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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
André Luiz dos Santos Barbosa
(DES)ORIENTAÇÃO SEXUAL: UMA PROBLEMATIZAÇÃO DA
SEXUALIDADE NO ESPAÇO ESCOLAR
RIO DE JANEIRO
2006
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André Luiz dos Santos Barbosa
(DES)ORIENTAÇÃO SEXUAL: UMA
PROBLEMATIZAÇÃO DA SEXUALIDADE NO ESPAÇO ESCOLAR
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Educação da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Educação.
Orientador(a):Prof(a) Dr.ª Maria Amélia Souza Reis.
RIO DE JANEIRO
2006
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Barbosa, André Luiz dos Santos.
B238 (Des)orientação sexual : uma problematização da
sexualidade no espaço escolar / André Luiz dos Santos,
2006.
95f.
Orientador: Maria Amélia Souza Reis.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2006.
1. Educação sexual. 2. Educação sexual para juventude.
3. Orientação sexual. 4. Sexo. 5. Educação – Aspectos so-
ciais. 6. Currículos. I. Reis, Maria Amélia Souza. II. Uni-
versidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003-).
Curso de Mestrado em Educação. III. Título.
CDD – 372.372
Aos meus mestres, Luiz Carlos
Barbosa e Maria Amália dos Santos
Barbosa, que na satisfação dos seus
desejos mais indisciplinados me
geraram.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela proteção.
Aos meus pais, Luiz Carlos Barbosa e Maria Amália dos Santos Barbosa, por todo amor e
respeito que diariamente recebo.
A minha irmã, Gabriela dos Santos Barbosa, pelo exemplo, pelo estímulo e pelo carinho,
com os quais conduziu o meu retorno à vida acadêmica.
Aos meus cúmplices na resistência aos “contróles”: Maria Isabel da Cruz Azevedo e
Sidney Leonardo Silva.
Aos meus amigos: Ana, Bela, Tânia, Uilson, Íris, Bahiano, Nagá, Janciana &
Mônica,Tânia Cozzi e tantos outros, por me esperarem.
Aos jovens Erick e Michele, por manterem a beleza e a juventude perto de mim.
Ao Leonardo, pela cegueira e pela lucidez (ou seria pela lucidez e pela cegueira?), que
estão para além do Saramago.
Aos meus alunos do Centro Educacional Luiz Carlos Barbosa e do Colégio Estadual
Compositor Manacéia José de Andrade, por incessantemente discutirem sexualidade comigo.
A toda a equipe da Escola Municipal que me recebeu (administrativos, docentes e
discentes), pela confiança na minha investigação.
A minhas companheiras “Foucautianas”: Rosana, Luciana e Danielle.
Aos meus companheiros da primeira turma do Mestrado em Educação da UNIRIO, em
especial a Ísis, Warley, Sandra, Maia e Sérgio, parceiros, nesta jornada.
Aos Professores Doutores Célia Frazão Linhares, Miguel Angel de Barrenechea e
Guaracicra Gouvêa de Sousa, por aceitarem compor a banca de qualificação, enriquecendo a
minha discussão sobre o tema sexualidade na escola.
À Magnífica Reitora Professora Doutora Malvina Tânia Tuttman, por propiciar a
extensão universitária que originou essa investigação e, ainda, por enriquecer a banca de
qualificação com sua presença.
À Maria Amélia Souza Reis, que foi mais do que uma orientadora, foi, é e será sempre
uma grande EDUCADORA, a ELA, eu agradeço pelo acolhimento, pela dedicação, pela
compreensão, pelo incentivo e por toda a sabedoria que carinhosamente colocou a minha
disposição.
Muito obrigado!
“Os meninos e as meninas
Os meninos e os meninos
As meninas e as meninas
Eles só querem é amar
E que os deixem em paz.”
Cássia Eller
RESUMO
Entendemos a sociedade brasileira como multipluricultural, ou seja, constituída por
diferentes grupos sociais. Esses grupos têm representatividade, quer econômica, quer
social, assimetricamente distribuída. Diante das redes em que proliferam discursos
plenos em saberes-poderes de dominação e controle social no Brasil, a SEDIAE / MEC
-Secretaria de Desenvolvimento e Avaliação Educacional, do Ministério da Educação,
lança uma proposta pedagógica única para todas as escolas brasileiras. Esse projeto
recebe o nome de Parâmetros Curriculares Nacionais e torna-se conhecido pela sigla
PCNs. Entre as inovações sugeridas por essa proposta, encontramos a inserção no
currículo escolar dos temas (chamados de transversais): Ética, Saúde, Meio Ambiente,
Pluralidade Cultural, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo. Elegemos o tema
orientação sexual como foco da nossa problematização. Fundamentamo-nos
basicamente nos estudos da obra de Michel Foucault, que ao mesmo tempo em que
nos embasou teoricamente, encorajou-nos a buscar um caminho metodológico próprio.
Confrontamos a relação do discurso oficial, instituído nos PCNs, com as vivências
concretas de uma escola. Assim verificamos até que ponto o discurso oficial dá conta
das experiências dos alunos, até que ponto interfere nas suas vidas, ou ainda, até que
ponto torna-se um instrumento de controle.
Palavras-chave: Educação, Currículo, Transversalidade, Sexualidade.
ABSTRACT
We perceive Brazilian society as being multi-pluri-cultural, or, in other words, made up of
diverse social groups. These groups are represented socially and economically in an
asymmetrical manner. Faced with the networks within which speeches full of know-how
in domination and social control in Brazil proliferate, SEDIAE / MEC – The Secretariat
for Educational Development and Assessment, has launched a unique educational
program to cover all Brazilian schools. This project was named as the National
Curricular Parameters and has become known by the acronym PCNs. Amongst the
innovations suggested by this proposition is the insertion, into the educational
curriculum, of the so-called transversal subjects: Ethics, Health, Environment, Cultural
Plurality, Sexual Orientation, Work and Consumption. We have selected the topic of
sexual orientation as the main focus of our fact-finding. We base ourselves
fundamentally on the study of Michel Foucault´s works, who, at the same as he gives us
a theoretical basis, he also encourages us to find our own methological path. We
compare the official speeches, established within the PCNs, with the real, day-by-day
experience of a school. Thus, we are able to assess to which extent the official speech
is able to accommodate the pupil´s experiences, to which degree it interferes in their
lives, or, even, to which extent it becomes a control instrument.
Key-words: Education, Syllabus, Transdisciplinarity, Sexuality.
SUMÁRIO
Introdução
9
Capítulo I - Poder, Sexualidade e Educação
1.1. Michel Foucault e a construção de um caminho metodológico próprio 13
1.2.Uma investigação qualitativa 23
1.3. Currículo e Sexualidade 27
1.4. Transversalidade e Educação 30
Capítulo II - Os discursos sobre sexualidade na escola
2.1. A escola 35
2.2. Os discursos 39
2.3. O discurso dos Parâmetros Curriculares Nacionais 40
2.4. Corpo: matriz da sexualidade – O que dizem os PCNs? 42
2.5. Relações de Gênero – O que dizem os PCNs? 44
2.6. Doenças Sexualmente Transmissíveis / AIDS – O que dizem os PCNs? 46
2.7 O discurso dos alunos 48
2.8. Corpo: matriz da sexualidade – O que dizem os alunos? 49
2.9. Relações de Gênero – O que dizem os alunos? 57
2.10. Doenças Sexualmente Transmissíveis / AIDS – O que dizem os alunos? 61
2.11. Educação Sexual – O que diz a Instituição? 63
Capítulo III – Os discursos entrelaçados
3.1. Os Parâmetros Curriculares Nacionais e suas rupturas ou descontinuidades 68
3.2. Os Parâmetros Curriculares Nacionais e a Cidadania 68
3.3. A Instituição 78
3.4. Os alunos 80
3.5 Entrelaçando os discursos 86
Considerações Finais
90
Referências
91
Apêndices
94
9
Introdução
Entendemos a sociedade brasileira como multipluricultural, ou seja, constituída
por diferentes grupos sociais, os quais apresentam características próprias (costumes,
hábitos, valores éticos...) e interesses sociais, muitas vezes, antagônicos, uma vez que
esses grupos têm representatividade, quer econômica, quer social, assimetricamente
distribuída.
De acordo com esse caráter multipluricultural, é de esperar-se que seus
diferentes grupos constituintes apresentem saberes próprios e que, por conseguinte,
produzam relações de gênero e valores éticos distintos e muitas vezes conflitantes.
Na medida em que os conflitos entre os diferentes interesses desses grupos
foram se explicitando, as políticas sociais
1
(representantes legitimadas dos valores
resultantes desses conflitos e que vêm se afirmando através da homogeneização dos
mesmos) passaram a se apresentar como promotoras da harmonia entre eles.
Diante das redes em que proliferam discursos
2
plenos em saberes-poderes
3
de
dominação e controle social
4
no Brasil, a SEDIAE / MEC - Secretaria de
Desenvolvimento e Avaliação Educacional, do Ministério da Educação, revisa o
1
Para Tomaz Tadeu da Silva (2003), Políticas Sociais são formas hegemônicas de concepção do que significa boa
sociedade, boa educação, ou ainda, do que significa a própria identidade social que queremos ver construída.
.
2
No livro A ordem do discurso, Michel Foucault (1996) apresenta o discurso como o enunciado que corresponderia
à vontade de verdade (modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e
de certo modo atribuído) de determinada categoria social, colocando ainda que sua produção se daria a partir de
determinadas condições materiais que o determinaria.
3
Para Veiga-Neto (2004), no segundo domínio de sua obra, Michel Foucault procura fazer uma ontologia do sujeito
moderno (estudo de como nos tornamos aquilo que somos), reconhecendo o poder como o elemento capaz de
explicar como se produzem os saberes e como nos constituímos na articulação entre ambos.
4
Aqui chamamos de Controle Social a governamentalidade, conceito foucaultiano definido por Roberto Machado
(1992) como as práticas de governamento que têm na população seu objeto, na economia seu saber mais importante e
nos dispositivos de segurança seus mecanismos básicos.
10
processo educacional do país, enfatizando os discursos da qualidade de ensino e da
aprendizagem nos tempos de globalização econômica e cultural.
Com esse discurso, essa secretaria de governo lança uma proposta
pedagógica única para todas as escolas brasileiras, publicando e difundindo os
parâmetros que devem nortear sua estruturação curricular. Esse projeto recebe o
nome de Parâmetros Curriculares Nacionais e torna-se conhecido pela sigla PCNs.
Entre as inovações sugeridas por essa proposta, encontramos a inserção no
currículo escolar dos temas (chamados de transversais
5
): Ética, Saúde, Meio
Ambiente, Pluralidade Cultural, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo.
Em função da imbricação existente entre a distribuição da representatividade
dos saberes relacionados à sexualidade e à rede de distribuição de poderes que
constituem a sociedade, elegemos o tema orientação sexual (apresentado como
transversal) como foco da nossa problematização.
A despeito dos movimentos feministas que caracterizaram a revolução sexual
dos anos 60 e mais recentemente dos movimentos de gays e lésbicas, os saberes
ligados à sexualidade permaneceram ocultados no espaço escolar brasileiro, o tema
ficava restrito ao discurso médico higienizador, preso à disciplina ciências físicas e
biológicas e aos programas de saúde de governo.
Essa disciplina restringia a sexualidade a sua função reprodutora e vinculava-a a
uma série de doenças que categorizava como venéreas ou sexualmente transmissíveis.
5
Para Sílvio Gallo (1997), a transversalidade na educação apresenta-se como uma alternativa ao modelo disciplinar
(paradigma epistemológico caracterizado pela fragmentação do conhecimento em áreas chamadas disciplinas) que
11
Qualquer variante da função reprodutora da sexualidade era interditada, assim como
também eram interditadas a sua dimensão afetiva e qualquer forma de relação diferente
das que estavam legitimadas.
Na justificativa da inserção do tema Orientação Sexual na proposta dos PCNS,
aparecem alusões ao quadro social considerado como problemático pelo então
hegemônico discurso médico higienizador: “a gravidez indesejada entre as
adolescentes” (BRASIL, 1998, p 6) e “o risco da infecção pelo HIV entre os jovens
(BRASIL,1998, p 6).
Nossa problematização entende os PCNs como um discurso instituído e propõe-
se a fazer uma investigação dos seus documentos: Documento de Introdução aos
Parâmetros Curriculares Nacionais e Documento de Convívio social e Ética relativo ao
tema transversal Orientação Sexual, sustentada em pesquisa bibliográfica que
relaciona a educação, a sexualidade e o poder.
O discurso presente nesses é confrontado com o discurso de uma instituição de
ensino pública da cidade do Rio de Janeiro e com o discurso dos alunos do quarto Ciclo
do Ensino Fundamental dessa mesma Instituição.
O discurso da instituição é identificado a partir de entrevistas individuais com
seus representantes legitimados (O Diretor, a Coordenadora Pedagógica e a
Professora).
O discurso dos alunos pôde ser coletado a partir de debates gravados. Esses
debates foram provocados a partir da leitura de textos presentes nas seções
até então vigorou. Nessa nova perspectiva, o conhecimento recupera sua unidade que havia sido fragmentada em
disciplinas.
12
transversais (tema: Orientação Sexual) de livros didáticos de língua portuguesa,
aprovados pelo MEC.
A partir desse confronto, analisamos a relação do discurso oficial, instituído nos
PCNs, com as vivências concretas dos alunos dessa escola.
Assim verificamos até que ponto o discurso oficial dá conta das experiências dos
alunos, até que ponto interfere nas suas vidas, ou ainda, até que ponto torna-se um
instrumento de controle.
Fundamentamo-nos basicamente nos estudos da obra de Michel Foucault, que
ao mesmo tempo que nos embasou teoricamente, encorajou-nos a buscar um caminho
metodológico próprio.
Desse modo, acreditamos ter contribuído para a produção de outros caminhos
metodológicos, produzindo novas questões para futuras investigações sobre o
tratamento dado à sexualidade no espaço escolar e validando questões que nos
motivaram a desenvolver esse projeto, como as que seguem:
Como anda o tratamento dado à sexualidade no espaço escolar brasileiro? Que
discursos se entrecruzam nesse espaço que se diz democratizante? Que discursos
continuam interditados? Como se dá essa interdição? Que saberes são legitimados? E
a que grupos esses saberes delegam poderes e autoridades para falar de sexualidade?
13
Capítulo I - Poder, Sexualidade e Educação
1.1- Michel Foucault e a construção de um caminho metodológico próprio
A partir de uma série de fóruns de discussão, em nosso grupo de pesquisas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, sobre a obra do pensador francês
Michel Foucault, chegamos a dar os primeiros passos para o desenvolvimento dessa
pesquisa.
Norteados pelo pensamento de Alfredo Veiga-Neto, expresso em seu livro
Foucault e a Educação (2004), mergulhamos na obra do pensador francês Michel
Foucault (1926-1984) que entendemos ser a maior referência para os questionamentos
das imbricadas relações entre sexualidade e poder.
Através da perspectiva ontológica desenvolvida por que Miguel Morey (1991)
para classificar a obra de Michel Foucault, organizamos esse mergulho.
Desse modo, conduzimos nossa investigação em função de como Foucault
entendeu a ontologia do sujeito moderno:
a) se pelo saber (ser-saber) - como nos constituímos como sujeitos de
conhecimento?
b) se pela ação de uns sobre os outros (ser-poder) – como nos constituímos
como sujeitos de ação sobre os outros?
c) se pela ação de cada um consigo próprio (ser-consigo) – como nos
constituímos como sujeitos de ação moral sobre nós mesmos?
Buscamos compreender os diferentes caminhos percorridos (uma vez que o
próprio Foucault se recusa a reconhecer esses caminhos como metodologia) nos
estudos foucautianos.
14
No primeiro domínio (ser-saber), encontram-se os livros As Palavras e as Coisas,
A Arqueologia do Saber e A História da Loucura.
Apesar de em A História da Loucura, Michel Foucaut já designar seu percurso
metodológico como arqueologia, será em A Arqueologia do Saber (livro escrito para
explicar a constituição de As Palavras e as Coisas) que Foucault explicará
detalhadamente o que seria essa arqueologia e como a colocou a serviço do
descobrimento de como nos tornamos, na modernidade, o que somos como
assujeitados ao conhecimento.
Em As Palavras e as Coisas (1992), Foucault mostrou como a Lingüística, a
Biologia e a Economia (três grandes ciências dos séculos XVIII e XIX), em suas
distintas investigações, buscaram instituir uma nova entidade: o sujeito moderno.
A Lingüística institui o sujeito moderno a partir dos seus discursos, a economia a
partir de sua produção e a biologia a partir da sua vivência num mundo natural.
Foucault desloca a ótica dessas investigações, percebendo que elas não
buscam compreender ou caracterizar uma entidade produtora de conhecimento
(sujeito), mas, pelo contrário, juntas acabam por criar essa entidade (assujeitado ao
conhecimento).
Assim, para Foucault, o sujeito moderno não é produtor de saberes, mas é
produzido no interior dos saberes.
Para melhor compreendermos um sujeito produzido no interior dos saberes, faz-
se necessário apropriarmo-nos da forma como Foucault entende a prática discursiva.
Citando Lecourt (1980), Veiga-Neto explica:
(...) pela palavra prática Foucault não pretende significar a atividade de um
sujeito, mas designa a existência objetiva e material de certas regras a que
15
o sujeito está submetido desde o momento em que pratica o “discurso”.
(Veiga-Neto, 2004, p54)
Essa concepção implica em admitir o discurso somente dentro do sistema de
relações materiais que o estruturam e o constituem.
Assim, Foucault faz a arqueologia dos sistemas de procedimentos ordenados
que têm por fim produzir, distribuir, fazer circular e regular enunciados e se ocupa em
isolar o nível das práticas discursivas e formular as regras de produção e transformação
dessas práticas.
Essa arqueologia implica num procedimento de escavar verticalmente as
camadas descontínuas de discursos já pronunciados, a fim de trazer à luz fragmentos
de idéias, conceitos, discursos talvez já esquecidos...
O segundo domínio da obra foucaultiana, o ser-poder, engloba os livros A Ordem
do Discurso, Vigiar e Punir e A História da Sexualidade – A Vontade de Saber.
Foucault apresentou, no primeiro volume de A história da sexualidade (A vontade
de saber), uma visão inovadora sobre os discursos (considerados por ele) queixosos da
repressão sexual no século XX.
Conseguiu demonstrar que esses discursos, muito mais do que representarem
uma ameaça ao pretenso controle vitoriano sobre a sexualidade, constituíam uma nova
forma de apresentar esse mesmo controle.
Talvez essa inovação só tenha sido viabilizada, porque em seus estudos
Foucault desenvolveu um caminho metodológico próprio, que, segundo o mesmo, não
se constitui em uma metodologia.
Esse caminho percorrido pelo autor (como ele mesmo preferiria) foi inaugurado
em seu estudo Vigiar e Punir e por ser um desdobramento do conceito de genealogia
16
apresentado pelo filósofo alemão Frederich Nietzsche, é também chamado de
genealogia.
A genealogia seria, portanto, com relação ao projeto de uma inscrição dos
saberes na hierarquia dos poderes próprios à ciência, um empreendimento para
libertar da sujeição os saberes históricos, isto é, torná-los capazes de oposição
e de luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico. A
reativação dos saberes locais – menores, diria talvez Deleuze – contra a
hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos intrínsecos de poder,
eis o projeto destas genealogias desordenadas e fragmentárias .... A
genealogia é a tática que a partir da discursividade local assim descrita,
ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta discursividade.
(FOUCAULT, 1998, p 172)
O que diferenciou a busca da gênese através do tempo feita por Michel Foucault
daquela apresentada até então pela história foi fundamentalmente o entendimento do
que seja origem. Para Foucault, “a genealogia parte em busca do começo - dos começos
inumeráveis”.(FOUCAULT, 1998, p 20), a origem seria “um ponto recuado no tempo em que o
Eu inventa para si para si uma identidade ou uma coerência”.(FOUCAULT, 1998, p 20).
Assim, entendemos essa construção da identidade ou mesmo da coerência
como a imbricação existente na relação saber-poder.
Imbricação essa que passa a ser perseguida por Michel Foucault, ou seja, nesse
domínio, a questão do filósofo passa a ser: Como nos tornamos o que somos a partir
dessa articulação poder-saber?
Assim Foucault, em seu livro Em defesa da sociedade (1999), posiciona sua
genealogia como:
(...)uma insurreição sobretudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores
de poder que são vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso
científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa...É
exatamente contra os efeitos de poder próprios de um discurso considerado
científico que a genealogia deve travar o combate (FOUCAULT, 1999, p14).
Nessa perspectiva,
17
A genealogia não se propõe a fazer uma outra interpretação, mas sim uma
descrição da história das muitas interpretações que nos são contadas e
que nos têm sido impostas. Com isso, ela consegue desnaturalizar,
desessencializar enunciados que são repetidos como se tivessem sido
descobertas e não invenções (VEIGA-NETO, 2004, p 71).
O proceder genealógico implica no que pode ser traduzido como ascendência,
entendida como uma investigação que busca fragmentos, omissões e incoerências que
haviam sido deixados de fora pela história tradicional
Outro conceito importante para esse proceder é o de emergência, que Foucault
(1998) usa para designar o ponto de surgimento no passado, cuidando para que não se
coloque, nesse passado, um conceito, uma idéia ou um entendimento que é do
presente.
Assim, Foucault busca realizar
(...)uma forma de história que dê conta da constituição dos saberes, dos
discursos, dos domínios de objeto,etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja
ele transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja perseguindo
sua identidade vazia ao longo da história (FOUCAULT, 1979, p.72).
Nessa perspectiva, as transformações de certas práticas institucionais foram
estudadas por Foucault. Sua genealogia nos mostrou como no âmbito de algumas
instituições – a prisão, a escola, o hospital o quartel, o asilo – passou-se dos suplícios,
como castigos e violências corporais, para o disciplinamento que cria corpos dóceis.
Esse disciplinamento pode ser apreendido, a partir da obra de Foucault, como
aquilo que mobiliza o corpo e retira-lhe a força para o trabalho. O corpo dócil é aquele
que, por tecnologias de disciplinamento (uma ação que se exerça sobre o estado de um
corpo ou sobre ação de um corpo), tornou-se apto a fornecer sua força para o trabalho.
18
Como podemos perceber, Foucault, em sua genealogia, antes de lastimar a sua
existência, procura entender que efeitos a disciplina pode produzir.
É a partir da genealogia do poder disciplinar, que Foucault desenvolve um
conceito fundamental para a compreensão da sociedade moderna e suas
disciplinarizações: a sociedade estatal.
Ao analisar a máquina panóptica idealizada por Jeremy Bentham no século XIX,
Foucault localiza o longínquo primitivo de onde derivam todos os mecanismos de poder
que, ainda em nossos dias, são dispostos em torno do “anormal”, tanto para marcá-lo
quanto para modificá-lo.
O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio
é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro uma torre; esta é
vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a
construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a
espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior,
correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a
luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre
central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um
operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre,
recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas dativas nas
celas da periferia. Tantas jaulas tantos pequenos teatros, em que cada ator está
sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo
panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e
reconhecer imediatamente (FOUCAULT, 1977, p177).
Além de colocar em funcionamento aqueles dois princípios fundamentais da
vigilância, – a sua posição central e a sua invisibilidade-, a máquina panóptica ativa
outros mais:
a) o princípio da totalidade – pois ninguém deve escapar a sua ação;
b) o princípio da minúcia – pois ela observa os mínimos detalhes;
c) o princípio da saturação – pois, pelo menos virtual ou potencialmente, ela não
descansa (e não dá descanso);
19
d) o princípio da individualização – pois ela segmenta uma massa humana, até
então informe, em unidades individuais, alcançáveis, descritíveis e controláveis;
e) o princípio da economia – pois com pouco investimento obtém-se muito
resultado.
Foucault interpreta o poder disciplinar como uma solução moderna para o déficit
que o poder soberano tinha em relação ao poder pastoral.
O poder pastoral seria o poder institucionalizado nas práticas medievais cristãs:
Ele é vertical: emana de um pastor de quem depende o rebanho; mas por sua
vez, o pastor também depende do rebanho. Ele é sacrificial e salvacionista: o
pastor tem de estar pronto para se sacrificar pelo seu rebanho, se for preciso
salvá-lo; e salvação significa, aqui, a garantia de uma vida eterna não-terrena.
Ele é individualizante e detalhista: o pastor tem de conhecer cada ovelha, o
mais detalhadamente possível, para que possa melhor orientar e governar cada
uma (Veiga-Neto, 2004, p 81).
O poder soberano teria sido derivado do poder pastoral, contudo, o poder de
soberania não pode ser salvacionista, nem piedoso, nem mesmo individualizante.
Assim, por não comportar tais princípios, haveria déficit no poder soberano em relação
ao poder pastoral; e o poder disciplinar seria a solução moderna para esse déficit, na
medida em que ele apresentava-se como poder individualizante e microscópico, como
uma saída eficiente e econômica para a crescente dificuldade de levar o olhar do
soberano a toda a parte.
A essa sociedade que pôde substituir a necessidade de levar o olhar do
soberano a toda parte pelo poder disciplinar é que Michel Foucault chamou de
sociedade estatal.
20
Esse poder disciplinar viabilizara essa sociedade estatal através das tecnologias
de vigilância e suas potencialidades na fabricação de corpos dóceis.
É assim que a escola se constitui como a principal instituição responsável por
engendrar novas subjetividades, operando individualizações disciplinares.
Na medida em que a permanência na escola é diária e se estende ao longo de
vários anos, os efeitos desse processo disciplinar de subjetivação são notáveis.
Foi a partir daí que se estabeleceu um tipo muito especial de sociedade, à qual
Foucault adjetivou de disciplinar (VEIGA-NETO, 2004,p 85).
A escola passou a ser entendida como a instituição de seqüestro pela qual
todos deveriam passar o maior tempo de suas vidas, no período da infância e da
juventude, assim o poder disciplinar pôde atuar no eixo dos corpos e dos saberes, de
modo a inculcar a disciplinaridade como uma necessidade natural e ainda como uma
matriz de fundo que permite a inteligibilidade, a comunicação e a convivência total na
sociedade.
Nos estudos foulcaultianos a respeito da formação do Estado Moderno, a
disciplina aparece associada à soberania e à gestão governamental.
É neste ponto que entra em cena o conceito foucaultiano de
governamentalidade, para designar as práticas de governo ou da gestão
governamental que têm na população seu objeto, na economia seu saber mais
importante e nos dispositivos de segurança seus mecanismos básicos.
O percurso de Foucault pelos meandros e designações dos poderes identifica
no século XVIII o biopoder, uma forma de poder que contrariando o poder disciplinar
(mas não o substituindo) tem como objeto a população, mas uma população com
uma multiplicidade de cabeças (ou seja, composta por uma multiplicidade de
indivíduos).
21
As técnicas disciplinares continuam a serem utilizadas, no entanto, em outra
escala. O biopoder atua na vida dos indivíduos, fazendo uma biopolítica da espécie
humana.
O investimento em um poder que atuava no indivíduo, em seu corpo (poder
disciplinar), tornara-se insuficiente, surge a necessidade de ir além: continuar
controlando/disciplinando os indivíduos, mas ter também o controle das populações;
prever seus riscos, fez-se necessário (biopoder) e deu-se a partir da
regulamentação.
Nessa perspectiva, Foucault apresenta a sexualidade como a intersecção
entre o poder disciplinar (na medida em que seu controle exige uma vigilância
individual) e o biopoder (por seus efeitos procriadores e sua imbricação com o corpo
múltiplo-população).
A partir dessa intersecção, é construído o conceito de norma, que seria a
articulação entre os mecanismos disciplinares (que atuam sobre o corpo) com os
mecanismos regulamentadores (que atuam sobre a população).
A norma permite a comparação entre os indivíduos e entre o indivíduo e a
população, a partir dessas comparações, quando as diferenças são consideradas
excessivas, chama-se o indivíduo de anormal e propicia as formações discursivas
que se desdobram na psiquiatrização e na psicologização.
No terceiro domínio considerado: o ser-consigo, Foucault concentra seus
estudos na compreensão de como se dá a relação de cada um consigo próprio,
reformulando o conceito de ética:
22
A ética, numa perspectiva foucaultiana, faz parte da moral, ao lado do
comportamento de cada um e dos códigos que preceituam o que é correto fazer
e pensar e que atribuem valores (positivos e negativos) a diferentes
comportamentos, em termos morais. Esse conceito idiossincrático desloca a
noção clássica de ética como estudo dos juízos morais referentes à conduta
humana (quer em termos sociais, quer em termos absolutos) para ética como o
modo como o indivíduo se constitui a si mesmo como um sujeito moral de suas
próprias ações, ou, em outras palavras, a ética como a relação de si para
consigo (VEIGA-NETO, 2004, p 98).
É importante ressaltar que, na perspectiva foucaultiana, a ética aparece
imbricada com os outros dois eixos estudados: o ser-saber e o ser-poder. Colocado
no espaço projetado pelos três eixos, o sujeito é um produto ao mesmo tempo, dos
saberes, dos poderes e da ética.
É nesse terceiro domínio que Foucault atenta às tecnologias do eu, ou seja,
as que permitem que os indivíduos efetuem, por conta própria ou com a ajuda
de outros, certo número de operações sobre seu corpo e sua alma,
pensamentos, conduta ou qualquer forma de ser, obtendo, assim, uma
transformação de si mesmos, com o fim de alcançar certo estado de felicidade,
pureza, sabedoria ou imortalidade (VEIGA-NETO, 2004, p 98).
Essas tecnologias são descritas e problematizadas desde a Antigüidade
clássica nas exomologesis
6
, exagouresis
7
, passando por seu funcionamento na
idade média e chegando a sua ressignificação moderna pelas Ciências Humanas
(sobretudo as vertentes psi).
À medida em que nos aprofundávamos na obra de Michel Foucault,
modificávamos os nossos olhares sobre o que consideraríamos “o tratamento dado à
sexualidade no espaço escolar”, reconstruíamos os nossos objetivos e encorajávamo-
nos a criar um proceder metodológico próprio, entrecruzando os caminhos
6
Ritual não-verbal de martírio, de cunho teatral, em que o penitente alcança a verdade sobre si mesmo por meio de
uma ruptura e uma dissociação violenta.
7
Análise e contínua verbalização dos pensamentos realizada numa relação da mais completa obediência a outrem
configurada pela renúncia ao seu próprio desejo e ao seu próprio eu.
23
metodológicos foucaultianos com contribuições que outras metodologias apresentaram
na área da educação.
1.2 - Uma investigação qualitativa
Caracterizamos, aqui, essa investigação como uma investigação qualitativa em
educação e relacionamos as características que a fazem qualitativa:
a) “Na investigação qualitativa a fonte direta de dados é o ambiente natural,
constituindo o investigador o instrumento principal” (BOGDAN & BIKLEN, 1994, p 47).
Sob o apoio de uma extensão universitária que implicaria em atividades que
estimulassem discussões sobre o tema transversal orientação sexual proposto pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais, conquistamos o espaço de uma hora-aula por
semana em uma turma do quarto ciclo do ensino fundamental de uma Escola Pública
do Rio de Janeiro.
Em nossas atividades expúnhamos aos alunos textos que abordavam o tema
orientação sexual, presentes nas pretensas seções transversais de livros didáticos de
língua portuguesa aprovados pelo Ministério da Cultura, portanto, de acordo com os
Parâmetros Curriculares Nacionais.
Durante as realizações dessas atividades pudemos perceber a arquitetura da
escola, sua distribuição de tempos e espaços, a presença da hierarquia de diversas
ordens, a dinâmica de seu cotidiano e tudo o mais que, a partir do estudo do poder
disciplinar, pudemos julgar relevantes para a observação do tratamento dado à
sexualidade no espaço escolar.
b) “Os investigadores qualitativos interessam-se mais pelo processo do que
simplesmente pelos resultados ou produtos” (BOGDAN & BIKLEN, 1994, p 49).
24
A partir desse convívio, acreditamos ter nos aproximado dos alunos,
estabelecendo vínculos afetivos, que permitiram que distinguissem-nos das autoridades
escolares, ficando à vontade para falar conosco aquilo que diante dessas autoridades
sentiam-se forçados a silenciar.
Embora pudéssemos ser confundidos com porta-vozes do discurso dos
parâmetros curriculares nacionais, à medida em que levávamos os tais textos
aprovados pelo Ministério da Cultura e que respeitavam a forma como subdividiram a
temática: relações de gênero, corpo: matriz da sexualidade, prevenção das doenças
sexualmente transmissíveis e AIDS, nossas intervenções procuraram sempre extrapolar
esses textos, não se apresentando de modo diretivo, propiciando que vozes que a
respeito do tema silenciavam-se, pudessem ser contempladas.
Ao mesmo tempo em que essas vozes emergiam podíamos perceber o efeito
desses encontros sobre as inter-relações que se restabeleciam na turma. Os alunos
pareciam estar cada vez mais confortáveis durante esses encontros. Houve quem
chegasse a ir à escola apenas para os encontros.
c) “A investigação qualitativa é descritiva. Os dados recolhidos são em forma de
palavras ou imagens e não de números” (BOGDAN & BIKLEN, 1994, p 48).
Após termos consolidado a diferença existente entre as autoridades escolares e
o pesquisador, gravamos quatro debates. Esses debates foram organizados a partir da
divisão proposta pelos PCNs para o tema Orientação Sexual e os textos motivadores
foram selecionados em função do que (a partir de nosso convívio com os alunos)
julgamos serem os que mais fossem diretamente no assunto que os afligia.
O discurso dos alunos foi registrado durante os debates gravados sobre os
seguintes temas e textos:
25
a) para discutirmos o Corpo como matriz da sexualidade, utilizamos dois textos:
“A morcega”, que integra o livro “O golpe do aniversariante e outras crônicas” (1996) de
Walcir Carrasco, e a matéria “Tentei muito. Finalmente consegui engravidar” – matéria
publicada em O Estado de São Paulo (2002);
b) para discutirmos as Relações de Gênero, utilizamos o texto Papo Íntimo
extraído do livro Cara-metade (1995) de Maria Mariana e Eduardo Galli;
c) por fim, para discutirmos as Doenças sexualmente Transmissíveis / AIDS,
utilizamos o artigo “Sexo, Aids e a morte por ignorância” do Frei Betto, publicado em O
Estado de São Paulo (2002) e um relatório da UNESCO (2005), apresentando dados
atualizados da AIDS no Brasil.
Para documentarmos o discurso da instituição, realizamos entrevistas semi-
estruturadas com seus três representantes legitimados: o Diretor, a Coordenadora
Pedagógica e a Professora.
Consideramos as características prioritárias da narrativa apresentadas por
Walter Benjamin em seu livro Magia e Técnica, Arte e Política (1994)
“(...) as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas
pelos inúmeros narradores anônimos” (BENJAMIN, 1994, p 198);
O senso prático é uma das características de muitos narradores natos
(BENJAMIN, 1994, p 200);
“(...) o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor” (BENJAMIN, 1994, p
203).
E optamos, assim, por registrar o discurso tanto dos alunos quanto da instituição
a partir de suas narrativas.
26
Para capturarmos o discurso instituído dos PCNs, realizamos uma investigação
descritiva no Documento de Introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais e no
Documento de Convívio social e Ética relativo ao tema transversal Orientação Sexual.
sustentada em pesquisa bibliográfica que relaciona a educação, a sexualidade e o
poder.
Essa pesquisa bibliográfica resultou na seleção dos autores: Tomaz Tadeu da
Silva (fundamentou-nos na discussão curricular), Sílvio Gallo (sustentou o conceito de
transversalidade curricular e suas imbricações políticas) e Alfredo Veiga-Neto que
norteou nossos estudos sobre a obra de Michel Foucault, que nos serviu de referência
tanto para a apropriação do conceito de discurso, quanto para a sensibilização dos
nossos olhares para as tecnologias disciplinares e normatizadoras do biopoder.
d) “Os investigadores qualitativos tendem a analisar seus dados de forma
indutiva” (BOGDAN & BIKLEN, 1994, p 50).
Nossa análise dos três discursos (tanto isolados quanto entrelaçados), não
procurou confirmar nenhuma hipótese, nossa investigação foi se configurando a partir
do recolhimento dos dados e do tempo que passamos na escola com os alunos.
Assim a nossa problematização foi se afunilando. Nessa trajetória chegamos ao
refinamento de nosso objetivo geral: problematizar a proposta dos Parâmetros
Curriculares Nacionais de inserir o tema transversal orientação sexual no currículo do
ensino fundamental das escolas brasileiras (nessa problematização consideramos o
tema e a estratégia de inserção – transversalidade);
e) “Ao apreender as perspectivas dos participantes, a investigação qualitativa faz
luz sobre a dinâmica interna das situações, dinâmica esta que é freqüentemente
invisível para o observador exterior” (BOGDAN & BIKLEN, 1994, p 50).
27
Nessa problematização, buscamos compreender a dinâmica do entrelaçamento
dos discursos sobre sexualidade no dia-a-dia da escola e suas conseqüências na vida
dos alunos.
1.3 – Currículo e Sexualidade
Por estarmos problematizando o tratamento dado à sexualidade no espaço
escolar, a partir da inserção do tema transversal Orientação Sexual no currículo das
escolas brasileiras proposta pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, sentimos a
necessidade de apropriarmo-nos de uma concepção de currículo.
Em seu livro O currículo como fetiche – a poética e a política do texto curricular
(2003), Tomaz Tadeu da Silva aponta para a importância que o currículo teve e vem
tendo nos processos de renovação e ampliação da tradição crítica em educação:
No centro da tradição crítica esteve sempre uma preocupação com questões de
currículo. A tradição crítica compreendeu, há muito, que o currículo está no
centro da relação educativa, que o currículo corporifica os nexos entre saber,
poder e identidade (SILVA, 2003, p 10).
No mesmo livro, o autor apresenta um conceito tradicional de currículo e a
evolução desse conceito a partir de perspectivas realistas
8
e pós-estruturalistas
9
.
Assim, Silva enuncia: “Na visão tradicional, o currículo é pensado como um
conjunto de fatos, de conhecimentos e de informações, selecionados do estoque
cultural mais amplo da sociedade, para serem transmitidos às crianças e aos jovens
nas escolas” (SILVA, 2003, p 13).
Segundo o autor, essa visão começa a se transformar a partir dos
questionamentos da teorização crítica em educação, que ressaltará os caracteres
histórico e social do conhecimento escolar. Contudo, esses questionamentos, de um
8
Perspectivas resultantes da adoção do conceito marxista de ideologia, que acrescentou as dimensões histórica e
social do conhecimento escolar.
28
modo geral, conservam a subordinação do currículo às determinações externas
(sobretudo econômicas).
Como podemos perceber, tanto a visão tradicional quanto a visão realista do
currículo partem da mesma concepção de cultura:
O trabalho incerto e indeterminado da linguagem e da cultura, o processo
aberto e vulnerável da criação simbólica, tende a ser fixado, imobilizado,
paralisado. A prática humana de significação fica reduzida ao registro e à
transmissão de significados fixos, imóveis, transcendentais. A cultura fica
definida por meio de uma semiótica contida, cerrada, congelada (SILVA, 2003,
p 15).
Portanto, a mudança radical da visão tradicional surgirá sob o impacto das
teorizações pós-modernistas e pós-estruturalistas, pois essas revêem o conceito de
cultura e conseqüentemente o de currículo.
De acordo com os pós-estruturalistas, a cultura passa a ser entendida como um
campo de luta em torno da construção e da imposição de significados sobre o mundo
social.
A cultura nessa outra perspectiva, seria vista menos como produto e mais como
produção, como criação, como trabalho. Em vez de seu caráter final, concluído,
o que fica ressaltado nessa outra concepção é sua produtividade, sua
capacidade de trabalhar os materiais recebidos, numa atividade constante, por
um lado, de desmontagem e de desconstrução e, por outro, de remontagem e
de reconstrução” (SILVA, 2003, p 17).
E o currículo? Diante dessa perspectiva, como passamos a entender o currículo?
O currículo passa a ser entendido como:
a) uma prática de significação: “O currículo pode ser visto como um texto, como
uma trama de significados, pode ser analisado como um discurso e ser visto como uma
prática discursiva” (SILVA, 2003, p 19).
b) uma prática produtiva:
9
Concepções nas quais o papel da linguagem e do discurso ganham centralidade na constituição do social.
29
O currículo é um espaço, um campo de produção e de criação de significado.
No currículo se produz sentido e significado sobre os vários campos e
atividades sociais, no currículo se trabalha sobre sentidos e significados
recebidos, sobre materiais culturais existentes. O currículo, tal como a cultura, é
uma zona de produtividade (SILVA, 2003, p 21).
c) uma relação social:
Desde sua gênese como macrotexto de política curricular até sua
transformação em microtexto de sala de aula, passando por seus diversos
avatares intermediários (guias, diretrizes, livros didáticos), vão ficando
registrados no currículo os traços das disputas por predomínio cultural, das
negociações em torno das representações dos diferentes grupos e das
diferentes tradições culturais, das lutas entre, de um lado, saberes oficiais,
dominantes e, de outro, saberes subordinados, relegados, desprezados. Essas
marcas não deixam esquecer que o currículo é relação social (SILVA, 2003, p
22).
d) uma relação de poder:
o poder não é externo às práticas de significação que constituem o currículo,
um elemento estranho do qual poderíamos nos livrar, do qual poderíamos nos
emancipar. Tal como ocorre com outras práticas culturais, as relações de poder
são inseparáveis das práticas de significação que formam o currículo (SILVA,
2003, p 25).
e) uma prática que produz identidades sociais:
O currículo, como um espaço de significação, está estreitamente vinculado ao
processo de formação de identidades sociais
10
. É aqui, entre outros locais, em
meio a processos de representação, de inclusão e de exclusão, de relações de
poder, enfim, que, em parte, se definem se constroem, as identidades sociais
que dividem o mundo social (SILVA, 2003, p 27).
O autor ainda amplia essa visão, atribuindo ao currículo a produção e
organização de identidades culturais, de gênero, identidades raciais, sexuais...
Em seu artigo O currículo e as diferenças sexuais e de gênero, publicado no livro
O currículo nos limiares do contemporâneo (2005), organizado por Marisa Vorraber
Costa, Guacira Lopes Louro bem exemplifica essa produção de identidades de gênero
atribuída também ao currículo.
30
Num estudo em que relaciona a produção de identidade de gênero
11
e o
currículo escolar, a autora vulnerabiliza a rígida concepção polarizada de gênero
(masculino, feminino), quando contempla a variedade de cada um desses pólos:
homens e mulheres não se constituem, apenas por suas identidades de gênero, mas
também por suas identidades de classe, de raça, de etnia, de sexualidade,
nacionalidade, idade...” (LOURO, 2005, p 86).
A autora sustenta que a produção dessas identidades e de suas intrincadas
relações dá-se em muitas instâncias e espaços e que a escola é uma dessas
importantes instituições:
Em sua materialidade física, o prédio escolar informa a todos / as sua razão de
existir. Servindo-se de recursos materiais, de símbolos e de códigos, a escola
delimita espaços, afirma o que cada um / a pode ou não pode fazer, separa e
institui. Para aqueles e aquelas que são admitidos no seu interior, a escola
determina usos diversos do tempo e do espaço, consagra a fala ou o silêncio,
produz efeitos, institui significados; aos que ficam de fora de seus muros, a
instituição também impõe conseqüências, construindo sentidos e sentimentos
que advêm dessa exclusão (LOURO, 2005, p 87).
Retomando Tomaz Tadeu da Silva: “o currículo está centralmente envolvido
naquilo que somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos. O currículo
produz, o currículo nos produz” (SILVA, 2003, p 27).
É a partir dessa compreensão do que seja currículo, que partimos para a nossa
problematização: Como anda o tratamento dado à sexualidade no espaço escolar?
1.4 - Transversalidade e Educação
Os Parâmetros Curriculares Nacionais inserem no currículo das escolas
brasileiras o tema Orientação sexual, apresentando-o como transversal. Por isso,
10
As formas pelas quais os diferentes grupos sociais se definem a si próprios e pelas quais eles são definidos por
outros grupos.
31
sentimos a necessidade de entendermos a transversalidade e suas imbricações
políticas, para tanto recorremos ao pensador Sílvio Gallo.
Em outubro de 1997, Sílvio Gallo, doutor em Filosofia da Educação, Professor do
Departamento de Filosofia e História da Educação e do de Filosofia da UNIMEP,
publicou na revista Impulso o artigo “Conhecimento, Transversalidade e Educação –
Para Além da Interdisciplinaridade”, no qual apresenta a interdisciplinaridade – “uma
forma de se organizar os currículos escolares de modo a possibilitar uma integração
entre as disciplinas, permitindo a construção daquela compreensão mais abrangente do
saber historicamente produzido pela humanidade” (Gallo,1997, p 115), como
insuficiente para solucionar os entraves do processo ensino-aprendizagem, resultantes
da excessiva compartimentalização do saber
(...) a organização curricular das disciplinas coloca-as como realidades
estanques, sem interconexão alguma, dificultando para os alunos a
compreensão do conhecimento como um todo integrado à construção de uma
cosmovisão abrangente que lhes permita uma percepção totalizante da
realidade (Gallo,1997,p 115).
Assim, Gallo propõe uma análise histórico-filosófica da produção do
conhecimento que resulta na necessidade do rompimento da disciplinarização, que é
entendida como um modo de facilitar o desenvolvimento de tecnologias que
possibilitem o domínio do mundo, como podemos ver:
O processo de disciplinarização pelo qual passa a construção da ciência
moderna traz embutida em si esta afirmação da equivalência entre saber e
poder. Dividir o mundo em fragmentos cada vez menores é facilitar o
desenvolvimento de tecnologias que possibilitem seu domínio. Conhecer cada
vez mais é dominar cada vez mais, e isso só é possível à medida que
reduzimos o nosso objeto, isto é, o campo de abrangência sobre o qual
distendemos nossos equipamentos de produção do saber. Embutido no desejo
humano de conhecer o mundo está seu secreto desejo de poder sobre esse
mundo (Gallo, 1997, p 118).
11
Papéis sociais distintos entre homens e mulheres, aqui compreendidos como oriundos de práticas culturais regidas
pelo ponto de vista da sexualidade, restritamente heterossexual.
32
Esse processo científico quando transportado para o campo da educação resulta
na organização do conhecimento em disciplinas, sob a alegação de que se torna mais
fácil para os alunos o acesso e a compreensão do conteúdo curricular, uma vez que se
opera com o mesmo mecanismo fundado na divisão.
No entanto, segundo Gallo, a partir da segunda metade do século XX, em função
do crescimento da complexidade do saber humano, evidencia-se a necessidade de
uma comunicação entre as partes divididas (disciplinas).
Num primeiro momento, a especialização é uma necessidade para a construção
da identidade de um certo saber; hoje, saberes são impostos, com identidades
que não podem mais ser encontradas no específico, mas no diálogo que
permeia e atravessa diversas áreas previamente delimitadas (Gallo, 1997, p
121).
Essa perspectiva recai sobre o espaço escolar, trazendo à tona as dificuldades
dos alunos em relacionar os diferentes campos do saber, fazendo com que poucos
consigam construir uma percepção da realidade a partir desses saberes, e, mesmo
esses, constroem uma percepção excessivamente fragmentada.
Assim Gallo apresenta a noção de interdisciplinaridade:
A noção de interdisciplinaridade surgiu para proporcionar esse trânsito por entre
os vários compartimentos do saber contemporâneo, possibilitando um
conhecimento mais abrangente porque mais interativo, além de possibilitar a
construção de uma percepção mais abrangente e articulada da realidade
(GALLO, 1997, p 122).
E, assim, o autor recoloca a questão inicial: a proposta interdisciplinar dá
realmente conta de superar a histórica compartimentalização do saber?
Respondendo:
Se no aspecto epistemológico a proposta interdisciplinar nada mais faz do que
confirmar as fronteiras, no âmbito político ela não passa de uma perversidade,
pois se trata de mascarar ainda mais o mecanismo de poder posto a funcionar e
constantemente azeitado pela disciplinarização (GALLO, 1997, p 122).
33
Para Gallo, não se trata de possibilitar conexões entre as disciplinas, mas sim de
derrubar as fronteiras entre as disciplinas, estabelecendo uma nova forma de
compreensão do funcionamento do pensamento humano e da produção de
conhecimento.
Para tanto, o autor confronta o paradigma arborescente (metáfora tradicional da
estrutura do conhecimento) com o paradigma rizomático apresentado na França por
Gilles Deleuze e Félix Guattari na obra Capitalismo e Esquizofrenia: Mil Platôs, em
1980.
No paradigma arborescente o conhecimento (em sua estrutura) é tomado como
uma árvore cujas raízes devem estar fincadas num solo firme (as premissas
verdadeiras), com um tronco sólido (a filosofia) que se ramifica em galhos e mais galhos
(as especializações/disciplinas).
Para Gallo, o paradigma arborescente implica uma hierarquização de saber,
como forma de mediatizar e regular o fluxo de informações pelos caminhos internos da
árvore do conhecimento.
Ao trabalharem com a questão do livro e suas articulações com o conhecimento
prévio e o por vir, Félix Guattari e Gilles Deleuze apresentam a noção de rizoma.
Gallo, assim, explica:
A metáfora do rizoma toma como paradigma imagético aquele tipo de caule
radiciforme de alguns vegetais, formado por uma miríade de pequenas raízes
emaranhadas em meio a pequenos bulbos armazenatícios, colocando em
questão a relação intrínseca entre as várias áreas do saber, representadas
cada uma delas pelas inúmeras linhas fibrosas de um rizoma, que se
entrelaçam e se engalfinham formando um conjunto complexo no qual os
elementos remetem necessariamente uns aos outros e mesmo para fora do
próprio conjunto (GALLO,1997,p124).
34
É a partir dessa metáfora que Gallo traz para o currículo escolar esse paradigma,
retomando a noção de transversalidade, desenvolvida ainda no princípio dos anos 60
por Félix Guattari.
A transversalidade seria a matriz da mobilidade por entre os liames do rizoma,
abandonando os verticalismos e horizontalismos que seriam insuficientes para
uma abrangência de visão de todo o horizonte de eventos possibilitado por um
rizoma
(GALLO, 1997,p 126).
Partindo da dimensão política apontada por Sílvio Gallo para a oposição
Disciplinaridade X Transversalidade e das tecnologias disciplinadoras apontadas por
Michel Foucault, procuramos apreender o perfil da escola onde realizamos a nossa
investigação.
35
Capítulo 2 – Os discursos sobre sexualidade na escola
2.1 - A Escola
Em Vigia e Punir – História da Violência nas prisões (1977), Foucault apresenta a
disciplinaridade como uma tecnologia do poder disciplinar circunscrita no espaço e no
tempo para docilizar os corpos.
Em seu artigo “Espaços, tempos e disciplinas: as crianças ainda devem ir à
escola?”, publicado no livro “Linguagens, espaços e tempos no ensinar e aprender
organizado por Vera Maria Candau (2001), Afredo Veiga-Neto transportou essas
técnicas para o universo escolar.
Quanto ao espaço, recolhemos quatro elementos determinantes da célula onde o
poder disciplinar atua:
1º. – os corpos devem ser submetidos a algum tipo de cerceamento, ou
confinamento que os torne acessíveis às ações do poder;
2º. – dentro desse confinamento, a distribuição dos corpos deve facilitar a
percepção das presenças e das ausências e a vigilância do comportamento de cada
um.
3º.- a distribuição deve obedecer a um princípio de funcionalidade. No caso do
quadriculamento, cada quadrícula deve guardar uma certa correspondência a sua
função.
4º.- a distribuição espacial dos corpos não tem, necessariamente, uma
correspondência nem simétrica, nem unívoca com o espaço físico, o que importa é a
posição que um corpo ocupa em relação aos demais.
36
Para que se obtenha uma maior economia, o poder disciplinar apresenta uma
ordenação do tempo em que se dão as experiências individuais:
1º.- o tempo precisa ser particularizado, individualizado;
2º.- o tempo subjetivado deve ser fracionado, fragmentado, microscopizado.
3º. O tempo subjetivado é muito mais do que o rebatimento do tempo físico sobre
o corpo individualizado.
Durante o tempo que passamos na escola, de março a novembro de 2005,
podemos perceber sua arquitetura, sua organização administrativa, sua organização
pedagógica, suas distribuições de tempo e de espaço.
O prédio da escola foi construído em forma de uma arena, no centro dessa arena
havia um pátio, onde os alunos formavam para entrar e podiam “brincar” na hora do
recreio.
No primeiro andar do prédio havia a secretaria, a sala dos Professores, os
banheiros (masculino e feminino), o refeitório, a sala de vídeo e salas de aula.
No segundo (e último) andar do prédio, havia o laboratório de informática, a
biblioteca e as salas de aula.
As escadas e os corredores apresentavam portões de grade que impediam a
livre circulação pelo espaço escolar.
As salas de aula, assim como o laboratório de informática e o auditório eram
arrumados em fileiras e colunas de carteiras (conjunto de mesa e cadeira) ou cadeiras
(no caso do auditório).
37
Nesses ambientes havia uma mesa diferenciada para o Professor, colocada na
direção da porta (entrada e saída) e a ventilação era feita por janelas acima da altura
dos alunos.
Na biblioteca, havia mesas com 4 cadeiras dispostas de modo que a bibliotecária
pudesse ver todos ao mesmo tempo.
Os banheiros dos alunos, separados do banheiro dos professores e funcionários,
apresentavam-se em péssimas condições: portas das cabines quebradas, paredes
pixadas. Acrescenta-se a isso a falta de material de higiene (papel higiênico, sabão...).
A escola destinava-se ao Ensino Fundamental e tinha uma turma de cerca de 28
alunos para cada série em cada um dos seus dois turnos (manhã e tarde).
Ainda havia uma turma, chamada de turma especial, formada por alunos que
apresentavam necessidades especiais. Necessidades essas, diferentes em cada aluno.
Para atender a essa clientela, a escola contava com um Diretor, uma Diretora
Adjunta, uma Coordenadora Pedagógica, uma Bibliotecária, uma inspetora, duas
merendeiras e um corpo de Professores. Da Classe de Alfabetização à quarta série,
cada turma tinha uma única Professora, enquanto para as turmas de quinta à oitava
série havia um Professor para cada área do conhecimento (disciplina).
As relações entre os componentes da comunidade escolar eram marcadamente
hierarquizadas, podemos perceber inclusive a ordem dessa hierarquia: O Diretor, a
Diretora Adjunta, a Coordenadora Pedagógica, os Professores, os Funcionários, os
Responsáveis pelos alunos (pais, mães, avós...) e por fim os alunos.
38
A limpeza da escola era feita por funcionários da COMLURB (Companhia de
Limpeza Urbana responsável pela limpeza de espaços públicos e destinação final do
lixo da cidade).
Como podemos perceber, a partir da quinta série, os conteúdos são
compartimentalizados em disciplinas.
Todas as disciplinas tinham horários fixos, presos em uma grade curricular, suas
aulas eram expositivas e realizadas sempre na mesma sala de aula.
Na sala de aula, o lugar de cada aluno era fixo e determinado pelos Professores,
embora muitas vezes eles driblassem a autoridade e sentasse em “lugares trocados” ou
“lugares errados”.
Assim como fixos também eram os horários de entrada, de saída, de recreio...
A escola não tinha quadra e as aulas de Educação Física eram realizadas no
quartel situado ao lado da escola.
Esses aspectos já seriam suficientes para entendermos essa escola como
disciplinadora, pois expressam:
a) o evidente confinamento dos alunos;
b) a constante vigilância à qual são submetidos;
c) a funcionalidade do local ao qual são colocados.
Contudo, ainda podemos perceber, no jogo de tolerância/intolerância imposto
aos alunos pelas autoridades (Diretor, Coordenadora, Professores, Funcionários) em
relação aos seus possíveis atrasos ou adiantamentos( seja na hora da entrada, seja na
39
hora da saída, seja na realização de alguma atividade em sala de aula) um exercício de
subjetivação do tempo.
Acrescentando-se a isso, o currículo estar organizado em disciplinas que
compartimentalizam os fragmentos do conhecimento a que se propõe ensinar,
concluímos estar investigando numa escola disciplinadora que trabalhava com uma
organização curricular disciplinar.
2.2 – Os discursos
Apropriados os conceitos de currículo, transversalidade, e discursividade
(discurso e prática discursiva em Foucault), partimos para nossa investigação dos
discursos que se entrecruzavam no espaço escolar quando o assunto era sexualidade.
Sobre os blocos de conteúdos propostos pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais para a inserção do tema transversal Orientação Sexual no currículo do quarto
ciclo do Ensino Fundamental das Escolas Brasileiras, apreendemos três discursos
distintos:
- A proposição dos PCNs;
- O discurso da Instituição de Ensino, representado pelas narrativas dos
profissionais da Educação (O Diretor, a Coordenadora Pedagógica a Professora).
- O discurso dos alunos, representado pelas narrativas dos alunos de uma turma
do quarto ciclo do Ensino Fundamental de uma Escola Pública do Rio de Janeiro.
2.3 - O discurso dos Parâmetros Curriculares Nacionais
Em sua última versão (1998), em seu documento introdutório, os Parâmetros
Curriculares Nacionais são assim apresentados pela Secretaria de Educação
Fundamental:
40
Este documento tem a finalidade de apresentar as linhas norteadoras dos
Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental, que constituem
uma proposta de reorientação curricular que a Secretaria de Educação
Fundamental do Ministério da Educação e do Desporto oferece a
secretarias de educação, escolas, instituições formadoras de Professores,
instituições de pesquisa, editoras e a todas as pessoas interessadas em
educação, dos diferentes estados e municípios brasileiros (BRASIL, 1998,
p. 9).
Trata-se, portanto, de um documento que deveria nortear todo o processo
educacional brasileiro.
Além de sua definição, outros dois pontos que destacamos foram:
a) a concepção de currículo da qual parte essa proposta:
O termo “currículo”, por sua vez, assume vários significados em diferentes
contextos da pedagogia. Currículo pode significar, por exemplo, as matérias
constantes de um curso. Essa definição é a que foi adotada historicamente pelo
Ministério da Educação e do Desporto quando indicava quais as disciplinas que
deveriam constituir o ensino fundamental ou de diferentes cursos do ensino
médio. Currículo é um termo muitas vezes utilizado para se referir a programas
de conteúdos de cada disciplina. Mas, currículo pode significar também a
expressão de princípios e metas do projeto educativo, que precisam ser
flexíveis para promover discussões e reelaborações quando realizado em sala
de aula, pois é o Professor que traduz os princípios elencados em prática
didática. Essa foi a concepção adotada nestes Parâmetros Curriculares
Nacionais (BRASIL, 1998, p 11).
b) o entendimento, nesse documento, da função da escola:
O papel fundamental da educação no desenvolvimento das pessoas e das
sociedades amplia-se ainda mais no despertar do novo milênio e aponta para a
necessidade de se construir uma escola voltada para a formação de
cidadãos. Vivemos numa era marcada pela competição e pela excelência, em
que progressos científicos e avanços tecnológicos definem exigências
novas para os jovens que ingressarão no mundo do trabalho. Tal demanda
impõe uma revisão dos currículos, que orientam o trabalho
cotidianamente realizado pelos Professores e especialistas em educação
do nosso país (BRASIL, 1998, p 13).
Em nossa problematização, tornou-se relevante a organização curricular
proposta por esses parâmetros:
(...) São essas definições que servem de norte para o trabalho das diferentes
áreas curriculares, que estruturam o trabalho escolar: Língua Portuguesa,
Matemática, Ciências Naturais, História, Geografia, Arte, Educação Física e
Língua Estrangeira. Os Parâmetros Curriculares Nacionais apontam também a
importância de discutir, na escola e na sala de aula, questões da sociedade
41
brasileira, como as ligadas a Ética, Meio Ambiente, Orientação Sexual,
Pluralidade Cultural, Saúde, Trabalho e Consumo ou a outros temas que se
mostrem relevantes (BRASIL, 1998, p 9).
Ainda procuramos compreender a metodologia proposta para a inserção do tema
Orientação Sexual no currículo do Ensino Fundamental:
A Lei Federal nº 9.394/96, em seu artigo 27, inciso I, também destaca que os
conteúdos curriculares da educação básica deverão observar “a difusão de
valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos,
de respeito ao bem comum e à ordem democrática”. Nessa perspectiva, as
problemáticas sociais em relação à ética, saúde, meio ambiente, pluralidade
cultural, orientação sexual e trabalho e consumo são integradas na proposta
educacional dos Parâmetros Curriculares Nacionais como Temas Transversais.
Não se constituem em novas áreas, mas num conjunto de temas que aparecem
transversalizados, permeando a concepção das diferentes áreas, seus
objetivos, conteúdos e orientações didáticas (BRASIL,1998,p 65).
Assim, partimos para os blocos de conteúdos propostos pelos PCNs para serem
trabalhados pelo tema Orientação Sexual.
A sexualidade forma parte integral da personalidade de cada um. É uma
necessidade básica e um aspecto do ser humano que não pode ser separado
de outros aspectos da vida. A sexualidade não é sinônimo de coito e não se
limita à presença ou não do orgasmo. “Sexualidade é muito mais do que isso, é
a energia que motiva encontrar o amor, contato e intimidade, e se expressa na
forma de sentir, na forma de as pessoas tocarem e serem tocadas. A
sexualidade influencia pensamentos, sentimentos, ações e interações e tanto a
saúde física como a mental. Se a saúde é um direito humano fundamental, a
saúde sexual também deveria ser considerada como um direito humano básico
(BRASIL, 1998, p 265).
Tomando por base esse conceito de sexualidade, apresentado pela Organização
Mundial de Saúde, os PCNs organizam os conteúdos a serem trabalhados pelo tema
Orientação Sexual nos seguintes blocos:
a) Corpo: matriz da sexualidade,
b) Relações de Gênero
c) Prevenção das Doenças Sexualmente Transmissíveis/Aids.
42
2.4 Corpo: matriz da sexualidade – O que dizem os PCNs?
Nos parâmetros Curriculares Nacionais, o bloco de conteúdos intitulado
Corpo:matriz da sexualidade é introduzido a partir da diferenciação de corpo e
organismo:
O organismo refere-se ao aparato herdado e constitucional, à infra-estrutura
biológica dos seres humanos. Já o conceito de corpo diz respeito às
possibilidades de apropriação subjetiva de toda a experiência na interação com
o meio. O organismo atravessado pela inteligência e desejo se mostrará um
corpo. No conceito de corpo, portanto, estão incluídas as dimensões da
aprendizagem e todas as potencialidades do indivíduo para a apropriação das
suas vivências (BRASIL, 1998, p 317).
Dada a diferenciação, podemos identificar o que seria o objetivo específico desse
bloco de conteúdo:
A abordagem deste tema com os alunos buscará favorecer apropriação do
próprio corpo pelos adolescentes, assim como contribuir para o fortalecimento
da auto-estima e conquista de maior autonomia, dada a importância do corpo
na identidade pessoal (BRASIL, 1998, p 317).
O texto segue apresentando sua concepção de transversalidade, apostando nas
potencialidades de ações disciplinares isoladas a respeito do tema:
As idéias e concepções veiculadas pelas diferentes áreas (Língua Portuguesa,
Matemática, Ciências Naturais, História, Geografia, Arte e Educação Física)
contribuem para a construção dessa visão do corpo por meio da explicitação
das dimensões da sexualidade nos seus conteúdos. Por exemplo, em História,
a inclusão de conteúdos a respeito de como a sexualidade é vivida em
diferentes culturas, em diferentes tempos, em diferentes lugares ...A Educação
Física, que privilegia o uso do corpo e a construção de uma “cultura corporal”, é
um excelente espaço onde o conhecimento, o respeito e a relação prazerosa
com o próprio corpo podem ser trabalhados... Arte também pode abordar as
representações do corpo expressas nas diferentes manifestações artísticas em
diversas épocas e com isso relativizá-las... Em Ciências Naturais, ao ser
abordado o corpo (da criança e do adulto, do homem e da mulher) e sua
anatomia interna e externa, é importante incluir o fato de que os sentimentos, as
emoções e o pensamento se produzem a partir do corpo e se expressam nele,
marcando-o, e constituindo o que é cada pessoa (BRASIL,1998, p 318).
E ainda complementa:
É fundamental que os Professores, ao trabalharem as transformações
corporais, as relacionem aos significados culturais que lhes são atribuídos. Isso
porque não existe processo exclusivamente biológico, a vivência e as próprias
43
transformações do corpo sempre são acompanhadas de significados sociais,
como o que acontece com a menarca, a primeira menstruação (BRASIL,1998, p
319).
Para justificar a tematização da potencialidade erótica do corpo no terceiro e
quarto ciclos, esses parâmetros afirmam:
No terceiro e quarto ciclos, o trabalho com esse bloco inclui e tematiza a
potencialidade erótica do corpo. Isso porque, a partir da puberdade e das
transformações hormonais ocorridas no corpo de meninos e meninas, é comum
a curiosidade e o desejo da experimentação erótica ou amorosa a dois
(BRASIL, 1998,p 319).
Nesse tópico, estão inclusos como conteúdos a serem trabalhados com os
alunos a importância da saúde sexual e reprodutiva e os cuidados necessários para
promovê-la em cada indivíduo. Essa inclusão vem associada ao direcionamento de
uma ação integrada com os serviços públicos de saúde.
Ainda aqui, encontramos como conteúdo os métodos contraceptivos:
Com relação aos métodos contraceptivos, é importante analisar com os alunos
todos os existentes e em uso no país, suas indicações e contra-indicações,
grau de eficácia e implicações para a saúde reprodutiva e bem-estar sexual.
Essa discussão deve ser acompanhada da questão de gênero que lhe diz
respeito: a responsabilidade, que deve, idealmente, ser compartilhada pelo
casal que busca o prazer e não a concepção. É necessário fazer uma
diferenciação entre métodos de esterilização, que são definitivos, e
contraceptivos, que são temporários. Nessa questão é relevante ressaltar a
importância do uso das camisinhas (masculina e feminina) que, além de
prevenirem a gravidez indesejada, previnem também a contaminação pelas
doenças sexualmente transmissíveis/Aids (BRASIL, 1998, p 320).
Quando é anunciado o potencial do corpo para usufruir o prazer, esse aparece
associado às potencialidades reprodutivas e a tentativas de dimensionar
adequadamente o desejo:
Falar sobre o corpo, com seu potencial para usufruir o prazer e suas
potencialidades reprodutivas, implica também a discussão das expectativas,
das ansiedades, medos e fantasias, relacionados à relação sexual, à “primeira
vez”, ao desempenho e às dificuldades que podem surgir como manifestações
associadas à impotência, frigidez, ejaculação precoce e outras possíveis
disfunções. Os impulsos do desejo vividos no corpo precisam ser discutidos e
esclarecidos, ajudando os jovens a dimensioná-los adequadamente,
compreendendo seu caráter e sua relação com as possíveis escolhas racionais
(BRASIL,1998, p 321).
44
Assim, os PCNs encerram esse bloco de conteúdo: “O corpo, como sede do ser, é
uma fonte inesgotável de questões e debates, que vão muito além do que é habitual incluir nos
estudos da sua anatomia e fisiologia” (BRASIL,1998, p 321).
2.5 - Relações de Gênero – O que dizem os PCNs ?
No bloco de conteúdos que se destinam a abordar as questões concernentes às
Relações de Gênero, os Parâmetros Curriculares Nacionais começam apresentando a
definição de gênero que sustentará a sua abordagem:
O conceito de gênero diz respeito ao conjunto das representações sociais e
culturais construídas a partir da diferença biológica dos sexos. Enquanto o sexo
diz respeito ao atributo anatômico, no conceito de gênero toma-se o
desenvolvimento das noções de “masculino” e “feminino” como construção
social (BRASIL,1998, p 321).
Após desconstruir “a explicação da natureza como a responsável pela grande
diferença existente entre os comportamentos e lugares ocupados na sociedade
(BRASIL, 1998, p 321), enunciam o objetivo desse bloco de conteúdos:
O trabalho sobre relações de gênero tem como propósito combater relações
autoritárias, questionar a rigidez dos padrões de conduta estabelecidos para
homens e mulheres e apontar para sua transformação. Desde muito cedo são
transmitidos padrões de comportamento diferenciados para homens e
mulheres... As diferenças não precisam ficar aprisionadas em padrões
preestabelecidos, mas podem e devem ser vividas a partir da singularidade de
cada um (BRASIL, 1998, p 322).
Com esse propósito, os PCNs selecionam os conteúdos a serem trabalhados: a
eqüidade entre os sexos, a flexibilização dos padrões de comportamento e o
questionamento das estereotipias ligadas ao gênero.
Mais uma vez, chama de transversal as ações isoladas que sugere que cada
disciplina tenha ao confrontar-se com o tema:
Em Língua Portuguesa, nos textos literários, podem-se perceber as
perspectivas de gênero por meio da análise das personagens e descrição de
suas características. Seria interessante também discutir as próprias regras do
45
idioma, quando estabelecem, por exemplo, que o plural no masculino inclui as
mulheres, mas o plural no feminino exclui os homens. Língua Estrangeira pode
explorar as diferentes conotações atribuídas ao masculino e ao feminino em
vários países e diferentes culturas, ao trabalhar na literatura a leitura e a
tradução de textos. Ao estudar movimentos migratórios em Geografia, podem-
se incluir as perspectivas de gênero, analisando as conseqüências das
migrações nos arranjos familiares, nas ocupações Investigadorissionais e na
ocupação de espaços. Em Arte seria interessante trabalhar as discriminações.
Os atributos relacionados à sensibilidade artística costumam ser associados ao
feminino... Pode-se abordar, também, a conotação pejorativa que as mulheres
tiveram até muito recentemente, quando assumiam uma carreira artística. Como
homens e mulheres expressam na arte suas diferenças e semelhanças é outra
sugestão que a área pode investigar. A história das mulheres, suas lutas pela
conquista de direitos e as enormes diferenças que podem ser encontradas
ainda hoje nas diversas partes do globo, constitui tema de estudo, tanto em
História quanto em Geografia e mesmo em Matemática, ao utilizar dados para
análise dos avanços progressivos do movimento de mulheres ao longo do
tempo...(BRASIL, 1998, p 323).
Esses parâmetros ainda alertam para a importância da desconstrução de mitos
associados ao gênero na escola:
Há alguns mitos associados ao gênero na escola que precisam ser
questionados: as disciplinas onde os meninos se saem melhor (Matemática, por
exemplo) e as que apresentam melhor aproveitamento pelas meninas (Língua
Portuguesa, por exemplo). Se o Professor tem essa crença, mesmo sem
perceber pode ajudar a promovê-la, sendo que sua origem pode não ter
nenhuma ligação com o sexo biológico e, sim, com experiências vividas que a
escola pode alterar. Na Educação Física também pode acontecer de persistirem
antigos estereótipos ligados ao gênero, como a separação rígida entre práticas
esportivas e de lazer dirigidas a meninos e a meninas. O Professor pode intervir
para garantir as mesmas oportunidades de participação a ambos os sexos, ao
mesmo tempo em que respeita os interesses existentes entre seus alunos e
alunas (BRASIL, 1998, p 324).
Os PCNs ainda propõem que seja trabalhada a violência associada ao gênero –
Essa forma de violência deve ser alvo de atenção, pois constitui-se em atentado contra
a dignidade e até a integridade física das mulheres”(BRASIL, 1998, p 325).
Esse bloco de conteúdos é encerrado com o que caracterizaria a síntese da
proposta: “O que esta proposta pretende é que se aborde, o tempo todo, a perspectiva
de gênero nas relações, na vivência da sexualidade, explicitando e buscando formas
46
mais criativas nos relacionamentos sexuais e amorosos” (BRASIL, 1998, p 325) e com
uma proposição para a discussão do tema da homossexualidade:
Tome-se como exemplo a discussão do tema da homossexualidade. Muitas
vezes se atribui conotação homossexual a um comportamento ou atitude que é
expressão menos convencional de uma forma de ser homem ou mulher. Ela
escapa aos estereótipos de gênero, tal como um menino mais delicado ou
sensível ser chamado de “bicha” ou uma menina mais agressiva ser vista como
lésbica, atitudes essas discriminatórias. Em cada período histórico e em cada
cultura, algumas expressões do masculino e do feminino são dominantes e
servem como referência ou modelo, mas há tantas maneiras de ser homem ou
mulher quantas são as pessoas. Cada um tem o seu jeito próprio de viver e
expressar sua sexualidade. Isso precisa ser entendido e respeitado pelos
jovens (BRASIL, 1998, p 325).
2.6 Doenças Sexualmente Transmissíveis/Aids – O que dizem os PCNs ?
Os PCNs abrem o bloco de conteúdo que trata da prevenção das Doenças
Sexualmente Transmissíveis/Aids, retomando o princípio que enunciou nortear essa
proposta: “o trabalho de Orientação Sexual visa a desvincular a sexualidade dos tabus
e preconceitos, afirmando-a como algo ligado ao prazer e à vida.” (BRASIL, 1998, p
325) – para definir o seu objetivo principal :
As informações sobre as doenças devem ter sempre como foco a promoção da
saúde e de condutas preventivas, enfatizando-se a distinção entre as formas de
contato que propiciam risco de contágio daquelas que, na vida cotidiana, não
envolvem risco algum (BRASIL, 1998, p 326).
Para o trabalho com os terceiro e quarto ciclos do Ensino fundamental, os PCNs
definem como conteúdo a abordagem de
(...) cada uma das principais doenças sexualmente transmissíveis, seus
sintomas no homem e na mulher, enfatizando as condutas necessárias para
sua prevenção. A denominação Doenças Sexualmente Transmissíveis agrupa
aquelas que se transmitem pelo contato sexual entre duas pessoas, e engloba
as antigas doenças venéreas, incluindo a Aids (BRASIL, 1998, p 326).
Sobre o tema da Aids, os parâmetros ainda enfatizam:
O trabalho com esse tema, ao mesmo tempo que fornece informações sobre
Aids, possibilita que os jovens exponham os medos e angústias suscitados e se
questionem os diferentes mitos e obstáculos emocionais e culturais que
impedem a mudança de comportamento necessária à adoção de práticas de
sexo protegido. Dentre os obstáculos emocionais, vale destacar os mecanismos
47
de onipotência e de negação entre os adolescentes, que demandam espaço
contínuo de discussão para que possam vir à tona e modificar-se. A crença de
que “comigo não vai acontecer” ou de que não há risco porque “eu só transo
com quem eu conheço” é reveladora desses mecanismos, que se utilizam do
pensamento mágico, tentando obter controle sobre todas as variáveis
envolvidas no relacionamento sexual. Nega-se a evidência de que as coisas
escapam à possibilidade humana de ter conhecimento e domínio sobre elas,
ainda mais na turbulenta vivência adolescente (BRASIL, 1998, p 326).
Após evidenciar a importância da escola no trabalho preventivo da Aids, os
PCNs reforçam o caráter diferenciado que querem dar à doença e induzem mais uma
vez a escola a fazer uma parceria com a unidade de saúde mais próxima:
Um dos aspectos centrais desse bloco é o trabalho quanto ao cuidado com a
própria saúde e a dos outros, de forma geral e, especificamente, da saúde
sexual. Há resistências, por parte de muitos adolescentes, em procurar os
serviços de saúde e orientação médica. A escola pode interferir positivamente,
criando uma ligação mais estreita e comunicação fluente com a unidade de
saúde mais próxima. Isso favorece a diminuição dos receios dos adolescentes
em buscar orientação clínica, preventiva ou terapêutica (BRASIL,1998, p 27).
Esses parâmetros apontam para a importância de as discussões sobre a
prevenção das Doenças Sexualmente Transmissíveis/Aids considerarem as relações de
gênero:
Os obstáculos emocionais e culturais que impedem ou dificultam a prática do
sexo protegido entre os jovens também se relacionam com a questão de
gênero. A utilização da camisinha masculina supõe superar a vergonha e a falta
de prática dos garotos no seu uso. É um complicador para quem está iniciando
um relacionamento sexual. Também implica a dificuldade das meninas em
exigir dos seus parceiros o uso do preservativo nas relações sexuais. Essa
dificuldade supõe uma série de fatores, entre eles auto-estima rebaixada,
submissão ao homem, medo de “perder” o parceiro, medo de ser tomada como
promíscua, entre outras questões (BRASIL, 1998, p 327).
Aspectos sociais também são aqui enfatizados:
É preciso discutir com os alunos a discriminação social e o preconceito de que
são vítimas os portadores do HIV e os doentes de Aids, por intermédio dos
direitos de cidadania e da proposição da adoção de valores como a
solidariedade, o respeito ao outro e a participação de todos no combate aos
preconceitos, apresentando como contraponto os direitos individuais e sociais
existentes e explicitando a importância desses valores para a manutenção da
vida nas pessoas soropositivas (BRASIL, 1998, p 328).
48
Novamente, há sugestões para abordagens isoladas para as disciplinas:
A área de Ciências Naturais vai tratar do HIV e da doença Aids, as formas de
transmissão e prevenção. Mas o tema da Aids pode e deve ser abordado por
todas as áreas: nos textos literários, revistas e jornais (Língua Portuguesa); nos
estudos comparativos de epidemias em diferentes períodos históricos (História);
em pesquisas com dados sobre a epidemia no estudo de gráficos, tabelas
(Matemática); no estudo das regiões mais afetadas nos diversos continentes, e
em diferentes cidades e regiões do Brasil (Geografia); na montagem de cenas
ou peças teatrais que tratem do relacionamento humano (Arte); no
conhecimento dos cuidados necessários para evitar infecção pelo HIV por
contato sangüíneo (Educação Física). Esses são alguns exemplos que podem
se somar a muitas outras formas criativas que cada Professor pode desenvolver
para atuar de forma responsável na prevenção da Aids. A escola pode também
promover outras formas de divulgação mais amplas para toda comunidade
escolar, como realização de murais, faixas em eventos, exposição de trabalhos
dos alunos, participação em feira de ciências, realização de atividades na
escola com Investigadorissionais da área da Saúde, intervenção de
adolescentes como multiplicadores na prevenção etc (BRASIL,1998, p 329).
Outro aspecto que merece relevância nesse bloco de conteúdos é a importância
de todos na escola apresentarem a mentalidade preventiva:
Todos na escola — direção, orientação, corpo docente, funcionários e alunos
— devem estar conscientes de que a prevenção é um ato de rotina, presente no
cotidiano da escola, envolvendo todas as situações e todas as pessoas, sem
distinção. Por exemplo, sempre que existir a possibilidade de se mexer com
sangue, como um ferimento numa aula de Educação Física, uma atividade no
laboratório de Ciências ou outras, devem-se usar luvas de borracha” (BRASIL,
1998, p 328)
Esse bloco de conteúdos é encerrado com um alerta em relação a interferência
que os estados de consciência podem ter nos processos preventivos das Doenças
Sexualmente Transmissíveis/Aids:
“Se estados eufóricos como os produzidos pelo apaixonar-se já colocam em
risco seriamente a prevenção, alterações no sistema nervoso central,
estimulando, deprimindo ou mudando qualitativamente seu funcionamento
serão novos dificultadores. Poucos se lembrarão de usar camisinha estando
bêbados ou, por exemplo, sob o efeito de um alucinógeno. O trabalho de
prevenção da Aids junto aos jovens implica, portanto, não só a abordagem
franca e direta da sexualidade, mas também o debate aberto sobre as drogas”
(BRASIL, 1998, p 329).
2.7 - O discurso dos alunos
Para registrarmos o discurso dos alunos, gravamos debates organizados a partir
dos Blocos de Conteúdos propostos pelos PCNs para o tema transversal Orientação
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Sexual e utilizamos como motivadores desses debates textos presentes nas seções
transversais dos livros didáticos de Língua Portuguesa aprovados pelo Ministério da
Educação.
2.8 - Corpo: matriz da sexualidade – O que dizem os alunos?
Para investigarmos como os alunos e alunas estavam lidando com a relação
entre o corpo e a sexualidade na unidade escolar, utilizamos num primeiro momento o
texto “A morcega”, que integra o livro O golpe do aniversariante e outras crônicas
(1996) de Walcir Carrasco, e num segundo momento (buscando enfatizar a questão da
gravidez não planejada), apresentamos a matéria “Tentei muito. Finalmente consegui
engravidar.” – Matéria publicada em O Estado de São Paulo (2002) -, para estimular as
discussões.
O texto “A morcega” é uma crônica, na qual o autor ironiza as dificuldades de
uma mãe que se diz “moderna” em lidar com as marcas impressas (tatuagens,
piercings, corte e pintura de cabelo...) no corpo da filha – “mais moderna ainda”.
Quando provocados pelo texto, os alunos iniciaram uma discussão que abordou
os seguintes tópicos:
a) o corpo feminino como fetiche;
b) o padrão de beleza e a diversidade;
c) o uniforme e identidade social;
d) o uniforme e sua utilidade;
e) o uniforme e os escapismos;
f) o uniforme e o controle social;
g) o padrão de beleza;
h) a diversidade e a violência.
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Logo que entenderam que o que estava sendo investigado era o modo como
expressavam a sexualidade através do corpo, as meninas tomaram a voz e os meninos
só respondiam quando diretamente provocados.
Assim, surgiram as primeiras falas:
Menina: Eu me acho. Eu me acho uma pessoa feminina. Então eu demonstro
através dos brinquinhos, essas coisas que a gente usa.
Menina: Ah! também tem, por exemplo: Várias pessoas acham que ela tem
corpo bonito, aí falam pra botar uma roupa curta pra mostrar que o corpo é
bonito.
Quando foi convidado a explicar o motivo de usar um colar, o menino
demonstrou apreço em ser identificado como diferente, idéia essa que a todos seduziu:
Menino: Você acha que as pessoas te olhando com o cordão vão perceber que
você é diferente?
Outro menino: Acho que sim.
Menino. Perceber o seu estilo?
Outro menino: Vai ver tudo diferente.
Menina: Tem que ser diferente.
Foi na tentativa de identificar como a escola atrapalha a afirmação da diferença,
que chegamos ao uniforme:
Investigador.: Eu queria saber o seguinte: E a escola facilita que vocês
expressem essa diferença ou atrapalha? Aqui dentro do espaço escolar.
Menino: Atrapalha.
Menino: Não posso usar boné. To usando boné escondido.
Menina: Ah, eles, eles exigem uniforme, mas só que também não pode colocar
nada de bom......, boné, pulseira.”
Diante da insatisfação que os alunos demonstraram ter por utilizarem uniformes,
refletimos sobre a utilização dos mesmos e, nessa reflexão, marcada pela ironia,
apresentaram aqueles que julgavam ser os motivos de viverem uniformizados no
espaço escolar e fora dele:
51
Menino: Pra mostrar que é uma escola municipal.
Menino: Pra mostrar que é gari.
Menina: Pra mostrar que todo mundo é pobre.
Menina: Pra identificar também.
Menina: Pra mostrar que ninguém tem dinheiro pra pagar escola particular.
(risos)
Nesse movimento de reflexão, surgiu a constatação de que havia gente que não
estudava e que, no entanto, fazia questão de andar uniformizada, o que rapidamente foi
justificado:
Menina: Tem. Pra não pagar passagem
Menino: Pra não pagar passagem.
Outros: Pra não pagar passagem.
Apesar de demonstrarem grande insatisfação com o uso do uniforme, ao serem
perguntados se adotariam uniforme se fossem abrir uma escola, todos garantiram que
sim:
Investigador: E se vocês tivessem essa experiência, vocês adotariam uniforme
na escola de vocês?
Menina: Adotaria, mas não assim.
Menino: Se não adotasse, todo mundo ia querer vir de shortinho.
Menina: Ah, os meninos podem vir de boné, sei lá... Não é preciso que não se
use uniforme... é calça, bermuda....
E reconhecendo que qualquer que fosse o uniforme, haveria insatisfação,
concluíram ser esse um problema sem solução:
Investigador. Então é um problema sem solução.
Aluna: Sem solução.
Investigador. Quer dizer, qualquer que seja o uniforme, a gente vai sempre...
52
Aluna: Sempre vai ter um que não gosta.
Ao refletirem sobre os dribles que conseguem dar na autoridade escolar para
manifestarem sua sexualidade em seu corpo, apontaram:
Menino: Ué... Coloca uma blusa por cima dessa, se alguém aparecer a gente
tira...
Outro Menino: Não é só a blusa...
Menina: Bota a mochila na frente, não tem ninguém no portão... Ou então passa
rapidinho.
O uso do uniforme também foi apontado como indesejável pelos meninos e
meninas pelo fato de os tornarem facilmente reconhecidos como alunos e, por isso,
serem interpretados como transgressores de uma ordem, quando vistos em locais
públicos em horário de aula:
Investigador. Mas qual é o problema se você estar com o namorado e com a
blusa da escola?
Meninas: As pessoas ficam olhando assim, oh....
Ah, problema!
Aí fica pensando assim: Olha a garota matando aula pra ficar com o
namoradinho.
Menino: Só porque eu estou na escola e andando na rua aí um fala assim: Olha
lá, ta matando aula, né?!
Quando apontadas diferentes formas de se expressar aquilo que se é através do
corpo, os meninos tomaram a voz e “malhar” foi considerada a mais importante de
todas:
Meninos: Malhar é mais interessante.
Investigador. Malhar?
Meninos: Com certeza!
Malhar.
Malhar.
53
Investigador. Agora, o pessoal que malha, a malhação não vem parada, não
vem sozinha, vem junto o tipo de camiseta que usa, vem junto a pulseira que
usa, vem junto um monte de coisas... Quando vocês usam esses adereços
todos, ou fazem isso, vocês se imaginam ou se sentem pertencendo a um
grupo de pessoas que fazem isso?
Meninos: Sim.
Ao reconhecerem o senso de pertencimento ao grupo, foram levados a refletir
sobre como se comportavam em relação a quem não fosse (não desse pistas de que
fosse) do mesmo grupo e houve discordância:
Aluna: Ué, não precisa se vestir igual a mim, o importante é que faça as coisas
que eu gosto de fazer, sei lá. Não que goste das mesmas coisas assim... é,
bijuterias, essas coisas assim, mas que goste de fazer as mesmas coisas. Acho
que é isso.
Investigador. Mas você prefere se sentir, você se sente melhor num grupo onde
tem um monte de gente parecida com você, ou num grupo onde tem gente de
tudo quanto é jeito?
Meninas: Parecida comigo, é claro!
De tudo que é jeito. Vai ficar aquela coisa igual, todo mundo igual?
Diferente.
Investigador. É legal diferença?
Meninos: É. Porque, ficar que nem irmão gêmeo?
Ah não! Você fica fora do assunto, você entra lá...
Assim como discordaram quanto às possíveis reações dos grupos a elementos
que se diferenciavam:
Meninos: Todo mundo é diferente aqui.
Eu não acho que se tiver um grupo de rapper ali só: Olha lá os caras
vestidos na moral, chegar um roqueiro assim, vai ser tratado bem? Eu acho que
é capaz até dele apanhar.
... é preconceituoso.
Mas é, mas é real. Não da minha parte.
Dependendo do que eles já falaram.
Investigador.: Agora, como é que as pessoas reagem quando estranham
alguma coisa é que a gente está querendo saber. Não sei se bateriam.
Meninos: Bater não bateriam não, mas ficar assim...
Até aceitarem, a primeira reação é dizer: Aqui não é o grupo dele.
54
E para encerrar a primeira parte do módulo Corpo: Matriz da Sexualidade, os
alunos responderam, para quem se enfeitariam:
Investigador. Mas é pra você se sentir bonito pra garotas ou é pra você se sentir
bonito pra você?
Menino: É, pra mim, pra ser diferente ali. Esses dias, foi no sábado, uma festa
que teve aí, numa escola, eu falo que é só play boy, no caso era só play boy.
Eu cheguei lá, maior estilo hip lento lá, aí ficou todo mundo olhando assim,
entendeu? Mas todo mundo me conhecia.
Investigador..: E vocês aí, os adereços que usam, as saias mais curtas ou mais
longas, o decote maior ou menor, isso está relacionado com o outro ou com
uma satisfação pessoal?
Meninos: Pergunta a Adriana das saias curtas.
Por que, usou?
(confusão)
Na segunda parte do módulo Corpo: Matriz da Sexualidade, procuramos enfocar
a gravidez e, para isso, partimos do texto “Tentei muito. Finalmente consegui
engravidar.” – Matéria publicada em O Estado de São Paulo em 26 de maio de 2002 -,
a qual versava sobre a gravidez na adolescência, mostrando depoimentos de
adolescentes que haviam desejado engravidar.
A primeira questão motivadora de discussão colocada para os alunos foi se
planejavam ter filhos antes de terminarem os estudos e todos negaram, ainda que com
ressalva:
Todos: Eu não tenho.
Menino: Ela disse que tem, a Daniela disse que tem.
Menina: Não, eu disse que não quero ter velha, mas...
E as meninas prosseguem a discussão, passando a comentar se teriam filhos e
com quantos anos teriam:
Meninas: É, pelo menos com uns 28 anos pra mim já está bom. É, até lá eu já
terminei a faculdade.
Eu planejo depois de ter uma faculdade.
Quando estiver coroa já, né?
55
Depois de ter curtido. E eu ainda penso em adotar, não penso em ter.
Os meninos, quando provocados, disseram:
Investigador. Algum dos meninos pensam em ter filhos, ou nem passa pela
cabeça?
Alunos: Eu não.
Eu prefiro ter filhos só quando eu tiver os meus 32 anos.
Eu falei 50.
Após serem lembrados da relação direta existente entre a prática (hetero)sexual
e a gravidez, foram perguntados sobre como poderiam evitar a gravidez, uma vez que,
supostamente, seria muito difícil esperar tanto tempo (28, 32, 50 anos) para começar a
ter uma vida sexual plenamente ativa.
Os alunas demonstraram ter conhecimento dos métodos contraceptivos abaixo e
da importância de freqüentar o ginecologista:
Meninas: usando camisinha.
O anticoncepcional
Ah, mas o melhor é camisinha mesmo.
Ir no ginecologista sempre, pra ver.
A camisinha é o melhor.
Os meninos, mais uma vez, só quando provocados:
Meninos: Mas é bom tomar o anticoncepcional e a camisinha, porque
caso a camisinha arrebente...
DIU.
Todos concordaram com que a responsabilidade de se engravidar na prática
sexual deveria ser compartilhada entre os parceiros e, ainda, colocaram que a gravidez
não planejada traria como conseqüência social a rejeição para a mulher:
Meninas: Ser rejeitada... O namorado vai sair com ela... tipo assim, eu tenho
uma amiga que tava grávida, foi até na época do carnaval, ela tava com um
barrigão assim, só que o filho dela não tinha nascido ainda, mas já era pra ter
nascido, aí, grávida tem vontade de ir ao banheiro toda hora, aí o banheiro era
lá no terreno, longe pra caramba, aí ninguém queria levar ela, no caso no
banheiro, porque ela tava com um barrigão, andar na multidão no carnaval,
quase que batem na barriga dela, aí levar ela no banheiro toda hora, aí
começaram a, não a rejeitar, a não querer levar ela.
56
Todas as mães que têm filhos são rejeitadas, porque eu vi isso.
Quando eu entro na sala de bate-papo, aí eles sempre perguntam assim: Você
tem filho? É a primeira pergunta que eles fazem é: Você tem filho? Desse jeito.
Acha que a gente é mãe solteira.
Todos dizem rejeitar quem já tenha filho e justificam com razões econômicas e
sociais:
Menino: Ah, vou sustentar o filho dos outros? Eu não.
Menina: Ainda acontece caso ainda, quando o pai casa com a mulher que tem
filho, cria o filho dela e quando a criança cresce ainda quer rejeitar o pai ainda.
Menina: Ah, porque aí eu ía ficar com o compromisso de ficar com o filhos dos
outros, e aí eu ía perder a minha liberdade.
Ao serem argüidos sobre o método contraceptivo que usariam em suas práticas,
as respostas variaram: camisinha, anticoncepcional, DIU e diafragma, no entanto, todos
apontaram para a vantagem que a camisinha levava sobre os demais:
Todos: Evita doença.
Mas a desvantagem da camisinha também foi apontada:
Aluna: Mas a camisinha tem que parar para colocar...
Caracterizada a importância do uso da camisinha, os alunos foram provocados
com a seguinte questão: A menina deveria andar com a camisinha? E que implicações
sociais teríamos com esse uso? Obtivemos os seguintes comentários:
Meninas: Eu acho que ela deve andar.
Com certeza.
Não quer dizer que você está andando com a camisinha dentro da
bolsa que você já está transando. Que você não é mais virgem. Não tem nada a
ver.
Aproveitamos esse último comentário para questionarmos o valor da virgindade.
E podemos coletar as seguintes falas:
Meninas: Muitos caras preferem casar...
Muitos caras preferem ainda as virgens.
Investigador. E as meninas, preferem os garotos virgens?
57
Meninas: Não.
Meninos: Eu acho que eu preferia uma mulher experiente, eu queria uma
mulher experiente. Porque nenhum dos dois vai saber de nada, aí na hora é
difícil.
Eu prefiro a virgem.
Meninas: Você tem a curiosidade de tirar a virgindade de uma garota?
Depende da situação, com um namoro que... estável, que tem uma
confiança. Essas coisas. Mas eu acho que seria como um presente. Dela para
ele e de certa forma, dele pra ela. Do jeito que ele agiria na hora, acho que
seria também um presente dele pra ela.
Terminamos esse módulo, retornando ao conceito de corpo colocando a seguinte
questão:
Investigador. Agora, a pergunta que eu queria fazer a vocês é a seguinte: Se a
banalização do sexo ela tem implicações apenas orgânicas, relacionadas a
saúde? Se a única preocupação que a gente tem que ter com a banalização do
sexo é: se engravida ou não engravida, se pega doença ou se não pega?
Menina: Ah... O que é?
Investigador. Eu quero saber o seguinte: Sair transando com todo mundo, a
qualquer hora, os únicos prejuízos que a gente pode ter estão relacionados a
saúde física?
Todos: Não.
Aqui terminamos o debate, por considerarmos que os rumos que adviriam dessa
questão poderiam dar um caráter moralizante à discussão.
2.9 - Relações de Gênero – O que dizem os alunos?
Para discutirmos com os alunos e alunas as relações de gênero no espaço
escolar, utilizamos como provocação o texto papo íntimo extraído do livroCara-
metade” (1995) de Maria Mariana e Eduardo Galli. Nesse texto, um casal de jovens
discute sobre quem deveria tomar a iniciativa no namoro heterossexual: o menino ou a
menina?
58
A partir das discussões surgidas após a leitura do texto, podemos destacar falas
de alunos e alunas que nos auxiliaram na compreensão de como andam os papéis
sociais de gênero nesse espaço escolar.
Já nas primeiras falas, a relativização proposta (quem deveria tomar a iniciativa
no namoro?) é substituída por quatro tópicos que pareciam mais pertinentes:
a) a duração do namoro;
b) a fidelidade;
c) a demonstração do afeto;
d) a rejeição.
Esses tópicos foram surgindo a partir dos diferentes posicionamentos que a
turma foi tomando em relação à narrativa de um aluno de uma das suas experiências
de namoro.
O aluno orgulhoso ironizava o tempo de namoro: 2 dias, dizendo ser esse seu
recorde e, assim, narrou sua investida:
Menino – Eu vi a garota no elevador, comigo, descendo. Aí eu pensei: eu tenho
que ir na casa dela. Eu bati numa porta lá que eu nem sabia se era dela, aí
atendeu uma mulher, acho que era a mãe dela. Ai eu falei assim: Aqui que
mora uma garota morena, de cabelos cacheados? Aí ela falou: É. É a minha
filha. Aí eu chamei ela pra ir pro teatro
.
Ao ser perguntado o porquê da brevidade do relacionamento, ele justificou com
uma fala que provocou a reação das meninas:
Menino – Por quê? Ah, porque ela é muito... Tem muito amigo ela, muito, muito
amigo, então fica o tempo todo dando voltinhas com esses amigos assim, aí eu
falei pra ela que se eu pegasse ela assim, abraçada com alguém assim, eu ia
quebrar ela e o moleque.
Meninas – Ihhhhhhhh, ahhhh, depois falam que não batem em mulher...
Menino – Só pra botar um terror só. Depois disso eu não, eu preferi separar. Eu
vou ficar com galho na cabeça?
59
A rivalidade com os amigos tornou-se o centro da discussão, colocando em
questão o andar “abraçada com alguém assim”.
O menino ratificou incomodar-se com o fato de a namorada andar abraçada com
os amigos dela e sustentou que não andava de mãos dadas com ninguém na escola:
Menino – Não, tem sim... Mas ela fica o tempo todo abraçada assim, vem um
garoto assim e de repente eu vejo ela abraçada assim... Aí não combina né?!
Menino – Eu não ando de mão dada com ninguém aqui não, nem abraçado.
Ao ser perguntada se andava de mãos dadas com os amigos, a menina disse
que apenas andava abraçada e revelou preocupação com a possibilidade de alguém
ver e contar de modo destorcido o que viu para o namorado dela:
Menina – Não, só abraçada, mas de mãos dadas não.
Menina - Eu penso assim, que te veja abraçada... Só de conversar assim, a
dois, se eu te encontrar assim, eventualmente na rua e eu estiver conversando
com você, já passa ali e, poxa, já está saindo com o cara, já está conversando
ali com ele sozinha, né. Já passa ali, vão lá e conta pro namorado: Tava
conversando com fulano ali naquela rua... Ele não vai pensar duas vezes... ele
já vai...
Ao apresentar um motivo para não andar de mãos dadas, nem abraçado, o
menino desqualificou as meninas da escola e provocou uma nova discussão: quem
rejeitaria quem?
Investigador – Por que não anda de mãos dadas e nem abraçado?
Menino – Ah, porque não, sei lá. Mas aqui não tem muita garota bonita não.
Menina – Nem garoto.
Investigador – Só pode andar de braços dados, ou mãos dadas se a garota for
bonita, é isso?
Menino – Claro, eu vou queimar o meu filme?
O menino refletiu sobre o impeditivo que encontrava em abraçar as garotas da
escola e disse o que imaginava ser “um garoto interessante” para as garotas:
60
Menino – Não é nem a questão de ser feia, é que as garotas aqui da escola são
tudo sebosas. Eu gosto de gente humilde, não de gente... Entendeu?
Menino – As garotas acham que um garoto interessante tem que ter moto e
caráter. Caráter é dim-dim. Bastante dim-dim, bastante caráter. Entendeu? Só
isso.
A menina refletiu sobre o porquê de os garotos da escola não serem
interessantes e apresentou o que imaginavam que eles considerariam uma garota legal:
Menina – Pra mim tem que ser legal, tem que ser divertido.Humilde, sincero. Os
garotos aqui só querem saber de zoar. Sair com a garota ali pra zoar,
pra...Depois fala mal. Aí depois sai falando que a garota beija mal...
Menina – Não, tipo assim, tem que ser uma loira, ou uma morena que tem
corpão. Pra ele me dar mole na primeira vez que ele cantar. Bonita, uma coisa
que aqui na escola não tem. Mas o que é que adianta a pessoa ser bonita e ser
chata?
No confronto das idealizações, emergiu o seguinte foco para o debate: as
brincadeiras de mal gosto:
Investigador – Ah, pois é... Me diz uma brincadeira de mau gosto.
Menina – Ficar passando a mão na gente. Tem muitas brincadeiras.
Menino – Eu nunca passei a mão em vocês, só na Débora
12
O menino se orgulha de não praticar essa brincadeira:
Menino – Dá esse “micfrofonezinho” aqui... Qual dessas garotas que eu já
passei a mão, sem ser a Débora?
A menina atribui a responsabilidade da brincadeira a algumas outras meninas,
afirma-se como capaz de defender-se e denuncia a omissão da escola:
Menina – Não? Eu acho uma coisa também, se passar a mão também, tem
pessoas que dão confiança...
Menina – Eu reajo. Eu reajo por minha conta mesmo, porque se ficar
dependendo... Eu enfio a mão na cara, eu rodo a mão mesmo. Não adianta
chamar o diretor... Eu bato mesmo. Ele não faz nada, o Diretor. Fala e vai ficar
por isso mesmo. Ele acha que os alunos têm intimidade...
12
É importante considerar que o menino é amigo da Débora e que se ele fez essa brincadeira com ela, foi, tão
somente, porque ela consentiu.
61
Ao serem perguntados sobre a atitude que tomariam (se fossem o Diretor) para
por fim nessa brincadeira que desaprovam, apresentam, também diferentes
perspectivas:
Menino – Eu ia contratar vários caras, com cacetete, só pedação de pau, perna
de três e ia sentar o cacete em todo mundo mesmo.
Menina – Mais diálogo também.
E a fala da menina tornou-se o mote para o próximo ponto do debate: Como os
diálogos têm aparecido dentro da escola?
A menina negou a existência de diálogos e procurou exemplificar com situações
limites:
Menina – Que nem... A gente tava eu, Carol e a Débora, fumando na biblioteca,
aí ficamos lá pesquisando o negócio da África do Sul e da Inglaterra. Apareceu
um livro rasgado, aí nós mostramos pra moça que fica na biblioteca, falamos
assim mesmo: Aqui, o livro tá rasgado. Ela chegou e falou assim: Ah, vocês
também querem ficar rasgando o livro, não sei o que, vocês são um bando de
pobre, não sei o que, não têm dinheiro pra “coisar”... Aí falou um montão de
coisa. Aí é engraçado, aí depois a gente pega e responde, aí nós é que somos
errados. Aí tá... Ela: Ah, vocês são pobres.
Menina – Outro dia estava chovendo pra caramba, aqui não teve aula, a gente
tava ali na entrada da escola, chegaram um monte de sacos assim, de papel
higiênico, eles não põem um no banheiro. Agora, se a gente vai usar o banheiro
da secretaria: O que é que vocês estão fazendo aqui? É um escândalo.
O debate tomou ares de protesto e os gêneros se uniram na seguinte síntese:
Todos: Não são só os alunos que fazem a escola ficar ruim.
2.10 - Doenças Sexualmente Transmissíveis/Aids – O que dizem os alunos?
Para compreendermos como os alunos do segundo ciclo do Ensino Fundamental
da Escola Municipal lidavam com o tema de um dos blocos de conteúdos do tema
transversal Orientação Sexual, sugerido pelos Parâmetros Curriculares Nacionais
Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS, promovemos discussões a partir do
artigo “Sexo, Aids e a morte por ignorância” do Frei Betto, publicado em 2002 em O
Estado de São Paulo e um relatório da UNESCO (2005), apresentando dados
atualizados da AIDS no Brasil.
62
Como o texto do Frei Betto termina lembrando a importância de as escolas
trabalharem com a Educação Sexual, a primeira questão colocada para os alunos foi
em que momentos esse assunto havia sido tratado na escola, e todos responderam “na
aula de ciências”, só depois de um grande esforço, lembraram que em uma aula de
português haviam lido e interpretado um texto que abordava de algum modo a
sexualidade:
Todos: Mas tinha outro...
Que tinha uma menininha...
A Professora de português aproveitou o texto.
Menina: Foi só interpretação mesmo.
O texto “Sexo, Aids e a morte por ignorância” ainda responsabiliza em parte a
igreja católica pela propagação de tabus e preconceitos que atuam em favor da
disseminação do vírus HIV. Procuramos, então questionar a atuação da religião no
trabalho de prevenção contra essas doenças:
Investigador: Vocês têm aulas de Educação Religiosa? Vocês freqüentam
igreja, grupo bíblico, escola dominical?
Menino: Eu!
Menina: eu sou evangélica
Investigador: E o tema sexualidade era tratado?
Todos: Não
.
Por fim, buscamos descobrir como se configuravam os diálogos sobre as
doenças sexualmente transmissíveis no espaço familiar desses alunos:
Investigador: Já que a gente falou de escola e da igreja vamos tentar ver em
casa como isso é discutido. De algum modo vocês trabalham essas questões
sobre sexualidade em casa?
Menina: Na minha não! Só de vez em quando eu converso com a minha mãe.
Menina: Minha mãe prefere que eu não faça, mas se fizer, não precisa se
casar. Tem uns papos assim. Hoje ta tão fácil pegar doença, então é melhor
63
você nem fazer nada. Não é só usando camisinha que não pega, não! No beijo
também pode pegar.
Os alunos demonstraram a pouca familiaridade com o tema, confundindo
sintomas:
Investigador: Agora, mesmo as outras doenças venéreas elas são
desconfortáveis com uma feridinha no braço, outra coisa é aparecer com uma
feridinha no pênis.
Menina: Gonorréia
Investigador: No caso da gonorréia não é uma feridinha, é uma secreção que
sai. É uma secreção que sai. E aí como seria esse desconforto?
Menino: Como vou saber se nunca tive?
Outra dificuldade que demonstraram ter foi na quantificação dos custos do
tratamento dos pacientes portadores do vírus HIV:
Investigador: Vocês já entraram em contato com algum portador do HIV, ou
seja, mesmo que não tenha desenvolvido a doença ainda. Nem em ônibus,
aquelas pessoas que pedem coisas.
Menina: Mas por que elas pedem, pra comprar remédio?
Investigador: É porque o posto às vezes não tem tudo que ele precisa.
Menina: Esses remédios são pra quê?
Investigador: Fortalecer o sistema imunológico dele, que já se encontra
debilitado.
Menina: São caros esses remédios? Mas de 50 reais?
2.11 - Educação Sexual – O que diz a Instituição?
Nossa investigação, também procurou analisar o discurso da Instituição de
Ensino sobre a inserção do tema transversal Orientação Sexual, no currículo do Ensino
fundamental das escolas brasileiras proposta pelos PCNs.
Para tanto, realizamos entrevistas individuais semi-estruturadas com três
representantes legitimados dessa instituição: o Diretor, a Coordenadora Pedagógica e a
Professora.
64
Ao serem argüidos sobre como entendiam a inserção do tema Orientação
Sexual, no espaço escolar, apresentaram diferentes pontos de vista:
a) A Professora Adriane, formada em Licenciatura em Ciências Físicas e
Biológicas, embora admita a importância dessa inserção, teme (pelos outros
Professores) pela forma vaga com que esses parâmetros se apresentam:
Professora - Eu acho ótimo. Acho que... acho legal a idéia e eu não sei como é
que isso vai ser conduzido em todas as matérias, por todos os Professores,
mas... essa orientação tinha que ser mais clara um pouco, tinha que ter mais
pontos, mais informação, por que não é todo Professor que tem essa
disponibilidade de trabalhar esses assuntos.
b) A Coordenadora Pedagógica Daniele, formada em Pedagogia pela UFRJ,
entende como uma medida de emergência, para a qual os Professores não estariam
preparados para trabalhar. Ela ainda inclui no mesmo plano de dificuldade os demais
temas transversais:
Coordenadora Pedagógica - Na minha opinião acho que foi pertinente num
momento de urgência se a gente analisar a nossa realidade social. Só que eu
acho que nós não fomos preparados para atender essa emergência. Os
Professores ainda estão tentando trabalhar dentro dessa nova demanda com a
formação que tiveram e o Professor não recebeu esse preparo para trabalhar
com os PCN. Não só a sexualidade, mas os outros temas transversais todos
que estão em voga e que nós deveríamos trabalhar.
c) O Diretor, formado em Direito, Pedagogia e Educação Física, ao saudar essa
inserção, procurou ressaltar o caráter moralizante que essa, a seu ver, possui,
colocando a escola como porta-voz da moral vigente, moral essa que diz estar tão
ameaçada pelos multi-meios:
Diretor - Bom, antes de mais nada com as mudanças em todos os sentidos que
estão acontecendo hoje no dia-a-dia, inclusive a exigência cada vez maior de
informações, eu só posso ver com bons olhos. Porque? Por que essa
criançada, essa meninada que está na escola, que eu vejo como um dos
últimos refúgios pra ele ter algum tipo de valor, uma orientação segura,
orientação feita por gente séria, onde eles podem realmente tocar neles. Por
que você vê que a nossa imprensa divulga diariamente uma gama enorme de
conceitos e valores completamente distorcidos do que é a realidade como um
65
todo, uma realidade global. Por que realmente a imprensa atinge somente
poucas pessoas. Eu vou dar um exemplo para você me entender. Eu vejo, por
exemplo, como uma grande importância o jogador de futebol. Sabem que no
Brasil todo mundo gosta de futebol, adora futebol, e a mídia apresenta o
jogador de futebol como um ídolo. Além do ídolo uma pessoa bem sucedida na
vida e nós sabemos que de 100 milhões de brasileiros que jogam apenas meia
dúzia conseguem ser bem sucedidos na sua vida. E não dá uma opção
alternativa para esclarecer o povo. É a mesma coisa a educação sexual. Hoje
em dia se você não tiver um lugar onde você possa ter um diálogo com as
crianças franco e sincero e que elas tenham alguma visibilidade, que ainda é a
escola, os Professores e as pessoas que dentro da sua colaboração se propõe
a esclarecer a realidade. Por que a fantasia todo mundo gosta de ver, de
fantasiar, todo mundo gosta de sonhar, mas todo mundo também não sabe,
eles não sabem avaliar o perigo que eles correm nessa liberdade porque eles
confundem muito liberdade com libertinagem. Existe uma confusão muito
grande no jovem. Ainda mais com essas facilidades hoje em dia de Internet,
esses sites aí de tudo que é tipo, que não existe controle nenhum. Então, eles
são informados só do prazer, mas não do que esse prazer pode causar a eles.
Outro ponto interessante para compreendermos a concepção de “Orientação
Sexual” nessa escola foi identificar nas narrativas desses representantes as diretrizes
que norteariam o desenvolvimento dessa inserção. Assim, quando perguntados por
essas diretrizes, apresentaram as seguintes falas:
a) o Diretor atribuiu à Coordenação Pedagógica o desenvolvimento dessa
inserção e destacou a participação de unidades externas ao espaço escolar nesse
desenvolvimento:
Diretor - Olha, através da Coordenação Pedagógica, eu peço à coordenadora.
Você já deve ter conversado com ela.E isso assim nós temos voluntários de
laboratório, nós temos aí associações, ONGs na verdade, que se preocupam
com essa parte, e são oferecidas palestras, são oferecidos... no caso de vocês
inclusive que vieram fazer...
b) a Coordenadora Pedagógica disse desconhecer qualquer iniciativa nesse
sentido:
Coordenadora Pedagógica - Nenhuma. Existe no papel, mas na prática,
nenhuma.
c) a Professora reconheceu suas iniciativas como atividades isoladas, longe de
ter qualquer identificação com uma proposta de transversalidade:
66
Professora - Nenhuma. Não existe muito isso aqui. Aqui é tudo muito difícil
acontecer de modo transversal, não só isso. Nada acontece muito. Ninguém
tem disponibilidade, aquela má vontade geral. Tem um projeto pedagógico da
escola que o tema era Rio de Janeiro que era o projeto no papel e que ficou no
papel. Aí na última semana, duas cartolinas em cada turma para dizer que
aconteceu alguma coisa.
Ainda perguntamos aos três representantes como a escola atual deveria abordar
o tema e o que faltaria para isso. Registramos diferentes falas sobre essas questões:
a) O Diretor se posiciona em favor do caráter disciplinar e do discurso da
biologia:
Diretor - Eu gostaria que fosse dentro de Ciências, porque eu estou falando de
aluno de 5ª à 8ª série, deveria ter uma matéria específica.Caráter disciplinar.
Por que hoje em dia você tem que estar muito atento às coisas que acontece.
Então, de caráter disciplinar. Não teria que ter uma carga horária como as
outras matérias, mas pelo menos uma vez por semana para sempre estar
alertando eles dos acontecimentos desagradáveis que traz uma gravidez
indesejada, etc.
b) A Coordenadora Pedagógica disse não pensar nisso, mas ressente-se da falta
de estrutura da organização escolar e de preparo para o professor:
Coordenadora Pedagógica - (silêncio) Eu tô pensando, porque a gente não pára
pra pensar. Olha, acho que dentro da grade seria uma boa idéia, mas não
transformar em matéria. Sem caráter disciplinar. Não sei. Tipo encontros pra
debater, até pra se quebrar o tabu de se discutir sobre isso. Um espaço, mas
que não fosse disciplina, prova, nada disso. Que houvesse um espaço, de
repente, oficina, encontro, até um Professor, de repente, destinado a isso, mas
que fosse cobrado em prova, que se transformasse em “anota no caderno”,
entendeu? Aí perde o sentido e o interesse, aí você vai na contramão.
c) A Professora, mesmo pensando nas dificuldades que apresenta, aponta para a
transversalidade:
Professora - Eu acho interessante essa idéia de ser transversal. Acho que tinha
que estar todo mundo trabalhando isso e ao mesmo tempo acho que tem que
ver o Professor que tem essa disponibilidade porque não é todo mundo que
quer, que se sente confortável em falar sobre isso. Tem gente que não se sente
bem, que não gosta, que não consegue. Eu, por exemplo, tinha muito problema
de trabalhar drogas. Eu pulava, às vezes, o capítulo de Sistema Nervoso,
deixava para o final porque era uma coisa que eu achava complicada. Eu não
queria nunca trabalhar. Depois de fazer muito curso eu aprendi como mexer
nesse assunto sem colocar opinião, ou dizer o que é certo ou errado. Acho que
Orientação Sexual é a mesma coisa. A gente tem que trabalhar com muito
cuidado. Você viu ali, é delicado. Eles ficam o tempo inteiro, até quando eu
estou na parte da Ciência: - “Mas você ficou grávida? Sua filha nasceu como?
De parto normal ou cesariana?” Eles querem muito saber da vida da gente.
67
Por fim, solicitamos aos representantes da Escola Municipal que deixassem uma
mensagem sobre sexualidade para os jovens, e obtivemos:
Coordenadora Pedagógica - (silêncio) Tô pensando. Uma mensagem simples?
Não é uma frase de efeito, não? Acho que nessa idade deles eu sou contra um
pouco essas campanhas de governo de “use camisinha, use camisinha, use
camisinha”. Eu sou um pouco a favor da gente, dentro de sexualidade, de
conversar com eles, não só o “use camisinha”, mas aprenda a escolher
corretamente o seu parceiro ou sua parceira, comece a valorizar seu corpo,
comece a se valorizar e a gente poder valorizar a sexualidade não como uma
banalização que a gente está vendo aí na TV, na vida. Transa com um, transa
com outro, beija um, beija outro. Acho que eles podem fazer, não é repressão
nenhuma, mas valorizar o ato em si, como um meio de reprodução, mas como
uma manifestação de amor também. Acho que seriam esses dois lados, tanto a
questão preventiva de passar informação prática, mas se questionar também o
que eles estão fazendo com a própria vida, com o próprio corpo, porque acho
que nessa idade eles têm muitos conflitos na questão de primeiro beijo, primeira
transa, ou décimo primeiro beijo, não sei. A gente fala primeiro beijo na 4ª série,
não é mais na 7ª, mas a transa, tal. Acredito que é por aí.
A Professora - Mensagem? Eu não sou muito boa pra falar. Ah, eu acho que o
mais importante é eles procurarem felicidade. Aquela história, tem que ser feliz
sem, lógico, prejudicar ninguém, mas tentar buscar a felicidade. Sem fazer nada
que não se sinta agredindo, ou fazer o que os outros querem. Nessa idade pra
eles é muito importante isso. Mas devem pensar: - “Vou fazer porque eu quero,
porque eu desejo muito e acho bacana”. Não pra dizer que sou a única da
turma que ainda não namorei ou a única que ainda transei ou a única que ainda
não fumei. Ou no caso da Fabiane: “Vou ter um filho pra ter status porque
peguei um pai poderoso lá em cima na comunidade”.
Diretor - Que eles não tenham medo, que sejam espontâneos e só tomem
cuidado. Esse cuidado hoje em dia todo mundo fala que é só a camisinha. Eu
não penso que é só a camisinha. Acho que tem que usar a sua sexualidade
com amor, gostando, fazendo com prazer, não apenas um ato que não significa
nada.
68
Capítulo 3 –Os discursos entrelaçados
Nesse capítulo, apresentamos uma análise dos discursos apresentados
anteriormente: dos PCNs, dos alunos e da Instituição. Primeiramente fizemos uma
análise isolada de cada discurso, para depois os entrecruzarmos, procurando
compreender como atuam quando confrontados no espaço escolar.
3.1 – Os Parâmetros Curriculares Nacionais e suas rupturas ou
descontinuidades
Primeiramente, confrontamos objetivos dos PCNs e o modo como entende a
função da escola com os de uma corrente progressista de educação, Escola Cidadã,
defendida por Moacir Gadotti.
Num segundo momento, analisamos os Parâmetros Curriculares Nacionais,
procurando confrontar a concepção de currículo apresentada por Tomaz Tadeu da Silva
com a sua proposta curricular.
Num terceiro momento, o entendimento de tema transversal apresentado pelos
PCNs foi confrontado com a concepção de transversalidade defendida por Silvio Gallo.
A partir daí, analisamos cada bloco de conteúdos proposto para o tema
transversal Orientação Sexual, orientando nossa reflexão a partir do pensamento
foucaultiano sobre discurso e sexualidade.
3.2 Os Parâmetros Curriculares Nacionais e a Cidadania.
Como vimos em sua carta de apresentação, os Parâmetros Curriculares
Nacionais dizem-se marcados por duas grandes preocupações:
a) construir uma escola voltada para a formação de cidadãos;
b) corresponder às exigências que
progressos científicos e avanços tecnológicos
impõem aos jovens que ingressarão no mundo do trabalho.
69
Em seu livro Escola Cidadã (2002), Moacir Gadotti apresenta os seguintes
pressupostos para cidadania:
o exercício da cidadania, que pressupõe a participação política de todos na
definição de rumos que serão assumidos pela nação e que se expressa não
apenas na escolha de representantes políticos e governantes, mas também na
participação em movimentos sociais, no envolvimento com temas e questões da
nação e em todos os níveis da vida cotidiana, é prática pouco desenvolvida
entre nós (GADOTTI, 2002, p 20 e 21).
De acordo com os pressupostos apresentados por Gadotti, podemos perceber
que as preocupações dos PCNs são contraditórias, afinal se partirmos do princípio de
que as exigências impostas por um mercado que se apropria dos progressos científicos
e avanços tecnológicos não correspondem às expectativas de uma sociedade
democrática, exercitar a cidadania será justamente desconstruir essa ordem de
mercado.
Entendemos essa contradição como a primeira descontinuidade no discurso dos
PCNs, e o aparente não reconhecimento da oposição existente entre o “mundo do
trabalho” e o exercício da cidadania como um possível posicionamento em favor
do”mundo do trabalho”, pois entendemos por “mundo do trabalho” as forças que
apresentam posições privilegiadas na desigual distribuição de representatividade dos
grupos constituintes da nossa sociedade e que, por isso, ditam a regras desse mundo,
não se interessando por nenhuma alteração que ameace essa distribuição de
representatividade.
Com esse entendimento, passamos a investigar os objetivos dessa proposta.
Ao apresentarem seus objetivos, os Parâmetros Curriculares Nacionais
propõem-se a ser uma
(...) reorientação curricular que a Secretaria de Educação Fundamental do
Ministério da Educação e do Desporto oferece a secretarias de educação,
escolas, instituições formadoras de Professores, instituições de pesquisa,
70
editoras e a todas as pessoas interessadas em educação, dos diferentes
estados e municípios brasileiros (BRASIL, 1998, p 9).
Trata-se, portanto, de um documento que propõe-se a nortear a orientação
curricular de todo o processo educacional brasileiro, o que nos parece suficientemente
centralizador, e faz-nos investigar sua concepção de currículo e confrontá-la com a
concepção apresentada por Tomaz Tadeu da Silva em seu livro “O currículo como
fetiche – a poética e a política do texto curricular” (2003).
O documento introdutório aos Parâmetros Curriculares Nacionais traz a seguinte
concepção de currículo:
O termo “currículo”, por sua vez, assume vários significados em diferentes
contextos da pedagogia. Currículo pode significar, por exemplo, as matérias
constantes de um curso. Essa definição é a que foi adotada historicamente pelo
Ministério da Educação e do Desporto quando indicava quais as disciplinas que
deveriam constituir o ensino fundamental ou de diferentes cursos do ensino
médio. Currículo é um termo muitas vezes utilizado para se referir a programas
de conteúdos de cada disciplina. Mas, currículo pode significar também a
expressão de princípios e metas do projeto educativo, que precisam ser
flexíveis para promover discussões e reelaborações quando realizado em sala
de aula, pois é o Professor que traduz os princípios elencados em prática
didática. Essa foi a concepção adotada nestes Pâmetros Curriculares Nacionais
(BRASIL, 1998).
Podemos perceber que nessa aparente multiplicidade de conceitos, existe
apenas uma: aquela que Tomaz Tadeu da Silva apresentou como visão tradicional do
currículo, ou seja, tanto quando é interpretado como as matérias de curso, como
quando é interpretado como os programas de conteúdos dessas matérias, ou ainda,
quando é interpretado como os princípios e metas do projeto educativo, o currículo é
sempre visto como um conjunto de fatos, de conhecimentos e de informações,
selecionados do estoque cultural mais amplo da sociedade, para serem transmitidos
seja às crianças, seja aos jovens, seja às Professoras, seja às secretarias...
71
Percebemos, ainda, que todos esses casos partem da mesma concepção de
cultura, a prática de significação fica reduzida ao registro e à transmissão de
significados fixos, imóveis, transcendentais (SILVA, 2003, p 15).
Assim ficam omitidas todas as dimensões presentes na concepção do currículo
derivada das perspectivas pós-estruturalistas:
a) Não se reconhece o currículo como uma prática de significação. O que é dito
sobre reconhecimento do currículo como discurso e como prática discursiva? Nada.
b) Não se reconhece o currículo como uma prática produtiva. O que é dito sobre
a produção de sentido e significado sobre os vários campos e atividades sociais no
currículo? Nada.
c) Não se reconhece o currículo como uma relação social. O que é dito sobre as
marcas deixadas no currículo, resultantes das disputas por predomínio cultural, das
negociações em torno das representações dos diferentes grupos e das diferentes
tradições culturais? Nada.
d) Não se reconhece o currículo como uma relação de poder. O que é dito sobre
as relações de poder presentes nas práticas de significação do currículo? Nada.
e) O currículo não é apresentado como uma prática que produz identidades
sociais. O que é dito sobre a contribuição do currículo (em seus processos de inclusão,
exclusão, relações de poder) para a divisão do mundo social? Nada.
Na medida em que “o exercício da cidadania pressupõe a participação política de
todos na definição de rumos que serão assumidos pela nação”(GADOTTI, 2002, p 20) e
entendendo esse documento (PCNs) como uma tentativa de redefinição desses rumos,
72
verificamos, mais uma, o seu comprometimento com o “mundo do trabalho” e
identificamos a segunda ruptura desse discurso: sendo um documento norteador dos
rumos de uma nação, como falar em cidadania, sem propor antes de tudo um exercício
metalingüístico, sem se apresentar como um discurso, sem desvelar a prática
discursiva que o originou?
Como o foco de nossa problematização é o tratamento dado à sexualidade no
espaço escolar, e sendo esse tema sistematizado pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais como tema transversal Orientação Sexual, prosseguimos nossa investigação
confrontando a concepção de transversalidade desses parâmetros com a concepção de
transversalidade apresentada por Sílvio Gallo.
Nesse primeiro momento, identificamos a organização curricular proposta pelos
PCNs para o Segundo Segmento do Ensino Fundamental das escolas brasileiras, como
disciplinar, uma vez que o conhecimento aparece fragmentado em áreas são bem
definidas: “As áreas de conhecimento abordadas nos Parâmetros Curriculares
Nacionais são Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Ciências Naturais,
Educação Física, Arte e Língua Estrangeira” (BRASIL, 1998, p 58)
Considerando que a transversalidade na educação, seria fruto do
desdobramento de um paradigma epistemológico (rizomático) distinto e oposto ao
paradigma (arborescente) do qual se desdobrara a disciplinaridade, chegamos à
terceira ruptura desse discurso: Como chamar de transversalidade uma abordagem
(qualquer que ela seja) que esteja dentro de uma estrutura disciplinar?
Mais uma vez, estamos diante de uma distorção e, como vimos, no âmbito
político, distorcer a transversalidade pode “mascarar ainda mais o mecanismo de poder
73
posto a funcionar e constantemente azeitado pela disciplinarização” (GALLO, 1997, p
122).
Detemo-nos, agora, a analisar o Documento de convívio Social e Ética relativo
ao Tema Transversal Orientação Sexual (1998).
Interpretamos a nomenclatura usada para a inserção do tema sexualidade no
espaço escolar: Orientação Sexual, como uma evidência de que essa inserção trata-se
de uma manifestação do que Foucault chamou de biopoder, ou seja, um poder que tem
como objetivo disciplinar o indivíduo e regulamentar uma população. Não por acaso, o
termo “orientação”, no léxico da língua portuguesa, aparece tão fortemente relacionado
ao conceito de norma.
Sendo assim, novamente esse discurso apresenta ruptura, afinal, já na
introdução desse documento é negada a sua função normatizadora : “A escola deve
assumir-se como um espaço de vivência e de discussão dos referenciais éticos, não
uma instância normativa e normatizadora...”(BRASIL, 1998, p 16).
Então perguntamo-nos: por que orientação sexual? Por que não educação
sexual? Ou ainda, sexualidade?
Seguimos com nossa análise enfocando os blocos de conteúdos: Corpo: matriz
da sexualidade, Relações de Gênero e Prevenção das Doenças Sexualmente
Transmissíveis.
O primeiro bloco de conteúdos Corpo: matriz da sexualidade é introduzido por
uma tentativa de definição do que se entende por corpo. Essa definição, não fosse ela
tão vaga, dar-se-ia a partir da diferenciação de corpo e organismo.
74
Assim, considerando corpo como “a apropriação subjetiva de toda a experiência
na interação com o meio” (BRASIL, 1998), o módulo prossegue anunciando seus
objetivos específicos, dentre eles o ininteligível: “favorecer a apropriação do próprio
corpo pelos adolescentes”.
Desse modo, consideraremos apenas um de seus dois objetivos: “contribuir para
o fortalecimento da auto-estima e conquista de maior autonomia, dada a importância do
corpo na identidade pessoal” (BRASIL, 1998).
Como estratégia para alcançar esse objetivo é sugerida uma série de exemplos
de atividades isoladas em cada área do conhecimento. Podemos reconhecer a
dissimulação da desigual distribuição de poder entre essas áreas do conhecimento que
se apropriariam (ainda que de modo isolado) do tema.
O mesmo discurso que parece querer desconstruir o espaço privilegiado que o
discurso bio-médico ocupa quando se trata de sexualidade no espaço escolar (É
fundamental que os Professores, ao trabalharem as transformações corporais, as
relacionem aos significados culturais que lhes são atribuídos.
13
), reforça esse lugar
privilegiado ao justificar a potencialidade erótica do corpo (Isso porque, a partir da
puberdade e das transformações hormonais ocorridas no corpo de meninos e meninas,
é comum a curiosidade e o desejo da experimentação erótica ou amorosa a dois.
14
)
Esse reforço ainda é confirmado quando, ao mencionar o cuidado e a
importância da saúde sexual como conteúdo, é sugerido o direcionamento de uma ação
integrada só com serviços públicos de saúde.
13
BRASIL, 1998, p 319.
14
BRASIL, 1998, p 319.
75
Cabe, então, a seguinte questão: se houve (e houve) a diferenciação de corpo e
organismo, se a proposta era (e era) trabalhar com o corpo como matriz da
sexualidade, se o discurso bio-médico teria seu espaço privilegiado desconstruído, por
que o direcionamento de uma ação integrada com serviços públicos de saúde? Ou,
ainda, por que o direcionamento de uma ação integrada só com serviços públicos de
saúde? Por que não também com os pólos culturais (Centros, museus, teatros,
cinemas, bibliotecas...)?
Por fim, quando se aborda o potencial do corpo para usufruir o prazer, essa
abordagem aparece associada a suas potencialidades reprodutivas, podemos aqui
verificar uma aplicação do que Foucault chamou de Tríplice Decreto (interdição
inexistência e mutismo), aplicado às demais variantes do desejo.
Nessa mesma abordagem ainda encontramos tentativas de regulamentação do
desejo (Os impulsos do desejo vividos no corpo precisam ser discutidos e esclarecidos,
ajudando os jovens a dimensioná-los adequadamente, compreendendo seu caráter e
sua relação com as possíveis escolhas racionais)
15
o que nos remete à função
normatizadora, anteriormente desvelada desse tema estrategicamente chamado de
transversal.
O segundo bloco de conteúdos diz respeito às Relações de Gênero e em sua
introdução define gênero como “o desenvolvimento das noções de “masculino” e
“feminino” como construção social.”(BRASIL,1998, p 321).
Esse discurso procura desnaturalizar a diferença existente entre os
comportamentos e os lugares ocupados pelos diferentes gêneros na sociedade, e,
76
assim, anuncia seus objetivos específicos: “O trabalho sobre relações de gênero tem
como propósito combater relações autoritárias, questionar a rigidez dos padrões de
conduta estabelecidos para homens e mulheres e apontar para sua
transformação”(BRASIL, 1998, p 322).
Para alcançar esses objetivos, mais uma vez é relacionada uma série de
atividades isoladas nas disciplinas, o que nega o caráter transversal da proposta.
Ainda é proposto que sejam trabalhadas a violência associada ao gênero e uma
discussão do tema da homossexualidade.
É na forma como é proposta a discussão do tema da homossexualidade que
identificaremos uma violência de gênero.
Tome-se como exemplo a discussão do tema da homossexualidade. Muitas
vezes se atribui conotação homossexual a um comportamento ou atitude que é
expressão menos convencional de uma forma de ser homem ou mulher. Ela
escapa aos estereótipos de gênero, tal como um menino mais delicado ou
sensível ser chamado de “bicha” ou uma menina mais agressiva ser vista como
lésbica, atitudes essas discriminatórias. Em cada período histórico e em cada
cultura, algumas expressões do masculino e do feminino são dominantes e
servem como referência ou modelo, mas há tantas maneiras de ser homem ou
mulher quantas são as pessoas. Cada um tem o seu jeito próprio de viver e
expressar sua sexualidade. Isso precisa ser entendido e respeitado pelos
jovens (BRASIL, 1998, p 325).
Aqui, podemos perceber o Tríplice Decreto (interdição, inexistência, mutismo)
sendo aplicado ao desejo homossexual.
Não há dúvida de que trabalhar a autenticidade com que cada um expressa sua
sexualidade seja importante, assim como, ninguém duvida da necessidade de
apresentar diferentes maneiras de ser homem e mulher em diferentes culturas, no
entanto, a intolerância e a violência também se dão em relação ao desejo homossexual,
esteja esse atrelado aos estereótipos de gênero ou não.
15
BRASIL, 1998, p 321.
77
E aqui, o que percebemos é uma condenação desse desejo à inexistência, afinal
não é proposta em nenhum momento uma discussão sobre essa variante do desejo.
Seguimos nossa análise, abordando o bloco de conteúdos: Doenças
Sexualmente Transmissíveis / AIDS.
Já em seus objetivos, podemos identificar a abordagem comportamentalista com
a qual é o tema é trabalhado, o que a nosso ver deflagra intenções disciplinares:As
informações sobre as doenças devem ter sempre como foco a promoção da saúde e de
condutas preventivas.”(BRASIL, 1998, p 326)
Esse caráter disciplinar torna-se mais evidente quando é sugerida a parceria com
uma unidade de saúde: “Isso favorece a diminuição dos receios dos adolescentes em
buscar orientação clínica, preventiva ou terapêutica.” (BRASIL,1998, p27)
Nesse ponto, a palavra orientação mais uma vez nos remete às normatizações
regulamentares.
Podemos identificar a perspectiva culpabilizadora desses parâmetros, pois a
AIDS é apresentada como uma conseqüência da falta de cuidado: “Um dos aspectos
centrais desse bloco é o trabalho quanto ao cuidado com a própria saúde e a dos
outros, de forma geral e, especificamente, da saúde sexual “(BRASIL,1998, p 27).
Mais uma vez esses parâmetros apresentam uma série de atividades isoladas
nas áreas de conhecimento, o que, como já vimos, compromete o caráter transversal de
qualquer trabalho.
Ao exemplificar ações do que chamou de mentalidade preventiva, esses
parâmetros parecem desconsiderar a realidade das escolas brasileiras: “Por exemplo,
sempre que existir a possibilidade de se mexer com sangue, como um ferimento numa
78
aula de Educação Física, uma atividade no laboratório de Ciências ou outras, devem-se
usar luvas de borracha” (BRASIL, 1998, p 328).
As escolas públicas brasileiras, em sua maioria, não costumam apresentar
laboratórios de ciências nem, sequer materiais para primeiros socorros.
Nesse bloco ainda aparecem sugestões para a discussão
Como podemos perceber o discurso dos PCNs parece estar representando o
que Foucault chamou de Biopoder, ou seja um poder que atua em cada indivíduo e na
população, partindo de tecnologias disciplinares e de ações regulamentadoras.
3.3 A Instituição
Nesse item, analisamos o discurso da escola sobre a inserção do tema
transversal Orientação Sexual no currículo do Ensino Fundamental das escolas
brasileiras.
Podemos verificar que os três entrevistados (o Diretor, a Coordenadora
Pedagógica e a Professora) apresentam modos distintos de compreender essa
inserção, no entanto, em todos os discursos podemos perceber o entendimento de
currículo apresentado como tradicional por Tomaz Tadeu da Silva.
Todos apontam para a informação como o aspecto relevante dessa inserção:
seja na preocupação da Professora com o despreparo dos Professores: “... essa
orientação tinha que ser mais clara um pouco, tinha que ter mais pontos mais
informação...”, seja no caráter emergencial ressaltado pela coordenadora pedagógica:
o Professor não recebeu esse preparo para trabalhar com os PCN”, seja no caráter
moralizante que o diretor procura imprimir: “Bom, antes de mais nada com as mudanças
em todos os sentidos que estão acontecendo hoje no dia-a-dia, inclusive a exigência
cada vez maior de informações, eu só posso ver com bons olhos... .
79
Ao solicitarmos as diretrizes que norteariam o trabalho com o tema Orientação
Sexual nessa escola, podemos identificar a primeira grande ruptura que comprometeria
a unicidade do discurso institucional.
O Diretor disse ser um atributo da Coordenação Pedagógica, e lista uma série de
parcerias, que colocariam a responsabilidade sobre o desenvolvimento desse tema fora
da escola: “E isso assim nós temos voluntários de laboratório, nós temos aí
associações, ONGs na verdade, que se preocupam com essa parte, e são oferecidas
palestras, são oferecidos... no caso de vocês inclusive que vieram fazer...
No entanto, a Coordenadora Pedagógica e a Professora disseram ser nenhuma.
A Coordenadora Pedagógica disse haver somente no papel (PCN) e a Professora (de
Ciências) não reconheceu suas atividades isoladas a respeito do tema como uma
atividade transversal: “Mas ainda é disciplinar, a fala da ciência sobre o assunto... Aqui
é tudo muito difícil acontecer de modo transversal, não só isso. Nada acontece muito.
Ninguém tem disponibilidade, aquela má vontade geral.”
Quando expuseram como deveria ser a abordagem do tema no espaço escolar,
mais uma vez o currículo disciplinar permaneceu inquestionável.
O Diretor que clama por essa disciplinaridade:
Então, de caráter disciplinar. Não teria que ter uma carga horária como as
outras matérias, mas pelo menos uma vez por semana para sempre estar
alertando eles dos acontecimentos desagradáveis que traz uma gravidez
indesejada, etc.
A Coordenadora pensa em incluir essa questão na grade curricular, mas sem
transformar em “matéria”, ou seja, continuaríamos com uma grade curricular disciplinar,
o tema é que seria uma exceção.
80
A Professora, embora aponte para a transversalidade, não questiona a
organização disciplinar: “Acho que tinha que estar todo mundo trabalhando isso e ao
mesmo tempo acho que tem que ver o Professor que tem essa disponibilidade
porque não é todo mundo que quer...
Nos três discursos, podemos observar que a inserção da sexualidade no espaço
escolar, como tema equivocadamente chamado de transversal, conforme a proposta
dos PCNs, consolida a organização disciplinar.
Isso torna-se mais evidente quando, em suas mensagens sobre o tema,
captamos a concepção que a escola tem de sexualidade. Os três representantes da
instituição, em maior ou menor grau, enfatizam o seu caráter reprodutor e a
preocupação com as doenças sexualmente transmissíveis.
3.4 – Os alunos
Para compreendermos o tratamento dado à sexualidade no espaço escolar não
poderíamos deixar de observar e ouvir os alunos. Para tanto, encontramo-nos com eles
todas as segundas-feiras de março a novembro de 2005, com o objetivo principal de
estabelecermos os vínculos de cumplicidade e afeto que o tratamento do tema exige.
Durante os meses de outubro e novembro, gravamos quatro desses encontros,
nos quais debatemos assuntos diretamente relacionados com a sexualidade.
Procuramos direcionar esses assuntos de acordo com a classificação dos Blocos
de Conteúdos dos Parâmetros Curriculares Nacionais.
Aqui, apresentamos a análise das discussões promovidas com os alunos sobre
os seguintes temas:
a) Corpo: matriz da sexualidade;
b) Relações de Gênero;
81
c) Doenças Sexualmente transmissíveis / AIDS.
Durante as discussões travadas sobre o tema Corpo: matriz da sexualidade,
podemos identificar as resistências dos alunos e alunas em ocupar o lugar social que o
vínculo que estabelecem com a escola tenta lhes impingir.
Essa resistência evidencia-se:
a) na necessidade de “ser diferente” – idéia presente em diferentes falas;
b) insatisfação com o uniforme e aí podemos verificar que essa insatisfação dá-
se não só com a identificação social ( “pra mostrar que todo mundo é pobre”), mas
também com a possibilidade de ser controlado (Aí fica pensando assim: Olha a garota
matando aula pra ficar com o namoradinho.).
Os estereótipos de gênero parecem ser bem definidos, às meninas cabe usar
brincos e pulseiras (Eu me acho uma pessoa feminina. Então eu demonstro através dos
brinquinhos, essas coisas que a gente usa) e aos meninos cabe usar boné (Ah, os
meninos podem vir de boné, sei lá... Não é preciso que não se use uniforme... é calça,
bermuda....)
Nessa perspectiva o corpo feminino aparece como fetiche (“... Várias pessoas
acham que ela tem corpo bonito, aí falam pra botar uma roupa curta pra mostrar que o
corpo é bonito.”, “Se não adotasse, todo mundo ia querer vir de shortinho”).
O padrão de beleza vigente passa a ser o filtro maior pelo qual os alunos se
apropriam de seus corpos (“Malhar é mais interessante”) e a diversidade é entendida
por alguns como um fator complicador, justificando até mesmo a violência (“Eu não
acho que se tiver um grupo de rapper ali só: Olha lá os caras vestidos na moral, chegar
um roqueiro assim, vai ser tratado bem? Eu acho que é capaz até dele apanhar”).
82
Relacionamos esse modo de ver a diversidade como efeito do processo
disciplinador/regulamentador ao qual estão submetidos no espaço escolar, o que se
confirma quando justificam o uso do uniforme na escola que idealizam.
No segundo encontro, ainda sobre o bloco de conteúdos Corpo: matriz da
sexualidade, discutimos o tema gravidez e métodos contraceptivos. Analisando essa
discussão podemos chegar a algumas conclusões sobre o modo como os alunos
entendem os métodos de contracepção, as conseqüências da gravidez não-planejada,
o valor da virgindade.
Quanto aos métodos de contracepção, o mais vantajoso apontado pelos alunos
foi o uso da camisinha, por evitar doença, no entanto, segundo os mesmos alunos a
camisinha apresentaria uma desvantagem sobre os demais métodos (DIU,
anticoncepcionais...) que seria ter que interromper o ato sexual (Mas a camisinha tem
que parar para colocar...).
Ao refletirem sobre as conseqüências de uma gravidez não planejada e que não
resulta em casamento, os alunos deixaram claro que, embora com diferentes
intensidades e por diferentes motivos, o homem e a mulher sofreriam rejeição.
A mulher sofreria a rejeição em dois momentos: durante a gravidez e após o
nascimento da criança.
Durante a gravidez a rejeição seria pelo fato de a mulher estar fragilizada (“...
porque ela tava com um barrigão, andar na multidão no carnaval, quase que batem na
barriga dela, aí levar ela no banheiro toda hora, aí começaram a, não a rejeitar, a não
querer levar ela.”)
83
Após o nascimento da criança, a mulher seria rejeitada porque outros homens
não se responsabilizariam economicamente pela criança. (“Menino: Ah, vou sustentar o
filho dos outros? Eu não.”)
Podemos perceber ainda nessas falas, que a responsabilidade pela criança é
atribuída à mãe e que o homem continua a ser entendido como o provedor da família.
Ao problematizar o uso da camisinha, uma aluna trouxe á tona o valor da
virgindade. Valor esse que só foi atribuído à mulher (“ Muitos caras preferem ainda as
virgens.”).
No encontro em que problematizamos as Relações de gênero podemos mais
uma vez perceber o quão os estereótipos estão presentes no grupo. As discussões
foram marcadas pela violência de gênero, pela interdição do afeto, mas sobre tudo pelo
sentimento de rejeição que os alunos têm.
A violência de gênero ficou caracterizada logo no início da discussão, quando as
meninas ironizaram a fala de um menino (“Ihhhhhhhh, ahhhh, depois falam que não
batem em mulher...”).
Essa mesma violência ainda pôde ser identificada quando o assunto foi a
brincadeira de mau gosto (“Menina – Ficar passando a mão na gente. Tem muitas
brincadeiras.”).
Como se a descrição da brincadeira não houvesse sido suficiente para
caracterizarmos uma problemática de gênero, ainda houve quem culpabilizasse a vítima
da “brincadeira” (“Menina – Não? Eu acho uma coisa também, se passar a mão
também, tem pessoas que dão confiança...”)
E ao buscarmos um posicionamento da escola para solucionar o problema, a
seguinte fala nos surpreendeu:
84
Menina – Eu reajo. Eu reajo por minha conta mesmo, porque se ficar
dependendo... Eu enfio a mão na cara, eu rodo a mão mesmo. Não adianta
chamar o diretor... Eu bato mesmo. Ele não faz nada, o Diretor. Fala e vai ficar
por isso mesmo. Ele acha que os alunos têm intimidade...
Essa fala caracteriza o “passar a mão” como uma violência à mulher, não por
essa ser frágil (porque ela bate mesmo...), mas por ser mulher. Estamos diante do
machismo decorrente de um sexismo exacerbado.
Os alunos de um modo geral (meninos e meninas) pareceram lidar mal com as
manifestações do afeto (andar de mãos dadas, abraçados...), apontavam para regras
que desconheciam, mas que os incomodavam. Assim necessitavam justificar qualquer
posição nessa discussão. E nessas justificativas acabavam por desqualificar os outros:
Investigador – Por que não anda de mãos dadas e nem abraçado?
Menino – Ah, porque não, sei lá. Mas aqui não tem muita garota bonita não.
E num exercício para desconstruir essas desqualificações, tanto os meninos
quanto as meninas acabaram desqualificando a si mesmos da possibilidade de serem o
desejo do outro:
Menino sobre o desejo das meninas – As garotas acham que um garoto
interessante tem que ter moto e caráter ( o que ele não tem). Caráter é dim-
dim. Bastante dim-dim, bastante caráter. Entendeu? Só isso.
Menina sobre o desejo dos meninos – Não, tipo assim, tem que ser uma loira,
ou uma morena que tem corpão (o que ela julga não ter). Pra ele me dar mole
na primeira vez que ele cantar. Bonita, uma coisa que aqui na escola não tem.
Mas o que é que adianta a pessoa ser bonita e ser chata?
Nessas discussões, ainda podemos flagrar mais uma vez o corpo da mulher
sendo posto como fetiche: “...uma morena que tem corpão” e a interdição às demais
variantes do desejo.
A rejeição apontada por eles mesmos, parece se fortalecer quando se trata de
como são vistos pela instituição:
85
Todos: Não são só os alunos que fazem a escola ficar ruim.
O último bloco de conteúdos que abordamos foi Doenças Sexualmente
Transmissíveis / AIDS.
Nesse tema, para escaparmos do discurso normatizador bio-médico, procuramos
investigar :
a) em que momentos na escola o tema sexualidade foi tratado,
b) em que outras instâncias discutiam esse tema,
c) como os diálogos sobre o tema se configuravam,
d) e quais seriam os desconfortos sociais de uma DST.
Quanto ao tratamento dado pela escola ao tema, ficou claro que apenas nas
aulas de ciências o conteúdo foi trabalhado de modo significativo.
Os alunos que se identificaram como membro de alguma religião também
sinalizaram a interdição ao tema em seus espaços religiosos.
E quando buscamos a configuração do diálogo familiar sobre o tema,
observamos a timidez com que é tratado: quando não é de todo interditado, o tema
aparece em abordagem normatizadora:
Menina: Na minha não! Só de vez em quando eu converso com a minha mãe.
Menina: Minha mãe prefere que eu não faça, mas se fizer, não precisa se
casar. Tem uns papos assim. Hoje ta tão fácil pegar doença, então é melhor
você nem fazer nada. Não é só usando camisinha que não pega, não! No beijo
também pode pegar.
Ao propormos uma discussão sobre os desconfortos sociais de uma doença
sexualmente transmissível, esbarramos no desconhecimento da relação doença-
sintoma e dos custos do tratamento da AIDS:
Investigador: Agora, mesmo as outras doenças venéreas elas são
desconfortáveis com uma feridinha no braço, outra coisa é aparecer com uma
feridinha no pênis.
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Menina: Gonorréia
Investigador: No caso da gonorréia não é uma feridinha, é uma secreção que
sai. É uma secreção que sai. E aí como seria esse desconforto?
Menina: Esses remédios são pra quê?
Investigador: Fortalecer o sistema imunológico dele, que já se encontra
debilitado.
Menina: São caros esses remédios? Mais de 50 reais?
3.5 - Entrelaçando os discursos
Para compreendermos o tratamento dado à sexualidade no espaço escolar,
torna-se necessário entender como esses discursos se entrecruzam nesse espaço.
Podemos perceber que mesmo não sendo seguidos, os Parâmetros Curriculares
Nacionais impõem-se como discurso oficial instituído, portanto reconhecido pelas
práticas discursivas vigentes como um portador da verdade.
Isso se torna evidente quando as autoridades escolares fazem menção a eles: o
Diretor procurando simular a aplicabilidade dos mesmos e a Coordenadora Pedagógica
culpabililizando a escola por não realizar as atividades nele propostas (“No papel
existe”).
Também podemos perceber através das preocupações dos representantes da
instituição escolar (o Diretor, a Coordenadora Pedagógica, a Professora) com a
disseminação das Doenças Sexualmente Transmissíveis e da propagação dos casos
de gravidez que fogem a expectativa da ordem social vigente, que esses também são
(indubitavelmente) autorizados a “falar” e têm suas falas reconhecidas como verdades
dentro do espaço escolar.
E os alunos? Os alunos apresentam-se queixosos da falta de diálogo na escola,
ou seja, suas vozes não são ouvidas.
87
Podemos perceber que há claramente uma assimetria na distribuição de
representatividade desses discursos: Os Parâmetros Curriculares Nacionais são
autorizados a “falar” sobre sexualidade, os representantes da escola (O Diretor, a
Coordenadora Pedagógica e a Professora) também são autorizados uma vez que seus
discursos são derivados, ou mesmo reprodutores do discurso dos Parâmetros
curriculares Nacionais e os alunos são “silenciados”, embora falem (e muito) sobre
sexualidade, suas vozes não são ouvidas, ou quando ouvidas não são consideradas
como verdades no tenso processo de significação e ressignificação que é a educação.
E quais seriam as conseqüências dessa assimetria?
Como vimos os Parâmetros Curriculares Nacionais são, antes de tudo, uma
proposta curricular disciplinar que reforça a disciplinaridade quando distorce o sentido
de transversalidade.
Em sua perspectiva disciplinar, podemos perceber ainda que os PCNs ao propor
a introdução do tema (dissimuladamente chamado de) transversal Orientação Sexual
no currículo do Ensino fundamental das escolas brasileiras, sequer distribui
simetricamente a apropriação do tema pelas áreas nas quais o conhecimento foi
fragmentado.
Na abordagem proposta por esses parâmetros, o discurso da biologia tem lugar
privilegiado quando o assunto é sexualidade.
O discurso da biologia é um forte representante do que estudamos como
biopoder, que seria um poder que buscaria controlar não só o indivíduo, mas também
controlar o que chamou de população.
O biopoder atua sobre a população disciplinando o indivíduo e a regulamentando
88
(através da norma) a população. Assim, quem não estiver de acordo com a norma é
considerado ANORMAL.
Sendo o discurso dos PCNs um promotor do discurso da biologia sobre os
demais, e sendo o discurso da biologia um representante do biopoder, verificamos que
a inserção do tema Orientação Sexual proposta pelos PCNs trata-se de um dispositivo
de controle desse poder.
A despeito de realizarem ou não as atividades propostas pelos PCNs, podemos
perceber que os representantes da escola incorporaram seu discurso e percebemos
isso, quando temem o despreparo ou a indisposição dos professores em lidar com o
tema. O discurso dos PCNs sobre sexualidade é o discurso da biologia, não é o
discurso da pedagogia, do pedagogo, do educador. O professor não é legitimado para
tratar do assunto sexualidade sem ser “preparado”.
Se as autoridades escolares incorporam o discurso dos PCNs e se os alunos são
silenciados, a escola passa a ser, então, um dispositivo do biopoder.
E o que ouvimos dos alunos quando permitimos que suas vozes emergissem?
Em primeiro lugar o que nos chamou atenção foi o prazer com que participavam
dos debates e com o que nos recebiam. Queriam ser ouvidos e entenderam a nossa
investigação como um espaço para isso.
No entanto, o que podemos perceber em suas falas foi também a incorporação
do discurso instituído, embora em suas vivências negassem esse discurso o tempo
todo.
Os alunos não gostavam de usar seus uniformes, mas diziam que numa escola
deveria haver uniformes; os alunos gostavam de expor seus corpos na escola, mas
diziam que na escola não deveriam expor seus corpos; os alunos eram fortemente
89
marcados pela violência de gênero, mas diziam não serem sexistas; os alunos
reconheciam o uso da camisinha como o método contraceptivo mais interessante
porque (evitava doença), mas hora de escolher o que usariam, apontavam para o
anticoncepcional.
Por fim, podemos perceber que essa oposição entre o que dizem e o modo como
vivem, resultam num processo de culpabilização de si mesmos, o que os tira da
possibilidade de ser o desejo do outro.
Assim, os meninos não acreditavam que pudessem ser desejados pelas meninas
e as meninas não acreditavam que pudessem ser desejadas pelos meninos.
E, a despeito de seus escapismos, muito desejo permanecia ocultado.
90
4 – Considerações Finais
Na tentativa de compreender o tratamento dado à sexualidade na escola
brasileira, a partir da proposta de inserção do tema Orientação Sexual no currículo do
Ensino Fundamental proposta pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, investigamos
os documentos que continham o discurso referente a essa inserção e convivemos com
uma realidade escolar observando sua dinâmica e ouvindo suas autoridades e alunos.
Em nossa investigação nos documentos dos PCNs percebemos o caráter
controlador dessa proposta e em nossa vivência na escola podemos perceber os
efeitos desse controle.
Vimos os representantes da escola desconfortáveis por acreditarem que não
sabiam lidar com o tema e que, por conta disso, precisariam de uma preparação.
Ouvimos um discurso instituído e outro silenciado e foi quando deixamos emergir
o silenciado, que nos surpreendemos: ouvimos os alunos reproduzindo um discurso
que não condizia com sua realidade e, com isso, percebemos o desconforto em que
eles se encontravam.
Vimos discriminação à mulher, interdição à qualquer variante da função
reprodutora da sexualidade e dificuldade na expressão do afeto.
Em meio a tanto desconforto, ressentimos a falta de educação na escola. A falta
de uma educação que não interdite a sexualidade e que não faça dessa um dispositivo
de controle.
91
Referências
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Fundamental. Versão – PCNs – 1
º
e 2
º
ciclos / 1998.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre literatura
e história da cultura / Walter Benjamin. 7ª. Ed. São Paulo: Brasiliense,
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Educação:uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora,
Ltda, 1994
BONATO, Nailda Marinho da Costa. Educação (Sexual) e Sexualidade: o
velado e o aparente (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1996.
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De Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A.Guilhon
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História da Sexualidade II: O uso dos prazeres. Trad.
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Albuquerque.11
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Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A.Guilhon Albuquerque.11
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THIOLLENT,Michel.Metodologia da Pesquisa-Ação.13ª Ed.São
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VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a Educação. 2ª. Ed. Belo Horizonte:
Editora Autêntica, 2004.
94
Apêndice I
Seleção dos textos que foram utilizados como motivadores dos debates sobre
sexualidade com os alunos do segundo ciclo do ensino fundamental de uma escola
pública brasileira em 2006:
Tema: Relações de gênero :
“papo íntimo”
Mariana, Maria e Galli, Eduardo. Cara-metade. Rio de Janeiro. Relume Dumará, 1995.
Tema: Corpo: matriz da sexualidade:
“A morcega”
CARRASCO, Walcir. O golpe do aniversariante e outras crônicas, São Paulo: Ática,
1996.
“Tentei muito. Finalmente consegui engravidar.”
O Estado de São Paulo, 2002.
Tema: Doenças Sexualmente Transmissíveis / AIDS:
“Sexo, Aids e a morte por ignorância”
Betto, Frei. O Estado de São Paulo, 2002.
95
Apêndice II
Roteiro utilizado para entrevista semi-estruturada com o Diretor, a Orientadora
Pedagógica e a Professora de uma escola pública brasileira em 2006:
Nome
Idade
Formação
Como entende a inserção do tema Orientação sexual no espaço escolar?
Que diretrizes tem norteado essa inserção nessa escola?
Que atividades vêm sendo desenvolvidas sobre o tema?
Relatos de situações confortáveis ou desconfortáveis relacionadas ao tema no
espaço escolar.
Como a escola de seu tempo abordava o tema?
Causas;
Conseqüências;
Relatos.
Como a escola atual deve abordar esse tema? O que falta para isso?
Que instrumentos foram fornecidos em sua formação para que hoje lide com o
tema?
Mensagem final
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