71
Pela beleza da reconciliação destas forças apolíneas e dionisíacas foi possível ao homem
“tornar-se obra de arte”, uma vez que sua potência e sua força advindas da natureza podiam ser
extravasadas, em seu mais alto grau, sem o perigo de tornarem-se aniquiladoras.
Sendo assim, os gregos arcaicos apresentaram à civilização ocidental o monumento de
uma sociedade afirmadora da vida, que mesmo aceitando o grande horror da existência e seus
aspectos mais caóticos simbolizados pelo dionisíaco, pôde tornar a vida não só suportável, mas
também desejável. Lembremos que os helenos puderam ultrapassar o pessimismo da sabedoria de
Sileno
75
por meio dos deuses olímpicos.”para poderem viver, tiveram os gregos, levados pela
mais profunda necessidade, de criar tais deuses...os deuses legitimam a vida humana pelo fato de
eles próprios a viverem”
76
.
Os impulsos e as pulsões típicas do dionisíaco causavam no homem o esquecimento de si,
sua memória abandonava qualquer lembrança das regras sociais e ele se entregava de forma
irrestrita, às forças da natureza:.
“o carro de Dionísio está coberto de flores e grinaldas...não se refreia a força da
imaginação...agora o escravo é homem livre, agora se rompem todas as rígidas e
hostis delimitações...cada qual se sente não só unificado, conciliado, fundido com
o seu próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido rasgado.. cantando
e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior:
ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos
ares...do interior do homem também soa algo de sobrenatural: ele se sente como
um deus, ele próprio caminha agora tão extasiado e enlevado, como vira em sonho
75
Reza a antiga lenda que o Rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir
captura-lo, o sábio Sileno, o companheiro de Dionísio. Quando, por fim, ele veio a cair em suas mãos,
perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a maior e a mais preferível para o homem. Obstinado e
imóvel o demônio calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente: estirpe miserável e
efêmera, filhos do acaso e do tormento, porque me obrigas a dizer-te o que seria mais salutar não ouvir?
O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso,
porém, o melhor para ti é logo morrer.
O Nascimento da tragédia,
§ 3, p. 36.
76
O Nascimento da Tragédia,
§3, p. 37
71