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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
A INCLUSÃO SOCIAL NO PROCESSO DE RECONSTRUÇÃO
DA LINGUAGEM E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA AFASIA
ALINE PORTO DO AMARAL MONTENEGRO
PIRACICABA, SP
2007
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A INCLUSÃO SOCIAL NO PROCESSO DE RECONSTRUÇÃO
DA LINGUAGEM E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA AFASIA
ALINE PORTO DO AMARAL MONTENEGRO
ORIENTADORA: PROFa. Dra. MARIA INÊS BACELLAR MONTEIRO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação
em Educação da UNIMEP como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Educação.
PIRACICABA, SP
2007
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BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Profª Dra. Maria Inês Bacellar Monteiro (Orientadora)
____________________________________________
Profª Dra. Ivone Panhoca
____________________________________________
Profª Dra. Maria Cecília Rafael de Góes
____________________________________________
Profª Dra. Rosana do Carmo Novaes Pinto
AGRADECIMENTOS
A Deus, por tudo que tem feito na minha vida e por tudo que irá fazer, pelas
oportunidades de aprendizagem tanto nos erros quanto nos acertos.
A meus queridos pais, Carlos e Tereza, pelo carinho, pelo apoio, pelo incentivo,
pelas orientações e pelos telefonemas nos momentos de saudades, fundamentais
para o meu crescimento pessoal e profissional.
A minha irmã Melissa.
A minha avó Inah, pelo acolhimento e companheirismo.
A meu avô Heitor (in memoriam), pela proteção eterna...
A meu noivo Nelson, por seu amor incondicional e pela sua coragem de me
acompanhar.
À Inês Bacellar Monteiro, minha orientadora, pela enorme paciência e pelos
momentos em que me ensinou, tanto na teoria como na prática, e ainda, pelas
oportunidades em que me fez refletir.
À Ivone Panhoca, pelas grandes orientações dadas, pelo apoio e incentivo.
Às professoras doutoras Maria Cecília Rafael de Góes e Rosana do Carmo Novaes
Pinto, por aceitarem participar da minha banca e pelas ricas sugestões no exame de
qualificação.
À Kátia, à Cybelle e à Lara, pelo apoio mútuo, pelas ajudas pessoais, pelas discussões
e pelos momentos de descontração.
A meus tios Paulo Henrique e Luiz e a minhas tias Nicolina, Tânia e Cristina pela
acolhida e pelo aconchego familiar.
iv
Às professoras Elenir Fedosse, Lúcia Mourão e ao Dr. Marcus Duran.
À Angelise e à Mirian.
A todas as professoras do curso de graduação de Fonoaudiologia da Unimep.
Às funcionárias da clínica-escola de fonoaudiologia da Unimep.
Ao Programa de Pós-Graduação de Educação da Unimep e a todos os professores do
curso.
A todos os sujeitos que participaram do grupo.
A todos que, de alguma forma, participaram comigo da pesquisa, meu muito obrigado.
v
No espelho não é eu, sou mim.
Não conheço mim, mas sei quem é eu, sei sim.
Eu é cara metade, mim sou inteira.
Quando mim nasceu, eu chorou, chorou.
Eu e mim se dividem numa só certeza.
Alguém dentro de mim é mais eu do que eu mesma.
Eu amo mim.
Mim ama eu.
(Rita Lee/Roberto de Carvalho, Eu e Mim).
vi
RESUMO
Ao assumir a perspectiva histórico-cultural (VYGOTSKY, 1998) e a teoria discursiva (BAKHTIN,
2000), tenho orientado meus interesses de pesquisa para a constituição do sujeito na afasia. Por
acreditar que é através da linguagem que o ser humano significa as pessoas ao seu redor, suas
ações e o mundo, e, também se significa através da sua relação com o outro; desenvolvemos tal
estudo, cujo objetivo é refletir sobre a inclusão social no processo de reconstrução da linguagem
e constituição do sujeito na afasia, através dos seus dizeres. Para realizar tal pesquisa, foram
registradas situações interacionais de um grupo terapêutico-fonoaudiológico de sujeitos afásicos,
através de vídeogravações e transcrição delas. O grupo tinha como objetivo explorar aspectos
que constituem o funcionamento da linguagem em suas diferentes configurações, seus mecanismos
de constituição e seu valor social, e explorar aspectos das operações lingüístico-práxicas. A
partir da transcrição dos dados, foram selecionados trechos dos discursos dos sujeitos, que
atendessem aos propósitos da pesquisa. As análises dos dizeres dos sujeitos conduziram ao
estabelecimento dos seguintes conjuntos temáticos: 1) o grupo familiar/ o grupo social; 2)
mudanças na imagem de si mesmo; 3) o enfrentamento das dificuldades cotidianas; 4) a linguagem
e a construção de uma nova imagem de si mesmo. Os achados demonstram que, através da
significação, possibilitada pela interação dialógica e pelo outro, é possível ao sujeito reconhecer
a si mesmo e ao outro enfrentando sua nova condição e prosseguir a construção dinâmica e
continuada de sua constituição como sujeito, agora afásico, inserido em seu grupo social.
Palavras-chave: Inclusão, Afasia, Linguagem.
vii
ABSTRACT
Adopting the historical-cultural perspective (VYGOTSKY, 1998) and discursive theory
(BAKHTIN, 2000), I have oriented my research interests to the constitution of the subject in
aphasia. Due to the belief that it is through the language that the human being give meaning to
the people around to their actions and the world, as well as give meaning to themselves through
their relation with others we developed this study which thinks the social inclusion in the language
reconstruction process and in the subject constitution in aphasia, through their sayings. To
accomplish such research, interaction situations of a speech therapy group of aphasic subjects
were registered, through video recording and transcription. The group had as objective to explore
aspects that constitute the language functioning in its different configurations, its constitution
mechanism and its social value, as well as to explore aspects of linguistic praxis operations.
From the transcription of the facts, passages from their sayings, which attend to the research’s
purposes, were selected. The analyses of their sayings led to the establishment of the following
thematic units: 1) the familiar group / the social group; 2) changes in their selves image; 3) the
facing of dailies difficulty; 4) the language and the construction of anew image of their selves.
The findings showed that, through the signification, accomplished by dialogue interaction and
by the other, it is possible to the subject recognize him/her self and the other facing up to his/her
new condition and continue the dynamic and on going construction as a now aphasic subject,
insert in his/her social group.
Key-words: Inclusion, Aphasia, Language.
viii
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ........................................................................................................... iv
EPÍGRAFE.............................................................................................................................. vi
RESUMO................................................................................................................................ vii
ABSTRACT .......................................................................................................................... viii
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 10
CAPÍTULO I ......................................................................................................................... 12
LINGUAGEM E SUBJETIVIDADE .................................................................................. 12
As contribuições de Bakhtin ................................................................................................. 13
As contribuições de Vygotsky ............................................................................................... 19
CAPÍTULO II........................................................................................................................ 26
O SUJEITO AFÁSICO ......................................................................................................... 26
A afasia do sujeito afásico ..................................................................................................... 28
Repercussões da afasia na vida do sujeito afásico .............................................................. 32
CAPÍTULO III ...................................................................................................................... 41
UM ESTUDO SOBRE A INCLUSÃO SOCIAL NO PROCESSO DE
RECONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA
AFASIA: CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS........................................................ 41
O grupo terapêutico-fonoaudiológico .................................................................................. 42
Os sujeitos participantes do grupo....................................................................................... 47
O método da coleta de dados ................................................................................................ 51
CAPÍTULO IV....................................................................................................................... 52
DIÁLOGOS COM SUJEITOS AFÁSICOS........................................................................ 52
O grupo familiar/grupo social .............................................................................................. 53
Mudanças na imagem de si mesmo ...................................................................................... 58
O enfrentamento das dificuldades cotidianas ..................................................................... 63
A linguagem e a construção de uma nova imagem de si mesmo........................................ 70
CAPÍTULO V ........................................................................................................................ 82
CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE A INCLUSÃO SOCIAL NO PROCESSO DE
RECONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA
AFASIA................................................................................................................................... 82
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 86
APRESENTAÇÃO
Durante a graduação, no curso de Fonoaudiologia da Universidade de Fortaleza,
várias vezes me questionei sobre a forma como se falava do sujeito afásico. A concepção teórica
adotada no curso partia de uma visão extremamente orgânica e me inquietava ver o sujeito
afásico tratado como alguém que havia perdido várias de suas habilidades e de quem não se
poderia esperar muito. Desta maneira, aquele sujeito passava a ser um “portador de sua seqüela
– a afasia”. Eu procurava encontrar o ser humano, complexo, não só com a sua “deficiência”,
mas com todas as suas possibilidades de desenvolvimento e realizações.
O interesse pela área me fez buscar novos conhecimentos, que me levaram a fazer o
mestrado. Através dos estudos e do aprofundamento na questão, confrontei-me com visões
diferentes acerca do tratamento dado ao tema afasia e com autores como Coudry (2001), Fonseca
(1995), Morato (2002), Novaes Pinto (1999) e Tubero (1996) que, baseados na teoria histórico-
cultural (VYGOTSKY) e enunciativo-discursiva (BAKHTIN), enfatizaram o importante papel
exercido pela linguagem para a inclusão social do sujeito afásico.
Busquei então olhar para o que os sujeitos afásicos dizem quanto à percepção de si e
de sua inserção social; como os sujeitos afásicos se reconhecem em relação aos outros e como
circulam por esferas da cultura no grupo terapêutico-fonoaudiológico.
Considero que pensar no processo de reconstrução da linguagem e da
subjetividade do sujeito afásico em seu grupo social é um passo importante que modifica a
atuação da clínica fonoaudiológica, pois o grupo cria condição importante para a inserção
social do sujeito afásico.
Dada a importância da linguagem e da subjetividade para a constituição do sujeito
afásico e sua inserção social, é que no primeiro capítulo os temas linguagem e subjetividade
foram desenvolvidos com base em Bakhtin e Vygotsky, e nos autores que discutem tais questões,
11
relacionando-as à afasia. Consideramos que é por meio da linguagem que o ser humano significa
as ações, as pessoas e o mundo, e significa a si mesmo através das interações dialógicas
estabelecidas com o outro social.
No segundo capítulo, abordamos a afasia do “sujeito afásico”, com sua definição,
causas e classificação, além das repercussões da afasia na vida do sujeito afásico. Tais aspectos
mereceram destaque uma vez que o sujeito em foco é o sujeito afásico e, assim, é de extrema
importância entendermos o que se passa com esse sujeito, que seqüela é essa que o acomete e
sua repercussão na vida desse sujeito e dos que o cercam.
Para melhor contextualizar a pesquisa, é que no terceiro capítulo explicitamos a
metodologia de pesquisa, discutindo os pressupostos para as análises, as características do grupo
terapêutico-fonoaudiológico e dos sujeitos afásicos participantes, bem como as formas de
construção dos dados e análises realizadas.
No quarto capítulo, apresentamos as situações interacionais, os diálogos com sujeitos
afásicos e suas análises baseadas nos objetivos e nos autores que norteiam esta pesquisa.
Finalmente, no quinto capítulo, tecemos algumas reflexões sobre a inclusão social
no processo de reconstrução da linguagem e constituição do sujeito na afasia.
CAPÍTULO I
LINGUAGEM E SUBJETIVIDADE
Neste estudo, consideramos que a linguagem tem um lugar central na constituição
dos sujeitos. Compreendemos que o aspecto social é condição essencial para a capacidade de
simbolização e é através da interação social que as ações e objetos vão se impregnar de significados
e sofrerão transformações qualitativas que resultam em processo de simbolização. Tal concepção
de linguagem diferencia este estudo daqueles que tratam a afasia focalizados em características
orgânicas, que geralmente visam avaliar e diagnosticar as perdas das capacidades relacionando-
as ao local e à amplitude da lesão.
Identificamos a linguagem como uma atividade constitutiva dos sujeitos e as raízes
teóricas, que orientam esta pesquisa, estão fundamentadas nas concepções de Vygotsky e Bakhtin
cujos pressupostos teóricos nos ajudam a entender o processo, dialógico e social, de construção
da linguagem e da subjetividade dos sujeitos cérebro-lesados.
Assim, este estudo baseia-se nos pressupostos teóricos da perspectiva histórico-
cultural (VYGOTSKY, 1998) e enunciativa-discursiva (BAKHTIN, 2000). Consideramos que
as idéias desses dois pesquisadores se articulam na medida em que ambos sustentam que o
homem se constitui como um ser social e da cultura por meio da linguagem.
Entendemos por (re)(co)construção da linguagem, a construção da linguagem conjunta
com outros sujeitos, através do diálogo, por isso usamos (co); e dizemos que é (re) pelo fato do
sujeito já trazer uma história, uma linguagem que foi abruptamente abalada e que agora será
construída a partir de outras características e de outras marcas.
A perspectiva histórico-cultural proposta por Vygotsky (1998) considera a linguagem
como tendo papel central no desenvolvimento humano, pois é na/pela/sobre a linguagem que se
torna possível significar o mundo, as ações e as pessoas. É na linguagem que o ser humano
constitui-se como humano na sua relação com o outro social.
13
A perspectiva enunciativa-discursiva proposta por Bakhtin (2000) aponta para a
natureza dialógica da linguagem; pois, através do diálogo, os diferentes sentidos são construídos
ao longo da história dos sujeitos.
As dificuldades apresentadas pelos sujeitos afásicos na sua relação com o outro
social trazem conseqüências para o processo de construção da subjetividade desse sujeito; já que
é através das interações sociais estabelecidas que o sujeito se auto-identifica através do
reconhecimento de si pelo outro.
Propomos neste trabalho olhar para a construção da linguagem e constituição da
subjetividade de sujeitos afásicos, adotando de Bakhtin (2000) considerações importantes para a
análise da linguagem, e de Vygotsky (1998), aspectos relevantes para a análise das inter-relações,
relacionando grupo, linguagem e subjetividade. Outros autores como Morato (2002), Coudry
(2001), Novaes Pinto (1999) serão abordados, já que esses autores discutem a afasia pautando-
se nas teorias histórico-cultural de Vygotsky e enunciativa-discursiva de Bakhtin, o que permite
um diálogo interessante para este estudo.
Não temos a pretensão aqui de dar conta da multiplicidade de conceitos e idéias que
envolvem a afasia e o sujeito afásico, mas sim trazer algumas contribuições para a compreensão
da construção da linguagem e constituição da subjetividade à luz destas teorias.
Falar de subjetividade significa falar também de sujeito. Vários são os autores que
fazem uso de tais termos em seus escritos, e muitas vezes as contribuições são provenientes de
campos diversos do conhecimento.
As contribuições de Bakhtin
Trazemos aqui alguns pontos da perspectiva enunciativa-discursiva, propostos por
Bakhtin, que traz em sua obra conceitos importantes que nos ajudam a entender o processo de
constituição da subjetividade, próprios da linguagem de sujeitos afásicos.
14
Na concepção de linguagem de Bakhtin (2000), uma das categorias básicas de seu
pensamento é o dialogismo. Bakhtin (2000) tenta, assim, compreender como se dá o diálogo,
não só e apenas entre duas pessoas.É a partir desse conceito, o de dialogia, que Bakhtin vai
desenvolver os conceitos de enunciado, polifonia, excedente de visão, contrapalavras, e a própria
noção de sujeito.
Para Bakhtin (2000), o conceito de enunciado “não é uma unidade convencional,
mas uma unidade real” da comunicação verbal. Assim, para ele, “a fala só existe, na realidade,
na forma concreta dos enunciados de um indivíduo” e, portanto “o discurso se molda sempre à
forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma”.
Além disso, para Bakhtin (2000), a alternância dos sujeitos falantes determina as
fronteiras do enunciado concreto, ou seja, a unidade da comunicação verbal. Nas suas palavras:
Todo enunciado – desde a breve réplica (monolexemática) até o romance ou o
tratado científico – comporta um começo absoluto e um fim absoluto: antes de
seu início, há os enunciados dos outros, depois de seu fim, há os enunciados-
respostas dos outros (ainda que seja uma compreensão responsiva ativa do
outro). O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real,
estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes, e que termina
por uma transferência da palavra ao outro, por algo como um mundo “dixi”
percebido pelo ouvinte, como sinal de que o locutor terminou (BAKHTIN,
2000, p.293-294).
Os conceitos de enunciado e unidade de comunicação verbal são fundamentais para
este estudo, pois trazem contribuições relevantes para a compreensão do interior do processo
dialógico. A expressão dos sujeitos afásicos deste estudo e a interpretação de seus interlocutores
mostram como os enunciados são delimitados na alternância entre os sujeitos.
Para o autor, os conceitos de enunciado e acabamento estão ligados, pois “cada
réplica, por mais breve e fragmentária que seja, possui um acabamento específico, que expressa
a posição do locutor, sendo possível responder, sendo possível tomar, com relação a essa réplica,
uma posição responsiva” (BAKHTIN, 2000, p.294).
15
Para Bakhtin, o acabamento do enunciado “é de certo modo a alternância dos
sujeitos falantes visto do interior; essa alternância ocorre precisamente porque o locutor disse
(ou escreveu) tudo o que queria dizer num preciso momento e em condições precisas”
(BAKHTIN, 2000, p.299). O acabamento é, então, o interlocutor quem dá, pois ele tem “a
possibilidade de responder – mais exatamente – de adotar uma atitude responsiva para com
ele” (BAKHTIN, 2000, p. 299). Assim, “é necessário o acabamento para tornar possível uma
reação ao enunciado”.
No entanto,
a totalidade acabada do enunciado que proporciona a possibilidade de
responder (de compreender de modo responsivo) é determinada por três
fatores indissociavelmente ligados no todo orgânico do enunciado – 1) o
tratamento exaustivo do objeto do sentido; 2) o intuito, o querer-dizer do
locutor; 3) as formas típicas de estruturação do gênero do acabamento
(BAKHTIN, 2000, p. 299).
A expressão do sujeito afásico, bastante reduzida e freqüentemente ininteligível do
ponto de vista lingüístico, pode dar margem a uma compreensão equivocada de seu intuito
discursivo, o que certamente interfirirá na resposta e no acabamento do enunciado.
Bakhtin diz que o enunciado é
marcado pelas circunstâncias individuais, pelos parceiros individualizados e
suas intervenções anteriores. É por isso que os parceiros diretamente implicados
numa comunicação, conhecedores da situação e dos enunciados anteriores,
captam com facilidade e prontidão o intuito discursivo, o querer-dizer do
locutor, e, às primeiras palavras do discurso, percebem o todo de um enunciado,
em processo de desenvolvimento (BAKHTIN, 2000, p.300).
Segundo esse autor, “em qualquer enunciado (...) captamos, compreendemos,
sentimos o intuito discursivo ou o querer-dizer do locutor que determina o todo do enunciado:
sua amplitude, suas fronteiras” (BAKHTIN, 2000, p.300). É através desse querer-dizer, ou intuito
discursivo que iremos dar o nosso acabamento ao enunciado do outro.
16
Nesse sentido, Novaes Pinto (1999) refere que numa interação dialógica com sujeitos
afásicos tentamos dar um acabamento aos seus enunciados, na tentativa de ajudá-los a chegar o
mais próximo possível de seu querer-dizer. No entanto, nada garante que a interpretação dada
seja aquilo que o afásico queria dizer.
Para Bakhtin (2000), todo enunciado é dialógico, mesmo quando o interlocutor não
está presente como quando um sujeito está falando consigo mesmo. Dessa forma, é somente
através do processo dialógico, das interações sociais que se dá a constituição do sujeito.
Bakhtin diz que “é no diálogo real que a alternância dos sujeitos falantes é
observada de modo mais direto e evidente; os enunciados dos interlocutores (parceiros do
diálogo) a que chamamos de réplicas alternam-se regularmente nele”. Assim, “o diálogo,
por sua clareza e simplicidade, é a forma clássica da comunicação verbal” (BAKHTIN,
2000, p. 294).
Segundo Novaes Pinto (1999), os sujeitos afásicos, pelo impacto da patologia, pela
impossibilidade de utilizar a linguagem da mesma forma que os sujeitos não afásicos, estão mais
condicionados aos fatores lingüísticos e contextuais, e, por isso, são mais dependentes dos
enunciados dos seus interlocutores do que os sujeitos não afásicos para expressar seu querer-
dizer. Porém, há momentos em que o sujeito afásico “olha-se de fora” para formular seu dizer, e
essa é uma das condições em que se realiza a subjetividade. Essa possibilidade – a de olhar-se de
fora – atua em sentido favorável ao reconhecimento da dificuldade.
A partir disso, podemos afirmar que a possibilidade de “olhar-se de fora” é facilitada
pelos sujeitos integrantes do grupo e pelas terapeutas, proporcionando o reconhecimento de si
através do olhar do outro e assim a construção da subjetividade.
A noção de sujeito em Bakhtin (2000) é explicada através de outros conceitos
desenvolvidos por ele, como contrapalavra, já-dito, polifonia e dialogia, já que o sujeito é
17
constituído por diversas vozes. Assim, o sujeito, para Bakhtin (2000), é um sujeito histórico,
ideológico, dialógico e polifônico.
Nesse sentido, Novaes Pinto, fundamentada em Bakhtin afirma que,
toda vez que me expresso usando signos lingüísticos, eles não são meus, são
também de outros. Portanto, toda a expressão lingüística é de natureza dialógica.
A heterogeneidade do sujeito, constituída por múltiplas vozes, faz com que
muitos estudiosos postulem o seu assujeitamento. Apesar de ser a linguagem
polifônica e heterogênea, em Bakhtin, a noção de sujeito assujeitado não
procede, pois a heterogeneidade é uma característica não só da constituição
do “eu”, mas também do “outro”. O “outro” também é constituído por vários
“outros”, e assim sucessivamente, numa cadeia infinita de elos de “outros”.
Mesmo constituído dessa forma, o sujeito se diferencia dos demais pelo
conjunto de suas contra-palavras, que tem origens sempre diversas entre os
indivíduos. Esse fato possibilita sempre uma nova interpretação do já dito,
possibilita uma nova significação para uma mesma forma. Cada novo enunciado
tem as marcas individuais dos sujeitos (NOVAES PINTO, 1999, p.168-169).
Bakhtin (2000, p. 290) afirma que, na lingüística, persistem funções tais como o
“ouvinte” e o “receptor”. Para ele, tais funções dão uma imagem totalmente distorcida do complexo
da comunicação verbal, e, são ainda, consideradas como “ficção científica”. A esse respeito
Bakhtin (2000) explica que toda compreensão de um enunciado é sempre uma atitude responsiva
ativa, pois “toda compreensão é prenhe de resposta”.
Na atitude responsiva ativa, o ouvinte
(...) concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se
para executar, etc., e esta atitude do ouvinte está em elaboração constante durante
todo o processo de audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes
já nas primeiras palavras emitidas pelo locutor (...) (BAKHTIN, 2000, p.290).
(...) a compreensão responsiva ativa do que foi ouvido (por exemplo, no caso
de uma ordem dada) pode realizar-se diretamente com um ato (a execução da
ordem compreendida e acatada), pode permanecer, por certo lapso de tempo,
compreensão responsiva muda (certos gêneros do discurso fundamentam-se
apenas nesse tipo de compreensão, como, por exemplo, os gêneros líricos),
mas, neste caso, trata-se, poderíamos dizer, de uma compreensão responsiva
de ação retardada: cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo
ativo encontrará um eco no discurso ou no comportamento subseqüente do
ouvinte (...) (BAKHTIN, 2000, p.291).
18
Desta forma, a compreensão responsiva “nada mais é senão a fase inicial e preparatória
para uma resposta (seja qual for a forma de sua realização)” (BAKHTIN, 2000, p.291).
Ainda, segundo Bakhtin, nas figuras esquemáticas da lingüística geral, “o ouvinte
dotado de uma compreensão passiva não corresponde ao protagonista real da comunicação verbal”
(BAKHTIN, 2000, p.291), ficando o papel ativo do outro minimizado ao extremo.
A noção de excedente de visão está profundamente relacionada à condição de sujeito
em Bakhtin (2000) e à própria condição dialógica que constitui esse sujeito. Para este autor, o
que vemos é determinado pelo lugar de onde vemos.
A capacidade dos sujeitos para interpretar os fatos ao seu redor depende do seu
excedente de visão. Assim,
o excedente de minha visão, com relação ao outro, instaura uma esfera particular
da minha atividade, isto é, um conjunto de atos internos ou externos que só eu
posso pré-formar a respeito desse outro e que o completam justamente onde
ele não pode completar-se. Esses atos podem ser infinitamente variados em
função da infinita diversidade das situações em que a vida pode colocar-nos, a
ambos, num dado momento. (...) Devo identificar-me com o outro e ver o
mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me
no seu lugar, e depois, de volta ao meu, completar seu horizonte com tudo o
que, se descobre com o lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-
lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu
saber, de meu desejo e de meu sentimento (BAKHTIN, 2000, p.44).
Segundo Novaes Pinto (1999, p. 173), “o conceito de excedente de visão contribui
para a reflexão a respeito da prática terapêutica com sujeitos afetados por qualquer tipo de
patologia. O lugar que ocupamos enquanto interlocutores de sujeitos afásicos é, de certa forma,
único”
se considerarmos o papel privilegiado que a linguagem tem em nossa sociedade,
bem como a sua importância na constituição da subjetividade do ser humano.
Lidamos com um sujeito estigmatizado pela sociedade. O sujeito cérebro-
lesado fica limitado pela afasia, e não apenas a (aspectos de) sua capacidade
de compreender ou de se expressar: o afásico vê desaparecer boa parte daquilo
19
que podia dar-lhe importância ou prestigio, vê sua renda e posição social
diminuírem consideravelmente, e, com freqüência, fica impossibilitado de
exercer, como fazia anteriormente, seus papéis familiares e sociais (Morato,
2002).
Para Bakhtin, adquirimos a língua e suas formas através do uso efetivo da língua
com os outros indivíduos que nos rodeiam. Assim, “aprender a falar é aprender a estruturar
enunciados” (BAKHTIN, 2000, p. 302).
Desta forma, os sujeitos afásicos necessitam de contextos sociais em que possam
reestruturar, reconstruir não só sua linguagem como também sua subjetividade. Daí a importância
do grupo terapêutico-fonoaudiológico como contexto facilitador para a reconstrução da linguagem
e constituição da subjetividade.
Nessa linha de raciocínio, afirma-se que a reconstrução da subjetividade é tema que
não pode ser desconsiderado pela atuação fonoaudiológica, já que é através da linguagem que o
sujeito significa o mundo, as ações, as pessoas. Assim, é na linguagem que o ser humano constitui-
se como humano na sua relação com o outro social.
As contribuições de Vygotsky
Alguns autores da Psicologia se interessam pelos processos de constituição de sujeitos.
Neste sentido, pretendemos trazer aspectos da abordagem histórico-cultural, propostos por
Vygotsky (1998), que nos podem ajudar a compreender a constituição do sujeito. O estudo das
idéias de Vygotsky articula-se com as de Bakhtin e nos ajudaram neste estudo a compreender o
processo de funcionamento humano.
Vygotsky realizou estudos sobre a relação pensamento e linguagem, as funções
mentais superiores, formação de conceitos etc. Nesses estudos, é possível depreender o modo
como o autor compreende a construção da subjetividade humana.
20
De acordo com as proposições de Vygotsky (1998), o desenvolvimento ocorre do
plano intersubjetivo – plano da relação com o outro – para o intra-subjetivo. O plano intra-
subjetivo não é preexistente, mas criado a partir das relações estabelecidas com o meio.
A linguagem ocupa papel central no desenvolvimento humano, pois é na linguagem
que se torna possível significar o mundo, as ações, as pessoas e, é partindo dessas significações
que podemos construir sempre novos conhecimentos. Através da linguagem, podemos modificar
o mundo e ser modificados por ele.
O desenvolvimento das funções psicológicas superiores é visto por Vygotsky como
processo que sofre transformações qualitativas fundamentais associadas às mudanças nos signos.
Dessa maneira, as formas de mediação, progressivamente mais complexas, permitem ao ser
humano realizar operações cada vez mais complexas sobre os objetos.
É na/pela linguagem que se podem construir conhecimentos. É aquilo que é dito,
comentado, pensado pelo sujeito e pelo outro, nas diferentes situações, que faz com que conceitos
sejam generalizados, relacionados, gerando processos de construção de conceitos que vão
interferir, de maneira contundente, nas novas experiências que esse sujeito venha a ter.
Na perspectiva de Vygotsky, o sujeito não possui funções internas que garantam,
sozinhas, o desenvolvimento. O simples contato com objetos também não possibilita o
desenvolvimento; pelo contrário, é nas relações sociais que o desenvolvimento ocorre. Essas
“ações” contribuem para a constituição dos sujeitos e neles interferem significativamente.
Molon, (2003), propôs a discussão da subjetividade e constituição do sujeito a partir
das considerações de Vygotsky. Para isso, realiza uma leitura detalhada da obra do autor, de
alguns dos seus seguidores e entrevista especialistas da área.
Segundo Molon, Vygotsky entra na psicologia interessado na compreensão da
constituição do sujeito inserido numa determinada cultura.
21
Especificamente em nosso trabalho, buscamos compreender a constituição do sujeito
afásico, inserido num grupo terapêutico-fonoaudiológico; nesse sentido, parece-nos muito
oportuno recorrer à obra de Vygotsky, já que esse valoriza o meio social e a singularidade como
pontos fundamentais para a constituição dos sujeitos.
Para compreender a subjetividade nesse autor, Molon introduz as diferentes leituras
de Vygotsky, enfocando diversas possibilidades de análise da constituição da subjetividade e do
sujeito. Explora dois conceitos presentes em sua obra: a noção de consciência e a noção da
relação constitutiva EU-OUTRO.
Para explicar o que é a noção de consciência Vygotsky (2004) começa falando sobre
o comportamento e afirma que o comportamento humano compõe-se de reações (os reflexos
inatos ou não-condicionados e os adquiridos ou condicionados), da experiência histórica, da
experiência social e da experiência duplicada.
Sobre as reações Vygotsky diz:
Os reflexos inatos constituem algo assim como o extrato biológico da
experiência hereditária coletiva de toda a espécie e os adquiridos surgem sobre
a base dessa herança hereditária através do fechamento de novas conexões,
obtidas na experiência particular do indivíduo (VYGOTSKY, 2004, p. 64).
Para ele, a experiência histórica
toda nossa vida, o trabalho, o comportamento baseiam-se na utilização muito
ampla de experiência das gerações anteriores, ou seja, de uma experiência que
não se transmite de pais para filhos através do nascimento (VYGOTSKY,
2004, p. 65).
Já a experiência social é a experiência de outras pessoas. E a experiência duplicada
é aquela que permite ao homem desenvolver formas de adaptação ativa. “O homem adapta
ativamente o meio a si mesmo” (VYGOTSKY, 2004, p. 65).
22
Para compreender por que a consciência é como um mecanismo do comportamento,
Vygotsky diz que a consciência é como um “filtro”, um “funil”, e “dentro do funil, têm lugar
uma luta e um enfrentamento ininterruptos; todas as excitações saem em número muito reduzido
pelo orifício estreito, sob forma de reações de resposta do organismo” (VYGOTSKY, 2004, p.
69). Assim, “o comportamento que se realizou é uma parte insignificante dos comportamentos
possíveis” (VYGOTSKY, 2004, p. 69) e “a consciência tem um papel regulador em relação ao
comportamento”.
Assim, para Vygotsky, a base da consciência é “a capacidade que tem nosso corpo de
se constituir em excitante (através de seus atos) de si mesmo (e diante de outros novos atos)”
(VYGOTSKY, 2004, p. 71).
Podemos dizer então, de acordo com Vygotsky, que a consciência é “interação, reflexão,
excitação recíproca de diferentes sistemas de reflexão” (VYGOTSKY, 2004, p. 71-72).
Vygotsky afirma ainda que a consciência tem uma natureza tripla social que é formada
pelo sentimento, pensamento e vontade, em que a vontade é o mecanismo de partida e de execução,
“pensei em fazê-lo e o fiz” (VYGOTSKY, 2004, p. 80). E esses (sentimento, pensamento e
vontade) são constituídos no contexto ideológico, psicológico e cultural.
Existe no homem um grupo de reflexos excitantes que podem ser criados pelo homem,
que são os reflexos reversíveis. Esses reflexos “criam a base do comportamento social, servem
de coordenação coletiva do comportamento” (VYGOTSKY, 2004, p. 81). Dentro do grupo desses
reflexos, os excitantes, há o dos excitantes sociais, que provêm das pessoas.
Assim, “é na linguagem que se encontra precisamente a fonte do comportamento
social e da consciência” (VYGOTSKY, 2004, p. 81). “A linguagem é, por um lado, um sistema
de reflexos de contato social e, por outro lado, preferencialmente um sistema de reflexos da
consciência, isto é, um aparelho de reflexos de outros sistemas” (VYGOTSKY, 2004, p. 81).
23
Dessa forma, para Vygotsky (2004), é aqui que está a raiz do “eu” alheio. O mecanismo
do conhecimento de si mesmo (autoconhecimento) e do outro é o mesmo.
Para ele:
Temos consciência de nós mesmos porque o temos dos demais e pelo mesmo
procedimento através do qual conhecemos os demais, porque nós mesmos em
relação a nós mesmos somos o mesmo que os demais em relação a nós. Tenho
consciência de mim mesmo somente na medida em que para mim sou outro,
ou seja, porque posso perceber outra vez os reflexos próprios como novos
excitantes. Disso se conclui que o reconhecimento, a prioridade temporal e
efetiva pertencem à vertente social e à consciência. A vertente individual se
constrói como derivada e secundária sobre a base do social e segundo seu
exato modelo (VYGOTSKY, 2004, p. 82).
Para Molon:
Ser reconhecido pelo outro é ser constituído em sujeito pelo outro, na medida
em que o outro reconhece o sujeito como diferente e o sujeito reconhece o
outro como diferente. Eu me torno o outro de mim e me constituo a partir do
outro. Então, subjetividade significa uma permanente constituição do sujeito
pelo reconhecimento do outro e do eu (MOLON, 2003, p.120).
A autora afirma ainda que:
O eu não é sujeito, é constituído sujeito em uma relação constitutiva eu-outro
no próprio sujeito, essa relação é imprescindível para a constituição do sujeito,
já que, para se constituir, precisa ser outro de si mesmo. É necessário o
reconhecimento do outro como eu, alheio nas relações sociais, e o
reconhecimento do outro como eu próprio, na conversão das relações
interpsicológicas em relações intrapsicológicas; mas nesta conversão, que não
é mera reprodução, mas reconstituinte de todo processo envolvido, há o
reconhecimento do eu-alheio e do eu-próprio e, também, o conhecimento como
autoconhecimento e o conhecimento do outro como diferente de mim
(MOLON, 2003, p.112).
Este reconhecimento EU-OUTRO ocorre através da interação entre os sujeitos.
Contudo, a autora argumenta que:
(...) o conceito de interação que significa ação partilhada, conjunta, recíproca
e pressupõe a presença imediata do outro não dá conta das relações sociais
24
múltiplas, contraditórias e abrange uma infinidade de possibilidades de
objetivações (MOLON, 2003, p.135).
Se pensarmos no que ocorre com os sujeitos afásicos, veremos que as interações
sociais se modificam completamente e, na maioria das vezes, o sujeito afásico passa a ser falado
pelo outro. Ele passa a não ser reconhecido pelo outro como um sujeito ativo. Dessa forma, ele
não é mais sujeito da/na linguagem, sujeito que se reconhece através do olhar do outro, e passa
a se constituir como sujeito desacreditado e passivo. Torna-se, então, um desafio concretizar
relações satisfatórias entre os sujeitos afásicos e os outros, permitindo que, através dessas relações,
os sujeitos afásicos se constituam enquanto sujeitos da/na linguagem.
No grupo terapêutico-fonoaudiológico, as relações que os sujeitos afásicos
estabelecem são com sujeitos que são semelhantes no sentido de que possuem os mesmos
problemas de linguagem (afasia), mas, são também heterogêneas, pois cada um é um sujeito
singular. São sujeitos que não têm as mesmas vivências lingüísticas com o outro social. A vivência,
as experiências efetivamente partilhadas com o outro social ficam restritas a momentos em que
a comunicação é estabelecida satisfatoriamente. Nesse sentido, o grupo terapêutico-
fonoaudiológico passa a ser um contexto acolhedor, onde há a vivência da língua, tão rica e
importante para os sujeitos.
Uma vez que o sujeito é constituído nas e pelas relações sociais, pretendemos
pensar como se dá o processo de constituição da subjetividade de um sujeito afásico integrante
de um grupo terapêutico-fonoaudiológico e os efeitos que essa rede de relações pode ter na
constituição da subjetividade desse sujeito dentro e fora do grupo, influenciando assim no
processo de inclusão social.
É a partir das idéias apresentadas neste capítulo sobre a constituição da subjetividade
que pretendemos analisar a situação aqui problematizada. Abordamos um sujeito afásico marcado
e afetado pela sociedade, pelas relações estabelecidas com o outro social, que, na maioria das
vezes, é nula. Por ser um assunto ainda pouco explorado, nos valeremos da ajuda de Bakhtin e
25
Vygotsky para pensar a reconstrução da linguagem e constituição da subjetividade do sujeito
afásico no grupo terapêutico-fonoaudiológico.
Não estaremos desconsiderando o papel representado pela família, amigos e pessoas
próximas na constituição desses sujeitos. Todavia, estaremos focalizando aqui a vivência num
grupo terapêutico-fonoaudiológico que, por sua singularidade, parece-nos um ambiente rico para
a reconstituição do sujeito.
CAPÍTULO II
O SUJEITO AFÁSICO
Pretendemos refletir neste estudo sobre aspectos específicos da inclusão social de
sujeitos afásicos, tomando a linguagem e a constituição do sujeito como pontos centrais de
nossa reflexão. A linguagem será discutida a partir das teses centrais de autores que fundamentam
esse estudo, pois é, principalmente por meio da linguagem, que o ser humano se torna sujeito
social, interagindo e significando o mundo. A linguagem vista dessa maneira, segundo Bakhtin
e Vygotsky, é considerada um “instrumento e modo de existência de inclusão social” pelo qual
os sujeitos se inscrevem nas práticas sociais. Assim, para participar da vida em sociedade, o
sujeito tem de assumir seu papel social e ser sujeito da e na linguagem.
O sujeito afásico sofre uma mudança brusca nas relações com o seu grupo social.
Seu papel familiar, sua autonomia, seu funcionamento e passa a ser visto e falado, de uma maneira
diferente, pelos outros. Em certo sentido, num primeiro momento, tudo aquilo que ele era continua
sendo procurado pelos outros e por ele mesmo; mas, na maioria das vezes, não é encontrado. Por
exemplo, se ele era o chefe da família, aquele que sustentava a casa e que, portanto tinha sob seu
comando a autoridade de quem tem o controle financeiro, muitas vezes depois da afasia, deixa
de ocupar essa posição, e outro membro da família passa a fazê-lo. Da mesma maneira, sua
linguagem freqüentemente é afetada a ponto de impossibilitá-lo de usá-la, vendo-se, muitas
vezes, impedido de ocupar a posição de sujeito da linguagem. Se considerarmos que o sujeito se
constitui à medida que o outro atribui sentido a suas palavras e ações e, portanto, os interlocutores
têm um papel essencial no funcionamento intrapsicológico de cada um e na formação da
consciência individual, isso coloca o sujeito afásico numa posição de exclusão social.
Relacionando a situação vivida pelo sujeito após a afasia com os pressupostos teóricos
deste estudo, podemos imaginar o quanto suas dificuldades de comunicação vão impossibilitar
suas interações com as outras pessoas e acarretar sua exclusão social. Fundamentados na
abordagem histórico-cultural, podemos entender a situação de exclusão vivida pelos sujeitos
27
afásicos, que, numa sociedade apoiada no modelo capitalista, não deixa espaço para a valorização
desses sujeitos no grupo. É óbvio que, se o sujeito não é valorizado pelo grupo social com quem
convive, e, se o outro não lhe atribui um papel significativo nesse meio, dificilmente ele estará
incluído. Para superar essa exclusão, é necessária uma mudança na visão de todo o grupo incidindo
sobre o valor que cada sujeito atribui a si mesmo.
Neste trabalho acreditamos que:
Todos estamos inseridos de algum modo, nem sempre decente e digno, no
circuito reprodutivo das atividades econômicas, sendo a grande maioria da
humanidade inserida através da insuficiência e das privações, que se desdobram
para fora do econômico (SAWAIA, 2006, p. 8).
Além disso, concordando com o autor supracitado, acreditamos que “em lugar da
exclusão, o que se tem é a dialética exclusão/inclusão” (SAWAIA, 2006, p. 8).
Para o autor,
a dialética inclusão/exclusão gesta subjetividades específicas que vão desde o
sentir-se incluído até o sentir-se discriminado ou revoltado. Essas subjetividades
não podem ser explicadas unicamente pela determinação econômica, elas
determinam e são determinadas por formas diferenciadas de legitimação social
e individual, e manifestam-se no cotidiano, como identidade, sociabilidade,
afetividade, consciência e inconsciência (SAWAIA, 2006, p. 9).
O autor afirma ainda que
a exclusão é processo complexo e multifacetado, uma configuração de
dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e
dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela.
Não é uma coisa ou um estado, é processo que envolve o homem por inteiro e
suas relações com os outros. Não tem uma única forma e não é uma falha no
sistema, devendo ser combatida como algo que perturba a ordem social, ao
contrário, ele é produto do funcionamento do sistema (SAWAIA, 2006, p. 9).
Assim, o sujeito afásico também está, como todos os outros sujeitos, num processo
constante de inclusão/exclusão. Porém, o sujeito afásico, devido ao seu problema de linguagem,
28
tem uma dificuldade maior de se encontrar nesse processo, pois ele não se reconhece como
sujeito, agora afásico, o que o faz se excluir, na maioria das vezes, da comunidade em que vive.
Ser excluído é “ser aquele que não é reconhecido como sujeito, que é estigmatizado,
considerado nefasto ou perigoso à sociedade”. O autor considera, entretanto, que “uma categoria
social ou grupo não pode ser reconhecido como sujeito, se não se reconhece a si mesmo como
sujeito e não atua como sujeito” (MARTINS, 1997 apud VERÁS, 2006, p. 48).
A afasia do sujeito afásico
Neste trabalho, tomamos como referência o sujeito afásico e não a afasia, pois
consideramos que o sujeito não é um mero portador de seus sintomas, mas uma pessoa inteira,
com todas suas peculiaridades. Dessa forma, estamos considerando as modificações da vida
pessoal e interpessoal do sujeito em decorrência de uma lesão cerebral, os “déficits” que ela
provoca e as conseqüências desses “déficits”.
Apesar de nossa preocupação não ser a afasia propriamente dita, mas o sujeito que
apresenta uma afasia; consideramos importante abordar alguns conceitos freqüentemente
utilizados quando nos referimos ao sujeito afásico.
Segundo Coudry (2001), a afasia se caracteriza por uma alteração da linguagem em
todos os níveis, tanto do seu aspecto produtivo (relacionado com a produção de fala), quanto
interpretativo (relacionado com a compreensão).
Assim, “um sujeito é afásico quando, do ponto de vista lingüístico, o funcionamento de sua
linguagem prescinde de determinados recursos de produção ou interpretação” (COUDRY, 2001. p.5).
É causada por lesão focal adquirida no sistema nervoso central, em zonas responsáveis
pela linguagem, em virtude de acidentes vasculares cerebrais (AVCs) isquêmico ou hemorrágico,
traumatismos crânio-encefálicos (TCEs) e tumores cerebrais.
29
Segundo Mac-Kay, “de forma bastante resumida, podemos citar as causas mais
freqüentes das afasias como: vasculares, infecciosas, traumáticas, anóxicas, metabólicas,
idiopáticas, neoplásticas, degenerativas, desmielinizantes” (MAC-KAY, 2003, p. 51).
Segundo Morato:
A afasia pode ou não se associar a alterações de outros processos cognitivos e
sinais neurológicos, como hemiplegia (paralisia de um dos lados do corpo),
apraxia (distúrbio da gestualidade), agnosia (distúrbio do reconhecimento),
anosognosia (falta de consciência do problema por parte do sujeito afásico)
etc (MORATO, 2002, p. 16)
A qualidade de vida do sujeito afásico, após o dano cerebral, dependerá do grau de
extensão e importância do comprometimento lesional, da etiologia da afecção e das características
do próprio sujeito e será proporcional à intensidade do impacto da afasia.
Médicos e neuropatologistas foram os primeiros a diagnosticar e a classificar as
afasias. Eles descreviam-nas a partir do que seus pacientes exibiam, critérios de identificação,
localização da lesão, etiologia, resultados de testagens, sintomas afásicos apresentados,
características lingüísticas, etc. Em sua maioria, as classificações vigentes não divergem entre
si, elas reafirmam descrições e concepções tradicionais. O fato de o estudo inicial das afasias
estar ancorado nas ciências médicas, na Neurologia fez com que os aspectos socioculturais,
psicossociais fossem afastados.
Alguns autores que formularam sistemas de classificação ou reafirmaram os já
existentes foram Wepman; Weisenburg e McBride; Lecours; Baillarger; Jackson (1868); Wernicke
(1874); Lichtein (1884); Freud (1891); Pierre Marie (1906); Déjerine (1914); Foix (1917); Head
(1926); Goldstein (1948); Bay (1964); Luria (1964); Jakobson (1956-1964); Alojouanine (1969);
Hécaen (1972); Goodglass (1972).
As afasias podem ser divididas de forma dicotômica nos seguintes tipos: não-fluentes
e fluentes, motoras e sensoriais, expressivas e receptivas, anteriores e posteriores. As não-fluentes,
30
motoras e expressivas têm como características os problemas de expressão e são creditadas na
parte anterior do cérebro. As fluentes, sensoriais e receptivas têm como características problemas
de compreensão, ausência de “déficits” articulatórios, alteração nos aspectos semânticos da
linguagem e problemas perceptivos e gestuais; e são creditadas a lesões na parte posterior do
cérebro. Nenhum desses sistemas diz algo sobre o sujeito afásico como um todo, único, específico
e particular, em relação ao seu meio social e em relação consigo mesmo.
Uma das classificações mais próximas da abordagem proposta neste estudo é a de
Luria. Influenciado por Vygotsky, o autor considera a linguagem como um instrumento do
conhecimento e também como meio de regulação dos processos mentais superiores; e compreende
o sujeito a partir de suas relações sociais. Ele interessou-se também pelo estudo da influência da
cultura nos processos mentais, através da mediação cultural; e pelos aspectos neuropsicológicos
do funcionamento mental humano, e por meio deste, dedicou-se aos estudos sobre a relação
existente entre pensamento e linguagem.
Luria, segundo Kagan e Saling (1997), traz, em seu trabalho sobre a organização
cerebral das funções mentais superiores, uma tentativa de resolver o conflito entre a visão
mecanicista da localização cerebral e a visão integral ou holística.
Segundo Gurgacz:
para Luria, o cérebro é constituído por funções restritas (de base orgânica e
passível de localização) que possibilitam o desenvolvimento das funções
complexas (desenvolvidas socialmente e não passível de localização). Nesse
sentido, quando há um dano cerebral, ocorre o comprometimento de uma função
restrita que poderá afetar uma ou mais funções complexas (GURGACZ, 2003,
p. 18).
Para a mesma autora, as funções restritas estão agrupadas em três categorias: de
regulação do tônus; de recebimento, processamento e armazenamento da informação; e de
programação, regulação e controle do comportamento. Das funções complexas, são exemplos: a
produção da fala, a nomeação, a repetição e a compreensão auditiva.
31
O sistema de classificação de Luria enfatiza as relações entre os sintomas afásicos
observados nos dois planos funcionais: restrito e amplo e as diversas localizações da lesão.
Luria classifica esse sistema não meramente em termos do dano que o causou, mas também em
termos dos problemas primários subjacentes. Isso fornece uma explicação de por que observamos
sintomas particulares quando o cérebro é danificado em uma área determinada. A nomenclatura
utilizada por Luria implica um problema primário específico que resulta em um complexo de
sintomas característicos. Assim, Luria classifica a afasia em seis tipos, relacionando-a a problemas
primários e a áreas do dano cerebral.
A afasia dinâmica (ou afasia transcortical motora) resulta de lesões na parte
anterior do lóbulo frontal esquerdo até a área pré-motora, e lesões
frontotemporais também podem estar envolvidas. O problema principal parece
envolver a ligação entre concepção inicial de um esquema verbal e a fala
externa. Caracteristicamente, há uma escassez de “output” espontâneo, ou seja,
há uma perda de iniciativa enquanto a compreensão, a articulação, a nomeação
e a repetição são comparativamente boas (KAGAN e SALING, 1997, p. 41).
A afasia motora eferente (ou afasia de Broca; afasia verbal; afasia motriz; afasia
expressiva) resulta de uma lesão do terço posterior da porção inferior da zona
pré-motora do hemisfério esquerdo. O problema principal relaciona-se a
movimentos sequenciais elaborados ou melodias cinéticas. Os indivíduos podem
posicionar seus articuladores corretamente, mas não são capazes de passar
suavemente de uma posição articulatória para a seguinte. Isso pode ser observado
no sentido ao nível de palavra ou frase. Os problemas que aparecem nestes dois
níveis constituem o que comumente é conhecido como fala telegráfica. O
problema motor eferente pode ser complicado por dificuldades com a estrutura
gramatical da expressão (KAGAN e SALING, 1997, p. 41-42).
A afasia motora aferente (ou afasia de condução; afasia central) baseia-se em
cinestesia de fala prejudicada causada por uma lesão na porção inferior do
giro pós-central esquerdo. Esse distúrbio foi rotulado como uma forma de
apraxia oral. O problema primário relaciona-se a uma inabilidade de posicionar
corretamente os articuladores devido a retorno cinestésico prejudicado. Esses
sujeitos apresentam dificuldade de articular sons isolados e confundem sons
de articulação semelhante (KAGAN e SALING, 1997, p. 42).
Com relação à apraxia oral, Fedosse (2000) afirma que alguns autores não consideram
afasia porque acham que este problema, a apraxia, é um problema motor, e não envolve a
linguagem. No entanto, Fedosse mostra que, se há um nível lingüístico envolvido; nesse caso,
fonético-fonológico; então se trata de linguagem.
32
A afasia sensorial é causada por uma lesão nas zonas secundárias do córtex
auditivo, em particular, a região superior posterior do lóbulo temporal,
comumente conhecida como área de Wernicke. O problema primário envolve
falhas na habilidade de discriminar entre fonemas, especialmente quando eles
são semelhantes. Esse problema, na audição fonêmica, resulta em um
estranhamento do sentido das palavras, que é um resultado direto da perda
auditiva fonêmica. Os sintomas secundários do defeito primário são observados
na fala expressiva. Caracteristicamente, tais indivíduos exibem muitas
parafasias, principalmente literais. A fala pode parecer destituída de conteúdo
real embora de acordo com as características sintáticas e prosódicas da língua.
A circunlocução é muitas vezes associada a este tipo de afasia. O sistema
funcional da escrita também é afetado de um modo distinto e demonstra as
confusões fonêmicas que ficam evidentes na fala receptiva e expressiva
(KAGAN e SALING, 1997, p. 44).
A afasia acusticomnéstica relaciona-se à porção média do lóbulo temporal. O
problema principal é a instabilidade de retenção das séries articulatórias, ou
seja, um defeito na memória audioverbal. O sujeito pode apresentar audição
fonêmica relativamente intacta, porém experimenta dificuldade quando recebe
uma série de estímulos auditivos (KAGAN e SALING, 1997, p. 44).
A afasia semântica é um distúrbio que pode resultar de uma lesão de uma zona
parietal terciária sobreposta. Esta zona envolve uma integração de elementos
de função do lobo parietal, occipital e temporal. O defeito principal relaciona-
se à síntese simultânea em relacionamentos quasispatial, levando a dificuldades
características na apreciação de estruturas lógico-gramaticais. Dificuldades
paralelas são geralmente encontradas no funcionamento aritmético (KAGAN
e SALING, 1997, p. 45).
Luria abordou as desordens da expressão e compreensão da linguagem, que podem
ser encontradas nas afasias. No entanto, esses distúrbios são diversos e não encontramos todos
em um mesmo sujeito.
Repercussões da afasia na vida do sujeito afásico
Segundo Correr (2003), as relações estabelecidas entre sociedade e deficiência é que
determinam a incapacitação, a desvalorização e a exclusão das pessoas com deficiência.
Ainda segundo o mesmo autor, as ações que uma sociedade desenvolve com relação à
pessoa com deficiência, são fundamentalmente determinadas pelas concepções que assume sobre
o homem, as interações sociais e as diferenças, e ainda, pelos valores que permeiam tais concepções.
33
A inclusão social plena e efetiva significa cidadania. Cidadania manifestada não
apenas através das leis, mas com a visão e a aceitação do outro, seu semelhante. A verdadeira
cidadania se dá com o respeito à aceitação do outro, com suas qualidades e limites, mas e
principalmente, com a participação de todos.
Na sociedade dita moderna, com economia de mercado, a cidadania plena compreende
direitos civis, políticos e sociais. É direito social a oferta de todas as condições para que ocorra
o bem-estar, decorrente do direito à segurança, ao trabalho, ao lazer, à educação, à saúde, dentre
outros. Os direitos políticos se concretizam através da participação no exercício do poder político,
seja diretamente com a participação ou através de representantes. Já os direitos civis têm como
fator determinante a liberdade individual.
Afirmar que os sujeitos afásicos têm direito a uma vida com qualidade e cidadania;
não significa, portanto, apenas os programas de serviço que lhes são oferecidos, de forma
paternalista e discriminatória, sem os elementos necessários para que vivam bem.
Quando pensamos em qualidade de vida, pensamos em todas as dimensões da vida,
como física, psicológica e social. Assim, “qualidade de vida é a percepção do indivíduo acerca
de sua posição na vida, de acordo com o contexto cultural e sistema de valor com os quais
convive e em relação a seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações” (ORGANIZAÇÃO
MUNDIAL DE SAÚDE, 1996). Ou seja, cada um de nós tem uma própria referência sobre o que
é viver bem, com qualidade de vida.
No entanto, a realização das diversas dimensões da vida com qualidade passa pela
comunicação do sujeito com a sua comunidade, fazendo-o integrante dela. É através da linguagem
que assumimos nossa posição na sociedade e que somos reconhecidos enquanto pessoa.
Conseqüentemente, o sujeito afásico tem ainda mais dificuldade para aceitar a deficiência verbal
do que a motora.
34
A dinâmica da vida moderna, na era da informática e do mundo virtual, importa na
comunicação “on line” e em tempo real, de modo que o afásico é levado a se entrincheirar no
isolamento. Ele não pode deixar de sentir-se marginal, à parte de toda efervescência do mundo.
É preciso muita determinação e confiança em si mesmo e mais nos outros. Para que o afásico
consiga ajustar-se ele deverá adotar uma postura mais positiva, em relação à vida, e estratégias
compensatórias, para facilitar o cotidiano de sua vida.
A reinclusão social do sujeito afásico importa a determinação de metas, tomando
consciência da nova realidade, na qual deve haver aceitação das limitações e da inacessibilidade
a algumas atividades, cabendo-lhe perceber assim até aonde vai a sua capacidade, buscando, até
mesmo, através de uma atitude aberta e receptiva, desenvolver outras ou novas atividades.
O seu papel na sociedade já não será o mesmo. As dificuldades são outras. E, cabe
ao sujeito afásico descobrir e aceitar essa nova realidade para desenvolver meios, trilhar novos
caminhos, não só para sua qualidade de vida, como também para facilitar sua própria auto-
aceitação. Porém, a efetiva inclusão social só ocorre com uma postura favorável da sociedade,
manifestada através de medidas que facilitem a comunicação dessa nova pessoa.
Mesmo entre aqueles que, teoricamente, por sua formação, deveriam ser agentes
facilitadores da reinclusão social do sujeito afásico, há preconceito e desinformação.
A princípio, na sua volta à sociedade, o sujeito afásico fica confuso com o corre-
corre da vida e depara com a indiferença das outras pessoas, preocupadas com seus próprios
esforços para ganhar essa negociação com o cotidiano. Dessa forma, o sujeito afásico tende a
fugir das oportunidades de comunicação, temendo constantemente se enganar, “falar bobagens”,
ser mal entendido.
A família tende a se adaptar, a criar outras formas de comunicação; mas essa postura,
geralmente, não é seguida por outras pessoas que “fazem” parte do círculo social do sujeito
afásico, que o leva a se isolar.
35
Os ajustamentos feitos pelo sujeito afásico acontecerão gradualmente se este viver
com a família, pois esta vai demonstrar mais compreensão do que resignação; porém, se o sujeito
afásico vive sozinho, ele vai demorar mais para encontrar suas próprias estratégias de adaptação
ou então, simplesmente, desistirá de uma atividade social que antes fazia parte de sua rotina.
Quando o sujeito afásico tenta voltar à sociedade, encontra dificuldades que são
relativas às suas dificuldades lingüísticas. Pelo fato de não conseguir expressar-se com clareza,
a sociedade coloca em dúvida a sua integridade. Assim, a falta de comunicação do sujeito afásico
pode significar também uma dificuldade para participar de todos os espaços culturais que
constituem um importante componente para sua subjetividade.
Na interação dialógica, o sujeito afásico não pode só escutar, pois ele tem necessidade
de participar. A sua dificuldade de comunicação, a sua demora na verbalização das palavras,
freqüentemente, reforçam o seu isolamento. Ele “é” uma pessoa à parte. Sente-se à margem,
sem interlocutor, sem que sua opinião seja considerada, ou pior, sequer seja manifestada por
falta de oportunidade. Com ele, muitas vezes, não há abertura para diálogo, para interação, que
o leve a se sentir parte de seu grupo.
Ele, o sujeito afásico, é um sujeito excluído. E essa exclusão não se dá apenas em
relação à sociedade, mas ao próprio sujeito afásico; que, pela dificuldade lingüística, passa a se
rejeitar, a não se ver como uma pessoa agora afásica, dificultando a percepção que tem de si
mesmo e a constituição de sua subjetividade.
A afasia o afeta por inteiro: seja como ser falante, comunicativo, ou, como ser social.
A afasia assim se revela como uma questão social.
A nova condição de sujeito afásico em que ele se encontra, é provocada pela lesão e
pelos transtornos neurológicos e neuropsicológicos. Por isso, não só o sujeito afásico é afetado
como também sua família, pois essa nova condição vai além da simples repercussão pessoal.
36
O sujeito afásico pode apresentar como coocorrência outros problemas cognitivos,
não devidos à afasia, mas a reações como ansiedade, negação, regressão, egocentrismo e
infantilismo; danos à auto-estima; solidão e isolamento; labilidade emocional, agressividade,
vergonha e culpa; dependência e passividade; desinibição, luto, depressão, modificação dos
papéis, que podem variar conforme o grau de severidade da afasia.
Uma das conseqüências mais importantes da afasia, segundo Peña-Casanova,
é a impossibilidade de manter os ambientes familiar, profissional e social. O
papel desempenhado pelo sujeito agora afásico na vida conjugal e profissional
fica gravemente afetado. O impacto nesse aspecto depende da situação do
sujeito antes da afasia e do grau do comprometimento da capacidade de
comunicação. O sujeito afásico, muitas vezes, não pode continuar
desenvolvendo sua atividade e esse fato se reflete em múltiplos aspectos de
sua vida. A perda da capacidade econômica conduz a diferentes graus de
dependência. O cônjuge do sujeito afásico deve assumir novos papéis e
também aqueles que antes eram compartilhados. Os filhos modificam a
imagem que tem de seus pais e muitas vezes não são realmente conscientes
da dimensão dos problemas. Em alguns casos, a situação é desgastante e
chega ao divórcio. O sujeito afásico pode ser vítima de maus tratos por parte
dos familiares com os quais convive e de manobras por parte de parentes
inescrupulosos (assuntos de herança) e isso aumenta a sua problemática.
Em certos casos, pelo contrário, a afasia pode mudar uma dinâmica de
problemas e conduzir a sentimentos de união e solidariedade (PEÑA-
CASANOVA et al, 2005, p. 258).
O isolamento social é uma das manifestações mais comuns e precoces.
Freqüentemente o sujeito afásico evita o contato com os demais, devido à diminuição da auto-
estima, à dificuldade de se comunicar e ao medo de ser rejeitado, e sente vergonha, frustração e
ansiedade, o que acaba por diminuir as chances de ocorrência de situações dialógicas que possam
melhorar a sua linguagem ou diminuir os efeitos da afasia.
Muitas vezes, o sujeito acaba por negar ou recusar a sua nova condição de sujeito
afásico, os seus limites tanto físicos como psicológicos e as suas possibilidades, o que permite a
sua adaptação gradual à nova realidade, podendo assim funcionar como uma defesa contra a
depressão.
37
O sujeito afásico sente vergonha e culpa pelo fato de ser diminuído em sua dignidade;
apresenta dependência e passividade por, muitas vezes, resignar-se e abandonar-se aos cuidados
dos outros; desinibição devido à auto-crítica inadequada ou à falta de controle de afeição e pulsões
sexuais; depressão; e luto em relação às funções que perdeu, não só em relação à linguagem, mas
também à diminuição da auto-estima; perda dos papéis familiares e sociais; falta de renda; perda
de atividades culturais, esportivas ou sociais e ainda o abandono dos planos para o futuro.
A afasia é uma das seqüelas que repercute mais diretamente sobre a família, pois ela
afeta, compromete a comunicação bruscamente, sem aviso prévio, e, muitas vezes de modo
permanente, os laços familiares são perturbados em todas as suas dimensões; as relações dentro
do casal; relacionamento pais e filhos; relações com os parentes, e podendo ocorrer também
mudanças nas relações externas ao núcleo familiar na relação com os amigos.
Devido a isso, os laços familiares podem sofrer tanto um estreitamento quanto um
distanciamento, o que vai depender dos vínculos, das relações anteriores e da reação das pessoas
à afasia.
A dinâmica familiar é completamente modificada quando um dos membros é atingido
pela afasia; tanto o sujeito afásico reage a sua condição, como a família reage a esse sujeito,
agora afásico, gerando ansiedade e novos comportamentos e atitudes.
As principais reações e mudanças normalmente observadas em famílias nas quais
um dos membros tornou-se afásico, são mudança de papéis, culpa, expectativas não-realistas,
atitudes superprotetoras, relações conjugais, atividades sociais e lazer.
Um importante problema que acontece na dinâmica familiar é a mudança dos papéis
e a dificuldade de se ajustar aos novos papéis; pois, geralmente, no casal, o sujeito não-afásico
precisa assumir abruptamente as responsabilidades e funções que até então eram de competência
do outro.
38
Os parceiros de sujeitos afásicos vivem um sentimento de culpa diante da doença. O
sentimento de culpa muitas vezes é acompanhado por uma atitude superprotetora. Constantemente
os parceiros evitam situações estressantes para o sujeito afásico; realizam tarefas que o sujeito
afásico poderia realizar; controlam medicação, alimentação, sono, deslocamentos tanto dentro
quanto fora de casa; proíbem as saídas sozinho, a utilização de utensílios e aparelhos e recusam-
se a deixar o sujeito afásico sozinho em casa. Como conseqüência disso, o sujeito afásico torna-
se cada vez mais dependente e passivo.
Grande número de parceiros e parentes de sujeitos afásicos manifesta expectativas
não-realistas quanto ao futuro destes, por acreditarem que ditos sujeitos irão retornar ao que
eram antes, desaparecendo as dificuldades; ou por não terem esperanças de melhora.
As relações entre os cônjuges são afetadas devido aos problemas de comunicação
interpessoal, à perda do sentimento de compartilhar e à diminuição da intimidade do casal. O
lazer nas relações conjugais está prejudicado, pois a afasia acaba impondo o isolamento social e,
por isso, as amizades vão diminuindo pouco a pouco.
A afasia tem sido, em muitas ocasiões, considerada como um fator de prognóstico
negativo para os sujeitos afásicos, no que diz respeito à possibilidade de retornar ao trabalho.
São muito importantes, para o retorno ao trabalho, as múltiplas possibilidades de significação
que o sujeito ainda tem, ligadas muito mais à gravidade da afasia, do que ao tipo da afasia; não
menos importante é o acolhimento da sociedade e a receptividade do mercado, especificamente.
Alguns sujeitos afásicos preferem a segurança de uma aposentadoria por invalidez ao risco de
um fracasso no retorno ao trabalho.
Geralmente, os sujeitos afásicos que têm uma boa recuperação motora e possuem
alterações discretas de linguagem conseguem voltar ao trabalho, e o fazem por seus próprios
meios e, além disso, recebem ajuda da família, de um ambiente otimista e dinâmico, através de
reforços, incentivos e motivações.
39
Já aqueles sujeitos afásicos que são superprotegidos e considerados como
extremamente desvalorizados (ainda que as seqüelas sejam moderadas), não encontram ajuda
para sua adequação ao trabalho. Os familiares, nesses casos, não incentivam, não motivam estes
sujeitos a voltar ao mercado de trabalho. Dessa forma, fica muito difícil conseguir uma reinclusão
profissional, mesmo estando o sujeito afásico motivado. Assim, a atitude da família tem papel
primordial não só na reinclusão profissional, como também na social.
A reinclusão profissional ocorre de várias formas. O sujeito afásico tenta retornar ao
seu antigo trabalho, porém não é possível, por apresentar-se agora com dificuldades que atrapalham
consideravelmente a eficiência e a produtividade exigidas no mundo do trabalho. Muitas vezes,
lhe é ofertado um novo emprego que, na maioria das vezes, por ser de nível inferior ao antigo, é
recusado pelo sujeito. O sujeito afásico não desenvolveu estratégias para retomar uma atividade
adaptada a sua motivação e ao seu “déficit”. O empregador não está preparado para recebê-lo:
não disponibiliza condições necessárias para que o trabalho seja satisfatório.
É indispensável a colaboração do grupo social para a adaptação do sujeito afásico
em sua atividade anterior ou num novo emprego. No entanto, poucas vezes existe uma forma de
apoio aos sujeitos afásicos nessa direção. São eles mesmos, ajudados por suas famílias, que
tentam adaptar-se ao antigo ou ao novo emprego.
A motivação é um fator extremamente importante e compreende, por um lado, o
prazer que alguém pode obter ao realizar uma determinada tarefa, e, por outro lado, as repercussões
sociais do trabalho. No entanto, esses fatores de motivação são, com freqüência, negativos,
marcados pelo temor de não estar o sujeito afásico à altura das exigências, pelo preconceito dos
empregadores, pelo medo da perda do trabalho e pelos aspectos relacionados à sociedade, que o
induz a se acomodar.
Outra característica que influencia muito no retorno ao trabalho é o não
reconhecimento desse outro sujeito que surgiu, o sujeito afásico. Ele enfrenta um momento de
40
constituição de sua subjetividade, em que ele precisa aceitar suas perdas e enfrentar, junto com
os outros, os desafios que lhe permitirão superar suas dificuldades.
Segundo Pereira (2003), o trabalho é visto como o ponto-chave para o
desenvolvimento pessoal, estabelecimento de uma identidade pessoal, garantia da auto-estima,
da dignidade e da qualidade de vida para as pessoas com deficiência, para os sujeitos afásicos.
Nesse sentido, o trabalho é um fator primordial à cidadania de qualquer pessoa.
Ainda segundo o mesmo autor, aqueles sujeitos que, por algum motivo, não
conseguem voltar ao mercado de trabalho, têm, nas tarefas caseiras e em outras de cunho
institucional, ainda que voluntárias, a chave de acesso ao cotidiano público. E isso é o que lhe
permite perceber-se como membro constituinte de uma comunidade, conseqüentemente, atribuir-
se o papel de ser social.
Dessa forma, podemos dizer que a afasia traz modificações na vida pessoal e
interpessoal do sujeito e por esse motivo não pode ser considerada como algo pontual, mas
como algo que traz modificações para a constituição do sujeito como um todo.
CAPÍTULO III
UM ESTUDO SOBRE A INCLUSÃO SOCIAL NO PROCESSO DE
RECONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO
NA AFASIA: CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
Adotamos nesta pesquisa uma abordagem qualitativa, considerando que o nosso
interesse de estudo está centralizado na busca de entendimento do processo de inclusão social,
revelado nos dizeres dos próprios sujeitos afásicos.
A pesquisa qualitativa envolve dados descritivos, construídos no contato direto do
pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais o processo do que o produto e se preocupa
em retratar a perspectiva dos participantes (LÜDKE; ANDRÉ, 1986). Assim, no estudo
desenvolvido, tivemos um contato direto com os sujeitos durante a atividade dialógica semanal
que ocorria com um grupo de seis sujeitos afásicos.
Considerando que esta pesquisa envolve o acompanhamento minucioso da inclusão
social no processo de reconstrução da linguagem e constituição do sujeito, detalhando o que os
sujeitos afásicos dizem quanto à percepção de si e de sua inserção social, dentro de um curto
espaço de tempo, adotamos como forma de análise a abordagem microgenética.
A abordagem microgenética consiste na
construção de dados que requer a atenção a detalhes e o recorte de episódios
interativos, sendo a análise orientada para o funcionamento dos sujeitos focais,
as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, resultando num
relato minucioso dos acontecimentos (GÓES, 2000 p.09).
Góes (2000) esclarece-nos mais sobre a análise microgenética, afirmando que:
essa análise não é micro porque se refere à curta duração de eventos, mas sim
por ser orientada para minúcias indiciais – daí resulta a necessidade de recortes
num tempo que tende a ser restrito. É genética no sentido de ser histórica, por
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focalizar o movimento durante processos e relacionar condições passadas e
presentes, tentando explorar aquilo que, no presente, está impregnado de
projeção futura. É genética, como sociogenética, por buscar os eventos
singulares com outros planos da cultura, das práticas sociais, dos discursos
circundantes, das esferas institucionais (GÓES, 2000, p.15).
O método naturalístico/observacional foi escolhido, pois, segundo Perroni, “privilegia
como objeto de estudo a linguagem em atividade e a relação do sujeito com ela, reconhecendo o
desenvolvimento como um processo dinâmico, em constante fluxo, tentando dar continuidade,
ou seja, das relações entre estágios” (PERRONI, 1996, p. 22).
O grupo terapêutico-fonoaudiológico
O grupo terapêutico-fonoaudiológico pode ser explicado segundo Freitas, Lacerda e
Panhoca (1999),
como um micro-cosmo social que é, por si só, destinado a ser a maneira ideal
de se trabalhar com grande parte dos comprometimentos da oralidade e da
escrita. O grupo instaura diferenças necessárias, complementares e
enriquecedoras, ao mesmo tempo em que traz em si a criação de conhecimentos
partilhados, historicamente constituídos e definitivos para a constituição da
linguagem e do sujeito falante, que se constitui enquanto tal na e pela linguagem
nos termos de Vygotsky (FREITAS; LACERDA; PANHOCA, 1999, p. 5).
Segundo Panhoca (2002), uma das precursoras nos estudos voltados ao tema: grupo
terapêutico-fonoaudiológico, são inúmeras as possibilidades da atuação fonoaudiológica em
grupo.
Além do desenvolvimento rápido, efetivo e eficiente, da linguagem (nas
modalidades oral e escrita) e de outras “esferas simbólicas”, a vivência em
grupo é, inegavelmente, positiva, pois possibilita: a) trocas afetiva, social,
lingüística e cognitiva; b) conhecimentos, vivências e experiências
partilhados – positivos ou não, agradáveis ou não; c) construções conjuntas,
através das discussões, reflexões, explicitações de dúvidas, contendas e
discordâncias; d) o exercício inevitável da observação, da percepção, da
atenção, da memória e da linguagem, que implicam o exercício inevitável
das “funções psicológicas superiores” (VYGOTSKY, 1998) que são quase
que “automaticamente” acionadas no dia-a-dia da vivência do grupo; e)
desenvolvimento de aspectos psíquicos fundamentais, ampliando o universo
43
no sentido de possibilitar a cada membro a possibilidade da constatação de
que há experiências, problemas e dificuldades (lingüísticas ou não) diferentes
das suas, o que leva aos processos de identificação/diferenciação em que um
determinado componente do grupo se percebe no momento em que se
diferencia do outro; f) o desenvolvimento de atitudes altruístas e solidárias,
já que são inerentes ao funcionamento do grupo a construção coletiva e a
importância de atitudes o mais harmônicas e solidárias possível; g) a aquisição
de regras de socialização e de convivência social contribuindo para a
“construção” de sujeitos não meramente “falantes” mas sim críticos, honestos,
conscientes, capazes de defender seus direitos e os direitos do próximo,
sujeitos cidadãos(PANHOCA, 2002, p. 19, 20).
O grupo terapêutico-fonoaudiológico passa a ser então um contexto poderoso não só
para o desenvolvimento da linguagem, (PANHOCA, 2003), mas também para a constituição do
sujeito afásico, pois o grupo pode proporcionar tanto a reprodução quanto à transformação dos
processos de identificação de cada membro do grupo.
Tomando-se a linguagem como constitutiva dos sujeitos, como espaço para as
reflexões, para os conflitos, para os problemas e para as soluções, consideramos que é só na/
pela/sobre a linguagem que os processos terapêutico-fonoaudiológicos podem trazer o crescimento
e a superação dos obstáculos impostos pela afasia. Dessa forma, o grupo cria condição importante
para a inclusão social dos sujeitos afásicos; pois, no grupo, através da linguagem, o sujeito se
reconhece, conhece o outro e sua vida cotidiana.
É nesse sentido que formamos o grupo de sujeitos afásicos e seus familiares e
acompanhantes. Buscamos conhecer, nos dizeres dos sujeitos afásicos e das pessoas que estão
mais próximas dele, como revelam os sentimentos relacionados à inclusão social no processo de
reconstrução da linguagem e constituição do sujeito na afasia.
O grupo terapêutico-fonoaudiológico de sujeitos afásicos e seus familiares e
acompanhantes, que funciona nas dependências da clínica-escola de Fonoaudiologia da
Universidade Metodista de Piracicaba, corresponde a uma proposta conjunta formulada em 2004
por professoras do curso de graduação em fonoaudiologia.
44
A proposta surgiu da necessidade de atender à demanda dos sujeitos afásicos e seus
familiares e acompanhantes que procuravam atendimento clínico-fonoaudiológico e não
encontravam vaga; ficando, então, na lista de espera. Consideramos que o grupo seria uma boa
alternativa para a recuperação de sujeitos que estavam sem previsão de atendimento imprescindível
para o aumento das chances de melhora.
Num primeiro momento, realizamos uma triagem dos sujeitos em lista de espera
para, através de uma entrevista e avaliação, sabermos qual era a queixa e a hipótese diagnóstica
fonoaudiológica. De posse dos dados dos sujeitos que apresentavam afasia, nós os contactamos
e perguntamos se gostariam de fazer parte do grupo terapêutico-fonoaudiológico e qual seria o
melhor dia e horário para iniciarmos o grupo.
O grupo começou com seis sujeitos afásicos, de ambos os sexos, com idade entre 50
e 70 anos, com queixa de problema de fala após derrame e dois acompanhantes, além das
terapeutas; no final do estudo, o grupo contava com três sujeitos afásicos, do sexo masculino,
com idade entre 50 e 60 anos, com queixa de problema de fala após derrame e as terapeutas.
Importante lembrar que, após a conclusão do estudo, os sujeitos foram incluídos nos atendimentos
regulares, realizados nos estágios curriculares do curso de Fonoaudiologia. Foram realizados 20
encontros durante um ano, uma vez por semana, com uma hora de duração. As situações
interacionais foram registradas, através de vídeo-gravações e de sua transcrição.
Os procedimentos metodológicos adotados se basearam no trabalho realizado no Centro
de Convivência de Afásicos – CCA, que surgiu na década de 80, tem sido coordenado por Edwiges
Maria Morato e por Maria Irma Hadler Coudry, funciona nas dependências do Instituto de Estudos
da Linguagem (IEL) e integra as atividades da Unidade de Neuropsicologia e Neurolingüística
(UNNE), da qual fazem parte o Departamento de Neurologia e o Departamento de Lingüística.
Consideramos importante apresentar a descrição de Morato uma vez que as atividades
realizadas com o grupo de afásicos do nosso estudo orientou-se por esta descrição.
45
Em sua descrição Morato (1999) define que:
Tais atividades discursivas referem-se à dimensão interlocutiva, meta-
enunciativa e discursiva, que, articuladas entre si, nas práticas discursivas,
mobilizam-se em torno de diferentes funções da linguagem e de processos
cognitivos responsáveis pela sua reorganização (MORATO, 1999, p.161).
A dimensão interlocutiva é voltada para a intersubjetividade, para a dinâmica
de papéis e posições assumidas pelos diferentes locutores ou enunciadores em
diferentes situações discursivas. Leva em conta a diversidade das configurações
textuais (relatos, diálogos, comentários, recontagem, instruções etc.); refere-
se, basicamente, a tarefas de reformulação, modalização e fortalecimento de
quadros interativos e esquemas de trocas verbais; favorece a diminuição de
tensões emocionais e a partilha de experiências, evoca experiências sociais
positivas; valoriza o interesse de um pelo outro e impede o isolamento social,
além de encorajar a necessidade de outras formas de comunicação ou
possibilidades de significação que não apenas a verbal (MORATO, 1999,
p.161).
São exemplos da dimensão interlocutiva o trabalho regular e sistemático com
a agenda pessoal de anotações do sujeito (seus compromissos, viagens, visitas
ou passeios, comentários de qualquer ordem, receitas de bolo, datas
importantes, etc) e a montagem conjunta de painel com informações e
acontecimentos veiculados na mídia nacional durante a semana e comentados
e debatidos por todos (MORATO, 1999, p. 161).
Foram trabalhadas no grupo as propostas trazidas pelos sujeitos, com base no que
ocorre em nossa vida em sociedade e no que é noticiado na televisão, no rádio e no jornal e em
diversos aspectos da vida que compartilham.
No grupo, era realizado o trabalho com a agenda, sendo que cada sujeito levava um
dia a agenda para casa para relatar o que havia sido feito naquele dia no grupo. No encontro
seguinte, o que havia sido escrito era lido e comentado. Além disso, cada sujeito relatava o que
tinha feito durante a semana e no fim-de-semana.
A dimensão meta-enunciativa está voltada para a heterogeneidade das instâncias
enunciativas, para a reconstrução de relações interpessoais e centrada na
relevância da presença e do papel do interlocutor. Está relacionada basicamente
com a (re)elaboração do trabalho meta-enunciativo, necessário para a inscrição
nas noções e nos enunciados pré-construídos, com a manipulação
46
metalingüística do próprio dizer e do dizer do interlocutor e com a
intercompreensão; atua em especial nas atividades de explicitação (comentários,
paráfrases, relatos, pressupostos interpretativos, discursos procedurais etc),
nas de reformulação (MORATO, 1999, p.161-162).
São exemplos da dimensão meta-enunciativa todo tipo de trabalho de inscrição
nos enunciados e enunciações pré-construídas e de elaboração lingüístico-
discursiva do conhecimento de mundo: discursos indiretos, enunciações
proverbiais, interpretação de piadas e de sentidos implicados ou metafóricos
gerais, atividades inferenciais (verbais ou não), improvisações (verbais ou não),
atividades envolvendo solução de problemas (verbais ou não), comentários
do sujeito sobre seu desempenho e o dos outros, bem como sobre as atividades
desenvolvidas no dia (MORATO, 1999, p. 162).
Para isso, trabalhamos com enunciações proverbiais, sendo que cada sujeito lia um
provérbio, de uma lista trazida por uma das terapeutas, e tentava interpretar. Se houvesse
dificuldade, os outros sujeitos do grupo ajudavam; e, com comentários, cada sujeito comentava
sobre as atividades desenvolvidas e sobre seu desempenho e o dos outros.
Já a dimensão discursiva está voltada para a articulação do sistema lingüístico
e do discurso, isto é, para a reorganização da interpretação e manipulação de
vários universos discursivos por meio dos quais agimos no mundo. Está
relacionada com o reconhecimento e a reelaboração do tecido discursivo, está
centrada basicamente no trabalho lingüístico da interdiscursividade e em novas
formas de referir e interpretar as coisas do mundo (em especial, a consideração
de frames culturais e do caráter polifônico da relação da língua com o discurso)
(MORATO, 1999, p.162).
São exemplos da dimensão discursiva todo o tipo de atividade que se confronte
direta ou indiretamente com a polissemia existente entre a língua e o
(inter)discurso, e que envolva diferentes eventos sociais: comemorações, saraus
musicais e reuniões com familiares, introdução de um novo elemento no grupo,
sessão de cinema, intervalo para tomar café, visitas, etc (MORATO, 1999,
p.162).
No grupo, realizamos comemorações dos aniversários dos sujeitos participantes,
introdução de um novo sujeito no grupo, para que pudéssemos, justamente, confrontar a polissemia
existente entre a língua e o (inter)discurso.
Além do trabalho de/com/sobre a linguagem, realizamos um trabalho de praxia global
que tem como objetivo promover a percepção de possibilidades significativas e expressivas que
47
se abrem a partir da interação linguagem – gestualidade; o que envolve alternativas comunicativas
e cognitivas de produção e interpretação do sentido, como representação de objetos, pantomimas,
dramatização de situações de vida cotidiana; ampliando, assim, os parâmetros de expressividade
e comunicação silenciosa dos sujeitos afásicos.
Os sujeitos participantes do grupo
Os sujeitos participantes do grupo terapêutico-fonoaudiológico apresentavam a faixa
etária de 25 a 70 anos: sendo quatro do sexo masculino e cinco do sexo feminino. Todos os
sujeitos residiam em Piracicaba e região.
Todos os sujeitos desta pesquisa foram solicitados a assinar o termo de consentimento
livre e esclarecido de acordo com a resolução nº196, de 10 de outubro de 1996 do Conselho
Nacional de Saúde.
Os nomes dos sujeitos participantes do grupo foram trocados por nomes fictícios
para preservar sua identidade. No entanto, vale ressaltar que os três sujeitos afásicos do sexo
masculino, coincidentemente possuíam o mesmo nome, por isso escolhemos também um mesmo
nome fictício para identificá-los. Em alguns episódios os terapeutas fizeram confusões com os
nomes por serem iguais e isto foi tema em alguns encontros.
Terapeutas
Luciane: 42 anos, natural de Poloni (SP), reside em Campinas, é casada, tem três filhos, é mestra
e doutoranda em lingüística, fonoaudióloga, e professora de curso de graduação em Fonoaudiologia.
Fátima: 33 anos, natural de São Paulo (SP), reside em Piracicaba, é casada, tem um filho, é
mestra e doutora em medicina (neurologia), é fonoaudióloga e professora de curso de graduação
em Fonoaudiologia.
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Melissa: 25 anos, natural de Fortaleza (CE), reside em Piracicaba, é solteira, fonoaudióloga e
aluna do curso de Mestrado.
Familiares e acompanhantes
Samia: filha, acompanhante de Maria, 47 anos, natural de Limeira (SP), reside em Limeira (SP),
é casada, mora com o marido. Seu grau de escolaridade é 3º grau completo. Exerce a profissão
de pedagoga. Em abril de 2004, começou a participar da terapia fonoaudiológica em grupo. Era
muito participativa. No decorrer dos encontros, teve um papel fundamental, pois motivava Maria
a participar das atividades desenvolvidas no grupo; além de tentar inseri-la no diálogo através de
seu comentário sobre o que estava sendo conversado no grupo.
Álvaro: marido, acompanhante de Maria, 74 anos, natural de Limeira (SP), reside em Limeira
(SP), é casado, tem cinco filhos. Seu grau de escolaridade é 1º grau incompleto. Exercia a profissão
de encanador, porém agora é aposentado. Em abril de 2004, começou a participar da terapia
fonoaudiológica em grupo. No grupo, o sujeito era tímido e calado, somente participava quando
solicitado, porém tinha um papel muito importante ali, o de dar suporte e apoio à esposa.
Sujeitos afásicos
Maria: 69 anos, natural de Limeira (SP), reside em Limeira (SP), é casada, mora com o marido,
tem 5 filhos. Seu grau de escolaridade é 1º grau incompleto. Exercia a profissão de doméstica do
próprio lar quando, em 2001, sofreu um acidente vascular cerebral isquêmico. Antes do AVC,
Maria tinha uma vida ativa, cuidava da casa, do marido, ia ao supermercado, à igreja, recebia os
filhos em casa. Permaneceu 15 dias hospitalizada. Em março de 2004, procurou a Clínica-escola
de Fonoaudiologia. No mês seguinte, foi convidada a participar do grupo terapêutico-
fonoaudiológico com sujeitos afásicos e seus acompanhantes e familiares, aquele estava formando-
se. Foi encaminhada para o setor de neurologia da Clínica de Fonoaudiologia. Teve como hipótese
diagnóstica hemiparesia à direita e afasia motora aferente e afasia sensorial. Em abril de 2004,
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começou a participar da terapia fonoaudiológica em grupo. Maria freqüentava o grupo
acompanhada por uma de suas filhas e pelo marido. No grupo, mostrava-se sempre calada,
devido à patologia, e, desestimulada, durante a interação dialógica, a filha repetia o que tinha
sido dito no seu ouvido e respondia por ela. Maria apresenta dificuldade tanto de compreensão
quanto de expressão. Quando participava dos diálogos, tentava expressar-se através de gestos e
expressões faciais e, em alguns momentos, vocalizações ininteligíveis, porém quase não
participava dos diálogos.
Carlão: 54 anos, natural de Piracicaba (SP), reside em Piracicaba (SP), é desquitado, mora
sozinho, tem cinco filhos. Seu grau de escolaridade é 2º grau incompleto. Exercia a profissão de
motorista e já era aposentado quando, em 09 de março de 2004, sofreu um acidente vascular
cerebral isquêmico. Antes do AVC, Carlão morava sozinho e não mantinha relações com os
filhos e familiares, participava de jogos na praça, ia ao comércio. Carlão já tinha uma vida muito
só. Permaneceu dois dias internado, devido a problemas motores e de linguagem. Um mês depois
do acidente vascular encefálico, encaminhado pelo cardiologista, procurou a Clínica-escola de
Fonoaudiologia e Clínica de Fisioterapia. Na clínica de fisioterapia, foi submetido a um trabalho
de reabilitação para o membro superior e inferior direito, devido à paresia do hemicorpo direito.
Na clínica-escola de fonoaudiologia, preencheu a ficha de inscrição e ficou aguardando ser
chamado para atendimento. No mesmo mês, foi convidado a participar do grupo terapêutico-
fonoaudiológico com sujeitos afásicos e seus acompanhantes e familiares, aquele estava formando-
se. Foi encaminhado para o setor de neurologia da Clínica de Fonoaudiologia. Teve como hipótese
diagnóstica afasia acústico-amnésica + hemiparesia à direita. Em abril de 2004, iniciou terapia
fonoaudiológica em grupo. Carlão é o mais participativo do grupo.
Carlinhos: 56 anos, natural de Piracicaba (SP), reside em Piracicaba (SP), solteiro, mora com a
prima e com o marido. Seu grau de escolaridade é 1º grau incompleto. Exercia a profissão de
servente de pedreiro e já era aposentado quando, em março de 2002, sofreu um acidente vascular
cerebral isquêmico, evoluindo com seqüela motora à esquerda, afasia e disfagia. Carlinhos, antes
do AVC, já morava com a prima e o marido, e sempre foi muito quieto. Permaneceu um mês no
50
hospital. Em abril de 2004, foi procurado por estagiárias de Fonoaudiologia e foi encaminhado
para a clínica-escola de Fonoaudiologia. No mesmo mês, foi convidado a participar do grupo
terapêutico-fonoaudiológico com sujeitos afásicos e seus acompanhantes e familiares, aquele
estava formando-se. Foi encaminhado para o setor de neurologia da Clínica de Fonoaudiologia.
Teve como hipótese diagnóstico hemiparesia discreta incompleta de predomínio maior nos
membros inferiores à esquerda, afasia dinâmica e disfagia. Em abril de 2004, iniciou terapia
fonoaudiológica em grupo. No segundo semestre de 2004, iniciaram-se as terapias individuais,
além do atendimento em grupo. As terapias individuais foram pensadas, buscando atender as
necessidades específicas de Carlinhos relativas à disfagia. Carlinhos não é muito participativo.
Só quando solicitado, dá sua opinião e, na maioria das vezes, com respostas curtas ou com
movimentação de cabeça. Em seu discurso, observa-se uma desordem verbal quando era
necessário passar da simples repetição de palavras, frases ou da designação de objetos à criação
ativa, criativa, de esquemas da própria enunciação verbal.
Carlos: 55 anos, natural de Piracicaba (SP), reside em Piracicaba (SP), é casado, não tem filhos.
Seu grau de escolaridade é 1º grau incompleto. Em 1957, quando tinha oito anos, sofreu um
traumatismo crânio-encefálico, devido a um tombo num riacho. Ficou com a cabeça inchada e
roxa, e segundo ele, saia muito sangue. Dois dias após o acidente, começou a apresentar
dificuldades motoras e de linguagem. Mesmo com a deficiência, Carlos nunca deixou de viver a
vida, sempre foi independente e batalhador. Durante muito tempo, fez tratamento em São Paulo
com um neurologista. Tentou retomar os estudos, mas não deu continuidade. Para ganhar a vida,
trabalhava vendendo alpargatas e sandálias e depois trabalhou como ajudante de limpeza numa
creche. Na ocasião das gravações, sustentava-se com o benefício assistencial previsto na lei nº
8.742/93 para portadores de deficiência com baixa renda. Em novembro de 2003, procurou a
Clínica-escola de Fonoaudiologia. Na clínica-escola de fonoaudiologia, preencheu a ficha de
inscrição e ficou aguardando ser chamado para atendimento. Foi encaminhado para o setor de
neurologia da Clínica de Fonoaudiologia. Teve como hipótese diagnóstico disartrofonia +
hemiparesia completa desproporcionada de predomínio maior nos membros inferiores à esquerda.
Em abril de 2004, foi convidado a participar do grupo terapêutico-fonoaudiológico com sujeitos
51
afásicos e seus acompanhantes e familiares, aquele estava formando-se. Em abril de 2004, iniciou
terapia fonoaudiológica em grupo. Carlos sempre participava dos diálogos. Em seu discurso,
observa-se uma dificuldade na articulação e fala imprecisa, devido a uma desordem motora da
fala, resultante de distúrbio no controle muscular dos mecanismos da fala.
O método da coleta de dados
Todos os encontros do grupo foram observados e documentados por meio de gravação
em vídeo. As vídeogravações foram realizadas semanalmente, tendo uma hora de duração
aproximadamente. A câmera filmadora ora estava fixa, ora em movimento, dependendo da
atividade realizada no grupo.
Tais gravações são de extrema importância para a pesquisa, pois permitem que seja
observado de forma integral o grupo em toda sua dinâmica, interações, ações, desenvolvimento
de atividades.
As situações vídeo-gravadas foram transcritas tomando por base alguns critérios
utilizados pelo Projeto Integrado de Pesquisa: “Contribuições da Pesquisa Neurolingüística para
a Avaliação do Discurso Verbal e Não-Verbal” (UNICAMP/CNPq: 521773/95-4), propostos e
utilizados pelo Banco de Dados Neurolingüísticos (BDN) da UNICAMP.
A partir dos registros em vídeo, foram realizadas as transcrições dos processos verbais
com o registro de processos não-verbais e descrições sobre o contexto de ocorrência, buscando-
se assim registrar as “condições de produção” que marcam o surgimento do episódio.
CAPÍTULO IV
DIÁLOGOS COM SUJEITOS AFÁSICOS
Para identificarmos como os sujeitos afásicos avaliam seu processo de inclusão social,
realizamos inicialmente uma exploração geral das transcrições, construindo conjuntos temáticos
dos dizeres dos sujeitos em função do que era dito durante a terapia.
Após diversas explorações das transcrições dos diálogos ocorridos no grupo
terapêutico-fonoaudiológico, os resultados foram compondo-se com base no objetivo estabelecido
e nas referências metodológicas antes mencionadas. A organização do agrupamento de dizeres
dos sujeitos participantes do grupo conduziu ao estabelecimento das seguintes unidades temáticas:
O grupo familiar/ o grupo social – dizeres dos sujeitos afásicos que se referem às
experiências vividas por eles no grupo familiar e no grupo social;
Mudanças na imagem de si mesmo – dizeres dos sujeitos afásicos que se referem
às mudanças na imagem de si mesmo;
O enfrentamento das dificuldades cotidianas – dizeres dos sujeitos que se referem
às dificuldades encontradas por eles na vida cotidiana;
A linguagem e a construção de uma nova imagem de si mesmo – dizeres dos
sujeitos afásicos que se referem às possibilidades de diálogo e à construção de
uma nova imagem de si mesmo.
Na discussão dos dados, procuramos fazer recortes de episódios nos quais observamos
indícios ou pistas de momentos significativos para o processo de inclusão social desses sujeitos.
Tais episódios foram analisados buscando compreender que fatores concorrem primordialmente
para a reconstrução da linguagem e constituição do sujeito afásico e de que forma atuam no
processo de inclusão social.
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O grupo familiar/grupo social
A família representa o primeiro grupo social com o qual estabelecemos contato. É na
família que construímos nosso primeiro reconhecimento do que somos e é através dela, mediados
por ela, que vivenciamos nossas primeiras experiências de aprendizagem e desenvolvimento.
Poder contar com a família para recomeçar a vida, certamente é um fator importante
para o convívio no grupo social. Os sujeitos afásicos podem ou não ter o apoio e o acolhimento
familiar, e isso têm um significado fundamental para as relações sociais que irão estabelecer-se
e para o não isolamento da comunidade.
Nos episódios aqui apresentados, vemos como a família é trazida no discurso dos
sujeitos, e como ela representa um lugar importante para a constituição do sujeito na e pela
linguagem.
Episódio 1 – referente à 2ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Estavam presentes Maria, Álvaro, Samia, Carlos, Carlinhos, Carlão, Luciane
e Melissa. Os sujeitos estavam comentando sobre como é a dinâmica familiar na casa deles.
Turno 51 – Carlão: Eu tô na casa da minha irmã.
Turno 52 – Luciane: Um.
Turno 53 – Carlão: Casa da minha irmã, ela, é o seguinte ela não conversa com ninguém, é ela
e o marido dela e tem dois filhos, os dois casados e é por aí.
Turno 54 – Luciane: Silenciosa a casa?
Turno 55 – Carlão: É. Silenciosa. É por aí a descrição da coisa, é por aí mais ou menos. Porque
eu tô fazendo esforço, eu respondo.
Turno 56 – Luciane: Com clareza. A gente tá entendendo. O senhor mora lá na irmã do senhor,
é ela e o marido dela, eles, eles conversam entre si.
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Turno 57 – Carlão: Não.
Turno 58 – Luciane: Ela prum canto, ele pro outro?
Turno 59 – Carlão: Não. Ela tá ... O marido trabalha.
Turno 60 – Luciane: Ah!
Turno 61 – Carlão:trabalhando.
Turno 62 – Luciane: E ela?
Turno 63 – Carlão: E eu sozinho com ela em casa, quer dizer que, ontem, ontem eu fui na minha
casa ... Ah! Quer dizer que por aí, por aí dá pra tirar poucas coisas né, vou pra lá e fico lá e fico alí.
Turno 64 – Luciane: Num pergunta, num conversa?
Turno 65 – Carlão: Num converso, num converso com ninguém porque num tem ninguém lá, é
eu, eu só. Minha mãe num tá em casa, tá doente, tá internada.
Turno 66 – Luciane: Ah! Tá aqui em piracicaba?
Turno 67 – Carlão: Não, num tá. Então, quer dizer que, ontem eu fiquei o dia inteiro, fui embora
pra lá ontem e fiquei lá o dia inteiro.
Turno 68 – Samia: Sozinho?
Turno 69 – Carlão: Sozinho.
Turno 70 – Luciane: Em silêncio?
Turno 71 – Carlão: Em silêncio. Conversando com gente lá, não sei o que pensando.
Turno 72 – Luciane: Ah! Em silêncio, mas na cabeça do senhor conversando com as pessoas.
Turno 73 – Carlão: É por aí.
Turno 74 – Luciane: Imaginando o que o senhor tinha que falar com as pessoas. É isso?
Turno 75 – Carlão: É por aí, mais ou menos por aí.
Turno 76 – Samia: Fala alguma coisa cochichando para Maria.
Turno 77 – Carlão: Ah! Eu tô falando, é o seguinte, é que ontem, por exemplo, eu tive que saí lá
fora na rua, conversei com os vizinhos, conversei com os vizinhos, conversei com ...
Turno 78 – Luciane: Parentes?
Turno 79 – Carlão: Não, não tem parente.
Turno 80 – Luciane: Não?!
Turno 81 – Carlão: Não.
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Turno 82 – Luciane: Lá na casa da mãe do senhor? Isso?
Turno 83 – Carlão: É.
Turno 84 – Luciane: Aí o senhor saiu e conversou com os vizinhos dela?
Turno 85 – Carlão: Também.
Turno 86 – Luciane: É isso?
Turno 87 – Carlão: Também, também, é por aí.
Neste episódio, podemos ver que Carlão, que morava com a mãe e passou a morar na
casa da irmã após o AVC, revela como se sente excluído da dinâmica familiar. Ele não tem com
quem conversar e a irmã e o cunhado trabalham e ele fica isolado. Lá não há diálogo com ele. Isso
também acontece na casa dele, porém na sua casa não há diálogo porque ele mora só e não procura
com quem conversar. Isto é visto no turno 71 quando ele diz que fica “em silêncio. Conversando
com gente lá, não sei o que pensando”. No entanto, quando decide sair para encontrar com os
vizinhos na rua passa a ter com quem conversar e assim passa a estar incluído no grupo social.
Episódio 2 – referente à 15ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Presentes os sujeitos: Luciane, Carlão, Carlos, Carlinhos e Melissa. A
terapeuta Luciane perguntava à Carlinhos como estavam os momentos de interação dialógica
em casa.
Turno 32 – Luciane: O senhor conversa em casa?
Turno 33 – Carlinhos: Não, muito pouco.
Turno 34 – Luciane: Pouco?
Turno 35 – Carlinhos: Balança a cabeça fazendo sinal afirmativo.
Assim, podemos ver que Carlinhos diz que fala pouco com as pessoas de casa e,
assim, ele acaba se excluindo do grupo familiar.
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Episódio 3 – referente à 15ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Compareceram, na ocasião, Luciane, Carlão, Carlos, Carlinhos e Melissa.
A terapeuta Luciane perguntava a Carlos como eram seus momentos de interação dialógica.
Turno 49 – Luciane: Vai no banheiro. E o senhor, como é que tá aí no dia a dia? Tem bastante
gente pra conversar?
Turno 50 – Carlos: Eu e a minha mulher.
Turno 51 – Luciane: Também é só um tipo de interlocutora, a mulher.
Turno 52 – Carlos: Agora que eu, depois que eu, primeiro eu saia muito num parava em casa
agora que, que tô com ela num saio de casa, fico em casa com ele ela (...)
Turno 53 – Luciane: Aham! Mas é, pro dia-a-dia, na conversa com ela, o senhor tem que repetir
mais que uma vez ou o senhor fala e ela já entende ou o senhor fala e ela não entende e faz de
conta que entende? Como é que é?
Turno 54 – Carlos: De vez em quando não entende ela.
Turno 55 – Luciane: E aí quando ela não entende, ela diz ou o senhor percebe e fala de novo?
Turno 56 – Carlos: Percebo e falo de novo.
Turno 57 – Luciane: Aham!
Turno 58 – Melissa: Os filhos dela não vão visitar vocês?
Turno 59 – Carlos: Como assim?
Turno 60 – Melissa: Ela não tem filhos? A esposa do senhor?
Turno 61 – Carlos: Tem.
Turno 62 – Melissa: Eles não vão visitar vocês.
Turno 63 – Carlos: Trecho ininteligível
Turno 64 – Melissa: Que?
Turno 65 – Carlos: Trecho ininteligível
Turno 66 – Luciane: Não, mas não foi isso que a Melissa perguntou.
Turno 67 – Carlos: O que que ela perguntou?
Turno 68 – Melissa: O que eu perguntei é se os filhos dela vão visitar vocês? Se o senhor
conversa com eles?
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Turno 69 – Carlos: Os filhos dela vão muito lá em casa. Os filhos dela são legal.
Turno 70 – Melissa: E o senhor conversa?
Turno 71 – Carlos: Puxa vida! E como converso.
Turno 72 – Luciane: Trecho ininteligível
Turno 73 – Carlos: Trecho ininteligível (Fala sobreposta)
Turno 74 – Luciane: Então o senhor conversa com ela e com os filhos dela?
Turno 75 – Carlos: É
Cabe ressaltar que Carlão, antes do AVC, morava com a mãe e estava reformando
uma outra casa para onde iria mudar-se quando ficasse pronta. Com a doença, foi morar com a
irmã, que é casada e tem filhos; e a mãe foi internada numa clínica de repouso. E que Carlinhos
já morava com a prima e o marido dela. Carlos mora com a esposa, que já foi casada anteriormente
e teve filhos.
Podemos perceber que Carlos não se exclui do grupo familiar; conversa com a mulher
e com os filhos dela. Isso é visto no turno 71 quando ele responde à pergunta de Melissa: “e o
senhor conversa?”, “puxa vida! E como converso”. Já seu grupo social ficou um pouco limitado,
pois agora que casou, não sai de casa como saia antes de se casar.
Essas falas enunciadas, nos três episódios, nos mostram duas situações distintas.
Uma que revela vivências que são comuns para a grande parte dos sujeitos afásicos, uma vez
que a maioria deles após o AVC passa a morar com familiares, que continuam levando a vida
normal, com suas atividades e afazeres, enquanto o sujeito fica em casa sozinho, sem ter com
quem conversar, pensando o que iria falar. E outra, em que o sujeito afásico, mesmo com problemas
para se comunicar, tenta voltar a sua vida “normal” com a ajuda e o incentivo dos familiares.
Isto nos permite dizer que o contexto familiar é muito importante para o retorno do
sujeito afásico para a sociedade. É através da família que o sujeito poderá ter possibilidades de se
colocar. Isso dependerá dos laços e das relações anteriores, e das reações dos membros da família.
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Além disso, vemos que os sujeitos têm oportunidades de participar do contexto
familiar, porém, muitas vezes, são eles que se isolam, se excluem desse grupo.
Mudanças na imagem de si mesmo
A imagem que o sujeito tem de si é construída ao longo da vida; é no contato com
outros sujeitos que o sujeito se percebe diferente do outro e assim sabe quem ele é. É na/pela
linguagem que o sujeito forma uma imagem de si, dos outros e do mundo.
O sujeito agora afásico não é mais a mesma pessoa de antes. As pessoas o tratam
diferente e ele se percebe também diferente; essa percepção traz marcas da história do sujeito
que podem contribui positivamente para o enfrentamento das dificuldades atuais ou podem
constituir barreiras para vencer os obstáculos que se apresentam. Assim, encontrar um novo
significado para a vida, vai depender do passado, da história de cada um.
Nos episódios aqui apresentados, vemos como as mudanças na imagem de si mesmo
são trazidas nos discursos dos sujeitos e como essas mudanças influenciam as relações
interpessoais.
Episódio 1 – referente à 5ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Estavam presentes Maria, Álvaro, Samia, Carlos, Carlão, Carlinhos,
Luciane e Melissa e os sujeitos comentavam sobre relacionamentos.
Turno 27 – Carlão: Quando vô pra fora, quando vô pra fora eu converso com quem tá lá fora,
mas com o resto não, com o resto não.
Turno 28 – Luciane: Tá preferindo ficar dentro de casa do que procurar as pessoas pra conversar?
Turno 29 – Carlão: Melhor pra mim.
Turno 30 – Luciane: Por que?
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Turno 31 – Carlão: Porque telefone, telefone.
Turno 32 – Luciane: Ah! O senhor fica esperando telefonema o dia inteiro?
Turno 33 – Carlão: É por aí.
Turno 34 – Luciane: Ah! É por aí, tô, tô entendendo.
Turno 35 – Carlão: É por aí.
Turno 36 – Carlos: Ele fica esperando o telefonema da namorada dele.
Turno 37 – Luciane: Fica esperando o telefonema da namorada?
Turno 38 – Carlão: É (...) Trecho ininteligível
Turno 39 – Carlinhos: comenta sobre o exame auditivo que fez na clínica de fonoaudiologia.
Turno 40 – Luciane: Mas oh! Seu Carlinhos nós tavamos falando aqui de casamento, ajuntar,
namorar e o senhor tem namorada, teve namorada?
Turno 41 – Carlinhos: Eu tive, mas agora não dá.
Turno 42 – Luciane: Tá sem namorada?
Turno 43 – Carlinhos: Tô.
Turno 44 – Luciane: Não senti falta, não tem vontade de se relacionar com outra pessoa?
Turno 45 – Carlinhos:velho.
Turno 46 – Luciane: Tá velho já?
Turno 47 – Carlos: Tá velho nada, velho é trapo.
Turno 48 – Luciane: Velho é trapo! (...) Firme e forte, mas se aparecer um amor o senhor num
rejeita?
Turno 49 – Carlinhos: Trecho ininteligível
Turno 50 – Luciane: O senhor acha que isso é impedimento?
Turno 51 – Carlinhos: É.
Turno 52 – Luciane: É!? O senhor acha isso, seu Carlos? Ele tá falando que ele tá velho e que ele
teve o derrame e que por isso ele não pode arranjar uma namorada ou uma companheira.
Turno 53 – Carlos: Depende muito dele
Turno 54 – Luciane: Se ele pensar assim ...
Turno 55 – Carlos: Se ele pensar assim acaba.
Turno 56 – Samia: Comenta sobre o que estão conversando com Maria.
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Turno 57 – Luciane: Agora tem que aprender a lidar com essas coisas.
Turno 58 – Carlos: E eu tenho problema na perna e na cabeça e eu pensando assim nunca que eu
vou pra trás tem que esquecer disso aí e ir pra frente.
Turno 59 – Samia: Se fosse assim o senhor ia ficar em casa fechado o dia inteiro.
A percepção, nesta sessão, foi que Carlão se vê como impossibilitado de manter as
relações sociais que mantinha anteriormente. Está preferindo ficar dentro de casa a sair e participar
da vida em sociedade e assim ele acaba se excluindo do convívio com os outros sujeitos. Mesmo
assim, revela ter uma namorada, o que é um aspecto bastante positivo, uma vez que o coloca
incluído no grupo social. Carlinhos, por sua vez, diz no turno 41 que teve uma namorada, mas
agora não dá, demonstrando assim, que o próprio sujeito estabelece seus limites para o convívio
no grupo. Já Carlos afirma que essa questão de namoro, casamento dependem muito da pessoa e
que ele não se deixou “abater” pelo problema de saúde, pela mudança decorrente da afasia e
buscou o que desejava, não se excluindo da vida em sociedade.
Episódio 2 – referente à 15ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Compareceram Carlos, Carlinhos, Carlão, Melissa e Luciane, e os sujeitos
comentavam sobre relacionamentos interpessoais.
Turno 82 – Luciane: Não tem com quem conversar. Cê largou sua namorada?
Turno 83 – Carlão: Larguei.
Turno 84 – Luciane: Foi definitivo?
Turno 85 – Carlão: Foi.
Turno 86 – Luciane: Agora então ...
Turno 87 – Carlão: Só eu, só eu, só eu.
Turno 88 – Luciane: Você por você mesmo.
Turno 89 – Carlão: Eu por mim.
Turno 90 – Luciane: Certo.
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Verificamos que Carlão, que antes se permitia namorar, agora já não o faz mais; está
preferindo ficar sozinho e acabou excluindo-se desse aspecto de sua vida.
Episódio 3 – referente à 17ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Estavam presentes Carlos, Carlão, Carlinhos e Melissa, e os sujeitos
comentavam como o grupo havia contribuído para a vida deles.
Turno 1 – Melissa: E aí eu queria saber o que, que vocês acharam do grupo, desse ano todo?
Turno 2 – Carlão: Pra mim tá bom.
Turno 3 – Melissa: Mas o que, que vocês acharam? Contribuiu? Não contribuiu?
Turno 4 – Carlão: Tá contribuindo pra mim, pra mim tá.
Turno 5 – Carlos:bom.
Turno 6 – Melissa: Mas como tá contribuindo? Todo mundo tem que falar, heim. Não é só o seu
Carlão não. Sempre é só o seu Carlão que fala, os dois ficam calados.
Turno 7 – Carlos: Foi bom.
Turno 8 – Carlão: Foi bom porque ...
Turno 9 – Melissa: Como assim? O que que tá melhorando, o que que tá piorando?
Turno 10 – Carlos: Foi bom, até casei. É claro que foi bom. Pra mim foi uma maravilha.
Turno 11 – Carlão: Pra mim tá bom.
Quando perguntado se o grupo tinha contribuído para a convivência fora do grupo,
Carlos afirma que “foi bom, até casei. É claro que foi bom. Pra mim foi uma maravilha”. Isso
mostra uma avaliação positiva do grupo que pode ter contribuído para incentivá-lo a enfrentar
suas dificuldades, superando os obstáculos impostos pela afasia.
Episódio 4 – referente à 17ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Registramos a presença de Carlos, Carlão, Carlinhos e Melissa, e Carlão
comentava sobre a contribuição do grupo.
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Turno 26 – Melissa: Mas por que que o senhor acha que aqui melhorou e lá fora não?
Turno 27 – Carlão: Ah! Porque lá fora num num num converso, né. Num tem como conversa lá
fora. Fale pra mim com quem que eu vou conversá lá fora.
Turno 28 – Carlos: Eh, eh. Sabe, sabe o que é tem, tem que pegar amizade Carlão. Conversar
com todos.
Turno 29 – Carlão: Amizade eu tenho.
Turno 30 – Carlos: Então Carlão!
Turno 31 – Carlão: Tava na pracinha, tava na pracinha agora, tava lá, tava lá cum colega
conversando.
Carlão, neste episódio, ainda inseguro com a mudança na imagem de si mesmo, se
permite participar das conversas fora do grupo somente quando existem pessoas que já o
conheciam antes do AVC, e assim, acaba não fazendo novas amizades e se exclui de novas
oportunidades de interação dialógica.
Os dados dos quatro episódios nos mostram que as variações os sujeitos, muitas
vezes, por não se reconhecerem mais, não acreditarem mais neles mesmos, por se sentirem
diminuídos e por sentirem vergonha do que lhes aconteceu, não se permitem namorar, casar, ter
relações de amizade, levando-os ao não-reconhecimento de si, à retração e ao isolamento.
No entanto, esse dado também nos mostra que os sujeitos afásicos podem ter
consciência de sua diferença sem deixar de acreditar em suas possibilidades e isso os leva a
acreditar em uma vida “normal”, que não exclua relações de amizade, namoro e até casamento,
como disse Carlos.
Podemos perceber, assim, que cada sujeito tem um modo de enfrentar a mudança na
imagem de si mesmo. Uns se deixam intimidar e se excluem da vida em sociedade e outros não
se deixam e buscam participar da comunidade onde estão inseridos.
63
O enfrentamento das dificuldades cotidianas
É na sociedade, fazendo as coisas do dia-a-dia, trabalhando, indo ao mercado, ao
banco etc, fazendo parte dela, que o sujeito se sente pleno, útil, ser social, se reconhece enquanto
ser da/na linguagem, significando o mundo ao seu redor.
É através da linguagem que assumimos nossa posição na sociedade e que somos
reconhecidos como pessoa. O sujeito afásico, por apresentar problemas de linguagem, na volta à
sociedade, sente-se marginal, pois esta coloca em dúvida sua integridade intelectual e assim o
sujeito tende ao isolamento, a fugir das oportunidades de diálogo ou quando está com outros
sujeitos num diálogo, se contenta em escutar por temer que os outros não o entendam. E para
que isso não aconteça, ele precisa reconhecer sua nova condição e aprender a viver com sua
afasia, levando em conta seus novos limites para poder se adaptar à sociedade, e aproveitar as
oportunidades que lhe aparecem.
Nos episódios aqui apresentados, vemos como o enfrentamento das dificuldades
cotidianas é trazido nos discursos dos sujeitos e como a vida em sociedade passa a representar
um lugar importante para que os sujeitos se sintam sujeitos da/na linguagem e pertencentes à
comunidade onde estão inseridos.
Episódio 1 – referente à 5ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Neste episódio, estavam presentes Maria, Álvaro, Samia, Carlos,
Carlinhos, Carlão, Luciane e Melissa, e os sujeitos comentando sobre os momentos de diálogo
fora do grupo.
Turno 14 – Carlão: Aqui eu falo, falo.
Turno 15 – Luciane: Só tá falando bastante aqui no grupo Carlão?
Turno 16 – Carlão: Só.
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Turno 17 – Luciane: Fora daqui?
Turno 18 – Carlão: Não, num tem que falar nada, num tem que falar nada. (Balança a cabeça
negativamente).
Turno 19 – Luciane: O senhor acha isso seu Carlos, seu Carlinhos? Eu fiz agora confusão. Seu
Carlinhos, o senhor também faz como o Carlão, lá em casa não conversa, fica queto também?
Turno 20 – Carlinhos: Não, converso.
Turno 21 – Luciane: Conversa com o seu cunhado, sua prima. Mas com gente de fora?
Turno 22 – Carlinhos: Converso.
Turno 23 – Luciane: Conversa também! O lá Carlão!
Turno 24 – Carlão: Mas eu num converso, num converso, porque num vô pra fora.
Turno 25 – Samia: Mas porque você não vai pra fora?
Percebemos aqui que Carlão só mantém interações dialógicas no grupo, pois fora do
grupo “num tem que falar nada, num tem que falar nada” (turno 18) e assim ele continua excluindo-
se da vida em sociedade. E Carlinhos, do jeito dele (mais através de gestos e expressões faciais
do que da fala), conversa no grupo e fora dele.
Episódio 2 – referente à 15ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Estavam presentes Carlos, Carlinhos, Carlão, Luciane e Melissa, e os
sujeitos comentavam sobre os locais aonde iam e se ali existiam momentos de diálogo.
Turno 76 – Luciane: E o senhor não vai na igreja?
Turno 77 – Carlos: Vô.
Turno 78 – Luciane: E na igreja o senhor conversa com os amigos ou fica queto?
Turno 79 – Carlos: Converso com todos lá.
Turno 80 – Luciane: Conversa com todos. Okai! O Carlão já contou que conversa aqui por que
no dia-a-dia ...
Turno 81 – Carlão: Não tem com quem conversar.
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Carlos, neste episódio, diz que vai à igreja e conversa com todos lá, para ele não
existe dificuldade em fazer estas coisas; ele não se exclui das atividades da vida. Já Carlão diz
que conversa no grupo porque no dia-a-dia “não tem com quem conversar”, pois ele prefere ficar
sozinho e se excluir da comunidade.
Episódio 3 – referente à 15ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Compareceram a sessão Carlos, Carlinhos, Carlão, Luciane e Melissa, e
os sujeitos comentavam sobre as atividades do cotidiano.
Turno 91 – Melissa: E na rua? O senhor vai no banco? Tem que conversar, tem que falar.
Turno 92 – Carlão: Vou no banco, mas não converso com ninguém.
Turno 93 – Luciane: Passa o cartão ...
Turno 94 – Carlão: É passo o cartão e assim vou.
Turno 95 – Luciane: Paga as contas ...
Turno 96 – Carlão: Trecho ininteligível
Turno 97 – Luciane: Aham! Do jeito que tá o que que o senhor tá sentindo? O que que cê sente?
Turno 98 – Carlão:bom.
Turno 99 – Luciane: Tá bom. E o senhor acha que …
Turno 100 – Carlão: Converso com o vizinho, com o vizinho converso, mas tá doente.
Turno 101 – Luciane: Ai meu Deus!
Já aqui, vemos que Carlão até se permite participar da vida em sociedade, realizando
as atividades do cotidiano que fazia antes de ter o AVC, mas se exclui das interações dialógicas
com pessoas fora do seu círculo de amizade.
Episódio 4 – referente à 16ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Estavam presentes Carlos, Carlinhos, Carlão e Melissa, e os sujeitos
estavam comentando sobre o que tinham feito no fim de semana.
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Turno 1 – Melissa: É, então fez alguma coisa, se divertiu.
Turno 2 – Carlão: Fiz, fiz alguma coisa.
Turno 3 – Melissa: Conversou com os amigos?
Turno 4 – Carlão: Opa!
Turno 5 – Melissa: E aí?
Turno 6 – Carlão: E aí conversou, né. Bastante coisa.
Turno 7 – Carlão: E aí, deu certo, foi tudo bem, eles entenderam, o senhor conseguiu falar tudo,
como é que foi?
Turno 8 – Carlão: Fui falando assim, devagar fui falando as coisas né, é por aí, é por aí.
Turno 9 – Melissa: E eles?
Turno 10 – Carlão: Também.
Turno 11 – Melissa: Compreenderam tudo? Tudo que eles não entendiam, eles perguntavam?
Turno 12 – Carlão: Ah! Perguntam, perguntam. Opa! Pode perguntar, não tem problema nenhum,
só é difícil responder, e respondo bem, falo devagar, fala devagar pra não confundir, entendeu?
Turno 13 – Melissa: E eles perguntam se o senhor tem alguma coisa ou eles já sabem?
Turno 14 – Carlão: Não, todo mundo já sabe.
Turno 15 – Melissa: Ah! Então não ficam perguntando por que o senhor tá falando assim.
Turno 16 – Carlão: Ah, não. Não, não, não, já sabem.
Turno 17 – Melissa: Então, eles já..., também..., já estão preparados pra ter paciência.
Turno 18 – Carlão: É tudo por aí.
Turno 19 – Melissa: E vocês? (se referindo à Carlinhos e Carlos)
Turno 20 – Carlinhos: Fiquei em casa.
Turno 21 – Melissa: Ficou em casa?
Turno 22 – Carlinhos: Balança a cabeça confirmando
Turno 23 – Melissa: Ah! Mas fez alguma coisa? Não saiu, foi no baile, foi na igreja?
Turno 24 – Carlinhos: Fez sinal que não com o dedo indicador
Turno 25 – Carlinhos: Trecho ininteligível
Turno 26 – Melissa: Am?
Turno 27 – Carlinhos: Fui só na igreja.
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Turno 28 – Melissa: Ah! Foi só na igreja. Mas a igreja não é só no domingo?
Turno 29 – Carlinhos: Não. Todo dia.
Turno 30 – Melissa: A igreja é todo dia?
Turno 31 – Carlinhos: Faz sinal com a cabeça confirmando
Turno 32 – Carlão: Hoje vai também?
Turno 33 – Carlinhos: Faz sinal com a cabeça confirmando
Turno 34 – Melissa: Por isso que eu nunca encontro o senhor em casa, quando eu tenho que ligar
pra avisar que não vai ter ou alguma coisa. Eu ligo... tá na igreja, tá na igreja, tá na igreja. E o
senhor seu Carlos?
Turno 35 – Carlos: Trecho ininteligível
Turno 36 – Melissa: Am? A gente não está escutando.
Turno 37 – Carlos: Eu fui pra igreja no domingo, porque na semana minha mulher operou a
perna, tirou as varizes.
Turno 38 – Melissa: Então, não deu pra passear, né? Por que parece que não pode andar, fazer
esforço.
Vemos aqui que Carlão já se permite ter momentos de interação dialógica com um
pouco de cautela “falando devagar pra não confundir”, mas se permite, participa, se inclui nas
rodas de conversa com amigos. E Carlinhos participa de atividades já realizadas antes do AVC,
como ir à igreja, mas não comenta muito nem sobre outra atividade realizada.
Episódio 5 – referente à 15ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Registramos a presença de Carlos, Carlinhos, Carlão, Luciane e Melissa,
e os sujeitos estavam comentando sobre conversar ao telefone.
Turno 36 – Melissa: Eu perguntei pra ele por que nas duas vezes que eu liguei pra ele pra falar que não
ia ter, que ele tinha faltado, ele não atendeu, a senhora que atendeu. É esposa do seu primo? Falou que
ele não tava. Ele disse que é porque ele não gosta de falar no telefone. Se referindo a Carlinhos.
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Turno 37 – Luciane: O senhor não fala no telefone. Então sempre que for ligar se for a gente, a
gente pode falar assim põe o seu Carlinhos mesmo no telefone. Ô! É aqui da fono. Eu quero falar
com ele pelo telefone. Ajuda se a gente falar assim?
Turno 38 – Carlão: Ajuda? Não ajuda, não.
Turno 39 – Luciane: Por quê?
Turno 40 – Carlão: Ele num fala.
Turno 41 – Luciane: Mas aí ele vai pro telefone e a gente tenta conversar que aí ele tenta conversar.
Turno 42 – Carlão: E quem que vai responder?
Turno 43 – Luciane: E aí a pessoa que tá do lado dele vai ajudar a gente, se a gente não consegui.
Mas eu acho ...
Turno 44 – Carlos: A pessoa que tá do lado dele ajuda ele.
Turno 45 – Luciane: Só que tem uma coisa quando cê tá no telefone que você não tem o contexto,
a articulação, você se força a falar com uma articulação melhor. Talvez esse tenha que ser um
exercício pro seu Carlinhos e explica o exercício.
Porque o que a gente tem que tentar trabalhar é a comunicação, é a qualidade de
comunicação de vocês não na terapia, aqui dentro, é fora. Como é que a vida é pra vocês levarem
a vida melhor, não é?
Os dados mostram que Carlinhos evita falar ao telefone, uma atividade que, antes do
AVC, era realizada com naturalidade, por temer que não seja entendido, e assim, acaba excluindo-
se dessa possibilidade dialógica.
Episódio 6 – referente à 17ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: neste episódio, estavam presentes Carlos, Carlinhos, Carlão e Melissa, e
os sujeitos estavam comentando sobre a ida ao comércio.
Turno 173 – Melissa: Pois é. Agora, por exemplo, quando o senhor vai na rua, o senhor precisa
de uma informação, alguma coisa...
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Turno 174 – Carlão: Mas eu não preciso.
Turno 175 – Melissa: Mas o senhor entra numa loja, vamos supor...
Turno 176 – Carlão: Num entro.
Turno 177 – Carlinhos: Risadas
Turno 178 – Melissa: Aí tá difícil, então né?
Turno 179 – Carlão: É tá difícil
Turno 180 – Melissa: Eu tô dizendo assim, se o senhor, se o senhor for...
Turno 181 – Carlão: Eu vou no mercado, eu vou no mercado, no mercado eu vou, peço...
Turno 182 – Melissa: O senhor vai no mercado, o senhor não pergunta quanto é?
Turno 183 – Carlão: Não, num pergunto, tem preço.
Turno 184 – Carlinhos: Risadas
Turno 185 – Carlos: Eu heim! Carlão!
Turno 186 – Melissa: Aí tá difícil. Porque o senhor podia perguntar, se o senhor fosse numa loja
comprar sei lá, um sapato, aí o cara vai perguntar que número é o sapato, aí o senhor vai falar,
assim nessa conversinha, assim que é só, já vai trabalhando.
Turno 187 – Carlão: Comprei um chinelo esses dias, comprei um chinelo.
Turno 188 – Melissa: Como é que foi?
Turno 189 – Carlão: Foi assim, veja bem. Passei por aqui entrei na loja e perguntei pra moça: cê
tem esse tipo 43? Falou: vou vê. Num tem, num tem. Então tá bom. Aí desci mais uma, mais
outra loja. Na outra loja vim cum chinelo, vim cum ele esses dia, vim cum ele, daí perguntei pra
moça lá: que que cê qué? Quero chinelo desse daqui 43, o número 43. Só o 42. Dá o 42. Trouxe
o 42. Aí deu certo. Quanto é que é? Tanto. Taqui.
Turno 190 – Melissa: Então, o senhor conversou.
Turno 191 – Carlão: Conversei, paguei.
Turno 192 – Melissa: Botou a linguagem pra fora.
Turno 193 – Carlão: Botei a linguagem pra fora. Conversei bastante, bastante não, conversei
isso daí, fui embora pra casa e pronto, cabou, cabou, cabou tudo.
Turno 194 – Carlinhos: Risadas
Turno 195 – Melissa: Então? Mas aos pouquinhos, né verdade?
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Turno 196 – Carlos: É. De pouquinho em pouquinho a galinha enche o papo.
Turno 197 – Melissa: É isso mesmo.
Turno 198 – Carlão: Vou pará de falar, vou pará de falar.
Este episódio é mais um exemplo de que Carlão se permite participar da vida em
sociedade, executando as atividades do cotidiano que já fazia antes do AVC, mas se exclui das
possibilidades de interação dialógica.
Esses seis episódios nos mostram como os sujeitos afásicos vivenciam os eventos
do cotidiano ocorridos na vida de cada um deles, e como reagem a eles. Percebemos que, muitas
vezes, os eventos ora os intimidam e ora não.
Diante de situações novas, alguns sujeitos desconfiam de si e temem suas
incompetências, o que os leva a evitar esse desconforto e isolar-se, excluindo-se. Essas situações,
muitas vezes, são senões da vida cotidiana, porém o sujeito, por não ter vivido tal situação na
nova condição de afásico, acaba por se sentir dessa forma, por temer o “desconhecido”. Quando
essas novas situações ocorrem com a presença de pessoas mais próximas do sujeito afásico, os
sujeitos se sentem mais à vontade em participar da vida em sociedade, pois essa pessoa tem
conhecimento do que lhe aconteceu, e o sujeito não se intimida.
As atividades do cotidiano, como ir à clínica de fonoaudiologia, à igreja, ao centro
comunitário, ao centro comercial, ao mercado, ao banco, “permitem que o sujeito afásico se
perceba como membro constituinte de sua comunidade e, conseqüentemente, comece a atribuir-
se o papel de ser social” (PEREIRA, 2003, p. 41).
A linguagem e a construção de uma nova imagem de si mesmo
Através das relações sociais estabelecidas, o sujeito afásico, vai construindo uma
nova imagem de si mesmo enquanto sujeito que se auto-identifica através do reconhecimento de
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si pelo outro. É na/pela/sobre a linguagem que se torna possível significar o mundo, as ações e as
pessoas. É na/pela linguagem que o ser humano constitui-se como humano na sua relação com o
“outro social”.
Nos episódios aqui apresentados, vemos, através dos discursos dos sujeitos, como a
linguagem e a imagem de si mesmo se vão construindo e como isso é importante para que o
sujeito volte a fazer parte da sociedade e se sinta inserido nela.
Episódio 1 – referente à 15ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Compareceram a sessão Carlos, Carlinhos, Carlão, Luciane e Melissa, e
os sujeitos estavam comentando sobre como estava, para eles, a linguagem deles.
Turno 1 – Luciane: No dia-a-dia como é que vocês tão sentindo a condição de vocês se
comunicarem com os outros? Como é que isso tá pra vocês?
Turno 2 – Carlão: Pra mim tá bom.
Turno 3 – Luciane: Tá faltando as palavras? Você acha que...
Turno 4 – Carlão: Falta, falta, falta, falta assim sabe. Deixo explicar pra você como é que é a
história. Eu quero falar e num consigo falar. Entendeu? Deu pra entender? É por aí. Eu quero
falar bastante coisa e num consigo falar. Entendeu?
Turno 5 – Luciane: E aí o que que você faz?
Turno 6 – Carlão: Que que eu faço? Eu num faço nada.
Turno 7 – Luciane: Cê fica queto?
Turno 8 – Carlão: Fico queto.
Turno 9 – Luciane: Mas aqui você fala bastante.
Turno 10 – Carlão: Falo bastante.
Turno 11 – Luciane: Cê acha que você fala bastante porque a gente te interpreta ou porque a
gente exige que você fale?
Turno 12 – Carlão: Não, vocês tão exigindo de mim preu falar bastante. Entendeu? É por aí também.
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Turno 13 – Luciane: Então e aí a pessoa que tá lá fora quando a gente exige de você, você fala,
né? Agora as pessoas lá fora...
Turno 14 – Carlão: Eu tenho vários pensamentos, pensamentos. Eu tô falando no pensamento,
pensamento, sabe, bastante. Agora sortá a voz tá difircil, tá difircil sortá a voz.
Turno 15 – Luciane: Por que as pessoas na hora que você tenta qual é a reação?
Turno 16 – Carlão: A reação? A reação? Nenhuma, nenhuma, num tem, num tem reação das
pessoas lá fora.
Turno 17 – Luciane: Num tem diálogo?
Turno 18 – Carlão: Num tem diálogo, num tem diálogo com ninguém, com ninguém assim, tô
explicando pra você o que acontece comigo, o que se passa comigo, o que se passa comigo (...).
Então, é isso aí, entendeu? Eu num tenho com quem conversar. Vô pra casa e de casa vou (...).
Então o que acontece? Acontece isso daí , eu não falo com ninguém.
Com este dado podemos perceber que Carlão, mesmo falando bastante no grupo, diz
não conseguir falar e que só fala no grupo porque as terapeutas exigem dele e fora do grupo ele
se exclui das interações dialógicas por “não ter com quem conversar” e porque “sortá a voz tá
difircil”.
Episódio 2 – referente à 2ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Neste episódio, estavam presentes Maria, Álvaro, Samia, Carlos,
Carlinhos, Carlão, Luciane e Melissa, e os sujeitos estavam comentando sobre os momentos de
que dispõem para dialogar dentro e fora do grupo.
Turno 38 – Luciane: Então, por exemplo, essa situação que a gente tá vivendo agora, o senhor
vem, o senhor vê a dona Maria com a dificuldade dela, às vezes de entender o que a gente tá
conversando, com a dificuldade de produzir a voz. Aí o senhor vê o seu Carlinhos que tem ali a
hora que fala a gente tem que, a articulação dele não é tão clara, não é tão precisa. Quando o
senhor vê isso no grupo o senhor fica encorajado de falar?
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Turno 39 – Carlão: Ah! Não.
Turno 40 – Luciane: Não!
Turno 41 – Carlão: Não, eu faço, faço minha parte.
Turno 42 – Luciane: Um hum.
Turno 43 – Carlão: Minha parte é essa daí que eu estou fazendo.
Turno 44 – Luciane: Certo.
Turno 45 – Carlão: Por exemplo, a gente não vem pra cá conversar? Vamos conversar, vamos
conversar, não tem problema pode cutucar eu ... Ah! É por aí.
Turno 46 – Luciane: Aqui no grupo o senhor sente que o senhor vem que é de fato pra conversar,
pra ser cutucado?
Turno 47 – Carlinhos: Tosse.
Turno 48 – Luciane: Fora daqui ...
Turno 49 – Carlão: Não.
Turno 50 – Luciane: O senhor prefere que, o senhor sabe que o contexto, ninguém precisa
cutucar o senhor, então o senhor vai ficando queto.
Esse dado nos mostra que Carlão não se encoraja a falar, fazer as atividades do
cotidiano, vendo sujeitos num estado pior do que o dele, para ele o que interessa é como ele está
e como ele era antes do AVC; para ele, ele já está fazendo a parte dele (turno 41) que é a de
conversar (turno 45) no grupo, agora fora do grupo, ele se exclui dos momentos de interação
dialógica, pois é mais fácil se excluir do que tentar interagir com outros sujeitos.
Esses dois episódios nos mostram que os sujeitos têm consciência dos papéis sociais
que assumem nas interações dialógicas, nos diferentes contextos sociais. Carlão reconhece a
função dele no grupo que é ilustrada quando ele fala “eu faço a minha parte” (turno 41).
Fora do grupo, os sujeitos também reconhecem qual é o seu papel, em que lugar
eles têm espaço para falar e onde eles não o têm; pois existem pessoas disponíveis ou não para
ouvi-los.
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Muitas vezes, os sujeitos afásicos, pelas dificuldades lingüísticas que apresentam e
pelas dificuldades com o “outro social”, tornam-se dependentes dos enunciados dos seus
interlocutores para expressar o seu “querer-dizer”, para realizar seu “intuito-discursivo”
(BAKHTIN, 2000). Ele passa a ser uma “terceira pessoa” sobre a qual os outros falam (NOVAES
PINTO, 1999).
No entanto, no momento em que o interlocutor autoriza o sujeito a sair do lugar do
não-dito para o lugar do dito, o sujeito deixa de ser passivo, submisso durante a interação dialógica
para ser ativo e responsivo.
Episódio 3 – referente à 2ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Estavam presentes Maria, Álvaro, Samia, Carlos, Carlinhos, Carlão,
Luciane e Melissa, e os sujeitos estavam comentando sobre o trânsito nas estradas quando Carlão
fez uso do etc para complementar a sua fala.
Turno 1 – Luciane: É muito difícil, senhor Carlão, ver uns carrinhos pequenos atrás do caminhão
e puxar pro acostamento e depois entrar?
Turno 2 – Carlão: Não é difícil. Acontece que lá em cima tem o boneco.
Turno 3 – Luciane: Por conta da multa é que os caminhoneiros ficam parecendo mal-educados?
Turno 4 – Carlão: É mais ou menos por aí etc, etc, etc.
Turno 5 – Luciane: O senhor está muito acomodado nesse etc, etc, etc, não tá não?
Turno 6 – Carlão: Tô.
Turno 7 – Luciane: No dia-a-dia o senhor tá usando muito isso?
Turno 8 – Carlão: Não, não uso, procuro ficar calado.
Turno 9 – Luciane: Pelo amor de Deus. Pior ainda.
Turno 10 – Samia: Não, seu Carlão!
Turno 11 – Carlão: Procuro não falar.
Turno 12 – Samia: Mas não pode. O senhor tem que falar.
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Turno 13 – Carlão: Eu tento ficar assim. Faz o gesto de silêncio, colocando o dedo indicador
perpendicular à boca.
Turno 14 – Samia: Por quê?
Turno 15 – Carlão: Porque é mais melhor ... melhor pra mim.
Turno 16 – Luciane: O que que o senhor sente quando tenta falar e não vem?
Turno 17 – Carlão: Eu sinto que tô... to... tô... tô deixando de falar, deixando de falar as coisas.
Então na cabeça tá remoendo. Entendeu?
Turno 18 – Luciane: Um.
Turno 19 – Carlão: Cabeça tá remoendo. Tudo que eu quero falar num consigo falar.
Turno 20 – Luciane: Aí a cabeça vai ficando cheia e o senhor vai ficando queto e aí a minha
pergunta é, que que o senhor sente? Isso é bom pro senhor?
Turno 21 – Carlão: Não, não é bom. Bom se eu tivesse falando ...
Turno 22 – Luciane: Um.
Turno 23 – Carlão: Tudo, né? Como eu queria falar. Entendeu? Então fica assim, o negócio é
assim, mais ou menos, mais ou menos por aí onde entra etc, etc, etc.
Turno 24 – Luciane: Aí o senhor faz etc, etc, etc.
Turno 25 – Carlão: Exatamente.
Turno 26 – Luciane: Por que daí o senhor dá uma disfarçada, né?
Turno 27 – Carlão: É.
Turno 28 – Luciane: Eu teria outras coisas...
Esse etc, etc, etc do senhor eu entendo assim, eu teria outras coisas pra falar, eu teria outras
coisas pra te contar, mas vamos parar por aqui porque já está o suficiente o que você tá fazendo.
Turno 29 – Carlão: É bom.
Turno 30 – Luciane: É isso mesmo?
Turno 31 – Carlão: É bom.
Turno 32 – Luciane: Então, senhor Carlão, o que acontece? Se o senhor fizer isso as coisas vão
continuar lá dentro.
Turno 33 – Carlão: Vai continuar lá dentro, mas o que acontece, acontece que eu quero pôr pra
fora e não consigo.
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Turno 34 – Luciane: Mas o senhor não está conseguindo colocar agora pra gente?
Turno 35 – Carlão: Agora tô.
Turno 36 – Samia: Mas o senhor fala tão bem.
Turno 37 – Carlão: Agora tô, agora tô numa situação nós não vamos falar difícil, fácil, fácil pra
mim pra mim pôr pra fora, entendeu?
Percebemos, neste dado, que Carlão diz preferir ficar calado a participar de momentos
de interação dialógica e quando tem esses momentos acaba não falando tudo o que queria por
temer a reação dos outros e para disfarçar sua fala utiliza “etc, etc, etc” que faz com que ele não
pareça alguém com problema na fala. Este episódio nos mostra que Carlão esta numa fase de
adaptação onde, às vezes, prefere não falar, excluindo-se das interações dialógicas e outras vezes
fala, mas não tudo de que gostaria, o que também o exclui.
O dado revela a percepção que Carlão tem de sua fala e o papel da interlocução na
reorganização de condições discursivas em que se exerce a linguagem. É nas interações lingüísticas
que temos a possibilidade de refletir sobre a linguagem.
Nesse dado, percebemos que o sujeito Carlão “olha-se de fora para formular o seu
dizer, e esta é uma das condições em que se realiza a subjetividade” (COUDRY, 1997 apud
NOVAES PINTO, 1999, p. 167). “Essa possibilidade – a de olhar-se de fora – atua em sentido
favorável ao reconhecimento da dificuldade” (NOVAES PINTO, 1999, p. 167).
Essa possibilidade de “olhar-se de fora” é facilitada pelo interlocutor, que cria
condições para que o sujeito possa confrontar-se com suas possibilidades e limitações.
No entanto, se o sujeito afásico não tem um interlocutor, fica mais difícil ele perceber-
se, perceber suas possibilidades e limitações: dificulta, assim, sua reinclusão social, por medo
do fracasso, o que faz com que ele se isole cada vez mais.
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Podemos dizer que é a partir da percepção de si, da percepção das dificuldades e das
limitações que o sujeito afásico poderá definir-se como uma “nova” pessoa e assim assumir o
seu “novo” papel social.
Além disso, esse dado revela as competências metalingüísticas, pragmáticas de Carlão,
quando ele fala do uso do “etc, etc, etc”. Ele reflete a tal ponto de usar a própria linguagem para
falar da dificuldade dele.
Episódio 4 – referente à 2ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Compareceram Maria, Álvaro, Samia, Carlos, Carlinhos, Carlão, Luciane
e Melissa, e os sujeitos estavam comentando sobre a reação dos outros sujeitos com relação à
fala deles.
Turno 88 – Luciane: E aí, o senhor escuta muitos comentários? Oh! Carlão, que jeito o senhor tá
falando? Como é que é isso? Calma! As pessoas falam alguma coisa com relação à fala do
senhor?
Turno 89 – Carlão: Fala.
Turno 90 – Luciane: Que que falam?
Turno 91 – Carlão: Fala assim pra mim, por exemplo, você tá bom, você tá bom, tá bom, tá bom,
tá bom, tá bom, agora vem falar pra mim que eu não tô bom, não tô bom, não tá bom, não tá bom.
Turno 92 – Carlinhos: Risadas
Turno 93 – Luciane: Quer dizer eles falam você tá bom Carlão, mas o senhor sabe que no fundo,
no fundo eles poderiam falar, ih! O Carlão não tá bom, né? Mas ninguém fala isso.
Turno 94 – Carlão: É então por aí, por aí mais ou menos, né?
Turno 95 – Samia: Ah! Mas eu acho que é que as pessoas estão vendo que o senhor está falando
normal, o senhor conhece todo mundo, o senhor fala, responde. E então. Mas realmente o senhor
tá bom.
Turno 96 – Carlão: Por tudo que aconteceu.
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Turno 97 – Samia: Isso. Por isso aí que falam que o senhor tá bom, entendeu? Né, senhor Carlão, o
senhor fica bravo que as pessoas perguntam oh! você tá bom, né. O senhor acha que o senhor não tá.
Turno 98 – Carlão: Eu num tô.
Turno 99 – Samia: A minha mãe também fica brava. As pessoas chegam e falam como é que tá
Dona Maria. Aí eu respondo, ele tá bem. Aí, ela fica brava, porque ela num tá bem, mas o tá bem da
gente, que a gente fala que ela tá bem é porque ela já teve momentos assim... pra gente hoje ela tá
ótima em relação ao que ela já passou, entendeu? Então, que nem o senhor falou assim, fale que eu
tô bem, eu num tô bem, o senhor não se sente bem, a mesma coisa ela, mas a gente que acompanha
no dia-a-dia sabe o jeito que ela fico e como ela tá hoje..., a gente só agradece, entendeu?
Turno 100 – Carlão: Tá bom, é por aí mesmo, é por aí.
Turno 101 – Carlos: A gente só tem a agradecer a Deus.
Turno 102 – Samia: Exatamente! É o que a gente faz.
Neste episódio, vemos que Carlão tem uma imagem de si negativa e diferente de
como os outros o vêem. Os outros vêem Carlão como um bom falante, o que para ele não é
verdade. Isso mostra como Carlão não acredita em si mesmo, principalmente em relação à fala e
por isso, muitas vezes, se exclui das interações dialógicas.
Esse dado mostra que “o sujeito afásico apresenta um estranhamento de si, do sujeito
que passou a ser depois da afasia. É como se houvesse dois sujeitos depois da afasia; o que antes
exercia seus múltiplos papéis – com eficácia, e aquele que acontece com a afasia” (COUDRY,
2002, p. 112).
A imagem deteriorada que ele tem dele é (co)construída pelo “olhar-se de fora”, que
é, “o olhar-se pelo olho do outro”. Essa imagem reflete não só na reconstrução da linguagem,
mas também na constituição da subjetividade.
Influenciando no processo de construção da relação desse sujeito com a linguagem
da comunidade em que eles estão inseridos e, através disso, com essa comunidade.
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Episódio 5 – referente à 2ª sessão terapêutica do grupo
Contexto: Registramos a presença de Maria, Álvaro, Samia, Carlos, Carlinhos,
Carlão, Luciane e Melissa, e os sujeitos estavam comentando sobre o dia em que eles foram
acometidos pelo AVC.
Turno 98 – Carlão: Pois é, no dia, no dia que aconteceu eu não conhecia ninguém.
Turno 99 – Samia: E então?
Turno 100 – Carlão: Não conhecia não, modestia a parte, não queria conhecer, eu tava calado.
Turno 101 – Luciane: O senhor não queria reconhecer ninguém?
Turno 102 – Carlão: Não, (...) sei lá e foi assim.
Turno 103 – Luciane: Aí depois que devagarzinho o senhor foi querendo entender o que tava
acontecendo com o senhor.
A conversa foi interrompida com a chegada de Carlos. Ele explica por que chegou
atrasado e Luciane retoma o assunto.
Turno 104 – Luciane: Seu Carlos, o seu Carlão tá contando pra gente do que ele sente quando...
é... ele tem que conversar com as pessoas que não seja aqui no grupo como é que ele tá resolvendo
essa situação. E aí ele tá explicando isso porque eu falei pra ele, bom, seu Carlão o senhor usa
um etc, etc, etc aí que a gente precisa começar mexer com essa... com essa história. E aí ele tava
contando quando o senhor chegou, ele tava contando que quando ele ficou acamado que deu o
AVC o senhor ficou muito silencioso ficou queto no canto e aí as pessoas vinham ver o senhor e
faziam comentários. O senhor entendia os comentários?
Turno 105 – Carlão: Entendia.
Turno 106 – Luciane: E aí o senhor não falava nada?
Turno 107 – Carlão: Não.
Turno 108 – Luciane: Quer dizer o senhor sabia o que estava acontecendo em volta do senhor...
Turno 109 – Carlão: Sabia.
Turno 110 – Luciane: E fez a escolha de ficar queto?
Turno 111 – Carlão: Exatamente.
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Turno 112 – Luciane: Mas o senhor não conseguia falar ou o senhor não queria falar?
Turno 113 – Carlão: Eu não queria falar.
Turno 114 – Samia: Ah! O senhor não queria falar.
Turno 115 – Carlão: É.
Turno 116 – Samia: Certo.
Turno 117 – Luciane: E aí quando que começou a falar e por quê?
Turno 118 – Carlão: No dia seguinte eu comecei a falar, comecei a falar assim, certo? Ah, deixa
eu pensar um pouco, deixa eu pensar um pouco como quis falar. Assim de mente, propósito, de
tudo, de tudo um pouco quis falar, comecei a falar, sortei a voz. Então é assim, por aí, por aí.
Turno 119 – Luciane: Vamos escutar um pouco da história do seu Carlinhos. Quando o senhor
teve o problema no cérebro, igual ao seu Carlão, o senhor entendia o que estava acontecendo em
volta do senhor ou não?
Turno 120 – Carlinhos: Entendia.
Turno 121 – Luciane: Entendia. E como que o senhor reagiu, como que o senhor fez?
Turno 122 – Carlinhos: Num lembro.
Turno 123 – Luciane: O senhor num foi de ficá queto e só ficá vendo o que tava acontecendo ou
o senhor tentava se comunicar com as pessoas?
Turno 124 – Carlinhos: Ficava queto.
Turno 125 – Luciane: O senhor tentava?
Turno 126 – Carlinhos: Não, ficava queto.
Turno 127 – Luciane: Ah! O senhor também ficou queto.
Turno 128 – Carlinhos: No dia entortou a boca e eu nem percebi.
Turno 129 – Luciane: Entortou a boca e o senhor não tinha percebido que a boca tava torta?
Turno 130 – Carlinhos: Trecho ininteligível
Turno 131 – Luciane: Nossa! Aí o senhor levou um susto
Turno 132 – Carlinhos: Trecho ininteligível
Turno 133 – Luciane: Primeiro entortou a boca, aí essa dificuldade pra engolir, ela veio depois que
o senhor tava lá no pronto socorro ou o senhor entrou no pronto socorro com essa dificuldade já?
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Turno 134 – Carlinhos: Já.
Turno 135 – Luciane: Já entrou.
Turno 136 – Carlinhos: Trecho ininteligível
Turno 137 – Luciane: Como é que é?
Turno 138 – Carlinhos: Sonda, com a sonda.
Turno 139 – Luciane: Ah! Passou a sonda, tá.
Turno 140 – Carlinhos: Trecho ininteligível
Turno 141 – Luciane: Entubou, né? O peito... O senhor fez entubação aqui? Toca na região
anterior do pescoço. Ou foi pela boca?
Turno 142 – Carlinhos: Pelo nariz e pega no nariz
Turno 143 – Luciane: Pelo nariz, pelo nariz. Tá, então o senhor entrou no pronto socorro com a
boca torta aí piorou. Aí o senhor aí entrou, ficou internado, passou sonda porque aí começou
com dificuldade pra engolir. Então o que a gente tá querendo agora é entender mais o quadro
orgânico de vocês, o que, que aconteceu fisicamente, né, com vocês, pra gente poder associar ao
estado que vocês tão usando linguagem, né, a deglutição e tudo mais.
No episódio dialógico acima, podemos observar que os sujeitos afásicos, por
apresentarem um conflito interno, por se estranharem, “não queriam falar”, pois precisavam
perceber quais eram suas possibilidades lingüísticas nessa nova condição e como os outros iriam
reagir a essa sua nova condição, a esse “outro dele mesmo”.
O sujeito afásico necessita da ajuda do seu interlocutor para sua fala ter significado
e quem dá esse significado é o outro, pois o significado não existe “a priori”. Portanto, o papel
do interlocutor na interação dialógica é o de dar sentido à fala do outro, e o de dar acabamento ao
enunciado do sujeito afásico.
É no processo de co-construção de significados com os outros sujeitos, que o sujeito
afásico torna-se consciente de quem é, e constrói sua subjetividade ao agir no mundo, através da
linguagem.
CAPÍTULO V
CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE A INCLUSÃO SOCIAL NO
PROCESSO DE RECONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM E CONSTITUIÇÃO
DO SUJEITO NA AFASIA
Neste estudo, busquei escutar pessoas afásicas e refletir sobre a inclusão social no
processo de reconstrução da linguagem e constituição do sujeito na afasia, pautada em pressupostos
teóricos que, apesar das suas especificidades, preocupam-se com a constituição do ser humano.
As considerações elaboradas no decorrer das análises voltaram-se, em especial, para essa formação
social, para a reconstrução da linguagem e para a constituição do sujeito na afasia, e como ela se
concretiza na vida social do sujeito afásico, e assim, a sua inclusão social.
Retomando a questão já levantada, de que as relações sociais afetam e constituem a
subjetividade, remetemos-nos ao contexto grupal, pois parece oportuno pensar como este tem
afetado a reconstrução da linguagem e a constituição dos sujeitos afásicos inseridos em grupos
de terapia fonoaudiológica, bem como quais as repercussões destes ganhos extragrupo.
O sujeito afásico no grupo tem a possibilidade de, na convivência com outros sujeitos
e através de situações dialógicas, se reconhecer enquanto sujeito da e na linguagem através do
olhar do outro. Dessa forma, ele passa a reconstruir não só a sua linguagem, como também a
constituir sua subjetividade. Este ganho intragrupo, a reconstrução da linguagem e constituição
da subjetividade, podem levar a reinclusão social com melhoria na qualidade de vida.
No entanto, não podemos afirmar com certeza, que somente a experiência em grupo
irá favorecer a reinclusão social, pois não depende somente do sujeito afásico ou da sociedade.
A inclusão social depende tanto do sujeito como do grupo social, o que significa dizer que
estamos em um processo de mão dupla em que sujeito e sociedade participam ativamente da
construção dessa relação. Além disso, estamos num processo constante de inclusão/exclusão,
pois esse processo é um produto do funcionamento da sociedade, onde ora estamos incluídos e
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ora estamos excluídos em aspectos de nossas vidas e nos vários “grupos” de convivência, no
cotidiano do sujeito.
Este processo depende, principalmente, de como o sujeito se relacionava e se relaciona
com ele mesmo, com os outros sujeitos e com a sociedade, pois existem diferentes maneiras de
ser e de se relacionar com o mundo e as pessoas; e isto afeta diretamente a inclusão ou exclusão
do sujeito em sua comunidade.
Assim, o sujeito afásico precisa acreditar em si mesmo, conhecer-se, perceber suas
dificuldades e limitações, perceber-se enquanto sujeito da e na linguagem, para daí poder permitir-
se fazer parte da comunidade em que ele está inserido. E tudo isso fica mais fácil se ele tiver o
apoio não só da família, como também da sociedade, através de seus centros comunitários,
associações e centros de reabilitação, como a clínica-escola, onde acontecem os grupos de terapia
fonoaudiológica.
A sociedade, aqui representada pelos profissionais de saúde, pelos fonoaudiólogos,
que trabalham diretamente com a linguagem e com os sujeitos afásicos, tem um papel
importantíssimo na vida desses sujeitos, pois é através da linguagem em funcionamento, da
reconstrução da linguagem que o sujeito irá reconhecer-se nos diálogos com outros sujeitos.
Assim, o trabalho desses profissionais deve envolver não só as questões físicas e da
linguagem enquanto tal; mas também deve considerar o funcionamento do sujeito como um
todo, seu estado psíquico e mental.
Nessa direção, é preciso que as discussões sobre a inclusão social dos sujeitos afásicos
e a constituição de sua subjetividade sejam vistos nos atendimentos a essas pessoas, pois essa
questão é importantíssima para que o sujeito seja tratado de forma plena pelos fonoaudiólogos e
outros profissionais da saúde, e assim possa, através desse, “tratamento” diferenciado, voltar a
ser um sujeito participante da sociedade.
84
A meu ver, nos dias atuais, os sujeitos afásicos, geralmente, não são vistos como um
todo, são vistos apenas como uma patologia de linguagem, assim excluídos enquanto sujeitos
íntegros. É imprescindível a construção de uma nova visão a respeito do sujeito afásico. É
fundamental que os profissionais da saúde, os fonoaudiólogos tenham envolvimento na
reconstrução da linguagem, na constituição da subjetividade e no processo de inclusão social.
Essa é a fonoaudiologia na qual eu acredito, a que vê o sujeito não como uma
patologia, com sintomas a serem tratados, mas como um sujeito com possibilidades de compensar
as suas dificuldades, criando vias alternativas que tornem possível a sua superação. Só assim
caminharemos na direção da construção de práticas que garantam aos sujeitos afásicos
oportunidades de se reconhecerem como sujeitos da/na linguagem, como sujeitos sociais.
Retomando o objetivo inicial à luz da teoria que serviu de base para este trabalho,
que é olhar para o que os sujeitos afásicos dizem quanto à percepção de si e de sua inserção
social, como os sujeitos afásicos se reconhecem em relação aos outros e como circulam por
esferas da cultura, chegamos às seguintes conclusões:
ocorrem, sim, mudanças na imagem de si mesmo após o acometimento abrupto
pela afasia. O sujeito não se reconhece mais e também não é reconhecido pelos
outros que o cercam. Assim, ele é um outro dele mesmo;
essa mudança na imagem de si mesmo leva a um enfrentamento das dificuldades
cotidianas, pois nem o sujeito está preparado para voltar à vida em sociedade
nem a sociedade está pronta para recebê-lo;
o grupo familiar e o grupo social, na maioria das vezes, sofrem com o acometimento
do sujeito; mas depois da adaptação, são eles que dão apoio ao sujeito para a
retomada da vida;
85
através da linguagem em funcionamento, o sujeito afásico tem a possibilidade de
construir uma “nova” imagem de si mesmo, pelo reconhecimento de si através do
outro;
o grupo terapêutico-fonoaudiológico é um dos contextos facilitadores para a
reconstrução não só da linguagem como da imagem de si mesmo;
a inclusão social nem sempre acontece, pois não podemos afirmar que o que
acontece no grupo com certeza irá acontecer fora dele.
Assim, através da significação, possibilitada pela interação dialógica e pelo outro, é
possível ao sujeito reconhecer a si mesmo e ao outro, enfrentando sua nova condição e prosseguir
a construção dinâmica e continuada como sujeito, agora afásico, inserido em seu grupo social.
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