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ANELISE SCHEUER RABUSKE
"ALUNOS-PROBLEMA":
DISCUTINDO PRÁTICAS IMPLICADAS
NA PRODUÇÃO DO ANORMAL.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação (Linha de Pesquisa
Estudos Culturais em Educação) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
como requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre em Educação.
Orientadora:
Profª. Drª. NÁDIA GEISA SILVEIRA DE SOUZA.
PORTO ALEGRE
2006
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VERDADE
CARLOS DRUMOND DE ANDRADE
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
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Para o meu pequeno grande Lucas, que me ensina
tanto, a cada dia, sobre mim mesma. Por me
ensinar a olhar de outras maneiras para aquilo que
tomava como exato, verdadeiro, definitivo. Mas
principalmente, por estar na minha vida,
possibilitando-me experimentar outros modos de
ser, re-significando constantemente quem estou
sendo.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Profª Drª dia Geisa Silveira de Souza, pela
acolhida ao meu desejo de aprender e produzir: pelas longas conversas,
dedicada orientação e parceria permanente.
Às professoras que compõe a banca: Neuza Guareschi, Dagmar Meyer e
Maria Luíza Xavier, por terem aceitado meu convite e tanto contribuído
com o meu pensar.
Aos meus pais, dio e Elsi, pela vida e possibilidade de estar nesse
mundo e nele construir-me e reconstruir-me.
Ao meu filho querido, Lucas, pela grande companhia, por ser tão
amoroso e por compreender as inevitáveis ausências.
Ao Djon e a Daniela, meu irmão e minha cunhada, pela agradável
companhia de muitos finais de semana.
À Denise, grande amiga, por acompanhar de perto minha caminhada,
colocado-se como companheira valiosa, mão firme, estímulo constante,
possibilitando-me acima de tudo, o experienciar de uma amizade verdadeira.
À querida Fátima, irmã do coração, pela companhia durante todo o
Mestrado, pela leitura atenta de meus escritos, pela crítica produtiva, pelas
longas conversas ao vivo, ao telefone, MSN, SKYPE, pela participação nas
minhas atividades de pesquisa na escola, pelas trocas e especialmente, pela
possibilidade de uma amizade profunda e afetuosa.
À amiga Jandira, que tantas vezes “adotou” meu filho para que eu
pudesse estar na universidade. Pelos convites a momentos de descontração e
boas risadas, fundamentais para seguir adiante neste trabalho e na vida.
Às/aos colegas de orientação: Aninha, Neila, Karina, Katiuci, Lavínia,
Simone, Landemir, Fátima, Renata, Fernando, Denis, pelas trocas valiosas.
Muito especialmente, à Secretaria Municipal de Educação do município
de Dois Irmãos, pela abertura e interesse na realização deste estudo. Aos
alunos e alunas, docentes e Direção da escola municipal onde desenvolvi a
pesquisa, possibilitando-me, além de tantos aprenderes, o estabelecimento
de vínculos absolutamente significativos para mim.
A todas as pessoas com as quais convivi durante o Mestrado em
Educação professores e professoras, colegas nas disciplinas cursadas
pela possibilidade de aprenderes significativos.
À professora Tânia Fortuna, pela acolhida tão especial ao meu desejo de
realizar o estágio docência em sua disciplina, bem como às valiosas
sugestões para este trabalho. Às alunas com as quais convivi e muito
aprendi durante este estágio.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS pela acolhida
e possibilidade de aprenderes inquestionavelmente significativos, que fazem
muita diferença na minha vida. À CAPES, pela bolsa concedida, tornando
mais tranqüila minha dedicação a este projeto de estudo.
Aos funcionários do PPGEDU, especialmente à Mary e ao Eduardo, com
quem tive mais contato, pela atenção e dedicação constantes. A todos os
outros, pela disponibilidade a auxiliar, orientar, possibilitar...
Por fim, carinhosamente, ao Jaques, pelas longas conversas, pelo
estímulo a prosseguir e dedicação na construção da capa deste trabalho.
RESUMO
A presente pesquisa nasce de inquietações produzidas no
acompanhamento dos encaminhamentos cada vez mais freqüentes de alunos
tomados como “problemas” nas escolas, para profissionais das áreas psi.
Fazem parte desta pesquisa alunos, professores e Direção de uma escola de
Ensino Fundamental da rede municipal de ensino de Dois Irmãos - RS. Nela
problematizo o entendimento dos alunos como sujeitos com uma essência
“problemática”, buscando olhar para como os discursos e as práticas
escolares cotidianas encontram-se implicadas na constituição dos alunos
posicionados como “alunos-problema”. Nesse sentido, os seguintes
questionamentos funcionam como propulsores deste estudo: O que é
produzido/tomado como “aluno-problema”? De que maneiras as
práticas sociais, entre elas, as escolares, fabricam cotidianamente esses
alunos? Como se lida, no cotidiano escolar, com o sujeito interpretado
como “problema”? As nomeações utilizadas para descrever os alunos
apenas os descrevem ou produzem outras implicações, talvez
subjetivando-os? Tais questões levaram-me a analisar as práticas sociais
que atuam no cotidiano da escola: os regulamentos, as ações disciplinares,
as práticas diagnósticas, as tentativas de correção, as articulações e alianças
constituídas para a normalização e a conseqüente produção das
“anormalidades”. Além disso, observei as atividades desenvolvidas numa
turma de 5
a
rie a série das “turmas problemáticas” por um período.
Realizei, ainda, oficinas com os alunos e professores dessa turma, visando a
possibilitar a emergência das vozes dos personagens escolares, a fim de
conhecer como eles percebem a si e ao espaço escolar onde convivem e se
relacionam. Para as análises e discussões, estabeleci conexões com os
estudos de Michel Foucault e de autores pós-estruturalistas do campo dos
Estudos Culturais. A pesquisa incita-me a olhar para as escolas como
constituidoras das subjetividades que ali circulam, inclusive as dos “alunos-
problema”. Por fim, a partir das análises realizadas, discuto e interrogo as
possibilidades de ação dos profissionais da Psicologia nos espaços escolares.
ABSTRACT
The present research has arisen from the uneasiness produced during the
follow-up of students taken as “problematic” at school, who have been more
and more often referred to professional from the psycho area. Students,
teachers and the principal of a municipal elementary school in Dois
Irmãos/RS participated in this study. It problematizes the understanding of
students as subjects with a “problematic” essence, trying to look at the way
the daily school practices and discourses are implied in the constitution of
students positioned as “problems”. The following questions have worked as
drivers to this study: Who has been produced/taken as a “problem” student?
In which ways the social practices, with the school ones among them, have
fabricated these students? How does one deal, in the school quotidian, with
the subject interpreted as a problem? Do the names used to describe
students only describe them or also produce them, subjecting them? These
questions led me to analyze the social practices that act in the school
quotidian: regulations, disciplinary actions, diagnostic practices, correction
attempts, articulations and alliances constituted for normalization and the
resulting production of “abnormalities”. Besides that, I have observed the
activities developed in a fifth grade group – the grade of “problematic”
groups for a certain period. I have also carried out workshops with
students and teachers of that group, aiming at enabling the emergence of the
voices of the school characters so as to find out how they perceive both
themselves and the school environment where they live and relate to one
another. For the analyses and discussions, I have established connections
with studies by Michel Foucault and post-structuralist authors from the
Cultural Studies field. The research has led me to see schools as constituting
the subjectivities that are present in it, including the “problem” students.
From the analyses, I have discussed and questioned the action possibilities
of Psychology professionals in school environments.
SUMÁRIO
PARA PRINCIPIAR 10
FRAGMENTOS DE UMA CAMINHADA: A CONSTITUIÇÃO DO OBJETO 13
DAS IMPLICAÇÕES PESSOAIS 13
DE ALUNA À PROFESSORA: PRIMEIRAS INQUIETAÇÕES 17
AS EXPERIÊNCIAS DE ESTÁGIO: ENCONTRANDO AS CRECHES E A
ESCOLA PÚBLICA 18
INTERVENÇÕES NA REDE ESCOLAR: (IM)POSSIBILIDADES PARA A
PSICÓLOGA 21
... UMA DAS INVENÇÕES DAS PRÁTICAS ESCOLARES: O “ALUNO-
PROBLEMA” 27
O SUJEITO: PRODUÇÃO DAS PRÁTICAS SOCIAIS 27
O SUJEITO COMO FABRICAÇÃO DA MODERNIDADE 33
O DISCIPLINAMENTO DOS CORPOS NA ESCOLA MODERNA 37
O “ALUNO-PROBLEMA”: A CONSTITUIÇÃO DO ANORMAL 43
POSSIBILIDADES OUTRAS DE SUBJETIVAÇÃO? 47
CONSTRUINDO CAMINHOS E POSSIBILIDADES DE OLHAR 50
ENCONTRANDO/PRODUZINDO ESPAÇOS 53
ENCONTRANDO A ESCOLA...PRIMEIROS CONTATOS 58
CONSTRUINDO ESCOLHAS METODOLÓGICAS 61
ENSAIOS (MAIS OU MENOS) ETNOGRÁFICOS
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ÉTICA NA PESQUISA 62
NARRANDO/PRODUZINDO REALIDADES 66
AS CONSTRUÇÕES NARRATIVAS 68
OS REGISTROS ESCRITOS 70
A ENTREVISTA 72
O “GRUPO DE DESABAFO” 75
O CONSELHO DE CLASSE 77
PROPOSTA DE ATIVIDADES COM OS ALUNOS DA TURMA 5A 80
ENCONTROS DE DISCUSSÃO COM OS PROFESSORES 83
AS PRODUÇÕES DA PESQUISA (E DA PESQUISADORA!) 86
MOVIMENTOS DE FABRICAÇÃO DOS ALUNOS-PROBLEMA”: A
IMPLICAÇÃO DAS PRÁTICAS ESCOLARES 89
A ESCOLA E SEUS GRANDES “PROBLEMAS” 90
O Problema dos Pertencimentos 90
O(s) “Problema(s)” das Famílias dos Alunos 96
As Turmas de Quintas Séries como “Problemáticas” 102
Posicionando-se como Terríveis, Rebeldes 108
As Práticas Disciplinares e Seus Movimentos 112
A Grande “Apelação” às Instâncias Jurídicas 114
OS “GRANDES PROBLEMAS” DA ESCOLA: OS “ALUNOS-
PROBLEMA” 119
As Narrativas sobre os “Alunos-Problema” 119
MULTIPLOS SENTIDOS NA/PARA A ESCOLA: AS VOZES DOS ALUNOS E
DOS PROFESSORES 146
QUEM SOU EU, NESTE MOMENTO? 147
MÚLTIPLOS SENTIDOS PARA A ESCOLA: PROFESSORES/AS E
ALUNOS/AS 163
A ESCOLA COMO ESPAÇO DE CONFLITOS 175
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA CONTINUAR A PENSAR 182
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 192
ANEXOS (Diário de Campo) 199
PARA PRINCIPIAR...
Busco aqui, de modo sucinto, apresentar às/aos leitoras/es a
escrita que produzi no decorrer de um período que, se pode ser considerado
curto vinte e quatro meses –, para mim representou um tempo de
significativos e valiosos aprenderes.
Este estudo parte de alguns desassossegos que emergiram em
minhas práticas como psicóloga em rede escolar e que transformo em
questões de pesquisa: o que é produzido/tomado como “aluno-
problema”
1
? De que maneiras as práticas sociais, entre elas, as
escolares, fabricam cotidianamente esses alunos? Como se lida, no
cotidiano escolar, com o sujeito interpretado como “problema”? As
nomeações utilizadas para descrever os alunos apenas os descrevem ou
produzem outras implicações, talvez subjetivando-os?
Sustentada nas obras de Michel Foucault e de autores pós-
estruturalistas dos Estudos Culturais, olho para o “aluno-problema”
enquanto uma construção social, e não como um sujeito portador de uma
essência problemática, passível e/ou necessitada de correção.
A capa da presente dissertação é constituída por fragmentos de
materiais produzidos por alunos e professores durante a pesquisa,
arranjados em um mosaico. O texto é apresentado em seis capítulos.
No primeiro, Fragmentos de uma caminhada: a constituição do
objeto, percorro minha trajetória como aluna de Magistério e como psicóloga
em rede escolar, mostrando as inquietações que me atravessam e que
acabam por se constituírem nas questões que norteiam esta pesquisa.
1
Utilizo/utilizarei a denominação “aluno-problema”, demarcada entre aspas, no decorrer de
toda a minha escrita. Faço-o para demarcar meu movimento permanente de
problematização desse conceito, apontando para a não-essencialidade, para a
transitoriedade e para o entendimento desse sujeito como invenção das práticas escolares.
11
Na medida em que entendo o “aluno-problema” como uma
invenção das práticas escolares, no segundo capítulo, Uma das invenções
das práticas escolares: o aluno-problema”, resgato as bases teóricas que
sustentam meu pensar. Olho para a constituição do sujeito moderno, para
as práticas disciplinares que contribuem nesse processo de produção de
normalidades e anormalidades, e interrogo-me sobre outras possibilidades
de subjetivação.
Em Construindo caminhos e possibilidades de olhar, escrevo sobre
os caminhos que escolhi/percorri no desenvolvimento deste estudo. Utilizo
um referencial etnográfico como base de pesquisa, o que me leva a
permanecer por um certo tempo num determinado espaço escolar, olhando
para uma turma de quinta série considerada “problema”: os registros
escritos sobre os seus “alunos-problema”, os modos como estes são narrados
pelas vozes da Direção e de professores/as em momentos de reunião e
Conselhos de Classe, criados pela escola para tratar dessa turma. Além
disso, em observações que realizo em sala de aula, olho para as ações
cotidianas que podem ir constituindo esses alunos enquanto “problemas”.
No quarto capítulo, Movimentos de fabricação dos “alunos-
problema”: a implicação das práticas escolares, empreendo análises de
elementos que percebo atuando nesse movimento de constituição de
subjetividades: a noção de pertencimento como fator definidor nas narrativas
sobre esses alunos; o resgate das histórias familiares e de vida na tentativa
de justificar os alunos como “problemas”; o entendimento das quintas ries
como “problemáticas”; as práticas disciplinares, as alianças que são
estabelecidas como tentativas corretivas e os modos como os alunos passam
a posicionar-se em meio a esses movimentos.
Em Múltiplos sentidos na/para a escola: as vozes dos alunos e dos
professores, analiso as narrativas de professores/as e alunos/as acerca de si
e de como se vêem no espaço escolar, narrativas essas que foram produzidas
durante encontros e que compuseram a pesquisa.
Por fim, em Algumas considerações para continuar a pensar, trago
alguns entendimentos que construí no decorrer deste estudo, entre eles, o da
escola e de suas práticas como inventores das subjetividades que ali
12
circulam, como a dos “alunos-problema”. A partir disso, interrogo-me sobre
as ações possíveis para os profissionais da Psicologia nesses espaços,
entendendo que um fazer psicológico” na escola pode implicar a ocupação
de um lugar “marginal” (nas fissuras, entrelinhas, rachaduras...) que
possibilite a emergência das múltiplas vozes que lá se fazem presentes.
FRAGMENTOS DE UMA CAMINHADA: A CONSTITUIÇÃO DO
OBJETO
DAS IMPLICAÇÕES PESSOAIS
Introduzo minha escrita situando o contexto, o momento e os
sentimentos que me mobilizam a pensar. E, para pensar sobre o meu
pensar, faço uso das palavras de Jorge Larrosa (2002):
...E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou
“argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é,
sobretudo, dar sentido ao que somos e ao que nos acontece (p. 21).
Contar sobre mim. Percebo que o é tarefa fácil, pois, cada vez
que revejo minhas histórias, deparo-me com o inusitado, os percalços, o
diferente em relação não só ao que tenho vivido, como também em relação ao
que virei a experienciar. Esse olhar para o passado como contramemória
(MICHEL FOUCAULT, 1998, p.33) traz o descontínuo e as fraturas. Junto
com ele, sentimentos de incerteza quanto ao que era habitual e movimentos
sem a certeza de onde ir e chegar...
Pergunto-me: por onde devo começar? O que é mais importante,
mais significativo e relevante dizer na medida em que me proponho a
repensar as intervenções da Psicologia no campo da Educação?
Resgato, em minhas memórias, fragmentos de algumas leituras
realizadas no decorrer destes últimos três anos. Encontro, neste momento,
Alfredo Veiga-Neto (1996) a dizer que “cada um de s é único enquanto
sujeito” (p.163). Sendo assim, as palavras que eu escolher para começar a
falar de meu(s) interesse(s) nesta pesquisa serão escolhas peculiares, únicas,
produtos de minhas experiências, que também são únicas. Como
(in)tranquiliza-me o autor antes citado:
14
...cada um de nós sai de um ponto diferente. Isso é assim porque
todos carregam, cada um e cada uma, sua história pessoal. Cada
indivíduo, na sua singularidade, é o produto transitório de sua
própria história [...] cada um de nós constrói a realidade de uma
maneira um pouco diferente da realidade construída pelos demais e,
desse modo, as coisas do mundo de modo sempre peculiar
(VEIGA-NETO, 1996, p. 163).
As palavras de Veiga-Neto tranqüilizam-me na medida em que
compreendo todo processo de escrita como um processo de construção de
quem escreve, em que se articulam, entre outros elementos, as
peculiaridades produzidas a partir dos estudos teóricos e das experiências
de vida. No entanto, ao ler Foucault (2001a), percebo que escrever também é
um processo de desaparecimento de quem escreve, quando o autor diz:
...na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto
de escrever; não se trata da amarração de um sujeito em uma
linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que
escreve não pára de desaparecer (idem, p.268).
Além disso, considero meus escritos enquanto ensaios
2
e, para este
pensar, novamente utilizo Foucault (1985a) e suas considerações sobre seus
processos de escrita. Na Introdução de História da Sexualidade 2: o uso dos
prazeres, Foucault conta que o motivo que o levou a pensar sobre as
questões da sexualidade foi a curiosidade e a disposição para questionar o
que era tido como dado, os saberes que eram legitimados. Refere ainda que,
para ele, filosofar é “o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio
pensamento” (p.13). Oferece seus escritos enquanto ensaios, sendo o ensaio,
para ele, a “experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não [...]
apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação” (p.13). Para
o autor, o ensaio é “um exercício de si, no pensamento” (FOUCAULT, 1985a,
ibidem).
Nesta dissertação, busco também eu fazer esse exercício de si.
Apresento aos leitores alguns dos movimentos que fui e que venho
constantemente realizando no sentido de problematizar minhas práticas
enquanto psicóloga que tem atuado em espaços escolares. Nesses
2
Grifo meu.
15
movimentos, vou pondo-me em questão, desaparecendo e reaparecendo de
modos diferentes a cada pensar/repensar.
Ao mesmo tempo, sinto-me intranqüila ao perceber que escrevo
para outras e outros, sujeitos de outras experiências e, portanto, com outros
modos olhar e entender. Que efeitos produzirão, em outras pessoas, as
páginas que se seguem?
Essas questões remetem-me às discussões de Larrosa (2003) sobre
o ato de dar a ler uma lição, ao dizer que, quando o professor seleciona um
texto para seus leitores, ele o faz como se estivesse remetendo um presente,
uma carta. Compartilho o pensamento do autor quando diz que:
...aquele que remete um presente [...] sempre está um pouco
preocupado para saber se o seu presente será aceito, se sua carta
será bem recebida e merecerá alguma resposta (p.140).
Assim, ao remeter a minha escrita, espero que ela seja aceita na
tarefa da leitura. Busco – na resposta – a crítica, a discussão, aquilo que não
foi dito. Trago um texto para pensarmos, cujas colocações, discussões e
questões apresento como janela, onde convido os leitores e leitoras a pensar
e ler o que faltou ser dito, visto e escrito. Pretendo, com meus escritos,
produzir inúmeras perguntas, múltiplas questões capazes de possibilitar,
com o passar do tempo e das experiências, outras problematizações, outros
olhares, novas significações, mesmo porque
No ler a lição, não se buscam respostas. O que se busca é a pergunta
à qual os textos respondem. Ou melhor, a pergunta que os textos
abrigam no seu interior, ao tentar respondê-la: a pergunta pela qual
os textos se fazem responsáveis. Por isso, a única resposta que se
pode buscar na leitura é a responsabilidade pela pergunta. [...] a
leitura não resolve a questão, mas a reabre, a re-põe e a re-ativa, na
medida em que nos pede correspondência. [...] Na leitura da lição
não se busca o que o texto sabe, mas o que o texto pensa [...] o que o
texto leva a pensar. [...] depois da leitura, o importante não é que nós
saibamos do texto, o que nós pensamos do texto, mas o que [...] nós
sejamos capazes de pensar. O que se deve ler na lição não é o que o
texto diz, mas aquilo que ele o que dizer. Por isso, a leitura da
lição é escuta, além daquilo que o texto diz, o que o texto abriga e o
que ele dá o que dizer (LARROSA, 2003, p.142).
As lentes oferecidas por Larrosa (2002) incitam-me a compreender
que nossas narrativas são sempre um eterno contar e uma possibilidade de
16
reconstrução permanente daquilo que somos. Percebo que esse “contar sobre
mim” também faz parte da busca de explicitar, para meus interlocutores,
como estou vendo, neste momento, aquilo que tenho sido, um pouco do que
fui e o que pretendo, enquanto psicóloga que tem atuado junto a redes de
ensino, na história de vida que hoje construo. São esses fragmentos de
minhas vivências, associados a outros, que produziram e produzem
constantemente em mim os desassossegos, as inquietudes e os desejos de
prosseguir.
Ao falar sobre a constituição dos objetos de pesquisa, Sandra
Corazza (2002, p. 111) refere:
Em primeiro lugar, falo de sentimentos. Para além das exigências
cartoriais, penso que toda e qualquer pesquisa nasce precisamente
da insatisfação com o já-sabido. Pode parecer pouca coisa, uma
banalidade, algo de menos-valia, atribuir a um sentimento o mote
para que se investigue, mas não é. [...] Somente nessa condição de
insatisfação com as significações e verdades vigentes é que ousamos
tomá-las pelo avesso, e nelas investigar e destacar outras redes de
significações.
A fala da autora incita-me a perceber que meu problema de
pesquisa se constitui também neste ponto: que as verdades que permearam
minha formação enquanto professora e psicóloga passam a não mais
responder às minhas inquietudes e questionamentos. Passam, sim, a
compor as problematizações que realizo em torno de minhas práticas e
vivências profissionais.
Dentre as verdades às quais me refiro, encontra-se a concepção de
profissional da Psicologia como alguém que deve dar conta das demandas a
ele/ela endereçadas pelos indivíduos, instituições e instâncias sociais.
Refiro-me, também, às concepções relacionadas aos problemas” dos
indivíduos como intrínsecas a eles, advindas de seu interior, de seu íntimo,
como se eles trouxessem na sua essência o “problema” ou a “verdade” a ser
revelado pelo/a especialista. As experiências adquiridas como psicóloga e os
estudos realizados no campo da Educação levaram-me a problematizar as
noções e os conceitos que se referiam à existência de algo inerente ao
indivíduo ou de um significado escondido no seu interior a ser revelado
pelo/a especialista e por si mesmo. Tais entendimentos colocam, assim, em
17
questão o meu próprio projeto de especialista no campo da Psicologia, visto
que passei a duvidar do lugar que ocupava como intérprete daquilo que
ocorre nas profundezas da pessoa e a interrogar os efeitos das tecnologias
que eu empregava com a finalidade de fazer falar.
Com o propósito de tornar visível ao/à leitor/a as experiências que
me marcaram nessa direção, passo a resgatar (e a ressignificar) algumas
memórias em torno de minha formação profissional.
DE ALUNA À PROFESSORA: PRIMEIRAS INQUIETAÇÕES
Filha de uma família da região das Missões, no Estado do Rio
Grande do Sul, e de pais professores, cursei o Magistério, pois, conforme
diziam, “mesmo ganhando pouco, tem uma profissão”. Durante esse período
de formação, acompanhei aulas como professora auxiliar, realizando a
substituição de professores em escolas municipais, e um microestágio numa
escola de um bairro de periferia. Ao mesmo tempo, motivada pelas ideologias
de um grupo de Pastoral da Juventude (vinculado à Igreja Católica) do qual
participava, voltei meu olhar para
as “minorias
3
, passando a conviver com
noções e realidades relacionadas à exclusão, à miséria, aos maus-tratos, à
violência, à criminalidade, à drogadição.
Assim, minhas experiências como professora aconteceram em
escolas situadas em comunidades com altos índices de desemprego, muitas
vezes em situações de miséria e criminalidade. Encharcada nos ideais
modernos e iluministas para a educação escolarizada, especialmente no que
se refere às possibilidades de progresso, autonomia e liberdade a serem
alcançadas através da razão e do conhecimento “científico(TOMAZ TADEU
DA SILVA, 1995), sem levar em conta as peculiaridades e necessidades
locais, percebi ali que o conhecimento escolar o era o mais importante
para a vida daquelas pessoas.
As “realidades” que fui encontrando/experienciando/construindo
me mostraram as dificuldades, senão as impossibilidades da tarefa
3
Coloco entre aspas a palavra minorias por dar-me conta hoje de que aqueles para quem,
na época, olhávamos como sendo as minorias eram, naquela cidade (e hoje o são mais
ainda), a grande maioria.
18
educativa nos moldes das teorias da educação assentados em pressupostos
que pregavam” para a figura da professora o domínio de técnicas de ensino
e de conteúdos, reduzindo o processo de ensino e aprendizagem à utilização
de métodos e de técnicas para o ensino dos conteúdos escolares. Segundo
Veiga-Neto (1996), o paradigma tecnicista reduz o processo de ensinar e
aprender ao uso de técnicas mais eficientes, tornando esse problema interno
à escola. Quando sai dali, é para, no máximo, buscar chegar até a Psicologia,
para buscar conhecimentos e técnicas sobre como a criança aprende, se
comporta, amadurece, etc. Para o autor, esse paradigma atua na direção do
status quo social ao não ver a Educação numa dimensão mais ampla. Tais
teorias educacionais baseiam-se em noções universalizantes, como as de
Razão, sujeito e mundo, desconsiderando os processos históricos implicados
tanto na constituição de sujeitos particulares quanto nas experiências
escolares e de sala de aula.
Assim, diante do cotidiano da escola (falta de suporte e de
recursos, naturalização das práticas escolares que ali ocorriam, brigas
internas), daquela comunidade e da minha inexperiência para lidar com os
acontecimentos do dia-a-dia associados à desvalorização dos professores e à
culpabilização – “se a sociedade é esse caos, é porque a educação não
funciona” –, repensei a “escolhado Magistério. Durante esse curso, convivi
com uma professora de Psicologia da Educação que era desassossegada,
questionadora, e que, de modo afetuoso, nos desafiava a pensar sobre o que
fazíamos nas escolas. A admiração que fui adquirindo pelo seu modo de
pensar e ver a escola, somada aos conflitos que eu vivenciava, levaram-me a
procurar o curso de Psicologia.
AS EXPERIÊNCIAS DE ESTÁGIO: ENCONTRANDO AS CRECHES E A
ESCOLA PÚBLICA
Durante os dois primeiros anos da graduação, vivenciei a
experiência de trabalhar em creches, permanecendo vinculada ao Magistério.
Ao olhar, hoje, para aquelas experiências, penso que as práticas que ali
ocorriam se direcionavam à captura das crianças, mesmo ainda muito
19
pequenas. Lembro-me das expectativas criadas em torno de um suposto
“desenvolvimento normal” das crianças atendidas e do quanto víamos como
“problemáticas” as situações em que algum infante apresentasse um
desenvolvimento destoante daquilo que era previsto como “normalidade”.
Desde que nasce, a criança ingressa num mundo adulto. Trata-se,
então, de problematizar os discursos adultos sobre a infância, as etapas
“normais” dessa fase da vida, aquilo que é adequado ou o, as estratégias
de normalização e de ortopedização para enquadrar o percurso a ser trilhado
nessa fase, conforme as “verdades” e os projetos dos adultos que “sabem”
sobre as crianças.
Segundo Larrosa (1998), a infância
4
, ao ser tomada como
objeto de determinados campos, tornou-se a presa sobre a qual se age
tecnicamente, buscando-se atingir a eficácia a partir dos saberes e projetos
dos quais se fala e que nela intervêm. Sob o ponto de vista dos adultos,
obviamente, o projeto da criança é ser “alguém na vida”. Porém, é o
entendimento adulto do que é “ser alguém” que direcionará ações, escolhas,
práticas de correção, a fim de que, ao final, a criança o mais criança, e
sim adulta, torne-se alguém na vida”. Com tal finalidade, para o autor, a
infância é capturada pelas instituições, práticas, saberes, e os adultos
sabem exatamente o que ela é, como é, como acontece, como deve ser
tratada.
Recordo que, na creche onde trabalhei, estagiavam alunas de
Psicologia e Pedagogia cujos conceitos de “normalidade” se assentavam
principalmente no entendimento de desenvolvimento como um processo que
ocorre em “etapas”
5
. Às etapas relacionadas às idades dos indivíduos,
4
Acredito ser válida alguma consideração sobre a noção de infância, diferenciando-a do
conceito de criança. Maria Isabel Bujes (2001, p. 19), em sua tese de doutorado, traduz e faz
uso de Spigel (1998, p. 110), que nos mostra que “a criança é um constructo cultural, uma
imagem gratificante que os adultos necessitam para sustentar suas próprias identidades. A
infância constitui a diferença a partir da qual os adultos definem-se a si mesmos. É vista
como um tempo de inocência, um tempo que se refere a um mundo de fantasia no qual as
realidades dolorosas e as coerções sociais da cultura adulta não mais existem. A infância
tem menos a ver com as experiências vividas pelas crianças (porque também elas estão
sujeitas às ameaças do nosso mundo social) do que com as crenças dos adultos”. Bujes
mostra com clareza que a infância é um objeto cultural e que é necessário que discutamos
as noções que aprendemos sobre infância, atentando para o quanto elas correspondem às
infâncias com as quais convivemos (p. 26 e 27).
5
Cito aqui algumas referências teóricas, na época estudadas nas disciplinas de Psicologia
da Aprendizagem, Psicologia do Desenvolvimento, Problemas de Aprendizagem, etc., que
contribuíram (somadas a outros pressupostos não-acadêmicos) para a produção nas
20
“correspondiam” alguns comportamentos e reações desejadas. Quando os
comportamentos e/ou modos de reagir das crianças “destoavam” do
esperado, criavam-se as condições para que imaginássemos que a criança
estava apresentando algum “problema”. Os conhecimentos extraídos das
crianças observadas e nossas intervenções durante o estágio eram
apresentados para nossas professoras da graduação nos encontros de
supervisão. Nesses momentos, recebíamos orientações sobre procedimentos,
diagnósticos
6
e como realizar intervenções.
Eram tomados como “desvios”, por exemplo, a tardia aquisição da
linguagem e do caminhar, assim como as diferentes maneiras de reagir às
regras institucionais. Com certa facilidade, criávamos rótulos e diagnósticos
para as crianças ali cuidadas. Penso que os estudos em Psicopatologia
Infantil que eu desenvolvia na faculdade, além dos anteriormente citados em
nota de rodapé, contribuíam para a produção dessa postura clínico-
avaliadora com a qual intervia naquele lugar.
Realizei o estágio curricular em Psicologia Escolar numa escola
estadual de grande porte, com mais de dois mil alunos. Defrontei-me,
novamente, com um espaço escolar. Nesse momento, a diferença residia,
entre outros aspectos, no lugar que eu estava ocupando: era a estagiária de
Psicologia. No entanto, nada havia de tranqüilo nessa “nova” posição, pois
inquietava-me diante do grande número de alunos encaminhados.
Com uma formação acadêmica voltada para a clínica, era difícil
compreender o que “fazer” na escola, pois a orientação da supervisão era a
de não receber alunos em tratamento psicoterápico, ao passo que a demanda
escolar era exatamente essa: que “déssemos” um jeito em tantos “alunos-
problema”. O impacto dessa realidade provocou em mim questionamentos
em relação às demandas e ao fazer daquela instituição. Concluí meu estágio
acadêmicas da Psicologia e da Pedagogia de determinados modos de ver aquilo que
chamávamos de normal” e “anormal”. Entre essas referências, encontram-se
principalmente as teorizações de cunho construtivista.
6
Nas orientações, aprendíamos que, para diagnosticar, era necessário “examinar” da
maneira mais adequada possível, que permitisse extrair a essência dos “problemas” da
criança: técnicas para observar “melhor”, investigar aspectos da história pregressa da
criança através de uma “boa e completa” anamnese, que deveria ser realizada com os pais,
para “descobrir” como a criança era e reagia desde seu nascimento e como as relações entre
os pais e outros familiares aconteciam no âmbito da casa da criança.
21
percebendo que a prática psicológica não era tão tranqüila quanto eu havia
suposto e que teria que aprender a tornar produtivo o desassossego nas
práticas futuras.
INTERVENÇÕES NA REDE ESCOLAR: (IM)POSSIBILIDADES PARA A
PSICÓLOGA
Desde a graduação, em 1998, sempre estive vinculada como
psicóloga a alguma instituição escolar. Nos anos de 2001, 2002 e 2003,
trabalhei junto à Secretaria de Educação de Morro Reuter, no Vale dos
Sinos. Num primeiro momento, atendia crianças e adolescentes portadores
de algum tipo de “deficiência”, de necessidade especial”
7
. Posteriormente,
passei a atender crianças que, por não se adequarem às expectativas dos
professores ou às suas tentativas de disciplinamento e de controle, eram
encaminhadas pelas escolas para que eu, ao utilizar as tecnologias da
Psicologia, as corrigisse, tornando-as dóceis e produtivas para os sistemas
onde se encontravam inseridas.
Entre as inúmeras queixas de professores e professoras em relação
a alunos/as, talvez as mais recorrentes tenham sido as referentes a
“problemas de comportamento” agressividade, ausência de limites,
indisciplina, pouco interesse pelo estudo, entre outras. Questões mais no
âmbito das atitudes e dos modos de ser dos alunos do que propriamente
7
Utilizo e utilizarei essas expressões entre aspas por me inquietar nomear aqueles que
apresentam em seu corpo as marcas da diferença física a partir do saber do intelectual,
cujas categorias os fixam num determinado lugar, limitando os seus campos de
possibilidade. A esse respeito, Veiga-Neto (2001b, p.106) nos diz: “se nos parecem duras as
palavras com que é designado aquele variado elenco de tipos, (...), é justamente porque as
práticas de identificação e classificação estão implicadas com tão poderosas relações de
poder que a assimetria que delas resulta parece não se encaixar com alguns de nossos
ideais iluministas. Se nos incomoda até mesmo a palavra anormal é porque sabemos (...)
que o seu sentido moderno gestou-se por sucessivos deslocamentos e a partir de outros
tipos situados em outras práticas e estratos discursivos como os monstros, os
masturbadores e os incorrigíveis (FOUCAULT, 2002a) –, e às custas de oposições, exclusões
e violência”. Além dessas considerações, outras parecem-me significativas: ao falar de
alteridade deficiente, Carlos Skliar (2001) refere que, “ao mencionar deficientes, deficiência,
outros deficientes, alteridade deficiente, etc, não estou me referindo aos sujeitos individuais,
concretos, senão a uma representação bastante difundida e hegemônica: o modelo biológico
da deficiência” (p. 14). Para o autor, as mudanças freqüentes que acontecem em relação aos
nomes utilizados para designar as “diferenças” “não são novas e, muito menos, ingênuas:
supõem uma pretendida posição politicamente correta, que consiste em sugerir o uso de
eufemismos para nomear a estes e outros grupos” (idem, ibidem).
22
relativas às condições de aprendizado também apareceram com alguma
freqüência.
Ao abordar a rede discursiva que funciona na escola, posicionando
os “alunos-problema”, Júlio Groppa Aquino (2001) faz-me pensar a respeito
das formas de enunciar os alunos vistos como problema, tantas vezes
ouvidas por mim nos espaços onde atuei como psicóloga escolar. O autor
refere que:
No varejo discursivo escolar, não é infreqüente que esses alunos
figurem como ponta final de uma rie de entraves institucionais,
convertidos em alegações do tipo: que eles não têm “condições de
freqüentar determinada série ou mesmo determinada escola, que
lhes faltam os “requisitos” mínimos para o aproveitamento escolar,
que suas “carências” (ora cognitivas, ora afetivas, ora morais, ora
culturais) são de certa forma intransponíveis; em suma, que os
hábitos da clientela são incompatíveis com aqueles desejáveis no que
tange aos cânones de uma instituição secular como a escola (p. 99).
Conforme relatei anteriormente, ao trabalhar como psicóloga em
escolas, defrontei-me inúmeras vezes com a demanda de correção dos
alunos “desviantes”, inadequados, que me era dirigida pelas escolas. Ocupei
muitas vezes essa suposta condição de “salvadora da pátria” salvadora”,
sim, supostamente “capaz”, pela minha especialidade, de corrigir aqueles
desvios que as escolas, após diversas e diferentes tentativas, não
conseguiam “retilinear”.
Inquieta com a percepção dessas práticas e com o lugar que estava
ocupando, busquei espaços onde pudesse repensar e problematizar a
inserção dos profissionais da Psicologia nas escolas a partir das minhas
vivências. Freqüentei disciplinas como aluna do Programa de Educação
Continuada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, onde estudei e conheci de modo mais
aprofundado os estudos de Michel Foucault e de outros autores pós-
estruturalistas. As leituras e as discussões associadas a elas, especialmente
aquelas relacionadas ao entendimento de que os saberes especializados e as
instituições foram inventadas para criar um tipo de sujeito com condições de
se autogovernar, desassossegaram-me ainda mais em relação às práticas
23
escolares e às intervenções de psicólogos e psicólogas que atuam na
instituição escolar.
Esses entendimentos levaram-me a repensar a posição que eu
vinha ocupando enquanto psicóloga no ambiente escolar onde trabalhava.
Na época, propus à direção de uma das escolas da rede onde eu atuava
alguns encontros com os professores para conversar sobre as práticas
educativas.
A escolha da escola deu-se em função do alto índice de
encaminhamentos de “alunos-problema” para tratamento psicológico. Os
professores dessa escola reuniam-se uma vez por mês para discutir os
programas pedagógicos. Dividiam-se em três grupos: professores de séries
iniciais, professores de 5ª a séries do diurno e professores de a 8ª
séries do noturno. Como o maior número de alunos encaminhados provinha
das turmas de a ries do diurno (até porque os alunos do noturno
normalmente trabalhavam e, por isso, não tinham tempo para freqüentar os
atendimentos psicológicos), me propus a participar dessas reuniões mensais,
que, na escola, se entendia como muito difícil reunir os professores ainda
em outro horário, amesmo porque muitos trabalhavam em regime de 60
horas semanais. Alguns dos professores que participavam dessas reuniões
trabalhavam em um turno com turmas de a ries e em outro turno
com séries iniciais.
Participei de três desses encontros, nos meses de setembro,
outubro e novembro de 2003. Como metodologia de trabalho, utilizei
questionamentos do tipo: Por que esse aluno é um “problema”? Para quem
isso é um problema? Por que isso é um problema? O que se espera dos
alunos? Por que a escola e os professores e professoras esperam isso dos
alunos? O que os alunos querem de suas vidas? Quais são seus interesses?
Os conteúdos escolares são relevantes? Para quem? Para que servem na vida
do aluno? Na medida em que discutíamos a respeito dos alunos
encaminhados para atendimento psicológico, eu lançava tais
questionamentos para o grupo. Dessa forma, eu pretendia minimamente dar
início a um movimento de desnaturalização dos “diagnósticos” construídos,
que apontavam, na maioria das vezes, para os problemas familiares como os
24
principais responsáveis pelos “problemas” dos alunos. Outra estratégia foi
propor algumas leituras
8
para serem realizadas em casa e discutidas nos
encontros, tendo em vista que dispúnhamos de pouco tempo (em torno de 40
minutos).
Nos encontros, percebi que minhas tentativas de problematização
geravam certos embates e questionamentos em torno da função das
psicólogas (até porque, nesse momento, a psicóloga se posicionava não mais
apenas recebendo alunos em atendimento psicológico, mas empreendia um
movimento de questionamento desses encaminhamentos). Porém, também
outras interrogações emergiram, problematizando a estrutura das
instituições escolares e aquilo que nelas se passa, as relações que ali se
estabelecem, o poder que circula e que, muitas vezes, oprime. Além disso, os
participantes interrogavam-se sobre as avaliações, os processos de
aprovação/reprovação, perguntando-se para que serviam. Outras questões
também surgiram, como os efeitos produzidos naqueles alunos que
tomávamos como “problemas”: afinal, como esse aluno se enxerga, colocado
pela escola nesse lugar? Muitas perguntas. Nenhuma resposta concreta e
final, como habitualmente se pretende. Encontrei educadores abertos a
repensar essas questões e outros ainda resistentes. Porém, a maioria
verbalizava seu desamparo na medida em que os desassossegos aconteciam.
Percebi também em mim um intenso sentimento de angústia pelo
fato de estar problematizando uma situação para a qual contribuía: a
cristalização de determinados alunos enquanto “problemas” escolares, na
medida em que eles permaneciam em acompanhamento psicológico comigo.
A partir dos questionamentos realizados, outras falas emergiram
desses encontros, problematizando os diversos personagens dos espaços
escolares e as relações estabelecidas entre eles (a questão dos
encaminhamentos para acompanhamento psicológico, o fato de que alguns
8
Entre essas leituras:
EIZIRIK, Marisa. Por que a diferença incomoda tanto? Pensando a Educação Especial. In:
EIZIRIK, Marisa. Educação e Escola a aventura institucional. Porto Alegre: AGE, 2001,
p.37-57.
EIZIRIK, Marisa. Escola, Saber e Poder. In: EIZIRIK, Marisa. Educação e Escola – a aventura
institucional. Porto Alegre: AGE, 2001, p.106-117.
EIZIRIK, Marisa. Os alunos: a dimensão esquecida. In: EIZIRIK, Marisa. Educação e Escola
– a aventura institucional. Porto Alegre: AGE, 2001, p.133-153.
25
alunos eram problemas” com alguns professores e não com outros, a
percepção de que cada professor percebia os alunos de forma diferente, os
processos de avaliação, a eficácia ou ineficiência das reprovações). Tais
questionamentos provocavam também em mim, sentimentos de desamparo.
Fui, como a maioria, formada, seja como aluna, seja como professora (e, por
que não, como psicóloga) no modelo escolar narrado, subjetivada pelas
práticas que ocorrem na escola, o que, em certa medida, torna difícil pensá-
las de outro modo. A inquietação com as práticas
totalizantes/homogeneizadoras da educação escolarizada e com as
intervenções da Psicologia nos espaços escolares moveu-me a problematizar
as possíveis articulações entre os saberes da Psicologia, da Pedagogia e
outros na produção dos “alunos-problema”.
Ao discutir a Psicologia como ciência que pode funcionar dentro
de um campo normativo, refere Foucault (2002):
Toda psicologia é uma pedagogia, toda decifração é uma terapêutica,
não se pode saber sem transformar (p.227).
As palavras do autor levam-me a pensar nas práticas escolares
pedagógicas, psicológicas, entre outras, que buscam conhecer” os alunos,
apropriando-se daquilo que neles observam, sem atentar realmente aos
efeitos desses olhares na constituição dessas subjetividades. Em outras
palavras, à medida que construímos saberes sobre alguém, estamos ali,
naquele sujeito, produzindo efeitos constitutivos.
Nesse sentido, nesta pesquisa, ao ingressar num determinado
espaço escolar, busco conhecer as práticas e os discursos que se articulam
na produção desses alunos. Olho para essas questões por pensar que
determinados entendimentos e diagnósticos tomados como “verdades” atuam
como marcas que, ao serem incorporadas, posicionam e constituem as
subjetividades dos indivíduos, o que muitas vezes pode atuar fixando suas
posições. Tais cristalizações podem representar, segundo Aquino (2001,
p.99) “vetores de (re)produção do fracasso escolar”. Além disso, demarcam
lugares de desvalia, de menos-valia, de falta, de insuficiência.
26
As experiências profissionais que tive com alunos tidos como
“problema” possibilitaram-me perceber que os processos classificatórios
produzem, também, condições excludentes a partir dos lugares que passam
a ser destinados a esses alunos, seja na escola (lugar de não-aprendente,
lugar de delinqüência, lugar de indisciplina), seja fora dela (a partir de
mecanismos como a suspensão, a expulsão, os encaminhamentos para
correção, a transferência para outra instituição de ensino). A partir dessas
minhas vivências, narradas nas páginas deste primeiro capítulo, interrogo: O
que é produzido/tomado como “aluno-problema”? De que maneiras as
práticas sociais, entre elas, as escolares, fabricam cotidianamente esses
alunos? Como se lida, no cotidiano escolar, com o sujeito interpretado
como “problema”? As nomeações utilizadas para descrever os alunos
apenas os descrevem ou produzem outras implicações, talvez
subjetivando-os?
Instigada por essas questões, busco situar ao leitor e à leitora, no
próximo capítulo, as ferramentas conceituais que utilizo neste estudo,
produzindo meus modos de olhar e problematizar a escola e um dos
elementos de sua produção: o “aluno-problema”.
... UMA DAS INVENÇÕES DAS PRÁTICAS ESCOLARES:
O “ALUNO-PROBLEMA”
Quando fala de invenção, Nietzche tem sempre em mente uma
palavra que opõe a invenção, a palavra origem. Quando diz invenção
é para não dizer origem... (FOUCAULT, 1999, p.14).
Neste capítulo, discuto e proponho um campo teórico que me
ofereça sustentação para problematizar a noção de “aluno-problema”,
tomando-o como invenção de práticas sociais, dentre elas, as escolares.
Dessa forma, autorizo-me a “emprestar” de Nietzche, via Foucault, o conceito
de invenção ao pôr em questão as noções de interioridade e de sujeito de uma
essência, adquiridas na minha formação como psicóloga.
Para tanto, organizei a escrita em seções, trazendo as discussões
conceituais a partir das quais venho olhando para meu problema de
pesquisa.
O SUJEITO: PRODUÇÃO DAS PRÁTICAS SOCIAIS
Em O sujeito e o poder, ao introduzir suas discussões sobre o
sujeito, Foucault (1995) diz que pretendeu, com seu trabalho, “criar uma
história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres
humanos tornaram-se sujeitos” (p.231). Também no seu texto A ética do
cuidado de si como prática da liberdade, ao falar de sua recusa em fazer uma
teoria do sujeito, mostra que o que lhe interessa é “a constituição histórica
dessas diferentes formas do sujeito em relação aos jogos de verdade” (p.275)
e aponta:
Procurei mostrar como o próprio sujeito se constituía, nessa ou
naquela forma determinada, como sujeito louco ou são, como sujeito
delinqüente ou não, através de um certo número de práticas, que
eram os jogos de verdade, práticas de poder, etc. Era certamente
necessário que eu recusasse uma certa teoria a priori do sujeito para
28
poder fazer essa análise das relações possivelmente existentes entre
a constituição do sujeito ou das diferentes formas de sujeito e os
jogos de verdade, as práticas de poder, etc. (FOUCAULT, 2004,
p.275).
Os escritos do autor incitam-me a pensar nesses movimentos que
experienciamos/produzimos constantemente em nossa vida cotidiana, nas
relações que estabelecemos e que o nos tornando o que, provisoriamente,
somos. Nessa perspectiva, questiono a possibilidade de afirmarmos eu sou
como algo definitivo, apontando para a nossa transitoriedade: eu estou
sendo...
Ao propor a genealogia como ferramenta que se opõe às pesquisas
de origem, Foucault (2003a) objetiva
[...] marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda
finalidade monótona; espreitá-los onde menos se os esperava e
naquilo que é tido não possuindo história os sentimentos, o amor,
a consciência, os instintos; apreender seu retorno não para traçar a
curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes
cenas onde eles desempenharam papéis distintos; e até definir o
ponto de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram
(p.15).
Dessa forma, segundo o autor, é possível mostrar as
descontinuidades das formações discursivas e dos efeitos/marcas que
produzem, apontando para a inexistência de uma essência nas coisas, senão
que elas são interpretações, modos transitórios de serem
decifradas/significadas. Nessa direção, Dreyfus e Rabinow (1995) discutem
que, “para a genealogia, o essências fixas, nem leis subjacentes, nem
finalidades metafísicas. A genealogia busca descontinuidades ali onde
desenvolvimentos contínuos foram encontrados” (p.118).
É nesse sentido que estou olhando e pensando as coisas do mundo
(entre elas, o sujeito) enquanto produções provisórias das e nas práticas
cotidianas, nos acontecimentos, nos descaminhos, nos embates... Assim,
nem as coisas que dizemos existir no mundo, nem o sujeito têm uma
história linear, evolutiva, ordenada e passível de reconhecimento.
Em sua tese de Doutorado, quando interroga o corpo (entendido
como um sistema vivo, que se produz nas inter-relações com meio) em sua
29
historicidade, tomando-o como “produto de relações processadas
historicamente em diversas práticas sociais”, Souza (2001) afirma:
... estou pensando em uma pessoa ou em pessoas corpos(s) que
se encontram implicadas em práticas sócio-culturais cotidianas de
categorização (identificação-diferenciação, pertencimento-exclusão,
etc) que, historicamente, a(s) atravessa(m) e produz/produzem,
marcando no(s) corpo(s) o que denominamos identidades – quem sou
eu e a quem pertenço portanto, uma pessoa ou pessoas
profundamente implicada(s) nas práticas vividas (p.121).
Os elementos trazidos por Souza (2001) auxiliam-me no processo
de compreender a constituição do(s) sujeito(s) enquanto processos não-
lineares, na medida em que podem ser constantemente atravessados pelo
inesperado, pelos acontecimentos que muitas vezes compõem os cotidianos.
Além disso, reforça meu entendimento de que as práticas cotidianas que
vivenciamos constituem os lugares que passamos (pelo menos
temporariamente) a ocupar nos grupos sociais aos quais pertencemos.
Ao discutir o sujeito como constituído em redes sociais, Norbert
Elias (1994) vai dizer que o ser humano, em sua singularidade, é “gerado e
partejado por outros seres humanos” (p.26), sinalizando para a existência e o
papel dos grupos sociais, dentre eles, a cadeia entre pais e filhos. Para o
autor:
Todo indivíduo nasce num grupo de pessoas que existiam antes
dele. E não é só: todo indivíduo constitui-se de tal maneira, por
natureza, que precisa de outras pessoas que existam antes dele para
poder crescer. Uma das condições fundamentais da existência
humana é a presença simultânea de diversas pessoas inter-
relacionadas (idem, p.26-27).
Um recém-nascido, para ele, comporta múltiplas possibilidades de
individualidades, porém, as formas de ser que esse indivíduo vai assumindo
no decorrer de sua vida são constituídas nas suas relações com as pessoas
com quem convive; “o que confere a sua substância animal à qualidade de
seres humanos, principalmente seu autocontrole psíquico e seu caráter
individual, assume a forma que lhe é específica dentro e através de relações
com os outros” (ELIAS, 1994, p.35).
30
Ao utilizar a metáfora da rede de tecido para falar de seu modo de
entender a constituição do sujeito humano, o autor discute:
Nessa rede, muitos fios isolados ligam-se uns aos outros. No entanto,
nem a totalidade da rede nem a forma assumida por cada um de
seus fios podem ser compreendidas em termos de um único fio, ou
mesmo de todos eles, isoladamente considerados; a rede é
compreensível em termos da maneira como eles se ligam, de sua
ligação recíproca. Essa ligação origina um sistema de tensões para o
qual cada fio isolado concorre, cada um de maneira um pouco
diferente, conforme seu lugar e função na totalidade da rede. A forma
do fio individual se modifica quando se alteram a tensão e a
estrutura da rede inteira. No entanto essa rede nada é além de uma
ligação de fios individuais; e, no interior do todo, cada fio continua a
constituir uma unidade em si; tem uma posição e uma forma
singulares dentro dele (ELIAS, 1994, p.35).
Elias afirma, ampliando a discussão, que as relações interpessoais
vão muito além desse exemplo espacial da rede e que devemos imaginá-la
constantemente sendo tecida e destecida, pois “é assim que efetivamente
cresce o indivíduo, partindo de uma rede de pessoas que existiam antes dele
para uma rede que ele ajuda a formar. A pessoa individual não é um começo
e suas relações com as outras não tem origens primeiras” (ELIAS, 1994).
Nessa perspectiva, estamos em constante e ininterrupto processo de
fabricação de nossas subjetividades a partir de práticas externas de
subjetivação, as quais passam a ser exercidas sobre si.
Na medida em que penso o sujeito como invenção das práticas
sociais, entendo ser necessário olhar para as relações de poder/saber
implicadas nos processos cotidianos de produção de subjetividades.
Foucault (1995), ao dizer que o tema central de suas pesquisas é o sujeito e
que este se constitui nas relações, refere que, “enquanto o sujeito humano é
colocado em relações de produção e de significação, é igualmente colocado
em relações de poder muito complexas” (p.232). Num movimento teórico em
que busca demarcar diferenças entre os estados de dominação
9
e as relações
de poder, o autor refere que estas últimas:
9
Para Foucault (2004), os estados de dominação caracterizam-se pela cristalização e pelo
bloqueio das possibilidades de resistência, de mobilidade, de embate, de luta, tornando a
relação de poder fixa, imobilizada, impossibilitando o movimento e as estratégias de
modificação.
31
[...] têm uma extensão consideravelmente grande nas relações
humanas.[...] todo um conjunto de relações de poder que podem
ser exercidas entre indivíduos, no seio de uma família, em uma
relação pedagógica, no corpo político (FOUCAULT, 2004, p.266).
O autor ocupa-se com as implicações das relações de poder na
constituição do sujeito. Para ele, o poder circula na trama social,
categorizando e marcando o indivíduo em sua própria individualidade, a
partir de “discursos verdadeiros” que “devemos reconhecer e que os outros
têm que reconhecer nele” (FOUCAULT, 1995, p.235). Ao falar em poder, não
se refere a algo que teria um caráter repressivo, que funcionaria como uma
imposição; ao contrário, afirma:
Se o poder fosse somente repreensivo, se não fizesse outra coisa a
não ser dizer não, você acredita que seria obedecido? O que faz com
que o poder se mantenha e seja aceito é simplesmente que ele não
pesa só como uma força que diz não, mas que de fato, ele permeia,
produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-
se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo
social muito mais do que uma instância negativa que tem por função
reprimir (FOUCAULT, 2003a, p.8).
Machado (1982, p.191-192), ao discutir os estudos genealógicos
empreendidos por Foucault, vai dizer que o poder não tem uma localização
específica na estrutura social, mas funciona como uma rede de dispositivos
à qual ninguém escapa. Para ele, não existe o poder, mas sim relações de
poder em que uns controlam as ações dos outros, sendo, portanto, passíveis
de ser encontradas ou disseminadas em todo o campo social. Segundo o
autor:
Esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra
seu exercício não podem ser feitas de fora, de outro lugar, do
exterior, pois nada es isento de poder. Qualquer luta é sempre
resistência dentro da própria rede do poder, teia que se estende por
toda a sociedade e a que ninguém pode escapar: ele es sempre
presente e se exerce como uma multiplicidade de relações de força
(MACHADO, 1982, p.192).
Nessa perspectiva, o poder, ao ter um caráter relacional, é
dinâmico, flexível, estratégico, forma difícil de ser capturada, em que o
sujeito e suas ações são seus efeitos e agentes. O poder aparece como algo
produtivo, produzindo a todos nós enquanto sujeitos. Constituímo-nos
32
nessas relações na medida em que o exercemos e/ou a ele resistimos. Para
Foucault, aquilo que define uma relação de poder é o fato de ser:
(...) um modo de ação que não age direta e imediatamente sobre os
outros, mas que age sobre sua própria ão. Uma ação sobre a ação,
sobre ões eventuais, ou atuais, futuras ou presentes. Uma relação
de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela
submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades;
não tem, portanto, junto de si, outro pólo senão aquele da
passividade; e, se encontra uma resistência, a única escolha é tentar
reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se articula sobre dois
elementos que lhe o indispensáveis por ser exatamente uma
relação de poder: que o “outro” (aquele sobre o qual ela se exerce)
seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito de
ação; e, que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de
respostas, reações, efeitos, invenções possíveis (1995, p.243).
Em outro momento de seus escritos, Foucault discute o indivíduo
produzido pelas práticas disciplinares enquanto tecnologias do poder. Refere:
Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos
negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”,
“mascara”, “esconde”. Na verdade o poder produz; ele produz
realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O
indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa
produção (1998, p.161).
É através dos mecanismos disciplinares, que existiam
anteriormente de forma fragmentada e isolada, sendo aperfeiçoados a partir
dos culos XVII e XVIII (articulados entre si nas instituições disciplinares)
como técnicas de gestão dos homens, que...
(...) os sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os indivíduos
em sua singularidade. É o poder de individualização que tem o
exame como instrumento fundamental. O exame é a vigilância
permanente, classificatória, que permite distribuir os indivíduos,
julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao
máximo. Através do exame, a individualidade torna-se um elemento
pertinente para o exercício do poder (FOUCAULT, 2003a, 107).
Foucault (1995) alerta sobre os riscos que corremos quando
pensamos em analisar as relações de poder a partir de espaços institucionais
fechados, sugerindo que se analisem as instituições a partir das relações de
poder. Isso porque, para ele, “as relações de poder se enraízam no conjunto
da rede social” (p.247), em que a possibilidade de “ação sobre a ação dos
33
outros” (idem, ibidem) existe em toda e qualquer relação. Além disso, para o
autor, essa mesma possibilidade produz “múltiplas formas de disparidade
individual, de objetivos, de determinada aplicação do poder sobre nós
mesmos e sobre os outros, de institucionalização mais ou menos setorial ou
global, organização mais ou menos refletida, que definem formas diferentes
de poder” (idem, ibidem).
Nesse sentido, busco, neste estudo, olhar para essa articulação de
forças, de estratégias, de movimentos que, atravessando as relações de poder
num determinado espaço educativo, produzem os alunos tomados como
“problemas”.
O SUJEITO COMO FABRICAÇÃO DA MODERNIDADE
Márcio Alves da Fonseca (1995), nas suas discussões sobre a
constituição do sujeito, a partir dos escritos de Foucault, refere que o
indivíduo moderno é visto como produto das práticas disciplinares, “produto
de uma tecnologia, constituído enquanto objeto de saber e resultado das
relações de poder, marcado pela docilidade e utilidade que justificam o
processo de sua constituição” (p.70). Diferentemente do que ocorria em
períodos históricos anteriores, quando o indivíduo era formado por
mecanismos histórico-rituais, a introdução das disciplinas faz com que ele
passe a ser produzido por mecanismos científico-disciplinares” (p.71),
tornando-se, dessa forma, aquilo que Foucault (apud FONSECA, 1995)
nomeia “homem calculável” (idem, ibidem).
Nas discussões que levanta acerca da fabricação do corpo dócil e
útil a partir do funcionamento das disciplinas no sistema prisional, Foucault
(1998) aponta para um movimento de generalização das práticas
disciplinares a partir do culo XVII, na medida em que estas se estenderam
por todo o corpo social. Para Fonseca (1995), essa
[...] disciplinarização da sociedade, conseguida pela generalização
dos mecanismos disciplinares dispersos pelo carcerário, tem como
produto essencial o indivíduo moderno. Este é seu maior efeito:
produzir uma individualidade que corresponda às expectativas de
uma acumulação e uma gestão útil dos homens; produzir o indivíduo
34
comum, de todos os dias e de todos os lugares, e não o indivíduo
singularizado por atos e datas especiais; produzir um indivíduo que
permita a extração de algo de todas as suas atividades e de seus
momentos; produzir, enfim, indivíduos dóceis e úteis (p.75).
Dessa forma,
A chave para a compreensão da individualidade moderna (dócil e
útil) no pensamento de Foucault está em se partir da noção de
sujeito enquanto produção das relações de poder e saber e na
identificação de tais relações. O sujeito não é dado definitivamente
na história, mas constitui-se no interior dela.[...] antes de origem e
fonte, o sujeito é produto e efeito (FONSECA, 1995, p.75).
A noção de sujeito moderno, para Silva (1995), o passa de uma
construção contingente, social e historicamente característica de uma época
específica. Para ele:
Na perspectiva moderna, o sujeito é considerado como uma essência
que preexiste à sua constituição na linguagem e no social. [...] Ele é
visto como capaz de autonomia e independência se
convenientemente educado em relação à sociedade. Sua
consciência é dotada de um centro, origem e fonte única de todas as
suas ações. Além disso, essa consciência é unitária e o dividida,
partida ou fragmentada. Ele é auto-idêntico, tendo como referência
última apenas a si mesmo. É esse sujeito que constitui a
possibilidade da existência da sociedade e da política modernas. [...]
Do ponto de vista pós-moderno [...] o sujeito moderno existe como
resultado dos aparatos discursivos e lingüísticos que assim o
construíram. Aquilo que é visto como essência e como
fundamentalmente humano não é mais do que o produto das
condições de sua constituição. O sujeito moderno, longe de constituir
uma essência universal e atemporal, é aquilo que foi feito dele. Sua
apresentação como essência esconde o processo de sua manufatura
(SILVA, 1995, p. 248).
Esses autores possibilitam pensar que essas noções tão usuais e
não problematizadas de sujeito possuidor de uma essência não passam de
construções da Modernidade. As instituições modernas, entre elas a escola,
farão uso de diversas estratégias com a finalidade de dar conta da produção
desse sujeito enquanto algo “manufaturado”.
Ao lançar um olhar genealógico sobre as práticas que funcionam
no interior de determinadas instituições, Foucault situa a partir do século
XVIII a emergência de cnicas cada vez mais minuciosas de controle do
corpo. Especialmente a partir dos séculos XVII e XVIII, no interior de
35
instituições como o hospital, a brica, a escola e o exército, o funcionar e
articular-se um conjunto de técnicas, táticas, com a finalidade de produzir
corpos dóceis e úteis para o sistema onde eles se encontram inseridos,
configurando-se, segundo ele, uma “anatomia política do detalhe”
(FOUCAULT, 1998, p.120). Para o autor:
Esses todos que permitem o controle minucioso das operações do
corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhe
impõem uma relação de docilidade-utilidade são o que podemos
chamar as “disciplinas”. [...] A disciplina fabrica assim corpos
submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as
forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas
mesmas forças (em termos políticos de obediência) (FOUCAULT,
1998, p.118-119).
De acordo com Veiga-Neto (2001), as disciplinas articulam-se em
torno de dois eixos queo se separam: o eixo do corpo e o eixo dos saberes
(p.11), fazendo parte de processos de subjetivação na medida em que, a
partir das regras disciplinares, assumimos como naturais os limites aos
quais nos submetemos enquanto sujeitos. Para o autor, “o poder disciplinar
age sempre sobre algo que tem vida, ou seja, sobre algo que ocupa um lugar
no espaço e existe num tempo finito” (p.12).
Retomo novamente as reflexões de Silva (1995) quando este mostra
que os questionamentos pós-modernistas têm destacado também o “caráter
disciplinar da organização moderna do saber e do conhecimento” (p.251). O
autor cita Foucault para destacar que a disciplinarização do saber está
estreitamente implicada com relações de poder. Refere que “a educação
moderna é a instituição disciplinar por excelência” (ibidem) em dois sentidos:
num sentido epistemológico, por estar organizada em torno de disciplinas, e
num sentido político, por ser a instituição encarregada da disciplina.
De acordo com Veiga-Neto (2001), se entendermos o poder
disciplinar como algo que se exerce de maneira microscópica sobre o corpo e
que está distribuído por toda a rede social, poderemos visualizar
[...] as inúmeras práticas que acontecem no ambiente escolar como
técnicas que se combinam e dão origem a uma verdadeira tecnologia,
cujo fim é tanto alcançar os corpos em suas ínfimas materialidades
36
quanto imprimir-lhes o mais permanentemente possível
determinadas disposições sociais (p.10).
Ao falar das funções das instituições disciplinares, entre elas, a
escola, Foucault (1999) mostra que:
Primeiramente [...] se encarregam de toda a dimensão temporal da
vida dos indivíduos. [...] É preciso que o tempo dos homens seja
oferecido ao aparelho de produção; que o aparelho de produção
possa utilizar o tempo de vida, o tempo de existência dos homens.
[...] A segunda função das instituições de seqüestro é não mais a de
controlar o tempo dos indivíduos, mas a de controlar simplesmente
seus corpos. [...] É muito curioso observar, por exemplo, como a
imoralidade (a imoralidade sexual), constituiu, para os patrões das
fábricas do começo do século XIX, um problema considerável.
[...]...se trata, no fundo, não somente de apropriação, de extração da
quantidade máxima de tempo, mas, também, de controlar, de
formar, de valorizar, segundo um determinado sistema, o corpo do
indivíduo (p. 115 - 119).
Uma terceira função, segundo o autor, diz respeito ao
estabelecimento de um novo tipo de poder, polivalente, por ser, ao mesmo
tempo, econômico (salário em troca do trabalho dos indivíduos), político (há
a delegação, a alguns, do direito de dar ordens, de regular, de expulsar, de
aceitar a outros) e judiciário (alguns têm o direito de punir e recompensar
outros, a partir de situações de julgamento) (FOUCAULT, 1999, p.120).
Aponta, ainda, Foucault (1999) uma quarta característica do
poder: o fato de ser epistemológico, por extrair dos indivíduos um saber e
extrair um saber sobre estes indivíduos submetidos ao olhar e já controlados
por estes diferentes poderes” (p.121). Tal prática, segundo o autor,
potencializa a eficácia do poder disciplinar, possibilitando o
acompanhamento e averiguação constante das estratégias disciplinares
utilizadas, bem como seu aperfeiçoamento, a partir justamente da formação
de um saber sobre os indivíduos, extraído da observação de seus
comportamentos.
Esse saber, para o autor:
Nasce da observação dos indivíduos, da sua classificação, do registro
e da análise dos seus comportamentos, da sua comparação, etc.
Vemos assim nascer, ao lado desse saber tecnológico, próprio a todas
as instituições de seqüestro, um saber de observação, um saber de
certa forma clínico, do tipo da psiquiatria, da psicologia, da psico-
37
sociologia, da criminologia, etc. É assim que os indivíduos sobre os
quais se exerce o poder ou são aquilo a partir do que se vai extrair o
saber que eles próprios formaram e que se retranscrito e
acumulado segundo novas normas, ou são objetos de um saber que
permitirá novas formas de controle (FOUCAULT, 1999, p.121-122).
Esses mesmos saberes/verdades, extraídos do indivíduo através
das práticas de objetivação, possibilitam o investimento de ações e
intervenções sobre ele, subjetivando-o. É nesse sentido que, neste estudo,
busco olhar para as práticas escolares como espaços de
objetivação/subjetivação de produção, entre outros sujeitos, dos alunos
tomados como “problemas”.
O DISCIPLINAMENTO DOS CORPOS NA ESCOLA MODERNA
Em A Maquinaria Escolar, Júlia Varela e Fernando Alvarez–Uria
(1992) buscam desnaturalizar a Escola Moderna, apontando para a
necessidade do questionamento
de seus pretendidos caracteres de
universalidade e de eternidade. Nesse texto, os autores trazem um olhar
genealógico para mostrar que a escola que temos hoje conta “com pouco
mais do que um século de existência” (p.68). Segundo eles, uma série de
elementos historicamente produzidos possibilitaram a emergência dessa
maquinaria-instituição:
1. a definição de um estatuto da infância.
2. a emergência de um espaço específico destinado à educação
das crianças.
3. o aparecimento de um corpo de especialistas da infância
dotados de tecnologias específicas e de “elaborados” códigos teóricos.
4. a destruição de outros modos de educação.
5. a institucionalização propriamente dita da escola: a imposição
da obrigatoriedade escolar decretada pelos poderes públicos e
sancionada pelas leis (VARELA E ALVAREZ-URIA, 1992, p.69).
Esse olhar genealógico sobre as escolas possibilita-nos pensar a
instituição escolar e os elementos que ali funcionam o currículo, os
conteúdos escolares, a avaliação, o aluno, etc. – como fabricados/produzidos
para atender a determinados interesses políticos, econômicos,
governamentais, de gestão dos indivíduos e da população, segundo as
exigências e necessidades de cada época e sociedade.
38
Foucault (1999) olha para a instituição escolar, bem como para
outras instituições (fábrica, hospital, manicômio, asilo, prisão), enquanto
espaços
criados não para excluir os indivíduos, mas para fixá-los em
aparelhos de normalização, objetivando sua ligação a “um processo de
produção, de formação ou de correção dos produtores. Trata-se de garantir a
produção ou os produtores em função de uma determinada norma” (p.114).
A escola enquanto uma das instituições fundadas na Modernidade
cujo projeto pretende produzir um determinado tipo de sujeito para atender
as demandas sociais vem utilizando um conjunto de práticas para atingir
seus objetivos: ocupa-se dos comportamentos, dos ritmos, dos desejos, da
sexualidade, das relações, enfim, do modo de ser.
Ao discutir o funcionamento do que nomeia como instituições de
seqüestro, Foucault vai dizer que “o sistema escolar é também inteiramente
baseado em uma espécie de poder judiciário. A todo momento, se pune e se
recompensa, se avalia, se classifica, se diz quem é o melhor, quem é o pior”
(1999, p.120). O autor ainda questiona: “Por que, para ensinar alguma coisa
a alguém, se deve punir e recompensar?” (idem, p.121).
Outras contribuições para pensar o funcionamento da escola,
encontro em Silva (1995). Esse autor, ao problematizar a produção do sujeito
moderno enquanto tarefa central da educação e da escola moderna, a partir
de uma perspectiva pós-estruturalista, aponta que a possibilidade da
educação e da pedagogia repousa precisamente no pressuposto da existência
de um sujeito unitário e centrado e na finalidade da educação como a
construção de sua autonomia, independência e emancipação” (p.248).
Segundo ele, sem essa idéia de sujeito moderno, não possibilidade de
uma educação moderna (idem, ibidem).
Varela (2000), ao discutir o processo de disciplinamento
10
dos
corpos na instituição escolar, refere que “as disciplinas foram técnicas de
adestramento e individualização que pretendiam maximizar as forças dos
10
Sobre essa mesma questão – os processos disciplinares na escola auxiliaram-me
significativamente na construção desses entendimentos as discussões que vem sendo
empreendidas há algum tempo por Maria Luísa Xavier, junto a esta Universidade, nas quais
a autora analisa a construção do sujeito/aluno, o disciplinamento escolar bem como os
movimentos de inclusão. As bibliografias utilizadas encontram-se nas referências
bibliográficas dessa dissertação.
39
indivíduos, otimizar seu rendimento e, ao mesmo tempo, extrair deles
saberes e lhes conferir uma determinada natureza” (p.92). Dentre as técnicas
disciplinares, segundo a autora, as práticas de exame permitiram a esse tipo
de poder penetrar “nos sujeitos, em seus corpos, em suas mentes e gestos,
mediante um mecanismo de objetivação que tornou invisíveis suas relações
de força” (idem, ibidem).
As práticas disciplinares funcionavam/funcionam como estratégias
que pretendem a homogeneização da multiplicidade presente nas massas
todos iguais, fazendo as mesmas coisas, ao mesmo tempo e da mesma
maneira. As escolas, para Núria Perez de Lara Ferre (2001), fundamentadas
em discursos de igualdade, progresso, ordem, entre outros, tentam produzir
sujeitos produtivos, obedientes, auto-conscientes, “retos”, através de um
conjunto de práticas disciplinares. Conforme a autora:
a educação impõe, a si mesma, o dever de fazer de cada um de nós
alguém [...] com uma identidade bem definida pelos cânones da
normalidade, os cânones que marcam aquilo que deve ser habitual,
repetido, reto, em cada um de nós (LARA FERRE, 2001, p.196).
Diante desse projeto moderno, um dos grandes problemas
enfrentados pelas escolas acaba sendo diminuir ou reduzir o máximo
possível o que se diferencia, as forças contrárias que aparecem no processo
de homogeneização. Talvez esse seja um de seus maiores problemas, se
levarmos em conta que tal impossibilidade coloca em xeque a própria
finalidade da escola, centrada nos princípios da Modernidade.
As teorias educacionais modernas, segundo Silva (2000), baseiam-
se na
concepção de que “o conhecimento e o saber constituem fonte de
libertação, esclarecimento e autonomia (p.250). Fundamentadas nos
princípios e conceitos do Iluminismo, sustentam a perspectiva de que, para
se chegar ao ideal de uma sociedade racional, progressista e democrática, é
necessário formar sujeitos racionais e autônomos - cidadãos “democráticos”
- e transmitir conhecimentos “científicos”.
Para Silva (2000), entre outras características, o campo
educacional é marcado: pela onipresença e “necessidade” de
40
metanarrativas
11
; pela concepção de sujeito e de consciência como centrais e
centrados; por aspectos de regulação e de governo; por concepções
humanistas de sujeito autônomo e dotado de uma essência; por binarismos
em que resplandece a idéia da existência de opressores/oprimidos; pela idéia
soberana da Razão; e, por fim, pela ênfase no papel intelectual do/a
professor/a e na busca de mudança do educando. Para o autor, “utopias,
universalismos, grandiloqüências, narrativas mestras, vanguardismo: esse o
terreno em que a educação e a teoria educacional se movimentam” (idem,
p.248).
Todavia, para o autor, a perspectiva pós-estruturalista vem
introduzir algumas mudanças teóricas que questionam os pressupostos
sobre os quais se assenta a escola moderna. Ao tomar o sujeito como
construído na e pela linguagem em um mundo preexistente a ele, tal
perspectiva interroga a concepção do sujeito autônomo e portador de uma
consciência. Ao mesmo tempo, problematiza a noção da linguagem, que
deixa de ser encarada como “veículo neutro e transparente de representação
da ‘realidade’” (SILVA, 2000, p.249), passando a ser compreendida como “um
movimento em constante fluxo, sempre indefinida, não conseguindo nunca
capturar de forma definitiva qualquer significado...” (idem, ibidem).
Em relação às idéias de conhecimento e saber enquanto “fonte de
libertação, esclarecimento e autonomia” (SILVA, 2000, p.250) e da
possibilidade de se “chegar a um conhecimento não mistificado do mundo
social” (idem, ibidem), a posição pós-estruturalista discute as relações entre
saber e poder, apontando que “todo saber/conhecimento torna-se
igualmente suspeito de vínculos com poder” (idem, ibidem).
Simultaneamente, o poder como algo que se possui passa a ser
problematizado (a partir dos escritos de Foucault), sendo visto como algo que
se exerce e que atua de modo invisível no corpo social, perpassando as
relações e estando estreitamente vinculado ao saber. Tais entendimentos
11
Podemos tomar Metanarrativas enquanto teorias que se propõem a ser as mais
abrangentes possíveis, buscando uma compreensão total da estrutura. A estrutura pode ser
compreendida como a característica das relações entre os elementos de um fenômeno e/ou
objeto. É o que mantém, de forma subjacente, os elementos individuais no lugar, é o que faz
com que o conjunto se sustente. O Estruturalismo, enquanto nero de teorização social,
privilegia a noção de estrutura (SILVA, 1999).
41
possibilitam, então, problematizar tanto as noções de conhecimento como
sendo neutro, quanto as ações implicadas no conhecer, uma vez que as
relações e as práticas que ocorrem na instituição escolar se encontram
implicadas em relações de saber/poder.
Nessa perspectiva, interroga-se também o papel do intelectual
(professor/a, acadêmico/a), que, na visão moderna, segundo Silva (2000), é
“colocada sempre numa posição afastada, na melhor tradição iluminista, vai
contribuir com um saber/conhecimento desinteressado para o avanço e
progresso da vida social” (p.251). Por estarem - poder e saber - vinculados, o
saber da/do intelectual é parte essencial e integrante das relações de poder
(idem, ibidem). As implicações desses entendimentos nas práticas de
professores/as aparecem na medida em que sua própria relação com os
estudantes deve ser mantida constantemente em xeque, tendo em vista seu
possível envolvimento em processos de regulação e controle” (idem, ibidem).
No que tange aos aspectos de regulação e controle que acontecem
no âmbito da educação e da pedagogia, a posição pós-estruturalista
(tomando por base os escritos de Foucault) enfatiza o caráter produtivo e
necessário do poder (na medida em que este constitui identidades e
subjetividades), contrapondo-se às teorias críticas marxistas, que entendem
o poder como repressor, como opressor, como algo que distorce. Para Silva:
As identidades e subjetividades assim produzidas não representam
nenhuma distorção, nenhum desvio em relação a alguma essência
humana que, se deixada livre ou “bem” encaminhada, seguiria seu
“verdadeiro” curso (2000, p. 252).
Quando discute a inseparabilidade entre regulação e saber, o autor
vai dizer que as matérias escolares, por estarem vinculadas à educação
escolarizada enquanto dispositivo
12
de governo e controle, “contêm
12
Para Michel Foucault (2003a), o dispositivo é “um conjunto decididamente heterogêneo
que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares,
leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a
rede que se pode estabelecer entre estes elementos” (p.244). O autor complementa
apontando o dispositivo como “estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e
sendo sustentadas por eles”, visando a atender uma determinada urgência ou necessidade
(p.246).
42
necessariamente aspectos regulativos, dos quais o podem ser separadas”
(p.253).
Remetendo a Derrida, Silva (2000) discute e problematiza os
binarismos (teoria/prática, sujeito/objeto, natureza/cultura,...) que habitam
a educação. Para ele, as concepções Iluministas propõem que, nos
binarismos, um termo (o positivo) representa a superação do outro (o
negativo), supondo que ambos os lados sejam dotados de uma essência. O
autor faz uso do par “reprimir/liberar” para discutir os binarismos. Para ele:
...veremos que “liberar”, por exemplo, não representa o “outro” de
“reprimir”, mas apenas um lado de uma identidade: a da essência
humana que deve ser reprimida ou liberada, conforme for o caso e a
época (idem, p.253).
Problematizar os binarismos implica olhar de outro modo para a
proposição e busca por um significado “verdadeiro”, que seria a referência ou
a origem dos demais significados (SILVA, 2000). No campo educacional, é
possível perceber o quanto tais discursos atravessam as práticas escolares: a
existência e a busca da “verdade” sobre aquilo que vemos e dizemos existir,
as estratégias para o alcance do sentido originário e imutável, por exemplo.
Por fim, outra problematização necessária em torno dos
pressupostos fundamentais do campo educacional diz respeito ao fato de
que a idéia hegemônica de Razão deve ser encarada como “produto de uma
construção histórica que deve suas características às condições da época em
que foi desenvolvida e não a uma essência humana abstrata e
universalizante” (SILVA, 2000, p. 256). Dessa perspectiva, torna-se
necessário repensar os entendimentos que temos de sujeito pensante e
racional. Se tomarmos o pensamento como algo dotado de um “caráter
relacional, contextual e histórico” (idem, ibidem), então, as noções de sujeito
da Razão do Iluminismo não podem fazer sentido nos momentos atuais em
que vivemos.
Ao questionar os pressupostos modernos nos quais as escolas
ainda hoje centram suas práticas, volto novamente às minhas vivências em
ambientes escolares. Resgatando as lembranças que apontam para a
impossibilidade de concretização dos pressupostos Iluministas, lembro-me
43
da existência permanente de situações de “crise” nas escolas, seja por
“problemas pela constante “desvalorização” dos professores, seja pelas
dificuldades encontradas nas tentativas de tratar todos de maneira
igualitária, bem como de formar sujeitos dentro de determinadas regras a
partir das práticas educativas.
O “ALUNO-PROBLEMA”: A CONSTITUIÇÃO DO ANORMAL
Nesta seção, percorro algumas discussões conceituais que me
permitem olhar para a emergência daquilo que chamo, neste estudo, de
“aluno-problema”.
Em suas discussões sobre os conceitos de normal e anormal, a
partir dos estudos de Foucault, Márcio Alves da Fonseca (2002) refere que
tais conceitos estão intimamente ligados à noção de “desenvolvimento”. Essa
noção emerge das práticas de psiquiatrização da infância, especialmente no
século XIX. Para Fonseca (2002):
Esta noção permitirá o estabelecimento de uma certa linha de
separação entre vários tipos de caracteres. Em alguns indivíduos,
haveria uma interrupção no desenvolvimento psicológico; em outros,
não interrupção, mas apenas uma lentidão, e nenhuma dessas
situações implicaria forçosamente em loucura, em doença mental. A
importância de tal distinção está na idéia de que o desenvolvimento
não é algo de que se é dotado ou de que se é privado, mas consiste
num processo que afeta a vida psicológica e orgânica do indivíduo. O
desenvolvimento seria uma dimensão comum a todos os indivíduos,
podendo ser mais lento em alguns, ou mesmo ser interrompido em
outros. O desenvolvimento seria, portanto, uma espécie de norma
através da qual é possível situar alguém. Face tal noção, desenha-se
uma dupla normatividade: uma normatividade que se aquela do
adulto (aparece como o fim ideal do término do processo de
desenvolvimento) e uma outra normatividade que seria uma certa
média para as crianças (a média no seu desenvolvimento) (p.246).
Nas instituições escolares, os processos disciplinares têm a
finalidade de capturar todos os sujeitos que ali circulam, porém dirigem-se
de maneira mais intensa a uma parte do grupo social: às crianças,
compreendidas, na perspectiva evolutiva, como incompletas, imaturas,
necessitando desenvolver-se para chegar ao ápice de seu desenvolvimento
a condição adulta. Para ilustrar essa discussão, trago um fragmento extraído
44
de uma obra escrita por psiquiatras e psicólogos gaúchos, abordando a
questão do aluno-problema
13
.
Consideramos, no presente artigo, aluno-problema aquele que
entrava seu desenvolvimento pessoal, impedindo um funcionamento
flexível e harmonioso. [...] O aluno-problema é uma criança-
problema. Para o entendimento e manejo efetivo da integração em
sala de aula, o primeiro passo deve ser o de avaliar o grau de
comprometimento da criança e associar o nível de desempenho do
aluno ao momento em que o processo de desenvolvimento dessa
criança se viu prejudicado (FERREIRA E ARAÚJO, 1996, p. 30).
Ora, não é difícil de perceber, nesse fragmento, o entendimento que
embasa tal obra: a existência de uma interioridade. O aluno-problema traz
uma essência problemática, que é uma criança-problema, o que barra seu
desenvolvimento, o processo “natural” a ser percorrido. Esse entendimento
aponta para uma concepção evolutiva de sujeito, que a criança como um
ser em desenvolvimento e, por isso, incompleta, tendo um caminho
normativo de crescimento a ser percorrido.
Larrosa (1998), ao discutir a infância e nossas intervenções nela,
refere que:
[...] a infância é o outro: o que, sempre muito além de qualquer
tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes,
questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio no qual se
abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhida
(p. 69).
Pensar a infância como o outro, aquele que traz a condição de
acontecer e de escapar aos projetos estabelecidos para ele, cria a
possibilidade de vermos, então, o sem-fim de tentativas de produzir
conhecimentos, de estabelecer procedimentos, pedagógicos ou o, para que
se atinja a criança idealizada – satisfeita, quietinha, aprendente, interessada,
dócil, “normalpelo olhar dos adultos. Se, por um lado, os entendimentos,
as práticas, os métodos extraídos e direcionados à infância transformaram-
13
Note-se que, no título da obra, O aluno problema Transtornos emocionais de crianças e
adolescentes, não há a utilização de aspas, na forma como as utilizo na escrita deste
trabalho, marcando minha problematização desse conceito. Resta também dizer que essa
referência bibliográfica é amplamente utilizada na academia, como base teórica na formação
de psicólogos e professores.
45
se em tentativas de capturá-la e fabricá-la, por outro, a infância permanece
sendo aquilo que nos escapa, que é diferente dos adultos, que não
compreendemos totalmente, que não atingimos adequadamente, não
domesticamos como gostaríamos. Algo na criança sempre foge do ideal
projetado pelo adulto. Para Larrosa (1998):
A infância como algo outro não é o objeto (ou objetivo) do saber, mas
o que escapa a qualquer objetivação e o que desvia de todo objetivo;
não é o ponto de ancoragem do poder, mas o que marca sua linha
de despenhadeiro, seu limite exterior, sua absoluta impotência; não
é o que está presente em nossas instituições, mas o que permanece
ausente, inabarcável, brilhando sempre fora dos seus limites (p. 70).
Nesse sentido, a alteridade da infância torna sua presença um
enigma que o conseguimos decifrar: algo que diz da sua absoluta
diferença e heterogeneidade em relação a nós e ao nosso mundo. Assim,
pensar a infância numa outra direção exigiria olhar aquilo que nos escapa e
inquieta, interrogar o que supomos saber e como agimos em relação a ela,
questionando as verdades e os lugares construídos sobre e para ela
(LARROSA, 1998). Isso exige dar lugar à presença da infância enquanto
mistério, aquilo que é difícil de compreender e problematizar em nossas
formas de escutar, de agir e de receber as crianças.
A presença, nas escolas, de indivíduos cujos ritmos e
comportamentos não correspondem aos padrões da escola e também
daqueles que resistem às práticas disciplinares aponta para a força da
heterogeneidade ali presente. No entanto, tais indivíduos são posicionados
ou como portadores de dificuldades de aprendizagem (em menor escala),
aqueles que o aprendem os conteúdos escolares dentro de um padrão
preestabelecido, ou como portadores de desvios de conduta/comportamento
(na maioria das queixas escolares), aqueles que o correspondem às
expectativas de como devem ser: disciplinados, racionais, autônomos,
cooperativos, dedicados, etc.
Diante de tal diversidade, as tentativas de homogeneização
produzem, muitas vezes, aquilo que é chamado de “fracasso escolar”
14
: trata-
14
Além dos autores trazidos no texto, para pensar a questão das noções de “fracasso
escolar” e de desempenho escolar, aproximei-me das discussões realizadas por Maria
46
se de sujeitos que, por não corresponderem às expectativas dos
pressupostos educacionais, são desqualificados, reprovados ou eliminados
nos processos escolares de avaliação. Para Deacon e Parker (2000), quando
“aparece” o fracasso educacional:
A reação padrão [...] consiste em fornecer mais educação, de forma
que a educação se torna o remédio para seus próprios males.
Entretanto, as anomalias [...] surgem, proliferam e são reforçadas, ao
invés de serem superadas, como a educação proclama. A educação
está planejada para fracassar; ela produz necessidades e sujeitos
necessitados, a fim de justificar sua própria necessidade (p.105).
Nesse duplo movimento que sustenta a educação, podemos pensar
as práticas escolares tanto como ferramentas pedagógicas para dar conta
das heterogeneidades, na tentativa de capturá-las nos processos de
normalização, quanto produtoras das anormalidades e fracassos. Ao
discutirem sobre essas questões, Deacon e Parker (2000) referem que “a
generalização da normalização opera através da criação de anormalidades
que ela [a educação], então, deve tratar e reformar” (p.105).
Tais pensamentos auxiliam-me a entender os movimentos que
cotidianamente se o, nas instituições escolares, na direção de corrigir
aqueles que não se enquadram nos padrões desejados e/ou considerados
normais, seja de aprendizagem, seja de posicionamento ou de
comportamento.
A discussão empreendida por Zigmunt Bauman (1999) aponta para
o fato de que a existência “é moderna na medida em que se bifurca em
ordem e caos, [...] em que contém a alternativa da ordem e do caos” (p.14).
Tal discussão ajuda-nos a questionar as pretensões de ordem da
Modernidade, na medida em que a criação da ordem cria a
desordem ou o
caos, como refere o autor. Para ele, “a negatividade do caos é um produto da
autoconstituição da ordem, seu efeito colateral, seu resíduo e, no entanto,
condição sine qua non da sua possibilidade (...) sem o caos, não ordem”
(p.15).
Cláudia Dal Igna (2005) em sua dissertação de Mestrado intitulada “Há diferença?” Relações
entre desempenho escolar e gênero, onde a mesma analisa as noções de desempenho escolar
relacionadas a questões de gênero, enquanto construções pedagógicas.
47
Na tentativa de organizar o mundo, estabelecem-se nomeações,
categorias, padrões que se movimentam no sentido de capturar as coisas do
mundo, inclusive os indivíduos. Busca-se, dessa maneira, definir também o
que é normal, criando-se, simultaneamente, o que é anormal. Nesse sentido,
Bauman aponta para as dicotomias, referindo:
Em dicotomias cruciais para a prática e a visão da ordem social, o
poder diferenciador esconde-se em geral por trás de um dos
membros da oposição. O segundo membro não passa do outro do
primeiro, o lado oposto (degradado, suprimido, exilado) do primeiro e
sua criação. Assim, a anormalidade é o outro da norma, o desvio é o
outro do cumprimento da lei, a doença é o outro da saúde [...] a
insanidade o outro da razão, o estrangeiro o outro do súdito do
Estado, o público leigo o outro do especialista. Um lado depende do
outro, mas a dependência não é simétrica. O segundo lado depende
do primeiro para o seu planejado e forçado isolamento. O primeiro
depende do segundo para sua auto-afirmação (1999, p.22-23).
As questões que o autor levanta movem-me no sentido de atentar
para a necessidade que temos de encontrar/produzir categorizações,
explicações, procedimentos para aquilo ou aquele que foge ao que tomamos
como normal, na busca de garantir a suposta normalidade.
Os entendimentos que apresentei nesta seção levam-me a
direcionar o meu olhar o para o indivíduo-aluno, mas para a rede de
elementos que se engendra no cotidiano escolar, fabricando o “aluno-
problema”, a rede à que ele acaba por submeter-se e em que se constitui.
POSSIBILIDADES OUTRAS DE SUBJETIVAÇÃO?
Ao entender o sujeito como produzido, fabricado nas práticas
sociais, Foucault (1995) aponta para a importância de realizarmos a análise
crítica do tempo presente, do que nos tornamos e estamos sendo neste
momento, a fim de que possamos vir a ser de outro modo e criar outras
formas de intervenção. A respeito de como olhar as práticas que nos
constituíram, ele vai dizer:
Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas
recusar o que somos. Temos que imaginar e construir o que
poderíamos ser para nos livrarmos deste “duplo constrangimento”
48
político, que é a simultânea individualização e totalização própria às
estruturas do poder moderno (FOUCAULT, 1995, p.239).
Foucault impele-nos a pensar em “estratégias de luta” que
promovam “novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de
individualidade que nos foi imposto vários séculos” (idem, ibidem). Essas
lutas giram, segundo o autor, entre outros elementos
15
, em torno da questão
“quem somos nós?”, propiciando problematizações em torno daquilo que é
dito e determinado sobre nós, seja por questões econômicas e/ou
ideológicas, seja pelos discursos científicos que se autorizam a dizer a
“verdade” sobre os outros.
Ao colocar em questão a noção de verdade enquanto coisas
verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar” (FOUCAULT, 2003a, p. 13),
Foucault vai dizer que a verdade é o “conjunto das regras segundo as quais
se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos
específicos de poder” (idem, ibidem). Nesse sentido, torna-se necessário olhar
para os entrecruzamentos, os movimentos, os procedimentos através dos e
para os quais tais verdades são produzidas. Para o autor:
A verdade é desse mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas
coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada
sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade:
isto é, os tipos de discurso que ela colhe e faz funcionar como
verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir
os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona
uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados
para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo
de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 2003a, p.12).
Com o propósito de pôr em questão as “verdades” que nos
constituem como psicóloga”, “pesquisadora”, “professor/a”, “diretor/a”,
“aluno/a”, “aluno/a–problema”, “mulher”, “homem”, “mãe”, “criança”,
“adulto”, busco, neste trabalho, movimentar-me no sentido de criar
possibilidades de (re)pensar e (re)significar quem estou/estamos sendo neste
15
Segundo Foucault (1995, p.235), “três tipos de lutas: contra as formas de dominação
(étnica, social e religiosa); contra as formas de exploração que separam os indivíduos
daquilo que eles produzem; ou contra aquilo que liga o indivíduo a si mesmo e o submete,
deste modo, aos outros (lutas contra a sujeição, contra as formas de subjetivação e
submissão).
49
momento de minha/nossas vidas. Parece-me que tal movimento pode
oferecer condições para pensarmos sobre o que estamos fazendo com os
outros e com nós mesmos, assim como para aprendermos sobre nossa
transitoriedade, abrindo possibilidades de vivermos o nosso tempo presente
de outros jeitos, de outras maneiras, com outros sentidos.
No próximo capítulo, narro os caminhos que percorri nesta
pesquisa, as tentativas de aproximar-me dos ditos “alunos-problema” e da
rede que os constitui subjetivando-os. Tento ver possibilidades de
pensarmos outros modos de agir em relação ao outro nas práticas escolares.
CONSTRUINDO CAMINHOS E POSSIBILIDADES DE OLHAR
Constituídas minhas questões de pesquisa Que elementos
sociais se articulam produzindo o aluno-problema?” Como se lida no
cotidiano escolar com o aluno visto como “problema”? Como esses
alunos são narrados? Que efeitos as nomeações geram nesses alunos? –,
era necessário pensar em alguns caminhos a serem trilhados e em modos de
olhar para o cotidiano escolar. Na tentativa de buscar aproximações com
meu objeto de pesquisa, estabeleci algumas estratégias, maneiras de
caminhar e caminhos a percorrer que me possibilitaram pensar de outro
modo as práticas que ocorriam/ocorrem na escola.
Busquei, primeiramente, conhecer os modos de conduzir as
pesquisas em Educação vinculadas à perspectiva pós-estruturalista. Olhei
para trabalhos desenvolvidos anteriormente e para outros ainda em
andamento no Programa de Pós-Graduação e na Linha de Pesquisa aos
quais me vinculo. Essas leituras levaram-me a pensar a pesquisa em
Educação como produzida na trama da vida, entrelaçada às vivências,
experiências, aprendizagens do pesquisador. Ao apresentar minhas opções
metodológicas, utilizo-me das palavras de Sandra Corazza (2002), que
discute:
Uma prática de pesquisa é um modo de pensar, sentir, desejar,
amar, odiar; uma forma de interrogar, de suscitar acontecimentos,
de exercitar a capacidade de resistência e de submissão ao controle;
uma maneira de fazer amigas/os e cultivar inimigas/os; de merecer
ter tal vontade de verdade e não outra(s); de nos enfrentar com
aqueles procedimentos de saber e com tais mecanismos de poder; de
estarmos inseridas/os em particulares processos de subjetivação e
individuação. Portanto, uma prática de pesquisa é implicada em
nossa própria vida (2002 p.124).
Ainda nesse sentido, Bujes (2002), ao discutir a emergência de uma
pesquisa, diz que
51
[...] a pesquisa nasce sempre de uma preocupação com alguma
questão, ela provém, quase sempre, de uma insatisfação com
respostas que temos, com explicações das quais passamos a
duvidar, com desconfortos mais ou menos profundos em relação a
crenças que, em algum momento, julgamos inabaláveis. Ela se
constitui na inquietação (p.14).
Ao tomar as inquietações relatadas no primeiro capítulo como
ponto de partida, pretendi produzir conhecimentos que fizessem uma
diferença, mesmo que provisória, contestável e circunstancial, para mim e
para o espaço escolar onde realizei esta pesquisa. Para mim, na medida em
que tais conhecimentos pudessem criar possibilidades para eu pensar de
outro modo as práticas que vinha/venho exercendo enquanto psicóloga e
pesquisadora práticas essas implicadas na produção de verdades e
subjetividades. Para o espaço escolar, a partir das problematizações e das
outras formas de pensar e de agir que pudessem ser suscitadas diante dos
desafios vivenciados ali. Nesse sentido, comprometi-me com a direção da
escola a fazer discussões sobre aquilo que fui percebendo no decorrer da
pesquisa. Tal estratégia poderia possibilitar tanto o compartilhar e a
colaboração com as pessoas envolvidas, quanto a produção de
questionamentos e de outras formas de atuar nas práticas escolares
cotidianas, sejam as dos professores, sejam as minhas.
Segundo Dreyfus e Rabinow (1995), para Foucault, o investigador
não funciona como um espectador desligado. Ao contrário, está envolvido
nas práticas que investiga e é também por elas produzido (p.115). Em
relação ao que e como olhar e às produções do investigador, Veiga-Neto
alerta sobre a “total impossibilidade do distanciamento e da assepsia
metodológica ao lançar nossos olhares sobre o mundo” (2002, p.36). Esse
autor diz:
...isso não significa falta de rigor, mas significa que devemos ter
sempre presente que somos irremediavelmente parte daquilo que
analisamos e que, tantas vezes, queremos modificar. Isso diminui
nossa ingenuidade e pode nos deixar bem mais atentos...(idem,
ibidem).
Uma questão que se coloca refere-se a minha entrada na escola, o
que não ocorreu de forma neutra, trazendo intencionalidades e implicando
52
efeitos nas pessoas com quem entrei em relação. O entendimento do papel
do investigador como implicado na produção de subjetividades levou-me a
interrogar os efeitos que eu poderia produzir pela minha presença no espaço
escolar onde realizei a pesquisa, pelo que falei às e com as pessoas ou por
aquilo que produzi na minha escrita. Isso faz-me pensar sobre a importância
e a necessidade de o investigador problematizar constantemente suas
práticas.
Ao vincular esta pesquisa ao campo dos Estudos Culturais,
pretendi empreender questionamentos e recorrer a estratégias que pudessem
servir para produzir conhecimentos úteis e reflexivos sobre as práticas da
pesquisa e aquelas que funcionam naquele espaço escolar. Além disso, tive
como propósito compartilhar com as pessoas que participaram do estudo os
olhares que fui construindo nesse processo, não como olhares “verdadeiros”,
mas talvez como uma outra forma de olhar para práticas que, muitas vezes,
se tornam habituais e não-problemáticas.
Larrosa (2002) convoca-me a pensar sobre as possibilidades para
minhas produções ao apontar a perspectiva de se “pensar a educação a
partir do par experiência/sentido (p.19). O autor discute a noção de
experiência como “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não
o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam
muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece” (p.20).
Segundo ele, no mundo atual um excesso de informações, passam-se
muitas coisas que, no final das contas, impedem a experiência, pois não
produzem sentidos. O autor complementa:
A primeira coisa que gostaria de dizer sobre a experiência é que é
necessário separá-la da informação. E o que gostaria de dizer sobre o
saber de experiência é que é necessário separá-lo de saber coisas, tal
como se sabe quando se tem informação sobre as coisas, quando se
está informado. É a ngua mesma que nos essa possibilidade.
Depois de assistir a uma aula ou a uma conferência, depois de ter
lido um livro ou uma informação, depois de ter feito uma viagem ou
de ter visitado uma escola, podemos dizer que sabemos coisas que
antes não sabíamos, que temos mais informação sobre alguma coisa;
mas, ao mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos
aconteceu, nada nos tocou, que com tudo que aprendemos nada nos
sucedeu ou nos aconteceu (LARROSA, 2002, p.22).
53
É nesse sentido que pretendi que este trabalho pudesse fazer
alguma diferença na minha vida e na vida das pessoas com quem pude
empreender discussões em torno das minhas questões de pesquisa e das
observações realizadas, possibilitando, talvez, dessa forma, um saber de
experiência que fizesse diferença, que fizesse sentido em nossas vidas.
Foucault (2003a), ao discutir com Deleuze as relações entre teoria e
prática e o papel da pesquisa, diz que a teoria é uma prática local e regional
que nada deve ter de totalizadora. Para Deleuze (2003), “uma teoria é como
uma caixa de ferramentas (...) é preciso que sirva, é preciso que funcione”
(idem, p.71). É desse lugar de pesquisadora e da pesquisa que passo então a
contar a maneira como fui conduzindo este estudo.
ENCONTRANDO/PRODUZINDO ESPAÇOS...
Estabelecidas, mais ou menos, minhas questões norteadoras, era
necessário encontrar uma escola que abrisse a possibilidade de se configurar
também como um espaço de investigação.
Foucault (2003), falando sobre as maneiras de conduzir suas
pesquisas, traz a possibilidade de constituirmos espaços de investigação no
nosso cotidiano, nos lugares por onde circulamos. Diz ele que
Existe atualmente [...] em nossas sociedades um certo número de
questões, de problemas, de feridas, de inquietação, de angústias que
são o verdadeiro motor da escolha que faço e dos alvos que procuro
analisar, dos objetos que procuro analisar, e da maneira que tenho
de analisá-los. É o que somos os conflitos, as tensões, as angústias
que nos atravessam – que, finalmente, é o solo, não ouso dizer
sólido, pois por definição ele é minado, perigoso, o solo sobre o qual
eu me desloco (p.230).
Como ressaltei, meus desassossegos neste estudo tiveram sua
emergência nas práticas cotidianas que desenvolvi enquanto psicóloga junto
a redes escolares. Por residir em Dois Irmãos e ter trabalhado como
psicóloga por três anos junto à Secretaria Municipal de Educação do
município vizinho, Morro Reuter, participei de alguns encontros/seminários
de educação que agregaram educadoras/es de ambos os municípios. A partir
de questões levantadas nesses encontros e mencionadas no primeiro
54
capítulo, pude perceber que as dúvidas, as inquietações, os pensares
relativos à educação eram, em sua maioria, comuns.
Num primeiro momento, pensei que o mais adequado seria
desenvolver a pesquisa no município onde atuei como psicóloga junto à rede
escolar. A partir da defesa do Projeto de Dissertação, em função dos
questionamentos trazidos pelos professores que compuseram a banca,
repensei essa escolha
e fiz o movimento de realizar a pesquisa em Dois
Irmãos.
As discussões trazidas pela banca chamaram minha atenção para
o quanto o meu olhar e os primeiros exercícios de análises encontravam-se
entrelaçados pelo lugar de psicóloga que eu exercera naqueles espaços
escolares, o que trazia uma certa dificuldade para eu ver e pensar de outro
modo e lugar as minhas intervenções e as dos professores. Em função disso,
busquei, na rede escolar de Dois Irmãos, a possibilidade de um espaço para
desenvolver a pesquisa que me propunha.
A escolha de uma escola localizada no lugar onde resido e onde
trabalho como psicóloga não é, certamente, uma escolha neutra. Entendo-a
como uma escolha permeada pela minha vontade de compartilhar com esse
lugar (e não com outro) meus questionamentos empreendidos durante o
Mestrado em Educação. Enquanto pesquisadora, sinto-me comprometida
com a possibilidade de articulações entre as pesquisas realizadas no campo
da Educação e esse lugar, que é uma referência na minha história. Ali,
cotidianamente, também ocorrem muitos acontecimentos e tipos de relações
que merecem ser olhados. Tal aproximação, eu vejo como valiosa pelas
condições que podem ser criadas a partir de problematizações e outras
formas de ver os fazeres cotidianos no espaço escolar.
O primeiro passo foi entrar em contato com a Secretaria Municipal
de Educação e apresentar minha Proposta
16
de estudo. No primeiro contato,
ainda por telefone, a pessoa que me atendeu mostrou-se solícita e
interessada em ouvir-me. Marcamos um momento de encontro em que fosse
16
A referida Proposta de Pesquisa encontra-se anexada a esta Dissertação, junto ao Diário
de Campo – CD-ROM.
55
possível avaliar as condições de possibilidade para que a pesquisa se
desenvolvesse numa escola daquele município.
Em abril de 2005, apresentei-me à Secretaria Municipal de
Educação e Cultura (SMEC) de Dois Irmãos, contando sobre os propósitos
da pesquisa para as pessoas que me receberam. Fui logo informada que
havia uma demanda muito grande de encaminhamentos de alunos que
apresentavam “problemas” em seus processos de escolarização. Foi-me
mostrada uma carta, enviada por e-mail para a SMEC, oriunda da
supervisão pedagógica e direção da Escola Municipal de Ensino
Fundamental Amanhecer
17
, localizada num bairro de Dois Irmãos. Essa
carta solicitava que a SMEC resolvesse, com urgência, o encaminhamento de
alunos para acompanhamento psicológico: um número de 25 alunos com
“problemas mais graves” e pelo menos 20 alunos a serem encaminhados
posteriormente, no mês de maio, talvez. A carta trouxe-me uma interrogação:
como era possível determinar que esse número de alunos deveria ser
encaminhado para acompanhamento psicológico dentro de um ou dois
meses de aula? Fiquei curiosa para ouvir as justificativas de tais
encaminhamentos.
Nesse primeiro contato com a SMEC, considerei importante marcar
os propósitos de minha pesquisa: olhar para as práticas e discursos que
tomam alunas e alunos como “problemas”, destacando que não pretendia
realizar qualquer intervenção psicológica. Em função desse meu
posicionamento, percebi uma certa frustração, pois, conhecida na
comunidade como psicóloga, a expectativa era a de que eu fosse para a
escola para auxiliar na resolução dos “problemas”. Questionaram-me se eu
não poderia conversar/orientar esses alunos, suas respectivas famílias, as
professoras, para que esses “problemas” fossem minimizados. Ouvi
atentamente e retomei, mais uma vez, meus objetivos com o estudo. Disse-
lhes que pretendia conhecer a escola a ser definida como local da pesquisa e
empreender nela, com o grupo de professores, um trabalho que
17
Farei uso, neste trabalho, de uma nomeação fictícia para referir-me à escola onde realizei
a pesquisa, objetivando, dessa forma, proteger a identidade de todas as pessoas que
aceitaram participar deste estudo. Essa escola atende alunos da primeira etapa da
alfabetização (antiga Pré-Escola) até alunos da 8
a
rie.
56
possibilitasse problematizações a partir do que eu fosse percebendo no
decorrer do estudo.
Ao pensar sobre tais questões, percebi que havia pelo menos dois
modos de receber as queixas da SMEC: por um lado, como descrições de
“sintomas dos alunos, passíveis de uma ação corretiva; por outro, como
construções dos discursos pedagógicos que circulam e produzem o cotidiano
escolar, passíveis, então, de questionamento.
Dreyfus e Rabinow (1995), ao discutirem os estudos de Michel
Foucault, falam sobre a emergência, no século XIX, de certos discursos
científicos (Ciências Humanas Psicologia, Pedagogia, Antropologia, entre
outras) sobre o sujeito e sobre o que pode se passar com ele. Segundo os
autores, a partir das práticas do exame e da confissão, emergiram as
ciências sociais subjetivantes, que, ao mesmo tempo, objetivam e subjetivam
os indivíduos. Tais ciências partem do princípio “de que uma verdade
profunda conhecida e escondida” (p.198) no sujeito, utilizando diversas
estratégias disciplinares, “especializadas”, para investigar tais verdades.
Entendo os diagnósticos e encaminhamentos de alunos para
especialistas das áreas psi como movimentos que classificam, descrevem e
posicionam os sujeitos conforme objetos criados por alguns campos
disciplinares (o hiperativo, o louco, o indisciplinado, o com déficit de
atenção...). A aceitação da demanda da escola – de que o aluno seja “tratado”
por um profissional implica o uso de procedimentos de extração de
verdades sobre o sujeito. Implica olhar e legitimar a idéia de que o
“problema” está dentro do aluno, na sua essência, posicionando-o no lugar
de “aluno-problema”, e não olhar para as condições e as práticas associadas
a essa produção.
Tratando da constituição dos saberes sobre os indivíduos, Foucault
(1999) vai dizer que tais saberes são constituídos a partir da observação do
comportamento dos indivíduos. Ele fala de:
...um saber (...) que nasce da observação (...), da sua classificação, do
registro e da análise dos seus comportamentos, da sua comparação,
etc. Vemos assim, nascer (...), um saber de observação, um saber de
certa forma clínico, do tipo da psiquiatria, da psicologia, da psico-
sociologia, da criminologia, etc. É assim que os indivíduos sobre os
57
quais se exerce o poder ou são aquilo a partir de que se vai extrair o
saber que eles próprios formaram e que se retranscrito e
acumulado segundo novas normas, ou são objetos de um saber que
permitirá também novas formas de controle.(...) O saber psiquiátrico
se formou a partir de um campo de observação exercida prática e
exclusivamente pelos médicos enquanto detinham o poder no interior
de um campo institucional fechado que era o asilo, o hospital
psiquiátrico. Do mesmo modo, a pedagogia se formou a partir das
próprias adaptações da criança às tarefas escolares, adaptações
observadas e extraídas do seu comportamento para tornarem-se em
seguida leis de funcionamento das instituições e forma de poder
exercido sobre a criança (p.121-122).
Desse modo, o que se observa num determinado grupo de
indivíduos é tomado como norma aplicada às totalidades. Nas escolas, por
exemplo, supõe-se a existência de uma linearidade no desenvolvimento
infantil e espera-se que todas as crianças se enquadrem nessa expectativa
de desenvolvimento. Caso isso não ocorra, o indivíduo corre o risco de ser
tomado como um “problema”, como alguém que está fora da normalidade.
Os cursos de formação de psicólogos são estruturados a partir de
certas “verdades” que definem “o que” deve estudar o graduando. Lembro-me
de ter sido, durante a graduação, orientada a estudar conceitos de
psicopatologia, psicologia do desenvolvimento, noções de normalidade e de
anormalidade, práticas de intervenção psicoterapêutica (como ouvir, o que
dizer, como interpretar as falas dos pacientes), entre rios outros. Também
fui orientada/produzida para saber como um profissional da minha área
deve se posicionar, o que pode ou não fazer, o que é considerado ético ou
não. Aprendemos, a partir do currículo que regulamenta os cursos de
Graduação, o que deve ser visto e como se deve olhar. De acordo com
Popkewitz (2000), “a idéia de currículo corporifica uma organização
particular do conhecimento pela qual os indivíduos devem regular e
disciplinar a si próprios como membros de uma comunidade/sociedade” (p.
186). São produzidas, dessa forma, subjetividades profissionais que vão para
o mercado de trabalho inscritas nesses discursos de “verdade”.
Produzidos por esses discursos, incorporamos o papel do
“especialista em comportamento humano e passamos a tomar outros
indivíduos como objetos de investigação e de produção de saberes possíveis.
Ao tomarmos os outros como objetos, os constituímos enquanto tal, a partir
58
do que dizemos sobre ou fazemos com eles. Torna-se natural que o/a
profissional da área se posicione desta ou daquela maneira, principalmente
se levarmos em consideração que não é em qualquer lugar que ele/ela
aprende a ser psicólogo/psicóloga: esses aprenderes acontecem na
Universidade, nos Institutos de Formação de Psicoterapeutas e Psicanalistas,
lugares constituídos no social como portadores legítimos dos saberes
necessários à produção adequada de profissionais da área.
Autorizada pela SMEC a realizar a pesquisa no município e tendo
sido definida por ela a escola Amanhecer como lócus da pesquisa, em função
de ser vista como a “portadora” do maior número de “alunos-problema” na
rede municipal de ensino, propus iniciar logo meus contatos. Uma
representante da SMEC ligou para a escola, falando sobre o assunto. Ouvi
quando ela disse à diretora que uma psicóloga iria lá para fazer um trabalho.
Interroguei-me se havia ficado claro o fato de que eu estaria indo para
realizar uma pesquisa. Qual teria sido o entendimento da diretora em
relação à expressão “fazer um trabalho?” Ficou combinado um encontro na
escola com a diretora e com a supervisora escolar
.
ENCONTRANDO A ESCOLA... PRIMEIROS CONTATOS
Ao chegar na escola, fui recebida pela supervisora escolar, diretora
e vice-diretora. Esta última pareceu-me atuar, ali, como auxiliar de
disciplina, tendo sido descrita pelas colegas como aquela que está sempre
conversando com os alunos que são tirados da sala de aula em função do
mau comportamento e/ou de outras dificuldades.
Apresentei-me, perguntando-lhes se a SMEC havia comunicado a
respeito do meu trabalho de pesquisa. Disseram-me que sim. Elas sabiam
meu nome, minha formação profissional e mostraram-se satisfeitas por eu
estar ali para auxiliá-las. Conversamos por mais ou menos duas horas.
Contaram sobre os problemas enfrentados pela escola por receber alunos de
todos os bairros da cidade. A escola fica localizada num bairro central, onde
moram os grupos sociais com maior poder aquisitivo da cidade. Seu
atendimento abrange tanto moradores deste bairro quanto aqueles que m
59
de bairros e localidades mais distantes. Falaram também de suas
experiências anteriores em outras escolas que atendiam alunos de apenas
um bairro, dizendo que era bem mais tranqüilo, que todos se conheciam e
que, por isso, quase não havia conflitos.
Destaquei a relevância do que me relatavam, apontando as
prováveis dificuldades enfrentadas pela escola para lidar com essa
multiplicidade de pessoas que ali circulavam. Contudo, salientei que gostaria
de expor as minhas intenções de estar ali.
Falei, brevemente, da minha trajetória de trabalho vinculada à rede
escolar, articulando-a com a pesquisa que me propunha a fazer no Mestrado
e apresentando as minhas perguntas norteadoras. Frisei que me encontrava
na escola com o objetivo de desenvolver um estudo, e não na condição de
psicóloga para fazer uma intervenção com os alunos, nem mesmo uma
intervenção institucional. Mostrei minha disposição para realizar uma
pesquisa permeada por trocas com os docentes, contribuindo de alguma
maneira com o pensar e repensar de suas atividades cotidianas. Minha
intenção era realizar a pesquisa numa turma escolhida pela escola em
função dos alunos tomados como “problemas”. A seguir, comentei sobre os
movimentos do estudo: as observações, as conversas com os professores e
alunos, a participação em reuniões de pais e de professores, em Conselhos
de Classe e em outras atividades que envolvessem a turma pesquisada.
A partir dessa minha exposição, percebi a frustração no olhar e
nas expressões das professoras. Disseram-me que esperavam uma
profissional da área da Psicologia que viesse auxiliá-las com todos os alunos,
e não apenas com uma turma. Segundo elas, a SMEC tinha dito que uma
psicóloga estava vindo à escola para realizar um trabalho, então,
imaginaram que seria algo como uma estagiária de Psicologia, como tiveram
em anos anteriores. Segundo elas, algum tempo solicitavam à
Prefeitura “alguém” da Psicologia que pudesse auxiliá-las nesses “problemas”
todos.
Reiterei que eu estava ali para realizar uma pesquisa, o uma
intervenção psicológica. Disse-lhes que pensava que, através deste trabalho,
poderia contribuir com as discussões da escola em torno desses alunos
60
considerados “problemas”. Que cabia à escola decidir se havia interesse ou
não na realização da pesquisa ali. A essa colocação, disseram que sim, que
havia interesse.
Perguntaram-me se a pesquisa não poderia ser realizada numa
turma de quinta série. Segundo elas, nas quintas séries, havia o maior
número de “alunos-problema”, em especial na turma 5A. Assim, na escolha
da turma pesquisada, levei em consideração as questões trazidas pela
escola, na perspectiva de que, ao considerar a demanda e as experiências da
comunidade escolar com a qual estava entrando em contato, talvez trouxesse
a possibilidade de esse trabalho vir a fazer alguma diferença.
Foucault (2003a), ao falar sobre o papel dos intelectuais, refere que
a população é quem sabe sobre suas questões, seus problemas, seus
cotidianos, porém “existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida
esse discurso e esse saber (...) poder que (...) penetra muito profundamente,
muito sutilmente em toda trama da sociedade” (p.71). Em função disso,
segundo o autor:
O papel do intelectual não é mais o de se deslocar “um pouco na
frente ou um pouco de lado” para dizer a muda verdade de todos; é
antes o de lutar contra todas as formas de poder exatamente onde
ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber,
da “verdade”, da “consciência”, do discurso” (idem, ibidem).
Para Foucault, o intelectual deve tomar cuidado para não tentar
universalizar as falas das pessoas, mas utilizar tais saberes para fortalecê-
las para as lutas cotidianas. A teoria produzida pelo intelectual deve servir
no sentido de instrumentalizar, pois “ela é uma prática” (FOUCAULT, 2003a,
p.71). A teoria é:
Luta contra o poder, luta para fazê-lo aparecer e feri-lo onde ele é
mais invisível e mais insidioso. Luta (...) para a destruição
progressiva e a tomada do poder ao lado de todos aqueles que lutam
por ela, e não na retaguarda, para esclarecê-los. Uma “teoria” é um
sistema regional desta luta (idem, ibidem).
Estabelecer conexões com esses entendimentos e propósitos do
autor fez com que eu, desde o início de abril de 2005 até novembro do
61
mesmo ano, passasse a participar de diversas atividades que aconteceram
na turma 5A e na escola.
CONSTRUINDO ESCOLHAS METODOLÓGICAS
Para pensar sobre as metodologias utilizadas neste trabalho,
resgato os autores Nelson, Treichler e Grossberg (1995), levando em conta o
lugar de onde penso este estudo, ou seja, o campo dos Estudos Culturais.
Segundo esses pensadores, a metodologia dos Estudos Culturais não está,
em momento algum, definida, simplesmente por não existir uma metodologia
distinta dentro desse campo. Citando Johnson (1986/7), mostram que os
Estudos Culturais são uma alquimia que se aproveita dos muitos campos
principais de teoria das últimas cadas, desde o marxismo e o feminismo,
até a psicanálise, o pós-estruturalismo e o pós-feminismo” (NELSON,
TREICHLER E GROSSBERG, 1995, p.9), justamente pela possibilidade de se
fazer uso dos campos teóricos que forem necessários aos questionamentos e
problematizações que ocorrerem no transcurso de um projeto particular, a
fim de produzir conhecimentos comprometidos com as práticas locais.
Dessa perspectiva, as questões de pesquisa que foram construídas
relacionaram-se aos movimentos realizados e às descontinuidades surgidas
durante a trajetória deste trabalho. Assim, a escolha das estratégias de
pesquisa esteve intimamente ligada às questões que foram emergindo nos
diálogos empreendidos com o contexto da pesquisa e com os autores.
Nesse campo, põe-se em questão a definição a priori de métodos de
pesquisa tradicionais, privilegiados pelas disciplinas existentes, entendendo
que o caminho metodológico deve ser delineado no transcurso da pesquisa,
na relação com seu contexto de produção. Nelson, Treichler e Grossberg,
anteriormente citados, mostram ainda que:
... os Estudos Culturais não m qualquer garantia sobre quais são
as questões importantes a serem feitas em dados contextos nem
como respondê-las; portanto, nenhuma metodologia pode ser
privilegiada ou mesmo temporariamente empregada com total
segurança e confiança, embora nenhuma possa tampouco ser
eliminada antecipadamente. A análise textual, a semiótica, a
desconstrução, a etnografia, entrevistas, a análise fonêmica, a
62
psicanálise, a rizomática, a análise de conteúdo, o survey todas
podem fornecer importantes insigths e conhecimentos (1995, p.10).
ENSAIOS (MAIS OU MENOS) ETNOGRÁFICOS...
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ÉTICA NA PESQUISA
Com a intenção de conhecer as práticas que se articulavam/se
articulam na produção dos alunos-problema”, optei por realizar uma
imersão no cotidiano da escola. Pretendia ver o que acontecia ali, naquele
lugar escolhido para a pesquisa. Para tanto, busquei sustentação nos
aportes da etnografia. Tenho claro que não realizei uma pesquisa
etnográfica, apenas fiz uso de algumas de suas ferramentas e conceitos.
Ana Arnt (2005), ao falar sobre a etnografia como uma de suas
opções metodológicas, utiliza-se de Caldeira (1988) e Geertz (1989), referindo
que:
...segundo os aportes da etnografia, o pesquisador, à semelhança do
antropólogo, deve imergir numa cultura, tornar-se um nativo”, vivê-
la em seu cotidiano, em seus detalhes para depois voltar ao seu
“habitat natural” e reelaborar tal experiência, estudando-a e
narrando-a (p.19-20).
Simon Gottschalk (1998), por sua vez, sugere que as estratégias
etnográficas sejam práticas, em harmonia com o local e as pessoas com os
quais se interaja, e que melhor habilitem o(a) etnógrafo(a)
18
na prática de seu
trabalho, desde que mantenha a ética” (p.208). No modo de ver desse autor,
elementos como a flexibilidade, a adaptação ética ao campo e a criatividade
do pesquisador deveriam ter mais valor do que o cumprimento de regras ou
receitas produzidas por outro pesquisador em outras épocas, contextos e
com objetivos diferentes.
Gottschalk (1998) discute a necessidade de uma postura reflexiva e
auto-reflexiva do etnógrafo. Para ele, essa auto-reflexividade é um aspecto
18
Não me coloco neste trabalho na condição de etnógrafa. Em função disso, ao ler
“etnógrafo” nas referências que busquei, procuro utilizar em seu lugar a perspectiva do(a)
“pesquisador(a)”.
63
essencial da etnografia como processo” (p. 208), pois ser auto-reflexivo nos
discursos etnográficos significa que se sabe quem é quem e em que posição
se fala, escreve e observa (...) (GREER (1990, p.64) citado por
GOTTSCHALK, 1998, p.210). O autor afirma:
...acredito que, apesar de sua radical democratização, a principal
tarefa da etnografia deveria ainda deveria, especialmente
consistir em tratar de forma habilidosa das pessoas e sua cultura.
Etnografias bem sucedidas são aquelas que conseguem de maneira
auto-reflexiva ligar os problemas privados às questões públicas,
evocar reconhecimento e empatia, promover a ação (LATHER, 1993),
facilitar a cura em alguns casos (ELLIS E BOCHNER 1996; ELLIS
1995) e “tornar possíveis a identidade coletiva e as soluções
coletivas” (RICHARDSON 1995, 216) (GOTTSCHALK, 1998, p.209).
Passei a entender, a partir dessas leituras, que é necessário que o
pesquisador se questione: “por que quero entrar nesse lugar e dessa forma?”,
buscando comprometer-se com suas atitudes, que geram efeitos. Estes, na
medida do possível, devem articular-se às necessidades e aos problemas do
lugar onde ocorrem.
Por ocasião da defesa da Proposta de Dissertação de Mestrado, fui
interpelada pelos professores que compuseram a banca de avaliação, a
pensar sobre as implicações éticas de minha pesquisa. Nessa direção,
encontro Denise Gastaldo e Patrícia McKeever (2002) que, discutindo sobre a
ética nas investigações em saúde, denunciam que os investigadores têm
refletido pouco sobre tal questão. Segundo elas, toma-se de forma
naturalizada a idéia de que toda pesquisa qualitativa é intrinsecamente
ética. Problematizando tais conceitos, as autoras referem:
...nossa experiência como investigadoras nos permite identificar
muitas maneiras pelas quais a investigação qualitativa pode faltar
com a ética. Existem importantes questões éticas em cada etapa do
processo de investigação: a maneira como o problema é
conceitualizado; a maneira como as perguntas de investigação são
formuladas; a maneira como a amostra é selecionada; a maneira
como coletamos e analisamos os dados; como são interpretados e
representados como resultados, e a maneira como os dados são
difundidos e utilizados
19
(GASTALDO E MCKEEVER, 2002, p.477-
478).
19
A tradução do espanhol (texto original) para o português é de minha responsabilidade.
64
Além dessas questões, as autoras apontam que estudos
qualitativos são muitas vezes utilizados na investigação de “temas sensíveis
de natureza física, emocional ou existencial, tais como as questões
relacionadas com experiências traumáticas, discriminação, violência e
sexualidade” (2002, p.478). São experiências extremamente pessoais que vão
sendo expostas ao pesquisador. Este, por sua vez, deve estar muito atento
aos usos que fará das histórias pessoais dos participantes da pesquisa para
não correr o risco de se tornar um voyeur intelectual, chegando na melhor
das hipóteses a um testemunho que faz a outros conhecer dilemas íntimos
da condição humana” (idem, ibidem).
Ainda segundo Gastaldo e McKeever, ao elegermos como tema de
pesquisa um tema sensível, deveríamos nos perguntar: deve este tema ser
estudado por alguém? Por esta equipe de investigadores em particular? Em
que momento? Com esta metodologia?” (2002, p.478).
A partir das discussões dessas autoras, passei a pôr em questão os
próprios conceitos de autoria em meu trabalho. Quem são os autores de
minha dissertação? Sob esse ponto de vista, os autores são todos aqueles/as
que de uma forma ou de outra a constituem através das mais diversas
formas de expressão: a escrita, a fala, as interrogações, a curiosidade, os
sorrisos, as revoltas, as resistências, os movimentos, os gestos, os
questionamentos, entre tantas outras manifestações. Os autores desta
dissertação são as pessoas todas que comigo cruzaram e pensaram a
respeito dos “alunos-problema”, seja na escola, na SMEC, no Grupo de
Orientação do Mestrado, nos encontros com a orientadora, na banca de
qualificação da proposta de dissertação, amigos e amigas com quem partilhei
minhas inquietações. Juntos, construímos as páginas que agora
apresentamos, a nós mesmos, como objeto de mais pensares e
problematizações.
Ao articular as discussões sobre a ética com as possibilidades
etnográficas, Gottschalk (1998) mostra que, não perseguindo uma grande e
definitiva verdade, os teóricos contemporâneos propõem que o enfoque da
pesquisa com orientação etnográfica seja orientado para o aqui e agora,
concentrando-se na produção de “verdades” experimentais, locais, modestas,
65
temporais e intertextuais. Dessa forma, entendo que as “verdades”
produzidas nesta pesquisa são verdades contingentes, instáveis, provisórias
e necessariamente passíveis de problematizações e olhares constantes.
Gottschalk também aponta para a importância da sensibilidade do
pesquisador em relação ao local da pesquisa.
Nas imersões na escola/turma, esses entendimentos levaram-me a
buscar uma posição atenta e aberta e a procurar sentir o que os elementos
do ambiente provocavam em mim, fazendo-me pensar de outros jeitos aquilo
que estava vivenciando ali. Pretendi também olhar para como os indivíduos
interagiam com e nos ambientes onde se encontravam, constituindo-os ou
sendo por eles constituídos. A partir desses olhares, foi possível realizar
problematizações em torno do que é habitual, do que é cotidiano.
Optei por conhecer a turma 5A, passando, então, a acompanhar
diversas atividades dessa turma na escola, bem como fora dela. Num
primeiro momento, conversei com a turma, apresentando-me e falando que
estava ali para fazer um trabalho de pesquisa, querendo conhecer como
funcionava uma turma de 5
a
série. A partir daí e da autorização dos alunos,
realizei várias observações, entre aulas e outras atividades, como um passeio
ao Museu Municipal, uma visita à Feira do Livro (palestra de uma jovem
escritora) e algumas horas cívicas.
Fui registrando tudo o que fui vendo, percebendo e sentindo. Dessa
maneira, compus meu Diário de Campo. Percebi, com o passar do tempo,
que o uso do gravador nas observações em aula e reuniões com os
professores não se mostrava muito conveniente, visto que, ao tentar fazer as
transcrições, era difícil identificar as falas das pessoas, que muitas vezes
falavam ao mesmo tempo. Em função disso, fiz uso do gravador apenas na
entrevista com a direção da escola, nas atividades direcionadas com os
alunos e nos encontros de discussão com os professores. Tal opção exigiu de
mim relatos mais ágeis e maior atenção, na medida em que fui constituindo
meu Diário de Campo enquanto realizava as observações ou logo após,
complementando informações que haviam escapado ao relato ou,
posteriormente, quando me sentava para fazer a leitura de meus registros.
66
Essa necessidade que tive de ajustar-me ao ambiente, ao contexto,
revendo os usos que fazia de meus instrumentos de pesquisa, mostra o
quanto o pesquisador deve estar atento para o fato de que sua presença não
é neutra. Ele influencia o ambiente e as pessoas onde se encontra, alterando
as rotinas, os hábitos, os modos de viver, e essas alterações serão parte de
seus escritos, de sua produção textual. Também parece-me que isso revela o
quanto as ferramentas o podem ser tomadas como universais. As
dificuldades e necessidades de ajustes que experimentamos no decorrer da
pesquisa devem ser tomadas como parte desta, como componentes para as
análises que venham a ser realizadas.
NARRANDO/PRODUZINDO “REALIDADES”...
Todos os meus escritos, todas as minhas narrativas são o resultado
do que os meus olhos de pesquisadora podem ou querem ver. De acordo
com Veiga-Neto (2002):
O que dizemos sobre as coisas nem são as próprias coisas (como
imagina o pensamento mágico), nem são uma representação das
coisas (como imagina o pensamento moderno); ao falarmos sobre as
coisas, nós as constituímos. Em outras palavras, os enunciados
fazem mais do que uma representação do mundo; eles produzem o
mundo (p. 31).
Nesse sentido, com esta pesquisa, não busco nem a verdade
mesma daquela “realidade” escolar, nem a sua realidade, mas sim produzir
outras “verdades” para se pensar o espaço escolar. Entendo que essa
“realidade é por mim constituída como tal, da maneira pela qual posso
percebê-la neste momento da minha vida. É bem provável que, se quiser
olhar para o mesmo espaço escolar, em outro tempo da minha vida, os
conhecimentos que produzirei serão outros. Nessa perspectiva, o
conhecimento é contingente, é temporal e circunstancial, produzido pelo
olhar do pesquisador.
Auxiliada por Veiga-Neto (2002), passo a compreender que os
“problemas em si, não existem. Para o autor, ... é o olhar que botamos
sobre as coisas que, de certa maneira, as constitui. o os olhares que
67
colocamos sobre as coisas que criam os problemas do mundo” (p. 30).
Percebo que meu próprio “problema de pesquisa”, a produção dos alunos-
problema” nas escolas, só é um problema a partir de uma perspectiva do
olhar. Para a maioria das pessoas que encontrei nas escolas e com quem
pude me relacionar durante este trabalho, encaminhar um aluno para ser
“tratado” por uma psicóloga não é visto como algo problemático.
Percebi, em alguns momentos, que certas práticas eram sentidas,
também por mim, como naturais. Perguntava-me, então: “como tal situação
poderia ser diferente?”, tentando imaginar como seria olhar para “aquilo ali
com os olhos de outra pessoa envolvida na situação. Dei-me conta de que, às
vezes, é bem difícil problematizar questões que sempre me pareceram
habituais, que foram aprendidas e vividas como tal. Mas é exatamente esse
exercício que me proponho a realizar neste trabalho.
No decorrer das observações realizadas nas escolas escolhidas para
a pesquisa, percebi que entrar na sala de aula me remetia, de muitas
maneiras, às minhas vivências passadas enquanto aluna, despertando-me
sentimentos diversos, alguns de intenso desconforto, outros mais amenos,
de boas lembranças. Tive receio de que, durante minhas idas às escolas, os
sentimentos de desconforto, suscitados em mim pelo retorno de lembranças
de meu tempo de menina-aluna, pudessem “atrapalhar” meu processo de
escrita, meus relatos. Ao elaborar esses sentimentos em meu “mundo
interno”, tornou-se um pouco mais tranqüilo lidar com essa angústia. Penso
agora que essa vivência, mais do que “atrapalhara escrita, contribuiu para
que pudesse perceber o quanto este ato está permeado pelas minhas
vivências, pela pessoa que fui/sou, pelo que sinto enquanto escrevo.
Compreendi que somos produzidos nas nossas experiências de
vida. Nossas vivências escolares, por exemplo, não acontecem de forma
neutra para nós, elas nos produzem, nos tornam pessoas, deixam marcas
profundas no nosso corpo. Marcas essas que passamos a perceber quando
nos damos conta de que não fomos sempre assim, fomos produzidos dessa
ou daquela maneira e que permanecemos constantemente nos modificando.
Larrosa (2002) diz que somos sujeitos da experiência na medida em que
somos “território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo
68
que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas
marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos (...) o sujeito da experiência é
sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos” (idem, p.24).
Nas observações que realizei, conversei com alunos e professores,
ouvi suas histórias, empreendi questionamentos e transcrevi tudo o que
considerava importante, compondo, com esses escritos, meu Diário de
Campo.
Caldeira (1988), falando sobre as incursões realizadas para dentro
dos espaços escolhidos para a realização da pesquisa, destaca que “a
experiência é necessária para o conhecimento, mas não deve permanecer em
estado bruto” (p.137), mostrando que o pesquisador deve (re)elaborar os
dados brutos produzidos nas idas a campo, auxiliado pelas teorias que
embasam seus estudos. O seu texto (as análises por ele produzidas) é
concebido basicamente como sua construção enquanto crítica cultural de
sua própria sociedade e de sua cultura específica.
AS CONSTRUÇÕES NARRATIVAS...
De forma articulada às outras estratégias de pesquisa utilizadas
neste estudo, compreendi como uma ferramenta importante a possibilidade
de olhar para as narrativas
20
das pessoas, para as suas histórias pessoais,
que passaram a ter espaço na medida em que me coloquei aberta para ouvi-
las.
Segundo Larrosa (2004)
21
, o ser humano utiliza as narrativas
constantemente para se autointerpretar (p.12). Mostra que tais histórias nos
constituem e são produzidas no interior de determinadas práticas sociais
mais ou menos institucionalizadas. Segundo ele, instituições como família,
20
Compreendo as narrativas como histórias pessoais produzidas pelas histórias que
ouvimos, lemos e mesmo contamos no interior de determinadas práticas sociais. De acordo
com Larrosa (2004), as narrativas são jogos de interpretação e quem somos, como sujeitos
autoconscientes, capazes de dar um sentido a nossas vidas e ao que nos passa, não está
além de um jogo de interpretações. Connelly e Clandinin (1995) declaram “que a narrativa é
tanto o fenômeno que se investiga como o método da investigação. ‘Narrativa’ é o nome
dessa qualidade que estrutura a experiência que vai ser estudada, e também é o nome dos
padrões de investigação que vão ser utilizados para seu estudo” (p.12). (Obs: minha
tradução).
21
As traduções realizadas a partir deste texto de Larrosa são de minha responsabilidade.
69
escola, igrejas, tribunais, relacionamentos amorosos, grupos terapêuticos,
uma entrevista, um processo investigativo ou programas televisivos são
espaços de produções narrativas e de constituição de subjetividades a partir
de narrativas (p.13).
Para Connelly e Clandinin (1995)
22
, os humanos são “organismos
contadores de histórias” (p.11), seres que, de forma individual ou social,
vivem vidas relatadas. Estudar as narrativas, para esses autores, é estudar
as formas pelas quais os seres humanos experimentam o mundo. Portanto,
se a narrativa é uma maneira de caracterizar os fenômenos da experiência
humana, então seu estudo vem a ser adequado em diversos campos das
ciências sociais. A investigação narrativa dentro desses campos é uma forma
de narrativa empírica em que os dados são fundamentais para o trabalho.
Os autores destacam:
Os dados podem ser recolhidos na forma de notas de campo da
experiência compartilhada, em anotações em diários, em
transcrições de entrevistas, em observações de outras pessoas, em
ações de contar relatos, de escrever cartas, de produzir escritos
autobiográficos, em documentos (como programas de classe e
boletins), em materiais escritos, como normas e regulamentos, ou
através de princípios, imagens, metáforas e filosofias pessoais
(CONNELLY E CLANDININ, 1995, p.23).
Na escola, circulam múltiplas construções narrativas sobre os
alunos. Considerando que essas histórias contadas e as que contamos se
encontram implicadas na constituição das identidades, direciono meu olhar
para aquelas que, muitas vezes, narram os alunos como “problemas”. Desse
modo, busco percorrer o dispositivo
23
, a rede de discursos e práticas que, ao
se correlacionarem ou entrarem em luta, produzem “verdades” que adquirem
dimensões constitutivas de subjetividades e do “aluno-problema”.
22
Todas as traduções realizadas a partir deste texto de Connelly e Clandinin são de minha
responsabilidade.
23
Para Michel Foucault (2003a), o dispositivo é “um conjunto decididamente heterogêneo
que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares,
leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a
rede que se pode estabelecer entre estes elementos” (p.244). O autor aponta que os
dispositivos o “estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo
sustentadas por eles” (p.246).
70
Foucault (1999), ao interrogar o sujeito da essência, aponta para o
sujeito como uma constituição histórica a partir de um conjunto de
estratégias integrantes das práticas sociais. Diz ele:
Seria interessante tentar ver como se dá, através da história, a
constituição de um sujeito que não é dado definitivamente, que não é
aquilo a partir do que a verdade se dá na história, mas de um sujeito
que se constitui no interior mesmo da história, e que é a cada
instante fundado e refundado pela história (p.10).
Tais entendimentos e discussões levam-me a olhar o modo como se
narra os “alunos-problema” através do que se diz ou se escreve nos registros
existentes na escola, do modo como se lida com eles e como eles se
relacionam entre si, aproximando-me da rede de práticas que funciona no
cotidiano escolar e com a qual eles se relacionam, constituindo-os. Busco,
ainda, experimentar outras possibilidades de olhar e interpretar as relações
que se dão na escola entre seus personagens...
OS REGISTROS ESCRITOS
O entendimento de que as narrativas que construímos sobre os
outros (e nós mesmos) se encontram implicadas no processo de
identificação/diferenciação e de constituição de subjetividades levou-me a
direcionar meu olhar, primeiramente, para os registros escritos sobre os
alunos narrados como “problemas” na turma 5A. A partir das informações
iniciais da direção sobre os registros, compreendi que estes se configuram
como histórias sobre a vida desses alunos, utilizadas para esmiuçar,
investigar, detalhar e arquivar informações sobre todos eles, em especial
sobre aqueles tomados como “problemas”; tais registros permanecem
durante anos arquivados na escola.
Foucault (1998), em seus estudos sobre o poder disciplinar, mostra
que “a disciplina “fabricaindivíduos” (p.143), utilizando como instrumentos
o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e o exame, combinação dos dois
instrumentos anteriores. Este último, segundo o autor, “é um controle
normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir.
71
Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são
diferenciados e sancionados” (p.54).
Discutindo as práticas de exame nas instituições disciplinares (a
escola, entre outras), Foucault aponta que o exame coloca a individualidade
num campo documentário:
Seu resultado é um arquivo inteiro com detalhes e minúcias que se
constitui ao nível dos corpos e dos dias. O exame que coloca os
indivíduos num campo de vigilância situa-os igualmente numa rede
de anotações escritas; compromete-os em toda uma quantidade de
documentos que os captam e os fixam. Os procedimentos de exame
são acompanhados imediatamente de um sistema de registro intenso
e de acumulação documentária (1998, p.157).
O autor relaciona os efeitos dessas práticas:
Graças a todo esse aparelho de escrita que o acompanha, o exame
abre duas possibilidades que são correlatas: a constituição do
indivíduo como objeto descritível, analisável, não, contudo, para
reduzi-lo a traços “específicos”, como fazem os naturalistas a respeito
dos seres vivos; mas para mantê-lo em seus traços singulares, em
sua evolução particular, em suas aptidões ou capacidades próprias,
sob o controle de um saber permanente; e por outro lado a
constituição de um sistema comparativo que permite a medida de
fenômenos globais, a descrição de grupos, a caracterização de fatos
coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si, sua
distribuição numa “população” (FOUCAULT, 1998, p.157).
As discussões do autor possibilitam-me entender que tais práticas
documentárias produzem saberes sobre os indivíduos. Tais saberes podem
atuar dando sustentação às ações exercidas em relação a esses mesmos
indivíduos e intervindo no processo de produção de suas subjetividades.
Movida por tal entendimento e acompanhada pela direção da
escola, entrei em contato com os registros escritos existentes sobre esses
alunos: os Livros de Ocorrência, as Pastas Individuais e outros registros que
estavam “soltos”, esperando o momento de comporem também as Pastas
citadas.
Nesses registros, encontrei descrições detalhadas de aspectos dos
comportamentos dos alunos e de suas relações com familiares e a escola,
havendo uma maior quantidade de materiais sobre os alunos que se
encontram há mais tempo matriculados. Nos apontamentos, chamou-me
72
a atenção a existência de registros que apenas demarcavam falhas,
rupturas, desencontros, erros, “problemas”, desalinhos, “desvios” dos alunos
em relação aos padrões da escola. Além disso, todos os registros diziam
respeito a aspectos comportamentais dos alunos, praticamente sem
mencionar questões de ordem da aquisição dos conhecimentos e das
aprendizagens.
A ENTREVISTA...
Outra estratégia que utilizei foi uma entrevista com a Direção da
escola (diretora e vice-diretora). Por que com a direção da escola? Qual meu
objetivo ao escolher esse caminho?
Nos diversos momentos em que fui para a instituição a fim de
pesquisar os registros escritos, pude perceber que, em situações cotidianas,
a Direção atuava como aquela figura que exercia a articulação entre o que
ocorria na sala de aula, os mecanismos de disciplinamento, as famílias e
suas histórias e a SMEC. Era à Direção que os professores solicitavam
auxílio quando tinham “problemas” com os alunos em sala de aula ou fora
dela. Era também a ela que, muitas vezes, os alunos eram enviados para
“conversar” ou para realizar atividades quando perturbavam as aulas. A
partir dessas demandas, cabia à Direção chamar as famílias para a escola,
buscando informações, orientando e propondo atitudes. Também era a
Direção que solicitava à SMEC providências quanto aos encaminhamentos
de determinados alunos para acompanhamento psicológico/psicopedagógico.
Assim, tive como propósito conhecer como a direção via, narrava e lidava
com os “alunos-problema”.
Ao discutir o papel das entrevistas nas pesquisas em educação,
Silveira (2002) traz considerações significativas, problematizando a
tradicional concepção da entrevista com uma função “partejadora” (p.120),
ironizando a expectativa que se possa ter de, através dela, descobrir dados
fidedignos, desnudar a verdade mesma sobre aquilo que pesquisamos.
Compreendo a entrevista como uma ferramenta também produtora
de subjetividades, na medida em que aquele/a que ocupa o lugar de
73
entrevistador/a, fala de um lugar de saber/poder, produzindo efeitos, dessa
maneira, sobre o/a entrevistado/a. Naquela circunstância, a pessoa
entrevistada vai dizer coisas levando em consideração o papel que eu
(pesquisadora) ocupo e os sentimentos que nela provoco. Talvez se falasse
sobre o mesmo assunto com outra pessoa (com uma vizinha, quem sabe?),
falaria outras coisas, mostraria outros modos de ver e pensar sobre a
situação falada.
Todavia, na entrevista realizada, percebi também que os/as
entrevistados/as exercem efeitos sobre o entrevistador a partir do que dizem
ou fazem, que desestabilizam as nossas “convicções” ou propósitos,
posicionando-se de outra maneira, que o aquela esperada por nós (que
falem, digam muitas coisas, colaborem), amesmo, às vezes, negando-se a
participar. Para exemplificar, recordo que, na situação da entrevista com a
Direção da escola, na Secretaria escolar, estavam presentes a Diretora e a
Vice-Diretora. Isso fez com que, muitas vezes, a conversa fosse interrompida
para a realização de atendimentos ao telefone ou de pessoas da escola ou de
fora dela. Esses acontecimentos, além de despertarem em mim sentimentos
diversos, fizeram-me pensar na noção de ordem e de destaque que
geralmente associamos àquilo que pretendemos fazer. Naquele momento,
entraram em conflito os meus interesses como pesquisadora e as atividades
e demandas do cotidiano escolar, que não pararam” por eu estar ali e com
outras intenções.
Para Silveira (2002), as orientações tradicionais de entrevista listam
uma rie de receitas, procedimentos e atitudes que deveriam ser adotadas
pelo entrevistador na situação de entrevista, “todas elas sob a égide de uma
maior eficiência do partejar da “palavra alheia” e do direcionamento dessa
“palavra” para os objetivos de captação de “dados fidedignos” (SILVEIRA,
2002, p.123). Silveira alerta que não podemos ser ingênuos a ponto de achar
que, nas entrevistas realizadas durante uma pesquisa acadêmica “afinal,
uma empresa séria” (ironiza) –, “também não haja jogos de representações e
imagens, negociações e disputas, escaramuças e retiradas estratégicas”
(p.122). Propõe que pensemos, entre outras coisas, “sobre jogos de
linguagem, reciprocidade, intimidade, poder e redes de representações”
74
(p.125). Sugere que, para essas questões, devemos nos posicionar de
maneira realmente atenta, mostrando a impossibilidade de darmos conta de
ideais tradicionais, como objetividade, atemporalidade, fidedignidade,
exatidão, imparcialidade e autenticidade.
A partir disso, a autora mostra que, na situação de entrevista, se
estabelecem relações de poder e que não é à toa que uma das partes se
chama entrevistador e a outra se chama entrevistado. Sobre isso, Silveira
(2002) reflete que:
O uso do sufixo –or em entrevistador (indicativo de agente) e do
particípio passado entrevistado
, sempre indicando “quem sofre a
ação” (...), etiqueta (ainda que não de forma definitiva) os papéis que
a dupla deveria assumir. Como gênero discursivo, a entrevista
apresenta suas características; pode subvertê-las, questioná-las,
ressignificá-las...mas tais regras são a sua referência e, de certa
forma, sua garantia (p.125).
Tal discussão interroga a noção que normalmente temos sobre a
entrevista: de um lado, alguém que pergunta; de outro, alguém que
responde. Contudo, nesses encontros, ocorrem jogos entre os participantes,
em que mecanismos de poder do pesquisador se encontram em luta com as
estratégias de resistência, muitas vezes utilizadas pelo entrevistado para
desagrado e quem sabe, desespero do entrevistador. A entrevista atua como
um campo de batalha, de lutas entre sujeitos que se relacionam de modo
dinâmico, cujas posições se movimentam conforme o lugar de onde se fala
(psicologia, pedagogia, gênero) e as circunsncias e interesses associados ao
objeto em questão.
Para Silveira (2002), o momento da entrevista movimenta-se como
uma “arena de significados” cuja expressão sinaliza:
...um jogo interlocutivo em que um/a entrevistador/a “quer saber
algo”, propondo ao/à entrevistado/a uma espécie de exercício de
lacunas a serem preenchidas...Para esse preenchimento, os/as
entrevistados/as saberão ou tentarão se reinventar como
personagens, mas não personagens sem autor, e sim, personagens
cujo autor coletivo sejam as experiências culturais, cotidianas, os
discursos que os atravessam e ressoam em suas vozes. Para
completar essa “arena de significados”, ainda se abre espaço para
mais um personagem: o pesquisador, o analista, que fazendo falar
de novo tais discursos os relerá e os reconstruirá, a eles trazendo
outros sentidos (SILVEIRA, 2002. p.139-140).
75
Além desses elementos presentes na situação da entrevista, vejo-a,
também, como mais uma maneira de produzir dados” para análise, na
medida em que, como pesquisadora, vou escolher as palavras da pessoa e
fazer uso delas de forma interessada.
Considero significativo mencionar que, em diversos momentos
“não-oficiais” na escola, pude compartilhar/participar de falas sobre
situações a respeito dos alunos. Antes do início das aulas ou durante
observações realizadas em sala de aula em intervalos/recreios, professores e
professoras aproximavam-se de mim para falar de seus sentimentos em
relação a alguns alunos ou contar situações vivenciadas em sala de aula,
bem como seus entendimentos sobre elas.
Dessa forma, nesse espaço não-oficial”, que também relato em
meu Diário de Campo, vejo-me aproximada dessas maneiras de ver os
alunos, cujas categorizações se encontram vinculadas aos discursos
científicos, especialmente ao campo médico (quando narram certo aluno
como hiperativo, por exemplo). Essas situações possibilitaram-me, também,
interrogar sobre aqueles entendimentos que percebo como naturalizados,
provocando “enfrentamentos”, desequilíbrios no habitual.
O “GRUPO DE DESABAFO”
Logo no primeiro contato com a escola, ao contarem-me sobre as
quintas ries, foi relatado que os professores dessas turmas haviam
decidido se encontrar, quinzenalmente, nas quintas-feiras. O encontro,
nomeado de “Grupo de Desabafo”, era um espaço para “desabafar” e falar
das dificuldades que tinham com os alunos. Fui convidada pela Direção a
participar desses encontros, o que considerei interessante e produtivo. Tais
participações (duas em abril e uma em junho de 2005) permitiram-me uma
maior aproximação com os modos como os “alunos-problema” iam sendo
narrados pelos professores; “experimentei/compartilhei” algumas das
sensações provocadas nos professores pelos alunos que não correspondiam,
naquele momento, àquilo que deles se esperava. Foi nesses encontros que
76
me apresentei ao grupo de professores, falando do estudo que pretendia
desenvolver.
Um os motivos que me levaram a “tomar” esse movimento dos
professores como espaço de pesquisa foi a percepção de que tais encontros
demarcavam um diferencial das turmas de 5
a
série em relação a outras
turmas da escola. A constituição de um espaço específico de reunião para
falar desses alunos configurava-se como algo que os diferenciava em relação
aos outros – no meu entender, produzindo-os como mais “problemáticos”.
Como citei anteriormente, os encontros foram
articulados/produzidos por alguns dos professores dessas turmas que,
mobilizando-se, buscaram apoio na direção da escola e convidaram outros
colegas a participar. Para mim, apresentava-se mais uma possibilidade de
aproximar-me dos enunciados utilizados (agora num outro espaço/tempo)
24
para narrar aqueles alunos que eram tomados, na escola, como
“problemas”.
Aconteceram sete encontros, sendo o último na metade de junho
de 2005. Nos encontros dos quais participei, pude perceber que: nem todos
os professores participavam; o havia uma regularidade no horário
previsto, das 17 às 18 horas alguns chegavam depois e/ou saíam antes do
final; as falas traziam queixas relacionadas às dificuldades enfrentadas no
“manejo” pedagógico dos alunos; os participantes buscavam construir
acordos entre si para gerenciar as turmas, produzindo, por exemplo,
espelhos de classe com a finalidade de ajustar/aproximar/distanciar
determinados alunos, visando a uma certa ordem e construindo
combinações em torno de regras que fossem homogêneas a todos os
professores. Além disso, eram planejadas normativas a entrarem em ação
frente aos “problemas”: comunicar ou convocar os pais para comparecerem
na escola; solicitar à SMEC a transferência de alguns alunos; encaminhar
para a psicóloga/psiquiatra/psicopedagoga, à Direção quando aprontassem
de novo ou ao Conselho Tutelar; registrar no Caderno de Ocorrências.
24
Refiro-me aqui à possibilidade de aproximar-me de outros momentos e lugares nos quais
os alunos eram narrados. Tendo olhado anteriormente para os registros escritos e tendo
ouvido o que a direção da escola tinha a dizer sobre eles, poderia ser interessante ater meu
olhar às falas dos professores sobre seus “alunos-problema” num contexto criado
especialmente para isso.
77
No segundo encontro do qual participei, a Direção tentou propor
uma reflexão, trazendo um texto que discutia a sexualidade na adolescência,
assunto costumeiro nas falas dos professores. Mas a reflexão proposta não
aconteceu - alguns participantes saíram, pois tinham que lecionar em outras
escolas; os que ficaram pareceram preferir falar de outras questões. Tal
situação ocorreu, também, em outros encontros dos quais participei: os
textos a serem estudados acabavam esquecidos sobre a mesa da reunião, e o
assunto não provocava reflexões.
Outra situação produzida nesses encontros refere-se às discussões
relacionadas aos “alunos-problema”, aquilo que se pensa e o que se acredita
que deva ser feito com eles. Nesses momentos, ao mesmo tempo em que
escuto como os alunos o narrados e procuro entender os posicionamentos
dos professores e de que lugares estão falando, também interpelo os
participantes com questionamentos que, muitas vezes, não vão ao encontro
de suas demandas
em relação a uma psicóloga. Esses questionamentos
lançados ao grupo parecem desestabilizar as pretensas certezas, provocando
certo mal-estar, o comum quando nos vemos diante do desconhecido, do
impensado. Simultaneamente, as intervenções da direção com a proposta de
textos com temas
para reflexão, numa tentativa de conduzir e disciplinar
aquele espaço, parecem encontrar o confronto e a resistência dos
participantes, manifesta nas atitudes de não olhar e de deixar,
simplesmente, o texto sobre a mesa, por exemplo.
O “Grupo de Desabafo”, após alguns encontros quinzenais, passa a
ocorrer mensalmente até dissolver-se por completo ao final de sete encontros
- talvez pelas interferências naquilo que era para ser um momento de
desabafo ou conversa, sem uma proposta inicial de pensar sobre as práticas
escolares, ou pelo simples fato de terem passado” os problemas iniciais do
semestre em relação às quintas séries.
O CONSELHO DE CLASSE
Durante minhas incursões pela escola, fui aprendendo que um dos
momentos considerados de grande importância no processo de avaliação
78
escolar era o Conselho de Classe. Mostrei-me logo interessada em participar,
com a intenção de ouvir o que seria dito, supondo que apareceriam
enunciados naquele momento oficial para avaliação dos alunos.
Nas primeiras incursões pela escola, perguntei à Diretora quando
aconteceria o Conselho de Classe, mostrando meu interesse em participar.
Naquela ocasião, ela me disse que seria em fins de maio. Então, solicitei que,
se fosse possível, me comunicasse a data de realização do Conselho.
Embora, em várias ocasiões, eu tivesse procurado saber a data do
Conselho, sempre sem definição, numa das minhas idas à escola, fiquei
sabendo por uma professora que ele havia ocorrido. Ao conversar com a
Diretora sobre o assunto, ela disse que havia esquecido de me avisar. Tal
situação pode ser pensada sob vários ângulos, mas me ocorreu que, ali,
poderia estar atuando uma estratégia de resistência da Direção em relação a
minha tentativa de participar daquele momento de decisão sobre os alunos.
Novamente, percebo que os caminhos traçados nas pesquisas não o
ordenáveis e lineares como previamente planejamos.
Todavia, no segundo trimestre letivo, acompanhei durante uma
hora, mais ou menos, as falas dos professores sobre os alunos da turma 5A.
O Conselho de Classe configurou-se para mim, que não sou professora,
como algo mais do que um momento do processo de avaliação dos alunos
um momento de definição de possibilidades para a vida (escolar) de cada
um, de decisões sobre o futuro dos alunos, a partir de como são
vistos/interpretados/produzidos pelos olhos dos professores.
No processo de avaliação, o Conselho de Classe funciona como uma
instância legitimadora daquilo que vem sendo constituído nas práticas
escolares. Na escola, funcionam instâncias jurídicas que sentenciam os atos,
os ritmos, os saberes a partir de uma rede microscópica de observações,
registros, classificações, punições e premiações, posicionando o bom e o mau
aluno e decidindo as intervenções nas condutas, as premiações e as
correções nos casos vistos como desvios. No entanto, o Conselho de Classe
parece funcionar como um “microtribunal” em que essa rede de provas se
articula definindo a sentença, especialmente no caso dos “alunos-problema”.
Ou seja, quando se institui o Conselho de Classe, intensifica-se o mecanismo
79
penal que funciona na instituição escolar para que todos se pareçam,
através de operações que visam à normalização. Para Foucault (1998), nas
instituições disciplinares, atua uma “arte de punir” que,
... no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem
mesmo exatamente a repressão. Põe em funcionamento cinco
operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os
comportamentos singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo
campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma
regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e
em função dessa regra de conjunto que se deve fazer funcionar
como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que
se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar
em termos de valor as capacidades, o nível, a “natureza” dos
indivíduos. Fazer funcionar, através dessa medida “valorizadora”, a
coação de uma conformidade a realizar. Enfim traçar o limite que
definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira
externa do anormal [...]. A penalidade perpétua que atravessa todos
os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares,
compara, diferencia, hierarquiza, homogeneíza, exclui. Em uma
palavra, ela normaliza (FOUCAULT, 1998, p.152-153).
Nesse “microtribunal”, a norma, preceito de coação do ensino e
parâmetro para a avaliação de cada aluno, tem como regra a
homogeneização, gerando, muitas vezes, a exclusão daqueles que não se
enquadram no processo normalizador.
As estratégias usadas para narrar os
alunos, naquele momento, remeteram-me novamente a Foucault (1998),
quando ele diz que, no interior da escola, funciona um aparelho de exame.
No funcionamento desse aparelho, podemos também situar o Conselho de
Classe, quando se intensificam as práticas que tomam cada indivíduo como
um “caso”: um caso que ao mesmo tempo constitui um objeto para o
conhecimento e uma tomada para o poder. Para Foucault (1998), o “caso”:
[...] é o individuo tal como pode ser descrito, mensurado, medido,
comparado a outros e isso em sua própria individualidade; e é
também o indivíduo que tem que ser treinado ou retreinado, tem que
ser classificado, normalizado, excluído, etc. (FOUCAULT, 1998,
p.159).
Nesse escrutínio, desse olhar detalhado, permanente e esmiuçante
sobre cada aluno, vai sendo produzido o “bom aluno” ou o “aluno-problema”,
designando-se, a partir dessa rede de interpretações, as premiações ou
sanções sentenciadas, finalmente, no Conselho de Classe.
80
PROPOSTA DE ATIVIDADES COM OS ALUNOS DA TURMA 5A
Olhar os registros escritos, as narrativas dos professores e da
Direção da escola sobre os alunos da turma 5A e os momentos que
acompanhei do cotidiano escolar, mencionados ao longo deste capítulo,
possibilitou-me perceber que funcionava uma política de discursos,
configurando um determinado modo de ver os alunos dessa turma. Nessa
política, correlacionavam-se os discursos advindos da Pedagogia, Psicologia e
Medicina com aqueles ligados às maneiras de ver, especialmente os alunos
vindos das periferias da cidade (com comportamentos, valores, ritmos e tipos
de famílias, por exemplo, diferentes dos estereótipos dos professores),
produzindo/legitimando “verdades” que posicionavam e justificavam ações
direcionadas aos alunos vistos como “problemas”.
Tais entendimentos moveram-me na direção de procurar ouvir
aquilo que esses alunos tinham a dizer sobre as suas experiências na escola.
Para isso, propus atividades que criassem condições para eu entrar em
contato com modos de esses alunos sentirem/verem/interpretarem as
práticas
vividas ali, presentes em suas narrativas. Nessa intervenção, não vi
os alunos como “dominados” pelo poder exercido na escola, a serem
“libertados”, mas compreendi-os como sujeitos imersos em relações de poder
que os atravessam e constituem, sendo também seus agentes. Ao falar sobre
o funcionamento do poder e de suas relações com os indivíduos, Foucault
(2003a) refere que:
O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os
indivíduos não circulam, mas estão sempre em posição de exercer
este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou
consentido do poder, são sempre centros de transmissão [...]. O
poder se passa através do indivíduo que ele constituiu (p.183).
Nessa direção, em diversos momentos, pude observar que, dentre
as formas de os alunos se relacionarem com as práticas escolares,
apareciam seus movimentos de resistência, através do não cumprimento das
regras escolares, por exemplo. Além disso, pude notar o efeito constitutivo do
81
poder, presente em algumas falas, como, por exemplo, na da aluna Tainá,
que comentou comigo: tu deves estar apavorada conosco. Somos terríveis.
Perguntei-lhe por que nomeava a turma desse modo. Ela me respondeu:
porque somos, todos os professores dizem isso. A partir dessas falas, pensei
na possibilidade de realizar atividades que proporcionassem aos alunos a
chance de manifestarem suas construções a respeito de si e do estar na
escola, assim como os significados atribuídos à escola em suas vidas.
Pretendia olhar para como os alunos da turma observada se narravam
enquanto sujeitos e como se constituíam enquanto alunos.
Como discuti anteriormente, não busquei
com essas atividades
uma possibilidade “libertadora” para as vozes dos alunos, muito menos
entendi tal proposta como um “momento terapêutico”, como muitas vezes
são compreendidas essas intervenções com turmas de alunos. Signifiquei-as
como momentos de interação com a turma que me possibilitassem uma
aproximação dos modos como os alunos significavam a si mesmos naquele
momento de suas vidas. No planejamento dessas atividades, sustentei-me,
também, no entendimento de Jurjo Santomé (1998), quando este discute que
existe em nossa sociedade um adultocentrismo
25
que “nos leva a uma
ignorância realmente grande acerca do mundo idiossincrático da infância e
da juventude” (p.163). O autor aponta para a existência de uma
desqualificação das pessoas que vivenciam esse momento de suas vidas,
sendo consideradas e narradas, freqüentemente, como “ingênuas, inocentes,
desvalidas, etc., e, portanto, sem maiores preocupações, interesses e
desejos(idem, ibidem). Estes últimos o o contemplados nas atividades
e conteúdos curriculares, não se levando em conta o fato de que tais sujeitos
possam ter modos diferenciados de entender/querer/sentir as questões
referentes a seus processos de escolarização, entre outros.
Com esse movimento, pensei também que talvez pudesse criar
condições para que se produzissem, entre outras coisas, estratégias de luta a
partir do que os alunos trouxessem em suas falas, realizando uma espécie
de inter-jogo entre os saberes dos alunos e os dos professores. Desejava,
ainda, empreender algumas problematizações em torno dos modos como os
25
Grifo meu para demarcar a expressão utilizada pelo autor.
82
alunos sentem a escola que freqüentam, como percebem suas próprias
presenças nela, olhando para os sentidos que isso tem em suas vidas.
Assim, propus à Direção dois encontros com os alunos, cada um
com a duração de duas horas, cujas propostas de trabalho apresento abaixo.
PROPOSTA DAS ATIVIDADES:
Primeiro encontro:
Título: Quem sou eu neste momento?
Objetivo: discutir com os alunos a concepção de que somos produzidos em rede,
que vamos cotidianamente nos tornando/construindo o que somos a partir das coisas que
vão nos acontecendo, bem como nas nossas relações com as pessoas.
Desenvolvimento: a turma é dividida em grupos de quatro alunos, que se
agrupam conforme suas afinidades. São distribuídos a cada um dos grupos os seguintes
recursos materiais: papel pardo, revistas e jornais para serem recortados, canetinhas
coloridas, cola, tesouras.
A proposta da atividade é a seguinte: “Se eu tivesse que falar em mim que
coisas (imagens, frases, desenhos) me representam? Como eu me apresentaria para os
outros? Que coisas gosto e que coisas não gosto? Que coisas significativas, importantes,
aconteceram/acontecem na minha vida?”.
Os grupos confeccionam os cartazes e depois os apresentam para o grande
grupo, falando sobre as suas produções.
PROPOSTA DAS ATIVIDADES:
Segundo encontro:
Título: Pensando sobre a escola.
Objetivo: possibilitar que os alunos falem sobre o lugar que a escola ocupa em
suas vidas.
Desenvolvimento: Combinar com os alunos como preferem realizar a atividade
que será proposta, a partir de duas opções: sozinhos ou em duplas. Distribuem-se folhas A5
preparadas para a atividade, divididas em quatro quadrantes. Em cada quadrante uma
questão a ser trabalhada pelos alunos.
A proposta da atividade é a seguinte: os alunos, individualmente ou em duplas,
devem representar com desenhos e frases o que pensam sobre cada uma das questões que
estão dispostas em cada um dos quadrantes. As questões são as seguintes: 1ª: Como me
vejo dentro da escola? 2ª: O que gosto na escola? 3ª: O que não gosto na escola? 4ª: O
que espero da escola?
Os alunos confeccionam os cartazes e depois os apresentam para o grande
grupo, falando sobre as suas produções. A facilitadora promove a discussão a partir dos
elementos que vão sendo trazidos pelos alunos, buscando trazer para a discussão as
experiências de vida dos alunos exteriores à escola, problematizando a possibilidade de
essas vivências encontrarem espaço de ser no ambiente escolar.
Para a realização dessas atividades, conversei anteriormente com a
turma, explicando que eram continuação da pesquisa que eu realizava e que
esses momentos seriam para pensarmos sobre s mesmos. Todos
83
concordaram e mostraram expectativa com as atividades a serem
desenvolvidas.
As colocações dos alunos, durante o desenvolvimento das
atividades, fizeram-me questionar: o que fazer com os
sentimentos/experiências/narrativas dos alunos, uma vez que
pretendo
fazer “diferença” no lócus da pesquisa e, ao mesmo tempo, pensar em outros
fazeres possíveis para os profissionais da Psicologia junto aos espaços
escolares?
ENCONTROS DE DISCUSSÃO COM OS PROFESSORES
As inquietações que foram sendo suscitadas em mim no decorrer
da pesquisa, especialmente provocadas pelas vozes dos alunos, levaram-me
a considerar outras possibilidades para os fazeres da Psicologia naquele
espaço escolar. Nessa perspectiva, propus encontros com os professores,
visando a discutir e entender como eles viam a si próprios na escola,
utilizando-me dos mesmos questionamentos direcionados anteriormente aos
alunos. Tal proposição fundamentou-se no entendimento de que “a escola é
polissêmica, ou seja, tem uma multiplicidade de sentidos” (DAYRELL, 1996,
p.144). Sendo assim, alunos e professores significam de modos diferentes o
espaço escolar onde interagem. Para o autor:
Dizer que a escola é polissêmica implica levar em conta que seu
espaço, seus tempos, suas relações podem estar sendo significados
de formas diferenciadas, tanto pelos alunos quanto pelos
professores, dependendo da cultura e projeto dos diversos grupos
sociais nela existentes (DAYRELL, 1996,
p.144).
Tomando-se a escola como um espaço atravessado por relações de
poder e, ao mesmo tempo, por uma hierarquia de saberes (que produzem
vozes válidas e silenciadas, por exemplo), o seria importante possibilitar
aos educadores outros olhares sobre si mesmos e sobre os alunos? Dayrell
(1996) aponta para a importância de se desafiar
... os educadores a desenvolverem posturas e instrumentos
metodológicos que possibilitem o aprimoramento do seu olhar sobre
84
o aluno, como “outro”, de tal forma que, conhecendo as dimensões
culturais em que ele é diferente, possam resgatar a diferença como
tal e não como deficiência (p.145).
As discussões do autor também levaram-me na direção de pensar
que todos os participantes do espaço escolar possuem projetos individuais e
diferenciados de vida e que a diversidade cultural desses participantes está
presente na concepção de seus projetos individuais, onde a escola se inclui.
Para Dayrell (1996), “todos os alunos têm, de uma forma ou de outra, uma
razão para estar na escola, e elaboram isso de uma forma mais ampla ou
mais restrita, no contexto de um plano futuro” (p.144). Penso que também
os
professores têm razões diferenciadas para estarem, pensarem e agirem na
escola.
A partir desses entendimentos, nesses encontros, eu tinha como
propósito também problematizar a noção de “aluno-problema”, chamando a
atenção para o papel constitutivo das práticas escolares, na expectativa de
gerar, quem sabe, outras formas de pensar os projetos individuais em torno
da escola.
Nas conversas com os docentes, na tentativa de conseguir espaço e
provocar seu interesse pelo trabalho, as falas de alguns mostraram a
existência de outras prioridades naquele momento. Trago como exemplo a
preocupação com os dias letivos, a recuperação das aulas e dos conteúdos
curriculares, seus afazeres pessoais nos finais de semana... Os encontros
para discussão das questões que eu apresentava pareciam não interpelar o
grupo de docentes, visto que estes não se mostravam abertos ou motivados a
participar.
Para viabilizar a realização dos encontros, propus à SMEC que o
trabalho fosse aberto a todos os professores da escola (e não só aos da turma
5A) e realizado em horário de aula. A proposta foi bem aceita, ficando
combinadas duas tardes de trabalho com os professores. Nesses períodos, os
alunos ficariam dispensados e realizariam atividades extra-classe, sendo
contados como dias letivos.
Os grupos de discussão foram propostos aos professores em um
folder de divulgação e convite, o qual apresento abaixo:
85
ENCONTROS DE DISCUSSÃO COM PROFESSORES:
OS “ALUNOS-PROBLEMA”: DISCUTINDO PRÁTICAS ESCOLARES IMPLICADAS NA
PRODUÇÃO DO ANORMAL
OBJETIVO: este trabalho se propõe a abrir um espaço para discussões e reflexões
sobre as práticas escolares cotidianas e suas relações na produção dos “alunos-
problema”. Além disso, objetiva discutir sobre outras possibilidades de intervenções
pedagógicas com esses alunos.
PÚBLICO-ALVO: Professores da Rede Municipal de Ensino de Dois Irmãos.
LOCAL: Escola “Amanhecer”.
PROGRAMAÇÃO:
1º encontro: 18 de outubro de 2005 – terça-feira – 13hs30min às 17hs.
Proposta de atividades:
Breve apresentação sobre o tema e metodologia da pesquisa.
Dinâmica com os professores a partir das questões: “Se eu tivesse que falar em mim –
que coisas (imagens, frases, desenhos) me representam? Como eu me apresentaria
para os outros? Que coisas gosto e que coisas o gosto? Que coisas significativas,
importantes, aconteceram/acontecem na minha vida? Como me vejo dentro da escola?
O que espero dos alunos?
Apresentação de materiais confeccionados por alunos de uma “turma-problema” no
decorrer da pesquisa: como estes narram a si mesmos e como percebem suas
relações na e com a escola onde estudam.
Discussão com o grupo sobre as suas próprias narrativas e as dos alunos,
possibilitando ver os modos diferentes de compreender a escola.
Discussão dos conceitos de normalidade/anormalidade, desvios,
reprovação/aprovação, exclusão/inclusão, famílias “desestruturadas”, entre outros.
2º encontro: 08 de novembro de 2005 – terça-feira – 13hs30min às 17hs.
Proposta de atividades:
Visualização de uma produção cinematográfica que tem como tema central a questão
das “diferenças” na escola.
Discussão dos sentimentos despertados pelo vídeo nos participantes.
Discussão, a partir do filme, sobre os conceitos de “diferença”, produção e
cristalização das “diferenças” na escola, homogeneidade e heterogeneidade.
Possibilidades pedagógicas inclusivas: práticas docentes possíveis em relação às
“diferenças”.
Inscrições: as inscrições devem ser feitas ao dia 14 de outubro de 2005 na Secretaria da
Escola. O curso é gratuito, com horas certificadas pela SMEC.
Ao recordar que, entre minhas intenções de pesquisa, figurava a
possibilidade de pensar outros fazeres para os profissionais da Psicologia
nas escolas, entendo esses encontros de discussão com os professores como
espaços geradores de movimentos em mim e, talvez, nos professores/as.
86
Momentos de possíveis escutas, falas e interlocuções geradoras de
confrontos, desestabilizações e outros pensares sobre as narrativas
existentes e as experiências relacionadas às práticas escolares, às
aprendizagens, aos alunos...
AS PRODUÇÕES DA PESQUISA (E DA PESQUISADORA!)
Discutindo as possibilidades de (re)significação associadas ao falar
de si e de suas práticas, Connelly e Clandinin (1995) referem que:
...as pessoas estão vivendo suas histórias em um contínuo contexto
experiencial e, ao mesmo tempo, estão contando suas histórias com
palavras enquanto refletem sobre suas vivências e as explicam aos
demais. Para o investigador, isto é parte da complexidade da
narrativa, porque uma vida é também uma questão de crescimento
até um futuro imaginário e, portanto, implica recontar histórias e
tentar revivê-las. Uma mesma pessoa está ocupada, ao mesmo
tempo, em viver, em explicar, em re-explicar e em reviver histórias
(p.22).
Percebi que, no decorrer desta pesquisa, na medida em que fui
compondo meus relatos, contando e recontando as histórias dos
personagens envolvidos nessa experiência escolar, também eu fui me
modificando, (re)significando meus pensamentos enquanto pesquisadora e
psicóloga. Todavia, esse movimento não foi e nem nunca será algo tranqüilo,
pois, como dizem Costa e Grün (2002):
... toda nossa formação intelectual edificou-se sobre a idéia de
conhecimento como verdade, como certeza...uma postura
hermenêutica significa estarmos não apenas abertos/as, mas
expostos/as às novas possibilidades presentes nos objetos...a
compreensão assim entendida é uma atividade que sempre envolve
risco. Isso se aplica não ao campo teórico, mas também à
dimensão existencial de nossas vidas. A situação de alguém que tem
suas melhores certezas abaladas é, antes de mais nada, uma
situação de fragilidade existencial (p. 100 -101).
Atentar para as narrativas construídas e que vamos construindo
sobre nós enquanto modalidades discursivas, constitutivas das nossas
subjetividades, pode apontar para um conhecer transitório, contingente,
87
incerto, instável, um processo de constante repensar e posicionamentos
menos rígidos e fixos.
Olhar as narrativas implicadas na produção dos “alunos-problema
a partir das práticas escolares é falar da inquietude com as minhas próprias
práticas. É também um processo de indignação com a produção das
diferenças e com os processos de exclusão gerados nos espaços escolares.
Louro (1997) auxilia-me a pensar a pesquisa, mostrando que:
...se admitimos que a escola não apenas transmite conhecimentos,
nem mesmo apenas os produz, mas que ela também fabrica sujeitos,
produz identidades étnicas, de gênero, de classe; se reconhecemos
que essas identidades estão sendo produzidas através de relações de
desigualdade; se admitimos que a escola está intrinsecamente
comprometida com a manutenção de uma sociedade dividida e que
faz isso cotidianamente, com nossa participação ou omissão; se
acreditamos que a prática escolar é historicamente contingente e que
é uma prática política, isto é, que se transforma e pode ser
subvertida; e, por fim, se não nos sentimos conformes com essas
divisões sociais, então, certamente, encontramos justificativas não
apenas para observar, mas especialmente, para tentar interferir na
continuidade dessas desigualdades (p.85-86).
Para finalizar, destaco que, com este capitulo, procurei mostrar os
movimentos que empreendi na perspectiva de olhar de perto e (re)pensar as
práticas escolares a partir de autores, ensaios e pesquisas ligadas ao campo
dos Estudos Culturais e, principalmente, aos estudos Michel Foucault.
Tentei construir ferramentas que servissem para eu pensar, interferir e
problematizar os “diagnósticos” postos em prática em relação aos alunos
tomados como “problemas”.
No próximo capítulo, apresento e discuto as análises que realizei do
material produzido a partir das observações, das narrativas presentes nos
registros, nas falas dos participantes, produzidas nos diferentes momentos
da pesquisa. Trata-se de análises provisórias, escritos-efeitos daquilo que,
neste momento, do lugar do qual falo e do tempo de minha vida, me foi
possível constituir.
Lente
Arnaldo Antunes
Mudou a minha lente
De repente ficou tudo maior
Mudou a sua lente
De repente ficou tudo menor
Mudou a nossa lente
Ficou tudo do tamanho da gente
A lente não mente
Mente quem está detrás da lente
A lente não mente
O objeto transparente
Me deixe ver o que sempre foi aparente
Mudou a minha lente
De repente ficou tudo diferente
Mudou a sua lente
Você estranha o que vê a sua frente
Mudou a nossa lente
Agora você vê e eu te vejo claramente
A lente não sente
Sente quem está detrás da lente
A lente não sente
Objeto transparente
Me deixe ver qualquer coisa que eu invente
Depende do ponto de vista
Depende do ângulo certo
Deixa que eu veja, observe
Um pouco mais longe
Um pouco mais perto
Mas vitrine é vitrine
Depende do ângulo certo
Às vezes me confunde
Às vezes nem define
Objeto transparente
Me deixe ver qualquer coisa que eu invente.
MOVIMENTOS DE FABRICAÇÃO DOS “ALUNOS-PROBLEMA”:
A IMPLICAÇÃO DAS PRÁTICAS ESCOLARES
Arnaldo Antunes interpela-me com suas palavras. Sinto-me
convidada a pensar sobre o que somos capazes de ver/produzir com as
lentes que usamos cotidianamente nos espaços onde circulamos e
intervimos, nas trocas com os outros e conosco mesmos. Objeto
transparente, me deixe ver qualquer coisa que eu invente: a composição
remete-me outra vez à noção de invenção, discutida no início do segundo
capítulo, que resgato aqui, na medida em que passo a olhar para as
invenções/fabricações dos “alunos-problema” no espaço escolar onde realizo
este estudo. Pretendo ir além das lentes, circular pelas práticas que
constituem os olhares daqueles/daquelas que medem, avaliam,
diagnosticam, intervêm, produzem... Mudou a minha lente, De repente ficou
tudo diferente, Mudou a sua lente, Você estranha o que vê a sua frente
pretendo aqui realizar esse movimento de estranhamento com o habitual,
com o naturalizado, ao olhar as práticas enquanto ferramentas de invenção,
de produção, de criação... A lente não sente, Sente quem está detrás da
lente... Eu prosseguiria: “e como sente quem está em frente à lente?”.
Nesta etapa do trabalho, proponho-me a empreender algumas
análises, partindo do que experimentei/vi/ouvi/senti como pesquisadora na
escola onde realizei a pesquisa, estabelecendo articulações com os
pressupostos teóricos que me dão sustentação neste estudo. Recorto e
seleciono, então, do meu Diário de Campo, fragmentos que me permitam
discutir alguns dos elementos do cotidiano escolar que, ao articularem-se,
constituem determinados alunos como “problemas”.
Organizo esta etapa do estudo em dois grandes blocos: no
primeiro, discuto a escola e suas turmas de 5
a
série, ambas tomadas
enquanto “problemas”. Olho para as práticas cotidianas da instituição
90
escolar e para os movimentos que realiza, as alianças que procura
estabelecer no sentido de dar conta de sua grande tarefa: normalizar. No
segundo, volto meu olhar de maneira mais específica para as “verdades”
produzidas em torno de cinco alunos da turma 5A, considerada como a
“turma mais problemática da escola”, buscando problematizar os efeitos
dessas construções discursivas em suas vidas e na constituição de suas
subjetividades.
A ESCOLA E SEUS GRANDES “PROBLEMAS”...
Ao entrar em contato com a SMEC do município e apresentar as
questões norteadoras deste estudo, fui informada a respeito de uma escola
da rede municipal que apresentava um alto índice de encaminhamentos de
alunos para atendimento psicológico. Um e-mail enviado pela direção dessa
escola solicitava que a SMEC resolvesse, com urgência, o encaminhamento
de alunos para acompanhamento psicológico: 25 alunos com “problemas
mais graves” e pelo menos 20 alunos a serem encaminhados posteriormente.
Essa carta sugeriu-me uma interrogação: como é possível determinar que 20
alunos deverão ser encaminhados para acompanhamento psicológico dentro
de um ou dois meses de aula?
O primeiro contato com a escola aconteceu em meados de abril,
tendo sido apontada, pela SMEC, a Escola Amanhecer como o local onde a
pesquisa deveria acontecer. Nas “vozes” da SMEC, essa era uma “escola-
problema”, na medida em que comportava tantos alunos também tomados
como tal. Minha interrogação direcionava-se para o entendimento de quais
elementos possibilitavam que, logo no início do ano letivo, tais alunos
fossem considerados como “necessitados” de atendimento psicológico. O que
era observado, avaliado, articulado como justificativa para isso?
O “problema” dos pertencimentos
Inserida no espaço da pesquisa, rapidamente entro em contato
com alguns dos modos pelos quais a Escola Amanhecer é
91
inventada/narrada. No primeiro dia em que vou até lá, a diretora Carina e a
supervisora pedagógica Eduarda contam que:
(...) a escola é uma escola problemática pelo fato de atender alunos de todos os bairros da
cidade (...)
.
Falam de experiências anteriores em escolas que atendiam alunos de
apenas um bairro, dizendo que era bem mais tranqüilo, que todos se conheciam e que,
por isso, quase não havia conflitos. (...) Diz a diretora: recebemos aqui alunos que vêm
para a escola trazidos pelos pais em carros importados, alunos do centro, filhos de
empresários. O próprio bairro aqui é um bairro repleto de casas chiques. Mas também
recebemos aqui alunos que vêm do Bairro XXX, que é muito pobre, as crianças m sujas
para a escola, vivem muitas delas em famílias desestruturadas, os pais se matam
trabalhando e não têm tempo para elas. Essas crianças normalmente nãom para a escola
por interesses intelectuais, não vêm para aprender: elas não têm o menor interesse, por
exemplo, para estudar a história dos Gregos, elas não m estímulo em casa para isso.
Eduarda complementa a fala da diretora: o problema maior é que muito atrito em
função dessas diferenças de vida. Uns tem ciúmes dos outros, outros têm nojo de uns...
a formação de panelinhas; os meninos dos bairros mais pobres formam tipo “gangues”,
preparam brigas com os meninos do centro e com outras “gangues” de outros bairros. E nós
ficamos no meio disso. Toda semana tem uma briga de corpo, mesmo, aqui na frente do
portão da escola ou dentro dos ônibus que fazem o transporte escolar. (Diário de Campo,
p.7-8).
Posteriormente, em entrevista realizada com a diretora, esta refere:
C: E daí o que ocorre, ocorre que o fato da posição geográfica acaba favorecendo que vários
alunos de outros bairros se insiram aqui e haja, de certa forma, entre os alunos, um grande
choque social, ideológico e econômico. E também tem essa questão, de que, quando o aluno
repete pela segunda vez a mesma série, logo se pensa: Vamos para o Bairro Y
26
! E daí acaba
a gente assim, concentrando muitas dessas situações, tendo que dar conta disso. E que
nem sempre é fácil, muito pelo contrário, a maioria das vezes é difícil... (Diário de Campo, p.
30-31).
Esses fragmentos possibilitam uma aproximação com as formas
pelas quais as noções de multiplicidade cultural e diferença(s) o recebidas
nesse espaço
27
. Quando falo em multiplicidade cultural, refiro-me aos modos
26
É, neste momento, citado o nome do Bairro onde localiza-se a escola pesquisada.
27
Entendo que um olhar para o contexto onde a escola está inserida possibilita
compreender algumas das lógicas que atravessam a vida cotidiana nessa comunidade. O
município é um dos maiores exportadores de calçados do país, tendo, segundo informações
oficiais, uma das maiores rendas per capita do Estado. A cidade gira em torno das
indústrias calçadistas, e a população, em sua grande maioria, divide-se em grandes
empresários, comerciantes, funcionários públicos e trabalhadores das indústrias. Estes
últimos, em sua esmagadora maioria, provêm de famílias vindas da Região das Missões, do
Alto Uruguai e da Região Noroeste do RS e de Santa Catarina, da Região Oeste daquele
estado. Essas informações são conhecimentos meus, são vivências minhas, por também eu
ser migrante, ser originária da região das Missões e ter me deslocado da minha região de
origem para esta que agora descrevo, em função das maiores possibilidades de trabalho. São
esses conhecimentos que me permitem narrar o que, de agora em diante, narro. Essa região
são de economia basicamente agropecuária, onde o cultivo da terra e a criação de animais
não representam uma renda mensal garantida. Com a perspectiva de ter um salário e a
carteira de trabalho assinada, famílias inteiras se deslocam para o Vale dos Sinos e Serra
92
de ser (provisoriamente) e de estar no mundo, às diferentes possibilidades de
experimentar e vivenciar as coisas do mundo. Modos esses que são
múltiplos, porém categorizados em blocos a partir de como interpretamos o
que conseguimos enxergar através/atrás das lentes que usamos em
diferentes momentos das nossas vidas. Ao falar em diferença(s), resgato a
discussão de Silva (2003), em que ele refere a impossibilidade de falarmos da
diferença sem que estabeleçamos conexões com a questão da identidade,
que “identidade e diferença estão em uma relação de estreita dependência
(...) são, pois, inseparáveis” (p. 74-75). Para o autor:
...identidade e diferença partilham de uma importante característica:
elas são o resultado de atos de criação lingüística. Dizer que são o
resultado de atos de criação significa dizer que não são “elementos”
da natureza, que não são essências, que não são coisas que estejam
simplesmente aí, à espera de serem reveladas ou descobertas,
respeitadas ou toleradas. A identidade e a diferença m que ser
ativamente produzidas. Elas não são criaturas de um mundo natural
ou de um mundo transcendental, mas do mundo cultural e social.
Somos nós que as fabricamos, no contexto de relações culturais e
sociais. A identidade e a diferença são criações sociais e culturais
(SILVA, 2003, p. 76).
Gaúcha, após venderem suas propriedades rurais, em busca de trabalho. O primeiro
problema que enfrentam é a falta de habitação, a impossibilidade de comprar uma casa em
função do alto preço imobiliário que encontram na região. Como saída, muitos alugam uma
única casa e dividem o aluguel (que também é altíssimo) entre duas ou três famílias. Para as
empresas da região, a vinda desses migrantes é algo muito vantajoso, pois são pessoas que
vêm com muita disposição para o trabalho e não exigem tanto em relação a salário,
recebendo pagamentos quinzenais, o que é algo considerado muito bom. Outra vantagem é
justamente imobiliária. Há uma grande concentração de imóveis nas mãos de poucas
famílias, que são também os empregadores, os empresários da região. Então, ao pagarem o
salário aos funcionários, têm a garantia de que o receberão de volta na forma de aluguel,
aplicando o valor que lhes parece mais vantajoso. Nos pequenos municípios dessa região, os
grupos se dividem, de forma geral, em dois: os “naturais” e os “de fora”. Utilizo essa
terminologia por serem assim chamados: os “naturais” são aqueles nascidos nos municípios
da região, “proprietários” de sobrenomes que os identifiquem como tal; os “de fora” são
aqueles que passam a viver na região, vindos de outros lugares, como citei anteriormente.
Estes últimos são muito discriminados por vários fatores: pela cor, por não serem de origem
alemã (caso não o sejam), não serem naturais da região, terem baixa renda e não possuírem
casa própria. No comércio, muito receio, por parte dos comerciantes, de abrir crediário
para as pessoas que são “de fora”, além do fato de que o atendimento é péssimo para essas
pessoas que consomem porque o nível de consumo é também um dos fatores que pode fazê-
las se sentirem mais “pertencedoras” e não tão estrangeiras no local onde vivem e
trabalham. Com o passar do tempo, as famílias “de fora” que conseguem comprar um
terreno e construir, comprar um carro e ter recursos financeiros para participar dos grupos
sociais existentes nos municípios passam a ser consideradas pessoas de confiança, pessoas
trabalhadoras, organizadas, que merecem ser tratadas como tal. Mas sempre continuarão
sendo tratadas como “estrangeiras” de alguma forma como em épocas de eleição, em que
mesmo os estrangeiros bem-sucedidos não são bem aceitos pela comunidade “natural” como
candidatos, com a alegação de que é difícil saber o que um “de fora” pode fazer pelo
município...
93
Na medida em que mostra que identidade e diferença são
construções sociais, Silva (2003) aponta para o fato de que sua definição
está estreitamente conectada a relações de poder, não sendo isso um
processo inocente. Ao definirmos o que é e o que não é, estamos, segundo o
autor, demarcando fronteiras e classificando uns aos outros. Para isso,
estabelecemos determinadas normas
28
, elegemos “uma identidade específica
como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e
hierarquizadas” (p.83). Nesse sentido, devemos atentar para a existência de
binarismos que nós construímos, implicando a existência de hierarquias de
valor (bom/mau, saudável/doente; normal/anormal; feio/bonito...).
Classificar os indivíduos/grupos sociais em “nós” ou “eles”, como
diz
Silva (2003), é sinônimo de significá-los tomando por base as categorias
de valor que também construímos cotidianamente. Fixar uma determinada
norma é produzir a noção do que é desejável, natural, normal. É fixar um
modo ideal de ser.
No entanto, ao discutir o processo de produção da(s) identidade(s),
o autor alerta que este se entre dois movimentos: de um lado, estão
aqueles processos que tendem a fixar e a estabilizar a identidade; de outro,
os processos que tendem a subvertê-la e a desestabilizá-la” (SILVA, 2003,
p.84). Se, por um lado, uma certa tendência à fixação, ao mesmo tempo
isso se configura em algo da ordem do impossível em função de que “a
identidade está sempre escapando” (idem, ibidem).
Nos fragmentos de fala destacados, a “mistura” de indivíduos
oriundos de diferentes locais (centro, bairros) parece ser um fator produtor
dessa escola como “problemática”. Essa “mistura entre pobres” e ricos”,
“filhos de operários” e “filhos de empresários” é tomada como produtora de
“conflitos”, de “brigas”, de ciúmes”. Os “pobres” o narrados como os que
brigam com os meninos do centro, na medida em que se organizam em
“gangues”. É possível percebê-los como os indesejados, que desestabilizam o
que antes era bom e tranqüilo (quando da sua não-presença), perturbam,
28
Tratarei de discutir o conceito de norma posteriormente, neste mesmo capítulo, ao
analisar mais especificamente as práticas discursivas em torno dos alunos tomados como
“problemas”.
94
inquietam, incomodam. A “mistura” é rechaçada. Parece haver a idéia de que
a presença desses alunos “sujos”, provenientes dos bairros operários, que
vêm para essa escola, localizada nesse bairro repleto de casas chiques
29
,
bagunça com aquilo que estava em ordem.
Tais fragmentos remetem-me às discussões de Bauman (1998)
sobre a vontade de pureza, em que cada coisa estaria em seu devido lugar e
não em outro. O autor aponta a noção de sujeira como sendo o oposto da
noção de pureza:
O oposto da “pureza” o sujo, o imundo, os “agentes poluidores”
são as coisas “fora do lugar”. Não são as características intrínsecas
das coisas que as transformam em “sujas”, mas tão somente sua
localização e, mais precisamente, sua localização na ordem das
coisas idealizada pelos que procuram a pureza. As coisas que são
“sujas” num contexto podem tornar-se puras exatamente por serem
colocadas num outro lugar - e vice-versa (p.14).
Interrogo-me se não derivam justamente dessa busca de “ajustes
espaciais”, de ordenamento, de “limpeza”, as tentativas de transferência de
alunos para outras escolas, de outros bairros (um movimento de devolução,
quem sabe?).
Bauman (1998) mostra que desde sempre houve essa diferenciação
entre quem era “do lugar” e quem não era. Porém, segundo ele,
especialmente na Modernidade, “a preocupação com os estranhos
30
assumiu
um papel particularmente importante entre as muitas atividades abrangidas
no cuidado diário da pureza, da renovação de um mundo habitável e
organizado” (p.19), uma vez que organizar e limpar passaram a ser uma
tarefa artificial, buscando novos ordenamentos para as coisas do mundo,
ordenamentos que garantissem a produtividade.
Os excertos narrativos que ora discuto também apontam para um
movimento de estabelecer pertencimentos para esses alunos: alguns
29
Expressão possivelmente utilizada para marcar a inadequação desses indivíduos em
relação ao lugar que freqüentam.
30
Para Bauman (1998), o estranho é aquele que “despedaça a rocha sobre a qual repousa a
segurança da vida diária” (p.19), e cita Alfred Schütz (1967) que, ao discutir a noção de
estrangeiro, refere que este “torna-se essencialmente o homem que deve colocar em questão
quase tudo o que parece inquestionável para os membros do grupo abordado” (p.19). Na
situação dos alunos “indesejados”, parece ocorrer algo semelhante, pois as suas presenças
desestabilizam o que antes funcionava harmonicamente. A escola se incitada a buscar
novas ações, posicionamentos, modos de agir, em função da desestabilização
sentida/produzida pela presença desses “de fora”.
95
pertencem ao centro da cidade ou aos bairros “chiques”. Outros pertencem
aos bairros operários, pobres. Estes, segundo a direção, são sujos,
provenientes de famílias desestruturadas, nas quais os pais trabalham
muito, o pouca ou nenhuma importância à escolarização dos filhos, sendo
que os meninos vêm para a escola e ali formam “gangues”. Ora, pensando
sobre o termo gangue, busco ver no dicionário
31
os sentidos a ele atribuídos:
Gangue - bando criminoso organizado, quadrilha. Claramente, aparece a
conotação negativa (vinculada ao crime, ao risco, à periculosidade)
emprestada a esse grupo de alunos, proveniente dos bairros operários.
Ao que parece, nessas falas, o pertencimento desse grupo social
(tomado numa concepção homogênea) atua como um dos elementos de
enquadramento do indivíduo na condição de sujeito indesejado, perigoso,
problemático. Não é possível identificar, nesse fragmento de fala que aqui
utilizo, possibilidades de escape para esses sujeitos. Pertencer a esse grupo
social “gruda” o indivíduo numa identidade de risco, parecendo o haver
escapatórias para ele.
Bauman (2005), ao chamar a atenção para a importância de
nossas noções de pertencimento e identidade, como também para as
relações entre esses elementos sociais na constituição da identidade, refere
que:
Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade”
não tem a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida,
são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o
próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como
age e a determinação de se manter firme a tudo isso são fatores
cruciais tanto para o pertencimento” quanto para a “identidade”.
Em outras palavras, a idéia de “ter uma identidade” não vai ocorrer
às pessoas enquanto o “pertencimento continuar sendo o seu
destino, uma condição sem alternativa. Só começarão a ter essa idéia
na forma de uma tarefa a ser realizada, e realizada vezes e vezes sem
conta, e não de uma só tacada (p.17-18).
Entender o pertencimento de determinado grupo social como algo
definidor da identidade do indivíduo pode implicar um certo
“desinvestimento” nele e dele. Além disso, na medida em que a escola
31
ROCHA, Ruth. Minidicionário Ruth Rocha (Ilustrações Maria Luiza Ferguson). São Paulo:
Scipione, 1996.
96
interpreta esses alunos como tendo identidades estáticas, fixadas no seu
pertencimento, ela pode também não perceber suas capacidades de ação,
possibilidades cognitivas e produtivas. Não busco, com essa discussão, dizer
que a escola não exerce ações sobre essa clientela; ao contrário, as práticas
exercidas sobre tais alunos os “diferenciam”, sem serem vistas e
problematizadas enquanto implicadas nos processos constitutivos de
produção de subjetividades, as quais poderiam criar condições para outras
experiências na vida desses alunos.
A expressão utilizada pela pessoa entrevistada ao referir-se àquilo
que entende como brigas de gangues e nós ficamos no meio disso talvez
aponte para essa sensação de impossibilidade de ação da escola e de seus
profissionais.
O(s) “problema(s)” das famílias dos alunos
A diretora, descrevendo para mim a clientela da instituição, diz que
a escola recebe alguns filhos de empresários, que são trazidos pelos pais até
de carro importado, mas também recebemos aqui alunos que vêm do Bairro
XXX, que é muito pobre (...). Na continuidade da conversa, associa a idéia de
que os pobres o têm interesses intelectuais, pois não têm estímulo em casa
para isso. Novamente, aparece aqui a noção de um aluno padrão, ideal, a
partir do qual aqueles que se afastam o vistos como tendo menor valia ou
condições. Olha-se para o lugar, para o modo como esse aluno vive e para
sua família como definidores do seu modo de ser.
Fica evidente, nesse primeiro contato com a escola, o quanto a
noção de pobreza está associada à noção de desestruturação familiar e de
marginalidade. A noção de desestruturação familiar aparece nos relatos
longos sobre as histórias familiares dos “alunos-problema”, provenientes de
famílias pobres: mães que trabalham demais, casadas pela segunda ou
terceira vez, pais ausentes, alcoólatras, muitos filhos, mães prostitutas,
situações de suposto abandono. A situação agrava-se, segundo as
professoras, quando os pais não aparecem nunca na escola.
97
Diante desse modo de olhar presente na escola, questiono-me: que
investimentos são feitos, na prática educativa, em alunos interpretados como
desinteressados pelas questões intelectuais?
Em diversas falas relacionadas aos alunos pertencentes aos grupos
sociais empobrecidos, a questão do pertencimento imbricado com as
interpretações do modo de vida, dos comportamentos, da organização
familiar, parece definidora. Isso é possível perceber numa conversa que tive
com a professora Luciana, vice-diretora, enquanto eu pesquisava
documentos arquivados na escola. Trago aqui alguns dos seus
entendimentos sobre o aluno Guilherme, considerado um dos “problemas”
da escola:
(...) o aluno é de uma família assim... o tem uma formação normal como a nossa. A mãe
prefere fazer serão e almoçar na fábrica porque é mais barato, ao invés de vir até a escola
para conversar sobre o filho ou almoçar com este em casa. Tem um padrasto que é um
problema (Diário de Campo, p.17).
Certo dia, logo após conversar com a mãe de Wesley (também
“aluno-problema”), que havia sido chamada pela escola para falar sobre os
“problemas” do filho, a supervisora Eduarda referiu:
Eduarda:(...) no ato da matrícula, as famílias escondem todas as informações possíveis da
escola. Estas informações só podem ser sabidas posteriormente, quando os alunos começam
a mostrar através de seus atos inadequados ou de dificuldades na aprendizagem que as
coisas não vão bem em casa. são chamados os familiares para que a escola possa saber
mais informações sobre os alunos. A supervisora comenta então que seria de estranhar se
esse aluno fosse tranqüilo na escola..., pois, afinal de contas, a história familiar é muito
conturbada (Diário de Campo, p.23).
A frase que ponho em destaque reforça meu entendimento de que
não é para qualquer aluno que se olha; o é em torno de qualquer aluno
que se faz uma investigação de sua proveniência, de seu pertencimento.
Quando algum aluno desvia do que dele se espera, é nesse momento que se
buscam elementos de sua história familiar que expliquem e justifiquem seus
modos de posicionar-se na escola. Ou seja, o jeito de ser do aluno na escola
é efeito das práticas familiares, nunca das práticas escolares.
98
Na entrevista realizada com a diretora e a vice-diretora, ambas
retomam a argumentação daquilo que consideram ser problemas familiares
enquanto constituidores dos alunos como “problemas”:
L
32
: pra complementar, acho que a própria vivência em casa, ela afeta direto, essa
questão, assim, de ser tudo muito corrido, não se ter tempo pra nada, cada um come na
hora que quer, dorme, não tem mais essa vida familiar, os encontros, acho que está tudo
meio bagunçado, e isso acaba refletindo aqui...
C: Embora aqui seja uma cidade do interior, não tem mais aquela coisa, assim, de noite se
dorme, de manhã se levanta, se toma um café, se vai para a escola ou para o trabalho, de
meio dia todo mundo se reúne em casa, se almoça e depois se volta para o trabalho ou para
a escola, e de noite a família chega e se reúne de novo. Os horários de trabalho estão bem
diversos, e daí não tem essa rotina familiar. Daí, às vezes, os pais trabalham sabe-se até
que horas, sabe-se até que horas os filhos ficam sozinhos. Então, o pessoal está tentando
se encontrar nessas situações todas, e isso gera desconforto e alguns transtornos também...
A economia teve que fazer assim porque, enfim, as exigências de mercado... Tem firma que
trabalha madrugada adentro, que não pára, e daí ou eu tenho emprego e me sujeito a
trabalhar da meia-noite às oito da manhã ou eu não trabalho, e daí como é que fica a minha
família, como é que eu vou prover a minha família? Então, fica essa coisa da sobrevivência
se sobrepondo a essa coisa de dar uma boa estrutura familiar, sentar, conversar, dar
carinho, dar conselho, se preocupar se está fazendo o tema, se está vindo com o uniforme,
se está se alimentando, se está fazendo sua higiene corretamente e por aí vai...
A: Essa função da família, tu percebes como fundamental para o processo de escolarização
das crianças....
C: Eu te diria que ela é essencial, é essencial, que seja ativa e pró-ativa...
L: Acho que não necessariamente tenha que ser aquela família tradicional, pai, mãe e filhos,
mas acho que tem que ter uma boa base, a questão da educação que vem de berço, eu acho
que é fundamental... e é claro que essa base está bem alterada hoje, né...
C: A gente tem cada realidade aqui que não é fácil... (Diário de Campo, p.32)
Pertencer a uma família desse grupo social, tomado pela escola
como composto de operários, de pobres, torna-se sinônimo de pertencer a
uma família “desestruturada”. Nesse sentido, a suposição da existência
de uma estrutura familiar considerada adequada, normal como a nossa
(refere uma professora), em que a boa estrutura familiar é sinônimo de
sentar, conversar, dar carinho, dar conselho, se preocupar se está fazendo o
tema, se está vindo com o uniforme, se esse alimentando, se está fazendo
sua higiene corretamente e por aí vai... Essa “normalidade” no cotidiano
familiar seria responsável pela adequação dos alunos à escola. Se a
adequação esperada não ocorre, rapidamente convoca-se a família para,
num primeiro momento, investigar elementos do cotidiano e da história
familiar que justifiquem a inadequação dos alunos. Nesse processo de
32
Neste excerto, L é de Luciana, vice-diretora; C é de Carina, diretora e A é de Anelise,
pesquisadora.
99
individualização e fiscalização, por comparações, a família considerada
desajustada, alterada, desestruturada, anormal atua como referência do
sujeito anormal, desajustado, inadequado.
Ao discutir como, no decorrer dos processos históricos, se define
que um indivíduo é ou não psiquiatrizável, Foucault (2002a) mostra que, a
partir do século XIX, os psiquiatras passam a buscar marcas estruturais,
“estigmas permanentes que marcam estruturalmente o indivíduo” (p.379),
diferentemente do que ocorria antes, quando se buscavam eventos,
processos patológicos descontínuos, instintivos, para justificar a
psiquiatrização do indivíduo. Para o autor, está se substituindo uma
psiquiatria dos processos patológicos, que são instauradores de
descontinuidades, por uma psiquiatria do estado permanente, que garante
um estatuto definitivo aberrante” (idem, p.380).
Desse modo, passa-se a olhar para a biografia, para a história de
vida do indivíduo como tendo uma continuidade, e o que acontece depois, no
futuro, é o efeito do que acontece antes, no agora. Os dados biográficos são
de fundamental importância para o processo de psiquiatrização. A
determinação de alguém como um “problema” que deve ser “curado ou
corrigido” ocorre através da detecção daquilo que o barrou/comprometeu
seu desenvolvimento.
Para fazer tal detecção, é necessário investigar, esmiuçar, entrar
por todas as dobras, olhar todos os desvios, os ditos e não-ditos, os
imprevistos. Então, o movimento de chamar a família para a escola vai nesse
sentido: de olhar para esses detalhes buscando produzir justificativas para
aquilo que se compreende como “problema”. Ao falar sobre isso, a
supervisora comenta:
(...) quando a gente não sabe nada da história familiar do aluno, é muito difícil entender o
que se passa com ele, entender por que ele esapresentando problemas na escola. Porém,
quando se buscam mais informações, isso ajuda a compreender a realidade do aluno, a
entender, como no caso do Wesley, essa carência que ele tenta suprir na escola com as
professoras, fazendo tantas coisas para chamar a atenção (Diário de Campo, p.24).
Alguns alunos são vistos como seres carentes, seres em falta: falta
afeto, faltam limites, falta esforço, falta dedicação, falta família, falta... Faltas
que supostamente os impedem de completar seus desenvolvimentos. Tais
100
alunos são narrados, em função dessas supostas faltas, como imaturos,
infantis, “bebezinhos”... Para ilustrar, trago a fala de uma professora sobre
dois dos alunos tomados como “problemas”:
PC: Eu acho que o problema de muitos desses alunos é a questão da falta de afeto... Meu
Deus! O Wesley e o Guilherme são exemplos disso: eles querem o tempo todo a tua
atenção... O Ismael também, ele, se pode, fica o tempo todo te chamando, e isso esgota a
gente... Acho que só pode ser porque eles ainda não têm isso em casa, e se tem agora, talvez
tenha faltado muito esse cuidado para eles na infância. eles vêm parecendo uns
bebezinhos para a escola. São uns baita homens, têm corpo de homem, mas cabeça de
bebezinho. (Diário de Campo, p.47).
Para mostrar como a noção de sujeito com interrupções no seu
desenvolvimento, de sujeito em falta, passa a fazer parte da nosografia
psiquiátrica, Foucault (2002a) utiliza o caso de Charles Jouy, um sujeito
com características típicas de “o idiota da aldeia” (p.374): tem em torno de
40 anos; circula na sua comunidade rural, relacionando-se nela; realiza os
trabalhos que ninguém quer fazer e ganha uns trocados em função disso;
não permaneceu na escola porque lá não quiseram ficar com ele, como
também em nenhum outro lugar, que vagava pela rua, dormindo em
estábulos. É denunciado pelos pais de uma menina que o acusam de ter
(mais ou menos) abusado sexualmente da filha, na medida em que teria feito
com que a garota o masturbasse no mato. Em inquérito, psiquiatras são
chamados para avaliá-lo, e, por fim, decide-se pela sua internação definitiva.
Nesse caso:
O que é primeiro, o que é fundamental, o que é o núcleo do estado
em questão, é a insuficiência, é a falta, é a interrupção do
desenvolvimento (...) o princípio da conduta não é um exagero
intrínseco, é antes uma espécie de desequilíbrio funcional que faz
que a partir da ausência de uma inibição, ou da ausência de um
controle, ou da ausência das instâncias superiores que asseguram a
instauração, a dominação e a sujeição das instâncias inferiores
essas instâncias inferiores vão se desenvolver por conta própria. (...).
Não há doença intrínseca ao instinto, há antes uma espécie de
desequilíbrio funcional do conjunto, uma espécie de dispositivo ruim
nas estruturas, que faz que o instinto, ou certo número de instintos,
se ponha a funcionar “normalmente”, de acordo com seu regime
próprio, mas “anormalmente” no sentido de que esse regime próprio
não é controlado por instâncias que deveriam precisamente assumi-
los, situá-los e delimitar sua ação (FOUCAULT, 2002 , p.381).
101
Ao discutir tais elementos, que apontam para o diagnóstico da
infantilização do sujeito no caso em questão, Foucault (2002
a) refere:
... não é um processo que veio se conectar ou se enxertar nele, ou
atravessar seu organismo ou seu comportamento; é uma interrupção
de desenvolvimento, isto é, simplesmente, sua infantilidade. Infância
do comportamento e infância da inteligência, os psiquiatras não
param de dizer: “A melhor comparação de seu modo de agir é com o
de uma criança que fica contente quando a elogiam” (p.383).
A situação familiar “conturbada, desajustada” parece ter produzido
um indivíduo infantilizado que se encontra ainda numa fase da vida em que
é carente de carinho, de atenção, de elogios, de afeto e que, por isso, não
evoluiu a ponto de ter condições de adaptar-se a um determinado espaço
e/ou adquirir conhecimentos. Aparece aqui a noção de um desenvolvimento
psicológico comum a todos os indivíduos atuando como norma, um
desenvolvimento que pode em alguns casos ser mais lento e em outros,
interrompido, consistindo num processo que afeta a vida psicológica e
orgânica dos indivíduos (FONSECA, 2002).
Segundo Foucault (2002a), desde o início do século XIX, à medida
que se imobiliza a vida em torno da infância e que se parte da noção de que
o indivíduo traz em si traços da sua patologia, a infância torna-se uma peça
essencial para a psiquiatria. Para ele:
É na medida mesma em que um adulto se parececom o que era
quando era criança, é na medida em que se poderá estabelecer uma
continuidade infância-idade adulta, isto é, na medida em que se
poderá encontrar no ato de hoje a maldade de outrora, é nessa
medida que será efetivamente possível detectar esse estado, com
seus estigmas, que é a condição da psiquiatrização (p.385).
Nesse sentido, para que um indivíduo seja psiquiatrizável, basta
que tenha traços de infantilidade, sendo submetidas ao exame psiquiátrico
“todas as condutas da criança, pelo menos na medida em que são capazes
de fixar, de bloquear, de deter a conduta do adulto, e se reproduzir nela”
(FOUCAULT, 2002a, p.388). Por outro lado, tornam-se objeto de exame todas
as condutas do adulto que “podem ser rebatidas ou transportadas para as
condutas da criança” (idem, ibidem).
102
Dessa maneira, para o filósofo, o que pode transformar um
indivíduo num “anormal”? Foucault interroga-se: que corpo é esse que está
por detrás do corpo anormal? Ao que responde: “é o corpo dos pais, é o corpo
dos ancestrais, é o corpo da família, é o corpo da hereditariedade” (2002a,
p.399).
Segundo o autor, há uma metassomatização (p.399), na medida em
que qualquer desvio na conduta familiar é capaz de gerar desvios na conduta
do indivíduo e das gerações futuras. Refere inclusive que:
A embriaguez, por exemplo, vai provocar na descendência qualquer
outra forma de desvio de comportamento, seja o alcoolismo, claro,
seja uma doença como a tuberculose, seja uma doença mental ou
mesmo um comportamento delinqüente. (...) Bastará encontrar em
qualquer ponto da rede da hereditariedade um elemento desviante
para poder explicar, a partir daí, a emergência de um estado no
indivíduo descendente (p.399-400).
As turmas de quinta série como “problemáticas”
Outro elemento que passou a ser definidor deste estudo foi o modo
como as turmas de quinta rie eram vistas: “turmas problemáticas”. A
intensa queixa, nesse sentido, manifestada pelas representantes “oficiais” da
escola (a diretora, a vice e a supervisora pedagógica), apareceu
permanentemente em suas falas e nas práticas cotidianas. Em meu primeiro
contato com a escola,
contam-me que a turma que percebem como sendo a
que tem maior número de alunos “problemáticos” é a 5A. Questiono se elas
saberiam dizer o porquê disso.
A diretora Carina refere que:
C: (...) Muitos desses alunos são novos na escola. No Bairro XXX, por exemplo, a escola lá só
tem até a quarta série. Às vezes, as nossas colegas não agüentam mais alguns alunos,
alguns até reprovaram uma meia dúzia de vezes, então, quando chegam na quarta, eles
são aprovados e vêm estudar aqui. Aqui vira um problema: por um lado, eles estão com 10,
11, 12, 13 anos, estão naquela idade em que não são nem crianças mais e nem adultos. Não
são nada. Estão numa fase complicada da vida, essas coisas de adolescência, como tu deves
bem saber. Então, estão com os hormônios a mil (Diário de Campo, p.8).
Durante uma entrevista realizada com a diretora, quando interrogo
sobre essas questões, novamente as queixas em torno das quintas séries são
destacadas:
103
C: (..) um dos fatores também é a quinta série, que é aquela fase transitória, onde os alunos
estão com os hormônios em ebulição, e daí ocorrem todos aqueles fatores que são comuns e
conhecidos como a “Síndrome da Série”, e por isso a gente te pediu uma ajuda especial
nesse grupo para tentar levantar alguns dados, fazer algumas trocas conosco pra ver se a
gente consegue entender um pouquinho melhor para intervir de uma maneira mais eficaz.
A: Quando tu falas assim, nessa coisa da “Síndrome da Série”, isso é apenas em relação
ao fato de que eles estão vivendo uma idade que a gente chama de adolescência ou será que
tem outros fatores também?
C: Um dos fatores é esse, com certeza. E essa questão, por exemplo, assim, vem um de um
lado que é de uma realidade e outro de outra, que tem muitas realidades aqui. Eles, entre
eles, não conseguem elaborar bem isso. Se o cara vem com uma roupa diferente, seja pra
mais ou pra menos, ele é motivo de ser, de certa forma, rotulado, independente de isso
ser pra bom ou para um lado negativo (Diário de Campo, p.31).
Os argumentos utilizados para justificar os “problemas” das
quintas séries são a faixa etária (a adolescência, a sexualidade, os problemas
hormonais...), as reprovações anteriores e os grupos sociais bastante
diferenciados de onde esses alunos são provenientes. Porém, no decorrer do
estudo, pouco foi referido em torno da questão das reprovações, ficando
como justificativas mais enfatizadas a adolescência e a proveniência
33
dos
alunos.
Olhar para a faixa etária que se convencionou nomear de
adolescência como algo problemático é sinônimo de dizer que o problema
está no aluno, no seu tempo de vida, na sua idade, no seu modo de
posicionar-se em relação a si mesmo. O conceito de síndrome
34
, que aparece
na fala da diretora, sugere algo que atinge ou que pode estar presente em
33
Foucault (2003a), em seu texto “Nietzsche, a Genealogia e a História”, utiliza o conceito de
proveniência para referir-se ao pertencimento do sujeito. Diz: Herkunft: é o tronco de uma
raça, é a proveniência; é o antigo pertencimento a um grupo do sangue, da tradição, de
ligação entre aqueles da mesma altura ou da mesma baixeza. Freqüentemente a análise da
Herkunft põe em jogo a ra, ou o tipo social (...) Perigosa herança, esta que nos é
transmitida por uma tal proveniência (...) Mas não nos enganemos; essa herança não é uma
aquisição, um bem que se acumula e se solidifica: é antes um conjunto de falhas, de
fissuras, de camadas heterogêneas que a tornam instável, e, do interior ou de baixo,
ameaçam o frágil herdeiro...” (p.20-21). Tomo o conceito de proveniência, neste estudo, com
a intenção de problematizá-lo, buscando justamente, apontar as fissuras, as falhas, as
instabilidades apresentadas pelo movimento de olhar para determinados elementos, que
atribuímos à história do indivíduo, tentando justificar o que ele é ou não na atualidade.
34
Sobre a assim nomeada “Síndrome da Quinta Série”, encontrei algumas produções
acadêmicas que apontam para esse conceito como circulante em determinado campo
discursivo. Entre essas produções: CARRER, Janete. Síndrome da série: vínculo e
aprendizagem. Goiás: Revista Psicopedagogia, v.14, 33, setembro 1993, p.17-19. Nesse
texto, a autora não problematiza o conceito de síndrome, limitando-se a realizar um estudo
a partir de autores dos campos psi e pedagógico sobre as mudanças e necessidades de
alunos de quinta série.
104
todos aqueles que cursam a 5
a
série. Não se trata de uma “doença” de um ou
outro indivíduo (embora alguns apareçam como mais intensamente
“problemáticos”), mas algo que diz respeito a um grupo de indivíduos de uma
determinada faixa etária.
Ao discutir a constituição de uma nova nosografia psiquiátrica em
fins do século XIX, Foucault (2002a) mostra três aspectos das práticas que
esquematizaram essas novas construções teóricas. Uma delas diz respeito
justamente à noção de síndrome. Nesse movimento da psiquiatria, o que se
faz, primeiramente, segundo o autor é:
...organizar e descrever, não como sintomas de uma doença, mas
simplesmente como síndromes de certo modo válidas em si, como
síndromes de anomalias, como síndromes anormais, toda uma rie
de condutas aberrantes, desviantes, etc. Assiste-se assim, nesta
segunda metade do século XIX, ao que poderíamos chamar de
consolidação das excentricidades em síndromes bem especificadas,
autônomas e reconhecíveis. É assim que a paisagem da psiquiatria
vai ser animada por toda uma gente que é, para ela, nesse momento,
totalmente nova: a população dessas pessoas que não apresentam
sintomas de uma doença, mas síndromes em si mesmas anormais,
excentricidades consolidadas em anomalias. (...) Ora, o ponto em que
eu queria insistir é que tudo isso não é, como vocês estão vendo,
sintoma de doença: é uma síndrome, isto é, uma configuração
parcial e estável que se refere a um estado geral de anomalia (p.395-
396).
Associada à idéia de síndrome da quinta série, poderíamos dizer
que existe a noção de síndrome da adolescência, sendo essa passagem da
vida dos indivíduos nomeada como “problemática”. O “problema”, nesse
caso, deriva do fato de que eles estão com 10, 11, 12, 13 anos, estão naquela
idade em que o são nem crianças mais e nem adultos. Não são nada. Estão
numa fase complicada da vida, essas coisas de adolescência... Quando o
indivíduo não se enquadra nem como criança, nem como adulto, cria-se a
categoria de adolescente, que passa a significar esse momento tomado como
“problemático” na vida do sujeito e que só vai “se resolver” quando ele se
tornar adulto.
À noção de que os alunos de 5
a
série estão na adolescência, sendo
esta entendida como “um estado geral de anomalia”, acrescentam-se ainda
as investigações sobre sua proveniência, sua origem familiar, seu
105
desenvolvimento, especialmente naqueles casos em que o aluno apresenta
algum desvio em relação ao que se espera dele.
A partir do que se observa, buscam-se identificar elementos de sua
história de vida, tomados como produtores de um estado a partir do qual
pode aparecer “qualquer coisa, a qualquer momento e em qualquer ordem
(...) tudo o que pode ser patológico ou desviante, no comportamento ou no
corpo” (FOUCAULT, 2002a, p.397). Para o autor:
O estado é uma espécie de fundo causal permanente, a partir do
qual podem se desenvolver certo número de processos, certo número
de episódios que, estes sim, serão precisamente a doença. Em outras
palavras, o estado é a base anormal a partir da qual as doenças se
tornam possíveis (idem, p.397).
Tomar também a proveniência como definidora desses alunos e
dessas turmas como “problemas”, mais uma vez, implica atribuir e fixar o
modo de ser do aluno e suas possibilidades na família e seus modos de
organização/relação nas condições sócio-econômicas singulares de cada um,
nos problemas ligados às mudanças na “ordem” social e no mundo do
trabalho, sem que se olhe e pense a respeito do fazer cotidiano da escola.
Nesses movimentos com a finalidade de justificar o posicionamento
dessas turmas como “problemáticas”, o se coloca em questão, também,
um dado que considero significativo: as grandes mudanças que a escola
fabrica na vida dos alunos que passam a freqüentar a 5
a
série.
Até a 4
a
série, nessa rede municipal de ensino (bem como na
grande maioria das redes), os alunos convivem com, no máximo, três
docentes durante o ano letivo: o/a professor/a titular da turma, o/a
professor/a de Educação sica (duas vezes por semana) e o/a professor/a
de Língua Estrangeira (uma vez por semana). Ao serem aprovados para
freqüentar a 5
a
série, os alunos passam a conviver semanalmente com dez
professores, um para cada disciplina. Diariamente, há duas ou até três
trocas de professor/a. Vários cadernos, livros, horários, disciplinas; vários
professores, estabelecendo modos diferentes de se relacionar, exigindo
tarefas de formas distintas, avaliando segundo critérios variados que devem
ser assimilados, aprendidos, aos quais os alunos devem se adequar.
106
Todas essas significativas alterações não o postas em discussão.
Parece ser natural que as coisas funcionem assim nas quintas séries. Não se
leva em conta nem a possibilidade de que os alunos necessitem de tempos
diferenciados para se habituarem a essas mudanças. Tal adequação parece
que está ocorrendo, segundo a fala da professora de Ciências durante uma
reunião dos professores dessas turmas:
PC refere: as turmas das quintas, para mim, melhoraram um pouco...(Diário de Campo, 28
de abril de 2005, p.46).
Ora, em abril, PC, bem como mais um ou dois professores,
percebem que as turmas melhoraram um pouco, porém o se problematiza
a questão em termos de ações das práticas escolares, do processo de
habituação aos regramentos, aos disciplinamentos, mesmo porque o se
olha para isso. Dessa forma, entende-se que os alunos melhoraram.
Novamente, olha-se para o aluno, e não se pensa que possa ter ocorrido o
funcionamento de uma engrenagem em que diversas ações produzem
“mudança” nos posicionamentos dos alunos.
Esse modo de olhar, centrado no sujeito e não nas práticas,
posiciona essas turmas como “problemáticas” no âmbito escolar. Cria-se,
então, um momento de reunião, exclusivo para tratar dos “problemas” das
quintas séries, conforme já referi anteriormente. Trata-se de um espaço onde
se cruzam, se correlacionam e se embatem narrativas sobre os alunos tidos
como “problemas”. Entendo esse espaço como integrando as demais ações
implicadas na constituição e no posicionamento de sujeito, uma vez que ali
são narrados, descritos, definidos seus lugares e possibilidades. Como eram
narradas essas turmas nessas reuniões?
Trago a seguir alguns excertos de meu Diário de Campo que
apresentam alguns modos pelos quais essas turmas eram narradas, naquele
momento, pelos seus professores, bem como por representantes da direção
que participavam das reuniões:
PH: Olha, eu vou ser bem sincero, às vezes não sei o que fazer, porque às vezes passo uma
aula inteira só pedindo silêncio, e ninguém ouve. Então eu vi que, com alguns,
funciona na base da ameaça e, com alguns, nem isso funciona mais. Fico pensando o que a
gente vai fazer com esses alunos até o final do ano, se eles nem sabem para que estão aqui,
107
não querem nada com nada, não copiam nada....(Diário de Campo, p. 45, Reunião de 14 de
abril de 2005).
Eduarda: Os alunos da tarde são muito inquietos, têm que ficar se cutucando o tempo todo.
Os da manhã são bem diferentes... eu fico com a cara no chão quando passo no pátio de
tarde e vejo as brincadeiras deles. Não sei se vocês viram, mas essa turminha ali do
Guilherme, do Wesley, do Alex, eles têm um jogo que chamam de jogo da moeda. E eles
jogam aquela moeda com força para e para cá, batem com aquilo nos dedos. Cada pouco
tem um com os dedos sangrando... eu fico muito apavorada, até tento falar com eles para
acharem outra brincadeira menos violenta, mas é o que eles gostam de fazer. Mas eu acho
um horror, porque isso é muito grave, essas brincadeiras tão agressivas que os adolescentes
hoje querem brincar.... (Diário de Campo, p.46, Reunião de 28 de abril de 2005).
Eduarda: Isso que tu estás vendo, profe, é muito importante, porque os alunos das quintas
são mais imaturos que os outros. Eles precisam muito desse afeto. Os alunos da 5A muito
mais ainda... Esses são muito mais imaturos que os outros... eles precisam muito dessa
atenção e afeto das professoras. (Diário de Campo, p.46, Reunião de 28 de abril de 2005).
Como é possível perceber a partir desses excertos, os alunos das
turmas de 5
a
série (que são chamados por Eduarda de “alunos da tarde”) são
descritos como aqueles que conversam demais, sendo desinteressados,
bagunceiros, inquietos, agressivos, brincam de coisas violentas, imaturos,
carentes de afeto (em especial, os da turma pesquisada, a 5A). Tal descrição
é possível de ocorrer na medida em que tais comportamentos se chocam
com aquilo que se espera desses alunos. É somente em função da existência
de uma norma que rege como deve ser o posicionamento desses sujeitos na
escola que é possível perceber como esses alunos não são como deveriam
ser.
Nas discussões que empreende sobre a questão da norma,
Canguilhem (2000) refere:
Uma norma, uma regra, é aquilo que serve para retificar, pôr de pé,
endireitar, “normar”, normalizar, é impor uma exigência a uma
existência, a um dado, cuja variedade e disparidade se apresentam,
em relação à exigência, como um indeterminado hostil, mais ainda
do que estranho (p.211).
Para o autor, o binarismo normal/anormal é da ordem de uma
relação de inversão e polaridade. O normal encontra-se no pólo positivo,
aceito, querido. O anormal, no pólo oposto: é o negativo, o o-aceito, o que
queremos ver longe de nós. O autor refere que “o oposto do preferível, em
108
determinado campo de avaliação, não é o indiferente e sim aquilo que é
repelente ou, mais exatamente, repelido, detestável” (idem, p.214).
A existência de uma norma que pretende estabelecer como o
sujeito deve ser e como deve viver em seu meio social pode ser visualizada
sob dois aspectos: como regra de conduta, opondo-se à desordem e à
irregularidade, e como regularidade funcional, opondo-se à doença e à
patologia (VEIGA-NETO, 2001a).
Ao discutir os efeitos produzidos pela norma, Veiga-Neto diz que:
...a norma, ao mesmo tempo que permite tirar, da exterioridade
selvagem, os perigosos, os desconhecidos, os bizarros capturando-
os e tornando-os inteligíveis, familiares, acessíveis, controláveis -, ela
permite enquadrá-los a uma distância segura a ponto que eles não
se incorporem ao mesmo. Isso significa dizer que, ao fazer de um
desconhecido um conhecido anormal, a norma faz desse anormal
mais um caso seu. Dessa forma, também o anormal esna norma,
está sob a norma, ao seu abrigo. O anormal é mais um caso, sempre
previsto na norma. Ainda que o anormal se oponha ao normal,
ambos estão na norma. É também isso que faz dela um operador tão
central para o governo dos outros; ninguém escapa dela” (2001a,
p.115-116).
Nos encontros realizados, outro assunto muito discutido é a
questão do espelho de classe, no qual o grupo docente busca encontrar uma
forma adequada para posicionar os lugares dos alunos em sala de aula, de
modo que produzam mais e baguncem menos. Quando PA apresenta outra
estratégia de espelho de classe, PM diz: hoje eu já fiz essa arrumação na
turma e funcionou...
(Diário de Campo, p.46, Reunião de 28 de abril de 2005).
O “grupo de desabafo”, então, não funcionava apenas como espaço de
narração, mas produzia estratégias que permitissem uma melhor adequação
dessas turmas ao que delas de se esperava. Em outras palavras,
planejavam-se ações que permitissem vigiar, distribuir e controlar os
comportamentos dos alunos com a finalidade de um “melhor” governo desses
alunos, buscando trazê-los o mais próximo possível para o centro da norma.
Posicionando-se como terríveis, rebeldes...
109
O movimento dos professores não passou despercebido aos alunos,
muito menos deixou de produzir seus efeitos no cotidiano escolar. O simples
fato de haver uma reunião específica para tratar dos “problemas” das quintas
séries demarcava essa posição de sujeito construída para/por esses alunos.
A aceitação e a co-construção ativa dessas posições de sujeito
pelos próprios alunos aparece em suas falas e seus modos de posicionarem-
se no espaço escolar. No momento de meu primeiro contato com a turma,
quando explico
que quero conhecer uma turma de 5
a
rie, ouço algumas
vozes de alunos dizendo: a 5
a
é xarope! Meu Deus, coitada! Estudar a 5
a
série! (Diário de Campo, p.77, 16 de junho de 2005). Isso leva-me a perceber
como os próprios alunos se enxergam. Pergunto-me: como tal auto-
representação foi construída?
Quando PP propõe aos alunos que escrevam uma redação sobre a
adolescência, tendo por base um texto que trabalharam em sala de aula
sobre o assunto, um dos alunos escreve:
Nos dias de hoje a rebeldia dos adolescentes esmuito presente, existe muita revolta com
os pais, irmãos, amigos e parentes. O adolescente se torna uma pessoa muito teimosa
(Diário de Campo, p. 78, fragmento de redação de aluno sobre a adolescência).
Esse fragmento sinaliza uma subjetivação a partir dos discursos
sobre a adolescência como rebelde, teimosa, problemática, em crise, na
medida em que o(s) aluno(s) passa(m) a se entender também desse modo.
Em outro momento, numa aula que observei, percebi os alunos
com claras atitudes provocativas frente ao PH, que, muito nervoso, alterava
facilmente a voz para falar com a turma, reclamando dos comportamentos
dos alunos. Em dado momento, PH diz para mim: eles estão assim
estressados, deve ser porque é sexta-feira (Diário de Campo, p. 92, 17 de
junho de 2005).
Outro exemplo é apresentado pelo seguinte fragmento, retratando
uma cena que ocorre nessa mesma aula:
A aluna Tainá caminha até onde estou sentada, quer saber se pode me chamar de Ane.
Digo-lhe que sim, que pode me chamar de Ane. Fala: acho que tu deves ter te apavorado
com a turma. Pergunto-lhe por que teve essa idéia. Diz então que porque a turma é
terrível. Não falo das outras, porque também sou terrível. Pergunto-lhe por que acha que a
110
turma é terrível. Diz que todos os professores falam que essa é a pior turma da escola.
Pergunto-lhe: o que você acha disso? A garota diz: Acho muito ruim, é como se a gente
fosse os piores da escola.... Nesse momento, PH interrompe nossa conversa, pede que a
aluna vá se sentar para fazer seu trabalho (Diário de Campo, p. 94, 17 de junho de 2005).
As falas dos alunos parecem traduzir seus modos de verem a si
mesmos como terríveis, xaropes, rebeldes, teimosos, piores da escola. Os
termos que aparecem, nesse momento, o iguais aos que ouvi nas falas da
direção e dos professores nas reuniões e em outros momentos, ao falarem
desses alunos. Muito raramente, ao falarem sobre si mesmos, os alunos
percebem-se como interessados em aprender, dedicados, produtivos,
comportados, obedientes ou outras categorias que poderiam ser utilizadas
para descrever um “bom aluno” nos parâmetros dessa escola.
Em observação posterior, em agosto de 2005, ocorre que o aluno
Guilherme chega alguns minutos atrasado na sala de aula, pois havia
“espichado” o recreio. PM pede-lhe que vá à Secretaria buscar autorização de
entrada na sala de aula, que é regra da escola que isso funcione desse
modo. Quando Guilherme retorna para a sala, está com uma cara de
contrariado, entrega a autorização para PM, batendo sobre a classe desta.
PM pede-lhe que se sente “com postura” e vire o boné para trás. Guilherme
senta-se quase deitado na cadeira, põe o boné para a frente, sobre os olhos,
e fica mexendo na cortina (Diário de Campo, p.146, 05 de agosto de 2005),
como se PM nem tivesse falado com ele. Uma atitude claramente
provocativa...
Esses elementos que trago das observações que realizei remetem-
me a Foucault (2004), quando este realiza a discussão em torno da
constituição do sujeito dando-se de forma ativa, mostrando que “o doente
mental se constitui como louco em relação e diante daquele que o declara
louco” (p.275). Diz o autor:
(...) se agora me interesso de fato pela maneira com a qual o sujeito
se constitui de uma maneira ativa, através das práticas de si, essas
práticas não são, entretanto, alguma coisa que o próprio indivíduo
invente. São esquemas que ele encontra em sua cultura e que lhe
são propostos, sugeridos, impostos por sua cultura, sua sociedade e
seu grupo social (FOUCAULT, 2004, p.276).
111
Nesse momento, o autor aponta para o fato de que é possível
haver relação de poder se houver possibilidade de resistência, se houver
liberdade que garanta esse espaço de resistência. Ou seja, quando o aluno
“sofre” a ação disciplinar da PM, ele não ocupa uma condição de
passividade, ele posiciona-se ativamente, constituindo-se.
Assim, ao mesmo tempo em que se movimentam resistindo às
regras escolares diante dos modos como os professores os narram, parece
que os alunos se assumem e se posicionam como rebeldes, teimosos,
desobedientes. Tal observação produz em mim questionamentos: quais as
possibilidades de esses alunos se posicionarem de outros modos ou de
experimentarem novas posições? Caso isso ocorra, quais os efeitos nas
práticas escolares?
Outro fator que parece ser significativo aparece na fala da aluna
Tainá, no último excerto apresentado, quando ela diz do seu mal-estar ao ser
posicionada como uma das componentes da pior turma da escola: Acho
muito ruim, é como se a gente fosse os piores da escola... Interrogo-me: o que
impossibilita a essa aluna ver-se diferentemente do que é narrada? Como
será ver-se como o pior da escola?
Tal questionamento pode suscitar muitos pensares. Ocorre-me,
neste momento, problematizar os “pesos” atribuídos às vozes dos
personagens que trago nesta trama. Silveira (2002) auxilia-me nessa
tentativa de pôr em questão tais narrativas, ao apontar que:
Várias são as formas em que a linguagem e o discurso operam na
constituição, fixação e reprodução da desigualdade e uma das mais
evidentes são as interdições advindas da “ordem do discurso” (como
diria Foucault), da “economia do discurso”: quem pode falar sobre
que, em que situação, em qual modalidade, em qual registro...(p.21).
Nesse sentido, é possível compreender que vozes na escola que
contêm o peso da legitimidade, sendo tomadas como vozes “válidas”,
“verdadeiras”, “científicas as vozes de professores (alguns mais que
outros), da supervisão e orientação pedagógica, da direção, da
psicopedagoga, da psicóloga, entre outros profissionais. Outras vozes são
“silenciadas”, pois raramente aparecem e, quando aparecem, se lhes dá
112
pouca ou nenhuma importância, rapidamente tratando-se de silenciá-las.
São vozes que não interessam. São as vozes dos alunos, principalmente.
Vozes tidas como inferiores, desqualificadas, porém, perturbadoras,
desestabilizadoras...
Parece haver um atravessamento que produz seus efeitos nos
alunos, legitimando as vozes válidas” e “adultas” (narrando-se também ou
agindo conforme as descrições que deles o feitas), que dizem como e quem
eles são, fabricando-os como tal. Essa fabricação acontece, talvez, entre
outros elementos, pela existência dessa hierarquização dos discursos no
contexto escolar, que regem aquilo que é tomado como verdade” e que é
ensinado aos alunos: de que estão na escola para aprender com os
professores, o que implica designar para estes o lugar de que sabe mais.
Mas é importante lembrar que as posições de sujeito não são
estáticas nem definitivas, elas se dão em relação. As vozes “legítimas”, por
mais “legítimas” que sejam, o dão conta de prender os alunos numa
determinada posição. Tanto é que, nas reuniões dos professores, os alunos
eram narrados de modos diferenciados pelos participantes, como também a
cada novo momento de reunião. Parece-me que isso aponta para uma
mobilidade e fluidez, não só de quem é olhado, mas de quem olha...
As práticas disciplinares e seus movimentos
Durante as observações que realizei no cotidiano escolar, percebi
que ali se entrecruzavam relações de poder, técnicas disciplinares, ações, em
certa medida, violentas e, especialmente, tentativas de captura dos
“fugitivos”, gerando embates.
Trago alguns excertos de cenas de sala de aula,
extraídas do Diário de Campo, que permitem discutir tais movimentos:
No fundo da sala, próximo a mim, Felipe escom uma revista de carros na mão. PC
pede-lhe que guarde a revista. Logo mais, o aluno está novamente com essa revista,
olhando-a e falando para alguns colegas sobre os carros [...]. Novamente, PC pede-lhe
que guarde a revista. O aluno diz que a revista não é de carros e continua folheando.
PC vem até ele, diz que vai recolher a revista, pede-lhe que solte a revista. O aluno
segura numa ponta, e PC segura em outra. O aluno acaba cedendo. PC leva a revista
para sua mesa, e o aluno fica reclamando disso (Diário de Campo, p.85, 16 de junho de
2005).
113
PM logo orienta os alunos para que se sentem com postura, fila retinha para fazer o
trabalho que vai valer nota. Distribui a todos uma folha xerocada que contém os
exercícios a serem resolvidos (Diário de Campo, p.88, 17 de junho de 2005).
Quando chegamos em frente ao Museu
35
, a batalha entre PH, Wesley e Danilo se acirra:
os garotos não querem entrar no Museu, e PH quer obrigá-los a entrar. Discutem. PH
ameaça chamar o Conselho Tutelar. A professora que acompanhará o grupo na visita
ao Museu já está esperando. Organiza a fila para que os alunos entrem no Museu. Após
bastante resistência, Wesley e Danilo entram, com uma expressão no rosto que me faz
pensar que estão muito chateados por terem que ceder às regras de PH (Diário de
Campo, p.93, 17 de junho de 2005).
PER caminha aonde Guilherme está sentado e diz a ele: Vou te dar uma chance de
colocar a bala ou o chiclete no lixo. Este levanta prontamente, vai a a lixeira, onde
joga o chiclete que tinha na boca. PER retoma com ele: você sabe sobre as normas de
funcionamento da escola, as normas de disciplina, né... uma delas é não comer balas nem
chicletes na aula. Uma outra é fazer as atividades que são solicitadas (Diário de Campo,
p.112, 4 de julho de 2005).
Em determinado momento em que PG retorna à sala, alguns alunos lhe comunicam:
Professora, o Danilo saiu da sala sem tu deixares!; Profe, a Tainá jogou a borracha em mim;
Profe, o Alex estava correndo aqui dentro e bateu na minha classe. A professora utiliza os
relatos dos alunos para chamar a atenção daqueles que foram “delatados” pelos
colegas, relembrando com estes as normas da escola. Nesse momento, parece-me que
os controles se exercem em rede, na medida em que atravessam não apenas as
relações da professora com os alunos, mas as deles entre si (Diário de Campo, p.115, 4
de julho de 2005).
Reafirma com a turma que vai começar a chamar para a escola os pais dos alunos que
não trouxerem o tema feito, bem como provas e trabalhos assinados, para que ela, PM,
possa ver quem são os pais que estão acompanhando e sabendo das notas que os filhos
estão tirando na escola (Diário de Campo, p.137, 12 de julho de 2005).
Percebo novamente o quanto a prática do ditado torna a aula mais organizada. Os
alunos nem sequer se levantam de suas cadeiras, pois, para acompanhar o ritmo das
palavras do professor, precisam “colar” seus corpos às cadeiras, senão correm o risco
de não acompanharem o andamento do texto. Observo que é a segunda aula seguida
em que PP usa a estratégia do ditado (Diário de campo, p. 143, 4 de agosto de 2005).
As regras que determinam o funcionamento escolar e os modos
pelos quais, não apenas os alunos, mas também professores e outros
personagens da escola (inclusive os pais!) devem se posicionar o
estabelecidas e legitimadas por um documento denominado Regimento
Escolar. Além disso, existem as combinações estabelecidas por cada
35
Aqui estou me referindo à visita programada pelo professor PH, da disciplina de História,
ao Museu Histórico Municipal. A finalidade dessa visita parece-me não ter sido clareada
para os alunos, pois estes estudavam, nessa época, conteúdos referentes ao Egito Antigo.
Pelo que pude entender, a visita deveria ter ocorrido num outro momento, porém apenas
nesse momento é que foi possível de ser realizada, em função de fatores como transporte
dos alunos, disponibilidade do espaço do Museu, etc.
114
professor com as turmas, por determinados professores com alguns alunos
individualmente, pelos professores entre si, bem como as combinações dos
alunos entre si, entre outras.
Os excertos trazidos parecem evidenciar momentos de ação
disciplinar, com os quais se busca fazer com que os alunos cumpram com o
que já estava definido. Por exemplo: que não utilizem, durante a aula,
material “estranho”, como a revista de carros; que sentem de maneira
adequada retinhos e com postura; que entrem no Museu, afinal, todos
devem realizar a visita programada por PH; que façam os temas e tragam
provas e trabalhos assinados pelos pais; que o masquem chicletes dentro
da sala, enfim, um rol quase sem fim de coisas que podem ou não ser feitas
no espaço escolar.
Alguns desses fragmentos também evidenciam estratégias
utilizadas pelos alunos como tentativas de burlar as regras ou mesmo de
fazer algo diferente daquilo que é determinado pelos regulamentos escolares.
Tal observação remete-me a Dayrell (1996) quando este refere que, quando
os indivíduos (os “jovens” segundo o autor) “cruzam o portão gradeado,
ocorre um “rito de passagem” pois passam a assumir um papel específico,
diferente daquele desempenhado em casa, tanto quanto no trabalho, ou
mesmo no bairro, entre amigos” (p.148). Trazendo para mim as palavras do
autor, talvez seja possível dizer que esses sujeitos, naquele momento
tornados alunos pela instituição escolar, assumem outras configurações de
ser gente fora do âmbito educativo escolarizado; portanto, os modos de
posicionar-se, portar-se, resistir são produções da escola. Refere o autor:
Neste sentido, os comportamentos dos sujeitos, no cotidiano escolar,
são informados por concepções geradas pelo diálogo entre suas
experiências, sua cultura, as demandas individuais e as expectativas
com a tradição ou a cultura da escola (DAYRELL, 1996, p. 148).
A grande “apelação” às instâncias jurídicas
Em um dos excertos, que trata da visita ao Museu, PH, ao sentir a
clara resistência dos alunos, ameaça chamar o Conselho Tutelar e parece
115
que sua “apelação” a essa instância jurídica, externa à escola (porém
estreitamente articulada com ela) produz seus efeitos: mesmo contrariados,
os alunos submetem-se e entram no Museu. Essa “apelação” às instâncias
jurídicas é outro elemento que apresenta importante destaque no que se
refere ao tratamento dirigido às quintas séries naquela escola.
Logo no início de minhas idas à escola, alguns professores
propõem chamar os pais dos alunos dessas turmas com a intenção de
“ensinar-lheso Regimento Escolar para que, dessa forma, os pais possam
ensinar em casa aos filhos o que podem/não podem fazer nas dependências
da escola. Além dessa, há outra justificativa para esse chamamento aos pais:
contar sobre os comportamentos dos filhos para que tomem alguma atitude
(isso dirigido aos pais dos alunos que estão apresentando desvios)... No
fragmento que trago abaixo, é possível ver a articulação de estratégias tanto
para chamar os pais quanto para utilizar a sua vinda como mecanismo de
regulação das condutas dos alunos.
PM quer saber: O que vamos fazer frente a isso? Não seria melhor começarmos o ano
fazendo uma grande reunião com os pais para ensinar para eles o Regimento Escolar? Agora
não mais para fazer isso, mas para o próximo ano, quem sabe... Agora, talvez a gente
devesse chamar os pais de cada turma para pequenas reuniões, para passar as normas e
conversar sobre os problemas que temos tido com os filhos deles. Logo, PG argumenta: Eu,
particularmente, acho que devemos chamar os pais destes alunos piores para dar um susto
neles, para contar como os filhos estão. Quem sabe a gente convoca todos para uma reunião
e a relação para eles? PA refere: Acho que tem que chamá-los, sim, mas
individualmente, porque em grupo os pais se articulam e acabam deixando o professor mal.
Porque, pra nós, né... mas tem pais que adoram fazer isso, então, o jeito é conversar com
eles individualmente, de preferência só com os pais desses alunos piores, até para a gente
não ter que ficar muito tempo aqui conversando com pais se os filhos estão bem (Diário de
Campo, p. 43, Reunião de professores de 14 de abril de 2005).
Nesse fragmento, a intenção do chamamento aos pais consiste em
orientá-los sobre as regras da escola para que eles controlem seus filhos.
Além disso, pretende-se agir sobre os pais dos piores alunos, pois não se
como necessário falar com os pais dos que estão bem...
No próximo fragmento, destaca-se uma outra estratégia utilizada
nessa grande tentativa empreendida pela escola para disciplinar os alunos
das turmas de quintas séries:
116
Eduarda: (...) eu queria avisar que a diretora conversou com a Secretaria de Educação
e a secretária ficou de viabilizar uma reunião com todos os pais dos alunos das quintas
séries, com o Conselho Tutelar, com a Brigada, para buscar comprometer mais os pais com
os comportamentos dos filhos, com esses tantos problemas de disciplina que estamos tendo
aqui. E acho que a nossa função maior mesmo é com esses alunos que não têm o suporte
da família. Então, a gente tem que dar essa atenção maior e buscar fazer um tratamento de
choque com os pais para que eles percebam que estão deixando os filhos de lado. É o que a
gente pretende para essa grande reunião (Diário de campo, p.49, Reunião de Professores de
28 de abril de 2005).
A referida reunião realmente aconteceu no dia 14 de julho de 2005,
na escola, com a presença de praticamente todos os pais e alunos das
turmas de quintas séries. A “importância” dessa reunião, específica das
quintas séries, foi anunciada numa Hora Cívica para todos os alunos do
turno da tarde. Além desses, estavam presentes a Secretária Municipal de
Educação, uma psicóloga contratada para trabalhar temporariamente na
SMEC, a Direção e professores dessas turmas, dois representantes da
Brigada Militar e um representante do Conselho Tutelar. Na convocação
enviada aos pais, uma nota de rodapé comunicava: “os pais que não
comparecerem à reunião serão chamados para darem explicações na
Promotoria Pública”.
Ao apontar que, nas sociedades modernas, o poder se exerce tendo
como limite “um direito da soberania e uma mecânica da disciplina” (1999a,
p.45), Foucault mostra que
(...) os sistemas jurídicos, sejam as teorias, sejam os códigos,
permitiram uma democratização da soberania, a implantação de um
direito blico articulado a partir da soberania coletiva, no mesmo
momento, na medida em que e porque essa democratização da
soberania se encontrava lastrada em profundidade pelos
mecanismos da coerção disciplinar (1999a, p.44).
O autor indica também que as práticas disciplinares se
fundamentam no discurso da regra natural, da norma, sendo que o poder se
exerce como tentativa de normalizar. Diz:
Que, atualmente, o poder se exerça ao mesmo tempo através desse
direito e dessas técnicas, que essas técnicas da disciplina, que esses
discursos nascidos da disciplina invadam o direito, que os
procedimentos da normalização colonizem cada vez mais os
procedimentos da lei, é isso, acho eu, que pode explicar o
funcionamento global daquilo que eu chamaria uma “sociedade de
normalização” (FOUCAULT, 1999a, p.46).
117
Nesse sentido, quando falha a ação disciplinar da escola, busca-se
a articulação com outras instâncias jurídicas, com outras instituições sociais
a família, o Conselho Tutelar, a Brigada Militar, a Promotoria Pública, etc.
– na tentativa de normalizar, de capturar aqueles que escapam às regras.
No dia 11 de julho de 2005, durante uma observação que realizo
em aula, acontece a seguinte cena:
Durante vários momentos da aula, os alunos comentam sobre a reunião que
acontece com os pais, em função dos problemas de indisciplina na escola, nas
turmas de 5
a
rie. Alex, Wesley e Ismael comentam: o que será que os professores vão
falar de nós? Tomara que não falem muito, pensou que vergonha!!! Acho que o PP vai
falar muito mal de mim, mas não quero nem saber, se ele abrir a boca dele, eu vou dar uma
surra nele, nem que eu preso, mas não vou deixar assim.... Ismael diz que acha que o
PP não vai falar muito porque, no início, a turma era terrível, e que agora esbem
melhor, que amesmo ele (PP) falou isso.Uma das garotas vem me perguntar se eu
também participarei da reunião na quinta-feira. Digo-lhe que sim e quero saber por
que está me perguntando sobre isso, ao que ela responde: porque eu achei que tu ias vir
aqui só amanhã, ainda bem que tu vens na quinta.... Ouvindo essa fala da colega, outra
menina diz: Aí tu vens pra dar uma força pra gente, daí a gente não vai estar sozinho nessa
mijada! (Diário de Campo, p.128, 11 de julho de 2205).
O excerto mostra o quanto a iminência dessa reunião, que tem os
alunos como motivo central (enquanto sujeitos indisciplinados, terríveis, etc),
mexe com suas emoções. Sentem-se preocupados, agitados, inquietos,
chateados, envergonhados, inseguros, desejando minha presença, talvez por
me perceberem, naquele momento, como alguém não tão ameaçadora, que
pode posicionar-se como parceira, pois imaginam que serão mijados,
repreendidos publicamente.
A referida reunião configura-se numa tentativa de articulação entre
diversas instituições (famílias, escola, instâncias jurídicas) e utiliza como
argumentação principal para a importância desse disciplinamento algo que
aparece nas falas das “autoridades” presentes: a noção de continuidade, de
causa- conseqüência entre o que somos agora e o que seremos no futuro.
Uma das vozes presentes nesse momento é a da psicóloga que pouco
tempo presta serviços de Psicologia Escolar à SMEC. Em sua fala, a
psicóloga refere:
118
(...) as atitudes dos alunos são coletivas, não individuais, não adianta tirar alguns da lista
porque, na verdade, quando um ou outro que não respeitam as regras, estes
contaminam o grupo todo, pois, mesmo que alguns não aprontem, sabem de colegas que
aprontam e colaboram com isso, não contando para os professores (...). Todos devem se
preocupar com o que está acontecendo na escola porque agora é só um chiclé, mas, quando
forem grandes, qual será a transgressão? Diz para os pais que estes devem manter as
regras, não devem voltar atrás. Pergunta: que tipo de personalidade esse aluno vai ter se
tudo o que ele faz é considerado bonito? Os adolescentes sempre querem transgredir, mas
devem ser limitados (...) Como eles vão ser daqui pra frente se tudo pode, tudo pode? O que
está acontecendo é muito grave! É muito grave! Como vai ser daqui pra frente? A vida é
responsabilidade, a vida é causa e conseqüência. Ajuda de quem a gente vai ter se não de
vocês, pais? A intenção da escola é colocar todos no bom caminho, por isso não pode
permitir certos tipos de atitudes (Diário de Campo, p.62, 14 de julho de 2005).
Por que a psicóloga, que há pouco tempo está presente neste
espaço escolar, é chamada a falar? Talvez porque sua voz não é qualquer
voz... Ela funciona, naquele momento, como uma das representantes do
saber “legítimo”, é a profissional “especializada”, é a voz da “ciência”, capaz
de produzir efeitos de verdade pelo lugar que ocupa. Talvez haja uma
significativa importância em agregar essa voz num momento em que se tenta
disciplinar de maneira mais eficaz...
O efeito esperado dessa aliança
36
entre as instituições, promovida
pelo movimento da escola, é o “resgate” desses alunos considerados terríveis,
indisciplinados e, agora, transgressores, entre outros “crimes”, por mascarem
chicletes na sala de aula.
Ao falar sobre a ramificação e estatização dos mecanismos
disciplinares, Foucault (1998) mostra que, “enquanto por um lado os
estabelecimentos de disciplina se multiplicam, seus mecanismos têm uma
certa tendência a se desinstitucionalizar (...) a circular em estado
‘livre’”(p.174), apontando para essa vigilância e tentativa de controle de todos
sobre todos que é possibilitada pelo que o autor chama de “minúsculos
observatórios sociais” (idem, ibidem). Assim, as famílias são vigiadas pelas
escolas, os professores são vigiados pelos pais, buscam-se informações com
vizinhos e/ou conhecidos, etc.
Foucault mostra que, justamente por estar espalhada no corpo
social, a disciplina:
36
Sobre a questão das alianças estabelecidas entre família e escola, as discussões
realizadas por Viviane Klaus (2004) são de significativo valor, apontando para esses
movimentos como estratégias de governamento.
119
... é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta
todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos,
de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma “física” ou uma
“anatomia” do poder, uma tecnologia. E pode ficar a cargo seja de
instituições “especializadas” (as penitenciárias, ou as casas de
correção do século XIX), seja de instituições que dela se servem como
instrumento essencial para um fim determinado (as casas de
educação, os hospitais), seja de instâncias preexistentes que nela
encontram maneira de reforçar ou de reorganizar seus mecanismos
internos de poder (...), seja enfim de aparelhos estatais que têm por
função não exclusiva mas principalmente fazer reinar a disciplina na
escala de uma sociedade (a polícia) (1998, p.177-178).
A articulação dessas instâncias com a finalidade de disciplinar e
normalizar também se configura num elemento que fabrica, que possibilita a
emergência dos “alunos-problema”, na medida em que coloca em circulação
uma norma em relação à qual todos o comparados, estabelecendo-se a
partir daí categorias, entre elas, a de “bom aluno” e a de “aluno-problema”.
OS “GRANDES PROBLEMAS” DA ESCOLA: OS “ALUNOS-PROBLEMA”
A indicação da turma 5A para a realização da pesquisa deu-se por
esta contar com o maior número de alunos tomados como “problemas” na
escola. Cinco alunos, num total de vinte, integravam a lista de
encaminhados para atendimento psicológico em função de seus “desajustes”
no processo de escolarização.
Nesta seção, empreendo algumas análises em torno do cotidiano
escolar e das ações dirigidas especialmente para esses alunos, buscando ver
como se a sua fabricação como “alunos-problema” nessa trama, nessa
rede composta por diversas práticas.
As narrativas sobre os “alunos-problema
Vários modos de narrar esses sujeitos são estabelecidos
cotidianamente na escola, co-relacionando e articulando justificativas e
ações que, num jogo de verdade, os constituem enquanto tal. Nos
movimentos da pesquisa, volto-me aos diversos modos pelos quais esses
alunos são narrados, seja no campo documental (que nomeio como registros
120
escritos), produzido a partir deles e das características que apresentam, das
informações que são buscadas/construídas, seja nos modos como esses
alunos são falados, contados, descritos, apresentados, dados a conhecer
pelas diversas vozes que circulam no espaço escolar, inclusive as deles
mesmos.
No primeiro contato que tive com a escola, foi-me relatado que Alex
(13 anos), Danilo (14 anos), Guilherme (14 anos), Ismael (11 anos) e Wesley
(14 anos) eram “alunos-problema” na turma 5A, representando em números
um total de 25% da turma.
Fico sabendo que o aluno Alex é repetente pela
primeira vez; Danilo está nesta escola pela primeira vez, sendo que esta é a
terceira vez que repete a rie; Guilherme está pelo segundo ano
consecutivo nesta escola, também sendo tri-repetente na 5ª série; Ismael não
é repetente e Wesley repete pela quarta vez essa série.
A repetência aparece como um fator importante nas histórias de
vida desses alunos, representando mais um elemento utilizado para
justificá-los como problemáticos. Ser repetente é considerado um
“problema”, como mostra a fala da diretora em entrevista realizada:
C: O aluno não deu certo em tal escola, então manda ele para cá que aqui nós vamos dar
um jeito nele. Essa é também uma das causas que faz com que os alunos cheguem aqui e
sejam justamente esses alunos que m uma série de repetências, porque tem alunos que
têm, assim, três ou quatro repetências na mesma série, e estão aqui conosco (Diário de
Campo, p. 30, entrevista com a Direção da escola).
“Ser” repetente é por si um elemento que permite que se olhe
para o aluno, logo no início das aulas, como alguém que “não deu certo”,
seja em outra escola ou em outro ano letivo. A categoria do repetente”
aparece em contraposição à categoria do “aprovado”, trazendo em si a
conotação negativa do “não ter dado certo”.
No arquivo que guarda documentos referentes à turma 52-2004,
freqüentada pelo aluno Alex em 2004, encontrei dados sobre suas médias
finais que culminaram com sua reprovação. Despertou minha atenção o fato
de que a escola trabalha com uma média estipulada em 50. As notas do
aluno: PORTUGUÊS: 44; MATEMÁTICA: 53; HISTÓRIA: 58; GEOGRAFIA:
57; CIÊNCIAS: 57; EDUCAÇÃO FÍSICA: 59; EDUCAÇÃO ARTÍSTICA: 49;
ENSINO RELIGIOSO: 56; LÍNGUA ESTRANGEIRA (ALEMÃO): 69. É possível
121
ver que o aluno reprovou em duas disciplinas: em Português, por seis
décimos, e em Educação Artística, por um décimo. São poucos cimos que
garantem que o aluno seja colocado na condição de “repetente”.
A atribuição de uma nota parece ser uma tentativa de
quantificação, criando condições para comparar o aluno em relação a uma
média padrão, estabelecida como necessária para que ele seja considerado
apto para ir adiante, para que seja aprovado. Porém, é necessário observar
que a nota não se forma apenas a partir de dados quantitativos, mas num
processo que integra observações de comportamentos, histórias de vida,
ações cotidianas, mínimos “desvios”, modos de pensar e de conhecer. A
pretensa neutralidade da nota, entendida como capaz de representar e de
quantificar as condições do aluno, tem funcionado como uma “sentença
final”, sem que se discuta, na sua definição, a rede de elementos associada
ao modo como o aluno é visto e interpretado. A nota é inventada nessa
articulação entre observações, interpretações, valores, constituindo-se numa
arbitragem que penaliza-gratifica os alunos, operando diferenciações e
posicionamentos, especialmente daqueles vistos como “desvios”, como
“incapazes”, “sem inteligência”, enfim, aqueles que precisam refazer o
percurso – os “repetentes”.
Nesse sentido, é possível dizer que a nota é parte de uma
tecnologia: “a tecnologia avaliativa (CARDOSO, 2001). Quando traz para
problematização, em sua dissertação de Mestrado, as construções dos
Pareceres Descritivos, Ângela Maria Borba Cardoso refere:
A tecnologia avaliativa planeja a produção e a reprodução dos seres
desde os saberes fabricados, aconselhamentos familiares até a
condução dos “gostos de cada um. O que está sendo operado por
este conjunto de técnicas é a modificação das chamadas
características dos seres, a aparência da sua constituição genética
(...). um arrebatamento pela constituição da verdade sobre estes
seres. Eles não são mais o resultado bruto de um processo de
reprodução se é que algum dia foram mas herdeiros dos efeitos
das tecnologias de fabricação do humano (2001, p.84).
Tais tecnologias produzem sujeitos categorizados: “bons”
alunos/“alunos-problema”; “sadios/doentes”; “aprovados/reprovados”, entre
várias outras classificações, num jogo de premiações/punições. Interroguei-
122
me diversas vezes: quais as implicações dessas reprovações na vida dos
alunos? Produzem efeitos e quais efeitos na constituição de suas
subjetividades? Quais as marcas, quais os sentimentos produzidos nesses
alunos pela reprovação?
Ao falar sobre Guilherme, a diretora traz à tona como é entendida a
condição do aluno repetente:
C: (...) Ele é tri-repetente. Ele tem bem mais idade que os colegas dele. Então, ele vive junto
com os colegas essa fase de transição, porém, numa maturidade um pouquinho superior.
Fisiológica, né? (Diário de Campo, p.36).
Também na história de vida de Wesley, a repetência produz suas
marcas, segundo o entendimento da diretora:
C: Vamos falar do Wesley. Ele é um menino que está pela quarta vez na quinta série. Ele
veio de uma outra cidade para cá, daí estudou numa escola que não é da nossa rede e
reprovou. Ele então veio de uma escola que não era de nossa cidade, reprovado, ele
participou de uma escola que não era de nossa rede e reprovou duas vezes. Então, para cá,
ele veio com a terceira reprovação. Para nós, ele veio com três repetências. Eles vieram de
uma cidade do interior, ele veio para cá este ano. Ele tem uma defasagem bem grande de
idade em relação ao grupo, ele es com 14 anos. Vai fazer 15 anos este ano. Então, os
interesses dele estão lá no ensino médio já, né. E ele está cumprindo um cronograma de
novo, um cronograma de série. Ele é um menino bastante querido, muito amoroso,
que ele não quer fazer nada na aula, ele não quer fazer nada. Olha, pra ele fazer alguma
coisa na aula, tu tens que penar, sabe? Ele não faz, agita o grupo, atrapalha, porque aquilo
que ele não quer fazer não é o que deve ser feito, ou não é interessante, e assim vai. É muito
difícil tu conseguires que ele produza na aula (Diário de Campo, p. 40).
A preocupação com a faixa etária o-homogênea dos alunos
devido às sucessivas repetências também está presente nas reuniões dos
professores das quintas séries. Os dois excertos seguintes trazem fragmentos
dessas reuniões, mostrando que as repetências são vistas como
“problemáticas” em função das desigualdades de idade e de interesses, bem
como pelo fato de os alunos passarem a “incomodar”, na sala de aula, por
terem estudado aqueles conteúdos repetidas vezes:
PM: Escuta, Eduarda, na SMEC estão funcionando aquelas turmas de aceleração que a
secretária falou que iam ser criadas no ano passado? Porque isso seria bom, não tem
cabimento o Wesley, por exemplo, com aquele tamanho todo, cinco anos mais velho que os
outros, ficar nessa turma de pequenos. Ele tinha que ser promovido para uma turma de
maiores, aí, se tem uma estrutura que acelere esses alunos, ia ficar melhor pra todo mundo,
inclusive para eles (Diário de Campo, p.46-47).
123
PM: na minha aula, ontem, ele não fez nada, nada, nada em Matemática. Primeira aula
que ele não fez nada. Mas ele ficou bem quietinho, na dele, não falou nada. Fez um
caminhão, um desenho, e no final da aula ele entregou pra mim o desenho. Mas não fez
nada, eu disse “Guilherme, tenta fazer”; ele disse: “eu sei essa matéria”. (...) Carina: Ele
está três anos na quinta... até realmente assim, ele sabe, mas às vezes ele não acerta.
Falta concentração, eu acho. Anelise: Hoje, o Alex veio até mim e disse assim que aquele
conteúdo ele tinha estudado. Perguntei-lhe por que, quando havia estudado isso. Ele
disse, “ah, no ano passado, é que eu rodei”. Perguntei-lhe: “como é que é rodar?”. Ele: “ah, é
muito chato, por que tem que estudar todas essas coisas todas de novo”. Carina: É, eles
sabem os conteúdos, eles sabem, mas mesmo assim... PM: Eles sabem, mas ao mesmo
tempo eles não sabem. PA: Eles sabem que é chato, mas não se importam também em
serem reprovados de novo. Eduarda: Eles se importam, sim! que não diz mais nada isso
a eles. Esse conteúdo pra eles não diz mais nada. Cada reprovação é um insucesso. Não
acrescenta mais. Cada vez que eles m que repetir é uma frustração, vai baixando a auto-
estima, e, por outro lado, para eles saírem disso, eles têm que se esforçar e é que está a
dificuldade. Não, não, eles não m mais interesse, eles não estão mais motivados para
aquilo ali. O Guilherme, três vezes repetindo a 5ª série, o Wesley, quatro vezes repetindo a
mesma série, o outro que está três vezes na rie. Este me pediu: “professora, eu não
posso vir só fazer as provas, eu não agüento mais ver isso tudo de novo. E daí eles ficam,
parece que tem de milho, né...” Tu olhas para a escada, vem o Wesley com uma cadeira,
tu olhas para a escada, vem o Wesley com uma xícara, tu olhas para a escada, ele es
descendo para o banheiro. Ele arruma motivo para sair da sala (Diário de Campo, p.50-51).
Aqui ficam destacados, principalmente, dois elementos
considerados problemáticos no caso das repetências; um deles é a questão
da diferença de idade que se cria entre os alunos de uma mesma turma. As
idades diferentes tornam-se um problema na medida em que são entendidas
como geradoras de interesses/posicionamentos diferentes, que “entram em
choque” quando têm que conviver. Nessa noção, a idade aparece como
norma definidora de interesses, motivações, necessidades, pensamentos,
desempenhos supostamente iguais e de distribuição nas séries e/ou nos
turnos. A idade encontra-se implicada num processo de normalização da
diversidade existente entre os alunos e de hierarquização de saberes e
aptidões.
Os modos pelos quais a escola conduz sua organização e
funcionamento baseiam-se, ainda, em determinados princípios de ordem e
de produtividade modernos. Nesse sentido, ao discutir o funcionamento das
estratégias disciplinares, Foucault (1998) vai dizer que “a organização de um
espaço serial foi uma das grandes modificações técnicas do ensino
elementar (p.126), pois possibilitou tanto uma distribuição e um controle
individualizado quanto um trabalho simultâneo. Para o autor, nesse
quadriculamento, a ordenação em fileiras, que passa a atuar no século XVIII,
vai definir o modo de organização do espaço escolar e de seus participantes:
124
(...) filas de alunos na sala, nos corredores, nos pátios; colocação
atribuída a cada um em relação a cada tarefa e cada prova;
colocação que ele obtém de semana em semana, de mês em mês, de
ano em ano; alinhamento das classes de idade umas depois das
outras; sucessão dos assuntos ensinados, das questões tratadas
segundo uma ordem de dificuldade crescente. E nesse conjunto de
alinhamentos obrigatórios, cada aluno segundo sua idade, seus
desempenhos, seu comportamento, ocupa ora uma fila, ora outra; ele
se desloca o tempo todo numa rie de casas; umas ideais, que
marcam uma hierarquia do saber ou das capacidades, outras
devendo traduzir materialmente no espaço da classe ou do colégio
essa repartição de valores ou dos ritos. Movimento perpétuo onde
os indivíduos substituem uns aos outros, num espaço escondido por
intervalos alinhados (FOUCAULT, 1998, p.126).
A escola passou a não ser mais apenas um espaço de ensinar, mas
de observar, avaliar e recompensar (ou punir) segundo padrões hierárquicos
e saberes produzidos por essas técnicas. Os mecanismos disciplinares que
passam a funcionar a partir do século XVIII nas instituições de seqüestro,
especialmente na escola, operam a criação de “quadros vivos que
“transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas em
multiplicidades organizadas” (FOUCAULT, 1998, p.127). Nessa direção,
segundo Bauman (1999), a Modernidade (espaço de tempo em que emergem
as instituições disciplinares) cria uma determinada ordem de funcionamento
para as coisas do mundo.
Na busca da ordem, os quadriculamentos que funcionam no
espaço escolar geram determinadas categorias, posições e pertencimentos de
alunos, sendo especialmente a idade e o que se supõe que os sujeitos devam
saber e aprender nesta ou naquela idade critérios de ordenamento no
processo de seriação escolar. Porém, ao mesmo tempo em que se cria essa
ordem, cria-se a desordem, pois esta existe em relação à suposta ordem a
partir da qual passa a ser comparada. Dessa forma, um aluno pode ser
considerado “fora” da série adequada em função da sua idade e dos
elementos a ela associados na medida em que a própria escola cria tais
categorias de seriação.
Ao discutir a distribuição dos alunos nas escolas por Ciclos de
Formação, Mirtes Lia Pereira Barbosa (2005) refere que, para ser a criança,
enturmada “corretamente”, realiza-se uma minuciosa observação da sua
125
singularidade, da sua idade e da sua fase de desenvolvimento. A autora
aponta para uma hierarquização do conhecimento e dos modos pelos quais
os lugares são dispostos, sendo que “níveis mais complexos de aprendizagem
são previstos conforme mudam as faixas etárias” (p.33). Essas práticas
escolares que distribuem os sujeitos se fundamentam nas formas como as
práticas psi entendem o desenvolvimento humano. Para ela, ainda:
(...) ao definir faixas de desenvolvimento, constitui-se uma média de
aprendizagem para cada indivíduo. Esta média define numa ordem
padrão os que aprendem e os que não aprendem. A idade nesse caso
é definidora de graus de normalidade (BARBOSA, 2005, p.35).
Outro elemento visto como problemático nas repetências diz
respeito ao fato de que, por anos seguidos, os alunos precisam estudar os
mesmos conteúdos, o que faz com que fiquem saturados, desinteressados
em aprender assuntos que viram e ouviram tantas vezes. Em relação a
essa situação, os alunos são descritos como aqueles que incomodam os
outros, que não querem aprender, apresentam problemas de concentração,
não fazem os temas, brincam nas aulas, atrapalhando o “bom” andamento,
ficam impacientes, querendo sair e entrar diversas vezes na sala de aula.
Nessas falas sobre os alunos repetentes, aparece um conjunto de
sintomas para explicar e justificar as suas condutas; no entanto, não se
discutem os critérios de reprovação ou os motivos dos desinteresses. Os
alunos passam a ser narrados como os portadores” desses sintomas,
mesmo entendendo-se que isso acontece em função das repetências. Porém,
pouca importância se dá ao papel das práticas pedagógicas enquanto
fabricantes dessas situações. Além disso, nas decisões das professoras,
parece prevalecer aquilo que supostamente os alunos mostram saber ou
não. Aparece nas falas das professoras: ele sabe, mas às vezes ele não
acerta; PM: eles sabem, mas ao mesmo tempo eles não sabem.
Numa conversa que tive com a diretora sobre o Guilherme, ela me
disse:
Anelise: Ele tem condições de aprendizagem? C: Ele tem. O que falta é interesse. Ele não
consegue ter aquele sossego, se concentrar em determinada atividade e fazer. O interesse
126
dele é tudo, menos o que ele tem que fazer (Diário de Campo, p.38, falando sobre
Guilherme).
Essa tênue fronteira entre o que os alunos sabem e o que não
sabem serve, muitas vezes, como requisito para uma nova reprovação
(acrescido das avaliações de comportamento, que apresentam um peso
significativo). Isso porque é o processo de escolarização que define o que os
sujeitos devem saber para serem aprovados para a série seguinte. Na medida
em que se decreta que o aluno deve aprender algo e se diz que ele se
interessa por tudo, menos pelo que deveria, estabelece-se uma
hierarquização dos conhecimentos: aqueles conhecimentos que são
válidos, desejados, e aqueles que possuem menos valor, que não são
importantes.
Não se problematiza, na escola, que aquilo que tomamos como
conhecimentos válidos/falsos são invenções, que não têm uma origem na
natureza humana (FOUCAULT, 1999). Ao abordar o conhecimento, Foucault
diz que “é a luta, o combate, o resultado do combate e conseqüentemente o
risco e o acaso que vão dar lugar” (1999, p.16) a ele. Para o autor:
(...) o conhecimento, além de não estar ligado à natureza humana, de
não derivar da natureza humana, nem mesmo é aparentado, por um
direito de origem, com o mundo a conhecer. Não há, no fundo,
segundo Nietzsche, nenhuma semelhança, nenhuma afinidade prévia
entre conhecimento e essas coisas que seria necessário conhecer
(FOUCAULT, 1999, p.17).
Nesse sentido, a categorização de valores atribuída pela instituição
escolar aos conhecimentos é também uma invenção que passa a ser
naturalizada nos programas curriculares, aquilo que deve ser cumprido no
decorrer do ano letivo e a que os alunos devem corresponder. A
multiplicidade de conhecimentos do aluno, de seu cotidiano, das
experiências que vivencia não encontra lugar na escola porque es
determinado o que deve ter lugar ali: o conhecimento “científico”.
Integrada a essa prática, a disseminação de pretensas noções
relacionadas à identificação de “sintomas nos alunos, e não nas práticas
127
pedagógicas, configura-se como outro importante elemento associado aos
encaminhamentos dos alunos para atendimento psicológico.
Numa das reuniões do chamado “grupo de desabafo”, a
necessidade de atendimento de alguns alunos aparece na fala de
professores:
PM: Pelo menos se a SMEC botasse uma psicóloga para nós mandarmos esses alunos...
(Voltando-se para mim) Tu não vais falar com os alunos em individual? Esse é um
candidato pra ti... Eu: Como expliquei a vocês, estou aqui realizando uma pesquisa, e o que
posso fazer é pensar junto com vocês sobre essas questões que vocês estão trazendo a
respeito desses alunos. PH: Mas o que eles precisam é de atendimento urgente. Eu: Será?
(Diário de Campo, p.44, reunião dos professores das quintas séries).
Nas práticas escolares, parece funcionar uma naturalização do
olhar direcionado para os alunos, avaliando-os a partir dos critérios
instituídos ali, associada a uma banalização e difusão de interpretações
psicologizantes, posicionando os alunos como “problemas”.
Numa das ocasiões em que realizei observações na escola, a
seguinte cena ocorreu durante o recreio, na sala dos professores:
(...) alguns professores conversam sobre como as turmas estavam hoje. PM senta-se ao
meu lado numa poltrona e começa a me dizer que o aluno Guilherme estava hoje
muito agressivo, que não fez nada na aula, que é hiperativo, que nunca sabe como ele
vai estar na aula. Depois de falar sobre esses sentimentos e modos de compreender o
aluno, passo a pôr em questão sua fala. Peço que me explique em que momentos, na
aula, percebeu Guilherme agressivo. PM encontra dificuldades para responder.
Questiono seu entendimento sobre hiperatividade. Aponto-lhe vários momentos em
que o aluno trabalhou. Ela diz, rindo: Agora não sei mais nada. Será que não nos
acostumamos a falar sempre do mesmo jeito desse aluno? Alguns colegas meus têm muita
dificuldade de lidar com o Guilherme. Eu até que não tenho, mas acho que ouço tanto eles
falarem que ele não faz nada que acabo também dizendo isso...(Diário de Campo, p. 91).
Nessa situação, quando a questiono, PM confronta-se com o seu
modo de falar sobre Guilherme e surpreende-se com o fato de estar
repetindo o que seus colegas professores falam sobre o aluno. Nesse excerto,
também se evidencia algo que aparece em muitos outros momentos nas falas
dos professores e da direção da escola: o uso de denominações provenientes
das ciências psi hiperatividade, agressividade, síndrome, distúrbio, desvio,
déficit, entre outras.
128
Aquino (2001) aponta que os discursos dico e psicológico criam
as condições para o enquadramento patológico dos alunos. No momento em
que se passa a olhar para a criança de maneira psicologizada (seu
crescimento entendido como algo que se dá em etapas sucessivas, naturais,
num processo evolutivo em que uma etapa depende da outra), criam-se
condições para a produção dos “problemas” nesse desenvolvimento. Para o
autor:
Desvio, distúrbio, disfunção, anomalia, bloqueio, transtorno: termos
que dizem do afastamento de tais crianças do que era cientificamente
esperado delas. Quase sempre, elas são reputadas como vítimas de
uma conjuntura hostil ou de uma natureza impiedosa, e, mais
drasticamente, como seres cujo desenvolvimento teria sido
irremediavelmente maculado, usurpado (AQUINO, 2001, p.105).
Como se tem a expectativa de um desenvolvimento linear,
sucessivo, progressivo, associado à organização do processo pedagógico que
obedece a essas noções produzidas, entre outros saberes, pela Psicologia do
Desenvolvimento, qualquer sinal que destoe, que fuja dessas “tendências
naturais”, torna-se problemático e passível de vigilância, de análise, de
observação para uma pida ação corretiva. Nesse processo de fiscalização,
acompanhamento e controle permanente, têm papel significativo as histórias
de vida dos alunos, principalmente daqueles tomados como “problemas”, em
registros escritos arquivados por anos na escola.
Embora no Diário de Campo eu tenha transcrito apenas os
registros a respeito desses cinco alunos “problema”, olhei as pastas de todos
os alunos da turma 5A. Percebi que uma diferença significativa entre os
alunos “normais” e aqueles que estavam na lista de encaminhados para
atendimento psicológico: é em relação a esses últimos que aparecem
registros escritos em grande quantidade, constituindo pastas “recheadas” de
informações. Nas pastas dos primeiros, o máximo que o os cadastros
básicos que todos os que se matriculam na escola necessitam preencher.
Dentre esses registros escritos, identifiquei as Pastas Individuais,
que continham Ficha de Matrícula (padronizada para todas as escolas da
rede municipal e fornecida pela SMEC), Certidão de Nascimento, Histórico
Escolar de anos anteriores (proveniente de escolas onde os alunos
129
estudaram anteriormente), Ficha de Saúde. Além desses, outros registros
escritos apareciam com freqüência bem maior nas pastas dos alunos
tomados pela escola como “problemas”: bilhetes da escola para a família e
vice-versa; vários convites e convocações para que os pais viessem à escola
conversar com a direção; anotações feitas a mão em folhas de papel com
queixas sobre o aluno; relatos avaliativos assinados por professores e
professoras. Fui informada de que os registros realizados na escola em anos
anteriores em relação a esses alunos estavam em outras pastas, arquivadas
segundo a turma que o aluno freqüentava, que poderiam também ser
consultadas.
Minúcias sobre o comportamento desses alunos passavam a ser
registradas, constituindo modos de narrá-los. Na Ficha de Saúde do aluno
Alex, consta que ele tem alergia respiratória, estando com o nariz
constantemente congestionado. Em caso de urgência, a escola deverá entrar
em contato com a família por meio de um vizinho que tem telefone. Nessa
Ficha, preenchida e assinada pelo pai, a família comunica à escola que o
filho e seu irmão são bastante agitados”. Aparece aqui uma informação
sobre o comportamento do garoto Alex a partir da percepção de seu pai. Essa
situação parece mostrar que os próprios pais passam a relatar minúcias e a
diagnosticar seus filhos, talvez mostrando que aprenderam a observar e
contar o que a escola deseja saber sobre eles e suas famílias.
Outras narrativas sobre esse aluno aparecem nos Cadernos de
Ocorrência, amplamente utilizados pela escola como forma de registro e
punição dos alunos infratores das regras e expectativas escolares. Trago
alguns excertos para ilustrar:
Ocorrência nº 29-2005.
Aos vinte e dois dias do s de abril de 2005, compareceram na Secretaria da EMEF
Amanhecer, os alunos Alex e Wesley da turma 5A, para prestarem esclarecimentos sobre
um desentendimento ocorrido entre os dois colegas resultando em agressão física. Os dois
alunos conversaram, reconhecendo que erraram. Os dois foram advertidos verbalmente. A
situação ocorreu na aula de História com o professor, os dois pediram desculpas um ao
outro. Estiveram na conversa a professora Luciana e os referidos alunos. [assinado por
todos os presentes] (Diário de Campo, p.14).
Ocorrência nº 02-2004.
130
Aos nove dias do mês de março de 2004, compareceram na Secretaria da EMEF Amanhecer,
os alunos Alex (turma 5B)
37
e Marcio (turma 5A), para prestar esclarecimentos sobre a briga
que tiveram no recreio e que resultou em agressão física. Ambos recebem advertência
verbal, conforme Regimento Escolar. [o registro esassinado pela diretora e alunos] (Diário
de Campo, p. 15).
Ocorrência nº 41-2004.
Aos vinte e três dias do mês de junho de 2004, compareceu na Secretaria da EMEF
Amanhecer o Sr. ncio, pai do aluno Alex (5ª série, turma 5B), para esclarecimentos sobre
agressão física na aluna Liana (turma 5A) em 21 de junho de 2004. O aluno foi advertido
por escrito. Esteve presente na conversa a vice-diretora Carina, o aluno Alex e o seu pai
Câncio [assinado por todos] (Diário de Campo, p.16).
No caderninho de Ocorrências criado pelos professores para ser
utilizado durante as aulas, encontrei:
08/04/05
Alex: amassou a prova e conversou bastante.
12 de julho: se negou a fazer o trabalho e colocou os pés na classe.
20 de julho: chega na porta do banheiro das meninas para espiar e diz que elas estão
mantendo relações sexuais, usando termos chulos. Tudo isso, gritando”.
Além desses registros “oficiais”, junto aos Cadernos de
Ocorrências, também foi possível encontrar um bilhetinho escrito pela
professora de alemão em que esta comunica:
“O Guilherme e o Alex não fizeram nenhum exercício da aula e atrapalharam os colegas que
queriam trabalhar”. (Diário de Campo, p.14).
Aparecem, nesses registros, os “crimes” desse(s) aluno(s):
desentender-se com o colega, agressão à colega, agitação, amassar a prova,
negar-se a realizar as atividades, conversar muito, colocar os pés nas
classes, falar “palavrões”... A realização desses registros, que permanecem
por anos arquivados na escola, passíveis de serem resgatados por oferecerem
um “conhecimento” sobre os alunos, por contarem como os alunos são,
implica uma outra técnica associada à fabricação desses sujeitos tal como
são narrados.
37
Nesses excertos, alguns dos alunos tomados como “problemas e que em 2005
freqüentam a turma 5A, pertenciam à turma 5B no ano de 2004. Por isso, Alex aparece as
vezes como membro da 5B (nas ocorrências de 2004).
131
Escrever sobre o sujeito, “oficializar” num papel suas ações, seus
“crimes”, suas histórias, seus posicionamentos, relaciona-se à construção
daquilo que Foucault chama de “campo documentário” (1998, p.157), que
capta e fixa as individualidades num arquivo minucioso e detalhado. Esse
processo de escrita faz parte de práticas de exame que permitem objetivar
(tornar objeto de observação e descrição) e subjetivar (exercer ações sobre o
indivíduo a partir do que se sabe sobre ele). O exame cria duas
possibilidades, que estão intimamente ligadas: um olhar individualizado
sobre o sujeito e categorias a partir dos registros sobre um grupo de
indivíduos.
Isso leva-me a pensar na constituição de um conjunto de
informações que simultaneamente atua na fabricação das individualidades
dos alunos tomados como “problemas” e das categorizações daquilo que, na
escola, é chamado, por exemplo, de síndrome da quinta série, os saberes
sobre a adolescência, entre outros.
As informações que se buscam sobre os alunos, especialmente
sobre aqueles que desviam do caminho previamente estabelecido e esperado,
constituem um campo documentário e, também, um outro campo de saber,
não de todo registrado, mas presente e freqüentemente atuante: os saberes
narrados entre as pessoas saberes que circulam, cotidianamente,
esquecidos em alguns momentos, mas resgatados em outros, tão logo pareça
ser necessário fazer uso deles para justificar os desvios”. Ao falar comigo
sobre Alex, a diretora refere:
C: Bom, o Alex é um aluno que tem altos e baixos. Ele é gêmeo de um outro menino que
está agora na 6ª. Ele reprovou no ano passado. Ele é gêmeo desse outro, e os pais são
adotivos, os pais os adotaram. Adotaram os gêmeos, sabe... como é que eu vou te dizer...
nos parece, pelos contatos que a gente teve, tem alguns momentos que, assim, parece que
ele perde o controle sobre si próprio. Eu presenciei um momento dele assim. A professora
também já presenciou na sala, ele... tipo assim, surtou.
A: O que é que ele faz?
C: Ele fica agressivo, ele quer bater e não nada na frente, não vê se é coisa que vai
machucar ele ou que vai machucar alguém. Ele vai para cima, ele pula e diz: “eu vou te
matar, eu vou te matar, eu vou te matar...”. Só isso que ele diz. Pelos contatos com a família
que a gente teve, que foram maiores no ano passado e retrasado, que as situações estavam
um pouco mais críticas, até isso que foi um dos fatores em função dos quais aconteceu a
reprovação, a gente pôde perceber que os pais tinham, em termos, perdido o controle da
situação, que, vamos dizer assim, eles estavam questionando até que ponto eles tinham
feito certo, em terem feito essa opção (Diário de Campo, p.32-33)
132
Aqui é possível perceber a busca, realizada pela escola, de
elementos na história de vida do aluno e na sua família que expliquem e
justifiquem os comportamentos considerados como inadequados. Além
disso, professora e diretora aparecem como meras espectadoras (Eu
presenciei um momento dele assim, a professora também presenciou na
sala, ele... tipo assim, surtou), desconsiderando a situação relacionada à
reação do aluno. Também não leva em consideração a possível relação das
práticas escolares com a reprovação, tomando como causa os momentos
críticos na vida do aluno.
Esses alunos tomados como problemas” não representam um
problema em qualquer lugar. Constituem-se enquanto tal no espaço da
instituição escolar, regida por regras e por relações de poder. Nesse sentido,
Foucault (2003), ao falar sobre a vida dos homens infames, discute:
Essas vidas (...) do que elas foram em sua violência ou em sua
desgraça singular, nos restaria qualquer coisa se elas não tivessem,
em um dado momento, cruzado com o poder e provocado suas
forças? Afinal, não é um dos traços fundamentais de nossa sociedade
o fato de que nela o destino tome a força da relação com o poder, da
luta com ou contra ele? O ponto mais intenso das vidas, aquele em
que se concentra sua energia, é bem ali onde elas se chocam com o
poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças ou escapar de
suas armadilhas (p.208).
Tais palavras do autor apontam para a produção social de uma
certa visibilidade do sujeito que entra em confronto com o que está dado e
que, por seus posicionamentos, opções de vida, entre outras situações, se
choca com as regras delimitadoras da sua existência social.
Ao discutir as narrativas da direção da escola e dos professores em
torno dos alunos problema, utilizo-me de Foucault quando este aponta para
um movimento de produção de lendas
38
em torno de determinados sujeitos.
Os relatos lendários sobre o sujeito infame tornam-no recoberto de prodígios
e de brilho que evidenciam não sua existência, mas a lenda que dele se
produz. Do sujeito, aparece e conhece-se aquilo que se fala dele. Para
Foucault:
38
Grifo meu.
133
...a existência desses homens e dessas mulheres remete exatamente
ao que deles foi dito; do que eles foram ou do que fizeram, nada
subsiste, exceto em poucas frases. (...) Não tendo sido nada na
história, não tendo desempenhado nos acontecimentos ou entre as
pessoas importantes nenhum papel apreciável, não tendo deixado
em torno deles nenhum vestígio que pudesse ser referido, eles não
têm e nunca terão existência senão ao abrigo precário dessas
palavras (2003, p.209).
Para o autor, o acaso é um dos elementos que produz a lenda. A
lenda, segundo ele, emerge não nos trajetos contínuos, mas nas
descontinuidades, nas rupturas, nos esquecimentos, nos reaparecimentos. O
filósofo refere:
Foi preciso, primeiramente, um jogo de circunstâncias que, contra
qualquer expectativa, atraíram sobre o indivíduo o mais obscuro,
sobre sua vida medíocre, sobre seus erros afinal bastante comuns o
olhar do poder e o clamor de sua cólera: acaso que fez com que a
vigilância dos responsáveis ou das instituições, destinada sem
dúvida a apagar qualquer desordem, tenha detido este de preferência
àquele (...) e não tantos outros, ao lado destes, cujo barulho não era
menor (FOUCAULT, 2003, p. 209).
A seguir, trago fragmentos de minhas observações em sala de aula
para ilustrar como presenciei o modo como se lida com Alex e alguns dos
acontecimentos de sua vida:
Alex e Wesley, no fundo da sala, próximos a mim, conversam sobre o carro do pai do
Alex, que foi batido. Falam sobre o orçamento. Entendo depois que a família toda do
Alex, inclusive ele, estavam no carro no último sábado, quando tiveram um acidente
razoavelmente grave. PP percebe a conversa e chama a atenção de Alex, pedindo que
fique quieto. Quer saber se o aluno fez o tema. Alex diz que não, porque PP o tirou da
sala na última aula e, por isso, não sabia o que era o tema. PP pergunta-lhe por que o
tirou da sala. O aluno responde que isso não importa. PP diz que, se isso não importa,
então deve ficar quieto e ouvir a leitura dos colegas (Diário de Campo, p.78, aula de
Português, 16 de junho de 2005).
Alex pergunta para PC se ela já viu alguém morrendo em acidente. PC diz que não.
Pede que façam silêncio e que agora não é hora de conversa fiada. Ao ouvir isso, Alex
diz: Não é conversa fiada, professora. Eu me acidentei de carro no sábado e podia ter
morrido. E tu ainda falas que isso é conversa fiada! PC pede novamente para que a turma
volte a ficar em silêncio (Diário de Campo, p.85, aula de Ciências, 16 de junho de 2005).
Esses fragmentos apontam para um movimento de desqualificação
daquilo que o aluno traz para a escola: a narrativa sobre o acidente que
134
sofreu não encontra espaço na sala de aula, é necessário calar-se. Durante a
aula de Português antes citada:
Alex aproxima-se de mim e me fala que esse professor é chato, ele grita e manda os
alunos para fora da sala de aula. Refere que na última aula o estava com vontade de
fazer as atividades e só por isso foi posto para a direção (Diário de Campo, p.82, aula de
Português, 16 de junho de 2005).
O aluno conta-me que, quando outras coisas são de seu interesse,
que não aquelas consideradas importantes pela escola ou pelos professores,
a ação que se exerce sobre ele vai no sentido de tirá-lo da sala de aula para
levá-lo à sala da direção. Neste espaço, a vigilância é mais permanente e, por
isso, mais intensa, assim como as práticas corretivas, as conversas, os
conselhos, as reprimendas... Foucault, ao discutir o funcionamento das
instituições de seqüestro, mostra que, em todos os sistemas disciplinares,
inclusive no escolar, atua um certo mecanismo penal através da existência
de “suas leis próprias, seus delitos especificados, suas formas particulares
de sanção, suas instâncias de julgamento” (1998, p.149).
Esses mecanismos que imprimem penalidades aos alunos
aparecem também em outras situações com Alex. Em um momento de uma
aula de Educação Artística,
Alex, que o compareceu com o uniforme, é
convocado por PEA a explicar-se sobre o fato. Diz que sua camiseta de
manga curta estava molhada e não tinha outra para usar. PEA diz que terá
que registrar isso no seu Diário de Classe,
pois uma das regras da escola diz
respeito ao uso do uniforme, que deve ser usado sempre.
Outro fragmento de minhas observações que explicita as práticas
corretivas em torno desse aluno narra uma cena durante uma aula de
Geografia:
Alex, tendo concluído suas atividades com maior agilidade que os colegas, corre por
dentro da sala, escorregando ao “frear” com os pés e, assim, emitindo um barulho
significativo. Várias vezes, é interceptado por PG, que pede repetidamente que se
sentar. Em razão de o garoto continuar tendo tais atitudes, PG vai até ele, pega-lhe
pelo braço e o “acompanha” até sua classe. Quando Alex senta-se, PG curva-se sobre
ele, conversa baixinho. Ouço quando pede que busque se acalmar, que é um dos mais
velhos da turma e que deve ser exemplo para os pequenos. Logo o aluno sossega e,
tendo uma orientação em torno de uma nova atividade a ser desenvolvida, que é
indicada apenas para ele realizar, passa a trabalhar nela (Diário de Campo, p.115).
135
Práticas semelhantes às que acontecem com Alex também ocorrem
com seus outros colegas tomados como “problemas”. Numa aula de
Matemática, Guilherme es quase deitado numa cadeira que está com o
encosto praticamente quebrado. PM pede-lhe que troque de cadeira para que
possa sentar direito. O aluno responde que não vai pegar, que essa está boa
para ele e permanece “deitado”. PM pede-lhe então que tire o chiclete da
boca. Ao brincar com um estilete de apontar lápis, o aluno corta o dedo.
Levanta-se e sai para lavar o ferimento, que está sangrando. Passando pela
porta, abre e fecha-a diversas vezes. PM olha para o aluno e diz: vou
fora falar contigo. Porém, passados alguns
minutos, PM parece ter esquecido
de seu próprio comentário. Quando Guilherme retorna, ao entrar na sala,
liga e desliga várias vezes seguidas as lâmpadas. PM pede-lhe
tranqüilamente que sente, troque de cadeira e copie a matéria. Parece não se
mostrar abalada com as atitudes do aluno. Este, por sua vez, vai para sua
classe, olha para o quadro, reclama que é muita coisa para ser copiada, mas
começa a escrever. Tenho a impressão de que realmente está copiando o que
foi escrito no quadro pela professora. Enquanto os alunos copiam, PM
pergunta para alguns como foram as férias. Guilherme levanta-se e abaixa
as calças jeans que es usando, deixando-as na altura dos joelhos. Por
baixo, usa uma bermuda. Olha por sobre os colegas, rindo, passando-me a
impressão de que está tentando chamar a atenção para si, porém ninguém
muita importância. Somente PM, que vai até ele e diz: Guilherme, tu
chamaste a atenção que chega hoje. Põe essas calças para cima ou tira de
uma vez. Aí, senta e copia (Diário de Campo, p.147).
Em outra situação, também em uma aula de Matemática,
Guilherme caminha pela sala. PM pede-lhe que tire o chiclete, pois é a
quarta vez hoje que estás com chiclé na boca! PM dirige-se até sua mesa,
dizendo que vai escrever no Caderno de Ocorrências que o aluno Guilherme
insiste em permanecer mascando chiclete. Guilherme diz: pode escrever
cinco ou dez vezes que eu estou com chiclé, porque todo mundo está com chiclé
na boca. Mesmo dando essa resposta, levanta-se, caminha até a lixeira e ali
deposita o
chiclete (Diário de Campo, p. 103).
136
Numa das reuniões dos professores das quintas séries, a
supervisora pedagógica relata:
Eduarda: Essa semana mesmo, por duas vezes, eu tive que tirar o Guilherme da sala para
trazer ele até a Secretaria para colocar camiseta do uniforme, porque, olha só, ele tem
camiseta, mas parece que a mãe não deixa limpa para ele, então, ele vem sem uniforme. O
que eu faço? Fico de olho nesses alunos que a gente já sabe que de praxe vem sem uniforme
e resgato um por um, vou trazendo para a Secretaria e vou dando camisetas do uniforme
para usarem (Diário de Campo, p.48).
Em outra cena, ocorrida numa aula de Alemão, a
professora anota
no Caderno de Ocorrências que Danilo puxou a cadeira de Ismael e que, por
isso, este caiu no chão. Conversa afetuosamente com os dois, pedindo que se
acalmem. Ismael fala de sua raiva por ter sido “escrito” no Caderno de
Ocorrências (Diário de Campo, p.98).
Outro dia, observando uma aula de Ciências, ouço PC verbalizar:
PC: Danilo, vocês quatro, Danilo, Ismael, Alex e Wesley estão avisados. Vocês estão
impossíveis. Alex, te controla! Estou enchendo o saco de vocês. Parem de conversar! (Diário
de Campo, p.86, aula de Ciências).
Por último, ainda outro fragmento. Durante uma aula de
Português, PP chama Guilherme para fora da sala. Este nega-se a
acompanhá-lo. PP ameaça chamar a diretora, ao que Guilherme responde
que não se importa se ele fizer isso. PP vai até o aluno e diz em voz bem alta,
que toda a turma escuta: Vem comigo lá fora que faz dias que estou querendo
falar contigo. Contrariado, o aluno vai. Conversam um pouco, logo
Guilherme retorna à sala e, olhando para mim, faz uma cara de muito
desagrado e de raiva de PP.
Essas intervenções cotidianas dirigidas de modo mais intenso
sobre alguns alunos demarcam-lhes um lugar de desvalia. Legitimadas pelos
registros escritos e pelas narrativas orais que contam suas histórias tão
“problemáticas”, funcionam como pequenas humilhações, pequenos vexames
(ou seriam grandes?) que os fixam na categoria de alunos-problema”. Tais
procedimentos constituem penalidades disciplinares que buscam punir tudo
o que desvia da regra. Foucault mostra que:
137
Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma
micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das
tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da
maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice,
insolência), do corpo (atitudes “incorretas”, gestos não conformes,
sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo, é
utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que
vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas
humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as
frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva aos
elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar;
levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima
coisa; que cada indivíduo se encontre preso numa universalidade
punível-punidora (1998, p.149).
A leitura de Foucault faz-me pensar na questão da sutileza dessas
humilhações cotidianas, e encontro-me pondo em questão essa dita sutileza.
Percebo que o movimento de estranhamento que realizo neste estudo
confronta-me intensamente com essas práticas escolares e sinto a
intensidade dos efeitos que elas podem ter sobre os sujeitos. Ao mesmo
tempo, tais práticas funcionam cotidianamente e encontram-se
naturalizadas, banalizadas. Parece natural que um professor puna um aluno
dessa forma, chamando a atenção, corrigindo a postura, proibindo o
chiclete, reprimindo os “palavrões”. Entendo que tais procedimentos
parecem naturais porque em nenhum momento houve qualquer tipo de
problematização em torno deles. Entendo também que, sobre esses alunos
tomados como “problemas”, incidem olhares permanentemente mais
vigilantes, que buscam de modo mais intenso a correção para os pequenos
desvios.
Além das práticas que pude observar e que venho discutindo até
aqui, outro momento constituído na escola parece-me de fundamental
importância na fabricação dos “aluno-problema”: o Conselho de Classe.
Institui-se um pequeno tribunal que, utilizando-se de todos os elementos
que vão sendo registrados no decorrer do trimestre sobre os alunos (algo que
poderíamos chamar de “provas”, talvez?), sentencia, define destinos, fixa
posições.
No Conselho de Classe do qual participo, a supervisora pedagógica
mostra sua preocupação com o que vão fazer com Guilherme, já que ele está
com média inferior em todas as matérias. Acontece uma pequena discussão
138
em torno das questões que envolvem esse aluno, o que aparece no seguinte
excerto:
Eduarda: (...) é uma judiaria esse guri reprovar de novo. Seu comentário não é bem aceito
por PM: Comigo, ele vai reprovar porque falta na metade das aulas, não quer nada com
nada e incomoda. Não tem como aprovar um aluno assim. Ele o pode ser aprovado
porque sabe que não faz nada e, ainda por cima, tem 18 faltas comigo. PA: O Wesley até
pode ser aprovado. PEF: O Wesley? Esse está muito bem. O Guilherme é que não quer saber
de aula, ele quer futsal e quer mandar nas aulas. Se não é como ele quer, incomoda o
tempo todo. Eu não o trago mais para a Secretaria da escola por que nem aqui o agüentam
mais. Eduarda: O Guilherme está aqui na escola porque o Conselho Tutelar exige que ele
esteja na escola e fica em cima, fiscalizando. Se ele reprovar, ele não vai mais estudar. PA:
Quando o Guilherme não está, a turma rende, é muito boa essa turma, desde que ele não
esteja presente. PER: Eu não sei o que esse guri tem com a Tainá, porque ele não pode -
la, passa incomodando. Não sei se ele a ama ou se a odeia. Essempre mexendo com ela
(Diário de Campo, p.69)
As avaliações dos alunos no Conselho de Classe obedecem à lógica
alfabética inicia-se falando sobre o/a aluno/a cujo nome começa com a
letra A e assim por diante. No caso dessa turma, parece que a presença de
Guilherme e seu modo de ser “perturbam” em demasia, de tal modo que se
fala inicialmente dele, começa-se pela letra G, e não pelo aluno cujo nome
inicia com A. O excerto torna visível que são os modos de se posicionar e os
aspectos comportamentais dos alunos que definem suas sentenças, e o
apenas as “notas” representativas de suas aprendizagens e conhecimentos.
O princípio da comparação entre os alunos também é utilizado,
provavelmente porque, na medida em que as práticas escolares
têm como
uma das suas finalidades a homogeneização, se torna necessário estabelecer
comparações entre os indivíduos.
No Conselho de Classe, são utilizadas algumas ferramentas para a
definição das sentenças, entre elas, o registro das notas das provas,
trabalhos realizados pelos alunos e, especialmente, uma ficha
individualizada chamada de Parecer Descritivo, que trago a seguir:
Pareceres Descritivos
1. A conversa prejudica teu rendimento.
2. Deves aproveitar melhor os períodos de aula, trabalhando com mais
intensidade em sala.
3. Deves estudar mais, comparecer às aulas de recuperação quando convidado,
para evitar a reprovação.
4. Procura contribuir positivamente para o grupo.
5. Deves melhorar o relacionamento com colegas e professores.
139
6. Precisas evitar as faltas e atrasos às aulas para não comprometer os estudos.
7. Apresentas dificuldades, mas és esforçado(a) e tens capacidade de superá-las.
8. Recomendamos maior dedicação nos estudos, para que possas superar as
dificuldades.
9. Quando convocado, deves comparecer às aulas de recuperação ou
dependências.
10. Teu desempenho é bom. Busca aproveitar teu potencial para sanar as
dificuldades apresentadas.
11. Em geral és participativo(a) e ativo(a), apesar da conversa. Teu
aproveitamento poderia ser melhor.
12. Procura ter uma postura mais positiva em sala de aula, conversar menos,
não fazer observações desrespeitosas.
13. Tua conduta tem atrapalhado as aulas, deves brincar menos, ter mais
humildade e levar os estudos mais a sério.
14. Estás progredindo em tua comunicação e leitura. Apresentas, porém,
dificuldades na parte escrita. Necessitas prestar mais atenção em aula e realizar
as tarefas com maior concentração. Evita distrações com assuntos não
pertinentes à aula. Procura aproveitar as oportunidades oferecidas por teus
professores, realizando as tarefas.
15. Acreditamos que podes contribuir mais em aula, expondo teu pensamento
através de perguntas e questionamentos.
16. Deves melhorar tua postura de trabalho, realizar as tarefas propostas,
trabalhar com mais comprometimento, mais organização e seriedade.
17. Nos trabalhos em grupo, deves trocar idéias com os colegas, exercitando
assim, a defesa da tua opinião. Deves, também, ouvir e respeitar a opinião dos
colegas.
18. Parabéns! Alcança
ste todos os objetivos propostos pela escola. Continua
progredindo!
É possível observar nessa ficha que a grande maioria dos aspectos
avaliados dizem respeito a atitudes comportamentais e morais.
Quando discute os Pareceres Descritivos, Corazza (1995) alerta
sobre a importância de interrogar tais registros, dizendo:
Trata-se de verificar as “verdades” ali enunciadas, tanto no que se
refere às características da infância-escolar, quanto àquelas do
currículo praticado nas salas de aula e comunicadas aos pais/mães,
familiares, crianças. Verdades que dizem o que é e o que deve ser
uma criança-de-escola e um currículo para esta criança, as quais
acabam se constituindo como parâmetros para julgar o que seja uma
boa ou criança e um bom ou mau desempenho escolar: portanto,
verdades que classificam, aprovam ou reprovam as crianças e
também seus grupos sociais (p.49).
Os enunciados colocados na ficha de Parecer Descritivo acima
apresentada definem o que se espera ou não dos alunos, delimitando
também ações que estes podem ou devem tomar para que se tornem os
alunos “ideais”. Para Corazza (1995), esse tipo de instrumento funciona:
140
a) como uma importante estratégia da política cultural da escola, nos
domínios de produção-controle-dominação da infância-escolar e do
currículo praticado na educação dessas mesmas crianças; b) como
uma prática pedagógica de regulação moral, que constitui ou
transforma a experiência que as crianças têm de si e que, portanto,
torna-se uma exemplaridade das relações entre currículo, identidade
e poder (p.49).
Tais processos avaliativos, inseridos em outras práticas escolares
cotidianas, demarcam lugares de maior ou menor valia para os alunos.
Quando fala sobre a clientela escolar, a direção atribui aos alunos “pobres” a
condição de não virem para a escola por interesses intelectuais, demarcando
que eles diferem dos “alunos do centro”, mais abastados, em termos de
elementos intelectuais vontade de saber, aprender, fazer as coisas
determinadas como importantes pela escola. Os últimos, os “alunos do
centro”, corresponderiam adequadamente a essas expectativas...
Durante as observações, algumas práticas escolares evidenciaram
aquilo que se crê que seja válido investir quando se trata de determinados
alunos. Isso aparece na fala da professora de Ciências:
PC: E, com o Wesley, eu já descobri uma coisa: que tem que estimular os desenhos dele. Eu
estava trabalhando com os alunos os ecossistemas, então, eles da turma tinham exercícios
do livro para responder. que eu tinha certeza que o Wesley não ia escrever nada. O que
eu fiz? Disse para ele que tinha um desafio para ele, que era para desenhar, então, o que ele
tinha entendido por ecossistema. E saiu perfeito, melhor, impossível.... E ele ficou a aula
toda trabalhando, porque ele quer ser perfeito nos desenhos que realiza.
PP: Mas tu vais avaliar só pelos desenhos? E como os outros vão ficar, não vão querer
desenhar somente também? Eu acho isso meio complicado, acho que essa coisa de fazer
diferenciações na avaliação faz com que uns se sintam prejudicados e todos não aprendam
as mesmas coisas, que é como deveria ser (Diário de Campo, p.45).
Nas práticas pedagógicas, alguns professores buscam aproveitar o
que entendem ser “potenciais” desses alunos. No caso de Wesley, por
exemplo, PC estimula-o a desenhar. O aluno entendeu o conteúdo explicado,
realizou o desenho de maneira considerada adequada por PC, mas o que
acontece? Existe o entendimento na escola de que os desenhos dos alunos
possuem uma importância inferior em relação aos seus escritos. A avaliação
se habitualmente em torno do que os alunos conseguem escrever sobre o
que estudaram, e o sobre o que conseguem desenhar, falar ou
141
representar. Existem categorias construídas que imprimem maior ou menor
valor para determinados modos de expressão e de avaliação.
No caso de Wesley, aparece em diversas situações a compreensão
de que, se ele está sendo avaliado pelos seus desenhos, então, está tendo
uma chance de ser aprovado o que ele realmente tenha entendido o
conteúdo, mesmo sabendo demonstrá-lo o bem por meio de um desenho.
O saber desse aluno, o que ele foi capaz de aprender é enquadrado como
menos válido, por ser mostrado de outra forma que não através da forma
instituída, a palavra escrita.
As práticas que descrevo nos fragmentos abaixo apresentam outra
forma de olhar e lidar com as produções desses alunos, embora tenham
atuado como tentativas de capturá-los.
PC: As turmas das quintas, para mim, melhoraram um pouco... O Guilherme hoje só queria
desenhar na aula. Então, eu estava trabalhando o meio ambiente e pedi que ele desenhasse
um meio ambiente degradado e um meio ambiente preservado. O aluno fez um ótimo
trabalho, e dei nota 99 para ele. Ele ficou tão feliz, mas tão feliz, que veio até me dar um
abraço (....). Quando fiz com eles uma atividade de encontrar uma palavra oculta num
monte de letras, ele foi o segundo que achou, estou surpresa com ele. Mas escrever, ele não
quer nem saber... Só desenhar... Eu o pego por aí...(Diário de Campo, p.46).
A habilidade para desenhar apresentada pelo aluno passa a ser
utilizada pela professora como uma estratégia de captura que permite,
(mesmo que, segundo ela, com desvantagens) enquadrá-lo no processo de
avaliação escolar: “eu o pego por aí”.
No transcorrer de uma aula de Alemão, PA também me mostra um
desenho realizado por Wesley. Conta que, quando ele está muito agitado e
não quer fazer as atividades, lhe pede que desenhe algo relacionado à aula.
Olhando o desenho realizado pelo aluno em uma aula anterior, em que não
estive presente, percebo que é realmente muito bonito. Logo depois de falar-
me sobre isso, PA pede a Wesley que desenhe as coisas que faz durante cada
dia da semana, escrevendo os dias da semana em Alemão. Wesley parece
satisfeito com o pedido da professora, pois logo começa a trabalhar, dizendo
que quer que eu veja depois seu trabalho.
Também a supervisora pedagógica, quando narra como
tem
procedido com Wesley, apresenta elementos das estratégias que utiliza:
142
Eduarda: Agora o Wesley, ele foi me ajudar a tirar as coisas ali da sala de multiuso, e tinha
vários troféus que ele estava levando, e ele encontrou um troféu que foi feito em madeira.
ele mostrou interesse em fazer aquelas técnicas de pictografia, sabe... Eu disse que vou
arranjar um jeito de ele aprender essas técnicas (Diário de Campo, p.58).
Durante o Conselho de Classe, a supervisão pedagógica fala do
acordo feito com Wesley no final do primeiro trimestre: se ele melhorasse o
comportamento, a nota do primeiro trimestre não seria considerada, a
primeira avaliação do ano ficaria nula, mas para isso teria que “melhorar
muito”. Quando essa questão emerge, PH manifesta-se:
PH comenta que, nas suas aulas, ele se recusa a copiar as coisas, se emburra e fica lá,
sentado, apenas desenhando, não faz mais nada. Eduarda conta que, na escola, estão
tentando envolvê-lo com outras atividades: ele é muito criativo, é um marceneiro
excelente, temos que aproveitar esse potencial criativo dele. (...) Atribuem-lhe Pareceres 14
e 16. Elogiam muito sua melhora comportamental na escola (Diário de Campo, p.72).
É a melhora comportamental de Wesley (produzida pela eficácia
das práticas disciplinares) que é levada em consideração nessa avaliação,
bem como o reconhecimento de que ele tem talentos a serem desenvolvidos,
o que faz com que algo seja nele investido, inclusive a possibilidade de uma
aprovação.
Em relação a esse aluno, o que aparece nesses excertos é a
presença de um olhar voltado mais para seus comportamentos do que
propriamente para o aluno como alguém capaz de aprender, em quem se
deve investir em termos de conhecimentos. Investe-se em ações consideradas
não-intelectuais, como ensinar pictografia, desenho, marcenaria oficinas
que, mesmo que sejam aprendizagens importantes para o aluno,
representam para a escola estratégias de mantê-lo ocupado para que não
incomode, não como aprendizagens que realmente tenham um valor maior.
Poderíamos pensar também num movimento escolar de fabricação de
artesãos, de mão-de-obra disciplinada em torno desses alunos, e não num
investimento em termos de conhecimentos escolares.
Esse mesmo movimento pode ser observado nas ações da
professora de Geografia, no decorrer de todas as aulas a que assisti dessa
disciplina. Em uma delas, PG conta-me que Guilherme e Wesley ficarão uma
143
parte da aula na sala de multiuso da escola, realizando as atividades. Ao
questionar o porquê disso, obtenho como resposta: porque fizeram muitas
vezes essas mesmas coisas, e assim não bagunça na sala de aula. Vou
dar trabalhos diferenciados para eles, para que se sintam úteis e dêem
importância para o que fazem (Diário de Campo, p.113).
Avisa a turma que
vai acompanhar os colegas até embaixo e que, quando voltar, vai querer
olhar os cadernos de todos para ver se copiaram as atividades. Pergunto-
me: que lugar é demarcado para esses alunos na medida em que m “aula”
fora da sala de aula, para não acontecer bagunça, como a PG referiu
anteriormente?
Passado algum tempo, resolvo descer um pouco até a sala de
multiuso para ver o que anda acontecendo. Estão sentados, Wesley e
Guilherme, realizando atividades diferenciadas daquelas dos alunos que
ficaram na turma. Estão produzindo mapas em madeira com um pictógrafo,
materiais lúdicos para a escola, bem como outros materiais lúdicos para as
aulas de Geografia, quebra-cabeças, jogos. PG explica-me que acha que isso
está sendo bom para os meninos, porque eles estão estudando e nem
percebem isso enquanto realizam essas atividades. Por outro lado, estão
auxiliando a escola, já que, com esse trabalho, a escola o precisa comprar
o material que está sendo produzido por eles. Acredita que eles se sintam
muito valorizados por isso, pois ela leva esses materiais para trabalhar nas
outras turmas e conta para todo mundo quem foi que produziu.
Em outra aula de Geografia, observo que ocorre a mesma situação.
Nesse dia, por volta das 16 horas, desço para a sala de multiuso onde
Wesley, Alex, Danilo e Guilherme realizam atividades diferenciadas, como na
aula anterior. Alex desenha um mapa do Brasil seguindo um modelo
reduzido, quadriculado. Wesley recorta um pedaço de E.V.A colorido, onde
confecciona um mapa mundi. Danilo prepara fichas também em E.V.A
colorido, onde escreve os nomes dos Estados brasileiros. Guilherme recorta,
em E.V.A colorido, fichas que constituirão um dominó de Estados e Capitais.
Todos trabalham e parecem empolgados com as tarefas. Freqüentemente,
mostram uns aos outros os resultados parciais de seus trabalhos.
Aparentam estar comprometidos, pois negociam entre si as tarefas,
144
mostrando interesse em concluí-las. O trabalho de um depende do outro,
então, também se
cobram mutuamente, sem se agredir. Guilherme provoca
Danilo, jogando neste um pedaço de E.V.A. Danilo reclama, e Wesley pede
aos colegas que parem de bagunçar porque ainda tem muito trabalho.
Guilherme faz de conta que não ouve o pedido do colega e joga novamente
um pedaço do material, que desta vez em Alex. Wesley irrita-se com a
atitude do colega, vai até onde ele está e diz: Por favor, Guilherme, vamos
parar de brincar aí... tu estás irritando, meu! (Diário de Campo, p.152-153).
Essa narrativa mostra a produtividade das práticas pedagógicas
diferenciadas experimentadas por PG. Não tenciono aqui avaliar tais
experimentos de PG em termos de valor (bom ou ruim, certo ou errado),
apenas apontar para essa produtividade visível na empolgação, no trabalho,
na ação correspondente dos alunos. No próximo capítulo, pretendo discutir
um pouco sobre os sentidos dessas experiências na vida desses alunos a
partir da forma como eles significam tais vivências. Além disso, trago para
análise alguns elementos produzidos a partir de encontros que realizei com
os alunos da turma pesquisada, bem como com professores da escola,
buscando olhar para o modo como narram, interpretam e percebem a si
mesmos enquanto integrantes e constituintes do espaço escolar.
Diferente
Arnaldo Antunes
tá tudo tão diferente
eles são tão parecidos mas não são como nós
eles falam outra língua pela nossa voz
eles são tão bonitos
mas não são como a gente
eles vêm de muito antes que nossos avós
eles fazem companhia mas estamos sós
tá tudo tão diferente
eles são de carne e osso mas não têm suor
eles têm os olhos grandes para ver melhor
eles têm a boca grande
MÚLTIPLOS SENTIDOS NA/PARA A ESCOLA: AS VOZES DOS
ALUNOS E DOS PROFESSORES
Mais uma vez, Arnaldo Antunes convoca-me a pensar. Escolho as
palavras do compositor, trazidas na epígrafe, para tornar presente em minha
memória alguns aspectos observados no espaço escolar onde realizei a
pesquisa. Eles são tão parecidos mas não são como nós remete-me às falas
que circulam na escola e que apontam para os olhares lançados sobre os
outros, comparando-os e marcando suas diferenças em relação a um modelo
que habitualmente se baseia no EU, no NÓS supostamente “normal”,
positivo, certo...
Além disso, eles falam outra língua pela nossa voz leva-me a pensar
nos atravessamentos que perpassam as vozes que circulam na escola,
algumas mais permitidas, outras mais silenciadas, mas todas, de alguma
forma, emergindo cotidianamente. Remete-me também ao fato de que muitas
vezes imaginamos saber sobre os outros e, em função disso, não
consideramos fundamental que eles falem... Naturalmente, vamos dizendo
sobre esses “outros” a partir dos lugares legítimos que ocupamos: o lugar do
adulto, professora/a, psicólogo/a, diretor/a, médico/a. Por fim, o verso do
compositor incita-me à possibilidade de fazermos uso desse “lugar legítimo”
que, temporariamente, ocupamos para permitir que as outras línguas falem,
dando-se a conhecer, possibilitando, quem sabe, outras construções acerca
de suas histórias.
Eles fazem companhia mas estamos sós... Nas vozes que ouvi, a
escola aparece muitas vezes como um espaço de solidão. Será que isso o
aponta para um esvaziamento de sentidos, de afetos, de relações?
147
Neste capítulo, desenvolvo análises
39
a partir de alguns dos
elementos que emergiram nos encontros realizados com os alunos da turma
pesquisada e com professores que aceitaram o convite para participar de
algumas discussões que propus. Com isso, quero aproximar-me dos modos
como esses sujeitos viam a si mesmos, como narravam suas histórias de
vida e como se percebiam inseridos no espaço escolar. No decorrer de minha
escrita, busco analisar os contrastes/choques de interesses,
intencionalidades, vontades, sentidos desses personagens, discutindo as
implicações de tais elementos na construção do espaço pedagógico da escola
,
bem como na produção dos “alunos-problema”.
QUEM SOU EU NESTE MOMENTO?
Se eu tivesse que falar em mim que coisas (imagens, frases,
desenhos) me representariam? Como eu me apresentaria para os
outros? Que coisas gosto e que coisas o gosto? Que coisas
significativas, importantes, aconteceram/acontecem na minha vida?
A partir dessas questões, propus a alunos e professores
40
que
falassem sobre si mesmos, utilizando recortes de revistas (figuras, palavras,
desenhos), e, posteriormente, narrassem suas construções acerca de suas
histórias de vida.
Inicialmente, propus o trabalho com os alunos da turma
pesquisada, buscando aproximar-me dos modos pelos quais, naquele
momento, eles poderiam narrar-se. O primeiro encontro com os alunos
compreendeu uma proposta de atividades em grupos de três.
39
Parte das análises aqui desenvolvidas compuseram dois artigos publicados nos anais
do Seminário Corpo Gênero e Sexualidade: Problematizando as Práticas Educativas e
Culturais, realizado na Fundação Universidade de Rio Grande FURG, em 24 a 26 de
outubro de 2005. RABUSKE, Anelise S.; PAVEI, Katiuci; SOUZA, Nadia G. Práticas
implicadas na produção de corpos diferentes: o “aluno-problema. Anais II Seminário Corpo,
Gênero e Sensualidade: problematizando práticas educativas e culturais. FURG Rio
Grande, 2005 e RABUSKE, Anelise S.; HARTMANN, Fátima; PAVEI, Katiuci; ALMEIDA,
Karina; SOUZA, Nadia G. Narrando práticas escolares implicadas na produção de “alunos-
problema”. Anais II Seminário Corpo, Gênero e Sensualidade: problematizando práticas
educativas e culturais. FURG – Rio Grande, 2005.
40
As atividades aqui mencionadas foram realizadas primeiramente em dois encontros com a
turma de alunos e, posteriormente, em dois encontros (num total de oito horas) com um
grupo de professores.
148
Apresento aqui imagens de cartazes e fragmentos narrativos
construídos durante os encontros realizados, procurando ver os múltiplos
modos como os participantes percebem a si mesmos, bem como os sentidos
atribuídos por eles ao espaço escolar onde estão inseridos. Faço esse
movimento na tentativa de entender quais as construções que perpassam
essas subjetividades e como repercutem produzindo efeitos nesses sujeitos
sejam alunos, sejam professores e efeitos de verdade (ou não), inventando
modos de ser/estar, posicionando os sujeitos como normais ou não, sadios
ou não, adequados ou não...
A produção de um grupo de alunos traz, como elementos
significativos desse momento de suas vidas, objetos de consumo que
abrangem especialmente os produtos eletroeletrônicos (TV, DVD, som,
computador, vídeo-game). Denota também o interesse por carros, viagens e
mulheres, estas últimas igualmente narradas como objetos de consumo,
como é possível visualizar nas imagens e fragmentos que trago a seguir:
Figuras 1 e 2.
Anelise: Por que vocês escolheram estas figuras? O que elas têm a ver com vocês?
Alex: Porque a gente gosta de bebida, de mulher, de carro, de som e de TV.
Danilo: Eu gosto de computador, de som, TV, video game e de viajar.
Anelise: E aquelas figuras lá?
Guilherme: Ah, eu gosto de bombom, Nescau, olhar vídeo, relógio, olhar televisão, mexer no
computador e tomar cerveja.
Anelise: E onde é que vocês aproveitam essas coisas que vocês dizem que são
importantes
pra vocês?
Danilo: No quarto. Tudo isso daqui dá pra usar no quarto.
Anelise: Essas coisas que vocês dizem que gostam, vocês nasceram gostando disso ou
vocês foram aprendendo a gostar disso?
Danilo: Aprendendo...
Alex: A gente gostou das figuras que a gente recortou. O que a gente mais gosta, assim, é de
bebida e de mulher.
Anelise: E a bebida... qual é o momento que vocês podem usar isso?
Alex: Em festas.
Anelise: E quando são essas festas?
Alex: Quando meu pai faz caipirinha, aí eu fico tomando.
149
Destaca-se nas produções dos alunos o uso da “parafernália”
eletrônica, bem como o consumo de bebidas, os carros e as mulheres. Tais
elementos remetem aos discursos midiáticos que “vendem” possibilidades
(imediatas ou não) de prazer, de satisfação, de adrenalina...
Em suas discussões sobre os alunos da contemporaneidade, Green
e Bigun (1998) problematizam aquilo que nomeiam de “estudante-sujeito
pós-moderno
41
”. Para eles, a mídia está centralmente implicada na
(re)produção de identidades e formas culturais estudantis” (p.210). Os
alunos não apenas aprendem “coisas” além dos espaços escolares, como
também se (re)inventam como sujeitos nessas relações, nesses aprenderes.
E, em especial, as relações dos “jovens” com o mundo virtual e visual, com o
mundo das imagens, parecem produzir efeitos significativos em suas
subjetividades.
O estímulo ao consumo de alimentos industrializados aparece
intensamente nas produções de todos os alunos, seja em imagens, seja em
textos escritos, como é possível observar no fragmento anterior e nos
próximos.
Figuras 3 e 4.
41
Ao falar em subjetividades pós-modernas, os autores entendem por isso “uma efetivação
particular da identidade social e da agência social, corporificadas em novas formas de ser e
tornar-se humano” (GREEN E BIGUN, 1998, p.214).
150
Cláudia: Eu coloquei uma geladeira porque tem comida.
Gabriela: Eu coloquei essas comidas porque adoro comer isso. Botei Todinho, bombom,
Sucrilhos e umas outras coisas.
Anelise: E onde tu aprendeste a comer essas coisas? Desde quando tu comes essas coisas?
Gabriela: Em casa, como isso desde criança.
Anelise: E essa foto aqui em cima, o que é pra ser?
Aninha: É pra ser a Gabriela, na verdade é ela, eu e a Cláudia.
Anelise: hummm.
Cláudia: Eu coloquei bombons porque gosto de comer chocolate. Coloquei uma máquina
fotográfica porque gosto de tirar fotos e coloquei uma
geladeira porque tem comida dentro, e
eu adoro comer. Gosto de chocolate, bolachinha Negresco.
Anelise: Essas coisas que vocês colocaram aqui, que vocês disseram que gostam de comer,
vocês já nasceram gostando disso?
Alunos: Não.
Anelise: E como é que a gente aprende a gostar de certas coisas?
Alunos, diversas vozes: Comendo, em casa, experimentando.
Anelise: O que mais vocês queriam contar do cartaz de vocês?
Gabriela: Mais nada.
Os alimentos significativos para esses alunos, por serem
prazerosos, gostosos (chocolates Lacta/Nestlé, bolachinhas Negresco,
Nescau, Sucrilhos, chicletes Trident, refrigerantes, entre outros), aparecem
vinculados a marcas conhecidas pelas propagandas midiáticas. Parecem ter
grande importância, pois se destacam em todos os grupos, o que é possível
de ser observado nos próximos fragmentos, embora pretenda discutir outros
aspectos a partir deles.
Outro elemento que se destaca nos cartazes anteriormente
apresentados e também parece ser produzido pelas interpelações da mídia
diz respeito aos desejos das meninas: ser cantora, modelo, atriz... Quando as
meninas são convidadas a falar de si mesmas, as descrições de aspectos
físicos ganham relevância: sou morena, alta, olhos azuis aspectos
associados às posições de alguns ícones da nossa cultura.
Trago o próximo excerto para discutir como os modos de ver-se e
de significar aspectos da vida desses alunos assemelham-se às produções do
grupo anterior, considerando outros pontos para análise:
Tainá: Meu nome é Tainá. Essa figura é pra representar... tipo minha vida... Eu nasci no dia
25 de fevereiro de 1993. A minha mãe é essa aqui, e meu pai é esse aqui. Eu gosto muito de
pizza e, até os nove anos de idade, eu gostava muito de brincar de boneca, que, dos nove
anos em diante, eu comecei a gostar de outras coisas, como video game, computador, essas
coisas.
Anelise: Com quem você aprendeu a brincar de boneca?
Tainá: Com a minha e. O xampu que eu uso é Seda, gosto de tomar água de coco, gosto
de biscoitos Passatempo.
151
Anelise: E tu disseste que até os nove anos tu gostavas de brincar de boneca.
Tainá: Sim.
Anelise: E por que tu mudaste, o que tu achas?
Tainá: Por causa da idade, porque meus pais começaram a comprar computador, video
game, essas coisas.
Anelise: E tu achas que tem uma idade, assim, pra brincar de boneca?
Tainá: Não. Mas é que eu comecei a pensar que, se eu brincava de boneca, eu era muito
criança. Eu comecei a ficar maior, e as minhas amigas também. Meu desenho predileto é
Scooby Doo.
Sandrinho: Eu gosto de jogar vídeo game, né, por isso eu coloquei computador. Eu gosto de
comer lasanha, eu gosto de velocidade, de carros, motos.
Anelise: Tu disseste que tu gostas de velocidade. Com quem tu aprendeste a gostar de
velocidade?
Sandrinho: É legal a velocidade, pra não chegar atrasado, essas coisas. Computador, eu
tenho em casa, mas não é computador, é video game, aí eu jogo lá.
Letícia: Eu gosto de brincar de boneca, andar de bicicleta, gosto de
refrigerante, adoro
olhar DVD e gosto de bombom, Nescau, pastel. E essa aqui sou eu. Eu uso isso tudo em
casa.
Anelise: Tu brincas de boneca?
Letícia: Não. Eu hoje em dia ando de bicicleta. Não brinco mais de boneca porque sou
muito grande, acho que já tenho muita idade pra brincar de boneca.
Na fala da aluna Tainá, é possível perceber os atravessamentos
constantes das marcas (Seda, Passatempo, Scooby Doo) dos produtos que
utiliza em seu cotidiano. A oferta de objetos, como video game e computador,
parece ter modificado ou apontado outros interesses para a garota, que
abandona a brincadeira com bonecas, vista como algo de criança. A aluna,
ao falar de si, traz também seus
familiares, dizendo que aprendeu a brincar
de bonecas com sua e. Da mesma forma que para essa aluna, a família
aparece para outros alunos como uma instância significativa em suas
aprendizagens, associada a outras.
os discursos sobre a velocidade, a adrenalina, os esportes
radicais também têm destaque em outros grupos, como é possível perceber
na fala de Sandrinho.
152
Figuras 5 e 6.
Ismael: Aqui eu botei um carro porque eu gosto de carro, desde pequenininho, quer dizer,
começou este ano. Eu gosto muito de som, de escutar no meu disc-man,. E de olhar DVD
e jogar computador.
Anelise: E onde tu fazes essas coisas?
Ismael: Dentro de casa. Gosto de ouvir pop, pauleira.
Anelise: E carro, por que tu gostas de carro?
Ismael: Isso eu não sei te explicar. Gosto do som, eu gosto deles bem modificados, gosto de
botar som, bem rebaixado, botar DVD, essas coisas.
Anelise: E na televisão, o que tu gostas de ver?
Ismael: Eu gosto de olhar bastante filme, eu tenho DVD, e daí eu gosto de olhar.
Anelise: E no computador?
Ismael: Eu gosto de jogar um monte de coisas, que meu irmão tirou quase tudo. eu
vou numa lan house.
Anelise: Então, tu também gostas de ir em lan house?
Ismael: Eu vou, sim, quase todo dia (...)
Felipe: Eu desenhei chocolate, ovos de páscoa, que eu gosto muito. Eu desenhei um carro,
assim, tunning, rebaixado e coisarada, porque eu gosto muito. Coloquei computador, que eu
amo e que eu jogo todo dia em casa. Jogo futebol, por isso coloquei um nis. Gosto de
andar de bicicleta, que agora eu ganhei uma nova. Gosto de escutar som e falar no celular.
Anelise: E tu tens celular?
Felipe: Tenho.
Anelise: E todas essas coisas, tu já nasceste gostando disso? Ou com quem tu aprendeste a
gostar dessas coisas?
Felipe: Com amigos da rua, meus vizinhos, meus tios, meus pais. Meu pai me ensinou a
andar de bicicleta. Eu aprendi levando tombo.
Leandro: Eu gosto de carro rebaixado e essas coisas, eu gosto dos animais e gosto da minha
família.
Anelise: Qual é a importância que a tua família tem pra ti?
Leandro: É que, se não existisse minha avó, não existiria minha mãe. Se não existisse meu
pai e minha mãe, não existiriam eu e minha irmã.
Anelise: E eles são importantes no teu dia-a-dia?
Leandro: Sim, eu gosto de passear com eles.
Anelise: E de que tipos de animais tu gostas?
Leandro: Cachorro, eu vou ganhar um. De carro, eu aprendi a gostar com o meu pai,
porque ele gosta de carro. Esse bebê aqui é minha irmã, ela é bem pequenininha. Tem
um mês, e eu acho bem legal que ela nasceu.
Alex: Eu tenho uma pergunta a fazer: por que o Ismael e o Felipe desenharam um aerofólio
nos carros?
Anelise: Muito interessante! Por que vocês dois desenharam aerofólio nos carros?
Ismael: Porque nós gostamos de carros tunning, então, a gente colocou isso aqui pra ser
mais tunning.
Anelise: E o que é tunning?
Ismael: É carro transformado, coloca neom, som, DVD, bota outras coisas...
Felipe: Eu já dirigi em casa o Fusca do meu pai.
Anelise: Tu já dirigiste?
Felipe: Eu, sim, o meu pai está me ensinando. estou com vontade de fazer carteira de
motorista.
Esse fragmento mostra que esses alunos trazem consigo, a partir
de suas vivências externas à escola, saberes, gostos, sentimentos, valores
que não são tomados em consideração nas práticas escolares ou vistos como
passíveis de serem relacionados com os conteúdos escolares. A questão do
153
tunningé exemplar nesse sentido, pois, quando o aluno usa a expressão e
não sei do que se trata, percebo que, até então, aquilo não existe para mim,
não tendo nenhum significado. Para tanto, preciso perguntar e buscar
informações sobre o assunto e, naquele momento, o faço por ser interpelada
pela fala dos alunos sinto vontade de saber do que se trata para melhor
compreendê-los. Interrogo-me sobre o espaço encontrado para esses saberes
dos alunos na escola, assim como sobre a impossibilidade ou as dificuldades
de os alunos estabelecerem relações com conceitos, teorias, enfim, objetos
desconhecidos apresentados a eles cotidianamente.
O questionamento remete-me à questão da hierarquização dos
conteúdos escolares, embasada nas concepções adultocentristas que regem a
educação de crianças/jovens e que definem o que é ou não importante ser
aprendido. Esse processo de hierarquização categoriza alguns assuntos
como legítimos, válidos, importantes, enquanto entende outros como
insignificantes, não-válidos ou ilegítimos. Isso aparece em relação à questão
do tunning”, pois, mesmo sendo esse um assunto que interpela um grande
número de alunos, é-lhe negado um espaço legítimo na escola: as revistas
sobre carros são recolhidas, tratadas como assuntos externos à aula.
Construo tal entendimento em função das diversas vezes em que assisti à
“condenação do uso das revistas de carros na sala de aula, que havia
assunto mais importante a ser estudado.
Além disso, as narrativas dos alunos evidenciam seus interesses
pela música e por aquilo que aprendem de maneira visual/virtual: os
espaços onde encontram maior prazer m a ver com a Internet, filmes
(DVD), programas televisivos, lan houses, jogos virtuais, disc-man...
Em discussão com um grupo de professores sobre esses interesses
dos alunos, dois professores comentam:
PI: Nas aulas de informática, é direto, tu desvias o olhar, eles estão em sites de carro.
Querem ver esses carrões.
PP: Quando a gente vai à biblioteca, eles só querem ver as revistas Quatro Rodas.
(...)
PPS: Eu fiquei pensando no respeito que a gente perdeu. Eles querem aprender o que é
importante pra eles e não estão nem aí para o que devem aprender.
Anelise: Devem aprender? Tem algo que eles devem aprender? Por quê?
154
Na aula de informática, só é possível olhar os sites de carros
quando a professora desvia o olhar, justamente porque não é
permitido/considerado importante que os alunos tenham esses
conhecimentos. Além disso, as informações constantes nas revistas Quatro
Rodas não são consideradas como conteúdos que devem ser aprendidos,
sendo desqualificados porque apenas são de interesse dos alunos.
Essas observações fazem-me resgatar as discussões empreendidas
por Green e Bigun (1998) quando problematizam a existência de alienígenas
nas salas de aula. Os autores interrogam-se sobre quem serão esses
alienígenas, ao mesmo tempo em que olham para as subjetividades que
emergem na contemporaneidade e que adentram os espaços escolares.
Trazem em seus escritos a constatação de um crescente processo de
“produção discursiva do pânico moral em torno das formações juvenis
contemporâneas” (p.222). A fala dos autores faz-me pensar: que vozes são
essas que produzem teorias em torno da juventude? Não serão de teóricos
modernos, produzidos dentro de um contexto permeado pelos discursos de
ordem, seqüencialidade, linearidade, próprios da Modernidade?
Para Green e Bigun:
Tem havido, recentemente, na Austrália e em outros países, uma
onda crescente de pânico moral, cujo foco é o suposto desvio da
juventude contemporânea – não apenas sua diversidade ou diferença
mas, mais radicalmente, sua alteridade, e a ameaça que isso
representa para o/a observador/a, para o olhar do ego, para o olhar
do sujeito, para o eu. Esse desvio é oficialmente representado e
construído não como a mudança que tão claramente parece ser, mas
como uma questão de deficiência, de incompletude e de inadequação
(1998, p.212).
Quais as condições de possibilidade existentes para que os
“adultos que pensam a “juventude” e sua educação percebam essas
mudanças como alterações nas configurações de mundo, de relações, de
seres humanos e não meramente como patologias, tendo-se como referência
de normalidade o sujeito moderno?
Os autores complementam:
A juventude era, antes, vista como algo do qual, ao final, a pessoa
acabava se livrando, como um estágio temporário no movimento em
155
direção à normalidade, a ser superado na totalidade, na completude
da fase adulta. Essa passagem ordeira tornou-se agora carregada de
uma incerteza arbitrária. Cada vez mais alienados, no sentido
clássico, os/as jovens são também cada vez mais alienígenas, cada
vez mais vistos como diferentemente motivados/as, desenhados/as e
construídos/as. E, dessa forma, se põe a horrível e insistente
possibilidade: eles/as não estão apenas nos visitando, indo embora,
em seguida. Eles/as estão aqui para ficar e estão assumindo o
comando (GREEN E BIGUN, 1998, p.212).
As discussões empreendidas pelos autores contemplam olhares
sobre a cultura juvenil e as “novas tecnologias do texto, da imagem e do
som” (1998, p.213). Nas falas dos alunos que aqui discuto, evidencia-se a
produtividade da mídia naquilo que passa a ser a vida desses sujeitos: seus
interesses, gostos, curiosidades, aprendizados.
Outro elemento significativo que aparece no último fragmento
apresentado e que está articulado à discussão que aqui empreendo é a
narrativa em torno dos espaços de aprendizagem: familiares, amigos,
vizinhos, rua... Quando perguntei como aprenderam sobre e a gostar de
determinadas coisas, as respostas dos alunos giram em torno da TV,
Internet, amigos, familiares, rua, suas casas. Mas e a escola? Onde fica a
escola como espaço de aprendizagem em suas vidas?
O seguinte fragmento, produzido na apresentação do último grupo
de alunos, torna-se ilustrativo:
Tatiana: Essa aqui é minha irmã, essa aqui é minha mãe, e essa aqui sou eu. Eu gosto de
comer Trident, bombons, salgadinhos, Baballoo e chocolates. A minha iré alta, morena,
é modelo.
Djeison: Eu tenho uma irmã, gosto de andar de bicicleta, gosto de carros esportivos, gosto
de comer chips, churrasco, lasanha; gosto de jogar video game, computador, de olhar TV e
de viajar, e eu tenho uma irmã.
Anelise: E pra onde tu viajas?
Djeison: Pra vários lugares, lugares novos que eu nunca fui ainda.
Anelise: E tu vais com quem?
Djeison: Com meus pais, com meus tios, às vezes.
Anelise: E a tua família é importante pra ti?
Djeison: Sim, porque ela me ajuda nas coisas que eu mais necessito.
Anelise: E essas coisas que tu gostas, computador, coisas de comer, bicicleta, tu
nasceste gostando dessas coisas?
Djeison: Não, eu comecei a gostar quando era criança, olhando na TV, jogando às vezes. Daí
eu comecei a querer comprar mais jogos, mais video games, assim eu fui gostando cada vez
mais.
Clara: Essa é minha mãe, essa sou eu, e essa é minha irmã. Eu gosto de comer salgadinhos
e chocolates.
Anelise: Por que tu colocaste essas figuras das pessoas da tua família?
Clara: Porque são pessoas muito importantes pra mim, porque eu convivo com elas; a
minha mãe trabalha. Nós temos uma família bem unida, não temos brigas.
156
Anelise: E tem mais alguma coisa que é importante na vida de vocês que talvez vocês
tenham esquecido de colocar no cartaz?
Clara: Ahhhh! Os estudos.
Anelise: Ah, é importante isso? Por quê?
Tatiana: Porque, quando a gente crescer, vai ter um futuro melhor, um emprego melhor. Se
a gente estudar, não vai precisar trabalhar tão pesado, que nem os pais precisam. Pra ter
um futuro, pra crescer.
Anelise: E com quem vocês aprenderam isso, que estudar é importante pra ter um emprego
melhor?
Tatiana: Com os professores, com os pais.
Clara: Aqui na escola, porque a gente vem pra escola.
Anelise: Mais alguma coisa que vocês gostariam de dizer?
Clara: Não, acho que era isso.
Anelise: Então tá, obrigada gente.
O questionamento que lanço provoca repentinamente na aluna
Clara a lembrança de que os estudos são importantes, apresentando-se
vinculados a uma “promessa”: o emprego como salvação e garantia de
futuro. Estudar não aparece associado a sentimentos de prazer no momento
presente, de curiosidade atual, porém como algo que deve ser feito para o
futuro... Quando discutem a educação ocidental moderna, Deacon e Parker
(2000) mostram que a
... multiplicidade de discursos educacionais baseia-se num núcleo de
práticas e pressupostos ortodoxos próprios da modernidade e
derivados da iluminista na capacidade da razão para iluminar,
transformar e melhorar a natureza e a sociedade (p.98).
A referência dos autores permite visualizar as ações educacionais
como práticas voltadas não para o “aqui e agora”, mas estratégias cujas
finalidades visam a atingir um determinado projeto de futuro. Direcionam-se
ao que está por vir e que se deseja, de alguma forma, controlar e modelar.
Todavia, ao responderem as questões lançadas inicialmente, os
alunos não lembram da escola como algo significativo em suas vidas.
Somente quando questionados se o mais alguma coisa a ser lembrada
é que uma aluna recorda da escola e dos estudos enquanto possibilidades de
“salvação”. Pergunto-me: do que essa aluna (bem como todos os estudantes)
deve ser “salva”? Será de sua juventude? E o que esta representa:
desordenamento, imaturidade, improdutividade, porvir?
Chama minha atenção, na atividade desenvolvida com os
professores, dentre as muitas diferenças de interesses que se destacam nas
157
suas falas em relação às dos alunos, uma semelhança: quando se trata de
contar o que é significativo em suas vidas, a escola novamente não aparece...
O trabalho com os professores também aconteceu em grupos. Cada grupo
deveria responder algumas questões, utilizando recortes de revistas e/ou
desenhos. As questões eram as seguintes:
1 - Se eu tivesse que falar em mim que coisas (imagens, frases, desenhos) me
representariam? 2 - Como eu me apresentaria para os outros? 3 - Que coisas gosto e
que coisas não gosto? 4 - Que coisas significativas, importantes,
aconteceram/acontecem na minha vida? 5 - Como me vejo dentro da escola? 6 - O
que espero dos alunos?
Nesta sessão, farei discussões somente em torno das quatro
primeiras questões, pois olho para os elementos narrados como significativos
em suas vidas, como já venho discutindo em relação aos alunos.
O trabalho com os professores envolveu quatro grupos, cada um
com três participantes. A seguir, trago imagens e fragmentos das falas de um
dos grupos, a partir do cartaz produzido:
Figura 7.
PGR: Na questão dois, como eu me apresentaria para os outros, de uma forma tranqüila,
sou tranqüila.
PF: Eu escolhi a palavra vencer, me vejo como um vencedor.
PPS: Eu coloquei ali, com alegria e paz, porque acho que tenho essas coisas. Esse sorriso
aqui eu escolhi por representar a alegria.
PPS: A terceira questão, do que eu gosto e de que coisas não gosto. Gosto de praia e de
namorar.
PGR: Eu coloquei: gosto de festa, praticar esportes, beijo na boca, o que mais... (alguns do
grupo dizem: “nossa! referindo-se ao “beijo na boca”). E não gosto de lavar louça.
PPS: Eu coloquei ainda comida, porque adoro comer bem.
PF: Eu coloquei aqui o esporte radical. Tem um prédio aqui que significa o quê? Que eu não
gosto de morar em apartamento e nem de altura.
158
PGR: Sobre a questão quatro, que coisas significativas e importantes
aconteceram/acontecem na minha vida. Eu coloquei a minha filha, a família, o grupo de
amigos, os cuidados com o meio ambiente.
Os elementos que são narrados como significativos, os
acontecimentos que marcam as vidas dos participantes não apresentam
qualquer vinculação ou referência com seu espaço de trabalho: a escola.
Apresentam destaque alguns pressupostos modernos: a busca do
sucesso, ser um vencedor, ter tranqüilidade, harmonia, paz... O que é ser
um vencedor? Em relação a que ou quem? Será sinônimo do que é ser
vencedor para algum dos seus alunos ou terá outros sentidos? Que
elementos permitem ao docente narrar-se como vencedor? Tratar-se-á do
entendimento de que chegou ao ápice do desenvolvimento a vida adulta
–, sendo por isso um ser pronto, maduro? Ou será por ter emprego,
conhecimento?
Um pequeno excerto, produzido durante as discussões com o
grupo de professores, talvez possa dar uma idéia do que se entende por um
sujeito “vencedor”, que “se dá bem na vida”:
PPE: Eu jamais gostaria de ver um aluno meu preso, porque não foi isso que eu ensinei pra
ele. Não foi isso que eu passei todo o ano inteirinho falando pra ele. Eu não passei
ensinando a roubar nem a matar. Não foi isso. Ele não precisa chegar até uma faculdade,
mas que ele consiga se dar bem na vida: consiga ter seu empreguinho, comprar seu
carrinho, sua casa, ter uma namorada, se casar, ter sua família.
A: E se ele arrumar um namorado ao invés de uma namorada?
PPE: Que seja, seu namorado, se quiser. É que a tendência do ser humano é essa, isso é
natural, ele busca a felicidade.
A: Será?
PPE: Eu acredito que todos nós queiramos ser felizes.
A: Mas de onde a gente tem essa idéia de que isso é ser feliz?
PPE: A minha professora me ensinou.
[Risos no grupo] (Diário de Campo, p.200).
Nessa conversa, a idéia de felicidade e de auto-realização do sujeito
aparece ligada a sua adaptação a um modo de vida embasado nos
pressupostos da Modernidade: de sujeito adulto, produtivo, trabalhador,
“bem” relacionado e, portanto, feliz. Torna-se visível também o papel que a
escola tem assumido na constituição de corpos “dóceis e úteis” aos sistemas
de produção onde se encontram inseridos.
Nessa direção, Larrosa (2000) discute:
159
No discurso pedagógico atual, por exemplo, muito influenciado pela
Psicologia Social do Desenvolvimento, é quase obrigatório falar de
como se “desenvolve” a auto-identidade, o autoconceito ou, em geral,
a consciência de si, em um sentido cada vez mais “diferenciado”,
mais “maduro” ou mais “realista”, sempre que se em as condições
adequadas. Em um contexto terapêutico (...) é freqüente falar de
formas não desejáveis ou inclusive patológicas da relação da pessoa
consigo mesma como, por exemplo, a culpabilidade e a vergonha de
si em alguma de suas modalidades extremas, a irresponsabilidade, a
debilidade da vontade ou do caráter, a ausência de autoconfiança
(...). Portanto, todos os termos dos quais falava antes podem ser
elaborados também como se fossem características normativas do
sujeito formado ou maduro, ou do sujeito são ou equilibrado, que as
práticas educativas e/ou as terapêuticas deveriam contribuir para
constituir, para melhorar, para desenvolver e, eventualmente, para
modificar (p.39-40).
Dessa forma, como evidencia a fala no excerto, o que se busca com
a educação é a produção desse sujeito “normal”, natural, desejado. Caso
contrário, se isso não se concretizar, emerge a sensação de “fracasso”, tanto
da educação quanto do indivíduo.
Outro elemento que se destaca é a diferença significativa entre as
produções desse grupo de professores e as dos alunos no que diz respeito às
questões da alimentação: quando PPS conta sobre “comer bem”, a figura que
ilustra sua fala é a de duas panelas com legumes. A questão da alimentação
aparece nas narrativas de todos os grupos de professores, trazendo
entendimentos sobre modos de alimentar-se claramente diferentes das
“comidas prediletas” dos alunos aparecem frutas, legumes, cereais,
feijoadas, massas, enfim, alimentos que contrastam com as comidas de
marcas apresentadas pelos alunos. Sem entrar no mérito do saudável/não-
saudável e sem trazer discussões a respeito, chamo a atenção para a posição
de destaque que a alimentação ocupa na vida dos participantes da pesquisa.
As práticas associadas à alimentação, mais do que ações vinculadas à
sobrevivência pessoal, trazem traços das experiências e das culturas em
diferentes momentos sociohistóricos (CERTEAU, 1997). Quando essas
diferenças são discutidas com o grupo de professores, o que aparece?
PP: Eu acho que eles querem muita coisa. A criança quer porque quer e quer tudo fácil, e
tem coisa que não é fácil. A própria questão da alimentação que apareceu aí, “eu gosto de
bombom, chocolate e não sei o quê”. Tá, então pega e bombom, chocolate e chips pra
160
eles até os vinte e poucos anos para ver o que acontece. tudo o que eles querem, pra
ver o que vai acontecer. Eu acho que a escola tem uma função social também.
EU: O que tu achas que vai acontecer?
PC: Vai ficar doente.
PP: Primeira coisa...
PG: Vão ficar cheios de espinhas...
PP: A primeira coisa é a questão da alimentação. Se comer só bombom, salgadinho e
chocolate, eles vão ter problemas de saúde com isso.
Associadas à alimentação, aparecem noções de saúde/doença e
preocupações com a estética, que em certa medida atuam na direção de
regular os hábitos alimentares e os alimentos promovidos nos anúncios
publicitários. Nessa discussão, aparece, ainda, a noção dos alunos como
crianças, seres imaturos que querem tudo e por isso precisam ser
limitados/educados (dentro dos padrões dos adultos). Não são percebidos
como sujeitos que estão sendo culturalmente construídos nos
atravessamentos da contemporaneidade, os quais poderiam se tornar temas
de discussão nas práticas escolares.
Os próximos excertos trazem mais alguns elementos para
discussão:
Figuras 8 e 9.
PG: A gente recortou, assim, as questões, e cada uma colou na coluna abaixo. “Se eu tivesse
que falar em mim, que coisas, imagens, frases, desenhos me representam?”. Eu coloquei
aqui a imagem de uma paisagem, que representa pra mim um pouquinho de aventura e um
pouquinho de mistério, e a imagem de uma mulher feliz.
PM: Eu coloquei uma pessoa mais ria, que eu acho que me representa. Essa aqui
felicidade, tranqüilidade, de bem com a vida, quando eu estou em casa, descansando,
ficando com o meu marido, nos fins de semana...
PC: É, essa aqui sou eu, bem feliz, contente, meio aloucada, com os cabelos bem assim, e
também tranqüila e simpática.
PG: Que coisas significativas acontecem na minha vida? Eu coloquei, assim, as amizades
que eu estou descobrindo, a espiritualidade, eu conseguir expressar o que sinto, penso, o
que tenho vontade de falar, a minha família e o carinho das pessoas.
161
PC: Eu coloquei saúde, família. O que é importante também para mim é o casamento, e eu
um dia ainda quero casar, não sei se estou iludida, mas eu quero, a amizade, o amor do
meu noivo e das pessoas da minha família.
PM: Coloquei aqui uma foto de casamento, a entrada na igreja com o meu pai, que foi uma
emoção muito grande, aqui o corte do bolo, eu e meu marido, agora casados, e a gente
tem um grupo de amigos que seria... as amizades do nosso grupo de casais. A gente sempre
se reveza nos finais de semana, faz janta na casa de um, de outro, se encontra pra sair
juntos.
PG: Não gosto de faxina, e as coisas que gosto são basicamente isso, e eu coloquei essa foto
por causa da coisa da cultura, de pessoas inteligentes.
PM: Aqui estão as comidas, porque eu gosto de comer muitas coisas, até que não poderia.
Aqui umas fotos de interior, porque eu nasci no interior, eu adoro interior, a casa da minha
mãe e de ir para o interior. Aqui tem mar, água, praia, que eu gosto muito de ir para a praia.
PC: Aqui sou eu, os meus amigos, a minha família e as pessoas que gosto, na praia. E as
comidas também. Só que estou sempre embaixo do guarda-sol porque sou meio branquinha
e tenho que cuidar muito. E o que eu odeio: cozinhar.
PG: Como eu me apresentaria para os outros. Eu coloquei aqui uma pessoa prestativa e
feliz.
PC: Eu também, assim, simpática e aberta a todos.
PM: Eu coloquei essa figura aqui, feliz, simpática.
Novamente, questiono: onde fica a escola como elemento
significativo nas vidas desses/as professores/as?
As narrativas das participantes desse grupo mostram um pouco do
que consideram importantes: os relacionamentos de amizade e amorosos, o
casamento, o descanso e o lazer que as fazem associar finais de semana e
períodos de férias a sentimentos de paz e tranqüilidade, a vínculos
familiares.
Uma diferença marcante pode ser percebida nos modos pelos quais
alunos/as e professores/as narram seus vínculos familiares: a intensidade.
Enquanto para os últimos a família aparece como algo valioso,
imprescindível, para os primeiros, apesar de ser por vezes lembrada, não
apresenta essa mesma importância. Isso remete-me às discussões que
realizei no capítulo anterior, quando analiso algumas falas da Direção da
escola, em que ela refere que as coisas não são mais como eram antes no que
diz respeito às configurações e hábitos familiares.
Uma das professoras relembra suas vivências de menina a vida
no interior do estado, na roça. A grande maioria dos/as docentes dessa
escola é oriunda de regiões agrícolas, tendo vivido, quando crianças, essas
experiências. as famílias, na atualidade, segundo uma narrativa da
diretora que já transcrevi anteriormente:
162
C: Embora aqui seja uma cidade do interior, não tem mais aquela coisa, assim, de noite se
dorme, de manhã se levanta, se toma um café, se vai para a escola ou para o trabalho, de
meio dia todo mundo se reúne em casa, se almoça e depois se volta para o trabalho ou para
a escola, e de noite a família chega e se reúne de novo. Os horários de trabalho estão bem
diversos, e daí não tem essa rotina familiar, daí às vezes os pais trabalham sabe-se até
que horas, sabe-se até que horas os filhos ficam sozinhos. Então, o pessoal está tentando
se encontrar nessas situações todas, e isso gera desconforto e alguns transtornos também...
A economia teve que fazer assim porque, enfim, as exigências de mercado, tem firma que
trabalha madrugada adentro, que não pára, e daí ou eu tenho emprego e me sujeito a
trabalhar da meia-noite às oito da manhã ou eu não trabalho, e daí como é que fica a minha
família, como é que eu vou prover a minha família? Então, fica essa coisa da sobrevivência
se sobrepondo a essa coisa de dar uma boa estrutura familiar, sentar, conversar, dar
carinho, dar conselho, se preocupar se está fazendo o tema, se está vindo com o uniforme,
se está se alimentando, se está fazendo sua higiene corretamente e por vai... (Diário de
Campo, p.32, entrevista com a Direção).
As novas configurações nas relações familiares são vistas como
problemáticas, apesar do conhecimento de que mudanças
aconteceram/acontecem associadas às transformações sociais, econômicas e
políticas implicadas nas relações de trabalho, produção, consumo, dentre
outros fatores. Mesmo assim, num movimento saudosista de olhar a
história, as novas configurações são comparadas à família tradicional e ao
seu modo de vida, supostamente bem estruturado, organizado, feliz. Desse
processo de comparação, o que resta? A patologização dos novos modos de
vida, considerados como inadequados, produtores de transtornos, de
“alunos-problema”, de pais pouco presentes...
Nesse sentido, interrogo-me a respeito dos entendimentos que
os/as docentes podem ter em torno dos modos de vida de seus alunos/as e
quais seus efeitos nas relações que estabelecem com eles no processo de
escolarização. Ao mesmo tempo, sinto-me interpelada pelas palavras de Inês
Castro Teixeira (1996), quando discute a condição dos professores como
sujeitos socioculturais que estão num permanente constituir-se, compondo
uma categoria da sociedade bastante heterogênea, por envolver “pessoas
vivas e reais com atributos de gênero, cor, idade, visões de mundo (...)
pessoas com múltiplas e comuns experiências...” (p.181). Segundo a autora:
Os professores exercem sua atividade e se constituem como tal em
contextos sociais e históricos, dimensionados em estruturas,
instituições e processos resultantes das escolhas e contingências da
ação humana. (...) Seu fazer e pensar, seus saberes e representações
não emergem no vazio, mas em espaços macro e microssociais,
fluentes em tempos históricos de curta, dia e longa duração.
Realidades fundadas em dimensões materiais e simbólicas, presentes
163
como matrizes de significação e como ressignificação, construídas
nas práticas instituídas e instituintes de sujeitos individuais e
coletivos, no cotidiano de suas vidas. Experiências tecidas no mundo
vivido, marcadas pela temporalidade (TEIXEIRA, 1996, p.180-181).
Nesse sentido, as narrativas dos alunos e dos professores
mostram-me cotidianos, vivências, contextos sociais implicados na
constituição de sentidos diversificados para as suas vidas, produzindo
individualidades, o que me faz pensar nas práticas escolares e sua busca de
homogeneização. Que sentimentos o cotidiano escolar produz nos/as
alunos/as? E nos/as professores/as? Como esses personagens significam a
escola, nela se significam e o que dela esperam?
MÚLTIPLOS SENTIDOS PARA A ESCOLA: PROFESSORES/AS E
ALUNOS/AS.
Na busca de compreender os sentidos atribuídos à escola na vida
dos/as alunos/as e dos/as professores/as, propus atividades com esse
objetivo, entendendo tais sentidos como contingentes, circunstanciais.
O levantamento de questões nessa direção surgiu, conforme discuti
na seção anterior, daquilo que emergiu ao final das atividades realizadas
com os alunos, quando a escola minimamente apareceu associada à
promessa de “salvação” futura. Passei a questionar: será esse o único
sentido? Ou haveoutros? O que a escola representa para esses alunos e
alunos? Como eles se percebem como seus integrantes?
Então, a partir dessas inquietações, propus com os alunos uma
atividade em que os mesmos deveriam, individualmente, produzir desenhos
numa folha A5 previamente preparada, buscando responder quatro questões
norteadoras: como me vejo na escola? O que gosto na escola? O que não
gosto na escola? O que espero da escola?
Com os professores, a técnica utilizada foi um pouco diferente.
Conforme relatei na seção anterior, as duas últimas questões propostas para
a confecção de um cartaz com recortes de revistas foram: como me vejo
dentro da escola? O que espero dos alunos?
164
As narrativas produzidas pelos participantes a partir dessas
interrogações passam a conduzir as análises que empreendo a seguir.
Ao retratar como se vêem na escola, os alunos apresentam as
seguintes produções:
Figuras 10, 11 e 12.
Figuras 13, 14 e 15.
Quando os alunos falam de suas produções a respeito de como se
vêem, como vêem a escola e o lugar que ocupam ali, evidenciam-se algumas
percepções: inseridos num grupo de amigos com quem brincam, conversam
muito, jogam bola; alguém que está na escola para aprender, para “ser
alguém na vida”; um grande número de alunos dessa turma percebe-se
como malvados, bagunceiros, alunos/as que querem brincar (no sentido
pejorativo de “não querer estudar”) e também que destroem as coisas da
escola (no caso da figura, as cadeiras).
O primeiro aspecto citado destaca-se no seguinte excerto:
Anelise: E o que de melhor na escola? O que apareceu aqui nos desenhos de vocês?
Ismael: Acho que o melhor são os amigos, eu gosto de vir aqui para encontrar meus amigos
e também porque ia ser muito chato ficar em casa a tarde inteira, o meu pai fica na
lancheria e a minha mãe trabalha também.
165
Felipe: É, o meu pai e a minha mãe ficam trabalhando o dia inteiro, e aí, de manhã, eu vejo
televisão, mas, de tarde, eu ia cansar muito de ficar o dia inteiro vendo televisão (Diário de
Campo, p. 174).
A escola aparece, na fala de alunos, como um espaço de encontros
que pode lhes permitir o ficar tão sozinhos, um lugar para experiências
diferentes daquelas que vivem com a televisão, por exemplo. Para os alunos,
a escola “tem um sentido próprio, que pode não coincidir com o dos
professores e mesmo com os objetivos expressos pela instituição” (DAYRELL,
1996, p.147). Ao rememorar cenas da sala de aula, recordo a distribuição
das classes, cuja disposição em fileiras mantém os alunos separados,
desencontrados. Essas lembranças tornam possível perceber a polissemia de
sentidos existentes na escola, assim como as tentativas de ressignificação
dos espaços escolares e das suas finalidades pelos alunos. Quando falo em
ressignificação, refiro-me aos modos “marginais” através dos quais os alunos
arranjam maneiras de se encontrar, seja “escapando” da sala de aula para
conversar no pátio, seja juntando-se em pequenos grupos por afinidades ou,
ainda, perturbando as aulas com as conversas paralelas (falando sobre
coisas de seu interesse – namoricos, garotas/garotos, festinhas, futebol, etc).
Esses encontros acontecem, na maioria das vezes, de modo rápido e
superficial, não permitindo um maior aprofundamento, pois, “na medida em
que a escola não incentiva o encontro, ou ao contrário, dificulta a sua
concretização, ele se sempre nos curtos espaços de tempo permitidos ou
em situações de transgressão” (DAYRELL, 1996, p.149).
Durante a discussão que realizamos ao final das apresentações dos
cartazes, alguns alunos comentam que “é chato vir pra escola”. Então,
questiono:
Ao final, interrogo alguns alunos que estavam por perto: E então, gente, o que podemos
perceber com esse trabalho de hoje? Um dos alunos responde: É, parece que todo mundo
reclama da escola, são poucos os que gostam. Interrogo: E o que vocês acham disso? Outro
menino diz: É meio chato isso, mas eu prefiro jogar bola e fazer outras coisas do que vir na
escola, ainda mais com aquele professor (...). Pergunto: Ora, gente, mas se é tudo assim
chato como vocês dizem, por que vocês vêm até a escola? Ismael responde: Porque meu pai
manda, e, se eu não venho, o Conselho Tutelar vai atrás. Outro aluno diz: É que também a
gente tem que estudar, senão vai ter que ficar sempre trabalhando nas fábricas, ganhando
pouco. O pai sempre diz que ele não estudou, e isso faz falta. É que eles moravam na roça
quando ele era pequeno, e ele tinha que trabalhar com o meu vovô. Questiono: Então,
166
estudar é como uma garantia de viver melhor, de ter um trabalho que pague mais? Ismael:
É, e onde não se precise trabalhar tanto!!! (Diário de Campo, p.173-174).
Nessa conversa, novamente, a escola surge como um lugar cujos
ensinamentos podem garantir “um lugar ao sol”. Esses ensinamentos
configuram-se como a “promessa” de um futuro melhor, uma vida não tão
sofrida quanto a dos pais. Além disso, frente aos desejos de jogar bola,
brincar, ver TV, a obrigatoriedade de freqüentar a escola torna-se
assegurada através da articulação de instâncias sociais, da família e do
Conselho Tutelar.
Talvez o embate entre as “vontades” das crianças (tornadas alunos
e alunas pelo sistema escolar) e as práticas pedagógicas disciplinares, que
buscam “educar”, endireitar, ordenar essas vontades, produza em muitos
alunos e alunas (especialmente naqueles que oferecem maiores resistências)
movimentos “inadequados”, modos “marginais” de fazer sobreviver tais
vontades em meio às demandas escolares, identificando-os como “desvios”.
Isso torna-se visível nas narrativas de vários alunos dessa turma, em
especial nas falas daqueles considerados “alunos-problema”:
Sandrinho: Tá, meu nome é Sandrinho, e aqui, no primeiro quadrado, eu fiz eu, sabe,
professora, como eu me imagino, como uma peste, e aqui eu estou incomodando meu
professor, né (...)
Ismael: Tá, meu nome é Ismael. Na primeira pergunta, eu escrevi “malvado” porque eu não
gosto assim, quando eu estou brincando com gurias, eu fico brabo e brigo (...).
Wesley: Meu nome é Wesley. Como me vejo na escola: quebrando cadeiras.
Anelise: Como assim?
Wesley: É que tem umas cadeiras tortas que a gente quebra de tanto se escorar pra trás,
assim (mostra com o corpo).
Anelise: E é só isso que tu fazes na escola?
Wesley: Não, não. Eu não botei mais aqui porque não coube o resto. Senão, eu ia colocar.
Anelise: E o que mais tu ias colocar?
Wesley: Ih, professora, um monte de coisa (...).
Anelise: Aqui eu queria te perguntar mais. Tu disseste que tu fazias muitas outras coisas
na escola. Eu queria saber que outras coisas são essas.
Wesley: Bagunça... não respeito os professores.
Anelise: Mas, além disso, tem outras coisas, não tem? O que mais tu fazes na escola? Será
que não tem mais nada?
Wesley: Ah é, “psora”, aqueles mapas com a “psora” de Geografia!!!! Um monte de coisa,
toco violão também, desenhar também.
Anelise: É, me parece que tem muitas coisas que tu sabes fazer e fazes aqui na escola...
(Diário de Campo, p.169-172).
Em relação ao Wesley, este é narrado, no início da pesquisa, como
“aluno-problema”. Porém, no decorrer do ano letivo, algumas coisas
167
modificam-se, ele passa a estabelecer vínculos mais afetivos com a maioria
de seus/suas professores/as; a dedicar-se, mostrando-se produtivo e com
excelentes condições de aprendizagem em algumas disciplinas; a auxiliar a
direção e coordenação pedagógica em atividades da escola; a confeccionar
materiais didáticos para as aulas de Geografia ao ser
incentivado/aproveitado pela PG; a participar do grupo de canto da escola,
em que toca violão. No entanto, em agosto, quando essa atividade de
pesquisa é desenvolvida, o aluno mostra perceber-se como um “problema”
na escola, alguém bagunceiro, que destrói as cadeiras escolares e incomoda
os professores, diferentemente também de como eu o tenho visto na sala de
aula.
Ao discutir os papéis de alunos e professores, Dayrell (1996) vai
dizer que “esses papéis não são dados, mas sim construídos, nas relações no
interior da escola, onde a sala de aula aparece como lugar privilegiado”
(p.153). Uma série de elementos contribui nessa construção
:
Na construção do papel de aluno, entra em jogo
a identidade que
cada um veio construindo, até aquele momento, em diálogo com a
tradição familiar, em relação com a escola, e com suas experiências
pessoais em escolas anteriores. É um diálogo com estereótipos
socialmente criados, que terminam por cristalizar modelos de
comportamento, com os quais os alunos passam a se identificar, com
maior ou menor proximidade: o “bom aluno”; o “mau aluno”, o
“doidão”; o “bagunceiro”; o “tímido, o “esforçado”. Concorre para essa
escolha a tradição que a própria escola, e seus professores, mantêm,
relacionada com uma concepção de aluno, naquele espaço. (...). A
construção do papel desses jovens, como alunos, vai se dando,
assim, na concretude das relações vivenciadas, com ênfase na
relação com os professores. É esse mesmo entrecruzamento de
modelos que constrói os diferentes “tipos de professores e demais
sujeitos na escola (DAYRELL, 1996, p.153).
A discussão do autor remete às narrativas circulantes na escola,
nas quais os alunos são interpretados de modos diferentes por diferentes
professores. Do mesmo modo, também os professores são percebidos e
narrados de modos diversos pelos alunos. O Wesley, por exemplo, para PM, é
um dos melhores alunos – interessado, participativo, é sempre um dos
primeiros a concluir as atividades –, enquanto que, para PP, é um aluno-
problema”, que não mostra interesse algum e não faz nada na aula.
168
As discussões de Dayrell sobre os tipos de relações entre os
professores e os alunos e a produção destes trazem elementos para eu
pensar nos efeitos das relações que vi funcionando naquela escola. Segundo
ele:
Na relação entre professor e aluno, existe um discurso e um
comportamento de cada professor que termina produzindo normas e
escalas de valores, a partir das quais classifica os alunos e a própria
turma, comparando, hierarquizando, valorizando, desvalorizando.
Dessa forma, a turma como um todo, e os alunos, em particular,
podem ter uma reação própria a cada professor, dialogando, negando
ou assumindo sua imagem. Nessa construção de imagens e
estereótipos, mesmo sendo fruto das relações entre professores e
alunos, o discurso e a postura destes tem uma influência muito
grande, interferindo diretamente na produção de “tipos” de alunos e
da própria turma (1996, p.153-154).
Interrogo-me sobre a força das categorizações criadas na escola.
Talvez, nas suas práticas, sejam enfatizadas as falhas, os “desvios”, as
inadequações dos alunos, visto que se espera que eles “naturalmente”
correspondam às demandas disciplinares. O adequar-se, o corresponder às
expectativas não ganha destaque, pois é o habitual. No caso do aluno
Wesley, seus “desvios” parecem ter tido maior destaque do que propriamente
suas adequações. Talvez por isso mesmo, adaptando-se e correspondendo às
regras, ele continua percebendo-se como “indisciplinado”, “rebelde”,
“bagunceiro”.
Ao falarem sobre o que gostam na escola, como mostram as figuras
abaixo, os alunos destacam: as aulas de informática (que acontecem em
apenas uma hora por semana), a árvore do tio (na qual estão proibidos de
subir, somente podendo fazê-lo quando as professoras não estão por perto),
os jogos de futebol e futsal e as mesas de pingue-pongue (nas quais jogam
durante o recreio ou antes do início das aulas).
Figuras 16, 17, 18 e 19.
169
Nos desenhos produzidos pelos alunos, as atividades que aparecem
como significativas são atividades escolares que opto por nomear, aqui, de
“atividades marginais”, que ocorrem fora dos horários oficiais” de
aprendizagem nos recreios, intervalos ou em aulas consideradas não tão
importantes”, como Educação Física e Informática
42
.
Quando os alunos contam sobre as coisas que não gostam na
escola, evidenciam-se as práticas e instâncias punitivas, a falta de nculos
mais afetivos e de maior conforto físico. Como mostram as figuras abaixo:
Figuras 20,21,22 e 23.
Nas conversas, os alunos apontam algumas situações que lhes
desagradam na escola: os modos como, em especial, um dos professores se
relaciona com a turma (falam dos “xingões”, da agressividade, das
cobranças); as provas, que são vistas como estratégias dos professores para
“pegar” os alunos; as brigas que acontecem às vezes; e o que mais se
destaca, a sala da direção como um espaço de punição, de reprimendas,
onde a figura da diretora aparece relacionada com severidade, rigidez e falta
de afeto.
Por fim, quando se trata de contar sobre o que esperam da escola,
que elementos o trazidos por alunos e alunas? Em suas expectativas, eles
esperam que ali: sejam oferecidas atividades como ciclismo, skate; haja uma
cantina para que possam comprar lanche; o encontrem mais banheiros
42
Falo aqui de aulas não tão importantes em comparação com outras disciplinas escolares,
como Português ou Matemática, cuja carga horária semanal tem o dobro ou mais de horas-
aula do que as citadas.
170
mal cheirosos, como habitualmente ocorre; e, por fim, que os professores
melhorem no sentido de não levarem os alunos para a Secretaria.
Isso é possível ver nas produções abaixo:
Figuras 24, 25, 26 e 27.
E nas falas dos alunos:
Sandrinho: (...) aqui eu quero que eles armem uma pista de skate na escola.
Anelise: Ah, uma pista de skate. Tu gostas de skate?
Sandrinho: Sim, gosto (...)
Djeison: (...) e o que espero da escola é que abra um barzinho aqui.
Anelise: Por quê?
Djeison: Pra poder comprar comida nele.
Anelise: No refeitório, não tem comida que tu gostas?
Djeison: Tem, nem sempre (...)
Wesley: O que eu espero da escola... uma cantina.
Anelise: Por que uma cantina?
Wesley: Porque daí dá pra comprar “refri” e outras coisas que hoje não tem.
Tainá: (...) E o que eu espero da escola é que não tenha banheiros mal feitos e fedorentos.
Só que é assim, muitas escolas onde eu fui, sempre elas eram, assim, eram isso (...)
Gabriela: (...) eu espero que alguns professores mudem.
Anelise: Como assim?
Gabriela: É que tem uns professores que são muito chatos. Tem uns que entram na sala,
entram gritando, não sabem conversar.
Anelise: E o que é essa figura aqui que tu desenhaste?
Gabriela: Ah, professora, é pra ser um professor levando um aluno pra Secretaria da escola
por uma coisinha qualquer.
Anelise: Mas isso acontece? Levar aluno pra Secretaria por uma coisinha qualquer?
Gabriela: É o que mais acontece.
Alguns alunos: Ih, é o que mais acontece! Eu já fui, ele já foi, quase todo mundo aqui já foi.
As expectativas dos alunos e das alunas em relação à escola
abrangem desde elementos da sua organização física, como a questão dos
banheiros (percebidos como mal cuidados, sujos) e da existência de uma
cantina onde possam comprar lanches (o que nos auxilia a pensar sobre os
sentidos atribuídos à alimentação pelos alunos), aelementos relacionados
171
às maneiras como são tratados, como se estabelecem e acontecem as
relações interpessoais naquele espaço.
Das discussões, ainda outro elemento que considero significativo
diz respeito a como os alunos experimentam as práticas ligadas aos
processos de aprendizagem e como passam a pensar sobre elas. No debate
que acontece após a apresentação dos cartazes pelos alunos, algumas
questões emergem, das quais, trago o seguinte fragmento:
Anelise: E as coisas que vocês aprendem na escola?
Felipe: hum... algumas coisas são legais...
Silêncio.
Anelise: O quê, por exemplo?
Felipe: Sei lá.... Eu gosto de estudar as coisas de ciências sobre o lixo, sobre a água, sobre
as comidas que comemos; de Matemática, eu não gosto, nem de Português.
Wesley: Eu gosto muito de Matemática, mas o PP, eu não posso nem ver, nem ele quer
me ver. É que, sabe, “sora”, nós brigamos no começo do ano (...).
Ismael: Eu gostei de conhecer aquelas coisas sobre o Egito. Eu entrei na Internet, e
tem muita coisa sobre isso, é muito legal!!!! Mas não gostei de estudar no livro, aqueles
textos que tem lá. Eu estudei pra prova na Internet, aí é bem melhor.
Anelise: Por que é bem melhor? Qual é a diferença de estudar na Net e no livro?
Ismael: Ah, profe”, no livro, é tudo parado. Na Net, tem umaS animações lá, é bem mais
divertido, tem um monte de curiosidade, e aqui tem que ficar sentado na sala lendo....
em casa, eu fico na Net, mascando chiclé ou comendo coisa boa... é bem melhor estudar
assim (Diário de Campo, p.174).
Além de se perceber que uma diversidade naquilo que chama a
atenção dos alunos, mobilizando-os para aprender, dois aspectos também
merecem consideração. Um deles refere-se aos conteúdos que parecem fazer
sentido, que se encontram vinculados a elementos de seus cotidianos. Outro
relaciona-se às abordagens e aos ambientes que representam espaços de
aprendizagem na vida
desses alunos, especialmente a dinâmica e
possibilidades promovidas pelas novas tecnologias de comunicação ligadas à
informática, assim como a “fuga” às regras escolares.
Para Dayrell (1996), o modo como se lida com o conhecimento
escolar não permite que os alunos nem compreendam melhor a si, nem ao
mundo onde vivem, o que acaba por dificultar que os ensinamentos
escolares integrem seus projetos de vida. O autor interroga se “a escola, mais
do que enfatizar a transmissão de conhecimentos, (...), não deveria se
orientar para contribuir na organização racional das informações recebidas e
172
na reconstrução das concepções acríticas e modelos sociais recebidos” (p.
156).
Ao discutir possibilidades de aprendizagens significativas para os
alunos, Dayrell vai dizer que:
(...) o aluno aprende quando, de alguma forma, o conhecimento se
torna significativo para ele, ou seja, quando estabelece relações
substantivas e não arbitrárias entre o que se aprende e o que
conhece. É um processo de construção de significados, mediado por
sua percepção sobre a escola, o professor e sua atuação, por suas
expectativas, pelos conhecimentos prévios que possui. A
aprendizagem implica, assim, estabelecer um diálogo entre o
conhecimento a ser ensinado e a cultura de origem do aluno (1996,
p.156).
As narrativas apresentadas anteriormente pelos alunos e as
discussões levantadas pelo autor fazem-me pensar acerca da complexidade
dos processos associados à apreensão de conhecimentos e dos embates
travados no cotidiano escolar, marcado por estratégias de controle,
ordenação e homogeneização da multiplicidade/diversidade presente ali.
E os docentes? Como sentem a escola e o que dela esperam? O que
esperam de alunos e alunas?
As professoras participantes de um dos grupos trouxeram as
seguintes colocações:
PG: Como me vejo dentro da escola: eu coloquei assim, prestativa e observadora, às vezes
estressada e à vezes como o King Kong, assim... Os alunos vêem a gente como bicho dentro
da escola, e nós temos mesmo desses momentos às vezes também.
PC: Como é meu primeiro ano, eu me vejo muito agoniada, muito confusa, angustiada com
as coisas que estão acontecendo e que acontecem. Então, estou sempre aflita.
PM: Eu coloquei também aqui pensativa, mas, ao mesmo tempo, eu coloquei também muito
feliz, porque aquilo que eu faço é porque eu realmente gosto de ser professora. Eu amo ser
professora.
Esse excerto aponta para diversos sentimentos relacionados ao
modo como experimentam o ser professor/a. As práticas e as relações sociais
que acontecem na escola parecem interpelá-las, provocando preocupação,
angústia, estresse, aflição, felicidade... As diferentes experiências pessoais,
os modos de agir, os tempos como docente, os jeitos de sentir a docência
configuram modos individuais de vivenciar a posição de professor.
173
Ao falarem de si, as professoras trazem atributos associados à
forma como se vêem no cotidiano escolar e também possíveis modos como os
alunos as vêem: como o King Kong, por exemplo. Para Teixeira (1996), as
relações entre professor e alunos funcionam como elementos constituidores
da auto-imagem e identidade do docente. Ao discutir o papel constituidor
dessas relações. A autora vai dizer que:
São relações de troca, no sentido de que, deliberadamente ou não,
em seus encontros e desencontros, professores e estudantes
aprendem. sempre uma circulação de conhecimentos formais e
sistemáticos, de que os primeiros são titulares, como também de
saberes da vida cotidiana, das formas e conteúdos culturais, de que
os alunos são igualmente portadores (...) São também relações de
conflito e tensão, visto que professores e alunos ali estão em
distintos lugares e posições de poder, quando não distanciados por
suas faixas de idade, por diferenças de origem e localização social,
pertencimento étnico, diversidade de linguagens, de habitus.
Diferenças que atravessam suas relações e que resultam na
diversidade de percepções, sentidos, expectativas e interesses
trazidos e confrontados no convívio escolar. Isto porque, nos dois
pólos dessa relação, sujeitos, universos sócio-culturais e
biográfico-pessoais, seres de desejo e história. Sujeitos não apenas
singulares, mas únicos (TEIXEIRA, 1996, p.187-188).
Como é possível observar, cada uma das professoras sente de
modo diferente sua inserção na escola, experimentando essas vivências de
modos heterogêneos.
Outro modo de experienciar o estar na escola é trazido por uma
professora:
PPO: E, na escola, eu coloquei aqui o pânico, porque eu entro em pânico. É meio exagerado
o negócio, mas eu realmente entro em pânico quando eu vejo que os alunos não estão nem
aí, não fizeram o tema, não aprenderam, não sabem escrever, e eu não consigo fazer nada
para mudar isso. Isso me deixa em pânico. Hoje de manhã, acho que foi a pior aula que eu
dei, porque eu gosto de disciplina, : não perturbe”. Acho que todo mundo tem que ser
disciplinado porque, com disciplina, tu constróis coisas. Qquando tem uma turma
disciplinada, eles constroem em trabalhos em grupo, eles constroem conhecimentos, eles
perguntam. Agora, com bagunça, eu não consigo construir nada com eles. E hoje de manhã,
dei uma aula horrível, eles estavam todos sentados, quietos, eu explicando durante dois
períodos um conteúdo que era um pouquinho complexo, e eu pensei “vou dar uma baita
explicação hoje e eles vão perguntar...” e eles não perguntaram nada. Quando eu
terminei, estava todo mundo dormindo na aula, e, turma disciplinada, todo mundo
quieto, também não agrada a gente. A gente fica feliz quando está todo mundo comportado,
mas eu saí arrasada na hora do intervalo, porque ninguém tinha perguntado nada, estava
todo mundo viajando, pensando bem em outras coisas. Quer dizer, foram dois períodos
perdidos, eu vou ter que explicar tudo de novo na próxima aula, porque ninguém prestou
atenção, e isso me deixa em pânico também. Disciplina não é todo mundo sentar atrás um
do outro e calar a boca e ficar te ouvindo. É participar e construir. E como eu me sinto
174
na escola é isso aqui, como se eu estivesse numa redoma de vidro, eu no meio e com um
baita ponto de interrogação em cima da cabeça. Eu me vejo no meio de um monte de gente
diferente e, ao mesmo tempo, isolada do mundo, porque a gente fica isolada do mundo
dando aula, a gente leva um monte de coisa pra casa, parece que tu não vives outra coisa a
não ser o magistério. Eu me sinto assim. Cada um tem seus sentimentos. Eu me sinto
emburrecendo, porque eu poderia estar procurando muito mais coisas, mais informações,
eu agora, indo para o meu pós (em Administração de Recursos Humanos), eu me sinto
muito bem. No ano passado, eu estava quase louca, eu me sentia emburrecendo. Eu só via
redação de aluno, eu via aqueles conteúdos de primeiro grau, mas não aprendi nada de
novo. Agora,me sinto melhor e também porque estou fazendo outra coisa que não tem a ver
com o magistério, que eu acho que o magistério não tem futuro neste país (...).
Trago esse grande excerto por ver nele a emergência de
sentimentos dos docentes a partir de suas vivências escolares, apontando
para os embates que experimentam subjetivamente entre o que deve ser e
fazer um/a professor/a e como sentem esse modo de ser professor/a.
Os discursos e as estratégias que normatizam o lugar, as funções,
as abordagens dos/as professores/as, especialmente como transmissores/as
de conteúdos a serem “ensinados” no decorrer de um ano letivo, parecem
gerar uma espécie de esvaziamento, falta de sentido e desprazer nessas
práticas repetitivas e corriqueiras, como pude observar em aulas a que
assisti.
Ao discutir sobre o que as formas de ensino tradicionais geram
para professores e alunos, Dayrell aponta que:
Os professores, na sua maioria, presos que estão a esta forma de
lidar com os conteúdos, deixam de se colocar como expressão de
uma geração adulta, portadora de um mundo de valores, regras,
projetos e utopias a ser proposto aos alunos. Deixam de contribuir
no processo de formação mais amplo, como interlocutores desses
alunos, diante de suas crises, dúvidas, perplexidades geradas pela
vida cotidiana (1996, p.156).
Simultaneamente, tais abordagens geram conflitos, como os
experimentados por essa professora quando passa a confrontar-se com
questionamentos como o que é ou não a disciplina, como a mesma deve ser
administrada para tornar-se produtiva”, evidenciando o embate entre os
ensinamentos postulados na sua formação como professora e os efeitos
produzidos por suas práticas pedagógicas. Isso não passa em branco em sua
vida; ao contrário, interroga-a, desestabiliza-a, provocando desassossego.
175
As questões levantadas pela professora e as palavras do autor
levam-me, novamente, a pensar na sensação de esvaziamento da função de
professor/a, tantas vezes emergente nas vozes dos docentes com quem
estabeleci relações no decorrer deste estudo. Parece haver pouca valorização
de seu próprio trabalho educativo, expressa através de queixas constantes
em torno de baixos salários, excesso de trabalho, falta de atenção, falta de
tempo para fazer o que gostam (ler, ficar com a família) e ênfase no prazer
experimentado nos finais de semana (quando ficam com a família e amigos),
contrastando com o desprazer durante a semana (quando ficam na escola),
etc. Ao mesmo tempo, talvez em função da visão de suas funções (meros
transmissores de conteúdos escolares), parece haver uma considerável
dificuldade para que a maioria dos professores perceba a “dimensão do
conjunto das relações que se estabelecem ali na sua frente, na sala de aula”
(DAYRELL, 1996, p.155). Isso os impossibilita de “potencializar a
aprendizagem, em curso, de uma das dimensões humanas, ou seja, do
grupo, das relações sociais e seus conflitos” (idem, ibidem).
Não ver a escola como um espaço rico em relações, modos de
pensar e agir parece dificultar ou mesmo impossibilitar que ali se configurem
convivências, trocas e relacionamentos prazerosos, tanto para professores
quanto para alunos. Nesse sentido, um dos movimentos que realizei durante
os encontros com professores e professoras foi abrir a possibilidade para que
se aproximassem das narrativas produzidas por seus alunos nas atividades
da pesquisa.
A ESCOLA COMO ESPAÇO DE CONFLITOS
Nas narrativas dos docentes sobre a sua posição e a dos alunos na
escola, aparecem ideais da modernidade associados ao desejo de que aquele
seja um espaço harmonioso, tranqüilo, pacífico, onde um ensina e outros
aprendem atenta e interessadamente...
Vejamos as falas nos fragmentos apresentados a seguir:
176
PPS: Na questão cinco, como me vejo dentro da escola, acho que junta algo de várias
pessoas, né, de família, a comunidade também, em geral, nãoalunos. Sinto-me integrada
e comprometida e preocupada com as coisas que acontecem. E o que espero dos alunos...
Eu coloquei amizade, paz, colaboração, que aprendam e estudem. Acho que uma das coisas
com que eu realmente me preocupo com os alunos é que eles, a cada ano que passa, que
eles realmente estudem e se comprometam com os estudos.
PGR: Eu coloquei essa figura aqui, que está representando uma pessoa que está falando,
como um professor e duas pessoas prestando atenção, que são os alunos. É porque eu
quero, assim, que eles dêem valor, que nos valorizem por aquilo que a gente faz, que nós
ensinamos para eles.
PPS: E que se tratem com amizade, né, e menos intrigas.
Nessas falas, não se problematiza aquilo que é ensinado,
aparecendo como natural que os alunos queiram/devam aprender aquilo
que o/a professor/a deve ensinar. Mesmo que se perceba a presença de
elementos das vivências familiares e comunitárias, ali não tem “lugar” para
tais aprendizagens, visto que predominam pensamentos e tipos de relações
em que “professor ensina, aluno aprende”.
Todavia, se tomamos os docentes como sujeitos socioculturais,
conforme Teixeira (1996), talvez seja necessário olhá-los também enquanto
sujeitos que foram aprendendo, nas suas experiências de vida, modos de
significar as práticas educativas. Nesse sentido, interrogo: como esses
sujeitos vivenciaram suas experiências como alunos ou alunas? Que
sentidos foram produzidos neles, nessas passagens, nesses “banhos” de
cultura
43
?
De acordo com a autora:
... a cultura configura um mundo simbólico, que atribui significados,
ordena, classifica o visível numa construção imaginária, porém
igualmente constitutiva do real, de que se torna parte. Um “mapa”
que delimita a forma como se lê, se sente e experiencia o mundo e a
vida (...). Ao demarcar uma certa maneira de ver, de sentir, de
perceber, de compreender, de interpretar e significar o mundo, a
cultura define uma certa maneira de ser e de agir, um modo de vida,
instaurando a diversidade cultural (TEIXEIRA, 1996, p.183).
Assim, os modos de os docentes entenderem/experienciarem a
escola e suas funções o construções culturais implicadas na constituição
43
Estou entendendo “cultura” como “uma ‘teia de significados’, que torna possível a vida em
sociedade. Uma invenção mediante a qual os homens dão sentido, nomeiam, interpretam e
organizam sua experiência no mundo” (GEERTZ, 1989 apud TEIXEIRA, 1996, p.183).
177
de seus modos de ser professores e professoras, portanto, são contingentes e
passíveis de problematizações.
Outra questão, ainda, a ser lançada: o que esses docentes esperam
dos alunos? Como desejam que seja a escola?
PC: Eu gostaria que os alunos fossem, assim, queridos, amigos, meiguinhos, como essas
duas meninas aqui, que parecem uns anjinhos.
PM: Eu também queria meus alunos assim, bem comportadinhos, queridos, limpinhos. É
isso que a gente espera dos alunos (...) que eles sejam quietinhos, dedicados, inteligentes
também.
PPE: (...) O que eu não gosto é de confusão, desorganização, tem aquele monte de papéis,
porque eu sou muito desorganizada, e aí, quando eu quero uma coisa, eu não acho e eu
detesto isso. E aqui as brigas, violência (...) é uma coisa que eu não consigo trabalhar bem,
esse negócio de briga, quando as pessoas entram assim em conflito. (...) Numa sala de aula,
o ideal seria que todo mundo se desse bem, que entendesse alguma coisa com disciplina,
não esse negócio que a PPO falou. Ela não ficou satisfeita que o pessoal não perguntou
nada, então, a gente se sente realmente assim, falando pras paredes. Então, a gente quer
que participem, mas que cada um espere a sua vez, que tenha organização, é basicamente
isso.
PP: Quando eu vi esse cartaz aqui, desse índio fazendo protesto, eu pensei, “bah! Eu sou
um pouco assim” porque eu estou sempre protestando por alguma coisa. Por uma condição
melhor de vida, ou no meu emprego, ou uma condição melhor para as pessoas. Acho que
me tornei professor por isso aí, porque a gente tem a oportunidade de fazer alguma coisa
mesmo, porque tu estás ali com as crianças, tens que passar os conteúdos. Mas o conteúdo
não é o conteúdo. Sempre tem uma doutrina por trás desse conteúdo. Se a gente souber
trabalhar isso de uma maneira sadia, a gente vai orientar o nosso aluno para ele ser um
cara rebelde no bom sentido, um cara que protesta, que tem senso crítico, que vai à luta,
que batalha, que quer mudar alguma coisa. (...) Eu me vejo um pouco protestante, não no
sentido religioso da palavra, mas sempre um pouco crítico, e eu gostaria que meus alunos
fossem sempre um pouco críticos.
Múltiplos modos de olhar para os alunos e para as relações
escolares... As narrativas surgem carregadas de discursos de “verdade”:
sobre o que é “bom” ou o, o que se deve ou o fazer na escola, que tipo
de aluno se busca produzir, quais as funções do professor, a importância ou
não da disciplina (e de que disciplina?). Enfim, essa multiplicidade de
sentidos pode conviver harmonicamente na instituição escolar?
Nesse projeto de escola e de alunos associado a noções da
modernidade ordem, limpeza, harmonia, paz, amizade... –, produzem-se
tanto estratégias para sua fabricação quanto aqueles vistos como os
“diferentes”, os “problemáticos” por não se enquadrarem em tais modelos. Ao
discutir questões referentes aos processos de sociabilização dos sujeitos e de
178
organização dos grupos sociais, Teixeira (1996) vai referir que esses
processos não fabricam apenas a diversidade cultural. Mais do que isso,
produzem:
(...) desigualdades sociais, trazendo ao cerne da sociabilidade e
convivência social os conflitos de interesses e as disputas de poder.
Nesse quadro, a criação e transmissão dedigos e padrões culturais
torna-se um campo de contradições, tensões e embates, pela
imposição e hegemonia de significações culturais (p.184).
Outro elemento presente tanto nas produções dos alunos quanto
na dos professores relaciona-se aos seus projetos e expectativas em relação à
escola e às posições que ocupam ali. Os professores esperam coisas dos
alunos, enquanto, da mesma forma, alunos esperam coisas dos docentes.
Nesse sentido, Teixeira alerta para:
(...) essa forte marca de envolvimento humano e de afetividade
constitutiva das relações pedagógicas, pois nelas estão sujeitos, em
próximo e freqüente convívio. Pessoas postas em situações que
envolvem calor e sentimento humano, seja de bem-estar e bem-
querer ou de mal-estar e mal-querer. De aceitação e alegria, ou de
recusa e repulsa. De positividade ou negatividade ou tudo isso junto,
misturado, variando conforme os contextos (1996, p.188).
Outras expectativas também aparecem nas falas dos professores:
PG: O que eu espero dos alunos... Eu coloquei umas coisinhas aqui que eu não sei se
alguém vai entender, mas aqui eu coloquei um cara fazendo música e um palhaço. Eu
espero, assim, acima do conteúdo e do que eu trabalho na sala de aula, que cada aluno
consiga expressar o que ele sente, o que ele é. Eu vejo neles, daqui a uns anos, os meus
filhos na escola, né, que eu sei que de repente vão ter períodos que não vão ser tão fáceis e
que de repente,como eu tento entender os meus filhos, eu tento ter o mesmo olhar com os
alunos. Do jeito que eles são, cada um com as suas malandragens, enfim, com toda a
bagagem que eles têm de casa.
Essas palavras podem explicitar um modo de significar os alunos
como sujeitos que vivem coisas além da escola, bem como uma escola que
pode comportar esses sujeitos produzidos/produtores em/de histórias de
vida, abrindo espaço para suas vozes, para seus modos de posicionarem-se.
As diferenças entre esses modos de entender a escola e os alunos que
emergiram nas falas dos docentes apontam também para outras formas de
179
pensar as práticas e os sujeitos escolares, que podem criar espaços de
embates, rupturas, divergências, conflitos.
No decorrer dos encontros, ao questionar os modos como vemos a
escola e trazer a multiplicidade de sentidos existente ali, busquei
problematizar a visão hegemônica segundo a qual, em geral, se pensa a
escola. Para ilustrar tais tentativas, escolhi o seguinte excerto:
Anelise: Será que todo mundo aqui entende a escola da mesma forma? Será que, nas salas
de vocês, vocês esperam as mesmas coisas dos alunos? Vocês esperam as mesmas coisas da
escola, vocês se enxergam na escola dos mesmos jeitos? Tem aqui alguém que se enxerga
exatamente igual ao outro?
PP: No meu caso, deu pra ver direitinho ali o que a PC espera dos alunos e o que eu
espero... (...) Eu quero os meus alunos revolucionários, rebeldes, ela quer seus alunos uns
anjinhos. Tem uma diferença bem grade, são opostos.
Anelise: E são os mesmos alunos, não é?
PPE: Mas, assim, eu, quando dou uma aula, eu tenho meus objetivos com os alunos, mas
eu não sei se a expectativa, se o objetivo do aluno é o mesmo que o meu. E eu comecei a
questionar muito isso nas minhas sobrinhas, porque elas me pediam para ajudá-las a fazer
os trabalhos da escola, ajudar a fazer tema. Às vezes tinha coisas que não tinham nada a
ver. eu fiquei me questionando até que ponto as coisas que nós fazemos, os trabalhos
com os nossos alunos, também são de interesse do aluno, da criança, e se aquilo faz sentido
para eles.
Tal excerto talvez aponte para a importância da produção desses
espaços de discussão, momentos em que seria possível desestabilizar aquilo
que habitualmente é feito de modo corriqueiro, “natural”. Não entendo tais
movimentos como neutros, mas sim como ações/intervenções interessadas
em pensar de forma problematizadora as implicações das práticas docentes
na constituição de determinados tipos de relações e de subjetividades,
abrindo espaço para outros pensamentos e fazeres na escola.
Para concluir este capítulo (e continuar caminhando, interpelada
por tantas questões sem respostas), faço conexão com alguns pontos das
discussões empreendidas por Corazza (2005) sobre os movimentos da
Educação em diferentes épocas. Ao falar sobre o momento em que estamos
vivendo, o presente, a autora chama-o de tempo do Desafio da Diferença
Pura, em que “todas as concepções e práticas atestam a existência dos
diferentes, que povoam nossas casas e ruas, salas de aula e pátios de
recreio, dias a noites (...) diferentes em si-mesmos, essencialmente-outros,
não-idênticos, outros-diversos” (idem, p.17-18). Segundo a autora, este é um
180
tempo em que os diferentes lutam não para serem governados, corrigidos,
trazidos para perto de um ideal de normalidade, de identidade, mas para
terem seu espaço, exigindo que as práticas pedagógicas escolarizadas se
tornem muito mais culturais e menos escolares. A autora interpela-me ao
dizer:
Foi para isso que os diferentes desequilibraram as relações
conhecidas, dissiparam a segurança identitária, tornaram estranho
tudo o que antes era tão familiar. Para que, junto com eles,
assumíssemos a responsabilidade ética de educá-los em sua própria
diferença. Ou aprendemos as lições deste tempo e fazemos os
diferentes e suas culturas entrarem, efetivamente, em nossos
currículos e práticas pedagógicas, ou vamos acabar cedendo nosso
lugar de educadores críticos para os a-críticos funk, futebol, ruas,
gangues, drogas, Internet, prostituição infantil, filmes da Disney,
teleturma, tele-namoro, telessexo, Show do Milhão. Ou a diferença
pura se torna, de uma vez por todas, a principal argila de nosso
trabalho pedagógico e curricular, ou seremos educadores perdidos, à
deriva, fora de nosso tempo. E o que é mais grave: não estaremos
educando nossos alunos para um porvir plural e criativo, em que a
educação faça a diferença (CORAZZA, 2005, p.20-21).
O poder das palavras
44
Marisa Faermann Eizirik
Palavras são perigosas
Palavras são saborosas.
Palavras nos embalam,
Doces, intensas, deslizantes.
Palavras nos abalam,
Duras, cortantes, rachantes.
Abrem feridas,
No corpo e no coração.
Palavras como armas.
Ausência de silêncios?
Palavras como faltas
Palavras como sonhos.
Veias abertas?
Palavras arriscadas
Jogos fabricados,
Ensaiados, ousados.
Palavras que golpeiam,
Batem, machucam, magoam.
Palavras assustadas.
Palavras engraçadas.
Amorosas, apaixonadas.
De quantas somos feitos?
De quantas precisamos?
Palavras pra pensar
O que ainda não foi dito.
Palavras pra dizer o que ainda
Não foi pensado.
Somos feitos de palavras.
Criamos, inventamos, jogamos.
Palavras como linguagem.
Será a única?
Será o bastante?
Palavras como sinais.
Mas não apenas elas,
Como mísseis propulsores,
Atravessam corpo e mente,
Provocam, incitam, conduzem,
Paralisam, enternecem,
Fazendo cores com gestos,
Tons, ritmos e entonações,
Produzindo efeitos,
Fissuras, rupturas,
Que vazam nos interstícios,
Por entre muitos canais.
44
Poesia inspirada, segundo a autora, na letra da música de Sergio Britto e Marcelo Fromer
(Titãs Acústico): “As Palavras”.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA CONTINUAR A PENSAR...
Para dar início a este que proponho como último capítulo desta
dissertação, torno presente, como epígrafe, a poesia de Marisa Eizirick
(2001), psicóloga que tem estudado questões referentes às articulações entre
Psicologia e Educação. Sinto-me convidada por essas palavras a pensar nos
efeitos de invenção, na fabricação de subjetividades que acontece pelas ações
que exercemos, pelo que dizemos e fazemos nas relações que construímos
cotidianamente e também no quanto somos fabricados nessas relações.
A partir dessa poesia, retomo minhas questões centrais de
pesquisa: como os discursos e as práticas escolares estão implicados na
produção daqueles que são nomeados “alunos-problema”? Como as ões
que se exercem cotidianamente nos espaços escolares constituem
subjetividades?
As observações realizadas em sala de aula, a análise dos registros
escritos e de outros elementos discutidos nos capítulos anteriores,
possibilitaram-me entender que, no espaço escolar, o aluno ingressa num
conjunto de práticas de exame, vigilância e controle, que articulado a
padrões de normalidade, posiciona-o como bom aluno ou “problema”. As
instâncias escolares, na articulação de suas múltiplas práticas, funcionam
produzindo subjetividades.
Conceber as escolas desse modo aponta para a nossa necessidade
constante de problematização, a medida em que o que fazemos, produz
efeitos em nível das subjetividades. Assim, parece ser fundamental
interrogar junto aos docentes, as práticas cotidianas direcionadas,
especialmente, aos alunos tomados como “problemas”, muitas vezes, por
realizarem “crimes” bastante questionáveis, dependendo do lugar de onde se
olhe...
Por exemplo, quando determinados alunos “fogem” por mascar
chiclete, usar boné, ser “hiperativo”, sair da sala de aula sem autorização,
183
“gazear” aula, discutir com os professores, entre outras ações - às estratégias
homogeneizantes, passam a ser vistos e narrados como “problemas”, como
sujeitos de uma essência problemática que devem ser, de algum modo,
corrigidos para que se encaixem nos regramentos escolares. Tais nomeações
e entendimentos sobre esses alunos certamente não “passam em branco”
nas suas vidas, como foi possível perceber no decorrer do estudo, que os
mesmos também passam a perceber-se dessa forma, mostrando os efeitos
em termos de auto-representação, auto-estima, sofrimentos psíquicos e
marginalização promovidos por essas categorizações.
Além disso, numa tentativa de capturar esses alunos que, de algum
modo, escapam às estratégias disciplinares, a escola busca estabelecer
alianças com outras instituições sociais famílias, Conselho Tutelar,
Brigada Militar e, quando essas alianças mostram-se ineficientes,
geralmente, apela-se para os especialistas.
Nesse momento, pode aparecer (ser chamada) a figura do
profissional da Psicologia como um elemento importante no processo de
busca de normalização.
Essa breve retomada das minhas questões de pesquisa e dos
olhares que fui constituindo neste estudo leva-me a retomar também outros
elementos: minhas inquietações com os lugares que eu vinha ocupando no
decorrer de minha trajetória como psicóloga vinculada à Educação e os
efeitos das minhas ações (associadas às práticas pedagógicas escolarizadas)
na constituição dos “alunos-problema”. Entendo, hoje, que se dispor a um
“fazer psicológico” implica mover-se num terreno inconstante, movediço,
flexível, paradoxal, ambivalente.
Foucault (2002c) aponta que a Psicologia se assemelha a todas as
ciências da natureza pela sua ligação e interlocução com as práticas da
Educação, da Psiquiatria, das relações de trabalho, entre outras. Diz, porém,
que as ciências da natureza “não respondem senão aos problemas colocados
pelas dificuldades da prática, seus fracassos temporários, as limitações
provisórias de seu exercício” (p.134). Segundo ele, a Psicologia:
(...) nasce neste ponto no qual a prática do homem encontra sua
própria contradição; a psicologia do desenvolvimento nasceu como
184
uma reflexão sobre as interrupções do desenvolvimento; a psicologia
da adaptação, como uma análise dos fenômenos da inadaptação; a
da memória, da consciência, do sentimento surgiu, primeiro, como
uma psicologia do esquecimento, do inconsciente e das perturbações
afetivas. Sem forçar uma exatidão, pode-se dizer que a psicologia
contemporânea é, em sua origem, uma análise do anormal, do
patológico, do conflituoso, uma reflexão sobre as contradições do
homem consigo mesmo. E se ela se transformou em uma psicologia
do normal, do adaptativo, do organizado, é de um segundo modo,
como que um esforço para dominar essas contradições (FOUCAULT,
2002c, p.134-135).
Ao empreender discussões em torno das trajetórias da Psicologia
em cem anos de sua existência, o autor desafia:
O problema da psicologia contemporânea e que para ela própria é
um problema de vida ou de morte é saber em que medida ela
consegue efetivamente dominar as contradições que a fizeram
nascer, através desse abandono da objetividade naturalista, que
parece ser sua outra característica maior (FOUCAULT, 2002c,
p.135).
As palavras de Foucault produzem efeitos no meu pensar na
medida em que ponho em questão, neste estudo, as possibilidades de ação
da Psicologia no âmbito educacional. Como refere Maria Cristina Machado
Kupfer: “Como todo jovem que se preza, a Psicologia Escolar não cansa de se
perguntar por sua própria identidade” (1997, p.51). Entendo, hoje, que esse
movimento de pensar constantemente sobre quem se essendo possibilita
as reinvenções, o (re)fazer, o (re)criar. À medida que nos construímos
constantemente, somos sempre “jovens” naquele modo de ser, iniciantes e,
talvez por isso, abertos aos aprendizados.
Ao discutir as possibilidades de intervenção da Psicologia nas
escolas, a autora refere:
Os discursos institucionais tendem a produzir repetições, mesmice,
na tentativa de preservar o igual e garantir sua permanência. Contra
isso, emergem, vez por outra, falas de sujeitos que buscam operar
rachaduras no que escristalizado. É exatamente como “auxiliar de
produção” de tais emergências que um psicólogo pode encontrar seu
lugar...(KUPFER, 1997, p.55).
Esse fragmento faz-me pensar nas vozes dos “alunos-problema”
(refiro-me, aqui, a “vozes” como o que eles dizem e fazem). Será que elas não
185
fazem exatamente isso? Operar rachaduras nas práticas pedagógicas
cristalizadas/naturalizadas? Seus “desvios” não apontam justamente para a
impossibilidade desse desejo de ordem intrínseco à escola? o é em função
disso, especialmente, que incomodam e que se deseja, muitas vezes,
“transferi-los” para outro lugar, distanciando-os de onde desestabilizam o
supostamente estável?
Ao falar sobre a busca da ordem e o desejo de remover as exceções,
não de simplesmente excluí-las, Bauman (2004) refere que:
A construção da ordem tende a ser, como regra, empreendida em
nome do combate ao caos. Mas não haveria caos se não houvesse
a intenção de ordenar e se a “situação regular” já não estivesse
antecipadamente concebida para que sua promoção pudesse ser
iniciada com seriedade. O caos nasce como não-valor, como exceção.
A pressa em ordenar é seu lugar de nascença, e ele não tem outros
pais nem outro lar que sejam legítimos (p.156).
Nesse sentido, se as vozes “marginais” dos “alunos-problema”
desestabilizam o habitual e se o lugar do psicólogo vem a ser o de “criar
condições” para a emergência dessas vozes, então esse “lugar” encontra-se
nas fissuras, nas falhas, nas rachaduras, nas margens, nas entrelinhas? O
lugar do psicólogo, nessa perspectiva de fazeres, não se trata de um lugar
também “marginal”
45
? Uma possibilidade de ação para esse profissional não
se encontra justamente na sua condição de, situando-se num “fora/dentro”,
permitir a problematização do desejo de ordem e sua correspondente
produção de exceções, bem como do caráter fabricado das “verdades” que
permeiam as práticas educativas?
Larrosa contribui com meu pensar quando discute a inexistência
de uma verdade, de uma realidade, incitando-me a pensar nessas múltiplas
vozes que circulam na escola e que a constituem. Diz ele:
Agora que não podemos crer no que acreditávamos nem dizer o
que dizíamos, agora que nossos saberes não se sustentam sobre a
45
Ao utilizar aqui a expressão marginal, escolho-a para demarcar um lugar de uma não-
verdade, um lugar descolado do representante da ciência psi, com suas habituais práticas
fixadas numa objetividade naturalista, como refere Foucault em citação no início deste
capítulo. Quando busca posicionar-se, na escola, fora desse lugar dele esperado, passando a
problematizar o cristalizado, o psicólogo pode ser visto como ocupando um lugar marginal...
Questiono se talvez não seja essa a condição de possibilidade para um fazer diferente....
186
realidade nem nossas palavras sobre a verdade, talvez seja a hora de
aprender um novo tipo de honestidade: o tipo de honestidade que se
exige para habitar com a maior dignidade possível, um mundo
caracterizado pelo caráter plural da verdade, pelo caráter construído
da realidade e pelo caráter poético e político da linguagem (2003,
p.164).
“Grudar-se” no lugar que é oferecido ao psicólogo pela demanda
escolar implicaria assumir a verdade das ciências psi e pedagógicas.
Movimentar-se na contramão das demandas, pondo-as em questão, seria
uma possibilidade de fazer circular as ltiplas verdades, as verdades de
cada um, outras verdades...
Durante a escrita da dissertação, utilizei alguns excertos que
podem mostrar um pouco das demandas escolares endereçadas aos
profissionais das áreas psi o desejo de que esses profissionais atendam
individualmente aos alunos, investiguem suas histórias de vida para
encontrar “falhas”, conhecer os “problemas” e, por fim, corrigi-los. Tais
demandas podem mostrar que a escola tem por tarefa cumprir um
planejamento traçado a priori. Ali encontram-se
em embate o desejo de
ordenação dos conteúdos e de conhecimentos e aquelas formas de agir e
pensar que “fogem” a tal processo homogeneízador, gerando o que os
docentes tomam como “problema” do aluno. Nessa circunstância, assumir a
posição de o aceitar as demandas escolares exigiu de mim a condição de
suportar o lugar de uma possível não-aprovação por estar pondo em questão
aquilo que era dado como verdadeiro e “solução para os problemas” a ação
do psicólogo sobre esses alunos.
Nesse sentido, Kupfer interpela-me novamente ao questionar:
O que podeacontecer quando uma instituição estiver toda voltada
para a repetição, para o igual? Pois bem, quando houver apenas
repetições, quando houver apenas discursos cristalizados, os sujeitos
não mais poderão manifestar-se. Não falarão, não poderão oxigenar-
se, ou seja, não poderão beneficiar-se dos efeitos de verdade e de
transformação que surgem quando espaço para emergência ou
falas singulares. Nesses casos, o resultado poderá ser a
impossibilidade de criação de novos discursos, mais flexíveis e
acompanhadores de mudanças (...) De modo contrário, quando
circulação de discursos, as pessoas podem se implicar em seu fazer,
podem participar dele ativamente, podem se responsabilizar por
aquilo que fazem ou dizem. Mudam ativamente os discursos, assim
como são por eles mudadas, de modo permanente (KUPFER, 1997,
p.55 - 56).
187
A fala da autora remete-me à possibilidade de um fazer incerto”
para o psi. Incerto na medida em que parece que o que se pode fazer é dirigir
convites aos personagens da instituição, convites ao problematizar; porém,
convites são sempre convites, podem ser aceitos ou não... Olhar para o lugar
do psicólogo como alguém que convida ao pensar, não implica colocá-lo num
lugar de descomprometimento. Ao contrário, implica comprometê-lo com um
convidar não-habitual, e nisso consiste talvez o maior desafio: posicionar-se
num “lugar” que possibilite a mobilidade necessária para o ficar ele
próprio, cristalizado... É nesse sentido que falo, no início, sobre posicionar-
se sobre um terreno movediço, inconstante, incerto, flexível...
Ao mesmo tempo, entendo como fundamental para esse fazer
diferente o estabelecimento de um vínculo de confiança que possibilite as
trocas, as interlocuções. Talvez resida nisso uma das possibilidades, hoje,
para a escola propor-se a tornar-se, para além de um espaço de aquisição
de conhecimentos e comportamentos, um espaço de relacionamentos
significativos.
Por que opto por fazer uso da poesia “O poder das palavras?” na
epígrafe deste capítulo? Por sentir-me convocada a pensar sobre as palavras.
Embora não sejam únicas, as palavras são, possivelmente, as principais
ferramentas de trabalho do profissional da Psicologia no campo da
Educação. Significo aqui por “palavras” não aquilo que dizemos
oralmente, mas tudo o que atravessa nossas relações, produzindo efeitos nos
outros e em nós mesmos: nossa presença, olhares, gestos, posicionamentos,
trocas, silêncios...
No decorrer desta pesquisa, busquei aproximações com os modos
como os alunos tomados como “problemas” são narrados, seja através dos
registros escritos, seja por meio das vozes “legítimas” da escola. Porém, além
das palavras, olhei para algumas ações dirigidas especialmente a esses
alunos, que também falam, produzindo marcas, determinando lugares,
demarcando possibilidades. Como diz a poesia, olho para as “palavras”
como produtoras de nós mesmos, como elementos que circulam no mundo
188
inventando pessoas, inventando categorias de pessoas, produzindo prazer e
sofrimento.
É nesse sentido que olho para o profissional da Psicologia como
mais um inventor de sujeitos, que concretiza seu invento na articulação com
outros inventores. E, ao ser um inventor de sujeitos, talvez invente também
sentimentos e possibilidades de vida: pode criar tanto a dor quanto a
satisfação, a presença e a ausência, a inclusão e a exclusão, a solidão e a
sensação de fazer parte, o aconchego e o isolamento, a receptividade e o
desprezo...
Perceber essa produtividade das nossas ações, nosso lugar de
sujeitos produtores de outros sujeitos (embora todos produzamos e sejamos
produzidos nas relações que estabelecemos) implica um olhar mais
problemático sobre o que fazemos cotidianamente. Implica fazer menos (no
sentido de um fazer rotineiro, repetitivo) e pensar (duvidar) mais. Implica
percebermo-nos entrelaçados nas relações que estabelecemos no cotidiano
escolar e em relações de vida e de afeto que produzem sentidos em nós e
naqueles com quem convivemos.
As questões que elaborei
46
e dirigi aos professores ao final dos dois
encontros trazem alguns elementos para pensarmos nas práticas como
produtoras de efeitos, sejam eles quais forem. Escolhi um excerto
47
que pode
ilustrar as avaliações realizadas pelos participantes, em que foi apontada a
validade desses momentos de “parar para pensar sobre as práticas”, a
46
As questões são as seguintes, que compõem meu Diário de Campo: 1 - Como você avalia
os dois encontros desenvolvidos pela pesquisadora e qual a contribuição (caso houver) das
discussões realizadas, em sua vida? 2 Em relação às temáticas propostas, você sente que
elas foram de seu interesse ou não? Por quê? 3 Em relação à postura pessoal da
pesquisadora, forma de comunicar-se e relacionar-se com o grupo, como você a avalia e o
que seria importante melhorar? 4 Aspectos que você considera relevantes, proveitosos no
trabalho proposto e realizado: 5 Que aspectos você considera que não foram proveitosos e
quais suas sugestões de melhorias?
47
Escolhi apenas uma das avaliações realizadas, em função de que a grande maioria dos
participantes apresentou questões similares em seus escritos. Porém, interrogo-me sobre
tais avaliações, problematizando o contexto nas quais as mesmas foram produzidas: se as
avaliações do trabalho desenvolvido junto ao grupo, fossem dirigidas a outra pessoa e não a
mim, teriam as mesmas características? Apresentariam os mesmos elementos? Compreendo
as avaliações realizadas não como “verdadeiras”, mas como contingenciais, momentâneas,
atravessadas, entre outros elementos, por questões de poder, vínculos relacionais, espaço de
discussão, temas discutidos....
189
inquietação provocada pelas problematizações realizadas e a importância dos
vínculos que foram se estabelecendo no decorrer deste estudo:
Participante 1:
1 – Os encontros foram ótimos, foram momentos de reflexão em que os professores pararam
um pouco para pensar suas práticas em sala de aula. Esses momentos deveriam acontecer
semanal ou mensal, para o professor expor suas angústias, discutir e fazer um
planejamento coletivo.
2 Com certeza. Algumas coisas, a gente sabia, mas sempre é bom ouvir e refletir
novamente. Enquanto professores, precisamos sempre melhorar nossa postura perante o
aluno, rever atitudes... A gente sempre acha que está fazendo o melhor para o aluno e ele
muitas vezes vê isso de outra forma.
3 – És uma pessoa querida e inteligente, consegues expressar-te com clareza. Criaste
também um vínculo muito grande com a turma pesquisada, até hoje eles falam de ti com
muito carinho.
4 – Vínculo afetivo entre aluno-professor, pois, com a afetividade, você tem um maior
retorno com o ensino-aprendizagem. “Alunos-problemas”: somos nós que os vemos assim?
Refleti bastante sobre isso e mudei algumas posturas de olhar o aluno.
5 Todos os aspectos tiveram os seus proveitos. No primeiro encontro, achei que foi muito
mais produtivo, saí do encontro achando que estaria errada em algumas coisas, refleti e
melhorei em atitudes (algumas), tenho um olhar diferente sobre um aluno, todos têm a
oportunidade de mudar e melhorar (Diário de Campo, p.236).
Trago esse excerto para mostrar que a possibilidade de parar
alguns instantes para discutir questões relacionadas às ações exercidas no
cotidiano escolar produziu, naquele momento, efeitos nos participantes,
inquietações, desestabilização de certezas, o que era de certa forma o que eu
me propunha a fazer. Convido os leitores e leitoras a olharem também para
as outras avaliações realizadas pelos participantes, que estão em anexo no
CD-ROM. Esses registros que produzi no decorrer dos encontros mostram a
impossibilidade da homogeneização, pois as nossas ações produzem efeitos,
questionamentos, reflexões, atitudes diferentes nas pessoas, apontando para
aquilo que tenho discutido mais no início deste capítulo: lidar com sujeitos,
com relações entre sujeitos implica mover-se sobre areia movediça, onde é
impossível saber de antemão os efeitos de qualquer intervenção no habitual.
Entre os diversos efeitos que podem ter sido fabricados por este
estudo e pela presença da pesquisadora no espaço da pesquisa, encontra-se
o desassossego dos participantes e da pesquisadora, provocado pelas
múltiplas questões que emergiram e que existem justamente por não haver
respostas, a não ser o convite para o permanente (re)pensar.
190
Nesse sentido, “concluo a dissertação porque esta, sim, exige a
delimitação de fronteiras, sejam elas de tempo, de escrita ou outras. Porém,
se concluo o Mestrado, não terminam meus desassossegos. Os pensares que
esse percurso gerou na minha vida produziram, mais que conclusões, a
vontade de continuar num permanente (re)iniciar talvez por não querer o
risco de um fazer habitual, corriqueiro, naturalizado, não-questionado.
Esse modo de fazer pesquisa, de entender as práticas, de pensar a
Psicologia na minha vida e nas escolas não produziu efeitos apenas em mim,
mas perpassou minhas relações. As discussões empreendidas durante o
Estágio Docência
48
realizado na graduação em Pedagogia na UFRGS
permitiram-me perceber que é possível o estudo das teorias tradicionais que
constituem os programas curriculares, realizando ao mesmo tempo um
movimento de problematizá-las, relativizando-as, permitindo a circulação de
múltiplos modos de olhar para as mesmas questões. Nesse sentido, a prática
docente experimentada alimenta em mim a grande vontade de ocupar o
lugar da professora. Professora (permanentemente) disposta ao
questionamento do seu professar, entendendo que são múltiplas as
verdades.
Vejo-me, hoje, sendo inventada constantemente nas/pelas relações
que estabeleço e experiências que vivencio. Os efeitos da pesquisa realizada
atravessam seu lócus, perpassam a pesquisadora e produzem seus efeitos
nas redondezas, nos entornos...
Percebo que à medida que fui escrevendo, problematizando,
contando e recontando as histórias de vida que compõem este estudo, bem
como minhas próprias experiências como psicóloga e pesquisadora, fui
modificando-me, significando-me e significando minhas práticas de outras
maneiras.
Atentar para as narrativas que vamos construindo sobre s e
perceber que elas nos constituem aponta para um conhecer transitório,
contingente, incerto e instável e para um processo de constante repensar.
48
Estágio Obrigatório para todos os Bolsistas CAPES, por mim realizada na disciplina de
Psicologia das Séries Iniciais, Curso de Graduação em Pedagogia UFRGS, supervisionada
pela Professora Tânia Fortuna.
191
Trago para este trabalho as considerações sobre a postura
hermenêutica
49
nas pesquisas em Educação, realizadas por Costa e Grün
(2002), e compreendo que:
a pessoa que escreveu as primeiras páginas e a que assina o nome e
coloca o ponto final na última página não são, de modo algum, a
mesma pessoa. Em uma postura hermenêutica ocorre sempre um
processo autocorretivo no qual as pessoas envolvidas se
transformam. No entanto, esse não é um processo passivo, ele
ocorrerá apenas na medida em que estivermos abertas/os ao diálogo
com a tradição. E isso só é possível quando nos dispomos a ouvir as
vozes do mundo, a ler os múltiplos textos que se nos apresentam,
mas despojadas/os de qualquer disposição tirânica (p. 102).
É desse modo que desejo, nesse momento, prosseguir....
49
Costa e Grün (2002) apontam que a “hermenêutica” seja uma das formas de pensar que
considere mais profundamente que a “tarefa da filosofia não é descobrir absolutos, mas
continuar a conversação da espécie humana”(p.85).
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