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SILVANA RODRIQUES QUINTILHANO FERREIRA
UMA RELEITURA DA MULHER ANGOLANA EM “LUEJI”, “A GLORIOSA
FAMÍLIA” E “MAYOMBE”, DE PEPETELA:
Diálogo Pós-Colonial e Feminista
LONDRINA
2007
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1
SILVANA RODRIQUES QUINTILHANO FERREIRA
UMA RELEITURA DA MULHER ANGOLANA EM “LUEJI”, “A GLORIOSA
FAMÍLIA” E “MAYOMBE”, DE PEPETELA:
Diálogo Pós-Colonial e Feminista
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Letras, da Universidade
Estadual de Londrina, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Paulo Adolfo
LONDRINA
2007
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SILVANA RODRIGUES QUINTILHANO FERREIRA
UMA RELEITURA DA MULHER ANGOLANA EM “LUEJI”, “A GLORIOSA
FAMÍLIA” E “MAYOMBE”, DE PEPETELA:
Diálogo Pós-Colonial e Feminista
COMISSÃO EXAMINADORA
______________________________
Prof. Dr. Sérgio Paulo Adolfo
Universidade Estadual de Londrina
______________________________
Prof. Dr. Frederico Augusto Garcia
Fernandes
Universidade Estadual de Londrina
______________________________
Profa. Dra. Virgínia Maria Gonçalves
Universidade Estadual de Londrina
_____________________________
Londrina, 21 de março de 2007.
3
Para
Rogério, meu amor
4
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom da vida e pela graça de alcançar mais uma vitória.
Ao meu orientador, Dr. Sérgio Paulo Adolfo, pela compreensão e paciência que
demonstrou em todas as etapas do desenvolvimento dessa pesquisa, fio condutor com
suas idéias argutas.
Aos professores doutores Frederico Garcia Fernandes e Regina Helena Machado Aquino
Corrêa, pelas oportunas contribuições no exame de qualificação.
À professora doutora Gizêlda Melo do Nascimento, pelas discussões e descobertas
acerca do Feminismo consideradas durante o curso de sua disciplina “Vozes Femininas
na Literatura Brasileira”, que contribuíram bastante para o desenvolvimento dessa
dissertação.
À minha família, fonte de apoio nas horas alegres e difíceis dessa caminhada.
À professora e amiga Maria Virginia Brevilheri Benassi, pelo auxilio prestado na tradução
do abstract.
Aos professores Ananias Antonio Martins e Edenir Haddad Santos, pelas observações
que enriqueceram este trabalho.
5
he = ele S = serpens
& = e h = homo
she = ela e = eva
Pedro Xisto
In Logogramas, 1966.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................................9
1. ESTUDOS CULTURAIS LITERÁRIOS: ALGUNS ASPECTOS TEÓRICOS................12
1.1 Formação da Literatura Angolana: uma abordagem social..........................................14
1.2 Dupla Tradição, Particularidades e Tendências da Literatura Angolana de Expressão
Portuguesa de Pepetela.....................................................................................................23
1.3 A Voz e a Tradução Cultural: ......................................................................................27
2. IDENTIDADE ANGOLANA E RECONSTRUÇÃO NACIONAL PELA
LITERATURA.....................................................................................................................32
2.1 Discurso Literário versus Discurso Histórico: a importância destas relações para uma
abordagem social em Pepetela.....................................................................................34
2.2 Alguns Fatos Históricos de Angola Presentes nas Ficções de Pepetela: Aspectos
Sociais, Econômicos e Políticos.........................................................................................43
3. O PÓS-COLONIALISMO E O FEMINISMO: TEORIAS QUE CONSTROEM A
IDENTIDADE FEMININA ANGOLANA..............................................................................51
3.1 O Percurso Histórico da Mulher na África e sua Representação na Ficção
Angolana............................................................................................................................55
3.1.1 Rainha Lueji: a matrilinearidade na sociedade angolana.........................................57
3.1.2 Matilde: a situação da mulher durante o período colonial.........................................73
3.1.3 Ondina e Lu: a mulher angolana pós-colonial e o seu papel para reconstrução
nacional..............................................................................................................................82
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................91
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................93
ANEXO A...........................................................................................................................97
7
FERREIRA, Silvana Rodrigues Quintilhano. Uma Releitura da Mulher Angolana Em
“Lueji”, “A Gloriosa Família” e “Mayombe”, De Pepetela: Diálogo Pós-Colonial e Feminista.
2006. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina.
RESUMO
O objetivo desta pesquisa é mostrar as particularidades e as tendências da Literatura
Angolana, bem como a reescrita da história do colonizador a partir da linguagem estética,
e nesse contexto de representação, uma releitura das mulheres na sociedade angolana,
desde a colonização à atualidade, evidenciando o processo de sincretismo e
descolonização da cultura africana. O artista Pepetela, nos romances Lueji (1989), A
gloriosa família (1999) e Mayombe (1985), soube mesclar a realidade à ficção, e com
isso construir representações de mulheres em diversos momentos históricos. Para atingir
esse objetivo, empregaremos a estratégia pós-colonial da releitura e o feminismo, sendo
relevante uma explanação sobre a Literatura, a História e a Mulher. É importante destacar
que o estudo investiga a voz da mulher num texto de autoria masculina a partir do
simulacro.
Palavras-chave: ficção, história do colonizador, dupla tradição, pós-colonialismo,
feminismo.
8
FERREIRA, Silvana Rodrigues Quintilhano. A Re-Reading of the Angolan Woman in
“Lueji”, “A Gloriosa Família” E “Mayombe”, De Pepetela: A Post-Colonian and Feminist
Dialogue. 2006. Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de Londrina,
Londrina.
ABSTRACT
The aim of this research is to show particularities and trends in the Angolan Literature, the
rewriting of the dominant history from the aesthetic language point of view and, in this
context of representation, present a reading of the women in the Angolan society, from
colonization to the present time, highlighting the sincretism and decolonization of the
African culture. The Pepetela artist in the novels Lueji (1989) A gloriosa família (1999) and
Mayombe (1985) knew how to blend reality and fiction, and therefore construct women’s
representations at diverse historical moments. To achieve this aim, we will use the post-
colonial re-reading strategy and feminism; consequently explanations on Literature,
History and the Woman are relevant. It is important to point out that this study investigates
the woman’s voice in a text whose authorship is male, from simulacre.
Key words: fiction, dominant history, double tradition, post-colonialism, feminism.
9
INTRODUÇÃO
A preocupação com o engajamento na Literatura Africana torna-se pertinente pela
própria história do negro durante o período colonial, quando foram explorados, oprimidos
e principalmente dessexualizados. Reis perderam tronos, rainhas suas linhagens, e
passaram a ser reconhecidos apenas como escravos. Legados à inferioridade e à
irracionalidade, foram despojados de seus valores, de suas crenças, de sua tradição,
enfim da sua cultura. Decorre daí a necessidade de reinterpretar sua tradição oral como
meio de valorizar a cultura de um povo marginalizado.
Segundo Santilli as obras africanas "geradas no espaço ou no tempo da África
colonial, quase sempre viveram sua primeira infância como os filhos proibidos: às
escondidas, na marginalidade." (1985, p.5) Contudo, esses escritos chegaram ao
reconhecimento, e suas bases formaram-se durante a colonização, consolidando-se
numa vivacidade autêntica do mito e do maravilhoso, uma expressão irrefutável da
marginalização na qual foram relegados.
Em Angola, após o período colonial, surge a Literatura Angolana de Expressão
Portuguesa de afirmação e valores nacionais que busca o reconhecimento de sua
identidade cultural e histórica a partir da reconstrução de sua tradição, mesclando-a com
a modernidade tanto na poesia militante quanto na ficção metaforicamente política do
romancista contemporâneo Pepetela.
Ao considerar a prática social e a cultura angolana pós-independência,
percebemos que no processo de descolonização o papel das mulheres na sociedade
sofreu uma assimilação de culturas. Sob essa perspectiva, observaremos a influência do
processo de colonização europeu na cultura dessas mulheres desde o século XVI até a
10
atualidade. Para tanto, utilizaremos a teoria do Pós-Colonialismo que implica na releitura
de muitos aspectos coloniais omitidos pelo discurso histórico dominante e uma
contribuição do Feminismo que considera a dupla colonização da mulher africana
subjugada pelo gênero e raça.
O objeto de pesquisa constrói-se a partir das vozes das personagens femininas,
sob a perspectiva poética masculina, pois essa dissertação pretende analisar as
personagens femininas dos romances Lueji o nascimento dum império (1989), A
gloriosa família o tempo dos flamengos (1999) e Mayombe (1985), de Pepetela. Neles,
percebemos a trajetória das mulheres no cenário de Angola em que ora são rainhas, ora
submissas, ora libertárias. O desafio consiste em visualizar a mulher em três contextos
diferenciados historicamente: no período pré-colonial, colonial e pós-colonial, sob a ótica
masculina. O objetivo é mostrar que, durante a colonização, há uma subversão dos
valores da mulher angolana, que passa a ser vista sob o jugo Ocidental patriarcalista,
sendo impulsionada a assimilar a cultura do Outro. Apesar de que muitas tradições se
perderam, contemporaneamente ainda restam algumas marcas desse processo, num
espaço que se fundem a tradição e a modernidade. Busca-se a significação do presente,
auxiliando na reescrita da história de Angola.
Metodologicamente, esse trabalho se dividirá em três capítulos. O primeiro
capítulo “Os Estudos Culturais Literários: uma introdução” abordará, sob uma visão social,
a constituição da produção literária em Angola e suas particularidades que evidenciam
uma literatura autêntica, advinda de uma tradição Ocidental e da oralidade africana,
característica herdada do colonialismo. Enfatizaremos a tradução cultural da qual se
ocupam os artistas das letras, através das várias vozes que permeiam as narrativas, com
11
bases teóricas defendidas por Charles Taylor, Homi Bhabha, Irene Machado, Fernando
Albuquerque Mourão, Carlos Everdosa e Pires Laranjeira.
No segundo capítulo “Identidade Africana e Reconstrução Nacional através da
Literatura”, faremos uma analogia do discurso literário com o discurso histórico, pois os
romances em questão são construídos, ou melhor, são releituras poéticas de importantes
fatos históricos de Angola, como a constituição do Império Lunda em Lueji, a Restauração
de Angola, em A gloriosa família, e a Guerrilha de Libertação, em Mayombe. Para tanto,
empregaremos as contribuições dos estudos de Antônio Cândido, D’ Onofrio, Trojan,
Jobim, Magnani, Regina Zilberman, Leyla Perroni-Moisés e Joseph Ki-Zerbo.
O terceiro capítulo “Pós-Colonialismo e o Feminismo: Teorias que Constroem a
Identidade Feminina Angolana” tratará de alguns aspectos teóricos do Pós-Colonialismo e
sua estreita ligação com o Feminismo, bem como um levantamento de bases históricas
da situação e participação da mulher na sociedade angolana, durante o processo colonial
e na atualidade, correlacionando com as personagens femininas dos romances de
Pepetela, artista que traduz, através da polifonia, a cultura e a dupla tradição, releituras
denunciadoras de um processo de hibridismo sofrido pelas mulheres, resquícios do
colonialismo europeu, uma metáfora da colonização num processo de resistência. Autores
como Homi Bhabha, Thomas Bonnici e Joseph Ki-Zerbo forneceram subsídios para essas
considerações.
12
1. ESTUDOS CULTURAIS LITERÁRIOS: ALGUNS ASPECTOS TEÓRICOS
A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de traços
culturais e étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. (BHABHA, 1998,
p.20)
No espaço dos estudos culturais, verdadeiros conceitos de identidade e diferença
conseguem encontrar uma nova postura, abrindo campo para novas leituras ainda não
postuladas como cânones. Tendências contemporâneas de estudos apontam questões de
diversidades e diferenças culturais para o que antes conceituávamos como “aculturais”.
Se considerarmos os argumentos de Bhabha, perceberemos também divergências entre
esses termos:
se diversidade é uma categoria ética, estética ou etnologia comparativas, a diferença
cultural é um processo de significação através do qual afirmações da cultura ou sobre a
cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência,
aplicabilidade e capacidade. (1998, p.63)
É evidente que as novas teorias de estudos culturais forçariam uma ruptura com a
tradição consagrada para acabar com os paradigmas do estético. Na visão crítica de
Moreiras, há uma dicotomia entre força versus poder uma vez que “de qualquer modo,
fez-se visível uma certa violência, que assumiu duas caracterizações empíricas: por um
lado, a violência divisória e fundadora dos estudos culturais, a que chamo força; por outro,
a violência dividida e conservadora dos estudos literários, a que denomino poder” (2001,
p. 8).
Na posição hegemônica, o ensino de literatura esgota-se nos gêneros literários,
no qual a leitura se encerrava no valor estético da obra, enquanto os estudos culturais se
13
detêm nos gêneros discursivos, analisando os mecanismos de produção, circulação e
armazenamento, no intuito de percebermos a cultura através do discurso, pois
Os processos culturais estão intimamente vinculados com as relações sociais e as
formações de classe, com as divisões e com as opressões de idade. A cultura está
envolvida com o poder, contribuindo para produzir assimetrias nas capacidades dos
indivíduos e dos grupos sociais de definir e de satisfazer suas necessidades. Ela não é
um campo autônomo nem externamente determinado, mas um local de diferença e de
luta social. (JOHNSON, 1999 contracapa)
Nesse sentido, entendemos que uma das manifestações de cultura como uma
intervenção política que pode ser transmitida a partir do discurso estético. O texto
alimenta a cultura de uma sociedade a partir da voz discursiva que, conforme cita Bakhtin,
o “processo de valorização da voz como representação de um contexto cultural mais
amplo.” (MACHADO, 1995, p.21). Portanto, podemos entender a linguagem de um texto
literário além de seus princípios lingüísticos, como uma representação do espaço onde é
produzido.
Assim, quando Pepetela voz à mulher em seus textos, intenta solidificar seu
papel de reconstrução nacional numa sociedade matriarcal. Essas personagens
reafirmam valores e tradições como uma prática de resistência, conforme explica Bhabha:
O processo enunciativo introduz uma quebra no presente performativo da identificação
cultural, uma quebra entre a exigência culturalista tradicional de um modelo, uma
tradição, uma comunidade, um sistema estável de referência, e a negação necessária da
certeza na articulação de novas exigências, significados e estratégias culturais no
presente político como prática de dominação ou resistência.” (1998, p.64)
No universo das Literaturas Angolanas, é comum encontrarmos escritores
engajados que participam ativamente da vida política e cultural de seus países e
procuram revelar isso através de seus discursos. Como se evidencia no fragmento de
Mayombe, de Pepetela, acerca de discussões sobre a “política” dos guerrilheiros:
(...) Se quer partir a cabeça, se escolheu partir a cabeça, devemos dar-lhe a liberdade de
partir a cabeça.
_ Isso é liberalismo!
14
_ vens tu com os palavrões! É possível que seja liberalismo. Mas eu não sou
Comissário Político. É a ti que compete politizar-nos e defender a posição política justa.
(1985, p.17)
É importante ressaltar que nenhuma literatura pode alimentar-se de si mesma,
pois precisa de outras informações e implicações de ordem metodológica, como o
comparatismo que, a partir dos anos sessenta, volta os olhos para vozes periféricas,
nunca representadas nos grandes cânones ocidentais, como os africanos, feministas,
hippies; abre discussões acerca do cânone, sem substituir um pelo outro, quebrando o
binômio - literário versus não-literário-, dessacralizando, descentrando o poder e as
marcas ideológicas, privilegiando uma política de inclusão, e deixa-nos claro que a
América Latina é uma unidade na diversidade.
1.1 Formação da Literatura Angolana: uma Abordagem Social
Assim como a Literatura Brasileira ou a Literatura Portuguesa, a Literatura
Angolana também pode organizar-se por períodos em consonância com a evolução das
mentalidades cultural, social e política. O diferencial dessa literatura é o conflito
permanente na sociedade de Angola entre duas etnias desiguais: o branco e o negro;
este disputava uma parte das posições sociais, enquanto aquele, mesmo minoria, gozava
de privilégios e bons trabalhos. Mais tarde surgem ainda os mestiços.
Como argumenta Mourão,
A animosidade do homem branco para com o negro, entre a necessidade de sobreviver em uma
sociedade em que brancos e negros estavam nivelados em boa parte ante as necessidades
comuns de enfrentar a vida, não se fazia sentir em termos que colocasse em choque o crescimento
dessa sociedade plurirracial. (1978, p.15)
Aos poucos, surgiu uma “autêntica burguesia negra”, proporcionando acesso ao
desenvolvimento intelectual a essa nova classe em ascensão, exclusivamente voltada
15
para o jornalismo e aos ideais liberalistas que se manifestavam primordialmente em São
Paulo de Luanda; hoje, Luanda é palco e motivo das manifestações literárias de Angola.
Conforme esclarece Mourão (1978), os períodos literários são divididos em
consonância com o processo de colonização, e podemos considerar que o primeiro
vestígio de Literatura Angolana nasce com o Boletim Oficial, fundado em 1845 pelo
governador Pedro Alexandrino da Cunha, que permite publicações sobre a cultura de
Angola, reservando espaço para “publicações de natureza literária”. Surge o Primeiro
Período da Literatura Angolana, liberdade de imprensa, valorização de culturas e
línguas. Mesmo sob o domínio português, obras como “O futuro de Angola”, de Arcénio
do Carpo e “Kamba ria N’gola”, de Castro Francina, entre outros, fervilharam em toda
África. Descobrem-se autores como Cordeiro da Mata
,
Joaquim Dias, Pedro Machado e
postulam-se obras como o livro de Philosofia popular em provérbios angolenses e La
philosophie bantue, do Padre Placide Tempels, até mesmo um dicionário de kimbundo-
Português conforme os jornais bilíngües. Uma característica fundamental dessa época é a
questão étnica.
Cordeiro da Mata deixa bem explícito em seus escritos uma “branquificação”, no
qual “o termo de comparação para validar a condição humana era o homem branco”, e
ainda apresenta um poema bilíngüe:
Kicôla
Nesta pequena cidade,
Vi uma certa donzella
Que muito tinha de bella,
De fada, huri e deidade _
A quem disse: _ “Minha q’rida,
Peço um beijo por favor;
Bem sabes, oh meu amor,
Q’eu por ti daria a vida!”
_ Nquàmi-âmi, ngana-iame
“Não quero, caro senhor”
Disse sem mudar de cor,
_ Macuto, quangandall’ami.
“não creio no seu amor”.
16
Eu querendo-a convencer,
_ muámôno!? _ “querem ver!?”
Exclamou a minha flor.
_ “O que t’assombra donzella
N’esta minha confissão?”
Tornei com muita paixão. (in EVERDOSA, 1979, p.35)
Everdosa (1979) assinala que “desde muito cedo a mulher africana tem sido a
fonte de inspiração dos melhores poetas líricos de Angola”, como observamos a exaltação
da beleza negra nas linhas poéticas de J. Cândido Furtado de Mendonça d’Antas no
Almanach de lembranças (1864):
Qu’importa a cor, se as graças, se a candura
Se as formas divinais do corpo teu
Se escondem, se adivinham, se apercebem
Sob esse tão subtil, ligeiro véu?
Que importa a cor, se o ceptro da beleza
Co’o mesmo enleio e brilho nos seduz?
E se o facho d’amor reflecte e esparge
Ou no jaspe, ou no ébano, igual luz?
É menos bela, acaso, a violeta
Por que o céu lhe não deu nevada cor?
Não é gentil a escura pionia
Opu do verde lilás a roxa flor?
Não tem encantos mil a noite escura,
Não deleita então mais o rouxinol?
(in EVERDOSA, 1979, p.38)
Após alguns anos, uma nova classe social começa sua ascensão, a burguesia
negra, que considerava a educação e a ciência fundamentais para a sociedade e para a
criação de seus filhos, sendo fundada em Luanda, por Augusto Silvério Ferreira, a
Associação Literária Angolense.
O Segundo Período da Literatura Angolana manifestou-se por volta de 1896 e
carrega marcas de mestiçagem. Destacam-se Silvério Ferreira, Vieira Lopes, Domingos
Van-Dúnem, Paixão Franco e Francisco Castelbranco, entre outros. Essa fase, segundo
Mourão, está impregnada de ideais liberais e republicanos, um “programa sedutor no seu
17
formidável utopismo, que visava erguer os irmãos de raça negra ainda não integrados na
cultura urbana de cunho europeu, no contexto dessa sociedade onde os que atingiam
essa posição eram igualmente aceitos, independentemente de cor.” (1978, p.18).
A proliferação da mensagem liberal-republicana começa a se propagar em São
Tomé, influenciando os “homens de letras negros”, mas havia somente panfletagem, pois
a mentalidade do colonialismo clássico impediu a evolução da sociedade africana,
permanecendo a desigualdade dos brancos sobre os negros. Francisco Castelbranco
registra em uma crônica
1
a imagem de Angola nesse período:
Loanda _ a capital da grande Angola _ proporciona aos seus habitantes a vida mais
estúpida, mais embrutecedora que dar-se pode.
Aqui não se vive, vegeta-se. Arrastamos a existência como o boi puxa por um carro.
Não nada, absolutamente nada que desenvolva o gosto pela literatura, que divirta
instruindo, que incite o amor ao estudo. É tudo material, sem evolução nem coisa que
com isso se pareça. (in EVERDOSA, 1979, p.45)
Através da revista Luz e Crença, começam a fervilhar os ideais de independência,
principalmente política, e, no último número, encontramos o texto de Paixão Franco
intitulado “os espíritos parasitas”, um grito de liberdade pode-se dizer:
(...) Nas últimas eleições gerais, quem escreve estas linhas fazia parte da mesa da
assembléia, como secretário na ocasião do apuramento; entre as listas da oposição
apareceram algumas que apenas diziam _ autonomia. A leitura da primeira e das
seguintes causou alegria na sala; todos os rostos se iluminaram e de contentes algumas
bocas soriram:
_ Autonomia! Autonomia! repetiram. Simples, mas eloqüente” (in EVERDOSA, 1979,
p.51)
Autonomia significaria desintegração, ou seja, Portugal deixaria de ser uma nação
sem suas colônias, conforme ditava as leis do Alto Comissário, General Norton de Matos:
“Nessas terras de África, ao lado de elementos da imigração portuguesa, outros terão de
viver e de prosperar, sem se misturarem e fundirem, mas prestando-se o auxílio
indispensável para os melhores resultados de uma civilização que a todos interessa.(in
1
CASTELBRANCO. Francisco R. O nosso meio. In Luz e Crença, nº 1, 1902, Lisboa.
18
MOURÃO, 1978, p.19). O plano intitulado Grande Angola Branca, do Alto Comissário, era
de construir núcleos habitacionais aos moldes portugueses, em Angola, com intuito de
modelar o pensamento, a cultura, as superstições e o atraso desse povo, sem miscigenar.
Esse artificialismo da colonização cobriu com uma capa de “terra santa”, porque
referenciava os colonos, a real intenção dos colonizadores que, apesar de propiciar
instrução profissionalizante aos negros como agricultores e industriais, privou-lhes o
conhecimento intelectual e o ensino literário - sementes que germinariam a libertação,
mudanças e transformações.
Entendemos que a sociedade de castas (branco e negro) abria espaço para uma
sociedade de classes, principalmente nas ilhas de Cabo Verde, São Tomé e nas cidades
costeiras de Angola, gerando uma deliberada divisão entre negros e brancos, até mesmo
a miscigenação provoca mudanças, pois nesse período advém a chegada de mulheres
brancas em Angola que reduz o casamento de homens brancos com mulheres negras ou
mestiças.
Mourão registra que “Uma estatística oficial mostra-nos que nos períodos de
1955-1956 não se registrou em Angola um único casamento entre homem branco e
mulher negra, apenas se registrando 43 casamentos com mestiças; mestiço com branca,
sete casos”
2
(1978, p.22), no interior permanecia a “casta”.
Em Luanda e Benguela, crescia o número de brancos de classe média que se
igualava ao da “burguesia” negra, favorecendo muitos casamentos com mestiças e negra
devido aos que acenavam com uma possibilidade de ascensão financeira. Conforme
relata Antônio Assis Júnior, professor de quimbundo na Escola Superior Colonial de
Lisboa, no romance O segredo da morta (1934) que “dá-nos com a maior fidelidade o
2
ANUÁRIO ESTATÍSTICO DO ULTRAMAR. 1956. Lisboa, Instituto Nacional de Estatística, 1957. In MOURÃO,
1978,p.22
19
retrato dessa sociedade que, em Luanda e nas zonas comerciais de que era testa,
povoações servidas pelo curso do Cuanza e pelo caminho-de-ferro, foi um exemplo típico
da penetração cultural portuguesa em terras de Angola”. (EVERDOSA, 1979, p.55).
Nesse mesmo contexto, surge a censura, levando à aniquilação da imprensa
africana. A partir da década de 40, a produção literária de qualidade está cada vez mais
acirrada, e o negro luandense perdendo seu espaço. Os movimentos literários
desaparecem, permanecendo somente durante duas décadas a Liga Nacional Africana
com a revista “Angola”, conforme assinala Everdosa:
Durante a década de 40, a actividade literária em Angola, se exceptuarmos a capital,
pode-se considerar praticamente reduzida a esporádicos concursos literários ou jogos
florais nos mais importantes centros urbanos, e à publicação, nos órgãos da imprensa
regional, de graciosas mas em geral modestas criações literárias, essencialmente da
autoria de residentes europeus. (1979, p.65)
A ruptura com processo de miscigenação lançado pelo Alto Comissário atingirá
seu ápice na década de 50, com o aumento gradativo de mulheres brancas e a
participação efetiva dos primeiros “filhos do País” de raça branca, consolidando a
marginalização de raça e cor. Essa transformação, segundo Mourão (1978) rompe
drasticamente com as expectativas e os anseios do homem negro que se refugiava nos
musseques, o que gerava um processo de massificação; as línguas africanas são
proibidas nas escolas, a censura instala-se, as associações de homens de cor que
visavam, principalmente, à difusão do ensino entre os irmãos de raça, passam a ser mal
vistas, quando não perseguidas. O jornal artesanal não tem mais vez; é agora substituído
pela grande imprensa que utiliza rotativa e que atende a um duplo objetivo: atingir o
grande público e, boa parte das vezes, defender os interesses econômicos da época.
Viriato da Cruz manifesta esse clima em seus versos:
Hum- hum
Mas deixa...
20
Quando o sô Santo morrer,
Vamos chamar um Kimbanda
para ‘Ngombo nos dizer
Se a sua grande desgraça
Foi desamparo de Sandu
ou se já própria da raça...” (in MOURÃO, 1978, p.26)
A figura Santo é uma metáfora dos burgueses negros que perderam seus
espaços, suas riquezas e foram morar nos musseques. Outros poetas que registram
momentos da degradação do homem negro, durante a colonização, são Oscar Ribas,
Geraldo Bessa Victor e Tomaz Vieira da Cruz, poeta este que expressa uma “vivência
luso-tropicalista”, e sua musa inspiradora sempre foi a mulata:
Os teus defeitos são graças
Que mais me prendem, querida...
Mistério de duas raças
Que se encontraram na vida.
(...)
Os teus defeitos são graças
Desse mistério profundo...
Saudades de duas raças
Que se abraçaram no mundo” (in EVERDOSA, 1979, p.72-73)
o poeta de Benguela, Aires de Almeida Santos, busca dar um outro tom à
questão do negro, e, no poema “Colar de missangas”, ressalta a valorização de sua raça
na imagem de uma mulher:
“Naquela rua da praça...
Foi ali que a encontrei
E conheci
E gostei
De a ver passar
Com a quinda na cabeça
Não notei a cor dos panos,
Não notei o que levava
Para vender
Só reparei
E gostei
Do seu colar de missangas” (In MOURÃO, 1978, p.31)
Com os burgueses negros à revelia da sociedade, surge a “literatura de
circunstância”, fomentada por um movimento intelectual de Luanda, “Vamos descobrir
21
Angola”, com integrantes brancos, uma reação à assimilação imposta ao negro que não o
configurava num novo espaço, mas sim marginalizava. Os imigrantes brancos
remodelaram Luanda, substituindo seus valores e costumes africanos. Em 1953, Mário de
Andrade e Francisco José Tenreiro publicam Caderno de Poesia Negra de Expressão
Portuguesa, editado em Lisboa, com a presença de poetas de Moçambique, Cabo Verde
e São Tomé. A revista Mensagem, editada pela Associação dos Naturais de Angola,
divulga poetas negros, brancos e mestiços, como Mário de Andrade, Viriato da Cruz,
Antonio Cardoso, Alda Lara, Alexandre Dáskalos, Antônio Jacinto, Mário Antonio,
Maurício Almeida Gomes, Tomás Jorge, Bandeira Duarte, Alcântara Monteiro, Leston
Martins, Antero Abreu, Humberto da Silva e Ermelinda Xavier. Por meio da literatura,
nascem vestígios da necessidade do despertar e se dedicaram a uma temática social,
como revela Alexandre Dáskalos:
“Acorda,
erguido como o sol sobre as montanhas...
Estende os braços
à vida que te chama,
e canta!....” (In MOURÃO, 1978, p.35)
Senghor e Césaire buscam traduzir o homem negro do particular para o universal;
ao lançarem o movimento redentor do homem negro, a negritude, possibilita a
redescoberta e a valorização da cultura negra. E isso refletiu nas artes, nas Vanguardas
Européias do século XX, nas literaturas que se constituíram a partir da memória coletiva,
da língua africana que antes fora extinta e agora reinterpretada, mesmo sendo com um
estímulo europeu.
O jornal “Cultura”, órgão da Sociedade Cultural de Angola, lançou um novo
movimento cuja temática ultrapassa a vida social de Luanda e penetra no interior. O
fomento intelectual gerado na Casa dos Estudantes do Império ganha dimensão com a
22
divulgação de antologias de poetas e contistas, além dos já mencionados, Luandino
Vieira, Costa Andrade, Tomás Medeiros, Ovídio Martins, Gabriel Mariano, Arnaldo Santos,
Henrique Guerra, entre outros. Antes de fechar, a Casa dos Estudantes do Império edita
duas obras: Canções Populares de Nova Lisboa, 1964, de Alfredo Margarido, e
Cancioneiro Popular Angolano, de Gonzaga Lambo.
Em 1969, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, escritor conhecido como
Pepetela, graduado em Letras e Sociologia, escreve seu romance de estréia Muana puó,
publicado em 1978. Entre 1960 e 1970, o autor freqüentou a Casa dos Estudantes do
Império, lugar onde surgem os primeiros ideais de independência. Em 1963, ingressa
como militante no MPLA, sendo mais tarde exilado para a França e Argélia. Entre 1970 e
1971, escreve Mayombe e o publica em 1980, no qual relata a força e a resistência da
guerrilha de libertação do país. “O Mayombe tinha aceitado os golpes dos machados, que
nele abriram uma clareira. (...) Assim foi parida pelo Mayombe a base guerrilheira”
(PEPETELA, 1985, p.81). Após a Independência de Angola, em 1975, é nomeado Vice-
Ministro da Educação no governo de Agostinho Neto. Lueji, o Nascimento de um Império,
romance escrito entre 1985 e 1988 e publicado em 1989, contém histórias que se fundem,
do passado e do presente, a tradição banto revive:
“os velhos mitos renasciam com a aproximação do ano 2000. Medos. Esperanças.
Arritmias. Fim do Mundo, Julgamento final? Bem procurávamos nos afastar desses
temores, pensando isso só mitos da Europa, lendas criadas a partir dos semitas e do
Novo Testamento, que temos nós, bantos, a ver com isso, os nossos mitos são outros, de
nascimento e formação.” (PEPETELA, 1989, p.26)
Em 1997, publica A Gloriosa Família, o Tempo dos Flamengos, e ganha o prêmio
Camões, onde registra a restauração de Angola e a necessidade de repensar o passado
histórico, considera uma pluralidade étnica, que resulta numa diversidade de verdades,
23
principalmente políticas, como ironiza o autor “(...) entre os brancos todos lutam pelo
poder” (1999, p.98). Em 2002, recebe a Ordem do Rio Branco, Brasil. Atualmente é
professor de sociologia na Faculdade de Arquitetura de Luanda.
Enquanto literato, Pepetela representa a voz dos angolanos, pois “se o espírito da
nação ocidental foi simbolizado no épico e no hino, vocalizado por “um povo unânime
reunido na autopresença de sua fala”, então o signo do governo colonial está gravado em
um tom menor, capturado no ato irredimível da escrita” (BHABHA, 1998, p.139). E é
através de suas obras que desvendamos os caminhos negros da história da colonização
e seus vestígios culturais, sociais e econômicos impregnados na construção do país
Angola.
1.2 Dupla Tradição: particularidades e tendências da Literatura Africana de
Expressão Portuguesa de Pepetela
No século XIX, a partir da década de 40, aparece uma nova literatura, a que se
convencionou chamar de Literatura Africana de Expressão Portuguesa, impulsionada
pelas duras e condenáveis características da literatura colonial, entre outros fatores como
a criação e o desenvolvimento do ensino oficial, o alargamento do ensino particular, a
liberdade de expressão e a instalação da imprensa.
Podemos afirmar que a Literatura é uma produção social. Através do texto,
podemos entender a sociedade que a gerou e a língua que foi escrita. Quanto à Literatura
Angolana, consideravelmente de tradição oral, salienta Everdosa:
literatura que se expressa em português, a qual, mercê da utilização da escrita, se
desenvolveu e evoluiu, tornando-se numa arma de que os intelectuais angolanos se
serviram, ao longo do tempo, na luta de emancipação nacional. (1979, p.18).
24
Na Literatura Angolana perceberemos as contribuições européias, com valores
lusitanos, pois se utilizam traços ocidentais, mas traduz a oralidade e a musicalidade
africanas. Conforme ressalta Ramos:
Assim, o texto oralizado é apenas uma forma de recuperar o que foi transmitido de
geração a geração de boca a ouvido. A mulher angolana, por meio de ritos sempre
acompanhados de cantos e ritmos cadenciados passa para as novas gerações seus
conhecimentos, assegurando sua permanência, num modo angolano de dizer. (2002,
p.67)
Pepetela preserva a tradição, mas ao mesmo tempo incorpora traços da
modernidade, como em Mayombe, na dedicatória:
Aos guerrilheiros do Mayombe,
Que ousaram desafiar os deuses
Abrindo um caminho na floresta obscura,
Vou contar a história de Ogum,
O Prometeu africano. (1985, p.09)
O narrador invoca o deus da guerra (identidade africana, mas não angolana) e o
mito ocidental dos gregos, metaforicamente com a aculturação presente no contexto
moderno em África. Esta condição dialética se explica pelo fato de que a ficcionalidade
simboliza um espaço público, compreendendo-se como uma retomada e uma reforma da
maneira como uma sociedade simboliza a sua História e os seus poderes através dos
seus agentes e das suas ações. Acerca disso, esclarece-nos também J. Jans:
Hoy dia vemos de outro modo la esencia y el origen del spiritual: podemos suponer que
no se trata de uma inspiración divina en el cérebro de um esclavo satisfecho, sino del
resultado del encuentro y la mescolanza de la cultura agisymbia y la occidental; o sea,
estamos ante uma literatura popular neoafricana. (1966,p.180)
No entanto, é claro notarmos que a Literatura Africana tem uma “dupla tradição”:
a tradição africana x tradição ocidental, formando uma cultura assimilada. Assim,
percebemos que, por meio das personagens femininas, Pepetela revela “uma voz
sufocada pelo colonizador”, pois a mulher exerce o papel de mantenedora da tradição no
25
âmbito familiar, ao mesmo tempo em que incorpora a alguns valores do colonizador que
“parecia um caminho menos opressor”.
As narrativas incorporam o “causo”, ressaltam a religiosidade cristã da ideologia
oficial, mesclam elementos do misticismo das culturas africanas com o dos primitivos
colonos portugueses, pois explica PÃ-BUNHE que “a literatura oral deixa fortes marcas na
literatura escrita africana. A título de exemplo, temos uma marcante presença do
imaginário, do sobrenatural e dos elementos míticos nas obras dos escritores” (online,
p.60). Essa mesclagem é característica da cultura da América Latina, na qual suas
letras permeiam a tradição indígena, africana e européia para a constituição de uma
releitura, um novo momento que exige novas linguagens como raízes na tradição, novos
tempos, novas posturas.
Como explica Laranjeira,
Em África, o acidentado percurso que vai da primeira utilização da escrita até as
independências políticas inclui influências desde o indigenismo haitiano e o negrismo
cubano até ao abolicionismo norte-americano e brasileiro e ao afromexicanismo,
completando-se no panafricanismo e na negritude do século XX. (1985, p.9)
Ou seja, não existe cultura africana sem substrato português. E ainda completa
Laranjeira que “a formação das nacionalidades neoafricanas corresponde, obviamente, à
formação das literaturas nacionais.” (1985, p.9).
Esse discurso neocolonialista expõe nossa inferioridade às economias
deficitárias, como uma literatura com dependência literária, um “galho” como afirma
Antonio Candido no prefácio da primeira edição de Formação da literatura brasileira
(1969, p.9). “ A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de
segunda ordem no jardim das musas...”, pois, devido à colonização iniciada em 1500
pelos portugueses, a literatura brasileira é derivada da portuguesa e, até meados de
1758, esse período é considerado como de “manifestações literárias”, pois não existia
26
uma literatura de pensamento brasileiro, mas sim de predomínio português, pois , mesmo
sendo escritos no Brasil, os pontos de referências eram da metrópole, onde os escritores
estudavam e formavam sua intelectualidade.
Após a ruptura política e econômica, os africanos desejavam um rompimento com
os modelos estéticos europeus, surgindo uma necessidade de busca de nacionalidade na
literatura, como explica Laranjeira:
Jahn chamou-lhe literatura neoafricana, por ser escrita em línguas européias e para
diferenciá-las da literatura oral, produzida em línguas africanas. Essa primeira distinção
explica que, pelo facto de ser escrita em línguas européias, a literatura africana
deriva das seqüelas do colonialismo. Ou seja: sem o colonialismo, sem as descobertas e
a expansão ultramarina, ela não seria possível. O colonialismo serve-lhe de propulsor da
consciência, a qual se rebela contra ele. No poder de confronto dessa rebelião literária
(lingüística e ideológica), no alcance da sua ruptura, na novidade da sua inovação, é que
reside o estatuto de liberdade, da sua libertação do jogo de outras literaturas. (1985, p.10)
Bhabha atualiza os discursos culturais e traz à tona uma reflexão sobre a tradição
versus modernidade presente no discurso literário angolano:
A enunciação da diferença cultural problematiza a divisão binária de passado e presente,
tradição e modernidade, no nível da representação cultural e de sua interpelação legítima.
Trata-se do problema de como, ao significar o presente, algo vem a ser repetido, relocado
e traduzido em nome da tradição, sob a aparência de um passado que não é
necessariamente um signo fiel da memória histórica, mas uma estratégia de
representação da autoridade em termos do artifício do arcaico. (1998, p.64-65)
Assim Pepetela representa em Lueji (1989), por meio da personagem Lu que,
para significar seu presente, busca uma reafirmação cultural no seu passado histórico.
Segundo afirma Ramos, “(...) essa mulher reflete, protesta, vive os dramas de sua
condição de assimilada, entende e cumpre seu papel de mantenedora de muitos ritos das
tradições culturais de seu grupo para que não se percam e se mantenham como ligação
entre gerações.” (2002, p.65)
Podemos entender que a Literatura Africana toma nova forma; com afinco a
questão de identidade cultural, escapa das amarras, das dependências e dos modelos
27
idealizadores, para constituir uma literatura autêntica, com motivos nacionais e
transfigurações autônomas.
1.3 A Voz e a Tradução Cultural
Pepetela tenta ler o mundo a partir da perspectiva do colonizado, produzindo arte
popular a partir dessa tradução do mundo do outro. Dentro desse espaço de construção
nos pautaremos no “campo do artista” que, neste caso, não é popular, mas trabalha com
a arte popular, estabelecendo relação de tradução, apropriação do mundo do outro. E,
nesse sentido, nos apoiaremos no “enfoque dialógico” de Bakhtin, pois, como afirma
Machado,
A oralidade sugerida pelo enfoque dialógico de Bakhtin deve ser entendida como imagem
de linguagem e não como uma mera transmissão de voz. Trata-se de um discurso
bivocalizado duplamente orientado pela sua condição de fala e escritura. A escrita
reporta-se à voz do autor que, por sua vez, enuncia palavras suas e de outros, criando
um campo complexo de representação. (1995, p.49)
O dialogismo de Bakhtin (1995) propõe minimizar a distância entre a fala e a
escrita, pois a língua falada é liberada das convenções, sem padrões. Os romances
arrolados nessa pesquisa retratam a “perfomance” cultural da oralidade, pois a
apropriação da técnica de criação para tradução da arte popular africana percorreu vários
caminhos e várias vozes, desde o século XVI à contemporaneidade.
Em A gloriosa família (1999), romance narrado em primeira pessoa por um
escravo, a maior parte das informações são dadas por ele, salvo em alguns casos em que
relata através de discursos de outras personagens. em Mayombe e Lueji, os
narradores em primeira pessoa alteram-se a cada capítulo e falam abertamente que será
propagada a sua voz: “EU, O NARRADOR, SOU TEORIA” (PEPETELA, 1985, p.14) ou
“AGORA SOU EU QUE FALO, EU, TCHINGURI” (PEPETELA, 1989, p.71).
28
Podemos perceber, nesses romances, várias vozes, como a voz do discurso
oficial, a voz do colonizador holandês, seus compatriotas e amigos, a voz dos colonizados
negros escravos e dos “filhos do quintal”, a voz das instituições poderosas dos padres, a
voz dos guerrilheiros, a voz das mulheres, das rainhas, das videntes todas organizadas
e relatadas como desabafo em relação a sua condição, em tom coloquial bem próximo da
fala, como registra em A gloriosa família:
uma desforra para tanto desprezo seria contar toda a sua estória, um dia. Soube então
que o faria, apesar de mudo e analfabeto. (...) Fosse de maneira que fosse, tive a certeza
de o meu relato chegar a alguém, colocado em impreciso ponto do tempo e do espaço, o
qual seria capaz de gravar tudo tal como testemunhei. (PEPETELA, 1999, p. 393)
É pertinente esclarecer que essas “vozes esquecidas”, das quais Pepetela se
apropria, evidenciam as relações de forças, de cultura, reafirmando a identidade nacional
que fora deslocada nas histórias oficiais pelo discurso ideológico do colonizador, que
anulou o discurso do colonizado.
Conforme esclarece Bakhtin, “o sujeito que fala no romance é, na maioria das
vezes um ideólogo e sua palavra é sempre um ideologema: representa um ponto de vista
particular sobre o mundo.” (In MACHADO, 1995, p.59)
Pepetela não assume o lugar do colonizador, pois é um autor angolano, nem o
lugar do colonizado, pois são obras contemporâneas e relatam fatos ocorridos num
passado histórico. Como explica Ortiz (1992), o que o autor assume é o “não-lugar”,
postulando um novo modelo de tradução, representando o mundo a partir da perspectiva
do outro, e sua obra circula no “entre-lugar”, preservando assim o espaço de construção
enquanto artista, no intuito de “reinscrever, o imaginário social tanto da metrópole como
da modernidade.” (BHABHA, 1998, p.26).
O escritor angolano estabelece um distanciamento para preservar o valor cultural
da oralidade e da tradição crioula num espaço de construção pós-colonialista que tende a
29
privilegiar a escrita. Entre o que o autor traz e o que nega, constitui sua identidade e a
partir do momento que recontam, reafirmam a identidade cultural, construindo um espaço
de representação das relações na sociedade dos negros e mestiços. Bhabha nos
esclarece:
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte do
continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de
tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou
precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como um “entre-lugar”
contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-
se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver.” (1998, p27)
Ressaltamos também que as vozes que permeiam os romances pertencem aos
narradores, mas ainda apresentam inferências de outras vozes através de diálogos, pois
“os personagens não são objetos do discurso do autor, mas sim sujeitos de seu discurso”
(BAKHTIN, 1981 p.2 Apud MACHADO, 1995, p.93), caracterizando como romances
polifônicos que
somente por ser representação de idéias em confronto, o romance polifônico pôde se
oferecer como conversa e discussão, em que “cada opinião se torna de fato um ser vivo e
inseparável da voz humana materializada” (M. Bakhtin, 1981:11) É desse modo que o
romance não só se define enquanto voz, como representação do homem que fala,
conversa e discute idéias, como também se insere na “continuidade à linha dialógica na
evolução da prosa ficcional européia”. Bakhtin considera “a criação do romance polifônico
em um imenso avanço não na evolução da prosa ficcional do romance, ou seja, de
todos os gêneros que se desenvolvem na órbita do romance, mas, generalizando,
também na evolução do pensamento artístico da humanidade” (M. Bakhtin, 1981:237).
Por isso enquanto gênero se coloca no limiar do processo de prosificação da cultura.
(MACHADO, 1995, p. 93-94)
Identificamos que os romances contemporâneos tornam-se expressão cultural, e
o papel do autor não é mais o único criador, “mas autores-sujeitos cujos discursos se
apresentam em constante interação.” (MACHADO, 1995, p. 94)
Por meio da oralidade, os narradores carregam o texto com expressões
angolanas, tornando natural o discurso da cultura representado pela língua de sua nação,
como “aliconde”, “arimo”, “dongo”, “jindungo”, “imbamba”, “kilombo”, “mukulunto”,
“njango”, “pumbeiro” entre outras, mas sendo considerada Literatura de Expressão
30
Portuguesa. Bonnici (2000) esclarece que são estratégias de descolonização, chamados
de ab-rogação e apropriação empregadas quanto à utilização da língua do colonizador.
Ab-rogação no sentido de negação a tudo que esteja esteticamente comprometido com a
cultura imperial, e a descolonização seria a substituição pela cultura marginalizada, sua
apropriação.
Nas vozes de algumas personagens de A gloriosa família, percebemos a
marginalização da língua dos negros, como em uma conversa do padre Tavares com
Hermenegildo:
_ Está há tantos anos aqui e ainda precisa de usar línguas para contactar com os
negros? Nunca aprendeu a falar kimbundu?
_ Aprendi latim, posso entender francês e italiano, idiomas civilizados. Não preciso de
aprender línguas de bárbaros.
(...) Hermenegildo sabia de padres que tinham opinião contrária, falavam mesmo da
utilidade de traduzir o catecismo e os evangelhos nos dialectos africanos. Uma inútil
perda de tempo, consideraria o padre Tavares. (PEPETELA, 1999, p.206)
Pepetela também faz referências a léxicos angolanos relacionados a crenças,
orixás que permeiam a religiosidade negra, como “cazumbi”, que significa espíritos,
“kianda”, ser mítico das águas, “kimbanda”, curandeiro, “pemba”, caulino branco, usado
em rituais, atos de feitiço, “xinguilamento”, ritual em que o corpo treme, particularmente os
ombros. Como nos trechos de A gloriosa família:
os mafulos escondiam tudo, não deixavam entrar nenhum kimbanda na cidade, porque os
predikant falavam nos kimbandas como usuários de artes do demónio, afinal não muito
diferente do que diziam os padres, que os predikant eram mais militantes e tinham
vozes mais esganiçadas, imperativas. (...)
não era preciso ser o grande Kandala, reconhecido adivinho e kimbanda da mítica Lunda,
de onde veio minha desconhecida mãe, para perceber a tempestade no horizonte. ( 1999,
p.116-118)
Os portugueses parecem que estão a provar o vinho, bebem aos poucos, mas não é por
delicadez, é apenas timidez ou até medo de enfrentar o mau espírito, o cazumbi, do
vinho. (1999, p.16)
Orlandi (1988) afirma que o compromisso pragmático da linguagem é marcado
por um conceito social e histórico, a condição de produção do discurso do homem e sua
31
manifestação na sociedade em todas as instâncias; todo o mecanismo de formação social
tem regras de projeção que estabelece relação entre as situações concretas e as
representações (posições) dessas situações, no interior do discurso são as formações
imaginárias. As línguas e as vozes que se misturam nesses romances polifônicos
representam um claro registro da oralidade presente na sociedade angolana atual,
confirmando sua “dupla tradição” e seu hibridismo, pois, conforme fala Chinyama,
personagem de Lueji, “_ A tradição se torce quando é preciso” (PEPETELA, 1989, p. 15).
É importante destacar que a identidade nacional angolana está se reconstruindo a
partir da literatura, pois, através desta, relemos a tradição e encontramos um discurso que
esclarece muitos pontos obscuros pertinentes à história dominante nos aspectos sociais,
econômicos e políticos.
Quanto à representação da mulher em Angola, sabemos que, em cada momento
reage, ou melhor, assume uma condição diferenciada na sociedade, deixando-nos claro
que não podemos desvencilhar o passado histórico do projeto literário de Pepetela. Dessa
forma, arrolaremos no capítulo seguinte a estreita ligação entre o discurso literário e o
discurso histórico.
32
2. IDENTIDADE ANGOLANA E RECONSTRUÇÃO NACIONAL PELA LITERATURA
L’Afrique, pays sans Histoire
(Charles-André Julien)
Atualmente, o papel de interpretação da História da África vem motivando muitos
historiadores, evidenciando a necessidade de constituição de identidade nacional de
todos os países africanos, para suprimir a generalização continental que até então
comumente se fez, muitas vezes relegada apenas a pequenos registros informativos de
terra colonizada, ágrafa e discriminada pela sua diversidade étnica, cultural e social. Essa
concepção equivocada sobre a África, em sua totalidade, advém dos pressupostos
hegelianos que influenciaram os meios culturais e sociais do século XIX e sedimentaram
a hegemonia européia, gerando descaso colonial e desvalorizando uma cultura primitiva
riquíssima, haja vista ser a África Setentrional região onde se encontra acervo artístico e
documental milenar preservado, como observamos no Egito. Nas demais nações
africanas, há grande contraste, sob o aspecto histórico, sendo que não há registros
(escritos) de suas origens e evolução, embora não devam ser considerados menores,
pois predomina uma forma cultural diversa, em eu conservada através da oralidade, são
preservadas e transmitidas as tradições e os costumes.
Assim, a figura do colono, submisso nos registros ocidentais, transpassa os
valores dos colonizadores e identifica-se como povo forte e desbravador, como assinala
em sua poesia o poeta Tomaz Vieira da Cruz:
Foi o primeiro em tudo,
Na dor e no amor,
Na honra e na Saudade,
Porque nunca mais voltou...
E nas terras de toda gente
E de ninguém...
33
_ estranha criatura!
... foi sua também
A primeira sepultura!”. (In MOURÃO, 1978, p.29)
Como um dos maiores efeitos da globalização, porém, é aproximar os continentes
numa extensa ciranda de roda, muitos olhos se voltam para a diversidade cultural africana
conforme explica Ki-Zerbo, “a valorização do passado deste continente é um sinal dos
tempos” (1972, p.9), procurando, entre outras coisas, saciar a curiosidade, identificar
semelhanças ou contrastes ou ainda, comprovar a capacidade de resistência desses
povos autóctones.
Uma perspectiva enriquecedora para o campo literário (e da comunicação) no
Brasil é a unificação do idioma nos países de língua portuguesa, considerando que, além
do Brasil, de língua tupi-guarani, na colonização havia mais ou menos 1 200 línguas
indígenas, Portugal colonizou outros países na África, especialmente Angola, constituída
de diversas línguas. O papel da língua portuguesa era de irmanar estes povos pela língua
e facilitar a dominação européia que, mais tarde, se constituiria marcadamente em dois
planos: em primeiro plano, a cultura Ocidental dominante e, em segundo plano, a América
Latina, dominada.
É, portanto, pertinente salientar o contexto histórico dominante e as marcas
sociais sob o enfoque s-colonialista e a configuração da história literária do país cujas
obras foram selecionadas e salientar que o autor angolano Pepetela registra, em sua
literatura, questões fundamentalmente de cunho político, pois Angola é um dos últimos
países a se livrar da amarras do poder Ocidental, promovendo restaurações, lutas,
guerrilhas e muita resistência.
34
2.1 Discurso Literário versus Discurso Histórico: a importância destas relações para
uma abordagem social em Pepetela
Bhabha (1998) explica que um texto literário precisa ser dialético e considerar a
heterogeneidade da práxis social, cuja articulação textual deve ser aberta às contribuições
exteriores, pois a forma artística é impregnada de marcas sociais e históricas, como uma
relação entre a “temporalidade intervalar” e a “realidade intervalar”. E, na fronteira entre o
tempo e a realidade, ”habita uma quietude do tempo e uma estranheza de
enquadramento que cria a imagem discursiva na encruzilhada entre história e literatura,
unindo a casa e o mundo.” (1998, p.35)
Vários historiadores e críticos literários, entre eles Antonio Candido (2000), Jean-
Paul Sartre (1978), apontam que a literatura deve ser distinta da historiografia, mas que a
produção literária deve ser respeitada tanto em seu aspecto do passado, como afirmação
retrospectiva de cultura, como em sua perspectiva de futuro, pela preservação de valores
que asseguram a continuidade de uma cultura hegemônica e porque, na sua
materialidade, a obra literária faz circular informações, recoloca em circulação valores e
princípios que constituem a literatura como reino específico.
Conforme ndido, “o estudo da função histórico-literária de uma obra adquire
pleno significado, quando referido intimamente à sua estrutura, superando-se deste modo
o hiato freqüentemente aberto entre a investigação histórica e as orientações estéticas.”
(2000, p.172)
Ao longo dos tempos, a Literatura e a História mantiveram relações estreitas, uma
complementava ou ilustrava a outra. Candido afirma que “a Literatura é um processo
histórico, de natureza estética, que se define pela inter-relação das pessoas que a
35
praticam, que criam uma certa mentalidade e estabelecem uma certa tradição.
(CANDIDO, Investigações lingüísticas e teoria literária,1995, p. 8-9)
Questionar e refletir acerca das circunstâncias que unem a literatura à história,
tornando-a comum a muitas culturas, significa resgatar elementos que acompanham as
manifestações humanas, das quais a arte é um dos veículos mais antigos, porém aberta a
processos transformacionais, considerando o papel dos modos literários em suas
relações com a sociedade que os propõe e utiliza. Interpretar as relações que as formas
de arte literária estabelecem entre si, significa ver a arte como elemento que representa a
cultura de uma época.
Nessa perspectiva, a produção artística (aqui particularmente a literatura ) surge
como parte do processo de consolidação das identidades nacionais, por meio de seu
caráter de representação. Exemplo disso é a busca de expressão de identidade cultural
que a literatura africana vem demonstrando, ao resgatar traços culturais preservados pela
oralidade, e através de uma voz de engajamento social, o que confirma o caráter de
representação da criação artística, esta uma projeção que uma sociedade faz de si
mesma, buscando projetar a realidade e não apenas reproduzi-la.
Assim, a produção artística deve ser aberta para novas perspectivas culturais e,
por meio da história, da literatura e da arte, configurar um diálogo entre autores
contemporâneos com outros autores de outros tempos e outros espaços, o que conduzirá
a um aprofundamento da própria tradição, da própria identidade nacional e, acima de
tudo, da sua própria diversidade, numa relação constante com outros contextos.
Conforme coloca Silvano Peloso, “é possível redescobrir alguns conceitos universais
comuns, mesmo possuindo-se valores culturais muito diferentes com a condição de que
seja reconhecida esta diversidade, o direito à existência de coletividades culturais” (1996,
36
p.67), mas preservando suas peculiaridades e diferenças, pressupostos suficientes para
comprovar a importância de determinadas tendências artísticas contemporâneas para a
cultura e a literatura especificamente, que se consolidam como um diálogo s-
colonialista, com a valorização do espaço feminino e novos enfoques sobre literaturas até
então desconsideradas no âmbito da história e teoria literárias, como a Literatura Africana
nos países de colonização portuguesa, cuja condição ágrafa da língua original cedeu
lugar para outros discursos, o do colonizador, agora reinterpretada num espaço de
tradução, acrescentando ao espaço literário, os marginalizados.
Miranda (1995) questiona a reverência pública outorgada a monumentos literários
que retratam a face canônica de uma nação e defende uma história literária progressista,
baseada num conceito de representação que trabalha com a “imediatidade” dos traços do
lugar para compor e definir os valores constitutivos da sua identidade”. Um discurso
literário pode apontar para configurações que se situam numa região, numa tendência,
num círculo social, etc., com imbricações abrangentes que ultrapassam o âmbito do
escritor, enquanto produtor de especificidades literárias, tornando-o um "ser social" que
alcança a representatividade de um patrimônio cultural coletivo.
Na linguagem artística, há confluência de práxis coletivas, de modo que a
estratégia discursiva se configura como uma inserção subjetiva com que o escritor-criador
procura reciclar formas estabelecidas, cujo imaginário materializa aspirações que,
dialeticamente, não são apenas suas, mas de toda uma coletividade, de modo que a
consagração do objeto de arte se efetiva a partir da articulação entre a produção
artística e um engajamento social, através do diálogo da instância discursiva em vários
níveis com o conjunto da vida cultural, evocando temas relativos às carências do povo
37
(MAGNANI , 2001, p.31); como a necessidade de libertação declarada por Pepetela em
Mayombe:
(...) O soldado inimigo pode mesmo estar em contradição com a causa que é forçado a
defender. O combatente revolucionário sabe disso; pode mesmo pensar que aquele
inimigo é um bom camponês ou um são operário, útil e combativo noutras circunstâncias,
mas que está aqui envenenado por preconceito, supercondicionado pela classe dirigente
para matar. O revolucionário tem de fazer um compromisso entre o ódio abstracto ao
inimigo e a simpatia que o inimigo-indivíduo lhe possa inspirar. (1985, p.256)
Para Magnani, (2001), a literatura é elemento transformável e transformador, pela
dialética entre a simbologia da obra e a simbologia social, em que o individual atinge o
universal, seja pela liberdade de formas ou pela intertextualidade que permite correlações
entre obras de épocas diferentes, o que possibilita à criação literária instituir-se como fator
multicultural. Esta condição dialética se explica pelo fato de que a ficcionalidade simboliza
um espaço público, compreendendo-se como uma retomada e uma reforma da maneira
como uma sociedade simboliza a sua História e os seus poderes através dos seus
agentes e das suas ações e também de uma releitura de outras obras consagradas,
mesmo que se apropriando da oralidade, como ocorre nas obras de Pepetela.
Por meio da Literatura, pode-se viver a época, reconhecê-la, e ao mesmo tempo,
desvendar o que não é revelado na história do colonizador (uma perspectiva da teoria
pós-colonialista), como em A gloriosa família (1999), em que o autor já no Prólogo registra
trechos da História de Angola, de António de Oliveira Cadornega, literalmente:
“Em uma cidade assistia hum homem por nome Baltazar Van Dum, Flamengo de Nação,
mas de animo Portuguez eu havia ido dos primeiros Arrayaes para Loanda com
permissão de quem governava os Portuguezes, o qual esteve posto em risco de o
matarem os Flamengos, a respeito que antes desta tregoa e Communicação corrente,
hum cidadão, por ver se por sua via podíamos haver algumas intelligencias de que
passava entre o Flamengo, para este effeito, mando de Masangano dous negros com
huma carta diretos de arimos e fazendas do bengo (...)” (PEPETELA, 1999, p.9)
No primeiro capítulo, que datou ficcionalmente “Fevereiro de 1642”, apresenta sob
os olhos e julgamento de um escravo, o mesmo fato, mas subjetivamente:
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O meu dono, Baltazar Van Dum, sentiu os calções mijados fora, depois de ter sido
despedido pelo director Nieulant. Mijado mas aliviado, com a cabeça de raros cabelos
brancos ainda em cima dos ombros. (...) Os dois escravos que com ele entraram no
antigo Colégio dos Jesuítas já não saíram. Quem perdia era o proprietário deles,
português de Massangano, que os tinha enviado com a célebre carta. O meu dono não
teve tempo de ler a carta, como terá defendido junto do director. (PEPETELA, 1999, p.11)
Essa relação História-ficção é um dos elementos que reforçam a função
humanizadora da literatura, sobretudo pela abertura de possibilidades que esta ligação
proporciona ao leitor de recriar, questionar e interagir com a obra, pois a literatura “é uma
forma de conhecimento da realidade que se serve da ficção e tem como meio de
expressão a linguagem artisticamente elaborada”. (D’ONOFRIO, 1999, p.10), ou seja, o
próprio conceito de literatura está relacionado ao contexto e ao julgamento de valor, e
este julgar relaciona-se com o meio histórico.
Trojan (1996) afirma que “todo o produto da atividade humana revela o seu
criador: o homem” que humaniza tudo o que toca, buscando satisfazer suas próprias
necessidades, ou melhor, quando se esgota o valor utilitário de um objeto, no caso a
história do colonizador de Angola, aprecia-se o valor estético. A obra de arte é como uma
síntese de toda potencialidade humana, revelando sua importância, fracassos, negações,
levando o ser humano à reflexão. No entanto, a criatividade e a originalidade não podem
fugir de sua finalidade de satisfazer necessidades humanas, como humanizadora.
Podemos valer-nos das considerações de Cândido em que “o leitor nivelado ao
personagem pela comunidade do meio expressivo se sente participante de uma
humanidade que é a sua e, deste modo, pronto para incorporar a sua experiência humana
mais profunda que o escritor lhe oferece como uma visão da realidade.” (1972, p.9). Nas
teorias de Jauss, verificamos as experiências fundamentais da poiesis, percepção da arte,
de sentir , aisthesis que seria o prazer e katharsis, a transformação e a liberação de sua
psique. Entretanto, a literatura “não corrompe nem edifica” como convencionalmente a
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rotulamos, ela traz “livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal,
humaniza em sentido profundo, porque faz viver.” (CANDIDO, 1972, p.5)
Jobim (1992) esclarece que o autor, ao elaborar sua obra, conhece as
delimitações do considerado literário no momento, induzido pelo próprio contexto, pelas
normas vigentes. Cada época tem seu quadro de referência, normas estéticas,
convenções, visões e valores de mundo para relacionar e constituir a literatura, a partir
das quais efetua julgamento.
Ao longo da história da civilização, o ser humano acumulou experiências distintas
de ver o mundo, de se ver no mundo. Cada época possui seu zeitgeist , o espírito próprio
de cada tempo, que reflete na arte literária.
Assim, na relação Literatura versus História não se deve investigar até que ponto,
ou melhor, até onde se estende o discurso literário ou em que ponto se inicia ou se limita o
discurso histórico, mas sim realizar um diálogo produtivo entre estes elementos, conforme
a concepção aristotélica da imitação artística da realidade. "É evidente que não compete ao
poeta narrar exatamente o que aconteceu, mas sim o que poderia ter acontecido, o
possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade (...)" ( MAGNANI, 2001, p.78 ).
Assim entendida, a obra literária pode " recriar o mundo", de forma que, através
de um discurso subjetivo, é possível chegar-se à verdade histórica através da literatura,
pois “não se trata de substituir a história pela ficção, mas de possibilitar uma aproximação
poética em que todos os pontos de vista contraditórios, mas convergentes, estejam
presentes, formando uma representação totalizadora, uma forma privilegiada de ler-se os
signos da história.” ( ESTEVES, 1998, p.12)
Neste pressuposto, pode-se dizer que o texto literário muitas vezes serve de
instrumento para retratar a realidade, com intuito de pensar, persuadir, informar,
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documentar, alertar, refletir ou simplesmente proporcionar prazer ao leitor, mas também
como condutor de conhecimentos do mundo, cuja práxis social permite a conscientização
de realidades passadas, presentes e de projeções futuras. Para Zilberman (2002), a
literatura é metalingüisticamente social e ideológica, tendo como função principal o
discurso de compromisso com a realidade, com a história, pois o escritor, ao elaborar a
obra, exprime os acontecimentos ao seu redor. De acordo com essa autora, "Quando se
examinam os intercâmbios entre a literatura e a sociedade, não importa apenas a maneira
como os textos representam as relações sociais engendradas por determinado modo de
produção, mas importa, também e principalmente, a forma como o texto encena sua
inserção no sistema de produção.” (2002, p. 10).
Ao longo do tempo, a obra literária é lida e relida, e a cada leitura, é julgada por
um tipo de leitor que assim vai reconstruindo sua história. Magnani considera que:
"o fenômeno literário é historicamente analisável, não em sua essência, mas em seu
funcionamento, que compreende as condições de emergência dos textos, sua produção,
edição, difusão, as condições de aprendizagem da língua e leitura. ( ...) o termo literário
designa algo vivo e dinâmico, em constante transformação; é um fato social..."( 2001, p.
05)
No discurso de Pepetela, a obra literária adquire uma função social, não apenas
informação, mas constitui-se em instrumento de expressão que escreve a própria história
do ser humano e da literatura, reforçando a coletividade da cultura angolana,
Uma cultura que é ao mesmo tempo individual e coletiva.
Nesta cultura insere-se a pessoa histórica” daquele que produz literatura. (...) A
comunicação literária é um contanto entre a historicidade do receptor e a historicidade
do emissor (estabelecido em geral pela historicidade dos mediadores culturais) (...) O
escritor, justamente por ser pessoa histórica, reúne em si a contribuição cultural coletiva
da sua sociedade e uma intenção individual que age sobre aquela base com uma certa
margem de liberdade, até mesmo subvertendo-a, mas nunca ignorando-a. Nesta
dialética de liberdade individual e cultura coletiva, a literatura se coloca não como um
fato arbitrário, mas como fato histórico. (MANCINELLI, 1995, p. 84)
Em Mayombe (1985), ao retratar a grande guerrilha de libertação, Pepetela
metaforicamente cria personagens a partir de representações de conceitos e
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comportamentos coletivos, nomeando-os Comando, Sem Medo, Verdade, Mundo Novo,
os narradores Teoria, Milagre entre outros, como podemos verificar nos trechos a seguir:
O Comandante Sem Medo contemplou-o fixamente, enquanto o professor se sentava,
gritando calado para esconder as dores insuportáveis. Estou arrumado, pensou. (1985,
p.15)
_ Em última instância. Mas em última instância. uns moços com capacidade:
Mundo Novo, Teoria... Com mais uma rodagem, vão dar excelentes quadros. Sobretudo
quadros políticos. Nos militares, temos boas promessas: Muatiânvua, o Chefe de
Operações, Milagre, Verdade... esses são os melhores combatentes. (1985, p.189)
Estratégia similar encontra nas farsas do português Gil Vicente (1465) que deseja
caracterizar comportamentos e padrões de sua época. Para isso, revelava realidade
escondida, mesquinha, inconfessada; mas era um conservador que se empenhava em
caricaturar apenas os indivíduos, como no Auto da barca do inferno (1517), onde temos
personagens como Anjo, Fidalgo, Sapateiro, Frade, Judeu, Corregedor, Procurador,
Enforcado e os Cavaleiros Cruzados. É importante ressaltar, que nessas obras
analisadas, encontramos estereótipos sociais, políticos e não indivíduos.
De acordo com Bamberger, a literatura contribui para a solução dos problemas da
coexistência,
Os livros... são o que têm sido séculos: portadores do conhecimento de uma geração
para outra ( e dificilmente poderão ser ultrapassados por qualquer outro meio de
transmissão das descobertas intelectuais), pedras angulares da vida intelectual e
emocional. Auxiliam a dominar os problemas éticos-morais e sócio-políticos da vida,
ajudando os jovens a desenvolver sua personalidade e estabelecer um conceito global
do mundo (2002, p.11)
Para Nelson Werneck Sodré (1964), que trata a historicidade e a crítica através
do cunho marxista, a literatura é reflexo da sociedade, ou melhor, expressão desta, em
que o autor não é um ser individual, mas se localiza em um espaço geográfico e histórico
e recebe influências destes,
Ora, entre as manifestações da vida social, nenhuma traduz mais fortemente os seus
traços do que as artísticas e, entre elas, as literárias. Omitir a existência do quadro
social, apreciar figuras, gêneros e correntes como tendo vida autônoma porque
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divorciados das condições de meio e de tempo, na apresentação do desenvolvimento
literário de um povo, é mais do que uma falha, porque erro fundamental... (1964, p17)
Conforme explana Candido, principalmente as correntes marxistas vêem a obra
como uma forma de conhecimento, na qual “a obra literária significa um tipo de
elaboração das sugestões da personalidade e do mundo que possui autonomia de
significado que não a desliga das suas fontes de inspiração no real, nem anula a sua
capacidade de atuar sobre ele.” (1972, p.5-6)
Nos estudos literários contemporâneos, uma das grandes discussões sobre a
história literária é a sua linearidade. Somente pouco se começou a discutir a
infalibilidade deste método. Leyla Perrone-Moisés (1998) questiona a posição positivista
dos historiadores e propõe uma história literária escrita a partir da visão do escritor-crítico.
Conforme afirma a pesquisadora, os escritores-críticos, ao escreverem, sentem
necessidade de visitar o passado e, assim, vão criando sua própria história e tradição.
O tempo perde sua linearidade, o passado e o presente se confundem, seria a
leitura sincrônica da história, conforme podemos vivenciar o fato da Restauração de
Angola, fato ocorrido no século XVII e que fora relatado ficcionalmente no século XX em
A gloriosa família (1999), ou até mesmo as histórias do reino da Lunda quatrocentos
anos atrás, reencenados por uma ancestral no século XX, em Lueji (1989), fatos que
marcaram a História de Angola e são recriados e revitalizados pela pena poética do artista
Pepetela e, conforme explica Bhabha, “ao reencenar o passado, este introduz outras
temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição. Esse processo afasta
qualquer acesso imediato a uma identidade original ou a uma tradição “recebida”.” (1998,
p. 21)
Justifica-se olhar as personagens femininas de Pepetela como uma proposta de
reconstrução da história, num contexto sócio-cultural assimilado. Afinal, a literatura pode
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ser uma forma de representação cultural cujo fenômeno literário se caracterizaria por
dados culturais apreendidos por um indivíduo de um tempo e lugar e expressos por meio
de uma linguagem elaborada, e que a literatura é o reflexo de um momento histórico, um
conjunto de produções literárias de um lugar e épocas específicas, cujas manifestações
literárias constituem a expressão cultural de um povo, em que esta se caracteriza como
elemento ativo, passível de transformações e mudanças.
2.2 Alguns Fatos Históricos de Angola Presentes nas Ficções de Pepetela: aspectos
sociais, econômicos e políticos
O conjunto de obras literárias de Pepetela reflete um momento histórico, pois sua
ficção nos surpreende com acontecimentos e fatos que pertencem ao painel da
construção da história dominante de Angola, mostrando o povo africano portador de uma
cultura própria, que constantemente revela uma tradição, ao passo que representado em
tempos modernos, com culturas assimiladas, propõe-nos uma mestiçagem.
Parafraseando Ki-Zerbo (1972), se partirmos do século VII, podemos considerar
que, durante este século até o século XII, houve um período de preparação, no qual se
fundam a maior parte dos grandes reinos africanos, desde a expansão dos árabes que se
lançam do Egito para o Ocidente, proporcionando um progresso demográfico e muitos
movimentos migratórios.
Do século XII ao XVI, a África Negra presenciou um período de grande
desenvolvimento econômico, político e cultural, pois aconteceu um processo de
miscigenação, promovido pelos árabes que roubavam mulheres dos países, além do
progresso nas relações comerciais e a constituição de numerosos impérios. E um desses
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impérios estava sob o comando da rainha Lueji, trono de Lunda e como esclarece
Pepetela em seu romance Lueji, “(...) Lueji é uma mulher, nunca uma mulher tinha reinado
no trono da Lunda, as mulheres eram importantes mas não até esse ponto...” (1989, p.
22)
Como observou Diogo Gomes em suas crônicas XV, na qual “vê-se como, uma
vez mais, a redução da África pré-colonial a uma marchetaria de tribos enterradas nos
seus particularismos é uma visão grosseiramente míope da realidade.” (In KI-ZERBO, p.
414)
A partir do século XVI, as conquistas e conseqüentemente o progresso
simultâneo serão “bruscamente quebrados”. E foram “por mares nunca dantes
navegados” postulados na épica de Camões, que os europeus chegaram à África e
exploraram sua nação, deixando o legado do atraso político, econômico e social. Lembra
Mourão que “o processo colonial, a exemplo do que diz Memmi: _ ‘apodrece o colonizador
e destrói o colonizado’” (1978, p.112).
Como explica KI-ZERBO,
Podemos, pois, considerar que foram arrancados à África cerca de 100 milhões de
homens e de mulheres desde o século XV, sendo 50 milhões um mínimo. Se
relacionarmos estes algarismos, não com a actual população da África Negra, mas com a
população dos séculos XVIII e XIX, ver-se-á a magnitude da sangria humana que a África
Negra sofreu. (1972, p.279)
Em busca de “cristão e especiarias”, as caravelas portuguesas foram recebidas
no Congo com festa e entusiasmo, mas a felicidade durou pouco, pois descobriram o ouro
e a possibilidade de comércio com escravos. Mas, como explica Mourão, “a chamada
missão do homem branco falhou, a não ser que se considere o negro no plano de
fornecedor de mão-de-obra.” (1978, p.112)
45
Em Mbamba, Angola atual, organizou-se uma guarda avançada encarregada de
proteger a terra conquistada contra os inimigos vindos do Sul, tornando-se uma província
comandada diretamente pelo rei de Portugal.
Conforme registros da História da África Negra (1972), Angola tornou-se “a filha
querida dos Portugueses”, de onde extraíram zimbos, construíram fortes e no final do
século XVI, criaram uma administração colonial. Um jurista português, que defendia uma
teoria da colonização, apregoava a ocupação militar em Angola e sua juntura com
Moçambique, paralelamente o monopólio real sobre o sal, criação de um armazém em
Benguela e a exploração das minas.
Aventureiros penetravam em Ambaca, posto mais avançado, e tornavam-se
sertanejos, enquanto que, no centro de Benguela, constituíram uma colônia de
povoamento por portugueses condenados, criminosos brasileiros e bandidos. Viviam em
circuito fechado, dedicavam-se à agricultura, pois as minas não existiam e não podiam
organizar tráfico negreiro. O comércio de escravos começa sob o pretexto de que Lisboa
não ajudava financeiramente Angola.
No início do século XVII, Luanda e Portugal foram tomadas pelos holandeses, fato
este retratado por Pepetela em A gloriosa família:
(...) viu ele (Baltazar Van Dun) os barcos dos mafulos fazerem explorações à entrada da
baía, dias depois entrarem decididamente pela barra, dispararem umas salvas para
intimidar e depois ficarem na expectativa. No dia 24 de agosto, os vinte navios dos
mafulos se colocaram em formação de combate, ocupando todo o mar desde a ponta da
Ilha até Cassondama, fechando a entrada da baía. (1999, p.19)
Após a grande execução ministrada pelo brasileiro Salvador Correia de Sá e
Benevides, altos funcionários vieram do Brasil, tornando-se “colônia de outra colônia”. O
tráfico tomou forte impulso e incorporou-se como a principal atividade do país. A Grã-
Bretanha e Holanda tornaram-se prestadoras de serviços no transporte de escravos.
Como Pepetela transcreve em seu romance, um trecho da carta de Padre Antonio Vieira
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ao Marquês de Nisa, “todo o debate agora é sobre Angola, e é matéria em que não hão-
de ceder (os holandeses), porque sem negros não há Pernambuco e sem Angola o há
negros.” (PEPETELA, 1999, p.283)
Ainda escreve o autor angolano que “os mafulos de facto não estavam com muita
sorte, e os plantadores do Brasil protestavam, sem escravos não podiam cultivar o
açúcar, o ouro branco.”, iniciando o processo de Restauração, “que um vença e expulse o
outro, de modo a acabar com esta estória de dois exércitos no terreno”. (1999, p.48) Os
holandeses ocuparam Angola por sete anos, quando, enfim, os portugueses retomaram o
poder.
Os portugueses encontram muita resistência nos reinos africanos, muitos
morreram lutando, como a rainha Ginga que faleceu idosa, em 1663, numa Matamba
ainda independente, outros assistiram à derrota, como Ngola, em 1671, com o apenso de
Ndongo ao reino português. Como transfigura Pepetela em A gloriosa família, sobre as
“caçadas” para o tráfico, “levaram muitos escravos, mas a maior parte destes aproveitou
as abertas provocadas pela confusão e deixou donos e bikuatas sozinhos, fugindo para
as terras da rainha Jinga, à busca de proteção e liberdade.” (1999, p.15)
No culo XVIII, o governador Francisco de Souza Coutinho percebe que, apesar
da “prosperidade” de Angola, o tráfico de negros ameaça o equilíbrio de Portugal, tenta
implantar outras formas de gerar possibilidade de ganhos, como a implantação de
indústria, o lançamento de bases de fundição de ferro em Cuanza, incentivou a agricultura
e fundou escolas profissionalizantes. Mas foi em vão... o tráfico continuou sendo a
“grande indústria de Angola, e Luanda tornou-se o maior porto negreiro da África Negra,
expedindo mais de trinta mil escravos por ano, sobretudo para o Brasil”. (KI-ZERBO,
1972, p.427)
47
Tanto em Angola como em Moçambique, os reis concediam territórios aos
mestiços, conhecidos como os pombeiros”, com poderes inclusive de implantar impostos
e substituíam a moeda ou tributo por escravos. Em Angola, os escravos eram
aproveitados na agricultura, como pedreiros, ferreiros ou carpinteiros a serviço dos
jesuítas.
Em 1822, o Brasil torna-se independente com a Proclamação da República e
propõe uma federação com Angola e Moçambique, mas não houve aceitação. Portugal
intencionava ligar Angola a Moçambique, mas a Inglaterra, pretendendo construir uma
linha de ligação em toda a África, impossibilitou a realização do sonho português. No
mesmo período, Sá da Bandeira, ministro português, tentou anular o tráfico negreiro, mas
foi muito criticado e contestado, permitindo que essa prática perdurasse até o século XX
em Angola.
Quanto à miscigenação, “Os portugueses, aqui como em outros lados, na falta de
portuguesas, encontravam na mestiçagem uma consolação fisiológica, antes de nela
vierem a descobrir mais tarde um elemento de propaganda.” (KI-ZERBO, 1972, p.428),
como bem retrata Pepetela em A gloriosa família (1999), em que Baltazar Van Dum tem
os filhos de casa e os “filhos do quintal”, mestiços ou em Mayombe, na qual o narrador
Teoria declara:
Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura de café, vinda da mãe,
misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o
inconciliável e é este o meu motor. Num universo de sim ou não, branco ou negro, eu
represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem
espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as
combinações?. (1985, p.14)
Durante o século XIX, com a tomada da África pelos estrangeiros, constatamos
que os portugueses controlavam, sobretudo, dois grandes países: Angola e Moçambique.
Após a proclamação da república portuguesa, em 1910, surgiu a iniciativa de proporcionar
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maiores poderes aos governadores locais. No entanto, em 1920, Angola e Moçambique
obtiveram autonomia financeira para possíveis empréstimos com intuito de suprir as
necessidades econômicas dos mesmos, mas a receita era menor que o débito,
desvalorizando a moeda, ficando rapidamente à mercê da metrópole. Em 1930, Salazar
institui o “Acto Colonial”, que proibia o trabalho forçado em proveito das companhias
(proibição permaneceu letra-morta), depois retomada na “Carta Orgânica”, em 1933 e na
Constituição de 1951. Ki-Zerbo revela que “dir-se-ia que, depois das dificuldades da
grande crise mundial, Portugal se queria apegar mais intimamente às suas reservas
africanas, consideradas como um “legado histórico”. Essa nova política foi, no entanto,
abrandada perante as queixas dos colonos portugueses.” (1972a, p.135)
Em 1951, as colônias tornaram-se províncias ultramarinas sob o jugo de
assimilação e, nos bastidores, continua a realidade convencional que ligeiramente
tentaram mascarar: racismo, atraso e exploração. No plano industrial de seis anos,
surgiram Companhias em Moçambique e Angola, exigindo-se trabalho obrigatório e à
força. Em 1953, a população foi discriminada em três classes distintas: os portugueses,
automaticamente cidadãos, os assimilados e a massa africana. Os assimilados eram
considerados “civilizados”, que contavam em Angola cerca de 90 000, numa população de
4 milhões de habitantes, e em Moçambique, 4 353 para 5 735 000 habitantes. No entanto
podemos perceber que a proporção é estanque, poucos comungavam desses privilégios
portugueses, enquanto muitos permaneciam no regime de “indigenato”.
Em 1960, o Dr. Agostinho Neto lançou o MPLA ( Movimento Popular para a
Libertação de Angola) e, entre seus dirigentes, encontramos Mario de Andrade e Viriato
Cruz. Em 1963, Pepetela torna-se militante desse movimento,
mas também foram criados
outros movimentos africanos independentes. O MPLA ficcionalmente é retomado por
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Pepetela em Mayombe, quando encaminha para o desfecho do romance, simbolizando
metaforicamente a força necessária para a conquista almejada:
E sorriu para o Comissário. Este apertou-lhe o ombro. Correu para o acampamento,
gritando, lágrimas nos olhos:
_ MPLA avança! MPLA avança!
A sua AKA varria o terreno. Os soldados tentavam subir o morro dos morteiros, que
estavam a ser retirados, e ele apontava friamente, abatendo os inimigos, tiro-a-tiro.
Ninguém já se camuflava. Os guerrilheiros faziam fogo de pé, visando cuidadosamente.
(1985, p.290)
Em Moçambique, criaram o UNAM ( União Nacional Africana de Moçambique) e
UDENAMO ( União Democrática Nacional de Moçambique). Após muitas batalhas, em
1974, aconteceu o golpe de Estado do Movimento das Forças Armadas, comandado
pelos jovens oficiais portugueses que lançavam a ordem: “Democracia no nosso país,
descolonização em África”. Enfim, os guerrilheiros africanos aceleraram a revolução em
primeiro, dos portugueses.
Consideramos Angola um dos países mais novos a obter independência política
de Portugal, pois somente em 11 de novembro de 1975 Agostinho Neto proclamava em
Luanda a República Popular de Angola. Registram-se progressos em direção à paz,
reconciliação e reconstrução nacional.
Como lembra Ki-Zerbo, “Angola, ainda há pouco o escudo da África do Sul e
agora independente e progressista, passava a ser uma base contra os poderes racistas
do Sul. Uma das múltiplas ironias da história.” (1972a, p.285)
Após anos de guerras sangrentas, os angolanos encontram suas famílias
dispersas, suas casas em aldeias devastadas e centros urbanos destruídos. No entanto,
“a dura realidade econômica não combina com os sonhos pós-guerra dos desmobilizados
relativamente à formação técnica e oportunidade e emprego”. Contudo, décadas dessa
guerra civil limitou o desenvolvimento de Angola frustrando os passos necessários para
apagar esse deficit da capacidade humana.
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A mulher, por uma questão de tradição, carrega em suas entranhas uma herança
de força e assume o papel vital de reconstrução de sua nação; mesmo num painel
contemporâneo de aculturação e descolonização. É comum, no cenário político de
Angola, encontrarmos a liderança feminina como possíveis resquícios matriarcais da
gloriosa rainha Lueji. Tendo em vista tais questões, faremos uma leitura, no próximo
capítulo, das personagens femininas dos romances Lueji (1989), A gloriosa família (1999)
e Mayombe (1985), à luz das teorias do pós-colonialismo e do feminismo.
51
3. O PÓS-COLONIALISMO E O FEMINISMO: TEORIAS QUE CONSTROEM A
IDENTIDADE FEMININA ANGOLANA
(...) a teoria feminista insiste na união entre o descontrutivismo e o político; opõe-se ao
sexismo ( o fato de que as mulheres escrevem como um grupo biologicamente oprimido),
mas endossa o feminismo como projeto político de conscientização; reconhece que as
teorias pós-colonialistas e feministas são projetos orientados para o futuro. (BONNICI,
2000, p.156)
Através do espaço pós-colonial, Pepetela reconstitui a História de Angola que,
segundo Bonnici, é “um contexto favorável aos marginalizados e aos oprimidos, para a
recuperação de sua história, da sua voz, e para a abertura das discussões acadêmicas
para todos” (2000, p.10) No entanto, o discurso pós-colonial se a partir “das fontes
alternativas da força cultural de povos colonizados; com o reconhecimento das distorções
produzidas pelo imperialismo e mantidas pelo sistema capitalista atual.” (BONNICI, 2000,
p.12) E estas “distorções” estão impregnadas em todos os discursos dominantes da
história nacional, demarcada por ideologias dos colonizadores, que mantinham o poder e
autonomia perante os colonizados.
Bhabha afirma que “a crítica s-colonial é testemunha das forças desiguais e
irregulares de representação cultural envolvidas na competição pela autoridade política e
social dentro da ordem do mundo moderno” (1998, p.239), envolvendo questões
geopolíticas, discursos ideológicos e diferenças culturais.
Nas referidas obras, percebemos os discursos dos colonizados “sobre a reversão
do colonizado-objeto em sujeito dono de sua história e da sua capacidade de reescrever
sua história” (BONNICI, 2000, p.18), no intuito de descrever a cultura influenciada pelo
processo imperial desde o processo colonial à atualidade, retratando a “experiência de
colonização”. O desenvolvimento dessas literaturas depende das etapas de
conscientização nacional e da asserção de serem diferentes da literatura do centro
52
imperial, pois “o objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma
população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a
conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução” (BHABHA, 1998, p. 111)
Bonnici ressalta ainda o processo de “descolonização da cultura” que transpõe a
“fase de assimilação” e a “fase cultural nacionalista”, para solidificar a “fase revolucionária
e nacionalista”, na qual podemos incluir Pepetela que se tornou um “despertador do
povo”, e que pela realidade exposta em suas obras “contribui para uma democratização
da conscientização e da expressão cultural e literária.” (2000, p.27-28).
Nesse sentido entendemos que as personagens femininas rainha Lueji, Matilde,
Ondina e Lu são revolucionárias em seu tempo, representando a voz não silenciada das
mulheres colonizadas que não se submeteram as regras do colonizador como uma
prática social e política no processo de releitura da História de Angola. Conforme relata
Ramos, “embora sendo personagem, ainda não autora, o espaço conquistado na ficção
revela seu papel vital nas sociedades tradicionais angolanas, marcando para sempre a
história que ajudaram a construir.” (2002, p.65)
Quanto à negação da cultura e à valorização da nacionalidade, ainda explica
Fanon (1990) que
A ênfase sobre a cultura nacional é uma reação e uma estratégia diante da negação da
cultura e das atividades culturais engendradas pelo poder colonial que atingiu todos os
povos colonizados. A dominação colonial existiu para convencer os nativos de que a
proposta colonial nada mais era do que banir a escuridão da inexistência da cultura na
sua vida e esclarece-los sobre a única cultura, a européia, que eles, quisessem ou não,
teriam de assimilar. O nativo que decide combater as mentiras coloniais luta no
continente inteiro”. Porém se as pessoas de cultura africana insistem mais na cultura
continental (por exemplo, a africana) do que na cultura nacional (por exemplo, a
nigeriana), essa atitude pode leva-las a um beco sem saída. (Apud BONNICI, 2000, p.28)
Pepetela constrói uma narrativa literária calcada na oralidadel, na qual representa
toda a cultura africana, por meio de expressões populares, da religião e de
comportamentos. E essa representação é reforçada por Bhabha,
53
Reconstituir o discurso da diferença cultural exige não apenas uma mudança de
conteúdos e símbolos culturais; uma substituição dentro da mesma moldura temporal de
representação não é adequada. Isto demanda uma revisão radical da temporalidade
social na qual histórias emergentes possam ser escritas; demanda também a
rearticulação do “signo” no qual se possam inscrever identidades culturais. E a
contingência como tempo significante de estratégias contra-hegemônicas não é uma
celebração da “falta” ou do excesso”, ou uma série autoperpetuadora de ontologias
negativas. Esse indeterminismo é a marca do espaço conflituoso mas produtivo, no qual a
arbitrariedade do signo de significação cultural emerge no interior das fronteiras reguladas
do discurso social. (1998, p. 340)
É importante ressaltar que há uma estreita relação entre os estudos Pós-Coloniais
e o Feminismo, conforme cita Bonnici (...) o feminismo trouxe à luz muitas questões que
o pós-colonialismo havia deixado obscuras; por outro lado, o pós-colonialismo ajudou
também o feminismo a precaver-se de pressupostos ocidentais do discurso feminista.”
(2000, p.16). Ainda esclarece que,
À semelhança das conclusões do pós-colonialismo, o feminismo descobre que o valor
estético da literatura hegemônica não está no próprio texto e, portanto, não é universal. O
valor estético do texto, juntamente com a teoria e a crítica literárias, foram construídos
histórica e culturalmente sob a égide do patriarcalismo. Consequentemente, o feminismo
tende a subverter tais conceitos outrora considerados indiscutíveis e os reduz a
fenômenos não axiomáticos. (BONNICI, 2000, p.154)
A mulher angolana é “duplamente colonizada”, primeiro por viver durante séculos
na condição de colônia de Portugal, segundo por estar numa sociedade patriarcalista
submetendo-se aos padrões e ordens dos homens. Sob este aspecto, a descolonização
feminina concentra-se no uso da linguagem e da experimentação lingüística, com o
objetivo de integrar essa mulher marginalizada à sociedade. Conforme relata Hollanda,
não é por acaso que a crítica feminista vem buscando uma “estética feminista negra que
trataria de política sexual e racial ao mesmo tempo” (1994, p.24)
Acerca do Feminismo, Bhabha explica que “(...) na década de 90, encontra sua
solidariedade tanto em narrativas libertárias como na dolorosa posição ética de uma
escrava, a Sethe de Morrrison, em Amada, que é levada ao infanticídio.” (1998, p.25).
Sugere também que “a metrópole ocidental deve confrontar sua história pós-colonial,
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contada pelo influxo de migrantes e refugiados do pós-guerra, como uma narrativa
indígena ou nativa interna a sua identidade nacional” (1998, p.26). Petersen (1995) para
posicionar-se, cita as palavras de Ngugi, quando reforça que não “nenhuma libertação
cultural sem a libertação feminina” (in Bonnici 2000, p.16).
O objeto da crítica feminista é a escrita da mulher. No entanto nessa pesquisa
nosso foco essencial são as personagens femininas criadas a partir das perspectivas do
mundo masculino pós-colonial, e que segundo Hollanda “moldam sutilmente nossa
compreensão e percepção da realidade” (1994, p.36)
O que almejam as linhas literárias angolanas é reversão do colonizado-objeto em
sujeito dono de sua história e da sua capacidade de reescrever, arrebatando o idioma
europeu, inserindo uma situação cultural específica e mantendo a integridade da
alteridade, um processo de descolonização cultural e de idiomas, no qual (...) o
colonizado fala quando se transforma num ser politicamente consciente que enfrenta o
opressor com antagonismo sem cessar.” (Bonnici, 2000, p.17). Ele assume uma postura
oposicionista contra a dominação do cânone ocidental, gerada historicamente para
subjugar o “primitivismo” do colonizado.
Termos dialéticos como metrópole e colônia comumente utilizadas nos discursos
pós-colonialistas, começam a ser empregados pelo feminismo na investigação das
convenções e dos resquícios patriarcalistas impregnados na sociedade. Teóricos da
década de 60 e 70, ponto de explosão do feminismo, colocavam sob jugo mulheres
brancas e freqüentemente inglesas; as demais raças ainda ficaram à margem. Contudo, é
importante ressaltar que o feminismo ocidental, preocupado com a emancipação, é
diferenciado dos africanos que se deslocam para as complicações culturais do neo-
colonialismo.
55
Num primeiro momento, o feminismo tinha intenção de desafiar o patriarcalismo e
recolocar a mulher marginalizada nesse espaço. No entanto, numa fase mais madura
encontramos uma nova leitura para essa teoria, a qual busca um “desmascaramento” das
bases que constituem esse cânone para depois reestruturar, na tentativa de compreender
a “subversão da forma literária patriarcal”.
Bonnici enfatiza que “uma estratégia da libertação feminina nos países pós-
coloniais parece ser a descolonização da cultura.” (2000, p.158), e para tanto, reconstruir
a identidade feminina angolana se tornará uma forma de democratização da expressão
cultural.
3.1. O Percurso Histórico da Mulher na África e sua Representação na Ficção
Angolana
Ao considerar o discurso feminista, percebemos que a mulher carrega uma carga
ideológica que a torna marginalizada, discurso esse incutido pela sociedade Ocidental
durante o período de destroços da colonização. A mulher que encontramos no painel pós-
colonial em Angola não é a mesma que consistiu no período pré-colonial; sua figura
atravessou transformações devido ao processo de aculturação.
Percebemos entre os costumes e a mentalidade de Angola que grande parte dos
negros é Bantus, segundo Valahu,
um traço comum entre os Bantos é a lei, imutável quase, de dar às mulheres os trabalhos
mais duros na agricultura, construção, transporte de lenha, água ou comida. (...) Tal
hábito proviria, ao que parece, da originária concepção do dualismo: terra-céu. A mulher é
a terra, a fecundação; tudo o que sai da terra diz-lhe respeito. O homem pertence ao céu,
que não é criação mas antes destruição e, por conseguinte, o seu sector de actividade
compreende entre outras coisas: a guerra, o fabrico de armas para matar homens e
animais, o abate das árvores, etc. (1968, p.35-36)
56
A mulher Bantu é muito valorizada. Em seu lar exerce a função de mãe, esposa e
guia – espiritual instruindo suas filhas segundo as tradições. Outra questão interessante é
a questão do dote, que no século XIX no Brasil era considerado um acordo pré-nupcial,
que beneficiava o homem; o casamento era por convenção social; mas em Angola quem
possuia o dote era o homem, o mesmo pagava aos pais da noiva para se casar.
É possível evidenciar o regime matriarcal em muitos povos negros, um privilégio
exclusivamente feminino e maternal no topo da hierarquia familiar. Existem algumas
regras para manter esse regime materno:
O regime matriarcal proíbe casamentos ou mesmo relações sexuais entre parentes do
lado materno. O matriarcado parece pertencer à fase primária da vida, havendo hoje
nítida tendência, entre tribos mais civilizadas, para substituir pelo patriarcado. Observam-
se no entanto vestígios do regime matriarcal entre tribos evoluídas onde o pai é o chefe
da família incontestado. (VALAHU, 1968, p.36)
Podemos observar que o matriarcalismo é incondicionalmente o regime de maior
aceitação, pois evidencia uma questão de confiança; os parentes maternos certamente
possuem ligações sanguíneas, gerando uma afetividade maior, o que não acontece com
os parentes paternos, que muitas vezes, não conhece a verdade biológica. No entanto, a
declaração em público de paternidade tornou-se um benefício para assegurar os direitos
do pai e dos seus herdeiros.
Valahu destaca um aspecto interessante e bipolar nas relações matriarcal x
patriarcal, ao dizer que “nas tribos que respeitam o patriarcado domina o espírito político,
mas que nas tribos matriarcais, o factor economico prevalece.” (1968, p.36)
Outra prática incontrolável entre os angolanos é a poligamia, principalmente das
cidades isoladas, pois o trabalho da mulher tornou-se uma fonte de renda; quanto mais
mulheres melhor; mesmo sendo oficialmente proibida. Hoje, essa prática convive com a
assimilação cultural do colonizador, como podemos observar em Mayombe, na voz de
57
Sem Medo, em diálogo com Ondina: “raciocinamos em função da nossa sociedade,
sociedade assimilada à cultura judaico-cristã européia, em que o homem tem de ser
ciumento, porque é o bode de rebanho e a mulher é sua propriedade.” (1985, p.233).
E essa “propriedade” deve submissão, obediência e, principalmente, o
silenciamento... nem parece que estamos olhando para a mesma Angola do tempo da
rainha Lueji.
3.1.1 Rainha Lueji : a matrilinearidade na sociedade angolana no período pré-
colonial
Se nos reportarmos ao início da civilização do continente africano, antes das
invasões dos europeus, perceberemos que o regime matriarcal esteve bem enraizado
na tradição de Angola, e até mesmo no século XVII. Em seu painel histórico podemos
contemplar a figura de sua primeira rainha. Desde a pré-história, os africanos utilizam em
rituais de magia desenhos ou estatuetas de mulheres fecundas para manter a harmonia
do mundo ambiente e garantir a fecundidade às mulheres da horda, conforme explica Ki-
Zerbo:
As estatuetas chamadas Vênus hotentotes, descobertas até no Aurignaciano europeu,
com suas formas generosas, seios redundantes e degas pletóricas, são talvez
objectivos mágicos, mas sem dúvida também a expressão da admiração pela mulher, tal
como se via e tal como então se gostava dela: sólida companheira de todos os instantes,
nas angústias e nos ócios da caverna, incansável produtora de filhos, isto é, reforços.
(1972, p.71)
Sob este aspecto, a contribuição do maravilhoso para a construção mítica da
mulher na sociedade africana é essencial, até na arte sul-africana encontramos lendas
que solidificam essa consagração, como a lenda da “dama branca” ,
Mas a “dama branca” não passa, sem dúvida, de uma destemida sacerdotisa negra com
uma máscara branca ou pintada de caulino, como acontece em África quando das
58
cerimônias rituais ou funerárias. Isso transparece nitidamente do facto de esta dama estar
precedida de um homem com máscara de animal. A “dama branca” do Tassili apresenta-
se, aliás, ela própria com uma máscara de cornos. Jamais estas “damas” teriam
imaginado que tais enfeites iriam um dia embaraçar os investigadores modernos mais
experientes...”(1972, p.73)
Nos caminhos da história, durante o Império Novo, constatamos que a mulher era
figurada em rituais bios, nas quais era sepultada viva na companhia do chefe
incumbido para o rito e de um carneiro, que tinha a função de anular o “mau-olhado”.
Na Civilização Egípcia, “o papel da mulher é notável”; sendo um povo camponês,
a mulher adquiriu importância natural, como evidencia o historiador:
A oferta de presentes aos sogros pelo pretendente, o lugar eminente das mães do rei”
egípcias ou núbias e das cândaces do Sul, a aquisição freqüente de bens de raiz pelas
mulheres, a existência de um clero feminino, a afeição conjugal que sobressai na atitude
de numerosas estátuas de casais monógamos, a identificação das pessoas por referência
à sua mãe(...) (KI-ZERBO, 1972, p.90)
Essa sociedade incute no papel da mulher a liberdade e a postura matriarcal, com
misteriosas lendas; assim como a lenda de Makeda, na qual a rainha da Etiópia se rendeu
aos amores do rei Salomão, que valorizava a figura feminina como peça fundamental.
Na África Ocidental durante as transformações dos reinos em impérios (século VII
ao XII) a sucessão era matrilinear, aceitando somente os filhos da irmã do rei, pois
garantia a certeza da consangüinidade, sistema que se tornou uma prática dos povos
negro-africanos, relacionado ao seu caráter agrícola e sedentário, do qual as mulheres
tomavam frente.
Mesmo antes das grandes navegações européias, como enfatiza Claude
Meillassoux (1986) a região africana conhecia o valor mercantil do escravo como uma
antítese das relações de parentescos, partindo da idéia de “constituição da comunidade
doméstica”. Portando, a África pré-colonial era “muito variada e escalonavam-se da horda
59
patrilinear ou matrilinear” (Ki-Zerbo, 1972, p.224). Como podemos exemplificar que na
África Ocidental,
As mulheres, diz se, constituíam uma categoria particularmente oprimida. Na verdade, a
mulher africana era por vezes uma trabalhadora e uma produtora de trabalhadores
suplementares no campo de um polígamo. Constituía por vezes um bem de permuta,
servindo, pela sua aquisição pelo casamento, para consolidar as relações sociais. (1972,
p.225)
No reino Benim, constituído a sudeste da Nigéria atual, em meados dos culos
XII a XV, a figura do rei passava por inúmeros ritos que lhe atribuía poder, mas a mulher-
mãe comungava dessa autoridade; a opinião da rainha-mãe para o príncipe era
fundamental, tudo passava pelo seu aval. Era considerada como um ser supremo, mítico,
reservada à periferia do reino e cercada por serviçais mulheres, longe dos olhos
humanos.
Já nas sociedades da África Ocidental, a mulher é sujeita a mutilações corporais e
à iniciação sexual, como forma de libertação. Esse ritual simbolizava uma apresentação
da mulher na sociedade, uma autonomia garantida através do sexo, da perda da
virgindade.
(...) liberdade sexual, por vezes exagerada aliás, antes do casamento em certos países
animistas; liberdade de deslocação por ocasião da maternidade ou das visitas à família;
benefício de uma amor filial particularmente intenso, dado o monopólio que ela exerce
nos primeiros anos da criança até aos dez ou quinze anos; regime matrilinear, que ao
irmão a autoridade sobre os filhos; libertação econômica pela apropriação dos ganhos
das suas múltiplas actividades rurais ou comerciais, sobretudo nas regiões costeiras, (...)
(KI-ZERBO, 1972, p.226)
No país Háuça, fazem da mulher sacerdotiza para os ritos de fertilidade e lhe
atribuem direitos políticos ou espirituais, até a possibilidade de trono.
E isto apesar de as feiticeiras terem sido particularmente maltratadas. Para dizer a
verdade, apesar das desvantagens que por vezes sofria e da diminutio capitis, que dela
fazia, em certos casos, uma espécie de perpétua menor, a mulher africana era uma fonte
sempre viva e inesgotável de esperança. (KI-ZERBO, 1972, p.226)
60
Em seus trabalhos e obrigações, nas labutas diárias e coletivas, a mulher africana
exerce o papel de fonte incessante de força, uma síntese motivadora de desejos e
sentimentos.
Durante o século XVI, no reino peule do Macina,
3
a mulher era protegida com
parcialidade, pois segundo Ki-Zerbo:
Nunca podiam ser batidas. As pancadas que lhes eram destinadas deviam ser dadas, por
exemplo, em cima da casa, sanção pública que era sentida pelas interessadas como
muito ignominiosa.
Nobre, a mulher podia intentar um processo por falta de confiança contra um marido que
entrasse em casa mais cedo do que era esperado...
Entre as seiscentas escolas alcorânicas que funcionavam em Hamdallahi à custa do
Estado, certas delas, onde o ensino estava a cargo de mulheres, eram reservadas às
raparigas. Eram ensinadas a maior parte das disciplinas islâmicas principais ou
auxiliares. (1972, p.332)
No mesmo período em Achantia, país da Costa do Ouro, a mulher-rainha era
responsável pela maioria das atitudes e iniciativas do rei,
Essa autoridade estava muito centralizada e, tendo em conta o contexto realengo, era
muito comparável, se não superior, à de um chefe de Estado moderno. O rei era eleito
num ramo do clã matrilinear dos Oyokos. Era escolhido pela rainha-mãe, irmã do rei
(ohema), após consulta aos seus conselheiros. A rainha tinha, aliás, a sua própria corte e
estava encarregada de presidir às orações das mulheres pelo regresso dos guerreiros,
são vitoriosos. Os pretendentes rejeitados eram banidos ou iam-se embora de sua própria
iniciativa para evitar serem executados. (1972, p.351)
Os semibantos Bamilekés, país dos Camarões, mantêm a autoridade das rainhas,
mas somente têm privilégios mulheres da corte, as demais são desvalorizadas, como
registra Ki-Zerbo:
A rainha-mãe (mafo) goza de um prestígio religioso que ultrapassa ainda o do rei, que ela
chega a superar em autoridade. Em geral, aliás, as mulheres nobres, sobretudo se o
herdeiras, gozam de um grande poder, ao passo que, nas classes baixas, as mulheres se
encontram com freqüência reduzidas ao estatuto de objectos de troca. (1972, p.374)
Nos países ao norte de Zambeze, no início do século XIX, época em que a
história africana é marcada pelo abalo sofrido pelos povos que têm como objetivo
3
Localizada na África Sudanesa, atualmente Sudão.
61
repovoar e reorganizar o interior, “a rainha-mãe, muito considerada, tem a sua própria
corte. A primeira mulher do rei é sua meia-irmã. As princesas têm estatutariamente
costumes muito livres, como no Daomé ou no Mossi”. (KI-ZERBO, 1972, p.396). em
Buganda, o papel da mulher estava relegado à agricultura e à criação de gado, ou seja,
alimentar e dar vida.
Nos países da Bacia Zairense, durante o período de escravidão, o papel da
mulher continuava o mesmo que na antiga Germânia, onde a poligamia era admitida aos
chefes. Já em Mangbetus, os rituais nunca eram praticados por mulheres que eram
respeitadas pelos reis exclusivamente em assuntos políticos, um objeto considerável
pelos chefes.
Parafraseando Ki-Zerbo, durante o século XIX, no reino Kuba, o rei, que é
sagrado, é sucedido pelos seus irmãos mais novos, depois para o filho da sua irmã,
importa-nos ressaltar que o papel da rainha-mãe é secular, somente abaixo do rei. Como
discutimos no capítulo anterior, no Reino do Alto Zaire, destaca-se a figura da rainha
Luedji, escolhida entre seus irmãos como herdeira e mais tarde recebeu o bracelete de
ferro real e o título de swana mulunda (mãe do povo lunda).
Suprindo o comércio escravo, transformado em força de trabalho, o africano,
passou a exercer atividades diversas em sociedades desvinculadas de sua tradição.
Na segunda metade do século XIX, os portugueses começaram a se preocupar
mais com as colônias, pois muitos chefes tribais iniciaram resistência à condição
subalterna, como Chaka, chefe dos Ngunis, ou melhor soando, Zulu, sociedade patriarcal,
“este, polígamo, tem uma cubata por mulher. A primeira das mulheres ocupa a grande
cubata; a segunda, a cubata da mão direita; a terceira, a cubata da mão esquerda.” ,
preparou um exército poderoso, mas seu declínio emancipou junto com a sua tirania,
62
postulando seu nome na história, “Chaka é a refutação viva do mito do “negro incapaz de
inovar e de mudar o curso esteriotipado da tradição”. (KI-ZERBO, 1972a, p.09-13).
Podemos encontrar a mesmo críticas contra os comerciantes muçulmanos dessa
época, pois Usman dan Fodio enfatizava que os mesmos utilizam o islão para “falsas”
medidas, como instruírem as mulheres que a felicidade reside em obedecer solenemente
o marido, esquecendo que é mais importante a e o temor a Deus, segundo o escrito.
Outra questão interessante no século XIX, é que alguns reis seguem as ordenações
novas inspiradas pelo islão, como a transmissão dos bens e do trono do reis far-se-iam
por via patrilinear, geralmente para o filho primogênito. Esses grandes nomes
desencadearam entusiasmos, mas não tiveram que se colocar na frente de seus inimigos
europeus; coube a tarefa aos seus sucessores imediatos, pois no fim do século XIX a
África encontrava-se tomada pelos europeus.
Nesse painel esfacelado apresenta-se por outro lado, uma resistência ante a
destruição de suas nações e é através das confrarias negras que a África manifestou sua
cultura entre as mais variadas nações.
No Senegal, a sociedade privilegiava as famílias de sucessões matrilineares, em
lingueres: mãe, tias ou irmãs uterinas do damel, na qual desenvolviam importante postura
política.
Durante as possessões estrangeiras, a França dominou um grande território
africano, mas de pouca riqueza natural; nessas regiões as mulheres eram usadas como
objetos nas “seduções da autoridade”, como explica Ki-Zerbo,
(...) versão tropical do direito do senhor (versão deformada da hospitalidade africana), que
consistia em apresentar ao comandante em visita (por vezes a seu pedido) as mais belas
moças da terra, muito bem lavadas e preparadas, para ele escolher as que lhe
agradassem. Algumas dessas moças, ao que se diz, tremiam como folhas, porque
imaginavam irem para a morte (a cor branca é, na religião e nas narrativas africanas,
considerada muitas vezes como cor fúnebre...) (1972a, p.113)
63
Transpondo para a ficcionalidade, cabe salientar a teoria de Candido (2000) sobre
a “função histórico-literária de uma obra”, pois encontramos uma reconstrução da mulher
no período pré-colonial em Lueji – o nascimento dum império (1989), na qual Pepetela faz
uma releitura cultural e ideológica da história de Angola através duas personagens
femininas. Assim apresenta ADOLFO:
Lueji, a rainha entronizada ainda adolescente e que oscila entre a fidelidade ao reino e
aos antepassados, e ao homem que ama e que é um estrangeiro e Lu, a bailarina de
Luanda, descendente espiritual da primeira, e que metaforicamente segue os passos da
tetravó, recriando no palco, através de um bailado, o sonho da antepassada famosa.
(1998, p.9-10)
A narrativa oscila entre o passado e o presente; Lu tenta rememorar seu passado,
através de livros no “Centro de Documentação”,
Ouvia música indefinível de marimbas, procurava algo desconhecido em livros sobre
Lunda, porque a avó viera de para Benguela e encheu a infância dela de lendas e
estórias de feitiços, cuidado menina, teu pai não acredita porque é branco, mas eu vi
muita coisa, vivi muito, sabedoria antiga, não despreza só. (PEPETELA, 1989, p.27)
E na medida em que relê sua tradição histórica, recria o passado da rainha no
compromisso da encenação no balé, como explicita Bonnici (2000): o “sujeito” Lu torna-se
dona de sua história e a reescreve:
(...) porque só os casos importantes são dignos duma soberana de tanta grandeza,
realçada agora pelo bailado que a ia imortalizar, arrancada das cinzas da História e das
falas locais dos mais-velhos para ser conhecida do grande público, espantado com a
revelação, afinal este País teve gente assim e nós nem sabíamos, despojados que fomos
da nossa História por séculos de obscurantismo, muitas vezes nos sonhando iguais aos
outros mas sempre temerosos de comparação, nada igualava as tradições da Europa(...)
(1989, p.471)
Pepelela mescla as duas vidas, ora Lueji que construiu o império Lunda, ora Lu
impregnada pela modernidade e que busca conhecer sua tradição. Conforme cita Bonnici,
“as rupturas modernas com a tradição e o desenvolvimento das novas formas do discurso
são congruentes com a causa feminina.” (2000, p. 155). Parafraseando Adolfo, a
64
simultaneidade de tempo e mulheres passa despercebida pelo leitor, chegando a
aproximar-se do cinema que é a arte do movimento, “(...) dando pois a essa narrativa
necessária plasticidade e dinamicidade própria dos tempos modernos, como um desejo
do autor e de seu povo, de que as coisas comecem a andar no novo país.” (ADOLFO,
1998, p.11). O artista traduz através das vozes das personagens femininas a cultura e o
papel da mulher na sociedade de Angola no período pré-colonial.
Conta a narrativa que o rei Kondé, no século XVI, teve dois filhos e uma filha; no
entanto escolheu Luedji como herdeira, pois estava escrito no “ngombo de Kandala” :
(...) Lueji, tomei uma decisão. O lukano não pode passar para fora da minha família, essa
é a tradição dos Tubungo. Nós descendemos directamente de Tchyanza Ngombe, a mãe
Nhaweji, a grande serpente que criou o mundo, assim como o fogo e a água. Nenhuma
outra linhagem descende directamente dela, tu sabes. Mas os teus irmãos não merecem
o lukano. Como fazer? Só há uma solução. Entrego-te o lukano. (PEPETELA, 1989, p.20)
Lueji a princípio sentiu-se incapaz de absorver o porte de chefe, o poder a inibia
de suas atividades corriqueiras, “seria uma escrava, pior que a esposa dum marido
ciumento e cruel”, mas não teve escolha, seguiria a ordem de seu pai que finalmente
cumpriu seu destino em Lunda e morreu. A narrativa absorve o maravilhoso, pois o rei
após o despertar de seu espírito do corpo ainda serve-se de narrador e justifica sua
escolha, na qual exclui seus varões do poder e indica sua filha:
(...) apesar de ter enterrado viva minha filha, a ter arrancado aos seus sonhos
despreocupados para a colocar no centro dos redemoinhos de vento, não sinto remorsos,
apenas tranqüilidade. Ela vai fazer o necessário, vai alimentar o meu espírito com as
melhores iguarias da Lunda, vai respeitar o meu nome e cultivar o meu prestígio, não vou
ser esquecido pelas gerações que se colocam já na bicha do futuro. (1989, p.25)
Lueji seria “uma rainha provisória”, e encaixa no “quadro de referência” da qual
citava Jobim (1992), pois o nascimento do Império de Lunda sairia das páginas da
História para representar nas páginas do discurso estético desse romance, num momento
de reflexão e reconstrução de sua nação pós-colônia.
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A cerimônia de entronização não foi tão esplendorosa quanto seu governo,
“mataram pouca gente para sacralizar o novo chefe, apesar de Lueji implorar ninguém
seja morto, mas tradição é tradição e o sangue correu (PEPETELA, 1989, p.). Seus
irmãos não foram participar da cerimônia e segundo registro na História da África Negra,
após a decisão do rei Kondi sucederam os seguintes fatos:
Os seus dois irmãos, frustados, saíram dali e fundaram os reinos bângala e lewa de
Angola. Quanto a Luedji, que terá vários maridos sucessivos, recebeu o bracelete de ferro
real e o título de swana mulunda (mãe do povo lunda). Em seguida fez um grande
casamento diplomático com o príncipe luba Ilunga Shibinda, que estendeu para noroeste
o poder lunda, englobando os Bateké. (KI-ZERBO,1972a, p.422)
Mas, conforme relata a ficção de Pepetela, a saída dos irmãos foi uma expulsão
realizada pela irmã-rainha logo após a manifestação de um espírito no corpo de uma
mulher, que revelava os desejos do espírito de seu pai Kondi: “Ele quer Chinyama e
Tchinguri longe de Mussumba, longe do trono”. (1989, p.188) A presença do mito e dos
Cazumbi rememora a história mítica de Angola.
A autoridade foi uma das maiores conquistas de Lueji, e obstáculos não faltaram.
Até mesmo o período de seca era indício, argumentando que (...) a chuva não aceita ser
chamada por uma mulher” e as pessoas “Já se lamentavam nas casas, passada a alegria
de ter uma soberana popular, agora punham em causa a decisão do Conselho de ter
escolhido uma mulher, contra todas as tradições.” (1989, p.61). A rainha rompera as
tradições patrilineares e a fraqueza não seria um previlégio, seu próprio irmão Tchinguri
insatisfeito declarou: “E entregam o poder a essa criança da Lueji, adorável mas uma
criança e uma mulher, se uma objecção não bastasse” (1989, p.73)
Em muitos impérios as rainhas-mães eram fontes inesgotáveis de conhecimento,
nenhum rei ousaria uma atitude sem antes o conselho dessa mulher; no entanto a palavra
final era proferida pela boca do rei, ou melhor, de um homem. Agora Lueji deveria pensar
66
e agir por si respeitando o “mais terrível de todos” os desejos de seu pai, “ser rainha” do
povo de Lunda. Após dias de seca vieram as regras da rainha, em seguida se preparou
para o ritual, fez apelos ao espírito de seu pai, e após as primeiras gotas de chuva
conquistou a confiabilidade e a alegria do povo que glorificou seu feito. Tradição
enraizada no reino Benim, conforme estudos históricos, entre os séculos XII e XV, ritos
que atribuía poder ao rei, e nesse contexto o privilégio é da rainha.
De modo que, ao entrar na capital, Lueji foi acolhida por uma multidão de seres rendidos
à sua força e as aclamações subiam aos céus espessos e frios, mas ninguém sofria com
o frio e a chuva, rendiam homenagem à rapariga que salvara as culturas e as gentes. (...)
O povo também rompeu a tradição, tantas tinham sido rompidas em poucos dias, e
acompanhou o cortejo até à porta da onganda real, não parando de aclamar (PEPETELA,
1989, p.64)
Não podemos esquecer que a maioria das mulheres nessa sociedade era
confinada à agricultura e o se sentem ultrajadas pelo trabalho que realizam, assumem
sua tradição, sentem-se honradas, como argumenta Lueji, personagem de Pepetela:
_ Não tenho comida mais. Os silos estão quase vazios, por alimentar os homens
que vieram com o Kumbana. Trouxeram as mulheres e os filhos para fazerem lavras. Mas
até a colheita, tenho de alimentar a todos. E as minhas lavras não têm muita gente a
trabalhar. (1989, p.90)
A nova rainha que sempre alterava o rumo das tradições, chegando até mesmo
cumprimentar seus súditos com palmas, se igualando a eles, toma a iniciativa de incluir
no exército mulheres e partilhar suas tarefas de cultivar o campo com os homens:
_ Os meus parentes só pensam nas mulheres para cultivar e transportar comida. Vamos
ter uma guerra e se a perdermos, o lukano passará para Tchinguri e ele vai se vingar
primeiro em vocês, que são da minha linhagem. (...)
_ Por isso todos têm de contribuir para o exército. Não as mulheres e as famílias dos
soldados. Também os homens podem arranjar comida e a transportar para o Kilombo. Os
homens podem pescar mais e caçar mais e levar a comida que as mulheres colhem nos
campos. Porque o? É contra os hábitos, mas uma guerra obriga a mudar os
hábitos.(PEPETELA, 1989, p.110)
Percebemos na voz de Lueji que Pepetela traz à tona a teoria do “ideologema”
apontada por Bakhtin (1995), pois suas idéias foram aceitas e aclamadas por todos “(...) o
67
povo dançava nas ruas, gritava viva a rainha, batia palmas e assobiava. Nunca nenhum
chefe tinha tido tantas aclamações e tão sentidas em tão pouco tempo”. (1989, p.135)
As regras da tradição foram quebradas por Lueji muito antes de tornar-se rainha,
pois “assim, quebrando a tradição que manda uma rapariga ser deflorada pelo tio depois
da festa de iniciação, Lueji foi deflorada pelo irmão, antes da festa da iniciação Sem
pesares nem remorsos. Começava então a quebrar tradições.” (PEPETELA, 1989, p.147)
Tchinguri desejava desposar sua irmã, ato possível entre reis, “serve para reforçar o
poder, porque é um desafio às proibições”. Mas não passaram de lembranças, Lueji
varreu seu passado e passou a ver seu irmão como uma ameaça, até mesmo nos
momentos de fraqueza demonstrava altivez: “E Lueji partiu, para que ele não pressentisse
o soluço que se formava dentro dela. Nem os irmãos devem adivinhar o choro duma
rainha da Lunda”. (PEPETELA, 1989, p.154)
Quando falamos de tradição, detectamos a partir das teorias de Everdosa (1979)
e Laranjeira (1985) uma “dupla tradição” que se confirma nesse romance, pois enquanto
Lu resgata seu passado histórico acrescenta perspectivas culturais contemporâneas
ocidentais.
Aliás, todas as decisões da rainha partiriam dela mesma, até mesmo o
casamento, diferente das outras mulheres que esperavam a negociação de seus pais:
(...) Claro que mulheres se casam cedo. Todas da minha época de iniciação já têm dois
filhos. Mas nas minhas circunstâncias é normal que seja a última. Aliás, comigo tudo é
diferente. Não serão os meus pais a decidir. E tu viste falar directamente comigo e não
com o meu tio Salukunga, como devia ser nos outros casos. (PEPETELA, 1989, p.179)
O compromisso de escolher um marido também estava nas mãos dessa rainha
que deixara de ser mulher, para assumir o poder e não só uniria suas linhagens, mas todo
o reino de Lunda, pois entende que “o casamento da rainha é uma aliança mais que
qualquer outro.” Com seu primeiro pretendente a rainha titubeou, mas não conseguir selar
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o compromisso, preferiu adiar com palavras de esperança, enfim, desde de que se
tornara rainha não tinha mais relações sexuais, “mas não tinha ousado, desde que era
rainha nunca brincara com um rapaz” (PEPETELA, 1989, p.271).
As guerras do império Lunda começaram e muitas mudanças ocorreram, inclusive
uma nova Mussumba, que no início era apenas um kilombo e regia segundo seus
costumes, no qual “algumas mulheres eram destacadas para fazer a comida de todos. O
resto trabalhava” (PEPETELA, 1989, p.236). Durante o massacre da guerra, o exército do
irmão-degredado, seu maior inimigo, poupava as mulheres e as dava como prêmios aos
soldados para aumentarem suas famílias. Em ocasiões de agradecimento e
reconhecimento aos feitos da rainha Sambuje ofereceu duas raparigas como presentes:
Foi escolher a rapariga mais bonita da sua criação para logo mais a oferecer à rainha
como amilombe, prova de sua gratidão e lealdade. Era um presente pequeno que seria
devolvido com juros. E acabou por escolher uma segunda rapariga, duas amilombes
duma só vez era um presente digno de receber mais tarde grandes retribuições da rainha.
(PEPETELA, 1989, p.296)
Após sucessivas vitórias e previsões de Lueji, seu povo passou a considerá-la
uma vidente. “Era bom estar nos favores dela, Lueji tinha sem dúvidas dons de vidente.”
Conseqüentemente passou a ser temida, pois também era protegida pelos espíritos.
Assim explicamos que: “(...) La comunidad se autosocorre com la magia, moviliza todas
las fuerzas espirituales, conjura los protótipos, se identifica com ellos y, en el éxtasis
comunitario, obtiene po la fuerza su vida plena” (JANS, 1966, p.188), pois a atitude
religiosa da África negra está centrada no homem ativo frente a Deus, nos atos de magia,
no contato com os espíritos.
A soberana acabou se enamorando do príncipe de Luba, Ilunga, que certamente
enfraqueceria seus ascendentes.
Se olharam nos olhos e leram o desejo do outro. Não houve palavras, não houve
suspiros, não houve jogos de mão. Ela levantou, caminhou um pouco no mato. Ele veio
atrás. Numa pequena clareira ela se deitou. E ele. (PEPETELA, 1989. p.321)
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E ainda assim decidiu que se casaria como Tchibinda Ilunga, no intuito de selar
não só o amor, mas uma aliança política:
_Não estou a pensar em mim, estou a pensar na Lunda. É preciso fazer uma aliança
sólida com os lubas, para isso é o casamento.
(...)
_O casamento não passa duma aliança disse Lueji. Sorriu e continuou: _ Neste caso,
uma aliança que me interessa também pessoalmente. Uma aliança com amor. A única
aliança que justifica o casamento. (PEPETELA, 1989, p.349)
Mais uma tradição recriada, Lueji cria suas próprias regras e subverte as já
estabelecidas pela tradição lunda, e pessoalmente negocia sua união, “uma atividade de
apropriação, reprodução independente de sentido” (CERTEAU, 2004, p.31):
Mandava a tradição, devia ser um tio dela, em princípio o chefe da linhagem, a falar.
Nunca uma mulher tomava tal iniciativa. Mas tinha já havido rainha solteira na Lunda?
Todas as iniciativas lhe eram permitidas, ela própria constituía a tradição para o futuro. O
problema não era esse, o problema era como dizer. (PEPETELA, 1989, p.350)
A esposa de um caçador deve obedecer a certas tradições patriarcais, conforme
argumenta sua mãe na tentativa de fazer Lueji mudar de idéia e escolher um marido com
costume Lunda, pois esse era estrangeiro:
(...) E será sempre responsável pela falta de pontaria do marido. Se o caçador falha a
flecha é porque Na Caianga perturbou a paz conjugal. Ou sorriu para um rapaz ou dançou
com ele na ausência do esposo. E o marido voltar a falhar, é porque Na Caianga cometeu
crime. O caçador lhe amarra as mãos, lhe bate, obriga a confessar a verdade e a mentira.
A culpa pode ser dela, como não vai confessar? E é escorraçada de casa, porque
adúltera. (PEPETELA, 1989, p.387)
Na tradição Luba o comportamento masculino jamais admitiria impotência sexual,
mesmo em se tratando de uma rainha, esta estava subjugada à sua condição de mulher,
raça inferior que deveria assumir até mesmo as falhas do marido.
Lueji, aos poucos foi subvertendo as regras patriarcais e passou a impressionar
os homens que antes lhe prestavam conselhos, ditavam normas, regras nos regulares
conselhos para tomadas de decisões em Lunda: “Lueji levantou o braço, sempre sem se
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sentar. A sua figura dominava realmente a assembléia e os muatas se admiravam, quem
lembrava a rainha no primeiro Conselho, tão nervosa e tímida?” (PEPETELA, 1989,
p.373)
Priorizava também a tradição, e em muitos momentos tornou-se digna de ser
espelho, como enfatiza seu irmão Tchinguri, no momento de sua rendição: “Contigo
aprendi muito e sobretudo que algumas tradições que preservar, senão um homem se
perde nas suas dúvidas e se consome em pequenas lutas sem significado”. (PEPETELA,
1989, p.408). Contudo, muitas regras foram quebradas em nome do amor ou de seu
benefício próprio, como receber outro homem em seu acampamento ou aceitar agrados:
“como regente, Lueji não podia aceitar dentes de elefante, presente reservado apenas ao
chefe que ela não era.” (PEPETELA, 1989, p.418)
É importante ressaltar que, no discurso narrativo poético, o parentesco familiar,
característica peculiar do povo africano, é revitalizado nesse romance, de modo que o
narrador apresentado no início de cada capítulo relata sua descendência familiar, como
observamos: “AGORA SOU EU QUE FALO, EU, NDONGA, filho e neto e bisneto e
trisneto de Cassanje, o jaga dos Imbangala, descedente directo de Kinguri, o primeiro, e
que um dia também serei Cassanje.” (PEPETELA, 1989, p.417). E, conforme assinala
Bakhtin (1988), essa modalidade de enunciação demarca mudança de vozes, cada qual
pertencente a uma linhagem diferenciada, característica peculiar dos romances
polifônicos.
Outra batalha dessa mulher foi a maternidade, afinal seu filho herdaria o trono:
“Os meses corriam e apesar do fogoso amor de Ilunga, Lueji não concebia. (...) O seu
ventre parecia terra onde os elefantes dormem. Nada ali crescia” (PEPETELA, 1989,
71
p.431) Seu problema pessoal tornou-se um problema de Estado, todos se preocupavam
com a esterilidade da rainha, pois
“Mulher estéril era repudiada pelo marido, não servia para nada. No caso isso não se
passaria pois a estéril era rainha. Não teria o desprezo. Mas criava um gravíssimo
problema de sucessão. (...) Tinham finalmente um pretexto para recuperar autoridade e
diminuir a força da soberana. (PEPETELA, 1989, p.435)
Como esclarece Furlani, “a figura materna e o ideal de maternidade trazem
consigo enorme poder e força” (1992, p.12). Logo se espalharam “mujimbos” de que seu
marido havia arranjado um “catuma” para aquecer-lhe o corpo em vez de uma mulher. As
tentativas prolongaram e a aflição da rainha também, Kumbana chega a alertar sobre a
possibilidade de a esterilidade estar em seu marido e na condição de rainha poderia ter
vários homens. Três meses com um amante e não engravidou... tudo em vão! Até que
decidira oferecer uma segunda mulher a Ilunga, uma rapariga da mesma linhagem que
engravidara no segundo mês do casamento. Segue o regime matrilinear, o pacto estava
selado, o filho de Lueji começaria a ser gerado, mas no ventre de sua prima, Kamonga.
Seu sucessor e filho Yamvo, “sempre tinha tido atitudes arrogantes, muito cedo
habituado a ser o herdeiro” (1989, p. 473), no século XVII expandiu ainda mais o reino,
formando províncias e nomeando governadores “quase” autônomos que pagariam tributos
ao rei, tornando Lunda uma das potências da África Central, como relata a personagem
muata Sambunje em Lueji,
- Antigamente se exigia ao soberano que fizesse uma guerra e depois da vitória se
podia ele considerar de facto senhor dos Tubungo. Mas com Lueji os tempos mudaram.
Não exigimos de ti uma guerra, temos grandes territórios e somos ricos, não precisamos
de mais. Queremos é que saibas governar e saibas defender o que já temos. Assim nos
ensinou tua mãe, Lueji a Kondi, a senhora das terras. (PEPETELA, 1989, p.476)
Soberana, essa mulher ergueu um Império movido pelo poder e pela tradição,
concretizando nessa figura a matrilinearidade bantu, conforme explica Bonicci: “(...) a
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dignificação do passado e a restauração da confiança dos africanos em si mesmos
assumem predominância sobre temas feministas.” (2000, p.157)
No final do século XIX, por volta de 1883 Lunda atravessa um período de
extrema decadência de “assassínios em série”, pois o rei esquivou-se de negociar
exclusivamente com os portugueses. “Desorganizados, sem dúvida, em grande parte pela
escravatura, os chefes lundas não mereciam o nome de amigos.” (KI-ZERBO,1972 ,
p.423) E assim, no Epílogo de Lueji, o narrador Mulaji, filho de Sumbi e Kakeya, um
pobre pescador, revela através de um dom que se manifesta na Lua cheia, uma vidência
desse fato histórico:
(...) Esquecerão os ensinamentos de Lueji, não há ensinamentos que sempre durem. Vão
querer conquistar povos pela força, vão exigir tributos pesados, vão fazer guerras. Na sua
vaidade e ambição, vão se preocupar com as lutas e intrigas da corte, todos querendo
cada vez mais vantagens. E a força da Lunda, aquilo que fazia os outros povos a admirar
e aceitar a sua chefia, a lição de Lueji, vai se perder. (1989, p.482)
Nesse relato percebemos que a forma da figura feminina para constituição do
Império Lunda é fundamental e intransferível, pois perece a partir do momento em que
mudam os valores e interesses, quando as sucessões seguem uma linhagem patriarcal e
as lições e ensinamentos da rainha vão se perdendo. Ironia ou não... uma mulher ergueu
um Império e um homem o derrubou, apenas uma questão de interesse.
Pepetela solidifica esse pensamento e diz no final do romance: “Dela fica apenas
o nome, mesmo esse muitas vezes modificado, e uma estória que cada qual contará
conforme seu interesse.” (1989, p.482). Uma contestação e até mesmo uma explicação
dos porquês de muitos fatos omitidos ou subvertidos pela história dominante.
Explica Mead (1975) que sociedade matriarcal é aquela “onde uma parte, se não
a totalidade dos poderes legais que dependem da organização e do governo da família
propriedade, herança, casamento, casa - está nas mãos das mulheres mais do que nas
73
dos homens” (in FURLANI, 1992, p.18) Contudo, não podemos esquecer que a presença
do patriarcal nesse período pré-colonial de afinco matriarcal permanece nas entrelinhas
do poder, pois, por trás de todas as decisões e atitudes da rainha, estavam as vozes dos
espíritos dos antepassados homens e as vozes dos conselheiros também homens; ela
não escolheu uma mulher como sua conselheira e tampouco escutava sua mãe.
A escrita dessa obra é um momento de desabafo poético e político, como
esclarece Bhabha, “há uma conspiração do silêncio em torno da verdade colonial, o que
quer que isso seja” (1998, p. 177). Parafraseando Bonicci (2000), uma das estratégias
pós-coloniais é a releitura, pois os autores trazem à tona implicações sociais e políticas da
colonização imbuídas no texto, mas também esclarece sua posição ideológica na
construção, expansão e estabelecimento do Império Lunda.
Consideramos que a mulher simbolizou o elo da África pré-colonial durante os
destroços da colonização, mantendo a herança negro-africana presente, desempenhando
um papel histórico e mítico. De acordo com o pensamento de Adolfo: “É a história mítica a
fonte onde o escritor bebe e ganha inspiração para transformar o mito poético em poema
narrativo.” (1998, p.13)
3.1.2. Matilde: a situação da mulher durante o período colonial
Com o regime de escravidão, se acentua a dessocialização, navios negreiros
amputam famílias e desterritorializam as mulheres, que por sua vez perdem seus vínculos
com a cultura de origem um esvaziamento dos valores culturais e biológicos,
condicionando-as à dessexualização, igualando-se ao homem e sendo submetidas aos
mesmos trabalhos e tratos, como relembra KI-ZERBO:
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As mulheres que, como na África, trabalhavam nas plantações e em casa
desempenharam, além do seu papel econômico, uma função biológica, social e cultural
de primeira plana. Muito pouco numerosas em relação aos homens (a relação era de uma
mulher por dois, cinco ou às vezes quinze homens), foram verdadeiramente a mulher e a
mãe comuns. Mais presas ainda do que os homens ao continente perdido, as suas
canções de ninar, os seus contos, as suas danças, foram durante séculos o único laço,
muito frágil, mas inquebrável, que estabelecia a ligação com a África. (1972, p.284)
Durante o período colonial, configura-se identidade a partir da dicotomia branco
versus negro, como coloca BHABHA,
Não é o Eu colonialista nem o Outro colonizado, mas a perturbadora distância entre os
dois que constitui a figura da alteridade colonial artifício do homem branco inscrito no
corpo do homem negro. É uma relação a esse objeto impossível que emerge o problema
liminar da identidade colonial e suas vicissitudes. (1998, p.76)
Nos navios negreiros, quanto às mulheres: “Nem mamilos espetados, nem seios
flácidos”. Pelo contrario, o que o negreiro quer são “rapazes sem barba e raparigas com
seios bem firmes”. Na sociedade, as mulheres negras eram muito cobiçadas nos haréns,
pelo vigor expressivo da pele.
Dos séculos XVII ao XIX, considerados séculos de reajustamento, na Costa
Oriental, predominava um misto de ritos do mundo banto e da Arábia. Um exemplo disso
é Pangani, onde os costumes, a matrilinearidade é de tradição bantu, mas isso
permanece intacto ao momento em que a rainha se casa com um árabe, promovendo
um processo de hibridismo, no qual abre caminhos para a sucessão patrilinear; um dos
primeiros impulsos patriarcalistas. Em Angola, temos a presença da Rainha Jinga,
primeira mulher dona do poder nesse país, consideravelmente respeitada, como focaliza
Pepetela em A gloriosa família, sobre as questões políticas por parte dos mafulos:
Para não falar de Jinga, essa não se queixa, essa barafusta, exige. Também é verdade
que ela é que tem enfrentado sempre os portugueses.
O próprio representante do rei do Kongo tinha de reconhecer a determinação de Jinga, o
que muito me envaidecia. (1999, p.333)
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Enquanto notamos a expressão de liderança da Rainha Jinga, nas cenas
rotineiras da família Van Dum encontramos registros patriarcais, como “era chocante a
diferença que o meu dono punha no tratamento de Catarina, condenada a não passar da
cozinha, mas as mulheres nunca podem aspirar ao mesmo que os homens, isso também
é verdade.” (PEPETELA, 1999, p.99) Mas a rainha Jinga ousou, detestava ser chamada
de rainha, não admitia sua condição de mulher e assumia a postura de homem, como
declara o narrador-escravo de A gloriosa família:
(...) pois, ela diz ser rei, porque só o rei manda, e ela não tem nenhum marido que mande
nela, ela é que manda nos muitos homens que tem no seu harém e que chama de minhas
esposas. É Rei Jinga Mbandi e acabou. Rainha ou rei, no entanto, foi enganada e bem
enganada pelo meu dono. (1999, p.23)
Mesmo com o decreto da Abolição, em 1836, o tráfico de escravos continuou
clandestinamente utilizando o nome de emigrados. A África permanece dependente,
tentando reler sua identidade. Inicia-se um processo de sincretismo, no qual se mesclam
os valores tradicionais que resistiram aos valores modernos europeizados.
Esse processo de colonização em África condicionou o aparecimento de uma
literatura colonial. E culos mais tarde encontram sob o registro da ficcionalidade, a
reconstrução da História da Restauração de Angola e o papel da mulher nessa era
colonial em A gloriosa família - O tempo dos flamengos, de Pepetela.
Conforme afirma Bhabha, “A construção do sujeito colonial no discurso, e o
exercício do poder colonial através do discurso, exige uma articulação das formas das
diferenças- raciais e sexuais” (1998, p.107), na qual concentra uma economia do discurso
da dominação e do poder. A narrativa desse romance é entregue à voz de um escravo, e
a cadência dos fatos pelas revelações de Matilde, entre outras vozes que permeiam a
história.
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Baltazar Van Dun, patriarca de “uma linhagem notável”, em “uma gloriosa família”,
era um holandês que praticava o comércio de escravos e era casado com uma negra D.
Inocência; tinha oito filhos do casamento e muitos filhos de quintal, ou seja, mulatos com
sangue de suas próprias escravas, mas “a maior parte paridos por D. Inocência, outros
feitos no quintal, cujas mães escravas tinham atravessado o mar, exigência da esposa
oficial pela lei da igreja.” (PEPETELA, 1999, p.21) Era o único mafulo casado com uma
africana.
Comentaremos acerca de duas personagens relevantes: Matilde e Catarina, irmãs
confidentes. Catarina tinha vinte e três anos, “aceitava tudo, se fechava num sorriso
dócil”, servia a casa como criada, filha de quintal; oposto de Matilde, “muito bonita mas
também muito bruxa, inclinada a visões e profecias”, voltada somente para seus próprios
interesses, filha da casa.
Matilde com certeza estava à frente de seu tempo, “das mulheres de casa,
mesmo Matilde era capaz de entrar em conversas de homem. Bela, rechonchudinha e
muito atrevida, ficava de olhos azuis brilhantes quando certos temas eram atirados, para a
mesa.” (1999, p.26), principalmente política, pois o pai apreciava discutir esses assuntos
com os filhos, era uma forma de educar.
Matilde era uma mulher fogosa, despreocupada, esperava impacientemente a
hora do encontro amoroso”, e um dos seus primeiros amores que confidenciou a Catarina
foi com um padre jesuíta “entrado nos anos”, mas bem formoso. Em seus relatos
amorosos destaca-se o erotismo que para Durigan, é o resultado
de um conjunto de relações ligadas ao princípio do prazer ou decorrentes do princípio da
realidade, de cujo inter-relacionamento se configurariam os lugares dos sujeitos. Esses
lugares marcados pela falta, pela necessidade, corresponderiam aos espaços dos
sujeitos mediatizados e orientados para a construção do prazer, a supressão da
necessidade, através de suas atuações, seus papéis, no espetáculo erótico. (1986, p. 31)
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No entanto, o texto erótico é como uma montagem textual deste espetáculo. O
erotismo é uma metáfora da sexualidade e não uma mera imitação desta. Sintetiza o
autor que é “uma representação da representação cultural da sexualidade que depende
necessariamente da época, dos grupos sociais, das pessoas, e que se afirma sempre
através da diferença, mesmo que essa diferença seja conseguida por um conjunto de
redundâncias.” (1986, p. 38) Assim é descrita a cena de amor com o padre:
Matilde se levantou e encostou às pernas dele, olhando-o nos olhos. O padre estava
encurralado pelo tronco, não podia recuar. Matilde se chegou mais, me absolva, padre,
me absolva. O jesuíta balbuciou o começo de uma oração com os lábios entreabertos,
meteu uma mão por baixo dos saiotes dela, sentiu o calor, revolveu os olhos. Ela o puxou
e caíram abraçados no chão. E o padre absolveu-a no capim, nas palavras dela,
misturadas com risinhos. (PEPETELA, 1999, p.51)
O padre jesuíta, após o fato, declara na missa que um anjo lhe fizera uma
profecia que poderia ser Matilde e “certamente estaria a sorrir embevecida na missa, a
ver o seu segredo transformado em profecia de anjo.” (PEPETELA, 1999, p.51) Afinal,
anjo ou demônio? O mito de mulher pura/impura está impregnado em nossa sociedade,
desde os textos bíblicos, as tragédias gregas, as bruxas, as prostitutas, que enfatiza que
o feminino se personifica no anjo ou demônio. Essas imagens geralmente aparecem na
literatura de forma dualista, ora idealizada, ora demoníaca que oscila entre a adoração e a
condenação.
Matilde, durante toda a narrativa, assume uma postura diferenciada das mulheres
do século XVII, burlando as regras sociais, autoritária e sedutora, como o mito de Lilith
nas versões bíblicas que “é coberta de sangue e saliva, mbolo do desejo. No momento
em que foi criada a mulher, foi criado também Satã com ela” . Mas consagra-se aos olhos
masculinos como anjo, pois “a mulher é a personificação do sentimento que liga o homem
da antiga tradição a seu Deus”. (SICUTERI, 1987, p.32-34)
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Também encontramos referências da mulher histórica Lueji nessa obra: “a
grande rainha saída de uma serpente que morde a própria calda” (PEPETELA, 1999,
p.134). Segundo Sicuteri (1987), serpente, metáfora do desejo e do sexo, inspirada na
criatura Lilith colocada no Jardim do Éden.
“Matilde tinha outros homens a quem consolar, neste momento era o oficial
francês, belo como um querubim, segundo sua confissão a Catarina” (PEPETELA, 1999,
p.75) Na configuração da personagem, encontramos o erotismo, pois um ar de
pecado, um desprendimento do amor sincero e único.
Outra passagem, no casamento de seu irmão Rodrigo, enquanto todas as
mulheres se afastavam dos homens, ela estava no meio de oficiais mafulos conversando
sobre sexo, e “todos comiam Matilde com os olhos” (PEPETELA, 1999, p.103): ali era
rainha, instrumentum diaboli.
No percurso da história, Pepetela deixa marcas de culturas ocidentais
patriarcalistas que impregnam a cultura africana, como
As portuguesas, do que eu conheço, são incapazes de levantar a voz para o marido e
não bebem mesmo nada, só água. Basta dizer que, mesmo quando recebem visitas, se
sentam no chão, por cima de tapetes. Os homens sentam em cadeiras. Isto já mostra a
diferença. (1999, p.87)
E reafirma o processo de sincretismo logo em seguida: “E os costumes ficaram”.
Nesses indícios, percebemos o processo de aculturação quanto à situação da mulher na
sociedade angolana. As escravas eram “apenas para fazer filhos que ele venderia. Como
um galo que faz filhos para negócio do dono”. (PEPETELA, 1999, p.87)
Matilde engravida do tenente francês e deixa de lado suas adivinhações, pois
estava muito preocupada em esconder a barriga que crescia, “Catarina a única
conhecedora do problema da irmã, andava numa grande aflição.” (PEPETELA, 1999,
p.116) A condição de casamento parecia inviável, pois ambos pertenciam a religiões
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diferentes, e nenhum queria renunciar. “Mas louca mesmo estava agora Matilde, pois
Jean du Plessis ameaçara fugir, se matar, tudo fazer, menos casar. Não gostava dela?
Adorava-a, era evidente. Mas tinha medo de perder o emprego de mercenário, se traísse
a palavra de Calvino.” (PEPETELA, 1999, p.121)
O casamento realizou-se e, aproveitando do dia festivo propiciaram a fuga do
governador Pedro Cesar de Menezes, muito planejada. Lembremos as orgias do deus
Dionísio: “tudo culpa da feiticeira Matilde, que levou o tenente francês a sujar a honra da
gloriosa família, sendo portanto responsável pelas muitas bebedeiras e ressacas.”
(PEPETELA, 1999, p.144)
Mas as confidências de Matilde continuavam assim como seu interesse por outros
homens. E a “arte de conversar” das irmãs era uma forma que o escravo encontrava para
registrar as situações mais íntimas da condição feminina, pois “a conversa é um efeito
provisório e coletivo de competências na arte de manipular “lugares comuns” e jogar com
o inevitável dos acontecimentos para torná-los “habitáveis”. (CERTEAU, 2004, p.50)
Essa arte não permite a passividade, pois
As retóricas da conversa ordinária são práticas transformadoras “de situações de
palavra”, de produções verbais onde o entrelaçamento das posições locutoras instaura
um tecido oral sem proprietários individuais, as criações de uma comunicação que não
pertence a ninguém. (CERTEAU, 2004, p.50)
Cada relato era regulado pelas novas circunstâncias. Com essa tática,
percebemos a insatisfação das mulheres perante o que lhes é imposto, e de um
“processo mudo” que organiza a ordenação cultural. A voz do narrador assume caráter de
representação social, pois desvenda o espaço opressivo em que a mulher não é sujeito
de seu próprio existir, mas apenas uma configuração das raízes culturais e tradição do
espaço em que está inserida.
80
Bonnici explica que “efetivamente, a dupla colonização causou a objetivação da
mulher pela problemática da classe e da raça, da repetição de contos de fada europeus e
da legislação falocêntrica apoiada por potências ocidentais.” (2000, p.16) O que explica a
Boa Catarina que, mesmo com a idade avançanda continuava a pensar no príncipe
encantado das histórias de contos de fadas:
Ouvi uma história da terra dos brancos que falava exactamente de uma rapariga que vivia
sempre com as panelas, por causa da madrasta má, e que acabou por casar com um
príncipe que conheceu num baile, por acção de uma fada boa. Pobre Catarina, se
esperasse imitar na sorte a heroína, estava mal, não havia bailes em Luanda, nem
príncipes. Embora Matilde tivesse atributos de fada” (PEPETELA, 1999, p.147)
Matilde sempre se apresentando numa imagem dual de mulher, ora num contexto
ingênuo, uma fada, ora com atitudes de feiticeira, um “veículo do pecado, da
transgressão” (SICUTERI, 1987, p.37). Como relata o narrador-escravo “(...) uma bruxa
capaz de dar e tirar a vida” (PEPETELA, 1999, p.159). Não tardou e logo estava com
um amante, o tenente Joost Van Koin; encontraram-se na igreja e “se trocaram beijos
esfaimados e logo Matilde o afastou, nem gesto de recato ou de temor, desconheço,
também não posso imaginar todos os detalhes.” (PEPETELA, 1999, p.156). No segundo
encontro, o marido traído presencia o adultério, mas “(...) chorou baixinho, choro feito
apenas de lágrimas abundantes e imperceptíveis convulsões dos ombros, a mais
pungente maneira que têm os brancos de manifestar dor absoluta, a dor dos vencidos.”
(PEPETELA, 1999, p.158)
O narrador aproveita a ocasião para retomar sua cultura, pois entre os negros,
não separação, duelos para lavar honra; somente paga uma multa, o macoji, como
uma galinha ou cabrito e ficava reparado o dano provocado na família. E termina em tom
irônico: “Depois, eles é que são os civilizados...” (PEPETELA, 1999, p.161)
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Matilde sempre tentava interceder pelas mulheres oprimidas pela família Van
Dum, privadas de participarem da vida social, como Catarina que fora proibida de ir a
cerimônia de casamento do irmão, e Dolores, a escrava que não foi ao batizado do
próprio filho. Uma latente voz feminista: “Matilde ainda tentou argumentar, a Dolores tem
direito de assistir ao baptizado do filho. O meu dono levantou a voz, uma escrava não tem
direitos, acabou”. (PEPETELA, 1999, p.241)
Baltazar representava o pensamento patriarcalista e até mesmo machista, pois
gozava de orgulho ao ver seus filhos atacarem e se deitarem com as escravas, mas
quanto às suas filhas, o sentimento era invertido: “_ Nenhum escravo toca em filha minha
e fica vivo.” Não havia registro de participação em assuntos familiares: “As fêmeas se
calavam e ninguém esperava opinião delas.” (PEPETELA, 1999, p.244) Contrastando
nesse painel o rei Jinga que escolhia seus homens e possuía um harém de homens.
“Uma conclusão podia tirar, Matilde parecia definitivamente esquecida”
(PEPETELA, 1999, p.270). A história de Matilde termina como a da Lueji. Suas previsões
tornaram-se legados para a posteridade nas crônicas de Cadornega, mas os créditos
ficaram para o seu amante jesuíta. O último trecho Pepetela dedicou a ora bela, ora bruxa
Matilde: “E Matilde atirou ao velho flamengo o seu sorriso mais bonito e mais malandro.
Se este não sentiu um fogo percorrer o baixo ventre é porque as velhas brasas estavam
definitivamente extintas. Não as minhas.” (PEPETELA, 1999, p.406)
Henderson (1992) explica que todos os grupos, tanto matrilinear como patrilinear,
partilham duas características chaves: a aceitação histórica da poligamia e a importância
econômica da mulher na execução de atividades produtivas. Dentro da esfera política,
segundo Maria Idalina Valente,
O sistema de parentesco matrilinear que prevaleceu até mesmo durante o período
colonial, no qual a maioria dos grupos étnicos lingüísticos em Angola transmitia a
descendência por via materna, a posição da mulher era (é) tradicional, espiritual e
82
socialmente mais forte. Porém, a política especial de assimilação imposta pelo
colonialismo repercute hoje nas elites políticas e na sua identificação com valores
ocidentais que em combinação com a ideologia marxista leninista conduziu
conseqüentemente, ao repúdio dos de valores tradicionais não cristãos. (2001, p.07)
Durante quinhentos anos, a África constituíra um patamar de maior colônia do
mundo, primeiro como feitorias que abasteciam o Novo Mundo com seus escravos,
depois como Colônia propriamente dita, no século XIX, durante o chamado Neo-
colonialismo ou imperialismo, como observa Ki-Zerbo:
A título de capital-trabalho e de matéria-prima, a África Negra participou, portanto,
involuntariamente no arranque econômico da Europa e continuará a desempenhar o
papel de impulsionadora durante o período colonial ou neocolonial. Em resumo, o tráfico
de escravos foi para a África Negra uma viragem macabra que teria podido conduzir esta
raça ao desaparecimento quase total, como na América do Norte e do Sul aconteceu aos
Índios, tanto mais que os efeitos da escravatura se estenderam por quinhentos anos.
(1972, p.283)
Parafraseando Bhabha (1998), a força do discurso colonial e pós-colonial nos
romances contemporâneos, justifica uma necessidade de contestar as peculiaridades das
diferenças, bem como articular esses sujeitos nesse processo.
3.1.3 Ondina e Lu: a Mulher Angolana Pós-Colonial e o seu Papel para a
Reconstrução Nacional
Segunda metade do século XX, a África recomeça, e o papel das mulheres na
política torna-se relevante, pois, como registra Ki-Zerbo,
“As mulheres estavam integradas no aparelho do partido por laços horizontais e gozavam
com freqüência de uma representação nos organismos dirigentes. (...) transpuseram para
a arena da luta anticolonialista a paixão e abnegação próprias do seu sexo. (...) Ninguém
melhor do que elas podiam transformar uma palavra de ordem em aspiração de todo o
povo.” (1972a, p.180)
Numerosas associações femininas de dança foram anexadas por partidos
dinâmicos, tomaram força política e até mesmo consideradas “heroínas da luta
83
anticolonial”. Nos comícios, ao batuque, mulheres em coro ridicularizam políticos rivais,
dançam e carregam em seus vestuários retratos de seus chefes políticos.
Inicia-se um processo de descolonização da cultura, no qual se anula a postura
da mulher colonizada e reinventa-se um novo “sujeito colonial”, conforme explica Fanon,
"A descolonização jamais passa despercebida porque atinge o ser, modifica
fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de inessencialidade
em atores privilegiados, colhidos de modo quase grandioso pela roda-viva da história.
Introduz no ser um ritmo próprio, transmitido por homens novos, uma nova linguagem,
uma nova humanidade. A descolonização é, na verdade, criação de homens novos. Mas
esta criação o recebe sua legitimidade de nenhum poder sobrenatural; a 'coisa'
colonizada se faz no processo mesmo pelo qual se liberta" (1979, p.26-27).
As mulheres tornavam-se cada vez mais engajadas na luta política de
independência, tanto que: “Em Agosto de 1956 juntaram-se em Pretória vinte mil,
incluindo mulheres hindus, para levarem moções de protesto ao primeiro-ministro
Strijdom. À cabeça, Lílian Ngoyi, presidente da liga das mulheres do A.N.C.”
4
(KI-ZERBO,
1972a, p. 293).
Como a literatura é um produto social, observamos em Mayombe, de Pepetela,
que a submissão deixa de ser uma prática das mulheres independentes. Nesse romance,
o capítulo III intitulado Ondina, configura uma personagem feminina guerrilheira que
representa o ponto de partida da emancipação feminina da mulher em Angola e sua
participação efetiva na política, no campo empresarial e até mesmo literário. É importante
destacar que, em cada capítulo, o autor apresenta um narrador diferente que introduz
uma pequena história de suas origens. Sob este aspecto, podemos valer-nos das teorias
bakhtinianas sobre o romance polifônico:
EU, O NARRADOR, SOU MUATIÂNVUA..
Meu pai era um trabalhador da Diamang, minha mãe uma kimbundo do Songo. O meu pai
morreu tuberculoso com trabalho das minas, um ano depois de eu nascer. Nasci na
4
notas do African National Congress – congresso Nacional Africano, fundado em 1910.
84
Lunda, no centro do diamante. O meu pai cavou com a picareta a terra virgem, carregou
vagões de terra, que ia ser separada para dela se libertarem os diamantes. Morreu num
hospital da Companhia, tuberculoso. O meu pai pegou com as mãos rudes milhares de
escudos de diamantes. (1985, p.144)
Em sua autobiografia, personagem-narrador anuncia o ponto relevante de sua
narrativa, as questões “tribalistas” :
As mulheres que amei eram de todas as tribos, desde as Reguibat do Marrocos às Zulu
da África do Sul. Todas eram belas e sabiam fazer amor, melhor umas que outras, é
certo. Qual a diferença entre a mulher que esconde a face com um véu ou a que o
deforma com escarificações?
Querem hoje que eu seja tribalista!
De que tribo?, pergunto eu. De que tribo, se eu sou de todas as tribos, não de Angola,
como de África? (PEPETELA, 1985, p. )
Os mujimbos começaram... “foram apanhados o camarada André a camarada
Ondina... apanhados no capim!” (PEPETELA, 1985, p.161). Nessa referência militante
ao “camarada”, percebemos que Ondina encontra-se numa posição igualitária aos
homens nessa guerrilha, era membro do Movimento Popular de Libertação de Angola.
O problema tribal é que “André era Kikongo e Ondina noiva dum Kimbundo”, o
Comissário, e, conforme previa a tradição, a mistura de tribos enfraquecia a linhagem
(lembremos das previsões dos conselheiros da rainha Lueji). Se não fosse possível união
entre pessoas da mesma tribo, que fossem então brancos, “para adiantar a raça”.
Pepetela reforça ainda as marcas ideológicas que a figura da mulher traz em suas
entranhas, pois, conforme exclama Sicuteri (1987), “mulher é biblicamente condenada” ,
aliás o autor indaga: ”Não foi por causa duma mulher que Caim matou Abel? Se não o diz,
a Bíblia escondeu pudicamente a verdade.” (PEPETELA, 1985, p.163) É possível que o
discurso bíblico, utilizado como veículo de manipulação social pelas instituições clericais,
tenha omitido a participação da mulher nessa fatalidade e atribui a causa ao ciúme e à
inveja.
85
A mulher foi marginalizada sob várias faces, dentre elas a prostituta, atividade
enraizada na Idade Média, segundo afirma Macedo: “.O monopólio da atividade cabia ao
“belo sexo”. No final da vida, a velha meretriz, alcançando certo grau de estabilidade,
podia desfrutar os últimos anos num convento para as pecadoras arrependidas.” (1990,
p.74) A dualidade: pecadora versus redentora inibiu a possibilidade de emancipação da
mulher, pois, quando quebravam com os padrões sociais e morais eram punidas ou
levadas a se redimirem.
Em Mayombe , as personagens Sem Medo e o Comissário fazem menções a
essas mulheres-objetos, vistas como instrumento de desejo do homem, pois “(...) com
uma prostituta não há praticamente uma relação de forças que se cria, tudo se faz à base
do dinheiro.” (PEPETELA, 1985, p.171) Ainda percebemos, nas vozes dessas
personagens, críticas contundentes às mulheres que se submetem às regras patriarcais e
atribuem a culpa ao próprio comportamento feminino, que não questionam nada, somente
obedecem por uma questão de estabilidade social.
_ Isso depende das mulheres. mulheres que querem saber exactamente como o
homem é, para se acomodarem a ele, para moldarem o seu comportamento segundo o
do marido.
_ São escravas. As que não procuram o amor, com todos os seus riscos, mas uma
situação tranqüila. Isso para mim não são mulheres, são coelhas. (PEPETELA, 1985,
p.179)
Em contrapartida, fazem referências às mulheres revolucionárias que subvertem
as regras e tornam-se “(...) adversários sérios e que, portanto, o capazes de dar o
maior prazer e os maiores desgostos a um homem.” (1985, p.179) Note que são
adjetivadas com o gênero masculino “adversários sérios” , ou seja, metaforicamente
essas mulheres assumem posturas de homem, assim como fazia “o rei Jinga”.
“São conseqüência duma sociedade”, na qual o sexo masculino dominou por
longos séculos, como lembra Sem Medo: “repara que culos de submissão. Isso
86
marca” (PEPETELA, 1985, p.180). A mentalidade feminina foi moldada dentro dos
padrões patriarcais, até mesmo o ato sexual por prazer é prenúncio de condenação:
“Depois do amor pôs-se a chorar, a dizer que já não merecia o marido, que era uma puta,
etc. A submissão tinha moldado completamente o seu espírito.”
A única forma de participação dentro dessa sociedade patriarcal seria a completa
inutilidade de ação, pois como explica na voz do Comissário, que, aliás, fora o traído, é
que “numa sociedade em que o homem controla os meios de produção, onde é o marido
que trabalha e traz o dinheiro para casa, é natural que a mulher se submeta à supremacia
masculina. A sua defesa social é a submissão familiar.” (PEPETELA, 1985, p.180). Por
outro lado, Sem Medo registra que aquelas que buscam no ambiente familiar ou no
sexo índices e estratégias de manipulação para subverter seu papel, “(...) encontram no
amor o contrapeso a essa inferioridade social. E mesmo sem trabalhar, estando
dependentes economicamente, são capazes de jogar taco-a-taco com o homem. Seria
aliás essa a sua melhor defesa.” (PEPETELA, 1985, p.180)
Consideravelmente, percebemos o descontentamento masculino e a permanência
da impossibilidade de mudança da condição da mulher, afinal diluiria seu trono: “(...) deve
ser a última superestrutura a ser modificada. A mais difícil de modificar, que choca contra
toda a moral e preconceitos individuais que os modos de produção anteriores
provocaram.” (1985, p.180)
Encerrada a discussão acerca da postura dual da mulher na sociedade,
submissa/dominadora, o narrador voz à personagem Ondina. Notemos a postura do
casal de Mayombe: “Ondina abanou a cabeça. Pela primeira vez, mirou-o de frente. Ele
não sustentou o olhar.” (PEPETELA, 1985, p.195) Como justificaremos se a traição foi
cometida por ela, mas foi o Comissário que se sentiu culpado.
87
Ondina não escondeu que buscava prazer, sexo e que tinha desejos: “eu
desejarei outros homens” (PEPETELA, 1985, p.199). na voz do amante, percebemos
um discurso machista, pois mesmo satisfeito com a conquista, condena a atitude da
personagem:
(...) a puta aceitou logo ir para o capim. Que fogo, meu Deus! Que vulcão! Perdi o meu
lugar, mas valeu a pena. Tinham emboscado uma série de militantes na estrada, para
testemunharem. E ela prestou-se ao complô, porque é uma vaca que gosta de homem e
porque assim o seu Comissário vai subir. (1985, p.204)
Após o fato, essa mulher sofreu muitas pressões sociais, chegou até a perder o
emprego de professora, sob alegação de que seria um mau exemplo às crianças para as
quais lecionava, mas, por outro lado, foi um impulso para assumir sua independência
feminina e buscar sua emancipação basta de convenções! Observemos na voz da
personagem: _ Não seria muita ousadia pedir-lhe um cigarro? Agora posso fumar à
vontade. Evitava fazê-lo para não chocar as pessoas. Tiraram-me os miúdos, não mereço
confiança para educar. Posso pois fumar à vontade, nada tem importância.
(PEPETELA, 1985, p.209) Chegou até a declarar sua aversão ao casamento.
É importante salientar que as práticas do cotidiano e as táticas engenhosamente
articuladas pelas mulheres numa sociedade em que são rotuladas como fracas ou até
deuxième sexe, como intitula Simone de Beauvoir (1981), constroem-se com bases num
resgate que envolve a história de um silenciamento das mulheres na sociedade, como
argumenta Ondina, personagem feminina de Mayombe, “a sociedade é muito mais severa
para uma mulher” (PEPETELA, 1985, p.230); e declara Lu em Lueji: “era uma mulher e
o mundo era feito para os homens. Oh, claro, tinha havido avanços, já se não considerava
a mulher apenas o resultado duma costela masculina.” (1989, p.155) Silêncio este que
aos poucos rompe suas últimas amarras.
88
As mulheres angolanas não ocupam destaque na sociedade como revolucionárias
ou políticas engajadas por acaso, elas participaram de uma história de luta e poder, como
recorda Lu, personagem do romance Lueji (1989), uma representante da angolana atual
que se configura a partir da junção de sua tradição com seu contexto moderno: “Lu nunca
teve certezas, sempre balançando entre o mundo dos amigos do pai e as crenças da avó,
depositária do saber lunda, e isso a tornava frágil” (1989, p.120).
Nesse romance, conforme as teorias de Bhabha (1998), Pepetela faz uma
reencenação do passado histórico de Lu para significar o seu presente, “os velhos mitos
renasciam com a aproximação do ano 2000” (1998, p.26).
Lu começa suas pesquisas num Centro de Documentação Histórica, associando
aos vários relatos de sua avó, e em nome da tradição faz uma interpretação da história da
Rainha de Lunda, sua centavó, para composição do roteiro de um espetáculo de balé:
(...) lia os apontamentos para citar os autores e também as invenções dela, os
personagens fictícios mas tão importantes quanto os conhecidos, pois faziam as ligações
lógicas e davam vida aos factos enterrados no esquecimento do tempo, talvez incómodos
para os narradores da tradição oral e por isso apagados da História em momentos
diferentes de afirmações de poderes, mas que ela fazia renascer para que o mito tivesse
corpo e não apenas um esqueleto, deixando assim de ser mito para se tornar realidade
presente que a amparasse, a alimentasse dessa fome de certezas no seu mundo de
hesitações de dúvidas (...) (PEPETELA, 1989, P,.212)
Por outro lado, é perceptível o tom irônico de Pepetela com relação ao discurso
da história do colonizador como um instrumento de “representação da autoridade”, pois a
personagem Marina descreve o historiador, amigo de Lu como: “_ Deve ser um chato,
armado de espírito europeu.” (1989, p.45)
Enquanto nos bastidores, nasce o romance entre Lu e Uli, entre ensaios e
desejos inconfessáveis, os bailarinos “se descobriam dançando”, em tons eróticos “se
inibiam, se mortificavam, as mãos queimavam ao tocar no corpo do outro, a mais leve
brisa soprada pelo movimento dum provocava colapsos no parceiro. E erravam passos.
89
Continuamente.” (PEPETELA, 1989, p.74). Amor não concebido, pois, segundo Lu, esse
sentimento fora bloqueado por um “cazumbi maligno”. Uli argumenta que via Lu como
uma irmã, portanto esse relacionamento amoroso se tornaria moralmente incestuoso.
Desprovida das regras de conduta machista, Lu recorda que tomou a iniciativa em
sua primeira relação sexual:
Lu levantou a saia toda, tudo duma vez, mas agora baixa os calções para eu te ver
também. António assim o fez, timidamente, e se postou à frente dela com o sexo erecto.
Ainda não circuncidado. E se deitaram no chão, António por cima, tentando lhe fazer
amor. A minhoca dele me fazia cócegas, batia, batia, mas desconseguia de entrar na
minha porta, por muito que eu ajudasse, contaria mais tarde Lu a Marina. Muito tempo
tentaram em vão, até que Lu sentiu uma angústia muito grande porque estranha, se
apertou mais contra ele, desesperadamente, e teve o seu primeiro orgasmo. (PEPETELA,
1989, p.158)
E Sedutora como a Grande e Serpente da Lunda, que se criou a si mesma”
(PEPETELA, 1989, p.417), Lu termina seu relato descrevendo as sensações que tivera ao
se tocar, “E a lembrança antiga entrou nela, fez a mão descer para o sexo, acaricia-lo por
cima da cueca, e relembrou outros orgasmos (...)” (PEPETELA, 1989, p.158) e ainda
revela: “sempre fui eu que excitei os homens e me excitava por isso” (PEPETELA, 1989,
p.441).
Livre de tabus, a personagem sempre conduzia situações, seja nos passos do
balé, seja na reescrita de sua história. Inclinada ao feminismo militante, Lu decreta: “É o
fim da família angolana, outro tipo vai nascer”. (PEPETELA, 1989, p.261) Enfim, o povo
angolano resistiu e ao mesmo tempo recebeu influências européias, resultado de um
processo de sincretismo, uma mescla de tradição africana e modernidade ocidental
esse é o painel contemporâneo da África e suas respectivas literaturas, como explica Sem
Medo:
Raciocinamos em função da nossa sociedade, sociedade assimilada à cultura judaico-
cristã européia, em que o homem tem de ser ciumento, porque é o bode do rebanho e a
mulher é sua propriedade. No fundo, que acontece à propriedade que é arrendada a
outro? Às vezes até fica renovada, rejuvenescida, com o empate de capital e de trabalho.
90
Mas nós não compreendemos isso. A mulher é uma propriedade especial. Temos uma
geração de atraso. Nós, os citadinos, que somos pretos por fora. Olha, um congolês que
apanhou a mulher em flagrante aí numa buala perto da fronteira, exigiu o pagamento pela
ofensa, claro. Um camarada perguntou-lhe se não ficou zangado. Ele respondeu: por
quê? Isso não gasta a mulher. E esta é a maneira de pensar do africano que tem pouco
contacto com a religião cristã. Nós estamos aculturados, corrompidos, muito mais
alienados.” (PEPETELA, 1985, p.234)
Contudo, num país onde se registra uma luta pela libertação de um povo, que após
anos de colonização e guerra, somente no culo XX adquire independência. A cultura
ora é disseminada num espaço assimilado, ora é incutida na tradição. Certos na busca de
identidade, seguem o combate e a luta, agora estética, da Literatura Angolana, à luz das
teorias pós-coloniais e feministas por uma questão de nacionalidade.
91
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mulher angolana, apesar do trabalho agrícola, das tradições tribais, da
poligamia, dos rituais de iniciação do período pré-colonial não se encontrava
enclausurada, nem mesmo com cintos de castidade. Pelo contrário, no regime
matrilinear, as sacerdotisas e até mesmo as feiticeiras obtinham responsabilidades
políticas supremas, gozavam de direitos e poderes absolutos, como a rainha Lueji entre
os lundas. As regras às quais eram submetidas pertenciam às suas tradições, que
desempenhavam com orgulho.
A colonização deixou marcas da cultura Ocidental nessa sociedade,
principalmente o legado patriarcalista, no qual a mulher assume o papel de submissa.
Angola, após sua libertação, traz à tona mulheres em muitos aspectos sociais
independentes, guerrilheiras que participam do processo econômico, político e social do
país.
Bhabha afirma que, dentro das perspectivas pós-coloniais, “a identidade cultural e
a identidade política são construídas através de um processo de alteridade” (1998, p.244).
Ao analisarmos as personagens femininas de Pepetela, percebemos que, mesmo sendo
romances de autoria masculina, as vozes femininas presentes nas narrativas são
representações do sujeito-mulher em momentos significativos da construção da História
de Angola.
A personagem rainha Lueji, do romance Lueji (1989), revela seus
posicionamentos na sociedade pré-colonial, as influências dos espíritos ancestrais na
manipulação do poder e a subversão das regras da tradição. Essa mulher assume o papel
de sacerdotisa de seu povo, conquistando a autonomia total.
92
A personagem Matilde, do romance A gloriosa família (1999), representa as
inquietações das mulheres perante a ordem patriarcal do período colonial, a submissão
que as relegaram a um passado omisso e a um silenciamento opressivo, mas
percebemos que a sua aceitação é apenas aparente, na realidade essa mulher é
controladora do homem. A bruxa Matilde se constrói a partir de uma imagem dual: anjo
versus demônio.
A personagem Ondina, de Mayombe (1985), busca configurar um tipo de mulher
na sociedade angolana atual que procura uma identidade, questionando a ordem e a
tradição estabelecidas pelo homem e pelo discurso cristão, uma mulher revolucionária,
engajada politicamente, sendo considerada “heroína da luta anticolonial”. Questionadora
das regras patriarcais, mulheres como Ondina não se submetem às convenções sociais,
desprezam o casamento e tornam-se cada vez mais independentes.
Durante a guerrilha de libertação, as mulheres foram levadas a “ficar em casa”,
mas não era somente para cuidar dos afazeres domésticos, era também trabalhar fora
para sustentar os filhos, cuidar dos maridos que regressavam da guerra feridos, doentes
e, muitas vezes, mutilados. Hoje, a angolana procura ganhar a grande guerra da
emancipação, e são amparadas legalmente pela Constituição, pela Lei da Família e pela
Lei do Trabalho, consagrantes dos direitos da mulher. Sobretudo a princípio da igualdade
de direitos consagrado no artigo número 18 da Constituição.
Contudo, percebemos que Pepetela, ao criar suas personagens femininas
apresenta-nos mulheres reais que lutam para se desvencilharem dos ranços
patriarcalistas Ocidentais, ao mesmo tempo em que buscam sua identidade na tradição,
afinal, as mulheres angolanas sempre detiveram as deas do poder. É imposição
histórica a força de seu papel na sociedade.
93
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ANEXO A
EMANCIPAÇÃO
Advogada, antiga combatente, Luzia Sebastião abre o "livro" de uma nova geografia
social
Num terreno de imensas perspectivas como é o da mulher, a voz da advogada e ativista
Luzia Sebastião é simbolizante, em Angola, de grandes combates no interior da
sociedade. Em declarações ao JN, na capital angolana, a antiga deputada do MPLA, em
plena fogueira de uma oratória especialmente desassombrada, diz assim da sua
convicção: "Poucos países no mundo de hoje, muito poucos mesmo, terão, como em
Angola, uma o forte panóplia de textos legais (Constituição, Lei da Família, Lei do
Trabalho), consagrante dos direitos da mulher!".
Luís Alberto Ferreira
Enviado JN
JORNAL DE NOTÍCIAS - Nestes terríveis 20 anos de longas e penosas caravanas de
problemas, no solo angolano, dir-se-ia que os níveis de resistência da mulher excederam,
verdadeiramente, as expectativas...?
LUZIA SEBASTIÃO - Não excederam, antes corresponderam, plenamente, ao que dela
seria de esperar. Basta ler a história, a história "total", de Angola, para compreender isso.
A história remota e a história recente. Toda feita, esmaltada de sacrifícios e estoicismos
da mulher angolana.
JN - Em todo o caso, abundam, na história destes 20 anos de independência, os sinais
absolutos de que a mulher angolana se sobrepujou, se transcendeu a si própria.
LS - Tem razão quando diz que, ao longo de todos estes anos de vicissitudes vividos em
Angola, a mulher foi dos elementos mais penalizados. Certamente, o mais penalizado.
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Mas, repare: nós, aqui, quando falamos da mulher, imediatamente a associamos à
criança. Em Angola não podemos, nunca, deixar de aludir, muito objectivamente, às
crianças, quando falamos das mulheres. As mulheres estão sempre ligadas às crianças. E
o sofrimento das mulheres, naturalmente, acaba sempre por transmitir-se às crianças.
Mesmo quando as mulheres, numa atitude que é uma constante, tudo façam para que o
sofrimento chegue minimamente às crianças.
JN - Quais são os cenários de vida em que situa, na Angola destes últimos 20 anos, as
vicissitudes enfrentadas e sofridas pela mulher? A guerra alterou ou afectou a noção dos
valores. Mas, em certa medida, a mulher angolana parece ter permanecido imutável, igual
a si própria.
LS - Ela foi um elemento duramente penalizado. A mulher teve que ficar a gerir a família,
a maior parte das vezes em condições infra-humanas, ou desumanas. Porque os homens,
os seus companheiros, tinham de estar nas frentes de combate. Numa primeira fase, em
muitos casos, elas também iam para as frentes de combate. Porém, à medida que a
guerra se foi desenvolvendo, concluiu-se que essa não era a melhor solução. E a mulher
passou, então, a permanecer à frente da família, a ficar em casa. Digo "ficar em casa",
mas não significa que ela permanecesse, e simplesmente, entre as paredes
domésticas. Pelo contrário, foi chamada a intervir em todas as frentes da vida familiar.
Inclusivamente naqueles casos em que o marido regressava da guerra ferido ou doente,
ou mutilado: ela tinha de trabalhar, também, fora de portas, e as parcas economias por
ela angariadas estiveram, de facto, durante anos, na base da manutenção do agregado
familiar.
JN - E, entretanto, os desenvolvimentos da guerra, com todo o seu séquito de violências,
foram abrindo outros horizontes de sofrimento...
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LS - Sofrimento, por vezes, estarrecedor! Quantas vezes a mulher angolana perdeu filhos,
perdeu o marido, quantas?
HEROÍNAS!
JN - Consegue imaginar, ou reproduzir, o quadro físico e psíquico da vida das mulheres
que acompanharam os homens na odisseia da luta armada de libertação, antes da
independência?
LS - Certamente que consigo, eu própria participei na luta armada de libertação e até foi
mesmo que eu conheci o homem com quem casei e que é, hoje, o meu marido. Em
muitos casos, de facto, a mulher angolana acompanhou o homem, ela foi para a mata. E,
muitas vezes, ela própria esteve na frente de combate. Numa vigorosa duplicidade de
funções. Mas, evidentemente, houve momentos em que se tornou difícil às mulheres
angolanas conciliar essas duplas missões. A frente de combate e a família. As crianças e
a gestão dos assuntos correntes da família, no dia a dia.
JN - O regresso aos centros urbanos, nomeadamente nos casos de Luanda, Benguela e
Huambo, arrastou consigo, entretanto, uma nova problemática. Lembro-me de várias
situações, nesse domínio: a atitude da mulher perante o discurso ideológico do poder, a
nível das instituições, e o seu papel na defesa de valores tradicionais e básicos no mundo
das relações humanas.
LS - Antes de mais seria de toda a utilidade referir que a mulher angolana - e isto, se me
permite, o significa, de maneira nenhuma, ser imodesta - é uma heroína. Uma heroína,
sim! Heroína no mais nobre, mais profundo, sentido da palavra. (Sorrisos de emoção
deslizam no semblante de Luzia Sebastião). Ao longo destes vinte anos de
independência, a mulher angolana, fundamentalmente, procurou, pelos meios ao seu
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alcance, acompanhar os novos desenvolvimentos no país. Portanto: nunca se colocar à
margem desse processo. É evidente que a presença da mulher angolana na maior parte
das situações, e em termos globais, pode ainda ser considerada diminuta. Em quantidade
e, talvez, também, em qualidade. Se bem que, se formos ver com atenção, hoje, em
Angola, nós temos muitas mulheres com formação superior, mulheres licenciadas. E
outras, igualmente, com excelente nível de preparação.
JN - Considera que a mulher está significativamente representada na administração
angolana?
LS - Até mesmo no elenco governamental. O número de mulheres ultimamente chamadas
a ocupar lugares no Governo de Angola pode ser, já, considerado aceitável. Mulheres à
frente de ministérios e secretarias de Estado. É uma constante na Angola de hoje. Além
disso: temos muitas mulheres na Saúde. Como médicas, como enfermeiras, como
técnicas, como administrativas, como auxiliares. Um número verdadeiramente vultoso. E,
outro exemplo; na advocacia. A jurisprudência, em Angola, encontra-se principalmente
servida por mulheres. Representada por mulheres. Portanto, a mulher angolana, sustida
embora por determinadas restrições, ou limitações, dentro de muitíssimos
condicionalismos, conseguiu intervir. E contribuir, efectivamente, para o desenvolvimento
que hoje se regista em diferentes níveis da vida angolana.
MATRIARCAS!
JN - É a resultante de um propósito firme, naturalmente. Para ir até onde? Qual é a
fasquia?
LS - O que a mulher angolana, fundamentalmente, pretende, é poder participar,
directamente, na resolução dos problemas mais rios. Até porque ela continua a ser o
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verdadeiro suporte da família. Da estrutura familiar. estamos nós, portanto, a voltar ao
coração do tema inicial desta nossa conversa. A mulher, em Angola, tem de gerir os
assuntos centrais da família. Mesmo quando ela é ministra, quando desempenha um
cargo na administração central. E esta duplicidade de desempenhos, em Angola, não se
processa como acontece em países organizados e sem os problemas extremamente
complexos que aqui enfrentamos. A mulher, aqui, é a pessoa mais interessada no bom
funcionamento dos serviços, das instituições, de tudo. Para que a sua tarefa seja,
minimamente, facilitada.
JN - Refere-se, certamente, às múltiplas questões do dia a dia: transportes,
abastecimentos, segurança...
LS - Naturalmente. Repare: se a escola estiver a funcionar bem, se o professor estiver
motivado e com o seu salário em dia e compatível, a mulher está sossegada porque sabe
que vai largar o filho na escola e o filho vai receber uma boa educação. E, em casa, ela
não tetanto trabalho na educação do filho, ou na sua instrução. E mais: se o hospital
estiver a funcionar como deve ser, se o médico e os medicamentos estiverem lá, a mulher
está mais sossegada porque não vai gastar tanto tempo cada vez que precisar levar a
criança ao médico. Porque, na verdade, continua a ser ela quem terá de levar a criança
ao médico, apesar de ser ministra ou secretária de estado. Se o comércio estiver
organizado... se os bens essenciais não faltarem... se os transportes colectivos...
JN - uma demissão "estratégica" do homem angolano nestas "frentes de combate"
quotidiano?
LS - Eu não creio que isso seja o resultado de uma atitude machista do homem angolano.
Claro que a mentalidade do homem angolano ainda não mudou. Ou, pelo menos, não
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mudou completamente. Mas, enfim, também não exageremos: eu cruzo-me com muitos
pais que vão levar os seus filhos à escola... não é ?
CAMINHOS DE DOR E GLÓRIA POR ENTRE AS LEIS DA VIDA
Constituição, Lei da Família e Lei do Trabalho "escoltam" o universo da condição feminina
O regresso dos combatentes angolanos a Luanda, Benguela, Huambo e outros centros
urbanos deu lugar a alguns fenómenos hiperbólicos do foro social. Mormente, no campo
afectivo: os homens que, olvidados os tempos e as peripécias nas matas do Norte, do
Leste, de Cabinda, abandonaram as antigas companheiras e elegeram "raparigas mais
evoluídas". Ou "raparigas mais estilizadas". Mais "pomposas". (Em 1976, em Luanda,
este enviado do JN ouviu relatar um episódio em que, alegadamente, ter-se-ia envolvido,
como "juiz", o próprio presidente Agostinho Neto. Convidado para padrinho de casamento
de um destacado oficial das FAPLA, o líder angolano não gostou de constatar que "afinal
a noiva o era a companheira das guerrilhas na mata, era outra, mais nova, mais
atraente!!!").
LUZIA SEBASTIÃO - Claro que nos demos conta desse fenómeno. Eu, por exemplo, que
tive o privilégio de viver, por dentro, a luta de libertação; eu, que conheci o meu marido
e lá casei, não poderia ter ignorado tal fenómeno. Houve, de facto, companheiros que, por
determinados circunstancialismos da vida, mudaram. Digamos, entre aspas, "encontraram
coisa melhor". Olhe que o foram os maridos a abandonar as mulheres, também
houve mulheres que elegeram outros homens. Uma situação, ao fim e ao cabo, natural.
Algumas situações foram, de facto, bastante dolorosas. Principalmente quando se tratou
de senhoras que, do ponto de vista cultural, eram de nível mais modesto.
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JORNAL DE NOTÍCIAS - Um pulso incerto e desigual para as mulheres angolanas menos
"sofisticadas", no fim de contas.
LS - Pode, talvez, dizer-se assim. Em muitos casos, eram mulheres que, num quadro
perfeitamente normal nas relações humanas, foram ultrapassadas por factores próprios
de uma sociedade nova. Nova e num meio urbano como aquele que a gente encontrou,
por exemplo, aqui, em Luanda, depois dos tempos da mata. Situações perfeitamente
normais no relacionamento entre pessoas. Casos muito concretos de mulheres que
tiveram dificuldade em encontrar emprego, em obter uma nova inserção no conjunto da
sociedade.
JN - A letra, os postulados da Constituição angolana contemplam todas as vertentes da
condição feminina?
LS - Note: eu não sei se haverá, no mundo dos nossos dias, muitos países, ou algum
país, onde as mulheres conseguiram que as leis contemplem as suas mais importantes
reivindicações. Os textos existem, a prática é que será outra coisa, em Angola. Nós,
angolanos, costumamos dizer: "Do texto da lei para a prática vão outros quinhentos!".
Mas, a verdade é que s conseguimos transcrever, para os textos legais, mesmo a
partir da própria Constituição, verdadeiras vitórias. Da emancipação da mulher angolana.
E, sobretudo, da concretização do princípio da igualdade de direitos que vem no artigo
número 18 da Constituição.
JN - Essa importante legislação esgota-se no texto da Lei Constitucional?
LS - Há outras leis avulsas que desenvolvem, ainda, todos esses articulados. Sem dúvida:
nós temos muito bons textos. Não é em todo o mundo que a mulher consegue cinco
meses de licença de parto, como acontece aqui em Angola. Onde a mulher, todos os
meses, tem direito a um dia de dispensa para se dedicar a assuntos da família. leis
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avulsas do trabalho que asseguram essa regalia. Que é um dia que tanto pode ser
gozado pela mãe como pelo pai! Não abundam, por esse mundo, os textos legais que
contemplam, numa Lei da Família, o princípio da igualdade entre marido e mulher. Não
está no texto da Constituição, mas está na Lei da Família. Quantos textos constitucionais
no mundo reconhecem, à mulher casada, o direito de, por si , registrar um filho nascido
fora do casamento e sem se ter divorciado?
JN - Portanto, todas as condições, em Angola, para que a mulher consiga o salto
qualitativo para uma emancipação completa?
LS - Todas as condições. Inegavelmente. Podemos, felizmente, proclamar: a mulher
angolana registra, já, verdadeiras vitórias no campo da igualdade social!
JN EDITORIAL – Angola 20 anos depois.
Disponível em: Jn2.sapo.pt/secdiv/especial/angola2. htm.