Download PDF
ads:
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós - Graduação em Psicologia
A INCLUSÃO ESCOLAR:
DA SUBJETIVIDADE DO PROFESSOR
À CONSTITUIÇÃO DE UM LUGAR DE ALUNO
Juliana Ribeiro Câmara Lima
Natal
2005
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Juliana Ribeiro Câmara Lima
A INCLUSÃO ESCOLAR:
DA SUBJETIVIDADE DO PROFESSOR À
CONSTITUIÇÃO DE UM LUGAR DE ALUNO
Dissertação elaborada sob orientação da Prof. Dra.
Cynthia Pereira de Medeiros apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia.
Natal
2005
ads:
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós - Graduação em Psicologia
A dissertação “A inclusão escolar: da subjetividade do professor à constituição de um lugar
de aluno”, elaborada por Juliana Ribeiro Câmara Lima, foi considerada aprovada por todos
os membros da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em
Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de MESTRE EM PSICOLOGIA.
Natal, RN, ___ de ________ de 200__
BANCA EXAMINADORA
Nome Completo do/a Professor/a __________________________
Nome Completo do/a Professor/a __________________________
Nome Completo do/a Professor/a __________________________
Não há nada tão perturbador como aquilo
que a cada um recorda seus próprios
defeitos, suas próprias limitações, suas
próprias mortes; é por isso que as crianças
e os jovens perturbam aos adultos, as
mulheres aos homens, os débeis aos fortes,
os pobres aos ricos, os deficientes aos
eficientes, os loucos aos sensatos, os
estranhos aos nativos ... e quiçá vice-versa.
FERRE, 1998.
Aos professores.
Agradecimentos
À professora Dra. Cynthia Medeiros, pela generosidade, dedicação e competência
com que orientou este trabalho.
Aos professores e colegas do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN,
pela rica contribuição.
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por viabilizar o desenvolvimento
dos meus estudos de pós-graduação.
A CAPES, pela concessão da bolsa de estudos.
À Thamar, minha querida mãe, por estar por perto sempre que precisei, pelo
carinho, pelo amor, pela aposta.
Ao Alencar, meu pai, pelo apoio essencial, pela força, pela credibilidade, pela
generosidade dos seus sentimentos.
Ao João Paulo, meu companheiro, por agüentar minhas ausências e continuar me
amando.
À Lara, minha filha , que mesmo pequena soube compreender quando eu não podia
estar a seu lado, pelo carinho, pelos beijinhos.
À Priscila que abriu as portas da Casa Escola.
À todos que fazem a Casa Escola, pelo lindo trabalho e pela generosa contribuição.
À minha prima Lídia, pela fundamental ajuda nos momentos difíceis.
À Suely Alencar, pela transmissão.
À Dona Miriam, pelos pontos e vírgulas no lugar.
Ao mestre Chico Buarque, com suas mágicas palavras em tom de poesia.
Muito obrigada.
Sumário
Introdução ................................................................................................................... 01
1. Instituto Educacional Casa Escola - IECE .................................................................... 12
1.1. O espaço físico ....................................................................................................... 12
1.2. Quadro funcional .................................................................................................... 13
1.3. Uma noção sobre o currículo ................................................................................. 17
1.4. Descrevendo o processo para a inclusão escolar na instituição ............................. 18
1.4.1. A formação do professor ............................................................................. 28
1.4.2. Os espaços de escuta ................................................................................... 33
2. De um fragmento clínico à definição metodológica ..................................................... 35
2.1. O lugar da pesquisadora e a metodologia teórico-clínica ...................................... 39
3. Um pouco da história da Educação Especial ................................................................ 45
3.1. Da exclusão à inclusão no sistema educativo brasileiro ........................................ 47
3.2. Pensando a inclusão escolar em nossos dias .......................................................... 71
4. A noção de sujeito ......................................................................................................... 76
4.1. A constituição do sujeito ........................................................................................ 90
4.2. O narcisismo em Lacan ....................................................................................... 106
4.2.1. O estádio do espelho ................................................................................. 109
4.3. A operação edípica .............................................................................................. 116
5. Discussão ..................................................................................................................... 127
5.1. Extraindo conseqüências a partir do fragmento clínico ....................................... 132
6. Considerações Finais ................................................................................................... 141
7. Referências Bibliográficas .......................................................................................... 146
Resumo
A inclusão escolar de alunos com necessidades educativas especiais (NEE) coloca-nos
diante de uma práxis que reivindica discussões constantes a respeito de como efetivar esta
proposta. Neste rumo, esse trabalho visa refletir sobre os impasses advindos da
subjetividade do professor no processo de inclusão escolar. Partimos da experiência clínica
de escuta de professores realizada no período de 2002 a 2005, no Instituto Educacional Casa
Escola. Nessa experiência, balizada pela psicanálise, partimos do princípio que as
aprendizagens se constituem no entrelaçamento entre o campo dos conhecimentos
socialmente construídos pela humanidade e o campo do saber acerca da subjetividade.
Admitimos que a promessa que compete à escola não diz respeito à garantias de que o aluno
venha a aprender, mas à visada nesta aprendizagem, pois quando o professor dela se
desautoriza, a pessoa não é tomada como aluna, sendo excluída da transmissão dos
conhecimentos, mesmo dentro da escola. Interrogamo-nos sobre como se constitui, no
professor, essa visada capaz de franquear a oferta de um lugar de aluno à pessoa com NEE,
permitindo-lhe avançar enquanto aprendente. Para tanto, discutimos, a partir de uma revisão
histórica, os elementos paradoxais presentes no paradigma da inclusão. Também analisamos
teoricamente o processo de constituição subjetiva através do corpo conceitual psicanalítico,
focalizando, notadamente, as operações do Estágio do Espelho e Complexo de Édipo. Por
fim, esse percurso nos mostrou que os conceitos de Eu Ideal e Ideal do Eu lançam luz sobre
os impasses subjetivos na prática docente, a saber, o Eu Ideal sustentando o imperativo de
perfeição narcísico convoca o impossível de uma educação sem faltas, obliterando o
processo educativo e gerando, muitas vezes, mal-estar; e o Ideal do Eu que implica num
posicionamento subjetivo balizado pela falta, salientando a ancoragem simbólica
favorecedora do processo de aprendizagem.
(290 palavras e 1655 caracteres)
Palavras-chave: educação especial; inclusão escolar; subjetividade do professor.
Abstract
The move to include students with special needs (NEE) in the schools presents a paradigm
that raises continual discussion about how to implement this proposal. Considering that
learning is built from the weaving of socially constructed knowledge and the field of
knowledge concerning subjectivity, this research explores the difficulties that occur with
the later in the process of inclusion in the schools. Admittedly, the promise implicit in the
school does not guarantee that the student learn, but the envisioning of this learning, when
the student’s educator discredits him, is such that the person is then not taken on as an
actual student, being excluded from the transmission of knowledge, even within the school.
The project implemented at the Instituto Educacional Casa Escola—IECE, for the last three
years, shows us that the possibility and sustainability of this envisioning is intimately
linked to the subjectivity of the educator, as well as how one relates to the institutional
culture. We question then, how this perspective is formed in the educator—this perspective
capable of denying the offer of a place as student, allowing him to advance while learning.
With this in mind, we explore the paradoxical elements present in the paradigm of
inclusion, as well as analyzing theoretically, through the body of conceptual
psychoanalysis, the process of subjective constitution. We intend to bring to light how this
process coincides with the construction of the educator’s perspective of exemption from
teaching the special needs students. We question, through the formative functions of
subjective structuring (The Mirror Stage and the Oedipus Complex), how to form a
perspective capable of promoting inclusion of special needs students in educators. Finally,
we show how it is possible to bring to light, with the concepts of the I ideal and the ideal I,
the subjective difficulties in the practicing instructor.
Key words—special education; inclusion in the schools; educator subjectivity.
Introdução
A inclusão escolar revela-se hoje como eixo principal da educação que se propõe a
atender à diferença, visando oferecer, para cada um dos alunos, oportunidades de construir
um projeto específico para sua aprendizagem, no cerne da escola regular de ensino.
Trata-se, portanto, de não se resignar perante velhos esquemas, como se fossem
“naturais”, únicos, sucumbindo aos ideais de homogeneidade ou competitividade afirmados
durante muito tempo. Tanto tempo que corríamos o risco de acatar, sem crítica, o que
tradicionalmente vinha sendo proposto nas escolas, a saber, que a diferença, a deficiência e
o estranho, lá não podiam caber, mantendo o conhecido sistema educacional pautado pela
segregação.
O desafio se traduz, nesse contexto, pela reivindicação por um modelo de escola que
possa considerar a singularidade, característica própria do humano, bem como as
contradições engendradas pelo discurso social dominante, que não mais devem ser veladas,
mas acolhidas numa perspectiva de compromisso com a solidariedade. Nesse percurso, na
construção de um novo paradigma, muitos são os impasses e indagações de quem se propõe
colocar na prática a educação inclusiva. Como efetivar, afinal, tal proposta? Haveria
condições que melhor promoveriam a inclusão escolar?
Contudo, são os impasses e indagações que nos possibilitam avançar e, a partir de
um certo incômodo com tal situação de segregação “naturalizada”, construir uma maneira
diferente da escola se pronunciar. Entendemos que a mera negação dessa situação que se
prolongou por tanto tempo resultaria na repetição de padrões, mais uma vez, na
impossibilidade de se haver com o diferente, inusitado ou estranho, com o imprevisível e
com o déficit.
As considerações contidas nesse trabalho foram instigadas, é importante colocar, a
partir da minha prática em instituições educativas. Em algumas delas, por haver o encontro
com o diferente, possibilitaram a emergência de um cenário farto de situações de um certo
estranhamento, impeliram para uma reflexão e análise que visavam, dentre outros
direcionamentos, buscar qual seria o melhor posicionamento a ser tomado, a partir de uma
concepção de educação cujo alicerce é o respeito ao ser humano.
Dentre as instituições que produziram a inquietação germinal para que me lançasse
num movimento investigativo, posso recordar algumas escolas maternais que, em meados
dos anos oitenta, ao aceitar com as melhores intenções, alunos cuja estruturação claudicante
fazia supor que havia um direcionamento para a psicose ou autismo, num segundo
momento viam-se perdidas, sem saber como caminhar perante o processo educativo dos
mesmos, questionando, inclusive, se haviam feito “o certo” em tê-las aceitado, posto que se
viam impotentes, sem qualquer contribuição a oferecer em relação à sua aprendizagem.
Outras escolas, diante de impasses semelhantes não se permitiam refletir sobre o contexto,
oficializando como um assunto proibido, o não-saber fazer com esses alunos tão diferentes.
Nestas não havia, de fato, um acolhimento, mas, antes, um mero recebimento. São formas
bastante diferentes de manejar uma situação, temos que convir.
Outra instituição marcante em minha trajetória foi uma das unidades de
permanência da FEBEM
1
, que acolhia crianças (de três a oito anos, na época) vítimas de
abandono e/ou abusos sexuais. Lá, no início dos anos noventa, o que me chamou muita
atenção foi o fato intrigante destas crianças estarem impedidas de estudar em qualquer
escola pública do bairro, o que motivou a construção de uma escola dentro dos muros desta
instituição para ensinar tais crianças, alegando-se que, assim, estariam protegidas de um
mundo perigoso e cruel.
Tais experiências em minha trajetória não foram as únicas, mas mobilizaram-me,
especialmente, impulsionando-me a pesquisar sobre o tema da inclusão escolar. A partir de
2002, as indagações e o empuxo para a pesquisa tornaram-se mais acirrados, diante da
prática cotidiana no Instituto Educacional Casa Escola - IECE
2
.
Uma das pioneiras na área da inclusão na cidade de Natal-RN
3
, esta instituição vem
sendo apontada nesta cidade como referência na prática da inclusão escolar, pela
experiência adquirida mediante a evolução de seu trabalho.
Há mais de vinte anos trilhando as veredas da inclusão, atualmente possui em seu
quadro discente 295 alunos, dos quais 33 possuem algum tipo de deficiência, sejam elas
deficiências físicas, visuais, auditivas, mentais, bem como aqueles casos diagnosticados
1
A Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor a que me refiro é uma instituição do Governo do Estado de
São Paulo, à qual compete o abrigo e cuidados de crianças em situação de risco.
2
A partir de agora, a instituição passará a ser denominada, também, como Casa Escola.
3
Werneck (2000) situa o estado do RN como um dos mais avançados, em relação à realidade da educação
inclusiva no Brasil.
como DGD (Distúrbios Globais do Desenvolvimento)
4
, cuja expressão na escola imprime
uma marca peculiar.
Contudo, devemos lembrar que além dos alunos que se revelam explicitamente
como inseridos no contexto de uma Educação Especial
5
, também podemos nos referir
àqueles que, embora não tendo um diagnóstico definido, ou uma deficiência constatada, por
apresentarem importantes dificuldades ou, ainda, surpreendente facilidade, merecem uma
atenção específica, enquadrando-se no rol dos alunos com necessidades educativas
especiais
6
, ainda que por um período transitório.
Havia, por exemplo, um certo aluno que traduzia seu desconforto em sintomas, tais
como sua falta de apetite, que se denotava por um quadro de “insônia e fastio”, além de
choro persistente, desde muito pequeno, nos momentos em que se separava dos pais, para
ficar sem os mesmos no ambiente escolar. Assim sendo, até que se acalmasse, muitas
atividades, em sala de aula, já haviam sido concluídas. Além disso, seus colegas o
chamavam para brincar, mas aí tampouco havia apetite para brincadeiras ou atividades que
desafiassem sua curiosidade, abrindo as portas para o conhecimento. A coordenação da
escola se manifestou no sentido de poder ter encontros com a família e com os profissionais
que acompanhavam esse aluno e, a partir de então, remanejamentos importantes foram
4
O Manual de Diagnósticos e Estatísticas de Distúrbios Mentais (DSM - III), da Associação Americana de
Psiquiatria, utiliza este termo nosográfico para classificar aquelas crianças anteriormente diagnosticadas como
psicóticas ou autistas.
5
De acordo com as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica (2001) e a
Resolução N° 01/2003-CEE/RN, a Educação Especial é tomada enquanto modalidade da Educação Básica “...
oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais.”
À escola regular compete oferecer serviço de apoio especializado, quando necessário, “para atender às
peculiaridades da educação especial. O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços
especializados, sempre que, em função das condições específicas, dos alunos, não for possível sua integração
nas classes comuns de ensino regular.” (2001, p. 12).
5
Documento censitário anualmente é solicitado pelo
Ministério da Educação com objetivo de pesquisar “os números da inclusão”.
6
Documento censitário anualmente é solicitado pelo Ministério da Educação com objetivo de pesquisar “os
números da inclusão”.
possíveis, acarretando avanços significativos no posicionamento do garoto. Mas durante um
período intenso, repleto de gritos e choros, o aluno precisou ser acolhido diferentemente
dos outros, por apresentar uma necessidade específica; pois se revelava, naquele momento,
importante estado depressivo que impunha à instituição uma reorganização.
Também existem casos de certos alunos que, diante da apresentação de um material
abstrato, reagem de forma disruptiva, pois não possuem o instrumental simbólico que
permita tal operação. Lembro-me, certa vez, de uma garota que reagia com descontrole,
batendo sua cabeça na parede, levando sua mão à boca e pegando ansiosamente em seus
órgãos genitais, caso lhe fosse permitido entrar em contato com pinturas pós-modernas.
Ainda que a família não colocasse com clareza que se tratava de uma aluna com
comprometimentos importantes, visto que os mesmos pareciam desconhecer a severidade
do caso, foi ficando patente que uma adaptação curricular seria necessária, pois assim como
ela se desestruturava perante as abstrações artísticas, isso também se dava mediante as
solicitações de abstração matemática, por exemplo. Nesse caso, além de encaminhamento
para tratamento, o que em alguns casos se faz absolutamente necessário, a escola teve que
repensar seu planejamento para esta aluna em específico, trabalhando unicamente com
materiais concretos, como aqueles que possibilitariam algum avanço na matemática, posto
que, naquele momento ao menos, o encontro com o símbolo não lhe era possível,
provocando imediatamente uma reação de angústia.
Houve também um garotinho que não suportava participar nas apresentações para os
adultos, e a cada vez que um evento como este se pronunciava, ficava patente que para essa
criança se tratava de uma situação muito incômoda. Quando então chegava a hora da
performance havia choro e ansiedade. Foram necessários alguns momentos embaraçosos
até que a professora tivesse a invenção de convidá-lo para “cuidar do som”; ele deveria
ficar lá nos bastidores colocando as músicas da peça e auxiliando os colegas nos momentos
da entrada em cena para o desempenho de uma peça teatral. Sua participação foi
contagiante, ainda que distante dos olhos da platéia. No próximo evento, cabe dizer, pôde
contribuir também com o planejamento do figurino.
São breves exemplos para ilustrar que, para além das deficiências ou quadro
diagnóstico pré-definidos, o enfoque da inclusão se debruça para a diferença e não para “o
deficiente”. Estamos falando, aqui, da diferença humana enquanto marca de uma
pluralidade que não nos deixa confundir uns com os outros, pois que somos únicos e
originais. Mas também, estamos a nos referir à diferença que a escola toma a partir da
marca de um estranhamento tal, que a situa como tendo um dado que demanda da escola
remanejamentos específicos, objetivando promover para este aluno avanços na apropriação
dos conhecimentos pertencentes à cultura.
Tais diferenças podem ser as mais diversas. Por exemplo, existem alunos cuja
deficiência física impõe uma adaptação de acesso ao prédio, à sua sala de aula, mas não se
faz necessária em relação ao conteúdo, metodologia ou didática, uma vez que o
planejamento e material do grupo-classe estão de acordo para ele, não necessitando
qualquer adaptação específica nesse sentido.
Por outro lado, alunos estrangeiros, por exemplo, que chegam à escola sem falar
sequer uma palavra de nosso idioma, não possuem uma deficiência estabelecida. No
entanto, possuem, ainda que momentaneamente, um déficit quanto à língua portuguesa,
necessitando de adaptações que possam facilitar sua aprendizagem e sua socialização com
os demais. Nesse caso, as adaptações situar-se-iam numa maior flexibilização do tempo, no
material utilizado, numa mediação mais facilitadora, entre tantas outras possibilidades.
Cada caso marcando uma demanda específica de adaptações.
Assim, pela história de acolhimento à diferença, a Casa Escola tem sido reconhecida
como referencial nessa área, sendo constantemente convocada pelas famílias de alunos com
algum diferencial específico (sejam elas diferenças de atitude, ou do rol das deficiências, ou
diferenças de credo, cor, opção sexual, nacionalidade etc.). Além disso, vem sendo indicada
por instituições afins como uma instituição de referência nessa temática, devido ao seu
trabalho nessa área.
Nesse sentido, buscando evitar a reprodução de discursos que traduzem práticas
desconexas ou irresponsáveis, ou ainda, mero compromisso com as aparências, um
constante debate sobre a prática inclusiva, e os impasses que esta nos confronta, faz-se
presente nessa instituição.
Dito isso, podemos frisar que não temos a pretensão de produzir verdades absolutas
ou acabadas sobre o tema, mas reconhecer que estamos lidando com postulados parciais,
erigidos no interior de uma instituição específica.
Pinçada no cenário brasileiro enquanto escola que tem em sua prática a marca de
ações inclusivas (não apenas da integração social dentro da escola
7
), permanece sendo
cenário fértil para que possamos refletir e construir indagações a respeito da educação
inclusiva, suas possibilidades e limites.
É fundamental colocar que, ao longo do trabalho que estamos acompanhando no
interior da Casa Escola, aos poucos foi ficando patente quão importante é o papel
desempenhado pelo discurso dos professores nas classes em que se propõe a inclusão. A
7
Entendemos por “integração social dentro da escola” aquelas práticas que visam apenas a possibilidade de
socialização dos alunos em detrimento das questões referentes ao aprendizado.
partir dessa percepção, foi-se, cada vez mais, ampliando os momentos de acompanhamento
desses profissionais. Neste percurso, nos deparamos com discursos que assinalavam a
prevalência de idealizações do que viria a ser o “bom aluno”, bem como o sentimento de
frustração oriundo do fracasso desse ideal.
Nesse contexto, não é raro que se angustiem. O que devo fazer perante criança tão
diferente, perguntam. Buscam respostas, querem “receitas”. Receitas impossíveis de se
constituir como bem sucedidas, diga-se de passagem, pois ninguém as possui de fato. É
nesse momento que o profissional psi é convocado, como se ali, com seu conhecimento
específico, estivesse para solucionar o que não encaixa; fazê-lo encaixar.
É preciso que autorizemos esse lugar legítimo de busca por ajuda. O professor crê
que alguém pode responder às suas dúvidas. Dar um “jeitinho” para que ocorra a tão
politicamente correta inclusão, bem como demanda que seja eliminado seu próprio
sofrimento. Nega a inexistência de uma solução pronta para a questão. Exige que ela exista,
é apenas ele que, impotente, não a percebe, não tem o discernimento de apreendê-la. E,
mais ainda, sucumbe em sua demanda pelo saber que não é seu, esvaziando sua
possibilidade de reflexão acerca do que impede o prosseguir das aprendizagens de seu
aluno, restando assim, o imperativo: diga-me o que fazer!
Numa outra direção podemos escutar professores que, diante de seu não saber sobre
o que fazer com uma dada peculiaridade, que aos seus olhos destoa do que julgava poder
estar em sala de aula, coloca a questão em termos de uma potência radical e absoluta: já fiz
tudo que poderia ser feito, não há mais nada a fazer!
Tais enunciados os deixam imobilizados, assujeitados a um dito que, pressupõem,
venha a responder questões de seu próprio trabalho profissional. Ou seja, delegam a
responsabilidade ao profissional psi, como se não lhes fosse possível autorizar-se a
sustentar dúvidas sobre seu aluno. Ou melhor, como se a dúvida, em vez da potência
criativa, fosse, na verdade, algo da ordem de uma incompetência.
Afinal, o que estaria em jogo diante de discursos tão paradoxais? De um lado, o
educador que nada pode, demandando a resposta de um especialista que, supostamente,
tudo sabe a respeito daquilo que lhe aflige. De outro, aquele educador que nega qualquer
questionamento ao seu trabalho, colocando-se numa posição de onipotência.
Quando o saber efetivo do educador é cristalizado nesses interrogantes, ou em
afirmações dessa ordem, impedindo seu ato, paralisando-o, como se faz possível ensinar?
Como se faz possível aprender? E mais: por que alguns permanecem nessa posição estéril e
outros encontram saídas inéditas, inspiradas? Guardemos, por hora, essas perguntas, ainda
que sejam elas que estejam, na origem, direcionando esse trabalho.
Primeiramente, é importante esclarecer que, para nós, a inclusão escolar é mais que
receber tais pessoas numa escola; é preciso torná-las “alunas”. Não se trata de estar na
escola para lá passar o tempo, mas reconhecer que todo aluno precisa ser capturado num
registro que se refere à sua aprendizagem.
A promessa que compete à escola e, conseqüentemente, ao professor não diz
respeito a garantias de que certo aluno possa vir a aprender, mas à visada numa
aprendizagem possível. Quando o professor se desautoriza do processo educativo de
qualquer pessoa, desacreditando de um aprendizado, esta não pode ser tomada enquanto
aluna, sendo excluída (ainda que dentro da escola) de uma oferta da transmissão dos
conhecimentos pertencentes à cultura.
A experiência realizada ao longo dos últimos anos na Casa Escola nos sinaliza que a
possibilidade dessa visada e a sua efetiva sustentação estão intimamente ligadas à
constituição subjetiva do professor. Em outras palavras, o modo como o aprender de alunos
tão diferentes do idealizado pode ser suportado no cotidiano, permitindo a aposta (ou não)
de uma aprendizagem, constitui, dentro da escola, um lugar de aluno. É isso que permite
situar uma pessoa na ordem discursiva da instituição e localizá-la enquanto tal. O professor,
em sua demanda, antecipa as realizações que irão advir de seu aluno, e lhe sinaliza o
caminho, baseado em suas suposições.
Como é, então, que se constitui essa visada, que abre ou fecha possibilidades para a
inclusão escolar? Eis a questão que se delineia.
No que tange ao aspecto mais conceitual, podemos colocar que esse trabalho se dedica a
indagar como se constitui, no professor, uma visada capaz de franquear, ou não, a oferta
de um lugar de aluno que venha a constituí-lo como tal, permitindo-lhe avançar
enquanto aprendente.
Nessa direção, iremos desenvolver, inicialmente, um capítulo acerca do trabalho no
Instituto Educacional Casa Escola, para melhor esclarecer o contexto onde nasce essa
pesquisa, bem como discutir alguns elementos do Projeto Político-Pedagógico da
instituição.
No segundo capítulo iremos acompanhar um fragmento clínico paradigmático, que
evoca questões relevantes para esse trabalho, presentificando movimentos exemplares dos
discursos de muitos educadores. Em seguida, apresentaremos a metodologia teórico-clínica
como aquela que viabilizou a pesquisa, através da escuta do interditado, tomando como
referência a teoria psicanalítica.
No terceiro capítulo buscaremos focalizar a temática da Educação Especial,
contextuando-a historicamente perante o cenário brasileiro.
Mais adiante, num quarto capítulo, estaremos nos dedicando a trabalhar,
conceitualmente, o processo de constituição subjetiva, no intuito de nos instrumentalizar
para, no capítulo seguinte, sob o mote de considerações finais, analisar como se constitui no
professor uma visada capaz de favorecer ou atravancar a inclusão escolar de alunos com
necessidades educativas especiais.
Portanto, no quinto e último capítulo, procuraremos retomar as indagações que
mobilizaram a produção da pesquisa, buscando demonstrar como foi possível iluminar, a
partir dos referenciais psicanalíticos, os impasses subjetivos da prática docente perante seus
alunos com necessidades educativas especiais.
1. Instituto Educacional Casa Escola - IECE
1.1. O espaço físico
O Instituto Educacional Casa Escola – IECE, está situado à Rua João Alves Flor, 3711
– Parque das Colinas – Candelária – Natal/RN, em uma casa alugada, reformada para os
fins escolares.
São várias edificações separadas; uma primeira, logo na entrada, com dois andares,
possui, no térreo, a sala da diretoria e quatro salas de aula (todas com banheiros). No andar
superior, situam-se três salas de aula (com banheiros), a biblioteca e a sala dos professores
da Educação Infantil e um banheiro destinado aos adultos da escola.
Uma outra edificação possui, no térreo, a cozinha e a cantina da escola, um pátio
cimentado coberto, onde acontecem apresentações dos alunos em momentos
comemorativos, como o “Cantando Juntos”
8
; nesse espaço existem, ainda, um quarto de
descanso para os funcionários, dois depósitos de materiais e quatro banheiros (dois para
alunos e dois para funcionários). No primeiro andar, estão duas salas de aula, a sala dos
professores do Ensino Fundamental e o laboratório de informática (com sete
computadores). No segundo andar, estão mais três salas de aula.
Todas as salas de aula possuem ventiladores e estão instrumentalizadas com materiais
adequados para atender às necessidades específicas do grupo.
8
Momento semanal, no qual se abre uma grande roda para cantar, ou se trabalha com a organização do coral
da escola.
A sala de aula de Artes fica num espaço cimentado, coberto por telhas. Esse espaço
também é utilizado para as oficinas extracurriculares de dança, karatê e violão. Ao lado,
encontra-se a sala de aula dos adolescentes da oitava série.
Dois parques com brinquedos encontram-se dentro da escola. Um deles possui caixa
de areia que, costumeiramente, é utilizado pelos alunos da Educação Infantil. Existe
também uma piscina semi-olímpica, utilizada nas aulas de Educação Física e na oficina
extracurricular de natação, bem como uma piscina rasa para os grupos iniciais.
Em outra construção, está instalada uma pequena cozinha experimental para as
aulas de culinária. Ao lado, está a área de serviço, com a lavanderia. Também fazem parte
da estrutura física, um campo de futebol gramado e uma quadra de esportes cimentada.
Além disso, existe o espaço para o plantio do Projeto Viveiro, onde são
desenvolvidas atividades de cultivo da terra, horta e o cuidado dos jabutis, cágados, coelhos
e aves. Ao lado, ficam o minhocário e os depósitos do projeto da coleta de lixo seletiva.
1.2. Quadro funcional
A referida instituição teve sua origem em 1983, quando era denominada CASA -
Centro de Artes Socialização e Aprendizagem.
Em 1990, sua diretoria muda e a instituição adquire um novo nome: Casa Escola.
Em 1994, passa a ser reconhecida pela Secretaria de Educação do Estado, através do
processo de n.159/94.
Através de uma solicitação informal dos alunos maiores da escola, que julgavam o
nome muito infantil, a instituição concebe um novo nome fantasia com o qual é, também,
designada: IECE - Instituto Educacional Casa Escola.
Desde então, avaliando o crescente interesse dos pais e dos alunos em darem
continuidade aos seus estudos nessa escola, em 1999, deu-se a expansão dos níveis de
ensino para a 5ª série, com o objetivo de alcançar, paulatinamente, a 8ª série.
Atualmente, a referida escola trabalha em sistema de seriação; no turno da manhã,
funcionam grupos desde as turmas iniciais da Educação Infantil até a última turma do
Ensino Fundamental, a 8ª série; à tarde, as turmas se restringem até a 3ª série.
Em ambos os turnos, existe apenas uma sala para cada turma, respeitando o limite
numérico específico de alunos, estabelecido para cada uma delas.
No ano de 2002, estavam matriculados 256 alunos, dentre os quais 20 (7,8%)
apresentavam necessidades educativas especiais; em 2003, podemos perceber um
acréscimo na matrícula de alunos. Dos 275 alunos matriculados, 31 apresentavam
necessidades educativas especiais (11,27 %). Em 2004, o número de alunos continuou a
crescer, havendo, conseqüentemente, um novo acréscimo na matrícula. A escola recebera
278 alunos, dos quais 24 eram considerados, naquele momento, como alunos com
necessidades educativas especiais. Em 2005, verificamos que de um total das 295
matrículas feitas, 33 alunos apresentam necessidades educativas especiais.
Acompanhem as proporções no quadro 1:
ANO TOTAL DE ALUNOS TOTAL DE ALUNOS COM NEE
9
(%)
2002 256 20 7,8 %
2003 275 30 11,27 %
2004 278 24 8,63 %
2005 295 33 11,19 %
Q.1- Quantitativo de alunos matriculados, com destaque para as matrículas dos alunos com
necessidades educativas especiais.
Fonte: Secretaria Escolar do Instituto Educacional Casa Escola.
Em relação ao quadro funcional da escola, podemos dizer que está organizado em
torno de três modalidades que incluem: o pessoal técnico-administrativo, os professores e
os funcionários de apoio. Vejamos sua distribuição no quadro 2:
CARGO/FUNÇÃO 2003 2004 2005
Direção 1 1 1
Vice-direção 1 1 1
Coordenação Pedagógica 4 4 5
Orientação educacional 1 1 1
Secretárias 1 3 3
Psicóloga 1 1 1
Nutricionista 1 1 1
Professores 26 39 40
Funcionários de apoio 13 15 16
TOTAL 49 66 69
Q.2 – Quadro Funcional do IECE/ 2003-2005
Fonte: Secretaria Escolar do Instituto Educacional Casa Escola.
9
Necessidades educativas especiais.
Como podemos perceber, tanto a quantidade de alunos aumentou, como também
houve um considerável aumento do quadro funcional, especialmente no que se refere à
contratação de professores. Por outro lado, percebemos que houve flutuações no que se
refere aos números dos alunos com necessidades educativas especiais. Cabe colocar que
essas flutuações não se devem apenas à entrada ou saída de alunos com necessidades
educativas especiais da escola, pois também aqueles que, por algum motivo, fazem parte
desse quadro em um determinado ano, não necessariamente estarão ali no ano seguinte,
posto que consideramos que mudanças podem ocorrer de um ano para o outro, dentro da
própria escola. Assim, se um determinado aluno apresenta necessidades educativas
especiais em um dado momento de sua vida, em um contexto especifico, no ano seguinte,
essas podem já não mais estar instaladas. Além disso, em contrapartida, determinado aluno
que não apresentava necessidades educativas especiais poderá, em algum período de sua
vida, apresentá-las.
Existem aqueles, contudo, que pela especificidade de suas necessidades educativas,
permanecerão durante toda a sua escolarização necessitando de adaptações curriculares.
Quanto à equipe técnico-administrativa e docente, podemos ressaltar que todos têm
nível superior completo ou em vias de finalização, nos cursos de Pedagogia, Letras,
Psicologia, Matemática, História, Geografia, Biologia, Educação Física e Artes. Alguns já
têm o título de Mestre e outros estão trabalhando para obtê-lo. Uma das coordenadoras
pedagógicas é doutoranda em Educação. Cabe colocar também, que alguns dos
funcionários de apoio estão cursando o magistério.
1.3. Uma noção sobre o currículo
O currículo da escola é válido para todos os alunos, obedecendo à grade curricular
designada pela Secretaria Estadual de Educação.
As atividades destinadas aos alunos devem ter um caráter de desafio e de interação
com o meio; há uma proposta de efetivação do aprendizado através de materiais concretos,
com a utilização de jogos que favoreçam a construção dos conceitos, através da
problematização. Além disso, faz parte do currículo um trabalho que priorize atividades
que prezem pela criação de condições de cooperação e respeito mútuos, para que os alunos
possam caminhar em sua socialização, no sentido de adquirir autonomia intelectual e moral.
Na Educação Infantil, além dos jogos, existe na rotina semanal o momento da
história, caixa de areia, hora do faz-de-conta, culinária, momento da piscina, musicalização,
Projeto “Cantando Juntos” (através do qual é desenvolvida a cantoria semanal com músicas
de roda, tradicionais e folclóricas), desenhos, escrita de textos, Informática (para a turma da
alfabetização) e Projeto “Viveiro” (através do qual são desenvolvidas atividades agrícolas e
cuidados com animais domésticos).
O Ensino Fundamental contempla as disciplinas comuns de Português, Matemática,
Geografia, História e Ciências, bem como aquelas diversificadas, tais como, Artes Plásticas
e Artes Cênicas, musicalização, Projeto “Cantando Juntos” (através do qual é desenvolvido,
além da cantoria semanal das músicas atuais da MPB, o coral da escola), Inglês,
Informática e Projeto “Viveiro” (através do qual, a exemplo do que se faz na Educação
Infantil, são desenvolvidas atividades agrícolas e cuidados com animais domésticos).
Por vezes, entretanto, são feitas alterações no currículo ou no processo educacional,
objetivando que este se adapte às características especiais dos alunos, quando assim se faz
necessário; por exemplo, em relação ao material didático ou instrumentos facilitadores
(sistema Dos Vox de computador, máquina Braille, gravador e materiais em alto relevo,
para aluno cego, parapódio para aluna com paralisia cerebral, prancha de comunicação para
alunos afásicos etc), bem como o planejamento de atividades específicas de acordo com as
possibilidades e o nível de aprendizagem dos alunos. Atualmente, a equipe de coordenação
tem se questionado acerca da flexibilização de tempo para alguns alunos que apresentam
desarmonia em sua estruturação psíquica e estão no Ensino Fundamental.
1.4. Descrevendo o processo para a inclusão escolar na instituição
Podemos iniciar lembrando que a Casa Escola, ao longo dos últimos vinte anos,
vem passando por transformações no processo de implantação de um pensar e de uma
atitude inclusiva que refletem, por um lado, uma posição político-ideológica, “fruto de um
processo de democratização vivido pela sociedade brasileira, que tem por objetivo tornar
possível a todos o acesso à educação escolar” (Bastos, 2003, p. 08), e, por outro, uma
posição, também político-ideológica inerente a esta instituição, referenciada pela sua
prática permanentemente reflexiva, um incessante trabalho de pesquisa que não finda em
qualquer produto. Em outras palavras, uma práxis que, como afirma Imbert (1987), não
cessa de se construir, pois que sua finalidade é seu próprio exercício. Nas palavras do autor,
“a práxis é um ato (energia). Inteiramente inserido no agente, o ato não se esgota em uma
produção
10
” (p. 18).
Assim, a prática somada à possibilidade de reflexão crítica de vários setores da Casa
Escola, numa intensa atividade de pesquisa que busca subsídios em muitos autores
11
, acaba
por produzir conhecimento acerca da inclusão. Conhecimento este que continua a ser
construído.
Desde a sua fundação, em setembro de 1983, a Casa Escola vem realizando um
trabalho de escolarização de crianças com Síndrome de Down, nas salas de ensino regular
da Educação Infantil. Tal empreitada, entretanto, não foi fruto de qualquer imposição legal
ou política, mas, antes de qualquer coisa, devido a uma implicação ética que consistia em
poder acolher a diversidade humana no cerne de uma instituição educativa.
O que num primeiro momento se delineava como uma abertura para o convívio
social de crianças que vinham sendo colocadas à margem dessa possibilidade, num segundo
momento passou a se configurar como insuficiente, gerando novos posicionamentos. Já não
bastava mais receber crianças com deficiência, possibilitando-lhes acesso ao social. Era
necessária a construção de uma articulação com a questão da aprendizagem, já que não se
tratava de um clube ou um shopping, mas de uma instituição escolar.
Mas, afinal, o que seria uma instituição escolar? Na medida em que esse trabalho
toma como ponto de partida a prática da educação inclusiva em uma escola regular de
ensino, pensamos ser importante situar o que entendemos por escola. Ou seja, qual seria o
10
Tradução da autora.
11
Como Pierre Vayer, Maud Mannoni, Françoise Dolto, Alfredo Jerusalinsky, Mª Cristina Kupfer, Marcus
Mazzotta, Alicia Fernandez, Tereza Mantoan, Rosita Édler e outros.
contorno, o sentido que a fundamenta. Fomos buscar, inicialmente, a etimologia desta
palavra, quando nos deparamos com uma definição que ilumina a tarefa da instituição.
No dicionário etimológico da língua portuguesa, Machado (1952) situa-a, quando
tomada a partir do grego, como significando uma ocupação estudiosa, ocupação sábia de
quem se encontra em descanso. Ainda a aponta como lugar de estudo, associação de
cultura, produto do estudo. Quando resgatada do latim, o verbete schola também aponta
para o “ócio consagrado ao estudo, lição, curso, conferência, local onde se ensina” (p. 872).
Assim sendo, desde seus primórdios, a escola é tomada como propositora de um
tempo de parada para que os conhecimentos produzidos pelo homem possam ser
reconhecidos, estudados e ensinados, deixando transparecer que tal questionamento
também diz respeito à tarefa a que se propõe o professor, ou seja, “transmitir aos alunos
conhecimentos acerca do que o homem produziu ao longo da história da humanidade”
(Medeiros, 2001, p. 02). Afinal, a cultura humana, nossa civilização, para ter sua
continuidade deve ser repassada pelos ancestrais aos que nela nascem, ainda estrangeiros,
por não terem ainda dela se apropriado. É o que nos lembra Hannah Arendt (1992) quando
aponta que precisamos de guias para aprender sobre este mundo pré-estabelecido.
Transmitir o conhecimento já produzido para a civilização poder avançar.
Após esse largo parêntese, podemos concluir, portanto, que não há escola que não
presentifique, em seu modo de existir, seu lugar de transmissão de conhecimento. Logo, o
foco da escola para seus alunos é a aprendizagem.
Dito isso, podemos afirmar que quando um aluno vai à escola, não vai a passeio; ali
deverá ser capturado num registro específico. O professor deve visar educá-lo.
Assim sendo, com o passar dos anos foi-se constituindo na Casa Escola, a urgência
em dar respostas às demandas de aprendizagem para estes os, cujas necessidades
específicas empurravam a instituição para uma prática diferente.
Logo, durante 1988 e 1989, a Casa Escola, com o intuito de aprimorar esse serviço,
possibilita a entrada de psicólogos e pedagogos que, contratados pelos pais, poderiam
acompanhar tais alunos em suas atividades no ambiente escolar. Era o então chamado
“trabalho de apoio” que “visava contribuir para que as crianças participassem mais das
atividades, interagissem melhor com as outras crianças e adultos do ambiente, e
aprendessem melhor o conteúdo trabalhado” (IECE, 2003, p. 40).
A realização do trabalho acontecia na “sala de apoio” destinada ao atendimento das
crianças com necessidades educativas especiais, quando se julgava que o conteúdo a ser
ministrado em sala de aula pelo professor estava além das possibilidades de conhecimento
dessas crianças e objetivava “estudar os conhecimentos prévios àquilo que estava sendo
estudado na sala de aula” (op. cit., p. 40). Nesses momentos, o aluno com necessidades
educativas especiais era retirado de sua sala de aula, sendo direcionado à sala de apoio, para
que trabalhasse, junto ao psicólogo ou pedagogo, conteúdos considerados como pré-
requisitos àqueles que estavam sendo ministrados em sala de aula. Em seguida, o aluno dito
“especial” retornava para a sala de aula. Dessa forma, pensava-se que poderiam ter o que
trocar com os demais, pois estariam mais próximos ao que foi ministrado pelo professor
titular, “o que nem sempre ocorria, pelo próprio distanciamento da criança e do profissional
da sala de aula regular” (IECE, 2003, p. 41).
Neste período, outras crianças, com diferentes tipos de necessidades educativas
especiais, foram sendo matriculadas; a Casa Escola já começava a ser procurada pelas
famílias como referência na área da integração escolar
12
.
A partir de 1990, a Casa Escola passa a contratar os profissionais de apoio, com
vínculos empregatícios e encargos decorrentes, na intenção de ter um maior
acompanhamento sobre o trabalho por eles desenvolvidos.
Essas transformações passaram a ser alvo de reflexão. Alguns fatores foram
sublinhados nesse processo e merecem ser resgatados, pois foram eles que contribuíram
para a extinção do trabalho na sala de apoio.
Em primeiro lugar, o professor da sala regular foi, paulatinamente, deixando de
assumir a função de educador frente às “crianças especiais”. O profissional de apoio passou
a responder por elas, carregando consigo o estigma do preconceito de um “professor
especial”; além do mais, essa estratégia, que a princípio visava otimizar o processo
educativo dos alunos com necessidades educativas especiais, acabava por desvalorizar o
professor titular da sala, pois não lhe era concebida a tarefa da educação, quando o enfoque
eram as dificuldades de tais alunos.
Além disso, a decisão de arcar com o preço dos encargos trabalhistas dos
profissionais de apoio acarretou problemas na saúde financeira da instituição, pois o custo
desse trabalho impossibilitava sua manutenção pela escola. A próxima decisão, nesse
sentido, foi cobrar mensalidades maiores para aquelas famílias que iriam se beneficiar do
serviço. O encarecimento da mensalidade, produzindo a idéia de repasse do custo do
12
Iremos nos deter na especificidade dessa terminologia em um capítulo posterior; por hora podemos
compreender a integração escolar como a inserção na escola da pessoa deficiente preparada para o convívio
social.
atendimento especializado para as famílias, gerou a idéia de preconceito, bem como a
expectativa de que essa mensalidade deveria assegurar atendimentos terapêutico-corretivos.
Tais fatores, ou seja, o encarecimento da mensalidade e a desimplicação crescente
do professor titular diante de seus alunos com necessidades educativas especiais, foram
considerados como obstáculos ao avanço do processo para a implantação da inclusão.
Logo, em 1994, após algumas discussões, o professor titular passou a assumir a
responsabilidade por todos os momentos em sala, contando, em algumas ocasiões, com o
auxílio de outro profissional. A mensalidade retornou a ter o mesmo valor que as demais e
o trabalho de apoio foi extinto sendo, aos poucos, superado por outro paradigma.
Porém, tal paradigma ainda estava por ser construído. Num primeiro momento foi
instituído que seriam colocados dois alunos deficientes por sala; além disso, as salas
deveriam ser compostas por professor e auxiliar, pois o professor não conseguiria
desenvolver seu trabalho sem ajuda. Rapidamente foi percebido que nenhum dos dois
critérios respondia à realidade da prática inclusiva, posto que não se tratava de uma questão
numérica, mas relacional. Também devemos lembrar que nem toda sala de aula que
continha algum aluno com deficiência necessitava de profissional extra para auxiliar o
professor. Tratava-se, portanto, de critérios arbitrários, mecanismos de decisão muito
superficiais, que traziam prejuízos para todos. Percebia-se nitidamente que os critérios de
composição de uma turma não deveriam se ater a questões numéricas, baseando-se na
concepção de que um grupo não se forma a partir da somatória das pessoas.
A prática, nesses últimos dez anos de experiência, tem possibilitado à equipe da
Casa Escola se debruçar em estudos e discussões que acabaram por produzir critérios mais
reflexivos, na busca de uma práxis inclusiva, ressaltando que incluir não se restringe à
aceitação, pela escola de todos os educandos com necessidades especiais na sala regular
mas, como já foi dito anteriormente, resulta de sua disponibilidade e preparação para
receber e acolher a diversidade das crianças, no que se refere às possibilidades que vão
além de abrir suas portas e convidá-las a entrar, pois apenas isso resultaria ineficiente para
que aprendessem; a possibilidade de se transformar, mediante as condições que cada aluno
irá nos apontar conforme sua singularidade é o que funcionará como motor para que se
fomente um ambiente propício para a educação na diversidade.
Diante dessas afirmações, o Projeto Político-Pedagógico da Casa Escola assinala
que a inclusão escolar, para que aconteça de fato, deve considerar alguns aspectos como
fundamentais nessa empreitada. São eles:
x As características relacionais do grupo, formado por alunos e por professor (es) e as
características individuais de cada sujeito da turma, independentemente de ter
necessidades educativas especiais ou não, objetivando “a possibilidade de transformar o
ambiente de sala num local que promova a aprendizagem, com trocas e respeito entre os
alunos” (IECE, 2003, p. 43).
x As características formais do grupo: considerando aqui quantidade total de alunos
na turma, pois um grande número destes poderia implicar em prejuízos para o trabalho
educativo, sobretudo quando estamos pensando na modalidade da Educação Especial.
Também seria necessário que se pudesse, mais especificamente, avaliar a quantidade de
alunos com necessidades educativas especiais na turma, considerando que em muitos
desses casos se faz necessário construir planejamentos específicos, o que pode acarretar
uma sobrecarga para o docente, quando tais fatores não são reconhecidos ou, ainda,
uma dissimulação de uma prática inclusiva, que apenas permaneceria reduzida a um
discurso politicamente correto.
x A previsão de possibilidade para a flexibilização do tempo de permanência na
escola ou no grupo/série, possibilitando aos alunos que apresentem necessidades
educativas especiais um tempo maior numa determinada série, sem que isso signifique
fracasso, mas um dispositivo que favoreça um tempo singular de elaboração das
aprendizagens básicas. Por outro lado, também é necessário que se possa reconhecer a
idade cronológica e, não somente a cognitiva do aluno que apresenta necessidades
educativas especiais, considerando que as aprendizagens e a socialização são
favorecidas em um grupo cuja faixa etária é aproximada. Com isso, podemos dizer, por
exemplo, que um adolescente, ainda que não fosse alfabetizado e nem conseguisse
realizar operações matemáticas básicas, não estaria bem situado numa classe
alfabetizadora, cuja faixa etária padrão gira em torno dos seis anos, posto que
estaríamos a infantilizar o aluno, desconsiderando sua maturidade sexual, social e física.
Outro exemplo contundente seria referente àqueles alunos que apresentam altas
habilidades ou superdotação. Mesmo que estes possam concluir em menor tempo a
etapa escolar, é importante que possamos reconhecer que avançar demasiadamente
rápido lhes impediria momentos importantes de socialização. Assim sendo, uma criança
de dois anos que já lê e escreve sem erros ortográficos, cuja lógica matemática é
operatória, ainda carece de experiências lúdicas que permitam o desenvolvimento de
suas relações subjetivas de forma salutar. Portanto, mesmo que cognitivamente possa
acompanhar conteúdos de uma 2ª série, subjetivamente poderia sofrer prejuízos nessa
turma. Por outro lado, não necessariamente deveria permanecer no grupo inicial. As
flexibilizações de tempo aliadas às considerações da idade cronológica implicam,
portanto, uma avaliação absolutamente singular de cada caso.
x As adaptações curriculares que se situam enquanto adequações no currículo ou
nas estratégias que melhor viabilizem a promoção das diversas aprendizagens. Nesse
momento as adaptações curriculares são apresentadas como “o compromisso ético de
buscar novos caminhos que permitam o desenrolar de um trabalho pedagógico com toda
turma, que viabilize o avanço individual de cada sujeito” (IECE, 2003, p. 43). Trata-se,
portanto, de poder pensar em estratégias que possam desafiar cada aluno, como um
empuxo para que possa avançar em seu processo de aprender.
x O reconhecimento da limitação da própria escola que deve ter autonomia para
avaliar se pode aceitar ou não um determinado aluno com necessidades educativas
especiais, pois isso depende de uma análise minuciosa do contexto pontual em que se
encontra a escola diante de uma solicitação que deve, também, ser examinada em sua
especificidade; “Uma escola de tradição inclusiva que possui uma equipe técnica
experiente deve ser considerada apta e autônoma para tal avaliação” (IECE, 2003, p.
43).
x Permanência da normalidade
13
como parâmetro institucional evitando que sua
especificidade de escola regular seja transformada em especializada, o que
descaracterizaria o projeto da inclusão.
x Participação ativa da família numa parceria que envolve críticas, sugestões e
solicitações de ambos os lados.
x Cooperação entre os profissionais especializados extra-escola e a equipe
pedagógica da escola quando a questão específica de um determinado aluno demandar
tratamentos terapêuticos ou analíticos, visando à interdisciplinaridade.
x A formação do profissional da turma que deve apropriar-se, além dos
conhecimentos necessários a sua atuação, de um “saber fazer”, ou seja, uma especial
x Equipe de direção e coordenação ocupadas com a manutenção de espaços de
escuta e fala, na busca de soluções e operacionalização de decisões.
Esses dois últimos aspectos - que focalizam a formação do professor e a
manutenção de espaços de escuta e fala, considerados na Casa Escola como fundamentos
de base da sua proposta inclusiva, são determinantes para o desenrolar desta pesquisa.
Neles nos deteremos mais profundamente, resgatando num primeiro momento, o grifo que
se coloca quando se aborda a formação do professor e, num segundo momento, a
manutenção de espaços para escutá-los.
1.4.1. A formação do professor
Na experiência da Casa Escola, nesses vinte anos de trajetória, fica patente a
importância de uma discussão que focalize a formação do professor.
Nessa instituição, o construtivismo tem sido tomado como respaldo para um
aprimoramento da prática cotidiana. É importante assinalar, como colocam Solé e Coll
(2003) o construtivismo não é, estritamente falando, uma teoria, mas sim um referencial
explicativo que visa auxiliar na identificação de problemas e articular possíveis soluções
sem, entretanto, produzir “um livro de receitas”, considerando, por outro lado, “uma
dimensão mais dialética e interativa” (p. 10). Portanto, o estudo dos princípios
construtivistas na instituição, é considerado como guia, mas de forma nenhuma é, em si
mesmo, o único determinante para uma ação. Dessa forma, “(...) os professores, como
qualquer profissional cujo desempenho deve contar com a reflexão sobre o que faz e por
que se faz, precisam recorrer a determinados referenciais que guiem, fundamentem e
justifiquem sua atuação” (op. cit., p. 11).
Nesse sentido, na formação continuada do corpo docente, o professor conta com
orientação pedagógica, em reunião individualizada junto a um coordenador pedagógico,
que propõe semanalmente momentos de reflexão sobre a prática, bem como acompanha e
discute o planejamento do grupo classe e, quando necessário, o planejamento específico
para aquele(s) aluno(s) que apresentem qualquer tipo de necessidades educativas especiais.
Também existe um investimento no intuito de fomentar essa formação através de
cursos de qualificação, palestras de especialistas, estudos sistemáticos em pequenos grupos,
ou ainda em reunião geral com toda a equipe, momentos estes considerados preciosos pela
equipe de coordenação e que continuam tendo sua função nessa instituição.
No intuito de clarear um pouco mais sobre o que há de essencial nos referenciais
explicativos da concepção construtivista, cremos ser relevante deixar assinalada a visão
postulada por Solé e Coll (2003) que se assume no trabalho da Casa Escola. Nas palavras
dos autores estes referenciais:
Devem permitir responder, ainda que em nível geral, às perguntas que, abertamente
ou encobertas por outras mais concretas, todos os professores se fazem: Que significa
aprender? O que ocorre quando um aluno aprende e quando não aprende? Como se
pode ajudá-lo? Devem partir de uma consideração sobre a natureza social e
socializadora do ensino, consideração que não pode ficar simplesmente como uma
declaração de princípios. A nosso ver (...) isso leva a caracterizar os conteúdos do
ensino em sua relação com a cultura, e também a estruturar a construção pessoal do
aluno no seio da interação social de caráter educativo. Devem incluir em seus
princípios o conceito de diversidade, inerente à tarefa de ensinar, e que , como vimos,
define aquilo que se entende como ensino de qualidade (p. 24).
Assim, a Casa Escola vem utilizando-se da concepção construtivista da
aprendizagem e do ensino enquanto referencial que permite aos educadores atuar, analisar e
refletir sobre tal atuação, considerando também que, cada professor, com sua bagagem
singular, irá apropriar-se de seu significado, atribuindo-lhe um sentido para, em seguida,
poder concretizar uma prática articulada com seus princípios; transforma-se conhecimento
conceitual, em uma prática. “Para a concepção construtivista, aprendemos quando somos
capazes de elaborar uma representação pessoal sobre um objeto da realidade ou conteúdo
que pretendemos aprender” (Solé & Coll, 2003, p. 19). Nesse sentido, o que aprendemos
modifica aquilo que tínhamos como aprendido anteriormente. Assim como interpretamos o
novo conhecimento de maneira sui generis, nos apropriamos do novo segundo nossas
possibilidades, com uma lente pessoal.
Mas, para além da concepção construtivista funcionar como referencial para o
professor diante de sua prática cotidiana, permitindo que possa analisar e fundamentar suas
decisões ao planejar como irá transmitir um determinado conhecimento, ele é também útil
quando pensamos na escola enquanto instituição que tem um plano compartilhado e
articulado que vislumbra a possibilidade de um trabalho em equipe, que deverá estar
sistematizado em seu projeto curricular. Logo, a concepção construtivista auxilia no plano
de uma articulação lógica, que justifica as tomadas de decisões, ou permite que as
questione, no plano institucional.
Também devemos considerar que a teoria construtivista nos permite prosseguir no
território da inclusão escolar, pois considera como uma de suas premissas básicas a
heterogeneidade de seus alunos, ou dito de outra maneira, reconhece que seus “pontos de
partida” não estão no mesmo lugar, possibilitando que possamos inserir como válidas e,
necessárias, as adaptações curriculares. E quando pensamos em adaptações na escola,
inúmeras vezes isso quer dizer que são as pessoas dessa escola que têm que se alterar. Não
podemos perder de vista que a escola é feita de pessoas. Assim, por exemplo, nada mais
óbvio que se esperar de um professor, sua capacitação no uso do código Braille, se este irá
se relacionar com um aluno cego em sua classe, ao passo que este investimento será
supérfluo, caso jamais o utilize, acabando por ser esquecido. É o caso da capacitação no
Braille para professores que não encontram em sua prática, alunos cegos.
Nessa mesma direção, o professor que se vê diante de um aluno surdo, deverá se
apropriar da língua brasileira de sinais (LIBRAS) e enquanto não o faz, visto que este é um
aprendizado que leva um tempo, cabe à escola buscar outras formas intermediárias de
comunicação como, por exemplo, um intérprete, ainda que por um tempo provisório.
Nesse percurso, a Casa Escola considera a possibilidade de procurar outras
instituições para interlocução, pois acredita que isso se faz necessário para que não se feche
nas próprias idéias. Assim, não se trata da responsabilidade do professor ou da escola, mas
de um compromisso de todos. Buscar saídas.
Além disso, cabe também ao professor questionar-se sobre como levar esse “novo”
conhecimento para todos os alunos da turma, pois, afinal, na sala de aula não se trata
apenas da relação do professor com seu aluno deficiente, mas da interação com o grupo.
Contudo, o que podemos dizer é que este conhecimento específico só pode ser
conquistado a cada vez, a cada caso, pois que, a cada ano novo, a configuração da turma se
renova e não se pode prever com qual diversidade o professor irá se deparar em sala de
aula.
Isso não que dizer de forma nenhuma que o professor não deva se capacitar; mas
que ser um especialista em alunos cegos, ou surdos ou psicóticos, não tem função em uma
escola inclusiva, pois afinal não adianta querer que um professor se capacite estudando
Braille se estará com um aluno com paralisia cerebral em sua sala de aula, ou se está craque
na LIBRAS, mas sua angústia refere-se àquele aluno que só grita e cospe, cujo diagnóstico
de psicose infantil precoce não lhe dá muitos subsídios. Assim, quando na Casa Escola fala-
se de formação continuada, fala-se também de avaliar quais as necessidades prementes,
quais os aprendizados técnicos fundamentais para aquele momento, para determinado
professor e para o grupo. Quais são as carências específicas de cada professor diante de um
grupo de alunos também específico.
Fica explícito que a questão pedagógica é de cunho fundamental, e que os
conhecimentos teóricos, técnicos, didáticos e metodológicos são enfocado cotidianamente
na instituição, como alicerce de sua prática e reflexão. Porém, ao levarmos em
consideração o fato de que o escopo técnico-pedagógico está bem alicerçado nessa
experiência, outras questões se colocam.
Estas questões dizem respeito ao campo do saber acerca da subjetividade que, na
Casa Escola, encontram lugar de circulação nos espaços de escuta.
1.4.2. Os espaços de escuta
Havíamos colocado anteriormente que dois aspectos da prática cotidiana na Casa
Escola deveriam ser abordados mais minuciosamente, visto que são fundamentos de base
da sua proposta inclusiva, além de serem considerados determinantes para o desenrolar
desta pesquisa. O primeiro, que se referia à formação do professor, foi focalizado mais
detalhadamente nas últimas páginas. O segundo dos aspectos que iremos enfocar aqui se
refere à manutenção dos espaços de escuta.
Tais espaços são oferecidos em nome de construir soluções para conflitos
emergentes, bem como a operacionalização das decisões tomadas no grupo. O que se escuta
é a fala no âmbito educativo, ou seja, a fala dos educadores (sejam estes professores,
coordenadores, diretores, funcionários), a fala dos pais dos alunos e a dos alunos.
Podemos afirmar, mediante o projeto de inclusão no qual se recebe crianças/
adolescentes com as mais diversas dificuldades, entre elas pessoas cujo psiquismo vem se
estruturando precariamente, com fraturas simbólicas significativas ou com distúrbios
psíquicos graves, que o professor tem convocado tal escuta com maior freqüência, devido
ao confronto com situações conflitivas.
Contudo, é importante frisar que falar das dificuldades, impasses, dúvidas, erros,
angústias etc, não são normalmente assuntos dos mais diletos. Existe, portanto, uma energia
que se convoca para tratar de assuntos como estes, quando se está disposto a tratar de
situações que provocam o mal-estar. Além disso, não é qualquer instituição que se permite
e se autoriza a falar daquilo que não está funcionando bem em seus diversos setores, pois
isso costuma causar, num primeiro momento, algum, senão muito, mal-estar.
Aos professores, diferentes momentos são possibilitados para que se posicionem:
momentos com seu coordenador pedagógico, momentos com seus pares, outros
professores, com as famílias de seus alunos e, também, momentos de encontro com o
psicanalista, seja no âmbito do grupo ou a sós. Trata-se de um acompanhamento
sistemático, com qualidade de escuta diferenciada para que o profissional de educação
possa abordar seus anseios, dúvidas, conquistas ou invenções.
É importante colocar que, diante da concepção de educação inclusiva que permeia o
trabalho da Casa Escola, tais momentos são privilegiados, pois se acredita que são
significativos para o trabalho, funcionando como uma resposta possível (que nem por isso
adquire valor de receita). Trata-se de uma resposta que opera no sentido de produzir
sentido, significados; responde na direção de deixar espaço aberto para a reflexão e para os
interrogantes. Nesse sentido, tais espaços contribuem para o projeto de inclusão escolar,
pois que estão ligados, justamente, à necessidade de se acolher a subjetividade como
elemento indissociável do processo educativo.
Na Casa Escola, podemos afirmar que a escuta psicanalítica
14
atravessa a instituição
e se verificam efeitos relativos a um interesse crescente em discutir o que se passa na sala
de aula e na escola, aumentando a circulação discursiva.
A partir dessa escuta, extraímos o fragmento clínico que será apresentado a seguir.
14
Foi precisamente a partir desse trabalho de escuta nessa instituição que, como veremos adiante, nasce a
questão desta pesquisa.
2. De um fragmento clínico à definição metodológica
Beth e a professora Laura
15
Certo dia, fui procurada pela professora Laura por sugestão de sua coordenadora
pedagógica. Era o começo do ano e Laura recebera em sua sala de aula uma menina cuja
interação com as outras crianças da turma estava comprometida. Não havia adquirido a
linguagem, ainda que falasse algumas palavras por ela mesma criadas. Nunca se nomeara.
Por vezes, buscava o balanço do parque, momento em que víamos, obtinha intenso prazer.
Outras, ela fazia um balanceio para frente e para trás com o próprio corpo sem necessitar do
balanço. Além disso, não brincava com os colegas, mesmo que estes brincassem com ela,
vestindo-a na hora do faz-de-conta e inventando uma história em que pudessem inseri-la,
ainda que não verificássemos qualquer tipo de interação recíproca. Frente a esta criança, a
professora indagava:
- O que é que eu tenho que fazer? Diga-me o que eu faço.
Ao pedido angustiado da professora por uma receita que lhe fornecesse um modelo
de conduta, respondi com uma brincadeira.
- Que tal um bolo! A receita está bem aqui, não há como errar.
Com um sorriso um pouco tímido, ela afirmou:
15
Em função do sigilo, os nomes são fictícios.
- Estou falando sério. É sobre Beth. O que eu devo fazer com ela em minha sala?
Eu nunca tive uma aluna assim antes e não sou especializada para isso. Esperava que você
pudesse me dizer o que fazer.
Devolvi a questão:
- O que você tem feito?
Então ela me contou de sua experiência de estranhamento:
- Beth não era como os outros, não correspondia como os outros. Às vezes, ficava
agitada, atrapalhava o andamento da turma. – dizia Laura.
A professora Laura surpreendia-se diante do fato de que Beth falava, mas criara
palavras particulares para dizer algumas coisas. Não brincava com seus colegas, ainda que
estivesse sempre ao lado deles. Havia um comprometimento na forma de se relacionar com
os outros que revelava uma estereotipia. A professora conseguia falar de seu mal-estar, mas
não se remetia ao que havia planejado nessas duas semanas iniciais.
Percebi o quanto estava sendo difícil para a professora deparar-se com seu não
saber; estava tão impactada com Beth que todo seu discurso girava em torno de seu
estranhamento. Foi ao final de nosso primeiro encontro sobre esse tema que ela se
autorizou a levantar uma questão que, suponho, já estivesse sendo formulada em seus
pensamentos:
- Eu poderia ter ficado assim, daquele jeito de Beth? – perguntou Laura.
Falamos um pouco sobre o percurso de constituição de um sujeito e os possíveis
entraves nesse processo.
Saber que a nossa subjetividade não está garantida, a priori, foi uma descoberta para
a professora.
Encontrar-se com os limites daquela criança, tão diferente das demais, trabalhar
com essa aluna apostando em sua aprendizagem era algo inteiramente novo.
- Então terei de aprender a falar com ela.
Acreditamos que estava ali o começo de um trabalho, o que foi sinalizado para a
professora Laura como um bom começo. Era preciso aprender com Beth, e não apenas
comigo ou com a coordenadora pedagógica, como ela supunha de antemão.
Algumas vezes procurou-me ansiosa, sem saber se o que estava propondo para a
turma e para Beth tinha sentido. Às vezes, perguntava a si própria se deveria continuar na
profissão docente; não tinha mais a certeza de outrora. Nesses momentos, eu lhe acordava
para o fato de que as certezas impedem a dúvida que move a curiosidade. Como era
possível ser uma educadora sem os desafios da dúvida? Eu lhe dizia:
- A certeza impede a descoberta das novidades. Quem sabe tudo, nada tem a
conquistar.
Ela afirmava que era importante para si, que seus alunos pudessem avançar e que
não sabia se estava contribuindo para que Beth fizesse isso.
Ela dizia:
- Eu sou professora. Eu tenho que ensinar. E se ela não aprender o que eu for
ensinar?
Perguntei-lhe o que havia sido planejado e o que seria ensinado. E a professora
Laura respondeu:
- Eu nem sei ainda, achei que vocês da coordenação me diriam. Mas sei que não
pode ser a mesma coisa dos outros, ou pelo menos não da mesma maneira.
Ao longo do ano, a professora Laura, confrontando-se com seu não-saber, começa a
costurar novos aprendizados. Reconhece que não há como adaptar Beth a esquemas de
ensino pré-definidos. Passa a ser fundamental, redimensionar o que ensinar e como fazê-lo.
É preciso adaptar os esquemas de ensino.
Às vezes, Beth surpreendia a professora que se questionava.
- Será que ela não quer mostrar o que sabe ou esqueceu?
E continuava:
- Tem horas, também, que ela não parece escutar, mas eis que, de repente, dá
sinais de que estava atenta e nos responde, quando menos esperamos. Isso me dá a
impressão de que podemos estar no caminho certo. O que me angustia é não saber, não ter
a certeza.
Algum tempo depois, a professora Laura se permite comentar sobre sua experiência
daquele ano:
- Admito que esse ano foi especialmente difícil para mim, mas aprendi mais do que
em muitos anos de profissão. Aprendi com Beth que não apenas ela, mas todos os meus
alunos aprendem cada qual à sua maneira em um tempo, mas aprendi outra coisa muito
importante pra mim. É que, em vez de ficar presa na maneira que eles aprendem, pude
parar para refletir sobre as mil maneiras de ensinar. Foi preciso enxergar Beth e não lhe
forçar, na marra, um conhecimento. É preciso seu tempo de conhecer, e isso vale para todo
mundo.
*
Tal fragmento tão singular, mas também paradigmático da relação do professor com
o aluno com necessidades educativas especiais, nos conduz a algumas indagações que
promoveram esse trabalho. Afinal, por que o não-saber da professora Laura a angustiava
tanto?
Por que, apesar de sua evidente preocupação com Beth, a professora Laura não se
referia ao trabalho com a mesma, ao planejamento e atividades realizadas com a criança,
mas tão somente ao seu mal-estar?
O que estará em jogo na relação com as pessoas com necessidades educativas
especiais que, tantas vezes, impede o professor de franquear-lhes um lugar de aprendente?
Na Casa Escola, como vimos, é conferida uma atenção privilegiada à transmissão
dos conhecimentos produzidos ao longo da história da humanidade; atenção esta que se
concretiza em um trabalho de formação permanente de seus professores. O que acaba por
nos apontar que outras questões, além da cognição, poderiam estar em jogo.
Para tanto, espaços de escuta são ofertados aos professores com o objetivo de
favorecer o processo educativo, considerando as necessidades de paradas para que o
discurso possa advir em um lugar privilegiado na educação. Ainda assim, o mal-estar, por
vezes, emerge no discurso dos educadores ora paralisando-os, ora mobilizando-os a criar
novas estratégias de ensino.
2.1. O lugar da pesquisadora e a metodologia teórico-clínica
Fui contratada como psicóloga na Casa Escola em março de 2002. A partir daí, foi-
me possível perceber um trabalho já sedimentado, que valorizava a circulação discursiva.
Notava-se claramente que a psicanálise deixara ali suas marcas, colocando o acento na
importância dos encontros para se falar do mal-estar que, por acaso, surgisse no cotidiano
da instituição. Tais momentos, denominados entrevistas, já aconteciam desde muito tempo
com outras psicólogas que passaram pela instituição antes de mim.
Estas entrevistas acontecem junto às famílias, aos funcionários, algumas vezes junto
aos alunos, bem como junto aos professores, coordenadores e direção, sempre que alguma
demanda subjetiva emerge no contexto educacional. A despeito da preciosidade dos
discursos advindos em cada uma dessas situações, e da sua relevância no cotidiano escolar,
foi junto aos professores, sobretudo, no que se refere à sua relação com os alunos com
necessidades educativas especiais, que se construíram as questões que recortam este
trabalho de pesquisa.
Para responder tais questões, o trabalho, tendo partido da escuta do interditado,
adota o método teórico-clínico referido à teoria psicanalítica, pois que este privilegia o
campo de pesquisa acerca da subjetividade.
Clínica aqui, definida a partir de Figueiredo (2004): “A clinica define-se,
portanto, por um dado ethos: em outras palavras o que define a clínica psicológica como
clínica é a sua ética: ela está comprometida com a escuta do interditado e com a sustentação
das tensões e dos conflitos” (p. 63).
Longe de querermos remontar à temática da pesquisa psicanalítica
16
, iremos abordar
o que deste tema nos parece relevante para esta pesquisa especificamente.
16
A respeito desse desenvolvimento, confronte-se com Elia (2000), Alberti (2000), Berlinck (2002), Queiroz
(2002), entre outros.
Figueiredo (2004), ao analisar como ocorre a compreensão histórica dos modos de
subjetivação, enfoca a configuração cultural contemporânea e, nessa direção, indica três
eixos axiológicos no processo de constituição da subjetividade. São eles: o eixo liberal, “em
que dominam as exigências e valores de uma identidade claramente estabelecida,
autônoma, autocontida e autotransparente”; o eixo romântico “em que dominam as
exigências e valores de espontaneidade impulsiva, autenticidade, singularidade e inserção
orgânica nos movimentos das forças naturais e históricas”; bem como um outro eixo,
designado como disciplinar, que “é representado pelas novas técnicas de poder, sejam as
que se aplicam molecular e calculadamente sobre cada indivíduo na sua pretensa
independência (...), sejam as que se aplicam à docilização das massas” (p. 49-50).
Em relação a esse último eixo, o autor o aponta como aquele que exerce uma
disfarçada dominância. Os outros dois eixos, o liberal e o romântico, ora se aliam contra a
intervenção disciplinar, ora se aliam de maneira dissimulada e camuflada ao eixo
disciplinar.
Nesse movimento de aproximação e distanciamento, estes eixos só podem subsistir
em permanente articulação, ainda que estejamos falando de relações contraditórias e
ambivalentes. Esse laço complexo estabelece um interdito; um ponto que só se revela
“entre os ditos”, nas entrelinhas, nos atos, por vezes, mudos mas contundentes. No entanto,
como nos adverte o autor, “desde qualquer um dos lugares possíveis desse espaço haverá
sempre partes do território que se conservarão na sombra” (Figueiredo, 2004, p. 50).
Para analisar estes aspectos que permanecem resistentes à representação cada teoria
psicológica terá uma solução específica, que acaba por revelar seu ethos, o qual Figueiredo
(op. cit.) denomina como “a morada do homem neste final de século” (p. 51).
À psicanálise coube sustentar um edifício-teórico especifico para situar sua morada
específica. O metapsicológico, desde Freud, faz trabalhar conceitos sem recuar diante da
cisão entre o representável e aquilo que fica excluído da representação; metáforas
discursivas assinalam um jeito de se aproximar do irrepresentável como instrumento
retórico indispensável e, assim, o excluído passou a ter lugar no interior do campo
experimental.
Considerar que o homem não é o senhor em sua própria casa, priorizando o espaço
da palavra como fundante da experiência, regula o trânsito permanente entre o que é da
ordem da representação simbólica e o seu avesso, o não representável. Nesse sentido, a
psicanálise não recua diante da cisão que se imprime, quando desconfia da unidade do
sujeito e da soberania da consciência.
Tomada essa perspectiva como o direcionamento desta pesquisa, o trabalho clínico
restitui uma posição que se disponibiliza à escuta do interditado, sustentando a emergência
dos conflitos como inevitáveis.
Assim, o “clínico”, aqui na pesquisa, não pode ser tomado desde a perspectiva de
um atendimento cujo enquadre é o consultório. Este é apenas um dos lugares possíveis para
que se faça a clínica, mas não é garantia de uma escuta clínica, tão pouco. Com efeito, não
se pode confundir os lugares de atuação do psicólogo com sua posição específica de escuta
do interditado.
Ainda que no trabalho institucional não sejam as fantasias inconscientes que
estejam sob o foco, o analista, inserido num trabalho fora do strito senso da práxis
analítica
17
não responde com “receitas prontas”, pois está ciente de que estas não
promovem qualquer possibilidade de mudanças subjetivas. Além disso, as tais “receitas”
podem ser infalíveis num determinado dia, em determinado contexto, e no outro já não se
ajustam mais; perante a inclusão, portanto, a psicanálise lida com saberes do caso a caso, e
não com padrões universais.
É preciso colocar nesse ponto que os espaços de escuta, nos encontros com o
psicanalista, têm seguido essa lógica na Casa Escola. Na sua origem, nasceram para deixar
viva a possibilidade do professor se haver com suas dúvidas e indagações subjetivas, seus
objetivos e suas resistências. Hoje, temo-nos deparado com outros efeitos discursivos que
tendem a ser organizadores da prática nessa instituição, sobretudo, em relação ao projeto de
viabilizar ações inclusivas.
A base dos princípios freudianos permanece dando sentido à metodologia clínica,
que não se pode furtar de posicionar-se frente a cada caso, como se fosse o primeiro, de
uma forma inédita, buscando despir-se de uma escuta ancorada nos valores da consciência.
Nesse sentido, Elia (2000) ressalta que em psicanálise não há pesquisa de campo
propriamente falando; a metodologia que possibilita pesquisar sem fugir ao rigor de sua
especificidade é teórica, tendo a clínica como o instrumento de acesso. “Na psicanálise, há,
isso sim, um ‘campo de pesquisa’ que é o inconsciente, e que inclui o sujeito. Por isso, a
clínica, como forma de acesso ao sujeito do inconsciente, é sempre o campo de pesquisa”
(p. 23).
17
Autores como Bastos (2003), Costa, Ribeiro & Gomes (1997) formulam que a escuta psicanalítica na
instituição deve ser considerada a partir do conceito de discurso, para que possamos analisar o laço social que
se instaura, bem como os efeitos que se produzem nos sujeitos envolvidos no processo.
É preciso apontar que, mesmo não estando motivado a escutar o sujeito do
inconsciente no âmbito escolar, este se imprime a nossa revelia. Não o tomamos em análise
na instituição, podendo encaminhá-lo para o enquadre clássico fora dos muros da escola.
Contudo, nesse ínterim, reconhecemos que a subjetividade do professor imprime sua marca
perante seus alunos de forma contumaz, e esta pode vir a ser facilitadora ou funcionar como
um obstáculo à ações inclusivas na escola.
Na Casa Escola nos deparamos com diversos modos dos professores se encontrarem
com a diferença na sala de aula, impondo suas marcas. Nesse percurso, uma questão
orientadora se fez destacar, dando o direcionamento para nosso trabalho, a saber: como se
constitui, no professor, uma visada capaz de franquear, ou não, a oferta de um lugar de
aluno que venha a constituí-lo como tal, permitindo-lhe avançar enquanto aprendente?
Foi tal indagação que nos fez arremeter à investigação acerca da constituição do
sujeito, não sem antes investigar os matizes históricos que produziram discursos acerca da
diferença e da deficiência.
3. Um pouco da história da Educação Especial
Creio ser importante compreendemos que o sentido que se engendra a partir do
movimento histórico é revelado no a posteriori, quando nosso foco busca,
retroativamente, aquilo que já passou para, na luz do agora, fornecer-lhe significações.
Quando abordamos a inclusão escolar, é necessário ter em mente que o contexto
atual é produto de todo um movimento histórico que não pode deixar de ser considerado.
Ao tecermos indagações sobre a educação especial, não iremos muito longe no passado
para recordarmos que aqueles que possuíam características que, de alguma maneira, se
destacavam da "normalidade" eram colocados à margem da escola regular, mantidos
alheios do social, de forma naturalizada, ou seja, sem que isso produzisse maiores
indagações. Assim sendo, por trazer a marca da diferença, a pessoa deficiente
permanecia sem acesso aos mesmos benefícios dos chamados "normais"
18
.
Infelizmente muitos ainda são excluídos, apesar dos avanços da lei, apesar do
discurso democrático.
19
Cabe colocar que não eram apenas as pessoas com deficiência
que permaneciam marginalizadas. Ao lado do rol de síndromes, lesões orgânicas,
psicoses e autismos, por muitas vezes se atestavam como excluídos os pobres, os negros,
os homossexuais etc. Enfim, aqueles que, por qualquer motivo, eram considerados como
18
A esse respeito, ler Foucault (1984).
19
No pré-congresso sobre síndrome de Down, em 07/11/2003, em Natal-RN, foi comunicado que os
últimos dados censitários revelam que apenas 2% dos 13% da população de pessoas com deficiência, aqui
no Brasil, possuem algum tipo de inserção social.
“estranhos” também eram tratados como inválidos ou intoleráveis, permanecendo
impedidos de uma maior possibilidade de circulação social.
Vislumbrando os tempos atuais, podemos dizer que, aqui no Brasil, em muito
avançamos quando pensamos numa "escola para todos”; contudo, ainda há um longo
caminho a percorrer para que o sistema nacional de ensino possa sair de uma condição
precária, quando poderemos pensar em "escolas com qualidade para todos", seja para
qualquer criança, normal ou deficiente. É nesta direção que Carvalho (1997) enfatiza:
"entre nós a luta em prol do processo de integração deve vir acompanhada de uma outra
mais grave, e que diz respeito à melhoria da escola que estamos oferecendo para qualquer
aluno" (p. 208).
A aposta é que o movimento de inclusão escolar que vem sendo impulsionado ao
longo dos últimos anos possa se estruturar de fato, fortalecendo-se neste início de século.
Diante dessa tarefa, é preciso que possamos nos deter com mais minúcia perante o
movimento histórico da educação especial no Brasil. Considerando que o movimento da
exclusão à inclusão é fruto de muitas indagações e pressões sociais, percorreremos nas
próximas páginas alguns episódios relevantes que marcaram a história da educação especial
brasileira.
3.1. Da exclusão à inclusão no sistema educativo brasileiro
20
Sassaki (1997) refere-se a quatro fases distintas na educação especial, congruentes
aos modelos de práticas sociais existentes. São estas: a fase da exclusão, da segregação
institucional, da integração e da inclusão.
Ainda que não precise com exatidão as épocas correspondentes a cada uma delas, o
autor situa a fase da exclusão quando “a sociedade simplesmente ignorava, rejeitava,
perseguia e explorava” o diferente (p. 112). A ausência de qualquer atenção educacional era
marcante.
Na fase da segregação institucional, como o autor a apresenta, o atendimento
educacional acontecia, na maioria das vezes, em instituições voluntárias de cunho religioso,
como era o caso da Santa Casa de Misericórdia
21
. Ainda que o governo soubesse e
autorizasse seu funcionamento, nenhuma outra implicação era concedida. Também, por
volta dessa época, as escolas especiais começaram a aparecer; a sociedade, nesse momento,
começa a admitir a possibilidade de algumas pessoas deficientes poderem ser produtivas,
caso pudessem receber treinamento e escolarização adequados.
Passaram-se mais de dois séculos para que fosse criada, por D. Pedro II, a primeira
instituição oficial, subsidiada pelo Estado, para o atendimento escolar especializado para
pessoas deficientes, o Imperial Instituto de Meninos Cegos, em 1854, que passa a ser
20
A revisão de literatura realizada neste capítulo colocará o leitor em contato com diferentes perspectivas de
análise acerca do campo da educação especial. Se decidimos apresentar tais perspectivas, com suas
contradições, é porque consideramos fundamental manter revelado que não há linearidade nem consenso
nesta matéria.
21
Segundo Martins (1993), podemos datar a primeira instituição educativa para a pessoa deficiente em 1600,
ainda no Brasil Colônia. Tratava-se de instituição particular especializada que funcionava junto à Santa Casa
de Misericórdia em São Paulo, que atendia ao deficiente físico, sem, contudo, ter qualquer incentivo,
preocupação ou interesse por parte do governo brasileiro.
chamado em 1891 de Instituo Benjamin Constant (IBC). Também é nessa época que D.
Pedro II funda o Imperial Instituto dos Surdos Mudos, em 1857, no Rio de Janeiro (o qual
cem anos depois, em 1957, passa a ser chamado de Instituto de Educação de Surdos -
INES). A partir desse período, como aponta Mazzotta (1996), outras instituições de serviços
para atendimento à pessoa deficiente, de iniciativas particulares e isoladas, foram se
estruturando. Trata-se da, já mencionada, fase de segregação.
As fundações dessas instituições imperiais, para cegos e surdos-mudos, forneceram
terreno para a abertura de discussões sobre a educação dos portadores de deficiência, no
Congresso de Instrução Pública, em 1883, convocado pelo Imperador. Um dos temas
abordados, entre outros, refere-se à sugestão de currículo e formação de professores para
cegos e surdos. Mais adiante, em 1900, foi apresentada no IV Congresso de Medicina e
Cirurgia, no Rio de Janeiro, a primeira monografia escrita no Brasil de que se tem registro,
de autoria do Dr. Carlos Eiras, cujo título Da Educação e Tratamento Médico-Pedagógico
dos Idiotas, aponta, segundo Martins (1993) para o "prenúncio da necessidade de uma ação
conjunta das áreas médica e pedagógica" (p. 100).
Assim, no início do século XX outros indicadores de transformação foram se
manifestando, como aumento de interesse público para com as questões referentes à
educação especial, bem como aumento de produções científicas nessa área.
Martins (1993) e Mazzotta (1996) colocam em relevo a contribuição de Helena
Antipoff, ainda nesse período, em 1930, criando as primeiras classes especiais, em Belo
Horizonte-MG, no sistema comum de ensino. Nessa mesma cidade, em 1931, é fundada a
Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais.
Também é Helena Antipoff (1966) que introduz o termo "excepcional", no qual inclui
“... os mentalmente deficientes, todas as pessoas fisicamente prejudicadas, as
emocionalmente desajustadas, bem como as superdotadas, enfim, todos que requerem
consideração especial no lar, na escola e na sociedade" (p. 104).
22
Ela valorizava o papel
do professor, preocupando-se com a formação deste, para que conseguisse compreender
os educandos, além de direcioná-los para a elaboração de uma metodologia adequada às
especificidades. Para isto considerava imprescindível o diagnóstico, embora, já aí,
problematizasse a utilização dos testes de inteligência, aceitando-os com restrição, pois
acreditava que estes não podiam medir os vários aspectos da inteligência. Diante disso,
recomendava que ao lado dos instrumentos de medição cognitiva, a observação
sistemática deveria ter lugar de relevância, já que fornecia dados importantes na
avaliação da pessoa excepcional.
Cabe colocar que, após sua fundação, em 1948, a Sociedade Pestalozzi do Brasil do
Rio de Janeiro irá inaugurar as primeiras turmas de especialização de professores para o
atendimento ao excepcional, para todo o Brasil.
Nesse percurso, em 1954, é fundada a primeira Associação de Pais e Amigos dos
Excepcionais, aqui no Brasil, a APAE do Rio de Janeiro. Tal instituição, como o próprio
nome indica, motivada pelos interesses dos familiares e amigos dos excepcionais, tinha
como apoio e orientação a National Association for Retarded Children
23
(NARC),
associação norte-americana de apoio à criança retardada, fundada em 1950. A partir de
então, outras APAES são fundadas em várias partes do Brasil, o que contribuiu para
22
O que, de certa maneira, acaba por fazer uma aproximação ao conceito de necessidades especiais.
23
Associação Nacional para Crianças Retardadas.
aumentar a pressão social para que o governo pudesse se implicar nas questões referentes à
educação da pessoa deficiente.
Então, em resposta às demandas sociais, que pressionavam no sentido de algum
posicionamento oficial mais efetivo, a partir de 1957 se instaura a época das campanhas
para atendimento aos excepcionais, como iniciativa oficial do Governo Federal, em nível
nacional. Este, passa a assumir publicamente seu compromisso e responsabilidade em
relação ao atendimento educacional, também, dos excepcionais.
Segundo Martins (1993) e Mazzotta (1996), a primeira delas foi a Campanha para
Educação do Surdo Brasileiro (CESB), instituída em 1957, seguindo-se de outras, como a
Campanha Nacional de Educação de Cegos (CNEC), em 1958, e Campanha Nacional de
Educação e Reabilitação de Deficientes Mentais (CADEME), em 1960.
Cabe lembrar que no âmbito internacional, é a partir da década de 60 que o
movimento de normalização e integração, surgido na Dinamarca e difundido por vários
países, ganha força. Idealizado em prol da luta pelos direitos daqueles que eram
desfavorecidos de usufruir a educação geral e permaneciam em sistema segregado,
totalmente diferente do sistema comum de educação, em seus princípios, rege que a
integração de pessoas com deficiências deve favorecer a normalização, ou seja, "condições
de vida semelhantes às de todos os cidadãos" (Martins, 1997, p. 14).
Werneck (2000) sublinha, nessa mesma direção, que normalizar não é a tentativa de
tornar uma pessoa normal, mas garantir o direito a ser diferente tendo suas necessidades
atendidas pela sociedade.
Sendo assim, o movimento de normalização foi importante passo no sentido de um
alerta para vários países do mundo, inclusive para o contexto brasileiro, pois significava
apontar que a diversidade humana permanecia trancafiada, sem circulação social, mantida
“dentro do armário”
24
sob a alegação de proteção ao deficiente. A segregação atrelada aos
estigmas, passa a ter uma força contrária que, a partir de então, ganha um nome.
A partir da década de setenta, o conceito conhecido como mainstream, surgido nos
Estados Unidos, começa a ser conhecido em outras partes do mundo passando, então, a ser
o marco educativo da integração, que aponta para a possibilidade da educação das pessoas
com deficiência “na corrente principal da vida em seus diversos níveis, aspectos e
solicitações" (Pereira, Castro & Carvalho, 1980, p. 02).
É nessa direção que o programa de atendimento à criança excepcional
25
passa a
funcionar naquele país. Sua proposta apresenta vários níveis diferentes quanto à dificuldade
gradual, nos quais deveria ser favorecida a movimentação do aluno, de acordo com as
transformações em suas condições, visando a integração na classe comum de ensino. “O
processo de integração através da corrente principal é definido pelo chamado sistema de
cascatas. Nele, todos os alunos têm o direito de descer ou subir na cascata em função de
suas necessidades específicas” (Werneck, 2000, p. 52).
Tal modelo objetivava que os sujeitos deficientes obtivessem adaptação cultural, o
melhor que conseguissem. Nesse sentido, a dicotomia ensino especializado/ensino regular
não teria mais razão de existir, flexibilizando a circulação das pessoas com deficiência na
escola regular
.
Martins (2003) aponta que o termo normalização é cercado por controvérsias.
Sublinha que isto se deve ao fato da palavra normal ter coloquialmente significados outros
24
Infelizmente muitas pessoas ainda se encontram aí trancafiadas.
25
Segundo Martins (1993) este programa foi criado por M. Reynolds, em 1962, e posteriormente modificado
por E. Deno, em 1970.
que podem direcionar a certas interpretações equivocadas. Afinal, normalizar poderia ser
considerado como ajustar às normas, ou tornar normal a pessoa com deficiência, ao passo
que seu sentido integrador significa oportunizar direitos e condições de vidas tão próximas
quanto possíveis às de todos os cidadãos.
A autora coloca também que o conceito de integração não encontra muito consenso
na literatura, quando se pode frisar que a integração não pode ser traduzida como um
processo homogêneo ou único, porque não basta colocar o aluno com necessidades
educativas especiais na sala de aula do ensino regular para dizer que há integração, “pois a
sua definição, as ações planejadas e operacionalizadas para esse fim são as mais diversas
possíveis” (op. cit., p. 34).
Cabe dizer que, em muitos momentos de sua obra, podemos notar o destaque
recaindo sobre a integração enquanto processo dinâmico que envolve esforços de diferentes
segmentos sociais, para que possam ser estruturadas condições que possibilitem às pessoas
com necessidades especiais tornarem-se parte integrante da sociedade.
Segundo Sassaki (1997), o paradigma dominante brasileiro na fase da integração
passou a ser a proliferação das classes especiais dentro das escolas regulares de ensino. Tal
transformação não se deveu a uma conscientização dos direitos humanos, mas visando que
tais “alunos” não atrapalhassem o ensino dos demais. Nessa direção, “os testes de
inteligência desempenharam um papel relevante, no sentido de identificar e selecionar
apenas crianças com potencial acadêmico” (p. 113). Vemos ai a concepção de uma escola
que, como afirma Foucault (1987) trazia arraigada a idéia moderna de adequação do ensino
e homogeneização das aprendizagens.
Além disso, a ocorrência dessa modalidade de ensino em classes especiais serviu de
álibi para que fossem colocadas à margem, além de pessoas com deficiências específicas,
outras cuja dificuldade referia-se, antes, à desigualdade de oportunidades sociais, como a
situação da pobreza, por exemplo. Inegavelmente, a ocorrência de tal fato possibilitou a
proliferação e conseqüente corroboração de casos de deficiência no seio da sociedade,
“bastando para isto que a criança demonstrasse certo fracasso escolar, especialmente no
tocante às primeiras séries de ensino” (Natal, 1995, p. 15)
26
.
Segundo Blanco (2002), a integração tem seguido uma lógica paradoxal, na medida
que a escola comum que visa integrar a criança deficiente segrega outros alunos, pois
adapta o ensino àquelas crianças que têm o rótulo da integração, priorizando o enfoque
terapêutico e reabilitatório, individualizado, em detrimento da socialização na diversidade.
"Assim, quando se começa uma experiência de integração, é reproduzido, no interior da
escola, o mesmo enfoque da escola especial" (p. 08).
Mazzotta (1996) e Sassaki (1997), quando analisam criticamente o movimento
histórico da educação especial no Brasil, advertem-nos de que antes que o modelo
integracionista pudesse, ainda que minimamente, ser praticado por aqui, duas outras
maneiras de colocar-se perante crianças com necessidades educativas especiais puderam ser
consideradas.
Um primeiro momento, no qual tais crianças permaneciam institucionalizadas, para
que fossem cuidadas e protegidas do mundo, na grande maioria das vezes, por religiosos.
Isolamento esse, que favorecia uma organização social pautada pela dominância de um
26
Patto (1999) faz importantes ressalvas em relação a tal mecanismo perverso presente no sistema educativo
brasileiro.
modelo que visava à homogeneização, ou seja, modelo que admitia como desejáveis classes
com um mínimo, quiçá nenhuma diferença ou desigualdade, no qual aquilo que se revelasse
estranho seria posto à margem, sob o argumento de que deveriam ser protegidas de um
mundo que não estaria preparado para recebê-las. Eram assim mantidas privadas do
convívio social mais amplo.
Num segundo momento, marcado pelos princípios renascentistas, possuindo um
matiz médico-terapêutico, tais autores apontam que as instituições especializadas deveriam
se organizar em torno daquilo que a ciência, na figura do médico, como profissional mais
capacitado, podia indicar.
Nesse contexto, por volta dos anos setenta, como bem lembram Jerusalinsky e Páez
(2000), o pessimismo da classe médica da época em relação às crianças consideradas com
problemas de desenvolvimento acirrava ainda mais a descrença nas suas possibilidades de
avanço, impedindo-as, quase sempre, ao acesso à escola regular. Além disso, tratava-se de
uma abordagem destituída de criatividade, cujo currículo, nas escassas escolas especiais,
era extremamente enfadonho e repetitivo, tornando bastante árdua a estada dos alunos neste
ambiente. Não existia, nesses moldes, qualquer possibilidade de problematização sobre a
metodologia de ensino, bem como inexistia a perspectiva de uma adaptação curricular de
acordo com as necessidades que cada criança pudesse apresentar, o que incentivava
silenciosamente um fracasso iminente, pois fortalecia as dificuldades sociais e cronificava a
desigualdade.
Os autores apontam, ainda, que estamos diante de um paradoxo: "representando
inicialmente uma abertura para os deficientes e marginalizados, as escolas especiais
passaram a desdobrar, parcialmente, uma prática social discriminatória" (op. cit., p. 121).
Logo, por volta dos anos setenta, o que se podia perceber no Brasil (em alguns
países do mundo isso não era diferente) é que o “anormal” quando ia para a escola, era
enviado a uma escola especial, e esta, por sua vez, era (e, em alguns casos, ainda é!)
usada enquanto instrumento de segregação, pois por um lado, o fato de existirem
funcionava como resistência à aceitação de crianças com transtornos do
desenvolvimento, mesmo que elas estivessem em condições de participar do sistema
regular de ensino. Por outro lado, tais estabelecimentos passaram a ser depositários de
jovens e crianças que, muitas vezes devido às desigualdades sociais, fracassavam diante
dos ideais de aluno imputados pela escola.
Assim sendo, o paradigma da educação especial dos anos setenta vem se manifestar
pela multiplicação das escolas "diferenciais
27
”. Nestas, as crianças cuja escola designou
como “alunos com problemas de desenvolvimento” deveriam ser inseridas e preparadas
para o dito "mundo normal".
Mazzotta (1996) sublinha que em 1971, a Lei de Diretrizes e Bases (Lei 5692/71)
apenas indicava um tratamento especial a ser regulamentado pelos Conselhos de Educação,
aparentando uma desimplicação patente do âmbito federal. Em tais diretrizes podemos
notar, diante da educação especial, um posicionamento preventivo e corretivo, marcado por
um sentido clínico e terapêutico para o atendimento educacional, distanciado, assim, da
perspectiva escolar e pedagógica.
Contudo, logo em seguida, no parecer do CFE (Conselho Federal de Educação) nº
848/72, o tecnicismo aparentemente ausente naquela LDB retorna com ênfase, sublinhando
27
Atualmente seriam as escolas especiais.
a implementação de técnicas e serviços especializados para um atendimento adequado à
excepcionalidade.
Tal parecer fomentou estudos e planejamento que tinham como objetivo
constituir uma política pautada por uma linha de ação governamental na área de
educação especial, culminando, em 1973, com a criação de um outro órgão do
Ministério da Educação e Cultura, o Centro Nacional de Educação Especial (CENESP),
bem como a extinção das campanhas federais - CENEC e CADEME - que se
mantiveram por mais de dez anos, ao contrário da CESB que sucumbiu poucos anos
após sua implantação.
Martins (1993) e Mazzotta (1996) apontam o CENESP como um marco para a
estruturação de uma política nacional na área de educação especial, na medida que é só a
partir de sua criação que os sistemas estaduais de ensino passam a estruturar os serviços de
educação especial, inclusive ampliando a quantidade de classes especiais.
Os autores colocam em relevo os objetivos básicos do CENESP, ou seja, o
planejamento, a coordenação e promoção do desenvolvimento da educação especial pré-
escolar, nos ensinos de 1º e 2° graus, superior e supletivo. Buscava-se com isso, que alunos
com deficiência, com problemas de conduta e os superdotados obtivessem participação
progressiva na comunidade.
Tendo como foco os problemas percebidos, é que o Ministério da Educação elabora
o I Plano Nacional de Educação Especial (1977/1979), que objetiva: ampliar a extensão do
acesso à educação, principalmente no que se refere ao acesso a atendimento diferenciado;
otimizar o que se refere aos recursos pedagógicos e administrativos, priorizando o
aproveitamento dos recursos que já estiverem disponíveis; uma ação preventiva,
sublinhando a importância do parecer diagnóstico e atendimento precoces; uma ação de
aperfeiçoamento que busca mais eficiência com o menor custo possível; e ação continuada,
que se refere à educação permanente.
Outro marco importante para a história da educação especial em nosso país, refere-
se ao ano de 1981, que foi dedicado internacionalmente às pessoas deficientes. Em função
dessa memorável data, instituiu-se, através de decreto, uma comissão de âmbito nacional
para definir uma ação integrada em prol das pessoas deficientes. Assim sendo, ainda em
1980 foi decretado o Plano de Ação da Comissão do Ano Internacional das Pessoas
Deficientes (AIPD). Esse plano de ação referendava duas linhas básicas, a saber, a
integração e a normalização, e continha programas que objetivavam a conscientização
social no que se refere à questões ligadas às deficiências, sua prevenção, a educação
especial, a reabilitação, a capacitação profissional e acesso ao trabalho, bem como remoção
de barreiras arquitetônicas e legais (Martins, 1993; Mazzotta, 1996; Sassaki, 1997). Embora
este tenha sido um momento em que se destacava o interesse referente à área da deficiência,
"a ênfase dada a essa questão não encontra eco nos anos subseqüentes" (Martins, 1993, p.
110).
Cabe lembrar que as discussões sobre a temática da educação no contexto da "Nova
República" voltaram a estar presentes, culminando com o Dia Nacional de Debates sobre
Educação, ou o "Dia D", promovido pelo Ministério da Educação, em 18 de setembro de
1985, cujo tema foi "A Escola que Temos e a Escola que Queremos", que se referia, entre
outras coisas, a uma "Educação para Todos". Mazzotta e Sousa (2000) colocam que "tal
debate se deu no contexto da política educacional da ‘Nova República’, segundo a qual a
educação brasileira, sob a égide dos princípios da democratização, participação, e
descentralização, deverá garantir a todos um ensino de qualidade, fator essencial à
consolidação da democracia” (p. 98).
Em outubro desse mesmo ano, o CENESP-MEC elabora um novo plano diretor
nomeado como: Educação Especial - Nova Proposta. Já em sua apresentação fica patente a
urgência por uma redefinição da política para educação especial no Brasil, colocando-a
como de responsabilidade coletiva, convocando a sociedade a se implicar com os
preconceitos erigidos. Mazzotta (1996) aponta como princípios norteadores desse plano a
participação dos vários seguimentos sociais, além da integração, normalização,
interiorização (que se refere à expansão do atendimento para a população do interior) e
simplificação (no sentido da busca por opções simples sem, contudo, prejudicar a
qualidade). Entretanto, Martins (1993) salienta que, mais uma vez na história das políticas
públicas, o planejamento não saiu do papel, sendo impedido de realizar-se na prática, pois o
apoio financeiro continuava sendo fornecido para as instituições especializadas, o que
gerava incongruência entre os textos legais e sua execução, denunciando o engodo, bem
como enrijecendo a situação segregatória.
É relevante resgatar que em 1989, em Jomtien na Tailândia, a Conferência Mundial
aprova a Declaração Mundial sobre Educação para Todos: Satisfação das necessidades
Básicas da Aprendizagem que acabou por influenciar o movimento da educação especial no
Brasil.
Assim, em outubro desse mesmo ano é decretada a Lei Federal 7.853 que dispõe
sobre o apoio às pessoas com deficiência, bem como em relação a sua integração social.
Entre outras coisas, define o preconceito como crime, além de ser responsável pela criação
da CORDE - Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de
Deficiência, que a partir de então passa a ser o órgão responsável pela Política Nacional
para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência.
O fato que se pode verificar é que, apesar do crescente fervilhar de discussões sobre
o tema, até 1990 as políticas de educação especial permaneciam com ênfase no atendimento
segregado em detrimento ao atendimento educacional integrado nas escolas públicas. Em
instituições especializadas o "anormal" era, quando muito, inserido, permanecendo assim,
cerceado do contexto global da educação brasileira. A educação especial, nesse contexto,
era mantida em cativeiro, de forma assistencialista e terapêutica, abdicando do que se refere
ao educativo.
É só a partir de 1990 que passa a existir um movimento com intuito de interpretar a
educação especial como modalidade de ensino. Contudo, Mazzotta (1996) alerta que seus
principais planos e propostas eram reducionistas, pois sugerem que a educação especial se
diferenciava do ensino regular apenas metodologicamente ou quanto aos procedimentos
didáticos.
Em julho de 1990 é estabelecido o Estatuto da Criança e do Adolescente, importante
documento no que concerne à crianças e adolescentes deficientes posto que favorece “... o
exercício de direitos até então presentes em declarações genéricas e abstratas, mas muito
poucas vezes praticados, por falta de mecanismos eficazes" (Mazzotta, 1996, p. 82).
Em 1993 é instituído o Plano Decenal de Educação para Todos - 1993/2003 que,
inspirado na Declaração de Jomtien, na Tailândia, busca a erradicação do analfabetismo,
bem como a integração em escolas regulares de crianças e adolescentes portadores de
deficiência, ou, se necessário, em atendimento especializado. Ainda em 1993, baseando-se
no referido Plano Decenal, como também no Estatuto da Criança e do Adolescente é
editada a Política Nacional de Educação Especial. A partir de então se acirra o fervilhar de
discussões e trabalhos acadêmicos.
Em maio de 1994, outro debate de âmbito nacional sobre educação, enfocando o
Plano Decenal - 1993/2003, é convocado pelo MEC. Este fervor fica mais acentuado após a
Conferência Mundial de junho de 1994, organizada em Salamanca, na Espanha, com a
cooperação da UNESCO, quando foi aprovada a Declaração de Salamanca e linhas de
ação sobre necessidades educativas especiais.
Segundo Mazzotta & Souza (2000), tal Declaração "tem sido o referencial básico
para os mais recentes debates sobre Educação para Todos com a denominação de Educação
Inclusiva” (p. 98). Refere-se à acolhida de todas as crianças pela escola regular, propondo
que "as escolas devem ser capazes de ter sucesso na educação de todos os alunos, inclusive
os que sofrem deficiências graves" (Brasil, 1997, p. 17).
Sassaki (1997) aponta que é lamentável o fato desse tão importante documento ter
sido traduzido mantendo os vocábulos integração e integradoura (e suas flexões) em vez
de inclusão e inclusiva (e suas flexões) acabando por distorcer sua principal mensagem
sobre a inclusão.
28
Na fase de inclusão (segundo Mantoan, 1997; Sassaki, 1997; Werneck, 2000)
verificou-se a necessidade da sociedade poder adaptar-se às pessoas e não apenas estas se
adaptarem à sociedade. Os autores consideram que as escolas devem, atualmente, estar
aptas a acolher, educativamente, todos os alunos, adaptando-se às suas necessidades
específicas
29
. Também apontam que grande parte da literatura sobre o tema surge a partir
28
Sassaki ainda sugere à CORDE que reedite o documento corrigindo a tradução equivocada.
29
Especialmente Mantoan e Werneck sublinham o caráter incondicional da inclusão.
da década de noventa, sobretudo, com relatos de experiências que ocorreram a partir do
final da década de oitenta.
Sassaki (1997) pontua que a citação do conceito de inclusão é recente na literatura
especializada. Ainda que nos debates sobre essa temática, as idéias básicas como inserção e
integração possam ter tido seu lugar de grande relevância na trajetória da educação
especial, não devem ser tomados como sendo a mesma coisa. Na verdade, ele destaca que
estamos vivendo uma fase de transição da integração à inclusão, e por isso não é de
estranhar que ambos possam coexistir por algum tempo. Martins (1997), nessa mesma
direção afirma: “é compreensível, pois, haver uma certa dificuldade no sentido não apenas
terminológico, mas também conceitual" (p. 30).
Ambos os autores nos alertam para que estejamos atentos em relação a uma
definição mais criteriosa dos conceitos de inserção, integração e inclusão que não deveriam
ser considerados enquanto sinônimos, posto que não o são. Nas palavras de Sassaki (1997):
Algumas pessoas utilizam as palavras integração e inclusão, já em conformidade
com a moderna terminologia da inclusão social, ou seja, com sentidos distintos - a
integração significando ‘inserção da pessoa deficiente preparada para conviver em
sociedade’ e a inclusão significando ‘modificação da sociedade como pré-requisito
para pessoa com necessidades especiais buscar seu desenvolvimento e exercer a
cidadania’ (p. 43).
Contudo, é preciso que tenhamos clareza que tais fases não se sucedem de forma
linear. Segundo esse autor: “Ainda hoje vemos a exclusão e a segregação sendo praticadas
em relação a diversos grupos sociais vulneráveis, em várias partes do Brasil (...). Mas
também vemos a tradicional integração dando lugar, gradativamente, à inclusão” (p. 17).
Nessa transição de um modelo integracionista para o modelo da inclusão é precioso
que tenhamos clareza das grandes distinções e das sutilezas que cada paradigma nos
apresenta, para que não reproduzamos jargões politicamente corretos, ao lado de atitudes
contraditórias recobertas de boas intenções.
Carmo (2001), por sua vez, critica a desvalorização do contexto histórico feita por
duas tendências que se referem a uma maneira equivocada de situar a inclusão: a tendência
inclusivista e a tendência dos adaptadores.
A primeira defende a inclusão baseada unicamente na legalidade, situando, como
nos ideais da Revolução Francesa, a garantia de igualdade entre os homens, como a solução
dos problemas. Parece desconsiderar que estamos no terreno das diferenças. Assim, os
inclusivistas, respaldados em bases legalistas, apóiam a inclusão, unicamente, como direito
de todos e dever do estado. Direito legal, contudo, que não garante a aplicabilidade na
prática. Não é condição suficiente. É o imperativo para que se faça cumprir, sem poder se
comprometer com as condições que viabilizem esse processo.
Uma segunda tendência, dos chamados restauradores ou adaptadores sociais, zela
pela adaptação da escola em seu caráter aparente, não se abrindo para as reflexões sobre seu
engendramento na prática, posto que a inclusão não se resume às considerações de
adequações arquitetônicas e de conteúdos curriculares, já que os principais desafios se
inserem no projeto político-pedagógico da escola.
Dessa forma, ambas as tendências se apresentam como ineficientes, resultando em
segregação; isso porque a primeira força uma ação desarticulada, pois coloca, em nome da
lei, o educando na escola, mas nada quer saber sobre as formas de segregação que a escola
pode reproduzir lá dentro dos seus muros. A segunda, desmerecendo os engendramentos
político-pedagógicos tão distintos na escola regular e na especial, se preocupando apenas
com sua estrutura aparente, sem o necessário sublinhado às questões do poder e suas
formas de dominação presentes nas instituições educativas, constitui-se como prática
reducionista que se detém apenas na imagem do que vem a ser a inclusão.
Dessa forma, nem uma nem outra avançam em reflexões que visem superar as
contradições geradas em seu interior; exemplo disto são questões como "classes
homogêneas", nivelamento de turmas (cada classe com um nível)
30
e avaliação pautada em
modelo competitivo, que acabam por expressar a reprodução de um sistema de poder.
Com essa problemática, a autora revela que o paradigma da inclusão não pode se
ater à mera retórica legalista, ou a simples aparência, mas recorre a mudanças no interior do
funcionamento social, retomando para o primeiro plano a questão ética
31
.
Indagando sobre o que viria a ser uma escola inclusiva, conclui que esta poderia ser
tanto uma escola regular de ensino como também uma escola especial. O traçado que a
enlaça no paradigma inclusivo se refere antes de tudo à sua preparação para receber e
acolher a diversidade das crianças. Isso não quer dizer que esta ou aquela estaria apta a
lidar com pessoas deficientes, mas “... atender à diversidade é atender às crianças com
deficiências descapacitantes, mas também todas as outras diversidades que aparecem
cotidianamente na comunidade” (Carmo, 2001, p. 30).
30
Carmo (2001) refere-se aos modelos de seriação por ordem; as classes “A” para os melhores alunos, “B”
para os seguintes..., e assim por diante, até “E” para os alunos mais fracos. Bem como, os chamados
“vestibulinhos” das boas escolas de São Paulo, estratégia de seleção de crianças para o ingresso à escola
regular.
31
Nesse sentido remetemos aos importantes alertas apontados por Páez (2001): “não se está incluído ao
compartilhar um prédio e ficando sozinho, ilhado num canto, isolado no seu próprio mundo” (p.30).
É nessa direção que se forja o conceito de necessidades educativas especiais. Para a
autora, não se trata de um mero eufemismo para tratar das chamadas deficiências. Refere-se
à compreensão de que a diversidade pode se referir a uma variada gama de origens: étnicas,
sociais, religiosas, econômicas e culturais, como situa a autora. Assim sendo, este conceito
é muito mais amplo que o conceito de deficiente, ainda que pessoas com deficiência
possam estar aí inseridas.
Assim, Blanco (2002) situa que para a inclusão estar em curso, portanto, a
instituição escolar necessita, para além de abrir suas portas à diversidade, estar disposta a se
adaptar às condições que cada aluno irá nos apontar mediante sua singularidade. A autora
coloca que “a instituição tem que incluir, sustentar, acompanhar, apoiar, enriquecer e
oferecer tudo o que esta pessoa necessita em sua singularidade para ter êxito no objetivo
educativo de integrar” (p. 31).
Colocando, assim, de forma bastante lúcida, Páez (2001) vem apontar que o
processo de inclusão não implicaria a desvalorização ou a extinção da modalidade da escola
especializada; a opção por esta ou aquela modalidade de instituição deveria estar atrelada a
uma análise específica e pontual da vida do aluno. Lidar com a questão da transitoriedade
implica em reconhecer que a “necessidade num momento específico da sua vida não é o
mesmo que lhe serviu dois anos atrás ou lhe servirá no futuro. [Sugere, dessa maneira, que
uma educação inclusiva deveria supor a possibilidade de um trânsito mais dinâmico] com
um critério interdisciplinar, interinstitucional e intersetorial” (p. 32).
Nesse sentido, a autora retoma o conceito da normalização, sublinhando que não se
trata de fazer valer o padrão da normalidade, pois o paradigma da normalização propõe,
antes de qualquer coisa, que se possa reconhecer o direito à diferença. Que a diversidade
humana, com toda pluralidade, possa ser acolhida pela comunidade. O que aqui se sugere, é
que não seja surpreendente que se possa recorrer às organizações e instituições presentes na
sociedade.
Isso é normalização, que não haja um a priori que diga que estas pessoas devem vir
para cá, essas devem ir para lá e as outras para o outro lado. Senão que cada pessoa,
em cada momento de sua vida, tenha o direito de circular por qualquer lugar e receber
qualquer serviço como qualquer outra (Páez, 2000, p. 33)
.
Assim, ao defender a coexistência de ambos os modelos de escolas a autora nos
abre possibilidade para pensar o trabalho com algumas crianças que, em momentos
pontuais de sua vida, não sustentam sua estada apenas no âmbito da escola regular. A
Declaração de Salamanca (1997), nesse sentido, recomenda a escola especial “para aqueles
casos pouco freqüentes, nos quais se demonstre que a educação nas classes comuns não
pode satisfazer às necessidades educativas ou sociais da criança, ou quando necessário para
o bem estar da criança ou das outras crianças” (p. 24).
Nesse sentido, é preciso nos dirigir com cautela e crítica diante de certos enunciados
que, apressadamente, evocam o fim das escolas especializadas colocando-as como
segregadoras em si mesmas, ao passo que a questão deveria envolver sua transformação em
prol de uma melhor qualidade, pois em momentos pontuais e específicos da vida, podem
ser fundamentais para o desenvolvimento de algumas pessoas.
Além disso, como já foi dito acima, não se trata de uma possibilidade estática, como
se todos que tivessem necessidades educativas especiais estivessem fadados a um “para
sempre” especializado, mas a possibilidade de transitar por entre as instituições, mantendo
o cunho interdisciplinar e interinstitucional.
Mazzotta (1996) frisa que a lei, durante muito tempo, corroborou para a manutenção
de uma visão estática em contraponto a esta possibilidade de trânsito que Páez (2001) vem
colocar como desejável para que ocorra, de fato, o processo inclusivo. Ou seja, a lei
garantiu por muito tempo que para os deficientes haveria a educação especial; parecia
reconhecer uma ligação unívoca e linear entre o deficiente (com toda a imobilidade que esta
palavra carrega) e a educação especial; esta, por sua vez, marcadamente atrelada a um
regime segregado. Tal posicionamento é fruto de uma visão "estática” que acaba por
dificultar a percepção das necessidades especiais, se elas existem ou não e, se existem,
quais seriam elas; quando se justifica atendimento educacional especializado e quando não.
Afinal, quem está no terreno da inclusão não pode permitir obliterar questionamentos tão
fundamentais, que devem ser aplicados a cada caso em particular, pois cada história e cada
contexto é que poderão fornecer as pistas necessárias para a construção de uma possível
resposta, visto que ela não existe a priori.
Também não podemos supor serem inclusivas as escolas regulares que aceitam
alunos, sem, contudo, reformularem-se, transformando-se para acolher a diferença,
mantendo assim, seu fazer tradicional, pautado pela crença de um ideal de homogeneidade,
competitividade e silêncio sobre as dificuldades.
Na Declaração de Salamanca (1997), mencionada acima, encontramos a definição
da expressão de "necessidades educativas especiais", se referindo às crianças e jovens:
... cujas necessidades decorrem de suas capacidades ou de suas dificuldades de
aprendizagem e têm, portanto, necessidades educativas especiais em algum momento
de sua escolarização. As escolas têm que encontrar a maneira de educar com êxito
todas as crianças, inclusive as com deficiências graves (Brasil, 1997, p. 18).
As Diretrizes Nacionais para Educação Especial na Educação Básica colocam que
esse conceito implica em mudanças, pois:
Em vez de se pensar no aluno como a origem de um problema, exigindo-se dele um
ajustamento a padrões de normalidade para aprender com os demais, coloca-se para
os sistemas de ensino e para as escolas o desafio de construir coletivamente as
condições para atender bem à diversidade de seus alunos (Brasil, 2001, p. 06).
Skliar (1998), por sua vez, remarca que a lógica da educação especial é, toda ela,
calcada em oposições binárias de cunho perverso, pois considera que existe um primeiro
termo que define a norma, ao passo que o segundo é situado fora do domínio desta. Neste
sentido, para o autor, “a expressão necessidades educativas especiais não muda nem a
cadeia de significados do discurso hegemônico nem a perversão da lógica da oposição
binária, mais ainda, continua produzindo e reproduzindo-as” (p. 10).
32
Ainda segundo o autor, a expressão necessidades educativas especiais reflete a
busca por um termo politicamente correto para descrever os sujeitos que não correspondem
ao traçado invisível da norma cultural. Contudo, não tem qualquer implicação significativa
32
Nossa tradução e grifo.
no sentido de desconstruir a cadeia de significados que estão na base da exclusão social e,
ao manter a lógica binária baseada em opostos, autoriza o discurso dominante.
Em outras palavras, muito mais do que nos preocuparmos com termos mais
adequados, seria desejável que estivéssemos advertidos do uso que é feito deles, pois o
grande risco que se corre é ficarmos por demais atentos ao teor terminológico, buscando o
"politicamente correto", em detrimento de percebermos o eufemismo que está sendo
garantido, sem que mudanças efetivas possam ocorrer no campo das relações, ou seja, por
exemplo, altera-se o termo excepcional para pessoas com necessidades especiais, sem que
se altere a possibilidade de circulação social daqueles que vivenciam em sua pele as agruras
do preconceito. Assim temos um termo novo cujo acento nas necessidades denota que há
algo que é dado a consumir, do qual se foi privado. Consumo próprio a um discurso
capitalista que deixa invisível o que é da ordem do desejo em nome da necessidade.
Nesse sentido, Skliar (1998) também nos alerta sobre o uso dos termos diversidade
e diferença. Nas palavras desse autor:
a diferença não pode ser entendida como um estado não desejável, impróprio, que
voltará mais tarde para as filas da normalidade, em virtude das pressões humanistas e
etnocêntricas de igualdade. A utilização do termo diversidade esconde detrás de si
uma típica estratégia conservadora para conter, justamente, o sentido da diferença
cultural. Desse modo, diversidade e diferença não são sinônimos, senão
determinações políticas opostas. A ambigüidade e a hipocrisia com que se pensa e
constrói a diversidade - é dizer, a aceitação de um certo pluralismo referido sempre a
uma norma ideal - estão sendo contestadas pelas implicações políticas originadas a
partir do reconhecimento político das diferenças (p. 07).
Logo, podemos perceber que o risco que se corre, na utilização indiscriminada do
termo diversidade, é ficarmos restritos ao enunciado de que todos somos diferentes, no
sentido que nenhum ser humano é igual. Isso é bem verdade, mas o que estamos frisando
quando o tema é a inclusão, trata-se de colocar em relevo que existem diferenças que são
tratadas como desprezíveis, indesejáveis e, por isso, colocadas à margem, permanecendo
impossibilitadas, as pessoas com tais diferenças, de usufruir os mesmos direitos que
aquelas que não possuem tais marcas. O discurso da diversidade corre o risco de encobrir o
discurso político das diferenças, pois o que deve ser remarcado não se reduz à pluralidade
humana, mas que existem pessoas que carregam as marcas de diferenças que
historicamente saíram perdendo e, ainda hoje, sofrem prejuízos. Falo das pessoas negras,
das pessoas índias, das pessoas deficientes, das pessoas homossexuais etc.
Assim sendo, é preciso que possamos participar das discussões a respeito da
inclusão, levando em conta não apenas a questão terminológica em que se situa a diferença
e a deficiência, mas a seqüência discursiva construída no plano sócio-político, que durante
um longo tempo sedimentou a fragmentação da identidade entre os normais e os anormais.
Ainda segundo Skliar (1998), a educação e a escola deveriam ser pensadas "como
cenário onde a anacrônica diversidade deveria passar a ser uma diferença politicamente
reconhecida”
33
(p. 07).
33
Tradução da autora.
Nessa direção esse autor nos alerta para os paradoxos que emergem dos discursos
inclusivistas que bradam, com todo fôlego, que a inclusão escolar para as crianças com
necessidades educativas especiais é a única forma para que estas possam "ser como os
demais", "ter igualdade de condições e oportunidades", pois afinal todos "temos os mesmos
direitos", não temos?
Poderíamos considerar tais discursos, politicamente corretos, indiscutíveis do ponto
de vista jurídico, contudo não devemos nos furtar de reconhecer o que à revelia da lei se
revela. Caberia dizer aqui, nas palavras do autor "todos temos o direito de ser reconhecidos
na diferença" (p. 07), senão sobre o pano de fundo de uma igualdade forçada, a igualdade
de oportunidades é por demais idealista, pois em se tratando da diversidade, da diferença,
das desigualdades forjadas ao longo dos tempos, oferecer um tratamento igualitário é antes
de mais nada, impedir que sejam oportunizadas condições para que as desigualdades sejam
diluídas, amenizadas. A igualdade nesse ínterim, aponta para manutenção das exclusões.
Não existe possibilidade de tratarmos das diferenças buscando torná-las
homogêneas, encaixando num padrão, numa norma. Esse humanismo capenga acaba por
traduzir-se como fruto de mera retórica, alerta-nos Skliar (1998). Não estamos falando aqui
das singularidades plurais dos seres humanos, mas de uma diferença.
Acreditamos que, sejam quais forem, estas expressões forjadas para tentar nomear a
experiência do encontro com a diferença, esta nunca dará conta de dizer da diferença na
qual o humano imprime sua marca. O enredo histórico que sublinhamos no capítulo
anterior nos serviu para resgatar que, por muito tempo, encarar a diversidade e a
heterogeneidade no cerne de uma escola regular era uma questão problemática e hoje,
herdeiros de uma história, não devemos nos furtar de poder lembrarmos, de quando em
quando que, a busca pela homogeneidade é sempre fracassada quando estamos a falar de
sujeitos humanos.
3.2. Pensando a inclusão escolar em nossos dias
Atualmente no Brasil, podemos dizer que estamos vivendo um momento histórico
precioso no que se refere ao movimento da educação especial. Nesse contexto, vale frisar
que houve um revigoramento das leis federais e estaduais, sublinhando a obrigatoriedade
das escolas, preferencialmente as regulares, receberem crianças com necessidades
especiais. Diante desse cenário, se renovam as bandeiras da escola para todos. Incluir passa
a ser a ordem do dia, o que representa uma abertura democrática do espaço escolar, na
medida que questiona a segregação social das crianças com dificuldades.
É verdade que a inclusão escolar é um direito. Direito humano antes mesmo que
jurídico, cuja conquista está diretamente ligada a aspectos econômicos, sociais, jurídicos,
teológicos, educacionais e políticos (Pessotti, 1984).
Surpreendentemente, algumas poucas escolas pioneiras já mantinham uma prática
inclusiva mesmo antes que a lei se pronunciasse; questionavam o status quo, pois se
opunham àquela pedagogia contemporânea tão disseminada, que justificava a segregação
pela necessidade idealizada de comporem-se salas homogêneas. Nesse sentido, Jerusalinsky
e Páez (2000) apontam para o fechamento narcisista que revela o receio de ser confundido
com o que escapa à "normalidade", mobilizando o evitamento de aproximação daquele que
possui marcas que apontam para a diferença.
Tais escolas, pioneiras na prática inclusiva, raras exceções, agarradas ao
pragmatismo, infelizmente possuem poucos registros de sua prática, passando
despercebidas, quiçá invisíveis dentro do contexto educacional maior. Contudo, a grande
maioria das instituições era as escolas que, legitimadas por uma pedagogia científica,
separavam os "normais" dos ditos "anormais", criando o rol dos escolarizáveis e dos não-
escolarizáveis. São estes últimos, durante tanto tempo excluídos, que agora passam a ter um
lugar de direito na escola regular.
Em nossos dias, percebemos muitas escolas esforçando-se com afinco para dar
conta da nova empreitada, para estar em consonância com a inclusão. Outras, por sua vez,
imobilizadas em uma prática segregatória, em nada flexibilizaram seu posicionamento,
mantendo uma atitude alheia, como desinteressada ou desavisada. Ainda no intervalo entre
ambos os modelos, existem aquelas que se propõe problematizar o lema – “a escola para
todos" sem, contudo, furtarem-se à responsabilidade política, social e ética, abrindo-se à
inclusão em um duplo enfoque: por um lado, apostando que a criança ou adolescente
poderá avançar em seu projeto de aprendente e, por outro, cuidando para que a instituição,
no território da inclusão, não adoeça, resultando em um queixume de impossibilidades e
paralisias.
Kupfer e Petri (2000) refletem sobre a questão da inclusão resgatando a criação da
escola moderna. Sublinham que a sua fundação e a construção de seu significado passam a
nomear o que ela é, bem como o que não é, ou quem são e quem não são seus alunos. “A
escola encontra seus pontos de referência identitários nesse contorno, e o expelido pela
instalação do contorno ajuda a defini-la” (p. 112).
As autoras alertam para a subversão que essa nova ordem inclusiva vem demandar da
escola, posto que desde sua criação, o diferente, o estranho, o deficiente não eram
pertencentes ao mundo escolar. Nesse sentido, afirmam:
“... reabsorver o que ela mesma [a escola] criou como não-escolar é, inicialmente para
ela, um contra-senso! (...) Portanto, a reformulação da escola para incluir os excluídos
precisa ser uma revolução que ponha do avesso em sua razão de existir, em seu
ideário político-ideológico. É necessário muito mais do que uma reformulação do
espaço físico, de conteúdo programático ou de ritmos de aprendizagem, ou de maior
preparação do professor” (p. 112).
A inclusão vista assim de perto, revela que para acontecer de fato, faz-se necessária
uma revolução que subverta o modelo homogeneizador tão arraigado. A lei impõe que a
diversidade e a diferença, antes tão indesejáveis, passem a ser reconhecidas e acatadas
educativamente; a singularidade própria do humano não deve mais ser usurpada do espaço
escolar, espaço esse onde só se valorizava a homogeneidade. Porém, é relevante lembrar:
não basta baixar um decreto para que se aliviem os preconceitos por tanto tempo erigidos
em nome da ciência. Caso contrário, estaremos apoiando uma segregação ainda mais
perigosa, pois que está perfeitamente disfarçada de inclusão politicamente correta.
Isso acontece quando, por exemplo, a escola, em nome da lei, recebe dentro dos
seus muros alguma criança com uma certa deficiência, mas por não saber como lidar com
sua especificidade, ou porque o convívio se faz insuportável para as outras crianças, acaba
com uma professora auxiliar perambulando pelo espaço escolar, isolada das outras. Ou
ainda, quando professores, apesar das melhores intenções, se vêem impedidos de abordar a
inclusão e acabam adoecendo, obrigados a apelar para os atestados médicos. E também,
quando uma criança surda é colocada numa sala com mais quarenta alunos e a professora
continua, como sempre, a discursar ininterruptamente sobre o assunto do dia. Ou aquela
criança, cuja entrada na escola, apesar de todas as apostas de sucesso, apesar de toda
preparação do professor, funciona como disparadora de uma crise.
É bem verdade que a lei, mesmo que insuficiente para alcançar o objetivo
pretendido da inclusão escolar, é justificada na exata medida que ressalta que uma parcela
da sociedade não estava podendo exercer o direito ao acesso à educação, ainda que este
estivesse contemplado em nossa Constituição Federal, reafirmando dispositivos legais,
políticos - filosóficos, contrários à discriminação.
Contudo, isso não impede que percebamos que a lei, quando não acompanhada de um
posicionamento ético que viabilize sua implantação, acaba, paradoxalmente, por
paralisar e silenciar a reivindicação por uma escola mais democrática pois, afinal,
aparentemente estão fazendo inclusão. Porém, o processo não avança.
É necessário que possamos refletir sobre a questão, para que não produzamos uma
inclusão só de fachada, ou o que é muito pior, uma segregação camuflada. Essa denúncia,
nós a encontramos formulada por Jerusalinsky e Páez (2000) quando afirmam:
“verificamos que muitas crianças são lançadas precipitadamente a esta experiência sem que
se tenham preparado as condições necessárias nem nelas nem nas escolas, para que sua
inclusão possa efetivar-se sem transformar-se em um ato de mera aparência” (p. 122).
Na tentativa de discutir essa questão nos remeteremos à constituição de um sujeito
de linguagem, como já afirmado anteriormente, supondo que este será um percurso que
poderá contribuir com essa pesquisa, visando responder à pergunta que se inscreve. Como
se constitui no professor, uma visada capaz de favorecer ou atravancar a inclusão escolar de
alunos com necessidades educativas especiais?
4. A noção de sujeito
Palavra dócil
Palavra d’água pra qualquer moldura
Que se acomoda em balde, em verso,
em mágoa
Qualquer feição de se manter palavra.
(Chico Buarque, 1989).
No ínterim deste trabalho, a noção de sujeito do inconsciente é tomada como um
pilar essencial, pois a ela nos remetemos para pensar as especificidades de posicionamento
dos professores em relação aos seus alunos com necessidades educativas especiais. Nossa
hipótese, no eixo de uma investigação teórico-clínica, a partir do quadro conceitual
psicanalítico, é a de que abordar a trajetória da constituição de um sujeito pode vir a lançar
luz na questão que se formula, a saber, como se constitui no professor essa visada, esse
“olhar”, que não é qualquer, capaz de propiciar ou dificultar a inclusão escolar de alunos
com necessidades educativas especiais.
Cabe colocar que ao escolhermos abordar a noção de sujeito, tomando como
referência a psicanálise, buscando explicitar sua especificidade lógica, precisamos
reconhecer os limites teóricos que lhe são próprios, impressos pela articulação de uma rede
de conceitos. Isso significa que “pensar a subjetividade do ponto de vista psicanalítico
implica o esclarecimento de certos limites teóricos no interior dos quais a questão possui
uma inteligibilidade própria” (Garcia-Roza, 1984, p. 225). Isso porque a psicanálise,
quando aborda a noção de sujeito, o faz de maneira imensamente diferente daquela que se
constituía como sujeito identificado pela tradição clássica, a saber, o sujeito da
consciência
34
.
A partir de Descartes e de sua formulação do sujeito cartesiano no século XVII, é
que a temática da subjetividade se funda como uma questão problemática para a ciência;
naquele momento, interrogava-se a respeito da possibilidade de um conhecimento objetivo
sobre o mundo real e as incertezas desse conhecimento (Garcia-Roza, 1984, Colette Soler
1997, Elia, 2004).
Descartes apresenta a dúvida como pilar de seu método de busca por uma resposta
sobre o sujeito. Ele enuncia que ao duvidar de tudo, duvidando, inclusive de que está
duvidando, a única certeza que resta é a de que continuará duvidando e, portanto, duvida.
Dessa maneira, colocando a dúvida acima de tudo, o referido autor (1637/1996)
afirma:
... logo depois que atentei que, enquanto queria pensar assim que tudo era falso, era
necessariamente preciso que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E, notando que
esta verdade – penso logo existo
35
- tão firme e tão certa que todas as mais
extravagantes suposições dos cépticos não eram capazes de a abalar, julguei que podia
admiti-la sem escrúpulos como o primeiro princípio da filosofia que buscava (p. 38).
34
O termo sujeito, assim atrelado à dimensão da consciência, era apoiada pelas concepções de René Descartes
(1596-1650), Immanuel Kant (1724-1804) e Edmund Husserl (1859-1938) (Roudinesco & Plon, 1998, p.
742).
35
Expressão em latim, cogito, ergo sum que mais tarde foi traduzida para o francês, je pense, donc je suis.
A marcação de seu Cogito anuncia exatamente a concomitância de um pensar que
assinala a certeza de um ser. Cogito ergo sum – penso logo sou - assinala uma
subjetividade identificada à razão e à consciência. Segundo Garcia-Roza (1984) essa
proposição não deveria ser tomada a partir de uma fórmula silogística de causa e efeito,
pois não é disso que se trata. Em outras palavras, não é porque se pensa que se deriva o ser,
mas o ser se imprime no exato momento em que pensa; o pensamento e o ser coincidem de
um mesmo golpe na formulação cartesiana.
A psicanálise, por outro lado, ao se encontrar com uma cena além dos pensamentos
conscientes, contraria a mestria de um ser unificado e autoconsciente. Freud (1916-
1917/1976) expõe esta tese em uma de suas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise,
quando aponta três golpes narcísicos causados pelas pesquisas científicas, com os quais a
humanidade teve que se deparar:
O primeiro foi quando souberam que a nossa Terra não era o centro do universo, mas
o diminuto fragmento de um sistema cósmico de uma vastidão que mal se pode
imaginar (...). O segundo golpe foi dado quando a investigação biológica destruiu o
lugar supostamente privilegiado do homem na criação, e provou sua descendência do
reino animal (...). Mas a megalomania humana terá sofrido seu terceiro golpe, o mais
violento, a partir da pesquisa psicológica da época atual, que procura provar ao ego
que ele não é senhor nem mesmo em sua própria casa, devendo, porém, contentar-se
com escassas informações acerca do que acontece inconscientemente em sua mente
(p. 336).
O que Freud vem ressaltar é justamente esse sujeito dividido em Consciente e
Inconsciente, avesso à unidade defendida pelo racionalismo. Podemos perceber aqui a
contraposição à noção da subjetividade cartesiana, que a ciência, por tanto tempo, vem
sustentando; isso porque, para a psicanálise, o sujeito não se esgota em ser sujeito do
enunciado, como o cartesianismo propõe. A subjetividade da psicanálise refere-se a uma
subjetividade clivada, não unificada.
Lacan (1957/1998), mantendo-se fiel à letra freudiana, identifica paralelamente a
esta cisão, a divisão que se instaura entre enunciado e enunciação. Desde essa orientação
que vem propor a subversão do cogito cartesiano: “penso onde não sou, logo sou onde não
penso (...), eu não sou lá onde sou joguete de meu pensamento; penso naquilo que sou lá
onde não penso pensar” (p. 521). Isso denota que, para além de uma racionalidade e da
intencionalidade da consciência, existe um sujeito que se imprime e faz ato.
Nessa direção, afirma que o "sujeito pensante", pilar do idealismo filosófico, fica
desalojado pela incidência do inconsciente. Assim, conforme aponta Garcia-Roza (1984):
Contra a unidade defendida pelo racionalismo, a psicanálise vai nos apontar um
sujeito fendido: aquele que faz uso da palavra e diz “eu penso”, “eu sou”, e que é
identificado por Lacan como sujeito do enunciado (ou sujeito do significado), e
aquele outro, sujeito da enunciação (ou sujeito do significante) que se coloca como
excêntrico em relação ao sujeito do enunciado (Garcia-Roza, p. 23).
O cogito não sustenta, de fato, a verdade do sujeito, mas é o próprio lugar de seu
desconhecimento (Garcia-Roza, 1988; Cottet ,1987). Tratar da noção de sujeito em
psicanálise remete-nos a enfocar tal subversão, ou seja, é no momento mesmo que não há
consciência que podemos falar do sujeito com o qual a psicanálise opera.
Freud assinala em seu artigo O Inconsciente (1915/1974) que é a partir dos
fenômenos lacunares que irrompem nos dados da consciência que podemos nos deparar
com a sintaxe do inconsciente. Foi o que Lacan (1957-1958/1999), mais tarde, denominou
de formações do inconsciente (sonhos, chistes, atos falhos, sintomas):
...os dados da consciência apresentam um número muito grande de lacunas; tanto nas
pessoas sadias como nas doentes ocorrem com freqüência atos psíquicos que só
podem ser explicados pela pressuposição de outros atos, para os quais, não obstante, a
consciência não oferece qualquer prova. Estas não só incluem parapraxias e sonhos
em pessoas sadias, mas também tudo aquilo que é descrito como sintoma psíquico
(...). Todos esses atos conscientes permanecerão desligados e ininteligíveis, se
insistirmos em sustentar que todo ato mental que ocorre conosco, necessariamente
deve também ser experimentado por nós através da consciência; por outro lado, esses
atos se enquadrarão numa ligação demonstrável, se interpolarmos entre eles os atos
inconscientes sobre os quais estamos conjeturando (...). Assim sendo, devemos adotar
a posição segundo a qual o fato de exigir que tudo quanto acontece na mente deve
também ser conhecido pela consciência, significa fazer uma reivindicação
insustentável (Freud, 1915/1974, p. 192).
O fato é que Freud empreendeu seu trabalho de pesquisa tomando como foco a cena
inconsciente, através de suas formações. Ele busca estabelecer quais seriam os operadores
capazes de sustentar a experiência psicanalítica de desvelamento do sentido dessas
formações, bem como delimitar quais seriam as condições para o exercício da psicanálise.
Nesse ínterim, ele ressalta o caráter simbólico das formações inconscientes e localiza
relações lógicas entre os mecanismos da linguagem e o inconsciente.
Em sua obra existem várias passagens esclarecedoras dessa relação, especialmente
em três livros de suma importância: A interpretação dos sonhos (1900/1987), A
psicopatologia da vida cotidiana (1901/1987) e Os chistes e sua relação com o
inconsciente (1905/1977). Neles, Freud sublinha a experiência da linguagem como
sustentáculo das formações do inconsciente, destacando o mecanismo do deslocamento e da
condensação, como o instrumental da retórica dessa “outra cena”. Sublinha o caráter
plástico das palavras, remarcando que estas podem expressar múltiplos sentidos, bem como
que um único pensamento pode ser expresso através de inúmeras formas lingüísticas,
dependendo do contexto e do emprego de quem as utiliza. Nessa direção, produz um
trabalho incansável no intuito de investigar a lógica do inconsciente, alçando-lhe
credibilidade e inteligibilidade, ainda que seja necessário o compromisso do deciframento.
Assim, as formações do inconsciente só poderão advir como sentido se considerarmos sua
dimensão simbólica; caso contrário, permanecem como ininteligíveis. “É a aquisição da
linguagem que permite o acesso ao simbólico e a conseqüente clivagem da subjetividade”
(Garcia-Roza, 1984, p. 176).
Assim, podemos afirmar que desde os primórdios da experiência psicanalítica, a
palavra do paciente é valorizada como aquela que permite a experiência da psicanálise.
Como vimos, em suas formulações sobre o inconsciente, Freud apontou para o
descentramento da racionalidade, que já não podia permanecer enquanto detentora da
verdade. No entanto, foi o psicanalista francês Jacques Lacan que “entre 1950 e 1965,
conceituou a noção lógica e filosófica do sujeito no âmbito de sua teoria do significante,
transformando o sujeito da consciência num sujeito do inconsciente, da ciência e do desejo”
(Roudinesco & Plon, 1998, p. 742).
Lacan, obstinadamente leal a essa acepção freudiana
36
, irá fundamentar
teoricamente a noção de sujeito, recorrendo à teoria lingüística de Ferdinand Saussure
(1857-1913), retomando a concepção de signo lingüístico, de significante e significado.
Segundo Saussure (1979), o signo lingüístico é o produto da combinação de um
conceito com uma imagem acústica; referimos-nos ao primeiro como pertencendo à ordem
do significado (s) e o segundo, como da ordem do significante (S). O conceito em si de uma
árvore não é a árvore real, específica, mas uma idéia de árvore, seu significado, ao passo
que a imagem acústica que apontamos acima seria a palavra árvore enquanto sonoridade,
ainda que esteja representada fora da realização pela fala. É o traço psíquico dessa
sonoridade. “A imagem acústica não é o som, mas a impressão psíquica do som” (Lemaire,
1989, p. 49).
Saussure denominava signo lingüístico como uma unidade que mantém a relação
entre significado e significante (s/S) e creditava a tal relação um cunho de arbitrariedade, já
que não há nada de intrínseco no objeto que nos faça nomeá-lo dessa ou de outra forma.
Não há nada no universo físico que garanta sua denominação de uma determinada maneira.
Ele é, portanto, convencional, posto que não é natural. Para ratificar essa afirmação, basta
36
É interessante ressaltar que o diálogo com a lingüística possibilitou a Lacan formular a teoria do
significante no que ela tem de interesse para a psicanálise. Contudo, foi Freud, desde seus estudos junto às
histéricas que, partindo dos sintomas conversivos, jogou luz acerca das representações psíquicas
inconscientes. O organismo biológico é subsumido pelo corte operado pelo símbolo. Uma paralisia pode não
ser fruto de uma lesão orgânica, mas ser fruto do trabalho significante, simbólico, oferecendo sentidos. Uma
paralisia comandada desde a palavra que se imiscui impertinente, escapando ao controle da racionalidade.
lembrarmos do fato de que, para cada língua, um mesmo conceito é designado por imagens
acústicas diferentes. O que garante essa ou aquela designação para um determinado
conceito é a tradição, pois não se trata de nos referirmos ao conceito aleatoriamente, mas de
nos apropriarmos de um mundo linguageiro que estava desde antes de nós, e que passará a
ser vivido por nós.
Para Saussure (1979), o signo lingüístico pode ser representado com a seguinte
ilustração:
Conceito
Imagem acústica
significado
significante
A elipse que envolve o significado e o significante expressa o caráter de uma
unidade, numa articulação indissolúvel; a linha horizontal remete ao vínculo existente entre
ambas as ordens, a do significado e a do significante. As setas sublinham, também, a
implicação recíproca entre essas duas ordens. Dessa forma, o signo é resultante da relação
entre significante e significado, mas também deve ser tomado como parte do sistema
lingüístico, no qual cada um dos signos mantém uma relação negativa e diferencial com os
outros signos do sistema. Assim, cada signo tem um valor que só é situado por oposição
aos outros signos, numa relação de horizontalidade. Aqui podemos situar outro princípio
saussureano que rege o signo lingüístico, a saber, o da linearidade que traduz a
impossibilidade de falarmos duas palavras de uma só vez.
Significado
Significante
Significado
Significante
Significado
Significante
Lacan (1960/1998) retoma a teoria de Saussure à luz da experiência psicanalítica e
sublinha algumas diferenças essenciais. Uma primeira refere-se à inoperância da elipse,
pois para ele, a relação entre significante e significado, ao contrário do que se pensava, não
é indissolúvel, mas extremamente flexível e fluida. Não há garantias de uma unidade entre
significante e significado. Desaparecem, também, as setas indicativas de uma implicação
biunívoca. A barra horizontal é mantida, mas seu caráter é subvertido, pois não representa
mais uma articulação inequívoca, porém expressa uma inexorável separação entre o que é
da ordem do significante (S) e da ordem do significado (s).
A originalidade de Lacan também consiste em ter mostrado a inversão (s/S),
indicando a primazia do significante sobre o significado (S/s). Remarca que essa barra que
separa os dois termos do signo determina que é a organização da cadeia significante,
possibilitando a constituição da dimensão simbólica, que produz sentido ou significação.
“A originalidade de Lacan é ter querido fornecer a prova de que o significante age
separadamente de sua significação e à revelia do sujeito” (Lemaire, 1986, p. 79).
Assim, o significante sozinho pode ser qualquer coisa, na medida que não é, a
priori, atrelado, amarrado a nenhum significado. É só a partir da relação entre os
significantes, que pode emergir o sentido. Isoladamente, os elementos da cadeia são
esvaziados de sentido discursivo.
O significante se reduz a meras unidades diferenciais que, em si mesmas, nada
significam (...). Sua ação reside na capacidade de remeter sempre a um outro
significante, o que equivale a dizer, tomando uma expressão de Lacan, que o
significante tem por propriedade existir enquanto articulado, articulação que rege, é
prevalente, sobre os efeitos que se engendram do significado (Fernandes, 2000, p. 38).
Dessa forma, podemos colocar que, muitas vezes, quando falamos não estamos
reproduzindo verbalmente algo de existente na realidade, mas estamos criando sentido.
Frases inteiras que numa dada situação remetem ao absurdo, em outras deixam a marca de
significações muito mais precisas que uma mera descrição. “Donde se pode dizer que é na
cadeia do significante que o sentido insiste, mas que nenhum dos elementos da cadeia
consiste na significação (...)” (Lacan, 1957/1998, p. 506).
Lacan (op. cit.) traz um exemplo elucidador a respeito da primazia do significante
sobre o significado e o deslizar de uma ordem sobre a outra, criando sentidos para além de
uma mera descrição.
Inicialmente ele introduz o exemplo clássico saussureano, apontando-o como
incorreto, na medida que privilegia uma relação biunívoca de significância regida pelo
significado, como assinala a ilustração abaixo.
ÁRVORE
Lacan considera a ilustração a seguir como sendo mais correta. Podemos perceber
que ele aponta, no lugar do significado, duas portas iguais que estão separadas dos
respectivos significantes, HOMENS e MULHERES, por uma barra.
HOMENS MULHERES
O que se quer colocar em relevo é que a precipitação do sentido só se faz possível
mediante a captação da oposição significante. Dessa forma, é o significante que, inserido
numa cadeia articulada, determina o significado.
Isso não é apenas para desconcertar com um golpe baixo o debate nominalista, mas
para mostrar como o significante de fato entra no significado, ou seja, de uma forma
que, embora não seja imaterial, coloca a questão de seu lugar na realidade (Lacan,
1957/1998, p. 503).
Nesse caso, trata-se de situação corriqueira, na qual se colocam significantes não
para designar o objeto, mas para produzir a precipitação do sentido de que quando estamos
em lugares públicos, os banheiros são distintos para homens e mulheres. Sabemos que,
biologicamente, os indivíduos da nossa espécie têm sexos diferentes, mas nada há nessa
diferença que obrigue o uso deste ou daquele banheiro. É a lei humana que direciona essa
regra de conduta.
Não se trata de um significante remetendo a um significado, mas um significante
que remete a outro significante. Assim sendo, para a psicanálise, a linguagem não se
restringe ao registro manifesto. Distancia-se da ilusão de uma mensagem unívoca de
sentido.
Nesse retorno a Freud, empreendido por Lacan, encontramos-nos com uma
conceitualização do inconsciente estruturado como uma linguagem, obedecendo às leis de
constituição da mesma. Linguagem que, anterior ao sujeito, precede o estabelecimento de
sua articulação na palavra. Ou seja, a criança nasce num mundo que, muito antes dela, já
estava banhado pela linguagem. A essa cadeia simbólica, Lacan nomeia lugar do Outro.
O Outro, com letra maiúscula, o chamado grande outro, na teorização psicanalítica
é, recorrentemente, elaborado a partir de 1953, quando Lacan se detém, mais
minuciosamente, a estruturar o registro do simbólico. Trata-se do Outro do inconsciente,
cujo funcionamento se estrutura como uma linguagem.
... o homem, desde antes de seu nascimento e para além da morte, está preso na
cadeia simbólica, a qual fundou a linhagem antes que nela se bordasse a história (...)
Essa exterioridade do simbólico em relação ao homem é a noção mesma de
inconsciente (Lacan, 1956/1998, p. 471).
Assim, nessa acepção, podemos passar a compreender a célebre frase de Lacan
(1959/1998): “o inconsciente é o discurso do Outro” (p. 555). Trata-se de tomarmos o
conceito de Outro, remetendo-nos ao domínio da linguagem, determinando o inconsciente.
Nesse sentido, o Outro como “tesouro dos significantes” (Lacan, 1960/1998 b, p. 820), que
permanece em pleno funcionamento à nossa revelia, como marca histórica que remonta à
cultura, ali já se encontra desde antes de nós, fisgando-nos e aprisionando-nos a partir do
encadeamento significante.
Disso, resulta a compreensão de que a linguagem não nos está dada de forma
garantida. É preciso que haja esse aprisionamento.
Tomada nesse sentido, a linguagem não é algo que se desenvolve como uma função
biológica, por uma evolução natural e progressiva. É uma constelação que preexiste à
entrada que o sujeito nela faz, não podendo este modificá-la por sua vontade, só lhe
restando, a ela, se submeter e ser por ela fundado no próprio limite daquilo através do
qual ele será designado mesmo depois de sua morte: seu próprio nome (Fernandes,
2000, p. 41).
A afirmação de Fernandes (2000) nos aponta que, para a psicanálise, um sujeito não
está dado desde o começo. Ele nada tem a ver com uma entidade originária. Tão pouco a
subjetivação se imprime através da maturação biológica, como acontece com certas funções
do organismo (digestiva, respiratória etc). O sujeito não é garantido ao ser pelo mero
aparato desenvolvimentista, como se fosse um dado natural.
Nessa direção, faz-se necessário que abordemos a seguir, como o bebê humano se
constitui enquanto sujeito da linguagem, sendo engendrado a partir de sua relação com o
Outro. Dito de outro modo: quais são as operações necessárias, já que não se trata de uma
evolução natural, para que a criança se situe na dimensão simbólica? Vejamos a seguir.
4.1. A constituição do sujeito
Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra.
(Chico Buarque, 1989).
Quando um bebê nasce não há qualquer indício de que tenha consciência de sua
existência. Nada sabe a respeito dessa unidade sobre a qual possa se reconhecer enquanto
alguém, um eu. “Uma unidade comparável ao eu não existe na origem (...) não está presente
desde o início no indivíduo e o ich [eu] tem de se desenvolver (...)” (Lacan, 1953-
1954/1983, p. 136).
Acontece que, falando do filhote humano, esse “desenvolvimento”, como
afirmamos anteriormente, não depende apenas da maturação biológica. Não nascemos
como os animais, dotados de um instinto capaz de garantir nossa sobrevivência. Essa
capacidade, manter a própria sobrevivência, dependerá, para além do desenvolvimento de
um organismo, da sustentação de um outro.
Antes que a linguagem venha marcar insistentemente sua inscrição simbólica, é
preciso salientar a precariedade motora e o desamparo com que o bebê humano vem ao
mundo; o filhote humano não consegue, por seus próprios meios, ser bem sucedido para
eliminar a tensão que o acomete, perante o advento de suas necessidades primeiras.
Freud ([1895]1950/1987) em seu Projeto para uma psicologia científica,
desenvolve sua tese sobre o início do aparelho psíquico e ressalta esse desamparo. Ele
assinala que as constituições de nossa memória e de nossa possibilidade comunicativa
estão, como que irremediavelmente, ligadas às primeiras experiências de satisfação.
O recém-nascido, como o sabemos, não é capaz de sobreviver por conta própria.
Além de não possuir uma condição motora que lhe permita disponibilizar objetos do mundo
que satisfaçam suas necessidades, sequer sabe como fazê-lo. Quando a tensão perante o
acúmulo dos estímulos endógenos (tais como a sensação inerente à falta de comida) se
torna inevitável, o filhote humano fica à mercê, impossibilitado de fugir de si próprio,
arremetendo-se a uma primeira via de descarga, impressa por uma descarga motora e outra
emocional, as quais, fenomenicamente, são expressas por gritos, modificações do tônus e
da postura. Tais modificações não possibilitam ao nosso filhote "impotente” arrematar seu
estado de tensão advindo de sua necessidade.
Freud ([1895]1950/1987) aponta as implicações desse desamparo inicial,
salientando a dependência de um outro mais experiente:
O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se
efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para
um estado infantil por descarga através da via de alteração interna. (p. 336).
Assim, a remoção do estímulo interno desprazeroso depende de um outro que
ampare o bebê e lhe garanta a sobrevivência. A partir de então, este outro estará inscrito
como parte do objeto de satisfação, pois a experiência de satisfação não só inclui a
lembrança do objeto da necessidade em si, mas toda a gama de acontecimentos que foram
participando do movimento que possibilitou a descarga da tensão. Em outras palavras, o
objeto de satisfação é guardado como traço de memória que carrega consigo todo o rastro
do que se apresenta enquanto movimento do que propiciou o acesso ao mesmo.
Portanto, trata-se de situar uma experiência princeps de satisfação, como lugar
inesquecível que traz consigo a marca do outro que esteve lá enquanto parte insubstituível
do rastro.
Dessa forma, quando se repetir um novo estado de necessidade, os traços mnêmicos
que marcaram essa experiência serão reativados e tais lembranças serão reinvestidas,
acarretando a produção de uma percepção alucinada do objeto de satisfação; na busca de
um retorno àquele momento de remoção de desprazer, o recém-nascido alucina.
Essa memória é uma via possível de postergar a satisfação da necessidade, pois a
partir dela se pode “satisfazer”, provisoriamente, através da alucinação do objeto de
satisfação.
Ainda que o recém-nascido não possa distinguir o objeto real do objeto alucinado,
ele (o objeto de satisfação, tal como foi apreendido) não se encontra ali; o retorno àquela
experiência de satisfação tal como ela se constituiu originariamente, é inviabilizado, e “(...)
a conseqüência inevitável é o desapontamento” (Freud, [1895]1950/1987, p. 372).
O que é importante sublinhar aqui é que a defasagem entre o que se procura e aquilo
que irá ser encontrado converte-se na marca de uma decepção essencial, de um desprazer
inerente; isso porque, como afirma Freud (op. cit.), a imagem mnêmica do objeto será a
primeira a ser afetada pela ativação do desejo (p. 371). A busca desse objeto é o que ele
designa como atração de desejo ou estado de desejo (p. 374).
Freud (op. cit.) remarca a importância desse objeto primeiro que deixou suas
pegadas na trilha de obtenção de satisfação. Uma parte do objeto é possível aprendê-la
como memória, como inscrição psíquica de traços; outra, permanece enigmática,
irrepresentável e inassimilável, inevitavelmente perdida (das Ding).
Esse objeto estará aí quando todas as condições forem preenchidas, no final das
contas - evidentemente, é claro que o que se trata de reencontrar não pode ser
reencontrado. É por sua natureza que o objeto é perdido como tal (...). O mundo
freudiano, ou seja, o da nossa experiência, comporta das Ding, enquanto Outro
absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar. Não a ele, mas suas coordenadas de
prazer (Lacan, 1959-1960/1991, p. 69).
A esse respeito, Medeiros (2001) afirma:
Como veremos, é a tendência a reencontrar esse objeto qualificado, na teoria
lacaniana, como objeto perdido, isto é, a tendência a buscar o objeto em relação ao
qual funciona o princípio do prazer, o que funda o suporte a que se refere toda a
experiência prática do sujeito (p. 81).
A vivência de satisfação, descrita por Freud, ressalta um momento originário, mítico
como poderíamos colocar, de referência às primeiras inscrições psíquicas. Ela é indicada
como um circuito de impressões que remarcam o início de um potencial simbólico, que
parte do grito, e após certas operações cruciais poderá, mais tarde
37
, instituir-se como
possibilidade de constituição de um sujeito de linguagem.
Reiteremos. Abordamos a letra freudiana, assinalando a origem do aparelho
psíquico a partir da experiência original de satisfação, na qual está incluído um “outro mais
experiente” que interprete o bebê. Apontamos o fato de haver uma decalagem entre a
primeira experiência de satisfação e a seguinte, instaurando uma marca específica. Ou seja,
uma discordância em relação ao objeto. É essa decalagem essencial, que no humano,
imprime o vazio que impulsiona o psiquismo e o põe em movimento, na tentativa de
preenchê-lo.
A subjetividade humana, portanto, só poderá vir a se estabelecer a partir desse ponto
essencial. É preciso que o filhote humano se depare com o Outro.
(...) há, inicialmente, apenas o grito, o esperneio. Este não tem como encontrar
palavras para expressar-se, já que não dispõe, originalmente, delas. Seu ingresso,
como dizia Freud, no mundo da comunicação, dependerá de que um Outro venha a
dar sentido aos seus gestos e ruídos convertendo-os numa mensagem (Fernandes,
2000, p. 65).
O fato é que esse “primeiro cuidador”, o Outro primordial, possui um estilo em sua
forma de cuidar. Seus cuidados não podem ser considerados quaisquer, pois suas marcas
37
É só com o advento da castração, no tempo do desfecho edípico, que poderemos nos deparar com a falta
simbólica que constitui o sujeito como desejante. Uma falta indestrutível, posto que nenhum objeto é capaz de
obturá-la. Nesse sentido, o desejo permanece insaciável e insatisfeito por definição. Em um capítulo posterior
nos deteremos na explicitação dessa temática.
são ímpares. A maneira que se presta a fazer essa função
38
, de ir nomeando paro o bebê o
que julga que ele necessita, e, além disso, a maneira pela qual se vai ofertar o objeto de
satisfação, irá fomentar as primeiras inscrições psíquicas, abrindo o caminho para a
constituição do psiquismo do bebê. Assim, a primeira experiência de satisfação está
implicada na sobrevivência do organismo, bem como no nascimento do psiquismo, através
da linguagem advinda de outrem.
Através desta, nos primórdios da existência de um filhote humano, começará a se
constituir o sujeito, que por sua vez, não se confunde com o eu. Mas afinal, esse eu, a partir
do que ele se constitui? Como se dá essa constituição?
Freud é levado a pesquisar acerca do eu
39
a partir de 1906, atravessado pelas
descobertas de seus colegas psicanalistas que vinham tratando de pacientes psicóticos. O
que se verificava nos delírios de grandeza desses pacientes era um crescente
desinvestimento libidinal
40
para com os objetos do mundo, para haver um re-investimento
dessa libido, maciçamente, no eu do sujeito. A megalomania, com seus delírios de
grandeza, seria o protótipo dessa transposição para o eu, inflando-o; libido esta que deveria
ter sido investida e mantida nos objetos do mundo externo.
38
Essa função é, costumeiramente, identificada à mãe, mas pode ser que outra pessoa se preste a fazê-la. Essa
função inicial implica na formulação de demandas ao bebê, na medida que suas vocalizações, choros, gritos,
são tomados como interpretáveis, têm sentidos. Essa função desempenhada pelo Outro primordial, a
designamos como função materna.
39
Podemos perceber que o vocábulo eu já aparece na pena de Freud desde suas correspondências para seu
amigo íntimo Wilhelm Fliess. Em seu Projeto para uma psicologia científica ([1895]1950/1987), este
comparece no interior do conflito psíquico, como uma instância que funcionava no sentido de obstruir o fluxo
energético no aparelho psíquico, exercendo um certo controle no que diz respeito aos estímulos que
provocavam desprazer ou satisfação. Contudo, é preciso ressaltar que esta é uma instância inteiramente
inconsciente que não coincide com o eu que ora estamos tratando. Segundo Garcia-Roza (1984), não devemos
confundir o ego do Projeto com o designado pela operação narcísica. “O ego do Projeto nada tem que ver
com o ego do sujeito. Ele é muito mais um objeto, (...) não possuindo acesso à realidade, não sendo sujeito da
percepção, da consciência ou do desejo” (p.56).
40
Freud (1905/1989) denomina libido a energia sexual que tem sua origem no corpo (numa fonte somática) e
investe os objetos.
Assim, ainda que Freud (1911/1969), analisando o caso do presidente Schereber,
tenha partido das psicoses para falar de narcisismo, posteriormente ele iria tomá-lo como
fenômeno libidinal próprio da evolução normal do ser humano.
Em seu importante artigo Sobre o narcisismo
41
: uma introdução (1914/1974), irá
desenvolver essa temática que passará a cumprir um relevante lugar na conceituação
psicanalítica, salientando o momento lógico da constituição subjetiva em que o filhote
humano se reconhece como um eu. Mas, como Freud irá fazer esse importante
deslocamento teórico, ou seja, a partir de qual premissa ele irá supor o narcisismo como
parte da trajetória do humano, e não uma expressão manifesta nos doentes mentais?
Vejamos as considerações de Freud (1914/1974) nesse contexto:
Que acontece à libido que foi afastada dos objetos externos na esquizofrenia? A
megalomania, sem dúvida, surge às expensas da libido objetal. A libido afastada do
mundo externo é dirigida para o ego e assim dá margem a uma atitude que pode ser
denominada de narcisismo. Mas a própria megalomania não constitui uma criação
nova; pelo contrário, é, como sabemos, ampliação e manifestação mais clara de uma
condição que já existia previamente. Isso nos leva a considerar o narcisismo que surge
através da indução de catexias objetais, como sendo secundário, superposto a um
narcisismo primário (...). Assim, formamos a idéia de que há uma catexia libidinal
41
O mito grego de Narciso refere-se a um jovem de extraordinária beleza que, estando em frente ao seu
reflexo numa fonte de límpida água, se apaixonou por esta imagem, supondo que ela fosse outro ser. No
ímpeto de abraçá-la, enfiou seus braços na água, mas ela não cessava de se esquivar. Desesperado, frente ao
tormento de uma paixão impossível, lágrimas caíram de seus olhos fazendo com que Narciso percebesse que
ele mesmo era o objeto a quem dirigia seu investimento amoroso. Almejou separar-se de sua própria imagem
agredindo-se até sangrar; em um ímpeto desesperado, jogou-se sobre o espelho d’água. Suas irmãs, enlutadas,
desejaram seguir o ritual mortuário, mas quando foram em busca do corpo, perceberam que ele havia se
transformado em uma flor.
original do ego, parte da qual é posteriormente transmitida a objetos, mas que
fundamentalmente persiste e está relacionada a catexias objetais (...) (pp. 91-92).
Freud (1914/1974), portanto, assinala o movimento narcísico da megalomania como
a retirada da energia libidinal investida nos objetos do mundo externo, para investi-la no eu.
Em seguida, ressalta que estamos falando do retorno ao eu de uma energia que
originalmente estava lá, ou seja, na realidade, estamos falando de um re-investimento no
eu, o que implica em considerarmos que “... esse movimento de retirada só pode produzir-
se num segundo tempo, este, precedido de um investimento dos objetos externos por uma
libido proveniente do eu” (Roudinesco & Plon, 1998, p. 531).
A partir dessa perspectiva, Freud trabalhará na conceituação de dois narcisismos, o
primário e o secundário. O eu, por sua vez, constituir-se-ia no tempo lógico do narcisismo
primário, enquanto os investimentos objetais, suas catexias, seriam a manifestação de sua
forma secundária.
Essas novas teorizações produzidas no texto de 1914 obrigam Freud a retomar o
texto produzido em 1905 – Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade
42
e promover
uma articulação lógica com os conceitos edificados até então.
É no segundo dos “três ensaios...” que Freud (1905/1989), situando o ato de sugar
como uma das mais primitivas expressões da sexualidade infantil
43
, originalmente
42
Segundo Roudinesco e Plon (1998), este texto nasceu em 1905, mas teve diversas e valiosas alterações nos
anos subseqüentes. Isso equivale a dizer que o texto original não é o mesmo que aquele da última edição
alemã publicada enquanto Freud estava vivo, em 1925. Importante notar que as modificações mais
significativas ocorreram em 1915, acarretadas pelo eco estrondoso feito pelo artigo Sobre o narcisismo: uma
introdução (1914/1974), quando a “sexualidade infantil” deixa de ser uma expressão meramente descritiva de
comportamentos sexuais na infância, para aceder como conceito explicativo.
43
A psicanálise, desde Freud, salienta que a sexualidade é determinante na constituição psíquica do ser
humano. É preciso assinalar, nesse ínterim, que a sexualidade para a psicanálise é um conceito específico que
confundido com a função de nutrição, vai conceituar o auto-erotismo. Este se constitui
quando o sugar se desconecta da função de autopreservação e se institui como atividade
sexual independente. A experiência primária de sucção junto ao peito materno, obtendo o
tão prazeroso leite morno, funcionou como estímulo para a instituição de uma zona erógena
- no caso, a boca.
O que aí está em jogo é a constituição do prazer de sugar à revelia da dependência a
um objeto externo associado a uma necessidade, ainda que na origem, ambos estivessem
confundidos.
O ato da criança que chucha é determinado pela busca de um prazer já vivenciado e
agora raí est8i
Nesse trecho, como pudemos ver, para assinalar essa ligação originária da
sexualidade com a função do sugar, Freud desenvolveu a importante noção de apoio,
associada à sobrevivência.
O termo apoio designa precisamente essa relação primitiva da sexualidade com uma
função ligada à conservação da vida, mas ao mesmo tempo assinala a distância entre
essa função conservadora e a pulsão
44
sexual. O objeto do instinto é o alimento,
enquanto o objeto da pulsão sexual é o seio materno - um objeto, portanto, externo ao
próprio corpo. É quando esse objeto é abandonado, e tanto o objetivo quanto o objeto
ganham autonomia com respeito à alimentação, que se constitui o protótipo da
sexualidade oral para Freud: o chupar o dedo. Tem início, então, o auto-erotismo
(Garcia-Roza, 1984, p. 100).
Enquanto o termo instinto refere-se à sucção como funcionalmente tendo a
finalidade de garantir alimento, satisfazendo a necessidade orgânica da fome, com a pulsão
o que se demarca é o sugar sensual, próprio da sexualidade humana, cujas coordenadas de
prazer vão impulsionando o movimento do aparelho psíquico.
44
Foi nos “três ensaios...” que Freud (1905/1989) utilizou pela primeira vez o termo pulsão, distinguindo-o
de instinto (Roudinesco & Plon, 1998, p.628). Ele usava Trieb para designar a pulsão e não Instinkt. Segundo
Garcia-Roza (1984), o vocábulo Instinkt foi raras vezes empregado por Freud, que quando o fez, foi para
designar o instinto animal e não o conceito que ele cunhara como correlato da sexualidade humana.
A pulsão, nesses termos, tangencia o oco deixado pela ausência do objeto, pela
inexistência de um objeto concreto capaz de obturar esse oco.
Para Lacan, portanto, a pulsão é uma montagem, caracterizada por uma
descontinuidade e uma ausência de lógica racional, mediante a qual a sexualidade
participa da vida psíquica, conformando-se à “hiância” do inconsciente (Roudinesco
et Plon, 1998, p. 632).
O que Freud (1905/1989) põe em destaque é que a pulsão, no auto-erotismo, além
de encontrar satisfação de forma independente de um objeto externo, também mantém sua
independência em relação à finalidade de se nutrir. Essas “duas dependências”, entretanto
se mantém ativas quando estamos tratando do instinto.
O auto-erotismo será apontado, a partir de então, como um estado originário da
sexualidade infantil e, em outros termos, da sexualidade humana.
Além disso, Freud (op. cit) irá postular que a pulsão, nesse momento de sua
constituição, se apresenta de forma anárquica, desarticulada, obtendo satisfação de maneira
parcial.
Até agora, destacamos como características da vida sexual infantil o fato de ela ser
essencialmente auto-erótica (seu objeto encontra-se no próprio corpo) e de suas
pulsões parciais serem inteiramente independentes entre si em seus esforços pela
obtenção de prazer (Freud, 1905/1989, p. 185).
Dessa maneira, a pulsão sexual se revela pela parcialidade, no sentido que se
restringe a excitação de uma zona erógena, encontrando a satisfação da mesma no local, em
detrimento de qualquer objeto exterior. É ao que Freud (1905/1989) irá referir-se como
prazer do órgão.
Essa anarquia pulsional se mantém no auto-erotismo até que uma importante
transformação possa ter seu lugar; Freud (1914/1974) irá, precisamente, colocar em negrito
o que está em jogo nessa transformação - a constituição do eu. Ele afirma que o eu não está
lá na origem; lá, no início, o que se colocava eram as pulsões parciais auto-eróticas.
...uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o
ego tem de ser desenvolvido. As pulsões auto-eróticas, contudo, ali se encontram
desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja ali adicionado ao auto-
erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo (Freud,
1914/1974, p. 93).
Logo, para a psicanálise, a constituição do eu é marcada por esses dois tempos. O
auto-erotismo, seguido do narcisismo primário.
Já tendo tomado o auto-erotismo como esse primeiro modo de satisfação libidinal,
quando as pulsões parciais buscam a satisfação nas partes do próprio corpo, passaremos
agora ao enfoque do importante artigo Sobre o narcisismo: uma introdução (1914/1974),
no qual Freud enfatiza a posição do casal parental na constituição do eu.
O que está, fundamentalmente, em jogo na constituição de um eu é um traço
essencialmente humano. É necessário que haja investimento libidinal de alguém, pois sem
isso se faz impossível destacá-lo da indiferenciação.
Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos, temos que
reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que
de há muito abandonaram (...). Assim eles se acham sob a compulsão de atribuir todas
as perfeições ao filho – o que uma observação sóbria não permitiria – e de ocultar e
esquecer todas as deficiências dele (...) ela [a crinça] será mais uma vez realmente o
centro e o âmago da criação - Sua Majestade o Bebê, como outrora nós mesmos nos
imaginávamos. A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais
realizaram (...). O amor dos pais tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é
senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal,
inequivocamente revela sua natureza anterior (Freud, 1914/1974, p. 107-108).
Para abordarmos esse momento fundamental da estruturação psíquica, teremos que
considerar, portanto, que a história de um ser inicia-se mesmo antes de seu nascimento. As
idealizações que a família, e fundamentalmente a mãe, dirigem ao feto vão, aos poucos,
delineando seu lugar dentro da dinâmica familiar.
Mesmo depois de nascido, ainda que o bebê não fale, outros ao seu redor falarão
sobre ele, interpretarão sentidos, supondo que estão “lendo” o que o bebê “quer dizer”,
imprimindo marcas. Essas marcas remontam a épocas mais remotas da constituição dos
próprios pais, ao seu narcisismo.
O investimento que os pais dedicam à criança constitui uma imagem idealizada com
a qual o bebê irá identificar-se. Esse investimento, é essencial sublinharmos, revela a
reedição do próprio narcisismo a que outrora renunciaram. É desde a posição de seu
narcisismo perdido, mas agora renascido sob uma forma culturalmente aceita, que as
palavras dos pais poderão ter sua inscrição no narcisismo primário do filho. É o rastro que
ficou do dia em que eles próprios eram o ideal de seus pais. Freud (1914/1974) denomina
essa imagem idealizada que se projeta sobre o bebê, e à qual ele se aliena, de eu ideal.
Assim sendo, o eu ideal de cada um, ponto identificatório original, comparece de
uma forma transformada na relação de investimento objetal.
Dito em outras palavras, o eu ideal dos pais (marca original do próprio narcisismo)
ao ser renunciado no tempo de sua constituição subjetiva, não desapareceu por completo,
restou enquanto fonte originária agora transformado em ideal do eu, pois está submetido à
lei de interdição, às exigências da cultura, mediadas, como vimos, pela palavra e pela
linguagem.
Como acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem
mostrou-se incapaz de abrir mão de uma satisfação que outrora desfrutou. Ele não
está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando, ao crescer,
se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio
juízo, de modo a não mais poder reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a
nova forma do ideal do eu
45
. O que projeta diante de si como seu ideal é o substituto
45
Grifo da autora. Na Edição brasileira encontra-se aqui Eu Ideal. No entanto, dada a impossibilidade de
coerência conceitual, nesse trecho do trabalho, utilizamos a edição Amorrortu (2000).
do narcisismo perdido na infância, na qual ele foi seu próprio ideal (Freud,
1914/2000, p. 111).
Vemos, portanto, anunciada a diferença entre o eu ideal e o ideal do eu. Assim
como o primeiro é correlato do narcisismo primário, momento originário da constituição
do eu enquanto unidade, o segundo corresponde à renúncia a este estado de alienação
forjado à imagem da perfeição alçada pelos ideais parentais. Uma renúncia, cabe dizer, que
só foi movida pelas admoestações de terceiros. Nesse sentido, como afirma Nasio (1989),
“o elemento mais importante que vem perturbar o narcisismo primário não é outra coisa
senão o ‘complexo de castração’
46
É através dele que se opera o reconhecimento de uma
incompletude que desperta o desejo de recuperar a perfeição narcísica” ( p. 51).
O que queremos deixar assinalado aqui é que os pais irão dar o contorno para essa
“perfeição” que enxergam em seu filho de acordo com a sua própria história. São atributos
que foram forjados a partir dos anseios daqueles que portam os ideais e que irão projetá-los
sobre o bebê.
Podemos concluir resgatando: o auto-erotismo é o momento inaugural de um ser
que entra em contato com o prazer e com o desprazer; estamos tratando de um estado
originário da satisfação da libido, quando as pulsões parciais visam à satisfação no próprio
corpo, no prazer que um órgão pode obter de si próprio. Nesse sentido, os objetos
investidos pelas pulsões são as partes do próprio corpo.
Com o progressivo investimento parental, a partir de suas idealizações, o bebê
organiza uma idéia de unidade de si, unificando as pulsões, antes fragmentárias, em torno
46
Esse tema será retomado em capítulo posterior.
de um eu. Nesse ponto, o narcisismo primário se apresenta como o investimento libidinal
sobre o eu, tomando-o como objeto, passando a ser referendado como o reservatório da
libido.
Mas, por que a criança irá renunciar a esse idílico lugar narcísico, no qual exerce
uma posição de Sua Majestade? Quem o faria de bom grado?
De fato, o que ocorre não é uma renúncia assim tão voluntária. Ela é convocada a
fazê-lo pelas exigências externas, mediadas pela linguagem. O edifício narcísico racha
quando a criança se dá conta de que outras coisas, para além de si própria, convocam o
interesse da mãe. Já não se vendo como tudo para ela, apesar de toda “sua majestade”,
acaba ficando destronada.
Diante dessa dolorosa constatação, a criança assume o novo objetivo de
reconquistar seu trono, fazendo-se amar pelo outro, agradando-o para recuperar o lugar
perdido, mas tão almejado. Isso, cabe colocar, só poderá ser feito, respeitando as exigências
que lhe são impostas que, para Freud (1914/1974), representam as exigências do ideal do
eu. Como afirma Nasio (1989):
Esse conceito designa, em Freud, as representações culturais e sociais, os imperativos
éticos tal como transmitidos pelos pais. Para Freud, o desenvolvimento do eu consiste
em distanciar-se do narcisismo primário. Na realidade, o eu “aspira intensamente” a
reencontrá-lo, e para isso, para recuperar o amor e a perfeição narcísica, passa pela
mediação do ideal do eu. (p. 51).
Passaremos agora para a abordagem de Lacan acerca do conceito de narcisismo,
explicitando como, para esse autor, se dá a constituição do eu com referência à imagem do
outro, bem como tornando mais claras as acepções de eu ideal e ideal do eu no interior da
teorização.
4.2. O narcisismo em Lacan
Abordamos o percurso da operação narcísica, quando a constituição do eu se faz
possível tomando como referência a letra freudiana. Partimos da indiferenciação do filhote
humano e, em seguida, nos dirigimos para a constituição de uma concepção de eu, o que
promove uma representação de si, desde o investimento parental.
Lacan assume as acepções freudianas da inexistência de uma unidade comparável
ao eu anterior ao narcisismo e conceitua o que designou como Estádio do Espelho
47
, para
explicitar, precisamente, essa experiência subjetiva que corresponde à constituição do eu,
sublinhando a importância da imagem unificada do corpo.
Freud (1923/1976) havia se posicionado nessa direção salientando em O ego e o id:
“O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de
superfície, mas é, ela própria, a projeção de uma superfície” (p. 50).
Com o intuito de legitimar a eficácia da imagem operando na constituição do
sujeito, Lacan se serve da física, através dos modelos ópticos, visando representar as
relações em jogo. Partindo da interface das imagens reais e virtuais, o referido autor irá
47
Também conhecida no Brasil como Estágio do Espelho ou Fase do Espelho. Temos uma primeira elaboração sobre o
estádio do espelho em 1936, no XIV Congresso de Marienbad, posteriormente, sendo retomada numa comunicação feita
em Zurique com o título O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência
psicanalítica (1949/1998).
enfatizar a potência estruturadora da imagem na trajetória da constituição humana,
sublinhando seu caráter ilusório, enganador, mas extremamente necessário.
Assim, Lacan (1953-1954/ 1983) propõe uma pontual reflexão acerca das imagens e
sua incidência sobre a constituição do corpo próprio, fazendo antever o paradoxo inerente
acerca do que se revela como mundos externo e interno, e acabando por situar o que se
apresenta como mundos objetivo e subjetivo. No intuito de lançar luz acerca dessa questão,
ele nos traz o exemplo do arco-íris. Vejamos em suas palavras:
Por um outro lado, existe em óptica uma série de fenômenos de que se pode dizer que
são inteiramente reais, porque também é a experiência que nos guia nessa matéria,
mas em que, entretanto, a todo instante, a subjetividade está engajada. Quando vocês
vêem um arco-íris, vêem algo de inteiramente subjetivo. Vocês o vêem a uma certa
distância que se desenha na paisagem. Ele não está ali. É um fenômeno subjetivo. E,
entretanto, graças a um aparelho fotográfico, vocês o registram de modo inteiramente
objetivo. Então o que é isso? Não sabemos mais muito bem, não é, onde está o
subjetivo, onde está o objetivo. Ou não seria que temos o hábito de colocar no nosso
compreendedorzinho uma distinção muito sumária entre o objetivo e o subjetivo? (p.
93).
Como podemos notar, o acento dessa afirmação recai sobre a noção de uma
neutralidade impossível de existir. Dito de outra forma, aquilo que se inscreve como o
mundo objetivo não pode ilidir o subjetivo. O dado do humano, enquanto sujeito da
linguagem, se imiscui enquanto universo simbólico que compõe as percepções da realidade.
Essas são colocações importantes para a teoria de Lacan, pois o que está sendo
posto em jogo aqui é o olhar humano, o olhar de investimento que se situa na medida
mesmo que recorta o que podemos enxergar; algo se destaca de um fundo, fazendo-se
visível para nós.
Portanto, para que se faça um eu, é preciso que ele possa ser destacado de um
fundo; é necessário que o Outro (representado pela mãe) ponha ali suas marcas para que o
corte incisivo do significante se inscreva, organizando esse corpo e dando-lhe um contorno,
fazendo com que as pulsões, antes parciais (lógica auto-erótica), agora possam
circunscrever um corpo, ao qual, precisamente, nos referimos como um eu (lógica
narcísica).
Para Lacan (1953-1954/1979), é precioso que o bebê humano vá sendo capturado
pelo significante na medida que a função materna vai laboriosamente se inscrevendo. Cabe
dizer que, para exercer essa função, é preciso que se olhe aí no bebê, porque é lá que se
vislumbra algo de valor, algo de grande interesse para arrancar o bebê de sua
indiferenciação e constituir uma primeira identificação. Esta, portanto, é referente ao olhar
da mãe dirigido a seu filho; um olhar que reflete súplicas e exigências, como mencionamos
anteriormente, desde a obra freudiana. Ou seja, desde a concepção, o futuro bebê ocupa um
lugar no inconsciente materno, seja imprimindo traços de perfeição e capacidades ou, ao
contrário, rejeitando-o. Seja como for, de um modo ou de outro, o bebê, inicialmente, não
possui ainda uma subjetividade que lhe seja própria, sendo tributário do narcisismo
parental.
O que o Outro promete em seu discurso é a possibilidade de que ele venha a ser
alguém entre os semelhantes, na medida que pode reconhecê-lo como esse alguém, desde
que assuma a imagem que lhe é destinada. Esse Outro
48
, é preciso frisar, não é um sujeito,
mas um lugar de referência do simbólico enquanto o dado humano da linguagem.
Essa imagem que se vê no bebê é profundamente marcada por aquele que a vê.
Dessa forma, a aquisição da imagem especular só é possível de ser tomada como unidade
de referência a si próprio - o eu - se considerarmos a relação com o Outro, que faz as vezes
do espelho.
4.2.1. O Estádio do Espelho
Lacan (1949/1998) irá sublinhar com sua postulação do Estádio do Espelho que a
constituição do sujeito necessita de um suporte, e este é a própria imagem de um corpo
unificado. Ele nos indica que o reconhecimento da imagem própria deve ser remarcado
como acontecimento de suma importância no que se refere ao advir de um sujeito, devendo
ser tomado como operação psíquica, na qual o filhote humano se identifica com um
semelhante, possibilitando a constituição do eu
49
.
Para tanto, remete-nos aos primeiros meses de vida, nos quais o filhote humano,
devido a sua insuficiência orgânica, se apresenta extremamente dependente de um outro
para sua sobrevivência.Tal insuficiência é atestada pelo seu inacabamento anatômico do
sistema piramidal (próprio de sua tenra idade). Algum tempo depois de completar seis
48
Falamos, anteriormente que essa possibilidade constitutiva só nos é possível a partir do discurso de um
outro que possa funcionar como pessoa mais experiente, capaz de interpretar-lhe o choro, o grito, o esperneio,
fazendo advir a ordem do sentido para suas necessidades, mas também pontuando-lhe um sistema de
parentesco ao qual está inserido, bem como atribuindo-lhe um sexo e um nome. O que é preciso deixar claro é
que esse outro, na verdade, é o representante primeiro da ordem simbólica que vínhamos conceituando como
o Outro, ou seja, o grande Outro da linguagem, enquanto estrutura transindividual.
49
Nesse trabalho (op. cit.), o autor assinala a discordância entre o uso do je e do moi franceses. A tradução
brasileira adotou a solução de traduzir essa distinção utilizando-se o vocábulo eu para se referir ao moi, ao
passo que o je, convencionalmente, foi grafado em português como [eu], entre colchetes.
meses, ainda que não possua o domínio corporal coordenado, já é capaz de reconhecer sua
imagem no espelho; ao fazê-lo, compreendendo, justamente, que aquela não é uma imagem
qualquer, mas, sua própria imagem, revela júbilo e comemoração.
Um pouco mais tarde, o referido autor, retomando essa questão irá afirmar:
É sobre isso que insisto na minha teoria do estádio do espelho - a só vista da forma
total do corpo humano dá ao sujeito um domínio imaginário do seu corpo, prematuro
em relação ao domínio real. Essa formação é destacada do processo mesmo de
maturação e não se confunde com ele. O sujeito antecipa-se ao acabamento do
domínio psicológico, e essa antecipação dará seu estilo a todo exercício posterior do
domínio motor efetivo (Lacan, 1953-1954/1983, p. 96).
Essa descoberta – o reconhecimento de uma imagem própria unificada em um ser
que ainda não pode articular os movimentos - revela que, objetivamente, esta unificação
carrega o estatuto de uma ficção estruturante, pois ainda que não haja o domínio da
atividade motora, a imagem unificada de si cauciona o prosseguir da constituição do
sujeito. É uma unidade antecipada que precipita o movimento de subjetivação.
Tal defasagem – imagem unificada e incoordenação motora - impõe, por sua vez,
uma tensão que envolve dois lados de uma mesma moeda: por um lado, a antecipação da
unidade, ativando a promessa de que mais adiante haverá o controle corporal e, por outro
lado, a percepção da unidade promove, retrospectivamente, um saber sobre aquilo que fora
antes da unificação, ou seja, a vivência de uma fragmentação corpórea
50
.
O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência
para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação
espacial, as fantasias que se sucedem desde a imagem despedaçada do corpo até uma
forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica – e para a armadura enfim
assumida de uma identidade alienante que marcará com sua estrutura rígida todo seu
desenvolvimento mental (Lacan, 1949/1998, p. 100).
Nesse sentido, a antecipação da unidade corporal, possibilitada pelo reconhecimento
da imagem própria a partir da imagem de um outro, promove uma transformação no modo
de funcionamento libidinal do sujeito, na medida que incide sobre uma identificação
estruturante, provocando a precipitação do sujeito em sua forma primordial, enquanto
matriz simbólica.
Nas palavras de Lacan (1949/1998):
A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na
impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem (...)
parecer-nos-á pois, manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o
50
Corpo fragmentado, corpo despedaçado, corps morcelé, são diferentes formas de situar essa vivência
anterior à
unificação dada pelo eu.
[eu] se precipita numa forma primordial, antes que a linguagem lhe restitua, no
universal, sua função de sujeito (p. 97).
Dessa forma, o eu constituído à imagem e semelhança de um outro se apresenta
como indicativo de um sujeito que ainda está por vir, mas que só terá lugar desde que o
significante opere, determinando o sítio da linguagem. Em outras palavras, o eu prepara o
terreno para o advento do sujeito da linguagem.
Dito isto, precisamos ressaltar um ponto fundamental para dar prosseguimento a
nossa explicitação teórica, ou seja, a constituição do eu imaginário (moi) que se refere à
unificação da imagem corporal conferida por intermédio da imagem do outro. Trata-se de
uma mediação necessária.
Portanto, o Outro, tesouro dos significantes, lá está desde a origem, presente
enquanto palavra, desde um posicionamento muito particular, posto que encarnado na voz
daquele que exerce a função materna. Será essa pessoa que irá fomentar a constituição da
imagem especular, considerada por Lacan como eu ideal, origem das identificações
secundárias.
Assim como Freud, Lacan (1960/1998 a) no texto Observação sobre o relatório de
Daniel Lagache: psicanálise e estrutura da personalidade irá apontar a constituição
simbólica dos pais como a origem dos atributos que irão marcar a posição que a criança
deverá assumir para que possa receber a confirmação oriunda do Outro. Resgata, dessa
maneira, a função do Ideal que se mantém operando desde o universo simbólico parental
antes mesmo que a criança tenha nascido.
É que o Outro em que o discurso se situa, (...) não o é a tal ponto que não se exponha
até mesmo na relação especular em seu gesto mais puro: no gesto pelo qual a criança
diante do espelho, voltando-se para aquele que a segura, apela com o olhar para o
testemunho que decanta, por confirmá-lo, o reconhecimento da imagem, da assunção
jubilatória em que por certo ela já estava lá (p. 685).
O que aparece como de fundamental importância para ser aqui assinalado é que a
imagem já estava lá afirmada, necessitando ainda de uma confirmação. Nesse sentido,
temos um primeiro instante, afirmado desde o Outro, uma imagem originária da criança
seguindo as insígnias dos ideais parentais, e um momento seguinte que corresponde ao
apelo da criança pela confirmação do que já estava lá, para ser apropriado por ela.
Portanto, ainda que seja a unificação da imagem de um corpo o que está sendo ali
constituído, é a partir de investimentos libidinais submetidos à ordem simbólica que esta
imagem se faz possível. Logo, a constituição do eu está subordinada ao universo simbólico,
cujos pais encontram-se, normalmente, como seus representantes primeiros.
Assim como Freud, Lacan assinala, ao longo de sua obra, que estes ideais da criança
em constituição advêm das fantasias parentais e, nesse ínterim, comenta o que há de
paradoxal nesse argumento. Ou seja, uma imagem ideal, ninguém pode sê-la de fato; o que
se constata é que o eu é por demais insuficiente para mantê-la. Lacan (op. cit.) irá pontuar o
conflito inerente desse jogo de imagens, na qual a baliza é o outro. Evoca, nesse sentido, a
articulação da dimensão agressiva, situando que no registro do imaginário, uma rivalidade
se instaura acirrando a tensão que imputa sempre a escolha de vida ou morte, em que dois
não podem ser um numa fusão, o que implica em amálgama, onde já não se podem
contabilizar dois. Esta fusão alienante tem, sobretudo, um preço.
É necessário a ele ou tolerar o outro como uma imagem insuportável, que o arrebata
de si mesmo, ou quebrá-lo imediatamente (...) a fim de conservar aquilo que é,
naquele momento, centro e pulsão de seu ser, evocado pela imagem do outro, seja
especular ou encarnada. O laço entre imagem e agressividade é aqui, inteiramente
articulável (Lacan, 1960-1961/1992, p. 340).
O Outro é convocado, justamente aí, para mediar essa relação dual a partir da lei
simbólica, que em sua ausência restaria como relação mortífera, obstáculo para o
prosseguimento na fundação de um sujeito. É a mediação do Outro que, ao ser demandado
pela criança, lhe fornece um signo que funciona como reconhecimento. Isso significa dizer
que na operação do estádio do espelho, o que se produziu foi a constituição do eu mediante
a eficácia simbólica do Outro.
No entanto, uma importante consideração acerca da identificação à imagem do outro
merece ser assinalada aqui. Uma imagem não pode representar totalmente o ser. Assim, ao
assumir uma imagem, parte da experiência fica rechaçada, excluída da representação, posto
que a experiência, em sua totalidade não pode ser aprisionada na imagem.
Logo, ainda que a imagem funcione no sentido de promover maior estruturação
subjetiva, ao mesmo tempo instaura um desconhecimento, pois o eu ignora o resto, ou seja,
desconhece o que ficou fora da representação. Esse resto resistente à representação,
subsumido da experiência do eu, ainda está ali, em funcionamento, mesmo que ignorado. O
sujeito, dessa forma, permanece irrepresentado por um significante.
Essa diferença explicitada pela impossibilidade da representação encobrir por
completo o que há para ser representado impõe uma defasagem essencial que impele a que
se busque dar conta, amenizar a “imperfeição” representativa, fazendo com que um
significante se remeta a outro, visando à completude do sentido, fomentando a constituição
da cadeia significante. No entanto, ainda que seja uma louvável tentativa de recuperação da
totalidade subjetiva ela não pode ser bem sucedida, posto que não há significante capaz de,
por si só, aprisionar todo o significado. Portanto, a lógica própria da linguagem situa a
constituição de um sujeito inexoravelmente atrelado à incompletude.
Na busca de preencher o que se apresenta enquanto o ponto obscuro do ser, para
então apreendê-lo, o sujeito vai tentando nomear isso que lhe falta, significantizando; são
os significantes do desejo que, na tentativa de preencher aquilo que falta
51
ao Outro, vão se
articulando em uma cadeia. Esta, por sua estrutura de deslizamento, impõe o caráter sempre
parcial de suas significações, não podendo ser a coisa em si, mas a representação de algo
que não está ali. “Seja como for, o homem não pode visar a ser inteiro (...) visto que o jogo
de deslocamento e condensação a que está fadado no exercício de suas funções marca sua
relação de sujeito com o significante” (1958/1998, p. 699).
A identificação à imagem especular, permitida a partir da antecipação da unidade
corporal, só foi possível a partir de um outro, cujo olhar desejante pôde sustentar a função
do Outro (tesouro dos significantes). Dessa forma, podemos considerar que a identificação
51
Sob esta falta, Lacan (1958/1998) cunhou o conceito de desejo. “O desejo não é, portanto, nem o apetite de
satisfação, nem a demanda de amor, mas a diferença que resulta da subtração do primeiro à segunda, o
próprio fenômeno de sua fenda (spaltung) (p. 698).
à imagem especular veicula, paradoxalmente, a faceta simbólica, pois o bebê só se
identifica à imagem na medida em que busca responder ao significante do desejo do Outro,
visando tamponar, numa tentativa vã, a falta inerente do sujeito materno.
Acreditamos ser importante, como desfecho e síntese desse capítulo, resgatar que o
eu não deve ser confundido com o sujeito do inconsciente; somente o simbólico poderá
interferir, quando adquirir sua operacionalidade, no sentido de balizar a relação com o
outro, regulando o investimento narcísico.
Dissemos que o estádio do espelho constitui a matriz simbólica do sujeito. No
entanto, a constituição desse sujeito somente se dará com a passagem pelo Édipo, o que
demarca a distinção entre consciente e inconsciente, atrelando a criança, inexoravelmente, à
ordem da Linguagem, do Significante e da Lei.
4.3. A operação edípica
É preciso colocar, desde já, que o Complexo de Édipo, enquanto noção central da
teoria psicanalítica, foi sendo objeto de trabalho de Freud durante toda sua obra. Nesta, não
encontramos um texto especialmente dedicado a abordá-lo em sua íntegra.
Iniciaremos apresentando, de forma breve, a partir de quais acontecimentos o Édipo
nasceu na escritura de Freud, passando a se constituir, na teorização psicanalítica, como um
momento fundante.
Em carta a Fliess, datada de 15 de outubro de 1897, Freud refere-se à famosa
tragédia de Sófocles:
Descobri, também em meu próprio caso, o fenômeno de me apaixonar por minha mãe
e ter ciúmes de papai, e agora o considero um acontecimento universal do início da
infância (...). Se assim for, podemos entender o poder de atração do Oedipus Rex, a
despeito de todas as objeções que a razão levanta contra a pressuposição do destino
(...); a lenda grega capta uma compulsão que todos reconhecem, pois cada um
pressente sua existência em si mesmo. Cada pessoa da platéia foi, um dia, um Édipo
em potencial na fantasia, e cada uma recua horrorizada, diante da realização de sonho
ali transplantada para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu
estado infantil do estado atual (Masson, 1986, p. 273).
O mito de Édipo irrompe exemplar, sendo interpretado por Freud como
mito/metáfora de um desejo infantil incestuoso.
Cabe aqui ressaltar, é apenas exemplarmente que Freud elege o mito, pois o que na
realidade está em foco para ele é a estruturação do psiquismo de uma criança, de suas
identificações, que só serão possíveis a partir da montagem específica de uma família (ou
seu substituto) que possa operar certas funções.
O Édipo consiste, como a própria palavra complexo insinua, num nó de relações,
numa montagem que estrutura os limites de nossa própria subjetividade desejante. (...)
Assim, o Édipo (...) é uma verdadeira encruzilhada estrutural inerente à subjetividade,
na qual põe-se em jogo a instauração da falta do objeto ou a articulação do desejo
(Lajonquière, 1992, pp. 193 e 194).
Freud (1905/1989), como já dissemos anteriormente, sublinha a existência da
sexualidade humana desde a tenra infância, ao contrário de supô-la apenas a partir da
puberdade, e inaugura uma abordagem psíquica do sexual em detrimento de um
posicionamento “biologizante” tão arraigado na época. Ele depõe contra a alegoria de uma
infância assexuada, apontando-a como um período fértil de exploração e investigação
sexual. Demonstra como as atividades infantis são constantes fontes de prazer e auto-
erotismo. Expressa as “teorias” infantis que visam explicar os enigmas do nascimento, da
cópula e da distinção entre os sexos. Porém, situa que a organização genital só poderia ser
alcançada no período da puberdade.
Entre essas teorias, figura aquela em que a criança obstinadamente acredita na
universalidade do pênis, tanto nos homens quanto nas mulheres. Essa peculiar teoria
infantil é que caracteriza a fase fálica. Ao longo de sua obra, Freud vai procurando deixar
claro que o falo
52
não é, teoricamente falando, o mesmo que pênis.
O que é preciso ser colocado em relevo aqui é a importante diferenciação conceitual
entre pênis e falo, na qual o primeiro restringe-se à realidade corporal da anatomia
masculina, e o segundo ressalta a qualidade simbólica que representa um objeto destacável,
passível de circular de uma pessoa para outra, fornecendo a capacidade de suprimir toda e
qualquer tensão, ou seja, eliminando os desequilíbrios que movimentam o sujeito. Neste
sentido, o falo designa um objeto mítico, pois que representa o impossível, o inexistente,
expressando-se como símbolo daquilo que falta.
Em seu texto A organização genital infantil - uma interpolação à teoria da
sexualidade (1923/1976), Freud retoma os estudos acerca da sexualidade infantil,
52
Cabe acrescentar que Freud muito raramente utilizou o termo falo em sua forma substantiva.
afirmando que suas concepções acerca da genitalidade estavam equivocadas e as corrige,
apontando, então, que uma organização genital infantil está presente antes mesmo de
qualquer possibilidade reprodutiva, fazendo frente às concepções desenvolvimentistas.
Hoje não mais me satisfaria com a afirmação de que, no primeiro período da
infância, a primazia dos órgãos genitais só foi efetuada muito incompletamente ou
não o foi de modo algum. A aproximação da vida sexual da criança à do adulto vai
muito além e não se limita unicamente ao surgimento da escolha de objeto (Freud, op.
cit., p. 180).
Assinala, assim, que não se trata de uma sexuação biológica, mas da sexuação de
um ser humano, ser de linguagem. Para ambos os sexos (meninos e meninas), essa teoria
infantil funciona como o pano de fundo do Édipo, impulsionando sua articulação acerca da
produção de um saber sobre a diferença anatômica entre os sexos.
Contudo, cabe colocar, os caminhos edípicos para os meninos diferem dos das
meninas, ainda que o falo permaneça como o eixo central em ambos os casos. Tanto os
meninos quanto as meninas apostam, num primeiro momento edípico, que todos têm pênis.
Enquanto os primeiros formulam teorias que invalidam a percepção de que as meninas
carecem desse órgão, tais como, “é pequenininho, mas crescerá”; para as meninas algo de
semelhante se sucede, pois seu clitóris sustenta o mesmo valor. Até aqui a trajetória pode
ser considerada coincidente. Seguiremos com os meninos.
Freud coloca que os meninos vão ter que lidar com as sanções perante suas práticas
auto-eróticas; mediante esse contexto, o menino se depara com o receio de que possa perder
o tão valorizado órgão. Diante dessa temida possibilidade, passa a ressignificar a percepção
advinda do corpo das meninas, passando a concebê-las como aquelas que não têm pênis,
sendo, portanto, castradas. Para eles, o que se destaca é a falta de pênis, sendo impossível
conceber uma vagina, produzindo a dicotomia: ser com pênis ou ser castrado.
A ameaça que se formula é que poderá perder seu próprio pênis, caso continue a
brincar com o mesmo, visto que existem seres que já o perderam de fato.
Entretanto, nosso menino em constituição não admite, ainda, que seres importantes
para ele, tais como sua mãe, podem não carecer de tão estimado órgão. Com o “prosseguir
da carruagem” edípica, nosso menino já concebe que até mesmo sua tão especial mamãe é
passível de não ter pênis. Essa constatação, a castração materna, provoca aquilo que
designamos como angústia inconsciente de castração.
A mãe já o perdeu. Para que ele também não corra esse risco, renuncia a seus
interesses incestuosos, evitando a manutenção da angústia. Assim, ao renunciar à mãe
como objeto primeiro, submete o desejo infantil à lei da interdição, imposta pela cultura.
No caso da menina, cujo primeiro objeto de amor também é a mãe, ela irá deparar-
se com o saber que seu pequenino clitóris não é o mesmo que um pênis. Além do mais,
aquilo que pensava se restringir a sua desventura íntima, na verdade se expande para a
anatomia de outras mulheres, inclusive sua própria mãe. Assim, enquanto no menino o
complexo de castração se apresentava como angústia de perdê-lo, nas meninas o que se
configura como esse complexo é a inveja do pênis. Ao se deparar com a castração na mãe,
a menina se posiciona diante da mesma com agressividade e desprezo, pois a responsabiliza
por ter sido gerada castrada como ela própria. Só então a menina abdica de sua mãe como
objeto amoroso para se dirigir a seu pai, supondo que este poderá lhe ressarcir um pênis sob
a forma de um equivalente, na figura de um filho.
Para Freud, o menino “sai” do Édipo a partir do complexo de castração, e a menina
se confrontará com um tempo de saída no gerúndio, um “ir saindo”, tributário de um
reconhecimento de que o pai não irá ressarci-la, não terá de seu pai o filho que deseja.
Em o Ego e o Id (1923/1976) Freud assinala o Complexo de Édipo como o correlato
do complexo de castração. Pontua que ele se revela operando quando o menino é tomado
por intensas sensações apaixonadas em relação à mãe, posicionando-o ora como rival do
pai, ora como seu fiel admirador. Também, o que é essencial a ser demarcado nesse texto, é
que o menino também se comporta de maneira inversa, apaixonando-se pelo pai e
hostilizando a mãe. Ambas as posições são complementares, promovendo o Édipo
completo.
A leitura de Freud empreendida por Lacan traz para o primeiro plano a dialética da
presença e ausência de um pênis, ressaltando a teorização empreendida acerca da falta de
objeto, referindo o Falo como um símbolo, um significante que se configura como aquilo
que falta à mãe, como o significante de seu desejo.
Que o falo seja um significante impõe que seja no lugar do Outro que o sujeito tem
acesso a ele. Mas, como esse significante só se encontra aí velado e como razão do
desejo do Outro, é esse desejo do Outro como tal que se impõe ao sujeito reconhecer,
isto é, o outro enquanto ele mesmo é um sujeito dividido (...) (1958/1998, p. 700)
Lacan (1953/1998), retomando a letra freudiana, vai nos mostrar, assim, que o que
se instaura com a travessia edípica é a aquisição do simbólico, ao mesmo tempo em que se
funda um sujeito da linguagem.
O referido autor (1957-1958/1999) aborda essa travessia de modo estrutural,
referindo três tempos lógicos (não datáveis) necessários nessa encruzilhada para que se
formule o sujeito. Nesses tempos, cada pessoa se posicionará de maneira sui generis, uma
vez que a trajetória de cada criança marcada pela sua história é sempre singular.
No primeiro tempo do Édipo, o contexto fundamental que merece ser sublinhado,
refere-se à passagem de um ser biológico para um ser erógeno, através da relação dual do
bebê com um outro (célula narcísica). É disso que trata o momento do Estádio do Espelho,
ao qual há pouco nos referimos..
É preciso assinalar, entretanto, que essa relação está pautada por três termos: a mãe
– a criança e o falo. Uma mãe fálica e seu filho identificado ao falo, que satura qualquer
falta materna. “O sujeito se identifica especularmente com aquilo que é o objeto do desejo
de sua mãe” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 198). O bebê nesse contexto acredita-se suficiente
para suprir o desejo da mãe. A criança permanece assim como assujeitada ao desejo do
outro.
Para a mãe, contudo, o bebê é símbolo do falo, posto que ela já está submetida à
castração ou, em outras palavras, ao simbólico, desde a sua própria travessia edípica.
Assim, a criança ocupa, nesse primeiro tempo, o lugar de falo imaginário, supondo-
se objeto do desejo materno. Identifica-se à imagem do objeto que falta à mãe.
Nas palavras de Lacan (1959/1998): “O terceiro termo do ternário imaginário,
aquele em que o sujeito se identifica, em oposição com seu ser de vivente, nada mais é
senão a imagem fálica (...)” (p. 559).
O segundo tempo do Édipo consiste na entrada de um terceiro
53
que interdite a
relação dual. A mãe sinaliza para o bebê que algo mais para além dele próprio lhe causa o
desejo, que ele, de fato, não é capaz de supri-lo.
Essa interdição refere-se a um duplo não que, por um lado, frustra a criança do seu
objeto de desejo e, por outro, priva a mãe de seu objeto fálico. “Essa mensagem não é
simplesmente o Não te deitarás com tua mãe, já nessa época dirigido à criança, mas um
Não reintegrarás teu produto, que é endereçado à mãe” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 209).
A interdição é o que possibilita o acesso do sujeito ao universo simbólico. Trata-se
da instauração de um tempo intermediário de passagem entre o primeiro e terceiro tempo,
que se expressa muito mais como um corte do que como um tempo de permanência.
Estamos diante de um paradigma que merece ser sublinhado - a castração, ou seja, a
separação da mãe é temida ao mesmo tempo em que desejada. Temida, na medida em que a
permanência no lugar do falo materno implica o desaparecimento no desejo alheio, pois ser
objeto do desejo do outro obriga a adequação ao que o outro deseja. E desejada, na medida
em que a separação é, precisamente, o que possibilita o surgimento de um sujeito de desejo.
O que faz função de proibição não se restringe à interdição que se revela à criança,
mas, fundamentalmente, à intervenção que o pai faz através do discurso materno, na
medida que “aparece mediado no discurso da mãe” (Lacan, op. cit, p. 209 ).
53
Esse terceiro geralmente é associado ao pai real em nossa cultura, mas nem sempre é ele que exerce essa
função simbólica de interdição na história co complexo edípico de um sujeito. Trata-se do pai enquanto
função interditora.
A lei da interdição é, pois, a instância paterna enquanto metáfora, ou seja, aquilo
que no discurso materno representa o pai, revelando para a criança que o desejo da mãe
também se encontra submetido a uma Lei, e esta impede o incesto. Lacan denominou este
lugar simbólico do pai, como Nome-do-Pai. Como já dissemos anteriormente, em nossa
cultura, é o pai que encarna a figura desse terceiro para quem o olhar da mãe dirigirá seu
desejo, rompendo o encantamento especular com seu filho, favorecendo o "corte", a saída
da célula narcísica e a ascensão de um sujeito.
Portanto, a criança não mais será o falo para sua mãe, e esta, por sua vez, não
coincidirá com a lei. Isto porque, aos olhos da criança, será o pai que agora passará a ser
reconhecido como a própria lei. Em outras palavras, do ponto de vista da criança, o pai é o
falo.
Em vista dessa proibição, a criança é profundamente questionada, abalada em sua
posição de assujeito – potencialidade ou virtuosidade, salutar, afinal. Em outras
palavras, é na medida em que o objeto do desejo da mãe é tocado pela proibição
paterna que o círculo não se fecha completamente em torno da criança e ela não se
torna, pura e simplesmente, objeto do desejo da mãe (...) a criança é desalojada para
seu grande benefício, da posição ideal com que ela e a mãe poderiam satisfazer-se (...)
(Lacan, 1957-1958/ 1999, p. 210).
Lembremos que estamos no registro simbólico e, para tanto, é o discurso que deve
ser valorizado. Assim, o Nome-do-Pai será aquilo que no discurso da mãe figura como o
lugar simbólico para onde dirigirá seu desejo fora do âmbito da relação com seu filho. É,
portanto, o significante que simbolizará a ausência materna. A mãe falta para a criança e,
assim sendo, perde o estatuto de Outro onipotente e absoluto. O Nome-do-Pai opera no
sentido de barrar essa onipotência, reafirmando para a criança que a mãe é castrada,
submetida que está a uma Lei. Dessa forma, opera no sentido de recalcar a identificação da
criança com o falo.
O terceiro tempo do Édipo marca para a criança o reconhecimento da
impossibilidade de ser o falo, porém esta vislumbra a possibilidade de tê-lo numa relação
social normalizada, regida pela lei da cultura.
Nesse tempo, o que se processará será o reconhecimento de que, sequer o pai é o
falo, nem mesmo a Lei; afinal ninguém pode sê-lo. O pai passa a ser o representante da Lei
simbólica.
Dito de outra maneira, através do interdito paterno, a criança já não poderá ser
mantida no lugar fálico do tempo de seu narcisismo primário; em seguida pensa ser o pai
aquele que poderá ser aquilo que completaria a mãe, sendo seu falo. Por fim, a criança se
depara com o saber de que ninguém é o falo da mãe e, portanto, ela porta em si uma falta, o
que equivale dizer que a criança se depara com a castração da mãe. O desejo da mãe é
significantizado como Falo simbólico, a partir da interdição paterna. É essa a operação que
coincide com o recalcamento originário. “O desejo de ser o falo que falta à mãe é recalcado
e em seu lugar vem um substituto: aquele que o nomeia e ao mesmo tempo o transforma:
isto é, o símbolo” (Lemaire, p. 133). O Nome-do-Pai preenche a função de simbolizar o
desejo da mãe, fazendo advir o Falo como significante do desejo. O corte operado pela
castração é inseparável da fundação de um simbolismo, uma vez que aquilo que é cede
lugar para aquilo que é representação.
Como operação fundamental desse tempo, podemos sublinhar a mudança de
posicionamento da criança que deixa de se identificar com um eu ideal para se identificar
com o ideal do eu. O primeiro, referido ao lugar de falo materno, lugar este perdido a partir
da castração, e o segundo, que aponta para o movimento do desejo, direcionando o sujeito
para os significantes fálicos sem, no entanto, deixar obturar a Falta que impulsiona o desejo
seguir desejando sob a égide dos limites que a cultura impõe.
Tomamos o Complexo de Édipo como eixo central da estruturação psíquica, na
medida que promove a ruptura da relação dual e o acesso à ordem simbólica. Com a
inscrição do significante do Nome-do-Pai, abre-se a fenda que promove o advento do
sujeito e o cauciona. Um sujeito que, como vimos, não está garantido desde o começo, mas
remonta a toda uma trajetória de operações psíquicas.
Perseguimos a noção de sujeito com a suposição de que sua trajetória pudesse lançar
luz à nossa hipótese acerca da implicação da subjetividade do professor, naquilo que diz
respeito à questão norteadora deste trabalho, qual seja, como se constitui no professor uma
visada capaz de propiciar ou entravar a inclusão escolar de alunos com necessidades
educativas especiais. Iremos, no capítulo que se segue, apresentar nossas articulações a esse
respeito.
5. Discussão
Gostaríamos de relembrar que foi a partir da escuta de professores, no interior do
Instituto Educacional Casa Escola, que nossas indagações começaram a tomar forma;
afinal, por que alguns professores, com bagagem teórica e prática bem alicerçadas,
possuíam tão diferentes posicionamentos frente à escolarização de alunos com necessidades
educativas especiais?
Em outras palavras, por que alguns permaneciam em um queixume sem fim,
enquanto outros podiam ousar no trabalho, reinventar estratégias de ensino favorecedoras
do processo de inclusão de alunos com necessidades educativas especiais?
Pouco a pouco, as suposições de que faltava ao professorado em dificuldades uma
melhor formação teórica, técnica ou didática, ou melhores condições de trabalho foram
cedendo lugar para outras conjecturas.
Mesmo que os professores estivessem bem instrumentalizados, ou apresentassem
condições sociais e trabalhistas semelhantes, o mal-estar ainda assim emergia para uns,
fazendo-os paralisar, enquanto, para outros, produzia efeitos de outra ordem.
A Casa Escola, admitindo a premissa da implicação subjetiva do professor no
desenvolvimento do seu trabalho, solicita à psicanálise, como discurso inscrito no social,
sua contribuição. Essa teoria, naquilo que pode dar contribuições à educação, traz à tona a
discussão acerca da subjetividade do professor, apontando o inconsciente como sua noção
axiológica.
Tendo reconhecido, portanto, que carregamos em nossa bagagem teórica os
alicerces da psicanálise, percebemos que muitos dos impasses no enquadre da inclusão
escolar seriam de ordem subjetiva. Foi nesse percurso que a nossa pergunta de pesquisa
emergiu: como se constitui no professor uma visada capaz de franquear à pessoa com
necessidades educativas especiais um lugar de aluno, permitindo-lhe poder avançar
enquanto aprendente dentro do espaço de uma escola comum?
Visando responder a esta pergunta, fez-se necessário construir um percurso teórico
acerca da constituição da subjetividade. Este percurso, tomando como referência a
psicanálise freudo-lacaniana, nos mostrou que o sujeito se constitui a partir dos ideais
advindos da sua trajetória de identificações.
Essas identificações primitivas consideradas como a base das relações que
estabelecemos com os outros, deixam suas marcas também no campo educativo. Do lado
do aluno, balizam as relações com os mestres. Do lado do professor, dando o tom de seu
posicionamento perante o encontro com este ou aquele aluno; encontro esse sempre
singular.
Inicialmente, como vimos na trajetória constitutiva de um sujeito, trata-se de uma
identificação narcísica, imaginária, situada no campo dual, identificação com aquilo que
supõe ser o desejo da mãe, o que coloca a criança no lugar de eu ideal. Em seguida, a partir
da operação edípica, promove-se a ruptura da relação dual com a mãe e o acesso à ordem
simbólica.
A completude convocada na identificação ao eu ideal cede espaço para a pergunta
acerca do desejo do Outro, o que evoca a possibilidade de ruptura da relação dual e a
construção de ideais conformados às exigências da cultura, tendo como sustentáculo a
interdição da relação incestuosa, conferindo ao desejo da mãe uma significação distinta de
seu eu, permitindo as identificações subseqüentes com o ideal do eu. Esta é a instância
psíquica que se constitui como resultado da identificação ao pai, corroborada a partir da
castração.
Nessa direção, Almeida (2002) tece a seguinte afirmação: “a posição subjetiva do
professor, frente à castração, determina as suas modalidades discursivas (...)” (p. 101),
produzindo efeitos de natureza diversa no processo de transmissão e aquisição do
conhecimento.
Essa identificação originária, produto da instauração simbólica, será o ponto central
a ser “recheado” pelas identificações subseqüentes.
O docente, marcado pela ancoragem à sua constituição subjetiva, alicerçou ideais
que sustentam sua posição de ensinante. Esta, por sua vez, está articulada aos significantes
paternos que justificam um estilo singular, tingindo a relação com o aprendiz com nuances
impregnadas pela forma que se confronta com a castração e, portanto, com a falta.
Em outras palavras, os ideais sustentados pelo professor no campo educativo se
fundam como legado das duas operações fundantes do psiquismo: o Estádio do Espelho e o
Complexo de Édipo. A primeira, constituindo o eu, identificado ao eu ideal. A segunda,
constituindo o sujeito, quando os ideais de outrora passarão a ser balizados pelo simbólico,
instaurando a instância do ideal do eu.
Assim, vemos materializado no cotidiano escolar de um lado, o discurso
idealizador, marcado pela perfeição narcísica, desprovido de críticas, próprio do eu ideal.
De outro, o discurso judicativo que confronta a idealidade com normas e leis que lhe são
exteriores, remontando ao ideal do eu, situado na ordem simbólica.
Cabe colocar que, embora o professor já tenha atravessado a encruzilhada edípica,
passado pela “muralha” da castração, constituindo a instância do ideal do eu, poderá, em
decorrência de uma relação específica com o outro, acarretar o eclipse do simbólico,
tolhendo a função do ideal do eu em seu desempenho crítico, re-editando a imagem perfeita
do eu ideal.
Quando isso acontece no campo escolar, o processo de ensino-aprendizagem é
gravemente perturbado, pois a função simbólica mostra-se enfraquecida, incapaz de ordenar
a possibilidade de aprendizagem, porquanto o outro não é tomado como aluno, mas como
apêndice, acessório das idealizações maciças do professor. Nesse contexto, o professor
tende a se mostrar avesso a qualquer intervenção externa. Parece prescindir delas, na
medida que se vê completo, sem faltas; afinal, o aluno estaria ocupando ali o lugar de falo
imaginário, preenchendo a falta que motoriza o desejo; como conseqüência, o projeto de
aprendizagem não avança.
Nessa direção, Millot (2001) alerta que o educador “... não deve procurar satisfazer
o seu próprio narcisismo no tentar realizar seu ideal por meio da criança que deve educar”
(p. 87).
Freud (1914) já colocava suas preocupações a esse respeito. Ele nos adverte sobre
o narcisismo do educador apontando que suas exigências podem, inúmeras vezes, causar
prejuízos à criança, mantendo-a numa posição alienante, pautada pelas demandas
excessivas.
Em contrapartida, percebemos que a ausência de ideais de um professor em relação
a algum educando, em específico, acarreta uma visada inoperante, na medida em que
dificulta a constituição de um lugar de aluno. O professor se mantém, assim, numa posição
na qual nada tem a demandar. Aos seus olhos, o candidato a aprendente lhe é invisível, não
se destaca de um fundo, não tem contorno. Isso, muitas vezes, interdita à
criança/adolescente o acesso ao desejo de saber, uma vez, que é a partir do desejo do Outro
que esse pode advir.
Paradoxalmente, se por um lado os ideais do educador são necessários para
sustentar a produção de saber, por outro é preciso que estejamos advertidos de que estes
ideais não devem estar aderidos à meta de perfeição arremetida pela onipotência narcísica.
Outra configuração dessa meta, que comparece incidindo sobre a aprendizagem,
refere-se à miragem sustentada por alguns professores acerca da existência de métodos e
técnicas infalíveis.
O educador, no esteio de um lugar sem falhas, onde tudo se sabe, não fomenta um
espaço favorável ao mundo da aprendizagem, ao contrário, corrompe o lugar do saber, na
medida em que se mantém em um sítio ilusório, avesso à falta fundante do desejo, a partir
da castração. Isso significa dizer que a consistência simbólica estaria entorpecida, erigindo
a crença em um saber sem furos.
Trata-se, portanto, de um compromisso que coloca em jogo a iminência de seu
rastro narcísico, provocando o resgate dos impasses que a ilusão de completude promove. É
preciso manter-se advertido desse risco.
Após esta explanação, podemos agora nos reencontrar com o fragmento clínico
apresentado no início do trabalho, buscando analisar algumas questões paradigmáticas que
ele nos aponta.
de ser bem sucedida frente aos seus enigmas. Demandava um saber que pudesse
preenchesse a falta e lhe restituísse o idílio narcísico.
O psicanalista que não pode saber sobre o desejo do professor, faz semblante desse
lugar impossível de saber, sustentando uma posição que, dando lugar à circulação da
palavra, favoreça a produção de saber.
Assim, diante do pedido angustiado por uma receita que eliminasse seu mal-estar,
Laura deparou-se com o lugar vazio de saber, uma brincadeira que acabou por lhe revelar a
verdade da castração, de um saber não-todo.
- Que tal um bolo! A receita está bem aqui, não há como errar.
Esse Outro a quem ela demandou um saber, sustentou e confirmou o movimento de
dúvida e indagação, reconhecendo-o como válido na condição de sujeito desejante.
Reafirmou, portanto, que o saber é não-todo e que só podemos favorecer o “apetite por
conhecimento” se renunciarmos aos ideais megalomaníacos, pautados na onipotência
narcísica. Isso não significa abdicar dos ideais, mas flexibilizá-los, oxigená-los mediante a
instauração da dimensão simbólica, vigente na singularidade de cada caso.
O sucesso não pode ser assegurado, pois esbarramos nos limites próprios da
ambigüidade, dos desvios, dos tropeços, da pulsão indomável.
Além disso, qualquer que fosse a assertiva para suas perguntas, no sentido de uma
resposta direta, teria cortado a possibilidade de Laura poder continuar se perguntando,
ousando a responder a seu modo. “O pensamento é como a águia que só lança vôo nos
espaços vazios do desconhecido” (Alves, 2000, p. 78 )
Parece-nos que o que estava em jogo ali, que pode ser tomado de forma
paradigmática em relação à escolarização de pessoas com necessidades educativas
especiais, dificultando-lhe franquear a essas crianças um lugar de aprendente, refere-se
mesmo a uma prevalência da idealização imaginária, caucionado pelo eu ideal, como
vimos, imaginário. Isso porque, ela supunha que mediante alguma metodologia especial,
alguma orientação técnica de valor inquestionável, essa criança tão diferente daquelas que
estava acostumada a ensinar em sua sala, poderia também, ser ensinada.
Podemos dizer que se, inicialmente, a professora Laura mantinha-se ainda muito
tributária de uma posição imaginária, numa expectativa de acertos que acabavam deixando-
a paralisada no ato de ensinar, essa posição foi cedendo, fazendo cair a possibilidade de
sustentação de uma verdade absoluta e universal.
Seus encontros com Beth, cotidianamente, junto às intervenções feitas nos
momentos de escuta, permitiram que a professora se reencontrasse com o seu não-saber-o-
que-fazer desde outro lugar, simbólico podemos dizer. Admitia, assim, a dimensão do
malogro constitutivo da educação, sustentando-o perante sua aluna, no sentido de que não
mais mantinha a ilusão de que seria possível suprimir o que há de conflituoso e incerto na
profissão docente.
Quanto a Beth, como afirmava a professora Laura, ela de fato não era como os
outros, ... não correspondia como os outros. Era agitada, atrapalhava o andamento da
turma. Sua fratura simbólica era tamanha que saltava aos olhos. Esse enunciado falado e
repetido, inúmeras vezes, que não permitia à professora avançar na direção de um projeto
de aprendizagem para essa aluna, foi dando lugar a outros posicionamentos.
Sua inquietação foi cedendo espaço para o movimento de criação, ofertando para a
aluna objetos do mundo que, de algum modo, lhe diziam respeito, fazendo eco e
reverberando em sua possibilidade de avançar cognitivamente. Objetos que a professora
Laura supunha mantinham implicações com a história de sua aluna, suas inscrições
primordiais, reconhecendo que não poderia predeterminar a aprendizagem de Beth e, ao
mesmo tempo, sem abrir mão de um plano de aula que visasse o aprendizado da aluna,
permitindo-lhe ousar e criar soluções inéditas.
Aquilo que prendia a professora na dimensão de angústia, mantendo-a no lugar da
queixa e da impotência, cedeu lugar a um trabalho de construção de estratégias de ensino-
aprendizagem. “(...) em vez de ficar presa na maneira que eles aprendem, pude parar para
refletir sobre as mil maneiras de ensinar”.
Como vimos, o ritmo do aprendizado de Beth já não dependia estritamente do
planejamento idealizado pela professora, mas cabia inserir em seu plano de trabalho a
percepção quanto ao tempo da aluna e a disponibilidade para acolher o que lhe era ofertado;
isso porque, já havia percebido que, em certos momentos, a aluna não aceitava atividades
mais estruturadas, pois estas desencadeavam agitação e desorganização psíquica,
impedindo o seu trabalho de aprender.
Nesse contexto, reforçamos a tese de que a práxis educativa implica em uma
ancoragem reflexiva acerca de cada caso em particular. Em outras palavras, todo professor
que se encontra com alunos com necessidades educativas especiais, ou não, deve ter em
mente indagações vívidas acerca de seu posicionamento subjetivo, pois este acaba por
arremeter efeitos em sua prática como educador. É preciso indagar se os ideais que
sustentam sua prática docente estariam movidos pelo imperativo de perfeição narcísica, ou
se estariam balizados pela falta, submetidos à ordem simbólica.
Resta ainda a pergunta: como então, estas idealizações se ordenam no campo da
educação de crianças com necessidades educativas especiais? Onde elas se constroem?
Como vimos, o percurso realizado em torno da história da Educação Especial nos
mostrou as dificuldades de entrada de alunos “diferentes” no âmbito da escola regular,
sedimentada por uma perspectiva de homogeneizar o público padrão.
Ao longo da história, foi sendo cristalizada a idéia de que na escola regular só
caberiam os iguais, ao passo que os outros permaneceriam no lugar estigmatizado que
remonta, antes, a um não lugar.
O que queremos apontar com essas considerações é que o lugar do fora da escola
comum para aqueles apontados como diferentes foi, historicamente, engendrado pelo
discurso social segregador, marcadamente aficionado pela homogeneização.
Segundo Kupfer e Petri (2000), a escola moderna, em sua trajetória, foi definindo a
partir do ideário social o que pode absorver como escolarizável, deixando de fora aqueles
que definia como os não-escolarizáveis. Assim, segregava e nomeava como especiais todos
aqueles que não se ajustavam aos ideais erigidos.
As professoras que acompanhamos hoje se constituíram às expensas desse discurso
acerca da educação, sendo, portanto, tributárias do mesmo, ainda que lutem para revogá-lo.
O discurso histórico-social que erigiu os ideais de aluno é o próprio berço dos ideais de
aluno pelos quais clamam os professores.
Aqui, é preciso lembrar que o discurso que funda o sujeito é o discurso do Outro,
enquanto lugar transindividual da linguagem. Nesse sentido, o social marca o sujeito, sendo
indissociável de sua constituição.
Contudo, cabe colocar que, atualmente o discurso não é o mesmo. O paradigma da
integração, seguido pelo da inclusão põe em cheque o modelo segregador, ressaltando a
urgência em se transformar a escola.
Eis aqui um paradoxo que merece ser examinado. Ainda que o discurso segregador
esteja cedendo espaço para um modelo mais justo, de inclusão, ele acaba por ter como
grande obstáculo o discurso homogeneizador que, por tanto tempo, sustentou as práticas da
escola moderna e que cunhou os ideais dos mesmos professores que, supostamente, devem
incluir alunos com as mais diversas necessidades educativas especiais.
Dessa forma, podemos colocar que, se no início desse trabalho, a história da
educação especial se apresentava como percurso necessário para o desenvolvimento da
dissertação, agora, ao seu término, passa a ser ressignificada como sustentáculo dos ideais
portados pelo professor em sala de aula. Esses ideais engendrados historicamente, colocam
obstáculos à constituição de um lugar de aluno para aqueles que apresentam algum tipo de
necessidades educativas especiais.
Portanto, o encontro com essas crianças/adolescentes, diferentes daqueles que
costumeiramente se encontram na escola comum, obriga um particular trabalho subjetivo
do professor.
Cabe aqui, nesse momento, ressaltar que não temos qualquer pretensão de elaborar
receitas de como “adestrar” tal subjetividade, para que possa se manifestar apenas
construtivamente em prol dos avanços do alunado. Seríamos por demais pretensiosos, caso
acreditássemos como possível o controle das vicissitudes subjetivas concernentes à relação
do professor com seu aluno.
Além disso, a maneira como um professor se coloca perante determinado aluno
pode não se repetir com outro. Cada encontro marca de uma maneira original o modelo de
relação que um professor mantém com seu aluno.
Nesta vertente, é preciso que cada educador descubra a brecha que lhe possibilite a
disponibilidade em refletir sobre o seu posicionamento a cada vez; é preciso que ele
próprio, o professor, não se permita “esquecer” sobre o atravessamento desta subjetividade
no exercício da profissão docente, cuja manifestação é flagrante no dia-a-dia escolar.
Subjetividade que não deve ser tratada como um ruído desagradável, mas como
instrumental indispensável, essencial para que o ato educativo tenha lugar.
Enfim, acreditamos que uma das conseqüências fundamentais extraídas desse
trabalho remete-se à constatação de que os ideais são intrínsecos à educação, mas quando
estes são sustentados a partir de um imperativo de perfeição, o aprendizado tende a
sucumbir.
A completude, o saber-todo, a educação sem perdas, fazem parte do arsenal
imaginário que ressaltam uma exigência avassaladora, que acaba por estabelecer uma
correspondência impossível de ser mantida, causando, muitas vezes, frustração e
sentimento de impotência. Quando, ao contrário, o conflito é considerado como parte
inerente do processo educativo para qualquer aluno, para qualquer professor, os ideais
passam a ser flexibilizados, a falta autenticada, e a impossibilidade considerada como parte
do processo. Isso não significa cruzar os braços e se contentar com os infortúnios; mas
antes, poder tomá-los de frente, convocando a palavra para lhe dar alguma forma. Ou seja,
trazer os impasses à tona, capturando-os como constitutivos do campo educativo, buscando
dar-lhes um contorno através do significante.
Podemos finalizar o trabalho, ressaltando que partimos de um fragmento clínico
paradigmático, mas nossa análise tem sempre considerado a experiência do caso a caso.
Essa experiência nos mostrou que, quando os conhecimentos teóricos, didáticos e
metodológicos estão garantidos, mas a posição de educador não se sustenta, é porque
podem existir entraves que dizem respeito à ordem subjetiva, impressos, agora o sabemos, a
partir da constituição dos ideais.
Logo, ao olharmos de perto o projeto de inclusão escolar, articulando-o com a
formação dos professores, fica patente a necessidade de uma reformulação que possa verter
o arsenal técnico para um lugar parcial, retomando para o cerne da questão a valorização da
palavra, buscando manter vivas as perguntas essenciais acerca do que move cada um que
encarna a função docente. O professor não é apenas uma função social, é também sujeito de
desejo e isso não é algo eliminável; ao contrário, é a própria força motriz da educação.
Atender a cada um dos alunos, sem negar a diferença, visando oferecer
oportunidades de construção de um projeto específico para sua aprendizagem no seio da
escola comum, não é uma questão de boa vontade, ou de professores “bons samaritanos”.
Mas, antes, o desafio da inclusão escolar engendra o compromisso com indagações que se
referem ao discurso daqueles que ali estão em cena, discurso este que traz a marca do
Outro.
A implicação dos educadores que se disponibilizam em manter vivas as questões
acerca do que os mobiliza nos encontros com cada um dos educandos, faz-se essencial para
que a escola possa se pronunciar de maneira diferente, não segregadora. Caso contrário,
corremos o risco de repetir os padrões que tentamos, justamente, derrogar.
Assim, se estamos acostumados no mundo escolar a ver as crianças e adolescentes
como os que devem ser ensinados, aqui a proposta se coloca de maneira paradoxal. Ou seja,
para que os alunos aprendam, os mestres também serão aprendizes.
A professora Laura pode se dispor a aprender com Beth, possibilitando a que,
juntas, possam avançar no processo de conhecer. “(...) Foi preciso enxergar Beth e não lhe
forçar, na marra, um conhecimento. É preciso seu tempo de conhecer, e isso vale para todo
mundo”.
Laura também teve seu tempo de aprender. Lançou-se generosamente sobre o que
não sabia, para re-criar respostas. A inclusão escolar precisa de educadores assim, com a
ousadia do vôo da águia sobre mares desconhecidos.
O que se sabe continua agindo como aprendido, poupando-nos a necessidade de
pensar, pois quando se tem a resposta, não há enigma. Mas, frente aos mistérios, contudo,
não devemos recuar.
A esse respeito, Alves (2000) nos traz um relevante alerta: “Muitas pessoas, de
tanto repetir receitas, metamorfosearam-se de águias em tartarugas. E não são poucas as
tartarugas que possuem diplomas universitários” (p. 81).
Dessa maneira, é com algum atrevimento que posicionamos o professor no lugar do
aprendiz, colocando-o, frente a frente, com seu estilo de ensino-aprendizagem, com seu
desejo, tendo em vista sua implicação no processo educativo.
Se a Casa Escola vem buscando abrir espaço para os educadores-aprendizes, o faz
mediante a circulação das palavras, objetivando avanços em seu projeto inclusivo, na
medida que autoriza o dizer sobre o mal-estar, possibilitando uma superação da queixa e
dos não-ditos que deixam a escola enferma.
6. Considerações finais
Ao longo dessas páginas, apresentamos um recorte do trabalho realizado na Casa
Escola, desde o início de 2002, mantendo como eixo a inclusão escolar. Nesse ínterim, nos
guiamos por uma pergunta de pesquisa que acabou por colocar o professor e seu desejo no
centro de nossa discussão, a saber: afinal, como se constitui no professor uma visada capaz
de franquear à pessoa com necessidades educativas especiais um lugar de aluno,
permitindo-lhe poder avançar enquanto aprendente dentro do espaço de uma escola
comum?
Perseguimos o percurso da constituição de um sujeito para lançar luz a essa questão
e nos encontramos com inscrições de ideais que, movidos pelo rastro narcísico, marcam o
humano dando o tom de seu posicionamento frente à falta no Outro.
Assim, do lado do professor, a constituição subjetiva ancorada na trajetória de
idealizações, remarca uma singular posição transferencial diante de cada aluno em
específico. Dessa forma, os ideais aparecem como o berço do matiz transferencial que um
professor suporta, a cada vez, em sua posição de ensinante, frente a alunos sempre
singulares.
Portanto, sublinhamos, nesse enquadre particular, que a formação do professor
emerge para além da formação teórica ou técnica. Estas continuam a ter um lugar muito
importante, contudo, notadamente parcial, posto que a questão do sujeito, enquanto
desejante, também aí se inclui.
Falar dessa relação que se estabelece no plano escolar entre professor-aluno-
conhecimento remonta, portanto, a um fundamental laço transferencial.
Não trabalhamos aqui o conceito da transferência, sua natureza e vicissitudes
explicitadas por Freud e Lacan. Porém, assinalamos as implicações dos ideais que,
constituídos a partir do narcisismo, possibilitam esses singulares encontros do educador e
seu educando.
Logo, a relação que o professor estabelece com o aluno, podendo favorecer-lhe ou
não a mediação ao conhecimento no processo de ensino-aprendizagem, traz na origem, do
lado do professor, sua constituição subjetiva matizada pelo narcisismo, berço dos ideais.
Além disso, explorar o conceito de transferência no contexto da inclusão escolar,
não se restringe ao laço que se estabelece entre o professor e seu aluno, mas também do
professor em relação àquele a quem demanda uma escuta, se autorizando a uma palavra
própria acerca dos prazeres e desprazeres inerentes à prática educativa. O professor se
autoriza a falar para quem supõe um saber. Aí também a transferência tem sua consistência
nesse trabalho, sendo o motor da operatividade e sustentação da escuta clínica na escola,
quando os espaços de escuta acabam por fomentar a sustentação do Outro como lugar
terceiro que é autorizado e se autoriza como depositário da angústia.
Também, é importante colocar, não é apenas ao psicanalista a quem se dirigem as
palavras. A circulação discursiva em meio à comunidade escolar é legitimada como lugar
terceiro da linguagem.
Acreditamos que este é um tema que merece ser desenvolvido com profundidade.
Cabe colocar, ainda, que este trabalho de pesquisa, ao seu término, deixará em seu rastro
outras várias questões. Entre elas, se destacam aquelas que interrogam a prática analítica
em instituições. Quais são os operadores que nos capacitam a intervir psicanaliticamente na
escola?
Nessa direção, faz-se necessário, ainda, um maior estudo sobre a temática da escuta
psicanalítica na escola e sobre sua possibilidade de operar brechas em discursos
cristalizados, mediante a oferta instituída de espaços de circulação da palavra, sua
confrontação com o discurso da queixa e a possibilidade da emergência de enigmas que
convocam o sujeito a se responsabilizar por sua posição discursiva, para além de um mero
queixume, vazio de implicação. Ou seja, não é qualquer escuta que possibilita operar
brechas num discurso cristalizado; uma escuta desavisada pode compactuar com o gozo de
um monte de professoras insatisfeitas de seguir se lamentando, próprio do lamuriar
histérico. Teorizar sobre essa escuta, que não é qualquer, faz parte da ética da psicanálise na
escola.
Essa pesquisa, filiada à conexão Psicanálise-Educação, aponta para uma necessária
problematização acerca da posição de psicólogo escolar, mantendo a precaução de
reconhecer a diferença de objeto de trabalho em cada um dos campos.
Sua contribuição, nesse sentido, acaba por apontar uma possibilidade de inserção do
trabalho do psicólogo escolar mediante seu atravessamento pela psicanálise.
Ainda é preciso um maior aprofundamento teórico acerca do traço diferencial entre
o psicanalista que vai à escola, e o psicólogo escolar atravessado pela psicanálise. Em
outras palavras, aquele que é convocado numa posição êxtima da instituição, e aquele
profissional contratado, funcionalmente, pela escola. Também existe uma enorme diferença
entre utilizar a teoria psicanalítica no cotidiano escolar ou estar balizado pela ética do
desejo alçada a partir de uma posição de confrontação com a própria castração. Quais são
as implicações disso?
Supomos que o psicanalista na instituição não se restringe ao conhecimento da
teoria, mas responde de uma peculiar posição discursiva que não se aprende nos livros; tal
posição é fruto de uma posição ética que sustenta o lugar da falta, fundante do desejo.
Prosseguindo com esse estudo, seria imperioso falar mais detidamente sobre as
diferentes posições discursivas que transitam entre as vozes institucionais. Como tem
funcionado a economia libidinal que faz mover a instituição, quais seus pontos de gozo?
Estas são perguntas que merecem atenção na investigação acerca da subjetividade como
reguladora dos laços sociais, produzindo questões no campo institucional da educação.
Nesse momento de concluir, gostaríamos de deixar assinalado algo já colocado ao
longo do percurso, mas que nunca é demais sublinhar. O desafio que se coloca – a inclusão
escolar – não é apenas do professor, do aluno, do pessoal da escola, ou das famílias, mas de
toda a sociedade. Afinal não existe escola totalmente inclusiva em uma sociedade
discriminatória e excludente. O que a Casa Escola visa, desde seu Projeto Político-
Pedagógico, por hora, são metas inclusivas, algumas vezes, bem sucedidas, outras não.
Manter os interrogantes acerca do “porquê” e do “como” faz parte de uma práxis.
Tais ações para o direcionamento inclusivo apostam que a mudança no micro
espaço da instituição escolar pode favorecer mudanças na estrutura social maior.
Por fim, nessa pesquisa miramos na subjetividade do professor e apresentamos, na
tangência, uma intervenção que se inscreve na articulação da psicologia escolar e da
psicanálise. Cabe colocar que este é, ainda, um terreno que merece muita investigação e
que emerge, como pudemos ver, com abundância de material para futuras pesquisas.
Gostaríamos de deixar assinalado que as metas inclusivas no âmbito escolar deverão
também poder incluir a subjetividade do professor como fator preponderante nesse
processo. Não podemos esquecer que o professor é um sujeito; ajudá-lo a se perceber
enquanto tal, acompanhá-lo nessa empreitada, o auxilia a poder construir um saber sobre si,
sobre sua prática profissional e sobre a subjetividade dos alunos em encontros sempre
singulares e inéditos.
7. Referências bibliográficas
Alberti, S. (2000). Psicanálise: a última flor da medicina. In S. Alberti & L. Elia (Org.),
Clínica e Pesquisa em Psicanálise (pp. 37-56). Rio de Janeiro: Marca d’Água.
Almeida, S. F. (2002). Psicanálise e educação: revendo algumas observações e hipóteses a
respeito de uma (im)possível conexão. In Univerdsidade de São Paulo, Instituto de
Psicologia & Lugar de Vida (Org.), III Reunião do LEPSI. Anais. São Paulo: Autor.
Alves, R. (2000). A alegria de ensinar. Campinas: Papirus.
American Psychiatric Association. (1989). Manual de Diagnóstico e Estatística de
Distúrbios Mentais- DSM- III (2
a
ed.). São Paulo: Manole.
Antipoff, H. (1966). Boletim da Sociedade Pestalozzi do Brasil, 39. Rio de Janeiro, 104-
109.
Arendt, H. (1992). A crise na educação. In: Entre o passado e o futuro (pp. 221-247). São
Paulo: Perspectiva.
Bastos, M. B. (2003). Inclusão escolar: um trabalho com professores a partir de
operadores da psicanálise. Dissertação de mestrado não-publicada. Departamento de
Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
Berlinck, M. T. (2002). Logos. In E. F. Queiroz & A.R. da Silva (Org.), Pesquisa em
psicopatologia fundamental (pp. 157-170). São Paulo: Escuta.
Blanco, R. (2002). Implicações educativas do aprendizado na diversidade. Gestão em Rede,
38, Edição temática - Como realizar o ensino inclusivo, 06-11.
Brasil. (1977). Ministério da Educação e Cultura. I Plano Nacional de Educação Especial-
1977-1979.
Brasil (1985). Dia nacional de debates sobre educação: síntese e perspectivas. Ministério
da Educação, São Paulo: Cenafor.
Brasil (1997). Conferência mundial sobre necessidades educativas especiais: acesso e
qualidade. In Declaração de Salamanca e linhas de ação sobre necessidades educativas
especiais (2ª ed). Brasília: Corde.
Brasil (2001). Ministério da Educação. Diretrizes nacionais para educação especial na
educação básica.Brasília: Secretaria da Educação Especial- MEC, SEESP.
Buarque, C. (1989). Uma palavra. In Chico Buarque, BMG 150 0008.
Carmo, A. (2001). Inclusão escolar: roupa nova em corpo velho. Revista Integração. Ano
13, n° 23, 43-48.
Carvalho, R. E. (1997). Falando da integração da pessoa deficiente: conceituação,
posicionamento e viabilidade. In Mª T. E. Mantoan (Org.), A integração de pessoas
com deficiência: contribuições para uma reflexão sobre o tema (pp. 215-219). São
Paulo: Memnon. Editora Senac.
Costa, A, Ribeiro, P. & Gomes,V. (1997). Análise e tratamento psicanalítico de estruturas
discursivas. Estilos da Clínica. Revista sobre a Infância com Problemas, 3, IPUSP, 30-
42.
Cottet, S. (1987). Penso onde não sou, sou onde não penso. In G. Miller (Org.), Lacan. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar.
Descartes, R. (1996) Discurso do método (2ª ed.) São Paulo: Martins Fontes. (Texto
original publicado em 1637).
Elia, L. (2000). Psicanálise: clínica & pesquisa. In S. Alberti & L. Elia (Org.), Clínica e
Pesquisa em Psicanálise (pp. 19-36). Rio de Janeiro: Marca d’Água.
_______ (2004). O conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Fernandes, L. R. (2000). O olhar do engano: autismo e o Outro primordial. São Paulo:
Escuta.
Ferre, N. P. de L. (1998). La capacidad de ser Sujeito. Mas Allá de lãs técnicas em
educación especial. Barcelona: Editora Laertes.
Foucault, M. (1987). Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes.
Freud, S. (1987). Projeto para uma psicologia científica (2ª ed., vol. I, J. Salomão, Trad.).
Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago. (Texto original publicado em [1895] 1950).
__________ (1987). A interpretação dos sonhos (2ª ed., vol. IV, J. Salomão, Trad.).Edição
Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1900).
__________ (1987). A psicopatologia da vida cotidiana (2ª ed., vol. VI, J. Salomão,
Trad.).Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.
Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1901).
__________ (1976). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1ª ed., vol. VII, J.
Salomão, Trad.). Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1905).
__________ (1977). Os chistes e sua relação com o inconsciente (1ª ed., vol. VIII, J.
Salomão, Trad.). Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1905).
__________ (1969). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de
paranóia (1ª ed., vol. XII, J. Salomão, Trad.). Edição Standart Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Texto original
publicado em 1911).
__________ (1974). O narcisismo (1ª ed., vol. XIV, J. Salomão, Trad.). Edição Standart
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
(Texto original publicado em 1914).
__________ (1974). O Inconsciente. In Artigos sobre metapsicologia (1ª ed., vol. XIV, J.
Salomão, Trad.). Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1915).
__________ (1976). Conferências introdutórias sobre psicanálise (1ª ed., vol. XVI, J.
Salomão, Trad.). Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1916-1917).
__________ (1976). A organização genital infantil (1ª ed., vol. XIX, J. Salomão, Trad.).
Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1923).
__________ (1976). O ego e o id. (1ª ed., vol. XIX, J. Salomão, Trad.). Edição Standart
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
(Texto original publicado em 1923).
__________ (2000). Obras completas. Amorrortu Editores. Vol XVI. (2º ed.).
Garcia- Roza, L. A. (1984). Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
__________ (1988). Introdução à metapsicologia freudiana: Artigos de metapsicologia
(vol.III). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Governo do Estado do Rio Grande do Norte (2003). Secretaria de Educação, Cultura e dos
Desportos. Resolução N°01/2003, Natal: Conselho Estadual de Educação- CEE/RN.
Figueiredo, L. C. (2004). Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética das práticas
educativas e discursos psicológicos. (3ª ed.) Petrópolis: Vozes.
IECE- Instituto Educacional Casa Escola (2003). Inclusão. In Projeto Político-Pedagógico
do IECE, pp. 40-52. Natal.
Imbert, F. (1987). La question de l’ethique dans le champ éducatif. France: Édition
Matrice.
Jerusalinsky, A & Páez, S. (2000). Carta aberta aos pais acerca da escolarização das
crianças com problemas de desenvolvimento. Estilos da Clínica. Revista sobre a
Infância com Problemas, 9, IPUSP, 118-123.
Kupfer, M. C. & Petri, R. (2000). Por que ensinar a quem não aprende? Estilos da Clínica.
Revista sobre a Infância com Problemas, 9, IPUSP, 109-117.
Lacan, J. (1983). Os escritos técnicos de Freud. O Seminário I. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed. (Texto original publicado em 1953-1954).
__________ (1983). A transferência. O Seminário VIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
(Texto original publicado em 1960-1961).
__________ (1991). A ética da psicanálise. O Seminário VII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed. (Texto original publicado em 1959-1960).
__________ (1998). O estádio do espelho como formador da função do eu. In Escritos (pp.
96-103). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Texto original publicado em 1949).
__________ (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Escritos
(pp. 238-324). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Texto original publicado em 1953).
__________ (1998). A instância da letra no inconsciente. In Escritos (pp. 496-536). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Texto original publicado em 1957).
__________ (1998). A significação do falo. In Escritos (pp. 692-703). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed. (Texto original publicado em 1958).
__________ (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento da psicose. In Escritos
(pp. 537-590). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Texto original publicado em 1959).
__________ (1998 a). Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: Psicanálise e
estrutura da personalidade. In Escritos (pp. 653-691). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
(Texto original publicado em 1960).
__________ (1998 b). A subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano. In Escritos (pp. 807-842). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Texto original
publicado em 1960).
__________ (1998). Posição do inconsciente. In Escritos (pp. 843-864). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed. (Texto original publicado em 1966).
__________ (1991). As formações do inconsciente. O Seminário V. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed. (Texto original publicado em 1957-1958).
Lajonquière, L. de (1992). De Piaget a Freud: para repensar as aprendizagens. A
(psico)pedagogia entre o conhecimento e o saber. Petrópolis: Vozes.
Lemaire, A. (1986). Jacques Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Campus.
Machado, J. P. (1952). Dicionário etimológico da língua portuguesa. Editorial confluência.
Mantoan, M. T. E. (1997). A integração de pessoas com deficiência: contribuições para
uma reflexão sobre o tema.São Paulo: Memnon.
Martins, L. (1993). Análise da formação do profissional de Educação Especial em Natal-
RN, frente às especificidades e necessidades do educando portador de deficiência
mental. Dissertação de mestrado não-publicada. Departamento de Educação.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.
__________ (1997). Integração escolar do portador da Síndrome de Down- um estudo
sobre a percepção dos educadores. Dissertação de doutorado não-publicada.
Departamento de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.
__________ (2003). A inclusão escolar do portador de síndrome de Down: o que pensam
os educadores? Natal: EDUFRN.
Masson, , J. M. (1986). Correspondência completa de Freud para Wilhelm Fliess, (1887-
1904). Rio de Janeiro: Imago.
Mazzotta, M. (1996). Educação especial no Brasil: História e Políticas Públicas.
São
Paulo: Cortez.
Mazzotta, M. J. S & Souza, S. M. Z. L. (2000). Inclusão escolar e educação especial:
considerações sobre a política educacional brasileira. Estilos da Clínica. Revista sobre a
Infância com problemas, 9,São Paulo: IPUSP , pp. 96-108.
Medeiros, C. (2001). Indisciplina e mal-estar na educação: uma reflexão a partir da ética
da psicanálise. Tese de doutorado não publicada. Departamento de Educação
Universidade de São Paulo, São Paulo.
Millot, C. (1987). Freud antipedagogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Nasio, J. D. (1989). Lições sobre os sete conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Natal (1995). Secretaria Municipal de Educação, Coordenadoria de Ensino. Proposta do
ensino especial da rede municipal de ensino.
Páez, S. (2001). A integração em processo: da exclusão à inclusão. Escritos da Criança, 06,
pp. 29-40. Porto Alegre: Centro Lídia Coriat.
Patto, M.H. ( 1999). A produção do fracasso escolar: história de submissão e rebeldis. São
Paulo: Casa do psicólogo.
Pereira, O., Castro, A. de L. & Carvalho, R. E. (1980). Educação Especial: atuais desafios.
Rio de Janeiro: Interamericana.
Pessoti, I. (1984). Deficiência mental: da superstição à ciência. São Paulo: T.A. Queiroz.
Queiroz, E. F. (2002). A pesquisa em psicopathologia fundamental: um discurso
transdisciplinar. In E. F. Queiroz & A.R. da Silva (Org.), Pesquisa em psicopatologia
fundamental (pp. 15-26). São Paulo: Escuta.
Roudinesco, E. & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor.
Saussure, F. (1979). Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix.
Sassaki, R. K. (1997). Inclusão. Construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro:
WVA.
Skliar, C. (1998). La invención y la exclusion de la alteridad deficiente a partir de los
significados de la normalidad. Buenos Aires: Novedades Educativas.
Solé, I. & Coll, C. (2003). Os professores e a concepção construtivista. In C. Coll, E.
Martín, T. Mauri, M. Miras, J.Onrubia, I. Sole & A.Zabala. Construtivismo em sala de
aula (pp. 09-28). São Paulo: Ática.
Soler, C. (1997). O sujeito e o Outro. In R. Feldstein, B. Fink & M. Jannus (Org.), Para ler
o seminário 11 de Lacan (pp. 53-67). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Werneck, C. (2000). Ninguém mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva. Rio de
Janeiro: WVA.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo