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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO
LINHA DE PESQUISA: EDUCAÇÃO, CULTURAS, AÇÃO COLETIVA E
ESTADO
Maria Carolina Fortes
“Adultos, escolarização e trajetórias de vida:
compreendendo sentidos”
Porto Alegre
2006
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1
Maria Carolina Fortes
“Adultos, escolarização e trajetórias de vida:
compreendendo sentidos”
Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em
Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do
Sul, sob a orientação da
Professora Drª Jaqueline
Moll, como requisito para a
obtenção do título de Mestre.
Porto Alegre
2006
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F738a Fortes, Maria Carolina
Adultos, escolarização e trajetórias de vida: compreendendo
sentidos./ Maria Carolina Fortes. Porto Alegre: UFRGS, 2006.
202 f.; 30 cm.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande
do Sul.Mestrado em Educação, Porto Alegre,RS,2006.
Bibliografia: f. 190-198.
1. Educação de Adultos 2. Alfabetização I.Título
CDD- 374
Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário: Alvarito Luiz Baratieri / CRB-14/273
2
Maria Carolina Fortes
“Adultos, escolarização e trajetórias de vida:
compreendendo sentidos”
Dissertação realizada como
requisito à obtenção do grau
de mestre em Educação no
Programa de Pós-Gradua-
ção em Educação da Univer-
sidade Federal do Rio
Grande do Sul.
Banca Examinadora:
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Jaqueline Moll
Prof.ª Dr.ª Carmem Maria Craidy – UFRGS – examinador
Prof. Dr. Leôncio José Gomes Soares – UFMG – examinador
Prof. Dr. Nilton Bueno Fischer – UFRGS – examinador
Solange Maria Longhi – UPF – examinador
Porto Alegre
2006
3
Agradeço para além dos rituais e sinceramente, pela
amorosidade daqueles
que compartilharam a caminhada desde a primeira disciplina do
PPGEDU/UFRGS – sempre incentivando e investindo para que
chegasse ao “final”;
que desafiaram com perguntas e colocações do tipo: Vale a pena?
Quanto investimento! Quanto desgaste! Quanto tempo! Falta muito para
terminar? Como estão as tuas escritas?...
que compreenderam a ausência e o afastamento, temporários, naquilo
que concerne às relações, e me proponho fazer o caminho de volta,
ainda mais humilde e humana;
que de certa forma são semelhantes a mim, porque acreditam na
educação e na pesquisa, ousam, perseveram, buscam seus sonhos,
reconhecem-se (im)perfeitos, (im)pacientes e (in)conclusos, são
humildes, amam, choram, riem, e por isso partilham da utopia de que a
vida humana deve ocupar o lugar onde o sonho seja possível, e que
”haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a
abrir-se dentro da sombra e que as janelas devem permanecer, o dia
inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança”. Thiago de Melo
Em especial... meu muito obrigada ...
a Deus – fonte de força e iluminação espiritual;
4
à minha família (inclusive aqueles que já partiram) – com suas
sabedorias e alegrias, constituídas na simplicidade, ensinaram-me
palavras que só agora entendo, mas que me provaram a força do amor.
ao meu companheiro Dirlei – pela compreensão, companheirismo,
afeto e por relembrar, em muitos momentos, a importância do equilíbrio
entre a disciplina intelectual e a fruição do mundo da vida;
ao meu filho Vinícius e minhas filhas Larissa, Jéssica e Bruna
agradeço pela paciência e pela compreensão de minhas ausências e
também pelos momentos de escuta carinhosa que me ensinam a ser
melhor a cada dia, me mostrando o sentido do amor, que, persistentes e
esperançosos, me ajudam na luta pela vida;
a minha mãe Selvina, pelo legado de coragem e fé na vida;
aos professores, funcionários e colegas do PPGEDU da UFRGS
pela socialização dos saberes, afetos, escutas, inspirações, iluminações
teórico-práticas, principalmente minha orientadora Jaqueline Moll e
meu orientador “adotivo” Nilton Bueno Fischer, pela acolhida
carinhosa;
aos colegas de orientação, destacando o olhar companheiro e
dedicado às minhas escritas da colega Sueli Salva, Vinícius Lousada,
Iara Caierão, Anelise Brod, Dóris Furini, Maria Beatriz Titton, Ana Lúcia
Ramos Seitenfus, Carmem Zeli Vargas Gil, Cassiano Lisboa, Jacimara
Machado Heckler, Carla Corral e Sergio Faoro Tieppo, e também pelo
companheirismo e amizade das colegas Nilda Stacanela, Márcia Rosa
da Costa, Carmem Brunel, Carla Meinerz, Ivany Avila e Mariléia Gollo
de Moraes;
aos professores avaliadores do projeto e da dissertação, Dr.ª
Carmem Maria Craidy, Dr.ª Solange Maria Longhi, Dr. Nilton Bueno
Fischer, Dr.Leôncio José Gomes Soares, pela disponibilidade e
contribuições significativas;
aos meus colegas educadores e educadoras, companheiros de
construção no NEEJA de Passo Fundo, agradeço a contribuição, o
incentivo, o carinho e a tolerância por minhas ausências;
aos homens e mulheres que buscam escolarização do NEEJA de
Passo Fundo que se envolveram e fazem parte dessa pesquisa tanto
quanto eu, podem ter certeza, terão para sempre minha admiração,
estima, afeto, respeito e amizade, entendendo que os laços de amizade
se dão no “conversar desarmado” - Guimarães Rosa.
5
RESUMO
A pesquisa pretende anunciar os sentidos atribuídos à escolarização por homens
e mulheres adultas que se aproximaram do NEEJA de Passo Fundo na
perspectiva de escolarizar-se. Busca compreender como esses sentidos se
constituem em suas trajetórias de vida, nos entrelaçamentos entre infância,
juventude e vida adulta, na perspectiva de visualizar as experiências de vida,
expressas nas trajetórias individuais, como produtoras de sentidos focando o
processo de escolarização na vida adulta e o NEEJA de Passo Fundo como
espaço de confluência para a produção de sentidos, entendendo a vivência
escolar como o saber-objeto gerador de sentidos comuns, expressos por
diferentes configurações.Inscreve-se como pesquisa qualitativa, com inspiração
nos princípios da etnografia, e busca dar visibilidade às “Redes de Significações”
como perspectiva teórico-metodológica; desenvolve-se através das trajetórias de
vida das pessoas e utiliza como estratégias principais as observações e
entrevistas, as quais constituíram o modo de apreensão e análise. A análise de
dados constitui-se na interlocução com os relatos de vida e os referenciais
teóricos de pesquisas em especial: Rossetti-Ferreira, Melucci, Elias, Freire,
Nogueira, Bosi, Moll, Brandão, Duarte Jr., Giddens, Mires, Sarti, Charlot e Santos.
Assim, foi viabilizado o conhecimento sobre a concretude, similar e singular, de
homens e mulheres que buscam escolarização na vida adulta quanto aos sentidos
produzidos, como mobilizadores de busca pela escola:o trabalho,o desejo de
ensinar os netos, a busca de emancipação, o desejo de conhecer pessoas e
fazer amigos e realizar o sonho de ler e escrever.Esses sentidos encontram
entrelaçamentos nas relações que estabelecem no ambiente escolar,
fazendo nele permanecer: a superação do medo de não aprender o saber
escolar, os laços de amizade,o espaço de escuta e visibilidade,a valorização dos
saberes construídos na “escola da vida”,a participação comunitária,o saber
escolar como articulador de outros processos de vida e o grupo como instituinte
do espaço de pertença.Assim os sentidos ultrapassaram a constituição de um
universo de saberes-objetos, aproximando-se de outros dois processos
epistêmicos da relação com o saber: a ação no mundo e a regulação da relação
com os outros e consigo.Nesse sentido, a pesquisa chama a atenção para que os
adultos sejam olhados de outras perspectivas, ou seja, desde o seu ponto de
vista, e aponta alguns desafios ao profissional da educação de adultos.
Palavras-chave: Homens. Mulheres. Trajetórias de Vida. Sentidos.
Escolarização. Educação de Adultos. Vida Adulta.
6
RESUMEN
La pesquisa intenta enunciar los sentidos atribuidos a la escolarización por
hombres y mujeres adultos que se aproximaron del NEEJA de Passo Fundo en la
perspectiva de escolarizarse. Procura comprender como esos sentidos se
constituyen en sus trayectorias de vida, en los entrelazamientos entre niñez,
juventud y vida adulta, en la perspectiva de visualizar las experiencias de vida,
expresas en las trayetorias individuales, como productoras de sentidos planteando
el proceso de escolarización en la vida adulta y el NEEJA de Passo Fundo como
espacio de confluencia para la producción de sentidos, entendiendo la vivencia
escolar como el saberobjeto generador de sentidos comunes, expresos por
distintas configuraciones. Se inscribe como pesquisa cualitativa, con inspiración
en los principios de la etnografía, y procura dar visibilidad a las “Redes de
Significaciones” como perspectiva teóricometodológica; se desarrolla a través de
las trayectorias de vida de las personas y utiliza como estrategias principales las
observaciones y las encuestas, las cuales constituyeron el modo de aprehensión y
análisis. La análisis de datos se constituye en la interlocución con los relatos de
vida y los referenciales teóricos de pesquisas en especial: Rossetti-Ferreira,
Melucci, Elias, Freire, Nogueira, Bosi, Moll, Brandão, Duarte Jr., Giddens, Mires,
Sarti, Charlot y Santos. Así, fue viabilizado el conocimiento sobre la concreción,
similar y singular, de hombres y mujeres que procuran escolarización en la vida
adulta cuanto a los sentidos producidos, como movilizadores de búsqueda por la
escuela: el trabajo, el deseo de enseñar a los nietos, la búsqueda de
emancipación, el deseo de conocer personas y hacer amistad y realizar el
sueño de leer y escribir. Esos sentidos encuentran entrelazamientos en las
relaciones que establecen en el ambiente escolar, haciendo quedarse: la
superación del miedo de no aprender el saber escolar, los lazos de amistad, el
espacio de escucha y visibilidad, la valoración de los saberes construidos en la
“escuela de la vida”, la participación comunitaria, el saber escolar como articulador
de otros procesos de vida y el grupo como constructor del espacio de pertenencia.
Así los sentidos superaron la constitución de un universo de saberesobjetos,
aproximándose de otros dos procesos epistémicos de la relación con el saber: la
acción en el mundo y la regulación de la relación con los otros y consigo. En ese
sentido, la pesquisa llama la atención para que los adultos sean contemplados de
otras perspectivas, o sea, desde su punto de vista, y apunta algunos desafíos al
profesional de la educación de adultos.
Palabras llaves: Hombres. Mujeres. Trayectorias de Vida. Sentidos.
Escolarización. Educación de Adultos. Vida Adulta
7
SUMÁRIO
PRIMEIRAS PALAVRAS: UTOPIAS E SONHOS................................................... 8
1 APRESENTANDO UM TEMPO DE PESQUISA: ENTRELAÇAMENTOS
ENTRE A VIDA E A CIÊNCIA............................................................................ 12
2 ENTRELAÇAMENTOS: HISTÓRIAS E CENÁRIOS.......................................... 23
2.1 A HISTÓRIA DE UM TEMPO: DIZER DE MINHA HISTORICIDADE .......... 23
2.2 O CENÁRIO DA PESQUISA: A CIDADE DE PASSO FUNDO.................... 27
2.2.1 O cenário escolar e o NEEJA na cidade de Passo Fundo.................. 38
2.2.2 NEEJA: tempos legais, tempos de constituição.................................. 52
2.3 A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E OS EMBATES LEGAIS ......... 56
3 O PERCURSO DA PESQUISA: A CONSTRUÇÃO DO CORPUS .................... 65
3.1 O REENCONTRO COM O CAMPO............................................................. 68
3.2 O ENCONTRO COM AS PESSOAS DA PESQUISA .................................. 70
3.3 ENTRELAÇAMENTOS ENTRE FALAS E OLHARES ................................. 79
3.3.1 A observação ...................................................................................... 79
3.3.2 As entrevistas...................................................................................... 81
3.3.3 Análise dos dados............................................................................... 84
4 AS PESSOAS DA PESQUISA E SEUS ENTRELAÇAMENTOS NOS
DIFERENTES TEMPOS DE VIDA..................................................................... 89
4.1 OS SUJEITOS DA PESQUISA E SUAS CONFIGURAÇÕES: HOMENS E
MULHERES ADULTAS QUE RETORNAM À ESCOLA............................... 90
4.2 AS TRAJETÓRIAS TECENDO REDES: DA INFÂNCIA NEGADA À
ADULTEZ “PRECOCE”................................................................................ 97
4.2.1 Os fios comuns que tecem as trajetórias: da infância à adultez........ 115
4.3 OS SUJEITOS E AS VIVÊNCIAS DA ADULTEZ....................................... 117
4.3.1 Fios comuns que se entrelaçam e compõem as vivências que
constituem a adultez ......................................................................... 134
5 A ESCOLA E OS ENTRELAÇAMENTOS QUE COMPÕEM OS SENTIDOS DA
ESCOLARIZAÇÃO NA VIDA DE HOMENS E MULHERES ADULTAS........... 139
5.1 A EDUCAÇÃO E A ESCOLA: ESPAÇO INSTITUCIONAL E
SOCIOCULTURAL..................................................................................... 140
5.2 QUE PROCESSOS DE VIDA LEVAM UM ADULTO A VOLTAR À
ESCOLA?..................................................................................................... 144
5.2.1 Fios comuns que expressam os sentidos que homens e mulheres
adultas atribuem ao processo de escolarização ............................... 162
5.3 AS RELAÇÕES E OS ESPAÇOS – A SALA DE AULA ................................ 165
5.3.1 Fios comuns que se entrelaçam nas relações e constituem sentidos
para estar no núcleo.......................................................................... 180
6 CONCLUSÕES................................................................................................ 184
REFERÊNCIAS................................................................................................... 190
ANEXOS...............................................................................................................199
APÊNDICES........................................................................................................ 209
8
PRIMEIRAS PALAVRAS: UTOPIAS E SONHOS
A educação de jovens e adultos é um “campo carregado de complexidade”
que carece de definições e posicionamentos claros.
Leôncio Soares
Ao concordar com a epigrafe acima, assumo o desafio de mergulhar nesse
amplo campo e nele focar o olhar e a escuta nas pessoas adultas que constituem
esse universo, pois talvez através delas sejam possíveis outras definições e
outros posicionamentos na educação de adultos.
Nesse sentido, ao escrever este texto busco “juntar” os fios visíveis que
tramam o complexo mundo de homens e mulheres adultas que buscam
escolarização no NEEJA de Passo Fundo. Esses fios constituem suas
trajetórias de vida, e através delas busco interagir na perspectiva de conhecer
seus entrelaçamentos singulares, que expressam os sentidos que os mobilizam à
busca e à permanência na escola nessa fase de vida.
Inicialmente, compreendo os motivos que compõem este trabalho como um
tempo de entrelaçamentos entre a vida e a ciência e apresento-os através das
aproximações com tema, dos pressupostos epistemológicos e das opções
metodológicas que circuscreveram o caminho da pesquisa.
No segundo capítulo apresento os fios que se entrelaçam e constituem
histórias e cenários da pesquisa. Realizar esse percurso significou olhar para a
minha própria trajetória de vida e dela buscar os fios que constituem minhas redes
de significações, como criança-aluna, criança-filha de mãe educadora, como
adolescente-aluna do curso de magistério, como jovem-educadora em processo
de formação acadêmica e como adulta, mulher, esposa, mãe, filha, educadora e
aluna do mestrado em educação da UFRGS. Posteriormente, busco os fios que
compõem o cenário da pesquisa – a cidade de Passo Fundo – e os
entrelaçamentos que teceram e tecem através dos tempos a sua história. E na
perspectiva da rede trago mais um fio o NEEJA
1
de Passo Fundo – campo
1
Núcleo Estadual de Educação de Jovens e Adultos.
9
empírico da pesquisa – e seu processo de constituição no entrelaçamento com
aspectos legais que regem a educação de jovens e adultos no país e no estado
do Rio Grande do Sul.
O percurso da pesquisa apresento de forma descritiva no terceiro capítulo,
buscando apreender um certo movimento, deixando transparecer a noção de
processo de construção e de entrelaçamentos que foram acontecendo entre
pessoas, campos interativos e contextos. Também constituem esse capítulo os
avanços e retrocessos, as intenções e as ações, as dificuldades e o
remanejamento das ações, as incertezas, os desafios e as aprendizagens de uma
educadora que se lança ao mundo da pesquisa.
No quarto capítulo trago a concretude da vida das pessoas nos
entrelaçamentos com os diferentes tempos de vida. Inicialmente, busco traçar um
perfil configuracional das pessoas que se aproximaram da pesquisa, na
perspectiva de visualizar o campo interativo da pesquisa e, também, de apontar
elementos comuns e diferentes entre homens e mulheres que buscam
escolarização no NEEJA de Passo Fundo. Posteriormente, passo a apresentar as
trajetórias singulares de infância, juventude e adultez de Oraceli, Olga, Odete,
Sebastiana, Adão, Juarez e Gelson – pessoas da pesquisa com a intenção de
registrar os depoimentos de vida reveladores da face dinâmica e processual com
que se apresentam no cotidiano. Busco traçar um diálogo com as pessoas aqui
representadas pelas suas narrativas e com os interlocutores teóricos que foram
referência para a elucidação das categorias que se apresentavam constituintes
das redes de significações.
No quinto capítulo apresento a escola e os entrelaçamentos que compõem
os sentidos da escolarização na vida de homens e mulheres adultas, buscando
através das narrativas e dos relatos das observações nas atividades grupais de
sala de aula como esses sentidos se articulam nas buscas individuais e coletivas
pelo saber escolar.
Nas palavras finais apresento alguns apontamentos que poderão contribuir
para a construção de práticas pedagógicas que se pautem na escuta e no olhar
10
sensível dos sujeitos. Esses apontamentos são fruto das reflexões teóricas aqui
apresentadas, das interações com as pessoas da pesquisa, com o campo
empírico, de minhas vivências profissionais e das vivências com colegas de
orientação e professores do PPGEDU/UFRGS, que de forma especial
contribuíram para a ampliação de minhas reflexões.
11
A rigor, a esfera dos negócios humanos consiste na teia de relações
humanas que existem onde quer que os homens vivam juntos. A
revelação da identidade através do discurso e do estabelecimento de um
novo início através da ação incidem sempre sobre uma teia já existente,
e nela imprimem suas conseqüências imediatas. Juntos iniciam novo
processo, que mais tarde emerge com a história de vida do recém-
chegado, que afeta de modo singular a história da vida de todos aqueles
com quem ela entra em contato. É em virtude desta teia preexistente de
relações humanas, com suas inúmeras vontades e intenções
conflitantes, que a ação quase sempre deixa de atingir seu objetivo: mas
é também graças a esse meio, onde somente a ação é real, que ela
produz histórias (ARENDT, 2005, p. 196-197).
12
1 APRESENTANDO UM TEMPO DE PESQUISA:
ENTRELAÇAMENTOS ENTRE A VIDA E A CIÊNCIA
A pesquisa é fruto de uma contínua reflexão, que emergiu em diferentes
velocidades de diferentes tempos, sobre o mundo profissional no qual venho
interagindo há muitos anos – escola pública estadual –, em especial, nos últimos
anos, com a Educação Jovens e Adultos (EJA). Nesse meu tempo, assumo como
desafio pesquisar o que me é familiar, o meu cotidiano profissional, formado por
“sujeitos adultos”, portadores e construtores de diferentes saberes – que se
constituíram em diferentes tempos – que interagem e se entrelaçam, destituindo
certezas e constituindo possibilidades.
Ao longo dos últimos seis anos, o meu cotidiano profissional na Educação
de Jovens e Adultos vem permeado por muitos olhares, escutas, conversas.
Esses momentos foram direcionando meu olhar às pessoas adultas – homens e
mulheres que buscam a escolarização no NEEJA
2
de Passo Fundo, surgindo,
assim, a intenção de conhecer, questionar, indagar sobre: O que os faz retornar
mesmo trazendo em suas trajetórias de vida muitas histórias de rupturas e
descontinuidades em seus processos de escolarização?
Inicialmente, percebo que eles têm uma necessidade imediata relacionada
ao trabalho, porém, à medida que interagem nesse espaço, é possível depreender
outros sentidos que os mobilizam e os fazem permanecer no núcleo. Portanto,
diante desse olhar parto para a pesquisa com o objetivo de “buscar conhecer
nas trajetórias de vida de homens e mulheres adultas que buscam
escolarização no NEEJA de Passo Fundo os sentidos que atribuem a esse
processo”.
Compreendo esse meu tempo de pesquisa como uma totalidade, na qual
se entrelaçam outros diferentes tempos de vida, que se apresentam nas
interrogações, nos sentimentos e nos encantamentos. É um tempo em que busco
2
Núcleo Estadual de Educação de Jovens e Adultos do Sistema Estadual de Ensino/RS.
13
fazer ciência, talvez a “ciência do concreto”, que, segundo Da Matta (2005),
3
incorpora intelecto e sentidos, numa perspectiva de focar o olhar nas harmonias
em vez das contradições, que se revelam no contexto da pesquisa.
Nesse sentido, entendendo que produzir uma pesquisa num momento de
intenso questionamento dos fundamentos das ciências, em geral, e das ciências
sociais, em específico, é um movimento exigente. Trata-se de, concordando com
Santos (1996 p. 57), “exercer a insegurança, em vez de sofrê-la”. E assim,
avançarmos para um reconhecimento do saber contido em outras formas de
conhecimento, como a presente no senso comum, por exemplo, buscando uma
“razão do tipo dialógica” (Freire,1993, p. 29) preconizada por Freire. O senso
comum deve ser reconhecido como uma racionalidade possível e diferenciada da
racionalidade científica, sendo que o próprio senso comum não é um
conhecimento único e homogêneo. Na investigação, isso significa, entre outros, a
busca da compreensão e o registro da consciência social daqueles que vivem os
fenômenos sociais que investigamos. O conceito de senso comum será aqui
emprestado de Martins (2000) como “conhecimento compartilhado entre os
sujeitos da relação social” (p. 59). Assim, não se trata apenas do conhecimento
que o homem comum usa para a definição das coisas da vida, ou, ainda, de um
conhecimento alienado em relação às pretensas realidades sociais. O senso
comum envolve significado partilhado na interação. Nesse sentido, talvez poderá
ser possível romper com o determinismo e a previsibilidade da ciência moderna,
que vem se firmando na separação entre sujeito e objeto, objetividade e
subjetividade, e, dessa forma, negando um saber que se constitui no mundo da
vida das pessoas, por isso é incerto e inacabado.
Nesse meu tempo, assumo como desafio pesquisar o que me é familiar e,
portanto, estranhar o que é familiar, a partir de meu cotidiano profissional,
entendendo que o mundo cotidiano é o primeiro que nos toca. É nele que se firma
o solo das experiências vividas, o da construção de conhecimentos básicos,
também chamados de “senso comum”. Portanto, para mim, pesquisar, nesse
3
Conferência proferida pelo antropólogo Roberto Da Matta no 10º Encontro de Iniciação Científica,
5ª Mostra de Pós-Graduação e 3ª Mostra de Extensão da Uenf, em julho de 2005.
14
contexto, significa uma tarefa de grande complexidade, pois implica compreendê-
lo cientificamente.
Assumo o desafio sabendo das dificuldades que se colocam quando
passamos a olhar para algo dentro do qual estamos, como parte integrante do
contexto que olhamos, mesmo correndo o risco de nada enxergar para além do
previsível. Mas também acreditamos, como Melucci (1992), que,
[...] a cada dia, todos os dias, esboçamos gestos rotineiros, movemo-nos
ao ritmo de motivações externas ou pessoais, cultivamos memórias e
projetamos futuro. Assim como nós, todos os demais. As experiências
cotidianas parecem minúsculos fragmentos isolados da vida, tão
distantes dos vistosos eventos coletivos e das grandes mutações que
perpassam a nossa cultura. Contudo, é nessa fina malha de tempos,
espaços, gestos e relações que acontece quase tudo o que é
importante para a vida social. É onde assume sentido tudo aquilo que
fazemos e onde brotam as energias para todos os eventos, até os mais
grandiosos (p. 13). (grifo meu).
Cotidiano, palavra que lembra rotina, hábito, constância, enfim, o que já é
conhecido, o que se repete, o pequeno elemento que permite que tudo o que vem
depois seja previsto. Previsão embasada num saber. Saber que permite antever,
rever, refazer, repetir. Saber com sabor de já visto, já vivido, já sentido, já
conquistado. Saber que leva a ver de novo, não ver o novo. O cotidiano não é só
tempo-espaço da previsibilidade, mas também de possibilidades, de surpresas e
de abertura ao inusitado.
Portanto, partindo dessa concepção, busco interagir no mundo cotidiano de
homens e mulheres adultas que buscam escolarização no NEEJA de Passo
Fundo, entendendo que esse cotidiano é constituído e constituinte de redes de
significações, tecidas por muitos fios que se entrelaçam. Nesse sentido, apresento
alguns pressupostos que guiaram a feitura da pesquisa e me permitiram olhar
para as pessoas da pesquisa para além da categoria “alunos da EJA”, dando
visibilidade às suas trajetórias pessoais, de tal forma que não falo em objeto de
pesquisa, mas com as pessoas da pesquisa.
Na perspectiva de traduzir a experiência em ciência, entendendo-a como a
expressão das diferentes formas de ver e explicar o mundo, pauto-me no que
15
Mires (1996) chamou de “revolução paradigmática”, Santos (1999), de “paradigma
emergente”, e Melucci (2005), de “virada epistemológica”, que coloca em questão
o dualismo sujeito / objeto, fatos / representação, realidade / interpretação.
Deste último destaco as teses principais que caracterizam tal redefinição
epistemológica: a centralidade da linguagem, que “é culturalizada, de gênero,
étnica, sempre ligada a tempos e lugares específicos” (Melucci, 2005, p. 33); a
redefinição da relação entre o observador e o campo; a dupla hermenêutica –
onde não se trata de produzir conhecimentos absolutos, mas interpretações
plausíveis – e a forma de apresentação de resultados nas suas diferentes formas
de expressão auto-reflexiva.
Dessas premissas Melucci (2005) aponta que o objetivo da pesquisa social
não é mais explicar uma realidade em si, independente do observador, mas se
transforma na tradução do sentido produzido pelo interior de um certo sistema de
relações sobre um outro sistema de relações – o da comunicação científica.
Assim, do modelo clássico da pesquisa científica, da conexão linear entre
hipóteses e verificação de hipóteses, à explicação emergente e recorrente dos
processos nos quais o conhecimento é produzido através da troca dialógica entre
observador e observado, “a explicação não é entendida como verificação objetiva
de hipóteses, mas como um processo de produção de conhecimento que se
adequa progressivamente através da interação entre observador e observado”
(p. 34).
Portanto, além de apresentar pressupostos que me acompanharam nessa
pesquisa, assumindo-os como concepção, apresento a perspectiva metodológica
de que me aproximo e, a partir dela, passo a trilhar o caminho da pesquisa.
Portanto, na busca pela concretude das concepções acima defendidas encontro
na perspectiva metodológica da Rede de Significações, indicadores de caminhos
para a investigação que permitiram visualizar os sentidos atribuídos por pessoas
adultas na escolarização, compreendendo que tais sentidos podem estar na
articulação entre tempos e campos interativos, aspectos que se colocam na
centralidade de tal perspectiva metodológica.
16
A perspectiva metodológica da Rede de Significações é resultado de
décadas de trabalho cuidadoso e inovador que busca integrar, dinamicamente,
teoria, pesquisa e trabalho junto á comunidade. Ela foi tecida pelos componentes
do CINDEDI
4
– um grupo de profissionais na área da educação infantil, que
realizam um trabalho conjunto de pesquisa, fundamentados na visão sócio-
histórica do desenvolvimento humano.
O nascimento da perspectiva metodológica da Redsig deu-se do projeto
“adaptação de bebês à creche”, em que se deparou com o desafio de analisar
uma situação de encontro entre contextos diversos (família/ creche/ trabalho),
envolvendo direta ou indiretamente várias pessoas, cada qual com suas
perspectivas próprias. O grupo passou “a explorar os diversos prismas de análise
possíveis, fizeram elaborações e sistematizações com novas maneiras de
investigação que propiciassem uma visão original, dinâmica e inclusiva a respeito
do processo” (ROSSETTI-FERREIRA, 2004, p. 16).
Nesse sentido, no entendimento do grupo, a forma mais habitual de
investigação dos processos de desenvolvimento humano, em seus vários
contextos, tem sido analisar os modos como determinada cultura entende a
educação de seus membros e estrutura as práticas sociais cotidianas (2004, p.
15).
Os elementos contextuais e relacionais que são apontados como foco de
olhar no processo de pesquisa encaminham para contornos metodológicos e
apresentam o compromisso ético para com as pessoas, permeado pelo diálogo
entre teoria, pesquisa e práxis. Nesse sentido, a tentativa de deslocar a
perspectiva da RedSig, inicialmente pensada no campo da psicologia infantil, para
o campo educacional constitui-se numa atitude ousada, mas altamente
enriquecedora.
Rosseti-Ferreira (2004) apresenta a RedSig como uma forma de
compreender a significação do desenvolvimento humano através do estudo das
4
Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil – da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.
17
interações em que as pessoas se envolvem, “estando simultaneamente imersas
em, constituídas por e submetidas a relações dialógicas que vão produzindo
múltiplos significados em movimentos de transformação e emergência de novos
significados(p. 26).
Nesse sentido, a perspectiva metodológica da Rede de Significações
entende a rede como metáfora da articulação dos diversos fatores e significações,
a qual circunscreve os processos de desenvolvimento humano. Rossetti-Ferreira
(2004) define-a como resultado da
[...] dinâmica e dialética relação entre esses diversos elementos
(componentes pessoais, campos interativos, cenários e matriz sócio-
histórica) cria o que vimos metaforicamente denominando de rede - rede
de significações. A depender da articulação entre os fatores e
significações presentes em uma situação, uma determinada configuração
da rede é obtida, a qual estrutura, significa e canaliza um conjunto de
ações, emoções e concepções possíveis, contemplando condições
macro e micro-individuais
(p. 28).
A “metáfora da rede” foi buscada para integrar a visão dialética e
discursiva. Assim, a perspectiva da Redsig, bem como as significações que
podem assumir, vai auxiliar a superação de antigas dicotomias entre as ciências,
como o que existe entre o biológico e social, o corpo e a mente, a permanência e
a ruptura, a certeza e a incerteza, entre outras.
Segundo Jean Valsiner (2004), a Redsig fala de uma “ciência do
desenvolvimento”, que cria sua própria literatura, numa área de intersecção entre
a Psicologia e a Pedagogia. Tal concepção coloca o desenvolvimento humano,
entrelaçado em uma rede de elementos complexos, de natureza semiótica, que
interage dialógica e dialeticamente, constituindo processos interativos de onde
emergem as significações que possibilitam às pessoas, dialogicamente,
partilharem significados constituírem sentidos.
18
Nesse sentido, Craidy
5
aponta que o pensar e o viver em rede é o que
caracteriza o pensamento complexo; por isso, é colocado pelos diferentes campos
da ciência “por Geertz, na antropologia, por Rossetti-Ferreira na psicologia, por
Bernad Lahire, Guthier e Norbert Elias na sociologia [...] como uma possibilidade
de entrelaçamento entre campos do conhecimento”. Alerta que tal entrelaçamento
não se faz sem dificuldades de ordem etimológica e epistemológica.
Assim, segundo Gentil (2005), a perspectiva teórico-metodológica da
RedSig tem despertado o interesse de vários pesquisadores, inclusive de outras
áreas que não a psicologia do desenvolvimento, provocando uma aproximação
entre diferentes modos de trabalho, levando a situações não experimentadas
antes e provocando uma discussão a respeito dos instrumentos metodológicos a
serem utilizados.
Nesse sentido, busco aproximar a perspectiva da rede de significações com
elementos da etnografia, tendo como ponto de partida minha vivência inicial com a
situação pesquisada, o que me permitiu a apreensão dos vários elementos
envolvidos, propiciando uma visão panorâmica, um primeiro delineamento da rede
de significações, circunscrita por elementos da etnografia. Segundo Rossetti-
Ferreira (2004), a rede de significações não existe como entidade, mas é uma
apreensão por parte do pesquisador da situação investigada e uma interpretação
do modo como os componentes apreendidos se articulam e circunscrevem certas
possibilidades de ação/emoção/ cognição (p. 31).
Dessa forma, a etnografia apresenta-se na RedSig como abordagem
metodológica, uma vez que permite o contato direto do pesquisador com a
situação constituída pelo contexto e as pessoas pesquisadas.
A etnografia, segundo André, (apud Fazenda, 2000, p. 38) permite “um
contato direto e prolongado do pesquisador com a situação e as pessoas
ou grupo selecionado”, variando a intensidade desse contato e
analisando permanentemente os “pros e contras” das opções feitas. É
imprescindível também a “obtenção de uma grande quantidade de dados
descritivos, utilizando principalmente a observação participante” de
maneira que o pesquisador possa acumular descrições das relações e
fatos, ações, “jeitos”, modos de vida e dessa forma “ir estruturando o
5
Palavras proferidas, gravadas e transcritas na banca de qualificação do projeto da presente
dissertação em 31/08/05.
19
quadro figurativo da realidade estudada” e a partir desse desenho fazer
as “análises e as interpretações”.
Sarmento (2003) salienta que os elementos metodológicos apontados pela
etnografia visam apreender a vida tal qual ela é cotidianamente conduzida,
simbolizada e interpretada pelos atores sociais nos seus contextos de ação
(p. 153).
Outro aspecto que considero diz respeito ao que apontam Rossetti-Ferreira,
Amorim e Silva (2004):
O objetivo da coleta e análise de dados, portanto, deve ser o de
apreender vários dos elementos presentes em determinadas situações
interativas, buscando analisar os vários significados e sentidos que se
destacam na situação, para as várias pessoas participantes do processo,
acompanhando ainda seus movimentos de transformação e procurando
interpretar os processos pelos quais as significações emergem. Trata-se,
portanto, de uma tarefa bastante complexa: apontar para certos
elementos das redes de significações em que as várias pessoas se
encontram imersas e para suas inter-relações de modo a não cair, a
priori, por um lado em um reducionismo e, por outro, em um relativismo
absoluto
(p. 31).
As autoras salientam que é de fundamental importância, para evitar o
reducionismo e o relativismo absoluto, a vivência inicial do pesquisador na
situação pesquisada, o verdadeiro “mergulho” acompanhado do uso de registros
sistemáticos. Nessa fase, o pesquisador deve atuar como um etnógrafo, buscando
descrever em seu diário de campo o que está acontecendo a sua volta com
riqueza de detalhes. Essa vivência inicial me forneceu a fundamentação empírica
necessária para a sistematização da forma como foram feitas a coleta de dados e
a construção do corpus, permitindo-me definir melhor os recortes a serem
efetuados.
Na perspectiva da RedSig, a intenção da pesquisa de “conhecer os
sentidos atribuídos por pessoas adultas à escolarização” significa entrar num
espaço-tempo relacional que constitui redes que se articulam entre si:com os
outros, consigo e com o mundo social. Esse movimento entrecruza os diferentes
momentos históricos que permeiam os acontecimentos do tempo presente,
20
constituídos pelas histórias singulares. Os tempos, em suas múltiplas
manifestações, contemporaneizam as relações e configuram os espaços de
significações da escola e a constituição de sentidos de “estar na escola na vida
adulta”.
Nesse sentido, as dimensões temporais apresentadas pela RedSig
6
exerceram grande importância reflexiva. Segundo Rossetti-Ferreira, Amorim e
Silva (2004), apresentam-se em quatro dimensões interligadas: tempo presente,
vivido, histórico e prospectivo.
O tempo presente, ou microgenético, envolve as situações do aqui-agora
e constitui o nível dialógico das práticas discursivas interpessoais, as
quais se dão em um tempo e lugar presentes. Neste tempo, as várias
vozes ativadas pelas memórias sociais dos outros três tempos tornam-se
presentes e combinadas. O tempo vivido
, ou ontogenético, refere-se a
vozes evocadas de experiências vividas em nossas práticas discursivas.
Elas são socialmente construídas durante os processos de socialização,
sendo compartilhadas com parentes, amigos e colegas que passaram
por experiências e contextos similares. O tempo histórico
, ou cultural, é o
lócus do imaginário cultural, socialmente, construído durante períodos
relativamente longos em uma determinada sociedade. [....] compõe o
interdiscurso ou rede coletiva de significações disponíveis para as
pessoas darem sentido aos vários fenômenos de nosso mundo. O tempo
prospectivo, ou orientado para o futuro, integra expectativas individuais e
coletivas, proposições e metas. É também estruturado por formações
discursivas e ideológicas, assim como por motivações e desejos
individuais ou compartilhados, antecipações e planos, os quais delimitam
e/ou impulsionam, de vários modos, as ações e as interações presentes
(Rossetti-Ferreira,Amorim e Silva, 2004, p. 27/28). Grifo meu.
Essas dimensões, segundo as autoras, encontram-se dinamicamente inter-
relacionadas, sustentando-se, contrapondo-se, confrontando-se e transformando
umas às outras. Assim, contribuem no sentido de permitir visualizar elementos
que se atualizam e se constituem a partir dos componentes pessoais, das
interações entre pares e contextos, formando diferentes significados e sentidos,
transformando-se num movimento de figura e fundo.
As dimensões temporais aqui apresentadas são constituidoras de
experiências humanas ao longo de suas vidas e, dessa forma, aproximam-se das
explicações da temporalidade humana construída por Melucci (2004) “metáforas
do tempo” – uma construção que se dá ao longo da história da humanidade,
6
Rede de Significações.
21
imprimindo a cada época modelos sociais que se materializam nas experiências
cotidianas – o ciclo, a flecha e o ponto – “costumam aparecer na história das
culturas mas também falam dos diversos modos individuais de vivenciá-lo“ (p. 20).
Essas “metáforas do tempo” são figuras simbólicas que representam as
experiências humanas, o círculo compreendido entre memória e projeto, a linea-
ridade da flecha como intenção e objetivo e o ponto como conjunção da
experiência. Para o mesmo autor, a sabedoria das culturas do passado encontra
uma figura que sintetiza essas experiências – a espiral –, que contém em si o cír-
culo, o ponto e a linha e, num único movimento, sai e retorna a si mesma, porém
num plano diferente. Há sempre uma transformação. É o fluir e o manter-se.
Dessa forma, Rossetti-Ferreira (2004) e Melucci (2004) contribuem no
sentido de apontar caminhos metodológicos e reflexivos, os quais busco conjugar,
na perspectiva de compreender as dimensões temporais humanas como
produtoras das infinitas formas de perceber o mundo e organizar a vida cotidiana,
constituindo singularidades e pluralidades, num constante entrelaçamento entre
tempos internos e externos, significando e dando sentido para ser e estar no
mundo.
Nossa experiência é feita de velocidade e lentidão, de movimento e
repouso, isto é, da alternância e do ritmo. Combina reversi-bilidade e
irreversibilidade pois vivemos ao mesmo tempo sobre a linha que flui e
nos leva do nascimento ao crescimento, ao enve-lhecimento, à morte e
no tempo que pode voltar para trás, que pode percorrer novamente o
ciclo, porque o tempo é o da alma. O problema atual é o reconhecimento
dessa pluralidade, sem pre-tensões de reduzir a nossa experiência do
tempo a uma única dimensão. A procura de uma unidade coloca-nos
diariamente diante da crescente divergência entre o tempo do relógio e
do calendário e os tempos interiores. É sobre esta divergência que jo-
gamos o desafio do cotidiano para encontrar um elo, uma con-tinuidade
entre as partes da experiência. (Melucci, 2004,
p. 35-36).
Essas relações constitutivas do ser humano são produtoras de sentidos nos
diferentes tempos de vida; que se transformam historicamente nas relações do
homem com o mundo, dos homens entre si, do homem consigo próprio e do
homem com o conhecimento. Dessa forma, podemos compreendê-los no campo
22
das significações, construídas nas diferentes trajetórias de vida e que se
manifestam nos pensamentos, nas lembranças e nos sentimentos.
Portanto, a constituição de sentidos é uma construção singular, significada
pelo sujeito, que decorre de uma construção temporal que é histórica, social e
cultural, porque somos constituídos na cultura. Talvez estejam no entrelaçar
desses diferentes tempos de homens e mulheres adultas os sentidos que
encontram para buscar e estar na escola.
Então, proponho a interlocução – homens e mulheres adultas, autores,
autoras e pesquisadora – no intuito de aproximar teoria e prática ao fazer leituras
de singularidades e apresentá-las na qualidade de exemplos, não de
generalizações. Assumo as incertezas e a provisoriedade do conhecimento,
valorizando o processo tanto ou mais que o produto final.
23
2 ENTRELAÇAMENTOS: HISTÓRIAS E CENÁRIOS
2.1 A HISTÓRIA DE UM TEMPO: DIZER DE MINHA HISTORICIDADE
Estar no mundo sem fazer história, sem ser por ela
feito, sem fazer cultura, sem tratar sua própria
presença no mundo, sem sonhar, sem cantar, sem
musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas,
sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem
pontos de vistas sobre o mundo, sem fazer ciência, ou
teologia, sem assombro em face ao mistério, sem
aprender, sem ensinar, sem idéias de formação, sem
politizar não é possível.
Paulo Freire
Escrever sobre experiências vividas significa um encontro com o tempo que
me faz tomar nas mãos a minha própria existência, minha maneira de ver, sentir,
reagir, optar, perceber e compreender as marcas que me constituíram e me
constituem como pessoa e educadora, como sujeito, na tessitura da história. Faz-
me lembrar de minha infância, do significado que a escola sempre teve em minha
vida, da minha relação com o processo de conhecimento, dos desafios e dos
caminhos percorridos nesse processo de formação, que é singular e inconcluso.
Nasci em 1963, no distrito de São José, município de Palmeira das Missões
- RS, onde vivi por muitos anos. Minha mãe era professora e muitas vezes eu a
acompanhava no seu fazer pedagógico no cotidiano da escola e nas costumeiras
tarefas que levava para casa, pois se tratava de uma pessoa bastante envolvida e
apaixonada pelo seu ofício. Aprendi a admirá-la também por isso. Assim, durante
toda a minha infância e adolescência acompanhava-a também em cursos de
formação. E ao ver o seu envolvimento perguntava-lhe: – “Para ser professor
precisa estudar sempre?” Minha mãe sabiamente me respondia: – “Sim, para ser
um bom professor, é necessário muita leitura e também fazer sempre que
possível algum curso”. Essa frase ficou inscrita em mim e passou a integrar as
minhas representações subjetivas em relação ao ser professor. Cresci com uma
24
grande certeza: queria ser professora. Assim me constituí professora instigada
pelo desejo construído através das representações
7
de minha infância.
Iniciei meu processo de formação acadêmica no ano de 1970, quando
ingressei na 1ª série do ensino fundamental na Escola Rural de São José, situada
no interior de Palmeira das Missões - RS, onde cursei até a 8ª série. Foi um
período de grande significado para minha vida pessoal e profissional.
Hoje sei que muito de minha formação, expressa em minhas práticas, tem
reflexos desse período, pois aprendi muito com os educadores daquela época,
que, mesmo em plena ditadura militar, lutavam para constituir a partir da escola
uma sociedade democrática e mais justa. Penso que minha atuação no magistério
tem forte influência dos processos pedagógicos que vivenciei durante meu ensino
fundamental.
Em 1979 iniciei o Ensino Médio – Habilitação para o magistério. Era
adolescente com preocupações como namoro, grupo, escola e controle rígido de
horários impostos por minha mãe, mas também me preocupava em saber como
poderia no futuro vir a ser uma professora, como muitas que conhecera e
aprendera a admirar. Foi um período de muitas teorias e muitas inquietações, pois
percebia certa incoerência entre as teorias e a realidade que vivenciava. Tinha um
olhar crítico e, de certo modo, um pouco pragmático, pois, para mim, as teorias
apresentavam-se distanciadas das classes populares, em especial da realidade
do meio rural. Preocupava-me, já naquela época, a questão da aplicabilidade do
conhecimento. Como seria se tivesse que trabalhar com crianças do meio rural?
Com crianças marginalizadas? E pessoas adultas que nunca tinham tido acesso à
escola? Concluí o curso e não obtive respostas. Jogada no mercado de trabalho -
como muitos dizem “formada” me perguntava: “formada para quê?”
7
Em torno de acontecimentos passados e presentes, constantemente, estão se estabelecendo
representações que projetam um campo de ação. (Montenegro, p. 35). Representar ou
representar-se corresponde a um ato de pensamento com o qual o sujeito se refere a um objeto.
Uma vez dada ênfase ao sujeito, as representações aparecem como “sistemas de interpretação” e
estão ancoradas em uma rede de significações. (Charlot, 2000, p. 83).
25
Em 1982, iniciei a minha trajetória profissional.
8
Voltei para a minha terra,
onde passei a trabalhar na primeira escola onde estudara. Apesar de uma enorme
insegurança, sentia-me feliz, pois meus velhos professores estavam lá. Poderia,
então, encontrar algumas respostas às minhas inquietações, interagindo não mais
como aluna, mas como educadora comprometida com os princípios
transformadores que aprendera na mesma escola na condição de aluna?
Juntamente comigo, outros/as colegas também voltaram para trabalhar lá, o que
me fazia sentir “em casa” outra vez. Como nossas inquietações e angústias eram
as mesmas, passamos a organizar encontros fora de nosso horário da escola
para discutir: Como poderíamos construir novas práticas? Como aproveitar as
teorias que havíamos aprendido para “transformar”
9
a realidade com que nos
deparávamos, onde muitos eram oprimidos e rotulados pela condição de serem
filhos de agricultores?
Em nosso grupo havia um colega que já tinha ingressado no curso superior,
uma pessoa bastante crítica. Passei a admirá-lo pela sua capacidade e coragem
de trazer para o cotidiano (aulas, reuniões e grupo de jovens) problematizações
de situações vivenciadas na escola e na comunidade. Tais problematizações
vislumbravam práticas que se voltassem à participação coletiva e ao resgate
social, numa perspectiva de formação de consciência, para que se instaurassem
“a reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (Freire, 1981,
p. 40). Acreditávamos que a educação era um caminho para mostrar àquelas
pessoas aparentemente fracas, conformadas com a dominação imposta pelos
poderosos da época,
10
que eram capazes de sair daquele processo de submissão
pela organização e pela participação e, dessa forma, contribuir para uma
sociedade mais justa.
8
Professora da rede pública estadual, inicialmente com uma contratação emergencial,
posteriormente meu vínculo estável se estabeleceu via concurso público.
9
Transformar, no sentido freireano, significa criar consciência a partir do mundo vivido,
problematizando-o. Nessa comunidade, naquela época, as pessoas viviam presas a “favores”,
que, posteriormente, lhes eram cobrados através do voto. Essa era a forma do “poder” perpetuar-
se centrado numa mesma pessoa.
10
Proprietários de grandes áreas de terra, donos de armazéns e ocupantes de cargos políticos
(vereadores e subprefeitos – ligados aos partidos políticos de direita). Essas pessoas também
eram os grandes empregadores no comércio e na agricultura.
26
Nesse momento, realizei várias leituras, entre as quais Pedagogia do
oprimido de Paulo Freire. Foi um período de grande crescimento. Passei a ler
também a poesia de Kalil Gibran, Fernão Capelo Gaivota; a ouvir Caetano Veloso,
Raul Seixas, Chico Buarque e, ao mesmo tempo, a compreender conceitos como
democracia, opressão, liberdade... Encontrei algumas respostas, mas, ao mesmo
tempo, surgiram muitas dúvidas.
Descobri que meu processo de busca seria longo e constante, que
precisava avançar e, sobretudo, procurar conhecer a realidade onde estava
inserida, sendo sujeito do contexto de forma interativa.
Assim, muitos caminhos foram percorridos ao longo de quase 24 anos e,
nessa trajetória, muitas aprendizagens se constituíram. Entre esses diferentes
trajetos que me pus a percorrer, chego a outros rumos, distanciando-me dos já
percorridos, que me desafiam a aproximar-me de caminhos aparentemente
distantes, mas que poderão vir a ser extremamente próximos de muitos outros já
trilhados.
Em 1999, dispus-me a caminhar no desconhecido bosque, que se configura
com infinitas trilhas, que é a Educação de Jovens e Adultos.
Nesse ano fui convidada a trabalhar no Núcleo de Orientação do Ensino
Supletivo (NOES). Mesmo com muitas incertezas, aceitei o convite. Na época
trabalhava numa escola da rede pública estadual com crianças em processo de
alfabetização. Foi um momento de muitas dúvidas, pois me encontrava bastante
envolvida com aquele grupo de crianças, com o qual mantinha uma relação de
grande vínculo afetivo. Contudo, ao mesmo tempo, sentia-me desafiada a interagir
num novo contexto, onde novas aprendizagens seriam necessárias. Assim,
voltou-me uma antiga preocupação: Como seria trabalhar com pessoas adultas
excluídas da escola ou que a ela nunca tinham tido acesso? Que formação
deveria buscar para dar conta dessa realidade? O que precisaria saber para trilhar
esse novo caminho? Não encontrei respostas, mas, mesmo assim, me lancei na
caminhada.
27
Meu primeiro fazer nesse grande bosque desconhecido me colocou diante
de situações que geravam muita dor, inquietação e uma grande vontade de
desistir, porém algo me apontava que deveria continuar, mesmo que as trilhas
fossem tomadas por obstáculos.
Talvez a força que encontrava para seguir viesse dos entrelaçamentos
inerentes à minha condição de mulher e mãe, que encontravam nós comuns com
as pessoas que ali buscavam a escolarização como forma de garantir uma melhor
condição de vida para seus filhos. Tais gestos representavam um ato de amor,
mas também uma forma de olhar para si e de buscar emancipação.
Quero estudar professora para oferecer melhores condições de vida para meus filhos,
conseguir um trabalho melhor.
Essa inserção me colocou numa condição de grande aprendizagem,
impulsionando-me a buscas, em outros espaços, inicialmente, pela especialização
e, posteriormente, o mestrado, mas que tinham sentidos semelhantes aos que
mulheres e homens atribuem a suas buscas ao chegar ao NEEJA. Na minha
compreensão, oferecer melhores condições de vida aos meus filhos significa a
busca de saberes que permitam compreendê-los em suas inteirezas. Talvez o fio
comum que une a mim e as pessoas da pesquisa esteja no gesto que expressa o
amor que sentimos por nossos filhos.
Prossegui a caminhada aprendendo e ensinando-nos diferentes espaços e
nos diferentes momentos de interação com homens e mulheres jovens e adultas.
E assim, participei do processo de constituição do Núcleo Estadual de Educação
de Jovens e Adultos (NEEJA) de Passo Fundo, no qual atuo atualmente como
educadora e que circunscreveu meu campo de pesquisa, e passo a apresentar a
seguir, no entrelaçamento com a cidade de Passo Fundo.
2.2 O CENÁRIO DA PESQUISA: A CIDADE DE PASSO FUNDO
O espaço onde se constrói uma cidade nos convida
para o reconhecimento de um espectro infinito de
determinações/relações. É nesse plano intrincado que
homens, mulheres, crianças, velhos e velhas
28
estabelecem, projetam, realizam suas vidas.
Antonio Torres Montenegro
Os cenários são concebidos como culturalmente organizados e socialmente
regulados, guiados por funções e rotinas específicas, ao mesmo tempo definindo e
sendo definidos pelos papéis sociais, pela estrutura; pelos jogos de poder e pelas
relações afetivas que se estabelecem entre os participantes. Todos esses elementos
exercem forte poder simbólico sobre as pessoas que participam do cenário e
determinam um conjunto de comportamentos possíveis no mesmo.
Nesse sentido, para compreender os entrelaçamentos que constituem os
processos formativos de vida de homens e mulheres adultas que buscam a
escolarização no NEEJA de Passo Fundo, faz-se necessário conhecer os lugares
em que se desenham os cenários de suas vidas ao longo dos diferentes tempos -
a cidade de Passo Fundo e o NEEJA.
Rossetti-Ferreira, Amorim e Silva (2004), ao apresentarem a perspectiva
metodológica da Rede de Significação, que visa investigar o processo de
desenvolvimento humano, consideram de fundamental importância conhecer os
vários elementos interacionais, pessoais e contextuais que participam desse
processo. Nesse sentido, entendem que tais elementos são
[...] constituídos pelo ambiente físico e social, pela sua estrutura
organizacional e econômica, sendo guiados por funções, regras rotinas e
horários específicos. Eles definem e são definidos pelo número de
características das pessoas que os freqüentam, sendo ainda marcados
pela articulação da historia geral e local, entrelaçadas com os objetivos
atuais, com os sistemas de valores, as concepções e as crenças
prevalentes (p. 26).
Assim, é possível compreender essas interações contextuais como
constituidoras de cenários que são articulados pela matriz cio-hisrica.
Dessa forma, matriz sócio-histórica não é compreendida como entidade
com existência própria, mas, sim, como articuladora de aspectos sociais, culturais,
econômicos e políticos que existem e têm concretude no aqui-agora da vida das
pessoas, estando presente em espaços de sentido e significação. A característica
29
de concretude da matriz sócio-histórica no aqui-agora rompe com a idéia de
exterioridade e com a dicotomia entre os níveis macro e microssociais. Segundo
Rossetti-Ferreira, Amorim, Silva e Carvalho (2004),
a materialidade da matriz sócio-histórica revela-se, por exemplo, na
organização de espaços, das rotinas, das práticas e dos discursos
circunscritos a um determinado grupo de pessoas e contexto, e, através
do próprio corpo, possibilitando e delimitando os campos interativos,
favorecendo certas organizações sociais, certos significados e sentidos
(p. 27).
Por isso, procuro compreender através das percepções dos sujeitos da
pesquisa a concretude da matriz sócio-histórica que lhes é constituinte e
constituidora – a cidade de Passo Fundo. Entendendo que não há como capturar
a matriz sócio-histórica, o que se apreende são segmentos materiais,
vislumbrando sua concretude nas ações e relações das pessoas, pois ela só é
visível nas práticas sociais significativas, nas situações que se tornam objeto de
análise, em que é possível perceber significados construídos a partir de relações
dialógicas, indicando a possibilidade de explicitar a idéia de movimento,
apontando os limites que emergem das emoções dos pensamentos e das
hipóteses, com o conceito de tempo simultâneo.
O grupo do CINDEDI
11
aprofunda as questões referentes ao tempo
simultâneo das reconfigurações das redes, através das contribuições de Valsiner
(1987) com o conceito de constraints, denominados de circunscritores. Estes são
propostos como configurações que tendem a emergir mais facilmente como figura,
demarcando certas possibilidades e certos limites aos processos de significação e
aos papéis ou posições a serem atribuídos ou assumidos por pessoas nas
situações. Portanto, não são todos os elementos pessoais, históricos, culturais e
contextuais em sinergia que circunscrevem as redes. É nas relações situadas, nas
ações das pessoas em interação, que os circunscritores se compõem, atualizando
modos de relacionamentos, valores e concepções de um determinado grupo
cultural, assim como significado de experiências do tempo vivido e expectativas.
11
CINDEDI – Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil –
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
30
Assim, busco conhecer através das pessoas da pesquisa os
entrelaçamentos que teceram e tecem através dos tempos com a cidade de
Passo Fundo, a fim de visualizar sua história viva,
12
que se encontra expressa em
suas trajetórias de vida. Enfim, o que dizem homens e mulheres adultas que
buscam escolarização no NEEJA de Passo Fundo sobre a cidade em que vivem?
Gosto muito de Passo Fundo, não nasci aqui, mas essa é a minha terra, pois aqui criei
meus filhos, fiz minha casa, trabalho, estudo e quero ficar aqui - Oraceli
Oraceli fala da cidade de Passo Fundo como o lugar que escolheu para
chamar de “sua terra”, criar seus filhos, fazer sua casa, trabalhar e estudar. Eu,
assim como Oraceli, também escolhi essa cidade para viver – trabalhar, criar
meus filhos, ser feliz, fazer amigos, sonhar e constituir a minha historicidade.
Entendo que essas escolhas são permeadas de sentidos, que nos mobilizam,
encantam, vão constituindo redes de significações que nos permitem dizer “esta é
a minha terra”. Nesse sentido, compreendo a cidade como constituidora de
movimentos recorrentes que dão concretude aos sentidos da vida das pessoas,
que interagem e se complementam num ciclo que é cumprido diariamente por
homens e mulheres, velhos e crianças, ricos e pobres. Esse percurso é
constituidor das rotinas diárias da vida das pessoas, segundo Da Matta (2003),
formando um sistema dividido em dois espaços sociais: a casa e a rua.
A rua é o local do trabalho, do Estado, das leis e também da surpresa, da
tentação e do lazer. É igualmente o lugar do movimento, em contraste
com a calma e a tranqüilidade do lar onde nos refazemos da chamada
“luta pela vida”. Casas são habitadas por famílias cujo núcleo é
constituído de pessoas que possuem a mesma substância. A mesma
carne e o mesmo sangue que legitimam um nome comum e sugerem
interesses, tendências, bem como um destino compartilhados (p. 11).
Assim, a cidade é resultado de muitos entrelaçamentos de sentidos que se
articulam entre a rua e a casa, assim compondo o que chamamos de espaço
urbano, que se apresenta fragmentado e articulado, onde cada uma de suas
partes mantém relações espaciais com as demais. Segundo Corrêa (1989),
12
Termo cunhado por Carla Beatriz Meinerz, título de seu livro publicado em 2001.
31
[...] estas relações manifestam-se empiricamente através de fluxos de
veículos e de pessoas associados às operações de carga e descarga de
mercadorias, aos deslocamentos quotidianos entre as áreas residenciais
e os diversos locais de trabalho, aos deslocamentos menos freqüentes
para compras no centro da cidade ou nas lojas do bairro, às visitas aos
parentes e amigos, e às idas ao cinema, culto religioso, praia e parques
(p. 7).
Ainda de acordo com Corrêa (1989), a divisão articulada do espaço urbano
é um reflexo da própria sociedade; é o lugar onde as diversas classes sociais
vivem e se reproduzem, onde as formas espaciais são histórica e socialmente
produzidas por agentes sociais concretos que fazem e refazem esse espaço que
constitui a cidade. Assim, considera o espaço urbano como um reflexo tanto de
ações que se realizam no presente como também daquelas que se realizaram no
passado e que deixaram suas marcas impressas nas formas espaciais do
presente (p. 08).
Nesse sentido, focando o olhar na cidade cenário da presente investigação,
cabe conhecer um dos fios que compõem a rede que chamamos de cidade – a
constituição histórica de Passo Fundo.
Passo Fundo é parte integrante da formação e do crescimento da vida
urbana ocorrida no Rio Grande do Sul a partir metade do século XIX,
impulsionado pela instalação e crescimento do processo de industrialização.
Nesse sentido, Pesavento (1990), em seu estudo sobre a formação histórica do
Rio Grande do Sul, apresenta as principais modificações operadas nas
sociedades em razão do desenvolvimento industrial:
Numa primeira instância, a expansão urbana que acompanhou o
desenvolvimento industrial implicou uma reordenação da vida econômica
e do espaço, manifesta no aprofundamento da divisão social do trabalho,
na concentração de recursos, das técnicas e dos bens, no nucleamento
espacial da indústria e numa concentração populacional sem
precedentes (p. 32).
Arend (2001) contribui ao apontar as cidades que mais se destacaram
nessa mesma época. ”Eram nas cidades mais expressivas da época, como Porto
Alegre, São Leopoldo, Cachoeira do Sul, Santa Cruz do Sul, São Sebastião do
Caí, Rio Grande, Pelotas e Caxias do Sul, que as transações comerciais
32
aconteciam e que as primeiras fábricas foram se instalando” (p. 21). Entretanto,
Passo Fundo avançou nesse processo mais lentamente. Como afirmam Rosso e
Siqueira (1998), o povoamento de Passo Fundo foi acontecendo de forma
esporádica, ou seja, não houve projeto de colonização: “[...] dos muitos que aqui
passaram e por aqui se instalaram, permitiram que no século XIX iniciasse os
primeiros sinais de urbanização” (p. 90). Segundo Diehl (1998), foram seus
primeiros habitantes os índios dos grupos tupi-guarani e jê, com destaque para os
caingangues. Em 1827 e 1828, chegaram os primeiros habitantes brancos ao
futuro território passo-fundense, com família constituída e fazendo-se acompanhar
de escravos e agregados. Ainda o autor registra que a organização econômica,
social e política, na fase inicial de seu povoamento, caracterizava-se como
latifundiária, pastoril, patriarcal-militar e escravocrata. Apresentava um território de
grande riqueza natural, com vantajosa situação geográfica e dispondo, além
disso, de bons campos para a criação de gado e vastíssimos ervais para o fabrico
do mate. Assim, rapidamente se expandiu, tornando-se um importante centro
pastoril e ervateiro do Rio Grande do Sul.
O mesmo autor lembra, ainda, que foi a construção da estrada de ferro São
Paulo – Rio Grande do Sul que acentuou o desenvolvimento econômico do
município entre 1898 e 1905. “A passagem da estrada de ferro e a instalação
ferroviária no centro de Passo Fundo mostram que o trem modificou o eixo de
expansão urbana, atraindo colonizadores e comerciantes” (p. 101).
A estrada de ferro não gerou somente crescimento urbano e econômico na
cidade de Passo Fundo, mas, também, encantamentos que acalentaram sonhos,
como relata Olga.
Eu sempre sonhei em morar na cidade de Passo Fundo, pois me criei no interior e
sempre que vinha a Passo Fundo, quando era criança, via o trem e achava coisa mais
linda, sonhava: ‘ ainda quero morar nessa cidade, ver o trem passando e apitando,
aquele monte de gente chegando e saindo’. Agora não tem o trem, mas tem muitas
coisas boas, olha a nossa escola – Olga.
Talvez a instalação da estrada de ferro tenha acalentado muitos sonhos de
pessoas, como Olga, que vivia na zona rural, para além do encantamento infantil
33
de “ver o trem”, mas de buscar na cidade uma melhor condição para viver,
vislumbrando possibilidade de usufruir os “benefícios” da vida urbana: educação,
saúde, comunicação, luz elétrica, saneamento etc.. É como relata Olga:
Meus tios que moravam na colônia, quando a cidade de Passo Fundo começou a
crescer, que tinha trem para toda parte, tinha colégio bom e hospital, venderam as terras
e vieram pra cá, colocaram uma pensão depois um hotel para os viajantes, os primos daí
estudaram.
Isso pode ter balizado uma ruptura significativa na história da cidade,
quando a população urbana progressivamente foi superando, em números cada
vez mais expressivos, a população rural. Sabe-se também que essa não foi a
única razão que desencadeou a migração da população rural para a vida urbana.
Segundo Kalil, Tedesco e Dal Moro (1998):
Sabe-se que a emigração do campo não é um fenômeno novo no Brasil.
A ocupação dos espaços vazios e o esvaziamento dos espaços
ocupados foi constante na história brasileira. Observando a década de
1950, vê-se que a mesma, além de apresentar elevadas taxas de
crescimento da população, registrou um dinamismo muito grande em
termos do surgimento de novas cidades. Foi nesse período que o país
reequipou seu parque industrial pesado, iniciou mudanças na
estruturação da população agrícola, transferiu a capital para o centro do
país, ocupou novas fronteiras, o que provocou imensa migração inter-
regional (Ianni, 1984). Mas a sua relevância se fez sentir a partir da
adoção de um modelo de desenvolvimento econômico que teve sua
expressão no processo de modernização da agricultura, concomitante ao
processo de urbanização e de concentração populacional no Brasil.
Exemplo disso é que, entre as décadas de 1960/80, a população urbana
apresentou um incremento de 49 milhões, dos quais 30 milhões podem
ser atribuídos aos deslocamentos do tipo campo-cidade. Desse modo, o
êxodo rural foi responsável por 60% do crescimento urbano e pelas
elevadas taxas de urbanização (de 31% em 1940 para 68% em 1980,
passando de 20 a 52% nesse mesmo período) (p. 52).
Nesse sentido, podem-se confirmar as afirmações referidas através da
pesquisa documental, realizada como uma das estratégias de coleta de dados da
presente investigação, apontando que 50% das pessoas pesquisadas têm origem
rural e migraram para cidade nas décadas de 60, 70 e 80. Também, os relatos
das pessoas da pesquisa apontam que sua chegada à cidade de Passo Fundo
teve como articulador a melhoria da condição de vida vislumbrada no ambiente
urbano.
34
“Vim para Passo Fundo quando era criança, meus pais venderam as terras para trabalhar
na cidade” (Juarez).
“Morei sempre na roça, quando vim para cá já era grandinho” (Adão).
“Vim morar aqui porque é uma cidade boa tem emprego, estudo para os filhos” (Gelson).
“Quando cheguei aqui era muito diferente, hoje Passo Fundo é uma cidade grande”
(Olga).
Dessa forma vai se configurando a cidade de Passo Fundo descrita pelo
censo demográfico realizado em 2001, pelo Instituto Brasileiro de Geografia
Estatística. A população passo-fundense totaliza 168.458 habitantes, sendo que
163.764 pessoas constituem a população urbana e 4.694 pessoas, a rural, da qual
95% têm entre zero e 59 anos.
Segundo Tedesco (2004),
[...] a evolução da População de Passo Fundo no período de 1940-2000
registra um crescimento demográfico significativo em decorrência,
sobretudo, das novas relações de produção que ocorreram na região.
Seguindo a tendência do processo brasileiro [...]. Passo Fundo durante
um período de sessenta anos (1940/2000), o município verificou um
incremento de 87.358 habitantes, correspondendo a 51,85% de aumento
em sua população residente, e uma gradativa redução em sua área
territorial (p. 88).
Assim, a análise da evolução da população paralelamente à da área
superficial do município de Passo Fundo indica que, durante o período de 1940-
2000, houve um processo inverso: enquanto a população registrava um
expressivo crescimento demográfico, a área territorial do município apresentava
um significativo decréscimo. Segundo Tedesco (2004):
O território passo-fundense, pela dimensão geográfica muito além da
atual, apresentava uma organização populacional bastante dispersa,
visto que em 1940 a população era de 81.100 habitantes e a área, de
5.435 Km², expressando uma densidade demográfica de 14,92 hab./km²,
que foi sendo gradativamente elevada. [...]. Verifica-se que, apesar de a
área territorial ter diminuído significativamente, houve um aumento
expressivo da população de 201,16 hab./km², ou seja a densidade
demográfica atual é de 215,88 hab./km², concentrando-se a maioria da
população na área urbana (p. 89).
35
Atualmente, a população de Passo Fundo está distribuída
13
numa área de
759,40 km², dividida em seis distritos; a sede, considerada área urbana, dividida
em vinte e dois bairros e a área rural, constituída por mais cinco distritos: Pulador
(a 25 km da sede), São Roque (a 8Km), Bela Vista (a 12 km), Independência (a 20
km) e Bom Recreio (a 5 km). Nesse sentido, pode-se dizer que assim se configura
o território entendido como o “espaço habitado” (Santos, 1999) do município de
Passo Fundo. O mesmo autor define território não apenas como “conjunto dos
sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas”, mas como “território
usado”, que é o “chão mais a identidade”. Então, identidade refere-se ao
“sentimento de pertencer”. “[...] o território é o fundamento de trabalho, lugar da
residência, das trocas materiais, afetivas e espirituais e de exercício de vida, [...]
onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações da
sua existência” (p. 27).
Talvez o sentimento de pertença referido por Santos (1998) esteja expresso
pelas pessoas da pesquisa ao referirem-se a Passo Fundo como “essa é a
minha terra, e aqui quero ficar”, “aqui fiz minha casa e criei meus filhos” ou
ainda “aqui trabalho e estudo”. Dessa forma, buscamos visualizar elementos
que se apresentam na cidade de Passo Fundo e que permitiram tais escolhas e
como essa configuração se manifesta na vida das pessoas que participaram da
pesquisa e vivem em Passo Fundo.
É um município com 149 anos de vida emancipada, caracterizado como de
médio porte, considerado pela Confederação Nacional dos Municípios (CMN)
município pólo do Planalto Rio-Grandense e, como tal, atrai as populações
vizinhas que buscam prestações de serviços, como bancos, universidade, lazer,
atendimento médico-hospitalar e comércio dos vários ramos. Conta com várias
instituições esportivas, culturais, educacionais, meios de comunicação, entidades
patronais trabalhistas, associações de bairro, igrejas e áreas de lazer. É
considerado no cenário gaúcho um dos municípios mais importantes do estado e
que vem avançando harmonicamente em áreas como saneamento, renda,
educação e saúde. Segundo dados do censo de 2003/IBGE, sua população
13
Anexo A - Mapa do município de Passo Fundo - RS.
36
apresenta uma expectativa de vida ao nascer de 68,5 anos, o coeficiente de
mortalidade infantil é 16.5 por mil nascidos vivos, o PIB per-capita é de R$
9.967,61 e o índice de desenvolvimento humano (IDH),
14
de 0,804.
Essa imagem da cidade de Passo Fundo é constituidora e constituinte de
percepções das pessoas da pesquisa.
“Passo Fundo é bom de viver, tem tudo, hospital, médicos bons, escola, universidade,
bancos, ônibus, até avião já sai daqui... Tem o Festival de Folclore – é muito bonito! Os
bairros prô, também tem posto de saúde, escola boa, ônibus e tem segurança, acho que
não tem nenhum bairro barra pesada mesmo” - Odete
“Passo Fundo á terra do Teixeirinha e é a minha terra também – é uma cidade alegre, o
povo daqui é camarada, tá sempre acolhendo quem chega... se perguntar por aí a
metade da população não nasceu aqui, mas aqui chegaram e ficaram, porque é bom
morar aqui. Tem estudo e tem emprego, não tem pra todo mundo, mas ta melhorando
muito o emprego” – Juarez
Nesse sentido, é importante observar a grande concentração de população
urbana tendo em vista o perfil do município urbano-agroindustrial. Talvez a
concentração populacional associada ao perfil de desenvolvimento econômico
seja responsável pelo alto índice de desemprego apontado pelos relatórios do
IBGE. Mesmo que a cidade tenha muitas empresas de médio porte, nos últimos
anos os diagnósticos econômicos demonstram queda na contratação de mão-de-
obra para a indústria local. Tal referência é expressa de forma vivencial por Adão
e Gelson
14
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) divulga todos os anos o Índice
de Desenvolvimento Humano (IDH). A elaboração do IDH tem como objetivo oferecer um
contraponto a outro indicador, o produto interno bruto (PIB), e parte do pressuposto de que para
dimensionar o avanço não se deve considerar apenas a dimensão econômica, mas também outras
características sociais, culturais e políticas que influenciam a qualidade da vida humana. No IDH
estão equacionados três sub-índices direcionados às análises educacionais, renda e de
longevidade de uma população. O resultado das análises educacionais é medido por uma
combinação da taxa de alfabetização de adultos e a taxa combinada nos três níveis de ensino
(fundamental, médio e superior). Já o resultado do subíndice renda é medido pelo poder de
compra da população, baseado pelo PIB per-capita ajustado ao custo de vida local para torná-lo
comparável entre países e regiões, através da metodologia conhecida como paridade do poder de
compra (PPC). E, por último, o subíndice longevidade tenta refletir as contribuições da saúde da
população medida pela esperança de vida ao nascer. A metodologia de cálculo do IDH envolve a
transformação destas três dimensões em índices de longevidade, educação e renda, que variam
entre 0 (pior) e 1 (melhor), e a combinação desses índices em um indicador síntese. Quanto mais
próximo de 1 o valor deste indicador, maior será o nível de desenvolvimento humano do país ou
região. (www.cnm.org.br/idh/uf_idh) – acesso em 15/09/06.
37
“Gosto muito de Passo Fundo, mas acho que poderia ser melhor, oferecer mais
oportunidade para as pessoas, emprego para os jovens, mais indústrias, assim como a
minha, que dá segurança e faz a gente crescer. Outra coisa seria oportunidade para os
pobres fazer uma faculdade – Meu filho terminou o segundo grau e não pode continuar
porque é muito caro, pobre que vive de salário não consegue pagar. Eu mesmo aqui
chego a sonhar em continuar, agora que descobri a escola, mas na faculdade sei que
não vai dar!” Adão
“Passo Fundo é uma cidade boa, quando cheguei aqui a uns cinco anos atrás achei que
não ia me acostumar, sofri até conseguir emprego, mas hoje não penso em sair daqui, é
uma cidade que tem tudo”. Gelson
Dessa forma, o município de Passo Fundo, inserido na vocação agrícola do
Planalto vive as repercussões da modernização agrícola e as problemáticas
desencadeadas por essas mudanças. Segundo análise de Tedesco (2004).
[...] esses fatores, por sua vez, acarretaram mudanças significativas nos
meios rural e urbano e nas relações que se estabelecem nos dois planos,
gerando grandes relações de interdependência, provocando movimentos
e concentração da população, mas atuando também além do local,
criando e mantendo relações extra-regionais (p. 55-56).
Diante disso, o espaço urbano, materializado na organização espacial das
cidades, ao mesmo tempo em que se configura em fragmentos e em redes
articuladas, também é, conforme afirma Lefebvre (1990), lugar da expressão dos
conflitos e dos desejos de nossa civilização. No espaço da cidade articula-se o
contraditório pela fragmentação das relações e também pelas possibilidades de
se constituir em espaço de sociabilidades. Entendemos que tais relações são
permeadas por movimentos e comportamentos que promovem as práticas
sociais/espaciais das quais emergem a vida de homens e mulheres.
Segundo Moll (2002) podemos pensar a cidade
entendendo-a, no seu emaranhado de ruas, avenidas, praças e prédios,
como um território de múltiplas histórias e culturas e, por isso, de
incontáveis possibilidades educativas. Implica discutir coletivamente
quem somos, que necessidades comuns e singulares temos, que
presente e que futuro desejamos. Implica assumirmos como diferentes
atores sociais do cenário urbano (governos, associações de moradores,
empresariado, movimentos sociais, grupos de jovens, igrejas, sindicatos,
universidades...) tarefas educativas no sentido de mapear demandas e
possibilidades formativas, para oferecer ao conjunto da população
inéditos viáveis que permitam fazer da vida algo mais ou algo distinto do
que ela é.
38
Nesse contexto se constitui o NEEJA na cidade de Passo Fundo, como
mais um fio que dá concretude a essa matriz sócio-histórica, na tessitura das
redes de significações de homens e mulheres adultas – pessoas da pesquisa.
2.2.1 O cenário escolar e o NEEJA na cidade de Passo Fundo
O NEEJA de Passo Fundo está localizado na Av. Presidente Vargas, nº
100, no centro da cidade. É uma região onde se concentram grandes lojas de
móveis, eletrodomésticos e materiais de construção; por essa razão, há grande
fluxo de pessoas e também de linhas de ônibus que ligam os bairros ao centro da
cidade.
O prédio onde funciona o NEEJA não foi construído para ser uma escola.
Era onde funcionava a COOPASSO – Cooperativa de Passo Fundo, uma
cooperativa que tinha como associados os produtores rurais da região; no prédio
funcionavam a sua sede administrativa, um posto bancário e um mercado. É um
prédio de quatro andares, com sérios problemas em sua estrutura por falta de
reparos periódicos. No andar térreo há duas lojas de eletrodomésticos. No
primeiro encontram-se instaladas dez salas de aula do NEEJA, um banheiro
masculino e um feminino e um depósito de materiais utilizado pelo núcleo. No
segundo piso funciona a Receita da Fazenda Estadual e o Núcleo de Tecnologias
do estado. No terceiro piso, o NEEJA utiliza-se de dois espaços: um constitui-se
da secretaria, sala de professores, coordenação, um banheiro feminino e um
banheiro masculino e sala de direção; o outro se constitui em mais oito salas de
aula, uma cozinha e três banheiros masculinos e três femininos. No quarto piso,
funcionam a Receita da Fazenda Estadual, o auditório e a biblioteca do NEEJA.
Os diferentes espaços físicos internos do prédio são contrastantes, pois o
espaço do NEEJA é o que mais carece de reparos e pinturas, com janelas que
não fecham direito e cortinas já desbotadas e algumas, rasgadas. As salas de
aula foram divididas precariamente, com algumas paredes feitas de tijolos e
outras de madeira reutilizada de outras divisórias; as portas fecham com
dificuldades. Esse prédio é locado pelo Estado, razão por que não é permitido
39
fazer reparos com as verbas públicas; todas as reformas e melhorias são feitas
pelos educadores, educadoras, educandos e educandas, com recursos de
campanhas realizadas por eles. Como exemplo, a reforma da parte elétrica do
auditório e a troca do piso no hall de entrada do prédio. Essas ações colocam os
sujeitos numa condição de pertencimento, mas, ao mesmo tempo, retratam o
descaso público para com a Educação de Jovens e Adultos, que se configura
historicamente, visto que qualquer local serve para oferecer de forma
“benevolente” escolarização àqueles que não a buscaram na “época certa”. Essa
concepção perpassa as políticas públicas de EJA em nosso estado.
O prédio não possui áreas de convivência e lazer. Por isso, são utilizadas
as escadas, o corredor, a biblioteca, a cozinha e o auditório para conversas entre
pares e grupos; para fumar; para o namorar; para ouvir música; para dançar,
ensaiar, preparar surpresas e também os tradicionais almoços, lanches da tarde e
jantares mensais – prática instituída e organizada pelos educandos e educandas.
Percebi que esses momentos de integração são esperados com grande
ansiedade, pois significa demonstrar os dotes na cozinha, a criatividade na
escolha do cardápio, a capacidade de economizar nas compras dos ingredientes
e também na escolha das músicas para as danças.
Portanto, compreendo o NEEJA como um espaço de aprendizagem e
socialização, de construção de identidades, onde as subjetividades interagem e se
formam no processo de construção do conhecimento, afirmando (reproduzindo) e
negando (questionando) determinada cultura, determinada concepção de mundo.
No entanto, também há a compreensão de que as certezas que se constroem são
certezas provisórias e geradoras de novos desafios, pois aprendemos ao longo de
toda a vida. E nessa constante busca seguimos ancorados no pensamento de
Freire (1998):
Uma das tarefas mais importantes da prática educativa-crítica é propiciar
as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros
e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda
de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser
presente, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos,
capaz de ter raiva porque capaz de amar. (p. 46).
40
Talvez a constituição do NEEJA na cidade de Passo Fundo represente uma
das ações que configuram o que Freire (2000) chama de “inédito viável”. Mas que
fatores impulsionaram a criação do NEEJA de Passo Fundo?
Nesse sentido, busco a resposta a esse questionamento na história da
educação brasileira, que teve a sua articulação com o processo de urbanização,
no século XIX.
Giolo (1994) relata que “falar em instrução pública, no RS, até o final do
regime monárquico, significa quase que exclusivamente falar de instrução
provincial, isto é, mantida pelos cofres da Província” (p.14). Também narra que,
“antes da Independência, apenas tímidas e esparsas experiências escolares
foram levadas a efeito entre a população gaúcha” (p. 12). Segundo o mesmo
autor, o recenseamento de 1890 aponta cerca de 19.000 habitantes em Passo
Fundo, dos quais 17.000 eram analfabetos, o que leva à conclusão de que apenas
10% da população tinham acesso à escolarização, formando uma verdadeira elite
educacional.
A expansão dos processos de escolarização na sociedade brasileira é
decorrente das profundas transformações que se iniciaram nas últimas décadas
do século XIX e se estenderam até a segunda metade do século XX. Além da
passagem de um regime monárquico para um regime republicano, iniciou-se
também a transição do latifúndio escravocrata para o sistema de mão-de-obra
livre, e a antiga classe senhorial, de raízes agrárias, abriu espaço para o
crescimento dos centros urbanos, onde a escolarização passou a ser uma meta
no caminho da ascensão social.
A legislação educacional brasileira, a partir de então, evoluiu
diferentemente em cada estado. Na perspectiva desenvolvimentista da época, o
analfabetismo constituía-se num entrave já que as técnicas de leitura e escrita
tornavam-se instrumentos necessários à integração da sociedade, que vinha se
desenvolvendo em bases urbano-comerciais. Assim, a república alimentou a
ilusão de que as pessoas passariam a constituir a nação como sujeitos de direitos
civis, políticos e sociais. Mas, na realidade, os pobres, negros, mulheres e índios
41
foram vistos como empecilhos à modernização do país, como irracionais e
atrasados.
Segundo Moll (2000), nessa perspectiva, organizaram-se movimentos
“higienistas”, como a Liga Brasileira Contra o Analfabetismo, que mobilizou
militares, católicos, cidadãos comuns no combate ao analfabetismo, e ações
governamentais, a partir da Constituição de 1934, que giraram em torno de
campanhas de “erradicação do analfabetismo”.
Freire (1979) considera essa concepção de analfabetismo ingênua:
A concepção na melhor das hipóteses, ingênua do analfabetismo o
encara ora como uma “erva daninha” – daí a expressão corrente:
“erradicação do analfabetismo” – ora, como uma “enfermidade” que
passa de um a outro, quase por contágio, ora como uma “chaga”
deprimente a ser “curada” e cujos índices, estampados nas estatísticas
de organismos internacionais, dizem mal dos níveis de “civilização” de
certas sociedades. Mais ainda, o analfabetismo aparece também, nesta
visão ingênua ou astuta, como a manifestação da “incapacidade” do
povo, de sua “pouca inteligência”, de sua “proverbial preguiça.” (FREIRE,
p. 13 grifos do autor)
A instalação da República no Rio Grande do Sul implicou a adoção de um
governo autoritário, inspirado na filosofia positivista do francês Augusto Comte,
15
segundo a qual a promoção do progresso não altera a ordem social, com o que as
classes conservadoras asseguravam o seu domínio. A conjunção de dois
princípios – ordem e progresso – é premissa fundamental do positivismo e
estabelecida como base do progresso social, pressupondo uma perspectiva de
progresso material sem alteração da estratificação social, adequada aos
interesses das oligarquias em conservar posições conquistadas.
15
A filosofia positivista influenciou desde o lema de nossa bandeira às reformas educacionais,
separação da religião e Estado, a forma de governar... Na Constituição republicana de 1891, no
artigo 72, parágrafo 6°: “Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos”. No
parágrafo 24, há a afirmação: “É garantido o livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual
e industrial”; no artigo 35, item 2: ”...incumbe ao Congresso criar instituições de ensino superior e
secundário nos estados”. Embora essa Constituição declare certos princípios já consagrados pelo
liberalismo e considerados pelos republicanos como fator fundamental para a consagração do
novo regime político, a educação recebe pouca atenção. Fica evidenciado que a República
reforçou a separação já existente entre a educação oferecida nas escolas secundárias e
superiores às elites do país e a educação popular das escolas primárias e profissionais, já que,
diante das novas perspectivas do capitalismo, havia a necessidade de mão-de-obra especializada,
advinda principalmente das escolas técnicas.
42
Segundo Ghiraldelli Jr (1991), nos primeiros anos da República houve um
entusiasmo pela educação, que, em última instância, resumia-se à idéia de
expansão da rede escolar e à tarefa de desanalfabetização do povo; contudo, na
prática, as poucas escolas públicas existentes nas cidades eram freqüentadas
pelos filhos das famílias mais abastadas. Em todo o vasto interior do país havia
algumas precárias escolinhas rurais, nas quais trabalhavam professores sem
qualquer formação profissional, que atendiam às populações dispersas em
imensas áreas.
Em Passo Fundo, documentos da época
16
apresentam preocupação dos
legisladores com a democratização da educação. Verifica-se também a constante
preocupação com a questão pública, através da intensa solicitação de verbas a
outras instâncias de poder, demonstrando a preocupação em aumentar o número
de estabelecimentos de ensino. Contudo, no aspecto prático, as escolas,
principalmente as criadas na cidade no período de 1920 a 1930, apresentavam-se
um tanto quanto seletivas.
As escolas fundadas no início do século XX eram mantidas pelo poder
público municipal. Em geral, eram escolas unidocentes, com clientela mista, que
funcionavam nas sedes das fazendas e visavam atender, sobretudo, os
imigrantes. O índio, o negro e o caboclo continuaram à margem das instituições
sociais e, principalmente, da escola.
No Rio Grande do Sul, a Constituição de 1891 instituía como obrigação do
Estado oferecer a todos o ensino primário gratuito, ao passo que o ensino oficial
superior e secundário era entregue à livre iniciativa privada. O campo estava, pois,
aberto e a Igreja não perdeu a oportunidade, montando em poucas décadas uma
rede de escolas que atingiu todo o estado. Filhos de grupos urbanos, dos
imigrantes e da oligarquia rural eram encaminhados para os colégios da Igreja;
em grande parte, os jovens eram colocados em regime de internatos.
16
Relatório da Intendência Municipal, ano de 1921, disponível para pesquisa no Arquivo Histórico
Regional de Passo Fundo.
43
Na região de Passo Fundo, segundo Ghem (1976), a escolarização pública
foi sendo implantada a passos muitos lentos. Existiam poucas escolas nas
localidades que faziam parte do município e algumas professoras eram
contratadas para ministrar aulas. Filhos de colonos mais favorecidos eram
internados em colégios religiosos; filhos de imigrantes alfabetizados aprendiam a
ler, escrever e fazer contas; a memorização era o mais importante.
Conforme a população foi aumentando, o número de escolas passou a ser
insuficiente. Então, instalaram-se no município as primeiras congregações
religiosas com o fim de educar as crianças e jovens. Os padres palotinos sentiram
a necessidade de fundar uma escola para meninos, construindo, na quadra onde
estava a igreja, uma escola denominada de Nossa Senhora da Conceição;
posteriormente, em 1923, cinco religiosas de congregações das Irmãs Nossa
Senhora vieram a Passo Fundo a convite de um padre franciscano, para abrir uma
escola destinada a meninas, fundando o Colégio Notre Dame.
Portanto, o surgimento e propósito das escolas religiosas de Passo Fundo
não se diferenciam das outras estabelecidas no território rio-grandense: eram
destinadas aos filhos de agricultores europeus. Os nativos e caboclos
freqüentavam as escolas municipais, isso quando tinham a possibilidade de fazê-
lo. Na verdade, a grande maioria da população de menores posses era
analfabeta.
Atualmente, Passo Fundo apresenta ainda as marcas deixadas pela
história. Assim, constatam Dal Moro e Longhi (1990), quando abordam a questão
do analfabetismo:
Para começar pode-se dizer que o Planalto riograndense não foge a
regra, constituindo-se, como as demais regiões do Estado, em cenário da
produção do analfabetismo e da tendência secular de sua reprodução.
Mesmo onde se adensa a rede escolar não foi possível, até hoje,
estancar totalmente a vertente do analfabetismo, que tem na faixa etária
da escolarização obrigatória sua fonte alimentadora (p. 32).
Portanto, podemos verificar que os dados relativos aos índices de
analfabetismo apresentados pelo grupo de pesquisa Alfa Analfa da Universidade
de Passo Fundo indicam uma taxa de 5,64% de pessoas analfabetas, distribuídos
44
nas diferentes faixas etárias. Tais índices nos mostram que, mesmo com a grande
existência de escolas, o analfabetismo se mantém em Passo Fundo.
Tabela 1
Faixa etária Pop. Tot. Total de analf. %
Pessoas com 10 anos 5.338 107 2,0
Pessoas entre 11 e 14 anos 22.545 277 1,2
Pessoas entre 15 e 24 anos 55.020 839 1,5
Pessoas entre 25 e 59 anos 135.803 6.707 4,9
Pessoas com 60 anos ou mais 29.679 7.252 24,5
Fonte: Grupo de pesquisa Alfa Analfa da Universidade de Passo Fundo.
Por outro lado, podemos observar avanços em relação ao aumento de
matrículas na educação de jovens e adultos nos últimos cinco anos (2000/2004),
segundo dados do censo escolar 2004.
Tabela 2
Dep. Adm. 2000 2001 2002 2003 2004
Estadual 2.239 2.457 3569 3.234 4.135
Federal - - - - -
Municipal 0 0 0 0 256
Privada 1.562 1.384 1.525 1.151 881
Fonte: INEP/MEC – 2004
Os dados da Tabela 2 nos levam a questionar: Seria a criação do Núcleo
de Educação de Jovens e Adultos o impulsionador da elevação desses números?
Esse questionamento talvez seja respondido ao olharmos os dados
referentes ao crescente número de matrículas na rede pública estadual, entre os
anos de 2000 e 2004, período de constituição do núcleo. Nesse sentido, os
depoimentos das pessoas da pesquisa contribuem na elucidação de tal
questionamento:
Sempre tive vontade de estudar, mas não tinha escola que me aceitasse, porque tinha
que estudar com as crianças” – Odete
“Escola para adulto não existia, a gente passava da idade tinha que se conformar e ir
trabalhar” – Sebastiana
45
“Eu me sinto realizado por ter ajudado a construir essa escola, não foi só com a ajuda do
governo que ela existiu, mas foi a nossa vontade de estudar que fez com que ela
existisse. Agora ela ta ajudando muita gente em Passo Fundo” – Juarez
“Poder estudar em uma escola que não é supletivo para mim é muito importante, porque
vou ter um diploma igual os filhos de ricos que estudaram na idade certa” - Gelson
Essas expressões ajudam a compreender os sentidos que homens e
mulheres adultas atribuem à escolarização ao longo de suas trajetórias de vida.
Entendendo que esses sentidos apresentam entrelaçamentos com a constituição
histórica de Passo Fundo, principalmente com os processos de constituição das
redes escolares, e apontam referenciais para compreendermos as representações
culturais que permeiam as práticas sociais no contexto atual. Nesse sentido, o
NEEJA e o seu processo de constituição representam rupturas a tais práticas.
O NEEJA de Passo Fundo é fruto do movimento
17
de educadores,
educadoras, educandos e educandos que trabalhavam e estudavam,
respectivamente, no NOES.
18
Considero o período de constituição do NEEJA, um
tempo de desafios, tensões e aprendizagens em que participei como educadora.
Procuro aqui relatar um pouco desse meu tempo de aprendizagens, de
desafios e buscas que se iniciaram no momento em que adentrei no que era para
mim “um desconhecido bosque”, a Educação de Jovens e Adultos, em especial o
NOES de Passo Fundo - RS, espaço onde passei a atuar como educadora em
1999.
Dentre os desafios, o primeiro era a necessidade de compreender a
nomenclatura dada à função que passei a ocupar, “nivelamento”, pois não
conseguia entender como isso poderia ser feito na educação. Que significado teria
esse termo no mundo da Educação de Jovens e Adultos? Fui ao dicionário com a
esperança de encontrar algo que o vinculasse à educação. “Nive-lamento”, vem
de “nível” – instrumento para verificar se um plano está horizontal.
Horizontalidade. Elevação relativa de uma linha em relação a uma superfície
horizontal. Padrão, qualidade, relativa a escala de valores.(XIMENES, 1998, p.
624). Portanto “nivelamento”, segundo as definições, tratar-se-ia de colocar no
17
Relatado no projeto de dissertação:Adultos, escolarização e trajetórias de vida: Compreendendo
sentidos, qualificado em 31/08/05 junto ao PPGEDU/UFRGS.
18
Núcleo de Orientação do Ensino Supletivo.
46
mesmo “nível” todas as pessoas que buscavam como alternativa única de
escolarização o NOES, numa perspectiva de homogeneização, ignorando
histórias e trajetórias individuais. Tais definições se distanciavam muito de minhas
crenças e concepções, que me levavam a visualizar a educação como processo
voltado a singularidades de sujeitos sociais. Assim, minha inquietação só
aumentava, levando-me a questionar sobre que níveis seriam esses.
O nivelamento consistia num “ritual de entrada” pelo qual todas as
pessoas que buscassem aquele espaço como possibilidade de conclusão do
ensino fundamental ou médio deveriam passar. Ao realizarem a inscrição inicial,
eram “convidados” à realizar uma prova de nivelamento, cuja aprovação era a
porta de entrada que permitiria continuidade e, talvez, a busca do sonho
abandonado no passado. O contrário, a reprovação, poderia ser mais uma porta
se fechando, mais uma marca de impossibilidade e mais um sonho abandonado.
Em meu primeiro dia de trabalho apresentaram-me o “instrumento
nivelador”, uma prova já amarelada pelo tempo de uso, que deveria ser aplicada
para “dar o nível”. Perplexa, perguntei: “E as pessoas que não conseguirem
realizar satisfatoriamente essa prova?” A resposta me deixou mais inquieta ainda:
– “Manda embora, porque não vão conseguir passar nos exames supletivos”.
Nesse momento percebi que estava diante de um grande desafio: criar
mecanismos que permitissem romper com concepções e práticas excludentes,
que vinham ultrapassando os limites da instituição e se instalando na cultura dos
educadores e educadoras que ali trabalhavam e, assim, vinham constituindo suas
crenças e práticas.
Iniciado o trabalho, as primeiras pessoas que realizaram a prova
conseguiram resolvê-la sem grandes dificuldades, mas logo as “situações
esperadas” surgiram, pois muitas pessoas, com grande constrangimento,
devolviam-me aquelas longas seis páginas com poucas questões resolvidas ou
completamente em branco, pronunciando palavras de autoconsolo: – “Vou estudar
mais um pouco, não consigo lembrar”
. Ou palavras que retratavam as marcas
47
deixadas pela escola: – “Sempre fui cabeça dura, não sirvo para o estudo”. Ainda
expressavam situações existenciais de manutenção de seu trabalho:
Professora, preciso um atestado para dizer que estou estudando, porque a firma
exige.
Essas situações foram me mobilizando e me inquietando. Levei minhas
angústias até a coordenação do núcleo, que, imbuída de intenções para promover
mudanças, autorizou-me a organizar um grupo com as pessoas que encontras-
sem dificuldades na realização da “prova de nivelamento”.
Iniciamos o trabalho conhecendo-nos mutuamente através de nossas
histórias de vida. Era um grupo com apenas seis pessoas, mas que se multiplicou
rapidamente, tornando necessária a formação de outro, atendido por uma colega
que passara a comungar de meu propósito. Trabalhávamos numa perspectiva de
resgate, social, histórico e afetivo, com uma metodologia que permitia muitos
momentos de fala e de escutas, e assim construíamos nossos encontros diários.
Esses momentos buscavam aproximar saber e existência, conhecimento e vida,
talvez produzindo o que Freire (apud Moll, 2000) chama de um novo “arcabouço
conceitual” para os processos de alfabetização e educação popular.
Assim, outros grupos foram se formando no núcleo visando à preparação
para os exames supletivos. Aos poucos, uma nova cultura foi se formando: a
cultura do grupo, da construção coletiva, rompendo com o individualismo e com a
prática do nivelamento. Dessa forma, muitos homens e mulheres jovens e adultos
passaram a procurar o núcleo, entre eles, em maior número, pessoas adultas e
desempregadas, que despendiam tempo, energia e imaginação para construir o
sonho de uma vida melhor.
Percebi que precisava avançar, retomar reflexões importantes no campo
teórico e abrir espaços para muitos questionamentos, entendendo aspectos
importantes no processo formativo do educador, entre eles, que a teoria é suporte
para a reflexão em torno da prática. Não posso sustentar uma prática desprovida
de um suporte teórico, o que se dá com base na opção político-pedagógica que
assumimos. Mas o que nos leva a assumir uma opção político-pedagógica e a
48
expressá-la nas relações que estabelecemos? Por que às vezes somos
incoerentes?Como a teoria opera sobre a prática? E como a prática opera sobre a
teoria?
Essa reflexão foi se dando a partir do meu cotidiano, no momento em que
observava a minha prática como educadora e também as práticas do núcleo em
que vinha atuando. Fui percebendo que, de forma consciente ou inconsciente,
explicitávamos nossa opção política no dia-a-dia da sala de aula, na sala dos
professores, nas reuniões pedagógicas, nas conversas com os educandos (as),
na forma como avaliávamos nosso trabalho e a aprendizagem de nossos
educandos(as), na escolha do que ensinávamos, de como ensinávamos, para que
ensinávamos.
Ensinar está sempre “molhado” de ideologia, de escolha de um projeto de
sociedade, de ser humano e de escola. Não há educação sem finalidades. Como
nos ensina Paulo Freire (1979), “a questão a saber é a favor de quê e de quem,
contra quê e contra quem se faz a política de que a educação jamais prescinde”.
No período de 2000, fez-se necessário uma coordenação pedagógica no
núcleo, para a qual fui convidada. Movida pela inquietação e, ao mesmo tempo,
sentindo-me comprometida com uma Educação de Jovens e Adultos não
excludente e seletiva, e, também, apoiada pelo grupo de colegas que acreditavam
ser possível ressignificar aquele espaço educativo, aceitei o convite. Mas
sabíamos que, para tal tarefa, precisávamos criar mecanismos pedagógicos que
permitissem romper com as marcas da suplência que vinham, historicamente,
colocando a Educação de Jovens e Adultos na condição de ensino de segunda
categoria e, por isso, “aligeirado” e de questionável qualidade, como refere Di
Pierro (1998):
O sistema educacional brasileiro vem tratando a Educação de Jovens e
Adultos, no decorrer da história expressa nas diversas LDB, editadas no
país, como ensino de segunda categoria, destinada aos não ajustados,
aos marginalizados do sistema; ou seja, àqueles que não se ajustaram
aos “sistemas estruturais”, entre eles a escola (p. 04).
49
No mesmo ano, iniciavam-se no estado do Rio Grande do Sul, sob a
coordenação da Secretaria Estadual de Educação – SE, estudos e discussões
que objetivavam a constituição de uma política pública de EJA. Assim, abria-se
uma ampla reflexão em torno das realidades dos educandos que buscavam os
núcleos, apontando para a superação do modelo de Educação de Jovens e
Adultos que se centrava na concepção da suplência,
19
modelo sustentado pela
LDBEN – 5692/71, que visa à recuperação do atraso, a reciclar o presente e à
formação de mão-de-obra para o desenvolvimento nacional, através de um outro
modelo de escola (Haddad 2001).
Portanto, a constituição da política pública de EJA no Rio Grande do Sul no
início do século XXI vinha ancorada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDBEN 9394/96, que buscava objetivar os compromissos firmados e
contidos em documentos internacionais e nacionais na perspectiva de uma
Educação Básica para Todos (Conferência Mundial de Educação para Todos –
1990 e a V CONFINTEA – 1997) e na política de governo da época,
20
cuja meta
era a construção de uma escola democrática e popular, incluindo nesse processo
a Educação de Jovens e Adultos, através de um movimento denominado na
época de “Constituinte Escolar”.
O projeto Constituinte Escolar – Construção da Escola Democrática e
Popular deve assegurar diversificados fóruns e espaços de debate, reflexão e
formulação de propostas pela comunidade escolar. O processo garantirá as
condições necessárias para articular a democracia direta e livre, a partir de cada
unidade de ensino, com a democracia representativa, na busca de consensos
possíveis que estabeleçam os princípios e diretrizes da educação para nossas
crianças, adolescentes, jovens e adultos. O processo da Constituinte Escolar
encontrava-se fundamentado nos seguintes pressupostos:
19
Em 1971 surgiu a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 5692/71, forjada nos
gabinetes da ditadura, regulamentando o ensino supletivo com o objetivo de suprir a escolarização
regular e promover crescente oferta de educação continuada.
20
Governador do estado na época Olívio Dutra, que tinha como meta a construção da escola
democrática e popular a partir do movimento da Constituinte Escolar. O NEEJA de Passo Fundo
foi o primeiro núcleo a ser criado no estado.
50
Educação como um direito de todos os cidadãos e cidadãs, enfatizando
principalmente a situação daqueles que, ao longo da história, tiveram esse direito
negado, não conseguindo sequer entrar na escola ou que foram dela excluídos;
Participação Popular enquanto método de gestão das políticas públicas na área
da educação;
Dialogicidade enquanto um projeto ético-existencial de um projeto humanista e
solidário;
Radicalização da democracia enquanto objetivo estratégico de um governo
de esquerda, comprometido com os interesses da maioria – as classes
populares;
Utopia enquanto sonho impulsionador da educação e da escola que
queremos.(Caderno do Seminário Estadual de Preparação para sistematização da
Constituinte Escolar, 2000, p. 31).
Dessa forma, realizamos no NOES a análise da realidade por meio de um
trabalho coletivo envolvendo educandos e educadores. Inicialmente, procuramos
focar o olhar em aspectos relacionados aos processos pedagógicos presentes, no
que se referia ao papel do educador e do educando, dos conteúdos de ensino, à
aprendizagem, à avaliação e às relações que estabeleciam. Esse trabalho se
estendeu por alguns meses, envolvendo educadores e educandos, através de
dinâmicas de grupo e seminários de sistematização.
O NOES caracterizava-se, até então, como uma instituição sem autonomia
administrativa e pedagógica. Tal situação encontrava-se expressa em documento
a Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul
21
(1980), que
orientava sua organização:
A instituição não deve identificar-se com prédios ou instituições escolares
e ficam vinculada as Delegacias de Educação, portanto não se trata de
uma instituição escolar e não poderá fornecer certificado de conclusão
parcial ou final, pois não tem avaliação no processo. A metodologia fica
centrada em trabalhos indivi-dualizados ou em pequenos grupos, tendo
como base os módulos de estudo, que propicia ao cliente a auto-
instrução e a preparação para prestar exames supletivo. Portanto o
cliente deve ser bem informado quanto aos objetivos do NOES, suas
funções, metodologia e encaminhamentos para avaliação (exames), para
evitar a frustração do mesmo em não encontrar respostas as suas
aspirações de ingresso. (Secretaria de Educação e Cultura, equipe de
supervisão técnica, departamento de Ensino Supletivo, 1980, p. 05)
Portanto, suas práticas centravam-se na preparação para os exames
supletivos, através de metodologias de trabalhos individualizados e a distância.
Eram utilizados como recursos pedagógicos módulos previamente elaborados
21
Denominação dada na época para a Secretaria de Estado da Educação no Rio Grande do Sul.
51
pela Secretaria de Educação, com conteúdos padronizados e distanciados da
realidade dos educandos. Assim, os educadores e educadoras assumiam o papel
de transmissores de conhecimentos e os educandos e educandas, de sujeitos
passivos, receptores de conhecimentos.
Os conteúdos apresentavam-se com um fim em si mesmos e com a
finalidade de cumprir o programa preestabelecido pelos exames supletivos.
Portanto, a avaliação respeitava a mesma regra prática de exame (Luckesi, 1998);
por isso, era classificatória, excludente, centrada na nota.
Os sujeitos que buscavam o núcleo eram homens e mulheres com idade
entre 15 e 70 anos, com trajetórias de vida diferenciadas; que haviam
abandonado a escola regular na época da infância e/ou adolescência por diversas
razões: reprovações, necessidade de trabalhar cedo, casamento precoce,
chegada de filhos e, também, por não suportarem a escola. Muitos estavam
desempregados ou sob a ameaça de perder o emprego pela falta de
escolarização e alguns buscavam o primeiro emprego. Todos eram identificados
no núcleo simplesmente como “clientes”, negando-se, assim, as dimensões de
sua condição humana, conforme afirma Arroyo (2001):
A EJA nomeia os jovens e adultos pela sua realidade social: oprimidos,
pobres, sem terra, sem teto, sem horizontes. Pode ser um retrocesso
encobrir essa realidade brutal sob nomes mais nossos, de nossos
discursos como escolares, como pesquisa-dores ou formuladores de
políticas: repetentes, defasados, acele-ráveis, analfabetos, candidatos a
suplência, discrimináveis, empregáveis... Esses nomes escolares deixam
de fora dimensões de sua condição humana que são fundamentais para
as expe-riências de educação (p. 11).
Assim, foi possível caracterizar o núcleo e estabelecer proposições que
efetivamente respondessem às buscas individuais e coletivas dos homens e
mulheres que ali chegavam com a expectativa de retomar uma trajetória escolar e,
por meio dela, melhorar suas condições de vida. Tais proposições emergiam do
que expressavam esses sujeitos na época:
Queremos uma escola que ensine o que ainda não sabemos, para a vida, para o emprego.
Esses exames não adianta, é muito difícil passar, não se aprende nada - Joaquim, 52
anos, 1999.
52
Nesse processo muitas assembléias foram realizadas, nas quais
educandos e educadores passaram a ser sujeitos da construção do núcleo, cujos
desejos, sonhos, expectativas e utopias se cruzavam e construíam as
características desse espaço educativo. Eles constituíam a “sua escola” com
vozes que nunca antes haviam sido ouvidas, vozes historicamente silenciadas,
colocados à margem dos processos decisórios, impedindo-os de dizerem a sua
palavra. Como refere Ernani Maria Fiori (1981), quando prefacia o livro Pedagogia
do oprimido de Paulo Freire em relação ao diálogo existencial, autêntico e
humanizador, necessário às práticas coletivas, “dizer a sua palavra equivale a
assumir conscientemente, a função de sujeito de sua história, em colaboração
com os demais – o povo” (p. 15). Craidy (1998) reitera que os excluídos terão o
que dizer – e o que escrever – se encontrarem quem os escute. E se farão
escutar, se descobrirem que podem dizer a sua palavra.” (p. 75).
Como expressão e concretude dessas afirmações, os educandos e
educandas apontaram três eixos sintetizadores desses sonhos, “pilares da
construção”, como expressou Miguel, 37 anos, que ingressou no núcleo na época
no grupo de alfabetização por ter sido reprovado na prova de nivelamento:
trabalho, conhecimento e cultura.
Surgiu, então, o desafio de objetivar tais eixos, para que realmente esses
sonhos se concretizassem nas práticas futuras do núcleo. A partir desse
momento, passamos a andar rumo à constituição de uma identidade própria, que
seria possível se conseguíssemos autonomia administrativa e pedagógica;
conseqüentemente, deveríamos estar respaldados numa política pública e na
legislação. Nesse sentido, fomos avançando independentemente do processo da
Constituinte Escolar, pois não poderíamos esperar momentos pontuados desse
movimento para não perder o ritmo e o entusiasmo do grupo.
2.2.2 NEEJA: tempos legais, tempos de constituição
Após um processo intenso de estudos, discussões e reflexões em torno dos
aspectos legais e da realidade em que estávamos inseridos, como acima descrito,
53
passamos a sistematizar os resultados desse processo. Assim, constituímos a
primeira versão do regimento do núcleo que queríamos, expressando nesse
documento as concepções em que até então acreditávamos, mesmo que não
encontrássemos a sua sustentação legal.
Esse documento serviu de suporte para a estruturação da política pública
dos núcleos no estado e também para que ingressássemos com um processo
junto à Secretaria Estadual de Educação solicitando a criação do núcleo.
Superando nossas expectativas, no início do ano de 2001, o Núcleo de Passo
Fundo foi criado no contexto das políticas de EJA do estado na época.
Durante o ano de 2001 o núcleo trabalhou com cinco turmas do ensino
fundamental e três turmas do ensino médio, utilizando metodologias voltadas ao
estudo da realidade, através da pesquisa participante na perspectiva de
construção de tema gerador. Esse trabalho teve como suporte teórico as obras de
Paulo Freire e Carlos Rodrigues Brandão, que vinham já há algum tempo sendo
objeto de leituras do grupo de educadores e educadoras do núcleo.
Foi um período de grande crescimento, no qual visualizávamos a cada dia
avanços em relação à constituição de práticas que se aproximavam de uma
concepção emancipatória. Porém, precisávamos avançar rumo à
institucionalização do núcleo; por isso, tramitava no Conselho Estadual de
Educação do Estado (CEED) do Rio Grande do Sul o processo que solicitava a
autorização de funcionamento. Somente com tal autorização poderíamos fazer o
que propunha o parecer 11/2000:
A flexibilidade curricular deve significar um momento de aproveitamento
das experiências diversas que estes alunos trazem consigo como, os
modos pelos quais eles trabalham seus tempos e seus cotidianos. [...]
poderá atender a tipificação do tempo mediante módulos,combinações
entre ensino presencial e não-presencial e uma sintonia com temas da
vida cotidiana dos alunos, a fim de que possam se tornar elementos
geradores de um currículo pertinente (p. 23).
Durante o período em que tramitava o processo no CEED, também se
intensificaram as discussões no estado rumo à construção da política pública de
EJA, apontando como indicativo a criação de quarenta núcleos, distribuídos pelas
54
diferentes regiões. Dessa forma, a nossa solicitação junto ao CEED ficou
fortalecida.
Esse processo foi permeado por muita espera, mas uma espera freireana,
em que “o tempo de espera é um tempo de que fazer”. (FREIRE, 2000, p 06). O
envolvimento, as discussões, os temas geradores construídos na época geraram
o que chamamos de “movimento”, constituído por muitas ações coletivas e, por
isso, também impregnado pelos diferentes significados e energias. Movido pela
heterogeneidade, pelas resistências e pela fragmentação, constituiu-se, assim,
por grande complexidade (MELUCCI, 2001).
Dentre as ações coletivas referidas, foi de grande significado a presença de
homens e mulheres jovens e adultas envolvidas no processo de constituição do
núcleo em audiência com a presidente do CEED,
22
em 20 de agosto de 2002.
Nesse momento, apresentaram um relatório das atividades que vinham realizando
no núcleo e também suas angústias relacionadas às exigências do mundo do
trabalho em relação à escolarização, tendo em vista que Passo Fundo não
oferecia outros espaços de escolarização de jovens e adultos mantidos pelo poder
público.
Assim, após muitas idas e vindas do processo com solicitações de ajustes
para que se adequasse às concepções do CEED, em 27 de novembro de 2002
autorizou-se o funcionamento do Núcleo de Passo Fundo.
A partir dessa data, o núcleo passou a se chamar NEEJA – Núcleo
Estadual de Educação de Jovens e Adultos de Passo Fundo - e também adquiriu
a sua autonomia administrativa e pedagógica. Foi uma grande alegria para as
pessoas que se envolveram, que lutaram, se mobilizaram e se apropriaram desse
espaço de escolarização. A fala de André (27 anos) expressa esse processo:
Enfim, um núcleo para Jovens e Adultos em Passo Fundo, a nossa escola.
22
Sra. Antonieta Beatriz Mariante.
55
Ao falar do núcleo, os sujeitos demonstram com clareza que o querem, no
mesmo sentido que expressa o parecer nº 11/00 do CNE/CEB, como “(...) a
entrada no circuito dos direitos civis pela restauração de um direito negado: o
direito a uma escola de qualidade, mas também o reconhecimento daquela
igualdade ontológica de todo e qualquer ser humano (...)” (p. 06). Cabe dizer,
então, que a necessidade de retornar à escola coloca o acesso e a permanência
na escola como direitos para o sujeito adulto. Não é uma obrigação e necessidade
deste ou favor de outrem, mas uma afirmação do direito de ter uma escola que se
paute em suas necessidades e desejos.
No ano de 2006, o Núcleo de Passo Fundo encontra-se regularmente
funcionando em três turnos, oferecendo possibilidade de escolarização a 1086
homens e mulheres jovens e adultas no ensino fundamental e médio. Conta com
43 educadores e educadoras, que vêm buscando trabalhar na perspectiva de
totalidades do conhecimento,
23
numa abordagem interdisciplinar baseada em
princípios emancipatórios.
Entretanto, nem tudo se dá de forma tão tranqüila e linear. No Brasil, somos
acometidos por uma “cultura histórica” de rupturas e descontinuidades na
educação e, em especial, nos programas que se destinam a pessoas jovens e
adultas. Como expressão dessas descontinuidades cito o que vive hoje o NEEJA
de Passo Fundo, como os demais do estado, um momento de instabilidade, a
partir da mudança de política de governo ocorrida em 2003.
24
Retomo, agora, a
discussão em torno da função dos núcleos, buscando reafirmar a concepção de
suplência. Nesse sentido, determinou-se que os regimentos construídos a partir
da política pública da gestão passada sejam alterados, suprimindo a dimensão
educativa que regulamenta o trabalho organizado por totalidades do
conhecimento, bem como limitando os núcleos à realização de exames supletivos
e certificações parciais via exames fracionados. Assim, continuamos como grupo
buscando garantir o que custou tanto para ser conquistado.
23
Forma de organização curricular proposta pela política pública de EJA construída na gestão de
governo 1999/2002. Constituem os instrumentos conceituais a partir dos quais a interdiscipli-
naridade pode ser efetivada (Política Pública de EJA, 2001, p. 32).
24
Assume o governo do estado Germano Rigotto /PMDB em uma coalizão de muitos partidos no
lugar de, Olívio Dutra do PT.
56
Compreendo que os processos até aqui vividos podem contribuir para
melhor entender o mundo, “produzindo ferramentas para analisá-lo e, assim, fazer
escolhas e tomar posições, poder ajudar a compreender as relações entre essas
políticas e os processos de construção real de cidadania e de democracia”
(MOLL, 2000, p. 209). Esse percurso não será possível percorrer se for adotado a
postura fria, fragmentada e descontextualizada que permeia as práticas de
exames supletivos. Resta-me manter o nosso “movimento” acreditando que é
possível pensar a Educação de Jovens e Adultos para além das descon-
tinuidades, das institucionalizações e dos caprichos individuais dos governos.
Mesmo diante de muitas crises, no período compreendido entre a criação
do NEEJA de Passo Fundo e o momento atual, acredito que muitas construções
foram realizadas, experiências que se traduziram em aprendizagens, porém há
muitas outras a realizar. A cada dia um desafio e a cada desafio uma nova
aprendizagem; assim, no entrelaçar de saberes, vão se constituindo espaços de
saberes e de sujeitos, num constante ressignificar. Como afirma Jaqueline Moll
(2000),
[...] a ressignificação da escola só pode existir por obra de todos os
interessados. Certamente não há um modelo, gestam-se no cotidiano
experiências dos “novos” obscurantismos que vale a pena identificar e
conhecer. A palavra dita, a insatisfação explicitada, o encontro construído
entre alunos, pais educadores, trabalhadores em educação podem ser
elementos que fecundem estes tempos de viver e esses espaços de
educar. (p. 22).
Diante de tais vivências, coube-me também conhecer os fios que
entrelaçam e constituem o contexto legal da Educação de Jovens e Adultos.
2.3 A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E OS EMBATES LEGAIS
Parto da idéia de “embates legais”, justamente por acreditar que a
legislação que regulamenta e normatiza a Educação de Jovens e Adultos em
nosso país é fruto de muitas tensões geradas pelas diferentes concepções
políticas e pedagógicas. Essas tensões operaram no mundo real de diferentes
formas, de acordo com o grau de mobilização que os diferentes grupos instituem.
Nesse sentido, Leôncio Soares (2002), ao apresentar o contexto em que surgem
57
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA, argumenta que “educadores de
modo geral, estudantes de graduação, pesquisadores, coordenadores de
programas e demais interessados construíram em suas práticas, um novo fazer e
pensar sobre a EJA, superando a legislação existente até então, que aos poucos
foi se tornando obsoleta” (p. 07).
O mesmo autor ainda se refere às práticas desenvolvidas nos movimentos
sociais, nas organizações não governamentais, nos governos municipais e nas
universidades como responsáveis pela ressignificação da educação de jovens e
adultos, resultando, assim, numa diversidade de projetos, de propostas e
programas que rompem com a padronização instituída pela LDBEN 5692/71.
Salienta também:
A atual legislação, por outro lado, incorpora diversas discussões que
caracterizam o debate sobre a educação de adultos no Brasil na
atualidade, na medida em que é exatamente nesse contexto de
efervescência e explosão da área EJA no Brasil, observado sobre tudo
na década de 1990, que se deu a elaboração das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Não havia como o
relator do parecer que regulamenta, Carlos Roberto Jamil Cury,
reconhecido pesquisador da área de educação e membro do Conselho
Nacional de Educação, desconhecer essa mobilização, em construção,
que ocorre no País, como também não seria possível os diversos atores
não se envolverem com a discussão e as proposições para a legislação
em pauta (Soares, 2001, p. 10).
Além das práticas anteriormente citadas, que influenciaram definições e
avanços nas Diretrizes Curriculares Nacionais de EJA, cabe salientar o que diz a
Constituição Federal promulgada em 1988, no artigo 208, em que apresenta a
educação como direito de todos, independentemente da idade.
O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia
de: Ensino Fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive sua
oferta gratuita para todos os que a ele não tiverem acesso na idade
própria.
Também na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional — LDBEN
n
0
9394/96, a primeira referência sobre a EJA está no título III, nos artigos 4º e 5º.
Art. 4º - Inciso 1 - Ensino Fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive
para os que não tiveram acesso na idade própria.
58
Art. 5º - O acesso ao Ensino Fundamental é direito público subjetivo,
podendo qualquer cidadão, associação comunitária, organização
sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o
Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo.
§1º - Compete aos Estados e aos Municípios, em regime de colaboração,
e com a assistência da União:
I - recensear a população em idade escolar para o ensino fundamental, e
os jovens e adultos que a ele não tiveram acesso;
II fazer-lhes a chamada pública;
III zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola”
(LDBEN n
0
9394/96, p. 02).
Esses artigos tratam a Educação de Jovens e Adultos no contexto do
ensino fundamental, o que significa um ganho de interpretação com relação à
antiga LDB n
0
5692/71.
A segunda referência à Educação de Jovens e Adultos aparece na sua
seção própria, a seção V do capítulo II:
Art. 37 A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não
tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e
médio na idade própria.
§1º - Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos
adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular,
oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as caracterís-
ticas do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho,
mediante cursos e exames.
§2º O poder público viabilizará e estimulará o acesso e a permanência do
trabalhador na escola, mediante ações integradas e complementares
entre si.
Art. 38 - Os sistemas de ensino manterão cursos e exames supletivos,
que compreenderão a base nacional comum do currículo, habilitando ao
prosseguimento de estudos em caráter regular.
§1ºOs exames a que se refere este artigo realizar-se-ão:
I - no nível de conclusão do Ensino Fundamental, para os maiores de
quinze anos;
II — no nível de conclusão do Ensino Médio, para os maiores de dezoito
anos.§2º Os conhecimentos e habilidades adquiridos pelos educandos
por meios informais serão aferidos e reconhecidos mediante exames
(LDBEN n
0
9394/96, p. 05).
Em relação ao artigo 37, anteriormente apresentado, encontro nas palavras
de Haddad (1998) um argumento que coloca os avanços da atual LDBEN pouco
visíveis no que se refere ao “conceito de uma educação de adultos voltada à
reposição de escolaridade, marcado pelo Ensino Regular, seus conteúdos e seu
modelo” (p. 05), revivendo, com isso, o conceito de Ensino Supletivo contemplado
na LDBEN de 1971. Dessa forma, mesmo compreendendo as limitações
59
apresentadas por Haddad (1998), entendo que é possível visualizar avanços em
relação às modalidades de oferta da Educação de Jovens e Adultos, traduzidas
em ações concretas em muitos estados brasileiros e, em especial, no Rio Grande
do Sul, a partir da instituição de uma política pública de EJA. Assim, concordamos
com Soares (2002):
Ainda que a LDB 9394/96 tenha sido uma colcha de retalhos ao tentar
conciliar interesses governistas, privatistas e publicistas, nos artigos 37 e
38, que dizem respeito diretamente à Educação de Jovens e Adultos, a
lei incorporou a mudança conceitual de EJA que se dava desde o final
dos anos de 1980. A mudança de “ensino supletivo” para “educação de
jovens e adultos” não é mera atualização vocabular. Houve um
alargamento do conceito ao mudar a expressão de ensino para
educação. Enquanto o termo “ensino” se restringe à mera instrução
“educação” é muito mais amplo, compreendendo os diversos processos
de formação (p. 12) grifos do autor.
Os avanços que visualizamos na referida lei encontram-se explicitados no
parecer 11/2000 do Conselho Nacional de Educação através da Câmara de
Educação Básica, texto que regulamenta as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a EJA,
25
tendo o professor Jamil Cury como relator. Vejamos como o parecer é
introduzido:
Do Brasil e de suas identidades muito já se disse. São bastante
conhecidos os conceitos operatórios de análise baseados em pares
opostos: Dois Brasis, oficial e real. Casa Grande e Senzala. O tradicional
e o moderno; capital e interior, urbano e rural, litoral e sertão assim como
os respectivos tipos que os habitariam e os constituiriam. A esta
tipificação em pares opostos, não seria fora de propósito acrescentar
outros, ligados à esfera do acesso e domínio da leitura e escrita que
ainda constituem a linha divisória entre brasileiros: alfabetizados/
analfabetos, letrados/iletrados. Muitos continuam não tendo acesso à
escrita e leitura, mesmo minimamente; outros têm iniciação de tal modo
precária nestes recursos, que são mesmo incapazes de fazer uso
rotineiro e funcional da escrita e da leitura no dia-a-dia (Parecer N
0
11:
2000, p. 01).
Nesse parecer, o relator traz a reflexão em relação à concepção defendida
pela LDBEN atual: dívida social não reparada para com os que não tiveram
25
Aprovado na Câmara de Educação Básica em maio de 2000, o parecer é um documento
importante para entendermos os aspectos da escolarização dos jovens e adultos no interior de um
campo mais abrangente, que é o da Educação de Jovens e Adultos [...]. O texto contém dez itens,
assim distribuídos: Introdução; A EJA hoje; Bases históricas; Iniciativas públicas e privadas; Alguns
indicadores estatísticos; Formação docente; As Diretrizes Curriculares de EJA; e o Direito à
Educação (Soares, 2001, p. 12-13).
60
acesso nem domínio da escrita e leitura como bens sociais na escola ou fora dela:
(...) a ausência de escolarização não pode e nem deve justificar uma
visão preconceituosa do analfabeto ou iletrado como inculto”, deixando
claro que essa modalidade de ensino é parte da Educação Básica,
considerando o termo modalidade como “diminutivo de modus (modo,
maneira) e expressa uma pequena medida dentro de uma forma própria
de ser Ela é, assim, um perfil próprio, uma feição especial diante de um
processo considerado padrão” (Parecer n
0
11: 2000, p. 06).
Nessa perspectiva, aponta algumas funções próprias à EJA:
Função Reparadora é uma oportunidade concreta de presença
de jovens e adultos na escola, por isso a EJA exige ser pensada
como um modelo pedagógico próprio.
Função Equalizadora Aponta para a necessidade de ampliar a
oferta de vagas.
Função Permanente concebe o conhecimento como uma
construção ao longo de toda a vida, dando sentido próprio à EJA”.
Função Qualificadora É a busca que as instituições de ensino e
pesquisa devem perseguir tendo em vista a produção. (Parecer n
0
11: 2000, p. 07).
A organização curricular da EJA deve levar em conta o perfil dos sujeitos
aos quais se destina, homens e mulheres jovens e adultas, pois, para o relator,
o importante a considerar é que os alunos da EJA são diferentes dos
alunos presentes nos anos adequados à faixa etária. São jovens e
adultos trabalhadores, maduros, com larga experiência profissional (...)
com um olhar diferenciado sobre as coisas (...) Logo, aos limites
impostos pela vida, não se podem acrescentar outros que signifiquem
uma nova discriminação destes estudantes como a de banalização da
regra comum da LDB (Parecer n
0
11: 2000, p. 32).
Seguindo essa premissa, o relator aconselha as escolas de EJA a
promoverem a autonomia do jovem e adulto, de modo que eles sejam sujeitos do
aprender a aprender em níveis crescentes de apropriação do mundo do fazer, do
conhecer e do agir.
No Rio Grande do Sul, a EJA não se encontra explicitada na Constituição
Estadual. Apresenta-se de modo geral no contexto da educação como direito de
todos e dever do Estado, no capítulo II, seção I, artigo 196.
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, baseada na
justiça social, na democracia e no respeito aos direitos humanos, ao
meio ambiente e aos valores culturais, visa ao desenvolvimento do
61
educando como pessoa e à sua quali-ficação para o trabalho e o
exercício da cidadania (1998: p. 12).
Portanto, a EJA, para que efetivamente se concretize como ação destinada
a sujeitos de direito, precisa ser pautada pelas políticas de governo estadual e
regulamentada pelo CEED.
Durante o ano de 1999, o Conselho Estadual de Educação do Rio Grande
do Sul discutiu e apresentou a regulamentação da LDB nº 9394/96 no que se
refere à EJA, através do parecer n
0
774/ 99 e da resolução n
0
250/99. O parecer n
0
774/99 assume a EJA como direito, deixando clara a sua posição sobre as
suplências:
É imprescindível, de uma vez por todas,eliminar de seus projetos
pedagógicos qualquer indício, por mínimo que seja, que o ensino
fundamental e o ensino médio para jovens e adultos é ensino segunda
categoria, onde qualquer espaço físico com um mínimo de recursos
didáticos pode transformar-se e ambiente pedagógico “(Parecer 774/9, p.
13).
Na resolução de nº 250/99 definem-se normas para a criação e finalidades
que os Núcleos Estaduais de Educação de Jovens e Adultos devem assumir:
Art.7º Poderão ser autorizados a funcionar NÚCLEOS DE EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS que oferecerão exames supletivos bem como
outros programas e atividades de apoio voltados para essa clientela.
Inciso 1º - Os NÚCLEOS poderão fracionar o exame relativo à
determinada área do conhecimento em provas parciais.
Inciso 2º - Cabe a administração pública criar os estabelecimentos
citados no caput deste artigo que terão regimento próprio e serão
designados conforme sua dependência administrativa (p. 03).
Mesmo colocando os núcleos novamente sob a condição da suplência,
abre a possibilidade de autonomia administrativa e pedagógica no momento em
que determina que deverão constituir regimento próprio. Também propõe a
ampliação de oferta quando inclui a EJA no ensino regular, mas ressaltando a
necessidade de manter a sua identidade, tendo em vista as características dos
sujeitos.
62
O conceito atribuído à EJA compreende como “uma oferta educação
regular, destinada àqueles que não tiveram acesso escolarização na
idade própria ou cujos estudos não tiveram continuidade nos níveis
fundamental e médio, com características adequadas às suas
necessidades e disponibilidades (...)” (Res. Nº 250 Art 1º, p. 01).
Dessa forma, o parecer 774/99 determina que os estabelecimentos de
ensino que desejarem ofertar EJA deverão reestruturar-se de acordo com as
normas vigentes para os respectivos níveis de ensino, construindo currículos
adequados, nos quais a
escola [...] poderá contemplar no seu projeto pedagógica a oferta de
Ensino Fundamental e/ou Médio para jovens adultos, através de
metodologias específicas. (...) Os currículos (...) traduzidos nos
respectivos Planos Estudos devem se constituir em conjunto de
componentes curriculares, ordenados quanto à seqüência e ao tem
necessário (...) adequados às possibilidades e necessidades dos alunos
(Parecer 774/99 - item 3, p. 05).
A organização curricular precisa contemplar tempos e espaços
diferenciados da educação das crianças:
possibilitando ao aluno transitar por e currículo de acordo com o seu
‘tempo próprio’ de construção das aprendizagens. Assim, os alunos
poderão levar 3.200 horas e 2.400 horas ou mais para concluir (...)
Diante disso, à escola caberá prever e organizar procedimentos de
avaliação apropriados em períodos adequados ao longo do
desenvolvimento do currículo, capazes de verificar . o grau de
conhecimento e adiantamento dos alunos, permitindo-lhes avanços
progressivos (Parecer 774/99 p. 06).
A organização de planos de estudo também deve atender ao disposto na
LDBEN, mas,
ao mesmo tempo, a escola deve levar em conta, como principio basilar,
os diferentes tempos necessários ao processamento das aprendizagens
pelo jovem e pelo adulto (...) Para essa clientela, face à diversidade de
características e, com isso, a ausência de uniformidade quanto às
necessidades, a escola deve prever a seqüência mais adequada de
tratamento dos componentes curriculares em espaços ou módulos de
tempo(Parecer 774/99, p. 06).
Nesse sentido, o parecer 774/99 e a resolução 250/99 ambas do CEED do
Rio Grande do Sul, convergem com as Diretrizes Curriculares Nacionais
63
expressas no parecer nacional 11/2000, que trata sobre a EJA, concebendo-a
como um momento significativo de reconstituir experiências da vida ativa e de
ressignificar conhecimentos de etapas anteriores da escolarização, articulando-se
com os saberes escolares nos diferentes tempos de vida e espaços de
aprendizagens. A validação da aprendizagem fora dos bancos escolares é uma
das características da flexibilidade responsável, tal como posta no artigo 24 da
LDB.
Portanto, compreendo que as formulações legais são expressão de tensões
em termos de compreensão política e pedagógica. Por isso, não são lineares, mas
resultados de negociações entre diferentes visões e vão operar no mundo real de
modo diverso, de acordo com o grau de mobilização dos grupos constituídos.
Diante das questões legais apresentadas, na perspectiva de instituir o
Núcleo de Educação de Jovens e Adultos de Passo Fundo, buscamos seguir o
que orientava a resolução 250/99 do CEED, mas também procurando enfrentar os
formalismos impostos pela institucionalização, pensando globalmente e agindo
localmente, na perspectiva de constituir um núcleo que expressasse as
expectativas e necessidades de homens e mulheres jovens e adultas, que ali
buscavam a esperança de uma vida melhor. Nesse sentido, alerta Moll (2000):
institucionalizar as ações para garantir políticas públicas, contudo tendo o
cuidado de não torná-las rígidas, em torno de tempos e espaços, singularizando
ações a partir da dinâmica da vida dos jovens e adultos” (grifos da autora,
p. 208)”.
64
65
O todo não é só ciência, mas também não é só sentimento. O todo pode
ser o entrelaçamento dos vários possíveis, mas que ainda assim pode
não ser tudo. Pode ser a ciência, a vida, os afetos, as dores, as alegrias,
e o encantamento de estar em processo, de nunca ser tudo, pois sempre
buscamos algo. Um percurso encantado, que nos faz ser simplesmente
quem somos. Seres em busca de algo e muitas vezes surpreendidos
pelo mistério.
Sueli Salva
3 O PERCURSO DA PESQUISA: A CONSTRUÇÃO DO CORPUS
Como referido anteriormente, utilizo como perspectiva metodológica a rede
de significações, que, como apresentado por Rossetti-Ferreira, Amorim e Silva
(2004),“ [...] não existe como entidade, mas é uma apreensão pelo pesquisador da
situação investigada e uma interpretação de como os componentes apreendidos
articulam-se e circunscrevem certas possibilidades de ação/emo-ção/cognição” (p.
31). Por essa razão, a construção do corpus empírico exige grande cuidado, no
sentido de aprofundar o trabalho metodológico de coleta e análise dos dados.
Nessa perspectiva, a coleta de dados foi feita por procedimentos diversos,
compreendidos pela análise documental, observação e entrevistas. Como
conseqüência, obtive uma base de dados bastante ampla, o que resultou numa
árdua organização e estruturação do corpus a ser analisado. Tal tarefa me impôs
grandes desafios na perspectiva de apreender os elementos que configuram as
redes de significações, num processo contínuo e complexo de articulação desses
elementos.
Segundo Amorim (2004), o objetivo da coleta dos dados deve ser o de
apreender vários dos elementos presentes em determinadas situações interativas,
buscando analisar os significados e sentidos que se destacam na situação para as
várias pessoas participantes do processo, acompanhando, ainda, seus
movimentos de transformação e procurando interpretar os processos pelos quais
as significações emergem.
Compreendo, como Rossetti-Ferreira (2000), que o dado não é dado e, sim,
resultado de um processo bastante complexo de construção que ocorre na
66
interação entre o pesquisador e o evento pesquisado. O pesquisador é visto
também como interlocutor, já que o contato com o objeto de investigação mobiliza
nele uma complexa e dinâmica rede de significações, a qual estrutura e canaliza
seus recortes e interpretações; assim, sua rede de significações é continuamente
impregnada e transformada pelo ofício da pesquisa.
Dessa forma, entendo que a pesquisa é uma prática social que introduz
constantemente uma modificação no campo; por isso, imprime limites aos atores
envolvidos, os quais, quando explícitos, impõem condições para o
estabelecimento de contratos entre os atores. Nesse sentido, recomenda Melucci
(2005) a necessidade de reconhecer que
a) os atores tem a capacidade de definir-se, mas que tal capacidade é
limitada; b) observadores e observados se definem como tais no interior
do processo de definição dos limites recíprocos; c) quanto mais tais
limites se tornam explícitos, mais se põe as condições para um contrato,
isto é para uma definição negociada e consensualmente regulada da
própria relação. (p. 328).
Então, passo a relatar o percurso percorrido para a construção do corpus,
que iniciou pela minha vivência inicial na situação pesquisada, permitindo, assim,
o primeiro delineamento da pesquisa. Entendo que esse percurso é delimitado por
um tempo e um espaço, e descrevê-lo é o exercício de desenhar o seu mapa,
com todas as suas configurações. Essa tarefa é de grande complexidade e exige
fazer escolhas e recortes dentro de um universo constituído de vivências e
memórias.
Utilizo-me do relato como forma de escrita com a intenção de narrar,
explicitar e contextualizar as condições de produção do corpus, bem como as
relações que se estabeleceram entre as pessoas da pesquisa
26
e o campo,
expressas pelos olhares, escutas e posturas, que se inicia com a constituição do
olhar e a definição do tema de pesquisa; posteriormente, os caminhos que rumam
na busca dos dados e as estratégias de análise.
26
Homens e mulheres adultas que buscam escolarizar-se no NEEJA de Passo Fundo – RS e a
pesquisadora.
67
A escolha do tema é fruto de uma construção permeada de “olhares” e
“escutas” ao meu cotidiano profissional. Por isso, não é neutra, emerge do
“mergulho” na empiria. Nessa perspectiva, Jacques Marre (1991) aponta que, ao
escolher um tema de pesquisa. “não se pode dizer que se faz uma escolha neutra;
pelo contrario se faz porque está relacionado com um sistema de valores e com
as convicções últimas do sujeito que escolhe” (p.10).O autor também faz outro
alerta: “A escolha do tema exige distanciamento, análise e critica, é um momento
de ruptura. Escolher um tema é já construí-lo qualitativamente de um modo
diverso do senso comum, pois exige relação com a abordagem teórica”
(p. 11).
Nesse momento penso que esse processo de análise e crítica foi-se dando
ao longo de minha trajetória na educação de adultos e tomou forma quando
ingressei no mestrado na linha de pesquisa Educação, Culturas, Memórias, Ações
Coletivas e Estado, na temática “Trajetórias educativas e territorialização de
políticas públicas em educação”. Inicialmente, tinha como intenção de pesquisa o
processo histórico da formação do educador, de modo especial daquele que atua
na educação de adultos. Nessa perspectiva, o objetivo traçado era identificar que
saberes os constituíram e que saberes se fazem necessários a tais educadores.
Entretanto, no decorrer do primeiro semestre de 2004, após as leituras
propostas, as disciplinas cursadas, as discussões dos seminários oferecidos pelo
PPGEDU/UFRGS e também das contribuições das bancas de qualificação
27
e
defesas de dissertações e teses a que assisti, meu olhar deslocou-se para os
principais protagonistas da educação de adultos: homens e mulheres adultas que
retornam à escola para buscar a escolarização, deixada por muitas razões num
tempo de infância e/ou adolescência.
Compreendo que conhecer em profundidade as histórias e trajetórias
desses sujeitos no âmbito de suas construções escolares, sociais e culturais, bem
como de suas expectativas e sonhos em relação à escolarização que buscam,
27
Dentre as contribuições referidas anteriormente saliento, que foi fundamental a esse processo a
participação do professor Dr. Nilton Bueno Fischer na banca de qualificação de Mariléia Gollo em
abril de 2004. Neste momento, colocava que: a pesquisa precisa focar os sujeitos – protagonistas,
no sentido de compreender os significados que atribuem as experiências que demandam das
políticas públicas.
68
pode apontar caminhos que (re)signifiquem o processo de formação de
educadores e educadoras da educação de adultos. Dessa forma, aproximo-me do
tema Adultos, escolarização e trajetórias de vida: compreendendo sentidos,
que deu origem à proposta de dissertação.
3.1 O REENCONTRO COM O CAMPO
Os olhos com que revejo já não são os olhos com que vi”.
Paulo Freire
Após a qualificação do projeto de pesquisa junto ao PPGEDU/ UFRGS,
lancei-me ao ofício de pesquisar. Nesse período fui tomada por muita expectativa,
pois como seria pesquisar o “familiar”, delimitar papéis – da educadora e da
pesquisadora? Mesmo assim, compreendia que só encontraria respostas
vivenciando, experimentando, sentindo o sabor, reaproximando-me do campo.
Então, tomada pelo desejo de saber mais, de desvelar, de rever com outros
olhos, numa tarde de sol intenso ocorreu o meu primeiro contato com o NEEJA
como pesquisadora. Enquanto percorria as cinco quadras entre minha casa e o
núcleo, refletia sobre a pesquisa, indagando-me: Como serei recebida? Como a
professora do NEEJA ou como pesquisadora? Passarei pelo mesmo ritual que
passam outros pesquisadores que se aproximam do núcleo? Como meu trabalho
será percebido? Segui adiante e, ao chegar, tive a impressão de que lá não havia
ninguém, pois o prédio estava tomado por um enorme silêncio. Apenas as frases
dos murais expressavam presenças vivas e amorosas, de dois mundos que se
entrelaçam – o intelectual e o vivencial. Eram duas as frases: uma de Paulo
Freire: “O mundo não é. O mundo está sendo” e outra de educandos: “Bem vindo
ao NEEJA! Aqui você encontrará muitos amigos”. Tais frases demonstram que
esses mundos se pautam na bem-querença e da esperança, preconizadas por
Freire e buscadas pelas pessoas do NEEJA.
Nesse momento senti que precisaria fazer um grande esforço para separar
os papéis: de professora do núcleo do de pesquisadora. Busquei acolhida nas
69
palavras de Freire (1999), que, ao falar de ensino e pesquisa, salienta que
“ensinar exige pesquisa”.
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres
se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo
buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque
indago e me indago.Pesquiso para constatar, constatando, intervenho,
intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não
conheço e comunicar ou anunciar a novidade (p. 29).
Então, o meu papel de pesquisadora foi se constituindo, entendendo-a
como parte de minha rede de significações.
Segui até a secretaria, onde encontrei o diretor e a secretária, que
carinhosamente me receberam. Nesse momento fui informada de que os demais
educadores e educadoras acompanhavam os educandos e educandas na
organização do espaço onde ocorreriam, no dia seguinte, a manifestação do Grito
dos Excluídos e a Feira da Solidariedade.
28
Nesse momento, ao conversarmos sobre a atividade, o diretor salientou
que os educandos e educandas do NEEJA encontravam-se cada vez mais
envolvidos em atividades propostas por instituições da comunidade, citando a
FRESOL – Feira de Economia Solidária, Feira da Saúde, Feira da Solidariedade e
a Campanha de Combate a Fome , destacando que eles têm levado
contribuições importantes a esses eventos. Essa colocação me remeteu à
pesquisa, pois percebi que precisava estar alerta a esse aspecto, visto que
poderia estar aí um dos sentidos que homens e mulheres adultas encontram na
escolarização. Por que o envolvimento cresce? Será que o envolvimento nas
atividades comunitárias traduz sentidos a essas pessoas? Quais são esses
sentidos? Talvez o sentimento de pertença a um grupo? A visibilidade? Esses
aspectos serão retomados em capítulos posteriores.
28
Esta atividade vem contando com a participação intensa do NEEJA desde a sua criação. É um
momento em que as pessoas realizam doações e expõem trabalhos realizados na informalidade,
para gerar renda – acontece todo o ano na praça central da cidade no dia 07 de setembro.
Também é um espaço para manifestações livres – protestos, culturais e artísticas
70
Após passei a falar sobre a minha proposta de pesquisa e fui surpreendida
com o convite para apresentá-la aos educadores e educadoras do NEEJA na
reunião de formação que se realizaria. Considerei de grande significado essa
abertura, pois, mesmo que a pesquisa não tivesse como foco central os
educadores e educadoras, eles fazem parte do contexto de estudo, são
constituintes e constituidores de relações que se entrelaçam a homens e mulheres
adultas sujeitos da pesquisa. Portanto, o convite me colocou numa condição de
grande coerência com minha concepção de pesquisa – da ciência do concreto,
do vivencial, permeada pelo respeito ao outro. Não concebo fazer pesquisa
sem que as pessoas envolvidas não conheçam os objetivos, os meios e os
possíveis fins, mesmo entendendo que a pesquisa não deva ter um fim prescritivo,
mas, sim, anunciar, comunicar os possíveis achados / contribuições. Ao aceitar o
convite, senti que estava reafirmando tal compromisso.
3.2 O ENCONTRO COM AS PESSOAS DA PESQUISA
Numa noite de muita chuva, que se completava com um frio intenso, a
minha chegada ao NEEJA contrastou com a temperatura, porque fui acolhida com
muito carinho, após estar há três meses afastada daquele caloroso convívio,
período em que construía minha proposta de pesquisa. Nesse momento, também
fui surpreendida com a presença de colegas de outras escolas de EJA da cidade,
que estavam ali a convite do diretor para um momento de formação e para
conhecer minhas intenções de pesquisa. Então, a minha alegria se misturou com
perplexidade, fazendo-me pensar: O meu trabalho é tão importante assim? –
Será que corresponderei às expectativas criadas? Mas iniciei o trabalho, que se
constituiu de dois momentos: primeiro, a apresentação da proposta de pesquisa e,
num segundo momento,
29
a realização de um trabalho de grupo, que visava ler e
discutir o capítulo III do projeto de dissertação, intitulado “Um tempo de desafios
tensões e aprendizagens: o NOES e o NEEJA”.
29
Escolha feita pela equipe que coordenava a reunião após conhecimento prévio do texto, pois foi
disponibilizada ao NEEJA uma cópia do projeto de dissertação logo após a sua qualificação em
31/08/05.
71
A apresentação aconteceu sem muitos questionamentos em relação ao
processo da pesquisa e, sim, quanto aos possíveis resultados, apontando para
uma concepção pragmática – segundo a qual toda a pesquisa deve comprovar e
prescrever. Essa concepção se afasta da ciência em que acredito e que me
proponho realizar, mas proponho-me apresentar ao grupo as reflexões que a
pesquisa apontar,talvez não com respostas prontas, mas, sim, com a perspectiva
de melhor conhecer o mundo da educação de adultos a partir de seus
protagonistas.
No segundo momento ocorreu o trabalho de grupo. Optei por não ficar em
nenhum grupo e circular entre eles, buscando ouvir, olhar e sentir. Nesse
momento as questões mais fortes que levantavam giravam em torno da avaliação
– como fazer avançar um aluno sem prova? Existe uma legislação que ampara
esses avanços? Expressavam em seus questionamentos que as ações
pedagógicas precisam ser prescritas previamente por uma legislação, um manual
ou uma regra geral padronizada. Tais questões também revelam a concepção de
educação que sustenta suas práticas. Nesse momento passei a pensar sobre o
quanto se faz necessário inverter a lógica tradicional que transita e se materializa
nas práticas pedagógicas de EJA. Essa inversão remete-nos, necessariamente, a
pensá-la a partir dos sujeitos – homens e mulheres jovens e adultos em toda a
sua inteireza e complexidade a quem tais práticas se destinam. Talvez assim
possamos encontrar respostas aos questionamentos sobre avaliação – avanço /
permanência e também aos embates que se apresentam em relação aos
tempos escolares (na linguagem escolar – carga-horária / dias letivos, hora-aula).
Entendo que os tempos escolares prescritos, distanciados do vivencial, podem
engessar os processos de escolarização, onde se misturam tempos institucionais
e pessoais de homens e mulheres adultas.
Esses aspectos me remetem a uma preocupação inicial,
30
razão que me
faz estudar/pesquisar pessoas adultas desse contexto, buscando compreender os
sentidos da escolarização em suas trajetórias de vida, ouvindo-as,
acompanhando-as e olhando-as a partir de seus tempos singulares e de seus
30
Apresentada no projeto de dissertação: Adultos Escolarização e trajetórias de vida:
compreendendo sentidos – qualificado em 31/08/06 p. 57.
72
campos interativos, onde desempenham diferentes papéis e, por isso, são
construtores de diferentes saberes e diferentes sentidos.
Ao concluir o trabalho, fiquei satisfeita por ter aguçado tais
questionamentos, mas, ao mesmo tempo, preocupei-me com a tarefa de, com a
pesquisa, realmente contribuir, sem ser prescritiva, pragmática, mas mostrar uma
outra ciência - a do vivencial, do concreto, a ciência que se gesta no olhar e na
escuta densa.
Considero tal relato significativo no momento em que descrevo o processo
de construção do corpus da pesquisa, por se tratar de um procedimento que se
delineou no caminho, que não foi pensado, mas que se impôs caracterizando um
momento de descontinuidade, de ruptura ao previsível. Apontou elementos
significativos para a compreensão do contexto relacional onde as pessoas da
pesquisa buscam sua escolarização, constituindo, assim, o campo interativo
permeado por diferentes concepções pedagógicas, papéis e saberes, entendendo
que os sentidos que são atribuídos à escolarização encontram-se “mergulhados”
nesse contexto. Dessa forma, esse momento também encaminhou outras
mudanças de trilha, exigindo a apresentação da proposta de pesquisa aos
educandos e educandas do NEEJA.
Na construção do projeto de pesquisa, havia definido que iniciaria o
processo da pesquisa com a escolha dos sujeitos, através da análise documental
guiada por alguns critérios estabelecidos, com base na empiria inicial.
Entretanto, a imersão no campo, como descrevi anteriormente, apontou-me
a necessidade de trilhar outro caminho. Eu não poderia iniciar a pesquisa
documental “escolhendo” as pessoas que participariam sem que elas soubessem
da existência e das intenções do estudo. Se assim agisse, não estaria sendo
coerente com princípios que considero fundamentais, como o do cuidado e do
respeito para com os participantes da pesquisa. Então, resolvi que o primeiro
passo seria apresentar o projeto de pesquisa às pessoas que estariam
diretamente envolvidas – educandos e educandas do NEEJA – e, assim, abrir um
espaço de escuta, questionamentos e escolhas entre participar ou não da
73
pesquisa. Entendo, como Sarmento (2003), que o “esforço de ouvir é
eminentemente interativo, e nesse ouvir o outro estão as condições de uma
ciência mais humana” (p. 147).
Esse momento exigiu-me uma preparação prévia, pois eu deveria pensar a
linguagem que utilizaria, buscar o consentimento por parte dos educadores e
educadoras para que eu pudesse utilizar 50 minutos de suas atividades de sala de
aula para dialogar sobre a pesquisa e, também, preparar um instrumento de
registro de dados iniciais daqueles que viessem a interessar-se em participar do
estudo.
Retornei ao núcleo numa quarta-feira à noite, momento da reunião semanal
de formação dos educadores e educadoras, quando foi possível expor rapida-
mente a necessidade que sentira de apresentar o projeto aos educandos e
educandas. Consegui, então, o tempo necessário para entrar nas 29 turmas do
NEEJA nos seus três turnos de trabalho.
No dia seguinte iniciei o trabalho preparando um pequeno questionário,
31
no qual solicitava informações como: nome, idade, data de nascimento, endereço,
telefone, totalidade que freqüenta, turno, tempo que estuda no NEEJA, série que
estudou antes do NEEJA, tempo que ficara fora da escola, se já havia estudado
no NEEJA em outras épocas e se já havia interrompido seus estudos no NEEJA.
Também elaborei um cronograma
32
com datas e horários para garantir a
organização e a rigorozidade em relação a esse momento da pesquisa e, ainda,
para respeitar a programação do núcleo. Então, no dia 16/09/05 iniciei o processo
de apresentação / convite nos três turnos.
Nesse momento procurei falar do meu retorno e do que realizara enquanto
estivera fora do núcleo; num segundo momento, passei a falar do projeto de
pesquisa, das razões, dos objetivos, bem como dos procedimentos e técnicas que
seriam utilizadas para a obtenção de informações e suas respectivas
sistematizações. Também procurei deixar clara a minha concepção de pesquisa,
31
Apêndice A – Questionário indicativo de interesse em participar da pesquisa.
32
Apêndice B – Cronograma de apresentação da proposta de pesquisa
74
não geradora de “manual prescritivo”, mas, sim, procurando contribuir para que os
processos pedagógicos tenham de fato centralidade nas pessoas adultas
portadoras de múltiplos saberes que podem articular a construção de novos
saberes. Outro aspecto que busquei esclarecer dizia respeito ao “cuidado” com a
privacidade e a identificação das informações prestadas.
Num último momento dirigi o convite às pessoas com idade acima de 29
anos para participarem da pesquisa, deixando espaço para que manifestassem a
vontade individual de fazê-lo ou não. As pessoas que manifestavam interesse em
participar recebiam o questionário, especificado anteriormente, que poderia ser
respondido em outro momento e devolvido no próximo dia de aula na secretaria,
onde seria deixada em uma pasta específica, que posteriormente me seria
entregue. Essa forma de comunicação foi uma sugestão dos educandos e
educandas das primeiras turmas com quem realizei o diálogo e acatada pelas
demais turmas.
Esse momento gerou-me surpresa e inquietação, pois a aceitação foi além
do esperado, com 272 pessoas manifestando interesse em participar da pesquisa.
Ao mesmo tempo que me inquietava o número de pessoas, sentia que não
poderia ignorar o desejo que expressavam em gestos e palavras de falar de si e
de fazer parte do estudo, como expressou uma mulher de 39 anos:
- Professora a senhora falando assim de seu trabalho, me sinto importante, quase uma
estudante de universidade.
Também me tocaram a preocupação e o cuidado para com o
preenchimento do questionário, onde escreviam a lápis, só após passando a
caneta; outros queriam entregar o instrumento na mesma hora para garantir a sua
participação:
- Quero participar de seu trabalho com capricho! Sei que é um trabalho sério e vai ser
muito importante contar ao meu marido que participo de seu trabalho.
Então, mesmo sabendo que seria impossível aprofundar o estudo com
todas as pessoas, fato que havia informado anteriormente, argumentando as
limitações de meu tempo de pesquisa, busquei através da análise documental
saber um pouco mais sobre elas para, assim, poder direcionar caminhos, redefinir
75
critérios, não as classificando, mas buscando traçar um perfil do grupo de
pessoas adultas que freqüentam o NEEJA de Passo Fundo.
Esse trabalho se estendeu durante quase todo o mês de setembro de 2005,
período que serviu também para direcionar o olhar ao contexto e às relações que
ali se constituem em diferentes espaços e tempos. Esses olhares me permitiram
muitas reflexões, reportando-me sempre à questão de pesquisa “Quais os
sentidos que essas pessoas encontram na escolarização? ”Os frutos dessas
reflexões foram sendo traduzidos nas questões que encaminharam os momentos
seguintes da pesquisa: análise documental, observação e entrevistas.
Ao iniciar a análise documental, tomei como referência os questionários
que haviam sido devolvidos, já não mais com 272 pessoas, mas com 142. Aqui
surgiu mais um questionamento: o que teria feito muitas pessoas não devolverem
o questionário? Pensei em investigar, em fazer um novo contato, mas entendi
que, naquele momento, deveria respeitar tal distanciamento e seguir trabalhando
com os demais.
Assim, consegui trabalhar, inicialmente, com 142 pessoas na análise
documental, que consistiu em recorrer às pastas individuais existentes na
secretaria do núcleo e levantar dados como: idade, local de nascimento, sexo,
escolarização alcançada antes do NEEJA, tempo fora da escola, tempo no
NEEJA, endereço, situação de trabalho e situação familiar. Num segundo
momento, passei a visualizá-las com base nos critérios elaborados na construção
do projeto e redefinidos, pois, neste momento de empiria, passei a perceber que
dois dos seis critérios existentes no projeto de dissertação encontravam-se
inseridos também em outros. Então fiz a opção pelos seguintes critérios:
C 1 - Pessoas que permaneceram no núcleo e concluíram o ensino
fundamental e médio;
C 2 - Pessoas que apresentam histórias de interrupções e retornos
sistemáticos no processo de escolarização no núcleo;
C 3 – Pessoas que ingressaram no núcleo após concluírem o ensino
fundamental;
C 4 – Pessoas para quem o NEEJA é a primeira experiência de
escolarização.
76
Com esses dados organizei uma tabela
33
que serviu para apontar aspectos
singulares e plurais das pessoas, sem a pretensão de generalizá-las como uma
categoria social e histórica homogênea, nem de tomar os participantes de certa
forma classificados em critérios, como representantes das demais pessoas que
não participaram da pesquisa, mas apontaram elementos que me permitiram
caracterizá-los como grupo que constrói um processo dinâmico de “individuação e
de crescimento da autonomia” (MELUCCI, 2004, p. 47).
Diante da necessidade de avançar, o que significa fazer recortes, escolhas
e seguir um caminho que a pesquisa vem configurando, com base no que trilhei
até aqui, optei por escolher 15 pessoas para fazer um processo associado: de
observação (atividades da escola e na família) e entrevistas. Essas escolhas
metodológicas deram-se com base nos dados levantados na pesquisa
documental, entrelaçando-se com os critérios anteriormente apresentados, que
contemplam a multiplicidade de situações e singularidades de homens e mulheres
adultas.
Após essas escolhas um segundo momento de encontro coletivo entre as
pessoas da pesquisa fez-se necessário, destinado à devolução prévia do trabalho
de análise documental e ao convite às pessoas escolhidas para as etapas
seguintes. Foi um momento em que busquei expressar respeito e cuidado para
com os participantes como parte constituinte e constituidora da pesquisa. Nesse
momento cabe salientar que para mim, como pesquisadora, foi gratificante
perceber as reações emocionadas, lágrimas nos olhos, admiração e expressões
como:
Como é importante esse trabalho! Agora, sei que não sou a única que ficou tanto tempo
sem estudar, tem gente que ficou mais que eu (Olga).
E questões como:
A senhora vai mostrar isso para os professores e professoras? Pois eles precisam saber
que aqui todo mundo trabalha pesado, não somos criança, então não podem nos tratar
como piá, ensinando coisas igual para criança (Juarez)
33
Apêndice C - Tabela de dados.
77
Tais falas expressam que têm sentido o “conhecer” o outro e “enxergarem-
se” a partir do outro, assim como apontam para a necessidade de serem olhados
na sua inteireza – como fundamento para os processos pedagógicos. Nesse
sentido, ilustramos o que Melucci (2004) teoriza ao falar do processo de
identização como também ação coletiva:
Toda vez que, numa situação de conflito, encontramos a solidariedade
de outros e nos sentimos parte de um grupo, nossa identidade é
reforçada e garantida. Não nos sentimos ligados aos outros apenas por
ter interesses em comum, mas sim porque essa é condição para avalizar
o sentido daquilo que fazemos (p. 49).
Diante dessas colocações, novos contratos foram sendo firmados. Então,
comprometi-me a apresentar os dados a todo núcleo ao final da pesquisa, em
espaço a ser solicitado à direção.
Outro fato comovente foi a forma como as pessoas escolhidas receberam a
notícia de serem escolhidas. Quando eu falava seus nomes, expressavam grande
satisfação, alguns até comemoravam como se tivessem sido premiados. Um
exemplo:
Nossa, isso é uma grande alegria, minha história, minha vida, vai ser estudada na
universidade! (Odete)
A expressão de Odete considera a “universidade” um lugar de grande
importância. Tal importância é imprimida socialmente pelos saberes que
congrega, pela dificuldade de acesso e por representar um portal de ascensão
social. Talvez a alegria de Odete em ver sua história fazer parte de uma pesquisa,
“ser estudada na universidade” tenha lhe possibilitado um outro olhar para si – de
respeito, de saberes e de importância – colocando-se no mundo como ser de
possibilidades, de “ser mais” no sentido preconizado por Freire (1981), “vocação
negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores.
Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos, pela
recuperação de sua humanidade roubada” (p. 30).
Também observei expressões de surpresa, quando fui questionada:
78
Professora, a senhora tem certeza que me escolheu para participar de seu trabalho?
Quando eu era menino, sempre que uma professora me escolhia para alguma coisa era
para me dar castigo, não é brincadeira, talvez por isso que estou aqui ainda! (Adão).
Essas manifestações expressam o sentimento de valorização sentida pela
abertura de espaço de escuta, o que se traduz na sonhada visibilidade, negada ao
longo de suas vidas de diferentes formas. Essas expressões e impressões
apontam sentidos para estarem no núcleo? Acreditando que sim, apoiei-me nelas
para focar meu olhar no momento das observações e encaminhar o diálogo
durante as entrevistas, ou melhor, para “educar” o meu olhar, no mesmo sentido
que Soares (2005) usa para dizer que precisamos educar o olhar para ver um
filme com legendas: “É preciso saber onde fixar o olhar para que seja possível
captar o conjunto da cena, sem que se perca os detalhes mais importantes, [...]
enquanto lêem as legendas” (171).
Após a devolução preliminar e a divulgação das escolhas das pessoas, fez-
se necessário um segundo momento de diálogo. Retomei aqui o objetivo da
pesquisa e os critérios de escolha que utilizei. Esse encontro aconteceu num
único dia, no mesmo local e horário.
34
Todas as pessoas compareceram e juntos
montamos um cronograma de observações e entrevistas, respeitando
disponibilidades individuais e as atividades do núcleo.
Outro aspecto que lhes esclareci diz respeito ao “cuidado” com a
privacidade e identificação das informações prestadas. Posteriormente, os
participantes manifestaram a vontade individual de continuar ou não na pesquisa.
Como todos manifestaram interesse em participar, assinaram o termo de
consentimento
35
após a explicitação de sua necessidade e importância. Nesse
momento manifestaram o desejo de que fossem utilizados na pesquisa os seus
nomes reais.
34
Auditório do NEEJA, dia 02/10/05 às 18 horas.
35
Anexo B – Termo de consentimento.
79
3.3 ENTRELAÇAMENTOS ENTRE FALAS E OLHARES
3.3.1 A observação
[...], se o olhar transporta para a imagem daquilo que
é olhado um pouco da pessoa que olha, se o olhar
transporta para a imagem a relação entre o que vê e o
que é visto, deduz que ver é relacionar-se.
Luiz Eduardo Soares
Apresentarei aqui os procedimentos da observação e da entrevista em
momentos distintos. Essa foi uma forma didática que encontrei para relatar o que
aconteceu com certa simultaneidade. No processo de observação ocorreram
momentos que encaminharam para a entrevista, assim como as entrevistas
demandavam novos olhares. O que relatarei aqui configura-se num recorte
descritivo do processo de coleta de dados.
Após a definição dos sujeitos, iniciei a busca pela obtenção dos dados,
utilizando a observação, que, segundo Lüdke e André (1986),
(...) permite que o observador chegue mais perto da “perspectiva dos
sujeitos”, um importante alvo nas abordagens qualitativas. Na medida em
que o observador acompanha in loco as experiências diárias dos
sujeitos, pode tentar apreender a sua visão de mundo, Isto é, o
significado que eles atribuem à realidade que os cerca e às suas próprias
ações (p. 26).
Nesse sentido, busquei trilhar o caminho do diálogo, permeado pela escuta
e pelo olhar, compreendendo que
escutar é mais que ouvir, é tentar pela fala do outro, entendê-lo na sua
inteireza, é prestar atenção nos seus gestos, nos momentos que sorri ao
lembrar ou de tristeza pela dor que aquelas palavras causam. É prestar
atenção as emoções que as palavras suscitam, como alterações de
vozes, sensação de conforto ao dize-las. Escutar é construir juntos um
diálogo prazeroso, é sem dúvida um ato de amor. (NASCIMENTO, 2004,
p. 24)
Também penso que uma escuta sensível permite ouvir o sentido da palavra
silenciada, que expressa suas múltiplas significações: ”O silêncio é o fundador da
80
significação. [...] um lugar de recuo necessário para que se possa significar, para
que o sentido faça sentido. Reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço
que permite o movimento do sujeito” (ORLANDI, 1995, p. 13-14).
E também, ao focar o olhar nos sujeitos da pesquisa, tive a perspectiva de
apreender os significados que atribuem ao seu processo de escolarização a partir
das diferentes relações que estabelecem no contexto pesquisado, abarcando as
várias interações estabelecidas, os contextos em que ocorrem e os papéis
atribuídos e assumidos. Entendo que o olhar não é neutro, como afirma Soares
(2005), mas guiado por concepções, portanto “olhar” não serve de metáfora para
designar a suposta objetividade do vínculo entre o sujeito da ciência e o seu
objeto. Pelo contrário, não há pureza nem objetividade no olhar, pois implica
transportar para a imagem daquilo que é olhado um pouco da pessoa que olha.
Nossa visão das coisas e das pessoas é carregada de expectativas e
sentimentos, valores e crenças, compromissos e culpas, desejos e frustrações.
Por isso, olhar implica estabelecer vínculos, que se criam quando existe
cumplicidade e não se dão em apenas um encontro e, sim, num conjunto de
relações – “ver é relacionar-se” (p. 173).
Dessa forma, estive atenta ao que recomendam Bogdan e Biklen (apud
Lüdke e André, 1986) em relação ao conteúdo da observação, que deve envolver
uma parte descritiva e outra reflexiva.
A parte descritiva envolve: descrição dos sujeitos, reconstrução de
diálogos, descrição de locais, descrição de eventos especiais, descrição
das atividades e os comportamentos do observador.E a parte reflexiva
inclui as observações pessoais do pesquisador, feitas durante a fase de
coleta: suas especulações, sentimentos, problemas, idéias, impressões,
pré-concepções, dúvidas, incertezas, surpresas e decepções (p. 30-31).
Inicialmente, eu pretendia realizar um período de observação sistemática a
partir das indicações referidas nas turmas do ensino fundamental e do ensino
médio do NEEJA de Passo Fundo, onde estivessem inseridos os sujeitos da
pesquisa no período de setembro a novembro de 2005, em três dias alternados na
semana. A observação ocorreria em sala de aula, à chegada, durante o intervalo,
à saída das aulas, em passeios e em outros momentos, como assembléias,
81
apresentações artístico-culturais, seminários e demais espaços do núcleo.
Entretanto, esse processo não foi possível integralmente, pois no calendário do
núcleo estava previsto para o início do mês de novembro um período de
avaliações, no qual algumas pessoas da pesquisa foram certificadas
36
e então
ficaram dispensadas de freqüentar as atividades; outras, por não terem obtido
avanço, abandonaram o núcleo, dificultando o contato. Então, algumas pessoas
foram acompanhadas nesse processo em apenas uma atividade, e outras, em
vários momentos. Assim, apresento o itinerário de observação realizado.
37
Nessa fase segui as orientações de Rossetti-Ferreira, Amorim e Silva
(2004), de que o pesquisador deve atuar como um etnógrafo, buscando descrever
num “diário de campo” o que está acontecendo a sua volta, especificando em
cada episódio registrado quem dele participou e o quê, onde, como e quando
ocorreu, tendo sempre em vista o objeto de estudo e as questões da pesquisa.
O diário de campo, como instrumento de registro de dados, segundo Lüdke
e André(1986),
[....] é essencialmente prático, é interessante que, ao iniciar cada registro,
o observador indique o dia, a hora, o local da observação e o seu período
de duração. Ao fazer as anotações, é igualmente útil deixar uma margem
para a codificação do material ou para observações gerais. Sempre que
possível, é interessante deixar bem distinto, em termos visuais, as
informações essencialmente descritivas, as falas, as citações e as
observações pessoais do pesquisador (p. 32-33).
Como complementação da busca dos dados, utilizei a entrevista semi-
estruturada, que, segundo Lüdke e André (1986), ao lado da observação,
representa uma das principais técnicas de trabalho em quase todos os tipos de
pesquisa nas ciências sociais.
3.3.2 As entrevistas
“Em alguns casos felizes a entrevista se converte
em diálogo. Este diálogo é algo mais que uma
conversação mundana, é uma busca comum. O
36
Terminologia usada pelo núcleo para dizer que um educando ou educanda concluiu o ensino
fundamental ou médio.
37
Apêndice D - Itinerário de observação
82
entrevistado e o entrevistador colaboram para
obter uma verdade que afete ou bem a pessoa
entrevistada, ou bem um problema”.
Edgar Morim
O processo de observação permitiu uma aproximação maior entre mim e os
pesquisados, através da partilha do chimarrão durante algumas aulas e nos
intervalos, criando um clima que Bosi (2003) chama de condição para entrevista
ideal – aquela que permite a formação de laços de amizade. Então, num
“conversar desarmado” muitos diálogos se estabeleceram, constituindo elementos
para fazer e refazer o roteiro da entrevista e, assim, como Bosi (2003), considero
que a observação constitui um processo de pré-entrevista, de grande relevância.
A pré-entrevista, que a metodologia chama “estudo exploratório”, é
essencial, não porque ela nos ensina a fazer e refazer o futuro roteiro da
entrevista. Desse encontro prévio é que se pode extrair questões na
linguagem usual do depoente, detectando temas promissores. A pré-
entrevista abre caminhos insuspeitados para a investigação. (BOSI,
2003, p. 60).
Assim, passei a rever o roteiro de entrevistas que fora apresentado no
projeto de dissertação em agosto de 2005, buscando considerar elementos
visíveis nas observações tendo em vista as questões de pesquisa. Novos
roteiros
38
se delinearam, nos quais respeitei características e histórias
particulares, mas partindo sempre de um roteiro comum, na perspectiva de trazer
presentes elementos significativos que expressam histórias e trajetórias de vida
nos âmbitos social, escolar e familiar, bem como fatores que os levaram a retornar
à escola. Buscamos sempre focar os processos de escolarização percorridos e os
sentidos a eles atribuídos, na perspectiva de visualizar os “fios” que se entrelaçam
ao retornar para escola na vida adulta e como novos sentidos vão se constituindo.
Segundo Queiroz (1988), a entrevista biográfica “consiste numa conversação
continuada entre informante e pesquisador que visa desvelar a vida ou fragmentos
de vida do pesquisado, [...] é dirigida pelo pesquisador com tema também
escolhido por ele” (p. 20).
38
APÊNDICE E - Roteiro de Entrevistas.
83
Então, posso dizer que foi utilizada a entrevista do tipo semi-estruturada,
que apresenta como característica básica a não-uniformidade de perguntas e
respostas, num processo que se desenrola segundo um esquema básico, porém
não aplicado rigidamente, permitindo-me fazer as necessárias adaptações a fim
de estabelecer um diálogo com o pesquisado. Nessa perspectiva, Morin (apud
Moll, 2000) define entrevista-diálogo: “É algo mais que uma conversação
mundana, é uma busca em comum. O entrevistado e o entrevistador colaboram
para obter uma verdade que afete ou bem a pessoa entrevistada ou bem um
problema” (p. 31).
As entrevistas foram realizadas individualmente, em local definido pelo
pesquisado, durante o período da observação; assim, algumas foram realizadas
em suas casas e outras, no núcleo. Foram momentos de “conversa desarmada”
nos quais o fluir das narrações, o aconchego do olhar e da escuta nos
gratificavam mutuamente, transformando-se numa relação de confiança, por isso
de amizade.
As entrevistas foram realizadas com apenas sete pessoas observadas nas
atividades escolares, pois algumas delas afastaram-se do núcleo ainda no período
da observação; quatro mudaram-se para o Litoral, para trabalhar em restaurante
/sorveterias no verão, e duas concluíram o ensino médio e deixaram de freqüentar
o núcleo ainda em novembro. Junto a essas pessoas foram feitas várias
tentativas, através de contatos telefônicos e visitas domiciliares, para viabilizar as
entrevistas, porém não obtive sucesso. As entrevistas foram realizadas seguindo
um cronograma
39
previamente elaborado.
O registro das entrevistas foi realizado através de gravação com posterior
transcrição, acompanhada de registros sistemáticos durante o seu desenvol-
vimento, na perspectiva de detectar as linguagens não verbais que se apre-
sentavam, levando em conta os cenários que se constituem a partir dos papéis
que os sujeitos exercem.
39
APÊNDICE F - Cronograma de entrevistas.
84
Após a realização das entrevistas, voltei-me para a transcrição das fitas e a
devolução aos pesquisados, quando ocorreu o último encontro, não mais para
entrevista, mas para leitura e complementação dos dados. Esse procedimento é
interessante porque, pela leitura dos registros, agora sistematizados, em relação
ao encontro anterior, possibilitei que os participantes ouvissem a si mesmos
através do que eu havia escrito. Evitando a repetição de idéias, a reformulação de
algumas expressões foi possível, bem como o acréscimo de informações, a
complementação de suas histórias, ou, ainda, a expressão das (in)compreensões
e da fidedignidade dos dados.
No momento da leitura, foi-me possível perceber as reações emocionadas
demonstradas com lágrimas nos olhos e admiração, ao ouvirem os detalhes de
sua própria história. Bosi (2003, p. 66) reitera a necessidade de devolução do
depoimento ao seu autor, pois, assim como o intelectual, o “memoralista” tem o
mesmo direito de ouvir e mudar o que narrou: “Mesmo a mais simples das
pessoas tem esse direito, sem o qual a narrativa parece roubada”.
Cada entrevista teve a sua característica própria, que descreverei no
processo de análise dos dados, onde buscarei relatar como esse olhar foi se
constituindo processualmente, de forma vivencial e reflexiva.
3.3.3 Análise dos dados
A verdadeira viagem da descoberta não é
descobrir novas paisagens, mas descobrir um novo
olhar.”
Clarice Linspector
Analisar os dados nos coloca a possibilidade de descobrirmos novos
olhares e, talvez, novas paisagens, na multiplicidade de elementos que se
entrelaçam e constituem redes que expressam vidas. Essa tarefa foi se dando ao
analisar os dados qualitativamente, o que significa “trabalhar” todo o material
obtido durante a pesquisa, dividindo-o em partes, relacionando-as e procurando
identificar nelas aspectos relevantes. Procurei realizar aquilo que Moll (2000)
85
chama de “inventário”, que possibilita a composição de um mosaico (Becker,
1997) do mundo da vida. Assim, busco no “inventário” elementos constituidores e
constituintes da rede de significações e, a partir dela, apoiada no referencial
teórico, procuro compreender as questões que o problema de pesquisa apresenta.
Esse processo teve como critério preliminar os dados relacionados aos
processos interativos que se estabelecem no núcleo e fora dele, relações
históricas, sociais e culturais que se apresentam nas trajetórias de vida e que se
colocam como elementos significativos no contexto da pesquisa.
Dessa forma, constituí um “banco de dados” bastante extenso, que exigiu
várias leituras e diferentes olhares, objetivando elencar as possíveis categorias de
análise. A princípio, construí uma rede contendo no centro “as pessoas da
pesquisa: homens e mulheres adultas que buscam escolarização no NEEJA de
Passo Fundo”, ligando aos elementos comuns expressos em suas trajetórias de
vida: gênero, raça, idade, tempo fora da escola, número de filhos, migração,
tempo de escolarização na infância / adolescência / vida adulta, local de
residências, bairro, estado civil, situação de trabalho, casamento, materni-
dade/paternidade, viuvez, separação, amizades, espaços educativos (família,
igreja, pastorais, grupos da terceira idade, EJA) etc.Também nesse momento
busquei elementos visualizados nas observações e que expressam aspectos de
interação entre pessoas e contextos, em especial as que ocorreram no NEEJA.
A cada leitura dos registros, a rede foi sendo transformada, pois no interior
das categorias comuns fui acrescentando os elementos singulares de cada uma
das pessoas. Por exemplo, na categoria tempo fora da escola há várias distinções
entre elas – mais de dez anos, mais de vinte anos e também o NEEJA sendo a
primeira escola.
Realizei leituras da própria rede, buscando respostas à questão central:
Quais são os sentidos que homens e mulheres adultas atribuem ao
processo de escolarização? Assim, passei a perceber que os sentidos
atribuídos ao processo de escolarização estavam entrelaçados às suas
experiências de vida: inacabamento, exemplaridade, coragem, sonhos,
86
maternidade, paternidade, relações familiares, trabalho, conquistas, moradia
e os vínculos de amizades nas diferentes fases de vida.
Nesse sentido, busquei também compreender teoricamente como os
sentidos se constituem na vida das pessoas. Encontro em Duarte Jr (2003) uma
contribuição conceitual relevante, visto que coloca os sentidos como referência à
capacidade humana de apreender a realidade de modo consciente, organizado e
direcionado.
“[...] em nossa vida existe primordialmente um sentido no sentido. Ou
seja: tudo aquilo que é imediatamente acessível a nós através dos
órgãos dos sentidos, tudo aquilo captado de maneira sensível pelo corpo,
já carrega em si uma organização, um significado, um sentido (p. 12).
Também passei a entender que os sentidos vão sendo (re)significados nas
diferentes fases da vida e que as dimensões temporais se colocam como
articuladoras dos entrelaçamentos e da produção de sentidos.
Desse modo, dei-me conta de que as respostas estavam a exigir uma nova
questão, pois não poderia me aproximar dos sentidos atribuídos ao processo de
escolarização sem considerar as trajetórias individuais dos sujeitos da pesquisa,
que se encontram permeadas por temporalidades, campos interativos e contextos,
entendendo-as como constituidoras e constituintes de sistemas relacionais.Tais
constatações me colocam novas questões, não para anular a questão inicial, mas
para encaminhar a sua resposta: Quem são os homens e as mulheres adultas
que buscam escolarização no NEEJA de Passo Fundo? O que os faz
retornar mesmo trazendo em suas trajetórias de vida muitas histórias de
rupturas e descontinuidades em seus processos de escolarização? O que os
faz permanecer no núcleo?
A partir desse momento passei a visualizar todas as experiências de vida,
expressas nas trajetórias individuais, como produtoras de sentidos e foquei o
processo de escolarização na vida adulta e o NEEJA de Passo Fundo como
espaço de confluência para a produção de sentidos, entendendo a vivência
87
escolar como o saber-objeto gerador de sentidos comuns, expressos por
diferentes configurações.
Assim, passo a buscar nos dados elementos (campos interativos
dialógicos, contextos e dimensões temporais) para constituir a rede de
significações em que, articulados numa matriz sócio-histórica,
40
constituem
sistemas de significações, produtores de sentidos. Entendo que a matriz sócio-
histórica é ressignificada e transformada pelas pessoas em interação nos cenários
em que se encontram inseridas.
Nesse sentido, a matriz sócio-histórica deste estudo encontra materialidade
nas “concretas condições de vida” dos sujeitos da pesquisa, a cidade de Passo
Fundo e o NEEJA de Passo Fundo no entrelaçamento das trajetórias dos sujeitos,
sabendo que tais elementos não são únicos, mas podem articular a constituição
das redes de significações, tendo em vista o foco da pesquisa – escolarização,
sentidos e vida adulta.
Assim, entendendo que a rede de significações é configurada num
processo contínuo e complexo de articulação de elementos, busco constituir
uma rede de significação circunscrita por elementos materiais e simbólicos,
presentes nas descrições de si produzidas nas entrevistas e nas observações
realizadas, que se relacionam ao tempo histórico e cultural, às experiências de
vida dos participantes, ao contexto imediato, incluindo a relação com o
pesquisador e também as expectativas e as projeções de vida futura feitas pelos
participantes.
Dessa forma, considerando o processo de construção da rede de
significações, construí um sumário provisório, organizando as categorias
desenhadas na rede, e a partir daí fui desenvolvendo a escrita através da
interlocução com os relatos e os referenciais teóricos que ampararam cada
categoria: vida adulta, dimensões temporais, gênero, escolarização e
sentidos como categorias aparentes. Tal sumário ficou assim delineado:
40
A matriz sócio-histórica representa um veio de canalização da situação e, nesse sentido,
delimita interações, disponibiliza papéis, significados culturais e imprime as formas e os conteúdos
específicos de cada sujeito em particular (Amorim, 1998, p. 13).
88
os motivos que compõem este trabalho: a trajetória da
pesquisadora e os vínculos com o contexto da pesquisa;
o contexto da pesquisa: a cidade de Passo Fundo, a Educação de
Adultos e o NEEJA;
as pessoas da pesquisa: trajetórias que tecem redes de
significações: a infância negada, a adultez precoce, a migração, a
luta entre trabalho e o desejo de estudar;
a escolarização e os sentidos na vida adulta: a busca pelo saber
escolar, o trabalho, a necessidade de escuta e visibilidade, os
vínculos de amizade, a alegria de ser “estudante” e o trabalho na
busca pela autonomia.
89
4 AS PESSOAS DA PESQUISA E SEUS ENTRELAÇAMENTOS NOS
DIFERENTES TEMPOS DE VIDA
Eu vi o menino correndo, eu vi o tempo [...]
O tempo não pára e, no entanto, ele nunca
envelhece...
Caetano Veloso/ Roberto Carlos
Compreendo as pessoas da pesquisa - homens e mulheres adultas que
buscam a escolarização no NEEJA de Passo Fundo - na perspectiva social em
que se constituem. Não tenho como premissa a idéia de que todos os seres
humanos repetem em suas vidas um ciclo único e universal, categoricamente
dividido em etapas, e que a adultez seria apenas mais uma etapa nesse ciclo,
entendida como uma fase de estabilidade e caracterizada pela maturidade. Ao
contrário, proponho que a vida humana seja analisada no percurso de sua
trajetória singular conforme a situação social e histórica em que se desenvolve.
Assim entendendo a constituição humana, busco também compreender “os
ritos de passagem” como demarcadores das fases de vida de homens e mulheres.
Na sociedade contemporânea, apresentam-se de diferentes formas, configurados
por rupturas e descontinuidades que se colocam nos diferentes tempos de vida,
enquanto que no passado essas mudanças entrada na adolescência, na vida
adulta – aconteciam de forma pontual e genérica em determinadas idades,
obedecendo a um ritual de preparação e cumprindo as tradições familiares e
sociais.
Nesse sentido, para Giddens (2002), os ritos podem ser entendidos na sua
dimensão temporal, com o objetivo de manejo do tempo. Para Melucci (2001), nas
sociedades complexas, pós-industriais, onde o valor é centrado na mudança,
valorizam as etapas de vida em que ela é emblemática – infância/ adolescência/
vida adulta. Outro aspecto do rito de passagem é o caráter simbólico que Morin
(2002) descreve como constitutivo da vida imaginária e dos sistemas imaginários:
90
a “vantagem de incluí-los nessa rubrica está em reconhecê-los como capazes de
irrigar a vida afetiva enquanto se infiltram na vida prática” (p. 91).
Tais considerações se reafirmam nos relatos singulares dos sujeitos
adultos que buscam escolarizar-se na educação de adultos e também na trajetória
de vida da pesquisadora, mostrando que essa fase é marcada por várias
transições e transformações, que se apresentam nos diferentes papéis que
exercem, independentemente de suas idades.
Nesse sentido, não é possível analisar aspectos dessa fase de vida sem
compreender a infância e a juventude que vêm configurar a adultez e sem estudá-
las a partir da diversidade de papéis e das expectativas sociais que se colocam ao
longo da vida, de modo que a faixa etária não poderá ser o limitador das fases de
vida.
4.1 OS SUJEITOS DA PESQUISA E SUAS CONFIGURAÇÕES: HOMENS E
MULHERES ADULTAS QUE RETORNAM À ESCOLA
Pessoas às voltas com a vida
Basta de poemas para depois...
Ó vida, e se nós dois
Vivêssemos juntos?
Mário Quintana
Apresento aqui as pessoas da pesquisa: homens e mulheres adultas que
buscam a escolarização no NEEJA
41
de Passo Fundo na perspectiva de
conclusão do Ensino Fundamental e Médio. Assim, nos limites deste trabalho,
reconheço-os em primeiro lugar, como personagens centrais, sujeitos de minha
investigação, como pessoas que estão “às voltas com a vida”, buscando uma
forma de viver em tempos e espaços que lhes são “próprios” e que se configuram
de diferentes formas – nos sentimentos, no trabalho, na família, na escola, no
bairro e na cidade.
41
Núcleo Estadual de Educação de Jovens e Adultos do Sistema Estadual de Ensino/RS.
91
Nesse sentido, compreendo-os como sujeitos sociais, inseridos em teias
configuracionais da sociedade, que fazem parte de um processo histórico,
portanto produtores de culturas. Assim, neste trabalho, assumo uma posição em
torno da definição de sujeito social apontada por Charlot (2000), que o considera
como um ser ativo, que age no e sobre o mundo e nessa ação se produz e, ao
mesmo tempo, é produzido no conjunto das relações sociais no qual se insere.
O sujeito é um ser humano aberto a um mundo que possui uma
historicidade, portador de desejos e movido por esses desejos, em
relação com outros seres humanos, eles também sujeitos. Ao mesmo
tempo, o sujeito é também um ser social, com uma determinada origem
familiar, que ocupa um determinado lugar social e se encontra inserido
em relações sociais. Finalmente, o sujeito é um ser singular, que tem
uma história, interpreta o mundo, dá-lhe sentido, bem como à posição
que ocupa nele, às suas relações com os outros, à sua própria história e
à sua singularidade Charlot (2000 p. 33).
Ainda nos aponta o autor que a noção de sujeito é detentora de
características que definem a própria condição antropológica que constitui o ser
humano, ou seja, o ser que é igual a todos como espécie, igual a alguns, como
parte de um determinado grupo social, e diferente de todos, como um ser singular.
Nessa perspectiva, o ser humano não é um dado, mas uma construção. A
condição humana é vista como um processo, um constante tornar-se por si
mesmo, no qual se constitui como sujeito à medida que se constitui como
humano, com o desenvolvimento das potencialidades que o caracterizam como
espécie e também passando a desenvolver a outra face da condição humana, que
é a sua natureza social.
Assim, considerando-os na dependência de processos relacionais nos
quais numa rede de relações estabelecem diferentes papéis, caracterizo-os como
sujeitos múltiplos e dialógicos, como afirmam Rossetti-Ferreira, Amorim e Silva
(2004):
A dependência de processos relacionais com o outro, desde o inicio da
vida [...] coloca a pessoa em jogos interativos, os quais, em uma rede de
relações, impregnada e atravessada pela linguagem, vão abrindo e/ou
interditando papéis e lugares possíveis de serem ocupados. Essa
característica marca o caráter fundante da dialogia na constituição do ser
humano e, conse-qüentemente, a sua multiplicidade. A pessoa é múltipla
porque são múltiplos e heterogêneos os vários outros com quem
interage. A pessoa é múltipla porque são múltiplas as vozes que
92
compõem o mundo social e os espaços e as posições que vai ocupando
nas práticas discursivas. Essa multiplicidade de vozes e posições que
dialogam entre si submetem a pessoa, mas ao mesmo tempo, preservam
a abertura para a inovação e para a construção de novos
posicionamentos e processos de significação acerca do mundo, do outro
e de si mesma (grifo das autoras) (Rossetti-Ferreira, Amorim e Silva,
2004, p. 25).
Na perspectiva de tecer a “rede” onde as diferentes vozes se cruzam, para
dizer quem são as pessoas adultas que buscam escolarização no NEEJA de
Passo Fundo, tomo como primeiros fios os dados empíricos coletados na análise
documental.
42
Diante dos esclarecimentos conceituais anteriormente feitos, busco
responder à seguinte questão: “Quem são os homens e as mulheres adultas que
buscam escolarização no NEEJA de Passo Fundo?” e, assim, apresentar algumas
das vozes que compõem o perfil configuracional do grupo que constitui as
pessoas da pesquisa – homens e mulheres adultas que buscam escolarização no
NEEJA de Passo Fundo. Nesse sentido, tenho a mesma intenção de Lahire
(2004), de, ao “centralizar o olhar sobre objetos mais precisos, tentar
contextualizar o efeito de propriedades ou de traços pertinentes de análises
absolutamente gerais, exatamente os que encontramos nas pesquisas esta-
tísticas” (p. 72).
O perfil aqui traçado busca visualizar alguns dos “nós” que se entrelaçam e
constituem as redes de relações que formam a realidade social pela
impossibilidade de ver a sua totalidade. Assim, concordo com o argumento de
Bernard Lahire (2004), de que “(...) um pesquisador não pode reconstruir nunca
tudo, ela apenas evoca de forma geral o que será descrito em detalhes por outros”
(p.40). Mesmo assim, procuro estar atenta às relações de interdepen-dência que
dão vida e sentido ao objeto pesquisado, concordando com o autor anteriormente
citado:
Se tivéssemos abordado separadamente traços, teríamos perdido de
vista o que nos parece o mais importante a destacar, ou seja, que esses
traços (características, temas) se combinam entre si e só tem sentido
sociológico, para o nosso objeto, se inseridos na rede de seus
entrelaçamentos concretos (p. 72).
42
Realizada no processo da presente pesquisa, como relatado anteriormente, no capítulo três.
93
O referido “perfil” é fruto do contato inicial com 142 pessoas – homens e
mulheres adultas que buscam escolarização no NEEJA de Passo Fundo ,
identificados através de investigação junto às fichas de matrícula. Nelas foi
possível levantar dados como idade, local de nascimento, sexo, raça,
escolarização alcançada antes do NEEJA, tempo fora da escola, tempo no
NEEJA, endereço, situação de trabalho e situação familiar.
Essa etapa apresentou a possibilidade de olhar, mesmo que de forma
superficial, as singularidades e pluralidades das pessoas adultas que freqüentam
o NEEJA de Passo Fundo e que se aproximaram da pesquisa, evitando
generalizações, mas buscando conhecer elementos que constituem o sistema de
relações processuais que constitui o grupo formado por homens e mulheres
adultas que buscam escolarização no NEEJA de Passo Fundo, entendendo que
tal sistema é constituído por e constituinte de identidades singulares.
Nesse sentido, é importante destacar que a categoria "adultos",
especialmente quando associada à condição de alunos de EJA que se
apresentam como oportunidade de recuperação ou elevação de escolaridade,
remete a um grupo de sujeitos que compartilham um certo lugar social,
caracterizado pela condição de adultos, de excluídos dos processos regulares de
escolarização e de membros de determinados grupos culturais.
No que diz respeito aos grupos culturais a que pertencem esses sujeitos,
têm sido descritos como bastante homogêneos, compostos, primordialmente, por
cidadãos de baixa renda, à margem do trabalho, da moradia, do lazer, da saúde,
da educação; migrantes que chegaram às grandes metrópoles provenientes de
áreas rurais empobrecidas; filhos de trabalhadores rurais não-qualificados e com
baixo nível de instrução escolar (muito freqüentemente analfabetos), com
passagem curta e não sistemática pela escola e desempregados ou inseridos no
mercado de trabalho em ocupações urbanas não qualificadas, após experiência
como trabalhadores rurais na infância e na juventude. (Di Pierro, 2003; Haddad,
2000; Oliveira, 2001; Ribeiro et al., 1992; Arroyo 2000).
94
Entretanto, os dados obtidos na fase preliminar da investigação em pauta
apontam elementos que configuram diferenças daqueles que tipicamente
descrevem as pessoas adultas alunos da EJA. Nesse sentido, a primeira
diferença que procuro apresentar é que são generificados, ou seja, são sujeitos
que se identificam social e historicamente como masculinos e femininos,
formas de identificação que imprimem características diferentes, como
grupos culturais. Portanto, opto por apresentar os dados que permitem traçar um
perfil dos sujeitos da pesquisa em percentuais, separados por gênero,
43
na
perspectiva de visualizar características particulares dos homens e das mulheres
da pesquisa. Assim, apóio-me no argumento de Scott (1990), de que “o conceito
de gênero foi criado para opor-se a um determinismo biológico nas relações entre
os sexos, dando-lhe um caráter fundamentalmente social”.
Dessa forma, é possível, através dos dados, visualizar as marcas históricas
de uma sociedade patriarcal que colocou as mulheres à margem dos processos
de escolarização. Segundo Moraes (2002), “a mulher foi impedida durante vários
anos de ter a própria vida profissional, estudar significava não ser boa mãe”, como
se pode observar num dito popular brasileiro do final do século XIX:
Menina que sabe muito
É menina atrapalhada,
Para ser mãe de família
Saiba pouco ou saiba nada (Costa, 1951 apud. Moraes, 2002,
p. 35).
Essas marcas podem ser expressas através de características como:
o NEEJA é a primeira experiência de escolarização na vidas de
muitas mulheres com idade acima de trinta anos, reafirmando,
43
Segundo Moraes (2005), gênero pode ser compreendido enquanto categoria introduzida ao
vocabulário, na década de oitenta, pelas feministas que avançaram na discussão até então
realizada desde a perspectiva biológica do sexo – feminino e masculino – para a perspectiva da
construção das especificidades sociais e culturais em relação ao homem e à mulher.
Segundo Salva (2006), a identidade de gênero pode se considerada uma construção sóciocultural
que vem sendo amplamente pensada nas últimas décadas. Ela contém algumas características
específicas que a definem: em primeiro lugar, é um fenômeno histórico, implica relações de poder
e por isso é hierárquico; é construído no cotidiano por meio das relações familiares, institucionais,
de amizade, de trabalho; varia de acordo com o meio cultural, etário, de etnia, religião, grupo
social; é relacional percebido através das relações construídas entre homens e mulheres; é
processual e pode modificar-se.
95
assim, dados estatísticos que identificam os índices de analfabe-
tismo mais altos entre as mulheres, com idade acima de trinta
anos;
44
são as mulheres que apresentam menor escolarização antes do
NEEJA em relação aos homens;
a maioria dos homens estudou em idade regular, permanecendo na
escola por pelo menos quatro anos (58% por mais de oito anos),
embora tenham abandonado os estudos antes de completar o ensino
fundamental. Com relação às mulheres, apenas 15% delas têm nível
de escolaridade correspondente ao ensino fundamental completo;
as mulheres apresentam um maior tempo fora da escola, em média
dez anos a mais que os homens;
menor número de mulheres casadas busca a escolarização,
caracterizando que os valores culturais mais tradicionais das
relações entre homens e mulheres, ligados à dominação masculina,
ainda são geradores de dificuldades para a mulher estudar na vida
adulta.
Outro aspecto que cabe salientar diz respeito à situação de trabalho, visto
que as questões salariais demarcam fronteiras entre homens e mulheres:
mais de 90% dos homens têm um rendimento mensal de até quatro
salários mínimos, ao passo que 57,4% das mulheres ganham até
dois salários mínimos e apenas 33,8% ganham mais de dois até
quatro, ou equivalente aos homens.
Entre as semelhanças de homens e mulheres, saliento, em relação às
condições de moradia, que quase a totalidade dos homens e das mulheres reside
com a família, em moradias de alvenaria, com água encanada, esgoto, coleta de
lixo, luz elétrica e pavimentação na rua; parte substantiva das residências é
própria. Também a questão da migração aparece com índices equivalentes (em
torno de 50%) para homens e mulheres, ambos migrando da zona rural do
Município de Passo Fundo ou municípios vizinhos.
44
Senso de 2000 – IBGE.
96
Os dados aqui apresentados mostram sinais de que algo está mudando e
que as mulheres caminham, mesmo que lentamente, rumo à sua emancipação,
visualizado através de configurações como:
a maior parte das pessoas que manifestaram interesse em participar da
pesquisa foram mulheres, talvez expressando nesse gesto o desejo de
conquistarem um espaço de escuta e de visibilidade;
as dificuldades que as mulheres enfrentam para buscar escolarização,
morando em bairros distantes, na zona rural e em outros municípios;
o grande índice de mulheres que se identificam profissionalmente como
inseridas no mercado formal de trabalho, com poucas se identificando
como “do lar” ou aposentadas.
Diante dos dados, saliento que tais especificidades se referem a um
pequeno universo, um recorte que considero significativo, capaz de apontar pistas
para continuidade do processo, a fim de se obter uma maior aproximação com a
totalidade e, conseqüentemente, conhecer melhor o mundo da Educação de
Jovens e Adultos a partir de seus protagonistas.
Assim, os dados também apontam para uma definição dos sujeitos dessa
pesquisa como homens e mulheres de classes populares. Aparentemente, são
trabalhadores (as), pais e mães de família, incluídos precariamente,
45
pouco
escolarizados. Porém, para além do visível, outros elementos são acrescentados,
ou, estabelecendo uma analogia com a rede, outros “nós” vão sendo tecidos
configurando as singularidades.
Então, apresentarei aqui as pessoas da pesquisa, que constituem e são
constituídas pelas redes acima descritas e que participaram mais intensamente
das demais etapas da pesquisa, relatando suas trajetórias de vida e, assim,
apontando os sentidos que encontram na escolarização.
45
A inclusão precária é uma expressão proposta por Martins (2002) para referir-se às pessoas que
estão incluídas no sistema capitalista, de forma precária, pois acredita que não há exclusões
consumadas, definitivas e irremediáveis, mas processos sociais excludentes. Portanto, o excluído
é “na melhor das hipóteses, a vivência pessoal de um momento transitório, fugaz ou demorado, de
exclusão-integração, de ‘sair’ e ‘reentrar’ no processo de reprodução social”. (MARTINS, 2002,
p. 46).
97
4.2 AS TRAJETÓRIAS TECENDO REDES: DA INFÂNCIA NEGADA À ADULTEZ
“PRECOCE”
“Gente Humana é processo, exige o trabalho
interativo de autoconhecimento”
Paulo Freire
Neste subcapítulo relato as trajetórias singulares de infância e juventude de
Oraceli, Olga, Odete, Sebastiana, Adão, Juarez e Gelson.
Justifico a opção de tais relatos pela densidade e diversidade de elementos
que apresentam ao falar de suas trajetórias de vida. De acordo com Marre (1991),
“a diversificação da amostra, ou seja, a escolha de um certo número de pessoas
bem diferenciadas, dentro de uma base comum, garante a possibilidade de
analisar de forma ampla a quase totalidade de aspectos a serem estudados” (p.
111).
Assim, inicio a apresentação das trajetórias de vida, fruto do que chamo de
uma “conversa desarmada”, entre mim e as pessoas da pesquisa – homens e
mulheres adultas que, ao relatarem suas vivências de infância e juventude,
mergulham em lembranças, num percurso de “...idas e vindas...”(Freire, 1998),
expressando seus vínculos com a história de um tempo onde lembrar significa
[...] perfilar o tempo. É trazê-lo às suas responsabilidades humanas.
Trata-se de assumir o tempo como medida humana, como História. Cada
um dos passos dados modifica o futuro e, simultaneamente, re-explica o
passado. É postura ante o presente, não se tenha dúvida... (Nogueira,
1993, p. 13).
Assim, o momento das entrevistas foi permeado por um espírito de
gentilezas, criando uma atmosfera agradável, cheia de calor humano e confiança.
Eles me confiaram recordações que os envolviam emocionalmente, às vezes
empenhando toda a sua pessoa, e expressa por colocações como:
Prô, isso eu nunca falei para ninguém”, ou “eu lhe conto isso porque é para a senhora.
98
Mesmo assim, a construção do vínculo de confiança com a pesquisadora
passou por momentos de questionamentos, como: O que devo falar? O que a
senhora quer ouvir? Que informações serão úteis para a pesquisa? A minha
reação a essas indagações foi de acolhida aos seus relatos de vida, tal qual
diziam de si e de suas histórias.
Segundo Bosi (2003), as hesitações, os lapsos e as incertezas das
testemunhas são sinais de autenticidade, no entanto ao silêncio do pesquisado
deveria corresponder o silêncio do pesquisador. De maneira semelhante, Barbier
(1993, p. 209) faz menção à escuta sensível que supõe uma inversão da atenção:
“Antes de situar uma pessoa em seu ‘lugar’, procuremos reconhecê-la em seu ser,
em sua qualidade de pessoa complexa, dotada de liberdade e de imaginação
criadora”. Eis os relatos:
a) Oraceli
“Minha infância foi muito braba, Deus o livre, de pé no chão
na roça, inverno, verão, tudo de pé no chão. Meus
brinquedos foi o trabalho na roça. Escola que era bom, nem
pensar”.
Oraceli nasceu na zona rural do município de Planalto, no estado do Rio
Grande do Sul, e é a terceira filha de uma família de dez irmãos. Não aprendeu ler
e escrever na infância em virtude da rigidez do pai.
O pai era muito brabo, dizia que menina não precisava estuda, o homem tem que lê pra
ensina a mulher, pra sabe as coisa. E ele era brabo demais, dizia que menina tinha que
trabalha na roça não podia estuda, nós nunca estudamos, não fomos um dia na aula
quando nós era menina. Os irmão homem estudo na aula da minha mãe.
Ler e escrever significava um ato de desobediência ao pai, de modo que,
diante da situação, restava-lhe obedecer, mesmo que estivessem se privando de
conhecer. Para além da determinação paterna, tal comportamento expressa os
99
traços de uma cultura centrada no patriarcalismo,
46
no qual a família tem o
controle exercido pelo pai.
Meu pai dizia: Menina não é pra andá na estrada, vai aprende lê e escreve pra fazê
bilhete pra namorado. Então daí nós não aprendemos, não aprendemos nada, nada
mesmo.Tenho uma irmã que nem conhece dinheiro. A outra daí também não conhece
nada e elas não foram no colégio porque a gente obedecia o pai.
Segundo Souza (1834) apud Moraes (2002), “muitas pessoas em várias
partes do Brasil, consideravam crime o fato da mulher ser alfabetizada, porque se
fosse capaz de ler ‘estaria apta a receber cartas amorosas’” (p. 35). Assim, o
patriarcalismo solidificou o acesso à escolaridade somente para homens e foi
institucionalizando o domínio do homem sobre a mulher na vida social.
Cabe também destacar aqui a atitude paradoxal assumida pelo pai de
Oraceli, cuja mãe, sua esposa, era alfabetizada e professora, ao passo que ele
era analfabeto. Talvez para ele isso significasse “perda de poder” em relação à
esposa e, assim, centrava todo o controle patriarcal sob as filhas. Nesse sentido,
a mãe, mesmo na condição de professora, não conseguiu sair da condição de
opressão imposta pelo marido. Talvez tenha lhe faltado consciência de suas
possibilidades por viver adaptada e imersa na engrenagem dominante imposta
pelo modelo patriarcal.
Nesse sentido, cabe lembrar Freire (1981) ao falar que o oprimido “é aquele
que ‘hospeda’ o opressor dentro de si, assumindo uma atitude fatalista de
aceitação de sua sina” (p. 56).
Para Oraceli, ser menina significou receber uma educação diferenciada e
discriminadora. Segundo Sacristán (2005), tal desigualdade entre os sexos é
reflexo de outras desigualdades, construídas historicamente, definindo padrões e
formas de comportamento,entre eles levando a definir a figura do “aluno”.
A figura do aluno e toda a cultura que a define foi uma construção que se
referia antes mais aos homens do que às mulheres na história da
escolarização. A mulher tem acesso ao sistema escolar na idade
46
Patriarcalismo é também compreendido como o arranjo de gênero no qual os homens formam o
grupo dominante. [...] forma de designar o exercício social do patriarcado (Moraes, 2002, p. 21)
100
moderna, muito mais tarde que os homens, e quando nele ingressa, o faz
num subsistema diferente criado para ela, segregado dos homens (p.
126).
Relata que sua infância foi permeada por muita pobreza, pois eram donos
que uma pequena propriedade rural, mas o que lá produziam não era suficiente
para o sustento da família. Muitas vezes faltava-lhe o alimento; então, buscavam o
trabalho como “peões” nas propriedades vizinhas para consegui-lo.
Era só trabalha na roça, e a gente foi bastante pobre, pobre mesmo, bem pobre, não
tenho vergonha de contá, nós era pobre, pobre, que tinha que trabalhá de dia pra come
de noite. O dia que trabalhava de peão ganhava aquela comida, vinha pra casa fazia
aquela comida, comia de noite e ia dormi. E no outro dia trabalhava de novo, daí
trabalhava pra nós, trabalhava uma semana fora de peão, depois ganhava comida, daí
vinha e ficava trabalhando em casa pra nós na roça plantando.
Ao fazer esse relato, senti-a emocionada, lembrando que a mãe torrava
feijão no fogo para que comessem, porque servia para matar a fome e também
aumentar a força para trabalhar na roça. Talvez o que Oraceli sentisse fosse
semelhante ao que Freire (2003) relata da fome de sua infância:
Fome real, concreta, sem data marcada para partir [...], a que chegava
sem pedir licença, a que se instala e se acomoda e vai ficando sem,
tempo certo de se despedir. Fome que se não amenizada, como foi a
nossa, vai tomando o corpo da gente, fazendo dele, às vezes uma
escultura arestosa, angulosa (p. 39).
Além das dificuldades de sobrevivência que enfrentavam, outras
dificuldades se colocavam, como se proteger do frio, visto que roupas e calçados
eram raros. Usava roupas que eram feitas pela mãe, com tecido de “bolsas de
farinha” doadas por vizinhos, e seus calçados resumiam-se a um par de chinelos
que dividia com a irmã mais nova para ir à missa uma vez por mês.
Em relação às poucas brincadeiras que lembra, relata que brincava de
boneca, mesmo não tendo bonecas, utilizando espigas de milho enroladas em
pequenos panos e imaginando ser mãe, tia..., encenando com as irmãs. Esse fato
demonstra traços da criatividade infantil emergindo mesmo em espaços e tempos
de negação da infância.
101
Ao falar da morte do pai, demonstra tristeza no olhar e expressa palavras
carinhosas como:
O pai era assim exigente, mas era um homem bom, e também morreu cedo, com
quarenta e poucos anos.
Mas reconhece que sua vida e a de sua família mudaram após a morte do
pai:
Depois que o finado pai morreu, nós viemos embora. Vendemos as terra na Farinha
Grande no Planalto e daí compramos perto de Nonoai, onde tinha mais comércio, já não
era tão longe dos vizinhos. Daí a minha mãe começou comprá as coisa pra nós, calçado,
roupa, pra não anda de pé no chão e nem com roupa de saco.
Ao falar de seu tempo de infância após a morte do pai, expressa um certo
sentimento de que o tempo para aprender a ler e escrever era somente aquele da
infância “negada” pela rigidez do pai e a submissão da mãe.
Só que daí na aula não pude mais ir porque nós não tinha mais idade de ir na aula.
Continuemos assim, daí pra nós faze o titulo de eleitor a mãe ensinava de noite. As mais
nova foram pra escola, a mãe boto daí depois que o pai morreu.Tem quatro mais
pequena, aquelas sabem lê, sabem escreve.
Em relação à juventude, considera que não a teve, pois entende que os
jovens precisam ir a festas, bailes, passear, fazer amigos, atividades que não
fizeram parte de sua vida.
Porque na juventude se sai pra passear, se divertir, sai...vai nos baile, vai nas festa, para
“viver a juventude”.
Para Oraceli a infância e a juventude se dão sem “ritos de passagem”, não
se separando muito das vivências da infância, pois nas diferentes fases de vida
encontravam-se como centralidade a luta pela sobrevivência e as privações dela
decorrentes, associadas à rigidez familiar. Todavia, considera que o casamento
colocou um final na sua juventude, talvez o ingresso na vida adulta, que não
mudou sua condição de dificuldades e de submissão, pois casou com uma pessoa
que conheceu na reza do terço. Então, foi morar com a família do marido, logo
vieram os filhos e as dificuldades aumentaram.
102
Segue sua trajetória buscando superar as dificuldades a cada dia, mas
também sonhando com um outro tempo em sua vida, um tempo de amizades, de
encontros, mas também o de viver e se apropriar da cultura letrada. Talvez
carregue uma esperança no mesmo sentido que Freire (2003): ”No meu caso,
porém, as dificuldades que enfrentei, com minha família, na infância e na
adolescência, forjaram em mim, ao contrário de uma postura acomodada diante
do desafio, uma abertura curiosa e esperançosa diante do mundo” (p. 37).
b) Olga
“Infância assim de brinca, eu não tive. Muito pouco, talvez no
domingo de tarde um pouquinho”
.
Olga nasceu em na zona rural do município de Tapejara; aos sete anos de
idade foi morar no município de Sertão com sua família, também na zona rural.
Relata que o novo local de moradia era cercado por mato. Então, por ser a filha
mais velha de uma família de seis irmãs, era ela quem ajudava o pai.
Me lembro que eu estava sempre junto com meu pai, porque a minha mãe era uma
mulher muito doente.
A mãe de Olga, além de trabalhar na roça, paria anualmente e passou
longos períodos no hospital, muito doente. Então, coube a ela a realização das
tarefas domésticas – lavar roupa, fazer pão – e o cuidado com as irmãs menores.
Para dar banho nas irmãs, ela usava a gamela, e a água era buscada fora de
casa. O pai contratava peões para trabalhar em suas terras e Olga cozinhava
duas vezes por dia para todos eles. Segundo ela, não teve escolha, foi criada “ali
– referindo-se à rigorosidade da educação recebida do pai. Passou muitos
medos, um deles foi o de tirar leite, mas realizava a tarefa mesmo assim, pois
tinha que fazê”. Aos domingos não podia ir às matinês na comunidade, porque
tinha de capinar, de ajudar na colheita do trigo e do feijão, conforme as cobranças
de seu pai.
Então eu fui tanto em casa como na roça sabe. Eu sempre trabalhei.
As vivências de Olga configuram o modelo de família tipicamente de zona
rural, onde o trabalho da mulher se divide entre as tarefas domésticas e do
103
cuidado com o plantio e a colheita, enquanto que o homem preocupa-se com o
cuidado de animais, da lavoura e com a vida pública.
Essas práticas são consideradas pelas famílias como naturais, pois fazem
parte da cultura rural. Segundo Bosi (2004),
[...] essa cultura poderá nos ensinar a imprimir em nossa vida,”a
consciência de grupo e a responsabilidade que advém dela, a referência
constante à práxis e, afinal, a universalidade. [...] E, quem sabe, a nossa
cultura ganhará o que perdeu: o trabalho manual, o cultivo da terra, a
ligação religiosa com o Todo (p. 19).
Quanto à escola, relata que nunca a freqüentou na infância, porém, quando
tinha quinze anos, o pai passou a hospedar em sua casa uma professora que
vinha de Erechim (cidade vizinha) para dar aula numa escolinha perto de sua
casa. Nesta escola estudavam suas três irmãs mais novas e os filhos da
vizinhança. Então, para Olga as aulas eram ministradas à noite em sua
residência. Tal situação considerou como de pouca produtividade, por causa de
seu cansaço por trabalhar muito durante todo o dia. Eis o relato de Olga:
Quando comecei a tê aula, acho que tinha meus quinze anos, trabalhava, daí meu pai
seguro a professora em casa. Os pais dos alunos tinha que segurá a professora em casa
porque não tinha onde parar, ela vinha de Erechim na época. E daí a gente estudava à
noite, estudava bem de noite, pouca coisa né. E tu tava cansado, durante o dia
trabalhava direto. Então aprendi...faze o nome, um mais um como diz o outro. Eu...tanto
que não tenho boletim em parte nenhuma. Eu aprendi na escola da vida, minha filha!
Agora faz dois ano que to aqui.
Olga, ao falar de sua infância, deixou lágrimas correr pelo seu rosto,
expressando saudade de um tempo de poucas brincadeiras, mas de muitas
criações. Tais sentimentos mostram que o seu tempo de infância foi marcado pelo
trabalho, mas, mesmo assim, significou um tempo de lembranças boas.
Tenho saudade, minha filha! Que a gente brincava assim na época tinha potreiro, tinha
muito guamirim, muita coisa de fazer casinha, mas nós já era quase mocinha. Hoje me
lembro assim, o que a gente brincou! Eu digo pras minhas filhas, minha neta, que vocês
tiveram brinquedo, tiveram boneca. Nós as nossas bonecas eram espiga de milho, a
sombrinha pra brincá era uma folha de abóbora e o prato que quebrava fazia os pratinhos
pra brincá de casinha.
104
Em relação à juventude, Olga inicia o relato com um profundo suspiro, uma
pausa e as palavras:
Ah! A juventude bah! Trabalho minha filha! Baile que era o bom, nem pensá, já dá pra
começa por ali.
Então passa a relatar que sempre gostou de baile, mas na época da
juventude
47
freqüentou poucos, pois seus pais não a deixavam ir se não fosse
acompanhada por eles. Como a mãe era muito doente, era difícil acompanhá-
la.Também considera que o pai sempre a tratava com muita rigidez:
O meu pai era uma pessoa assim, como é que vou te dizer, uma pessoa assim, na
época, muito machista sabe. Aquilo não prestava, aquilo era feio, aquilo lá não dava e
pronto. A gente só andava assim, sabe, se cuidando. Tinha medo, medo do pai que
Nossa Senhora.
Então, relata que seus únicos divertimentos eram ainda o terço no domingo
à tarde e a colheita de trigo, que culminava com um baile.Na colheita de trigo
reuniam-se em sua casa os primos e os vizinhos para ajudá-los nesse ofício, pois
quem plantava era ela e o pai, mas a colheita era feita em sistema de “mutirão”.
Então, quando terminava a colheita do trigo acontecia um baile na comunidade,
do qual todos participavam; neste momento seu pai a acompanhava.
Os relatos de Olga me remetem à minha infância, a qual vivi também na
zona rural, onde a vizinhança e o parentesco constituem laços fortes, vínculos de
amizade que se entrelaçam de geração a geração formando redes de socia-
bilidade e solidariedade.
Como testemunho desses vínculos, Olga expressou que nesse período de
vida, apesar do trabalho pesado, as relações de amizade e companheirismo
aliviavam as exigências físicas que o trabalho causava. Eis o relato:
Daí colhia cem, cento e vinte saco só com foice, corta e recolher. Eu trabalhava dia e
noite, até horas da noite, de madrugada a gente nem sabia a hora porque não se tinha
relógio, não se tinha rádio. Talvez ia pra roça quatro hora da manhã. Mas era divertido ia
47
Olga considera juventude a idade entre 15 e 21 anos.
105
todo mundo cantando, nem sentia o cansaço, e também tinha aquela pressa em terminar
para acontecer o baile da colheita.
E encerra seu relato dessa fase de vida com a frase:
Minha infância foi assim, até que arrumei um noivo, filho de um vizinho, casei. Mas já
tinha 21 anos, não era mais tão jovem.
c) Odete
“Daí a mãe pego e disse assim: ó... Dona..., se a senhora me
ajudá eu lhe dou uma filha... e eu quero uma casa, melhor,
pra morar com os outros filhos... E eu fui a escolhida”.
Odete é natural de Passo Fundo, tem 43 anos, é casada e tem quatro
filhos. Identifica-se profissionalmente como trabalhadora rural que também reside
na zona rural de Passo Fundo.
Ao falar de sua infância, mostra uma trajetória marcada por separações e
dificuldades, pois era a terceira filha de doze irmãos. Então, como seus pais não
tinham condições econômicas para sustentá-los, encontraram como solução
entregá-los para famílias que pudessem criá-los. Relata que sofreu muito com a
separação dos irmãos, pois lembra com emoção o tempo que viveu com os
irmãos e as brincadeiras de infância. Nesse momento, após uma pequena pausa,
Odete lembrou e passou a descrever o lugar de suas brincadeiras e os brinquedos
de sua infância, expressando tristeza ao falar de seus irmãos.
Ah, a gente brincava! Tinha um barranco, tinha uns valetão lá, nós colocava aqueles
papelão na bunda e escorregava, tinha boneca, também, de pano, cavalinho de pau com
um cabo de vassoura. Mas foi um tempo bom que durou pouco, pois acabamos cada um
num canto. Tem irmão que nunca mais vi.
A situação vivida por Odete, segundo Sarti (1996), foi no passado um
"padrão legítimo de relação com os filhos", a circulação de crianças "permite uma
solução conciliatória entre o valor da maternidade e as dificuldades concretas de
criar os filhos" (p. 57).
106
Nesse sentido, Fonseca (1995) assinala que no Brasil, mesmo nas classes
médias, a família moderna, nuclear, fechada, alheia à influência do clã, não é tão
comum. Diz ainda que a fluidez dos limites dessa família produziu, por volta de até
os anos 60, "um número impressionante de adoções informais" (p. 39).
Dessa forma, de acordo com Fonseca (1995) e Sarti (1996), a circulação de
crianças é uma prática secular, recorrente e dinâmica nas camadas de baixa
renda urbanas, incompatível, por assim dizer, com a visão de mundo, o estilo de
vida, das camadas médias.
Odete, ao falar de si no momento da entrevista, fez interrogações como:
Não sei se devo dizer? Mas, vou contar prô, porque a senhora é uma pessoa legal.”
Também acho que isso que vou contar é interessante para a senhora saber quem eu
sou, mesmo.
A minha reação a essas indagações foi de acolhida e de respeito a suas
escolhas, como recomenda Portelli (apud MONTENEGRO, 2003): “uma das
condições do entrevistador é que ele ‘aceite’ o entrevistado e de prioridade ao que
este deseja contar” (p. 22).
Então, seguiu relatando que sua mãe a trocou por uma casa, pois era a
mais “grandinha” das meninas e podia ajudar nas tarefas domésticas, fato que
despertou o interesse de uma senhora que vivia sozinha e que depois Odete
passou a chamar de “madrinha”.
Então a mãe conheceu os Vicentinos. São aquelas pessoas que ajudam os pobres. Aí a
minha mãe conheceu a minha madrinha. Aí a minha madrinha disse: eu quero ela pra
mora comigo e ajudá ela. Aí eu fui morá com a minha madrinha. Devia ter uns oito anos,
nove. Aí a madrinha me deu estudo. Estudei até a quinta série. Em troca, minha
madrinha deu uma casa com terreno ali no bosque, onde meu pai mora até hoje.
E o relato prosseguiu, permeado de pausas. Passou a narrar como fora sua
juventude e casamento, considerando que sua madrinha era muito exigente.
Então precisava trabalhar muito para comprar roupas, perfumes, calçados, coisas
para embelezar-se. Esse fato fez com que parasse de estudar ainda com catorze
anos.
107
Eu parei porque eu tinha que trabalhar pra me sustentá. Porque, se continuasse
estudando, eu não tinha aquela condição de vida que queria, minha madrinha me dava
só comida e roupas que vinha dos padres. Eu não tinha roupa. Eu pensava menina
jovem tem que andá arrumadinha. As minhas amigas, todas eram pobres. Mas eu já era
um pouco mais vaidosa. Eu queria andar bem arrumadinha, cheirosa, ter xampu. Então
tinha que trabalhar, e parei de estudar.
Mesmo assim, fala da escola como algo muito bom que aconteceu em sua
vida, lembrando com carinho de uma professora e das coisas que aprendeu na
escola.
Sabe que eu lembro assim bastante, tenho saudade daquele tempo, eu aprendia com
facilidade. Eu tinha uma prô que excelente, até quando eu vejo ela, eu adoro encontrá
ela, e a gente conversa. Essa lembrança que eu tenho sabe, que é uma lembrança boa
dos meus estudo.
Ao falar dos seus quinze anos, novamente as lágrimas correm pelo seu
rosto, pois fala de uma grande paixão – “uma paixão de adolescente mas pra
valer, só que ela também destruiu minha vida” – e passa a contar que conhecera
um rapaz e encontrava-se com ele para namorar sem que sua madrinha
soubesse. Porém, quando ela ficou sabendo, colocou-a para fora de casa. Então,
ao procurar o namorado, ele também a abandonou, restando-lhe como saída ir
morar com sua irmã numa fazenda no interior de Passo Fundo, onde conheceu
uma pessoa 35 anos mais velha que ela, casou e teve seus filhos.
Nesse contexto, um “erro da juventude” não era visto como um deslize
transitório, facilmente resgatável. Representava, antes, uma entrada de mão única
para uma trajetória de vida pouco invejável.
d) Sebastiana
“Sempre foi assim, não sei por que eu tinha bastante
dificuldade. Os meus pais também eram analfabeto, o meu
irmão também”.
Sebastiana é casada, tem dois filhos e uma filha, tem 52 anos, natural de
Passo Fundo, RS. Relata que passou sua infância na zona rural, pois sua mãe
trabalhava como empregada doméstica na cidade e não tinha como sustentá-la.
Então, aos cinco anos de idade foi adotada por um casal que residia numa
108
comunidade próxima ao município de Marau – RS, chamada Sede Independente.
Lá Sebastiana viveu sua infância, juventude e parte da vida adulta, casou e teve
seus dois filhos, separou-se do esposo e também acompanhou seus pais na
velhice.
Ao falar de sua infância, reporta-se às dificuldades que enfrentou por viver
longe de sua mãe legitima, mesmo tendo muito carinho dos pais adotivos. Fala
também de seus medos, principalmente das noites escuras, pois na época não
havia luz elétrica na zona rural. Mas também lembra com satisfação as
brincadeiras que fazia com o irmão adotivo nas noites de lua cheia - pega-pega,
cinco-marias, esconde-esconde - e dos “causos de assombração” que seu pai
contava aos vizinhos que os visitavam nas noites de verão.
Sebastiana, ao falar da escola, coloca-a num lugar de grande significado
em sua infância:
Lá tinha outras meninas para brincar, gostava do recreio, das merendas e as professoras
eram boazinhas. Aprendi a fazer amizade, lembro com saudade daquele tempo.
Nesse sentido, a escola foi um lugar de fazer amigos, pois relata que
apresentou muitas dificuldades para “aprender” o saber escolar; por essa razão,
sua mãe não lhe permitiu que continuasse freqüentando a escola.
Só que eu estudei, assim, até os doze. Depois daí eu tive que sai da escola. Minha mãe
me tiro da escola. Porque eu ia um pouco...eu ia até a terceira, voltava pra segunda. Daí
da segunda passava pra terceira, voltava pra segunda.
Ao falar de suas dificuldades de aprendizagem, ela busca encontrar uma
razão ou as possíveis causas, falando da condição do pai, da mãe e do irmão
como analfabetos.
Sempre foi assim, não sei por que eu tinha bastante dificuldade. É que os meus pais e
meu irmão eram analfabetos. Eles botaram meu irmão no colégio mas ele também não
aprendeu. Daí tiraram ele do colégio. Daí eu fiquei só até a terceira série.
O relato de Sebastiana me remete ao que Lahire (2004) salienta em
relação à compreensão dos resultados e dos comportamentos escolares da
109
criança na relação de interdependências familiares e constituintes de esquemas
de percepção, de julgamento, de avaliação e a maneira pela qual funcionam em
formas escolares de relações sociais.
De certo modo podemos dizer que os casos de “fracassos” escolares são
casos de solidão dos alunos no universo escolar: muito pouco daquilo
que interiorizaram através da estrutura de coexistência familiar lhes
possibilita enfrentar as regras do jogo escolar [...]. Quando voltam para
casa, trazem um problema (escolar) que a constelação de pessoas que
os cerca não pode ajudá-los a resolver: coragem, sozinhos, problemas
insolúveis (p. 19).
Também cabe trazer a posição de Freire (2003):
Estou convencido de que as dificuldades referidas diminuiriam se a
escola levasse em consideração a cultura dos oprimidos, sua linguagem,
sua forma eficiente de fazer contas, seu saber fragmentário do mundo de
onde afinal transitariam até o saber mais sistematizado, que cabe a
escola trabalhar (p. 41).
A saída da escola, para Sebastiana, deu-se com muita dor, pois relata que
aprendia com muita dificuldade, mas gostava de estar na escola. Sonhava em ser
professora, mas, ao sair, viu que seu sonho não se realizaria mais.
Eu aprendia assim aos pouquinhos, mas sonhava em ser professora, quando tive que
sair fiquei muito triste... Agora nunca mais ser professora.
Relata que a obediência e a submissão aos seus pais adotivos foram a
forma que encontrou para retribuir o carinho e dedicação que tiveram para com
ela ao criá-la. Sentia-se muito grata por ter uma família e uma casa para morar.
Por essa razão, aceitou casar com uma pessoa escolhida pelo pai, aos catorze
anos de idade.
Já que não servia para o estudo, o pai queria me amparar ...me restou casar com um
homem que meu pai escolheu...eu tinha só 13 anos quando casei, com 14 já era mãe.
O desejo de seu pai de vê-la “amparada” não se concretizou, pois seu
casamento foi permeado por muito sofrimento, conseqüência das situações de
alcoolismo do marido. Então, aos 16 anos, já mãe de dois filhos, foi abandonada
110
pelo marido, situação que a fez voltar à casa de seus pais adotivos, onde criou
seus filhos e cuidou dos pais até a morte.
e) Adão
“A minha vó era a única que incentivava a gente a estuda. E
ela fazia força e lutava, até que consegui, até a quinta série”.
Adão é casado, tem 53 anos, pai de dois filhos, natural do município de
Sertão – RS. Viveu sua infância e juventude na zona rural desse município e
atualmente trabalha numa multinacional instalada na cidade de Passo Fundo –
RS, como operador de máquinas, e reside no bairro Dona Júlia na mesma cidade.
Ao falar de sua infância, relata que esse período de sua vida foi permeado
pelo carinho da avó e a rigidez do pai, apresentando como centralidade de seu
relato a sua relação com a escola. Adão foi criado por sua avó materna, para lhe
fazer companhia, desde muito pequeno, até os onze anos, por ser o filho mais
velho de uma família de seis filhos.
Ao falar da avó, demonstra que estabeleciam uma relação de grande
carinho e respeito, reconhecendo sua dedicação e incentivo para que
freqüentasse a escola. Relata as dificuldades que ela enfrentou para o “educar” e
o manter na escola, pois
eu era terrível, então aquelas primeiras aula, fui expulso, daí não queriam mais me pegá
no colégio, porque...era ruim, brigava fazia folia.
Considera que só conseguiu mudar graças à exigência carinhosa da avó e
à acolhida de uma professora. E então, mesmo tendo de percorrer 16 Km por dia
para ir e voltar da escola, usando como meio de transporte o cavalo, conseguiu
concluir a 5ª série do ensino fundamental, sendo esse, na época o grau máximo
oferecido por sua escola.
A minha vó insistiu muito para me aceitarem na escola. Aí uma professora, a professora
Nelda, disse: Eu pego ele, pode mandá. E ela conseguiu. E ela conseguiu me domá
111
mesmo. Depois eu não vou dizer que era um dos melhores aluno, mas consegui me
comportá bem.
Nesse sentido, pode-se perceber que Adão e sua avó estabeleciam uma
relação de cuidado recíproco, permeado por afeto e atenção. Talvez tenham sido
esses vínculos que tenham lhe atribuído o sentidos não encontrados antes para
freqüentar a escola e, a partir dela, estabelecer novos vínculos, entre eles com o
saber escolar.
Aos onze anos de idade, passou a viver novamente com seus pais, em
razão da morte da sua avó. Ao fazer esse relato, fez muitas pausas e disse:
É difícil esquecer minha vó, ela foi uma mãe...mais que uma mãe”.E segue relatando que
o pai.” Não me deixou mais estuda, que era pra mim entra no colégio na cidade, porque
lá fora só tinha até a 5ª série, a vó tinha arrumado vaga pra mim na cidade, mas ela se
foi e pai me levou pra roça”.
Então, aos quinze anos Adão saiu de casa e foi em busca de trabalho na
cidade de Sertão - RS, mas não voltou mais para a escola em sua juventude. Ao
falar dessa fase de sua vida, expressa que lhe fez falta o olhar orientador.
Tava só trabalhando, não tinha tempo pra estuda. Daí a gente se cria longe de alguém
que segure a gente um pouco ...aí me peguei na bebida.... me casei, aí me comportei um
pouco, depois virei pra bebida de novo. Aí consegui me livra dela. Hoje já fazem
dezenove anos que tô livre da bebida.
Para Adão, em seu relato expressa que a escola e a presença da avó
poderiam ter lhe “poupado da bebida”. Dessa forma, reafirma a importância do
afeto, do cuidado e do olhar carinhoso do adulto nessa fase de vida, bem como a
escola como lugar de constituição humana.
f) Juarez
“A minha infância, eu não tive infância. Foi só trabalha, só
trabalhá”.
Juarez tem sessenta anos, é casado, tem quatro filhos, é natural de Passo
Fundo. Viveu sua infância e juventude na zona rural, atualmente reside num bairro
112
de Passo Fundo e trabalha como motorista de coletivo urbano. Ao falar de sua
infância, refere-se a uma fase de muito trabalho,na qual não existia lugar para o
“brinquedo”, e também de muitas “andanças” acompanhado seu pai nas
tropeadas, o que o privou do convívio com a mãe e a irmã, bem como da
freqüência à escola.
Eu vejo as criança brincando hoje eu fico dando risada porque eu me criei no campo, nas
tropeadas, não tive essa de ser cuidado pela mãe e ir pra escola com os irmãos. Desde
sete ano eu tive que ajudá meu pai.
Entretanto, ao mesmo tempo relata com orgulho o auxílio que prestava ao
pai nas tropeadas e as aprendizagens que teve, considerando ter sido
recompensado por não ter brincado, não ter o cuidado da mãe e ter freqüentado a
escola por períodos curtos e descontínuos.
Nós morava lá atrás daqueles campos. Meu pai tinha pouca terra e o serviço dele era
doma. Que antigamente tinha os domadores de burro... bicho xucro. Então ele domava e
saía pra vendê os bichos. Eu viajava muito pra São Paulo, Mato Grosso e Paraná com ele
de madrinhero de tropa. Trinta dia viajando pra lá e pra cá num lombo de burro. No Mato
Grosso fiquei dois anos com meu pai domando burro numa fazenda. Então conheci tudo
da lida de tropa.
Segundo Brandão (2001),
a educação existe onde não há escola e por toda parte pode haver redes
e estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a outra,
onde ainda não foi sequer criada a sombra de algum modelo de ensino
formal e centralizado. Porque a educação se aprende com o homem a
continuar o trabalho da vida. A vida que transporta de uma espécie a
outra, dentro da história da natureza, e de uma geração a outra de
viventes dentro da história da espécie, os princípios através dos quais a
própria vida aprende e ensina a sobreviver e a evoluir em cada tipo de
ser (p. 13).
Ao falar de seu “tempo de escola” na infância, relata que freqüentou muitas
escolas, pois cada viagem que fazia com seu pai interrompia seus estudos, e
muitas vezes não conseguia mais retornar no mesmo ano. Mas também lembra
que seu pai, sempre que chegava a um lugar onde pretendia ficar por mais tempo,
procurava uma escola para que retomasse seus estudos. Assim, fala da escola de
Dona Andreza, que freqüentou no Mato Grosso, na cidade de Campo Grande,
descrevendo-a como um lugar de aprendizagens e afetos.
113
Estudei no Mato Grosso, em Campo Grande, Escola Dona Andreza, foi muito bom. Fiquei
estudando até a quinta série, antiga. Porque daí não estudei mais. Acho que lá que eu
aprendi mesmo, também foi o lugar que fiquei por mais tempo.
Ao se lembrar da escola do “tempo antigo”, estabelece relação com o
aprendizado, que, segundo Nogueira (1985), “marca uma estreita relação entre o
que foi aprendido e o como se aprendeu”, que assumia um caráter rígido. Tal
rigidez constitui as imagens que faz da escola de antigamente:
Lá nós aprendemos lê meio à força. Antigamente, não sei se tu já viu falá, com uma
bordoada de pau na mão, a vara de marmelo. Então aluno que tinha, ele sofria muito. A
gente não, porque já vem de berço, a pessoa quando ela já é educada já vem de berço.
Mas eu vi muita coisa no estudo antigo, era meio rigoroso.
Segundo Nogueira:
A memória atual, estabelece sentido da educação para a pressentida
necessidade de escolarizar-se, atribui um valor de uso-bem-sucedido
àquele aprendido; essa atribuição vai definindo sentidos sociais
presentes àquele aprendido. Essas atribuições esclarecem para as
pessoas um entendimento sobre o antigo a partir de algum
desentendimento sobre o presente. [...] Afirma-se, hoje, a memória viva e
em trabalho de apreender-se; afirma-se sobre o tempo antigo, o valor e
os critérios que estão sendo repensados agora. É desse poder de afirmar
e criterizar que vai sendo erigido o sentido do aprendizado de hoje (p.
68) (grifo nosso).
Assim, como forma de “criterizar”, compara aquela escola com a que
freqüenta hoje, considerando que precisa de paciência e alguém que o ensine a
aprender.
Hoje, é uma maravilha. E tu sabe: quanto mais tu prensá o aluno é pior. Aí ele se sente
mal, não vai aprende, ele não consegue avançá. Então se você usa o jeito que vocês
usam hoje, com a paciência, esclarecendo, aí o aluno aprende. Eu acho o estudo de hoje
melhor que o antigo.
Ao falar de sua juventude, relata que aos quinze anos o pai resolveu mudar
de ofício e passou a se dedicar à lavoura. Esse fato o colocou novamente no
convívio com a mãe e a irmã, retornando para a sua terra natal. Desse período
lembra com entusiasmo das festas, dos bailes, dos namoros e dos jogos de
futebol de que participava. Considera ter “aproveitado a vida” na juventude, que
também foi uma fase que marcou a origem de sua profissão, relatando:
114
O pai comprou um caminhão, eu tinha uns 18 anos, já tinha ido pro quartel, então aprendi
a dirigir, e aprendi bem, que dirijo até hoje e ninguém me bate. Acho que se não fosse
meu pai me deixa dirigi o caminhão, hoje não teria o que tenho.
g) Gelson
“Eu vivi em Ijuí. No interior do estado, com meus pais, minha
família. Cedo a gente foi busca o trabalho, a gente era
pobre”.
Gelson tem 42 anos, é casado e pai de quatro filhos, natural de Ijuí, lugar
onde viveu sua infância. Ao falar de sua infância, comentou brevemente esse
período de vida, referindo-se a um tempo em que “só sabia brincar e correr.
Assim como os outros aspectos de sua história pessoal, seus relatos se fixam
num passado recente e no presente, principalmente nas suas conquistas a partir
da passagem pelo NEEJA.
Ainda sobre sua infância, refere-se ao seu papel de aluno:
Era um bom aluno, os professores que hoje encontro me falam que eu era muito bom
aluno. Eu...matemática, português, eu conseguia interpreta bem.
Assim, atribui aos seus pais o fato de não ter estudado:
A falta de pessoas que colocassem a mão e dissessem assim: Meu filho, tu tem condições
de ser mais! Não foi à toa que eu parei de estuda na sétima serie.
E assim conclui seu relato:
Minha infância foi só brincadeira, eu e mais dez irmãos, ninguém estudou. Tinha escola
mas o pai e a mãe não se importavam em exigir que a gente estudasse, todo mundo
sofreu como eu depois de grande.
Claudia Fonseca (2000) constatou em suas pesquisas etnográficas “que a
escola era, com freqüência, vista pelos pais como sendo sujeita à moralidade da
rua, isto é, um lugar onde ‘reinava a anarquia’ provocada por uma ‘juntada de
guris’ que extrapolavam as redes de inter-conhecimento dos pais” (p. 29).
Esse fato tinha como articulador o controle sobre a educação de seus filhos
e falta de confiança na educação escolar. Nesse sentido, a mesma autora refere
115
que “a aceitação da escola pública e a crença generalizada nos seus efeitos
benéficos, é uma das grandes mudanças no cenário brasileiro recente” (p. 30)
4.2.1 Os fios comuns que tecem as trajetórias: da infância à adultez
Ninguém deixa seu mundo, adentrado por suas
raízes, com o corpo vazio ou seco. Carregamos
conosco a memória de muitas tramas, o corpo
molhado de nossa história, de nossa cultura; a
memória às vezes difusa, às vezes nítida, clara, de
ruas da infância, da adolescência (...) a mão que se
apertou, o sorriso que se perdeu num tempo de
incompreensões, uma frase (...). Uma palavra por
tanto tempo ensaiada e jamais dita, afogada sempre
na inibição, no medo de ser recusado (...) (Freire,
1999, p. 32-33).
A epígrafe acima expressa como os fios foram se tecendo nas trajetórias de
vida dos sujeitos da pesquisa de forma singular,os quais se encontram em “nós”
comuns, quando falam de suas infâncias e juventudes vividas no meio rural,
permeadas pela rigidez familiar, pelo trabalho, pelo raro tempo para brincadeiras,
pela migração e pelas dificuldades que os distanciaram da escola. Esses
elementos tecem configurações dessas fases de vida, marcando o ingresso
precoce na vida adulta.
Paulo Freire, em sua obra Cartas à Cristina, ao relatar cenas de sua
infância e juventude, fala de um tempo de grande ambigüidade, expressa por uma
“geografia concreta” que interpenetrava dois mundos: o mundo do brinquedo e o
de homens antecipados de gente grande, às voltas com as necessidades de
sobrevivência da família.
Em nosso caso, havia algo mais vital – a fome a amainar. Isso não
significava, todavia, que não houvesse em nós também, ao lado da
necessidade que nos movia, o prazer da aventura. No fundo, vivíamos,
como já salientei, uma radical ambigüidade: éramos meninos
antecipados de gente grande. A nossa meninice ficava esprimida entre
o brinquedo e o “trabalho”, entre a liberdade e a necessidade (Freire,
2003, p. 44). Grifos meus.
Essa mesma geografia mapeia as histórias de infância das pessoas da
pesquisa, mostrando que as fronteiras entre as distintas fases da vida são tênues,
116
confirmando a inexistência de uma referência temporal para o ingresso na vida
adulta. A infância e a juventude foram aparecendo nos relatos de Oraceli, Olga,
Odete, Sebastiana, Adão, Juarez e Gelson como tempos próprios para freqüentar
escola, porém apresentam-se como um “desejo” não realizado, algo idealizado,
mas não concretizado nessas idades da vida.
A escola configura-se para essas pessoas como forma de ascensão social,
como parte de um projeto de vida que só a educação escolar pode possibilitar:
dominar o código da escrita, decifrar a leitura – entrar para o mundo letrado,
conquistar uma profissão. Entendem a entrada na escola como um rito de
passagem que lhes garante um outro status para si, por possibilitar o ingresso ao
“mundo do conhecimento”. No meio rural, a escola é lugar por excelência de
apreender saberes de um outro mundo, o urbano, que representa o lugar da
informação e de uma vida mais promissora. Essa concepção é articuladora da
migração do rural para o urbano.
Quando eu era mocinha queria muito ir para a escola para ser mais informada, saber as
coisas da cidade, porque não queria ficar a vida inteira na roça, com meu pai – (Olga)
A escola também aparece como um lugar de convívio entre crianças da
mesma faixa etária, como expressa Sebastiana:
Lá tinha outras meninas para brincar, gostava do recreio, das merendas e as professoras
eram boazinhas. Aprendi a fazer amizade, lembro com saudade daquele tempo.
Entretanto, esses mundos escolares idealizados e socialmente reprodu-
zidos não foram vivenciados ou foram vivências curtas e fragmentadas, pelas
pessoas da pesquisa. Assim, essas imagens de uma vida escolarizada as
acompanham na vida adulta e entrelaçam-se a outras exigências desses tempos
de vida, constituindo sentidos e fazendo retornar à escola. Desse modo, no
próximo capítulo apresentarei como as pessoas da pesquisa vivem a adultez, no
entrelaçamento entre os diferentes eventos da vida: o casamento a
maternidade/paternidade, o trabalho e a escolarização.
117
4.3 OS SUJEITOS E AS VICÊNCIAS DA ADULTEZ
“Pessoas às voltas com a vida”.
Mario Quintana
Ser um adulto é estar “às voltas com a vida”. Essa é a imagem de adultez
que busco compreender teoricamente no entrelaçamento com os relatos de vida
das pessoas da pesquisa.
As trajetórias até aqui relatadas mostram que o ingresso na vida adulta
varia conforme a "origem social, étnica, religiosa ou regional e as relações de
gênero”, de tal maneira que, para as populações mais empobrecidas, há uma
tendência, cada vez maior, de antecipação da vida adulta, também fortemente
observada no meio rural.
Também é importante observar que, dentre as investigações que têm sido
realizadas sobre juventude, as pesquisas de Marília Spósito (1997) demonstram
que
(...) ocorrem formas diversas de ingresso no mundo adulto, desde
aquelas marcadas pela antecipação de algumas práticas (sexualidade e
trabalho para alguns grupos de jovens) como a desconexão entre elas
(...) a (...) emergência de necessidades apontada pelos segmentos
juvenis não só voltadas para projetos futuros, mas cada vez mais
marcadas pela especificidade do momento presente. (p. 8).
Assim, podemos pensar que a vida adulta é constituída de muitas faces,
que se reconfiguram nas diferentes relações e tempos, ou, como na concepção
“melucciana”, que percebe a temporalidade humana em espiral, contendo o
círculo, o ponto e a linha, em que num único movimento sai e torna a si mesma,
porém num plano diferente, visto que há sempre uma transformação. Entendemos
que o modo como a temporalidade é pensada por homens e mulheres adultas
produz diferentes formas de perceber o mundo. Por isso, passamos a questionar
as concepções que apresentam as fases de vida como estanques e linearmente
constituídas, uma após as outras, delimitadas por faixa etária.
118
Fabrinni e Melucci (1992), ao discutir os ciclos de vida, afirmam que existe
uma seqüência temporal no curso da vida cuja maturação biológica faz emergir
determinadas potencialidades. Nesse sentido, é possível marcar um início da
juventude quando, fisicamente, adquire-se o poder de procriar; quando a pessoa
dá sinais de ter necessidade de menos proteção por parte da família; quando
começa a assumir responsabilidades, a buscar a independência e a dar provas de
auto-suficiência, dentre outros sinais corporais e psicológicos. Contudo, para o
autor, uma seqüência temporal não implica, necessariamente, uma evolução
linear, na qual ocorra uma complexidade crescente, com a substituição das fases
primitivas pelas fases mais maduras, de tal forma a cancelar as experiências
precedentes.
O autor defende a idéia de que os fenômenos evolutivos presentes nas
mudanças dos ciclos vitais são fatos que dizem respeito a cada momento da
existência, fazendo das mudanças ou transformações uma característica estável
da vida do indivíduo.
Deve ser reconhecido então que as características atribuídas ao adulto
maduro, que parecem referir-se a um tipo de estabilidade adquirida e
duradoura, não têm uma resposta efetiva na experiência de nenhuma
pessoa real. Os problemas que se encontram pela primeira vez na
adolescência: escolhas, dilemas, relação com mudanças contínuas, não
são superados na adolescência, mas iniciam a partir dela a fazer parte
do panorama existencial de cada um. São tensões atuais para cada
adulto às voltas com a vida (FABBRINI e MELUCCI, 2004, p. 7).
Dessa forma, entendemos a vida adulta como parte de um processo mais
amplo de constituição de sujeitos, que busca na infância e na juventude
elementos constituintes de especificidades que marcam a vida de cada um. E,
também, que esse processo é influenciado pelo meio social concreto no qual
interage e pela qualidade das trocas que este proporciona.
Nesse sentido, utilizo a expressão adultez precoce
48
no mesmo sentido
que Freire (2003) a utiliza para definir sua identidade infantil e juvenil – “menino
antecipado de gente grande”-, para definir um dos “nós comuns” expressos nas
48
Termo cunhado por Mariléia Golo de Moraes em dissertação de mestrado sob o título “Mulheres
das classes populares: histórias e saberes” defendida em 29/08/05.
119
trajetórias de vida das pessoas da pesquisa. Esses “nós” também assumem
configurações singulares, que expressam formas diferenciadas de descrever seus
tempos de vida.
a) Oraceli
“Viemo de ônibus, sabe o que eu tinha de mudança? Um
saco, daqueles branco de açúcar, com as minhas panela, os
forro de colchão, tinha tirado as palha, os travesseiros de
pena e os três filhos”.
Sobre o início desse período da vida, Oraceli relatou as dificuldades
enfrentadas por ela, o esposo e os filhos. Foi um período da vida marcado pelo
desenraizamento, pela itinerância, por privações, resignação e esperança.
Ao chegar em Passo Fundo, morou, inicialmente, na casa de parentes, “de
favor”, depois, em casa alugada, por um longo período. Relata que sua vida foi
permeada por privações, como a de ir a bailes e festas, para realizar o sonho da
“casa própria”:
Eu tenho vontade de sai. Tenho vontade assim de que...eu gostaria assim de sai. Gosto,
que nem sei de baile, mas tem que termina a casa.
O marido, logo que chegou em Passo Fundo, conseguiu trabalhar num
moinho da cidade, e ela, após um ano, também passou a trabalhar numa empresa
como auxiliar de serviços gerais. Essa condição lhes permitiu criar os filhos,
comprar um terreno e construir a sonhada casa.
“Construir um abrigo talvez tenha sido uma das atividades primordiais do
homem ao se ver assim constituído” (DUARTE Jr. 2003, p. 76). Uma casa serve,
em termos mais pragmáticos, para dar abrigo contra a chuva, o calor, o vento e o
frio, além de servir de refúgio. Mas também pode ser vista com uma conotação
mais afetiva e pessoal: a casa vista como o lugar próprio de um indivíduo, onde
tem a sua privacidade e onde a parte mais significativa da sua vida pessoal se
desenrola, representa uma extensão de emoções e sentimentos.
Para Oraceli, falar de sua casa é falar de si, pois seus relatos demonstram
que durante muitos anos de sua vida lutou, sonhou e conquistou uma casa para
120
abrigar sua família e os valores que ela agrega. Nesse sentido, reporto-me a
Roberto Damatta (2003), que se refere às casas como um lugar que
[....] são habitadas por famílias cujo núcleo é constituído de pessoas que
possuem a mesma substância. A mesma carne e o mesmo sangue que
legitimam um nome comum e sugerem interesses, tendências, bem
como um destino compartilhados. Isso se mostra nas “tradições da
família”, valores resguardados, respeitados e preservados (p. 11).
Esses valores são expressos por Oraceli também em gestos demonstrados
ao visitá-la por ocasião da entrevista, quando relatou os almoços e jantares que
prepara para reunir a família: filhos, noras e netos. Ao mostrar-me com detalhes
cada peça de sua casa e os móveis nela dispostos, histórias foram sendo
contadas das vivências partilhadas em família. Nesse momento, me pareceu que
sua vida presente é permeada de alegrias proporcionadas por sua família,
ofuscando, assim, a história de um passado marcado por muitas dificuldades.
Considera-se uma mulher de “sorte”, pois, mesmo sendo analfabeta,
nunca ficou desempregada.
Sou de sorte, desde que cheguei aqui nunca fiquei sem serviço, sou analfabeta, mas, sou
caprichosa, trabalho direitinho.
Oraceli utiliza o recurso da reafirmação do seu caráter virtuoso, de sua
capacidade de discernimento apesar de ser analfabeta. Segundo Armellini (1993),
isso é freqüente entre adultos analfabetos. Também procura demonstrar os seus
“dotes” na cozinha no preparo de um delicioso pão caseiro, que fizera para
partilhar com os filhos e netos. Ao falar de seu pão diz orgulhosa:
- Meu netinho adora meu pão, chega aqui pedindo: ‘vò tem um pãozinho?’ Já ensinei a
receita para a mãe dele, mas ele sempre prefere o meu.
Ao perguntar-lhe sobre como aprendera a fazer o pão, relatou-me que
aprendera com a vida, pois tinha que fazer o pão em casa para sua família porque
não podiam comprá-lo em padaria. Então, foi testando misturas, escutando o que
as vizinhas diziam sobre os “segredos” de preparar a massa do pão, até fazer o
pão que oferece aos filhos e visitas, como gesto de acolhimento.
121
Atualmente, continua trabalhando, cuidando dos netos e da casa com um
carinho especial.
b) Olga
“Eu casei já com 21 anos. Não era criança”!
Olga casou com 21 anos, com uma pessoa da vizinhança. Relata que a
comunidade rural onde viveu no passado era formada por duas famílias apenas, a
sua e a de seu marido; assim, os casamentos aconteciam entre essas famílias por
falta de “opção”:
Porque era nossa família, Dalssasso, os irmão do pai era...cinco ou seis, foro morá lá. E
a família deles, os Dezordi, também foro comprando terra lá, um pedaço cada um. E
foram umas quantas famílias. Então se reuniu lá Dalssasso e Dezordi. Então as família,
quase todo mundo...se casaram com a mesma família. Não tinha, a gente não saia assim
sabe, baile em outra cidade.
Após o casamento ficou morando com a família do marido por três anos,
cuidando da casa e do trabalho na lavoura. Quando passou a morar em Passo
Fundo, já tinha uma das filhas e estava grávida da outra. Ao falar das razões que
a trouxeram para a cidade, faz uma pausa e diz:
- Tava na hora de cuidar da vida sem pai e mãe.
Assim, deixa entender que fizeram uma escolha que significava uma nova
página em suas vidas, talvez tenha representado um momento de ruptura,
preconizado por Bosi (2004), em relação às mudanças que o matrimônio propicia.
Quem penetra um grupo familiar, através do matrimônio, por exemplo,
encontrará uma atmosfera à qual deve adaptar-se; uma unidade e
coesão que se defende o quanto pode da mudança. Essa atmosfera
própria, essa força de coesão lhe vem do fato de que ela representa uma
mediação entre a criança e o mundo (p. 423).
Relata, então, que a mudança lhe permitira muitas aprendizagens,
resultantes de sua inserção no mundo urbano, onde a família se restringe ao
122
grupo conjugal e aos filhos, incluindo cada vez menos parentes e amigos, como
era comum na vida rural.
Foi difícil, não conhecia ninguém, mas fui enfrentando, sentia saudade da colônia, mas
quando lembrava tudo que trabalhei lá, a saudade passava.
Inicialmente, não precisou trabalhar fora de casa e, assim, pôde
acompanhar o crescimento das filhas, pois o marido trabalhava como pedreiro e
carpinteiro. Porém, com o desejo de adquirir a casa própria, “ ter um teto nosso”,
resolveu abrir em sua casa uma sala de costura, ofício que aprendera com a mãe,
pois, quando “menina”, auxiliava-a a confeccionar roupas para a família, prática
comum no meio rural. Mesmo assim, sempre acalentou o sonho de trabalhar fora
de casa. Então, em 1974, por indicação de uma vizinha, começou a trabalhar na
UPF:
Aí depois em 74... é... dia 29 de julho de 74 eu comecei na UPF, intermédio duma
vizinha, que disse surgiu uma vaga e vou arrumá pra ti. Daí as menina já ficaram
grandinha, daí eu comecei lá. To lá desde 74.
Trabalha no almoxarifado da Faculdade de Odontologia da UPF e também
como auxiliar de atendimento. Ao falar de seu trabalho, demonstra ser dedicada e
envolvida com as atividades que lhe delegam:
Meu horário é sete e meia, mas sete e quinze eu já to lá, porque a gente tem que se
prepará por causo que eu trabalho na parte de Odontologia. Então, tem prepará já as
sala, as cadeiras e preparar já o material no balcão. Quando chega, já vem as criança,
chamá as criança das escola que chegam, coloco cada um em sua cadeira, depois vou
atende no almoxarifado dos acadêmico. É tudo comigo, tudo comigo.
Ao falar da aposentadoria, expressa que, mesmo participando de muitas
atividades na comunidade – a igreja e o DAATI , sentirá muita falta de seu
trabalho:
Eu penso assim: Meu Deus, o que eu vou fazer? Porque é uma vida que eu tenho dentro
da UPF. E tou tão acostumada com isso que parece que é a minha casa”. Mas sei que
vou fazer 70 anos e não poderei ficar.
Olga é viúva há 18 anos, mora sozinha, suas filhas estão casadas e moram
em outras cidades. Tem duas netas, que eventualmente a visitam, mas não se
123
sente solitária. Além de seu trabalho, é presidente do DAATI e participa da
diretoria da igreja e da associação do bairro.
Eu participo da igreja, tem associação de bairro, também to na associação, sô presidente
do DAATI... e ainda tiro tempo pra vim na escola.
Fala de seu bairro com grande propriedade e orgulho por acompanhar e
contribuir para o seu crescimento, pois reside nele há 36 anos:
Ah, eu acho meu bairro, muito bom agora...eu não troco ele por nada. Porque quando eu
fui morá lá se tu esquecesse de uma caixa de fósforo,não tinha vizinho pra te emprestá
era difícil... Era barro, era mato, era bem retirado, não tinha ônibus. Até chegá na
Presidente Vargas era um sofrimento pra gente. Então, quando tu subisse pra cima, tu
tinha em pensá em comprá meio tudo, não podia fartá nada que fartasse. E ali foi
crescendo, o bairro foi crescendo, de repente foi mudando, foi mudando as rua,
melhorando, aumentando, pessoal comprando terreno, fazendo casa, começo vim ônibus
lá na, a gente diz assim, na volta das irmã, que tem a casa das irmã. Então começo vim
ali, de repente começo desceu mais pra baxo, de repente tá fazendo a volta e hoje temo
ônibus de 12 em 12 minutos. Daí no bairro nós temo tudo, temo farmácia, temo quatro
mercados, temo padaria.
O relato de Olga é reafirmado por Dal Moro, Kalil e Tedesco (1998):
O processo de expansão do núcleo urbano da cidade de Passo Fundo,
iniciado na década de 1930, intensificou-se e ocupou espaços distantes
do centro a partir da década de 1950, como é o caso do bairro São José.
O estudo dessa expansão remete ao aprofundamento das determinantes
que impulsionaram a criação dos loteamentos em locais desprovidos dos
mínimos serviços de infra-estrutura urbana e, talvez, atrativos aos
moradores (p. 93).
O bairro onde mora Olga é um dos que iniciaram seu povoamento após a
criação de um loteamento na década de 1950. No seu relato diz que o
crescimento do bairro trouxe-lhe conquistas de novas amizades:
Logo no começo eu não conhecia ninguém. Daí foi chegando, muitas pessoas boas e
foram ficando, hoje todo mundo me conhece, tenho amizade e respeito.
Anuncia algo que é muito comum entre as famílias das cidades pequenas a
solidariedade entre a vizinhança, através do empréstimo e da troca de favores.
124
Vizinhança, que eu não troco por nada meus vizinhos, que os vizinho são os parente da
gente. Eu acho que pra mim saí dali só no dia que morre, a não ser que apareça uma
oportunidade pra melhorá de vida.
Pelos relatos de Olga, tanto quanto pela pesquisa de Dal Maro, Kalil e
Tedesco (1998), percebo que foram estabelecidas relações de solidariedade no
período da formação do bairro, o que é denominado por Moll (2000) como “rede
de espaços sociais”:
Ações inovadoras que Paulo Freire (1992, 1995) denomina inéditos
viávies e que são produzidos por esses personagens no exercício
cotidiano de inserção comunitária, de quebra dos limites impostos tanto
pela ação do Estado, quanto pela ação corporativa movida por interesses
econômicos, e ainda, de construção de laços por vezes contraditórios e
frágeis, de solidariedade. Ações que podem colaborar para reinventar o
próprio Estado, criando esferas de vida pública até então inéditas.
(MOLL, 2000, p. 23 grifos da autora)
Olga encerra essa parte do relato dizendo:
Ah, se eu vou lhe contá tudo o que já fiz nesse lugar, eu tinha que escrever um livro,
sempre gostei de ajudar as pessoas.
Tem clareza de que fez várias conquistas na vida e deixa transparecer em
seus relatos, através da fala, do olhar, das expressões e gestos, a satisfação e o
orgulho de sua trajetória de mulher. Essa caminhada poderia lhe dar um grau de
satisfação pessoal e de completude, porém, ao contrário, dá-lhe mais ânimo para
continuar na dinâmica fluida da vida, sem se descuidar do outro. Todavia,
permanece sempre atenta às necessidades das outras pessoas, da família, do
círculo de amizades, da vizinhança.
Nos relatos de Olga há um momento de sua vida que prefere não
evidenciar, que se refere aos períodos em que viveu com seu marido e o de sua
morte. Nesse sentido, passo a compreender, apoiando-me em Bosi (2003, p. 63),
que considera a mobilidade espacial em relação à afetividade: “Há defasagens
entre a ordenação interna do relato e a seqüência de acontecimentos. E há
passagens borradas de difícil restauração”.
125
Esse hiato pode ocorrer apenas no olhar do pesquisador, pois a narrativa
pode ser vista como um todo antes de ser segmentada, em virtude da aspiração
do sujeito à plenitude de sua pessoa e de sua história. É possível, também, uma
seleção do que será publicizado, e deve ser respeitado.
c) Odete
A minha primeira filha só que demoro pra vim né, quando
ela veio eu tinha 21 anos. Ainda bem, porque senão seria pior
ainda né. Uma criança cuidando de outra criança”.
Odete casou com 15 anos e teve a primeira filha aos 21 anos, fato que
considera ter sido importante.
Seu casamento não foi uma escolha movida pela “paixão”. Foi a única
alternativa que encontrou após ter sido colocada fora de casa por sua madrinha,
com quem morava desde a infância. Seu marido é 35 anos mais velho que ela,
mas Odete considera que o casamento se colocou em sua vida como uma
“saída”, mesmo considerando que em muitos momentos vive objetivamente
“proibições de ser”, quando o silenciamento e a paciência são estratégias de
sobrevivência, pois, no seu íntimo, cultiva uma esperança de libertação.
Considera que as únicas compensações que encontra são a segurança
econômica e a constituição de sua família, salientando que a melhor coisa que lhe
aconteceu foi ter seus filhos.
Daí que eu comecei a andá com ele. Ele tinha 50 anos e eu 15 anos. Aí que nós estamos
até hoje. Então, no caso, ele era rico, e eu era pobre. Mas como eu tinha uma vida assim
boa, que ele me proporcionou uma vida boa. E como tenho meus filho, graças a Deus
hoje tem colégio e faculdade particular. Então, foi indo assim, tudo se acomodo do lado
dele. E esqueci de mim. Eu só vivi pra ele e pros filho, pra casa, limpando, cozinhado.
Então eu esqueci de mim. Eu ser humano, Odete, daí me esqueci. Mas agora, graças a
Deus, to voltando a lembrá de mim.
Ao falar do nascimento de seus filhos, percebe-se que expressa um brilho
em seu olhar, pois eles representam a possibilidade de estabelecer laços de
carinho e afeto; talvez de amar e sentir-se amada e, assim, fazer renascer a
esperança de um dia ser cuidada e também de cuidar, vendo nos filhos o ressurgir
de sua “infância negada”.
126
Os seres humanos nascem indefesos e extremamente dependentes dos
adultos, durante toda a infância precisam de atenção especial que lhes assegure
a sobrevivência. Charlot (2000) refere-se ao nascimento como uma introdução na
condição humana em que a criança, inacabada por natureza, constrói-se como
ser humano, social e singular nas relações com o mundo que já existe:
Nascer é penetrar nessa condição humana. Entrar em uma história, a
história singular de um sujeito inscrita na história maior da espécie
humana. Entrar em um mundo onde ocupa um lugar (inclusive, social) e
onde será necessário exercer uma atividade. (CHARLOT, 2000, p. 53).
O ser humano necessita de cuidado do outro, assim como também
dispende cuidado para com os outros. Isso porque não temos cuidado, “somos
cuidado”, somos relações. “Isto significa que o cuidado possui uma dimensão
ontológica que entra na constituição do ser humano. [...]. Sem cuidado deixamos
de ser humanos” (BOFF, 1999, p. 86).
Cada um a seu modo, conforme os condicionantes econômicos, sociais e
culturais, vive a experiência da atitude fundamental, “de um modo de ser mediante
o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com desvelo e solicitude”
(BOFF,1999,p. 91).
Nesse sentido, Odete, atualmente, também é alvo do cuidado dos filhos
para com ela, o que ela vê como uma compensação ao sacrifício até então
realizado na sua trajetória materna, ressaltando que os filhos são os motivos de
sua alegria e do seu prazer.
Entretanto, também Odete resolve olhar para si, volta a estudar e faz sua
carteira de motorista, rompendo com um longo ciclo de submissão em sua vida,
justificando que precisa assumir as “rédeas de casa”, pois seu marido já está com
idade bastante avançada:
Eu moro longe. Moro no São João da Bela Vista. Então é uma chácara, a gente cria os
animais. É vaca, é ovelha. Então, assim é longe da cidade, é longe dos vizinhos. Meu
vizinho mais perto acho que fica uns 500 metros. Então tudo é longe, até pra vim pra
cidade se depende de ônibus ou de condução própria. Se eu não dirigir, o que vai ser de
mim no futuro?
127
Odete está percorrendo novos itinerários, o que pode significar andar pelos
mesmos espaços, mas estabelecendo relações diferentes. Isso está contribuindo
para o resgate de sua identidade feminina para além das dimensões de esposa e
mãe.
Essa tensão entre o permitido e o proibido, o fácil e o difícil, o querer e o
fazer é o anúncio das visibilidades nas situações-limite vividas por Odete no seu
casamento. Há uma processualidade na conquista da liberdade, ou seja, não é
tão fácil quanto parece: ao enfrentar o marido opressor, não se rompe a opressão.
Os oprimidos, que introjetam a “sombra” dos opressores e seguem suas
pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando na
expulsão desta sombra, exigiria deles que “preenchessem” o “vazio”
deixado pela expulsão, com outro “conteúdo” – o de sua autonomia. O de
sua responsabilidade, sem o que não seriam livres. A liberdade, que é
uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca [...]
(FREIRE,1981, p. 35).
Ouso afirmar que Odete já havia iniciado a busca por sua libertação ainda
quando silenciosa, nos recônditos da vida privada, ao acreditar na possibilidade
de ser livre. Atualmente, envolve-se com as dimensões da vida pública: ir ao
banco, administrar o dinheiro, ir às lojas, escolher a roupa que a agrada, fazer a
carteira de motorista e ir para escola.
d) Sebastiana
Quando tive que enfrentar a vida sozinha, sofri muito,
não sabia nada”
Sebastiana casou com 14 anos e, aos 16 anos, já era mãe de dois filhos.
Aos 17 anos o marido abandonou-a deixando-a em condições econômicas
bastante difíceis. Então, como opção restou-lhe voltar para a casa dos pais, onde
sua mãe a ajudava a cuidar dos filhos para que ela fosse trabalhar para dar-lhes o
sustento. Refere-se às muitas dificuldades que enfrentou por falta de maturidade e
de conhecimentos:
Sofri muito porque eu não sabia nada, era muito nova, não sabia me virá, não sabia ler e
escrever direito.
128
Dentre tantas situações relatadas a que mais chama atenção foi o acidente
que o filho de quatro anos sofreu.
Ele tinha quatro aninho. E eu, que tinha dezenove, bah, quase morri, nunca tinha lidado
com médico entes. Daí eu fiquei ali no São Vicente, não sabia se eu, autorizava a
operação ou não, sozinha. Fiquei até sem dinhero, sem nada naquela época, e não
conhecia cidade nada. Foi bem difícil. Daí fiquei sozinha ali no hospital. Um dia encontrei
a minha madrinha, que trabalhava no hospital, no raio x, ela me levo lá pra casa dela, daí
melhoro situação. Porque ela me ajudo a atende, ela via ele lá no hospital. Eu fiquei na
casa dela, comecei trabalhá pra ela, arrumá a casa dela. Daí arrumei nas vizinha ali pra
faze limpeza. Daí um poco cuidava dele, um poco ia trabalha. Pra se mantê também. De
vez em quando eu ia pra casa avisá a mãe, dizê como ele tava, foi assim, por seis
meses.
O sofrimento de Sebastiana mobilizou-a a buscar estratégias de superação
das dificuldades, mas também encontrou gestos de solidariedade que lhe
permitiram criar condições para cuidar do filho durante sua recuperação e,
posteriormente, também da mãe, que tinha problemas de saúde.
Ao falar de seu filho mais velho, relata que não conseguiu “criá-lo direito”,
devido à interferência dos avós, chegando a colocá-lo no Patronato.
49
Daí o mais velho botei no Patronato. Que daí ele...o pai não dexava a gente surrá,
porque avô, sabe come que é, né. Daí ele tava muito maroto, rebelde daí botei ele no
Patronato. A mãe não gosto muito, mas fazê o quê tinha que pôr porque eu tinha que dá
educação pra ele né. Daí ele foi pro Patronato, fico uns tempo lá depois eu...quando eu
vim mora pra cá em Passo Fundo, daí eu troxe ele, botei no Patronato aqui. Daí ele
termino os estudo aqui, fez a catequese. É esse que é atleta agora.
Sebastiana tem o Patronato como uma instituição que ocupa um lugar de
complementaridade da família, um lugar onde a “educação” foi possível,
colocando ao filho regras que o fizeram seguir a carreira de atleta.
Após a morte do pai, abandonou a zona rural onde vivera e entrou
definitivamente no mundo urbano, o qual conhecia superficialmente por curtas
passagens, quando realizava trabalhos temporários e cuidava do filho no hospital.
Ao falar de sua chegada a Passo Fundo, relata ter enfrentado muitas dificuldades,
pois, além dos filhos, assumia os cuidados com a mãe e o irmão adotivo com
problemas “mentais”. Dentre as dificuldades, citou a de moradia e trabalho, visto
49
Escola em regime de internato, mantida pelo poder público municipal na época.
129
que passou a morar num bairro longe do centro, que considerava violento. Em
relação ao trabalho, demorou alguns meses para conseguir trabalhar com carteira
assinada, como empregada doméstica; enquanto isso, viviam com a
aposentadoria da mãe, de um salário mínimo. Logo Sebastiana conheceu uma
pessoa, namorou e casou novamente. Segundo ela, “uma nova esperança na minha
vida, ele me amparou
”.
Esse sentimento de amparo foi materializado pela acolhida numa casa
própria, no auxílio para cuidar a mãe, o irmão e o filho. Esse companheiro lhe deu
mais uma filha. Após dez anos de convivência e amparo, Sebastiana ficou viúva.
Hoje sobrevive da pensão que o companheiro lhe deixou e de suas vendas de
cosméticos. Tem sua vida ocupada com o cuidado dos filhos, dos netos e do
irmão.
e) Adão
“Não foi fácil essa vida aí. Depois que eu consegui me livrá
da bebida, foi só alegria...”
Adão casou com 23 anos. Considera que o casamento foi uma das coisas
boas de sua vida, pois viveu muitos anos de sua vida como “vítima do alcoolismo”,
mas conseguiu “sair da bebida” graças à esposa e aos filhos.
Saí da bebida porque tinha uma mulher e filhos que me queriam bem.
Foca seu relato de vida no período em que “entrou na bebida”, atribuindo
possíveis razões ao trabalho pesado que realizava, à influência dos companheiros
e ao estímulo do patrão:
Aí eu trabalhava no serviço pesado, eu fazia treze, catorze horas por dia, e, era numa
madeireira, virando tora e serrando, tudo. Nóis entrava às sete horas, carregando
caminhão, depois tinha que descarregá. Ali foi pesado! Trabalhei doze ano nessa
madeireira, não ganhando muito bem e muito trabalho. E foi bem nesse período que eu
entrei na bebida.
Ao falar desse período vida, lágrimas correram em seu rosto, expressando
palavras de indignação:
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O que eu passei lá não gosto de pensar, trabalhava igual animal. Quando não agüentava
mais, o dono da madeireira comprava um garrafão de cachaça, era o que nós ganhava
de hora extra, (...) claro gostava né, a gente ia porque gostava da cachaça. Ia lá e bebia.
Carrego um caminhão, bebendo aí foi viciando né. Isso era todo dia, todo dia.
Tal situação o colocara numa situação de plena opressão, “como objetos,
como quase ‘coisas’, sem finalidades. As suas, são as finalidades que lhes
prescrevem os opressores” (FREIRE, 1981, p. 50).
Sair do alcoolismo, para Adão, representou um ato de determinação rumo à
libertação que contou com o apoio da família. Relata que ficou muito
envergonhado quando seu filho mais velho lhe chamou a atenção.
Pai, assim não dá, você vai morrer, você tem que deixar da bebida! Aí fiquei com muita
vergonha e pensei: ‘ se eu não der um jeito eu perco minha família’. Daí saí e fui no
hospital municipal, me indicaram a Ana Rech,é uma clínica. Fiquei 32 dias na Ana Rech,
na primeira semana podia te voltado pra casa que eu acho que não bebia mais. Porque
lá remédio pra deixa da bebida não tem né, é só palestra, coisa assim.
Relata que essa foi uma das maiores vitórias de sua vida:
Não foi fácil essa vida aí. Depois que eu consegui me livrá da bebida, foi só alegria...não
tenho muito, mas já tenho minha casa, não é boa mas tenho onde mora. Meus filhos
consegui dá o estudo até o segundo grau pra depois seguirem.
Os relatos de Adão remetem a dois conceitos preconizados por
Freire(1981), opressão e liberdade.
O importante, por isso mesmo, é que a luta dos oprimidos se faça para
superar a contradição em que se acham. Que essa superação seja o
surgimento do homem novo – não mais opressor, não mais oprimido,
mas homem libertando-se. Precisa-mente porque, se sua luta é no
sentido de fazer-se Homem, que estavam sendo proibidos de ser (p.46).
O alcoolismo, para Adão, era o seu maior opressor, o que o impedia de ser
pai, esposo e de “viver a vida”:
E, agora, graças a Deus vivo uma vida, não digo lá muito boa né, mas, mais ou menos
trabalho, tenho dois filho, tenho um casal, já tenho uma netinha. Vivo bem com a minha
família, graças a Deus né. E essa de voltá estudá foi por causa do meu trabalho.
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Adão agora trabalha há quatro anos numa multinacional, situação que lhe
devolveu a possibilidade de acreditar em si:
Ah, eu...quando eu cheguei lá até fiquei preocupado, achando que eu não ia nem passá
do contrato de experiência, não é um trabalho fácil. Mas entrei com muita vontade. E as
pessoas lá foram ensinando pra gente, eu fui pegando o jeito e tou lá há quatro ano, mas
cada dia aprendo mais....
Assim, reafirmo Freire (1981): “Os oprimidos, nos vários momentos de sua
libertação, precisam reconhecer-se como homens, na sua vocação ontológica e
histórica de Ser Mais” (57), Adão encontra a dimensão de sua incompletude:
E cada vez mais a gente vai aprendendo, porque a gente nunca aprende tudo, né. E
agora com a gente estudando, a gente parece que fica até melhor de compreendê...
Adão, ao falar da atividade que realiza na empresa, demonstra o seu senso
de responsabilidade e cuidado:
...eu trabalho no refumo de óleo, onde fica pronto o óleo pra consumir. Ah! Esse meu
trabalho exige bastante de higiene. Porque é uma coisa que vai direto pros cliente, tem
que saí de boa qualidade, tem que tê muito cuidado. Adoro meu trabalho!
Falar sobre seu trabalho coloca-o numa condição reflexiva, assim
encontrando na escolaridade sentidos que se entrelaçam com as exigências de
seu trabalho.
f) Juarez
“A minha vida é trabalho”
Juarez é casado, tem quatro filhos, mas não vive com a esposa e os filhos.
Mora sozinho porque, por opção deles, mudaram-se para a cidade de Curitiba no
estado do Paraná. Contudo, refere-se à família com grande respeito e carinho,
demonstrando que existem laços fortes que os fazem trocar telefonemas e visitas.
Cheguei agora, arrecem das minhas férias. Eu tive lá em Curitiba. Fiquei uma semana.
E se conversamo por telefone cada treis, quatro dia.
132
Fala do ofício que ensinou aos filhos com muito orgulho, pois lhes garantiu
uma carreira de sucesso como músicos, considerando que eles se destacam e
têm muito trabalho e boa remuneração.
Os treis rapaiz é músico tão estruturado, cada um tem sua casa. Aprendero comigo! Eles
foram muito bem, eles foram pra Curitiba, nesses sete anos, que faz mais ou menos oito
anos, olha sem nada, foram de peão. Hoje cada um tem uma casa, cada um tem um
carro. E o Moacir tem um ônibus, 95, o conjunto paga o que vale uns 60, 70 mil reais. O
ônibus vale uns 80 mil. Então tamo tudo mundo bem, graças a Deus. A música dá muito
pra quem se destaca mesmo, tem que se destacá, senão não adianta.
Ao falar de sua esposa, relata que enfrenta problemas de saúde e que ele
tem dificuldades para cuidá-la. Então resolveram que ela moraria com os filhos.
É, porque ela era muito doente né. Aí eles chegaram: Pai nós levamo a mãe pra lá e nós
cuidamo até que...senhor se aposentá”.
Ao falar de suas vivências na vida adulta, refere-se ao tempo presente e
resume-o em dois momentos: o do trabalho e do lazer, onde inclui a escola como
um lugar de encontros e também de lazer.
A minha vida é trabalho. Porque eu, falta poquinho pra me aposentá. Eu levanto às cinco
da madrugada, toco até meio-dia e meia na empresa. Depois eu pego aqui na escola
uma hora, uma e poquinho, até quaje cinco hora. Vo pra empresa trabalhá até sete, oito,
quando dá pra pará. E nas minhas folga eu gosto muito de CTG, fandango em CTG...é,
rodeio, vou tocá gaita.
Fala de seu trabalho com muito orgulho, demonstrando gostar do que faz,
pois dirigir ônibus, para ele, é sinônimo de fazer amizades:
Faço a linha Centro / Universidade, conheço todo mundo estudante, professor,
professora. Eles me querem bem – me chamam de ‘gaúcho’, outro dia, no meu
aniversário me deram presente e tudo.
O acolhimento e a bem-quereça que Juarez busca cultivar podem ser
traduzidos em amizade no sentido que Giddens (2002) preconiza. “É possível
tornar-se amigo de um colega, e a proximidade no trabalho ou o interesse
compartilhado gerado pelo trabalho podem estimular a amizade – mas ela só será
uma amizade se a ligação com a outra pessoa for valorizada em si mesma” (p.87).
133
g) Gelson
“Hoje vivo com esperança”
Gelson inicia o relato dessa fase de vida destacando o processo de
itinerância que realizou após ter se casado. Morando inicialmente em Ijuí, depois
em Santo Ângelo, Guaíba, chegou a Passo Fundo.
Fui morá em Guaíba quando a Ford foi para lá, tinha esperança de conseguir um
trabalho para mim e a mulher. E aí a Ford não ficou e automaticamente inviabilizou eu
pagá aluguel e tudo assim.
A industrialização, desde a década de 1970, vem desencadeando o
processo migratório para os grandes centros urbanos, onde pessoas como Gelson
e sua família sentem-se atraídas pelas demandas por força de trabalho em
empresas industriais, bem como pelas possibilidades de viverem em melhores
condições. Segundo Dal Moro, Kalil e Tedesco (1998):
Os frutos de atração também devem ser levados em conta, no entanto
não são os determinantes na orientação dos fluxos migratórios. A atração
advém de uma demanda por força de trabalho em empresas industriais,
pela expansão de serviços na medida em que oferecem uma
remuneração mais elevada em relação ao que o migrante poderia
receber na área de onde provém. O pressuposto básico desse processo
é que as diferenças percebidas entre origem e destino empurram e
atraem os migrantes através dos tempos, da distancia e do custo, até
que seu movimento reduza a diferença, de forma que um equilíbrio seja
alcançado (p. 56-57).
Então Gelson chega a Passo Fundo, com a esperança de encontrar o que
fora buscar em Guaíba: trabalho e condições para criar seus filhos. Relata que
passaram muitas dificuldades, mas também demonstra nunca ter deixado de lutar,
juntamente com sua esposa.
A gente chego aqui com uma mão na frente outra atrás. A minha esposa, daí conseguiu
alugá uma casa lá na Bom Jesus. Ela já chego e já arrumo um serviço de diarista né. Eu
cheguei aqui comecei com (...), aí fui limpador de pátio, varri rua, fui trabalha pra da
sustento pra nossa família, eu e ela saímos trabalha. Ai passou-se três, quase quatro
meses depois que nos tava aqui eu trabalhando de biquinho, ganhando cinco real por dia
e ela trabalhando de faxina.
134
Entre as trajetórias percorridas em busca de trabalho, Gelson encontra uma
barreira – a falta de escolarização.
Aí o que eu fiz, eu me vi numa fase que eu tinha que voltar a estudar, eu tinha só a
sétima série.
E ao voltar encontra a possibilidade de realizar um sonho, ou de “viver com
esperança”, que será posteriormente relatado.
Atualmente, vive em Passo Fundo, trabalha com sua pequena empresa,
juntamente com seus filhos e a esposa, sonha com a possibilidade de ingressar
na universidade e realizar o curso de química. Mas também vive momentos de
encantamentos e contemplações do trabalho que realiza com sua família, aliando
o prazer pela criação com o sustento da beleza, de o sujeito saber-se fazedor de
coisas belas.
Gelson entende que fazer bonito é: “[...] pensar e... botar as coisas assim
que combina uma coisa com a outra [...] Para ele, fazer bonito é combinar
elementos/coisas, criar algo agradável ao olhar. Criar algo que “encha os olhos” e
a alma. Quem sabe criar algo que torne o olhar um tanto mais sensível, um
possível olhar estético. Conforme Duarte Jr. (2003), “o olhar estético não
interroga, mas deixa fluir, deixa ocorrer o encontro entre uma sensibilidade e as
formas que lhe configuram emoções, recordações, e promessas de felicidade.” (p.
98). Olhar e perceber que uma coisa combina com a outra é tornar possível o
encontro entre a própria sensibilidade e as formas vistas. E perceber a boniteza é
também perceber a inteireza do ser, daquele que faz e daquele que olha. Assim
foi como Gelson me apresentou a sua arte em sua loja de velas artesanais.
4.3.1 Fios comuns que se entrelaçam e compõem as vivências que
constituem a adultez
Os relatos aqui apresentados nos mostram que a adultez é uma construção
social que se dá no entrelaçamento entre tempos e vivências. Também nos
mostram que é nesses entrelaçamentos que as pessoas constituem suas
identidades. Segundo Melucci (2004), quando tratamos da identidade, somos
135
mobilizados por uma pergunta – Quem sou eu? Ao respondê-la contextualizamos
a nossa existência individual e coletiva e, assim, recorremos às nossas
referências e aos contextos aos quais pertencemos. Por isso, estabelecemos “um
processo constante de negociação entre as diversas partes do eu, tempos
diversos do eu e dos ambientes ou sistemas diversos de relações, nos quais está
inserido” ( Melucci, 2004, p. 67).
Portanto, pode-se dizer que a constituição da identidade se dá na
constituição das redes de significações, onde são acionados elementos de
diferentes ordens – articulando campos interativos, componentes pessoais e
dimensões temporais, mas que é circunscrita pela cultura.
Nesse sentido, Salva (2006) considera que nossa identidade é
[...] considerada primeiramente como a capacidade de reconhecimento e
produção de si, contém um elemento paradoxal porque ao mesmo tempo
em que nos reconhecemos como indivíduos, diferente dos outros,
também nos parecemos semelhantes. A diferença para ser reconhecida
supõe uma semelhança. A nossa identidade assegura o nosso
pertencimento a um grupo social, cujo tempo de duração pode ser
definido por nós mesmos, variando de acordo com o grupo ou meio
social (p.63).
Assim, pode-se dizer que nossa identidade é fruto de um reconhecimento
de origem social. Ao reconhecermos tal origem como um produto social,
passamos a nos reconhecer como enquanto indivíduos num processo
denominado por Melucci (2004) de “individuação”, portanto “somos nós mesmos,
como indivíduos, que adquirimos a capacidade autônoma de nos definir como
indivíduos” (p. 47).
Ainda o mesmo autor, ao se referir à identidade adulta, expressa o caráter
sistêmico que vai se constituindo, entrelaçando-se a elementos de diferentes
tempos e vivências, atribuindo, assim, valor ao processo constitutivo da
experiência.
A identidade adulta é a capacidade de produzir novas identidades,
integrando passado e presente, além dos múltiplos elementos do
presente, na unidade e na continuidade de uma história individual, Nesse
sentido a aprendizagem não termina com o fim da idade evolutiva, e as
136
diversas vivências da vida nos levam a sempre questionar e reformular a
nossa identidade (p. 46).
Tecer os fios que compõem as vivências e constituem as identidades
adultas de homens e mulheres que buscam a escolarização no NEEJA de Passo
Fundo significa, também, considerá-los como sujeitos imersos em relações com o
saber. Charlot (2000) considera que “os objetos, as atividades, os lugares, as
pessoas, as situações, etc., com os quais ele se relaciona ao aprender estão,
eles, igualmente inscritos em relações de saber” (p. 86).
Nesse sentido, as relações de saber nas quais as pessoas da pesquisa
estão imersas, nas múltiplas facetas do cotidiano, permitem que elas aprendam e,
concomitantemente, ensinem, que elas modifiquem a si e ao entorno, num
processo mútuo de conhecimento e transformação.
Foi possível identificar como Oraceli, Olga, Odete, Sebastiana, Adão,
Juarez e Gelson vão se constituindo na perspectiva das relações de saber:
50
no
diálogo com a família, na conversa com a vizinhança com os amigos e amigas, na
luta pela casa própria, nas diferentes formas de trabalho - lavoura, costureira,
doméstico, culinária, na participação em grupos de “terceira idade”, nas missas,
fabricação velas, dirigindo ônibus, cuidando do óleo utilizado na alimentação de
todos nós. Em cada experiência do mundo de homens e mulheres: ser mãe, ser
pai, esposo, esposa, filha, filho, sogro, sogra, avó, avô, ser mulher separada ou
viúva, ser trabalhador ou trabalhadora responsável pela família, ser pessoas
sonhadoras, realizadas ou apaixonadas. No processo dinâmico da vida, quanto à
mudança, ao inacabamento, à exemplaridade, à força, à resistência, à
persistência, ao silenciamento, à coragem, aos sonhos e às conquistas,
principalmente da esfera pública.
Assim, concordo com Duarte Jr. (2003), que considera homens e mulheres
como portadores de um saber detido pelo corpo, que permanece “íntegro em si
mesmo e irredutível a simplificações e esquematizações cerebrais. O corpo
conhece o mundo antes de podermos reduzi-lo a conceitos e esquemas abstratos
50
Expressão utilizada por Charlot (2000) para designar o que Freire e Nogueira (1993) nomearam
de “conhecimento pela via do corpo”, Nogueira (1985) chamou de “escola da vida”.
137
próprios de nossos processos mentais” (p. 126). O mesmo autor faz uma distinção
entre o saber e o conhecer, onde “o conhecer, então, é coisa apenas mental,
intelectual, ao passo que o saber reside também na carne, no organismo em sua
totalidade, numa união de corpo e mente” (p. 127). Nesse sentido, pode-se dizer
que as pessoas da pesquisa, ao se constituírem adultas, também constituíram
saberes que lhes permitiram dar conta da vida, “[...] saber implica em saborear
elementos do mundo e incorporá-los a nós (ou seja, trazê-los ao corpo, para que
dele passem a fazer parte)” (p. 127).
Esses saberes, segundo Freire e Nogueira (1993), são expressos através
de narrativas que chamamos “conhecimento popular” e se apresentam nas
leituras que fazem da realidade e “cantadas” no improviso, nas rodas de amigos,
nas rodas de bar, nas fofocas, piadas e orações e que têm como cartilha eles
mesmos, não se deixando objetivar pela rigorosidade dos conceitos. “A narrativa é
envolvimento e é também, condição de criação de conhecimentos” (p. 72).
Brandão (2002) utiliza-se da metáfora “das margens do rio do saber
humano” para falar do descompasso cultural entre as práticas avalizadas pela
ciência e as outras modalidades de conhecimentos e práticas. Estas últimas são
olhadas desde a outra margem, por isso recebem os adjetivos “populares”, “não-
científicas”, dentre outros.
Charlot, Brandão, Duarte Jr e Nogueira reconhecem que a sociedade
supervaloriza os conhecimentos legitimados pela ciência conforme o paradigma
da modernidade, que surgiu em oposição ao religioso. O paradigma da
modernidade segue os preceitos de Newton e Descartes, que separaram o
material do espiritual, atribuindo como objetivo da ciência, o estudo das leis dos
corpos materiais, considerando só a matéria enquanto verdadeira; o que não é
matéria é metafísico, teológico, espiritual e filosófico.
Algumas características desse paradigma são apontadas por Mires (1996),
autor da expressão “revolução paradigmática”, que designa novas formas de ver o
mundo questionando as metanarrativas: determinação causal, naturalismo,
essencialismo, racionalismo, pensar dicotômico, projeção de transcendência,
138
crença numa ordem universal e imutável, ruptura entre objetividade e a
subjetividade.
Brandão (2002) chama a atenção para o interesse, cada vez maior, da
ciência na investigação de outras modalidades de conhecimento. Como diria
Charlot (2000), um interesse pelas “relações de saber”, ou, ainda, “conhecimento
popular”, conforme Freire e Nogueira (1993), convergindo com a expectativa de
Santos (1999) quanto ao desaparecimento da “distinção hierárquica entre
conhecimento científico e conhecimento vulgar”.
As pessoas desta pesquisa, além de portadores de conhecimentos
populares, tiveram em comum a busca pelo saber “sistematizado” no NEEJA de
Passo Fundo. É o que descrevo e analiso no próximo capítulo, buscando mostrar
os entrelaçamentos entre esses saberes e os sentidos a eles atribuídos.
139
5 A ESCOLA E OS ENTRELAÇAMENTOS QUE COMPÕEM OS
SENTIDOS DA ESCOLARIZAÇÃO NA VIDA DE HOMENS E
MULHERES ADULTAS
Através dessa poesia de Freire (1999), que expressa de forma sábia e
sensível a sua compreensão de escola, busco me apoiar para compreender os
sentidos que as pessoas da pesquisa atribuem à escola na vida adulta.
“Escola é...
o lugar onde se faz amigos não se trata só de prédios,
salas, quadros, programas, horários, conceitos...
Escola é, sobretudo, gente, gente que trabalha, que
estuda, que se alegra, se conhece, se estima.
O diretor é gente, O coordenador é gente, o professor é
gente, o aluno é gente,cada funcionário é gente.
E a escola será cada vez melhor na medida em que cada
um se comporte como colega, amigo, irmão.
Nada de ‘ilha cercada de gente por todos os lados’.
Nada de conviver com as pessoas e depois descobrir que
não tem amizade a ninguém, nada de ser como o tijolo que
forma a parede,indiferente, frio, só.
Importante na escola não é só estudar, não é só
trabalhar, é também criar laços de amizade,é criar ambiente
de camaradagem,é conviver, é se ‘amarrar nela’! Ora, é
lógico... numa escola assim vai ser fácil estudar, trabalhar,
crescer, fazer amigos, educar-se, ser feliz.”
Paulo Freire
140
5.1 A EDUCAÇÃO E A ESCOLA: ESPAÇO INSTITUCIONAL E
SOCIOCULTURAL
A educação é permanente na razão, de um lado, da finitude do ser
humano, de outro, da consciência que ele tem de sua finitude. Mais
ainda, pelo fato de, ao longo da história, ter incorporado à sua natureza “
não apenas saber que vivia mas saber que sabia e, assim, saber que
podia saber mais” (Freire, 2000).
O presente capítulo tem por objetivo refletir, inicialmente, a educação como
processo ontológico da constituição humana que produz sentidos e cria
significados de ser e estar no mundo e, posteriormente, a constituição da
educação escolar como instituição social e civilizatória, na perspectiva de
compreender como ela se constitui na vida de homens e mulheres que retornam à
escola na vida adulta.
Segundo Brandão (2001),
ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola,
de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com
ela:para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar. Para saber,
para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida
com a educação (p. 07).
Ao nascer penetramos no mundo, na condição humana; entramos em uma
história que é singular, mas escrita na história da humanidade, e assim passamos
a compor um conjunto complexo de relações e interações com outros homens,
constituindo um sistema nunca completamente acabado, que chamamos de
educação.
Nesse sentido, pode-se dizer que a educação é uma experiência
antropológica que submete à aprendizagem, de constituição humana. Segundo
Charlot (2000),
aprender para construir-se, em um triplo processo de “hominização”
(tornar-se homem), de singularização (tornar-se um exemplo único de
homem), de socialização (tornar-se membro de uma comunidade,
partilhando seus valores e ocupando um lugar nela). Aprender para viver
com outros homens com quem o mundo é partilhado. Aprender para
141
apropriar-se do mundo, de uma parte desse mundo, e para participar de
um mundo pré-existente (p. 53).
Portanto, a educação escolar presente em nossa cultura exerce a função
de socialização – humanização do homem (Gómez, 2000). É uma resposta às
necessidades de complexificação das sociedades contemporâneas, resultantes
das demandas da industrialização e da urbanização.
A escola é um espaço institucional vinculado ao objetivo de difusão dos
conhecimentos sistematizados pela humanidade. Por essa razão, suas bases
normativas são históricas e possuem os paradoxos e os conflitos que parecem
inerentes à condição social e humana. Surge como instituição pública, laica e
gratuita no contexto da modernidade, tendo como um dos deveres a transmissão
e o ensinamento dos fundamentos da ciência. Segundo Sposito (2005),
a disseminação da escolaridade seria uma das expressões mais claras
do processo modernizador, embora este mesmo fosse analisado em
suas ambigüidades, ou seja, como forma inacabada de uma sociedade
que ainda mantinha seus vínculos com a ordem oligárquica agrária e
escravocrata, mantida por instituições pouco sensíveis e permeáveis aos
intensos processos de mudança que se situavam na junção dos
fenômenos da industrialização e da urbanização (p. 10).
O Iluminismo marca também o projeto pedagógico moderno, no qual a
educação passou a ser o foco, por excelência, das esperanças na humanidade.
Um sujeito bem-educado seria, necessariamente, a certeza de um mundo melhor.
E é justamente aí que a educação recebeu sua tarefa fundamental e sua base
normativa, qual seja, de educar para o aperfeiçoamento moral da humanidade, a
incorporação ao mundo do trabalho, a intervenção na vida, surgindo, assim, o
“sujeito escolar”, que, segundo Sacristán (2005):
A partir da industrialização, a categoria de “sujeito escolar” passa a ter
uma grande relevância, ao ir se institucionalizando a vida de uma
infância liberada do trabalho e das penúrias, ao mesmo tempo em que
vai sendo acolhida no clima afetuoso de algumas relações familiares
prazerosas. No entanto, em princípio os menores das classes mais
baixas foram escolarizados mais por razões morais e de controle social
do que por qualquer outra (Sacristán,2005, p. 101).
Assim, os processos de escolarização modernos e contemporâneos estão
142
relacionados com os processos civilizatórios, que incluem, entre outros, a
adaptação do indivíduo à sociedade vigente ou emergente, conforme sua origem
social. Norbert Elias (1994), em suas pesquisas, que resultaram na publicação da
obra O processo civilizado, demonstra que os tipos de comportamento
considerados típicos do homem civilizado ocidental são resultado de um processo
histórico de longo prazo, através de mudanças lentas e graduais, gerando
distanciamentos do comportamento e da estrutura psíquica entre adultos e
crianças.
O processo específico de “crescimento” psicológico nas sociedades
ocidentais, que com tanta freqüência ocupa a mente de psicólogos e
pedagogos modernos, nada mais é do que o processo civilizador
individual a que todos os jovens, como resultado de um processo
civilizador social operante durante muitos séculos, são automaticamente
submetidos desde a mais tenra infância, em maior ou menor grau e com
maior ou menor sucesso.A psicogênese do que constitui o adulto na
sociedade civilizada não pode, por isso mesmo, ser compreendida se
estudada independente da sociogênese de nossa civilização. Por efeito
de uma lei sociogenética
51
básica, o indivíduo, em sua curta história,
passa mais uma vez através de alguns dos processos que a sociedade
experimentou em sua longa história (p. 15).
Portanto, a formação individual de cada pessoa depende dos padrões
sociais que foram se estabelecendo ao longo da história e das estruturas das
relações humanas. Para Elias (1994), o indivíduo existe na relação com os outros,
que se ligam numa pluralidade, configurando algo novo: a sociedade. São essas
relações que criam uma estrutura particular que é específica de cada sociedade.
Ele adquire sua marca individual a partir da história dessas relações e dessas
dependências (p. 31). Nesse sentido, segundo o autor, indivíduo e sociedade são
indissociáveis, entrelaçando-se e constituindo-se processualmente. Assim, as
atitudes humanas são desenvolvidas no processo de interação social, que inclui a
família e a escola, entre outros espaços educativos, como agências civilizadoras,
co-responsáveis nos processos de socialização.
Falamos do indivíduo e do seu meio, da criança e da família, do indivíduo
e da sociedade ou do sujeito e do objeto, sem termos claramente
presente que o indivíduo faz parte do seu ambiente, da sua família, da
sua sociedade. Olhando mais de perto o chamado “meio ambiente” da
51
O que cabe frisar aqui é o simples fato de que, mesmo na sociedade civilizada, nenhum ser
humano chega civilizado ao mundo e que o processo civilizador individual que ele obrigato-
riamente sofre é uma função do processo civilizador social (Elias, 1994, p.15).
143
criança, vemos que ele consiste primariamente noutros seres humanos,
pai, mãe, irmãos e irmãs. Aquilo que conceituamos como sendo a
“família”, não seria de todo uma família, se não houvesse filhos. A
sociedade que muitas vezes colocada em oposição ao indivíduo, é
inteiramente formada por indivíduos, sendo nós próprios um ser entre os
outros (Elias 1994, p. 13).
Segundo Sacristán (2005), contemporaneamente, “estar um tempo nas
escolas é um ‘rito de passagem’ naturalizado na vida dos indivíduos, cujos fins
são aparentemente óbvios, ocupando um lugar central na experiência das
pessoas“ (p. 102). Porém, a escolarização não acontece com tanta naturalidade
na vida das pessoas. Assim como nos constituímos e nos tornamos homens e
mulheres civilizadas em contextos historicamente construídos, também não
podemos negar o processo de construção da escolarização, como visto
anteriormente.
O processo de escolarização vem constituindo o que Sposito (2005) chama
de processo de “mutação social”, gerador de paradoxos sociais.
O mesmo processo de mutação social que constitui a “sociedade
escolarizada”, ou seja a educação escolar como ferramenta essencial
para a sobrevivência do indivíduo moderno no mundo (habilidades,
conhecimentos e saberes, competência para uma melhor participação na
esfera pública e afirmação de sua autonomia como sujeito), produz uma
enorme crise das possibilidades de mobilidade social ascendente via
escola pela escassa capacidade de absorção no mundo do trabalho
dessa população escolarizada. As transformações estruturais nas últimas
três décadas provocaram, entre outros efeitos, o desassa-lariamento e o
desemprego (p. 17).
Essa crise da mobilidade social produz, para José de Souza Martins (2002),
em seus estudos críticos sobre a noção de exclusão, o aparecimento de uma
nova desigualdade social – processos de inclusão precária e subalterna – e a
multiplicação de desigualdades que fomentam ações pela afirmação de novos
direitos.
Nesse sentido, o acesso à escolarização não garante o credenciamento
dos indivíduos para o mundo do trabalho, induzindo à busca acelerada de novas
oportunidades de escolaridade. Esse processo, segundo Sposito (2005), é
fortalecido
144
nos anos 1950 e 1960, sobretudo com a expansão dos ginásios
estaduais, havia inscrita na atividade escolar uma dupla função
socializadora: o trânsito sistemático dos imaturos ao mundo adulto e, ao
mesmo tempo, sua inserção em uma sociedade urbana e industrial
(Pereira, 1976, p. 103). Nessa nova ordenação estava localizada a
possibilidade de mobilidade social ascendente, ambicionada pelos
alunos. Assim, apesar das tensões inerentes a esse processo e das
características da população usuária da escola, de origem rural ou de
migração recente, não havia, potencialmente, uma negação dos
possíveis benefícios advindos da educação escolar (p. 18).
As pessoas da pesquisa tiveram suas passagens pela escola nessas
décadas e construíram imagens de uma escola “redentora” de possibilidades.
Porém, carregam em suas histórias as marcas de uma infância e uma
adolescência permeadas por dificuldades que as impediram de permanecer na
escola, mas, mesmo assim, não a excluíram de suas vivências e retornam na vida
adulta a ela, talvez para fazer o “rito de passagem” e se constituírem alunos, ou,
talvez, para confirmar / negar as promessas historicamente imprimidas em suas
vidas pelas imagens construídas do processo de escolarização.
Nesse sentido, Charlot (2001) argumenta que “entrar na escola é entrar em
um universo novo, marcado por uma dinâmica de continuidade, descontinuidade e
especificidade em relação a vida, que é preciso gerir” (p. 150). Então, no próximo
subcapítulo passo a apresentar e discutir como se constituíram os sentidos que
mobilizaram homens e mulheres adultas a buscar a escola nessa fase de vida.
5.2 QUE PROCESSOS DE VIDA LEVAM UM ADULTO A VOLTAR À ESCOLA ?
Escolhi a sombra desta árvore para
Repousar do muito que farei,
Enquanto esperarei por ti.
Quem espera na pura espera
Vive um tempo de espera vã.
Por isso enquanto te espero
Trabalharei os campos e
Conversarei com os homens
Suarei meu corpo, que o sol queimará;
Minhas mãos ficarão calejadas;
Meus pés aprenderão o mistério dos caminhos;
Meus ouvidos ouvirão mais;
(...)
Estarei esperando a tua chegada
145
Como o jardineiro prepara o jardim
Para a rosa que se abrirá na primavera.
Paulo Freire
A poesia escrita por Freire (2000) abre seu último livro, Pedagogia da
indignação, e de uma forma muito consciente nos traz a sabedoria de esperar,
mas uma espera ativa. Talvez essa poesia possa sintetizar os “que-fazeres” e os
saberes de homens e mulheres adultas que se ocuparam e se constituíram ao
longo de seus tempos de vida – em tempos de espera, mas não espera vã, para
retornar à escola e nela construir entrelaçamentos de saberes e sentidos.
Nas respostas dadas pelas pessoas da pesquisa, ao serem questionadas
sobre as razões que as fizeram retornar para a escola na vida adulta, encontro: ler
e escrever, conhecer pessoas, fazer amigos, buscar emancipação, ensinar os
netos e o trabalho. Nesse sentido, essas razões podem ser compreendidas como
os sentidos mobilizadores de suas buscas da escolarização. Segundo Charlot
(2000),
[...] mobilizar é pôr recurso em movimento. Mobilizar-se é reunir suas
forças, para fazer uso de si próprio como recurso. Nesse sentido, a
mobilização é ao mesmo tempo preliminar, relativamente à ação [...].
Mobilizar-se, porém, é também engajar-se em uma atividade originada
por móbiles, porque existe “boas razões” para fazê-lo (p. 55).
É possível também visualizar como esses sentidos se entrelaçam com
outros sentidos que constituem as vivências de cada pessoa nos diferentes
espaços e papéis que exercem para além da escolarização. Segundo Smolka
(2004), não há sentido imanente. Os sentidos podem ser vários, eles vão se
produzindo nos entremeios, nas articulações das múltiplas sensibilidades,
sensações, emoções e sentimentos dos sujeitos, que também se constituem
como tais nas interações.
Nesse sentido, as pessoas da pesquisa nos apontam que os sentidos vão
se produzindo nas vivências, nas experiências, nas posições, nas posturas e nas
decisões; vão se constituindo numa certa lógica, coletivamente orientada, a partir
de múltiplos sentidos já estabilizados, mas de outros que também vão se tornando
possíveis. Assim, o “sentido é produzido por estabelecimento de relação dentro de
146
um sistema, ou nas relações com o mundo ou com os outros” (Charlot, 2000, p.
56).
Portanto, trago aqui os relatos, agrupando-os pelas pluralidades, na
perspectiva de mostrar aspectos comuns, mas considerando também que os
sentidos construídos são processos singulares, “resultado de um processo de
subjetivação associado a um contexto concreto e imerso no sistema de sentidos
subjetivos que caracterizam a vida atual do sujeito” (FURLAN, 2004, p. 61).
Cabe também esclarecer a forma como esses sentidos foram “captados”
pela pesquisadora. Procurei durante a pesquisa “focar o olhar”, mas também
“escutar” e “sentir”, através da observação e da entrevista, esta que assumiu um
caráter de “conversa”. Entendo, como Duarte Jr. (2003), que na “conversa além
de manter viva a sabedoria popular, consiste também num fator de identidade e
de integração cultural, são trocados não apenas informações e dados, mas,
sobretudo, afetos e sentimentos [...]” (p. 86).
Assim, os “sentidos que as pessoas adultas atribuem à escolarização”
foram se revelando nos “entrefios” de suas complexas redes de significações.
Portanto, iniciarei relatando o que expressaram nas entrevistas individuais e,
posteriormente, como os sentidos se configuram nas vivências de sala de aula.
Eis os relatos:
a) Oraceli - Realizar o sonho de ler e escrever
É possível vida sem sonho, mas não existência humana e História
sem sonho. Paulo Freire
Os sentidos que mobilizam Oraceli à voltar à escola são aprender a ler e a
escrever.
Quero professora, ler tudo - as cartas que chegam e escrever carta também.
Ler cartas, para Oraceli, significa “ler o mundo”, que é constituído pela
palavra escrita. Segundo Brandão (2001),
147
“aquilo” que vem de outro mundo, ou de uma “outra cultura” e de outros
poderes. Precede de “um lugar” de gente e de ordens letradas, eruditas e
misteriosamente poderosas, mesmo quando parecem provir do mesmo
mundo conhecido: a mesma comunidade, a mesma cidade, o mesmo
município,mesmo quan-do parecem ser da cultura local comum a todos
falantes das mesmas palavras, na mesma língua (p. 18).
Oraceli, ao falar de sua vida, expressa que apreender a ler e a escrever é a
única coisa que lhe falta para completar sua felicidade. Ela assim relata o
momento de sua decisão de procurar a primeira escola de sua vida:
Quando foi um dia eu disse assim: ‘Mais sabe que esse ano eu vo começá a estudá?’ Daí
pedi o endereço lá fui lá falei com as prô bah, ...Ficaram muito admirada de eu ir lá procura
estudo, colégio assim pra mim estudá. Eu disse: Esse ano eu quero começá. Daí elas
ligaram pra as escolas que ia te EJA pra mim de noite. Daí ligaram no NEEJA e disseram
que lá tinha. Mas daí elas falaram pra mim: ‘Mas lá é longe pra senhora vim’. Aí eu disse:
‘Mas o que é que eu vou fazer, eu vou’. Eu vou ir nem que eu va de ônibus quando tá
chovendo, quando tá tempo bom vou diapé. Eu quero estuda eu dizia eu quero estudá.
E segue seu relato falando de seu primeiro contato com a escola. Foi um
momento em que ela expressava em seu olhar muito brilho e, ao mesmo tempo, a
esperança de encontrar na escola a possibilidade de “mudar de mundo” e fazer
parte da cultura letrada.
Daí elas me deram o papelzinho pra mim pra em janeiro fazê a matrícula, dia 10 de
janeiro, guardei o papelzinho e dia 10 de janeiro eu fui lá, fui lá e fiz a matrícula. Aí elas
disseram: O dia 1º de março começa as aula: Fiquei numa ansiedade só...E dia 1º de
março eu tava lá, 7 hora da noite, com pasta, caderno, lápis, tudo arrumadinho, com
vontade de estudar.
Também relata os momentos de certo desencanto com a escola,
desencadeado pelo medo de não aprender.
E assim, no começo, bah, eu tinha bastante vontade de estudá. Depois eu fui meia
querendo desistir, desistir, que tinha medo de não aprendê.
Talvez a razão do medo de não aprender, que levou Oraceli a pensar em
desistir, esteja nas imagens de um tempo de infância em que seu pai a proibira de
aprender a ler e a escrever para não escrever cartas para namorados, tendo em
vista sua condição feminina.
148
Segundo Nogueira (1993),
...um dos significados da busca de escolarização, interpretado a partir
dos motivos que incitaram as mulheres/sujeitos à ação, bem como das
reflexões subjacentes à decisão de estudar, levou-me a afirmar que a
busca significa uma tentativa de se rever o princípio de autoridade
patriarcal, uma contestação à autoridade e ao poder masculino. Essa
contestação, para muitas mulheres, acabou gerando uma situação tida
como sendo de “rebeldia”, de “enfrentamento”, isso porque, ao partir em
busca da realização de seus projetos, as mulheres colocam em xeque a
autoridade e o poder daquele que “aprendeu” a ser o dono do “sim” e do
“não”, o opressor, gerador de impossibilidades e medo (p. 83)
Mas como atitude de coragem enfrenta e segue suas buscas:
Agora não vou desistir, já que eu comecei, não vou desistir mais, vou até o fim. Até
aprende.
A coragem é algo que nunca faltou para Oraceli desde a sua infância, por
isso construiu muitos saberes, que lhe permitiram dar conta da vida, descobrindo
formas de sobrevivência, sonhando e lutando pela realização de seus sonhos.
b) Olga - Conhecer pessoas e fazer amigos
“Eu aprendi na escola da vida minha filha”.
Conhecer a cultura escolar e fazer amigos é o saber-objeto buscado por
Olga na escola.
Amizade é um relacionamento humano que envolve conhecimento mútuo,
estima e afeição. Talvez por essa razão Freire nos ensina em suas vivências e
registra numa poesia (em epígrafe) que “escola é lugar de fazer amigos”.
Suponho que são essas as razões que mobilizaram Olga a se aproximar da
escola e nela querer estar, superando constrangimentos e medos.
Olga relata que nunca freqüentou escola antes do NEEJA, mas construiu
saberes que lhe garantiram “dar conta da vida” – trabalhar na universidade, criar
as filhas e costurar – na escola da vida.
149
Segundo Charlot (2000), “relações de saber” são relações sociais
consideradas do ponto de vista do aprender. As relações sociais não se
fundamentam no saber, mas o sujeito está imerso nessas relações de saber.
A busca pela escola aconteceu para Olga não como uma necessidade de
“saber mais”, mas por convite de amigos que estudam no NEEJA, e também por
curiosidade, pois sempre tivera vontade de saber como seria freqüentar uma
escola, já que sua infância lhe negara essa possibilidade:
Daí elas diziam, guria vai estuda, guria não vô, come que vô trabalha o dia intero e
estuda. Então ficava pensando:’ Como será que é uma escola, assim estuda, as
matérias, as professoras, os colegas?’ Aí pensava, ah eu vou lá se eu não aprender nada
pelo menos conheço pessoas arrumo amizade.
Talvez para Olga entrar em contato com o mundo escolar signifique
interagir com ações que se relacionem, como estudar, ensinar, aprender e
conhecer, que, segundo Freire (2000), são atos difíceis e “sobretudo exigentes,
mas que pode ser “prazeroso” (p. 83).
Então, passa a relatar seu sentimento no primeiro dia de aula:
Ah, mas o dia que eu vim aqui tu não sabe como me senti entrando na sala de aula . Me
senti sabe...lá em baixo, sabe quando tu fica...bah, meu Deus eu entrando numa sala de
aula, eu nunca sentei numa cadeira, assim pra estudá. Parece que todo mundo tava me
olhando sabe. Ah, meu Deus! Bom, fui indo, fui indo.. .agora é a melhor coisa, tenho
amigos e também tou aprendendo, acho que não vou parar mais. Entendi que estudar é
bom e não tem idade para aprender e fazer amizades.
Pelo relato de Olga é possível perceber que o “medo” deu lugar ao “prazer”
e aprender significa a procura constante de crescimento e de satisfação pessoal,
que se dá na interação entre pares, o que lhe permite decodificar o mundo, como
uma aventura criadora.
Nesse sentido, cabe remetermo-nos a Freire (2000): ”Aprender é uma
aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente
repetir a lição dada [...]. Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para
mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e a aventura do espírito” (p. 77).
150
c) Odete - A busca de emancipação
Voltei a estuda porque tinha entrado em depressão”.
Odete, ao falar das razões que a impulsionaram a voltar para a escola,
expressa que o casamento e o cuidado para com a família a colocaram numa
condição de “ausência de si”, precisando ouvir apelos do corpo para perceber sua
existência.
E daí eu cansei e a vida toda só trabalhando. Aí quando eu fui tava em depressão, que
só me entocava dentro de casa, ai procurei uma psicóloga.
Odete buscou a escola por indicação da psicóloga comouma forma de sair
da depressão”, ou melhor, uma forma de olhar para si, de sentir-se presente no
mundo:
Daí a pisci que me indico, é melhor coisa é tu arrumá uma coisa pra ti, pra ti fazê pra
você. Já que tu trabalho a vida intera, trabalho em casa né, limpando casa, cuidando do
marido.
Então, ela iniciou a sua busca por escola, contando com o apoio dos filhos,
mas enfrentando a resistência do marido. Odete ouviu na rádio uma entrevista
com alunos do NEEJA e procurou anotar o endereço; no dia seguinte foi até o
núcleo e fez sua matrícula.
Odete relata que conta com o apoio e incentivo dos filhos:
Aquela vontade que a mãe cresça né, que vá pra frente, progredi. Ó, tamo orgulhoso né,
a mãe volto a estudá.
Mas houve muita resistência por parte do marido, que insistia para que ela
desistisse, desqualificando-a: “Não adianta, não aprendeu quando era pequena”.
Chegou a queimar os seus cadernos, proibindo-a de continuar estudando “nessas
coisa”.
151
De acordo com Saffioti e Almeida (1995), numa situação de violência em
que o homem destrói objetos pessoais da mulher, muitas vezes, simbolicamente,
ele destrói a própria mulher. No caso de Odete, ao destruir o seu material escolar,
o marido acabou por reproduzir essa relação, bastante comum em situações de
violência doméstica. Mas a atitude violenta do marido somente destruiu os seus
objetos escolares, não o sonho de buscar sua autonomia através da escola e de
subverter a sua condição de subordinação.
Então, continuou participando do grupo da Totalidade Três e considerava
divertido, mesmo convivendo com a tensão entre a busca do saber e as
cobranças “caseiras”:
Chego aqui esqueço tudo, aliviava a cabeça. Chego em casa, tudo de novo.
Ela atribuiu ao ciúme as atitudes do marido:
E o meu marido daquelas pessoa mais antiga, ele é muito conservador, né. Então fica
difícil tu lidá cuma pessoa assim. Pra ti sai de casa não dá porque o marido tem ciúme
fica te controlando tudo, mais eu tou enfrentando.
Suponho que, além de ciúme, ele deveria sentir-se ameaçado quanto a sua
autoridade masculina. Sarti (1996, p. 43) refere-se à divisão das autoridades entre
o homem e a mulher na família, a qual corresponde à diferenciação entre casa e
família. O homem “corporifica a idéia de autoridade, como mediação da família
com o mundo externo. Ele é a autoridade moral, responsável pela respeitabilidade
familiar”.
Analisando a história de Odete, que teve uma trajetória exclusivamente
atrelada à vida doméstica, tendo seu contato com a vida pública mediado pelo
marido, essa constatação de Sarti (1996) é esclarecedora. Para o marido de
Odete, a escolarização desestabilizou o seu “reinado”. A princípio, pelo fato das
saídas sistemáticas de casa e, no decorrer do tempo, pelas compreensões que
ela foi desenvolvendo sobre os mais variados temas.
A escola, para Odete, representa a construção processual de sua
libertação, materializada pelas ações da cultura escolar e também com a relação
152
que passou a estabelecer com o mundo e com o saber – ao fazer a carteirinha de
estudante.
Ah, eu amo. Gente! Olha eu me senti... outra, meu Deus, eu voltando estudá e tendo a
carteirinha de estudante, participando do CENEJA, pra ti fazê amigos, pra ti né...eu achei
maravilhoso.
Ser estudante, para Odete, é também voltar no tempo e rememorar sua
juventude, viver na adultez uma cultura socialmente instituída como juvenil –
participar de movimento estudantil. Também expressa que o gosto pela leitura a
remete à vida:
Adoro ler os romances que a profª de português indica, parece que leio a história de
minha vida.
Outro aspecto que relata como significativo em sua vida de estudante é
andar de ônibus, como um lugar de convivência:
Eu gosto de andar de ônibus. É bom, tu vê as guria, tu vê as amiga, os vizinho.
Com base nessa concepção e da compreensão da situação vivenciada por
Odete, é possível confirmar a contribuição dos processos educativos para com os
adultos. A intenção de buscar a escolarização para além do saber escolar
historicamente institucionalizado, partindo e retornando à leitura de mundo,
adentra em dimensões muito amplas, que envolvem processos de conscien-
tização, conquista de liberdade e autonomia, atrelados ao conceito de política
emancipatória. Nesse sentido, cabe aqui o conceito de política-vida como
valorização do instituinte (GIDDENS, 2002).
Também o que Odete expressa reporta-me a Charlot (2000), que
estabelece uma relação entre o aprender e o nascer:”Nascer e aprender, é entrar
em um conjunto de relações e processos que constituem um sistema de sentidos,
onde se diz quem eu sou, quem é o mundo, quem são os outros” (p.53).
d) Sebastiana - Ensinar os netos
153
“Tenho três netinhos, ficam comigo de manhã, então
preciso aprender mais para poder ensinar, ajudar
assim nos temas”.
Sebastiana retorna à escola com a esperança de apreender um pouco
mais: “Acho que se eu tentar mais um pouco eu aprendo”. Deseja aprender
para ajudar os netos nas tarefas da escola, pois considera que o envolvimento da
família no processo de aprendizagem escolar é importante. E ao falar desse
aspecto relembra sua infância:
Queria ser professora, adorava ir para a escola, mas a mãe era analfabeta e nunca deu
valor ao estudo. Eu tinha dificuldade, rodava, aí ela me tirou da escola.
Nesse sentido, reporto-me a Freire (2003), quando fala que “o sonho é uma
exigência ou uma condição que se vem fazendo permanente na história que
fazemos e que nos faz e re-faz” (p.99). Dessa forma, posso dizer que Sebastiana
resgata um sonho, ser professora ao ajudar os netos nas tarefas escolares.
Talvez o que espera exercer é a “humana docência”, onde “a recuperação do
sentido de nosso oficio de mestre não passará por desprezar a função de ensinar,
mas representá-la na tradição mais secular, no ofício de ensinar a ser humanos”
(ARROYO, 2000, p. 54).
e) Adão, Juarez e Gelson - O trabalho
A rua é essencialmente o espaço do trabalho e do famoso “batente”.
Esse “trabalho” popular e biblicamente concebido como castigo. E o
nome diz muito, pois a palavra deriva do latim tripaliare, que significa
castigar com o tripaliu, instrumento que, na Roma Antiga, era um objeto
de tortura, consistindo numa espécie de canga usada para supliciar
escravos. Trabalho que ainda é católicamente lido como um castigo, em
franco contraste com a tradição reformadora de Calvino, que o
transformou numa ação destinada à salvação das almas e ao
aperfeiçoamento do mundo.Não é, pois, à toa que o nosso panteão de
heróis oscila entre três tipos. Há o malandro (aquele cuja proeza consiste
em vencer o trabalho como castigo, ganhando o máximo com um mínimo
de esforço). Há o renunciante ou o santo (aquele que abandona o
trabalho neste e deste mundo e vai trabalha para o outro, como fazem os
líderes religiosos, rotineiros ou caris-máticos). E há, finalmente, o
“caxias”, que não é um trabalhador, mas um cumpridor de leis, uma
figura que obriga os outros a trabalhar. (ROBERTO DAMATTA, 2003, p.
16-17).
154
Apresentei aqui essa reflexão de DaMatta por entendê-la de grande
significado no contexto dos relatos das pessoas adultas que retornam à escola,
mobilizadas pelas demandas do trabalho.
Segundo o texto em epígrafe, o conceito de trabalho é uma invenção,
temporal e histórica. O que é considerado trabalho numa época pode não ser
considerado em outra, sendo decisivas as normas para o seu reconhecimento,
não a atividade em si. Na sociedade capitalista, o reconhecimento dos diferentes
tipos de trabalho está associado à remuneração, implicando que às atividades não
remuneradas não se dá o reconhecimento como trabalho.
A “naturalização” ou convenção que atribui às mulheres a responsabilidade
pelo lar, liberando os homens para a vida pública, remonta aos séculos XVII e
XVIII, bem como à Grécia. Com a ascensão da classe burguesa, introduziu-se um
conjunto de tarefas que deveriam ser desenvolvidas pelas mulheres, concomitante
ao investimento na figura da mãe, do amor materno e da infância e reservando ao
homem o espaço público – a rua. Segundo DaMatta (2003), “a figura positiva do
trabalhador é recente entre nós, bem como a idéia de que a rua e o trabalho são
locais onde se pode honestamente enriquecer e ganhar dignidade. Nossa visão
do trabalho é ainda algo cercado de muita ambigüidade, senão de
negatividade”(p.16).
Contribuindo com essa reflexão Bauer (2001) relata:
Ao final do século XVIII, as tarefas femininas e masculinas estavam bem
definidas. [...] O conceito de trabalho passou a vincular-se
exclusivamente àquele realizado fora das dependên-cias do lar pelo
homem. As tarefas desempenhadas pela mulher no âmbito do lar
deixaram de ser consideradas trabalho, solapadas pelas idéias do amor,
da felicidade familiar e doméstica (p. 60).
Essa divisão entre a esfera pública masculina e os recônditos da vida
privada “essencialmente” femininos, não contemplou, nem contempla, a realidade
de todas as mulheres, inclusive das classes populares, que necessitaram e
necessitam do trabalho remunerado para garantir o sustento da família. Tanto que
155
o trabalho remunerado da mulher inscreve-se, segundo Sarti (1996), na lógica das
obrigações familiares.
Nesse sentido, Sarti (1996) diferenciou casa e família segundo o aspecto
da distribuição da autoridade na família: a casa é identificada com a mulher –
chefe da casa - e a família com o homem – o chefe da família.
o homem corporifica a idéia de autoridade, como mediação da família
com o mundo externo. [...] Cabe à mulher outra importante dimensão da
autoridade, manter a unidade do grupo. É ela que cuida de todos e zela
para que tudo esteja em seu lugar (SARTI, 1996, p. 43)
Esse pensamento ajuda-me a compreender a constante associação das
mulheres com a vida privada e dos homens com a vida pública. Na medida em
que o conceito de trabalho é uma invenção temporal e histórica, pode ser
alterado. Bruschini e Rosemberg (1982) reivindicaram-no como a “revisão do
critério de trabalho produtivo”, Mires (1996) denominou-o “tese da reinvenção do
trabalho”:
[...] en um momento em que se afirma que el trabajo há disminuido, es de
ampliar la noción de trabajo, reconociendo a muchas actividades como
trabajos. Si es así, quizás podemos llegar a una conclusión inesperada:
que el volumen de trabajo no sólo no ha disminuido, sino que además, en
las condiciones de una vida social compleja, ha aumentado. [...] Son
muy pocas las personas en este mundo que no saben o que no quieren
hacer nada. Convertir actividades en trabajos, trabajos en oficios, y
oficios en profesiones, es una tarea política muy importante. Si se llevara
a cabo sería imposible hablar de “desocupados”. (MIRES, 1996, 42-43,
grifo do autor).
Com os relatos de vida de homens e mulheres desta pesquisa, objetivo-se
contribuir para o avanço da discussão dicotômica trabalho feminino x masculino
e trabalho doméstico x trabalho produtivo , confirmando a tenuidade entre as
fronteiras das múltiplas vivências na esfera da vida privada. Entendo que tanto
nas concepções quanto nas ações não há determinismo, e, sim, condicionantes
que permitem a tessitura de regras e particularidades de cada grupo, nas
singularidades de cada história.
156
Associar trabalho e prazer, talvez seja o inédito anunciado por homens e
mulheres – pessoas da pesquisa. Aproximando-se do pensamento de Duarte Jr
(2003),
[...] essas tarefas cotidianas, aparentemente, tão maçantes quanto
improdutivas, [...] parecem constituir, durante o seu desempenho, não só
momentos propícios à meditação como ainda sua própria realização,
além de manter nosso corpo em movimento, também nos torna
conscientes da constante repetição dos ciclos universais nos quais
estamos inseridos (p. 109).
O envolvimento por completo e a necessidade de trabalhar, faz com que
Adão, Juarez e Gelson retornem para a escola, como forma de garantir o trabalho,
por várias razões, entre elas a sobrevivência, mas também pelo prazer que
proporciona e, talvez, para sentir-se incluído na esfera pública.
Então aqui apresento os relatos singulares que expressam a pluralidade
“trabalho”, como um sentido mobilizador entre os homens da pesquisa na busca
pela escola, mas também como cada um assume configurações próprias nas
interações que estabelecem e nos novos sentidos que se constituem.
Adão
Eles exigiram que eu fosse estudar até o
segundo grau”
Adão retorna para a escola através da empresa em que trabalha:
Foi por intermédio da firma. Eles exigiram que eu fosse estudar até o segundo grau.
Mas também expressa que ficou feliz, porque sempre pensara em voltar
para a escola, mas lhe faltara “coragem”. Ingressou na totalidade três e
atualmente encontra-se na seis. Ele fala com orgulho de seu “desempenho
escolar”: “Sempre fui esperto na escola, não estudei porque as coisas da vida não
deixaram”. E considera a adultez um tempo também de maturidade e um tempo
de aprendizagens:
157
Agora estou bem aqui, já avancei mais rápido que pensava, acho que estudar agora
adulto se tem a cabeça mais no lugar então a gente aprende.
Ao falar dos sentidos que encontrou por estar na escola, centra-se na
alegria de descobrir que o saber escolar não estava distante de seus saberes
construídos ao longo da vida.
Acho interessante que,...quando...eu tinha medo de não aprendê, mas quando que
cheguei, aí que começaram com essas coisa eu disse: ‘Mas essas coisa eu já aprendi’.
Principalmente português, história. História eu gosto mais. E disse: ‘Isso aí eu já aprendi,
é assim’. Daí foi indo né, matemática também no começo era bom. Eu sabia todas,
quando o professor terminava de fazê lá eu já tinha feito. Agora que tá mais complicado,
mas vai também.
Ao falar de suas descobertas, percebe-se em processo de auto-conhe-
cimento, e isso a coloca na condição de sonhar e planejar o futuro.
Eu vou terminar o segundo grau e fazer vestibular, acho que vou estudar história, adoro
as aulas de história. Não para ser professor, mas para saber mais sobre o mundo. E
quando me aposentar poder contar o que aprendi.
Charlot (2000) chama de “objetivação-denominação” o processo epistêmico
que constitui, num mesmo movimento, um saber-objeto e um sujeito consciente
de ter se apropriado de tal saber.
Juarez
E através da empresa que eu vim
estuda com vocês aqui”.
Juarez buscou a escolarização por exigência da empresa em que trabalha,
mas sente-se protagonista no processo de constituição do NEEJA, demons-
trando-se orgulhoso das conquistas realizadas. Ter iniciado no NEEJA junto com
os educadores da época coloca-o na condição de co-responsabilidade pela
existência do núcleo.
Comecei junto com vocês aqui naquela época do começo que nós tava sofrendo sobre a
briga que tava em Porto Alegre, que não dava certo. Aí, quando deu certo, era só alegria,
pois conseguimos uma escola para gente como eu que parou de estudá quando era
criança. Ah, professora, eu digo lá na firma isso foi a melhor coisa que vocês me
exigiram, adoro ir para a escola... me sinto em casa aqui, me sinto à vontade!
158
Para Giddens (2002), uma sensação física e psíquica de estar à vontade
nas circunstâncias rotineiras da vida cotidiana só é adquirida com grande esforço,
como fruto de uma ação regular, construída em processos interacionais, nos quais
ameaças potenciais são evitadas.
Também considera o tempo de lutas pela escola um tempo de apren-
dizagens:
Eu aprendi muito, com nossa luta, ir a Porto Alegre, dizer que precisamos de uma escola
porque as empresas exigem que a gente estude, me fez descobrir que se a gente luta
unido consegue. Acho que daquele tempo pra cá eu fiquei mais lutador pelas coisas que
quero.
A participação de Juarez na constituição do núcleo mostrou-lhe caminhos a
serem seguidos em busca de sonhos individuais a partir de uma vivência coletiva.
A ousadia de sonhar faz crescer a coragem de realizar coletivamente um sonho,
que, aos poucos, vai se transformando em movimento de vida, “no sentido de
empowerment ou da liberdade” (Freire, 1996, p. 135).
Ao falar das contribuições dos saberes escolares para sua vida cotidiana,
reporta-se às dificuldades que enfrentava para conversar com as pessoas que
considerava “mais graduadas”.
Eu tive muita dificuldade pra conversá com uma pessoa mais graduada. Antes de vir
estudá aqui eu não sabia conversá.E hoje então, através do estudo, fica tudo mais fácil,
porque você sabe mais, você pode conversa mais. E as conversas se cruzam, porque
quem estuda, estuda. Agora, se você não tá estudando, você só escuta. Converso com
aqueles doutor que pegam ônibus pra ir pra Universidade e não me sinto um ignorante.
Sentir-se ignorante, para Juarez, é estar distante do saber escolar e
próximo do saber popular. Esse fato me remete a frase expressa por Pablo
Neruda no filme O carteiro e o Poeta: “Pergunta aos doutores, se não te basta o
vento”.
A escolarização representou para Juarez a inauguração de uma nova fase
em sua vida, uma fase reconhecidamente valorizada pelo saber escolar, saber
que distingue os indivíduos e cuja ausência estigmatiza, inferioriza e subordina; ao
contrário, aproximar-se dele gera autonomia, confiança, felicidade.
159
Também manifesta que construiu vínculos de amizade no núcleo e agora,
prestes a concluir o ensino médio, sente um misto de sentimentos de alegria e
tristeza por afastar-se do convívio do núcleo:
Então vou sentir o dia que eu me forma, é uma alegria de me forma e uma tristeza de te
que sai aqui da escola.
Nesse sentido, Melucci (2004) contribui para compreendermos o
sentimento de Juarez. Mesmo não falando de “alegria e tristeza”, fala do riso e do
choro como sentimentos que se situam num contínuo emocional,
[...] e se pode passar de ao outro porque são duas faces da mesma
experiência, de um contato com a realidade em que prazer e dor
coexistem. Dimensões humanas da experiência que não podemos
separar. O riso ocasional pode transformar-se então em bom humor, uma
postura risonha para com a vida, postura que se alinha e coexiste com a
dor. Na relação entre riso e choro abre-se o acesso a um espaço de
gratuidade e de jogo, ao espaço da infância que cada um de nós carrega
dentro de si (p. 170).
A escola, para Juarez, não foi apenas um espaço de aquisição de saberes
historicamente sistematizados, mas um lugar de sociabilidade, traduzindo, na
expressão de Freire (2000), um lugar para fazer amigos, de Snyders (1993), um
lugar de alegrias e, de Fischer (2004), o lugar do pulsar da vida,
[...] e vida linda, curiosa, desafiadora e geracional. As relações entre os
saberes produzidos por todos os atores e em todas as áreas do
conhecimento, no território escolar, demandam cada vez mais a sua
visibilidade sem precisar dos disfarces das formas, dos legalismos que
compõe as extremidades desse processo. (p. 27)
Esse sentimento também é expresso pelas atividades que constituíram a
rotina de sua vida escolar, configurada na conversa, nos risos e nos lanches:
Vô senti muita falta. Por sofrido que seja, Carolina, é uma maravilha estar aqui, você
acostuma. Chega aquela hora você ta aqui conversando com todo mundo, trocando
idéia, dando risada, tomando nosso cafezinho, bolos, essas coisa.
Segundo Duarte Jr (2003), a conversa consiste também num fator de
identidade e de integração cultural. Por ela são trocadas não apenas informações
e dados, mas, sobretudo, afetos e sentimentos, esses elementos básicos para a
160
manutenção ou a transformação de uma dada realidade (p. 86). Talvez sejam
esses sentimentos de que Juarez sentirá saudade.
Gelson
“Busquei o NEEJA porque precisava
o certificado, para conseguir
emprego mas encontrei muito mais
Entre suas “lutas pela vida” busca a escolarização e encontra por meio
dela a possibilidade de realizar um sonho, ou de “viver com esperança”: Esse foi
o sentido da escolarização descrito por Gelson. Ao relatar a sua aproximação com
o NEEJA, expressa que aconteceu por “acaso”, somada a sua inquietação pela
necessidade de comprovar a escolarização para conseguir um trabalho. Eis o
relato:
Um dia eu passando na frente ali na Presidente Vargas e vi que tava escrito assim: -
inscrições pro EJA! Aí eu pensei mas eu vo vê, vo averiguá, daí eu entrei e a moça me
falo, tu pode, te inscreve assim, assim, você...pode completa o segundo grau e tudo. E
eu vi a possibilidade de...economizá no tempo, não de estudá, eu entrei no NEEJA no
intuito, assim, de pegá o canudo e apresentá lá na firma, dize olha só eu tenho segundo
grau, e agora vocês me dão o emprego.
Para Gelson, neste momento, a escola teria uma dimensão instrumental,
não relacionada com o saber escolar, mas à credencial fornecida pela
escolarização – o certificado que permite o acesso ao emprego.
Entretanto, no decorrer do processo de escolarização no NEEJA Gelson
encontra outras razões para estar na escola, talvez o que buscou em muitos
lugares em suas itinerâncias ao longo de seus 42 anos. Através das aulas de
química, descobriu que seu sonho poderia se realizar.
Nós estávamos ali lutando, eu e a minha esposa, nós já fazíamos algumas velas mas nós
dependia das formas dos outros, não tinha como comprar as formas. Então um dia, na
aula, a professora de química, a dona... Maris, exigindo de nós, projetos. Se alguém tinha
alguma coisa que pudesse ser utilizada, em casa ou utilizasse na escola e eu pensei
assim: ‘ Vou fazer formas? ou vou fazê a vela?’ Aí eu resolvi faze forma, mas eu não
entendia nada da forma, não entendia nada mesmo. Ai comecei a conversa com a
professora Maris.Ela disse: -‘ Bom vamo fazê um projeto, vamo estudar esse fato! E
começamos. Aí a gente fez, nós fizemos as formas, a gente fez apresentação todos os
161
trabalho, as velas vocês viram tudo feita né, tudo assim. Mas foi muito estudo assim que
a gente começo do zero,errando, acho que nós fizemo pelo menos umas 40 forma de
gesso e...que deu certo duas. No começo assim... bah, foi tão diferente. Hoje, eu pego
essas forma, eu faço, olha lá, bem caprichadinha, bem lisinha, que a gente faz, mas tudo
começo com aquelas rústica. Mas aquilo foi o início de tudo, foi algo assim que faz com
que a gente se sentisse importante. A gente estudou isso aí em agosto, e em setembro
eu já tava fazendo as velas e já tava vendendo, e foi assim que tudo começou,
realizamos o sonho e montamos nossa lojinha e trabalhamos com os filhos.
Dessa forma, os sentidos que mobilizaram Gelson a retornar para escola
são ressignificados, passando pelo rompimento de uma cultura escolar que nega
seus saberes e valoriza o certificado e cujos saberes não se relacionam com a
vida.
As buscas de Gelson pautavam-se num saber-objeto que lhe permitisse
viver com dignidade, ligando, assim, as idéias de dignidade humana, escolaridade
e trabalho. Esse saber-objeto foi se constituindo na convivência, nas descobertas,
nas aprendizagens e na interação com a sua cotidianidade. A escola tem sentido
para Gelson porque lhe permitirá definir os rumos de sua vida. Isso remete à
diferenciação do conceitos de política emancipatória e política-vida elaborados por
Giddens (2002).
A política emancipatória objetiva a libertação dos grupos não privilegiados
de sua condição negativa ou a eliminação das diferenças relativas entre os grupos
na sociedade. A política-vida é uma política da escolha, da decisão, da auto-
identidade. “Enquanto que a política emancipatória é uma política das
oportunidades de vida, a política-vida é uma política do estilo de vida” .
(GIDDENS, 2002, p. 197).
Vejo esses conceitos ilustrados nas seguintes falas de Gelson:
Hoje posso dizer: o NEEJA foi uma vida, uma vida boa que fez com que nós
aprendêssemos a conviver, primeiro, com a gente mesmo e, segundo o grupo. Porque a
gente aprendeu a dividi opiniões, além do trabalho, de como trabalhá. Eu sô empresário,
atualmente. Tenho uma loja de artesanato, como a senhora viu, tem vela, sabonete,
material para produtos de limpeza. A gente não se especializou na linha de artesanato.
Seguimos o lema da nossa empresa ‘faça você mesmo’, foi assim que apreendi no
NEEJA.
162
5.2.1 Fios comuns que expressam os sentidos que homens e mulheres
adultas atribuem ao processo de escolarização
“Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo...
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou...
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma...”
Fernando Pessoa
Os relatos até aqui apresentados trazem presentes “jeitos de ser gente”,
mostrando-nos valores que se entrelaçam e constituem sentidos singulares de
estar na escola. Dentre esses “jeitos” destaco as diferentes configurações dos
sentidos que mobilizaram homens e mulheres adultas para buscar a
escolarização.
Os homens centram suas razões no trabalho, mesmo ficando claro que o
ingresso no grupo lhes possibilitou atribuir outros sentidos para além das
exigências pragmáticas do trabalho, como tomar café, fazer lanche, conversar, rir,
descobrir-se aprendendo o saber escolar, lutar pela criação do núcleo. As
mulheres falam com a alma e assim expressam os sentidos que as mobilizaram à
escolarização, mas também suas dificuldades, medos e alegrias.
As histórias das mulheres apresentaram vários aspectos importantes a
serem considerados, entre as quais a diversidade de sentidos que indicam as
razões para buscar a escola o desejo de ler e escrever,de conhecer pessoas e
fazer amigos, a busca de emancipação, o desejo de ser mais - resgatar um sonho
e ensinar os netos – Também cabe considerar os processos subjetivos que lhes
demandaram “tempo” para tomar a decisão fazer a matrícula. Os relatos nos
apontam que estar matriculada não é condição suficiente para que consigam
estudar, pois a luta pela escolarização apresenta-se constituída de dois
momentos: um anterior à matrícula e outro posterior a esta.
Conseguir se matricular, conforme os depoimentos de Oraceli, Olga, Odete
e Sebastiana, pode ser considerado a culminância de um processo que vem
sendo construído desde a infância, quando lhes foi negado o direito à
escolarização, seja por motivos relativos à vivência familiar, seja por motivos de
doença, de trabalho, enfim, por quaisquer que sejam os motivos. Para garantir o
163
direito de assentar numa cadeira da sala de aula, essas mulheres passaram por
todo um processo, muitas vezes sofrido e violento, de afirmação de sua vontade
e, até mesmo, de sua identidade como mulher.
Os homens afirmam que buscaram a escola mobilizados pelas exigências
do trabalho, mesmo assim expressam estar resgatando um “sonho abandonado
pelas lutas da vida”.
Nesse sentido, homens e mulheres enfrentaram obstáculos de toda sorte,
refletiram sobre as suas vidas, seus próprios valores e, inclusive, sobre os valores
sociais predominantes. E essa reflexão fez com que criassem a oportunidade e
construíssem o momento de assumir a decisão pelos estudos perante o mundo do
trabalho e a vida familiar. Esse momento pode ser considerado como a
culminância da busca de escolarização, mas não representa o final dessa busca,
pois ela se desdobra numa segunda etapa, que desemboca no interior da escola.
Então, no próximo subcapítulo busco tecer as relações que se estabelecem no
contexto do núcleo.
164
/
A sala de aula - Lugar da vida?
Há lugares onde habitamos os pensamentos?
Se houver- serão lugares em que nosso corpo entenda de muitas
relações. Penso nas relações que tecem fios entre pessoas objetos e
símbolos:relações de sentidos. Sim. Através de nossos corpos
compreendedores a gente, vai se ver, possuídos pelas palavras, pelos
objetos e pelos símbolos. Lugares: a sala de aula. Ela ocupa em nossa
tradição escolar o lugar onde se desenvolve a escolaridade.
Será que a sala de aula é um dos lugares onde habita o pensamento?
Se for... quero procurar pelas relações que nela acontecem. Procurar
pelos sentidos, esses tecelões que relacionam pessoas, objetos e
símbolos.
Um desafio permanente me acompanha. Nessa minha procura eu me
pergunto: - a sala de aula... é o lugar da vida?
Adriano Nogueira
165
5.3 AS RELAÇÕES E OS ESPAÇOS – A SALA DE AULA
A sala de aula constitui e é constituída pelas pessoas,
que se relacionam e que interagem entre si e com os
conhecimentos, constituindo sentidos de ser e estar
na escola (Pasuch, 2005).
A escola é lugar de encontros e a sala de aula é um espaço de
protagonismos, onde se entrelaçam saberes e singularidades no espaço-tempo,
compondo sentidos.
Ao entrar nas salas de aula na condição de pesquisadora, busquei
compreendê-las na sua complexidade, como espaço dinâmico, onde se
entrelaçam dimensões políticas, culturais e pedagógicas, focando o olhar nas
múltiplas inter-relações, pois entendo que são as relações que expressam a
dinâmica social que constituem o cotidiano escolar. É no cotidiano que os sentidos
são expressos.
Dessa forma, o conteúdo da observação passou a se constituir a partir das
percepções focadas em aspectos relacionados à organização das turmas,
52
nos
saberes, nos não-saberes, nos vínculos, nas construções e nas expectativas.
Assim, passo a descrever o processo de entrada nas salas de aula para as
observações. Entrei em seis das 29 turmas do núcleo, correspondentes às
pessoas incluídas na pesquisa. Eis o relato personalizado.
a) A turma da Oraceli
É constituída por 23 pessoas, 14 mulheres e 9 homens, na faixa etária
entre 45 e 69 anos, que buscam aprender a ler e a escrever; apresentam vínculos
bastante fortes, aspecto observado na chegada através dos gestos de afeto, de
abraços, na organização das classes de forma que os pares se aproximem e
52
Apresenta-se com grande mobilidade, característica da EJA em especial pela forma como vai
se dando o processo de avanços de uma totalidade para outra no NEEJA.
166
possam se ajudar durante as atividades propostas pela educadora, nos diálogos,
demonstrando preocupação com os colegas que não estavam presentes.
Quanto aos seus aspectos físicos, demonstram cuidado com sua aparên-
cia. As senhoras têm cabelos bem cortados, alguns com coloração avermelhada,
cabelos presos, roupas bem cuidadas e corpos que não demonstram cansaço e,
sim, satisfação em estar naquele espaço.
Os homens, da mesma forma, apresentam-se com os cabelos curtos e
alguns usam boné; as roupas são bem cuidadas e alguns vestem o uniforme de
trabalho, demonstrando que a escola é um lugar de parada entre o trabalho e sua
casa. Suas fisionomias apresentam sinais de cansaço, diferentemente das
mulheres, todavia todos expressam de diferentes formas, gestos, palavras e
ações que estar na escola naquele momento é a possibilidade de realizar um
grande sonho – aprender a ler e a escrever. Como exemplo registro o que diz
Oraceli:
Rezo todas as noites para que Deus me ajude a aprender a ler e a escrever, pois é só o
que me falta na vida. (D C. 29/09/05).
Talvez esse sonho tenha como articulador as exigências cotidianas de um
mundo letrado que precisam enfrentar, como pegar um ônibus, escrever uma
carta, ler as cartas que chegam, ir ao banco, ir ao mercado. Segundo Moll (2005),
o analfabetismo, encarado como problema pessoal, de falta de
capacidade ou de vontade de quem o detém, é também um elemento
que leva as pessoas a construírem estratégias para decodificar o básico
sem que sejam notadas nessa condição [...] Estas estratégias sociais e
cognitivas, apesar de desenvolvidas num contexto de negação de uma
condição social indesejada, podem ser lidas como relevantes para a
realização desta aprendizagem e para a apropriação da língua escrita,
um saber que pode ser saboreado na medida em que sua construção
passa pelas dobras da vida (p. 12).
Nesta turma o trabalho pedagógico é realizado por quatro educadoras que
alternam os dias de atendimento. Esse fato desagrada os educandos e
educandas, fato percebido num diálogo estabelecido entre eles antes de a
167
educadora chegar à sala de aula, demonstrando preferência por uma só
educadora, argumentando:
É difícil aprender a ler quando cada uma ensina de seu jeito”.
Quando a educadora chega, eles a recebem com muito afeto e respeito,
demonstrando que a figura da educadora se constitui nesse grupo como sinônimo
de poder, “dona do saber”. A atividade pedagógica proposta pela educadora
apresenta aspectos de uma pedagogia tradicional, centrada na “cópia, leitura e
ditado”, e a turma parece estar adaptada a esses padrões, realizando
mecanicamente o que é solicitado. Como saídas para suas dificuldades, alguns
copiam do colega ao lado ou esperam a educadora colocar a palavra no quadro
para copiá-la. Enfim, a atividade centra-se em cópia de palavras e frases que a
educadora retira de uma cartilha infantil. Raramente, os educandos e educandas
fazem questionamentos.
Um aspecto que me chamou a atenção é a iluminação da sala de aula, que
causa reflexos no quadro, dificultando a visibilidade das palavras a serem
copiadas. Mesmo com essa dificuldade, eles buscam alternativas, como apagar
uma das lâmpadas, mudar de lugar, mas continuam copiando com dedicação e
interesse. Alguns procuravam “ler” com dificuldade, mas com muito entusiasmo,
em voz alta; em cada palavra lida a turma vibrava coletivamente, demonstrando,
assim, grande envolvimento com o aprender, mesmo que aprender, nesse
contexto, signifique simplesmente decodificar, memorizar, segundo Freire (1982),
uma prática pedagógica bancária.
Segundo Armellini (1993),
a maioria doa adultos que freqüentam as salas de alfabetização trazem
na memória as lembranças de uma escola da qual – devido ás
exigências e metodologias incompatíveis com a vida que levavam –
foram excluídos. Mas é essa escola das lembranças, objeto de temor e
desejo, que boa parte dos alunos tentam (re)encontrar. Por isso querem
“ler de carreirinha”, escrever bastante, ter uma cartilha para poder
decorar as lições, encher folhas e mais folhas de cópias e ter uma única
professora exigente e portadora de todo o saber (p. 32).
168
Talvez essas sejam as razões que mobilizam os educandos e educandas a
realizarem as atividades, pois acreditam que essas são as formas escolares que
lhes permitirão o ingresso no mundo letrado. Paiva (2001) reafirma essa posição
de cultura escolar construída historicamente que mobiliza homens e mulheres
adultas:
As práticas da escola pensam seu papel pela perspectiva da reprodução,
da conservação e pela transmissão de aprendizagens, os alunos a ela
retornam plenos dessa expectativa, seguros dela. Rompê-la é, por isso,
desmontar para si próprios a representação do que se faz ali e do que é
ler e escrever e aprender a ler e a escrever (p. 13).
No entendimento de Oraceli, “aprender é memorizar”: “
Gostaria de ter
decorado as letras, porque juntar é mais fácil
”. Ela se refere a uma prática muito
comum dos aprendizes da leitura, portanto, dos ensinantes também, que é a
leitura silabada. Essa prática está atrelada à concepção de alfabetização do
método sintético – em que se parte do simples ao complexo. A leitura é entendida
como a oralização de letras, decifração das letras em sons, estabelecendo as
relações fonema e grafema. Enfim, a mera decodificação dos sons das sílabas,
desprovidos de significado, sem retornar à totalidade da palavra, muito menos a
seu significado.
Procurei observá-los também em atividades realizadas no conjunto de todo
o núcleo, como a Gincana Farroupilha e a homenagem aos educadores e
educadoras. Nesses momentos, a unidade do grupo apresentou-se com maior
visibilidade, pois os educandos e educandas demonstraram que as dificuldades
de ler e escrever não os impedem de se revelarem na dança, no concurso do
chimarrão mais criativo, na receita do carreteiro e nas formas de expressar afeto e
carinho aos educadores e educadoras. Esses “jeitos de ser” imprimem sentidos de
estar na escola através da interação de saberes singulares que os acompanham
cotidianamente. Charlot (2000) entende a “relação com o saber” como um tipo de
relação com o mundo, caracterizado pela ação de procurar o saber.
As relações de saber, nas quais homens e mulheres se constroem, é fruto
da imersão nas múltiplas facetas do cotidiano, que permitem que eles aprendam
169
e, concomitantemente, ensinem; que eles se modifiquem e modifiquem o entorno,
num processo mútuo de conhecimento e autoconhecimento.
Assim, concordo com Freire e Nogueira (1993) ao apresentar os portadores
de conhecimento popular como pessoas com poder de narrativa muito amplo, que
fazem suas leituras da realidade “cantadas” no improviso, nas rodas de amigos,
nas rodas de bar, nas fofocas, piadas e orações e que têm como cartilha eles
mesmos, não se deixando objetivar pela rigorosidade dos conceitos. “A narrativa é
envolvimento e é, também, condição de criação de conhecimentos (p. 72)”.
b) Turma da Sebastiana
É uma turma constituída por apenas oito pessoas, dentre as quais seis
mulheres e três homens, um jovem (17 anos) e os demais com faixa etária entre
32 e 54 anos. Na observação dos diálogos que estabelecem expressam de
diferentes formas que sua expectativa naquele grupo é a complementação de
aprendizagens, como a leitura, a escrita e as operações básicas.
A turma interage com seis educadores em horários alternados. Na tarde da
presente observação estavam, inicialmente, com a educadora de matemática e,
posteriormente, com a de ciências. Ao chegar à turma a educadora de
matemática, fica visível que não existe uma vinculação forte entre ela e os
educandos e educandas, pois apresenta uma postura bastante rígida, dificultando
relações mais espontâneas e de trocas entre pares. Ela solicita que separem suas
classes e formem duas colunas, dizendo que eles deverão trabalhar individual-
mente. A postura da educadora contrapõe-se ao que Moll (2004) nos alerta em
relação a importância do grupo na educação de adultos. “A constituição de um
grupo no cenário escolar é indispensável para que a experiência de escola seja ao
mesmo tempo de diferenciação (sou como sou, com minhas raízes) e de
aproximação (aprendo com o outro, componho com o outro)” (p. 108). Desse
modo, a atividade grupal poderia se constituir como estratégia pedagógica no
contexto de sala de aula.
170
A atividade proposta relacionava-se a uma pesquisa de preços de
alimentos, solicitada na aula anterior. Com base na pesquisa foi solicitado que
criassem situações matemáticas individualmente; posteriormente, cada um leu a
situação criada, alguns com pouca fluência, e realizaram as operações no quadro
com o auxílio dos colegas e da educadora. Nesse momento percebi que seis dos
oito educandos demonstraram muita dificuldade em realizar operações básicas.
As mulheres, porém, expressaram estarem “mobilizadas com o aprender” quando
solicitaram à educadora o seu auxílio e também mais operações para se
exercitarem. Contudo, ao mesmo tempo, pareciam demonstrar certo “medo” da
não-aprendizagem da matemática ou certa desesperança, como expressou
Sebastiana:
Não sei por quê, matemática não entra na minha cabeça. Quando era criança, levei muita
reguada da professora para aprender e não adiantou. Agora depois de velha acho que
não aprendo mais.
Nesse sentido, Fonseca (2005) argumenta que os discursos proferidos em
torno da aprendizagem matemática têm sua origem e manutenção numa memória
coletiva que foi culturalmente construída e forjada numa memória semân-
tica.Salienta também que é preciso aprender a compreender e incorporar à
dinâmica pedagógica aquelas enunciações em que alunos e professores falam de
dentro da matemática “a partir de um modo de pensar matemático, construindo a
experiência de matematicar” (p. 233).
Talvez matematicar signifique encaminhar estratégias de ver, falar, pensar
e fazer matemática, estabelecendo uma relação com as necessidades reais de
suas vidas, como uma forma de adquirir autonomia, como relata Sebastiana:
Eu vou todos os dias no anoitecer fazer caminhada, pois o médico me receitou para a
circulação. Aí aproveito para pegar os folhetinho de mercado e ver onde tem oferta, levo
para casa e minha filha faz os cálculos para ver onde é mais barato. A gente ganha
pouco, então tem comprar o mais barato [...]. Única coisa que dependo da filha para fazer
as contas, agora as de mais já estou conseguindo.
Esse relato de Sebastiana apresenta uma certa ambigüidade em relação ao
anterior, quando diz que “nunca aprenderá matemática”, e agora admite já saber
realizar a operação adição, relacionando as vivências cotidianas. Nesse sentido,
171
pode-se dizer que Sebastiana está “matematizando”, talvez esse seja o caminho
para a realização de operações mais complexas.
Na seqüência da aula uma educanda saiu da sala após tocar seu celular e,
ao voltar, comunicou à educadora que teria de sair porque sua avó havia falecido.
A educadora autorizou sua saída e voltou-se para o quadro, continuando a
escrever as operações que os educandos e educandas deveriam desafiar-se a
resolver. A educanda voltou até sua classe e, aos soluços, arrumou sua pasta e
se retirou, sem receber nem uma palavra da educadora e dos colegas. Então,
levantei-me e fui até ela oferecendo-me para acompanhá-la naquele momento de
dor até o hospital, onde estavam seus familiares, mas ela recusou, agradeceu e
disse que encontraria seu irmão em frente ao núcleo. Questionei minha postura de
pesquisadora, mas minha condição de ser “gente” ultrapassou as determinações
da ciência. Esse fato reafirmou o que havia percebido anterior-mente, um grupo
com poucos vínculos afetivos, talvez refletindo uma dinâmica da sociedade
contemporânea, pautada na fragilidade dos laços humanos – falta da
amorosidade pregada por Freire (2000), como sentimento primário próprio do
homem, que aguça a humildade em busca da superação do egoísmo, das
desigualdades e dos preconceitos.
O amor é uma tarefa do sujeito. É falso dizer que o amor não espera
retribuições. O amor é uma intercomunicação íntima de duas
consciências que se respeitam. Cada um tem o outro como sujeito do
seu amor. Não se trata de apropriar-se do outro (p. 29).
Nesse sentido, cabe também tomar como orientação, na perspectiva de
mudança, as palavras de Hannah Arendt , apud Bauman (2004):
O mundo não é humano só por ser feito de seres humanos, nem se torna
assim somente porque a voz humana nele ressoa, mas apenas quando
se transforma em objeto de discurso... Nós humanizamos o que se passa
no mundo e em nós mesmos apenas falando sobre isso, e no curso
desse ato aprendemos a ser humanos (p. 177).
Assim, tanto Freire como Arendt nos convocam para a tarefa humanizadora
que devemos assumir como “gente”, mas, principalmente, como educadores que
acreditam em um mundo verdadeiramente humano, onde o amor entre homens e
mulheres, seres inacabados, se configure como a tônica da vida.
172
Em seguida houve o intervalo, a educadora saiu e eu permaneci no grupo.
Os homens saíram e as mulheres se agruparam e passaram a conversar. Uma
delas tirou uma garrafa térmica da bolsa e a outra uma cuia, bomba e erva-mate;
foram até a cozinha e voltaram com um chimarrão, oferecendo-o a mim como
gesto de delicadeza e acolhimento. O chimarrão marcou um momento de abertura
para o diálogo, quando elas comentaram sobre a colega que perdera a avó, que
estava há meses no hospital. Também surgiram as queixas da professora, que
exige muito deles, não os deixa conversar nem se sentar junto com os colegas
para se ajudarem mutuamente. Sebastiana expressou:
Deus nos livre! É uma fera, todo mundo fica quieto, ela grita, hoje ela tá calma porque a
senhora está aqui! Tomá chimarrão na aula como a gente faz com as outras, nem
pensar. Muitos colegas desistiram porque têm medo dela. Nós era em trinta, agora é só
oito ou dez.
Senti nesse grupo que os vínculos de amizade são determinantes de
sentidos e do aprender. Nesse sentido, cabe entender o que significa uma
“amizade” nas relações humanas. “A amizade é uma forma de amor e de ética. É
um vínculo que faz bem aos envolvidos, fornecendo o caminho para a sabedoria e
a felicidade, tal como pensavam os gregos antigos” (Alberoni, 1989, p. 56).
Confúcio (551-479 a.C.), apud Alberoni (1989), enumerava cinco tipos
fundamentais de relações interpessoais: a relação entre imperador e súdito, a
relação entre pai e filho, a relação entre homem e mulher, a relação entre irmão
maior e irmão menor e a relação de amizade. As quatro primeiras são
hierárquicas, entre superior e inferior. Somente a amizade é relação entre iguais.
Essa relação de iguais deve permear as relações pedagógicas, no mesmo sentido
que Freire, ao longo de suas obras e vivências, propõe a dialogicidade, na qual o
ato do conhecimento acontece numa triangulação enriquecedora entre educador,
educando e conteúdo, constituindo redes, a que eu chamo de “redes de
significações”.
Após o intervalo, foram dispensados, pois a educadora que trabalharia com
aquele grupo precisou encaminhar uma atividade e atender outra turma “maior”,
nas suas palavras. Então, Sebastiana sugeriu que conversassem sobre o Festival
173
de Talentos, pois deveriam decidir o que apresentariam. A resposta soou com
unanimidade e com ar de certa revolta :
– Não vamos participar, nós precisamos é de aula. A gente vem aqui nem professor tem,
e aí querem que apresente talento.
Em síntese, a turma apresenta-se com grande desejo de aprender, de
interagir e de construir novos saberes, mas, ao mesmo tempo, talvez a pedagogia
da amorosidade pregada por Freire (2003) encontre sintonia com os desejos
expressos por esse grupo: “não há educação sem amor. [...] Não há educação
imposta, como não há amor imposto. Quem não ama não compreende o próximo,
não o respeita” (p. 30).
c) Turma da Odete
Ao chegar à turma, fui acolhida com grande carinho com frases como: “
Seja bem-vinda!” “– Fique à vontade!” Essas frases expressavam o clima de
acolhimento e bem-estar que todos compartilhavam.
É uma turma constituída por 18 pessoas, dentre as quais oito são mulheres
e dez homens, um adolescente (16 anos) e os demais com faixa etária entre 27 e
56 anos. Homens e mulheres demonstram cuidado para consigo, apresentando-
se com cabelos e roupas bem cuidados, aspecto alegre, mesmo que transpa-
recendo algum cansaço. Segundo seus diálogos e gestos, expressam que gostam
do convívio e estabelecem relações de amizades com vínculos sólidos. Suas
expectativas convergem para a conclusão do ensino fundamental e médio, mas
também se preocupam em aprender os “saberes escolares”.
A turma interage com seis educadores em horários alternados. Na da
presente observação, a atividade pedagógica estava sendo coordenada pelo
educador de matemática. Ao chegar à turma, ele fez brincadeiras falando de
futebol, e os educandos e educandas interagiram também em tom de brincadeira,
assim iniciando uma agradável aula sobre frações. O educador foi criando
situações e desafiando os educandos e educandas a construírem conceitos
matemáticos utilizando situações vivenciadas no cotidiano.
174
Percebemos um clima de respeito mútuo entre educador, educandos e
educandas no que se refere aos diferentes saberes de que são portadores. A aula
foi permeada por muitas trocas entre pares e muitas mediações pelo educador.
Percebiamos que os desafios propostos eram enfrentados com prazer, pois eles
se sentiam apreendendo.
A postura do professor me remete a Moll (2005):
Fazer-se professor de adultos implica disposição para aproxi-mações
que permanentemente transitam entre saberes construí-dos e
legitimados no campo das ciências, das culturas e das artes e saberes
vivenciais que podem ser legitimados no reencontro com o espaço
escolar. No equilíbrio entre os dois acontece a escola possível para
adultos (p. 17).
Nesse grupo encontra-se Odete, que exerce grande liderança no grupo, é
uma pessoa alegre e entusiasmada com os processos vividos no núcleo e
participa do CENEJA
53
; também se preocupa com os colegas e com o clima de
acolhimento. Ilustrando tal percepção, relato o que se passou nesta noite de
observação. Era uma noite de chuva e, enquanto o grupo se envolvia com as
atividades da aula, Odete convidou uma das colegas para saírem da sala,
retornando minutos após com um chimarrão e uma bacia de pipocas, que
ofereceram ao professor com o seguinte comentário:
Estudar é bom! Mas precisamos trazer um pouco do que deixamos em casa para que
fique mais agradável. Agora, se estivéssemos em casa, estaríamos tomando chimarrão,
comendo alguma coisa. Então combinamos com a turma e cada dia alguém faz o
chimarrão. Acho que não vai atrapalhar a aula! Se algum professor não gostar, a gente
não faz na aula dele.
d) Turma da Olga e do Adão
É uma turma constituída por 26 educandos e educandas – 16 mulheres e
10 homens com uma faixa etária entre 34 e 69 anos. Chamou a atenção a não-
existência de adolescentes e jovens na turma, característica que se faz presente
nas demais turmas do turno da noite.
53
Coletivo de Educandos do NEEJA – Funciona como um conselho que se reúne quinzenalmente
para participar das decisões administrativas do núcleo.
175
Acompanhei essa turma em dois momentos em sala de aula, pois aqui
interagem duas pessoas da pesquisa – Olga e Adão. Ao chegar à turma, tive
vontade de ali ficar mais tempo, pelo acolhimento e clima de companheirismo nela
existente. Talvez isso seja fruto do tempo de convivência, pois a maioria dos
educandos e educandas ingressaram no núcleo juntos na Totalidade Dois
54
e eles
vêm construindo coletivamente suas trajetórias em busca da escolarização ao
longo dos últimos três anos. É um grupo que se mantém com grande unidade,
nele sendo perceptíveis os laços de amizade que se constituíram para além do
núcleo, como foi possível perceber nas conversas, nos gestos e pelo cuidado que
expressam uns para com os outros.
Relato aqui sucintamente uma das atividades dessa turma. Era uma aula
de ciências, na qual o tema trabalhado tratava da alimentação e da adição de
produtos químicos nos alimentos. Os educandos e educandas trabalharam com
grande integração, com a turma dividida em cinco grupos; era perceptível que o
critério utilizado para o agrupamento fora a afinidade, construída ao longo das
vivências.
A atividade consistia em buscar dados em rótulos de alimentos coletados
anteriormente, listando os aditivos químicos que constituem cada um, bem como o
seu valor calórico. Durante o estudo a educadora foi fazendo mediações em cada
grupo, trazendo presentes as constatações e os conceitos trabalhados
anteriormente, como aditivo químico, composto químico, ração química e valor
calórico. Nesse momento emergiram saberes do cotidiano e do mundo do
trabalho, pois muitas educandas e educandos trabalham em indústrias, na
produção de alimentos, como na Bungue, Frangosul e Perdigão. É o caso de
Adão, que trabalha na produção de óleo de soja na Bungue alimentos. Nesse
momento Adão passou a relatar o processo pelo qual passa a soja até chegar ao
consumidor, os componentes químicos que são utilizados e as formas de
utilização. Também se fizeram presentes os saberes das mulheres que trabalham
em restaurantes e das donas de casa ou preparam a alimentação diária da
família. Esses saberes foram sendo organizados em painéis e apresentados à
turma no segundo momento da aula. Durante a apresentação foi possível
54
Grupo que desenvolve atividades pedagógicas correspondentes a pós-alfabetização.
176
perceber a desenvoltura e a clareza das falas, pois pareciam falar num ambiente
muito familiar, assim transparecendo a dimensão dos vínculos que estabelecem.
Ao final do trabalho, a educadora, os educandos e as educandas
realizaram a avaliação da atividade. Nesse momento cada um expressou, com
palavras e gestos, a sua percepção do trabalho, manifestando com sinceridade
aspectos positivos e negativos, bem como aprendizagens percebidas e
dificuldades apresentadas. Enquanto falavam, a educadora anotava suas falas e,
posteriormente, comentava-as esclarecendo dúvidas e encaminhando atividades
para aprofundar o estudo na próxima aula.
Nesse sentido, a educadora demonstrou uma postura de escuta sensível,
ampliando o olhar para a vida cotidiana de homens e mulheres daquele grupo.
Assim, os educandos, ao serem ouvidos e serem vistos, colocam-se em outro
lugar nos espaços sociais nos quais transitam: “pode (re)colocá-los na vida
pública, predispondo-os de outra maneira no universo de saberes entre os quais
transita a escrita” (MOLL, 2005, p. 17).
Meu segundo momento nessa turma foi uma aula de educação artística, na
qual preparavam a apresentação no Festival de Talentos. Eles escolheram
encenar a “Escolinha do professor Raimundo”,
55
escolha que se deu, segundo
Adão:
- Nossa turma tem muitas pessoas “bem humoradas” e contadores de piadas. Acho que
nosso talento é fazer os outros rir.
O texto foi produzido coletivamente na aula de português, na qual cada um
foi criando um personagem para si; após, escolheram os melhores personagens.
Foram selecionados 15 personagens; após, passaram a trabalhar na confecção
do cenário e na produção das roupas. Novamente emergiram diferentes saberes,
e as trocas foram se dando de forma interessante, como, por exemplo:
Adão ensinou o colega de cinqüenta anos a pregar botão, pois faria
um personagem que deveria usar uma roupa com muitos botões;
55
Quadro do programa humorístico da Rede Globo.
177
Olga ensinou a educadora a fazer flores de meia de náilon, que
havia aprendido no grupo de terceira idade que freqüenta.
Esse entrelaçamento de saberes foi se dando durante toda a aula, de uma
forma alegre, mas geradora de expectativas e ansiedades, pois a noite do festival
se aproximava. Para muitos seria a sua primeira participação em peça teatral “a
estréia na arte de representar em público”- como expressou uma educanda, que
faria o papel de aluna rebelde. Ao falar de seu personagem, ela expressou:
Acho que vou me inspirar na rebeldia de minhas filhas adolescentes...Estão me deixando
de cabelo branco...toda semana aprontam uma na escola.
Ao final da noite as tarefas foram redistribuídas, pois o tempo não fora
suficiente para concluir o figurino e o cenário. Observei que os homens receberam
atribuições na mesma proporção das mulheres, caracterizando certa igualdade de
deveres e direitos, mesmo que alguns deles tenham demonstrado certo
constrangimento.
Entendi essa noite como de grande significado para todos, geradora de
sentidos, e aqui me incluo, numa condição de não-neutralidade, mas também
alguns questionamentos permearam minhas reflexões: Esses saberes se
apresentam como saberes da vida entrelaçados aos saberes que a escola
institucionalizou? A percepção de suas aprendizagens individuais (saberes)
constitui os sentidos da escolarização?
Na busca de uma possível resposta, remeto-me a Freire (2004), que, ao
falar de saberes e práticas pedagógicas, refere-se à pesquisa que deve preceder
todo o trabalho pedagógico e que possibilitará que o mundo dos educandos e
educandas participe objetivamente dos conteúdos trabalhados, numa co-produção
entre educador, educando e educanda. Então eis suas palavras:
[...] devem ser conteúdos obrigatórios à organização programática da
formação docente [...]; de compreensão tão clara e tão lúcida quanto
possível [...], elaborada na prática formadora [...], assumindo-se o
formando “como sujeito também da produção do saber”, reconhecendo
que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para
a sua produção ou a sua construção (FREIRE, 2004, p. 24-25).
178
e) Turma do Juarez
Constituída por 18 educandos e educandas – 8 mulheres e 10 homens ,
numa faixa etária entre 18 e 60 anos, é uma turma que contrasta com as demais
do núcleo em relação à faixa etária, pois apenas três pessoas têm idade acima
de 25 anos; a maioria fica na faixa entre 18 e 20 anos, caracterizando uma turma
de jovens onde alguns adultos se encontram inseridos, entre eles Juarez, o mais
velho da turma, com sessenta anos. Procurei observar as interações tecidas
nesse contexto, onde emergem muitas trocas, respeito e companheirismo,
independentemente de suas idades.
Os jovens que constituem essa turma são pessoas que reprovaram no
segundo ou terceiro ano do ensino médio, no ensino regular, e que buscam no
núcleo concluir essa etapa de escolarização e caminhar rumo à universidade.
Essa meta contrasta com as das poucas pessoas adultas do grupo, sendo
possível ilustrar essa percepção com o que expressou Juarez:
Estudar com essa criançada, professora, faz a gente se sentir jovem outra vez. Eles
estão sempre alegres, cantam, dançam, namoram, brigam, mas ta sempre tudo bem.
...sabem o que querem, falam o tempo todo em fazer vestibular, às vezes me paro
pensando: será que tenho idade ainda para fazer vestibular?
No momento em que estive com este grupo acontecia uma aula de
português, na qual discutiam um texto de Leonardo Boff que reflete sobre a
questão da ética. O texto abria margem a questionamentos e tomadas de
posições. Nesse trabalho foi possível perceber que as discussões mediadas pelo
texto expressavam as diferentes concepções de mundo e, como ilustração, é
possível destacar seguinte o diálogo:
Educadora: - O que é ética?
Juarez
56
– Ética é saber respeitar os outros, não roubar, não matar, falar sempre a
verdade.
Educando
57
- Ter ética é não deixar as pessoas morrerem de fome. É fazer exatamente o
que os políticos de Brasília não fazem, é saber que somos todos irmãos, que vivemos no
56
60 anos
57
18 anos
179
mesmo planeta. Não é porque eu tenho 18 anos que tenho que me sentir melhor que os
outros que têm mais idade, nem eles que têm mais idade achar que sabem mais...Ter
ética é saber respeitar.
Através do questionamento feito pela educadora e pelas inúmeras
intervenções foi possível perceber um excelente clima de respeito para com ela,
bem como a forma amável como se tratavam mutuamente, expressando vínculos
fortes. Momentos depois, fiquei sabendo que essa educadora havia sido escolhida
para “madrinha da turma”.
No segundo momento da aula realizaram algumas combinações a respeito
da festa de formatura, pois estavam concluindo o ensino médio. Esse momento foi
coordenado pela representante da turma, que demonstrou grande poder
mediador, respeitando sempre a opinião de todos e tomando cuidado para não ser
autoritária.
Iniciou-se, então, a aula de química, com a exposição de muitos conceitos
e pouca relação com a química do dia-a-dia, situação que foi cobrada pela turma,
pois muitos educandos expressavam:
- Professora, onde que vamos aplicar esses “esqueminhas” na vida? Eu não vou
aprender isso nunca.
A educadora responde:
- Isso vai cair no vestibular! Não vão fazer o vestibular?
Apenas dois responderam à pergunta afirmativamente; os demais, mesmo
inquietos, tentavam realizar os exercícios propostos e auxiliavam-se mutuamente.
Juarez contou com o auxílio de uma colega (uma moça que manifestara que iria
fazer vestibular), prestando muita atenção, e ao final do exercício suspirou
expressando:
-Acho que apreendi!
180
Posteriormente, sentou-se ao meu lado, fato que me permitiu em alguns
momentos interagir e / ou ouvir e sentir suas realizações e dificuldades em relação
ao que estava sendo proposto. Ele observava o trabalho de um colega ao lado,
em alguns momentos rabiscava em sua folha, mas era evidente em sua
expressão que não estava entendendo aqueles conceitos. Num certo momento
perguntei-lhe: “Está conseguindo realizar”? “Ele respondeu”:
- É difícil, tenho a cabeça meia dura para essas coisas, mas vai!!!
Aos poucos encontrou uma saída para a sua dificuldade. Dobrou a folha,
colocando-a no meio do caderno, pegou sua pasta, levantou-se e disse à turma:
- Pessoal, hoje tenho que sair mais cedo, pois tenho que substituir um colega.
Professora, vou fazer em casa essa folha.
O que realmente fez Juarez ir embora? O trabalho? As dificuldades em
realizar as ligações químicas? O medo de revelar-se diante da dificuldade
apresentada?
5.3.1 Fios comuns que se entrelaçam nas relações e constituem sentidos
para estar no núcleo
“Pessoas são pessoas através de outras pessoas”
(Ditado Xhosa – língua materna de Nelson Mandela)
58
Serão as relações que constituem os sentidos que os fazem permanecer no
núcleo?
Esse questionamento permeou o processo de observação realizado nas
diferentes situações de vivências no núcleo, anteriormente relatado.
A resposta foi se dando a cada interação observada, onde os diferentes
“fios” se entrelaçavam, constituindo novas singularidades e novas pluralidades,
58
Epígrafe do texto: Uma perspectiva teórico-metodológica para a análise do desenvolvimento
humano e do processo de investigação – Maria Clotilde Rossetti-Ferreira, Kátia S. Amorim, Ana
Paula S. Silva.
181
acionando, assim, elementos de ordem contextual e pessoal, (re)configurando
redes de significações e delas deixando emergir os sentidos expressos através:
da superação do medo de não aprender o saber escolar;
dos laços de amizade;
do espaço de escuta e visibilidade;
da valorização dos saberes construídos na “escola da vida”;
da participação comunitária;
do saber escolar como articulador de outros processos de vida;
do grupo como instituinte do espaço de pertença.
Nesse sentido, entendo,a rede de significações como Rosseti-Ferreira
(2004),
[...] uma construção dinâmica e dialética de relação entre esses diversos
elementos (componentes pessoais, campos interativos, cenários e matriz
sócio-histórica) cria o que vimos metaforica-mente denominando de rede
- rede de significações. A depender da articulação entre os fatores e
significações presentes em uma situação, uma determinada configuração
da rede é obtida, a qual estrutura, significa e canaliza um conjunto de
ações, emoções e concepções possíveis, contemplando condições
macro e micro-individuais (p.28).
Dessa forma, entendo que a dialética que constitui os sentidos que
homens e mulheres atribuem à escolarização está interligada ao diálogo social
que o engloba e é explicitada pelas múltiplas vozes sociais que o envolvem,
revelando as semelhanças e contradições, os pontos de encontro e as
divergências.
Nesse sentido, o NEEJA se constitui na vida desses homens e mulheres
como um campo interativo fundante de seus desenvolvimentos pessoais, um lugar
onde as relações fazem emergir os sentidos que os fazem estar na escola e
interagir com seus saberes, entendendo-os como Charlot (2000) que o saber
escolar “ tem um sentido e um valor como tal, [...] por referência às relações que
supõe e produz com o mundo, consigo, com os outros” (p. 64).
Na perspectiva da RedSig, esse desvelar se coloca como necessário, pois
os sentidos não se encerram, mas estão em um contínuo tornar-se, constitutivos
da produção e reprodução da vida social. Assim, é possível dizer que os sentidos
expressos pelas pessoas da pesquisa encontram-se circunscritos em seus
182
processos de vida e, por isso, assumem diferentes configurações, dependendo
das dimensões temporais e contextuais em que estão imersos.
Portanto, foi possível observar com a pesquisa como os sentidos atribuídos
à escola e ao saber escolar recebem influências das representações sociais que
foram historicamente constituindo “marcas” em suas trajetórias de vida e
construindo imagens de uma cultura escolar na qual “o professor é o ‘dono’ do
saber”, “o professor ensina e o aluno aprende”, “quem não aprende o saber
escolar é ‘cabeça dura’”. Essas marcas se manifestam nas expressões de “medo”
e da “vergonha”.
Ao observarmos as trajetórias escolares desses homens e mulheres é
possível visualizar que o medo de errar aparece, mesmo que de forma não
explícita, como constante nas memórias dos processos de escolarização da
infância e da adolescência de todos eles, situação que se repete na vida adulta,
vinculado à vergonha de ser ironizado tanto por colegas quanto por professores,
levando-os a reagir de várias formas: afastando-se da sala de aula ou mesmo
calando-se e permanecendo com a dúvida que os faz se calar.
Nesse sentido, Arantes (2003) contribui definindo e, ao mesmo tempo,
diferenciando os sentimentos de medo e de vergonha que se constituem nas
relações escolares:
O medo surge sempre quando há oposição e hierarquia ( de direito ou de
fato, como pela força bruta) entre os indivíduos envolvidos, e a vergonha,
quando há alguma comunhão de idéias, algum sentido de pertencimento:
o medo pode estar presente na relação professor aluno quando estes
são adversários; a vergonha pode se instaurar quando são co-partícipes,
quando formam uma equipe, quando o aluno quer continuar a merecer o
respeito do professor e o próprio (p. 175).
Tais situações se colocam como desafio aos educadores e educadoras,
enfrentados em muitos grupos observados, onde essas representações vão sendo
(re)significadas nas relações que estabelecem e nas práticas pedagógicas. Assim,
realiza-se o que Moll (2005) chama de “trajeto de retorno e de ‘inscrição simbólica’
no espaço escolar” p. 2) e, nesse mesmo sentido, Freire (1996) indica recorrer a
posturas pedagógicas permeadas pelo respeito mútuo aos diferentes saberes, à
cumplicidade e à amorosidade na relação pedagógica: “a atividade docente de
183
que a discente não se separa é uma experiência alegre por natureza [...]. Ensinar
e aprender não podem se dar fora da boniteza e da alegria” (p. 60).
Enfim, tudo que visualizei até aqui, através das trajetórias e das relações
estabelecidas por homens e mulheres adultas, reafirmou uma compreensão de
educação preconizada por Craidy (2006)
59
, cuja “sua grande finalidade é fazer as
pessoas mais felizes”. Esse é o desafio que educadores e educadoras, em
especial da educação de adultos, precisam enfrentar em seus “que-fazeres”
cotidianos.
59
Palestra proferida aos alunos do mestrado em educação na Universidade de Passo Fundo – RS,
em 13 de setembro de 2006, às 14 horas.
184
6 CONCLUSÕES
Inacabamento do ser ou a sua inconclusão;
é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento.
Paulo Freire
Não é fácil colocar um ponto final, talvez até não seja possível. A sensação
que tenho é de que haveria ainda muito a dizer. Mas assumindo o caráter de
incompletude, seja pelas minhas fragilidades teóricas, seja pela complexidade do
próprio objeto de pesquisa, posso afirmar que muito aprendi nesse percurso que
se materializa nos capítulos que compõem esta dissertação.
Essas aprendizagens permitiram-me um (re)significar de minha própria
rede de significações, onde novos fios se entrelaçaram com os meus “que-fazeres
da vida”, permitindo-me entender a pesquisa na perspectiva que Freire(2000)
anuncia, como um processo de ação educativa e auto-educativa, de
conhecimento e de anúncio: “Pesquiso para constatar, constatando, intervenho,
intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e
comunicar ou anunciar a novidade” (p. 32). Também aprendi a cultivar a
esperança no profundo sentido do ato de pesquisar, proposto por Fischer (2000)
ao dar a devida atenção à condição reflexivo-solidária como prática permanente
na pesquisa.
Diria que nos tornamos seres de diálogo com nossos objetos de
pesquisa na medida em que, ao longo do trabalho investigativo,
explicitamos – em primeiro lugar para nós mesmos – os pressupostos
que sustentam nosso fazer investigativo. Ao mesmo tempo, há que se
exercer o diálogo com nossos pares, não só na etapa de construção de
projetos, mas ao longo do processo e, depois, na socialização dos
resultados (p. 9-10).
Tais aprendizagens permitiram-me repensar os processos de escolarização
na vida adulta, buscando focar o olhar nas “pessoas”, não nos formalismos
institucionais, que historicamente vêm permeando a Educação de Adultos em
nosso país. E assim, pude me aproximar de uma nova perspectiva de
compreensão do saber cientifico, que traduz a experiência em ciência,
entendendo-a como a expressão das diferentes formas de ver e explicar o mundo,
185
que Mires (1996) chamou de “revolução paradigmática”, Santos (1999), de
“paradigma emergente”, e Melucci (2005), de “virada epistemológica”, que coloca
em questão o dualismo sujeito / objeto, fatos / representação, realidade /
interpretação.
Assim, a forma que utilizo para apresentar as vivências de homens e
mulheres adultas nos textos que compõem a dissertação busca reafirmar as teses
principais de Melucci (2005), que caracteriza a virada epistemológica – a
centralidade da linguagem, que “é culturalizada, de gênero, étnica, sempre ligada
a tempos e lugares específicos” (p. 33) - mudando o objetivo da pesquisa social,
logo, uma realidade não se explica por si só e, sim, em um sistema interligado de
conexões e interconexões, onde a explicação emerge dos processos nos quais o
conhecimento é produzido, através de trocas dialógicas, constituintes e
constituidoras de cultura.
Nesse sentido, cabe lembrar Geertz (1978), que, ao falar da cultura e de
sua constituição, nos diz que não é nem funciona como um misterioso sistema de
estruturas ocultas, entre quase indecifráveis instâncias e tessituras de símbolos,
significados, ritos e mitos. E, sim,
[...] aquilo que acrescentamos ao mundo de natureza e que nos fez e
refaz como seres humanos - objetiva-se na vida de todos os dias como
teias e tramas de símbolos, de saberes e de sentidos que nós mesmos
criamos, entretecemos e buscamos decifrar. Teias e tramas que são
criação nossa e em que nos enredamos para criamos juntos os difíceis
múltiplos cenários humanos da partilha da vida (p. 16).
Encontrei sintonia com tal concepção epistemológica na perspectiva
metodológica da Rede de Significações, que me permitiu visualizar os sentidos
atribuídos por pessoas adultas à escolarização, compreendendo que tais sentidos
podem estar na articulação entre tempos e campos interativos numa relação
dialógica e dialética.
As vivências de Oraceli, Olga, Odete, Sebastiana, Adão, Juarez e Gelson
são tecidas por muitos fios, alguns aparentemente comuns, outros que assumem
formas singulares nos diferentes tempos de vida. Esses fios podem ser
comparados com as conexões de uma bolha de sabão, multifacetada, que se
186
reconfigura a todo instante, dependendo dos elementos com os quais interagem e
dos limites que os circunscrevem pelo caminho, aqui e ali, num tempo de infância,
num tempo de adolescência e de adultez ou de maturidade. Dentre essas
conexões, há novas conexões pela rememoração ora de um, ora de outro,
tornando-se cúmplices entre si como sujeitos, constituidores de sentidos.
Os sentidos atribuídos à escolarização por homens e mulheres adultas
produzem-se em contextos de grande complexidade e podem ser definidos como
sentidos mobilizadores – que levam à busca pela escolarização, num primeiro
momento, e, posteriormente, traduzem-se nas relações em outros que os fazem
permanecer na escola. Dessa forma, cabe concordar com Charlot (2000) quando
diz que “o sentido é produzido por estabelecimento de relação, dentro de um
sistema, ou nas relações com o mundo ou com os outros” (p. 56).
Então, é possível considerar as relações como constituidoras e consti-
tuintes dos sentidos que os fazem permanecer no NEEJA, assumindo, assim,
formas singulares por sua dinâmica própria e por seu confronto com os outros
mundos, consigo e com os outros seres humanos.
O processo da pesquisa, também esteve permeado por reflexões sobre as
contribuições possíveis à educação de adultos. Tais reflexões estiveram apoiadas
ao que Santos (1999) chama de “paradigma emergente da ciência contem-
porânea”,no qual “[...] é necessária uma outra forma de conhecimento, um
conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe e antes nos una
pessoalmente ao que estudamos”, e também no que Da Matta (2005) chama de
“ciência do concreto”.
Nesse sentido, entendo que as trajetórias das pessoas da pesquisa
apontam reflexões importantes para o campo pedagógico, colocando as pessoas
– homens e mulheres adultas – como centro desses processos, pois os saberes
expressos em suas trajetórias de vida têm muito a ensinar. Esses saberes têm a
cor e o sabor da amorosidade e da sensibilidade e atuam como articuladores de
uma escuta e de um olhar sensível. Esses saberes podem ser traduzidos nos
gestos, nos olhares, nos movimentos, nas palavras ditas e nas caladas no dia-a-
187
dia de sala de aula, mas também podem incorporar práxis de vida – Seriam esses
os saberes que buscamos como educadores e educadoras da educação de
adultos?
Talvez sejam possíveis na (in)conclusão deste estudo, no entrelaçamento
com as reflexões acima, alguns apontamentos, que poderão contribuir na
qualificação dos educadores e educadoras de homens e mulheres adultas que
buscam escolarizar-se nesta fase da vida:
conceder importância ao conhecimento das histórias dos sujeitos
para além da categoria “alunos” e para além do que está visível na
aparência objetiva de seus históricos de escolarização anterior,
compreendendo-os como homens e mulheres portadores de infinitos
saberes, provindos de experiências sociais, culturais e afetivas que
lhes permitiram acúmulo de saberes em diferentes campos;
inteirar-se das relações de saber dos sujeitos não apenas para
valorizar as experiências de vida que trazem consigo, mas para que
se reconheçam, verdadeiramente, como seres portadores de cultura
e produtores de conhecimentos;
ter como intenção contribuir no processo de “emancipação” dos
sujeitos, pois esse é mais profundo do que “simplesmente” aprender
a ler e escrever, dominar as regras gramaticais, os conceitos
matemáticos, sóciobiológicos, sócio-históricos, pois envolve a “auto-
organização” da pessoa no seu íntimo. Para tanto, pode-se “apenas”
contribuir, respeitando os tempos e os estilos de vida próprios de
cada sujeito, lembrando que o conceito de “política-vida” (GIDDENS,
2002) inaugura a possibilidade de se conceberem a conscientização
e a emancipação por caminhos múltiplos, não unicamente pelo
“coletivo estrategicamente organizado”;
reconhecer que as necessidades pontuais e cotidianas da vida
exigem mobilização dos sujeitos, e aí reside o “instituinte” da
política-vida, a liberdade de escolha, “quem eu quero ser?”
(GIDDENS, 2002) para além das exigências da sociedade letrada,
como nos ensinam Olga – “quero fazer amigos” -, Sebastiana –
188
“quero ensinar meus netos” – e Odete – “ olhar para mim e fazer algo
por mim”;
despertar a sensibilidade do educador para essas questões é ação
para além da sua vontade de acertar e fazer o possível, e, sim, entra
no campo da formação pedagógica continuada, que deve fazer parte
das políticas públicas de educação de adultos, possibilitando a
aproximação de saberes constituídos no campo das ciências, das
artes e saberes vivenciais, que podem ser legitimados no reencontro
com o espaço escolar.
E para sintetizar apóio-me nas palavras de Moll (2004), ao referir-se ao
fazer-se professor e professora de adultos:
Fazer-se professor ou professora de adultos implica empreender
trajetórias que se enveredem pela razão sensível que, compre-endendo
e explicando o mundo com seus condicionantes históricos, sociais,
políticos, econômicos e culturais, permita que a singularidade das
histórias humanas se explicitem no espaço da sala de aula para que
cada um, se dizendo, possa dizer de seu mundo. E dizendo suas novas
palavras, possa encantar-se com o universo de conhecimento que vem
através delas. Nas palavras de Fiori (1983), “talvez este seja o sentido
mais exato da alfabetização: aprender a dizer sua vida, como autor e
como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se,
historicizar-se” (p. 17).
Desse modo, as histórias dessas pessoas adultas retratam não só seus
saberes, seus conhecimentos, suas concepções de homem, de trabalho, de
mundo, mas também seus sentimentos e esperanças. Assim, as aprendizagens e
os sentidos que eles dão à escola e para o que se aprende nela não estão
separadas da vida e das marcas que esta deixou. Nesse sentido, a escola pode
considerá-las pedagogicamente no campo dos saberes e de suas relações
constitutivas, como indica Charlot (2000): “Se o saber é relação, o processo que
leva a adotar uma relação com o mundo é que deve ser o objeto de uma
educação intelectual e, não, a acumulação de conteúdos intelectuais” (p. 64).
Nesse momento, uma sensação de alívio poderia estar tomando conta de
mim, por estar findando um ciclo importante da formalidade acadêmica, porém os
compromissos ético, social e político que me exigem pautar essas questões estão
189
para além da qualificação do meu currículo; fazem parte da práxis cotidiana, à
qual retorno como educadora do NEEJA de Passo Fundo, com alguns saberes
(re)feitos e outros tantos a construir, assumindo a condição de incompletude,
inerente à produção do conhecimento. Talvez uma das tarefas que se apresentam
esteja em dar voz aos educadores e educadoras do NEEJA, na busca dos
sentidos que encontram em seus “que-fazeres” pedagógicos na educação de
adultos, e, assim, retornar aos sentidos expressos por homens e mulheres que
buscam escolarizar-se na vida adulta. Entendo esses entrelaçamentos como um
limite não transposto na presente pesquisa, mas de grande importância, na
perspectiva de uma compreensão ampla dos processos pedagógicos na
educação de adultos, na qual se foca o olhar nas pessoas.
E assim encerro, entendendo que
O meu olhar é nítido como um girassol
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto.
(Alberto Caeiro)
60
60
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199
ANEXOS
200
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACED - PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
201
CONSENTIMENTO PARA O ESTUDO
Pelo presente consentimento, declaro que fui informado, de forma
clara e detalhada, dos objetivos e da justificativa do Projeto de Pesquisa
intitulado Adultos, escolarização e trajetórias de vida: Compreendendo
sentidos.
Tenho o conhecimento de que receberei resposta a qualquer dúvida
sobre os procedimentos e outros assuntos relacionados com esta pesquisa.
Entendo que os professores e alunos dessa instituição não serão
identificados e que se manterá o caráter confidencial das informações
registradas relacionadas com a privacidade dos participantes da pesquisa.
Concordo com a participação do NEEJA - Núcleo Estadual de
Educação de Jovens e Adultos neste estudo, bem como autorizo para fins
exclusivamente desta pesquisa, a utilização de informações e imagens
realizadas nesta instituição.
Passo Fundo - RS, 15 de setembro de 2005.
Israel Kujawa
Diretor do NEEJA
Maria Carolina Fortes - Pesquisadora
Rua Dr. Vergueiro -272/401
Passo Fundo - RS
Fone:(54) 3312 9790
202
TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO
Autorizo a pesquisadora
MARIA CAROLINA FORTES
do Projeto de
Pesquisa intitulado:
Adultos, escolarização e trajetórias de vida:
Compreendendo sentidos
a utilizar as informações por mim fornecidas como
referencial a produção de sua dissertação de mestrado do PPGEDU/UFRGS.
Fui informado(a) que será realiza~a uma entrevista na qual fornecerei
informações e opiniões sobre o tema proposto. O dia, a hora e o local da
entrevista serão combinados previamente, mas sei que não serei obrigado a
participar do mesmo, podendo retirar esse consentimento no momento que eu
desejar sem que isso implique em qualquer prejuízo para mim. Também sei
que as conversas durante as entrevistas serão gravadas e transcritas para
análise, preservando o sigilo e a privacidade dos entrevistados. Sei que as
informações serão divulgadas para fins de estudo no ambiente acadêmico e
científico e que não trarão nenhum tipo de dano ou prejuízo
à
minha pessoa,
por isso autorizo o uso de meu nome verdadeiro, no trabalho da
pesquisadora.
Por fim, sei que terei a oportunidade para perguntar sobre qualquer
questão que eu desejar, e que todas deverão ser respondidas a contento.
Portanto concordo em participar deste estudo, bem como autorizo para
fins exclusivamente desta pesquisa, a utilização das imagens e dados
coletados em observações e entrevistas.
Ao final do estudo serei informado dos seus resultados, pela
pesquisadora.
Passo Fundo - RS, 15 de setembro de 2005.
Oraceli Cardoso - Informante
Maria Carolina Fortes - Pesquisadora
Rua Dr. Vergueiro -272/401 - Passo Fundo - RS
Fone:(54) 3312 9790
203
TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO
Autorizo a pesquisadora
MARIA CAROLINA FORTES
do Projeto de
Pesquisa intitulado:
Adultos, escolarização e trajetórias de vida: Compreen-
dendo sentidos
a utilizar as informações por mim fornecidas como referencial
a produção de sua dissertação de mestrado do PPGEDU/UFRGS.
Fui informado(a) que será realizada uma entrevista na qual fornecerei
informações e opiniões sobre o tema proposto. O dia, a hora e o local da
entrevista serão combinados previamente, mas sei que não serei obrigado a
participar do mesmo, podendo retirar esse consentimento no momento que eu
desejar sem que isso implique em qualquer prejuízo para mim. Também sei
que as conversas durante as entrevistas serão gravadas e transcritas para
análise, preservando o sigilo e a privacidade dos entrevistados. Sei que as
informações serão divulgadas para fins de estudo no ambiente acadêmico e
científico e que não trarão nenhum tipo de dano ou prejuízo
à
minha pessoa,
por isso autorizo o uso de meu nome verdadeiro, no trabalho da
pesquisadora.
Por fim, sei que terei a oportunidade para perguntar sobre qualquer
questão que eu desejar, e que todas deverão ser respondidas a contento.
Portanto concordo em participar deste estudo, bem como autorizo para
fins exclusivamente desta pesquisa, a utilização das imagens e dados
coletados em observações e entrevistas.
Ao final do estudo serei informado dos seus resultados, pela
pesquisadora.
Passo Fundo - RS, 15 de setembro de 2005.
Olga de Lima - Informante
Maria Carolina Fortes - Pesquisadora
Rua Or. Vergueiro -272/401 - Passo Fundo - RS
Fone:(54) 3312 9790
204
TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO
Autorizo a pesquisadora
MARIA CAROLINA FORTES
do Projeto de
Pesquisa intitulado:
Adultos, escolarização e trajetórias de vida: Compreen-
dendo sentidos
a utilizar as informações por mim fornecidas como referenda I
a produção de sua dissertação de mestrado do PPGEDU/UFRGS.
Fui informado(a) que será realizada uma entrevista na qual fornecerei
informações e opiniões sobre o tema proposto. O dia, a hora e o local da
entrevista serão combinados previamente, mas sei que não serei obrigado a
participar do mesmo, podendo retirar esse consentimento no momento que eu
desejar sem que isso implique em qualquer prejuízo para mim. Também sei
que as conversas durante as entrevistas serão gravadas e transcritas para
análise, preservando o sigilo e a privacidade dos entrevistados. Sei que as
informações serão divulgadas para fins de estudo no ambiente acadêmico e
científico e que não trarão nenhum tipo de dano ou prejuízo
à
minha pessoa,
por isso autorizo o uso de meu nome verdadeiro, no trabalho da
pesquisadora.
Por fim, sei que terei a oportunidade para perguntar sobre qualquer
questão que eu desejar, e que todas deverão ser respondidas a contento.
Portanto concordo em participar deste estudo, bem como autorizo para
fins exclusivamente desta pesquisa, a utilização das imagens e dados
coletados em observações e entrevistas.
Ao final do estudo serei informado dos seus resultados, pela
pesquisadora.
Passo Fundo - RS, 15 de setembro de 2005.
Sebastiana Couto - Informante
Maria Carolina Fortes - Pesquisadora
Rua Dr. Vergueiro -272/401 - Passo Fundo - RS
Fone:(54) 3312 9790
205
TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO
Autorizo a pesquisadora
MARIA CAROLINA FORTES
do Projeto de
Pesquisa intitulado:
Adultos, escolarização e trajetórias de vida: Compreen-
dendo sentidos
a utilizar as informações por mim fornecidas como referencial
a produção de sua dissertação de mestrado do PPGEDU/UFRGS.
Fui informado(a) que será realizada uma entrevista na qual fornecerei
informações e opiniões sobre o tema proposto. O dia, a hora e o local da
entrevista serão combinados previamente, mas sei que não serei obrigado a
participar do mesmo, podendo retirar esse consentimento no momento que eu
desejar sem que isso implique em qualquer prejuízo para mim. Também sei
que as conversas durante as entrevistas serão gravadas e transcritas para
análise, preservando o sigilo e a privacidade dos entrevistados. Sei que as
informações serão divulgadas para fins de estudo no ambiente acadêmico e
científico e que não trarão nenhum tipo de dano ou prejuízo
à
minha pessoa,
por isso autorizo o uso de meu nome verdadeiro, no trabalho da
pesquisadora.
Por fim, sei que terei a oportunidade para perguntar sobre qualquer
questão que eu desejar, e que todas deverão ser respondidas a contento.
Portanto concordo em participar deste estudo, bem como autorizo para
fins exclusivamente desta pesquisa, a utilização das imagens e dados
coletados em observações e entrevistas.
Ao final do estudo serei informado dos seus resultados, pela
pesquisadora.
Passo Fundo - RS, 15 de setembro de 2005.
Maria Odete da Silva - Informante
Maria Carolina Fortes
Rua Dr. Vergueiro -272/401 - Passo Fundo – RS
Fone:(54) 3312 9790
206
TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO
Autorizo a pesquisadora
MARIA CAROLINA FORTES
do Projeto de
Pesquisa intitulado:
Adultos, escolarização e trajetórias de vida:
Compreendendo sentidos
a utilizar as informações por mim fornecidas como
referencial a produção de sua dissertação de mestrado do PPGEDU/UFRGS.
Fui informado(a) que será realizada uma entrevista na qual fornecerei
informações e opiniões sobre o tema proposto. O dia, a hora e o local da
entrevista serão combinados previamente, mas sei que não serei obrigado a
participar do mesmo, podendo retirar esse consentimento no momento que eu
desejar sem que isso implique em qualquer prejuízo para mim. Também sei
que as conversas durante as entrevistas serão gravadas e transcritas para
análise, preservando o sigilo e a privacidade dos entrevistados. Sei que as
informações serão divulgadas para fins de estudo no ambiente acadêmico e
científico e que não trarão nenhum tipo de dano ou prejuízo
à
minha pessoa,
por isso autorizo o uso de meu nome verdadeiro, no trabalho da
pesquisadora.
Por fim, sei que terei a oportunidade para perguntar sobre qualquer
questão que eu desejar, e que todas deverão ser respondidas a contento.
Portanto concordo em participar deste estudo, bem como autorizo para
fins exclusivamente desta pesquisa, a utilização das imagens e dados
coletados em observações e entrevistas.
Ao final do estudo serei informado dos seus resultados, pela
pesquisadora.
Passo Fundo - RS 15 setembro de 2005.
Adão Valmor da Silva - Informante
Maria Carolina Fortes - Pesquisadora
Rua Dr. Vergueiro -272/401 –
Passo Fundo - RS Fone:(54) 3312 9790
207
TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO
Autorizo a pesquisadora
MARIA CAROLINA FORTES
do Projeto de
Pesquisa intitulado:
Adultos, escolarização e trajetórias de vida: Compreen-
dendo sentidos
a utilizar as informações por mim fornecidas como referencial
a produção de sua dissertação de mestrado do PPGEDU/UFRGS.
Fui informado(a) que será realizada uma entrevista na qual fornecerei
informações e opiniões sobre o tema proposto. O dia, a hora e o local da
entrevista serão combinados previamente, mas sei que não serei obrigado a
participar do mesmo, podendo retirar esse consentimento no momento que eu
desejar sem que isso implique em qualquer prejuízo para mim. Também sei
que as conversas durante as entrevistas serão gravadas e transcritas para
análise, preservando o sigilo -e
â
privacidade dos entrevistados. Sei
que
as
informações serão divulgadas para fins de estudo no ambiente acadêmico e
científico e que não trarão nenhum tipo de dano ou prejuízo
à
minha pessoa,
por isso autorizo o uso de meu nome verdadeiro, no trabalho da
pesquisadora.
Por fim, sei que terei a oportunidade para perguntar sobre qualquer
questão que eu desejar, e que todas deverão ser respondidas a contento.
Portanto concordo em participar deste estudo, bem como autorizo para
fins exclusivamente desta pesquisa, a utilização das imagens e dados
coletados em observações e entrevistas.
Ao final do estudo serei informado dos seus resultados, pela
pesquisadora.
Passo Fundo - RS, 15 de setembro de 2005.
Juarez Fagundes - informante
Maria Carolina Fortes - Pesquisadora
Rua Dr. Vergueiro -272/401 - Passo Fundo - RS
Fone:(54) 3312 9790
208
TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO
Autorizo a pesquisadora MARIA CAROLINA FORTES do Projeto de Pesquisa
intitulado: Adultos, escolarização e trajetórias de vida: Compreendendo sentidos a
utilizar as informações por mim fornecidas como referencial a produção de sua
dissertação de mestrado do PPGEDU/UFRGS.
Fui informado(a) que será realizada uma entrevista na qual fornecerei
informações e opiniões sobre o tema proposto. O dia, a hora e o local da entrevista
serão combinados previamente, mas sei que não serei obrigado a participar do mesmo,
podendo retirar esse consentimento no momento que eu desejar sem que isso implique
em qualquer prejuízo para mim. Também sei que as conversas durante as entrevistas
serão gravadas e transcritas para análise, preservando o sigilo e a privacidade dos
entrevistados. Sei que as informações serão divulgadas para fins de estudo no
ambiente acadêmico e científico e que não trarão nenhum tipo de dano ou prejuízo
à
minha pessoa, por isso autorizo o uso de meu nome verdadeiro, no trabalho da
pesquisadora.
Por fim, sei que terei a oportunidade para perguntar sobre qualquer questão que
eu desejar, e que todas deverão ser respondidas a contento.
Portanto concordo em participar deste estudo, bem como autorizo para fins
exclusivamente desta pesquisa, a utilização das imagens e dados coletados em
observações e entrevistas.
Ao final do estudo serei informado dos seus resultados, pela pesquisadora.
Passo Fundo - RS, 15 de setembro de 2005.
Gelson Fernan
des dos Santos - Informante
Maria Carolina Fortes - Pesquisadora
Rua Dr. Vergueiro -272/401 - Passo Fundo - RS Fone:(54)
3312 9790
209
APÊNDICES
210
APÊNDICE A – Questionário indicativo de interesse em participar da pesquisa
Pesquisa de mestrado em educação – UFRGS
Pesquisadora: Maria Carolina Fortes
Nome:____________________________________________________________
Idade:________________________ Data de Nascimento:___________________
Endereço:_________________________________________________________
Telefone:_____________________________Totalidade:____________________
1. Quanto tempo você estuda no NEEJA?
___________________________________________________________
2. Até que série você estudou antes de vir para o NEEJA?
____________________________________________________________
3. Quanto tempo você ficou fora da escola?
____________________________________________________________
4. Você já estudou no NEEJA em outras épocas?
____________________________________________________________
5. Quantas vezes você interrompeu teus estudos aqui no NEEJA?
211
APÊNDICE B - Cronograma de apresentação da proposta de pesquisa
Totalidade Turno Data Horário
T1 Tarde 16/09 13h e 30 min
T1 Noite 16/09 19 h
T2 Tarde 16/09 14 h e 30 min
T2 Noite 16/09 20 h
T3 Manhã 16/09 8h
T3 Tarde 16/09 16 h
T3 Noite 16/09 21 h e 30 min
T4 Manhã 16/09 9 h
T4 Tarde 19/09 13 h e 30 min
T4 Noite 19/09 19 h
T5 Manhã 16/09 10 h e 30 min
T5 Tarde !9/09 !4h e 30 min
T5 Noite 19/09 20 h
T6 Manhã 19/09 8 h
T6 Tarde 19/09 16 h
T6 Noite 19/09 21 h e 30 min
T7 manhã 19/09 9 h
T7 Tarde 22/09 13 h e 30 min
T7A Noite 22/09 19 h
T7B Noite 22/09 20 h
T8 Manhã 19/09 10 h e 30 min
212
APÊNDICE C - Tabela de dados para escolha dos sujeitos:
Nome C1 C2 C3 C4 C5 Idade Local de N. Sexo Raça Esc. Alc. T. NEEJA T. fora da S. de trab. Est.
escola Nºfilhos civil
213
APÊNDICE D - Itinerário de observação
Oraceli – 01 observações em sala de aula – 29/09/05
02 observações em outras atividades – 19/09/05 –
Gincana Farroupilha e 14/10 – Homenagem aos educadores e
educadoras.
01 visita domiciliar – 29/11/05
Olga – 02 observações em sala de aula - 13/10/05 e 03/11/05
1 observações em outras atividades - 19/09/05 – Gincana
Farroupilha
Sebastiana – 01 observação em sala de aula - 13/10/05
02 observações em outras atividades - 19/09/05 – Gincana
Farroupilha e 28/11/05 – Festival de Talentos
Odete – 02 observação em sala de aula – 17/10/05 e 30/11/05
01 observações em outras atividades - 19/09/05
Adão – 02 observações em sala de aula - 13/10/05 e 03/11/05
1 observações em outras atividades - 19/09/05 – Gincana
Farroupilha
Juarez - 01 observações em sala de aula – 06/10 /05
02 observações em outras atividades - 19/09/05 – Gincana
Farroupilha e 28/11/05 – Festival de Talentos
214
APÊNDICE E – Roteiro de entrevista
Roteiro orientador do diálogo entre a pesquisadora e as pessoas da pesquisa.
Falando de si:
1. Nome, idade, estado civil, trabalho, filhos, bairro onde mora, tempo que
reside no bairro e em Passo Fundo.
2. Como foi a infância e juventude.
3. E hoje como é sua vida? (Observarei aqui como e o que dizem de si).
Relatos sobre a trajetória escolar:
1. Quanto tempo freqüentou escola até hoje?
2. Que lembrança tem da escola do passado?
3. Você consegue fazer uma comparação, entre a sua escola de
infância/juventude e a dos dias de hoje, o NEEJA?
Falando do NEEJA
1. Como foi a aproximação com o NEEJA?
2. O que você busca no NEEJA?Quais as expectativas?
3. Conte sobre sua vivencia no NEEJA.
4. O que você mais gosta no NEEJA?
5. O que você aprende no NEEJA?
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APÊNDICE F - Cronograma das entrevistas
Entrevistado(a) Nº de encontros Local
Oraceli três encontros dois em sua casa e um no NEEJA.
Olga dois encontros no NEEJA
Sebastiana dois encontros no NEEJA
Odete três encontros um no NEEJA e dois em sua casa
Adão dois encontros no NEEJA
Juarez dois encontros um no NEEJA e um em sua casa
Gelson um encontro no NEEJA
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