenciadas diante das vivências desse sujeito na contemporaneidade (Rocha,
2001).
Neste sentido, a autora enfatiza o fato de que, além de o contexto social se
apresentar de maneira diversificada em cada sujeito, “afeta indiscutivelmente o decurso
de vida de cada ser humano” (Rocha, 2001, p.111). O universo social caracteriza os
diversos espaços de convivência social, onde se expressa “o sentido subjetivo, aos quais
são atribuídas as diferentes formas do comportamento humano, fazendo com que a
subjetividade seja uma referência obrigatória em termos de investigação social” (Rocha,
2001, p.111).
96
Rey (2003) introduz em seus trabalhos a categoria de subjetividade social e rompe
com a idéia de determinadas vertentes da Psicologia, na qual a subjetividade é um
fenômeno individual e a situa em um sistema complexo, que é produzido tanto no plano
individual como social.
Nesta perspectiva da subjetividade social, os processos sociais não são vistos como
externos ao sujeito, de forma objetiva diante do subjetivo do sujeito, mas são divisados
como processos implicados em um sistema complexo, que denominamos de subjetividade
social, onde o sujeito é constituinte e constituído.
Essa constituição do sujeito não é definida pelas características dos espaços sociais
onde o sujeito vive; traz conseqüências para as instâncias sociais e para os sujeitos
envolvidos. Essas conseqüências dependem das formas de relações entre o sujeito e o
social, configurando, assim, de forma ativa, o desenvolvimento social e individual.
Para Rey, falar de uma subjetividade social é referir-se a um sistema complexo,
configurado nos diversos espaços sociais, composto pelas ações do sujeito em seu
contexto, articuladas com elementos procedentes de outros espaços sociais, definindo,
assim, de forma simultânea, complexas configurações subjetivas na organização social.
Ilustrando com o pensamento do autor,
A subjetividade social como um sistema complexo exibe
formas de organização igualmente complexas, ligadas aos
diferentes processos de institucionalização e ação dos
sujeitos nos diferentes espaços da vida social, dentro dos
quais se articulam elementos de sentido procedentes de
outros espaços sociais. (Rey, 2003, p.203)
Rey utiliza a categoria configuração para definir a personalidade como forma de
organização da subjetividade individual. Para o autor, a categoria configuração não é
97
definida nem por conteúdos gerais e nem por processos singulares de caráter universal,
mas se apresenta como “um núcleo dinâmico de organização que se nutre de sentidos
subjetivos muito diversos, procedentes de diferentes zonas de experiências social e
individual” (Rey, 2003, p.204).
Percorrendo os estudos de personalidade como objeto de estudo da Psicologia,
temos dois caminhos diferentes: o primeiro aparece na Psicologia dos EEUU na primeira
metade do século XX, em um modelo empírico-psicométrico da personalidade, com
caráter descritivo, no qual passa a ser identificada por meio de traços universais passíveis
de medição em testes psicológicos; o segundo caminho no qual a teoria da personalidade
ganhou expressão foi mediante a Psicanálise, na qual esta apresentou a personalidade
como sistema de elementos que conduziam a verdadeiras dinâmicas psíquicas que
existiam na base das diversas manifestações humanas. A interpretação do conceito de
personalidade da Psicanálise serviu de suporte para as diferentes escolas de psicoterapia.
A partir dessas, a palavra personalidade esteve associada à clínica e à psicoterapia (Rey,
2003).
Esse autor acima citado nos apresenta o conceito de personalidade de forma distinta
e essencial para a compreensão da subjetividade individual e sua inter-relação com a
subjetividade social. Em suas palavras,
Ao representarmos a personalidade como sistema no qual
se expressa a organização das configurações subjetivas de
pessoa estamos dando significado a um nível de
organização psíquica que não representa uma soma de
elementos, mas um sistema auto-organizado que funciona
dentro do que Varela e Maturana definiram como sistemas
autônomos, ou seja, um sistema que é capaz de manter sua
própria organização e sua própria identidade (p.256).
98
Nesta condição, segundo o autor, a personalidade não é determinada por forças
externas, mas se manifesta de forma permanente em um processo que produz sentidos na
história do sujeito, deixa de ser compreendida como causa, que atua fora da ação desse,
para ser um momento de sentido da própria ação. Assim, as experiências do sujeito
aparecem organizadas subjetivamente “em um sistema em que os sentidos subjetivos
produzidos pelas experiências tornam-se elementos constituintes de outras, criando
configurações que aparecem no sentido subjetivo produzido a cada experiência concreta
do sujeito (Rey, 2002, p.256).
Com efeito, a personalidade emerge como um sistema de configurações subjetivas
com a capacidade de produzir sentidos em todas as atividades do sujeito, devendo estas
serem avaliadas onde o sujeito esteja comprometido. Então, as experiências que não têm
sentido para o sujeito e que representam eventos meramente formais, como é o caso do
contexto criado para a realização de provas e testes psicológicos, para Rey, não possuem
significação para o sujeito nem refletem em sua personalidade.
Para o autor, “a personalidade (...) não é aparência, mas constituição de elementos
subjetivos associados a diferentes experiências humanas e que representam uma fonte
permanente de emoção
37
” (Rey, p. 260), onde se atualizam os sentidos subjetivos
formulados pelo sujeito em suas várias experiências e em cada um dos momentos de sua
expressão social atual.
Segundo Martins (s/d)
(...) a compreensão da personalidade no ‘âmbito da própria
vida’ e de uma forma global determina a apreensão de seu
37 Segundo Rey (2003, p.242) “as emoções representam estados de ativação psíquica e fisiológicas, resultantes de complexos registros
do organismo ante o social, o psíquico e o fisiológico”.
99
desenvolvimento em circunstâncias objetivas, isto é, como
resultado da atividade subjetiva condicionada por
condições objetivas. Esta afirmação não subtrai da
personalidade sua dimensão subjetiva, mas afirma sua
objetividade, uma vez que a personalidade de cada
indivíduo não é produzida por ele isoladamente mas, sim,
resultado da atividade social e, em certo sentido, não
depende da vontade dos indivíduos tomados em separado,
mas da trama de relações que se estabelecem entre eles
(Martins, s/d, p. 4).
Verificamos, no decorrer da história da Psicologia, o quanto a personalidade se
manteve atrelada a uma dicotomia entre objetividade e subjetividade, interno e externo,
natural e histórico, objeto e sujeito, razão e emoção, indivíduo e sociedade.
Ao longo de sua história, a Ciência Psicológica, em algumas de suas correntes, trata
a subjetividade humana de forma limitada e fragmentada.
3.1. Emoções e auto-estima
No estudo das emoções, objeto de interesse psicológico, a elaboração do
conhecimento não ocorreu de maneira diferente; surgiu de forma mutilada e alternou-se
entre enfoques que vão do biológico ao social. As tentativas de teorizar sobre as emoções
ocorreram ao longo dos séculos. Apareceram diversos escritos, cada um deles tentando
compreender os mecanismos subjacentes ao fenômeno, levando-se em conta os
conhecimentos já estabelecidos em seus momentos históricos.
Nesta perspectiva, Neubern (s/d) nos apresenta, uma afirmação ilustrativa de como
a Psicologia desconsidera o caráter irregular, processual e contraditório presente nas
emoções, pois não se levava em conta a emoção como um processo que não se esgota em
100
outros processos, reduzido a unidades básicas isoladas entre si ou às suas bases
fisiológicas, mas ligado à consciência.
A importância de se estudar as emoções decorre do fato de consistir em um dos
processos subjetivos mais importantes a ser compreendido no interior dos processos
humanos e sociais. Seu estudo apresenta não só os múltiplos níveis de articulação
promovidos pelo diálogo entre pensamentos diversos, mas promove, em conjunto com
outros movimentos científicos, uma nova forma de reinserção e reconhecimento da
condição humana na feitura do conhecimento (Neubern, s/d/).
Nesta perspectiva, consideramos a auto-estima
38
como um dos estados afetivos mais
importantes na vida do sujeito, por possibilitar recursos para este atuar em sua vida.
A teoria sócio-histórica oferece pressupostos teóricos e metodológicos para o
entendimento da emoção como um processo histórico e multideterminado. Vygotsky, um
dos representantes desta abordagem, destaca a existência de um sistema dinâmico de
significado em que integra o afetivo e intelectual (Oliveira, 1992).
Para Oliveira, (1992, citado em Rego, 1997, pg. 123), Vygotsky formula uma
abordagem que unifica as dimensões afetiva e cognitiva do funcionamento psicológico,
assim como Wallon. Ambos enfatizam os aspectos sociais e emocionais no
desenvolvimento cognitivo da criança e a consideram sujeito e construtora da própria
subjetividade, em situações de intersubjetividade (Vasconcelos &Valsiner, 1995).
Segundo Galvão (2001), Wallon busca compreender as emoções a partir de sua
função, defendendo a idéia de que “as emoções são reações organizadas e que se exercem
38 Numa seção posterior deste trabalho, trataremos desse conceito de maneira mais específica e aprofundada.
101
sob o comando do sistema nervoso central” (p.59). Para Wallon, as emoções são
expressões da vida afetiva, possuem características próprias que as diferem de outras
manifestações da afetividade; ele destaca o componente corporal das emoções,
vinculando-as às variações do tônus e da postura.
Nessa perspectiva,
as emoções podem ser consideradas, sem dúvida, como a
origem da consciência, visto que exprimem e fixam para o
próprio sujeito, através do jogo de atitudes determinadas,
certas disposições específicas de sua sensibilidade. Porém,
elas só serão o ponto de partida da consciência pessoal do
sujeito por intermédio do grupo, no qual elas começam por
fundi-lo e do qual receberá as fórmulas diferenciadas de
ação e os instrumentos intelectuais, sem os quais lhes seria
impossível efetuar as distinções e as classificações
necessárias ao conhecimento das coisas e de si mesmo
(Wallon, 1986, p.64,citado por Galvão, 2001, p. 63).
Vygotsky, em seus escritos sobre a emoção, tenta superar as cisões da Psicologia
tradicional de sua época e, embora os temas afetividade/emoção estejam de alguma forma
espalhados em sua obra, muitas vezes em forma de capítulos, nem por isso deixam de ser
assuntos potencialmente úteis para essa ciência.
Em seus postulados, Vygotsky, à maneira de outros autores (Rey, 2003, Maturana,
1997), sugere vínculo entre emoção e ação. O autor bielo-russo demonstra claramente em
seus escritos que as emoções são percebidas nos sentimentos mais primitivos, expressas
sob a forma de reações adaptativas de caráter puramente biológico, como é o caso da
emoção elementar, o medo. No aspecto do comportamento, as emoções desempenharam
um papel importante no processo de evolução do animal ao homem. Eram elementos
organizadores nos momentos difíceis e fatais da vida (Vygotsky, 2001).
102
Assim, as emoções são formas biologicamente ativas, utilizadas para adaptações do
homem ao meio, Porém, diante das condições modificadas, as formas exteriores dos
movimentos que acompanhavam a emoção debilitaram-se e vão-se atrofiando em função
da sua inutilidade, mas o papel interno de organizadores de todo comportamento, que era
seu papel primário, continua com elas até hoje (Vygotsky, 2001, pg.138).
Desta maneira, para Vygotsky, há um processo de transição das emoções
primitivas, ou elementares, de caráter biológico, que são a raiva, o medo, a alegria, para
as emoções superiores, por exemplo, a melancolia. Assim, ao longo do desenvolvimento,
as emoções se modificam, vão se distanciando da origem biológica e se constituem como
um fenômeno sóciocultural.
Na verdade, as emoções, enquanto fenômenos sociais, diversificam e tornam
complexo o comportamento, esse considerado como interação do organismo com o meio,
no qual há três formas de correlação que se alternam e que são a base para o
desenvolvimento do comportamento emocional.
A primeira é aquela qual o organismo resolve as exigências e tarefas do meio, sem
dificuldades ou tensão, conseguindo uma adaptação excelente com o mínimo dispêndio
de energia. Neste caso, o organismo sente a sua superioridade perante o meio. A segunda
ocorre quando o organismo se adapta ao meio com dificuldade, grande tensão e perdas de
forças, havendo uma supremacia do meio. Na terceira forma acontece um equilíbrio entre
organismo e meio não existindo supremacia de nenhuma das partes (Vygotsky, 2001).
Vimos então que as emoções introduzem um novo sentido ao comportamento,
regulando-o e orientando-o em função do estado geral do organismo, apresentando-se nas
formas instintivas do comportamento, como “uma espécie de resultado da avaliação que o
103
próprio organismo faz da sua correlação com o meio” (Vygotsky, 2001, p. 136). As
emoções constam de reações prévias, que sinalizam ao organismo qual o futuro e as
formas desse comportamento. Segundo o autor, devemos entender a emoção como uma
reação “nos momentos críticos e catastróficos do comportamento, tanto como os de
desequilíbrio, como súmula e resultado do comportamento que dita a cada instante e de
forma imediata as formas de comportamento subseqüente” (Vygotsky, 2001, p. 136).
Para Vygotsky, assim como a memória e a percepção, as emoções apresentam uma
dimensão social. São funções mediadas pela consciência social, provida pela cultura e
fornece as diretrizes para o sentimento, no que se refere a quando, onde e o que sentir.
Sua existência, qualidade e intensidade são diversas, dependendo dos diversos conceitos e
práticas sociais.
As emoções estabelecem os códigos legais, morais e sociais que as sustentam e
devem ser compreendidas como construtos que possuem propósitos humanos e que
dependem da cognição, da interpretação e da percepção, dentre outros. Por serem
mediadas socialmente, as emoções servem a propósitos comunicativos, morais e culturais
complexos. “O significado complexo de cada emoção é resultado do papel que as
emoções desempenham em toda a gama de valores culturais, relações sociais e
circunstâncias econômicas dos povos” (Ratner, citado por Sousa& Costa, s/d).
O “emocionar” humano é uma condição de sua atividade, ou seja, as emoções estão
relacionadas às ações do sujeito em sua situação cultural. Para Rey, (2003),
As emoções são registros complexos que com o
desenvolvimento da condição cultural do homem passam a
ser uma forma de expressão humana ante situações de
natureza cultural que surgem como sistemas de relações e
práticas sociais; no entanto, essa nova condição do registro
104
emocional não elimina sua capacidade de registros
somáticos e fisiológicos que, em sua complexa relação com
os anteriores, definem o sentido subjetivo da emoção, que
representa um momento essencial de sua definição
subjetiva (Rey, 2003, p.243).
Segundo o autor, o sentido subjetivo da emoção surge da relação de várias emoções
em espaços simbolicamente organizados, onde as emoções transitam. A emoção é que vai
definir a disponibilidade de recursos subjetivos do sujeito para atuar. É o sentido
subjetivo que representa a forma essencial dos processos de subjetivação. Nas palavras do
autor:
O sentido exprime as diferentes formas da realidade em que
complexas unidades simbólico-emocionais, nas quais a
história do sujeito e dos contextos sociais produtores de
sentido é um momento essencial de sua constituição, o que
separa esta categoria de toda forma de apreensão racional
de uma realidade externa (prefácio, p. IX).
Assim, o sentido subjetivo surge mediante as emoções e essas expressam a síntese
complexa de um conjunto de estados afetivos dos quais o sujeito pode ou não ter
consciência. Historicamente, esses estados afetivos se definem por categorias como auto-
estima, segurança, interesse etc. Enfim, são estados que vão definir o tipo de emoção que
dará suporte ao sujeito para desenvolver uma atividade.
A esse respeito, vemos a contribuição de Davidov (1999, p.46, citada por Rey,
2003, pg. 245) que nos esclarece sobre o papel da emoção na organização da atividade do
sujeito. A função geral das emoções é que elas capacitam as pessoas à atividade mas, para
a autora, isto é a metade do trabalho, pois o mais importante é que as emoções capacitam
a pessoa para decidir quais os meios necessita para realizar a tarefa, se físicos, morais e
105
espirituais. “Se as emoções ‘dizem não’, os meios não estão disponíveis, a pessoa se
nega a realizar a tarefa” (p. 245).
A autora estabelece uma relação entre ação e emoção, assim como o faz Maturana
(1997), e reconhece que as ações humanas se fundam no emocional e ocorrem em um
espaço de ações especificadas pelas emoções, essas sendo “disposições corporais que
especificam a cada instante o domínio de ações em que se encontra um animal (humano
ou não), e que o emocionar, como o fluir de uma emoção a outra, é o fluir de um domínio
de ações a outro” (Maturana, 1997, p. 170).
Então, convidando-nos a pensar as emoções com a definição ora transcrita,
Maturana reconhece não só a presença destas em todas as ações humanas, mas que essas
se fundam no emocional, subjacente inclusive ao processo de raciocinar. Com isso,
Maturana propõe a articulação entre objetividade e subjetividade, demonstra a imbricação
entre os aspectos racionais e emocionais, que, na verdade, nunca tiveram separados, mas
que durante muito tempo foram desprezados pela ciência positivista-reducionista, em que
havia uma valorização exacerbada da objetividade.
Se, porém, por um lado houve uma exclusão por parte da ciência dos processos
emocionais e subjetivos, hoje vemos a relevância desses, como no cenário da Ciência
Psicológica (Rey, 2003, Sawia, s/d). É preciso chamar atenção, no entanto, para o fato de
que a referência aos processos emocionais e subjetivos tornou-se um modismo, quando,
por exemplo, o uso das expressões emoção e dos respectivos como afetividade,
inteligência emocional etc., é realizado de forma indiscriminada e manipulada (esta
última observada, por exemplo, quando vemos livros de auto-ajuda, muitas vezes
106
incluídos em prateleiras de Psicologia, prometendo, por meio de receitas e tecnologias de
aplicação rápida, o controle das emoções e dos sentimentos).
Neste contexto, o construto auto-estima, primordial em nosso trabalho, não fica de
fora. Vários são os livros e outros suportes bibliográficos sobre o tema que, em pequenas
lições ou parágrafos, prometem aos leitores ensinar a conseguir manter uma auto-estima
elevada, como num passe de mágica. É vista como uma panacéia, remédio para todos os
males. O modismo do conceito auto-estima parece abarcar todas as áreas, que vão desde
terapias alternativas à gestão de empresas.
O conceito de auto-estima ocupa um lugar em nosso cotidiano, no imaginário, ou
em nossos discursos, de tal forma que a ele habitualmente nos pegamos, utilizando a
palavra nos mais diversos contextos, em relação a nós, aos outros, ao nosso país, a uma
categoria de trabalho ou a uma família. Por exemplo, ao abordarmos o assunto da auto-
estima em qualquer pequeno grupo, a reação é quase imediata; as pessoas demonstram
interesse sobre o tema como algo que lhes diz respeito.
Cada vez mais presente nas discussões de problemas sociais e pessoais, a auto-
estima é considerada um aspecto importante nas relações do sujeito com ele mesmo e
com os outros, envolvendo a capacidade humana de percepção, sentimento e julgamento
em relação a si e aos outros.
O que significa auto-estima? Por que estudá-la? Como esta se forma? Qual o
sentido do termo na vida das pessoas?
Mruk (1995, citado por Assis & Avanci, 2004) ressalta que estudar e pesquisar
cientificamente a auto-estima justifica-se por várias razões:
a) por ser um fenômeno complexo e atrelado à personalidade;
107
b) por vincular-se ao cotidiano, sendo o principal indicador de saúde mental para o
National Advisory Helth Council (1996);
c) por se tratar de uma valorização de si mesmo relacionada com fenômenos
preocupantes, como depressão, suicídio e ansiedade;
d) por ser um tema importante para as Ciências Sociais, já que a percepção que as
pessoas têm de si está ligada às suas vivências e condições sociais básicas;
e) pelo significado social do conceito na atualidade.
3.2. Auto-estima e autoconceito: questões conceituais
Não encontramos unanimidade na definição de auto-estima na literatura; aliás, este
é um dos problemas da pesquisa sobre o tema (Branden, 2000), pois os pesquisadores
avaliam atributos e características diferentes sob a mesma denominação. Encontramos
produções que avaliam alguns aspectos e/ou características desse conceito de forma
simplista e sem um significado preciso (Field, 2001, Lacerda, 2004).
De forma geral, há vários vocábulos usados de forma indiferenciada e muitas vezes
como sinônimos de auto-estima: auto-imagem, autoconceito, ego, autoconhecimento,
autoconfiança. Na verdade, cada um desses termos se refere, muitas vezes, a aspectos da
auto-estima e não a conceitos.
Percorrendo a história humana, divisamos, já no período socrático (século V, a.C.),
a preocupação com o conhecimento de si em alguns dos diálogos de Sócrates com seus
108
discípulos
39
. A máxima pregada por Sócrates – “Conhece-te a ti mesmo” – está gravada
no pórtico do templo de Delfos, na Grécia, o oráculo mais famoso da Antigüidade.
A mudança da idéia de conhecimento de si, contudo, até chegar ao conceito de auto-
estima é um fato recente. O conceito de auto-estima hoje ocupa um lugar importante no
imaginário social, principalmente nos Estados Unidos, onde a palavra composta self-
esteem faz parte do vocabulário cotidiano. Na França, por muito tempo se falou em amor-
próprio numa visão mais afetiva (André & Lelord, 2003). Ainda hoje, o vocábulo ‘auto-
estima’ não é conhecido em todos os idiomas: no italiano, por exemplo, não existe (Voli,
2002).
O desenvolvimento do conhecimento de si, mesmo depois de um longo período de
esquecimento, converteu-se em tema de grande interesse para a Psicologia Evolutiva, a
Psicologia Social e as Ciências da Educação. Uma revisão cuidadosa dos estudos sobre
este tema, entretanto, nos revela a inexistência de um corpo de conhecimentos coerente
(Palácios, & Hidalgo, 1995).
Segundo os autores citados, uma das conseqüências desse fato é que existe grande
confusão terminológica. Vemos expressões como autoconceito, auto-estima, imagem de
si mesmo, conhecimento de si etc, usadas, às vezes, como sinônimos, não havendo uma
definição clara desses termos. Na presente pesquisa, usaremos o termo auto-estima para
fazer referência ao sentimento que o sujeito têm diante da percepção de si.
39 “Que seja fácil ou não, Alcibíades, estamos sempre em presença do fato seguinte: somente conhecendo-nos é que podemos conhecer
a maneira de nos preocupar conosco; sem isto, não o podemos. Parece-me, de acordo com o que acabas de dizer-me, que não conhecer o
próprio valor equivale a se ignorar a si mesmo” (Platão, Alcibíades, 128d-129, citado por Sauvage, 1959).
109
Entre o final do século XIX e meados do século XX, o referido conceito não foi
estudado com muita profundidade e o sentido do termo passou por transformações. O
tema, no passado, referia-se ao narcisismo, egocentrismo, hedonismo, sentimento de
superioridade relacionados a uma perspectiva individualista (Assis & Avançi, 2004).
Hoje, diante de tantas concepções na literatura e no senso comum, torna-se um desafio
buscar definições precisas que nos permitam dialogar com aspectos da realidade a que o
conceito de auto-estima remete.
A seguir, examinaremos algumas definições que elegemos como representativas do
construto auto-estima e, em seguida, situaremos o conceito escolhido por nós para a
discussão.
A primeira tentativa de estudar a auto-estima de forma sistemática foi feita por
William James, um dos precursores da Psicologia como ciência, em sua obra Principles
of Psychology, de 1890. O autor definiu auto-estima como “a percepção do que se é, e do
que se faz, determinada pela relação das supostas realidades e potencialidades
individuais” (Assis & Avanci, 2004, p.26).
O autor pragmatista norte americano também nos aponta o aspecto afetivo da auto-
estima, ao escrever que “o sentimento que temos a nosso próprio respeito neste mundo
depende inteiramente do que apostamos ser e fazer” (James, 1890, citado por Branden,
2000, p.12).
Por meio de uma fração matemática, James fez uma analogia na qual a auto-estima
é o quociente de uma divisão em que o numerador é o sucesso e o denominador são as
pretensões. Nesta tentativa de definição, que data de mais de um século, vemos a auto-
estima estudada de forma objetiva e linear, chegando até a ser comparada a aspectos de
110
uma ciência dada por exata, como a Matemática. Assim, eram ignoradas a complexidade
e a subjetividade do construto (James, 1890, sp/, citado por Branden, 2000, p, 13).
Para James, a auto-estima é um sentimento ou uma emoção que depende de atitudes
e valores sociais; possui um caráter dinâmico, podendo ser aumentada nas pessoas,
aumentando-se os sucessos ou diminuindo-se as pretensões. “Cada pessoa teria,
hipoteticamente, a capacidade de se avaliar em termos de sucessos e fracassos e de eleger
os atributos que considerar de maior valor” (James, 1890, citado por Assis & Avanci,
2004 p.26).
Passaram-se pelo menos seis décadas para que houvesse um investimento maior no
estudo do conceito da auto-estima, significando uma estagnação em termos de avanço
científico. Quase no meio do século XX, especificamente em 1949, com a
fenomenologia, o conceito ressurgiu com Combs & Snygg (citado por Assis & Avanci,
2004) no trabalho intitulado Individual Behavior, no qual os autores remetem à discussão
sobre a percepção do sujeito sobre si mesmo acerca do ambiente.
Assis & Avanci (2004) apontam alguns trabalhos significativos para o
desenvolvimento do conceito de auto-estima por eles formulados.
Assim, as autoras interpretam a definição dada em Rosenberg (1989, citado por
Assis & Avanci, 2004) ao construto como “uma avaliação que o indivíduo efetua e
comumente mantém em relação a si mesmo, expressando uma atitude de aprovação ou
desaprovação” (Assis & Avanci, 2004, p 27). É uma atitude positiva ou negativa para
consigo que envolve não apenas um sentimento, mas também, a percepção e a cognição,
fatores envolvidos na formação de atitudes.
111
Rosenberg, neste contexto, representa um marco divisório no estudo da auto-estima.
Direciona sua ênfase sobre a importância das atitudes e idéias expressas por pessoas
significativas (aquelas consideradas importantes) e pela cultura na formação da auto-
estima do sujeito. O autor ressalta a incapacidade da criança pequena de adentrar
diretamente sua própria experiência, pois inicialmente percebe a reação das pessoas a ela,
entra em contato com os próprios sentimentos e só depois é capaz de pensar sobre si. Em
seu trabalho, Rosenberg demonstrou também que pessoas de culturas comuns têm, de
forma geral, concepções semelhantes a respeito do que seja o ideal do eu.
Considerando os padrões evolutivos que a auto-estima parece seguir, e entendendo
que esse desenvolvimento ocorre mediante as interações sociais que a criança realiza com
os sujeitos que a rodeiam, apresentaremos os resultados dos estudos de Rosenberg (1986)
sobre o autoconceito em crianças de 06 (seis) a 12 (doze) anos, exibidos por Palácios &
Hidalgo (1995). Esses estudos demonstram que o conhecimento que a criança tem de si
vai se modificando ao longo do desenvolvimento:
a) descrevem-se com base em atributos externos – ou seja, quando definem a si,
essas crianças o fazem em termos de atividades que realizam, de seus êxitos ou
habilidades, e de algum traço distintivo de caráter mais geral. Por exemplo: ‘sou
uma criança que brinca de boneca’; ‘sou uma criança que sabe jogar bola’; me
chamo Paula’;
b) descrevem-se em termos globais. Por exemplo, ao se descreverem as crianças o
fazem de forma vaga e não específica: ‘sou boa aluna’;
112
c) compreendem as relações de forma simplória, como simples conexões entre
pessoas – as crianças se definem como amigas, colegas, filhas, ou irmãs; não
concebem as relações sociais em termos de sentimentos; e
d) elaboram o autoconceito com base nas evidências externas e arbitrárias – ou seja,
o autoconceito é baseado em fatos concretos. Por exemplo, uma criança pode
dizer que é teimosa porque a mãe disse.
De acordo com Fierro (1995), o autoconceito é muito mais do que um conceito; é
um conjunto de conceitos, de representações, juízos descritivos e valorativos sobre o
valor de si e refere-se a diferentes aspectos: o próprio corpo, o seu comportamento, a
própria situação e relações sociais, que embasam diferentes conceitos de si – corporal,
psíquico, social ou moral.
O autor acima postula a noção de que as funções dessas representações que formam
o autoconceito são as mesmas de outros esquemas cognitivos, de recepção,
processamento, fluxo e utilização da informação, no último caso referente à informação
disponível para o próprio sujeito.
Segundo Briggs (2002), a auto-imagem (ou autoconceito), ocorre quando o sujeito
tem um novo reflexo, uma nova experiência ou crescimento que leva a outra concepção,
ou a um conceito revisado de si mesmo, demonstrando, por conseguinte, que a visão que
o sujeito tem de si se modifica ao longo de sua vida e de suas novas experiências.
Diante do exposto, vimos que as crianças de 06 a 12 anos, idade escolhida por nós
nesta pesquisa, se encontram diante de uma tarefa importante: de enriquecerem a auto-
imagem com características próprias para que assim possam se diferenciar dos pares.
113
Segundo Palácios & Heidalgo (1995), ao nos interessar pelo valor ou importância
que as crianças atribuem a essas autodescrições, como ela estas avaliam o conceito que
têm de si, estamos ligados na auto-estima, ou seja, na dimensão avaliativa do
autoconceito.
Outra fonte importante de contribuição no desenvolvimento do estudo da auto-
estima foi Coopersmith (Branden, 2000; Gobitta & Guzzo, 2002; Assis & Avanci, 2004)
que denominou auto-estima, como “a avaliação que o indivíduo faz de si mesmo, a
atitude de aprovação ou de repulsa, considerando sua capacidade, seu valor e seu sucesso.
É o juízo valorativo que o indivíduo tem consigo mesmo" (Assis & Avanci, 2004, p. 28).
Para Coopersmith, (1967, citado por Assis & Avanci, 2004), a auto-estima também
expressa uma experiência subjetiva que pode ser acessível às pessoas por intermédio da
observação e de relatos verbais. O autor considerou relevante o seu estudo pela relação
que encontrou, em crianças, entre auto-estima rebaixada, dominação, punição e rejeição
(Gobitta & Guzzo, 2002). A criança nessas condições citadas, comenta Coopersmith,
vivencia menos o amor e o sucesso pois tende a ficar mais submissa e passiva, havendo
também maior probabilidade de manifestar comportamentos anti-sociais.
Essas investigações de Coopersmith remetem diretamente ao nosso estudo, já que
nos propomos a conhecer a auto-estima de crianças que vivenciaram condições de
punição/dominação e, conseqüentemente, de rejeição, e para nós estes aspectos estão
relacionados. Nessa perspectiva, esse estudioso acredita que os outros significantes para a
criança (em nosso estudo consideramos como sendo alguém da família que assume
função parental com ou sem laços de consangüinidade) alimentam de forma positiva ou
negativa a sua auto-estima.
114
Registamos também neste campo de estudo da auto-estima uma contribuição de
Nathaniel Branden, psicólogo humanista que desde 1954 investiga esse assunto. Seu
primeiro livro sobre o tema foi The psychology of self-esteem, publicado em 1969. Em
seus escritos, o autor considera a auto-estima como “a disposição da pessoa para se
vivenciar como alguém competente para enfrentar os desafios da vida e merecedor de
felicidade” (Branden, 2000, p.37).
Carls Rogers, teórico da personalidade humanista, considerou que a auto-estima
depende da coragem para que o EU se torne e permaneça autêntico (Assis & Avanci,
2004).
Para Miceli, (2003) a auto-estima é “o resultado de uma relação entre auto-
avaliação e aspirações: amplidão da discrepância entre como o ser humano se vê e como
ele gostaria de ser; é um sinal importante do grau de satisfação a respeito de si mesmo”.
O Estado da Califórnia, em 1984, introduziu uma nova abordagem ao conceito, ao
dispor uma grande quantidade de recursos para um programa de pesquisa que tinha como
finalidade institucionalizar o ensino da auto-estima nas escolas secundárias e primárias.
Foi criada uma comissão de especialistas denominada Task Force to Promote Self-
Esteem, composta por vários profissionais (psicólogos, sociólogos e pedagogos) que se
dispuseram a colaborar com o programa (Voli, 2002).
Essa comissão destacou em seus estudos que a auto-estima pode ser aprendida, pois
depende da situação psíquica geral da pessoa e esta pode se modificar. Irá depender de
como aquela sente que percebem, aceitam e querem as pessoas significativas para elas e
também da “maneira pela qual se desenvolveu desde a infância, a sua segurança, auto-
115
conceito, senso de pertença, motivação e competência e os integrou em sua
personalidade” (Voli, 2002, p. 51).
A nova abordagem do conceito de auto-estima, proposta pela comissão, sugere que
auto-estima não é apenas apreciação do próprio valor e importância, mas também é um
compromisso do indivíduo em assumir a responsabilidade por si mesmo e por suas
relações intra e interpessoais. Assim, a ênfase nesse conceito é a auto-apreciação e
responsabilidade por si mesmo, nos dando uma idéia de que esse aspecto da
subjetividade, a auto-estima, é um processo individual, e isolado do contexto social.
Para André & Lelord (2003), a auto-estima não é somente uma avaliação pessoal,
mas também uma antecipação, ou uma tentativa de prever a avaliação dos outros. Há
quem a chame de ‘eu-espelho’ (Cooley, C. H, 1902, citado por André & Lelord, 2003).
Pesquisando a etimologia do vocábulo “auto-estima”, verificamos que este vem do
latim aestimare, que significa ‘avaliar’, pensar, julgar (Houaiss, s/d). A mesma referência
define o termo como a “qualidade de quem se valoriza, se contenta com seu modo de ser
e demonstra, conseqüentemente, confiança em seus atos e julgamentos”. Nessa definição,
encontramos um conceito que abarca importantes aspectos, como o cognitivo, afetivo e
comportamental.
Auto-estima e autoconceito são vocábulos freqüentemente usados como sinônimos,
porém, vários autores concordam com a noção de que sejam elementos distintos, embora
interligados (Assis & Avanci, 2004; Gobitta & Guzzo, 2002; Moysés, 2001).
Como discutem Damon e Hart (1982, citados por Palácio & Hidalgo, 1995), a auto-
estima, diferentemente do autoconceito, remete a uma orientação afetiva, que pode ser
positiva e negativa e, neste sentido, a grande maioria das investigações sobre auto-estima
116
dá ênfase aos fatores que vão determinar uma alta ou baixa auto-estima, e se existem
tendências gerais ao longo das fases: infância, adolescência e idade adulta.
Em seu estudo recente, Assis & Avanci (2004) conceituam auto-estima como “a
avaliação que a pessoa faz de si mesmo. Expressa uma atitude de aprovação ou de repulsa
e até que ponto ela se considera capaz, significativa, bem sucedida e valiosa. É o juízo de
valor expresso nas atitudes que o indivíduo tem consigo mesmo” (p.16). Para as autoras, a
auto-estima está ligada ao autoconceito e esse “se refere à organização hierárquica e
multidimensional de um conjunto de percepções de si mesmo” (p.17).
Na mesma direção, Moysés (2002) assinala que autoconceito e auto-estima são dois
processos ligados, dos quais o autoconceito é a percepção de si, formada na estrutura
cognitiva e a auto-estima é o sentimento de valor que acompanha a percepção que a
pessoa tem de si. Para a autora, a auto-estima é “a resposta no plano afetivo de um
processo originado no plano cognitivo. (...) Em termos práticos, a auto-estima se revela
como a disposição que temos para nos ver como pessoas merecedoras de respeito e
capazes de enfrentar os desafios básicos da vida” (p.18).
Quanto mais as pessoas têm um autoconceito que corresponde às suas capacidades
reais, à sua habilidade e ao seu potencial, mais provável é o sucesso dessas pessoas e
maiores oportunidades de se verem como pessoas adequadas (Briggs, 2002).
O autoconceito da criança ou sua auto-imagem é produto de numerosos reflexos
que fluem de muitas fontes, que vão desde a forma como as pessoas tratam a criança, o
domínio físico sobre si mesma e sobre o ambiente, até o reconhecimento em áreas
importantes para a criança.Para a autora, “esses reflexos são como instantâneos de si
117
mesma que ela cola num álbum imaginário de retratos, e que formam a base de sua
identidade” (Briggs, 2002, p. 21).
Na verdade, acreditamos que, apesar de serem imbricados, os construtos de auto-
estima e autoconceito são diferentes, podendo o autoconceito ser considerado o
componente racional e a auto-estima o dado afetivo e emocional.
O autoconceito compreende as crenças que os sujeitos têm de si, é um ponto de
referência que se mantém relativamente constante com as mudanças de circunstâncias.
Essas crenças podem ser de caráter puramente descritivo ou neutro, como, por exemplo,
“moro em Natal”, e podem ser avaliadoras, as quais têm um valor (positivo ou negativo) e
uma informação que possui algum poder ou não, em relação a um objetivo, por exemplo,
“sou um bom amigo”. Essa avaliação permite ao sujeito algum poder, pois é uma forma
de receber aprovação social. Ainda não temos muita clareza, entretanto, sobre o limite
entre as crenças neutras e avaliadoras, até porque uma crença neutra em determinados
contextos pode ser permeada por avaliações em outros (Miceli, 2003).
A todo o momento, conscientes ou não, estamos fazendo avaliação sobre o mundo
físico, social e sobre nós próprios, porém, diante de todas as avaliações que fazemos,
nenhuma é mais importante do que a que fazemos a respeito de nós, pois exerce
influência em nossos pensamentos, sentimentos e ações.
Se não formos capazes de nos avaliar e de diferenciar as nossas avaliações das
avaliações dos objetos, não poderemos distinguir o que depende de nós para mudar, por
exemplo, e o que está depende das circunstâncias externas. Este fato se torna importante
quando somos capazes, por exemplo, de avaliar as probabilidades do sucesso nos
contextos e de conseguir meios para nos adequar a elas (Miceli, 2003).
118
Ilustrando essa afirmação, a autora escreve:
Avaliar é uma atividade cognitiva de importância
fundamental. Se é verdade que as avaliações são crenças
sobre poderes, saber o que é bom ou ruim, ou quanto o é e
para quais objetivos, é uma condição para um
comportamento eficiente. Sem avaliações, sejam positivas
ou negativas, agiríamos “no escuro”, aumentando o risco de
insucessos e o desperdício de energias e recursos (Miceli,
2004, p.45).
Assim, quase tudo o que acontece com os sujeitos, o que fazem ou sofrem, possui
uma leitura avaliadora.
E qual os objetivos dessas perguntas sobre o valor, que acompanham as atividades e
experiência do sujeito, seus sucessos, fracassos e até mesmo suas expectativas em relação
ao seu futuro?
Neste contexto, são dois os objetivos da auto-avaliação: os sujeitos se conhecerem e
gostarem de si. Quando os sujeitos se avaliam para se conhecerem, eles querem saber
qual a sua natureza, quem são e em que medida são competentes (quanto “valem”), sendo
este objetivo puramente cognitivo, ligado ao seu autoconceito. O outro objetivo da auto-
avaliação é o sujeito saber que vale, se é quem gostaria, e está ligado à auto-estima. São
questões que, de forma silenciosa, acompanham e afetam as experiências dos sujeitos e
suas ações
40
(Miceli, 2003).
A auto-avaliação, positiva ou negativa, existe nas circunstâncias mais diversas. Por
exemplo, a criança que sofreu violência pode pensar que contribuiu de alguma forma,
40 Uma análise mais aprofundada sobre os dois objetivos auto-avaliadores fundamentais, sobre os mecanismos e processos cognitivos
da avaliação e auto-avaliação, encontra-se no livro La Cognizione del valore de Miceli e Castel Franchim Milano, Angeli, 1992 (citado
por Miceli, 2004, p. 171)
119
com seu comportamento ou imprudência, à agressão da qual foi vítima.
Um dos aspectos divergentes em relação à auto-estima é se esta é um fenômeno
global ou situacional. Sendo esse sentimento global, é relativamente consistente, permeia
todas as ações do sujeito, e tem influência em suas percepções, desempenhos e
comportamentos. Está mais relacionada com o bem estar-psicológico do que com os
sucessos e/ou fracassos em diversas áreas da vida (Miceli, 2003). Essa proposta é
defendida por alguns autores como Rosenberg, (1989, citado por Assis & Avanci, 2004).
Para outros autores como Coopersmith (1967, citado por Assis & Avanci, 2004) e
Miceli (2003), poderíamos estudar a auto-estima em áreas específicas; por exemplo, o
sujeito pode se sentir competente em Geografia e não em Português, ou o sujeito pode se
sentir valorizado na escola e não na família. A auto-estima específica possibilita prever o
comportamento do sujeito em um determinado domínio de atividade, bem como o
sucesso e o fracasso nessas ações.
Assim, uma auto-estima em uma área não nos permite prever a auto-estima global
dos sujeitos, pois se refere a uma parte de suas auto-avaliações. Mesmo se levarmos em
conta as várias auto-estimas do sujeito, nem sempre será possível chegar a reconstruir a
sua auto-estima global. Um fator a considerar nesse fato é que, para o sujeito, a
importância atribuída a uma determinada auto-estima, bem como sua avaliação positiva
em uma determinada área, interferirá em sua auto-estima global (Miceli, 2003).
Mesmo aqueles que entendem que o conjunto de auto-estimas específicas não
corresponde necessariamente à soma das partes (auto-estima global), admitem a
influência de uma sobre a outra, mesmo sendo indicadores diferentes (Micele, 2004),
fazendo-nos acreditar que os sujeitos tendem a ter um sentimento generalizado de
120
apreciação de si mesmos (Assis & Avanci, 2004), sinalizando-nos para a complexidade
do conceito.
Deste modo, não podemos compartimentar a auto-estima. Ela deve ser entendida
como visão global sobre si mesmo. “É difícil ter uma boa auto-estima num domínio sem
que isso não exerça ação positiva no domínio vizinho. Inversamente, uma auto-estima
medíocre num setor alterará necessariamente nosso nível global de auto-satisfação”.
(André & Lelord, 2003, p. 27).
Outro ponto da distinção entre os autores refere-se à existência de um grau de
estabilidade ou instabilidade como atributo da auto-estima. Assim como o próprio
conceito, não há consenso a esse respeito. Alguns autores apontam que a auto-estima
pode ser estável e outros postulam sua instabilidade. Os que lhe conferem estabilidade
acreditam que ela é constituída na infância e se mantém da mesma forma ao longo da
vida (White, 1959; citado por Assis & Avanci, 2004; Rosenberg, 1989, citado por Assis
& Avanci, 2004;).
Os autores que apontam a sua instabilidade, (Lerner, 2003; Assis & Avanci; 2004;
Miceli, 2003; Voli, 2002) acreditam que há momentos de equilíbrios e desequilíbrios e
que esses dependem da capacidade de transformação do indivíduo (Assis & Avanci,
2004) e das circunstâncias de seu contexto.
Existem fatores que determinam e favorecem a estabilidade da auto-estima e podem
ser “contemporâneos, isto é, atuar hoje na auto-estima do sujeito, ou históricos, ou seja,
remontar sua história pessoal e particularmente às suas experiência precoces” (Miceli,
2003, p. 114).
121
Embora seja constituída desde a infância (aspecto que vamos discutir
posteriormente), a auto-estima oscila em momentos significativos da vida (Assis &
Avanci, 2004), como na adolescência. É importante que seja considerada como um
processo dinâmico e sujeito a mudanças ao longo da vida. Por isso, podemos interferir no
bem estar dos sujeitos através de ações e programas com esse propósito.
Nas produções sobre auto-estima, bem como no discurso cotidiano, observamos os
termos: baixa e alta auto-estima, auto-estima saudável, auto-estima adequada, boa auto-
estima, auto-estima negativa, dentre outros. Porém o que percebemos é que há, em grande
parte dos escritos sobre o tema, uma dificuldade dessa avaliação que é postulada por meio
de características.
Encontramos em alguns autores a tentativa de avaliação de algum destas expressões
citadas.
Miceli (2003) postula que para sabermos se uma pessoa tem alta ou baixa estima, é
necessário conhecer o que ela pensa de si, o que desejaria ser, e verificar a discrepância
entre os resultados efetivos e os desejados das auto-avaliações. Sendo a discrepância
grande, a auto-estima será baixa; se for pequena, será alta, a pessoa estará correspondendo
a seus desejos, expectativas e ambições. A autora tenta clarear melhor essa colocação
quando escreve sobre os objetivos relacionados à auto-estima.
Para os objetivos da auto-estima, é mais importante a
relação entre as avaliações e as aspirações da pessoa do que
a maneira como ela se vê e se avalia. (...). O tipo de
objetivo e, portanto, o tipo de discrepância explicam essas
reações: quando a pessoa não é do jeito que gostaria de ser
sente-se descontente e desanimada; quando não é como
deveria ser censura-se e se castiga com sentimentos de
culpa e desprezo (Micela, 2003, p. 75).
122
As pessoas têm também que enfrentar e administrar as discrepâncias entre aquilo
que pensam ser e o que os outros gostariam que elas fossem, tanto em relação aos desejos
e do que deveriam ser ou se tornar. Esses desejos e expectativas têm um papel importante
na constituição do autoconceito, valores e aspirações das pessoas.
Para Miceli, o que as pessoas querem ser é uma mistura de exigências que fazem a
si mesmas ou de referências para o seu eu. As pessoas têm dois tipos de ’querer ser’ que
são – o que gostariam de ser – que são os desejos e ambições relacionados a elas mesmas,
e – o que pensam que deveriam ser – com base nas regras morais e sociais.
Concordamos com Micele sobre suas definições de alta auto-estima e baixa auto-
estima, correspondendo à discrepância entre os resultados efetivos e os desejados das
auto-avaliações, pois acreditamos na importância destas, principalmente, as que as
pessoas fazem a seu respeito, que influenciará sentimentos e ações. Remetemo-nos
também à relação existente entre violência familiar contra a criança e aspirações,
expectativas dos pais desta, fato que interfere diretamente no autoconceito e na auto-
estima daquela.
Feldman (2002, citado por Molina, s/d) escreve algumas características de crianças
com auto-estima alta, dentre elas: são otimistas e entusiastas a respeito da vida,
confiantes, amistosas, interessadas pelos outros, felizes, com senso de humor, assumem
riscos, enfrentam situações novas, fixam metas, demonstram gratidão, são flexíveis,
independentes e autodiretivas, são assertivas e expressam suas opiniões.
Segundo o mesmo autor, há também várias características de crianças com auto-
estima baixa, dentre elas: são tímidas e temerosas em tratar com coisas novas, instáveis e
negativas, inseguras, têm baixo rendimento, são estressadas, coléricas, reservadas e com
123
dificuldades de se relacionarem com os outros. Também apresentam comportamentos
submissos e dão pouca importância a si mesmas.
Nesta mesma direção, André & Lelord (2003) acham que as crianças com auto-
estima alta têm idéias claras sobre si mesmas; falam de si de maneira clara e positiva; têm
um discurso coerente sobre si; o julgamento sobre si é estável e depende relativamente
pouco das circunstâncias e dos interlocutores.
As pessoas com auto-estima baixa, para os mesmos autores, têm a sensação de se
conhecerem mal; falam de si de forma neutra; descrevem-se de forma mais moderada e
imprecisa; têm um discurso sobre si às vezes contraditório; têm um julgamento sobre si
pouco estável e pode depender das circunstâncias e dos interlocutores (André & Lelord,
2003).
Uma auto-estima alta, realística, ou seja, fiel aos fatos e autêntica, constituída de
auto-avaliações que a pessoa acredita corresponder à verdade, estável e global,
corresponde a um prognóstico de um bem-estar psicológico maior do que uma auto-
estima baixa, irrealística, instável e específica (Miceli, 2003).
3.3. Importância, formação e elementos da auto-estima
A auto-estima é um aspecto importante da vida porque está intimamente ligada à
saúde. As pessoas não podem ser saudáveis se não têm um bom vínculo consigo e uma
imagem de auto-afirmação que lhes permitam se projetarem no mundo de maneira
autovalorativa (Lerner, 2003).
A forma como nos sentimos a respeito de nós mesmos afeta crucialmente nossas
ações e experiências de vida. Na verdade, a auto-estima é um fator determinante para o
124
êxito e o fracasso (Briggs, 2002). É uma necessidade humana, tem valor de sobrevivência
e contribui para um desenvolvimento saudável (Branden, 2000). Inclui a compreensão
que a pessoa tem de si e dos outros, ou seja, interfere na relação do sujeito com ele
próprio e com os outros.
A auto-estima também é considerada um fator determinante no êxito escolar, nas
relações sociais e na saúde mental (Palácios, Hidalgo,1995). Por outro lado, também está
associada a graves problemas sociais, como delinqüência, abuso de drogas, prostituição,
gravidez precoce, problemas de aprendizagem, dentre outros. Consideramos também
importante a auto-estima porque está ligada à maneira de ser, pensar, avaliar e valorizar
expressa pelas pessoas.
A auto-estima é também associada a um dos fatores de proteção (individual) para a
criança e o adolescente, juntamente com o autocontrole, autonomia, características de
temperamento afetuoso e flexível (Brooks, 1994; Emery & Forehand, 1996; citado por
Pesce; Assis, Santos, Oliveira, 2004)
41
. Em um estudo feito por Pesce; Assis; Santos;
Oliveira (2004), foi verificado que a auto-estima, fator de proteção individual, teve
associação com a resiliência
42
.
41 Os fatores de proteção constituem os mecanismos de que um indivíduo dispõe internamente ou capta do meio em que vive.De forma
didática , existem três tipos de fatores de proteção para a criança/adolescente “(1) fatores individuais: auto-estima positiva, auto-
controle, autonomia, características de temperamento afetuoso e flexível; (2) fatores familiares: coesão, estabilidade, respeito mútuo,
apoio/suporte; (3) fatores relacionados ao apoio do meio ambiente: bom relacionamento com amigos, professores ou pessoas
significativas que assumam papel de referência segura à criança e a faça sentir querida e amada” (Brooks, 1994; Emery & Forehand,
1996, citado por Pesce; Assis, Santos; Oliveira, 2004, p.5).
42 O termo ainda não apresenta uma definição consensual, mas consideraremos resiliência como o conjunto de processos sociais e
intrapsíquicos que possibilitam o desenvolvimento de uma vida sadia, mesmo vivendo em um ambiente não sadio, até o seu limite. Este
processo resulta da combinação entre os atributos da criança ou jovem e seu ambiente familiar, social e cultural (Pesce; Assis; Santos;
Oliveira, 2004, p.1).
125
Neste sentido, diante de vários fatores de risco que estariam afetando a capacidade
de resiliência de nossas crianças – pobreza, rupturas na família, experiências de violência
na família, de doença, perdas importantes – é necessário maiores estudos sobre a relação
auto-estima e resiliência, pela importância na área de promoção em saúde e educação, já
que são temas no Brasil ainda pouco estudados.
Nessa perspectiva, considerando a importância da auto-estima, interrogamos-nos
como a mesma se forma e se constitui na criança. A criança não nasce com auto-estima;
essa surgirá e se desenvolverá durante sua vida e com as relações que ela estabelece com
os demais.
Um estudo de Coopersmith, 1967,
43
(citado por Briggs, 2002) afirma que a
formação da auto-estima não tem relação direta com as condições financeiras, a
educação, moradia, ocupação do pai, ou mesmo com a presença permamente da mãe em
casa, mas sim com a qualidade das relações entre a criança e as pessoas que
desempenham um papel significativo em sua vida.
Nessa mesma direção, Feldman, (2002, citado por Molina, s/d), pensa que a auto-
estima se desenvolve com as experiências e as relações das crianças com os outros.
Quando há experiências de êxitos e recordações de ações positivas, a auto-estima
aumenta, entretanto quando existem fracassos e reações negativas, ela diminui. Para o
autor, a auto-estima é uma combinação de inúmeras experiências, interações e
informações provenientes do meio, e não o resultado de um êxito, um comentário e uma
aprendizagem.
43 Para maior esclarecimento sobre o estudo, ver em The Antecedents of Self- Esteem, São Francisco, 1967 (Stanley Coppersmith,
citado por Briggs (2002).
126
De acordo com Molina (s/d), os pais, irmãos, amigos e professores têm influência
no desenvolvimento e formação da auto -estima. Para o autor, a maneira como a
sociedade percebe a criança influenciará na maneira como a própria se vê.
Assim, nenhuma criança pode ver-se diretamente, mas somente através dos reflexos
que produz nos outros. Essa visão que a criança tem sobre ela é desenvolvida a partir do
contexto social, na família, na escola, na rua, com os amigos etc.
As pessoas significativas para a criança funcionam como espelhos psicológicos que
devolvem reflexos positivos e negativos de si própria. De certo modo, essas pessoas
percebem essa criança através de filtros elaborados por suas experiências, necessidades
pessoais e valores culturais. Quando, por exemplo, a mãe, chama a criança de ‘feia’, ela
concluirá que esse adjetivo deve ser uma de suas qualidades e então passará a adotar esse
rótulo no momento específico da situação, contribuindo para a formação do autoconceito
e de um juízo negativo de si (Briggs, 2002).
A aprendizagem que a criança faz sobre as referências a seu respeito é lenta e
gradual. As mais fáceis de ter seu sentido apreendido são aquelas que nascem de
comentários ao seu comportamento.A este respeito, Moysés (2001) comenta que a
criança, ao observar a situação em que as referências foram produzidas, as reações
emocionais do interlocutor e a própria entonação com que são ditas, “vai fazendo
aproximações do seu significado real, ao mesmo tempo em que vai internalizando tais
comentários, até chegar a adotá-los como seus” (p. 23).
Assim, quando uma criança é elogiada pelas pessoas significativas para ela, ou
quando a nomeia ou adjetivam, por exemplo, de inteligente, temos a devolução, para a
criança, de reflexos positivos de si mesma, concorrendo para um autoconceito positivo.
127
Quando a criança absorve as descrições que os outros fazem, assimila também as
suas atitudes em relação as suas qualidades. Por exemplo, quando um pai diz a uma
criança ‘você é danada’, um julgamento de valor está implícito nessa frase: ‘e isso é
mau’. A criança, nessa situação, começa a ver-se como agitada e a pensar que ser danada
é um traço negativo. “Ela pode, então reprimir uma parte natural de si mesma para
conseguir aprovação e aumentar seu respeito próprio, ou aceitar o julgamento do pai,
sentir-se um pouco menos aceitável devido a essa qualidade” (Briggs, 2002, p. 22).
Para a autora, então, o comportamento corresponde à auto-imagem e uma das
causas do mau comportamento na criança é um autoconceito negativo. A criança
modifica seus atos para corresponder à referência que lhe fizeram. Quanto mais o
comportamento é inadequado na visão dos pais, tanto mais ela é censurada, punida e
rejeitada e, conseqüentemente, mais convicta se tornará do atributo que lhe impuseram.
Briggs (2002) pensa que as palavras são menos importantes do que os julgamentos
que as acompanham, pois o juízo que a criança faz de si mesma é decorrente do juízo dos
outros significativos.
Então, a auto-estima não se desenvolve em um vazio nem é fruto de uma percepção
isolada que os sujeitos têm sobre si, mas a partir de modos de olhar significativos que eles
recebem desde os primeiros anos, em interação com o seu contexto social. Essas maneiras
de entender que funcionam como espelhos para a criança, lhe modelam a imagem e
encerram importância fundamental para a sua vida.
Desde o momento do nascimento, as crianças são capazes de perceber algumas
experiências emocionais dos demais. Isso não quer dizer que elas reconheçam as pessoas,
coisa que só ocorre até o segundo trimestre de vida. Por volta do oitavo mês, as crianças
128
discriminam as pessoas a sua volta, modificam seu comportamento em relação a elas.
Dependendo do encontro, elas poderão manifestar medo, cautela etc. Essas reações
demonstram que as crianças, nessa idade, conseguem dar um significado à situação
desses encontros e fazer uma avaliação a respeito das pessoas (López, 1995).
Segundo López, tudo leva a crer que a criança só reconhece a si mesma ao
reconhecer as outras. Antes do final do primeiro ano de vida, elas parecem não se
reconhecer, embora reconheçam algumas partes de seu corpo e objetos pessoais. Quando
aprendem seu nome, elas terão um símbolo que as faz pensarem sobre si mesmas
separadamente dos outros. Ao final do primeiro ano de vida, possuem habilidades para se
reconhecer e se diferenciar de outras pessoas. Com dois anos, as crianças são capazes de
se reconhecerem, fase em que utilizam os pronomes pessoais e poderão a partir daí
atribuir-se qualidades, descrever-se e julgar-se (Briggs, 2002).
Por volta dos cinco anos, a criança já assimilou reflexos suficientes a seu respeito,
transmitidos pelo ambiente e pelas pessoas que a cercam, para poder formar a primeira
estimativa de seu valor. Ressaltamos que a auto-estima não possui caráter definitivo, pois
a visão que a criança tem de si modifica-se com o crescimento e com suas experiências e,
depois de formada, não é fácil modificá-la (Briggs, 2002).
Clemes y Bean (1998, citado por Hurtado, s/d) indicam quatro fatores relativos ao
entorno familiar que contribuem para que o desenvolvimento da auto-estima aconteça de
forma equilibrada. São os seguintes:
a) vinculação – a criança necessita sentir-se parte de uma família, irmãos ou um
grupo; necessita saber que tem alguém que se preocupa com ela, que é importante
para alguém. A criança precisa ser escutada, protegida, participar e dar sua
129
opinião. A vinculação está relacionada com a abertura para aceitar a criança e
oferecer-lhe segurança, compreensão e senso de humor, manifestados pelas
pessoas que a rodeiam e que são importantes para ela; relaciona-se também com o
sentimento da criança de saber que há objetos significativos para ela e que lhe
pertencem.
b) singularidade – a criança necessita saber que é especial e particular, embora
tenha aspectos parecidos com os irmãos e amigos. Ser singular significa ainda
saber que tem um espaço para se expressar. A singularidade se constitui pelo
respeito que os outros têm para com a criança, e pela permissão que lhe oferecem
para criar e inventar, incentivando-a a imaginar e valorizar suas habilidades;
c) poder – A criança necessita de um espaço onde possa ter poder. Nesses termos,
significa, por exemplo, poder fazer o que planejou e que terá grandes chances de
ter sucesso. Quando isso não ocorre, a criança precisa compreender o porquê dos
impedimentos para que possa relacioná-los com os futuros propósitos. Quando
aprende uma habilidade, é importante que lhe seja dada oportunidade para praticar
o que aprendeu. O poder também implica em controlar-se diante, por exemplo, de
uma frustração; e
d) modelos – a criança precisa dar um sentido a sua existência e ao que realiza. Para
isso precisa de modelos positivos para que possa diferenciar o bem do mal; ou
seja, as pessoas significativas para a criança servirão de modelos para sua vida: o
que dizem, como dizem, fazem, como fazem, seus padrões éticos, valores,
hábitos, e as crenças que são transmitidos por elas serão profundamente
importantes para seu autoconceito e auto-estima. Também a forma como são
130
postos os limites e as regras para a criança serão especialmente importantes para
que esta perceba que tem uma referência que lhe possibilitará conduzir-se em suas
vivências.
Há vários fatores determinantes para o desenvolvimento da auto-estima, dentre eles
destacamos: “o valor que a criança percebe dos outros em direção a si, expresso em afeto,
elogios e atenção; a experiência da criança com sucessos ou fracassos; a definição
individual da criança de sucesso e fracasso; a forma desta reagir às críticas”(Coopersmith
1967, citado por Assis & Avanci, 2004, p.32),
Nesse cenário, as instituições socializadoras, principalmente família e escola, têm
papéis importantes para a formação e o desenvolvimento da auto-estima na criança;
experiências familiares serão um molde dos mais preponderantes para as opiniões que a
criança terá sobre si e embasarão os valores atribuídos a sua pessoa. Quando essas
experiências são negativas, ou seja, permeadas de humilhações, depreciações e críticas
excessivas, certamente afetarão na opinião e no valor que a criança terá sobre si, que
serão coerentes com essas vivências negativas (Assis & Avanci, 2004).
Existem cinco domínios mais importantes na constituição da auto-estima das
crianças e adolescentes (Harter, 1998, citado por André & Lelord, 2003): a aparência
física, as habilidades atléticas, a popularidade com os colegas, a conformidade social e o
êxito escolar. Não basta, porém, que a criança se saia bem, tanto do seu ponto de vista
quanto do dos outros, pois ela necessita se considerar competente no domínio que julga
importante. A importância que a criança dá aos diferentes domínios da auto-estima,
entretanto, não depende somente de seu julgamento, mas, principalmente, do julgamento
131
que fazem as pessoas que lhe são significativas e são passíveis de alimentar as
competências daquela.
Deste modo, há quatro fontes fundamentais de julgamento significativo para a auto-
estima da criança: seus pais, professores, seus iguais (colegas da turma e da escola) e seus
amigos de vizinhança. Quando todas essas fontes estão presentes, propiciam solidez e
plenitude na auto-estima da criança. Quando uma dessas está ausente, outra poderá, com
sua presença, servir de suporte para a auto-estima, porém, a importância de cada uma
dessas fontes vai variar de acordo com a idade. Quando a criança é mais nova, a opinião
de maior peso é a dos seus pais; à medida que se desenvolve, os seus iguais passam a ter
grande importância, principalmente no que diz respeito aos aspectos físicos, habilidade
atlética e popularidade, mas os pais não ficam completamente à parte, pois ainda são os
maiores provedores de amor para a criança e suas opiniões ainda são muito importantes
tanto no aspecto de conformidade social quanto do êxito escolar.
As quatro fontes de julgamento para a auto-estima trarão, contudo, também, quatro
fontes de pressão em torno de quatro papéis sociais que a criança terá que desempenhar:
ser bom filho, bom aluno, bom colega de turma, bom amigo da vizinhança. Isso lhe
custará um grande esforço para ter que conseguir uma boa imagem social (Harter, 1998,
citado por André & Lelord, 2003).
Para Satir (1998), a criança precisa desenvolver a auto-estima em duas áreas: como
uma pessoa com domínio e sexuada. O domínio está ligado à capacidade de resolver
problemas, à habilidade de tomar decisões, raciocinar, criar, formar e manter
relacionamentos, sincronizar as necessidades com a realidade, planejar, tolerar fracassos
132
etc. A criança desenvolverá estima em relação a si mesma como uma pessoa sexuada se
tiver tido modelos de ambos os sexos.
Podemos fazer a relação do domínio citado há pouco com as afirmações de Branden
(2001) ao declarar que, quanto maior a auto-estima de uma pessoa, mais preparada estará
para lidar com as dificuldades da vida, maior a probabilidade de ser criativa, de
desenvolver relações saudáveis, em vez de destrutivas, e de manter respeito consigo e
para com os outros.
A auto-estima não deve ser confundida com autosuficiência, autonomia, auto-
afirmação (Lerner, 2003) nem com autocontentamento, auto-aceitação, dentre outros.
Todos esses termos podem ser considerados componentes da auto-estima e se referem
também às suas manifestações (André & Lelord, 2003).
Sobre os componentes básicos da auto-estima, também não há unanimidade entre os
autores. Em nosso trabalho, elegemos como elementos básicos, o amor a si mesma; a
visão de si mesma (autoconceito) e a autoconfiança (André & Lelord, 2003), por
acreditarmos que a dinâmica desses irão refletir nas ações do sujeito, e por estarem
associados às aprendizagem familiares e, nesse sentido, contribuirão de forma
interdependente na vida do sujeito.
Antes de expressar nosso entendimento sobre esses elementos básicos da auto-
estima, queremos esclarecer o que elegemos como acepção de amor. Aliás, sobre a
palavra amor, há uma grande variedade de significado, expressão e comunicação. Ao
solicitarmos para dez pessoas que conceituem a palavra amor, provavelmente teremos dez
respostas diversas. O mesmo ocorre em relação à forma das pessoas expressarem e
comunicarem o amor; novamente teremos muitas idéias e respostas diferentes.
133
Consideraremos amor
44
o elemento primordial da vida do sujeito que contribui para
um desenvolvimento saudável e é uma mola estimulante em forma de cuidado carinhoso.
No caso de uma criança e seus pais, amar uma criança é tratá-la de forma especial,
valorizando-a da maneira como existe, embora nem sempre se aprovem suas ações
(Briggs, 2002). Esse amor concedido à criança depende, grandemente, do amor que seus
pais receberam de sua família, por parte dos pais deles (André & Lelord, 2003).
Para que uma criança se sinta amada, não é necessário, por exemplo, uma atenção
excessiva, nem lhe oferecer vantagens materiais. A criança se sente amada por seus pais
quando esses lhe possibilitam um encontro verdadeiro, autêntico, que significa uma
atenção focalizada, nascida da participação e presença efetivas. Isso retrata proximidade,
estar aberto às vivências da criança em suas peculiaridades. Essa presença é o que vai
possibilitar a transmissão do amor à criança (Briggs, 2002) e que permitirá a esta a
elaboração do sentimento de ser amada, valorizada e com a percepção de que alguém se
preocupa com ela.
A criança também se sente amada quando os pais lhe proporcionam segurança
psicológica. Isso implica oferecer-lhe a possibilidade de ela vivenciar alguns aspectos
necessários ao encontro verdadeiro, que são a segurança em relação aos seguintes
aspectos – da confiança, do não-julgamento, de ser amada, de possuir sentimentos, da
empatia, do crescimento individual (Briggs, 2002).
44 Utilizamos um conceito de amor diferentemente do conceito de amor de Maturana (1997), embora acreditemos que não sejam
divergentes: “amor é a condição dinâmica espontânea de aceitação por um sistema vivo, de sua coexistência com outro (ou outros)
sistema(s) vivo (s),e que tal amor é um fenômeno biológico que não requer justificação: o amor é um encaixe dinâmico recíproco
espontâneo ”(p.184).
134
A segurança tem como fundamento a confiança transmitida à criança desde os seus
primeiros dias de vida. Quando, por exemplo, a mãe atende às suas necessidades e
satisfações (no âmbito dos cuidados e necessidades diárias), expressa seus sentimentos e
mensagens de forma coerente e sincera.
A segurança psicológica depende dos julgamentos que os pais fazem das crianças.
Quando os pais, por exemplo, fazem um julgamento negativo sobre a criança, quando a
rotulam sobre algum comportamento como, por exemplo, “você é chata” (não separam
comportamento e o ‘eu’), ela incorpora esse rótulo e isso atinge diretamente a sua
imagem. Os julgamentos negativos dos pais, pois, são espelhos negativos para a criança;
ou seja, a criança assimila, em seu autoconceito, a idéia de que está sendo formado, o
rótulo negativo, e passa a se ver de acordo com eles (Briggs, 2002).
Quando os pais conseguem transmitir à criança a noção de que ela é amada, que é
importante, valorizada e reconhecida pelo que faz, por suas capacidades, mais satisfatório
será seu desempenho, mais ela poderá gostar de si.
O respeito pelos sentimentos da criança por parte dos pais também contribui para
lhe dar segurança psicológica. Respeitar os sentimentos da criança não significa deixá-la
fazer tudo o que quer. Na verdade, muitas vezes os pais, no lugar de limitarem o
comportamento da criança, tolhem suas emoções, negam-lhe seus sentimentos e não
respeitam suas experiências individuais. Em decorrência desse fato, a segurança
psicológica é enfraquecida.
A empatia é um fator que interfere na segurança psicológica da criança; é a criança
ser compreendida segundo o seu ponto de vista. Essa compreensão provoca conforto e
segurança (Briggs, 2002). Quando os pais são empáticos com a criança, não procuram
135
mudar os seus sentimentos. Para que a criança seja respeitada é importante que os pais
tenham interesse pela maneira como vê o mundo.
A liberdade de crescer de forma única possibilita na criança segurança do seu
crescimento individual, influenciando na sua segurança psicológica. Os pais, ao
acreditarem no potencial de crescimento da criança e permitirem-lhe se desenvolver no
seu próprio tempo, ao seu modo, sem forçar-lhe a crescer, demonstram uma confiança em
sua capacidade de crescimento e em sua individualidade, aumentando-lhe o auto-respeito
e a segurança.
Embora externemos separadamente esses dois aspectos que contribuem para a
transmissão do amor oferecido pelos pais à criança – encontro autêntico e a segurança
psicológica – (bem como seus aspectos), esses, na verdade, se combinam e são
importantes para a constituição de seu autoconceito e auto-estima.
Diante do exposto, retomamos nossa discussão sobre os elementos básicos que
perfazem a auto-estima a serem utilizados em nossa investigação.
Na literatura, deparamos várias possibilidades sobre os elementos que compõem a
auto-estima. Assumimos em nosso trabalho a contribuição de André & Lelord (2003), ao
considerarem que a auto-estima é composta por três elementos, citados anteriormente: o
amor a si mesmo, a visão de si mesmo e a autoconfiança. Essa escolha justifica-se porque
esses componentes, interligados, possibilitam à criança desenvolver recursos que vão lhe
proporcionar condições para o seu êxito e para o fracasso.
a) A visão de si mesmo – está ligada à noção do autoconceito, à auto-imagem; ou
seja, é a forma como as pessoas se vêem ou como se percebem como sujeitos. O
autoconceito representa um conjunto de percepções que as pessoas têm de si
136
mesmas e que engloba vários conceitos: corporais, psíquicos, morais e sociais. A
visão de si está ligada à visão que as pessoas lançam sobre elas , as avaliações que
fazem de suas qualidades e defeitos (André & Lelord, 2003). Essas avaliações,
que podem ser conscientes ou não, servem para que aquelas possam confiar em si
e em sua capacidade, e está ligada a sua satisfação ou insatisfação (Miceli, 2003).
De forma geral, o autoconceito – essa visão das pessoas sobre si está ligado à
forma como seus pais as olharam e as trataram desde o nascimento. Geralmente
origina-se nas expectativas, projeção de seus pais (André & Lelord, 2003).
b) O amor a si mesmo – significa um sentimento como dignidade, de satisfação
consigo mesmo. Não implica condição e, sim, aceitação de qualidades e defeitos
de forma integral, ou seja, é as pessoas se amarem mesmo com seus defeitos,
falhas e limites, aceitarem-se da forma como são, independentemente de
aprovação ou desaprovação dos outros. “Aceitar a nós mesmos é aceitar o fato de
que as coisas que pensamos, sentimos e fazemos são todas expressões de nosso
ser, no momento em que ocorrem” (Branden, 2001, p.55). Aceitar-se refere-se a
uma atitude de autovalorização e auto-respeito. Esse amor por si mesmo faz com
que as pessoas consigam, diante das dificuldades e adversidades da vida, estar
sempre se recompondo após um fracasso. O amor a si mesmo depende, em grande
parte, do amor que as pessoas receberam em sua família. Está ligado a “qualidade
e coerência dos ‘alimentos’recebidos pela criança” (André & Lelord, 2003, p.25).
c) A autoconfiança – refere-se principalmente às nossas ações. Antecipa a ação.
Está ligada à crença das pessoas em sua capacidade e liberdade de ação. A pessoa
que confia em si e em suas possibilidades ousa agir. “Não há ação ou reação do
137
indivíduo que não seja resultado de maior ou menor segurança pessoal, familiar,
profissional, religiosa, social” (Voli, 2002, p.70). Sua origem depende das
aprendizagens das regras da ação, por exemplo, de ousar, perseverar e aceitar
fracassos (André & Lelord, 2003).
Diante do exposto, vemos que cada elemento tem sua função na formulação da
auto-estima, mas são interdependentes, pois se a pessoa tem amor por si mesma, se
respeita em todas as circunstâncias, ouve as próprias necessidades e aspirações, isso
facilita uma visão positiva de si mesma, ou seja, a pessoa se perceber como alguém digna
de valor, que acredita na própria capacidade, projetar-se no futuro, que, por sua vez,
influencia favoravelmente a autoconfiança, que é o agir sem medo de fracassar e sem
temer a opinião dos outros (André & Lelord, 2003)
Diante dos elementos que compõem a auto-estima, podemos ver que se trata de uma
experiência íntima, bastante significativa para o desenvolvimento da criança, e que
percorre meandros muito mais complexos do que possa parecer, interferindo na
capacidade para pensar e entender, para aprender, eleger e tomar decisões. A criança
precisa amar-se, admirar-se, valorizar-se, acreditando em si e em suas capacidades para
enfrentar os desafios que a vida lhe impõe.
138
4. Metodologia de Trabalho
“Independentemente da sua estrutura e
configuração, a família é o palco em que se vivem as
emoções mais intensas e marcantes da experiência
humana. É o lugar onde é possível a convivência do
amor e do ódio, da alegria e da tristeza, do
desespero e da esperança. A busca do equilíbrio
entre tais emoções, somada às diversas
transformações na configuração deste grupo social,
tem-se caracterizado uma tarefa ainda mais
complexa a ser realizada pelas novas famílias
(Wagner, 2002)”.
4.1. A pesquisa
Esta pesquisa tem como objetivo investigar auto-estima da criança vitimizada pela
família. Para sua realização, optamos pela forma qualitativa, que nos possibilitou acessar
um nível de realidade que não podemos quantificar, mensurar, ou seja, este módulo de
pesquisa nos permite trabalhar com o universo subjetivo, de múltiplos significados,
motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes dos sujeitos. Todos esses aspectos
correspondem a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos e,
neste sentido, não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (Silva , Santos,
Parada, 2004)
A pesquisa qualitativa consiste em um conjunto de técnicas interpretativas que
descrevem e decodificam os componentes de um sistema complexo de significados e tem
como objetivo traduzir e expressar o sentido dos fenômenos sociais (Neves, 1996).
Os instrumentos para constituir os dados visam a facilitar a expressão da
subjetividade dos sujeitos estudados. Assim, os processos subjetivos emergem quando os
139
sujeitos pesquisados se expressam, mediante seu envolvimento nas atividades propostas e
no diálogo com o pesquisador.
Informamos também que esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em
Pesquisa – CEP da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, estando de acordo com
os itens propostos pela Resolução 196/96- CNS-CEP-URFN - registro do protocolo
148/03 que regula a investigação com seres humanos, tendo por base os referenciais de
Bioética, configurados nas idéias de autonomia, não maleficência e justiça.
4.2. O caminho percorrido
Em fevereiro de 2004, dirigimo-nos ao S.O.S. Criança do Município de Natal, para
verificar as denúncias de crianças que sofreram violência física pela família e, a partir daí,
iniciarmos nosso trabalho. Vimos, porém, a inviabilidade de chegarmos até as famílias
que cometeram tal ato, bem como às instituições que acolhem as crianças vitimizadas e
que necessitam do afastamento da família – os abrigos – pois as crianças ficam nessas
instituições, muitas vezes, por pouco tempo e não teríamos como desenvolver as
atividades propostas.
Decidimos, então, selecionar algumas crianças cujas famílias haviam sido
denunciadas por maus - tratos físicos ao S. O S. Criança . A opção por pesquisar crianças
de 6 completos a 12 anos incompletos, decorre de:
a) esta faixa etária é especificada pelo ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente,
como compreendendo a infância.
b) compreender o início da escolarização, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (Lei Federal nº. 9394, aprovada em 20 de dezembro de
140
1996), que consolida e amplia o dever do poder público para com o ensino
fundamental e por verificar na literatura (Azevedo, 2002; Ferrari, 2002; Corsi,
2003, dentre outros) que crianças que sofreram violência física pela família
apresentam conseqüências no âmbito educacional, como problemas de
aprendizagem, absenteísmo e evasão escolar;
c) possibilidade de se pensar um trabalho preventivo de violência. Para isso é
necessário trabalhar também com as crianças, pois evidência empírica (Falheiros,
1998; Corsi, 2003, Ribeiro, 2001, Baptista, 2002; dentre outros) demonstra que os
pais que sofreram violência física quando crianças vêm a espancar seus filhos,
transmitindo a violência de geração a geração.
Registramos alguns casos de crianças na faixa etária escolhida, cujas famílias
haviam sido denunciadas por violência e observamos que em alguns desses já havia
reincidências das queixas. Dentre os violadores, estavam mãe, pai, padrasto e avó. Todas
as crianças estavam freqüentando a escola.
Em seguida, fizemos o itinerário das escolas das crianças contempladas e iniciamos
nosso trabalho, que teve como foco entrevistar as crianças cujas famílias haviam sido
denunciadas no S. O . S.- Criança do Município de Natal -RN- Brasil.
4.3. A pesquisa empírica e os sujeitos
A pesquisa foi realizada com crianças de três (3) escolas públicas, porém, a seleção
não foi aleatória, já que eram escolas onde as crianças das famílias notificadas pelo S.O.S.
estudavam. Nessas escolas, tínhamos a indicação de um sujeito em cada uma. Ao
chegarmos a elas, entretanto, e solicitarmos o sujeito já identificado por nós anteriormente
141
e mais alguns de seu grupo de pares, nos deparamos com uma realidade em que
constatamos que um número significativo de crianças também sofrem/sofriam violência
física por parte de suas famílias, sem que estivessem registradas no S. O S.
Assim, o grupo de sujeitos foi composto por crianças identificadas por nós
previamente no S. O. S – Criança – e por crianças da mesma sala. Ao todo foram sete (7)
sujeitos, sendo duas do S. O. S - Criança - e as outras cinco (5) incluídas quando das
visitas às escolas. Após algumas conversas iniciais com os responsáveis pela escola
(diretores, coordenadores ou supervisores) para apresentar nosso projeto, bem como
solicitar a permissão para desenvolver a pesquisa, solicitamos a lista de freqüência para
que localizássemos a criança identificada por nós no S. O. S.- Criança e, ao mesmo
tempo, de forma aleatória, tomávamos mais três crianças da mesma sala para que não
configurasse uma atitude discriminatória para com a criança que tínhamos interesse em
investigar.
Os nomes dos sujeitos pesquisados são todos fictícios, preservando-se por
conseguinte, a identidade das pessoas e o sigilo das informações concedidas.
142
vai trabalhar e volta sozinho. Diz que ajuda o padrinho (que é vizinho) a consertar caixa
de som, mas que não ganha por isso. Diz que gosta de brincar de videogame e com os
passarinhos que tem em sua casa.
ESCOLA B - L. M.
Criança - Rosa - intermediário
45
Caracterização geral da criança
Rosa tem 10 anos. Mora com a avó materna, a mãe e uma irmã de 6 anos. Tinha um
irmão que morreu aos 12 anos. Gosta de brincar, de pular corda, queimada e academia
(amarelinha). Diz que brinca com os primos e com os amigos perto de casa. Gosta da
escola. Nos fins de semana vai à missa, ao parque e brinca de bicicleta. Em sua casa
quem trabalha é a avó, na feira às sextas - feira e domingo, vendendo frutas; e sua mãe;
que trabalha o dia inteiro como doméstica. Fala que gosta do bairro e mora pertinho da
escola, o que lhe permite ir e voltar sozinha. Gosta de arrumar a casa, de ajudar a mãe,
mas não gosta de lavar a louça.
ESCOLA B- L. M
Criança - Paula- intermediário
Caracterização geral da criança
Paula tem 11 anos, mora com a mãe, o pai e três irmãos mais novos. O pai trabalha
e a mãe fica em casa. Diz que gosta da escola. Vai e vem sozinha da escola porque fica
perto de usa casa.Gosta de brincar com amigas e primos, de ir à praia e a casa da avó.
Gosta de brincar de tica (brincadeira de correr)
45
O turno intermediário é o turno existente entre o horário da manhã (7h:00 – 10h.30min) e o da tarde
(14h.40min.- 18h:00). Seu início corresponde às 10h.40min e termina às 14h.30min.
143
ESCOLA C- E. U.
Criança- Vicente- vespertino
Caracterização geral da criança
Vicente tem 6 anos, diz que gosta da escola porque vai aprender a ler. Mora com a
mãe, irmã de um ano, um tio (padrasto) e uma tia. Gosta de brincar de tica, de pula-corda
e de soltar pipas com os primos e amigos. Mora longe da escola, vai e volta a pé, sozinho.
Diz que ninguém o ensinou a andar sozinho até a escola. .Diz que em sua casa quem
trabalha fora são os tios, que fazem pintura. Diz que já sabe ler e que aprendeu a ler na
aula de reforço. Apresentava marcas no rosto, resultantes de “agressão” (não investigada)
recente.
ESCOLA C- E.U.
Criança – Daniela – intermediário
Caracterização geral da criança
Daniela tem 6 anos, faz a 1ª. série. Mora com a mãe, pai, uma irmã de nove anos, e
um irmão de 1 mês. Gosta de brincar de casinha, escolinha e boneca. Somente o pai
trabalha como eletricista. Gosta da escola e vai e volta com a mãe no fim de semana, vai
para piscina, praia de Ponta Negra e brinca com a mãe.
ESCOLA C- E. U.
Criança - Keila- intermediário
Caracterização da criança
Keila tem 6 anos, gosta de estudar na escola. Mora com o pai, a mãe, e 2 irmãos (9
anos e 3 anos). O pai trabalha ajudando o tio a fazer entregas no frigorífico; a mãe
trabalha em casa . Ela diz que às vezes arruma a casa toda, gosta de lavar louça e forrar a
144
cama. O irmão mais velho vende galinhas. Gosta de brincar de bonecas, esconde-esconde,
bicicleta com a prima e duas amigas, o pai e a mãe. Vai para a escola com três colegas de
8, 7 e 9 anos. Tem amigos na escola e perto de casa.
ESCOLA C- E.U.
Criança - Luciano- intermediário
Caracterização geral da criança
Luciano tem 6 anos, diz que gosta de estudar na escola. Mora com avó, a mãe, o tio
a tia e um primo. A mãe costura, o tio trabalha num hotel, a tia trabalha em um hospital e
a avó cuida dele quando os outros estão trabalhando. Gosta de andar de bicicleta, jogar
bola, e videogame com o tio e primos. Tem amigos na escola e perto de casa. O tio o leva
para a escola e, às vezes, a prima de 13 anos.
4.4. As escolas
Como foi expresso anteriormente, trabalhamos com três escolas: a escola A,
localizada no bairro de Nova Descoberta, na zona leste de Natal; a escola B, com sede no
bairro de Cidade Nova, na zona leste de Natal; a escola C situada no bairro de Felipe
Camarão, na zona Oeste.
As três (3) escolas ora especificadas atendem preferencialmente crianças do bairro
onde estão inseridas. A população abrangente não é muito diversificada, englobando,
principalmente, a classe economicamente desfavorecida.
São bairros cercados de residências simples e alguns comércios, algumas creches,
sendo que, próximo à escola C, há posto de saúde e uma delegacia. Nos arredores dessas
escolas, encontramos outras escolas públicas, morros, muito lixo, falta de saneamento.
145
Não deparamos, nas proximidades dessas escolas, praças nem locais de lazer para
adolescentes e crianças. Percebemos que nesses bairros muitas crianças fazem dos morros
o principal ponto de encontro para brincar.
As moradias encontradas ao redor das escolas são de casas simples, embora
tenhamos encontrado alguns agrupados de casas que poderíamos considerar como
favelas.
As três escolas funcionam em quatro turnos: manhã, intermediário, tarde e noite;
neste último funcionam as turmas de EJA - Educação de Jovens e Adultos.
Em relação à estrutura física dessas três (3) escolas, não podemos dizer que sejam
acolhedoras. Encontram-se em razoáveis condições de funcionamento. As salas de aula
contam basicamente com lousa, giz e apagador, tendo, eventualmente, alguns adereços
decorativos, tais como alfabetos maiúsculos e minúsculos, desenhos infantis e outros,
confeccionados pelas próprias professoras. Possuem um tamanho razoável para a
quantidade de alunos que as escolas oferecem por sala, na maioria, com 25 alunos. As
carteiras usadas têm mesinhas e se dispõem normalmente enfileiradas.
As três escolas possuem espaço físico insuficiente, principalmente para o
desenvolvimento de atividades esportivas e recreativas. Assim, verificamos que a hora do
recreio costuma ser um momento conturbado e de muito tumulto, produzido,
principalmente, pela falta de espaço para as crianças brincarem. Verificamos que a
interação dos alunos, nos momentos lúdicos, é permeada de violência física.
Nas entrevistas com os responsáveis pela escola, a maioria relacionou os principais
problemas que se identificam na instituição. Dentre eles, destacamos: dificuldades de
aprendizagem dos alunos, violência intrafamiliar, drogas, falta de professores; e, quanto
146
ao turno intermediário, com carga horária reduzida, as crianças têm que fazer uma
refeição principal na escola – almoço; dificuldade de professor para ministrar aulas,
tempo reduzidíssimo, entre os turnos, para limpeza das salas para receber as crianças. Um
dos diretores nos fala que há uma troca constante de turno, da manhã e tarde para noite,
para que os alunos possam trabalhar de dia e estudar à noite.
A seguir, apresentaremos as condições de realização das atividades propostas por
nós.
4.5. Condições de realização das atividades
As atividades programadas foram desenvolvidas em espaços físicos indicados pela
escola (sala de aula, biblioteca, sala dos professores) em mesas com um grupo de
cadeiras, no horário das aulas. Tivemos a ajuda de duas bolsistas de pesquisa da Iniciação
Científica
46
, fato que facilitou o trabalho com as crianças.
O trabalho desenvolvido foi realizado de forma que a criança, identificada por nós
anteriormente, ficou conosco e os demais escolhidos na turma ficaram com as monitoras.
As atividades foram desenvolvidas com o mesmo material do sujeito eleito para a
pesquisa, bem como de forma simultânea.
As entrevistas foram gravadas em cassete, por nós, como condição para apreender
todas as nuanças das falas dos sujeitos, bem como registrar o maior número possível de
informações. Nenhum sujeito se mostrou resistente ou inibido durante as gravações, pois
46 Cíntia Lobato e Cinara Ribeiro, alunas do curso de Psicologia, bolsistas, sob orientação da professora Dra. Rosângela Francischini.
147
eram consultados antes do início de cada encontro. Para retirar qualquer possibilidade de
inibição por parte deste, o gravador estava sempre à sua vista.
Iniciávamos o trabalho, geralmente, com conversas informais, sem gravação, para
propiciar um clima que possibilitasse maior relação de confiança e espontaneidade entre
nós e a criança. Falamos à criança que éramos da Universidade, e que estávamos fazendo
uma pesquisa com algumas crianças nas escolas e que gostaríamos que ela participasse
de algumas atividades como entrevistas, desenho, histórias, etc, para que pudesse falar
sobre questões de sua vida, seus sentimentos, do que gosta de fazer, do que não gosta,
como ela se percebe, o que pode fazer em sua casa, o que não pode, quais seus sonhos
dentre outras. Nenhuma criança se mostrou resistente para participar da pesquisa e das
atividades por nós propostas.
4.6. Procedimentos
Primeiramente, antes de estruturarmos as atividades, foi preciso recorrer à literatura
para verificar como estava sendo investigada a auto-estima do sujeito. Deparamo-nos
com críticas (Azevedo, 2002, Moysés, 2001), principalmente no que diz respeito à forma
como se avalia a auto-estima, mais especificamente aos instrumentos utilizados para
avaliá-la.
Mruk (1998, citado por Goboitta & Guzzo, 2002) agrupou estas dificuldades em
dois tipos: o primeiro diz respeito à singularidade da auto-estima como fenômeno
(problema da definição, relação auto-estima e outros aspectos relacionados ao eu e certas
características intrínsecas da auto-estima). O outro tipo de dificuldades diz respeito à
148
grande diversidade de métodos de investigação usados para o estudo do fenômeno e às
dificuldades em relação à validade dos instrumentos.
Existem vários instrumentos para avaliar a auto-estima, a maioria deles, norte-
americanos. No Brasil, há poucos adaptados para a nossa realidade. Martins (s/d)
constatou que existem alguns instrumentos de origem norte-americana traduzidos e
adaptados para a realidade brasileira: How I see my self, de Ira Gordon (adaptada por
Popovic, Esposito & Cruz, 1973) e Escala de Auto-Estima de Janis e Field.
Porém, acreditamos que a auto-estima tem particularidades tão subjetivas que torna
difícil avaliá-la em relação a um ponto ou nível médio de referência (inventário da auto-
estima, Escala de Rosenberg, dentre outros), já que, por exemplo, duas pessoas podem ter
pontuações idênticas e não ter o mesmo nível de satisfação consigo mesmas (Miceli,
2003).
Pensamos que as atividades propostas aos sujeitos deveriam envolvê-los de forma
que eles pudessem, por meio dos discursos, fazer emergir o tema da violência
intrafamiliar e os componentes da auto-estima, considerados os objetivos deste trabalho.
Assim, estruturamos várias atividades que incluíam alguns aspectos relevantes
relacionados aos temas, capazes de deixar transparecer situações particulares da vida do
sujeito.
Diante deste tema, foram definidas as atividades de cada entrevista, embora na
prática certas atividades programadas para uma data tivessem que ser adiadas em respeito
ao processo de resolução destas pelo sujeito.
149
4.7. As atividades
Na primeira entrevista, fizemos uma caracterização geral
47
das crianças (1). Em
seguida, incluímos uma atividade chamada por nós de sentimentos humanos (2); logo
depois, introduzíamos uma atividade que incluía expressões faciais (3); na seqüência,
apresentamos uma atividade oral chamada de bate-bola (4); trabalhamos com a história
do Pinóquio (5); o desenho de uma família (6); e, por último, o desenho da família do
sujeito (7).
Esclarecemos que planejamos um total de três entrevistas para cada criança com as
respectivas atividades, porém, algumas vezes, as entrevistas tiveram que ser prorrogadas
por mais uma, para respeitarmos o desenvolvimento e o ritmo das atividades executadas
pela criança. A seguir delinearemos cada atividade, bem como seus objetivos.
Achamos pertinente iniciar o primeiro contato com a criança com uma
caracterização geral desta, contendo seus dados gerais de identificação e de seu cotidiano,
pois os demais instrumentos nos possibilitariam um maior aprofundamento sobre a vida e
algumas particularidades dos sujeitos.
Utilizamos, para este fim, uma entrevista semi-estruturada, que nos permitiu
partir de algumas questões básicas relacionadas à vida do sujeitos, bem como a
possibilidade de ampliação dessas, já que novas questões surgem a partir das respostas
que são obtidas na entrevista. Essa técnica nos permite também incluir e valorizar o
entrevistado na pesquisa, oferecendo-lhe também maior espontaneidade e liberdade
necessárias à investigação (Trivinos, 1987). Para caracterização dos sujeitos desta
47 Para contextualizar o leitor, preferimos colocar os dados gerais de todos os sujeitos acima da descrição das entrevistas/, embora esses
se encontrem como primeira atividade.
150
investigação, estudamos variáveis como idade, onde e com quem moram, o que fazem
quando não estão na escola, de que brincam, se têm amigos. O roteiro da entrevista
incluía, também, questões relativas ao trabalho; quem trabalhava na família e os tipos de
atividades desenvolvidas.
Sentimentos humanos - esta atividade foi extraída do livro Quando alguém
especial morre, de Heegaard, M. (1998), publicado pela Editora Artes Médicas. Foi uma
atividade pensada por nós para mobilizar a criança e propiciar a discussão sobre os
sentimentos humanos e acerca dos sentimentos da criança. Mostrávamos a criança a
atividade e explicávamos sobre a existência de alguns sentimentos humanos como raiva,
medo, alegria, tristeza, dentre outros.
Expressões faciais – tal como a atividade imediatamente acima retiramos o
instrumento utilizado do livro de A arte de fazer fantoches (Oliveira, 1998), que continha
expressões faciais humanas em que poderiam ser identificadas algumas delas decorrentes
de sentimentos. O objetivo nosso era, mais uma vez, proporcionar condições que
fizessem emergir aspectos da subjetividade do sujeito que pudéssemos relacionar com a
temática estudada. Apresentávamos a atividade para a criança dizendo que as carinhas (
expressões faciais) mostravam para nós alguns dos sentimentos que falamos
anteriormente. Solicitávamos à criança que nos apontasse nas carinhas aquela que tivesse
a ver com os sentimentos das pessoas de medo, alegria; tristeza, etc. Logo em seguida
perguntávamos a criança em que situações apareciam tais sentimentos.
História do Pinóquio – utilizamos essa estratégia para mobilizar a criança a entrar
em seu ‘mundo’ por meio de uma personagem infantil, abordando temas tais como: ser
criança, família e dinâmica familiar, papéis sociais no interior das famílias e processos de
151
socialização presentes. Comunicávamos a criança que iríamos conversar um pouco sobre
a História do Pinóquio se ela a conhecia; se a resposta fosse afirmativa solicitávamos para
que ela nos contasse. Se a criança desconhecesse, contaríamos a história de forma à
criança pode completar e imaginar como ele seria, o que faria, se tinha família, com quem
morava, etc.
O desenho de uma família qualquer – nessa atividade, nossa intenção não era
interpretar o desenho em si, mas recorrer ao desenho como atividade desencadeadora do
discurso da criança
48
. Questionávamos se a criança gostava de desenhar e a partir da
resposta (somente uma criança disse que não gostava de desenhar, e por sinal desenhar
muito bem, mas não se incomodou de desenhar para nós) sugeríamos que ela desenhasse
uma família qualquer, qualquer família que viesse a sua cabeça. Algumas nos
perguntaram se poderia desenhar a família do Pinóquio, outras já afirmavam que iram
desenhar sal própria família.
O desenho da família do sujeito - Depois da criança desenhar uma família qualq uer,
solicitávamos a criança para que ela desenhasse sua família. Empregamos esta estratégia
não com a intenção de interpretar o desenho, mas para perceber, de alguma forma,
elementos da dinâmica familiar.
Bate-bola. Esta estratégia é composta por pequenas 14 frases, para serem
completadas pela criança de forma rápida, sobre sentimentos, aspirações, preferências
pessoais. Algumas frases foram retiradas do livro de Branden (2000) O poder da auto-
48 O desenho tem sido muito utilizado como procedimento em pesquisas com crianças. Para maior aprofundamento remetemos o leitor
para as contribuições de Ferreira, (1998) e Grubits, S; Harris, (2001).
152
estima; outras, adaptadas e elaboradas por nós. A seguir, apresentamos as frases que
compõem o instrumento:
1-Eu fico alegre quando...
2-Eu fico triste quando...
3-Eu me sinto culpado quando...
4-Quando alguém faz algo de que eu não gosto, eu...
5-Eu fico irritado quando...
6-Eu tenho medo quando...
7-Quando eu me olho no espelho, eu...
8-Eu gosto de mim quando...
9-Eu gosto menos de mim quando...
10-A parte do meu corpo que mais gosto é...
11-A parte do meu corpo que eu menos gosto é...
12-Se eu pudesse mudar alguma coisa em mim, eu mudaria...
13-Meu maior sonho é...
14-Minha vida é...
Na seqüência, temos os aspectos abordados nas entrevistas com os profissionais da
escola (direção, coordenação, supervisão).
1- Há quanto tempo a escola funciona?
2-Quanto tempo trabalha na escola (profissional)?
3-De que é composta é a estrutura física da escola? (possui biblioteca, vídeo, quadra
esportiva, etc).
153
4-Como é o funcionamento da escola (turnos, horário de funcionamento, séries,
número de alunos etc).
5-Quais as maiores dificuldades encontradas na escola?
6-Como é a participação da família na escola?
Na entrevistas com as crianças, abordamos os seguintes dados:
1- Nome
2-Idade
3-Com quem moram
4-Local onde moram
5- Número de irmãos
6-Idade dos irmãos
7-Quem trabalha em casa
8-Sobre os amigos: se têm amigos, de onde são os amigos (escola, rua)
9-O que pensam da escola que freqüentam
10-Quando não estão na escola, o que fazem
11-Quais as brincadeiras preferidas.
154
5. Análise e discussão dos dados
“Aqueles que têm o poder de ferir e não o fazem (...)
herdarão legitimamente as graças divinas”
(Shakespeare) o que seguramente inclui a benção de
ser amado e imitado pelos próprios filhos
(Bettelheim).
A seguir, iniciaremos a análise e discussão dos indicadores construídos.
Inicialmente enfatizamos que os nomes dos sete (7) sujeitos são fictícios para preservar
suas identidades e sigilo das informações. Os sujeitos são representados pela abreviatura
Cr- criança-, numeradas de um (1) a sete (7). Temos Marcos que corresponde a Cr1; Rosa
a Cr2; Daniela a Cr3; Keila a Cr4; Luciano a Cr5, Vicente a Cr6; Paula a Cr7. Para atingir
tal objetivo, transcrevemos as entrevistas das crianças na íntegra, respeitando a
terminologia utilizada por elas. Posteriormente, após as leituras exaustivas, submetemos o
material à técnica de análise de conteúdo (Bardin, 1977). Elaboramos uma estrutura de
três (3) unidades temáticas apoiadas em um referencial consistente (eixos temáticos),
conectando-o aos discursos emergidos: violência intrafamiliar e auto-estima.
Passaremos, então, a apresentar as temáticas da análise dos dados.
5.1 - Violência
5.2 - Violência Intrafamiliar
5.3 - Auto-estima
5.1. Violência
Ressaltamos, tanto no referencial teórico como em nossa análise, alguns pontos
considerados por nós importantes sobre a violência, de modo geral, para introdução da
violência intrafamiliar, aspecto relevante ao estudo. Assim, apesar de o fenômeno
155
violência estar presente nos discursos dos sujeitos, não se mostra de modo marcante, já
que os procedimentos utilizados por nós visaram a abordar a violência presente na
família, ficando para um plano menos relevante outras manifestações da violência.
O tema violência apareceu no discurso de seis (6) crianças. Acreditamos que este
fato decorra da presença do fenômeno na vida das pessoas, na comunidade, nos meios de
comunicações, dentre outros. A referência ligada a situações de violência não nos causa
estranhamento, já que estamos, a cada momento, sendo bombardeados pelos MCM,s, que
permitem seu acesso de forma fácil e intensa, conforme já apresentado em nossa
discussão teórica.
Outra observação é de que, das três escolas onde entrevistamos as crianças, uma
delas está localizada em um bairro considerado um dos mais populosos, mais violentos e
no qual estão presentes os mais baixos indicadores de qualidade de vida do Município do
Natal. Trata-se do bairro Felipe Camarão (Tribuna do Norte, 2000).
Optamos por não colocar todos os exemplos sobre o tema da violência, pois a nossa
ênfase será na unidade temática seguinte: violência intrafamiliar. Também priorizamos as
falas em que as crianças estavam presentes nas ações.
A seguir, verificaremos em que situação está presente, no discurso das crianças, o
tema violência. Observamos que este assunto aparece vinculado a diferentes ações, tanto
da criança investigada quanto de outras pessoas.
Assim, a violência é vinculada:
5.1.1- à ação de apropriação dos bens de outrem;
5.1.2 - a vários atos de agressão em relação ao outro;
156
5.1.3- violência cometida pelo próprio sujeito;
5.1.4- violência ligada a punição;
5.1.5 - violência e suas contradições;
5.1.6 - violência e trabalho infantil
Seguindo as situações ora expostas, apresentamos segmentos dos discursos em que
estas se manifestam.
5.1.1. Apropriação dos bens de outrem
Nesta primeira situação surge, no discurso, a presença da violência apropriação das
coisas de outrem, referindo-se a um outro sujeito.
P - O que um amigo faz de errado?
Cr1- Toma as coisas dele.
A mesma criança, em seu discurso, revela seis (6) outras situações ligadas à ação:
duas vinculadas à sua pessoa e quatro (4) à de Pinóquio, das quais citaremos algumas.
A primeira situação está ligada ao sentimento de culpa por parte da criança,
relacionado à apropriação dos bens de outrem. Neste contexto, a irmã antecipa o seu
comportamento em vez de utilizar a situação e instruí-lo sobre princípios morais.
P - Alguma coisa que dá culpa?
Cr1- Quando eu pego as coisas dos outros.
P- O que você pega?
Cr1- As garrafinhas, aquelas, tava comigo a gente jogando vôlei e daí ela brigou comigo.
Minha irmã disse que daqui a pouco estou roubando.
É presente a referência a um ato de apropriação dos bens de outrem por parte do
sujeito, quando este, em seu discurso, nos fala de um sonho de vida, que é encontrar
dinheiro. Dando continuidade ao discurso, aparece outro segmento em que a criança nos
157
fala sobre umas notas (dinheiro) que haviam sido pegas por ele, enquanto alguém se
descuidou. Com esse dinheiro, a criança participou de um jogo, e nesse ganhou o 2o.
(segundo) lugar e teve como prêmio duzentos (200) reais e assim comprou uma bicicleta.
Podemos pensar, com essa situação, sobre a dimensão ética e a insensibilidade
diante da conseqüência do próprio ato para o outro, sobre as referências do que é correto e
o que não é (Mance, 1998), e, principalmente, sobre a constituição da subjetividade.
P - Marcos, tu tem algum sonho na tua vida? (...) se tem qual é?
Cr1- Encontrar mais três notas (dinheiro).
P - Você já encontrou alguma vez nota? (...) de quanto ?.
Cr1- Uma de 100.
P - De 100 reais?
Cr1- Porque tinha um cara bebendo, aí ele coisou, não tinha bolso, aí coisou o durex e
coisou no bar, aí eu passei e não tava vendo, aí eu passei por ele e peguei.
Na situação abaixo, a apropriação dos bens de outrem é referendada ligada a uma
situação prazerosa e a uma situação em que merece uma punição, evidenciando para nós
uma incongruência por parte da criança.
P - E o que que esse Pinóquio gosta mais de fazer?
Cr1: Enquanto ele tá, assim, pegar as perucas dos outros.
P - Brinca de que, esse Pinóquio?
Cr1: De roubar peruca.
P - Que que ele poderia ter feito que teria esse castigo (referindo-se ao castigo do
Pinóquio que de menino foi transformado novamente em um boneco)?.
Cr1- Pegar alguma coisa.
P- Pegar? De quem? Pegar, assim, como? Pegar de casa, de fora, como? Pegar alguma
coisa do Gepeto, que era? Não entendi.
Cr1- Passou um filme, quando ele era boneco, ele ficou comendo bolo da mulher. (o bolo
era da casa de outra pessoa).
158
5.1.2. Violência ligada a vários atos de agressão em relação ao outro.
Vimos o quanto a violência não é distante da vida das crianças. Ao contrário, está
presente em suas vidas, comunidades e lares, provocando-lhes diversos sentimentos.
Os discursos apresentam situações em que os sujeitos demonstram sentirem-se
assustados, com medo, vergonha e tristeza, em decorrência dos estados de violência.
Diversas são as circunstâncias em que os sujeitos vivenciaram a violência, ora sendo o
agente da ação, ora, a vítima, ou, ainda, experienciando e testemunhando a violência em
seu entorno.
Nos segmentos dos discursos, a seguir, há como dominante a criança como vítima
da violência. Na primeira situação, temos a conseqüência da violência – sentir-se
assustado – e, em seguida, há a referência da violência contra a criança, associada ao seu
sentimento de tristeza. Esses sentimentos dizem respeito a sua auto-estima.
P - O que me assusta é...
Cr7- Quando alguém quer bater em mim ou corre atrás de mim.
(...)
P - Eu fico triste quando...
Cr7- Machucam eu.
O sentimento de raiva surge quando aflora a violência, embora na fala da criança
não esteja claro quem foi o agressor e quem a vítima e se ‘dar no outro’antecede ou
sucede a raiva.
P - Quando a gente fica com raiva, olha a carinha que você botou (inaudível) quando é
que as pessoas, qualquer pessoa fica com raiva?
Cr6- Quando dá no outro.
Aproveitando uma situação do contexto, questionamos a criança sobre quando ela
chora. Em sua resposta, a criança faz referência a situações de violência, em que ela é
agredida por outras crianças.
159
Cr6- P - O menino tá chorando…
P - Oi?
Cr6 – O menininho tá chorando.
P - Quem tá chorando?
Cr6- Ele ali.
P - E você? Você quando é que chora? Todo mundo chora, todo mundo fica triste,
também fica alegre, né?
Cr6 - É.
P - Quando é que você chora?
Cr6- Já chorei assim um bocado de vez quando os menino dá em mim.
Nos exemplos a seguir, vemos a primeira situação em que o agressor é uma pessoa
próxima da criança – uma amiga – e causa àquela sentimento de irritação. Esse
sentimento também surge com a criança Cr6 quando essa é agredida. Noutro caso, (3
o
.
exemplo) a criança diz que fica chateada quando é agredida por conhecidos. Na situação
seguinte, o sentimento de tristeza aparece associado à ação das pessoas a machucarem,
embora não fisicamente.
P - O que mais me irrita é...
Cr7- Quando minhas amigas ficam arengando comigo.
P - Eu fico irritado quando…?
Cr6- Sei não.
P - Quando é que tu fica com raiva, irritado?
Cr6 - Apanho.
(...)
P - E o que que te deixa chateado (silêncio prolongado)?
Cr6 - Quando os menino dá em mim.
P - Eu fico triste quando...
Cr7 - Machucam eu.
P - Hum, hum. E como machucam.
P - E como machucam? Lembra aí um fato, por que foi?
Cr7- Porque assim, minha amiga da minha sala entronchou a cara pra mim, aí eu
perguntei a ela, né? Aí eu peguei disse pra minha professora, aí ela disse que eu não
brigasse com ela, aí quando foi agora ela veio falar comigo.
P - E ela te machucou?
Cr7 - Machucou sim, que eu não gostei. Que ela entronchou a cara pra mim e veio me
babar.
P - E o machucado foi físico ou foi machucado só de sentimento?
160
Cr7- Sentimento.
No exemplo a seguir lê-se uma condição de violência explicitada – possibilidades
de um ladrão entrar na residência da criança – que tem, por conseqüência, o
desencadeamento do medo. Este sentimento que aparece no discurso não é diferente do
que, ao menos, grande parte das pessoas vivenciam. As exigências e o aperfeiçoamento,
cada vez mais intensos, dos sistemas de segurança refletem essa realidade.
P - E quando é que você fica com medo?.
Cr7-. Quando alguém, assim, quando aparece algum ladrão, que quer pular o quintal lá
em casa, meu pai vai em cima.
Na seqüência uma agressão física presente no entorno da criança praticada por
pessoas desconhecidas e que nos remete à violência como também sendo um dano que
atinge a integridade corporal das pessoas.
P - O que me deixa com medo é quando eu vejo briga. Aqui no bairro tem briga?
Cr1- Tem. Uma vez vi um homem dando uma facada numa pessoa que não conheço,
minhas primas disse para eu não olhar. Eu vi o cara, mas ele tava com um negócio no
rosto.
Novamente, a violência ligada a um tipo de crime sempre evidenciado nos meios de
comunicações, no qual a liberdade do outro é detida: o seqüestro. Essa violência está
relacionada ao sentimento de tristeza.
P - E o que deixaria ele triste? (Pinóquio),
Cr1- (...) ser seqüestrado.
Nos fragmentos do discursos a seguir, vemos o quanto a violência é uma realidade
próxima à criança . Aparece como um crime – assassinato de uma pessoa da convivência
familiar da criança – e esse a faz lembrar sentimentos de tristeza.
P - Vamos ver coisas que deixa você triste. O que acontece que deixa você triste?
Cr2- Como assim, meu irmão morreu, ele, se ele tivesse vivo, ele teria 13 anos, quando
ele morreu, ele tinha 12; aí morreu, mataram meu padrasto.
161
(...)
P - Fazia tempo que ele morava com vocês?
Cr2- Fazia... é pai até da minha irmã.
Ainda como exemplo dessa condição, no discurso abaixo uma criança liga o
sentimento de tristeza à morte de um membro da família.
P - Então vamos pensar juntos. Quando é que a gente fica triste? Quando é que as outras
pessoas ficam tristes?
Cr6- Quando alguém mata alguém da família…
5.1.3. Violência perpetrada pelo próprio sujeito
Apareceram diversas situações ligadas à violência, essa provocada pelo próprio
sujeito e pelos amigos.
A seguir, a violência está presente nos padrões de socialização das crianças, ou seja,
esses reproduzem uma circunstância em que, de alguma forma, vivenciaram ou
vivenciam. A criança expressa seu desejo de bater, quando alguém reclama dela, ou
atrapalha algo que está fazendo. No último segmento, a criança demonstra seu desejo de
se transformar em um monstro que mata as pessoas, apertando-lhes o pescoço ou
batendo-lhes com um pau na cabeça.
P - Quando reclamam de mim eu...
Cr7- Tenho vontade de bater na pessoa.
P - (...) quando você está em casa, você tá fazendo alguma coisa e alguém atrapalha o
que você está fazendo. O que tu faz?
Cr4- (...) aí eu dou uma brigada com ele.
P - E esse aí que você tá pintando, explica aí.
Cr6- (riso) eu quero virar um monstro.
P - Quer virar um monstro. Que monstro é esse?
Cr6- Um monstro verde.
P - Me diz o que que esse monstro verde faz? Vamos pensar.
Cr6- Ele mata pessoas.
P - Que mais? Como que ele mata as pessoas?
Cr6 - Ele leva e arrocha o pescoço.
163
aflora pelo simples fato de presenciar alguém sofrendo a ação. Isso nos faz pensar sobre o
fato de que, ainda hoje, muitas instituições cometem violência contra a criança e o
adolescente. Vemos, mais uma vez no discurso, a presença do sentimento de medo ligado
ao castigo, uma punição utilizada pelas famílias e escolas contemporâneas.
P - E quando é que você fica com medo?.
Cr7- (...) quando alguém do colégio deixa de castigo, que eu nunca fiquei, né, mas vamos
ver daqui pro fim do ano.
5.1.6. Violência e suas contradições
Esta situação se apresenta como uma contradição, pois, ao mesmo tempo em que os
agressores (pai e mãe da personagem Pinóquio) condenam a violência, a criança, em seu
discurso, prevê uma punição que inclui a mesma ação por parte de um dos genitores.
P - Alguma coisa que o pai dele (Pinóquio), o Gepeto, ou a mãe dele (Pinóquio) (...) não
iria gostar que ele fizesse?
Cr5- Arengar
P - (...) E se algum dia o Pinóquio arengasse com as pessoas, o que que você acha que iria
acontecer com ele?
Cr5- A mãe dele ia arengar com ele.
No exemplo a seguir, a criança sinaliza-nos uma contradição; ao mesmo tempo em
que tem consciência de que seu ato afeta a autoridade, o pai, por outro, afirma que comete
a mesma ação com as outras pessoas.
P - Que mais que ele (pai da criança) não gosta que você faça?
Cr7- Num arengar com ninguém.
P - Num arengar com ninguém. Tu arenga com alguém?
Cr7- Arengo.
A seguir, vários exemplos no discurso da mesma criança, da presença da violência.
Essa criança foi identificada por nós por meio do S. O. S, tendo havido a denúncia
anônima de espancamento cometido pela mãe. O caso é reincidente, a mãe já bateu na
164
criança com pau, mangueira e ateou fogo na cama do garoto, dados fornecidos pela
instituição citada.
A criança, em sua fantasia, nos revela seu desejo de ser diferente, de se transformar
em um monstro que mata as pessoas, machucando-lhe o pescoço e batendo-lhe com um
pau na cabeça (conforme exemplo anteriormente citado). A família dessa criança foi
identificada por nós no S.O.S. Criança por denúncia de espancamento. Vários de seus
discursos revelam-nos situações nas quais a presença da violência é constante. Surge,
também, no discurso, uma expressão de alguém que treina Jiu-jit-su , uma arte japonesa
de autodefesa, sem armas.
P - E esse aqui, o que é (referindo-se à carinha pintada por ele na expressão do sentimento
de raiva)?
Cr6- Ele foi ficar aí ele melou a cara de carvão.
P-E ele tá com raiva e melou a cara de carvão. Por que que ele tá com raiva, o que
aconteceu?
Cr6 - Sei não.
P - Ah, imagina aí, imagina qualquer coisa.
Cr6 – Os meninos foram chutar a barriga dele aí ele ficou com raiva. Quem foi chutar a
barriga dele? Sei não… os meninos… David! David! David.
P - O menino grande deu um chute na barriga dele e ficou com raiva. Aí ele sujou o rosto
de que… dele de carvão?
Cr6- De carvão.
(...)
P - Ah, tu pintou a carinha dele de verde pra dizer que ele tava com sono… né? (pausa)
ele tá de costas por quê?
Cr6- O camarada tá de costas.
P-Ele tá de costas por que, o camarada?
Cr6- Por que ele… sangrou, sangrou…
(...)
P - Pêraí, que eu não entendi nada…
Cr6- Não tem esse menino aqui?
P - Tem.
Cr6- Ele deu na cara do menino. Ele deu na cara do menino, aí sangrou, sangrou e ele
ficou de castigo…
(...)
P - Deixa eu vê aqui o que você gosta de pintar. Falta só esse aqui, não? Essa carinha aqui
parece o quê?.
165
Cr6 – Que chora. Parece que tá chorando.
P - E por que será que esse menino aqui tá chorando? Pinta ele aí pra gente vê.
Cr6- De quê?
P - Por que que ele tá chorando? (silêncio). Por que Vicente que esse menininho está
chorando?
Cr6- Deixa eu vê… ele tá sangrando.
P - Ele tá sangrando, aí você tá pintando ele de vermelho, né? E por que ele tá sangrando?
Cr6 -Um menino deu um chute na boca dele, cortou a língua e aqui tá também sangrando.
P - Um menino deu um chute na boca dele e cortou a língua e no rosto dele também
sangrando. Tá bom. E essa carinha aqui? Falta essa aqui, né? Essa aqui parece uma
caretinha de quê?
Cr6 -De doido
P - Caretinha de doido? É assim caretinha de doido é? Vai pintar ele de que cor?
Cr6 – Vermelho
P - Tu gosta de vermelho, né? Por que tu tá pintando de vermelho?
Cr6 - Ele cai….
P - Ele caiu aí fez boom é? Vicente, ele caiu e o quê?
Cr6- Ele ficou com a cara… (inaudível).
P - Caiu e machucou o rostinho, a cara dele né? Vamos ver o que falta mais?
P - E essa carinha aqui? Carinha de que tem essa assim de olhinhos puxado?
Cr6- Japonês. Vou pintar de… de…
P - O que que esse japonês tá fazendo?
Cr6 - Ele tá treinando, ele tá suado.
P - Por isso que você tá botando umas gotinhas de água, é? Ele tava fazendo o que pra tá
suado?
Cr6- Treinando.
P - Treinando o quê ?
Cr6 – Jiu-jit-su.
Temos dois segmentos que mostram as semelhanças do machucado da ‘carinha’e
do Vicente.
P - Tá machucado, né? É olha aqui no rosto também tá um pouquinho machucado. O que
que foi?
Cr6- Aí foi uma queda.
P - E aonde foi a queda?
Cr6- De bicicleta.
(...)
P - (...) Essa que tu desenhou em cima tu disse que tava com um machucado ele se
machucou de quê?
Cr6- Uma queda.
P - Uma queda? E como foi essa queda?
Cr6- Ele foi... ele foi andando na bicicleta e caiu.
166
5.1.7. Violência e trabalho infantil
Abaixo, uma situação em que a personagem da história utilizada por nós – Pinóquio
– é vitima da violência estrutural tal qual milhões de crianças brasileiras, em que muitas
vezes a criança é a principal provedora da família em que vive, tendo como opção
conciliar a escola e o trabalho ou abandonar a escola. Esse tipo de violência é referendado
pelo ECA- Estatuto da Criança e do Adolescente no art. 5
o
. Esse artigo traz a discussão da
exploração contra as crianças e os adolescentes, sendo passível de punicão.
P - Que mais que o Pinóquio faria além de brincar e visitar a família, os parentes?
Cr7- Trabalhar
P - (...) E por que ele trabalharia?
Cr7- Ah, pra botar comida pra dentro de casa.
P-Pra ajudar em casa, pra botar comida dentro de casa, pra...
Cr7- Pagar luz, água, telefone....
P - Hum, hum.
Cr7- Pagar a escola.
P - Hum, hum, . Ah ele estudaria..?
Cr7- Estudava.
(...)
Cr7- O Pinóquio vai...estuda de manhã , trabalha de tarde.
Nestes relatos, observamos como a violência, em suas várias manifestações, habita
a vida das crianças, seja mediante fatos reais, ou do imaginário infantil, nas quais, há
desde a violação de seus direitos, até mesmo a violência da precocidade da exposição ao
fenômeno, bem como seu testemunho. Essa ação humana que permeia e faz parte das
relações sociais afeta a integridade física e psicológica das pessoas e faz com que nem
mesmo crianças pequenas sejam poupadas, comprometendo, assim, seu desenvolvimento.
Deste modo, crianças que vivem em ambientes violentos estão sob o risco de
desenvolver inúmeros problemas que vão desde a ansiedade, depressão, agressão ao não-
cumprimento de regras, dentre outros (Salomon, 2002). Em seus estudos, Garbarino et al,
167
(1992, citado por Assis, 2002), acentuam que quanto mais a criança vivencia situações de
violência, maior é a probabilidade de conseqüências danosas sobre a sua saúde, ou seja,
mais chances de apresentarem problemas físicos, mentais e relacionais.
Vimos, em alguns relatos, que as vivências com situações de violência fazem com
que a criança passe a manifestar sentimentos diversos com os quais tem que conviver
desde cedo: medo, terror, tristeza, dentre outros.
Essa violência social também aparece atingindo instituições, como, por exemplo, a
escola, que ainda permanece utilizando punição para modificar comportamentos. Esse
fato contribui para dificultar a relação criança-escola, já que essa passa a ver a instituição
como um espaço também de ameaça e sofrimento, pois reforça e retroalimenta um
modelo de educação repressivo em que o ser humano não é respeitado em seus direitos,
possibilitando sua reprodução.
Merecem nossa atenção os aspectos recorrentes nos relatos que emergiram, que
incluem o respeito e a valorização do outro, do que é do outro e que nos remete aos
padrões morais, sociais e éticos das relações.
Em vários relatos, vimos algumas contradições. As crianças, ao mesmo tempo em
que em seus discursos condenam a ação violenta, em outro momento, se permitem
reproduzi-la, evidenciando formas de sociabilidade e de relações exatamente o que vemos
dominar nas grandes cidades (Almeida, 2002; Espinheira, 2001; Fraga, 2002; Minayo &
Sousa, 1997; Silva, 2002; Silva, 1999; Waiselfisz, 1998).
As vozes das crianças nos possibilitaram pensar numa crise de valores que
atravessa nossa sociedade globalizada. Talvez possamos inferir que esse seja um dos
pontos que justifique essas ações violentas para com o outro, ou seja, a deterioração e o
168
menosprezo de valores e normas. Segundo Assis, (2002) os valores da sociedade de
consumo se mostram muito mais do que os padrões morais de direitos e respeito aos
outros e nos fazem refletir sobre que solo estão se constituindo nossas crianças.
Por fim, temos uma voz que nos remete ao trabalho infantil, violência em que são
negados às crianças seus direitos sociais, configurando-se ainda hoje como um problema
social inaceitável, no qual a criança não é reconhecida como um sujeito de direitos e em
condições especiais de desenvolvimento.
5.2. Violência intrafamiliar
Retomando o conceito, eleito por nós, de violência intrafamiliar, tema essencial à
nossa discussão, esta é toda ação/omissão que prejudique a integridade física e
psicológica, a liberdade e o direito a um desenvolvimento pleno de um outro membro da
família, podendo ser praticada dentro e/ ou fora do lar, incluindo os pais, ou pessoas
responsáveis.
Neste sentido, o discurso apresentado agora nas próximas linhas refere-se a várias
situações de violência na família, embora nossa ênfase seja principalmente sobre a
violência praticada contra a criança.
O tema da violência intrafamiliar esteve presente de forma marcante nos discursos
dos sujeitos. Esse dado demonstra o quanto ações dessa natureza são presentes no
cotidiano das crianças e que os procedimentos empregados facilitaram sua exposição.
Dividimos a unidade de análise – violência intrafamiliar – em categorias que são:
5.2.1. Ação (violência)
5.2.2. Quem comete a ação;
169
5.2.3. Quem sofre a ação (vitimizado);
5.2.4. Instrumento da ação;
5.2.5. Alternativa que a criança propõe para a ação;
5.2.6. Justificativa da ação para quem comete;
5.2.7. Justificativa da ação / julgamento da ação para a criança.
5.2.1. Ação
As ações presentes nos discursos das crianças foram as mais variadas: bater, arengar
(provocar, irritar), castigar, brigar, rotular, ameaçar, apropriar-se (dos bens de outrem),
quebrar (mutilar), desumanizar, arengar (provocar). A seguir, comentaremos algumas das
ações que nos chamaram mais a atenção, contextualizando-as.
Bater e castigar foram as ações mais comuns que apareceram nos discursos das
crianças. Somente em uma criança (Cr5), não encontramos a ação de bater, mas ela
aparece na unidade de análise sobre violência, neste trabalho. Também a ação
castigar
esteve presente em quase todas as falas das crianças, exceto numa (Cr4).
A explicação para este fato é que talvez decorra, inicialmente, da visibilidade da
violência física contida no ato de bater. Também podemos justificar a freqüência dessa
ação por serem a punição física e o castigo ainda muito utilizados pelas nossas famílias
como instrumento pedagógico.
Verificamos também, mediante as observações feitas em algumas crianças das
escolas visitadas por nós, a ação de bater fazendo parte da interação no horário de
intervalo das aulas (hora do lanche).
Embora bater’ possua termos associados, que são a palmada e o tapinha
(Gonçalves, 2001) esses não surgiram nas falas das entrevistadas.
170
Chamou-nos a atenção a freqüência com que a ação de bater aparece nos discursos
das crianças Cr2 e Cr7: (17) dezessete vezes. No discurso das crianças Cr3 e Cr6, a ação
de bater aparece nove (9) vezes.
A seguir, citamos alguns fragmentos dos discursos relacionados às observações
procedidas há pouco.
5.2.1.1. Bater
Na situação seguinte, verificamos a possibilidade do uso da ação de bater por parte
de um responsável pela criança – o pai – em que tal ato seria utilizado em proteção à
criança. Tal como sugerido por alguns autores (Gonçalves, 2001), devemos pensar o ato
violento –
bater – como tendo um sentido e, assim antes de condenar tal ato, é necessário
contextualizá-lo e pensar na multiplicidade de sentidos que a violência carrega.
P - Diga alguma coisa que seu pai fala que não pode fazer
Cr4- Ir para terra quente senão o nariz fica escorrendo.
P - O que acontece ?
Cr4- Ele dá em mim.
Verificamos nos fragmentos de fala seguinte, uma contradição, pois, embora a mãe
não aprove, na dinâmica familiar, o ato de bater, quando esse é cometido entre irmãos, a
mãe, no discurso da criança, utiliza a violência para punir quem se autoriza a praticá-lo.
Vemos claramente a relação assimétrica de poder presente na situação abaixo:
P - Quando tu ou teu irmão faz alguma coisa que tua mãe ou teu pai não gostam, o que
acontece?
Cr4- Minha mãe não gosta quando ele dá em mim, aí minha mãe dá nele.
Podemos inferir, neste caso, sobre os possíveis padrões de socialização familiar, nos
quais a violência se faz presente e circula em mais de um membro da família. Neste
171
sentido, vemos como a violência expressa pelos padrões sociais, um modo de ser e de
viver, penetra os espaços mais íntimos, configurando-se como forma de relação social.
O discurso da criança nos faz pensar também sobre os fatores de riscos associados à
violência familiar. Dentre eles, estão os aspectos culturais e educacionais, nos quais a
violência é institucionalizada e naturalizada (Corsi, 2003). É nessa cultura que essa
criança está forjando sua subjetividade e dando sentido às suas experiências.
Vemos, por meio do discurso, sinais de como são as relações interpessoais dentro
do sistema familiar, no qual há um ciclo, um padrão de comportamentos Borges, et al,
(citado por Ribeiro, 1996), onde todos são envolvidos e o comportamento de um membro
familiar está relacionado com os demais.
P - O que mais me irrita é ... Qual a carinha aqui da pessoa irritada? Essa aqui? Quando
que tu fica assim, igual a essa carinha?
Cr1- Quando a minha irmã não deixa eu assistir televisão eu faço isso.
(...)
Cr1- Eu faço assim. (Fez a expressão de irritado ‘igual’a carinha que ele havia escolhido).
Aí ela rebola uma chinela e eu rebola uma chinela e eu rebolo outra.
P - Aí fica um jogando chinela no outro?
Cr1- A última vez que eu rebolei a chinela pegou aqui (Apontou o lugar).
Vemos, no diálogo seguinte, a ocorrência do abuso ligado a uma situação em que o
sono da criança é interrompido pela mãe.
P- E quando acontece dela (mãe) combinar uma coisa contigo e tu não faz. O que ela faz?
Cr3- Ela dá em mim, quando eu tô no meu quarto trancado, já dormindo.
P - Quando é que ela (mãe) te bate?
Cr3- Quando eu estou dormindo.
Na primeira circunstância, a mesma criança nos fala novamente sobre o abuso
cometido pela mãe ao acordar, porém, esse ligado a um cumprimento de um dever: da
freqüência da criança à escola.
P - O que mais deixa você triste?
172
Cr3- Quando eu tenho que acordar para ir para escola, a minha mãe dá em mim para eu ir
a escola.
P- Faltou completar aqui (em relação a uma atividade em que ficou inaudível), Fica
mexendo onde, em quê?
Cr1- Quando eu não quero vir pro colégio, minha mãe me obriga.
P- Ah...
Cr1- Fica dando n’eu pra eu acordar.
Vemos a violência como resultado da desobediência presente nos fragmentos de
discursos da criança e, mais ainda, o efeito, em termos de aprendizagem, da punição
física, na concepção da criança.
P - E você acha uma outra forma que o Gepeto poderia fazer, sem ser bater no Pinóquio?.
Cr2-Não
P - Tem alguma outra coisa que ele poderia fazer?
Cr2- (respondeu que não, com a cabeça).
P - Só bater?
Cr2- Só
P - (...) Quando ele apanhava?
Cr2- Porque ele fez alguma coisa que o pai dele não gostou.
P - Vamos imaginar uma coisa que ele (Pinóquio) poderia fazer que o Gepeto não fosse
gostar.Vamos pensar em alguma coisa, o que seria?
Cr2- (...) o pai dele mandou ele fazer uma coisa e ele fez outra.
P - (...) o que que o pai dele mandou ele fazer? A gente pode imaginara nossa história tá
certo?
Cr2- Ele disse para não andar de bicicleta e ele andou, aí o pai dele pegou ele andando.
P - (...) E você acha que, da outra vez que o Pinóquio quiser andar de bicicleta e o Gepeto
disser para ele que não é para andar, você acha que ele vai andar ou não vai?
Cr2- Não, que ele levou uma surra, né?
No trecho a seguir verificamos a presença do sentimento medo quando a violência
permeia a dinâmica conjugal dos pais da personagem (Pinóquio). Há, especificamente,
uma situação imaginada pela criança em que há indícios de uma possibilidade de
violência conjugal, decorrente, supostamente, de uma relação extraconjugal.
Apesar de não termos explorado especificamente a violência intrafamiliar contra a
mulher, sabemos que, assim como a violência contra a criança e o adolescente, é um
173
problema de saúde pública. Existem vários fatores que legitimam culturalmente a
violência contra a mulher, ou seja, as crenças e os valores sobre as mulheres e homens
existentes em nossa sociedade, que definem esses últimos como superiores, que têm
direitos de propriedade e de controle sobre o comportamento das mulheres.
A literatura nos mostra que a criança, quando sofrem ou testemunham situações de
violência cometida por uma pessoa da família significativa para ela, poderá sentir-se
confusa e ocasionar sentimentos de desproteção, medo, e ter desconfiança para com o
agressor e outras figuras de autoridade (Ravazzola, 1999, Corsi, 2003, Assis, 2002).
P - Como eles vivem (sobre os pais de Pinóquio)?
Cr7- Assim, quando eles têm alguma coisa de errado, eles vão pro um canto, ficam longe
das crianças.
P - Ficam longe das crianças quando eles vão conversar...
Cr7- E as crianças ficam com medo.
P - Ficam com medo? Medo de quê?
Cr7- Do pai bater na mãe dele ou a mãe dele bater no pai dele
(...)
P - E por qual motivo o Gepeto bateria (na mulher dele)?
Cr7- Porque a mãe dele queria ficar com um homem e o pai não queria.
A violência também contribui para que as crianças fiquem assustadas (Corsi,
2003). No segmento à frente, a criança nos informa que fica assustada quando seus pais
não lhe esclarecem o porquê do abuso. Este fato nos revela sobre o ambiente
comunicativo em que se encontra a criança, no qual não há espaço para que se
compartilhe e se justifique a decisão tomada pelos pais. A inexistência desse espaço
poderá influenciar no desenvolvimento do autoconceito e da auto-estima da criança
(Gallart, 1999). O sentimento de vergonha também emerge quando a criança sofre
violência.
P- O que me assusta é...
174
Cr7- Meu pai e minha mãe me pegam de surpresa, não explicam porquê estão batendo
quando eu faço arte. Dói mais quando meu pai bate,mas eu fico mais triste quando minha
mãe bate.
(...)
P- Tenho uma vergonha enorme quando...
Cr7- Quando alguém me machuca. As meninas do colégio e meu pai, uma vez na vida.
(...)
P- Quando alguém atrapalha a realização de um plano meu eu...:
Cr7- Acho a outra pessoa chata. Minhas amigas ficam conversando, bagunçando e eu não
gosto. Meu pai e minha mãe me atrapalham quando eu tô fazendo o dever. Quando
alguém inventa mentira pro meu pai, eu apanho e tenho medo.
Na situação seguinte o pai é o agressor; por ter mais força física, geralmente comete
lesões mais graves nos filhos (Couto, 2004). O sentimento de tristeza revelado pela
criança está ligado ao agressor: a mãe, figura na qual muitas crianças passam grande parte
do tempo (Guerra, 1998).
P-O que me assusta é...
Cr7- Meu pai e minha mãe me pegam de surpresa, não explicam porque tão batendo.
Quando eu faço arte. Dói mais quando meu pai bate, mas eu fico mais triste quando
minha mãe bate.
A criança sofre o abuso por parte da mãe em um estado em que há um desagrado
por parte desta em relação ao comportamento de um cachorro, que a criança acha
engraçado: espalhou o lixo e a criança recebeu a ordem de sua mãe para juntá-lo,
juntamente com o abuso físico.
P - O que tu fez hoje de manhã?
Cr6 - Brincava com a cachorra.
P - Brincava com a cachorra, o que mais?
Cr6 - Água.
P - Água, o que mais?
Cr6 – Sei mais não.
P - (Inaudível) e por que que você apanhou?
Cr6 – Por que eu tava jogando no celular
P - Você tava jogando no celular de quem?
Cr6 - Dela, por que ela…
P - Dela quem? Não sei de quem você ta falando.’
Cr6 -Da minha mãe.
175
(...)
P - E aí o que que aconteceu, quando tu passou o pano, ( na casa) tu ficou entretido lá e
que aconteceu, ela te bateu?
Cr6 - Não.
P – Não? Tu não disse que tinha…?
Cr6 - Apanhado, mas foi hoje não.
P - Ah, então, qual foi o dia?
Cr6- Ontem. Foi ontem.
P - E qual foi o motivo?
Cr6 – Hehehe.
P – O que que tu fez que ela não gostou?
Cr6 – Porque… é… minha cachorra espalhou o lixo todo no quintal.
P - Espalhou o lixo no quintal, a cachorra, e aí?
Cr6- (Incompreendido) aí mandou eu apanhar, aí, aí ela deu em mim.
P - Porque você não queria apanhar, né?
Cr6- Porque foi o cachorro que destruiu o saco.
5.2.1.2. Castigar
Dentre as práticas punitivas, as famílias fazem uso de três (3) recursos na educação
de seus filhos: conversa, castigo e a palmada (Gonçalves, 2001). O castigo, em nossa
cultura, é utilizado com muita freqüência pelas famílias como um ato de punição. Este
fato é considerado um dos fatores de risco da violência intrafamiliar (Corsi, 2003).
Apesar de aquela ação não atingir fisicamente a criança, ela remete a uma forma de
punição que é moral.
Consideramos importante fazer referência aos tipos de castigos, que são os mais
variados, presentes nos discursos das crianças, para pensarmos na proporção e coerência
relativamente à ação.
Na primeira situação exemplificada a seguir, o discurso da criança quantifica a ação
e nos leva a pensar na presença constante dessa ação em sua vida. Em seguida, a criança,
espontaneamente, nos revela seus sentimentos em decorrência da ação. Na segunda
situação, a criança nos fala o porquê de seu castigo: foi castigada por derrubar a irmã
176
mais velha. Não temos elementos para saber se sua ação foi intencional ou não; porém
vimos que o tipo de castigo se repete para com essa criança, já que, anteriormente, era a
mãe que a castigava da mesma forma que a irmã. A criança nos revela seu sentimento ao
encontrar-se nessa condição – medo – embora não saiba expressar de que tem medo.
Sinaliza-nos a idéia de que, se transgredir a norma, será novamente punida com violência
física.
P - O que ele poderia fazer quando você fizesse algo de que eles não gostassem?
Cr4- Me colocar de castigo.
P - Você já ficou de castigo?
Cr4- Já, por trezentas vezes, foi muito ruim.
P - E então Vicente, tu já ficou de castigo?
Cr6- Várias vezes.
P- Várias vezes…
P - E o que era o castigo, por exemplo?
Cr6- Eu sentava na cadeira, ficava em pé, com a mão pra trás…
P - E quando tu ficava de castigo tu ficava sentindo o quê? (silêncio). Quando a gente fica
de castigo, a gente fica se sentindo como?
Cr6- Sei lá…
P - Não lembra? Lembra aí a última vez que tu ficou de castigo.
Cr6- Um dia que eu… eu derrubei a minha irmã.
P - Tu derrubou a tua irmã. A pequena?
Cr6- A grande.
P - O que aconteceu?
Cr6-Minha irmã me botou de castigo.
P - Aí ela te botou de castigo, e ela disse o quê? Pra fazer o que, como era o castigo?
Cr6- Ficar em pé com as mãos pra trás.
P - Quanto tempo?
Cr6- Até a hora do almoço.
P - E aí isso foi de manhã?
Cr6- Sim.
P - E aí o que que você sentiu quando ela fez isso.
Cr6- Eu senti medo.
P - Medo de quê?
Cr6- Sei não.
P - Se tu saísse do castigo o que que aconteceria?
Cr6- Ela dá em mim.
177
O castigo aparece em várias situações, tanto em relação à criança diretamente, como
em relação à personagem (Pinóquio). Está ligado à privação da criança de situações
lúdicas, privação de interação (isolamento), de situações que lhe dêem prazer. O castigo
aparece nos discursos de nossos sujeitos como exercício de poder por parte de um dos
membros da relação, de submissão por parte de outro membro.
Na seqüência, temos segmentos de alguns dos discursos que dizem respeito ao uso
dos castigos como instrumento pedagógico da disciplina, aplicado por uma autoridade
familiar.
P - Quando tu faz alguma coisa que ela (a mãe da criança) não gosta, o que acontece?
Cr5 -Fico de castigo.
P-E qual o castigo?
Cr5- Não assistir, não jogar videogame.
P - (...) Se você faz alguma coisa que alguém lá na tua casa não gosta, o que acontece
com você?
Cr1- Bota eu de castigo
P - (...) como é o castigo?
Cr1- Assistindo televisão e não pode sair de casa.
P - (...) e quando o pai (Gepeto) combina uma coisa, combina a regra, diz como que quer,
combina uma coisa e os filhos fazem diferente, que que acontece?
Cr7- Ele fica de castigo
P - (...) e por que.... qual o motivo do castigo de Pinóquio?
Cr7- Sentado no sofá.
P - Sentado no sofá, fazendo o quê?
Cr7- Aí, porque eu fiz aquilo de errado!
178
consideram viver de forma digna, e possam querer imitá-los; e isso faz com que se
reduzam as possibilidades de que a criança possa se sentir bem consigo e com sua vida
(Bettelheim, 1988).
Na primeira situação, o castigo é ligado à disciplina, na segunda e na terceira
vinculado à apropriação indevida de bens de outrem.
P - (...) e se o Pinóquio fizesse alguma coisa que o Gepeto não gostasse? O que que
aconteceria?
Cr1 - Botava ele de castigo.
P - O Gepeto ia botar ele de castigo? E você, o que é que você acha? Que que aconteceria
com o Pinóquio se ele fizesse alguma coisa que o Gepeto não gostasse?
Cr1: Aí... Gepeto transformasse ele num boneco.
(...)
P - E você, Marcos, concorda com esse castigo? Você acha que o Gepeto poderia
transformar ele em boneco de madeira de novo? É?
P: Então ele devia ter feito uma coisa muito grave, né? Que que ele poderia ter feito que
teria esse castigo?
Cr1: Pegar alguma coisa.
(...)
P - Qual o castigo que ele podia merecer (Pinóquio)?
P - (...) qual era o castigo que tu acha que o Gepeto daria nele?
Cr1: Torar a perna, torar tudo.
P - Torar a perna dele.
P_ Torar a perna dele, torar tudo?
Cr1- A cabeça.
(...)
P - E o que deixaria ele triste? Alguma coisa que deixaria...?
Cr1- Ele ficar de castigo.
P- (...) e se ele ( Pinóquio) pegasse as perucas, (das pessoas) o que que aconteceria com
ele?
Cr1: Ele (Gepeto)desmonta ele todinho.
Abaixo, existem outras situações que ligam o castigo à disciplina.
P - E quando a Eduarda (filha) faz alguma coisa que o Eduardo (pai) não gosta, o que ele
faz com ela (personagens da família, desenhadas pela criança)?
C - Deixa de castigo.
P - Qual?
Cr5- Não brincar, não jogar boliche, basquete, vôlei, não cuidar do mar (a família
desenhada pela criança morava no mar).
(...)
179
P - Quando a Bruna (filha) faz alguma coisa que o Eduardo (pai) não gosta, o que
acontece com ela (personagens da família desenhadas pela criança) ?
Cr5- Fica de castigo.
P - Como é o castigo?
Cr5- Não brincar com as irmãs, não brincar com os animais, não olhar para cima (este
último trecho significa olhar para a terra, já que a família morava no mar).
P - (...) e se ele (Pinóquio) fizesse alguma coisa que a mãe dele ou o pai dele não
gostasse, que que ia acontecer com ele.
Cr6- Ele ia ficar de castigo.
P- Ele ia ficar de castigo? Que tipo de castigo que ele ia ficar?
Cr6- Ficar no quarto.
P - Ficar no quarto, hum-hum
Cr6- Sem sair.
P - (...) Se você faz alguma coisa que alguém lá na tua casa não gosta, o que acontece
com você?
Cr1- Bota eu de castigo.
P - Aonde, como é o castigo?
Cr1- Assistindo televisão e não pode sair de casa.
Identificamos, também, uma situação que tem como referência, no discurso, a
infância em situação de trabalho, na qual a personagem (Pinóquio) é punida por faltar ao
trabalho.
A presença do trabalho infantil no discurso da criança retrata uma realidade
presente em nosso País, decorrente da violência estrutural e provavelmente presente no
entorno da criança (nessa escola da criança o diretor nos falou que muitas crianças e
jovens trocam de turno e passam a estudar à noite por terem que trabalhar de dia).
Milhões de crianças hoje, no Brasil, trabalham para ajudar no sustento da casa. São
crianças de ‘alto risco’, aquelas cujas direitos são violados cotidianamente (Azevedo e
Guerra, 2000).
No último trecho, temos a associação de duas ações violentas: castigar e brigar.
P - Que mais que o Pinóquio faria além de brincar e visitar a família, os parentes?
180
Cr7- Trabalhar
P - (...) E por que ele trabalharia?
Cr7-Ah, pra botar comida pra dentro de casa.
P- Pra ajudar em casa, pra botar comida dentro de casa, pra...
Cr7- Pagar luz, água, telefone...
P - Hum, hum
Cr7-Pagar a escola.
P - Hum, hum, . Ah ele estudaria?
Cr7- Estudava.
(...)
Cr7- O Pinóquio vai...estuda de manhã , trabalha de tarde.
(...)
P - E outra situação que o pai dele poderia botar ele de castigo?
Cr7- Porque ele perdeu o trabalho.
(...)
P - E o pai (Gepeto) dele fez alguma coisa com ele? Disse alguma coisa à ele? (referindo-
se à Pinóquio ter sido despedido do emprego porque faltou o trabalho.
Cr7- Só fez brigar e botar de castigo.
O castigo aparece também como conseqüência de uma desobediência por parte dos
filhos, na família das personagens da história de Pinóquio.
P - (...) e quando o pai (Gepeto) combina uma coisa, combina a regra, diz como que quer,
combina uma coisa e os filhos fazem diferente, que que acontece?
Cr7- Ele fica de castigo.
P - O que não pode fazer nesta família (família desenhada pela criança) ?
Cr5- Desobedecer.
P - E se desobedecer o que acontece?
P - Como é a vida do Pinóquio?
Cr3- É quando ele tá de castigo.
P - Ele fica de castigo por que?
Cr3- Porque ele quer
P - Quem que quer?
Cr3- O Pinóquio.
P - O Pinóquio quer ficar de castigo?
Cr3- Vá pro seu quarto Pinóquio, ele foi. Aí vou dar em você, se teimar seu nariz vai
crescer.
181
5.2.1.3. Rotular
A violência psicológica (Ministério da Saúde, 2002) também se faz presente no
discurso de uma criança, quando essa é insultada constantemente por sua mãe e sua avó.
Esta ação nos interessa especificamente, pois está ligada diretamente ao nosso
objeto de estudo, a auto-estima, que tem como um de seus elementos básicos, o
autoconceito. Este último diz respeito à percepção que o sujeito tem de si, decorrente do
conjunto de avaliações que faz a seu respeito e que, por sua vez, decorre, principalmente,
das avaliações que os outros, espelhos para o sujeito, fazem dele.
A seguir, temos no discurso de uma mesma criança a presença desse tipo de ação
violenta que, nos parece, é uma constante em sua vida. Essa ação agride diretamente a
constituição da subjetividade, da imagem e da personalidade da criança, por intermédio
do processo de internalização, no qual os outros significativos – no caso a avó – são
definitivamente importantes.
Na situação da seqüência, há uma associação do sentimento
raiva por parte da
criança para com sua mãe. Essa criança, em vários momentos, manifesta sua raiva pela
irmã, que sempre atrapalha seus afazeres domésticos.
P - Coisas que deixam você com raiva?
Cr2- Assim, minha mãe é... Tem tantas coisas que ela, que eu fico com raiva. Como
assim, eu peço pra sair e minha mãe não deixa, dá vontade de gritar, de chorar, me dá
vontade de pegar minha irmã e bater, só isso.
P - O que mais?
Cr2- Quando eu tô varrendo a casa vem uma ruma de gente, minha irmã traz as amigas
dela pra brincar, dá vontade de bater nela, aí minha mãe fica brigando comigo: menina,
deixa de ser abestalhada! Só isso.
(...)
P - O que acontece quando você faz alguma coisa que a sua mãe ou sua avó não gostam?
Cr2- Aí minha mãe vem me bater, e a minha vó, mas eu corro.
P - Você corre? Aí ela bate? Ela já deixou você de castigo alguma vez? Só bate?
Cr2- Não, mas ela só faz que vai bater, aí não bate.
182
(...)
P - E lá na sua casa, diga alguma coisa que a sua irmã faz e que você não goste.
Cr2- Quando eu tou varrendo a casa, ela vem e traz as amigas dela pra brincar. Aí minha
vó, menina, deixa de ser abestalhada, eu varri essa casa hoje e não fiquei assim.
(...)
P - Tem algum momento que tu fica triste no meio dessa família (no contexto do desenho
de sua família)?
Cr2- Tem dia que a minha avó, eu e minha irmã...Eu tô varrendo a casa, aí vem a minha
irmã, traz umas amigas dela para bagunçar, aí me dá uma vontade de pegar a minha irmã
e bater nela, aí minha avó fica brigando comigo.
P - Ela briga por quê?
Cr2- Porque eu digo assim... Não traga não, hoje, que eu vou varrer a casa,aí me dá uma
vontade de pegar nela e bater, aí minha avó diz: menina, deixa de ser abestalhada, eu varri
isso de manhã e num fiquei assim, ela entrando e saindo e eu não fiquei desse jeito.
A violência psicológica novamente está atrelada ao comportamento da criança – ser
teimosa. Deste modo, é preciso frear esse comportamento de insubordinação que
geralmente é feito de forma verbal. Neste contexto, é muito difícil conter também a
ameaça da punição física, que é uma possibilidade sempre presente relacionada com as
formas de dominação (Velho, 2000).
P - Você queria ser diferente? Sem ser o corpo agora... O jeito de ser, de viver, o que você
queria mudar em você? (...).
Cr1 - Só queria mudar os pesos....
P - O jeito de pensar, da gente agir, do jeito de ser, de viver, o que que você queria mudar
em você? (...).
Cr1- Não queria teimar muito.
P - Não queria teimar muito, ser muito teimoso...
P - Quem te disse que tu é teimoso?
Cr1- Minha mãe.
Também presente nos discursos, a negligência, um tipo específico de violência
intrafamiliar, que alguns autores incluem no âmbito da violência psicológica (como no
caso desta pesquisa).
Em nossa análise, identificamos no discurso da criança uma situação que
consideramos negligência por parte da mãe, que é a principal responsável pela criança e
183
mora no mesmo domicílio desta criança. A mãe toma conhecimento do machucado da
criança e não toma a providência de levá-lo a um pronto-socorro. Por outro lado, vemos
que o pai, pessoa com quem a criança tem um vínculo positivo, tem conhecimento do
fato.
Este tipo de negligência é citado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA.
Segundo o referido Estatuto, a negligência cometida por pais, responsáveis, ou mesmo o
Estado, se constitui de crime passível de punição aos mesmos.
P - Tua mãe sabe o que aconteceu com o teu pé (quando perguntado sobre alguma coisa
que acontece com ele que não gosta, ele fala do que acontece no pé que estrala há 3 anos,
desde uma queda)?
Cr1- Só meu pai (o pai é separado da mãe e mora em outro bairro).
(...)
P - Quem que disse que tu ia ficar sem andar (ainda sobre o pé machucado)?
Cr1- Minha mãe. Eu num conseguia falar direito.
P - Você foi pro médico? Ela te levou ao médico?
[Nega, balançando a cabeça].
5.2.1.4. Desumanizar, quebrar (mutilar)
Em seguida, citaremos um discurso que nos que chamou a atenção, não somente
pela sua exclusividade, mas também pela gravidade das ações mencionadas pela criança.
Na seqüência, reproduzimos trechos extraídos de uma mesma criança em que surge
a presença de uma ação, que nomeamos de
desumanizar. O que dá motivo para originar
tal ação é o fato de a personagem se apropriar das coisas de outrem. Na segunda situação,
a ação de torar (quebrar, mutilar) (inclusive citada anteriormente por nós no contexto do
‘castigo’). Numa outra situação há uma nova ação violenta, decorrente da apropriação de
bens de outrem, que é desmontar (destruir, demolir). Em todas esses casos, há uma
‘desfiguração’ do sujeito.
184
P - (...) e se o Pinóquio fizesse alguma coisa que o Gepeto não gostasse? Que que
aconteceria?
Cr1- Botava ele de castigo.
P - O Gepeto ia botar ele de castigo? E você, o que é que você acha? Que que aconteceria
com o Pinóquio se ele fizesse alguma coisa que o Gepeto não gostasse?
Cr 1- Aí Gepeto transformasse ele num boneco.
P - Então ele devia ter feito uma coisa muito grave, né? Que que ele poderia ter feito que
teria esse castigo?
Cr1- Pegar alguma coisa.
(...)
P - Qual o castigo que ele podia merecer (Pinóquio, por ter pego um bolo da casa de outra
pessoa)?
P - E tu, qual era o castigo que tu acha que o Gepeto daria nele?
Cr1- Torar a perna, torar tudo.
P - Torar a perna dele.
P- Torar a perna dele, torar tudo?
Cr1- A cabeça.
(...)
P- (...) e se ele (Pinóquio) pegasse as perucas, (das pessoas) o que que aconteceria com
ele?
Cr1- Ele (Gepeto)desmonta ele todinho.
5.2.1.5. Arengar
Na situação seguinte, a violência se apresenta como uma contradição, pois, ao
mesmo tempo em que os agressores (pai e mãe da personagem Pinóquio) condenam a
violência, a criança, em seu discurso, prevê uma punição que inclui a mesma ação por
parte de um dos genitores.
P - Alguma coisa que o pai dele (Pinóquio), o Gepeto, ou a mãe dele (Pinóquio) (...) não
iria gostar que ele fizesse?
Cr5- Arengar.
P - (...) E se algum dia o Pinóquio arengasse com as pessoas, o que que você acha que iria
acontecer com ele?
Cr5- A mãe dele ia arengar com ele.
5.2.2. Quem comete a ação
Vários são os autores que cometem violência contra criança, que vão desde o
Estado, instituições e familiares. Como foi mostrado por nós em relação à violência
185
intrafamiliar – física – os principais agentes agressores são pessoas próximas, da família
da criança - cerca de 69,64% (Vecina & Silva, 2002) – mãe, pai, padrasto, madrasta,
dentre outros. Nas situações seguintes em primeiro lugar, como agressor, apresenta-se a
mãe, em seguida, o pai – o que corrobora os dados da literatura. A mãe nos parece que
assume a função de educar, ficando sob sua responsabilidade a escolha de como irá fazê-
lo, porém, nos relatos,há sinais de que o pai das crianças, bem como suas avós, também
assumem essa função.
Em nossa pesquisa, as crianças fizeram referências a vários tipos de agressores, que
apresentaremos por ordem de freqüência (consideraremos os pais de Pinóquio como
sendo os pais também da criança revelados pelo discurso: mãe da criança (24), mãe
(Pinóquio) - (5), pai da criança (12), pai (Pinóquio) (17), pai ou mãe da criança (8), pai ou
mãe do Pinóquio (4) avó da criança (4), mãe ou avó da criança (3), criança (3), irmãs da
criança (2) irmãs e irmãos (Pinóquio ou semelhantes) (2) criança, tia ou tio da criança (1).
Assim, segundo o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente nos art 5
o
. 17
o
.,
vimos á violação dos direitos da criança no que se refere ao respeito, integridade física,
moral e psíquica.
Aí, temos os discursos que fazem referência a alguns dos agressores.
P - O que os dois estavam fazendo embaixo da cama (narra um episódio em que Pinóquio
ficou de castigo e se escondeu na cama com uma amiga) ?
Cr3- Estava se escondendo.
P - De quem? Por quê?
Cr3 - Da mãe, porque ele se escondeu. Ela queria bater nele.
P - O que mais deixa você triste.
Cr1- Quando eu tenho que acordar para ir para escola, a minha mãe dá em mim para eu ir
a escola.
186
Temos no seguimento, além do pai como agressor, a avó que faz parte da família e
do processo de educação da criança, situação esta vivenciada por muitas crianças
brasileiras. Na última situação, a criança nos revela um sentimento de medo decorrente de
uma possível punição, que é aplicada pelo pai. Essa criança, em outro discurso, nos fala
de que o que a assusta é o inesperado, o apanhar, sem saber o porquê.
P- (...) e raiva, quando é que você sente raiva? E quando é que você sente raiva ?
Cr7- Quando meu pai bate em mim, quando minha avó briga comigo, pronto, só isso.
(...)
P- Tenho uma vergonha enorme quando...
Cr7- Quando alguém me machuca. As meninas do colégio e meu pai, uma vez na vida.
(...)
P - Quando alguém atrapalha a realização de um plano meu eu...
Cr7- Acho a outra pessoa chata. Minhas amigas ficam conversando, bagunçando e eu não
gosto. Meu pai e minha mãe me atrapalham quando eu tô fazendo o dever. Quando
alguém inventa mentira pro meu pai, eu apanho e tenho medo.
(...)
P-O que me assusta é...:
Cr7- Meu pai e minha mãe me pegam de surpresa, não explicam por que tão batendo.
Quando eu faço arte. Dói mais quando meu pai bate, mas eu fico mais triste quando
minha mãe bate.
A seguir, uma condição em que a criança (Pinóquio) reage à ação sofrida pela mãe
(do Pinóquio). Expressa sua vontade de queixar-se ao agressor, demonstrando-nos sua
compreensão sobre a condição de quem é vitimizado, quando fala sobre a condição física
do Pinóquio, pois a diferença de tamanho e idade é transformada em desigualdade. A
criança demonstra-nos sua sensibilidade e clama pelo respeito, mesmo diante de sua
pouca idade.
P - A mãe dele (do Pinóquio) não gosta quando ele faz alguma coisa errada e ele teima, o
que acontece?
Cr3- Dá no Pinóquio.
P - Dá de quê?
Cr3- De mão.
(...)
P - Ele chora, reclama, diz o quê?
187
Cr3- Mãe não dê em mim não, eu já sou grandinho, você é muito grandona para dá em
mim.
Na situação a seguir, aparecem o pai e a mãe como possíveis agressores da criança
(Pinóquio). Uma observação a ser feita é que a criança parece aceitar a violência por parte
dos pais e não a aceita quando cometida por outras pessoas, fato observado na literatura
(Salomon, 2002) e confirmado por nós, chegando até a mobilizar, naquela, sentimentos
de tristeza. Vemos, na fala da criança, um dos fatores de risco associados à violência
intrafamiliar: a crença cultural de que os pais são donos dos filhos e podem fazer com eles
o que bem quiserem (Corsi, 2003).
Na verdade, isso sinaliza-nos o fato de que, mesmo sofrendo com a condição de
vitimizada, a criança justifica a ação se essa for cometida pelos pais.
P - (...) e quando é que você sente tristeza, quando é que você fica triste?
Cr7- Quando alguém me culpa ou quando, assim, é, quando fica atrás de me pegar para
bater em mim, quando elas querem bater em mim, sem ser meu pai e minha mãe.
A ação da mãe de bater tem como conseqüência o sentimento de tristeza já
demonstrado por essa criança em outros segmentos de seu discurso. Surge, também, o
sentimento na criança de ódio pela mãe que a agride. No último segmento, a mesma
criança ao ser perguntada sobre quando sente raiva, no ‘bate-bola,’ nos fala sobre o
sentimento de ódio que tem por uma pessoa que diz não ser de sua família e às vezes tem
vontade de não falar mais com ela, mas está impossibilitada por dependerem-se
mutuamente. Pensamos que a mãe surge de forma implícita nesse discurso, que seria a
‘pessoa’ por quem a criança tem ódio, alias, já mencionado por ela anteriormente. Em
nossas observações, vimos a carga de emoção que emergia tanto da voz da criança,
quanto de sua expressão facial, que se modificou ao nos falar da ‘pessoa’ por quem nutre
188
o sentimento de ódio. Segundo Szymanski (2002, p.16), a submissão às regras e à
autoridade torna-se o modo habitual de ser e pode-se ter, como conseqüência, o
afastamento mútuo (...) . A maneira como são vividas define modos de compreensão de si
mesmo e do mundo.
Lembramos que qualquer castigo – físico ou emocional – situa a vítima contra a
pessoa que o infligiu. O prejuízo imposto aos sentimentos pode ser mais duradouro e
prejudicial do que a dor física.
Vimos, também, o quanto o relacionamento entre mãe e filha poder ser prejudicado
em decorrência de uma interação permeada por violência e quantos sentimentos decorrem
desse tipo de relação.
P - (...) quando é que tu se sente triste?.
Cr7- Quando minha mãe bate em mim.
P - E quando tua mãe te bate, o que tu sente?
Cr7- Ódio.
(...)
P - Eu fico com raiva quando...
Cr7- Estou com ódio de uma pessoa.
P - Quer falar o nome da pessoa ou não?
Cr7- Não.
P - Essa pessoa... Tu convive muito com essa pessoa?
Cr7- Convivo.
P - Hum, hum. E o que que tu faz com esse ódio? Como é que tu se sente tendo esse
sentimento?
Cr7- Dá vontade de eu não falar mais com ela. Aí ela vem e fala, aí eu vou e falo com ela.
P - É preciso falar com essa pessoa, então?
Cr7- Que às vezes eu preciso dela e ela precisa de mim.
P - Depende uma da outra, né? E esse sentimento aparece sempre? Em que momento ele
aparece?
Cr7- Quando eu tô no colégio.
P - Quando tu tá no colégio? E aí tu fica lembrando de outra pessoa, como é? Tu tem
raiva dela?
Cr7- Tenho.
P - E essa pessoa, será que ela sabe que tu tem essa raiva dela?
Cr7- Sabe... porque eu já disse um bocado de vezes a ela, mas ela não cria vergonha na
cara e vem falar comigo.
189
P - É uma pessoa que você pode deixar de falar com ela? Não, né? Porque você precisa
dela e ela precisa de você, né? É uma pessoa da tua família?
Cr7- Não.
P - Não? Não é da tua família? E tem alguém que você precise mais do que as pessoas da
tua família?
Cr7- Tem.
P - Então, você não quer falar quem é essa pessoa, né? Então, assim, vamos falar um
pouquinho, pra encerrar, né? (...) Como é o teu relacionamento com teu pai?
Cr7- Como assim?
P - Como é que tu se dá com ele?
Cr7- Bem.
P - Bem? E com tua mãe?
Cr7- Não me dou muito bem com ela não.
P - E como é que você lida com essa situação?
Cr7- Sei lá, eu não gosto muito dela .
A criança considera permissivo o abuso quando esse é perpetrado pelos pais e ainda
inclui a família mais ampla: tios e tias. A família, de acordo com a abordagem sistêmica,
recebe influência de vários outros sistemas humanos, inclusive da família de origem.
Vemos as relações interpessoais dessa família permeadas pela violência. Essa criança, em
momento posterior da entrevista, evidencia-nos que tem internalizados os padrões das
relações familiares quando se descreve como uma pessoa violenta. São esses padrões que
irão determinar quando, como e com quem as pessoas devem se relacionar (Ribeiro,
2001). Também os padrões podem ser considerados reflexos de nossa sociedade que
define na família quem é autoridade. À frente, temos um padrão de comportamento
abusivo que poderá se repetir por gerações, pois essa mesma criança já se descreve como
violenta em seu discurso, apontado por nós anteriormente.
Cr7- Porque só quem tem que bater em mim é pai, mãe, tios e tias. Minha mãe é quem
bate com mais freqüência.
Podemos constatar na voz da criança (Pinóquio) sua percepção das conseqüências
de uma educação em que os pais, como autoridades, não mantêm única filosofia da
190
disciplina. Vemos também que uma das autoridades desqualifica a atitude da outra,
através de um comportamento diametralmente oposto.
P - (...) Diz aí uma coisa que esses irmãos (do Pinóquio) fazem que apanham?
Cr7- Mexer nas coisas de errado.
P - Mexer nas coisas de quem?
Cr7- Da mãe, querer derrubar o som, televisão vídeo. (...) Quebrar canteiro, quebrar
armário.
P - E por que esse menino de 6 anos (Pinóquio) tem essa raiva toda que precisa quebrar o
rádio...
Cr7- Porque é malcriado, o pai batia nele a mãe ia adular.
A mesma criança:
Cr7- Ah, tem criança que fica malcriada, quando o pai vai ou a mãe bate e a pessoa vai
adular, eles ficam malcriados.
5.2.3. Quem sofre a ação (vitimizado)
Dentre as referências sobre as pessoas vitimizadas, ou seja, que sofrem a ação,
temos, além das próprias crianças, outros membros da família. A criança, no entanto,
aparece como referência maior, seguida pela personagem (Pinóquio – considerando que a
criança se revela no mundo da personagem): criança (31), Pinóquio (20) irmãos e irmãs
da criança (9), irmãos e irmãs e Pinóquio (9), mãe de Pinóquio (2), mãe da criança (1),
pai de Pinóquio (1) tia da criança (1).
Considerando o art. 226 e 227 da Constituição Brasileira sobre os direitos e deveres
da família e do Estado vemos nesse caso, o quanto a criança bem como sua família estão
sendo violadas já que a violência é presente em suas vidas e o Estado não assegura sua
proteção efetiva.
A seguir, alguns discursos que fazem referência aos vitimizados.
P - E quando é que você sente raiva?.
Cr7- Quando meu pai bate em mim, quando minha avó briga comigo, pronto, só isso.
191
P - Ela briga (avó) porquê?
Cr2- Porque eu digo assim.... não traga não hoje que eu vou varrer a casa,aí me dá uma
vontade de pegar nela e bater, aí minha avó diz: menina, deixa de ser abestalhada, eu varri
isso de manhã e num fiquei assim, ela entrando e saindo e eu não fiquei desse jeito
P - Quando tu faz alguma coisa que a tua mãe gosta, o que que acontece?
Cr2- Ela bate n’eu.
P - Quando tu ou teu irmão faz alguma coisa que tua mãe ou teu pai não gostam, o que
acontece?
Cr3- Minha mãe não gosta quando ele dá em mim, aí minha mãe dá nele.
P - E o que acontece quando tu faz alguma coisa errada, que tua mãe acha errado, que ela
não gosta que tu faça?
Cr3- É quando eu lavo a louça mal lavada
P - O que ela faz?
Cr3- Ela briga.
P - Como você imagina que o Gepeto faria com ele (Pinóquio) por exemplo, se ele fizesse
alguma coisa que o Gepeto não gostasse, o que aconteceria com ele?
Cr2- O Gepeto, pai dele, ia dar uma surra nele.
5.2.4. Instrumentos da ação
Os instrumentos mais utilizados pelos (as) agressores (as) presentes nos discursos
das crianças são citados também pela literatura (Couto, 2004) (ver nosso texto
anteriormente) e são os mais diversos: chinelo (sandália) (10); mão (8); linguagem
(instrumento específico) (7); cinturão (4); chicote de cavalo (1); colher grande (1); cipó
(1).
P - Diga alguma coisa que seu pai fala que não pode fazer
Cr4- Ir para terra quente senão o nariz fica escorrendo.
P - O que acontece ?
Cr4- Ele dá em mim.
P - Com o quê ?
Cr4- Com a mão, chinela, ou de chicote de cavalo.
P - E quando acontece dela (mãe) combinar uma coisa contigo e tu não faz. O que ela
faz?
Cr3- Ela dá em mim, quando eu tô no meu quarto trancado já dormindo.
P - De que ela (mãe) bate.
Cr3- De mão.
P - Bate de chinelo e de mão ou bate de outra coisa?
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Cr3- Com o chinelo, com a colher e fico no meu quarto dormindo, colher grande.
P- (...) E quando ela (mãe da criança) te bate, ela te bate de quê?
Cr2- Quando ela me bate, me bate de sandália.
5.2.5. Justificativa para quem comete a ação
Apareceram diversas justificativas para quem comete a ação. Nos discursos das
crianças, a maioria dessas justificativas corrobora a literatura (Gonçalves, 2001) e nos
revela que a disciplina, a proteção, a desobediência dos filhos, são aspectos que justificam
a ação de bater, castigar etc.
Um dos aspectos para uma compreensão do fenômeno é a dificuldade das famílias
para colocar limites às suas crianças. Este fato colabora para o abuso de poder na família,
bem como para a omissão de uma autoridade na família para a imposição desses limites
(Scodelario 2002). Muitos pais utilizam a punição física como estratégia para impor
limites à criança (Shnit, 2002) sendo que essa, muitas vezes, foi a tática aprendida pelos
pais em seu processo de educação, em suas experiências (Gonçalves, 2001).
5.2.5.1. Desobediência
A desobediência é a justificativa compartilhada por algumas crianças para a ação
violenta.
Na primeira situação, apresentamos dados que sinalizam a justificativa e
possibilitam-nos inferir que a dinâmica da violência circula na família, em vários
elementos.
P - O pai dele faz o que quando ele desobedece (o Pinóquio)?
Cr3- Dá nele.
P - E quando a Eduarda (filha) faz alguma coisa que o Eduardo (pai) não gosta, o que ele
faz com ela? (personagens da família desenhadas pelo sujeito).
C5- Deixa de castigo.
193
P - O que não pode fazer nesta família?
Cr5- Desobedecer.
P5- E se desobedecer, o que acontece?
Cr5- Fica de castigo.
5.2.5.2. Disciplina
No discurso seguinte, deparamo-nos com uma situação incoerente em que o pai,
com a intenção de proteger a saúde da criança e discipliná-la, comete violência.
P - Diga alguma coisa que seu pai fala que não pode fazer.
Cr4- Ir para terra quente senão o nariz fica escorrendo.
P - O que acontece?
Cr4- Ele dá em mim.
Outra situação em que a violência se justifica pela disciplina.
P - O pai já bateu na Dania (irmã da criança)? De quê?
Cr3- Já, de chinelo,
P- Por que a Dania (irmã) apanhou?
Cr3- Porque ela tava mexendo nas minhas coisas quando eu tô na escola.
5.25.3. Impedimento de cumprir obrigações domésticas
Educar, para algumas famílias, significa também envolver a criança nas tarefas
domésticas. Aí também é uma situação em que a criança tem obrigações a cumprir em
casa e a irmã a impede de fazê-las, levando a avó a brigar com ela.
P - Quem é em casa que diz assim: olha..., isso é para você fazer, isso não pode, isso aqui
pode. Quem é que diz essas coisas?
Cr - Minha mãe.
P - É tua mãe (referindo-se ao seu desenho)?
Cr4- Hoje ela mandou eu passar o pano e varrer a casa, mais eu não quis.
Cr2- Porque eu digo assim.... não traga não hoje que eu vou varrer a casa,aí me dá uma
vontade de pegar a minha irmã e bater nela, aí minha avó fica brigando comigo.
(...)
P - E a hora que você sai do colégio o que você faz?
Cr2-Vou, como assim, ( lê-se, por exemplo) eu não arrumei a casa hoje de manhã, aí eu
vou arrumar quando eu chegar, vou almoçar e arrumar.
(...)
P - Alguém te ajuda arrumar a casa?
194
Cr2- Não
(...)
Cr2- Tem dia que a minha avó, eu e minha irmã.... Eu tô varrendo a casa, aí vem a minha
irmã, traz umas amigas dela para bagunçar, aí me dá uma vontade de pegar a minha irmã
e bater nela, aí minha avó fica brigando comigo.
5.2.5.4. Cumprimento do dever-escola
Nestes discursos específicos da criança (Cr1), parece-nos que o momento de ir para
a escola se configura como ocasião de tristeza, já que é acordada, pela mãe, com
violência, pois ela se encontra numa posição de ‘cumpridora do dever’: fazer o filho ir à
escola.
P - O que mais deixa você triste?
C1- Quando eu tenho que acordar para ir para escola, a minha mãe dá em mim para eu ir
a escola.
(...)
P - Eu fico com raiva quando ele fica mexendo (o sobrinho). (...) Quando ele fica
mexendo. Faltou completar aqui. Fica mexendo onde, em quê?
Cr1- Quando eu não quero vir pro colégio, minha mãe me obriga.
P - Ah...
Cr1- Fica dando n’eu pra eu acordar.
5.2.6. Justificativa da ação para o sujeito
Nos discursos das crianças, estão presentes as mais diversas justificativas para a
ação dos agressores. A que mais prevaleceu foi a desobediência por parte da criança (e
personagem) e as conseqüências são apanhar e ficar de castigo. Retomando as
justificativas: desobediência (12); disciplina (2); ação inadequada em relação aos afazeres
domésticos (1); adultério (1); a violência como uma reação à outra ação violenta (1);
apropriação dos bens alheios (2); inculpa o vitimizado (1).
195
5.2.6.1. Desobediência
Na situação seguinte, a criança justifica o abuso pela desobediência aprendendo que
a punição física é um recurso certo para ser utilizado e é eficaz. Noutra situação, a criança
já antecede a ação: ficar de castigo, se desobedecer.
P - Vamos imaginar uma coisa que ele ( Pinóquio) poderia fazer que o Gepeto não iria
gostar.Vamos pensar em alguma coisa, o que seria?
Cr2- (...) o pai dele mandou ele fazer uma coisa e ele fez outra.
P - (...) o que o pai dele mandou ele fazer, a gente pode imaginar?
Cr2- Ele disse para não andar de bicicleta e ele andou, aí o pai dele pegou ele andando.
P - (...) E você acha que, da outra vez que o Pinóquio quiser andar de bicicleta e o Gepeto
disser para ele que não é para andar, você acha que ele vai andar ou não vai?
Cr2- Não, que ele levou uma surra, né?
P - (...) e quando o pai (Gepeto) combina uma coisa, combina a regra, diz como que quer,
combina uma coisa e os filhos fazem diferente, que que acontece?
Cr7- Ele fica de castigo.
Na parte a seguir, deparamos uma situação da desobediência da criança como
justificativa para apanhar da mãe; porém, apesar da exploração do caso na entrevista, não
ficou claro para nós se há uma confusão por parte da criança, ou se há de fato dupla
mensagem enviada pela mãe, que faz com que a criança fique confusa, configurando-se
como uma relação de duplo vínculo (Mariotti, 1999) na qual se manifesta uma
comunicação contraditória e contribui para auto-estima das crianças (Borges, et al, citado
em Ribeiro, 1996). (
P - Diga uma coisa que tu faz e tua mãe não gosta e te bate?
Cr3- Quando eu to arrumando a casa. Ela diz... não arrume deixe que eu arrumo...
P - Quem diz deixa que eu arrumo ela (mãe) ou você ?
Cr3- Ela.
P - Quando é que ela te bate?
Cr3- Quando eu passo o pano no meu quarto.
P - Ela te bate porque tu passa o pano no quarto?
Cr3 - É.
P - Quem é que pede para tu arrumar a casa?
Cr3 – Mãe.
196
P-Ela que pede ou é você que quer arrumar?
Cr3-Ela que pede.
(...)
P - E por que foi que ela te bateu? Por que tu não queria fazer, porque tava mal feito ou
por que ela não queria que tu fizesse?’
Cr3- Porque ela não deixa eu fazer.
(...)
P - Tu lembra que eu te perguntei se tu arruma a casa por que tu quer ou por que ela ( a
mãe ) te pedi. Aí você respondeu que ela te pedia. Então, é ela que pedi ou você quer
fazer sozinha?
Cr3- Ela quer que eu faça sozinha.
P - Ela acha bom ou acha ruim que tu faça as coisas em casa?
Cr3- Acha bom.
Depois desse diálogo, a criança diz que, quando a mãe sai e volta, ela já fez café e
almoço; diz que foi a mãe que a ensinou a fazer e ainda complementa que faz
macarronada e galeto. Novas dúvidas aparecem para nós ao nos questionar sobre a mãe
deixá-la acender fogo etc.
Em um outro momento, no discurso dessa mesma criança, observamos:
P - E o que acontece quando tu faz alguma coisa errada, que tua mãe acha errado, que ela
não gosta que tu faça?
Cr3- É quando eu lavo a louça mal lavada.
P - O que ela faz?
Cr3- Ela briga.
5.2.6.2. Disciplina
A ação é mais uma vez antecipada pela criança quando essa faz algo de que a mãe
não gosta.
P - Quando tu faz alguma coisa que ela (a mãe) não gosta, o que acontece?
Cr3 -Fico de castigo.
P - Quando a Bruna (filha) faz alguma coisa que o Eduardo (pai) não gosta, o que
acontece com ela (personagens criados pela criança)?
Cr5- Fica de castigo.
5.2.6.3. Adultério
197
Entrando na fantasia da vida da personagem Pinóquio e sua família, surge a
violência intrafamiliar contra a mulher. A justificativa, na percepção da criança, decorre
de uma possível relação extraconjugal. Assim, percebemos no relato da criança a
desigualdade entre os gêneros e o uso da força por parte do homem para resolver conflitos
conjugais. Esses, de acordo com Corsi, (2003), não se configuram como elementos
causais da violência na família, mas sua existência aumenta a sua probabilidade em
relação à ocorrência e gravidade de manifestação.
P - E por qual motivo o Gepeto bateria (na mulher dele)?
C7- Porque a mãe dele queria ficar com um homem e o pai não queria.
5.2.6.4. A violência como uma reação à outra ação violenta
Para algumas crianças, a ação violenta se justifica porque é uma reação à outra ação
violenta, mesmo quando essa última parte da mãe. Esse dado evidencia que a violência
está presente nos padrões de socialização dessa família.
P - Quando foi que tu apanhou? Por quê?
Cr3- Hoje, porque eu tava brincando com minha irmã.
P- Por que ela bateu?
Cr3- Porque tava arengando com minha irmã.
P - (...) e se algum dia o Pinóquio arengasse com as pessoas, o que que você acha que iria
acontecer?
198
Cr 1- Aí Gepeto transformasse ele num boneco.
P - E você, Marcos, concorda com esse castigo? Você acha que o Gepeto poderia
transformar ele em boneco de madeira de novo?
Cr1- (Afirma com a cabeça).
P – É?
P-Então ele devia ter feito uma coisa muito grave, né? Que que ele poderia ter feito que
teria esse castigo?
Cr1- Pegar alguma coisa.
P - Tu lembra por que a Dania apanhou?
Cr3- Porque ela tava mexendo nas minhas coisas quando eu tô na escola.
5.2.6.6. Inculpa o vitimizado (a criança assume a culpa)
Temos visto, na literatura (Ravazzolla, 1999), que a criança justifica a violência por
achar que está errada, responsabilizando-se pela situação de haver desobedecido uma
autoridade e não assume sua defesa. Assim, a criança formula uma explicação que dê
sentido à ação de que foi vítima, procura o erro em si mesma para proteger sua família e,
principalmente, o agressor, de ser atacado. Nessa posição, para a criança, proteger a
família é também se proteger, pois, ao pertencer a esse sistema, aquela atribui um
significado de unidade. A criança também nessa situação tem dificuldade de se
diferenciar do agressor, ocorrendo uma fusão entre eles, fazendo com que a criança perca
a capacidade do autocuidado.
Neste primeiro segmento, divisamos uma situação em que a criança responsabiliza a
personagem (Pinóquio) pela ação cometida pelos pais. Assim, se o mesmo teima será
passível de punição: apanhar. Neste contexto, não está presente a percepção, por parte da
criança, de que o agressor é o responsável direto pela ação. Este fato poderá ser atribuído
à negação da violência como um mecanismo de defesa e como um dos fatores que
contribuem para a compreensão do fenômeno (Scodelario (2002). Em seguida, aliada à
ameaça de bater, o agressor antevê o que irá ocorrer se a personagem desobedecer: seu
199
nariz vai crescer – diferente da história na qual o nariz de Pinóquio cresce quando ele
mente.
P - Como é a vida do Pinóquio?
Cr3- É quando ele tá de castigo
P - Ele fica de castigo por que?
Cr3- Porque ele quer.
P - Quem que quer?
Cr3- O Pinóquio.
P - O Pinóquio quer ficar de castigo?
Cr3- Vá pro seu quarto Pinóquio, ele foi. Aí vou dar em você, se teimar seu nariz vai
crescer.
P - O que que você pensa dessa atitude dela bater?
Cr2- Eu acho que é certo, porque ela manda eu fazer uma coisa e eu não fiz, e depois eu
fiz uma coisa errada.
Mais uma vez a criança inculpa a personagem (Pinóquio).
P - O que que ele fez para merecer o castigo?
Cr7- Errou, o pai dele disse que ele não fizesse, ele foi e fez .
5.2.6.7. Culpabiliza o agressor e ao mesmo tempo o defende (em ações diferentes)
Uma criança, em outro contexto, nos fala o que pensa sobre o castigo e acerca da
ação de ‘bater’. O castigo, para ela, é uma atitude correta pelo fato da pessoa não apanhar
e como prevenção de um problema psicológico: o trauma.
P - Ele (o Pinóquio) acha certo ou errado o pai bater nele?
Cr7- Errado
P - E deixar de castigo?
Cr7- Certo.
P - Acha certo? E por quê?
Cr7- Porque de castigo, a pessoa não vai apanhar, não vai ficar doente, que isso previne
até pra outra pessoa.
P - Como é que a pessoa previne doença evitando bater no filho?
Cr7- Bater...
P - Como é que o filho adoece apanhando?
Cr7- Ah, tem criança que fica malcriada, quando o pai vai ou a mãe bate e a pessoa vai
adular, eles ficam malcriados.
(...)
P - Qual a doença que a pessoa fica?
200
Cr7- Traumatizada.
P - Ah, a doença psicológica que a gente chama, né? Traumatizada. E o Pinóquio tem esta
doença?
Cr7- Tem, que ele apanha.
Outra criança faz seu julgamento sobre a atitude dos pais em relação a ela,
considerando-a ‘errada’. No primeiro segmento, existe uma justificativa que a criança
sinaliza para nós sobre a afetividade presente/ausente na relação. Vemos, na verdade, na
fala dessa criança, uma necessidade psicológica presente em todas as crianças – de se
sentir amada. Ter suprido essa necessidade é de fundamental importância para o bem-
estar emocional das crianças. Não basta a criança ser amada, mas também ela precisa se
sentir amada por seus pais. Isso afetará significativamente a maneira como irá se
desenvolver (Briggs, 2002).
P - Você acha certa a atitude de seu pai e sua mãe de lhe bater?
Cr4- Não, acho errado. Ele não devia bater em mim, ele devia me agradar mais.
O discurso da criança, além de condenar a atitude do pai em relação ao abuso, faz
referência, em sua justificativa, a uma descarga (choro) de uma emoção:
P - Tu acha certo ou errado teu pai e tua mãe bater?
C3- Acho errado.
P - Por quê?
C3- Porque se ela me bater eu choro.
5.2.6.8. Ambigüidade de julgamento
No discurso seguinte apresentamos uma situação em que aparece uma ambigüidade
no julgamento da criança em relação ao abuso. No primeiro instante, a criança avalia a
ação de bater do Gepeto (pai de Pinóquio, personagem) como correta e, logo em seguida,
como errada, e novamente, como certa.
P - E você, agora, pra você, você acha que o Gepeto tá certo em bater no Pinóquio ou ta
errado?
201
Cr2- Ta certo, ta errado, ele tá mais certo, porque ele fez uma coisa errada.
5.2.7. Alternativa da criança perante a ação
Algumas crianças encontraram outra saída que não fosse a ação de apanhar, por
exemplo, o castigo. Na verdade, o castigo tem o efeito de diminuir o respeito da parte de
quem o sofre, chamando-lhe atenção para suas limitações. Mesmo que, com o castigo
passe a obedecer aos seus pais, não surtirá efeito para a constituição de uma
personalidade autônoma, aspecto adquirido quando a própria criança entender que
necessita mudar para adquirir respeito por si mesma. O castigo, na melhor das
possibilidades, leva a criança a obedecer às ordens recebidas, mas não a ensinará a ter um
autocontrole, a agir de acordo com as próprias decisões, aspecto que aumenta o respeito
próprio; ensinará, sim, que o poder faz a justiça (Bettelheim, 1988, pg.115).
Na verdade, o castigo faz com que a criança se sinta ameaçada em relação à
segurança que possui em ver um dos progenitores como protetor e sinta rancor contra
qualquer pessoa que venha a castigá-la.
Outras crianças mantiveram a ação cometida pelos agressores.
5.2.7.1. Castigo
No discurso desta criança, inicialmente, a ação de bater cometida pelo agressor é
mantida e posteriormente, após exploração, apresenta como alternativa outra ação.
P - Ele pensa que ele não fez nada de errado. E tu acha que... será que podia o pai dele fazer
de forma diferente?
Cr7 Não.
P - (...) qual a sugestão que o Pinóquio poderia dar, por exemplo, pra mãe ou pro pai, pra
eles agirem de outra forma quando ele fizesse alguma coisa que eles não gostassem, além
de bater.
Cr7- Deixar de castigo.
202
P - Vamos ver alguma coisa errada que ele ( Pinóquio) poderia fazer, que o pai dele
(Gepeto) não fosse gostar?
Cr2- Assim, o pai dele mandou ele fazer uma coisa ele fez outra.
P - Hum, hum.
Cr2- Aí o pai dele pegou e deu nele.
P- (...) o que o pai dele ( Pinóquio) poderia fazer, sem bater nele.
Cr2 -Botar de castigo
5.2.7.2. Mantém a ação presente.
A seguir, mostramos fragmentos de um discurso em que a criança não propõe
alternativa ao agressor e mantém a ação de bater.
P- E você acha uma outra forma que o Gepeto poderia fazer, sem ser bater no Pinóquio?.
Cr2-Não.
P - Tem alguma outra coisa que ele poderia fazer?
Cr2 - (Respondeu que não com a cabeça).
P - Só bater?
Cr2 - Só.
(...)
P - O que que você pensa dessa atitude dela bater?
Cr2 -Eu acho que é certo, porque ela manda eu fazer uma coisa e eu não fiz, e depois eu
fiz uma coisa errada.
(...)
P- Você tem alguma sugestão a dar?
Cr2 - Não só bater, só isso.
A violência intrafamiliar desvelada nos discursos das crianças traz uma
preocupação: a criança nesse contexto ainda é muito vitimizada pelos pais e familiares,
seja pela violência física, seja pela violência psicológica. A violência física presente de
forma intensa nos relatos das crianças é associada à disciplina, educação e proteção.
Nesse sentido, embora não possamos descaracterizar a violência do ato presente na
punição física, devemos atentar para o aspecto da elaboração cultural do próprio conceito.
Os abusos cometidos contra as crianças têm um significado elaborado culturalmente e
sempre estiveram presentes em nossa história.
203
Mesmo hoje, sendo compreendida como sujeito de direitos, a criança ainda é vista
como propriedade dos pais e dos responsáveis. Podemos observar este fato no relato de
uma criança que admite ser abusada pelos pais e não por outras pessoas.
Destacamos, também, na fala das crianças, a presença da institucionalização da
violência na dinâmica familiar, na qual essa é compartilhada por diferentes sujeitos. Isso
significa que um contingente maior de pessoas pode vir a reproduzir e dar continuidade à
violência, já que, vários autores postulam a idéia de que crianças que sofrerem violência,
quando forem adultas, podem apresentar comportamentos abusivos, seja com seus filhos
ou com outras pessoas (Faleiros, 1998; Corsi, 2003, Ribeiro, 2001,, Baptista, 2002; dentre
outros).
Algumas crianças se responsabilizam pela ação própria ou a personagem (Pinóquio)
5.3. Auto-estima
A auto-estima é considerada uma das experiências subjetivas que pode ser acessível
mediante de relatos verbais (Coopersmith, 1967, citado por Assis & Avanci, 2004)).
Neste trabalho, consideramos a auto-estima como um sentimento decorrente da percepção
que as pessoas têm de si e que se constitui como uma necessidade humana, pois não há
ser humano desprovido de auto-estima (Branden, 2000). Essa afeta a maneira de as
pessoas agirem, pensarem e se relacionarem. Também a auto-estima é considerada um
indicador social fundamental, estando associada a graves problemas sociais, como
delinqüência, uso e abuso de drogas, gravidez precoce, dentre outros (Palácios,
Hidalgo,1995).
204
Elegemos como subcategorias de análise os elementos que compõem a auto-estima
considerados em nosso trabalho. Para facilitar a exposição e trabalharmos de maneira
mais didática, esses elementos são apresentados separadamente, embora sejam
interdependentes. São eles: o amor a si mesmo, a visão de si mesmo (autoconceito) e a
autoconfiança (André & Lelord, 2003).
Antes de iniciarmos a análise dos dados das subcategorias, convém ressaltar que
poderá haver a repetição de algumas referências e fragmentos dos discursos, já que estes
trazem possibilidades de inserção em mais de uma das categorias.
5.3.1. O amor a si mesmo
É o amor que as pessoas têm a elas próprias. Uma satisfação e aceitação de forma
integral, da forma que são, independentemente de aprovação ou reprovação por parte dos
outros. Está ligado ao auto-respeito, autovalorização e ao amor recebido pelas pessoas
significativas: os pais.
Na continuidade, estão algumas situações ligadas a um dos elementos da auto-
estima considerados por nós: o amor a si mesmo.
Na primeira situação, lê-se um discurso em que a criança não se mostra muito firme
ao falar do amor que sente por si, elemento este ligado à atitude de autovalorização e
auto-respeito (André & Lelord, 2003).
P - Tu gosta de ti?
Cr1- Muito não...
Os discursos de algumas crianças nos revelam que elas têm uma aceitação e
satisfação consigo, manifestações de seu amor por si, numa atitude de valorização e
respeito.
205
P: Então você vai olhar no espelho e dar uma nota. (...) Se tu fosse dá uma nota para teu
corpo, tu dava: 0, 1, 2, 3,4, 5, 6, 7, 8, 9 ou 10.
Cr4: 10!
P - Se você fosse mudar alguma coisa, o que mudaria?
Cr5- Nada.
P - No teu jeito de ser, o que tu queria mudar?
Cr5- Nada.
Apresentam-se várias situações das crianças que refletem um sentimento de
insatisfação consigo, principalmente em relação ao corpo, embora isso não signifique que
não sintam amor por si, nem se gostem (André & Lelord, 2003), mas que evidenciam
uma dificuldade nessa aceitação. Apesar de algumas crianças manifestarem desejos de
mudanças no aspecto estético, isso não as impede de terem amor por si, se apreciarem e
se acharem bonitas.
P - E qual é a parte do teu corpo que tu mais gosta?
Cr4- O corpo todinho.
P - Tem alguma parte que tu não gosta e queria mudar? Ser diferente?
Cr4- Um pouquinho a cara.
P - Tu queria ser diferente na cara o quê?
Cr4- A cara todinha.
P: Você queria ser diferente? Sem ser o corpo agora... O jeito de ser, de viver, o que você
queria mudar em você? (...)
Cr1: Só queria mudar os pesos...
P - (...) e quando você se olha no espelho, o que você acha de você?
Cr2- Tão feia.
P - O que você acha feio em você?
Cr2- Os povo fica me chamando de bocão porque meu pai tinha uma bocona...
Cr2- Só isso. E fica me chamando de bucha, porque meus cabelo é assim...
P - Mas você mesma, quando você olha no espelho...
Cr2- Eu acho isso.
P - Quando se olha no espelho aí tu diz assim: aí, eu sou bonita ou sou feia?
Cr4- Bonita.
P - E o que tu quer mudar, se tudo é bonito?
Cr4- Porque eu queria tirar esse negócio aqui do nariz.
P - Queria mudar a cara todinha porque tem algumas sardas no nariz? Pintinhas, não é?
206
P - Tem alguma coisa que tu queria mudar no teu jeito de ser?
Cr4- O cabelo.
(...)
Cr4: (...) Os olhos de minha mãe é azul e do meu irmão, só o meu que não é, e do meu
pai.(Falando e desenhando sua família)
Cr4- Meu pai ficou feio, não foi (no desenho)?
Cr4- (Desenhando uma cabeça) meus olhos azuis.
(...)
P - Tem alguma parte que tu não gosta e queria mudar? Ser diferente?
Cr4- Um pouquinho a cara.
P - Se tu fosse dar uma nota pro teu corpo qual era a nota que te dava, 1 ou
2,3,4,5,6,7,8,9…? Qual era a nota que tu te dava?
Cr6- Dez.
P - Dava dez? É legal. Qual a parte do corpo que tu gosta mais?
Cr6- Das pernas e… das pernas… e da (inaudível).
P - E do corpo não (incompreendido), tem alguma parte que tu não gosta? Que tu queira
mudar, ser diferente?
Cr6- A barriga, ser mais magra.
P - Quando me olho no espelho, eu me acho...
Cr7- Mais ou menos. Me acho bonita e me acho feia.
(...)
P - Uma das coisas que não gosto em mim é...
Cr7- Os dentes, porque vou precisar colocar aparelho. Queria ser bem magrinha e muito
alta, para ser modelo.
O discurso seguinte nos faz pensar sobre o amor que tem por si, já que apresenta
incoerência em sua fala, na qual revela sua dificuldade em aceitar-se como é. Essa atitude
nos parece estar atada à reprovação ou aprovação dos outros, ou seja, a opinião dos outros
afeta os sentimentos positivos sobre si. A segunda situação é de uma criança que
anteriormente nos falou de uma visão positiva de si e a seguir nos informa que essa sua
percepção é recente. Apresenta incoerência em seu discurso, pois, adjetiva-se como
tímido e feio, demonstra um conflito entre a percepção de si no presente e em um passado
recente e finaliza dando-se nota ‘zero’ (anteriormente era dez).
P: (...) eu gosto menos de mim quando... quando você gosta mais de você?
Cr2: Nada!
207
P: Você não gosta de você?
Cr2: Gosto.
P - Então vamos lá, quando é que você se gosta? ‘Eu gosto de mim quando… ’ quando é
que o Vicente se gosta?
Cr6- Todo dia.
P - Todos os dias, todas as horas? É? Todos os dias? Quando, um exemplo, quando você
pensa, ah, eu gosto de mim...
Cr6- Faz… pouco tempo…
P - Ah?
Cr6- Faz pouco tempo.
P - Faz pouco tempo (...) que tu pensa que gosta de ti?
Cr6- Faz cinco dias. Faz cinco dias! (?) faz dez dias que eu não gostava, que eu disse.
P - Ah! faz dez dias que você não gostava de ti. Por que que tu não gostava de ti há dez
dias atrás? (ruídos) não tô ouvindo que tu tá falando pra lá, eu não vou ouvir, vamos lá...?
Cr6- Sou tímido e feio.
P - Você tinha me dito que era bonito, deu nota dez! Aí faz dez dias que você tá se
achando bonito é? (ruídos) você tá dizendo que não gosta de si porque você é feio, se
acha feio, é?…
Cr6- (Afirma com a cabeça)
P - Então vamos ver. Lembra que eu perguntei assim: Vicente quando tu se olha no
espelho o que você se acha?E você disse: Bonito. Aí você tá dizendo que faz dez dias…
faz dez dias que você gosta de você. Que antes você se achava feio, não gostava porque
se achava feio, não era?
Cr6- Hum-hum.
P - Então, hoje você se acha feio ou se acha bonito?
Cr6- Hoje. Bonito.
P - Hoje se acha bonito. E há dez dias atrás por que que você se achava feio?
Cr6- Porque eu achava feio.
P - Se achava feio ...E o que que tem feio em ti?
Cr6- Tudo.
Cr6- Tudo? (inaudível) e esses olhos lindos, esse cabelo lindo, esse nariz lindo, esse (riso)
corpinho lindo? (riso) tem muita coisa bonita, como se acha feio?
Cr6- É o quê?
P - (...) Alguém mais disse que tu é feio ou só tu que acha?
Cr6_ Ninguém mais.
P - Só você então. Hum- hum-. Então que nota você se dá?
Cr6 - Zero.
P -Zero? Por que tão pouco? Tu tem tanta coisa bonita, você olha, teus olhos, tuas
sobrancelhas, tua mão, o teu corpo, teu cabelo. Tem muita coisa bonita, não acha?
Cr6 - (Nega com a cabeça).
208
Outra criança se considera esteticamente feia, porém demonstra indícios de
satisfação de si ao se avaliar com um ‘10’, embora nos sinalize não gostar de seu cabelo,
e que gostaria de mudar a barriga.
P - Quando eu me olho no espelho eu me acho...
Cr2- Feia!
P - Qual a parte do seu corpo que você menos gosta?
Cr2- Meus cabelos.
P - E qual a parte que você mais gosta?
Cr2- De tudo, tirando os cabelos.
P - Ah, mas você falou que se acha feia...
Cr2- Não, eu acho feia sim, porque os meninos ficam me chamando de bocão e fica me
chamando de bruxa, eu faço que nem escuto.
P - E se tu fosse dá nota pra ti, valendo de 0 a 10, qual era a nota?
Cr2- Eu dava 10.
P - Você dava 10 mesmo se achando feia? Então você não se acha feia?
Cr2- Não, porque os meninos ficam me chamando de bocão, de cabelo de bucha...
P - E se você pudesse escolher uma parte sua, do corpo que você fala: isso aqui eu vou
mudar e vou fazer do jeito que eu quero. O que que você faria?
Cr2- A barriga.
(...)
P - O que que você faria?
Cr2- Deixava bem magrinha.
P - E uma parte que você fala: essa aqui eu não vou mudar nunca porque eu acho muito
bonita.
Cr2- A bunda.
P - O que que você mais gosta em você?
Cr2- Que eu gosto em mim? Tudo. Mas, sendo os meninos, tirando os meninos, né?
Ao responder a frase do bate-bola seguinte, a criança vacila na percepção de si
anteriormente revelada e pensada por nós como muito positiva já que ‘se deu nota 10’. A
avaliação de si, porém, no aspecto corporal depende do elogio do pai e afirma que a mãe
não elogia.
P - Quando me olho no espelho, eu me acho...
Cr7- Mais ou menos. Me acho bonita e me acho feia. Bonita porque meu pai me elogia,
minha mãe não me elogia.
209
Embora não seja intenção deste trabalho aprofundar a importância da brincadeira e
do brincar para a criança, torna-se pertinente comentar sobre a relação entre o
desenvolvimento e a brincadeira, já que a temática, de alguma forma, surge no discurso
da criança. A criança Cr7 revela que o sentimento de apreço por si está ligado à situação
de brincar e quando está na praia brincando com os primos. A alegria de Pinóquio
também está associada ao fato de ele gostar de brincar.
Assim, ao brincar, a criança se comporta além do comportamento habitual de sua
idade; é uma fonte de desenvolvimento para a criança, ela é livre para determinar suas
próprias ações, embora seja uma liberdade ilusória, já que as ações da criança são
atreladas aos significados dos objetos na brincadeira e age de acordo com eles. Na
verdade, a criança satisfaz algumas necessidades ao brincar, pois brincar é o que mais
gosta de fazer. Quando as crianças brincam, conseguem realizar necessidades que não
podem ser imediatamente satisfeitas, principalmente na idade pré-escolar (Vygotsky,
1984).
P - É... eu gosto de mim quando...
Cr7- Estou brincando com alguém.
(...)
P - Que mais? Mais alguma situação que você gosta?
Cr7- Quando estão brincando comigo, quando eu estou na praia, eu brinco com meus
primos.
P - (...) Pinóquio era um menino alegre ou triste?
Cr3- Alegre.
P - Por quê?
Cr3- Porque ele gosta de brincar.
O sentimento de desapreço por si aparece ligado a uma condição e a outro
sentimento: tristeza.
P - Eu não gosto de mim quando...
210
Cr7- Estou triste...
Vemos, em um dos discursos seguintes, a criança nos revelar que não é alegre,
embora não saiba explicar o porquê; uma criança que não é alegre, porque é triste,
sentimento que aparece no estilo de pais autoritários e que tendem a promover uma baixa-
auto-estima nos filhos (Gallart, 1999). Em outras crianças, percebemos, por meio da
personagem Pinóquio, talvez um desejo de ser mais alegre e feliz.
P: Tem alguma coisa que tu queria mudar no teu jeito de ser?
Cr3: O cabelo.
P: No jeito de ser?
Cr3 - No jeito de ser?
P - Desse jeito que eu disse: tem gente que é alegre, gente que é triste...
Cr3-Alegre.
P - Tu queria ser alegre. Tu não é alegre?
Cr3- Não.
P – Por que tu acha que não é alegre?
Cr3- Porque... não sei não.
P-(...) como ele seria? (referindo-se ao Pinóquio).
Cr2: Seria alegre, brincava com os meninos.
P - Então vamos imaginar o nosso menino de verdade, como é que ele seria, como é que
se comportaria, o que faria?
Cr7- Ele seria feliz.
A seguir, vemos uma situação em que a afetividade (dedicada pelas outras pessoas a
alguém) é associada ao sentimento de alegria. Alegria, para Cr7, é quando está feliz . Fica
feliz quando faz aniversário e ganha presente.
P: Em que situação alguém pode ficar alegre?
Cr1: Quando as pessoas gostam dela.
P - (...) eu fico alegre quando...
Cr7- Estou feliz.
P- E quando é que você fica feliz?
Cr7- Quando chega na data que eu completo ano.
P- Ah, no dia do seu aniversário. Por que tu fica feliz no dia do seu aniversário?
Cr7- Porque eu ganho presente...
211
Ao ser questionada sobre o que mais ama em sua vida, a criança nos fala sobre a
aquisição de bens materiais ligada a um sonho, de ter uma bicicleta, e manifesta também
sua posição em relação aos cuidados dessa. Anteriormente, em outros fragmentos de
discurso dessa mesma criança, vemos a bicicleta associada ao prazer. Ter uma bicicleta
possibilita à criança maior liberdade de poder ir para onde quiser, pois observamos em
sua fala que um dos motivos que faz com que tenha raiva de sua mãe é quando ela não a
deixa sair.
P - (...) qual a coisa que tu mais ama na vida?
Cr2: Como assim?
P - Uma coisa que tu goste muito, que tu ame muito.
Cr2- O meu sonho era ter uma bicicleta. Se eu me tivesse ia cuidar dela muito bem.
Aparece novamente a bicicleta associada a afetividade no discurso da criança
seguinte, juntamente com a mãe, quem a viola, irmã, tio, tia e primos.
P - Vicente me diz uma coisa que tu gosta muito.
Cr6- De… de… de biscoito, chiclete…
P - Me diz uma coisa que tu goste muito que não seja de comida. Que que tu gosta?
Cr6- Da minha bicicleta.
Cr6 - E da minha mãe, da minha irmã.
P - Da mãe, da irmã, o que mais?
Cr6- Do meu tio, da minha tia, dos meus primos.
A criança Cr3 nos fala do que gosta e do que não gosta em seu corpo. Ao ser
questionada sobre o porquê da preferência do braço nos revela que gosta dele porque ele
exerce uma função de apoio para receber uma companhia: seu ursinho. Na seqüência do
diálogo, justifica o porquê de não gostar de algumas partes do corpo e mostra sua
insatisfação quando revela que gostaria que aquelas fossem iguais às de sua irmã de nove
anos. Essa criança tem seis anos e possui baixa estatura para sua idade. Por isso o querer
ser igual à irmã que, pela descrição, é maior do que ela.
212
P: E qual a parte que tu não gosta?.
Cr3: Nem das pernas, nem do tronco.
P: Por que tu gosta do teu braço?
Cr3: Porque durmo com ele, cm meu ursinho.
P: Por que tu não gosta nem das pernas, nem do tronco?
Cr3: Porque acho feio.
P: Por que tu acha feio? Queria que fosse diferente? Como?
Cr3: Queria que fosse igual a minha irmã e bem grandona. E quando ela estuda, ela me
ensina o alfabeto.
Aparece o sentimento de apreço na criança ligado a uma situação quando obtém
algo do outro. Apesar de não estar claro o que a faz gostar de si, pensamos que mesmo
que seja algo material, sinaliza, para a criança o reconhecimento das pessoas para com
ela. Em outra situação, a criança não consegue distinguir quando não gosta de si.
P - Eu gosto de mim quando...
Cr5- Quando eu ganho alguma coisa
P - Eu não gosto de mim quando...
Cr5- Aí, eu não sei.
O amor por si verificado nas crianças implica em algumas condições como ganhar
algo, por exemplo, uma bicicleta, ou mesmo, não estar triste. Foi marcante a satisfação
consigo, ou seja, a aceitação de si depende também da aceitação por parte dos outros no
aspecto corporal. A não-aceitação dos sentimentos apareceu também em uma criança
como condição para se gostar. Notável foi o discurso de querer ser diferente, não só em
relação aos aspectos físicos, bem como aos aspectos emocionais e de humor. Para nós se
configura como um reflexo da dificuldade de se amar de forma integral, aceitando
qualidades, defeitos, sentimentos de tristeza, alegria, independentemente da aprovação
das pessoas. É uma falta de valorização , auto-respeito e dignidade (Branden, 2001). Esse
amor a si como um dos elementos mais importantes da auto-estima não impede nem o
sofrimento nem a dúvida em caso de dificuldades, mas protege contra o desespero (André
214
Aspectos descritivos e valorativos - são aqueles baseados em uma crença a respeito
de si; possuem um valor positivo ou negativo. Contêm alguma informação sobre algum
poder, ou sobre a falta dele (incluem preferências, ideais, objetivos, expectativas diante da
vida e os aspectos físicos).
Aspectos relacionais - todas as referências feitas explícitas ou implícitas em relação
ao juízo e avaliações dos outros.
5.3.2.1. Aspectos descritivos e valorativos
Na situação seguinte, quando perguntado à criança sobre alguns de seus
machucados, se descreve falando de uma representação que tem dos índios que habitam a
Amazônia, talvez como forma de se valorizar aos olhos dos outros, por ser diferente. Essa
valorização começa nas crianças entre seis e oito anos (André & Lelord, 2003). Nosso
entender sobre esse discurso também passa pela questão afetiva quando fala da
Amazônia, já que seu pai, que é separado de sua mãe, mora lá desde que se separaram, a
criança, segundo a mãe, está hiperativa na escola e se submetendo a exames neurológicos.
Essa criança nos revela em sua fala que a descrição a seguir, ligada a seu autoconceito
não corresponde às suas capacidades e habilidades reais.
No relato seguinte, Vicente (Cr6) nos revela que, ao se sujar de carvão, fica
parecendo um boneco.
P - Você já caiu alguma vez? De árvore, de muro, do que, de alguma coisa? Do alto? Já
caiu? Não?
Cr6- Porque eu sou um índio, também não caio de nada. Nasci na Amazônia.
(...)
P- Ah, então falta esse o que quer dizer essa carinha?
Cr6- Sei não.
P - Sabe não? E essa? Essa daqui tá com uma cara assim... Por que que ele tava com a
cara assim? Vamos imaginar. Carinha de quê? Pra eu botar aqui? De quê?
215
Cr6- De cachorro.
P - De cachorro?
Cr6- É.
P - Por que ele tá com carinha de cachorro? Hein?
Cr6- Ele botou carvão na cara. (...) tu já se sujou de carvão?
P - Eu já.
P - Tu gosta de brincar de carvão?
Cr6- Fica todo preto, parecendo um boneco de… Jogo pra cima.
P - Joga pra cima (...). E quando tu pinta o rosto com carvão tu fica parecido com o quê?
Cr6- Com um boneco…
Vemos na primeira situação do seguimento o discurso de uma criança que
demonstra um conflito entre ser uma pessoa alegre ou triste; manifesta também que as
vezes sente raiva. Em vários outros trechos posteriores da análise, há situações nas quais
aparecem a raiva e a tristeza. Esses atributos refletem seu autoconceito em que as
características emocionais, como por exemplo, o humor, são fundamentais (Assis &
Avanci, 2004). O sentimento de alegria se alterna também quando as crianças podem
falar de seu ‘mundo’mediante o mundo da personagem.
P - Eu sou uma pessoa..., uma pessoa que...
Cr2-Sou uma pessoa alegre, triste, tem vez que eu fico triste, tem vez que eu fico com
raiva.
(...)
P- (...) como ele seria? (referindo-se ao Pinóquio).
Cr2- Seria alegre, brincava com os meninos.
P - Tem alguma coisa que tu queria mudar no teu jeito de ser?
Cr3 - O cabelo.
P - No jeito de ser?
Cr3 - No jeito de ser?
P - Desse jeito que eu disse: tem gente que é alegre, gente que é triste...
Cr3-Alegre.
P - Tu queria ser alegre. Tu não é alegre?
Cr3- Não.
P - Por que tu acha que não é alegre?
Cr3- Porque... não sei não!
P - Então vamos imaginar o nosso menino de verdade, como é que ele seria, como é que
se comportaria, o que faria?
216
Cr7- Ele seria feliz.
A criança nos informa o que a faz ficar feliz – ir visitar uma tia que lhe permite
brincar no videogame e no telefone celular. Lembramos que Cr6 nos fala sobre uma
situação em que estava brincando com o telefone celular da mãe, o que resultou em ser
abusada fisicamente.
P - Quando é que o Vicente fica com essa carinha (de felicidade)?
Cr6- Quando me leva pra casa da tia…
P - Quem é essa tia? Irmã do pai ou irmã da mãe?
Cr6- Da minha mãe …da mãe, e ela é legal .
P - Por que você fica feliz quando vai lá?
Cr6- Porque eu vou ver os meus primos …
P - Teus primos, o que mais…
Cr6- Minha irmã…
P - Tua irmã? E você fica fazendo o que lá na casa dela?
Cr6- Eu fico brincando de videogame… celular.
A criança Cr7 nos informa sobre uma característica negativa de si. Demonstra que
gostaria de mudar, não somente nos aspectos físicos, mas também na forma de ser. A
violência surge em seu discurso associada a uma característica sua que deseja mudar –
gostaria de ser mais simpática; acha-se muito violenta.
A violência que criança sofre traz como conseqüências danos tanto do ponto de
vista psicológico como comportamental, pois, “as crianças expostas à punição física
tornam-se mais violentas, seu funcionamento comportamental e desempenho de
aprendizagem são prejudicados e elas sofrem de baixa auto-estima” (Shnit, 2002, p. 143).
Podemos pensar com essa fala que pode estar havendo com essa criança uma
identificação com o agressor, pois crianças que sofrem violência passam se identificar
com o agressor, desenvolvendo comportamentos semelhantes e a reproduzir a violência
com os outros (Ravazzola,1999). Essa violência constitui “um caminho para reconquistar
217
espaços que lhes forma retirados socialmente, justificando-se a agressão em função do
descaso do outro, da carência afetiva e material”(Vecina & Silva, 2002, p.65)
P - Deixa eu te perguntar uma coisa... Se você fosse mudar alguma coisa em ti, sem ser
no físico, teu jeito de ser...
Cr7- Ser simpática.
P - Tu queria ser simpática? Tu não se acha simpática, não?
Cr7- Não.
P - Por que tu não se acha simpática? Alguém já disse que tu não era simpática?
Cr7- Não.
P - Não? E por que que tu se acha antipática?
Cr7- Eu não acho, não?
P - Mas tu ta dizendo que você queria mudar, ser simpática...
Cr7- Sei lá, pra mim ser mais calma, porque eu sou muito violenta...
No discurso da criança Cr6, é nítida uma descrição e representação da personagem
Pinóquio, na qual esse é inteligente, e não é mentirosa, características valorizadas em
nossa cultura. A representação da personagem Pinóquio aparece como uma pessoa com
características emocionais positivas, é alegre, gosta de brincar. É, também, uma criança
que trabalha e estuda.
Na óptica de Cr2, há um Pinóquio feliz e bonito. A criança Cr7 também enxerga a
personagem como uma pessoa feliz, porque era um menino de verdade, porque faria
muitas coisas. Em sua fala, a criança associa a tristeza, a falta de vontade de viver, à
intensidade da violência intrafamiliar vivida por um irmão da personagem. Pinóquio é
descrito nas duas últimas situações como alguém que é feliz e alegre e surge um discurso
que vincula a alegria de ser de Pinóquio ao lúdico.
P-E como seria o Pinóquio (personagem)?
Cr6- Sem ser mentiroso...
P - Ele não ia ser mentiroso. O que mais?
Cr6- Estudasse.
Cr6- Ele ia estudar, hum-hum. O que mais?
Cr6 - Também ia ser inteligente.
218
P- Como seria o jeito dele (Pinóquio)?
Cr2- ia ser bonito.
P- E esse Pinóquio, ele é feliz ou é triste?
Cr2- Feliz.
P-Então vamos imaginar o nosso menino de verdade, como é que ele seria, como é que se
comportaria, o que faria?
Cr7-Ele seria feliz.
P-Por que ele seria feliz Cr7.
Cr7- Porque era um menino de verdade.
P-Porque era um menino de verdade. Que mais? Como ele seria? (...) O que ele faria?
Cr7- Fazia muitas coisas.
P - Por exemplo?
Cr7-Brincar (...) trabalhar (...) estudava.
(...)
P-(...) quem é a pessoa mais feliz nessa família?
Cr7: Pinóquio.
P - A mais triste?
Cr7 - O irmão.
P - (...) por que que ele é o mais triste?
Cr7 - Ele é todo sei lá,
P - (...) por que que ele é o mais triste?
Cr7- Ele é todo sei lá, assim, sei lá, assim, não tem vontade pra nada.
P - Hum... é triste, parado, não tem vontade pra nada... E por que será que esse menino
não tem vontade de viver?
Cr7- Porque ele apanhou muito, aí se lascou, chorinho, murcho.
P - (...) então, vamos imaginar o nosso menino de verdade, como é que ele seria, como é
que se comportaria, o que faria?
Cr3- Ele seria feliz.
(...)
P-(...) pinóquio era um menino alegre ou triste?
Cr3- Alegre.
P - Por quê?
Cr3- Porque ele gosta de brincar.
A criança a seguir demonstra uma intenção de querer ser diferente – uma pessoa
alegre (aspecto posto como opção na nossa questão). Diz-nos que não é alegre, embora
não saiba explicar o porquê. Não é nossa intenção classificar a auto-estima da criança, se
é alta, ou baixa, porém, sabemos que um dos aspectos importantes para conhecer este fato
é conhecer o que as crianças gostam de ser. Este aspecto é de suma importância, pois o
219
que as pessoas gostam de ser, seus desejos e expectativas, têm um papel central na
medida em que contribuem para gênese do autoconceito do ‘eu’, dos valores e das
aspirações da pessoa (Miceli, 2003, p.77) e, conseqüentemente, afetam sua auto-estima,
pois quando a pessoa não é do jeito que gostaria de ser sente-se descontente e
desanimada; quando não é como deveria ser censura-se e se castiga com sentimentos de
culpa e de desprezo ( Miceli 2003, pg.76).
Na segunda situação na fala de Cr1, está o desejo de ser igual ao Pinóquio,
mostrando indícios de insatisfação a respeito de si. Vemos também como a criança se
identifica com a personagem Pinóquio, que é livre, traquinas e que pode fazer muitas
coisas.
P - Tem alguma coisa que tu queria mudar no teu jeito de ser?
Cr4- O cabelo.
P - O jeito de ser?
P - Desse jeito como eu disse: tem gente que é alegre, gente que é triste...
Cr4- Alegre.
P - Tu queria ser alegre. Tu não é alegre?
Cr4- Não.
P - Por que tu acha que não é alegre?
Cr4- Porque... não sei não!
O sentimento de tristeza aparece ligado a uma privação de um espaço lúdico e a um
outro sentimento, medo, ligado a uma situação específica.
P - Agora quando o Vicente tá com carinha de triste. Vamos procurar, o número três.
Quando é que você fica com a carinha parecida com essa, quando é que você fica triste?
Cr6- Quando minha mãe vai pro parque e não deixa eu ir (...) quando eu tenho medo de
arrancar dente …
A criança seguinte em seu relato nos fala de suas aspirações em que, na verdade, ser
igual ao Pinóquio talvez tenha um valor: ser livre para poder fazer muitas coisas.
P- (Sobre o desenho da família de pinóquio)... e quem é o mais alegre?
Cr1- O Pinóquio, porque ele faz um bocado de coisas, eu queria ser como ele.
220
Numa outra situação Cr1, por duas vezes, nos fala sobre o que gostaria de ter igual
ao Pinóquio: possuir nariz, que utilizaria como espada, para poder identificar-se com o
grupo de amigos que possuem o mesmo objeto. Em um outro trecho, a criança nos revela
a aspiração de querer ter uma perna de pau igual à de Pinóquio. Essa é também uma
estratégia que, segundo sua fala, utilizaria para poder escapar dos abusos cometidos pela
mãe – ficaria mais alto.
P - O que mais você queria ter igual ao Pinóquio?
Cr1-O nariz de Pinóquio para poder brincar de espada.Quase todos os meninos (da rua)
têm uma espada de madeira afiada com aquilo para segurar.
(...)
P - Qual a coisa que você queria ter igual ao Pinóquio?
Cr1- (...) ter uma perna de pau.
P - Por que você queria ter uma perna de pau?
Cr1- Para quando a minha mãe fosse me acordar, eu ficaria lá em cima.
No primeiro trecho seguinte (Cr1), é demonstrada a insatisfação da criança por si
mesma em relação a uma de suas qualidades: não ser teimosa. Essa é uma avaliação feita
pela mãe, que é a pessoa que mais dela abusa fisicamente. Pelo discurso, vemos que a
mãe abusa psicologicamente ao rotulá-la.
Vimos em nosso texto anteriormente que o modo como o outro nos vê e nos julga
interfere na nossa percepção e no juízo de valor que fazemos de nós. Assim, os outros
desempenham o papel de espelhos para a criança e nos quais a sua imagem se reflete
(Miceli, 2002, Branden, 2000, Briggs, 2002).
Também podemos pensar que os reflexos (rótulos) que essa criança vê de si, através
de sua mãe, afeta o seu autoconceito e poderão ser internalizados e integrados a sua
personalidade, já que as crianças de 6 (seis) a 12 (doze) anos elaboram o autoconceito
com base em experiências e fatos concretos vividos. Por exemplo, a criança nos diz que
221
se acha teimosa porque a mãe assim a descreveu (Rosenberg, 1986 citado por Palácios &
Hidalgo, 1995).
Uma das causas do mau comportamento das crianças está relacionada a um
autoconceito negativo. A criança vai modificar seu comportamento para que corresponda
à descrição que lhe fizeram. Assim, quanto mais inconveniente o comportamento da
criança, mais ela será punida, rejeitada, e tentará se convencer do atributo que lhe deram
atribuíram (Briggs, 2002).
P - Você queria ser diferente? Sem ser o corpo agora... O jeito de ser, de viver, o que você
queria mudar em você?
Cr1 - Só queria mudar os pesos...
P - O jeito de pensar, da gente agir, do jeito de ser, de viver, o que que você queria mudar
em você?
Cr1- Não queria teimar muito.
P - Não queria teimar muito, ser muito teimoso...
P - Quem te disse que tu é teimoso?
Cr1- Minha mãe.
A seguir temos um trecho que nos revela a insatisfação da criança consigo. Em seu
discurso, nos fala que gostaria de ser outra pessoa – a irmã; à qual faz referência, é maior
em tamanho em relação à ela. Talvez esse fato, ser maior em tamanho, dificultasse o
abuso vivido em família.
P - Por que tu não gosta nem das pernas, nem do tronco (a resposta fornecida pela criança
ao ser questionada sobre a parte do corpo que não gosta?
Cr3- Porque acho feio.
P - Por que tu acha feio? Queria que fosse diferente? Como?
Cr3- Queria que fosse igual a minha irmã é bem grandona. E quando ela estuda, ela me
ensina o alfabeto.
Quando perguntado à criança o que o Pinóquio faria que o Gepeto fosse gostar
muito, ela nos responde que seria fazer carinho e não ser teimoso, este último o mesmo
rótulo utilizado por sua mãe e um dos aspectos que a criança gostaria de mudar em si. A
222
resposta da criança nos faz refletir novamente sobre o poder das avaliações dos outros e
como essas interferem no autoconceito e auto-estima da criança, pois, ao nos revelar em
seu relato sobre suas aspirações como pessoa, pensamos até que ponto esse desejo está
relacionado a ela mesma ou ao que pensa que deveria ser com base na referência das
atitudes de sua mãe. No seguimento, ao ser perguntado à criança se Pinóquio pudesse
escolher alguma coisa que não tem em casa, o que ele poderia escolher, essa nos responde
que o pai de Pinóquio não iria mais bater nele nem ele (Pinóquio) faria mais coisas
erradas. Assim, Pinóquio faz as coisas erradas e tem como conseqüência apanhar do pai,
Gepeto.
P- Alguma coisa que o Pinóquio faria que o Gepeto iria gostar muito?
Cr1- (inaudível)
P- Num escutei você fala mais alto?
Cr1- Fazer carinho e num ser muito teimoso.
P- E se o Pinóquio pudesse escolher alguma coisa que ele iria ter na casa dele que não
tem, o que você acha que ele escolheria?
Cr2- O pai... ele pensar que o pai dele não vai dá mais nele, ele num fazer as coisas
erradas.
No segmento de continuidade há uma situação improvável em que a criança
fantasia um comportamento ideal para algumas mães e talvez para ela própria – ser
obediente – embora em outro contexto desta análise nos revele que nem sempre é
obediente. Imaginar, porém, que seria uma criança sempre obediente significa não
apanhar, já que essa criança apanha quando desobedece à mãe. No segmento adiante a
criança também nos fala desse comportamento ideal e em outro momento nos revela que
apanhou por ter desobedecido ao seu pai.
P - Diz alguma coisa que tu fez diferente do que (..) tua mãe mandou?
Cr4- Não. Tudo o que ela diz eu faço.
P - Tu é sempre obediente? Nunca desobedeceu?
223
Cr4- Hum-hum.
P - Tu nunca desobedeceu?
Cr4- Não
P - (....) quando ele ( o pai ) diz uma coisa que não pode fazer...
Cr7- Aí ninguém não faz.
P - Sempre?
Cr7- Sempre.
A criança Cr7 em seu discurso manifesta um desejo de sair de seu lugar, sua casa,
seu país e morar com uma tia. Talvez seja uma solução encontrada por ela para sair de
casa, onde sofre abuso por parte dos pais. A ausência de casa parece trazer alegria a essa
criança que tenta aproveitar da melhor forma o espaço concedido pela escola.
P - E qual é uma coisa que tu queria que acontecesse na tua vida? Sem ser no corpo, na
tua vida que tu queria que mudasse.
Cr7-Me mudasse daqui.
P - Tu queria se mudar daqui pra onde?
Cr7- Lá pros Estados Unidos, onde mora minha tia.
(...)
P - Fico muito alegre quando...
Cr7- Demoro no colégio, fico lendo, escrevendo, fazendo pesquisa.
Essa criança do exemplo a seguir (Cr1) nos informa que não gosta de desenhar,
porém, assume essa habilidade. Apesar de não gostar de desenhar, em nosso primeiro
contato nos faz um desenho. Em um outro contexto, a criança nos trouxe desenhos que
fez com modelo com muita perfeição e nos mostrou com muita satisfação. Esses
desenhos eram de personagens da televisão dos quais a criança gosta muito.
Cr1- Eu não gosto de desenhar...
P - (...) duas coisa que você acha que você faz bem legal?
Cr1- Desenhar e...
A mesma criança em seu relato consegue localizar algumas habilidades que não
possui. Fala-nos de seus sonhos. Um deles é ligado ao dinheiro, aspecto de importância
224
significativa em nossa sociedade para satisfação de necessidades, sejam elas de
alimentação, moradia, diversão.
Em alguns fragmentos de outros discursos, essa criança nos revela vários momentos
em que tem acesso ao dinheiro e o utiliza para suprir necessidades de lazer e de
alimentação, chegando até a mencionar que a pessoa mais próxima a ela é uma tia, que,
de acordo com sua justificativa, faz o que a criança gosta: lhe dá dinheiro e algumas
coisas que traz da creche.
Neste sentido, vemos a associação entre proximidade /afetividade com possibilidade
de acesso ao dinheiro.
Surge outro sonho ligado a uma possibilidade de dormir muito, já que, muitas vezes
(não confirmamos se diariamente), é acordado pela mãe com violência, sendo
interrompido seu sono.
P - E outra coisa que tu não faz bem feito ou que você não sabe fazer? Que você queria
aprender?
Cr1- Essas chinelas e... Fazer essas cartas aí... tirar xérox.
(...)
P - Tu tem algum sonho na tua vida? Um sonho... se tem, qual é?
Cr1- Encontrar mais três notas (que uma pessoa deixou escapar do bolso e ele pegou).
(...)
P-Meu maior sonho é que um dia....
Cr1- Eu possa dormir muito.
Em sua fala, a criança demonstra conhecimento de suas habilidades.
P - Duas coisas que faço bem feito...
Cr7- Meus deveres, lavo a louça e passo o pano.
Os seguintes trechos trazem também uma avaliação da criança em relação a uma
tarefa doméstica para cuja realização demonstra descontentamento em termos de
qualidade. Poderíamos supor que, pela forma que elabora a questão, a mãe da criança em
225
algum momento avaliou aquela mesma ação do mesmo modo. Por outro lado,
vislumbramos nos fragmentos do discurso da criança, a crença em uma habilidade com
uma tarefa doméstica.
P - E o que acontece quando tu faz alguma coisa errada, que tua mãe acha errado, que ela
não gosta que tu faça?
Cr4- É quando eu lavo a louça mal lavada
(...)
P - Tem alguma coisa que tu faz bem feito (...) ?
Cr4- Arear a louça.
Temos vários fragmentos do discurso da criança que nos revelam sua satisfação de
uma forma geral, a não ser sobre um tipo de comida que sua mãe faz.
P - (...) uma coisa que tu não gosta de jeito nenhum na vida?
Cr2- Nada.
P - Não tem nenhuma coisa que tu não goste?
Cr- Não.
P- (...) uma coisa que tu detesta?
Cr2- Que eu detesto, o que eu detesto... fazer?
P - Eu detesto... complete essa frase: eu detesto...
Cr2- Eu não detesto nada.
(...)
P - E uma coisa que tu não gosta que tua mãe faz?
Cr2- Panqueca.
A seguir, temos vários segmentos em que a criança faz referência a um sentimento
– raiva. Na primeira situação, a criança faz referência à mãe (que é sempre quem dela
abusa fisicamente) e exemplifica quando fica com raiva desta. Logo em seguida
manifesta um desejo de gritar e bater em sua irmã (mais nova). Este desejo já foi
identificado em vários outros trechos em seu discurso. Nas demais situações expostas a
criança manifesta seu sentimento de raiva e sua vontade de bater em sua irmã. Trata-se
certamente, de uma descarga de raiva, contida e não manifesta diretamente à mãe e à avó,
pois, ambas a desautorizam, rotulam, não intervêm na situação. Não fazem com que a
226
criança se sinta apoiada em uma situação que, concreta e costumeiramente, se sente
impedida de realizar, como uma tarefa doméstica. Podemos inferir que, na
impossibilidade de gritar, bater em sua mãe, há um deslocamento da mãe para irmã, quem
a mãe protege até por ser mais nova. Quando há a repressão de sentimentos negativos (no
caso da criança Cr2 - a raiva), o corpo fica tenso, as pressões se acumulam e a energia é
descarregada de várias formas. As emoções podem voltar-se contra a própria pessoa
(dores de cabeça, sonambulismo, hiperatividade, roer unhas, bater com a cabeça,
enfermidade psicossomática) ou podem ser dirigidas para outras pessoas e para a
sociedade (Briggs, 2002, pg.141.) e, além disso, a repressão de sentimentos negativos
danifica a auto-estima da criança. Deste modo, vimos no discurso de Paula (Cr7)
anteriormente (unidade temática: violência intrafamiliar) a presença de seus sentimentos
de raiva e ódio, decorrentes da violência cometida pela mãe, e a afirmação de que é uma
criança violenta.
P - Coisas que deixam você com raiva?
Cr2- Assim, minha mãe é... Tem tantas coisas que ela... que eu fico com raiva. Como
assim, (lê-se, por exemplo) eu peço pra sair e minha mãe não deixa, dá vontade de gritar,
de chorar, me dá vontade de pegar minha irmã e bater, só isso.
P - Tem algum momento que tu fica triste no meio dessa família (no contexto do desenho
de sua família)?
Cr2- Tem dia que a minha avó, eu e minha irmã... Eu to varrendo a casa, aí vem a minha
irmã, traz umas amigas dela para bagunçar, aí me dar uma vontade de pegar a minha irmã
e bater nela, aí minha avó fica brigando comigo.
(...)
P - E essas unhas ruidinhas (observação feita pela pesquisadora) ? Roí todo dia?
Cr2- É, não gosto não.
P - Deixa eu te perguntar uma coisa... Se você fosse mudar alguma coisa em ti, sem ser
no físico, teu jeito de ser...
Cr7- Ser simpática.
P - Tu queria ser simpática? Tu não se acha simpática, não?
Cr7- Não.
P - Por que tu não se acha simpática? Alguém já disse que tu não era simpática?
227
Cr7-Não.
P - Não? E por que que tu se acha antipática?
Cr7- Eu não acho, não?
P - Mas tu ta dizendo que você queria mudar, ser simpática...
Cr7- Sei lá, pra mim ser mais calma, porque eu sou muito violenta...
A raiva, associada a situações de privação de prazer para a criança.
P - E você, quando é que você fica com raiva?
Cr6 - Quando eu fico com raiva… é que ás vezes a gente… quando eu não vou pra casa
da minha tia, quando eu não vou pra Esperança.
P - Que mais que você fica com raiva?
Cr6 - Quando não deixa eu ver o trem.
P - Quem é que não deixa tu ver o trem?
Cr6- A minha mãe.
Além de o rótulo contribuir para danificar a auto-imagem da criança, pois o rótulo
tem implícito um julgamento que atinge diretamente a auto-imagem, danifica-lhe também
a auto-estima. A criança em seus esforços busca aprovação para seus feitos (Briggs,
2002) e nos parece que ao gritar e manifestar de alguma forma sua raiva pela situação,
não hesita em chamar à atenção.
Não devemos ter dúvida do poder das palavras. Elas podem tanto destruir como
fortalecer o respeito próprio. Quando os membros da família dessa criança as rotulam de
‘abestalhada’, essa passa a formar um juízo de valor negativo a seu respeito, pois os
julgamentos são espelhos para a criança que, ao ser julgada, aprende a considerar seu
comportamento como sinônimo de sua pessoa (Briggs, 2002).
A depreciação para com a criança tem como conseqüência uma redução da
confiança em suas percepções, causando sentimentos de impotência, afetando
diretamente seu autoconceito e sua auto-estima (Scodelário, 2002), que são produtos dos
reflexos que a criança recebe dos outros e estão ligados diretamente à forma como esses a
tratam.
228
Na verdade, a criança necessita se sentir amada, valorizada, e que os pais lhe dêem
segurança psicológica; precisa ser compreendida em suas atitudes e sentimentos e se
sentir apoiada. O sujeito precisa ter a segurança da empatia que é ser compreendido de
acordo com nosso ponto de vista (....). A empatia é uma prova vigorosa de interesse
(Briggs, 2002, pg.125); é ser tratado com respeito e como alguém que comunica e é
ouvido e entendido em sua forma de ver a situação e o mundo.
P - O que mais (quando perguntado o que a deixa com raiva) ?
Cr2- Quando eu tô varrendo a casa vem uma ruma de gente, minha irmã traz as amigas
dela pra brincar, dá vontade de bater nela, aí minha mãe fica brigando comigo: Menina,
deixa de ser abestalhada!. Só isso.
(...)
P - Tem algum momento que tu fica triste no meio dessa família (no contexto do desenho
de sua família)?
Cr2- Tem dia que a minha avó, eu e minha irmã... Eu to varrendo a casa, aí vem a minha
irmã, traz umas amigas dela para bagunçar, aí me dar uma vontade de pegar a minha irmã
e bater nela, aí minha avó fica brigando comigo.
P - Ela briga por quê?
Cr2- Porque eu digo assim...não traga não hoje que eu vou varrer a casa, aí me dá uma
vontade de pegar nela e bater, aí minha avó diz: menina, deixa de ser abestalhada, eu varri
isso de manhã e num fiquei assim, ela entrando e saindo e eu não fiquei desse jeito.
Agora também há uma situação em que a criança declara que a mãe a insulta, bem
como as tias o fazem. O mesmo insulto é repetido por uma criança menor de sua casa.
Cr1- Ele só sabe falar nome (referindo- se ao sobrinho de menos de dois anos).
P - Que nome.
Cr1- Má seu caralho , ele me chama de Má.
P - Quem ensina (ao sobrinho)?
Cr1- Ele vê a mãe dizendo comigo. Quando elas estão brigando ela vai fala pras tias ‘
suas caralhas’.
Associada à afetividade, a bicicleta é um sonho de consumo para essa criança, pois
surge em vários fragmentos de seu discurso em situações lúdicas, quando fala de suas
preferências, ligadas a proibições, punições e violência (por parte de sua mãe).
P - (...) qual a coisa que tu mais ama na vida?
229
Cr2- Como assim?
P - Uma coisa que tu goste muito, que tu ame muito.
Cr2- O meu sonho era ter uma bicicleta. Se eu tivesse eu ia cuidar dela muito bem.
(...)
P - Fico muito alegre quando....
Cr2 - Meu tio me empresta a bicicleta.
A criança Cr1 nos revela sobre o que mais ama em sua vida – seu pai, a quem
observamos ser muito ligada afetivamente. O que menos ama é a mãe, que é a pessoa que
mais a agride. No segmento adiante, outra criança fala-nos do que mais gosta na vida - a
tia; e do que menos gosta: – a irmã.
P - E o que tu ama mais na vida?
Cr1- Meu pai.
P - E a coisa que tu ama menos na vida?
Cr1- Minha mãe.
P- O que que tu mais gosta na vida?
Cr6 - Minha tia.
P- E o que que tu menos gosta?
Cr6 - Minha irmã.
A fala da criança Cr2 é bastante elucidativa e segura sobre sua vida. Em sua
avaliação, acha que sua vida é triste, confirmando o que em outro contexto desta análise a
mesma criança nos mostra – uma consciência sobre a existência de alguns momentos de
sua tristeza (Gallart, 1999), – sentimento que emerge quando os filhos são criados em
práticas educativas autoritárias e há forte exigência no nível de maturidade daqueles. Essa
criança tem diariamente responsabilidade de arrumar sua casa. Deste modo, só poderá
brincar se tiver cumprido com suas obrigações. Para Cr2, a alegria está associada ao fato
de brincar.
P - (...) a minha vida é...
Cr2- A minha vida é...
Cr2- Triste.
(...)
230
P - (...) por que que ele é o mais triste?
P- (...) como ele seria? (referindo-se ao Pinóquio)
Cr2 - Seria alegre, brincava com os meninos.
No trecho seguinte, deparamo-nos com a declaração de que a vida da criança é boa,
porém, a mesma não sabe justificar o por quê. A criança Cr6 nos revela que sua vida é
feia. No ‘bate-bola’ mais à frente, voltamos a falar sobre sua vida e a criança responde
que o que não gosta na vida é da feiúra. Na exploração, nos revela sua insatisfação pela
vida que leva – queria mudar a sua vida toda – embora não saiba o por quê.
P- Minha vida é...
Cr7- Boa.
P - Por que tua vida é boa?
Cr7- Sei lá, porque todo dia, eu sei lá, sei não.
P - Minha vida é…?
Cr6 - Feia.
(...)
P - O que é que tu não gosta na sua vida?
Cr6- A feiúra.
P - A feiúra. Então tirando a feiúra, se você fosse mudar alguma coisa na sua vida…
Vamos dizer que o corpo mudou, tá tudo lindo do jeito que você quer. Vamos mudar o
jeito da vida do Vicente, o jeito de ser, o que que você queria que mudasse?
(...)
Cr6 - (Riso) a vida todinha (riso).
P - (...) O que tu queria mudar na tua vida?
Cr6 - Deixa eu ver... sei não.
A descrição de Pinóquio é associada a sentimentos positivos por nós mobilizados,
como visto anteriormente por outras crianças. Novamente surge o sentimento de tristeza
quando a criança se refere ao seu irmão como o mais triste da família, conseqüência de ter
sido abusado muitas vezes.
P - (...) quem é a pessoa mais feliz nessa família?
Cr7- Pinóquio.
P - A mais triste?
Cr7- O irmão.
Cr7- Ele é todo sei lá, assim, sei lá, assim, não tem vontade pra nada.
231
P - Hum... é triste, parado, não tem vontade pra nada... E por que será que esse menino
não tem vontade de viver?.
Cr7- Porque ele apanhou muito, aí se lascou, chorinho, murcho.
No segmento adiante, há o sentimento de culpa ligado a uma situação de violência e
na outra situação à apropriação dos bens de outrem, na qual uma irmã de Cr1 prediz o seu
comportamento de que logo estaria roubando.
Neste sentido, nenhuma das transgressões na infância perturba mais os pais do que
o roubo, do qual surge a idéia de que a criança venha a ser ladra na fase adulta. Assim, a
preocupação e reação dos pais ou responsáveis é mais em relação ao futuro da criança do
que à situação real do comportamento. A criança, que não tem a intenção de se tornar
adulto infrator, fica muito magoada, principalmente quando alguém significativo para ela
a vê como uma infratora em potencial. Poderá aceitar o fato de que agiu mal ao se
apropriar de algo dos outros e até espera insatisfação por parte daquele, mas somente em
relação ao que fez no presente; não se preocupa com o futuro, inicialmente, por não
conseguir imaginá-lo muito bem e depois porque está centrada no presente
(Bettelheim,1988).
P - Como será que ele (Pinóquio) se sentiu quando o pai dele (Gepeto) e a mãe dele
batem nele e ele acha que não fez nada errado? (anteriormente a criança nos fala que o
Pinóquio não achava certo os pais baterem nele.
Cr7- Sentiu culpado.
P - Alguma coisa que dá culpa?
Cr1- Quando eu pego as coisas dos outros.
P - O que você pega?
Cr1- As garrafinhas, aquelas, tava comigo a gente jogando vôlei e daí ela brigou comigo.
Minha irmã disse que daqui a pouco estou roubando.
Quando questionada por nós sobre a maior conquista de sua vida, a criança Cr7
afirma que não a possui, mas, depois de pensar um pouco, nos revela um desejo não
232
realizado: ser modelo. Em seu discurso, a criança nos mostra o que gostaria de ser
relacionado a suas ambições. Esses desejos e expectativas têm um papel fundamental na
constituição do autoconceito da criança, valores e aspirações como pessoa (Micela,
2003).
Vale salientar que essa é uma criança muito bonita, alta, magra, e possui os olhos
claros, aspectos que, de alguma forma, nos remete a padrões de beleza existentes em
algumas modelos do País.
P - Qual a tua maior conquista na tua vida, a coisa maior que tu conquistou? Que tu
queria uma coisa e aconteceu e tu conseguiu?
Cr7- Nenhuma.
P - Nunca conseguiu nada que tu quisesse? ( nega com a cabeça)Não?
Cr7- Ah, eu queria ser modelo, mas eu não consigo.
Na seqüência eis alguns trechos em que a criança faz referência ao próprio corpo.
Nas duas primeiras situações, remete a um pé machucado que provoca dor, atrapalha o
jogo de bola da criança e nos sinaliza sua insatisfação com a estética, aparência física e
com a dor e por isso quer mudá-lo, estando intimamente ligada a questões de valorização
cultural.
P - (...) eu gosto menos de mim quando... Alguma coisa acontece com você que você não
gosta de você. Você fala assim: hum, não gostei de mim agora. Alguma coisa que
acontece...
Cr1- No meu pé.
P - Eu gosto menos de mim quando...
Cr1- Quando eu to correndo, aí, aqui estala o pé.
Cr1- E aqui abre um buraco também.
Cr1- Quando eu corro, eu sinto uma dor, aí, quando eu olho, tá o buraco.
P - Alguma coisa que você não gosta em você?
Cr1- Quando eu to jogando bola, eu chuto o chão (dói o pé).
(...)
P - Alguma coisa, alguma parte que tu queria mudar no teu corpo?
Cr1- Meu pé.
P - Teu pé? Queria que fosse como, teu pé?
P - Teu pé machucado?
233
Cr1- É 38.
P - Você queria que ele fosse maior ou menor?
Cr1: Menor!
A criança entrevistada, ao mesmo tempo em que desenha sua família, começa a
falar de si. Deixa evidente sua insatisfação sobre uma parte de seu corpo – os olhos –. Em
sua família, a mãe, figura significativa, e um irmão, possuem olhos azuis, aspecto no qual
há maior valorização em nossa sociedade por não ser tão comum, e torna-se um elemento
e diferenciação entre ela, por exemplo, e a irmã. No desenho feito por ela, transforma a
realidade e desenha seus olhos tal qual seu desejo e nos pergunta com certa insegurança
se seu desenho ficou feio, necessitando de confirmação. A necessidade de identificação
com o outro significativo aparece e vemos que interfere também na percepção e avaliação
corporal de si.
Cr4: (...) os olhos de minha mãe é azul e do meu irmão, só o meu que não é, e do meu pai.
(...)
Cr4: meu pai ficou feio não foi (no desenho)?
Cr4: (desenhando uma cabeça) meus olhos azuis.
Cr4: ficou feio?
O discurso seguinte nos revela que a criança tem dificuldade de se perceber. Sua
percepção está centrada em uma figura significativa – o pai – a partir da qual consegue se
perceber e identificar-se com ele.
P - Você não acha bonito quando você olha no espelho seu olho? Você já prestou atenção
nele? Então, a hora que você chegar em casa, você olha no espelho, assim, fica olhando
seu olho pra você ver como ele é bonito ( a criança tem olhos verdes)
Cr1- Eu só olho pro do meu pai (o olho).
P - Como?
P- Só olha pro olho do pai dele.
P - Seu pai tem olho bonito?
Cr1- É quase igual ao meu.
(...)
Cr1- A cara, o andar... É tudo parecido igual o meu.
P - É? E o cabelo?
234
Cr1- Também.
A criança manifesta sinais de uma visão negativa de si em relação a padrões
estéticos. Podemos pensar com este discurso como o capitalismo cria padrões estéticos e
determina o que é feio o que é bonito, interferindo na subjetividade (Mance, 1998). A
beleza corporal é considerada um valor, principalmente para a juventude (Assis &
Avanci, 2004) e é modelada a partir da cultura e da sociedade em que vivemos.
P - Quando eu me olho no espelho, eu me acho...
Cr1- Feio.
P - Se tu fosse dar uma nota, de 0 a 10 pontos, no teu corpo, qual a nota que tu te dava?
Cr1- Um!
P- Um? Por quê? Tão baixo?
Cr1- Me acho feio.
P- (...) e quando você se olha no espelho, o que você acha de você?
Cr2- tão feia.
P - O que você não gosta em você? (...) Que parte do seu corpo...
Cr1- Meu peso.
P - E tu queria ter quantos quilos?
Cr1- 42.
(...)
P - Você queria ser diferente? Sem ser o corpo agora... O jeito de ser, de viver, o que você
queria mudar em você? (...)
Cr1- Só queria mudar os pesos...
No segmento adiante aparece um discurso de uma criança com uma imagem
positiva de si em relação aos padrões estéticos. Em outro momento, porém, a mesma
criança nos fala que se acha feia e tímida.
P - Quando tu olha pro espelho o que que tu pensa?
Cr6- Que eu sou bonito.
(...)
P - Ah! faz dez dias que você não gostava de ti. Por que que tu não gostava de ti há dez
dias atrás? (ruídos) não tô ouvindo que tu tá falando pra lá, eu não vou ouvir, vamos lá...?
Cr6- Sou tímido e feio.
235
Na seqüência, a criança demonstra que não entendeu a questão feita por nós e
novamente revela mais um aspecto que gostaria que fosse alterado em seu corpo.
P - (...) uma coisa que tu tem em ti e que tu não gosta? Não precisa ser do corpo.
Cr2- Do meu andado, eu acho feio.
P - Dê uma nota de 0 a 10 a teu corpo.
Cr5- 9.
P – Por quê?
Cr5- Porque sim.
P - Tu gosta do teu corpo?
Cr5- Sim.
P - Qual a parte que tu gosta mais?
Cr5- A cabeça.
P - Qual a parte que tu menos gosta?
Cr5- Nada.
P - Se você fosse mudar alguma coisa, o que mudaria?
Cr5- Nada.
Em vários momentos, a criança nos revela uma auto-aceitação em relação ao corpo.
Porém, isso não significa que não deseje mudar algo em si, por exemplo, os cabelos.
Aceitar a si não significa eliminar o desejo de crescer, de melhorar, de evoluir. Significa
sim não estar em pé de guerra consigo mesmo, não negar a realidade da verdade sobre
nós mesmos (Branden, 2000, pg.53). O relato da criança também nos evidencia
claramente sinais de desconforto justificados pela puberdade que está se aproximando.
Vale salientar uma questão: quais as conseqüências para a auto-estima de uma criança
que entra na adolescência não se sentindo bem com próprio corpo? – pois, não se pode
negar que o corpo, por ser a parte mais material e visível do eu, desempenha um grande
papel nas percepções, especialmente na adolescência (Assis & Avanci, 2004).
P - Qual a parte do teu corpo que tu gosta mais?
Cr7- Meus olhos.
P - Você gosta do seu corpo todo?
Cr7- Gosto.
P- E essa carinha?
236
Cr7- Gosto.
P - Então vamos ver, se você fosse dá uma nota pro teu corpo, de 0 a 10, qual a nota que
tu daria pro teu corpo?
Cr7- 10.
P - Tem alguma parte do teu corpo que tu não gosta?
Cr7- Tem.
P - Qual?
Cr7- Quando a pessoa está se formando...
P - Hum, tu tá se formando?
Cr7- Estou.
(...)
P - Hum-hum. É... Se eu pudesse mudar alguma coisa em mim, eu mudaria...
Cr7- O cabelo.
P - Hum-hum. Por quê ? .
Cr7- Porque eu queria que meu cabelo fosse preto e não loiro.
A seguir, temos um segmento no qual no primeiro momento a criança demonstra
satisfação com todo o seu corpo. Na exploração feita por nós, demonstra certa
contradição e uma intenção de querer mudar uma parte do corpo – o rosto . Depois nos
revela que seu descontentamento, na verdade, refere-se às sarnas no nariz. Na seqüência,
não entende a pergunta que fizemos e nos releva mais um desejo de mudança corporal:
seu cabelo. É uma criança que esteticamente se acha bonita e que nos parece que tem um
conceito positivo de si em relação ao aspecto corporal.
P - Então você vai olhar no espelho e dar uma nota. (...) Se tu fosse dá uma nota para teu
corpo, tu dava: 0, 1, 2, 3,4, 5, 6, 7, 8, 9 ou 10?
Cr4 - 10!
(...)
P - E qual é a parte do teu corpo que tu mais gosta?
Cr4- o corpo todinho.
P - Tem alguma parte que tu não gosta e queria mudar? Ser diferente?
Cr4- Um pouquinho a cara.
P - Tu queria ser diferente na cara o quê?.
Cr4- A cara todinha.
(...)
P - Quando se olha no espelho aí tu diz assim: aí, eu sou bonita ou sou feia?
Cr4- Bonita.
P - E o que tu quer mudar se tudo é bonito?
Cr4- Porque eu queria tirar esse negócio aqui do nariz.
237
P - Queria mudar a cara todinha por que têm algumas sardas no nariz? Pintinhas, não são?
P - Tem alguma coisa que tu queria mudar no teu jeito de ser?
Cr4- O cabelo.
P - Uma das coisas que não gosto em mim é...
Cr7- Os dentes, porque vou precisar colocar aparelho. Queria ser bem magrinha e muito
alta, para ser modelo.
A criança (Cr2) nos revela, em alguns excertos de seu discurso, sua hesitação
concernente à satisfação corporal. Em alguns segmentos, revela gostar de sua condição
física e estética; em outros, demonstra um desagrado com algumas partes de seu corpo,
que são percebidas por seus amigos e que interferem em sua auto-avaliação. Embora em
seu discurso afirme que não ‘escuta’a avaliação feita pelos meninos’, em outros trechos,
nos evidencia como altera a percepção que tem de si.
P- (...) e quando você se olha no espelho, o que você acha de você?
Cr2- Tão feia.
P - O que você acha feio em você?
Cr2- Os povo fica me chamando de bocão porque meu pai tinha uma bocona...
Cr2- Só isso. E fica me chamando de bucha, porque meus cabelo é assim...
P - Mas você mesma, quando você olha no espelho...
Cr2- Eu acho isso.
(...)
P - Quando eu me olho no espelho eu me acho...
Cr2- Feia!
P - Qual a parte do seu corpo que você menos gosta?
Cr2- Meus cabelos.
P - E qual a parte que você mais gosta?
Cr2- De tudo, tirando os cabelos.
P - Ah, mas você falou que se acha feia...
Cr2- Não, eu acho feia sim, porque os meninos ficam me chamando de bocão e fica me
chamando de bruxa, eu faço que nem escuto.
P - E se tu fosse dá nota pra ti, valendo de 0 a 10, qual era a nota?
Cr2- Eu dava 10.
P - Você dava 10 mesmo se achando feia? Então você não se acha feia?
Cr2- Não, porque os meninos ficam me chamando de bocão, de cabelo de bucha...
P - e se você pudesse escolher uma parte sua, do corpo que você fala: isso aqui eu vou
mudar e vou fazer do jeito que eu quero. O que que você faria?
Cr2- A barriga
P - O que que você faria?
238
Cr2- Deixava bem magrinha.
P - E uma parte que você fala: essa aqui eu não vou mudar nunca porque eu acho muito
bonita
Cr2- A bunda.
P - O que que você mais gosta em você?
Cr2- Que eu gosto em mim? Tudo. Mas, sendo os meninos, tirando os meninos, né?
(...)
P - Então... se tu pudesse mudar alguma coisa do teu jeito de ser, de se comportar, o que
que tu mudaria?
Cr2- Eu... o que eu queria é... ser magra.
Um fato que nos chamou a atenção foi as unhas da criança que estavam muito
roídas. A criança nos revela que ‘roer unhas’ é uma ação sua diária. Fala-nos do que não
gosta: roer unhas. Pensamos na possibilidade do fato de ‘roer unhas’ ser um sintoma que
nos demonstra ansiedade por parte da criança, que é uma das conseqüências psicológicas
da violência familiar (Guerra, 1998, Corsi, 2003, Assis, 2002) e aquela é considerada hoje
um fenômeno preocupante (Mruk, 1995, citado por Assis & Avanci, 2004).
P - E essas unhas ruidinhas? Roí todo dia?
Cr2- É, não gosto não.
No excerto seguinte, a criança nos fala sobre sua beleza, sinaliza o que gosta mais
em seu corpo e o que não a agrada.
P - Quando tu se olha no espelho como é que tu se acha?
Cr3- No espelho quando me arrumo fico bonita.
P - Qual a parte do corpo que tu gosta mais?
Cr3- O braço.
P - E qual a parte que tu não gosta?.
Cr3- Nem das pernas, nem do tronco.
Ao ser questionada sobre o porquê da preferência de seu braço, a mesma criança
nos revela que gosta dessa parte do corpo porque dorme com o seu ursinho. O braço
exerce uma função de apoio para receber uma companhia: seu ursinho. Na seqüência do
diálogo, justifica o porquê de não gostar de algumas partes do corpo e demonstra sinais
239
de insatisfação quando revela que gostaria que aquelas fossem iguais às de sua irmã de
nove anos. Essa criança tem seis anos e possui baixa estatura, por isso querer ser igual à
irmã, que pela sua descrição, é maior que ela.
P - Por que tu gosta do teu braço?
Cr3- Porque durmo com ele, com meu ursinho.
P - Por que tu não gosta nem das pernas, nem do tronco?
Cr3- Porque acho feio.
P - Por que tu acha feio? Queria que fosse diferente? Como?
Cr3- Queria que fosse igual a minha irmã e bem grandona.
Mais uma vez a criança, pela imaginação, modifica a realidade e nos fala que, ao se
ver no espelho, se acha grande.
P - Quando eu me olho no espelho, eu me acho...
Cr5- Grande.
Os discursos das crianças mostraram-se semelhantes principalmente no que se
refere à percepção corporal. Destacam-se marcadamente sinais de insatisfação em termos
de padrões estéticos entre seis crianças. Somente uma criança (Cr5) não manifestou
desejo de modificar o corpo, havendo uma aceitação corporal claramente positiva de si.
A partir das verbalizações dessas crianças, notamos que, apesar de apresentarem
sinais de uma visão positiva de si, demonstram ambigüidade e hesitação no que se refere
aos aspectos físicos. Com isso oscilam; ora se conseguem ver de forma positiva, ora
manifestam uma visão mais negativa de si. Essa última surge também quando o outro
aparece na relação, seja mediante o discurso da criança em que o outro a avalia (Cr2) ou
de uma presença afetiva em termos de reconhecimento e aceitação (Cr7).
Há uma necessidade das crianças (Cr1, Cr3) de se identificarem fisicamente em
relação ao outro significativo, fazendo-nos pensar que seria um elemento importante de
identificação para elas. Uma criança chega a ‘transformar a realidade’ em seu desenho,
240
modificando o que não lhe agrada em seu corpo – a cor dos olhos – detalhe pertencente a
sua mãe e irmão.
Foi muito presente o adjetivo ‘feio’,‘feia’, quando as crianças se conceituavam em
termos de padrões estéticos, os quais são definidos culturalmente e dificultam uma maior
aceitação de si, principalmente em relação a algumas partes do corpo. Segundo Assis &
Avanci (2004) a aceitação corporal decresce segundo o nível de auto-estima. Essa é a
medida de auto-aceitação.
O discurso de uma criança (Cr7) também nos evidencia sinais de desconforto em
relação ao aspecto corporal, ao estar vivenciando a puberdade.
5.3.2.2. Aspectos relacionais
Em toda atividade realizada em qualquer lugar onde a criança esteja e do qual
participe, essa constantemente recebe reflexos que contribuem para a autopercepção
(Briggs, 2002). As atividades vivenciadas lhe transmitem informações acerca de suas
competências e habilidades.
Nesses segmentos à frente, as crianças participam de uma atividade lúdica –
desenhar. No momento de desenhar sua família, a primeira criança, ao ser questionada
sobre quem seria a pessoa a qual estaria desenhando, afirma que seria sua mãe. No
mesmo momento em que nos faz essa referência, porém, apaga a figura e nos sinaliza
como a presença e o discurso do outro interferem na avaliação que faz de si. Miceli
(2003) nos fala que às vezes a criança tem dúvida sobre o êxito de seus esforços talvez
porque as experiências passadas não lhe sugerem prognósticos favoráveis, e, portanto já
imagina o momento em que terá que enfrentar mais um fracasso (pg.78).
P - Quem é ? (desenho)
241
Cr6- Minha mãe.
P - Sua mãe?
(apagou)
P - Ah, do jeito que você sabe, tá bom, não tem problema não.
Cr6- É porque eu não sei, assim não.
P - Oi?
Cr6- É porque eu não sei assim não.
P - Faça do jeito que você sabe.
Na segunda situação, à medida que vai elaborando seus desenhos, a criança o
qualifica; confirma-nos e nos sinaliza sobre a importância que toda criança tem de ser
constantemente confirmada. A partir de os três anos de idade, a confirmação, aceitação e
avaliação social são aspectos importantes para a constituição de auto-estima da criança
(André & Lelord, 2003).
Cr4- Meu pai ficou feio não foi (referente ao desenho de sua família)?
Cr4- (desenhando uma cabeça) meus olhos azuis.
Cr4- Ficou feio?
P - Olha só, um desenho com vaso, flor e tudo. É! Isso que você tá fazendo é o quê?
(referindo-se ao desenho da família de Pinóquio) ?
Cr5- Onde ele passa.
P - Oi?
Cr5- Ele passa por aqui.
P - Ah, onde ele passa. Hum-hum. É a saída da casa dele? E daí ele vai pra onde?
Cr5- Ficou ruim.
P - Oi?
Cr5- Ficou ruim (referindo-se ao desenho da família desenhada pelo sujeito).
Como expresso anteriormente, o discurso de Cr1 nos mostra sua dificuldade de
autopercepção. Essa atravessa necessariamente a percepção que possui do pai e, a partir
dessa, consegue identificar semelhanças com ele. Segundo André & Lelord (2003), as
pessoas com baixa auto-estima não possuem muito conhecimento de si mesmas; são mais
neutras quando precisam falar de si, pois temem o julgamento alheio e assim, dedicam
242
boa parte de seu tempo observando alguém para imitar, em vez de procurarem descobrir
em si mesmas as próprias capacidades.
Há outro segmento que nos revela a percepção da criança do próprio corpo, vendo-
o de forma positiva, embora nos revele aspectos de seu corpo que gostaria de mudar – seu
peso. Vemos, pelos MCS,s, o corpo masculino cada vez mais presente em roupas,
perfumes, produtos de beleza etc, com um corpo ideal ditado pelo sistema capitalista, o
que pode deixar a auto-estima das pessoas vulnerável, já que sofremos uma pressão
cultural na qual existe um padrão estético que poucos conseguem atingir e acompanhar.
O desejo de mudar, entretanto, se apresenta também na forma de se comportar, já
que o comportamento presente parece não agradar a sua mãe.
P- (...) Você tem o olho muito bonito. É expressivo, verde. Você não acha bonito quando
você olha no espelho, seu olho ? .
Cr1- Eu só olho pro do meu pai (o olho).
P - Como?
(...) (inaudível)
P - Seu pai tem olho bonito?
Cr1- É quase igual ao meu.
(...)
P - Você queria ser diferente? Sem ser o corpo agora... O jeito de ser, de viver, o que você
queria mudar em você? (...)
Cr1- Só queria mudar os pesos...
P - O jeito de pensar, da gente agir, do jeito de ser, de viver, o que que você queria mudar
em você? (...).
Cr1- Não queria teimar muito.
P - Não queria teimar muito, ser muito teimoso...
P - Quem te disse que tu é teimoso?
Cr1- Minha mãe.
No módulo de seqüências, deparamo-nos com o discurso em que a criança declara
que a mãe a insulta, bem como as tias. Esse mesmo insulto é repetido por uma criança
menor de sua casa – seu sobrinho. Caracterizamos em nosso trabalho, anteriormente
(Ministério da Saúde, 2002), o insulto como uma violência psicológica. Também os
243
insultos verbais são uma forma de hostilidade (Briggs, 2002) para com a criança,
comprometendo sua auto-estima.
Cr1- Ele só sabe falar nome (referindo-se ao sobrinho de menos de dois anos).
P - Que nome
Cr1- Má seu caralho, ele me chama de Má.
P - Quem ensina (ao sobrinho)?
Cr1- Ele vê a mãe dizendo comigo. Quando elas estão brigando ela vai fala pras tias ‘
suas caralhas.’
Claramente, vemos como o discurso do outro afeta o autoconceito da criança (Cr2)
e faz com que esta oscile em ter uma visão positiva de si. Em sua fala, as avaliações feitas
pelo outro interferem na sua auto-avaliação, pois a possibilidade daquelas não existirem
faz com que a criança possa se avaliar de forma positiva. A criança nos revela reflexos
negativos de si, esses oriundos de seus iguais, que são como espelhos para ela, produzem
reflexos e passam a fazer parte de sua imagem, ainda imprecisa. Na idade de Rosa, a
importância do julgamento em relação aos seus aspectos físicos, feitos por colegas de seu
convívio, tem um peso importante para a sua imagem e auto-estima.
P - O que que você mais gosta em você?
Cr2- Que eu gosto em mim? Tudo. Mas, sendo os meninos, tirando os meninos, né?
(...)
P - (...) e quando você se olha no espelho, o que você acha de você?
Cr2- Tão feia.
P - O que você acha feio em você?
Cr2- Os povo fica me chamando de bocão porque meu pai tinha uma bocona...
Cr2- Só isso. E fica me chamando de bucha, porque meus cabelo é assim...
P - Mas você mesma, quando você olha no espelho...
Cr2- Eu acho isso.
(...)
P - E qual a parte que você mais gosta?
Cr2- De tudo, tirando os cabelos.
P - Ah, mas você falou que se acha feia...
Cr2- Não, eu acho feia sim, porque os meninos ficam me chamando de bocão e fica me
chamando de bruxa, eu faço que nem escuto.
P - E se tu fosse dá nota pra ti, valendo de 0 a 10, qual era a nota?
Cr2- Eu dava 10.
244
P - Você dava 10 mesmo se achando feia? Então você não se acha feia?
Cr2- Não, porque os meninos ficam me chamando de bocão, de cabelo de bucha...
(...)
P - O que que você mais gosta em você?
Cr2 Que eu gosto em mim? Tudo. Mas, sendo os meninos, tirando os meninos, né?
Na situação seguinte, depreendemos o quanto o discurso do outro contribui para a
percepção de si, principalmente quando procede de pessoas significativas para a criança.
O conceito de beleza, para Paula, dependerá de um contexto afetivo. Paula se acha bonita
quando é elogiada pelo pai, atitude que não é observada por ela vinda por parte da mãe.
P - Quando me olho no espelho, eu me acho...
Cr7- Mais ou menos. Me acho bonita e me acho feia. Bonita porque meu pai me elogia,
minha mãe não me elogia.
Apesar de a criança nos sinalizar anteriormente seu incômodo com a puberdade,
vemos em seu discurso um certo prazer por estar vivenciando essa fase. A criança
enfatiza, no entanto, sua insatisfação pelo estádio que está vivendo, principalmente por
achar que vai ficar excluída por um dos genitores – a mãe – que é seu agente violador
mais freqüente. Apesar dos seus 11 anos de idade, Paula ainda considera os pais como
fontes importantes, como vertentes de julgamento e aceitação (Harter, 1998, citado por
André & Lelord, 2003). Novamente, temos indicativos que mostram a necessidade que
toda criança possui de se sentir amada e valorizada, independentemente da fase de seu
crescimento.
P - Uma das coisas em meu corpo que não gosto é....
Cr7- Quando a pessoa se forma, cresce, porque a pessoa fica com aquela vontade de tudo,
os meninos elogiam, fazem psiu. Quando eu crescer, minha mãe não vai ligar mais pra
mim, ela vai cuidar dos pequenos. Meu pai não. Porque um liga de comprar as coisas
(calçado, roupa, lanche, dinheiro) e o outro não.
No fragmento que vem, as pessoas aparecem como vítimas da criança – quando há
apropriação de bens – fato este já mencionado. Uma questão se faz presente com o
245
discurso da criança: como essa administrará a expectativa que sua irmã criou em relação
ao seu ‘Eu’: de tornar-se um ladrão. Essa expectativa diz respeito à constituição de seu
autoconceito e, conseqüentemente, de sua auto-estima (Miceli, 2003), pois essa é também
uma tentativa de se prever a avaliação dos outros (André & Lelord, 2003).
P - Agora falta culpa (sobre a atividade dos sentimentos humanos). Alguma coisa que te
dá culpa.
Cr1- Quando eu pego as coisas do outro.
P - O que você pega?
Cr1- As garrafinhas, aquelas, tava comigo a gente jogando vôlei e daí ela brigou (irmã)
comigo. Minha irmã disse que daqui a pouco estou roubando .
A criança Cr7 se sente culpada quando os outros a culpam, porém, afirma não ser só
ela a culpada.
P - Eu me sinto culpado quando...
Cr7- Quando culpam eu... A menina veio brigar comigo, aí só culpou eu, não quis culpar
ela.
Em relação à visão de si (aspectos descritivos e valorativos), as crianças se
descrevem com características positivas: índio forte da Amazônia, descrição associada a
uma identificação com a figura paterna. A descrição de si na fala das crianças esteve
também associada a características emocionais e de personalidade. Aparecem vozes que
se vêem como alegres, tristes, e uma criança diz que não é alegre e não sabe justificar
(Cr4). A criança Cr7 se diz violenta. Características positivas de si também apareceram
atravessadas pela personagem Pinóquio representado como uma criança feliz e bonita.
Encontramos também um desejo por parte de algumas crianças de quererem ser
iguais ao Pinóquio dentro das características encontradas por elas. Pinóquio era uma
criança feliz, alegre e fazia muitas coisas: brincava, trabalhava e estudava. Uma criança
justifica querer ser igual à personagem para que possa ser igual aos seus amigos e poder
246
integrar-se ao grupo desses usando o nariz de Pinóquio como uma espada para que possa
brincar. Ter espada lhe confere algum poder perante os amigos e assim receber aprovação
desses (Miceli, 2003). Essa mesma criança também aspira a ser Pinóquio, com o objetivo
de usar uma parte de seu corpo como proteção contra os abusos que sofre de sua mãe: as
pernas de pau. Surge a personagem, irmão de Pinóquio, que, traumatizado (Cr7), é sem
vida, triste murcho (Cr7) por ter sofrido muito abuso.
Nos relatos aparece a vontade de ser diferente, de ser outra pessoa tanto em relação
ao comportamento (ser teimoso), quanto à condição física (ser maior em tamanho). Deste
modo, talvez possamos falar de uma aspiração, por ser diferente como um recurso de
defesa aos abusos sofridos. Querer mudar também diz respeito ao lugar onde reside.
Mudar de contexto significa uma solução para as situações abusivas em que vive (Cr7).
As crianças, também em seus discursos, nos falam de habilidades e limitações que
possuem em relação a algumas atividades por elas citadas.
Entre os sonhos revelados pelas crianças, está a possibilidade de dormir muito, já
que seu sono, freqüentemente, é associado ao abuso físico. Foi relatado com freqüência
por uma criança o sentimento de raiva numa situação em que é impossibilitada de realizar
uma tarefa e, ao mesmo tempo, recebe insultos por não realizá-la. O sentimento de raiva
que aparece no discurso da criança (Cr2) nos parece ser reprimido e deslocado para si em
forma de ‘roer unhas’. Possivelmente, contribui para sua ansiedade e para danificar sua
auto-estima. O sentimento de culpa também aparece ligado a situações de apropriação
dos bens alheios e associado a uma avaliação negativa que o outro faz da criança, bem
como antecipa seu comportamento, dizendo que no futuro estará roubando(Cr1).
247
Ao referir-se às suas vidas, as crianças relatam de forma diferente – é boa (Cr7); é
triste (Cr2) – associada quando a criança se encontra diante de situações que estão além
de sua capacidade de realização, afetando sua auto-estima.
Os discursos de algumas crianças mostraram-se similares em relação à importância
que tem a avaliação dos outros. Ser aprovada e aceita pelos outros parece ser uma
necessidade dessas crianças (Cr4, Cr5, Cr6).
Aparece também uma necessidade de identificação física com o outro significativo
(Cr4, Cr1). A criança (Cr1) nos demonstra sobre sua dificuldade de autopercepção,
embora essa aconteça de forma sutil quando nos fala da percepção que possui de uma
pessoa significativa: seu pai, com quem consegue se identificar fisicamente.
Encontramos também o papel do outro no processo de aprendizagem do sujeito. A
criança (Cr1) nos relata que, ao ser insultada pela mãe e pela tia, o sobrinho, também as
imita e a insulta com a mesma palavra que aquelas, reproduzindo a violência no contexto
familiar mediante imitação.
O discurso do outro afeta também o autoconceito e auto-estima das crianças, pois
faz com que vacilem na visão positiva de si (Cr2, Cr7). Os dados também nos revelam
que a violência afeta, além dos sentimentos da criança, como visto por nós, sua auto-
avaliação corporal e estética (Cr7).
Verificamos também uma dificuldade por parte da criança (Cr7) em uma aceitação
positiva do corpo em uma fase significativa de sua vida – a puberdade – que está
associada a uma perda de posição, ou seja, deixar de ser criança, e, conseqüentemente
perderá uma atenção dada por parte do outro significativo – a mãe – que será deslocada
para os irmãos menores.
248
O outro, presente na dinâmica familiar, também surge, apontando um
comportamento e uma expectativa negativos da criança, prevendo seu futuro, no qual a
ação de roubar está presente.
5.3.3. A autoconfiança
A autoconfiança está ligada principalmente às ações e essas estão vinculadas à auto-
estima na medida que esta necessita de atos para se manter ou desenvolver. Os pequenos
atos cotidianos alimentam a auto-estima e contribuem para o equilíbrio psicológico. A
autoconfiança resulta da maneira como as pessoas foram educadas (principalmente pela
família e pela escola), aprendendo as regras que fazem parte das ações, que é ousar,
perseverar e aceitar os fracassos; e, também acreditar na própria capacidade de agir
(André & Lelord, 2003).
A seguir, vemos nas duas situações a mesma criança nos sinalizar mensagens sobre
sua autoconfiança. Na primeira situação, a criança se sente confiante ao incorporar a
personalidade de um índio da Amazonas que, ao nosso ver, está ligada a uma
identificação afetiva com seu pai, que é separado de sua mãe e mora atualmente na
Amazônia .
P - Você já caiu alguma vez? De árvore, de muro, do que, de alguma coisa? Do alto? Já
caiu? Não?
Cr6- Porque eu sou um índio, também não caio de nada. Nasci na Amazônia.
(...)
P - Quem é ? (desenho)
Cr6- Minha mãe.
P - Sua mãe?
(apagou o desenho)
P - Ah, do jeito que você sabe, tá bom, não tem problema não.
Cr6- É porque eu não sei, assim não.
P: Oi?
Cr6- É porque eu não sei assim, não.
P - Faça do jeito que você sabe.
249
A seguir, as crianças nos revelam traços de sua insegurança enquanto desenhavam.
Na primeira situação, a criança demonstra sinais de sua necessidade de confirmação pela
atividade que desenvolve. Na segunda, nos mostra indícios de sua insegurança ao
desempenhar a ação de desenhar e ser questionada sobre que pessoa o desenho estava
representando. Na mesma hora o apagou e disse que não sabia fazer. Pensamos como é
importante uma auto-estima positiva para o êxito das pessoas, embora ela não seja
garantia do sucesso e êxito. Na verdade, a auto-estima precisa de êxitos cotidianos para se
desenvolver de forma positiva (André & Lelord, 2003). No último segmento, temos uma
situação de uma criança – desenhando – que demonstra não confiar em seu traçado e
solicita confirmação.
Salomon (2002) nos adverte para a noção de que as crianças que foram vitimizadas
pela família têm como uma de suas conseqüências a falta de confiança em si.
Cr4- (desenhando uma cabeça) Meus olhos azuis.
Cr4- Ficou feio?
P - Olha só, um desenho com vaso, flor e tudo. É! Isso que você tá fazendo é o quê?
(referindo-se ao desenho da família de Pinóquio) ?
Cr5- Onde ele passa.
P - Oi?
Cr5- Ele passa por aqui.
P - Ah, onde ele passa. Hum-hum. É a saída da casa dele? E daí ele vai pra onde?
Cr5- Ficou ruim.
P - Oi?
Cr5- Ficou ruim (referindo-se ao desenho da família desenhada pelo sujeito).
Na seqüência há sinais da autoconfiança das crianças em relação às suas habilidades
e competências domésticas, aspectos que interferem positivamente na sua auto-estima.
Nos dois últimos discursos, vemos a autoconfiança das crianças em relação também às
tarefas escolares e à habilidade de desenhar.
250
P - Tem uma coisa que tu faz bem feito?
Cr2- Fazer tudo dentro de casa, pra ninguém mais fazer as coisas.
(...)
P - Que você faz bem feito, diz aí, ‘fiz isso e fiz bem feito’, que você faz bem feitinho...
Cr2- Como assim (lê-se, por exemplo), lavar a louça, quando minha avó tá doente, aí eu
faço as coisas, digo: vovó, eu já fiz as coisas tudinho, a senhora não precisa fazer mais
nada....
P - Tem uma coisa que tu faz bem feito?
Cr2- Fazer tudo dentro de casa, pra ninguém mais fazer as coisas.
P - Tem alguma coisa que tu faz bem feito além de lavar o prato?
Cr4- Arear a louça.
Cr6 - Hum-hum, aí eu só fiquei jogando, jogando e fiquei entertido aí não botei o lixo pra
fora.
P - E aí,o que que aconteceu?
Cr6 - Aí ela pegou e mandou eu apanhar o lixo tudinho e aí mandou passar o pano na
casa da gente.
P - Mandou passar o pano na casa da gente? E tu já sabe passar o pano na casa?
Cr6 - Hum, hum .
P - Duas coisas que faço bem feito...
Cr7- Meus deveres, lavo a louça e passo o pano.
Cr2- Como tá feio (referente a seu desenho).
P - Nada de feio.
A criança nos revela que não gosta de desenhar (trouxe-nos umas cópias de alguns
desenhos que fez com modelo, com muita perfeição). Logo em seguida, nos demonstra
confiança nessa área, especificamente quando nos fala sobre sua habilidade para
desenhar. Confiança numa área não significa, entretanto, necessariamente, confiança em
todas as áreas, porém, quanto mais generalizada for a auto-estima da criança, mais ela
atuará com confiança em todo as áreas de sua vida (Briggs, 2002, pg.27).
Cr1- Eu não gosto de desenhar....
(...)
P-(...) duas coisa que você acha que você faz bem legal?
Cr1- Desenhar e...
P - Desenhar... Muito bem, e que mais? A outra coisa que tu faz, assim, bem feito? Bem
legal...
251
Cr1- Quando meu pai manda eu fazer bola.
A criança Cr2 nomeia sua vida como triste e, com a seqüência da entrevista,
localizamos o sentimento de tristeza decorrente de uma situação escolar, quando a criança
se percebe em uma atividade para a qual não está preparada afetando sua auto-estima.
Este fato é semelhante à literatura (Assis & Avanci, 2004). Nesse sentido, Briggs (2002,
p.45) nos fala que a baixa auto-estima está ligada à exigências impossíveis do ‘Eu’, ou
seja, há uma expectativa de desempenho para com a criança maior do que ela pode
satisfazer (Branden, 2000), trazendo conseqüências para o desenvolvimento de seu
autoconceito e sua auto-estima.
P - Por que que tu acha que a tua vida é triste?
Cr2- Porque eu acho...
P - Porque eu acho... vamos tentar achar essa tristeza? Eu acho a minha vida triste
porque... onde é que a gente acha essa tristeza na tua vida? (...) Onde é que pode ta essa
tristeza? Por que que a tua vida é triste?
Cr2- É, a professora passa um dever ai eu não sei responder, ai eu fico triste, dá vontade
de chorar.
A criança, ao ser questionada sobre suas conquistas, nega que as teve, ao contrário,
revela um desejo que gostaria de ter sido alcançado.
P - Qual a tua maior conquista na tua vida, a coisa maior que tu conquistou? Que tu
queria uma coisa e aconteceu e tu conseguiu’?.
Cr7- Nenhuma.
P - Nunca conseguiu nada que tu quisesse?.
(respondeu negativamente com a cabeça)
P - Não?
Cr7- Ah, eu queria ser modelo, mas eu não consigo.
Na situação seguinte a criança qualifica sua escrita feita em uma atividade sugerida
por nós e solicita-nos confirmação, aceitação (André & Lelord, 2003).
Cr2- Como tá feio (referente à sua letra).
P - Olha só, um desenho com vaso, flor e tudo. É! Isso que você tá fazendo é o quê?
(referindo-se ao desenho da família de Pinóquio) ?
252
A partir de um relato apresentado, vimos que a autoconfiança da criança perpassa a
questão afetiva que possui com o outro significativo (Cr6), embora essa mesma criança
nos demonstre insegurança ao realizar uma tarefa solicitada por nós. Constatamos que, ao
serem colocadas diante de atividades solicitadas pelo outro, várias crianças demonstraram
traços de insegurança (Cr4, Cr5, Cr6). Queremos conferir também pontos semelhantes
sobre a autoconfiança que percebemos nas crianças em relação aos afazeres domésticos
(Cr2, Cr4, Cr6, Cr7), talvez porque esses façam parte de seu cotidiano e, dessa forma,
conseguem êxitos mais facilmente, contribuindo assim para sua auto-estima positiva.
Temos a recorrência do aparecimento do sentimento de tristeza derivado de uma situação
escolar na qual a criança se vê diante de uma atividade para a qual não está preparada.
Nesse sentido, quando há uma expectativa de desempenho para com a criança maior do
que ela pode satisfazer (Branden, 2000), isto afeta o desenvolvimento de seu autoconceito
e sua auto-estima.
253
6. Considerações finais
Daquilo que eu sei, nem tudo me deu
clareza, nem tudo me deu certeza, nem tudo foi
permitido... (Ivan Lins)
No início deste trabalho, sinalizamos nossa preocupação no que se relaciona ao
fenômeno da violência, principalmente no que diz respeito à violência ocorrente no
interior das famílias e que torna vítimas milhares de criança por dia. Trouxemos como
questão, o fato de que uma das conseqüências desse tipo de fenômeno se refere à
dimensão subjetiva da criança – a auto-estima – que entendemos como uma emoção, uma
necessidade humana, de caráter sócio-histórico, elaborada nas relações sociais.
Assim, nosso objetivo foi analisar a auto-estima da criança que sofreu violência
física perpetrada pela família. Para tal percurso, inicialmente, verificamos a literatura e
nos deparamos com a escassez de publicações referente ao tema, bem como de
investigações empíricas. Definimos nosso percurso esteadas no referencial sócio-
histórico. O caminho trilhado por nós foi, inicialmente, por meio de uma imersão na
literatura para um maior aprofundamento teórico sobre a temática da violência,
movimento esse dificultado não pela falta de produção desta, mas pela enorme
quantidade de vertentes e nuanças pertinentes à discussão do fenômeno.
Sobre a temática da auto-estima, tivemos uma grande dificuldade, já que, como
falado por nós anteriormente, a grande produção se encontra nas prateleiras dos livros de
auto-ajuda, havendo somente uma pequena parcela de publicações e produções
científicas, principalmente em relação à Psicologia (Reppold & Gobitta, 2003).
Perante a complexidade do tema objeto deste estudo, a preocupação com os
procedimentos de investigação tornou-se fundamental. Optamos por uma perspectiva
255
Mediante os discursos das crianças, pudemos nos inserir em seu mundo e refletir
sobre alguns aspectos de sua dimensão subjetiva, referentes à sua auto-estima, em um
contexto particular cuja violência física está presente.
Os dados possibilitaram-nos observar que a violência, considerada em sua forma
mais geral, é muito presente e circula a vida das crianças, por meio de suas experiências
como expectadoras ou mesmo como agentes das ações. Os resultados nos revelam que a
criança, no interior de sua família, está sujeita não somente à violência física, mas,
também, psicológica, por seus parentes mais próximos - mãe, pai e avós – e está
associada a uma forma que esses possuem para educar, pois está ligada à disciplina e à
proteção.
Verificamos, também, que existe um padrão de comportamento dos membros da
família que envolve vários papéis: da criança agindo de forma ativa (reproduzindo um
comportamento violento), de forma passiva (sofrendo a violência) ou mesmo como
observador da violência que ocorre na família, evidenciando-nos a alternância desses
papéis, que contribui para a reprodução da violência, não só em sua família, mas
sinalizando a possibilidade, por intermédio dos procedimentos, de reproduzi-la fora do
contexto do domicílio.
Algumas questões de suma importância merecem ser ressaltadas sobre a auto-
estima das crianças estudadas. Estas crianças demonstram dificuldade de se aceitarem e
se amarem de forma integral, incluindo seus sentimentos, aspectos corporais e
comportamentais, e, deste modo, manifestaram o desejo de serem diferentes, em especial
em relação a esses últimos aspectos. Querer ser diferente e mudar também implica estar
em lugares diferentes que não seja o contexto em que vivem.
256
A insatisfação relativa aos aspectos físicos foi marcante, evidenciando para nós uma
dificuldade de aceitação de si, comparando-se padrões estéticos estabelecidos
culturalmente. Possuir padrões estéticos valorizados culturalmente favorece a aceitação
por parte dos colegas e amigos. O outro significativo, quando se encontra na posição de
avaliador, faz com que a criança oscile na aceitação de si, aspecto importante da auto-
estima.
Foi apontado também que uma das conseqüências da violência física cometida
contra a criança é um prejuízo na efetivação dos vínculos familiares, fato que se encontra
intimamente relacionado com a auto-estima da criança, já que o envolvimento positivo
com os componentes familiares é fundamental para a auto-estima, pois, segundo Assis,
& Avanci, (2004, pg. 161), “se houvesse um único
257
Verificamos, também, que possuir uma relação não amistosa com os amigos
contribui para uma visão negativa de si e para o sentimento de valorização, demonstrando
a importância dos vínculos positivos com os pares (colegas de turma e escola).
A autoconfiança também foi um aspecto associado ao outro. Na verdade, a
segurança psicológica é transmitida à criança desde cedo, principalmente por seus pais e
demais membros familiares, mediante atitudes, mensagens e sinceridade, fazendo com
que a criança se sinta segura, se ame, se respeite e acredite na própria capacidade (Briggs,
2002).
Os resultados encontrados apresentam semelhança com os dados da literatura
referentes a vários aspectos: a) Sobre o agressor - em primeiro lugar temos a mãe e em
seguida, o pai (Vecina, 2002); b) os diversos instrumentos utilizados pelos (as) agressores
(as) presentes nos discursos das crianças são citados também pela literatura (Couto, 2004)
chinelo, (sandália), cinturão (cinto), colher; c) a violência é aceita por parte da criança
quando essa é cometida pelos pais e não por outras pessoas; d) a justificativa para a ação
violenta perpassa a proteção dos filhos, a disciplina e a desobediência deles (Gonçalves,
2001); e) a criança assume o erro da situação violenta, ou seja, se culpa pela ação
cometida pelos pais (Ravazzolla, 1999); f) a negação da violência sofrida como um
mecanismo de defesa (Scodelario (2002); g) a presença da institucionalização da
violência na dinâmica familiar, na qual essa é compartilhada por diferentes sujeitos,
evidenciando novas formas de sociabilidade e de relações sociais (Almeida, 2002;
Espinheira, 2001; Fraga, 2002; Minayo & Sousa, 1997; Silva, 2002; Silva, 1999;
Waiselfisz, 1998); h) as crianças expostas à punição física tornam-se mais violentas;
(Shnit, 2002, p. 143); i) o outro interfere na percepção e no juízo de valor que a criança
258
faz de si, interfere em seu autoconceito e em sua auto-estima ( Miceli, 2002, Brande,
2000, Briggs, 2002); j) a repressão de sentimentos negativos faz com que a pressão se
acumule e a energia passe a ser descarregada de várias formas, ou contra a própria pessoa,
podendo ser dirigidas para outras pessoas e para a sociedade, danificando a auto-estima
da criança (Briggs, 2002); k) a violência psicológica contribui para danificar a auto-
estima da criança (Briggs, 2002, Scodelário, 2002); l) a beleza corporal é considerada um
valor, para a juventude (Assis & Avanci, 2004); m) uma das conseqüências psicológicas
da violência familiar é a ansiedade por parte da criança, (Guerra, 1998, Corsi, 2003,
Assis, 2002); e n) o sentimento de tristeza é associado a situações de desempenho escolar
(Assis & Avanci, 2004).
Finalmente, expressamos a idéia de pontuar que os resultados da presente
investigação representam uma contribuição ao estudo do desenvolvimento da criança,
bem como da auto-estima. Este ensaio poderá ser enriquecido por estudos que possam,
mais de perto, conhecer as interações das crianças com seus componentes e que
possibilitem maior compreensão da auto-estima da criança que cresce num ambiente
violento: a família.
Esta pesquisa também nos adverte da necessidade de intervenções com as famílias
abusivas para que possam substituir um padrão educacional violento por práticas mais
saudáveis e que façam com que aquelas possam reconhecer que a violência, seja física ou
psicológica, praticada contra a criança, traz danos consideráveis a uma dimensão
subjetiva importante que é sua auto-estima.
259
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