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Edson Benedetti Ruiz
HISTÓRIAS DE MANOKI: UM RELATO DA VIDA E DO
COTIDIANO DE UM POVO DURANTE O SÉCULO XX.
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em CIÊNCIAS SOCIAIS (Antropologia),
sob orientação do Profº. Doutor Rinaldo Sérgio
Vieira Arruda.
PUC – SP
2007
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HISTÓRIAS DE MANOKI: UM RELATO DA VIDA E DO
COTIDIANO DE UM POVO DURANTE O SÉCULO XX.
Edson Benedetti Ruiz
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
2
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Dedicatória
Dedicado este trabalho a meu pai Edson (in
memorian); à minha mãe Julia Augusta; a
meu padrinho Osvaldo, à minha madrinha
Vera Lúcia; e, finalmente, para minha
grande amiga Luciana.
3
AGRADECIMENTOS
estou eu cheio de ansiedade! Confesso–lhes que tempos venho
elaborando mentalmente uma lista com os nomes das pessoas com as quais tive a
felicidade de compartilhar as incontáveis histórias que compõem a vida e o cotidiano
dos Manoki e, conseqüentemente, essa pesquisa. Entretanto, é difícil aceitar que
essa etapa de trabalho chegou ao fim. O lugar das idéias e demandas institucionais
gerado a partir desse trabalho foi abruptamente substituído por um imenso vazio.
Uma pausa para reflexão, e veio-me à lembrança o alerta dado pelo professor
Rinaldo Arruda em julho de 2003: “(...) Toda pesquisa tem que acabar! Um dia
devemos parar e apresentar as considerações finais. Embora sempre haverá algo
que ainda gostaríamos de complementar (...)”.
Ciente dessa condição, a sensação de vazio foi sendo gradativamente
transformada em saudade e gratidão. Razão pela qual desejo marcar a importância
de cada uma dessas pessoas para minha vida e meu trabalho.
Agradeço imensamente ao professor Rinaldo Arruda pela orientação, pelo
respeito, confiança e amizade.
À Mercedes Settem, Eliete Saragiotto, Maria da Graça Oliveira de Figueiredo,
Valmira Ayabe, Viviane Franscischini Fagundes, Edina Silva Reis, Maria do Socorro
Perpétuo, Bernadete Gatto e Liá Lima Barbosa pela grandiosa oportunidade de
trabalho e convivência que compartilhamos nos tempos do projeto Xamã.
À Tânia Ferreira pela acolhida Fraternal em minha chegada ao Mato Grosso.
Ao amigo Jorge Luiz de Paula pelas Primeiras lições de política indigenista no
Brasil e mais especificamente no Mato Grosso em 1997.
Agradeço aos companheiros da OPAN, por todas as oportunidades de
convivência e, de modo especial, a Ivar Bussatto, Thélia Pinheiro e Nelson Secchi,
por todas as experiências compartilhadas nessa caminhada.
À Irmã Elizabeth Amarante por sua confiança e generosidade que estimulou
ainda mais meu interesse pelo Universo Manoki.
Ao Tikiandá Janãxi e toda comunidade da aldeia Japuira.
Ao amigo Thomas Aquino Lisboa por todas nossas conversas.
Aos amigos do CIMI/MT pelo empréstimo de teses e trabalhos necessários à
realização dessa dissertação.
À Daniela Jakubaszko agradeço pela prestimosa revisão do texto.
4
Para “meu irmão” Pedro Henrique Passos, minha eterna gratidão em
retribuição a tudo o que vivemos juntos nesses anos.
Ao Padre José de Moura S.J. pelo acesso aos arquivos da Missão Anchieta.
À professora Lúcia Rangel pelas importantes contribuições dadas no exame
de qualificação.
À grande amiga Maristela Souza Torres, o meu muito obrigado.
Para Katiucia Franco de Oliveira todo carinho e minha eterna gratidão pelas
horas que trabalhamos juntos na formatação desse trabalho.
Ao amigo Adu Schwade agradeço pelos estímulos iniciais que motivaram o
desejo por esse projeto de pesquisa.
Às famílias de João Osvaldo Kanunxi e Lucimar Kamuntsi pela carinhosa
acolhida em suas casas.
Aos senhores José Alfredo Jalukali e Alonso Werawali o meu obrigado por
todas as histórias que compartilhamos.
Para Xinui e Manoel Kanunxi, eterna gratidão.
A todos os outros que vivem pelas bandas das aldeias Manoki, meu eterno
carinho e respeito.
Agradeço à professora Carmem Junqueira por toda atenção e incentivo
dispensados a esse trabalho.
À Larissa Menendez agradeço por nossa amizade.
Para Vanessa Caldeira minha eterna admiração!
Muito obrigado aos colegas Luís Nunes, Jair Bercê, Taciana Vitti, Aline Motta
e Rosângela Praxedes, com quem tive a oportunidade de compartilhar os espaços
da PUC/SP.
À Cleacir agradeço pelos exemplos de vida e determinação na jornada
que costumeiramente chamamos de indigenismo.
À Osmara Grecco e Douglas Nogueira agradeço pelo apoio e incentivo que
possibilitou meu retorno à Cuiabá em julho de 2005.
Para Vovó Fia e sua família pelo acolhimento protetor em suas casas em
tantas horas difíceis dessa jornada.
Aos meus padrinhos de batismo Osvaldo e Vera Lúcia Costa de Souza, minha
eterna gratidão. Além do incentivo permanente, emprestaram-me uma pequena mas
importante quantia monetária que possibilitou a não interrupção dessa pesquisa.
Ao senhor Saturnino de Jesus minha eterna admiração.
5
Para Lucilo Cabral direi obrigado. Sempre, por toda a vida!
Aos Colegas do DSEI Cuiabá muito obrigado pela compreensão e incentivo
durante tantos anos de luta!
Ao amigo Arlindo Leite agradeço por todas as horas de atenção a mim
dispensadas ao longo de todos esses anos.
Ao senhor Deoclécio, taxista, meu amigo de todas as horas, agradeço por sua
paciência e lealdade.
Ao grande Gonçalo agradeço por nossa amizade motivada por respeito e
lealdade.
Ao Menezes e à Jade muito obrigado pela sempre calorosa acolhida em
Brasnorte.
Para Sandra Helena Maia obrigado é sempre pouco!
Ao Fabrício digo obrigado por tudo o que fizemos e ainda faremos juntos.
Agradeço à Elizabeth Sampaio por me inspirar com sua força e coragem!
Para minha mãe, amor e carinho sempre! Em retribuição à sua vida dedicada
à nossa família.
Para Benedita Yara de Jesus e seus filhos Átila, Luciano e Leandro por
existirem em minha jornada.
À Áurea e Darci Secchi agradeço o carinho e a amizade.
Ao meu irmão Humberto por toda sua paciência e amizade.
Para o Gustavão só me resta dizer: obrigado pela força!
Agradeço à Luciana e Emily por terem feito minha vida mais leve durante o
último ano!
Ao amigo José Maurício da Silva por me incentivar todo o tempo durante a
finalização desse trabalho.
À Claudia Póvoas por cuidar sempre das minhas idas e vindas, buscando
mais do que melhor preço nas passagens.
Ao amigo o Uirá Schroeder agradeço por todos os momentos de conversa
sempre repletos de alegrias.
Agradeço a Sérgio Pires Lobato por ceder-me todo o seu material de trabalho,
sempre com generosidade.
À amiga Ubiray pela tradução do resumo e todo o incentivo ao longo desses
anos.
6
Ao amigo Edison Rodrigues de Souza (bola de fogo) agradeço por seu
incentivo e amizade.
À Ajuri, Andréa e Beatriz agradeço o carinho e a atenção.
E, finalmente, ao CNPQ pela Bolsa de estudo concedida entre fevereiro de
2005 e fevereiro de 2007.
Cada uma dessas pessoas que em diversos momentos contribuíram
imensamente para a realização desse trabalho. Sem a troca de idéias e sentimentos
entre nós compartilhados durante a jornada este trabalho jamais existiria.
7
RESUMO
O presente estudo tem por objetivo refletir sobre a trajetória de contato percorrida
pelo Povo Manoki ao longo do século XX. Esta sociedade indígena de língua isolada
vive na porção oeste do estado de Mato Grosso em duas Terras Indígenas
localizadas no município de Brasnorte. Relatos históricos indicam que seus
primeiros contatos junto aos representantes da frente de expansão que atingiu o
território mato-grossense no inicio do século XX ocorreram de forma violenta.
Naquela ocasião, tornaram-se conhecidos da sociedade brasileira pelo nome Irantxe
ou Iranche, denominação que nunca teve nenhum significado para eles. Tal
denominação provavelmente lhes foi atribuída pelos Pareci e adotada pela
Comissão Rondon cotidianamente. Posteriormente, no início da segunda metade
do século passado, viram-se obrigados a viver sob a tutela dos Jesuítas como única
forma de garantir sua existência, razão pela qual durante décadas foram
reconhecidos como sendo “os índios da igreja”. Na década de 70, um grupo isolado
de Manoki foi contatado pela Missão Jesuíta nas proximidades do córrego
Escondido. Embora as perspectivas das relações de contato tenham sido
estabelecidas de maneira diferenciada, o grupo isolado também foi fortemente
rotulado como um produto da ação missionária. Entretanto a partir de 2000, eles
assumiram como autodenominação o termo Manoki, que se refere a todos os que
compartilham de seus rituais tradicionais. Durante décadas, foram identificados
como um bom exemplo de grupo indígena totalmente assimilado pela sociedade
brasileira. Todavia, ao investigarmos sua trajetória através da análise de registros
históricos e depoimentos pessoais coletados em campo, constatamos que o
histórico de contato desse povo evidencia elementos que indicam forte ligação entre
o seu universo mítico e de caráter sagrado e o modo como conduziram suas
relações com os representantes da sociedade brasileira ao longo da história. De
fato, a dinâmica histórica percorrida pela sociedade Manoki é marcada
simultaneamente pelas forças de transformação e continuidade que movimentam
essa coletividade dotada de uma especificidade cultural e identitária.
8
ABSTRACT
The present study aims to reflect on the trajectory of contact the Manoki people
followed in the course of the 20
th
century. This indigenous society of isolate language
lives in western part of Mato Grosso state (Brazil), on two Indigenous Territories
located in the municipal district of Brasnorte. Historical accounts of the event indicate
that their first contacts with the members of the national expansion front reaching the
state of Mato Grosso territory in the beginning of the 20
th
century occurred in a violent
way. On that occasion, they became known to the Brazilian society by the name of
Irantxe or Iranche, denomination which has never represented any meaning to them.
Such a denomination was probably assigned to them by the Pareci people and
adopted by the Brazilian military expedition called Comissão Rodon (“Rondon
Commission” the Strategic Telegraph Lines Commission of Mato Grosso to
Amazonas) whenever referring to them in the everyday situations. Afterwards,
already in the beginning of the second half of the last century, they found themselves
forced to live under the Jesuits wardship as the only way to warrant their existence,
the reason why for decades they have been recognised as the “Indians of the
Church”. In the 70s, an isolated group of Manoki people were contacted by the Jesuit
Mission near the stream called “Escondido” (which means “hidden” in English).
Although the perspectives of the contact relations have been established in different
ways, the isolated group was also strongly labelled as a product of the missionary
action. However, since the year 2000, they have adopted as their auto-denomination
the term Manoki which refers to all those who share their traditional rituals. For
decades they have been identified as a good example of an indigenous group fully
assimilated into the Brazilian society. Nevertheless, as we investigate their trajectory
of contact by means of the analysis of historical records and personal accounts
collected in fieldwork, we can notice that the history of contact of this people shows
elements indicating a strong connection between their mythical and sacred universe
and the way they have conducted their relationships with members of the Brazilian
society over the course of their history. In fact, the historical dynamics followed by the
Manoki society is simultaneously marked by forces of transformation and continuity
that move this people endowed with cultural and identity specificity.
9
LISTA DE ABREVIATURAS
Considi – Conselho Distrital de Saúde Indígena
DOU – Diário Oficial da União
DRP – Diagnóstico Rápido e Participativo
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
GPS – Global Position System
ISAMU - South America Indian Mission
MIA – Missão Anchieta
OPAN – Operação Amazônia Nativa
Pe. - Padre
PDPI – Programa para Projetos Demonstrativos Indígenas
PI – Posto Indígena
PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PUC/SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
QG – Quartel General
SPILTN - Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais
SPI – Serviço de Proteção ao Índio
TI – Terra Indígena
10
Lista de Fotos, Imagens e Mapas
Foto 1: CL - 102: 14 Manoki visitaram Utiariti, julho de 1948....................................... 37
Imagem 1: Diário Pe. João Dornstaudter /Arquivo MIA,1948......................................... 39
Foto 2: JD – 360: Posto Major Libânio Coluizorecê (Tolosa)....................................... 54
Imagem 2. Autorização................................................................................................... 55
Foto 3: JD 273: 63 Manoki em Utiariti, fugitivos dos ataques dos “Ticóli” (inimigos),
13 de agosto de 1948................................................................................................... 56
Croqui 1: Croqui das aldeias Manoki visitadas em 1953 pelo Pe João Dornstaudter 59
Mapa 1: Localização...................................................................................................... 63
Mapa 2: Território original Manoki................................................................................... 64
Imagem 3: Calendário do Povo Myky – O calendário ilustra os alimentos
tradicionalmente consumido pelos Manoki/Myky durante um ano.................................. 82
Foto 4: Ademilson Ezonomaece..................................................................................... 92
11
ÍNDICE
Tempo de Campo 14
Capítulo I
1.0 . Os Primórdios da Colonização......................................................................... 23
1.1. A Colonização de Mato Grosso........................................................................ 24
1.2. Novos Tempos.................................................................................................... 26
1.3. A República do Brasil e a Questão Indígena................................................... 27
1.4. A Comissão Rondon.......................................................................................... 28
1.5. Os Trabalhos da Comissão Rondon................................................................. 29
1.6. Entre a Cruz e a Espada..................................................................................... 31
1.6.1. Breves Considerações Sobre a Participação dos Jesuítas na
Colonização do Brasil................................................................................................... 31
1.7. Jesuítas e Militares Marcharam em Direção ao Oeste Brasileiro................... 33
1.7.1. A Prelazia Diamantina................................................................................. 33
1.7.1.1. Missão em Terra Indígena....................................................................... 35
1.7.1.2. Utiariti: uma nova ordem rumo ao progresso........................................... 37
1.7.2. A Expedição Roncador-Xingu e Fundação Brasil....................................... 42
1.8. Contato................................................................................................................. 46
1.8.1. Irantxe: onde estão eles?............................................................................ 51
1.8.2. A Igreja Católica pelos Irantxe.................................................................... 52
Capitulo II
2.0. O Manoki..............................................................................................................
2.1. Território..............................................................................................................
60
62
2.2. Território Atual.................................................................................................... 65
2.3. A Vida e o Cotidiano........................................................................................... 66
2.3.1. O Yetá......................................................................................................... 71
2.3.1.1. Nascimento.............................................................................................. 76
2.3.1.2. O Primeiro Contato................................................................................... 77
2.3.1.3. Homens e Espíritos Guias....................................................................... 78
2.3.1.4. As Turmas............................................................................................... 79
2.3.1.5. A Origem dos Grupos ou Turmas............................................................ 80
2.3.1.6. A Roça..................................................................................................... 81
2.3.1.7. O Começo dos Trabalhos........................................................................ 82
12
2.3.1.8. Morte..................................................................................................... 84
Capitulo III
3.0. De volta para Casa!............................................................................................. 86
3.1. Agora é com vocês!............................................................................................ 89
3.2. Rumo ao século XXI............................................................................................ 92
Considerações finais 97
Bibliografia.................................................................................................................. 102
Anexos 108
13
Tempo de Campo
Nunca imaginei que o ato de transformar uma idéia em dissertação de
mestrado pudesse me colocar diante de um conjunto de sensações e sentimentos
até então desconhecidos por mim.
Relutei bastante até aceitar o desafio de dar um formato acadêmico para as
informações que fui coletando ao longo dos anos. De fato, a observação e o registro
sempre estiveram presentes em meu cotidiano. Contudo, sempre acreditei não ser
disciplinado o bastante para desenvolver este tipo de atividade. Entretanto, após
sete anos de indigenismo diário, o retorno à academia aconteceu de maneira
natural.
Neste momento apresentarei algumas considerações sobre os caminhos que
percorri e sobre o modo como fui me envolvendo, ou melhor, sendo envolvido pelo
tema dessa dissertação.
Nasci em São Paulo, numa fria madrugada do mês de agosto, no ano de
1972. Tive a infância marcada por um grave déficit motor. Tal fato não tem
relevância para a pesquisa em questão, porém, creio que esse “pequeno incidente”
acabou definindo os caminhos que me levaram até Mato Grosso. Sempre tive
grande interesse por livros, filmes e pessoas que, através de seus relatos,
pudessem me transportar para lugares “distantes e diferentes”.
Em fins dos anos 80 tive que enfrentar um grande desafio no momento do
vestibular, pois não tinha nenhum interesse pelo grupo de carreiras tradicionais:
direito, medicina, engenharia, entre outras. Considerei seriamente a possibilidade de
tornar me jornalista. Casualmente, encontrei-me com Ernesto Paglia e durante a
nossa conversa ele me contou que havia cursado ciências sociais, por quase dois
anos, antes de optar pelo jornalismo. Assim, resolvi estudar Ciências Sociais e
ingressei na PUC-SP em fevereiro de 1992.
O momento político era bastante delicado. Denuncias envolvendo o então
Presidente Fernando Collor eram apresentadas ao Congresso Nacional e divulgadas
através da imprensa. O ambiente na universidade era uma mescla de euforia e
indignação. Assim, logo pude perceber que aqueles anos seriam muito mais
14
intensos do que jamais poderia supor. O curso, por sua vez, dava seus primeiros
sinais de complexidade. Aos poucos pude identificar meu interesse particular pelas
aulas de antropologia.
Em meados de 1993, durante um curso de teoria antropológica clássica,
conheci o Professor Rinaldo Arruda. Durante quinze semanas tivemos a
oportunidade de estudar os clássicos e ao mesmo tempo conhecer um pouco da
realidade dos índios do Mato Grosso. Rinaldo havia feito diversos trabalhos na
região noroeste daquele estado. A partir dessa ocasião fiquei bastante animado com
a possibilidade de conhecer melhor o Brasil, especialmente, o Mato Grosso.
No final de 1994, recebi as primeiras informações sobre a Operação
Amazônica Nativa OPAN. Entidade criada em fevereiro de 1969 com a finalidade
de garantir o direito à reprodução física e cultural dos povos indígenas em todo o
território brasileiro. Um colega de curso, Pedro Henrique, havia sido convidado a
participar do curso de indigenísmo oferecido pela entidade.
O curso, realizado anualmente, tinha duração de aproximadamente oito
meses. As atividades propostas intercalavam momentos de teoria e prática no
campo. Ao analisar o prospecto do curso tive ainda mais vontade de conhecer o
Mato Grosso.
Quase um ano depois, encontrei um novo Pedro Henrique. Digo isto pois
tinha nos olhos um novo brilho e contava com certo orgulho: seus mais recentes
feitos no noroeste de mato-grossense.
se foram mais quase dois anos até chegar a minha vez de conhecer o
Mato Grosso e a OPAN. Aquela foi a primeira viagem rodoviária de longa distância
da minha vida. Dentro do ônibus, encontrei o tempo necessário para refletir sobre
praticamente tudo o que havia vivido até ali. Conforme o ônibus ganhava a estrada
fui tomando consciência do verdadeiro tamanho do Brasil. Foram 34 horas até
chegar em Cuiabá.
Peguei um táxi e logo estava em frente ao portão azul da avenida Ipiranga,
numero 97. Fui recebido por Pedro Henrique e Andréa, meus velhos conhecidos de
São Paulo. Rapidamente, ambos dispararam contra mim uma série de informações
15
sobre o funcionamento da casa sede da OPAN. Confesso, não prestei muita
atenção. Além do cansaço, naqueles primeiros momentos tive olhos para o
terreiro cheio de árvores.
Na segunda-feira tive meu primeiro encontro com os coordenadores da
OPAN: Ivar Bussato, Nelson Secchi e Thélia Pinheiro. Senti-me flutuando. Nunca
recebi tantas informações ao mesmo tempo. pelo quarto dia de visita conheci o
Pe. Tomás Lisboa, com quem conversei longamente sobre as estratégias utilizadas
para realizar-se o contato entre o povo Myky e a sociedade brasileira. Num momento
posterior pude acompanhar o atendimento de saúde prestado por Cleacir Sá, junto
aos Enawene Nawe.
Os Enawene Nawe haviam sido contatados em 1974 e por força das
estratégias adotadas mantinham os principais aspectos de sua organização social
intactos. Não falavam a língua portuguesa e alimentavam-se basicamente de peixe e
maha (uma mistura de água e mel).
Aos poucos constatei que aquele Brasil era totalmente diferente do meu. Tal
constatação me fez sentir vontade de permanecer em Mato Grosso. De fato,
naquele momento, não havia possibilidades reais de engajar-me nos projetos
desenvolvidos pela OPAN.
Na segunda semana, recebi o convite que mudou definitivamente os rumos
dessa história. O governo do Estado de Mato Grosso estava organizando uma
equipe multidisciplinar com o objetivo de titular 120 agentes indígenas de saúde,
como Auxiliares de Enfermagem, em cinco regiões do Estado.
O projeto financiado pelo PNUD Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento com recursos do Banco Mundial contemplou 38 etnias em todo o
Mato Grosso.
A equipe era composta basicamente por profissionais de saúde: dezessete
Enfermeiros, três Médicos e uma Pedagoga. Todos falaram ao mesmo tempo e com
muita propriedade defendiam os “seus índios”.
Depois de uns quarenta minutos de observação intensa, compreendi que
cada um dos presentes atuava em uma região do Estado. Fato esse que os
16
vinculava de modo particular a cada uma das 38 etnias que seriam contempladas
pelo projeto. Dados oficiais da época informavam que a população indígena no Mato
Grosso somava, aproximadamente, 25 mil pessoas.
A FUNAI Fundação Nacional do Índio que respondia legalmente por todo o
serviço de saúde nas aldeias, contava com apenas cinco profissionais de saúde com
nível superior em seus quadros. Ao tomar ciência desse dado pude identificar as
razões que motivavam o debate tão acalorado. Dentre eles, a profissionalização dos
agentes indígenas de saúde era um anseio bastante antigo entre os profissionais de
saúde que atuavam nas aldeias.
O grupo estava reunido por três dias e o encontro tinha como objetivo
principal definir os conteúdos programáticos do curso de maneira a se alcançar o
melhor perfil para os futuros profissionais indígenas. Os trabalhos eram coordenados
por Mercedes Settem e Eliete Saragiotto, responsáveis pela articulação política e
operacional necessárias para implementação do curso de formação nas diferentes
regiões do Estado.
Após um pequeno intervalo, fui apresentado ao grupo por Jorge Luis de
Paula, antropólogo da FUNAI que coordenava o debate. O fato de ter sido
apresentado como um colega facilitou minha integração ao debate instalado.
A reunião, que tinha seu tempo de duração previsto para quatro dias,
estendeu-se por dezessete dias muito intensos; ao término do período eu estava
integrado ao grupo.
Inicialmente acreditava-se que atividades do projeto deveriam se iniciar em
quarenta e cinco dias. Entretanto, uma série de entraves burocráticos permitiu o
inicio das atividades sete meses mais tarde.
Particularmente, vivenciei um momento bastante intenso de formação, pois
dividia o tempo entre as atividades de formação da OPAN e a organização do
material didático a ser utilizado na formação dos Auxiliares de Enfermagem Indígena
elaborado pela equipe técnica da Escola de Saúde Pública/MT.
Enfim, em 19 de janeiro de 1998, segui para a cidade de Tangará da Serra
onde teve inicio a primeira etapa do curso de formação profissional para indígenas.
17
Eram 32 alunos de oito etnias
1
. A equipe técnica acreditava que o fato do
grupo ser composto por pessoas conhecidas iria minimizar possíveis pontos de
conflito. Essa hipótese foi descartada logo nos primeiros dias de trabalho.
O primeiro módulo tratou do tema Conhecendo a Família Indígena e
Promovendo a Troca de Experiências em Saúde. O clima de ansiedade era
generalizado. A primeira semana de atividades foi bastante tensa.
Identificávamos, facilmente, o movimento na disputa por maior espaço.
Naquele momento, dominar o discurso representava superioridade sobre os demais.
A equipe concentrou seus esforços na busca de estratégias de harmonização do
ambiente. Todos os dias surgiram novas questões, as quais fomos superando com
auxílio dos próprios cursistas.
Durante o desenvolvimento do processo, pudemos perceber a conduta
diferenciada dos Irantxe em relação ao resto do grupo. Eram apenas dois, João
Osvaldo e Lucimar, filhos de pais Irantxe
2
e mães Kayabi e Cinta Larga,
respectivamente. Destacavam-se dos demais pelo modo como se aplicavam nos
estudos e pelo livre trânsito no espaço coletivo em construção.
Perceberam que nós procurávamos encontrar os melhores caminhos para
realização das atividades previstas, por isso, foram gradualmente nos apresentando
pistas dos protocolos diplomáticos instituídos no ambiente do curso.
A forte aproximação de João e Lucimar com a equipe fez com que
identificássemos que, apesar da motivação para os estudos e a boa convivência,
ambos apresentavam sérias dificuldades em refletir sobre a realidade de saúde em
suas aldeias.
A problematização da realidade e o movimento pedagógico proposto como
exercício de reflexão acerca do presente, passado e futuro, causava a eles grande
angústia. Mais adiante observamos que, conforme construíam o discurso sobre o
1
Aqui estamos falando dos seguintes povos: Pareci, Rikbaktsa, Cinta Larga, Nambikwara, Umutina,
Kayabi, Munduruku e Irantxe.
2
O nome Irantxe provavelmente lhes foi atribuído pelos Pareci no inicio do século XX e adotado
cotidianamente pela Comissão Rondon. A partir do ano 2000 o Povo Indígena optou por adotar o
nome Manoki como sendo sua autodenominação. Ver a esse respeito o artigo de Arruda, Rinaldo –
“Quem tem o poder de nomear: comentários a propósito dos Manoki (Irantxe, Menku e variantes)”, no
Informativo URUCUM no. 16, nov. 2005. Cuiabá, Operação Amazônia Nativa – OPAN, p. 2 e 3.
18
momento atual e sua realidade no campo da saúde, iam surgindo as referências ao
processo de contato violento com a sociedade brasileira, no inicio do século XX. Os
Irantxe tinham suas aldeias localizadas nas trilhas de passagem para os seringais.
Razão pela qual foram irreversivelmente atingidos pelas novas frentes de expansão
que trouxeram destruição e morte para o povo.
Registros históricos indicam que, por volta de 1870, época do primeiro ciclo
da borracha, empresas privadas organizavam a exploração da hévea na região do
rio Cravarí. Rapidamente, a exploração econômica das seringueiras substituiu a
mineração que apresentava sinais de esgotamento.
Dentre diversos episódios de contato violento, é sem duvida alguma, o
massacre da aldeia Tapuru, promovido por domingos Antonio Pinto no início do
século XX, que marca definitivamente a trajetória dos Irantxe.
Quase um século depois, aqueles jovens descendentes de sobreviventes do
massacre ainda administravam as conseqüências das violências promovidas pelos
representantes do Estado Brasileiro.
Ao final da segunda semana de trabalho, recebemos a visita de um grupo
Irantxe, que tinha como propósito conhecer as instalações e identificar a maneira de
funcionamento do curso. Dentre eles estava o velho Celso, pai de João Osvaldo,
que passou um sábado inteiro narrando-me historias da trajetória de contato dos
Irantxe desde o inicio do século XX. A narrativa feita em tom dramático foi concluída
com o pedido de um pequeno empréstimo monetário, saldado dias depois. Hoje,
estou certo de que o pequeno empréstimo apenas serviu como estratégia de
aproximação, pois, dali em diante, Celso e os demais sempre nos visitavam durante
as etapas de formação.
Após a conclusão da etapa, cada cursista retornou para sua aldeia de origem.
E eu, mais do que depressa, parti em busca de mais informações sobre o Povo
Irantxe. Encontrei registros históricos que indicaram apenas o momento de
intensificação do contato com os não índios. Pude observar que os Irantxe eram
velhos conhecidos de agentes governamentais e não governamentais do
indigenismo de Mato Grosso. Mas, o fato de serem conhecidos não quer dizer que
19
eram devidamente reconhecidos. As referências feitas a esse povo vinham sempre
acompanhadas da expressão “os Irantxe são índios da Igreja”.
Diante desse quadro, conclui que era necessário conhecer mais sobre a
trajetória desse povo, para que, assim, pudesse compreender quais eram seus
principais anseios e desafios no rumo ao século XXI. A idéia de definir os Irantxe
apenas como índios totalmente assimilados pela sociedade brasileira, que haviam
perdido sua identidade, não me agradava nem um pouco.
Participei da equipe do projeto que titulou os agentes indígenas da saúde
como Auxiliares de Enfermagem até janeiro de 2000. Na ocasião, fui convidado pela
OPAN para coordenar o Projeto de Atenção à Saúde dos Povos Irantxe, Myky e
Enawene Nawe, conforme convênio firmado com a FUNASA Fundação Nacional
de Saúde que assumiu atribuição legal da assistência à saúde dos povos indígenas
em todo o território brasileiro, a partir do decreto lei 9.836 datado de setembro de
1999.
Vivenciamos inúmeros desafios diante do compromisso de organizar a
atenção à saúde desses povos habitantes da região próxima à cidade de
Brasnorte/MT. Lembro-me da nossa primeira reunião de trabalho, realizada em
fevereiro de 2000, na aldeia Paredão. O clima era de muita ansiedade, pois, além
dos serviços de saúde, a OPAN estava trazendo de volta uma equipe indigenista
exclusiva.
Faz-se necessário dizer que as equipes indigenistas da OPAN atuaram de
modo sistemático junto aos Irantxe entre 1970 e 1978, mas depois se afastaram do
cotidiano, embora a parceria entre o povo e os indigenistas não tivesse sido
interrompida.
A frase proferida pelo ancião Irantxe Alípio Xinuli marcou o inicio dos
trabalhos: “É pessoal, quero só ver por quanto tempo vocês vão agüentar sofrer com
a gente”.
São tantas histórias que eu poderia transformá-las na peça principal dessa
dissertação. Todavia, quero apenas observar que os Irantxe se movimentaram em
torno da organização dos serviços de saúde em suas aldeias e da construção de
20
uma casa feita nos moldes tradicionais, o que não tinha sido realizado cinco
décadas.
Assim sendo, o desejo antigo de conhecer melhor o povo Irantxe ganhou o
impulso que faltava para realização da pesquisa que ora apresento.
A metodologia utilizada nesse trabalho foi sendo construída ao longo dos
anos. Os dados que fazem parte dessa dissertação estão sendo coletados e
registrados desde janeiro de 1998, época dos meus primeiros contatos com os
Irantxe.
A partir de 2000, como coordenador do convênio OPAN/FUNASA, pude
compartilhar de modo especial da vida cotidiana dos Irantxe. Essa convivência
colocou-me diante de uma questão filosófica importante, pois o mundo ocidental ao
longo dos séculos tratou de separar mito e história. Cremos não ser possível
analisar a trajetória histórica percorrida pelos Irantxe sem considerar sua
cosmogonia (Cosmogonia do grego κοσμογονία; κόσμος "universo" e-γονία
"nascimento"). Assim sendo, buscamos captar elementos que identifiquem como a
visão de mundo Irantxe se articula com suas práticas sociais e com as dinâmicas de
produção e reprodução de sua vida. Daremos um enfoque especial nas relações
constituídas entre os Irantxe e os “invisíveis”, liderados por Yetá, que habitam
cotidianamente os espaços das aldeias Irantxe. Estamos certos de que, ao
compreendermos a perspectiva de reciprocidade existente nas relações constituídas
entre os Irantxe e seus espíritos guias, estaremos também encontrando elementos
que ajudarão na compreensão das estratégias adotadas pelos Irantxe em diferentes
momentos do seu contato com a sociedade nacional ao longo do século XX.
Durante todo o percurso afastei-me desse convívio no período de abril de
2004 a julho de 2005, pois estive cursando os créditos para obtenção do título de
mestre no Programa de Pós-graduação da PUC/SP. Em julho de 2005 retornei ao
Mato Grosso na condição de pesquisador.
Essa nova condução possibilitou-me um tipo de inserção diferenciada entre
os Irantxe. Tive a oportunidade de registrar e sistematizar depoimentos, além de
checar as informações anteriormente coletadas.
21
Procurei organizar o presente trabalho privilegiando a versão dos Irantxe no
que se refere aos fatos que envolvem sua trajetória de contato com a sociedade
nacional. Por essa razão o título dessa dissertação é Histórias de Manoki: Relatos
de Vida e Cotidiano de Um Povo Durante o Século XX.
22
Capítulo I
O processo de Consolidação das Fronteiras no Brasil
1.0. Os Primórdios da Colonização
O Processo de consolidação das fronteiras brasileiras foi marcado pelos
ideais de exploração econômica, presentes nos primeiros portugueses que aqui
aportaram. O tratado de limites intitulado de Tordesilhas dividiu o mundo americano
em duas partes, fixando para Portugal as terras que estivessem até 360 léguas a
leste das Ilhas de Cabo Verde. A Espanha, por sua vez, ganhou direitos sobre as
terras situadas no lado oeste desses limites. Dois anos após a chegada de Cristóvão
Colombo, Espanha e Portugal dividiram as terras do novo continente. Desse modo,
os portugueses se fixaram em toda a faixa litorânea do território brasileiro.
Somente no século XVII é que a administração portuguesa vai demonstrar os
primeiros sinais de preocupação com o interior do Brasil. Em razão dessas
preocupações foram organizadas as expedições Bandeirantes. Tais expedições
tinham como principal objetivo transformar indígenas em trabalhadores escravos nas
lavouras de cana. O Brasil havia sido partilhado em Capitanias e necessitava-se de
mão-de-obra para a produção de açúcar nas regiões nordeste e sudeste.
Felizmente, esse projeto não alcançou o sucesso desejado. Ao longo dos tempos
fora construído um imaginário bastante complexo sobre o Brasil Central. Mato
Grosso era visto como lugar distante e hostil. Os portugueses que haviam ocupado
toda faixa litorânea do Brasil, com grande competência, não acreditavam ser
possível ocupar o interior do mesmo modo.
Apesar de todas as dificuldades, notícias davam conta da abundância dos
recursos naturais, principalmente ouro e diamantes. Tais notícias acabaram
fortalecendo o interesse do Rei de Portugal, que fez valer o acordo firmado com a
assinatura do Tratado de Tordesilhas em 1494.
23
1.1. A Colonização de Mato Grosso
Encontramos inúmeros relatos dando conta da colonização dessas
grandiosas terras, em diferentes épocas, desde o início do ano de 1700. Talvez
devêssemos voltar nossa atenção para o período compreendido entre o fim do
Império até nossos dias. Entretanto, observamos que apesar das transformações
políticas e sociais ocorridas ao longo de quase três séculos de história é possível
identificar nos discursos atuais elementos bastante parecidos àqueles que
motivaram a vinda dos primeiros Bandeirantes ao Mato Grosso. Diante de tal
constatação decidimos retornar ao início. Certamente nosso trajeto será mais longo,
mas não menos interessante.
Durante a ocupação efetiva do Mato Grosso, alguns fatos ocorridos marcam
de forma particular a história da região. O primeiro deles, a extração aurífera,
predominante nas duas primeiras décadas do século XVIII. Naquela ocasião, a
mineração se fortaleceu como atividade econômica.
Contudo, em fins dos anos 1720, o enfraquecimento das minas de ouro na
região provocou a migração da população para outras áreas. Dessa forma, o interior
foi sendo desbravado. As práticas agrícolas e a pecuária começaram a ser
desenvolvidas de maneira extensiva.
Em 1718, Antonio Pires de Campos faz os primeiros registros escritos sobre a
porção noroeste do estado. Segundo Pivetta, “O viajante descreve os Pareci,
habitantes daquelas ‘dilatadas chapadas’ e muitas outras nações situadas nas
imediações da região cujas águas correm para o norte”. (Pivetta,1993:12 ).
Em 1727, Cuiabá foi elevada a categoria de Vila Real. Na ocasião, Rodrigo
César Menezes Montenegro, administrador indicado pela Coroa, chegou ao arraial
com aproximadamente três mil pessoas. Os moradores da Vila tinham que lidar
cotidianamente com problemas tais como os ataques promovidos pelos índios
Coxiponés e as epidemias de gripe, malária e febre amarela. Desse modo, viram-se
obrigados a administrar a presença desse enorme contingente de pessoas que
chegara de repente na vila alterando ainda mais as condições de vida naquela
localidade, e que já não eram boas.
24
O então governador, D. Rolim de Moura Tavares, incentivou a criação da
primeira reserva indígena de Mato Grosso, no ano 1751, em Sant'Ana da Chapada,
atual município de Chapada dos Guimarães. Sua administração foi entregue a um
Padre Jesuíta que tinha como principal objetivo promover o contato pacífico entre
indígenas e garimpeiros.
Vários foram os povoados que surgiram após a criação da Capitania de Mato
Grosso. Dentre eles podemos destacar São Francisco Xavier e Nossa Senhora do
Pilar, os quais indicam a ocupação da porção ocidental da capitania. A presença
espanhola nessa região sempre preocupou Portugal, também por isso, a expansão
rumo ao interior foi fortemente aprovada.
No ano de 1752, D. Rolim de Moura Tavares decidiu fixar sua sede em Pouso
Alegre
3
. Embora as fronteiras fossem se consolidando na região oeste, Mato Grosso
ainda enfrentava grandes problemas de comunicação e transporte. Tal situação
deu os primeiros sinais de melhora lá pelos anos de 1770.
O Capitão-general, Luis de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres,
comandou um amplo programa com objetivos claros de incrementar os meios de
comunicação através da abertura de estradas e do favorecimento da navegação.
Essa política ajudou a fixação dos homens e, conseqüentemente, o desenvolvimento
da agricultura.
Mesmo assim, Mato Grosso entra no século XIX com apenas sete
importantes cidades. Cuiabá viveu um período de intensas dificuldades, ocasionadas
pela febre garimpeira que esvaziou a cidade. em 1820 é que a sede
administrativa da província retorna para Cuiabá.
1.2. Novos Tempos
O Brasil declara-se independente de Portugal em 07 de setembro de 1822 e,
com isso, os primeiros passos em busca da tão falada modernidade. É evidente
que os ideais de exploração da terra permaneceram nos horizontes do novo
3
Atual município de Vila Bela da Santíssima Trindade.
25
Imperador. Contudo, podemos identificar os primeiros sinais da idéia de
integração nacional, que vai ganhar força tempos mais tarde.
No século XIX foram realizadas as grandes invenções que vão mudar
definitivamente os rumos da humanidade. Dentre elas destacam-se: a locomotiva
elétrica de Siemens (1879), o automóvel de Daimler e Benz (1885), o telefone de
Graham Bell e Gray (1876), o fonógrafo e a lâmpada de Edison (1877/1879), o
cinematógrafo de Lumiére (1895), entre outros.
Após séculos de civilização, o homem tinha em seu poder algumas máquinas
fascinantes, "verdadeiras flores da ciência", que transformaram sonhos e
fantasias em realidade. Como que repentinamente, era possível conversar a
longa distância, assistir numa "tela mágica" imagens animadas de coisas e
pessoas, transmitir mensagens escritas através de um fio, de um continente a
outro instantaneamente, tirar retratos idênticos e perfeitos, como a realidade,
e o mais fantástico de tudo, voar! (MACIEL, 1997: 24).
Dentre todas essas maravilhas o telégrafo elétrico (1839) representou o maior
símbolo da "civilização moderna". As idéias e ideais podiam circular livremente,
através dos “fluídos elétricos".
No Brasil, a primeira linha telegráfica foi instalada em 1852, e ligava a Quinta
Imperial ao QG do Exército, no Rio de Janeiro.
Aos poucos, os Órgãos Públicos foram sendo integrados a essa nova rede,
mas é só na década de 60 que o telégrafo vai se popularizar.
Com o advento da Guerra do Paraguai, D. Pedro II encontrou o argumento
necessário para promover a expansão do telégrafo por todo o território brasileiro. Em
trinta anos de Império foram construídos 10.969 km, ligando o vasto litoral ao outro
extremo do país.
O Imperador, D. Pedro II, ciente das dimensões continentais do Brasil,
acreditava que a consolidação do telégrafo iria fortalecer o Império, afinal, cada
estação de telégrafo podia localizar a presença física do imperador.
Nesse contexto, a integração plena de Mato Grosso representava um enorme
desafio para o Império. Desde os fins do século XVI havia esforços para a
integração de Mato Grosso. Contudo, as distâncias e dificuldades naturais, impostas
pelo meio ambiente, não facilitaram essa tarefa. O Imperador utilizou o projeto como
26
estratégia para aumentar sua popularidade, pois sabia que seus dias de reinado
estavam contados. Por isso, encarregou o engenheiro Francisco Bhering de elaborar
o plano de construção das linhas telegráficas em Mato Grosso. Certamente, essa foi
uma das últimas demonstrações públicas de força do Império
4
.
Assim sendo, foram iniciados os trabalhos de construção de dois ramais que
ligariam Corumbá ao Forte de Coimbra e Corumbá a Cuiabá. Esses trabalhos eram
chefiados pelo general Deodoro da Fonseca, que interrompeu as atividades e seguiu
para o Rio de Janeiro. Em novembro do mesmo ano, 1889, proclamou a República.
1.3. A República do Brasil e a Questão Indígena
Em 1823, José Bonifácio de Andrada e Silva apresenta projeto para a
assembléia Nacional Constituinte propondo mudanças no modo de atuação junto
aos povos indígenas do Brasil. Fundamentalmente, a proposta preconizava que o
ideal de “civilização” do Império fosse sendo gradualmente substituído por uma
política de assimilação e aculturação dos diversos povos encontrados em todo o
território brasileiro. Entre 1823 e 1889 o tema foi debatido apenas pelos intelectuais
da elite dominante. Somente após a proclamação da República, em novembro de
1889, é que o tema torna-se assunto das camadas médias brasileiras.
Deodoro da Fonseca, cinco dias após sua posse, em 20/11/1889, assinou o
decreto n°7, que apresentava o modo como o Estado brasileiro iria comportar-se
frente aos povos indígenas. Em especial, o parágrafo 12 dispunha sobre a
catequese dos indígenas
5
. Com esse decreto o Presidente Deodoro da Fonseca
buscou fortalecer o pacto republicano pela governabilidade.
Os governos estaduais não conseguiram estabelecer relações satisfatórias
com os povos indígenas, isto é, a falta de habilidade na construção de linhas de
ação prejudicava o projeto de progresso anteriormente idealizado pelos militares.
4
Francisco Bhering era engenheiro militar. Formou-se ao lado de Cândido Rondon e Euclides da
Cunha. Ao longo de suas vidas propagaram os ideais da Igreja Positivista que marcaram a
construção da República no Brasil.
5
Entenda-se catequese aqui como educação. O referido parágrafo transferiu essa responsabilidade
para os governos estaduais.
27
Por outro lado, o discurso em defesa das populações indígenas ganhou
adeptos. Ainda assim, em 1910, o Ministro Rodolfo Miranda encaminhou o
decreto 8072, que foi sancionado pelo Presidente Nilo Peçanha, em 20/06/1910,
data oficial da criação do SPILTN - Serviço de Proteção ao Índio e Localização de
Trabalhadores Nacionais, mais conhecido pela sigla SPI.
Em novembro de 1889, os positivistas assumem o controle político do Brasil
com um projeto de poder inspirado nos ideais "Ordem e Progresso".
Na prática, Mato Grosso representava a efetivação do projeto republicano.
Ocupar efetivamente o Brasil Central era um sinal de progresso e unidade territorial.
Por isso, falaremos um pouco mais da instalação das linhas telegráficas na região.
1.4. A Comissão Rondon
O termo popular, Comissão Rondon, teve origem no plano de 1888, que foi
evoluindo e além das linhas telegráficas englobava outras obras, quando
Cândido Mariano da Silva Rondon marchou para Diamantino chefe da
“Comissão de Linhas Telegráficas de Mato Grosso ao Amazonas”, na
têmpera da época - Os objetos eram três: levantar uma linha telegráfica,
pesquisar cientificamente a região em vista da linha e construir uma estrada
no curso da linha (...). (MOURA, 1980: 60).
tempos, D. Pedro II sabia da importância de Mato Grosso para o Brasil.
Mesmo assim, durante seu reinado não conseguiu desenvolver um projeto
adequado para região. Ciente dessa situação, o novo governo deu continuidade ao
projeto do Imperador. Em 1891, o Congresso autorizou Deodoro da Fonseca a
elaborar um plano de construção das linhas em Mato Grosso.
Feito isso, Gomes Carneiro foi nomeado Major, e reiniciou os trabalhos de
construção da linha que ligaria Cuiabá ao Araguaia.
O Major Gomes Carneiro contava com o jovem Cândido Rondon em sua
tropa, que ganhou prestígio e tornou-se chefe da comissão em 1900. Anos mais
tarde, em 1907, teve sua missão ampliada ao ser nomeado chefe da Comissão
Estratégica do Mato Grosso ao Amazonas
6
.
6
Tais comissões eram mistas e, normalmente, estavam vinculadas aos Ministérios da Viação e Obras
Públicas e da Guerra, por isso, tinham um caráter provisório. Certamente, foi Rondon quem mais
lutou pelo bom funcionamento desses trabalhos entre 1907 e 1915. Em razão desses esforços, tais
comissões ficaram conhecidas popularmente pelo termo "Comissão Rondon".
28
No final do século XIX, Mato Grosso tinha extensão de 1,2 milhões de
quilômetros quadrados, correspondente a um quinto do território nacional.
Nessa imensa região, segundo dados oficiais que ignoram os grupos
indígenas, distribuía-se uma população de apenas 90 mil pessoas. Esta
informação foi usada como argumento por representes do estado no
Congresso Nacional, que reivindicaram investimentos federais em transportes
e comunicações, a fim de incrementar a colonização e facilitar o escoamento
para o Rio de Janeiro e outras regiões. (BÍGIO, 2000: 6).
O trecho acima mostra parte do argumento que garantiu as primeiras verbas
para esse trabalho em fins do século XIX.
1.5. Os Trabalhos da Comissão Rondon
O trabalho de instalação das linhas telegráficas em Mato Grosso não foi
designado ao Exército apenas por considerar estratégico para o governo brasileiro.
De fato, sabia-se que as dificuldades impostas pelo ambiente natural poderiam
ser dominadas através da disciplina imposta aos "soldados".
Cada grupo tinha aproximadamente oitenta pessoas divididas em subgrupos
de quinze pessoas, cada qual com uma função bem definida. A turma da frente tinha
a função de abrir o caminho e construir um novo acampamento. Um segundo grupo
vinha em busca de boa madeira para confecção dos postes. A terceira turma era
responsável pela caça e, posteriormente, pela preparação da bóia. Dos outros dois
grupos menores fazia parte o pessoal com maior capacidade técnica. Além dos
telegrafistas e guarda-fios, a expedição contava com um grupo de profissionais que
tinha como principal tarefa registrar o cotidiano da Comissão e suas descobertas.
Dentre estes profissionais destacamos: jornalistas, fotógrafos, biólogos, botânicos,
médicos, entre outros. Agora, o Rio de Janeiro recebia notícias dos acontecimentos
com grande freqüência.
Rondon encontrava resistência no Congresso, pois os gastos realizados na
execução dos trabalhos eram considerados altos. Porém, a classe média carioca
29
demonstrava profundo respeito pelos feitos heróicos de Rondon. O bom material de
divulgação garantia a manutenção de seu prestigio junto à opinião publica
7
.
O cotidiano em campo era bastante duro. A hostilidade do meio ambiente
acabava se transferindo para as pessoas. Faltavam alimentos, pessoas caiam
doentes, e a tropa sofria com os ataques promovidos pelos grupos indígenas que
tradicionalmente habitavam a região
8
.
A Comissão venceu as adversidades e o material por ela produzido ganhou
notoriedade internacional. Durante seus oito anos de funcionamento a Comissão
Rondon acumulou muito mais do que 25 estações telegráficas em 2.268 km de fios
esticados, 23.107 exemplares de material botânico, zoológico, numerológico e
antropológico, enviados ao Museu Nacional do Rio de Janeiro.
Conforme Bigio (2000), 30.000 indígenas e seus territórios foram efetivamente
vinculados aos espaços controlados pelo Estado brasileiro. A divulgação desses
números acabou despertando o interesse do então presidente dos Estados Unidos,
Theodore Roosevelt, pela região. O Presidente americano veio ao Brasil em 13 de
dezembro de 1913 com a exclusiva finalidade de conhecer Mato Grosso. Foi
formada uma equipe mista que viajou por todo o Mato Grosso, até maio de 1914. Na
oportunidade, mantiveram contato com alguns grupos indígenas e também
catalogaram diversas espécies de nossa fauna e flora para o Museu de História
Natural de Nova Iorque.
Após 1915, Rondon não conseguiu mais manter esses trabalhos em regime
permanente. Na década de 1920, Rondon ajudou combater a Coluna Prestes e
ainda elaborou o plano para instalação das linhas telegráficas no trecho que ligava
Rondonópolis até Santa Rita do Araguaia. A partir da década de 1930 foi se
afastando do cotidiano dessas atividades.
7
Rondon sabia que a boa divulgação era sua arma mais eficaz. Sua propaganda apontava sempre
para o ideal da Integração Nacional. Sobre as estratégias adotadas por Rondon, ver: MACIEL, A
Nação por um fio, 1997.
8
A Comissão Rondon enfrentou inúmeros problemas em seu cotidiano. Principalmente problemas de
ordem disciplinar. Mesmo assim, sempre buscou soluções internas. A maior parte do contingente era
composta por forasteiros vindos de todas as partes, por isso, o ambiente era marcado pela
hierarquização nas relações. Com relação aos indígenas, Rondon preconizava um tratamento o mais
amigável possível. Os indígenas estavam num estágio inferior do processo de civilização. Em razão
disso deveriam ser respeitados e educados!
30
Seus diagnósticos foram fundamentais na organização do Serviço de
Proteção ao Índio (1910), da Marcha para oeste (Vargas 1940) e para a construção
da BR-364 (Militares 1970). Alguns registros deixados pela Comissão Rondon
ganharam um caráter definitivo tamanha sua complexidade e precisão
9
.
No campo
indigenista, os ideais positivistas de Rondon ainda encontram eco, sobretudo nos
Órgãos do Governo.
1.6. Entre a Cruz e a Espada
Com a ascensão de D. Pedro I, o debate sobre o modo como o Império
deveria lidar com as populações indígenas instaurou-se definitivamente entre os
intelectuais que gestaram a independência da Coroa Portuguesa.
Os ideais positivistas que nortearam a consolidação da República no Brasil
indicavam que a mediação das relações entre a sociedade brasileira e a sociedade
indígena deveria ser feita por atores indicados pelo Estado e não pela Igreja.
Naquele momento histórico marcar a distinção entre o Estado e a Igreja significava
reconhecer, de fato, a consolidação da nova ordem política vigente no Brasil.
1.6.1. Breves Considerações Sobre a Participação dos Jesuítas na Colonização do
Brasil.
Os Primeiros Jesuítas chegaram ao Brasil em 1500, na esquadra comandada
por Pedro Álvares Cabral. Por essa razão, sua imagem era fortemente associada
ação catequética entre nativos. Faz-se necessário dizer que tal atribuição não lhes
foi conferida ao acaso. Portugueses e Espanhóis contavam com jesuítas em suas
expedições, pois, em sua essência, eles demonstravam o desejo de trabalhar entre
pagãos. Tinham como objetivos principais: levar a palavra e o estilo de vida vivido
por Cristo e seus Apóstolos.
Seu período mais difícil foi vivido na segunda metade do século XVIII. Em
1759, foram expulsos do Brasil, por ordem do Marquês de Pombal.
9
Exemplo: coordenadas geográficas de terras Indígenas, confirmadas com precisão pelos sistemas
G.P.S. (Global Position System).
31
Hostilizados e perseguidos em grande parte dos países em que atuavam,
entraram em atrito com a hierarquia eclesiástica romana. A Companhia de
Jesus foi dissolvida em 1773 pelo Papa Clemente XIV e os jesuítas foram
incorporados nos ministérios religiosos pelo Breve do Papa Pio VII, de 7 de
agosto de 1874. (ARRUDA, 1992: 74).
Logo após a Companhia de Jesus deixar o Brasil, alguns de seus membros
foram se instalar na Argentina. Em 1841, atendendo ao convite feito pelo governo do
Rio Grande do Sul retornaram ao Brasil.
Verdadeiramente não puderam contar com grande apoio governamental,
mesmo assim não desistiram de permanecer naquela porção do país. Tinham sua
espera motivada pelo desejo de reativar suas atividades em cidades próximas ao
Paraguai visando às antigas Missões.
Os jesuítas não conseguiram afastar completamente sua imagem do episódio
de conflito com o Marquês de Pombal em 1759, e, por isso, tiveram de enfrentar um
período bastante tortuoso no início dos trabalhos, marcado pela total falta de apoio
do governo provincial.
Contudo, em 1848, o governo provincial viu-se obrigado a pedir a colaboração
dos jesuítas na mediação das relações com os Kaingang
10
. O ambiente na região
Norte da Província era bastante tenso. Por isso, sete anos após sua chegada, em
1848, fundaram as reduções de Nonoai, Guarita e Campo do Meio.
Os Coroados foram sendo pacificados e o projeto de colonização e
desenvolvimento idealizado para aquela região pôde ser realizado. No ano de 1852,
foram acusados em audiência pública na Câmara dos Deputados de luxúria e
cobiça. Mesmo alegando que tais acusações haviam sido forjadas pela maçonaria,
foram obrigados a entregar as chaves das Missões para o Presidente da Província.
Em seguida, o comando dos trabalhadores foi repassado aos Capuchinhos.
Novas negociações, pelo ano de 1870, acabaram resultando na criação do
Curato de Nonoai. Todavia, relatórios datados de 1891 dão conta do insucesso do
10
Naquela época os Kaingang eram conhecidos como “índios coroados” em função do seu corte de
cabelo em forma de coroa.
32
trabalho missionário. Atribui-se como motivo principal da falta de eficácia no
processo catequético a índole tardia e preguiçosa dos índios
11
.
Com essa avaliação, os jesuítas deixaram de missionar entre os nativos. O
projeto missionário entre indígenas vai se concretizar no Mato Grosso dos anos
1930.
1.7. Jesuítas e Militares Marcharam em Direção ao Oeste Brasileiro.
Após o término da primeira grande guerra, em 1918, a idéia de transferir a
Capital Federal do Litoral para o centro do Brasil ganhou impulso. Algumas
empresas imobiliárias chegaram até a negociar grandes áreas de terra na porção
Centro-Oeste do país. Curiosamente, na região que anos mais tarde ergueu-se
Brasília.
Foi durante a Era Vargas (1930-1945) que se configuram as reais condições
para efetivação do projeto desenvolvimentista, tempos sonhado para Mato
Grosso.
A partir desse momento, nosso texto irá fixar-se definitivamente no século XX,
tomando dois momentos como referenciais para a construção de argumentação e
análise dos fatos políticos relevantes para história do Mato Grosso e,
conseqüentemente, para a do Brasil: a Fundação da Prelazia Diamantina e a criação
da Fundação Brasil Central.
1.7.1. A Prelazia Diamantina
O motivo de fundar Diamantino foi a miséria reinante em Cuiabá. “A tanta
calamidade, veio juntar-se o Capitão-general Rodrigo Cezar, aportado ao arraial em
1726 com 3.000 pessoas a mais do que não sobejava aos que sofriam tantas
privações”. (MOURA, 1980: 4).
11
Sobre o tema ver: Brasil Missionário – Revista Ilustrada do Instituto das Missões Consolata, ano I,
Número I, 1963.
33
No período de sua permanência em Cuiabá (1726-1727), “tudo era morrer,
gemer, e chorar”, segundo o bem informado cronista J. Barbosa de Sá, tal a férrea
orientação que imprimiu a arrecadação das taxas. (MOURA, 1980: 4).
Foi diante das condições descritas pelo trecho acima, que o bandeirante
Gabriel Antunes Maciel deixou Cuiabá em direção ao interior. Buscando melhores
condições de sobrevivência, acabou fundando a cidade de Diamantino. Dois séculos
mais tarde, em 1929, Diamantino consolidou-se como sede da Prelazia. Diamantino
foi elevada a essa categoria, através da Bula Cura Universal Eclesial do Papa Pio
XI, em 22 de março de 1929.
A Prelazia de Diamantino constituiu a maior circunscrição eclesiástica do
Brasil, abrangendo um território de 354.000 km². (COSTA, 1985: 237).
Seus limites estavam definidos ao norte pelas fronteiras do Estado de Mato
Grosso com Amazonas e Pará; a oeste pelo rio Juruena; a leste pelo rio Xingu e
Culuene até o Ribeirão das Canoas e, ao sul, numa linha irregular cortando os
formadores e afluentes do rio Paraguai, subindo pela Serra do Tombador, rio Cuiabá
e o rio Paranatinga até alcançar o rio Culuene.
O território da Prelazia Diamantina era marcado pelo contraste entre sua
vasta extensão e o baixíssimo índice de densidade demográfica. Os registros
oficiais dão conta que, em 1931, apenas 401 pessoas moravam na cidade
Nullius, termo que, em latim, designa terra de ninguém ou devoluta,
expressando-se então a principal característica da região norte da
Arquidiocese de Cuiabá. Por ironia, porção essa que havia sido palco dos
ciclos econômicos da mineração nos anos de 1720 e da borracha em 1870.
De fato, contava-se com um conjunto de informações sobre a área, que se
caracterizava como terra pagã, em virtude da presença de diversos grupos
indígenas. Por isso, em 1925, a Nunuciatura Apostólica ofereceu para CIA de
Jesus a administração da Prelazia Diamantina. Havia chegado, afinal, o
momento dos jesuítas desenvolverem sua vocação histórica e com apoio
definitivo da Igreja e do Estado. Assim sendo, o Mons du Dréneuf tomou
posse como Administrador Apostólico e dos jesuítas em 21/12/1930
12
.
Durante os primeiros quatro anos de funcionamento, a Prelazia Diamantina
dedicou-se mais à catequese sertaneja, fazendo apenas algumas visitas aos
Bakairi de Santana e Simões Lopes. (PACINI, 1999: 25-26).
1.7.1.1. Missão em Terra Indígena
12
A cidade de Diamantino não contou com a presença de um Vigário entre 1875-1930, em função de
sua decadência econômica. O fato nos faz supor que a organização da Prelazia também foi motivada
pelos interesses econômicos e desenvolvimentistas da época.
34
Em 1935, os jesuítas fixaram-se em Mangabal do Juruena, com vistas à
catequese dos Nambikwara e Pareci. Também participaram desses trabalhos as
Irmãs da Imaculada Conceição que haviam chegado na sede da Prelazia
Diamantina no ano anterior.
O posto localizava-se nas proximidades da estação telegráfica Juruena. O
ambiente era hostil, não havia condições adequadas para agricultura, e os
missionários não estavam culturalmente adaptados ao novo estilo de vida.
O cotidiano dos trabalhos era marcado por incertezas na formulação de um
projeto pedagógico voltado para a realidade local, sem mencionar a concorrência
estabelecida com um grupo de missionários protestantes conhecidos pela sigla
ISAMU
13
.
Em Tristes Trópicos, Lévi-Strauss (1996), relata o episódio da morte de um
indígena Nambikwara, que fora atendido pelo ISAMU, em 1930, e veio a falecer.
Depois desse evento, os evangélicos, acusados de feiticeiros, não conseguiram
manter boas relações na região. Em 1937, estabeleceram-se na região de Utiariti, de
lá só saindo em definitivo em 1957
14
.
Os jesuítas, por sua vez, ainda continuaram tentando desenvolver suas
atividades na região até meados da década de 1940. Numa reunião de avaliação
realizada na sede da Prelazia, em dezembro de 1942, decidiu-se que os jesuítas
deveriam continuar com os trabalhos em terras indígenas. Contudo, deveriam se
mudar para Utiariti, pois o avanço dos seringueiros na região estava ocorrendo de
modo desenfreado.
Embora esse argumento possa reforçar a idéia de que os jesuítas se
preocupavam exclusivamente com os indígenas que tradicionalmente habitavam a
região, na prática, viam os seringueiros com bons olhos. Não podemos esquecer
que a Prelazia Diamantina nasceu com a vocação de levar o estilo de vida e a
palavra de Cristo em terras de “ninguém”.
13
A INLAND SOUTH UNION era uma entidade anglo-norte-americana que teve uma existência curta,
de menos de 10 anos, posteriormente cindida em dois grupos: New Testament Gospel Union,
congregando o grupo inglês, e South América Indian Mission, representativa do grupo norte-
americano. (ARRUDA, 2000: 9).
14
Sobre esse episódio ver também Adalberto Holanda Pereira – Heróis do Juruena s/d.
35
Em 1946 os Jesuítas instalaram-se em Utiariti de modo definitivo. Desde a
formação da Prelazia Diamantina, em 1930, os missionários acalentavam o desejo
de criar raízes na região. Sabiam que, além da estação telegráfica instalada em
1907, a Comissão Rondon favorecera a organização de um pequeno grupo escolar
administrado pela esposa de um dos telegrafistas que opera a estação
15
.
Em 10 de dezembro de 1937, o Presidente Getúlio Vargas lança o Programa
Marcha para Oeste. Tal projeto tinha como principal objetivo ocupar os “espaços
vazios” e levar o progresso para todos os brasileiros.
Conforme Lenharo:
Essa dificuldade pode ser bem uma das fortes razões da estratégia de
encaminhar o migrante nordestino para realidade tão diferente, a ponto de
quebrar-lhes a resistência cultural, e forçá-los a socialização desejada, fosse
no meio urbano, submetidos a uma proletarização rápida e interna, fosse na
Amazônia, transformados em seringueiros, num meio hostil, e amarrados a
uma cadeia de trabalho cruel e desumano. (LENHARO, 1986: 60).
em 1940, cerca de quatro mil passagens foram doadas pelo LLOYD
brasileiro para que nordestinos migrassem para as regiões Centro-oeste e Norte do
país.
O projeto de Vargas deixa claro que o Brasil está definitivamente inserido no
cenário econômico e geopolítico mundial. Entretanto, continua sem saber como agir
diante da diversidade cultural existente em todo o território nacional. Assim sendo, o
estado opta por financiar o genocídio e a expropriação das populações tradicionais,
buscando construir um tipo homogêneo de cidadão brasileiro.
Dentre os diversos grupos que circulavam pelas bordas de Utiariti, aqui
damos destaque para o Povo Irantxe, que mantiveram contato com a sociedade
brasileira, pela primeira vez, logo no inicio do século XX.
O encontro entre os seringueiros e o Povo Irantxe ocorreu de forma violenta.
Depois desse trágico episódio, os Irantxe mantiveram contato de maneira
intermitente com a sociedade envolvente. Mesmo assim, pode-se perceber que se
tratava de um povo de índole pacifica. Tal característica sempre motivou os jesuítas
a encontrá-los, pois acreditavam se tratar do tipo “ideal” de povo para a catequese.
15
Durante o período de funcionamento da escola, não passavam por ali mais que sete crianças em
diferentes momentos, conforme relato de Bigio, 2000.
36
1.7.1.2. Utiariti: uma nova ordem rumo ao progresso
Foto 1: CL - 102: 14 Manoki visitaram Utiariti, julho de 1948.
Fonte: Arquivo da Missão Anchieta
Os jesuítas localizavam sua sede administrativa na cidade de Diamantino,
cerca de 550 km de Cuiabá. Instalaram sua sede operacional próxima à antiga sede
da estação telegráfica de Utiariti. A estação foi batizada por Marechal Rondon, com
palavra retirada da língua Pareci que significa lugar ou morada do sábio. Rondon
considerou apropriado dar à estação o mesmo nome do belo salto localizado
naquela região, pois sabia que para o povo Pareci o lugar é considerado sagrado.
Os jesuítas, por sua vez, cientes de toda a simbologia que envolve Utiariti,
acharam o lugar perfeito para efetivação do seu projeto político de catequese.
A área era situada na margem esquerda do rio Papagaio com uma extensão
total de 8.200 hectares e foi cedida à Prelazia Diamantina pelo governo do Estado
de Mato Grosso.
Em seu auge, o internato contou com uma população de aproximadamente
300 pessoas; em sua grande maioria crianças, que eram o público preferencial dos
jesuítas. Foram sendo trazidas de suas aldeias por serem consideradas órfãs. Hoje,
37
sabe-se que muitas dessas crianças foram retiradas de seus pais para serem
educadas como cristãs pelos jesuítas. Na verdade, seus pais continuavam vivendo
em suas aldeias, sem ter como manter contato sistemático com seus filhos.
Há na entrada um belo pátio ladeado por linhas de frondosas mangueiras que
transformam o ar que passa em brisa suave e deliciosa de uma frescura
indescritível. Em meu primeiro dia de Utiariti, nem consegui dormir de
emoção. Passei a noite debaixo de uma daquelas mangueiras. Não fazia frio.
A noite toda foi agradável e alguns cochilos foram o suficiente para um sono
reparador.
Do lado esquerdo um caminho que conduz ao rio Buriti, próximo à aldeia
dos Nambikwara, seguindo o mesmo caminho da linha telegráfica.
Do lado direito, após a travessia do rio Papagaio, encontra-se a casa dos
padres e alojamento dos meninos, tendo um pouco abaixo os banheiros e
próximo ao rio Papagaio uma pequena choça com um tabuleiro e próximo
para jogar-se ao rio e tomar banho. Segue uma trilha à esquerda que conduz
ao local onde é torrada a farinha de mandioca. Passa-se por construção de
dois pavimentos, onde estava a máquina de descascar arroz. À frente
oficina mecânica, marcenaria e serraria. Seguindo um pouco à frente uma
trilha ladeada por um canal aberto na margem esquerda do rio Papagaio, que
conduz a água para a usina hidrelétrica localizada na margem esquerda do
mesmo rio, cerca da 150ms distante do salto de Utiariti. Este canal tem
800ms, executado a partir de instrumentos rudimentares como pá, enxada e
picareta. Na metade dessa trilha, que conduz à usina, encontra-se uma
digressão que conduz ao local onde se pode observar a imensa queda d’água
de 80ms de altura – o salto de Utiariti, tido por Roosevelt como o mais belo da
América, exceto o Niágara. É um portento de espuma branca e água que
despenca abruptamente provocando um barulho assustador. É um estrondo,
que faz o solo tremer esmigalha a imaginação do vidente e o põe diante deu
sua pequenez, perante esse portento, se considerada a natureza da região,
que é povoada de saltos. Observa-se tremendo de pavor e olhos a brilharem
de satisfação a paisagem quebrada por pedras imensas que constituem uma
garganta estrita por onde se derramam abruptamente os vagalhões,
empurrando-se uns ao outros para um abismo rumo ao desconhecido em que
se mata verde para acalmar o olhar atônito do expectador. Daí as
águas rumam por corredeiras em borbulhos imensos até o Juruena.
Espetáculo de águas tão assombroso, jamais vira vista em toda esta
Amazônia em sua face meridional e adjacências.
Retornando deste ponto pela esquerda encontra-se o cemitério – símbolo que
oculta a vida dos que se foram, levando consigo seus sonhos, suas
experiências e esperanças.
cerca de 200ms mais além, está o apiário e mais para cá, perto do pátio
há um campo de futebol.
Em frente à casa dos voluntários austríacos (professores técnicos em
marcenaria, mecânica), está a escola Zanakwa e o Patronato Santo Antonio.
Segue-se um grande conjunto que inclui, casa das irmãs, alojamento de
meninas, refeitório, sala de costura e artes, fabricação de redes e
artesanatos. Um pouco abaixo está o galinheiro e na seqüência um grande e
belo pomar, regado pela água constante que é captada no rio Papagaio por
um canal de 600ms, donde também é tirada água potável, que é empurrada
nas caixas das construções através de um carneiro hidráulico, que recalca
água à medida que a recebe. A válvula de recalque dá uma batida, um pouco
mais sonora que o grito de uma araponga, mas que marca a gente pela
constância simétrica dos ruídos, durante o dia e a noite. Esta mesma água
antes de regar a horta e o pomar, passa por dentro de uma imensa
lavanderia, onde as jovens índias lavavam a roupa de todos capitaneadas
pelas freiras. (PIVETTA, 1993: 110-112).
38
No centro de tudo, a igreja, símbolo maior que justificava a presença de todos
naquele lugar. O dia começava às 5h40 da manhã com a missa. Depois, todos os
horários eram previamente definidos: café, escola, almoço, trabalho, missa e,
finalmente, o descanso noturno.
Encontrei nos diários de Pe. João Dornstaudter um manuscrito contendo
todas essas indicações para um substituto eventual, na ocasião das suas férias.
Recomenda, ali, que o ócio fosse passível de reprimenda, pois um cidadão católico
não pode admitir a preguiça para si, ou entre os seus.
Imagem 1: Diário Pe. João Dornstaudter
Fonte: Arquivo MIA,1948.
Pivetta (1993) conta que no sino da igreja, doado por um aluno do Colégio
São Luis, em São Paulo, encontrou a seguinte inscrição: Omnia ad maiorem dei
glorian (tudo para a maior glória de Deus).
39
Tal inscrição exprime em si muito mais do que a vocação evangelizadora
presente no ideário da Companhia de Jesus. Naquele momento histórico os Jesuítas
tornaram-se fortes aliados do governo Vargas na implementação do projeto
desenvolvimentista preconizado para o Brasil Central.
São muitas as histórias que envolvem os jesuítas e suas relações com os
povos indígenas que viviam nas bordas do Utiariti, algumas delas ganharam
formato de tese ou livro e estão espalhadas pelas bibliotecas do Brasil e do mundo.
Acreditamos que a trajetória do contato vivenciada pelos Irantxe iniciada na
primeira década do século XX será um bom argumento para que possamos
compreender mais e melhor como se constituiu o cenário que desencadeou a
Marcha Para Oeste. E, num momento posterior, o padrão de relações estabelecido
entre o Estado e a Igreja e os Povos Indígenas que tradicionalmente habitavam
aquele “imenso vazio”.
O melhor horário para se ter uma boa conversa entre os Irantxe é o final da
tarde. Ciente disso, aproveitamos alguns momentos de reunião familiar para tratar o
tema.
Na aldeia Paredão, entre risos e lembranças, a Sra. Vanda Laura Cinta Larga
declara: “(...) Nem sei como casei com meu velho, o Sebastião, porque a gente não
podia nem namorar”.
o Sr. Atanásio Jolasi pede licença e diz: “(...) Eu não tenho o que me
queixar dos padres, eles foram bons pra nós! Mas, às vezes, me lembro dos
horários. É verdade, tinha horário para tudo”.
D. Vanda retorna com um café e sai dizendo: “(...) me casei num dia e noutro
fui para chácara do Frei Manoel. Os padres não queriam misturar casados e
solteiros (...)”.
O Sr. José Jalukali, quando percebeu o teor de nossa prosa, veio em direção
ao grupo e disse: “(...) você tem que deixar eu falar! (...) Um dia eu fiquei com raiva
do tal Irmão Mathias que deu uma surra em meu sobrinho Vitor só porque ele deixou
a escola para ir brincar. De verdade eu quis matar ele!”.
40
É importante notar que entre todos os que falaram sobre o assunto comigo, o
Sr. Jalukali foi o mais contundente no discurso contrário aos jesuítas. Aqui não
podemos esquecer que a imensa maioria dos padres e irmãos vieram da região Sul
do país, sendo filhos de famílias européias. Não acreditavam piamente na
necessidade do trabalho de conversão para os indígenas, bem como eram
obrigados a lidar cotidianamente com a hostilidade do meio natural. Todos esses
fatores somados nos fazem supor que o ambiente do internato não devia ser tão
harmônico assim.
Em outras oportunidades pude conversar com pessoas que também
chegaram adultos em Utiariti e apresentam uma versão positiva dessa experiência
para suas vidas. Nesse caso citamos Alonso WeraWali e Mauricio Tupxi. O primeiro
é um velhinho bem simpático, conhecedor dos cantos e rituais tradicionais Irantxe.
Contou-me com grande satisfação sobre o tempo em que viveu em Utiariti e
aprendeu a cozinhar junto com o Irmão Fernandes. o segundo lembra com
orgulho dos trabalhos de pacificação realizados entre os Rikbaktsa, e em conjunto
com seu amigo e parceiro, Pe. João Dornstaudter: “nós vivemos muita coisa juntos.
Certa vez, eu parei água na mão para ele não morrer de sede.” (Mauricio Tupxi,
2003).
O velho, no alto de seus oitenta anos, emociona-se ao lembrar de suas
andanças pelo interior do Mato Grosso; lamenta ter ficado velho e sem dinheiro:
“eu trabalhava em troca de uma boa espingarda e munição. Hoje eu quero comprar
uma carroça e um bom cavalo e não tem como!” (Mauricio Tupxi, 2003). Sua
esposa, Domitila Naãsi, reclama que viveu muito sozinha nos tempos em que o
velho Maurício andava por aí “amansando” índios.
Foram aproximadamente quinze anos de convivência entre os jesuítas até a
conformação de uma nova conjuntura política que reordenou os caminhos a serem
percorridos pelos povos indígenas no Brasil. Além da falta de condições financeiras
destacamos dois importantes eventos que contribuíram em caráter definitivo para o
desmonte do internato. O primeiro, o Concílio Vaticano II (1962 1965); o segundo,
a reunião de antropólogos realizada em Barbados no ano de 1968. Em linhas gerais
os dois eventos produziram reflexões que recomendavam o respeito às diferenças
garantindo a liberdade de expressão para as diferentes culturas.
41
Sobre a conformação dessa nova conjuntura e os caminhos percorridos por
diversos atores no cenário político da época falaremos com mais profundidade na
parte final desse trabalho.
Os jesuítas se uniram aos representantes da recém criada pelo governo
militar, Fundação Nacional do Índio, órgão indigenista oficial, e iniciaram o processo
de realocação dos povos em “suas aldeias”. A ordem agora era viver como índio e
não mais como brancos, como sugere a nova linha de ação da Igreja Católica que
se tornou popularmente conhecida como Teologia da Libertação
16
.
Com essa finalidade, a Missão Anchieta constituiu um novo grupo formado
essencialmente por jovens missionários que receberam o nome de OPAN -
Operação Anchieta. Sobre ela falaremos com mais vagar no próximo capítulo.
Estando os indígenas re-alocados, o governo militar incentivara um novo
processo de desenvolvimento e expansão das fronteiras agrícolas em todo o Brasil
Central. É certo que os Irantxe viveram um processo lento de expropriação e
massacre cultural na primeira metade do século XX, mas o fato de terem sido
reconduzidos para “uma terra” não minimiza os desafios na luta pela vida.
1.7.2. A Expedição Roncador-Xingu e Fundação Brasil
O advento da segunda grande guerra favoreceu fundamentalmente
instauração de uma nova ordem econômica e a incorporação de novas estratégias
militares.
Diante dessa nova ordem mundial, Getúlio Vargas decidiu incentivar a
ocupação definitiva da porção central e, para tanto, foi preciso fomentar a criação da
Fundação Central, que tinha como comitê de frente a Expedição Roncador-Xingu.
A Fundação Brasil e a Expedição Roncador-Xingu iniciavam suas atividades
no ano de 1943 e tinham como premissa “identificar e ocupar os espaços vazios”
que iam sendo plotados nos mapas.
16
A principal proposta da nova linha de ação da igreja Católica apontava no sentido do respeito às
diferentes culturas ao redor do globo.
42
Essa aventura abriu 1.500 quilômetros de picadas, percorreu 1.000
quilômetros de rios, fundou 43 vilas e cidades, construiu 19 campos de pouso, sendo
5 militares, sem falar nos cinco mil indígenas contatados.
As Elites e as camadas médias do sudeste passaram a viver em torno dessa
idéia. Com um orçamento relativamente baixo, a Expedição Roncador-Xingu contava
com a boa vontade das doações feitas por excêntricos e abnegados. Nesse sentido,
a Liga das Senhoras Católicas de São Paulo desempenhou importante papel na
arrecadação de donativos e animais.
Inicialmente, Vargas nomeou João Alberto Lins de Barros para chefiar os
trabalhos do Ministério da Mobilização Econômica, pasta criada durante a Segunda
Grande Guerra. Posteriormente, tais trabalhos foram assumidos pelo Tenente–
Coronel Flaviano Mattos Vanique, chefe da guarda do pessoal do Presidente
Vargas.
Além do Tenente-Coronel Vanique destacamos a participação dos irmãos
Vilas Boas, Orlando, Cláudio e Leonardo. Eles acompanharam a expedição e
apaixonaram-se pelo Brasil, tomando a causa indígena como um objetivo de vida.
Vale registrar que os irmãos tinham um desejo tão grande em conhecer o Brasil que
acabaram deixando São Paulo para fingirem ser sertanejos em Barra do Garças,
pois a expedição de vocação militar não tinha lugar para “fracos”.
Todas as doações e tralhas da expedição seguiram de trem até a cidade de
Uberlândia e, dali em diante, a pé em direção ao Araguaia.
O grande sertão do Brasil Central, compreendido entre o rio Araguaia e seus
afluentes da esquerda, a leste, o Tapajós com seus formadores a oeste, os
chapadões mato-grossense ao sul, e uma linha correspondente aproximada
ao paralelo 4 (L.S.), que corta aqueles rios na altura dos seus grandes
encachoeirados, com uma área de aproximadamente um milhão de
quilômetros quadrados, até poucos anos era a região menos conhecida de
todo o continente americano, talvez do mundo. Isso não significava que a
partir desses limites começasse o Brasil demográfico. (VILAS BÔAS,
1994:41).
O cotidiano da expedição registrado nos diários da Marcha para Oeste dos
irmãos Vilas Boas, foi marcada por diversas histórias no mínimo curiosas e por uma
disciplina militar rígida, registrada pelos radiogramas recebidos e enviados
cotidianamente:
43
Vejamos alguns exemplos:
O feijão ‘drobado’ do Cuca
A madrugada do dia 14, hoje, foi bem fria. Muito antes de clarear
estávamos todos de pé, ao redor do fogo da cozinha, aquecendo-nos e
ouvindo os casos do Cuca: “Meu patrão, eu veio mirradim mais não
cobra ismuricido. O sol nem vermêio o céu, o café já tava no bule e o feijão na
latra. O feijão vai sê drobado hoje”. Todos os dias ele fala no feijão “dobrado”.
E ainda não sabemos bem o que é feijão dobrado! Quebrado o jejum,
atravessamos o córrego e seguimos com o picadão algumas braças para a
frente, mas logo adiante damos com um morro barrando o nosso rumo.
Transpô-lo não é conveniente; o íngreme da encosta dificultaria os passos
dos burros. Explorando o lugar, vimos que é possível desviar a picada pela
esquerda. Feito isso, assentamos novamente a bússola e retomamos o rumo
norte; a picada avançou alguns quilômetros, por um cerrado ralo, queimado
pelos índios mais ou menos um ano, calculamos. (VILAS BÔAS,
1994:55).
A Expedição Roncador-Xingu teve seus desdobramentos, destacamos como
seu principal feito a criação do Parque Indígena do Xingu em 1961.
Embora não tivessem explorado os mesmo espaços, a Fundação Brasil
Central/Expedição Roncador-Xingu e os Jesuitas da Prelazia Diamantina acabaram
legitimando uma política de integração do centro ao resto do Brasil.
Em um momento particularmente importante dessa história Orlando Vilas
Boas e Padres Thomás Lisboa e Antonio Iasi uniram-se para garantir a TI Irantxe e a
remoção dos sobreviventes Tapayunas para o Parque Indígena Xingu.
Ironicamente, aqueles que deram seus melhores anos trabalhando para a
consolidação das fronteiras em Mato Grosso, acabaram indiretamente corroborando
com desatinos cometidos pelos militares, em diversos projetos de colonização,
descabidos, implementados durante o governo militar que expropriou definitivamente
as Terras Tradicionais dos Povos Indígenas de Mato Grosso.
Os quarenta volumes do cineasta Genil
À tarde, Olavo com o 0275 chegou trazendo o dr. Noel. Ficarão hoje por aqui.
O dr. Noel vai dar uma olhada nos índios doentes. À medida que melhora um,
piora outro. Deu à luz a índia Iacuiap, mulher do Avinarrá. Nasceu uma
menina. Correu tudo normalmente. Domingo, 27 de julho de 1948. Às horas
habituais içamos e arriamos a bandeira. Olavo e o dr. Noel regressaram a
Xavantina. Passarão pelo Kuluene. Mal o dr. Noel saiu, chegaram alguns
índios doentes e não doentes. Um caso parece grave, um índio meinaco.
Na madrugada de hoje o termômetro marcava 18 graus. Durante o dia
chegou aos 34. O pessoal disponível está todo no campo, capinando. Os dois
do Museu Nacional estão satisfeitos com os resultados que estão tendo. O dr.
Kalervo e o dr. Altenfelder estão agora “perseguindo” os camaiurás. A
epidemia que entre eles surgiu está sendo rapidamente debelada, tão-
somente porque trouxemos em tempo os doentes, 25 mais ou menos,
44
numa leva. Se formos contar aqueles que foram chegando de canoas, o
número vai tranquilamente de cinqüenta pra sessenta. Caso aparentemente
grave, do meinaco que chegou agora pouco. O dr. Moogem e o dr. Sick
pediram reserva para voltar com o próximo CAN. O CAN que deveria sair hoje
do Rio atrasou o vôo e ninguém, nem eles, sabe até quando. Veio um rádio
do coronel pedindo que devolvêssemos para Aragarças todos os volumes
aqui chegados e que pertencem ao cineasta e cinegrafista Genil
Vasconcellos. Chegou em Aragarças um Douglas da AZA, fretado pela
Fundação. Não virá até aqui, é fretado. O dr. Moogem e o dr. Sick, cada qual
com uma bagagem do tamanho de um bonde, estão de olhos fixos no
horizonte procurando um pontinho preto que quando chegar mais perto se
transformará em avião. Avisamos os cientistas e os auxiliares do sr. Genil que
ponham nos seus volumes etiquetas bem visíveis, porque a bagagem é muita
e são dois os pontos de chegada. (VILAS BOAS, 1994:356)
Rondon cancela filme do cinesta
Era intenção do sr. Genil de Vasconcellos levar a efeito um filme de enredo
envolvendo índios. Script pronto, Fundação de certa forma de acordo, tanto
assim que cedeu ao cineasta praça nos aviões para a sua carga; o SPI nem
consultado foi; a nós, delegados do CNPI (Conselho Nacional de Proteção
aos Índios), nem uma palavra foi dita. Por outro lado, os artistas, de malas
prontas no Rio, aguardavam o momento propicio para embarcar. A
mocinha, Luz Del Fuego, treinava frente ao espelho um olhar lânguido de
virgem raptada, e o mocinho, um ar de herói, quando manifestamos a nossa
discordância com a filmagem. Alguém importante havia por trás, pois não foi
dada a menor importância a nossa posição. Em linhas gerais, o enredo não
fugia de uma história piegas muito a gosto dos aficionados de Tarzã. Um
avião cairia nas selvas. Todos morreriam, menos a mocinha, que, espantada,
é presa pelos índios. Uma expedição com o mocinho à frente avança mata
adentro para salvar a “candura”. Os índios querem ficar com a coisa linda.
Reagem. Os expedicionários atiram, os índios flecham. É claro que os
primeiros saem ganhando, e o mocinho triunfante resgata a “preciosidade”.
Este, por alto, era o roteiro da história. Diziam ingênua, romântica, melíflua e
dramática. Tudo estava engatilhado. O mocinho de mala em punho
aguardava o avião do Correio para vir conhecer a mata em roda do campo de
pouso, onde todo o drama se desenvolveria. Tanto nossa posição não foi
levada em conta que os volumes continuavam chegando. Diante disso,
fizemos um relato ao Marechal Rondon e expusemos o nosso ponto de vista
contrário ao filme. Não aconteceu outra coisa. O marechal manifestou a sua
desaprovação junto à Fundação Brasil Central. O projeto ruiu. D a
solicitação de Xavantina pedindo de volta os inúmeros (quase quarenta)
volumes aqui depositados, pertencentes ao sr. Genil Vasconcellos. (VILAS
BÔAS, 1994:357).
1.8. Contato
A partir da década de 1870, chegaram os primeiros seringueiros que, com
apoio governamental, iniciaram a invasão da porção noroeste do Estado de Mato
Grosso.
Sobre esse assunto, nas conversas na aldeia do Cravari, não foi difícil
perceber que os Irantxe tinham consciência da presença dos Kewa (não índios)
45
pelos seringais. Porém, por serem avessos ao conflito direto evitaram ao máximo o
encontro com os invasores.
Por volta de 1900, os Irantxe mantiveram seu primeiro contato com os
representantes da sociedade brasileira. O seringueiro Domingos Antônio Pinto
promoveu um violento ataque que vitimou quase toda população de uma aldeia
localizada às margens do córrego Tapuru.
No ano de 1910 houve um aumento considerável na demanda externa pelo
látex, também chamado de “ouro branco”. Nos Estados Unidos, a indústria
automobilística estava em franco desenvolvimento. Enquanto isso, a Europa vivia os
horrores da primeira grande guerra. Por essas razões, o governo republicano
brasileiro decidiu investir de modo consistente na exploração comercial da borracha.
Em 1912, recursos estatais financiaram a formação de diversas empresas
seringalistas. Um contingente enorme de homens, vindo principalmente da região
nordeste, invadiu o centro oeste e o norte do país rumo aos seringais.
Foi nessa época que os Irantxe mantiveram oficialmente seus primeiros
contatos com representantes da sociedade brasileira. Um grupo de seringueiros
comandados por Domingos Antonio Pinto promoveu um violento massacre na aldeia
Irantxe às margens do córrego Tapuru. Sobre esse episódio tive a oportunidade de
conversar com o velho Xinui, o único sobrevivente do massacre Tapuru que ainda
vive. Para poder realizar essa entrevista, contei com o apoio inestimável do amigo
Kiwxi, um jovem senhor Manoki que vive na aldeia Japuira-Ti Myky.
Xinui é o mais velho da aldeia e não é possível precisar sua idade atual.
Exames médicos indicam que ele deva ter entre 95 a 100 anos. Ele é bastante ativo
e demonstra grande disposição para falar sobre o assunto. Nossa entrevista foi um
pouco demorada, pois tínhamos que interrompê-la para que as falas fossem
traduzidas para o português.
Kiwxi acertou previamente o horário e o assunto da nossa conversa. Abaixo
reproduzo um trecho da conversa, inserindo alguns comentários:
O velhinho chegou, sentou-se, e logo fiz a primeira pergunta:
46
– O senhor viveu na aldeia do Tapuru?
– Sim.
– Como foi que aconteceu o ataque na aldeia Tapuru?
– Dias antes os seringueiros haviam atacado outra aldeia ali perto.
De fato, nunca havia tido essa informação em nenhum momento. Como ele
resolveu falar sobre outras coisas, então, pedi-lhe que me contasse a história desde
o começo. Para tanto, fiz uma nova pergunta:
– Os Irantxe sabiam da presença dos seringueiros ali perto?
Sim. Todos na aldeia sabiam da presença dos seringueiros, nunca
fizemos nada, porque Irantxe não é de briga.
– Qual foi a outra aldeia atacada?
Eu não sei o nome. Naquele tempo eu andava no braço da minha mãe.
Tudo o que estou falando foi ela quem me contou.
Daí em diante não fiz mais nenhuma intervenção, deixando que Kiwxi
conduzisse a conversa:
Pois dias antes os Kewa (não índios) tinham tentado invadir uma aldeia
menor. Mas o pessoal da casa saiu cedo para a roça. Os seringueiros botaram
fogo nas coisas da casa, e deixaram espalhados os diversos utensílios no pátio da
aldeia.
Um de seus filhos, o senhor Mãty’y, que prestava atenção em nossa
conversa, disse: “Conte mais papai”. E o velhinho continuou seu relato dizendo:
Às vezes, os Nambikwara também faziam visitas nas aldeias Irantxe.
com vontade de pegar algumas coisas. Nosso Tikiandá (chefe) estava meio bravo
com eles que tinham levado algumas coisas das casas no outro dia que o pessoal
saiu para visitar seus parentes. Também andava preocupado porque os Kewa
estavam chegando perto demais. Um dia bem cedo os homens se reuniram e
47
resolveram fazer uma grande caçada para Yetá. E assim foi, um foi caçar, enquanto
outros saíram para pegar taboca para preparar novas flautas.
Nossa conversa foi silenciada por alguns instantes e todos os presentes se
emocionaram com a expressão facial do velho Xinui. Passados alguns minutos,
perguntei-lhe:
– Os homens ficavam muitos dias fora da aldeia?
Uns três ou quatro dias. Caçando, pescando e preparando tudo, porque a
aldeia tinha bastante gente. Minha mãe contou depois que à noite parecia que gente
estranha estava chegando.
Kiwxi interveio:
Eu acho que os seringueiros estavam sondando. Como sabiam que os
homens estavam fora, resolveram esperar para matar mais gente.
Xinui continuou:
A turma chegou e todos estavam bem alegres. Trouxeram muita caça e as
mulheres tinham feito bastante chicha. Era chicha mesmo! No cair da noite as
mulheres se recolheram e Yetá estava no terreiro grande, quando Kewa chegou. O
movimento era forte, mas nosso pessoal pensou que era uma turma de Kurali
(Pareci) que vinha chegando.
Todos ficaram parados e os olhos do velhinho encheram-se de lágrimas.
Pensei que não haveria mais condições para continuarmos tratando do assunto.
Entretanto, Xinui tomou forças e retomou a palavra.
- Os Kurali chegaram com um monte de gente e ninguém sabia o que estava
acontecendo.
Confesso que esse foi o momento mais difícil de todo o percurso da
entrevista, pois estávamos ali por quase uma hora. Não havia grande interesse
das pessoas pela nossa conversa. Mas, naquele momento, pude perceber como o
relato mexera com aquelas quatro ou cinco pessoas que ali estavam.
48
Xinui, apesar da sua idade, descreveu o episódio como se tivesse ocorrido na
noite anterior. Continuando:
Nossa aldeia era bem grande. Umas 10 casas grandes mais ou menos.
Foram muitos tiros e fogos, todos queriam sair dali. Os Kewa destruíram uma casa
com todo mundo dentro, gente que não teve como correr. Numa outra casa
atacaram e queimaram todo o milho e o feijão fava que estava no teto.
Diante da descrição feita me considerava satisfeito. Porém, o velhinho
ainda encontrou palavras para descrever o período pós-ataque:
Acho que ninguém teve coragem para voltar na aldeia. Todos ficaram
com muito medo. Daí em diante vivemos um tempo de tristeza e morte!
Xinui concluiu dizendo que estava muito cansado e foi saindo em direção à
sua casa.
Eu agradeci e também sai em direção à casa em que estava hospedado. Não
havia como tratar do assunto com outros naquele momento.
A noite foi longa, pensei muito sobre o papel do Estado brasileiro diante das
populações que tradicionalmente habitaram, ou melhor, ainda habitam os interiores
desse nosso país. O ideal desenvolvimentista ainda está presente nas práticas dos
nossos governantes em pleno século XXI.
É curioso observar que o depoimento do senhor José Jalukali, 75 anos,
morador da aldeia Paredão, feito ao antropólogo Rinaldo Arruda em novembro de
2000, não confirma a versão do velho Xinui, como também nos ajuda a
compreender a estratégia utilizada pelos Irantxe no contato com os representantes
da sociedade nacional. A versão Irantxe dos fatos conta que os Kewa (não
índios) foram se rendendo aos Irantxe conforme o contato foi se intensificando.
Em certo trecho de seu depoimento o Sr. Jalukali conta que representantes
da Comissão Rondon e seringueiros deixaram um caixote cheio de facões nas
proximidades da aldeia. Esses tais facões foram devidamente divididos entre os
chefes de cada comunidade. Os homens adultos que não foram contemplados com
o valioso presente saíram na direção do rastro deixado pelos visitantes.
49
Andaram muito, chegaram no córrego de São João na cabeceira, e acharam
um barracão de ferramentas, era do Rondon. Eram muitos índios e o branco
ficou com medo deles. Não havia ninguém que falasse 4 línguas, desta vez,
mas os índios foram apontando os machados, facões pedindo para eles. O
barracão estava cheio de ferramentas até o teto. Os brancos foram dando
para todos e foi baixando até chegar no chão. Todos ganharam, mas deu
uma ferramenta para cada, guardou um monte de flechas dos índios e
devolveu na hora em que foram embora. (José Jalukali apud ARRUDA 2000).
Os Irantxe não compreendiam a relação entre os presentes e a intenção dos
estrangeiros. Para eles interessava o contato visando à ampliação de suas
relações externas. Até que o noroeste mato-grossense fosse invadido pela frente
expansão os Irantxe mantiveram relações cordiais com outros povos indígenas da
região (Rikbaktsa, Tapayunas).
Os invasores, ao perceberem a sofisticação da diplomacia indígena, mudaram
a estratégia de atração dos Irantxe para o mundo “civilizado”.
A cobiça pelo látex justificou toda a série de ataques que foi sendo promovida
contra o grupo. O território mato-grossense era compreendido pelos governantes
brasileiros, desde os tempos do Império, como um imenso espaço vazio.
Os grupos indígenas que tradicionalmente ocupavam essas terras eram vistos
apenas como um detalhe a ser superado na construção do projeto ideal de
desenvolvimento preconizado para o Brasil.
Ao analisar todo o processo de exploração da porção noroeste de Mato
Grosso, é possível entender as razões que motivaram Domingos Antonio Pinto a
promover o massacre na aldeia Tapuru. É certo que, se não fossem aplicados
métodos violentos, os Irantxe nunca teriam saído de suas aldeias, o que impediria
definitivamente o franco acesso aos seringais e, conseqüentemente, o novo projeto
econômico delineado para região estaria fadado ao insucesso.
(...) um ato de inqualificável crueldade contra eles praticado pelo seringueiro
Domingos Antonio Pinto. O tristíssimo acontecimento a que aludo passou-se
pouco tempo depois de se ter estabelecido Antonio Pinto com os seus
camaradas, nos seringais de Corecê-inazá. Nada se deve temer da índole
pacífica e até mesmo tímida dos Iranche. Mas apesar disso, o truculento
seringueiro entendeu que era necessário expeli-lo das proximidades do ponto
em que estabelecera; e como por ali existisse uma aldeia, assentou dar-lhe
cerco, com o auxilio dos camaradas todos armados de carabinas. Pela
madrugada, ao recomeçar a cotidiana labuta daquela misérrima população, a
celerada emboscada rompeu fogo, abatendo os que primeiro saíram das
casas para o terreiro. Os que não morreram logo, encerraram-se nas
palhoças, na esperança de encontrarem ai abrigo contra a sanha de seus
50
bárbaros e gratuitos inimigos. Estes porém já estavam exaltados pela vista do
sangue das primeiras vítimas e nada os impedia de darem largas à sua fome
de carnagem. Então, um deles, para melhor trucidar os misérrimos foragidos,
resolveu trepar à coberta de um dos ranchos, praticar nela uma abertura e
por esta, metendo o cano da carabina, foi visando e abatendo uma após a
outra as pessoas que estavam, sem distinguir sexo nem idade. Acuados
assim com tão execrável impiedade os índios acabaram tirando do próprio
excesso do seu desespero a inspiração de um movimento de revolta: uma
flecha partiu ‘a primeira e única desferida em todo este sanguinoso drama’
mas essa embebeu-se na glote do crudelíssimo atirador, que tombou sem
vida. A lembrança do que estão se seguiu faz tremer de indignação e
vergonha. Onde haverá alma de brasileiro que não vibre uníssona com a
nossa, ao saber que toda aquela população, de homens, mulheres e crianças
morreu queimadas, dentro de suas palhoças incendiados? (RONDON apud
ARRUDA, 2000: 6-7).
Após as conferências realizadas pelo Marechal Rondon em São Paulo e no
Rio de Janeiro, em 1915, os Irantxe passaram a existir definitivamente para a
sociedade brasileira. Um tipo ideal de indígena que vive na “barbárie”, mas ao
mesmo tempo utiliza-se de um repertório diplomático diferenciado naquele contexto
histórico. A opção parece ser a de dificultar a descoberta da localização exata de
suas aldeias com objetivo claro de evitar conflito e a guerra.
1.8.1. Irantxe: onde estão eles?
Em artigo publicado na revista De La Sociedad Cientifica del Paraguay, no
ano de 1942, o etnólogo Max Schmidt relata como foi sua primeira viagem ao Mato
Grosso entre os anos de 1900 e 1901. Os dados disponibilizados pelo Governo
brasileiro indicaram a existência de 33 grupos indígenas no Mato Grosso. E os
Irantxe ainda não ficaram nessa lista. Somente anos mais tarde o Marechal Rondon
soube de sua existência, através de relatos dos Pareci.
Passaram-se 28 anos até que Max Schmidt pudesse retornar ao Brasil. Ao
chegar no Rio de Janeiro foi direto ao encontro do diretor do Museu Nacional, o
professor Roquette Pinto. Esteve também com Cândido Mariano da Silva Rondon
que, nas palavras do etnólogo, é “(...) a pessoa mais importante no Brasil, quanto a
todos os assuntos relativos a indígena”. (Schmidt,1942:357-358).
Nesse encontro, Max Schmidt, obteve as informações que motivaram sua
expedição para encontrar as malocas Irantxe em janeiro de 1928.
51
O pesquisador partiu da estação telegráfica de Utiariti acompanhado de guias
Pareci com o objetivo de alcançar as cabeceiras do rio Paredão. O tempo chuvoso
dificultou as condições das estradas, por isso, a expedição não chegou ao fim. Dias
depois os Pareci levaram três índios Irantxe até a estação de Utiariti, onde o
etnólogo alemão pôde apenas identificar o tipo físico e os adornos utilizados por
aquele povo tão “famoso”.
1.8.2. A Igreja Católica pelos Irantxe.
Ao assumirem a Prelazia Diamantina em 1930, os jesuítas tinham
convicção de que o tipo mais adequado para seu projeto de evangelização era o
povo Irantxe. Apesar de serem ilustres desconhecidos, se evidenciava um
imaginário diferenciado sobre a índole pacífica daquele povo.
E importante registrar que nas primeiras décadas deste século o fervor
missionário passou a contar com grande incentivo de Roma, principalmente
após a encíclica Rerum Ecclesiae do Papa Pio XI. Em 1925 foi organizada
em Roma a Exposição Missionária Vaticana, marco irradiador de um
renovado apelo missionário. Em 1926 foi realizado no Rio de Janeiro, então
capital da República, a Semana Missionária, seguida da fundação da União
Missionária do Clero e da ocorrência regular de semanas missionárias em
outros Estados. Difunde-se também nas paróquias e colégios católicos a
Obra da Propagação da Fé, a Obra Pontifícia da Santa Infância e outras e
descobrir vocação para as Missões. Esse apelo é renovado por João XXIII,
décadas mais tarde, com a Encíclica Evangelii Praencones. (ARRUDA, 1992:
76).
Como dissemos anteriormente, em 1935, os jesuítas se instalaram em
Mangabal do Juruena tendo em vista a catequese indígena e sertaneja. Circulavam
notícias de trabalhos volantes entre os Nambikwara que não alcançavam o êxito
imaginado. Motivado por essa conjuntura, o superior jesuíta, João Batista du
Dréneuf, foi pessoalmente conversar com Maximiniano Enoré, telegrafista do Posto
Capanema, sobre esses índios nomeados como muito mansos, mas que ninguém
consegue encontrar.
A segunda grande guerra instaurou uma nova ordem mundial. Interesses
econômicos motivaram o Ciclo da Borracha (Marcha para Oeste de Getúlio
Vargas). Homens empobrecidos, oriundos sobretudo do nordeste, invadiram a
floresta amazônica, pelo norte e pelo sul, atingindo locais nunca antes explorados,
como as matas equatoriais das bacias dos rios Papagaio, Sacre Sangue, Arinos,
52
Juruena, Aripuanã e Roosevelt. O processo desordenado de expansão criou
inúmeros pontos de tensão e choques com os índios, causando destruição e morte
entre os povos indígenas habitantes da região.
Tendo ciência dessa situação Vargas tomou medida para acelerar o processo
de ocupação e consolidação da infra-estrutura física em toda a região.
Concomitantemente, apoiou o projeto “catequético” idealizado pelos Jesuítas e a
criação da Fundação Brasil Central. Fundação essa que nasceu com a missão de
fomentar o surgimento de novos municípios na porção Centro Oeste do país. Para
tanto, contava em sua comissão de frente com a Expedição Roncador Xingu, cujo
principal objetivo era conhecer e desbravar as áreas que apareciam em branco nos
mapas.
Diante de toda essa movimentação os jesuítas decidiram contatar os Irantxe
em caráter definitivo. Vale salientar que a partir da metade da década de 1940, o
território Irantxe encontrava-se definitivamente devassado pelas frentes
seringalistas. Além disso, cotidianamente sofriam ataques promovidos pelo
Tapayunas e Rikbaktsa que também se sentiam acuados pela invasão de seus
territórios. Por esse motivo os Irantxe não puderam mais recusar a ajuda dos
jesuítas.
Nesse contexto regional de acirramento de conflitos, em 1945, o SPI funda
nas proximidades de Utiariti o Posto Major Líbano Coluizorecê (Tolosa), com a
finalidade atrair os Irantxe. O Sr. João Climaco foi nomeado chefe do posto.
53
Foto 2: JD – 360: Posto Major Libânio Coluizorecê (Tolosa).
Fonte: Arquivo Missão Anchieta, 1945.
De fato, os jesuítas conseguiram alcançar seus objetivos relacionados aos
Irantxe em 1946. Nesse ano transferiram-se definitivamente para Utiariti. Nesse
sentido destacamos a atuação do Pe. João Dornstaudter que trazia consigo o
compromisso de garantir a sobrevivência dos indígenas pagãos e simultaneamente
54
promover condições para que os seringueiros pudessem trabalhar em paz
17
. Isto
porque considerava que os seringueiros também eram vítimas do projeto econômico
em andamento.
Imagem 2. Autorização
Fonte: Arquivo Missão Anchieta, 1948.
estamos em 1947, e o encarregado do Posto Indígena (PI) Tolosa, Sr.
Silvino, leva sete índios Irantxe até Utiariti. são apresentados primeiro aos
jesuítas depois aos evangélicos. Uma série de informações desencontradas dando
conta de doença e morte em razão aos ataques Tapayunas motivaram uma
expedição até o Paredão “(...) as condições das estradas são péssimas. Estamos
17
Encontrei o encaminhamento acima em janeiro de 2004, em uma das pastas pesquisadas no
arquivo da Missão Anchieta que guardam os registros feitos pelo Pe. João na época.
55
parados no Sacre e chove faz uns três ou quatro dias (...)”. (Arquivos MIA,
Fascículo 17).
O trecho acima citado faz parte de um longo relato, porém, de difícil leitura em
razão da condição de pouca preservação em que se encontra o documento. Em
síntese, o irmão Freitas acompanhado do Pe. João (não era o Dornstauder)
tentaram chegar até o Paredão, mas não conseguiram em razão das condições
climáticas adversas.
No ano de 1948 houve a intensificação do contato com as agências
evangelizadoras. Registros históricos indicam que ocorreram diversas visitas ao
longo do ano. Os Irantxe saíram em busca de ferramentas e proteção contra os
ataques dos Tapayunas.
Foto 3: JD – 273: 63 Manoki em Utiariti, fugitivos dos ataques dos “Ticóli” (inimigos),
13 de agosto de 1948.
Fonte: Arquivo Missão Anchieta, 1948.
No mês de agosto, o Pe. Roberto Bannwarth e o Irmão Freitas,
acompanhados do índio Pareci Zazo, chegaram até o lado direito do rio Cravari onde
encontraram um grupo fugindo dos ataques Tapayunas. Já haviam chegado à aldeia
Matamay, do Capitão Acácio, três meses antes. No final desse mesmo mês, o chefe
56
do SPI manda recolher todos os Irantxe que estavam em Utiariti ao Posto Tolosa. A
situação foi se complicando. Os Irantxe perderam a capacidade de decidir quando e
como fazer contato com os estrangeiros.
Em junho de 1949, o Pe. Dornstaudter constrói uma capela na aldeia
Mãtamay. Essa “obra” marcou definitivamente a presença dos jesuítas entre os
Irantxe e serviu como combustível para o debate sobre a tutela do povo.
No início dos anos 1950 eram péssimas as condições de vida e saúde nas
aldeias Irantxe. O Pe. Dornstaudter e o encarregado do Posto Tolosa trocaram
acusações mútuas e não conseguiram definir uma estratégia conjunta para “salvar”
os Irantxe. Em 1951, os Irantxe enfrentaram uma epidemia de gripe coreana que
vitimou inclusive o famoso capitão Acácio.
Segue-se, então, o debate sobre quem deveria assumir a tutela definitiva do
povo Irantxe.
Em 1953, com o intuito de por fim à polêmica instaurada, Pe. Dornstaudter
realizou viagem de reconhecimento ao território tradicional Irantxe. Visitou
praticamente todas as aldeias ainda existentes. Constatou que, nas proximidades,
dentre as 250 pessoas contabilizadas em 1947 - época do primeiro contato com os
que haviam restado - sobraram, no mês de maio de 1953, apenas 59 indivíduos.
Segue os seguintes dados: em 1947, 258 foram os sobreviventes de ataques
Tapayunas e Rikbaktsa e de epidemias de gripe; em 1948, 90; maio de 1951, 70;
outubro de 1952, 55; maio de 1958, 59; agosto de 1953, 54; março de 1956, 54
(MOURA, SILVA e PEREIRA, 1975: 23). Mesmo assim, o SPI não foi convencido de
que o melhor para os Irantxe seria ficar junto aos jesuítas. Veja também croqui
produzido na época:
57
Croqui 1: Croqui das aldeias Manoki visitadas em 1953 pelo Pe. João Dornstaudter
Fonte: Arquivo Missão Anchieta, 1953.
Em 1954 encerra-se a vida tribal autônoma dos Manoki. As crianças
estavam todas sob os cuidados dos jesuítas no internato. Os adultos dividiram-se
entre a sede da missão em Utiariti e o sítio de Frei Manuel em Diamantino.
No ano 1956 é criada a MIA Missão Anchieta. A partir de então, com
personalidade jurídica própria, os missionários, entre 1956 e 1962, passam a
receber recursos financeiros estatais para pacificar os arredios como, por exemplo,
os Rikbaktsa do rio Sangue, Juruena e Arinos.
O ano de 1957 fica marcado pela retirada definitiva da equipe do ISAMU.
Assim, o SPI, transferiu a tutela e o controle da ação catequética em sua totalidade
para Igreja Católica.
58
Através do reordenamento espacial, os jesuítas promoveram um processo de
re-significação do universo cultural. O trabalho indígena passa ser organizado com
base nas relações capitalistas.
Em Utiariti, além de nossas técnicas de agricultura, os indígenas aprenderam
a lidar com máquinas e ferramentas.
Nesse sentido, os Irantxe destacaram-se dos demais ao demonstrar grande
aptidão com as máquinas: “(...) é, de fato, posso lhe dizer que nunca ninguém
trabalhou como os Irantxe. Tinham grande disposição para o trabalho e um imenso
interesse pelo domínio das máquinas.” (Pe. MOURA, S.J., Janeiro, 2004).
O método disciplinar desenvolvido pelos jesuítas encaixou-se de certa forma
nos esquemas culturais tradicionalmente concebidos pelos Irantxe, nos quais o
trabalho e a cooperação entre as pessoas são valores fundamentais para a
manutenção da existência física e espiritual dos indivíduos e seus grupos.
Tornaram-se aliados dos padres na construção e manutenção diária do
internato que adotaram como sua casa por aproximadamente 15 anos. As opiniões
sobre o tempo em que viveram entre os jesuítas não são unânimes. Nem todas as
histórias são tristes. Entretanto, é evidente que o cotidiano era marcado por um forte
esquema disciplinar, definido conforme a idade, o sexo e a função.
Capitulo II
2.0. Os Manoki
Os Manoki, sociedade indígena de família lingüística isolada tornaram-se
conhecidos pelo nome Irantxe ou Iranche. Denominação que nunca teve nenhum
59
significado para eles. Tal denominação provavelmente lhes foi atribuída pelos Pareci
e adotada pela Comissão Rondon cotidianamente.
Durante muitos anos os antropólogos propagaram conceitos que definiam as
diferentes culturas como sendo universos simbólicos constituídos em si mesmos.
AcredItava-se que as sociedades “primitivas” haviam se formado antes da história.
Por essa razão existiriam eternamente fora do fluxo das mudanças históricas.
Entre os anos de 1950 e 1960, principalmente, essas idéias acabaram
legitimando os ideais de assimilação pretendidos pelo Estado Brasileiro. Acreditava-
se piamente que essas sociedades com formas fixas de reprodução e sem histórias
seriam totalmente absorvidas pela sociedade “envolvente” com um projeto político e
econômico dominante.
Ao consideramos a trajetória do contato percorrido pelo Povo Manoki ao longo
do século XX, é possível compreender porque foram rotulados como sendo o tipo
ideal de povo aculturado, isto é, um povo sem história que absorveu completamente
tudo o que lhe foi imposto sem esboçar qualquer reação.
Entretanto, os que propagaram tal imagem dos Manoki ao longo dos anos
esqueceram-se de que:
A construção, a reconstrução e a destruição culturais são processos
contínuos, mas ocorrem sempre dentro dos campos ou arenas
históricos maiores. Por sua vez, essas arenas são moldadas pelo
funcionamento de modos de mobilização de trabalho social e pelos
conflitos que esses modos geram interna e externamente, dentro de e
entre constelações sociais. (WOLF, 2001:303).
Aos adotarmos tal perspectiva fica bem mais fácil de compreender e aceitar
que o Povo Manoki toma sua forma atual moldado por esse contexto e grandemente
influenciado por suas relações com os povos vizinhos no âmbito do processo de
colonização da região. O avanço das frentes de expansão forçou o reordenamento
das relações entre esses povos; e o confinamento dos Manoki no internato de
Utiariti, sob a batuta dos padres, intensificou os casamentos intertribais: os Manoki
denominam as pessoas nascidas de casamentos em que ambos os conjugues são
Manoki de Kusívero; pessoas nascidas de casamentos em que os conjugues são
Manoki e Kayabi são consideradas Namanhãlu; pessoas nascidas de casamentos
em que os conjugues são Manoki e Tapayuna recebem a denominação Poemia;
60
pessoas nascidas de casamentos cujos conjugues são Manoki e Pareci chamam-se
Kurare. Faz-se necessário ressaltar que apesar das distinções não encontramos
diferenciação de status entre indivíduos. Mais do que isso, curiosamente, eles vêm
substituindo sistematicamente o nome Irantxe, dado de “presente” ao povo, por
Manoki.
Ouvimos o termo Manoki pela primeira vez em maio de 2000. Naquela
ocasião uma equipe da OPAN realizou o DRP Diagnóstico Rápido e Participativo
da Terra Indígena cujo objetivo principal foi o de identificar as melhores
possibilidades de uso e manejo da terra.
Estávamos na aldeia Recanto do Alípio quando este chegou da roça, todo
suado, colocou o saco que carregava no chão e entrou para a casa. Depois de
alguns minutos retornou e disse: “Venham ver, venham ver!”. Foi retirando tudo o
que havia trazido da roça: além de mandioca e batata doce trouxe muito cará roxo e
araruta. Nós, então, pedimos para fazer uma foto, e o Sr. Alípio respondeu: “Pode
tirar, esse aqui!”, apontando para araruta e o cará roxo que representam
respectivamente o pênis e o coração do menino que foi enterrado pela mãe em um
tempo mitológico. Não houve nenhuma interferência da equipe e o velho falava
alegre: “Aqui está, a força do Manoki!”. Dessa forma o nome Manoki ganhou as
aldeias. O velho que nos acompanhou durante os dez dias de trabalho repetia a
frase em todos os lugares e ela se tornou um slogan na campanha pela retomada do
território tradicional.
Com o tempo observamos que o termo Manoki designa todos aqueles que
compartilham dos seus rituais. Assim sendo, passo adotar neste texto o termo
Manoki em substituição a Irantxe. Aproveitamos para informar que, segundo
depoimentos dos mais velhos, quem fez a primeira distinção entre os Manoki do
Cravari e os Manoki do Escondido (Myky) foram os jesuítas como única opção para
garantir a demarcação da Terra Indígena para os 23 sobreviventes do massacre
promovido por Domingos Antonio Pinto na aldeia Tapuru, no inicio do século XX.
2.1. Território
61
Os Manoki compartilham seu mito de origem com outros povos indígenas
habitantes do noroeste mato-grossense. Em um tempo mítico, os Manoki, Kayabi,
Pareci, Enawenê, Nambikwara e Cinta Larga viviam harmoniosamente dentro de
uma grande pedra.
Observa-se que a confirmação desse mito de origem comum pode ser
encontrada nos principais trabalhos de cunho histórico e etnográfico realizados na
região. Dentre esses, destacamos os estudos do Pe. Adalberto Holanda Pereira, S.
J., que se dedicou inteiramente a compreender e registrar as versões apresentadas
por cada um desses povos, sobre sua origem compartilhada.
A narrativa abaixo foi coletada entre os velhos Manoki, durante uma tarde de
conversa na aldeia Paredão, em janeiro de 2005:
(...) Antigamente, nós morávamos junto com outros índios dentro da grande
pedra. Certa vez, um homem muito curioso, quis conhecer o que tinha do
lado de fora. Pensava o tempo todo nisso até que percebeu um pequeno
buraco na parte mais alta da pedra, transformou-se em urubuzinho e foi
conhecer o campo.
Ficou encantado com as belezas que viu. E quando voltou trouxe umas
florzinhas para seus companheiros. A vida dentro da pedra ficou sem graça.
Todos queriam ver o tempo; daí os bichos que entendiam da nossa conversa
resolveram abrir a pedra. As cotias e pacas trabalharam muito para roer a
pedra. Ela ia se quebrando e a gente não conseguia sair. Um dia veio o pica-
pau e disse: Eu vou fazer um furo! Assim, todos nós fomos saindo. Os
primeiros a sair foram os Irantxe, que se sentaram à sombra do Cambará do
brejo, depois vieram os Pareci e Nambikwara que ganharam o jatobeiro; os
Kewa (não-índios) ficaram com a sombra algodãozinho. Todos deixaram a
grande pedra e nossas terras foram sendo divididas. mesmo esse índio
bravo, que come gente é que saíram e já começaram com a guerra! Cada um
ficou com seu pedaço. Só mesmo um velho, bem velho mesmo, não quis sair.
Ele avisou que nós íamos encontrar problemas e a morte! (Relato de José
Alfredo Jalukali, Alonso Werawli, 2005).
De acordo com a memória tribal, ao deixarem a grande pedra, os Manoki
foram viver em um território que se estendia pela margem esquerda do rio do
Sangue e a margem direita do rio Cravari, limitando-se ao sul com o córrego
Membeca e ao norte na junção do rio Cravari com o rio do Sangue. Essa localização
fora apontada inicialmente por integrantes da Comissão Rondon, no início do século
XX, época dos primeiros contatos da sociedade Manoki, com representantes do
estado nacional; foi também sistematicamente indicada pelos Manoki e pôde ser
confirmada por vários pesquisadores em diferentes épocas do século XX: Max
62
Schmidt (1942, 1942a, 1943), Roquette Pinto (1916:16-17), Moura e Silva (1960:5),
Moura e Silva e Pereira (1975:13 e 105), Dornstaudter (s/d).
Mapa 1: Localização
Fonte: Roquete Pinto, 1916.
na última década do século passado, Pivetta (1993), com auxilio dos
velhos, em 1993, reconstituiu mapa das aldeias antigas localizando 27 aldeias com
uma população estimada em mil pessoas.
63
Mapa 2: Território original Manoki
Fonte: Pivetta (1993: 42)
Em 2000, a Fundação Nacional do Índio, no cumprimento de suas atribuições
legais, andamento ao processo 1600/82 que tem como objetivo rever os limites
do território tradicionalmente ocupado pelo Povo Manoki. Para tanto, a portaria nº.
1144/PRES, DOU 09/11/00, instituiu grupo técnico coordenado pelo antropólogo
Rinaldo S. V. Arruda.
Naquela ocasião, Arruda pôde ratificar os registros históricos existentes que
subsidiaram a produção do relatório circunstanciado de identificação e delimitação
da Terra Indígena Manoki, com superfície e perímetro de 252.000 hectares e 289
km, respectivamente, estando localizada no município de Brasnorte, Estado de Mato
Grosso
18
.
2.2. Território Atual
18
O referido GT compreende apenas os Manoki que vivem na região do Cravari. Os Manoki da Aldeia
Japuira, T.I Myky, ainda esperam pela revisão de seu território tradicional.
64
Os Manoki localizam-se em duas Terras Indígenas no oeste do Estado de
Mato Grosso, ambas pertencentes ao município de Brasnorte: a Terra Indígena
Irantxe, na região do rio Cravari, e a Terra Indígena Myky, às margens do rio
Papagaio. A primeira possui seis aldeias: Paredão, Recanto do Alípio, Perdiz, Asa
Branca, Treze de Maio, ou aldeia da Paz, e a maior delas, Cravari.
A Terra Indígena onde vivem os Manoki do Cravari foi criada pelo decreto
63.368, sancionado em 8 de outubro de 1968, tendo estabelecido o território Manoki
da seguinte forma “(...) a área limitada pela margem esquerda do Rio Cravari da foz
do Córrego Paredão até suas cabeceiras, daí por uma linha seca até as cabeceiras
do Córrego grande, descendo até sua foz no Rio Cravari (...)” (MOURA e SILVA e
PEREIRA, 1975:15). Um acordo firmado entre representantes da missão Anchieta e
da Fundação Nacional do Índio fixou uma área de 46.790 hectares. Foi homologada
em 1987, constando 45.555 hectares numa região de cerrado tradicionalmente
habitada pelo Povo Pareci.
Em 1971, quando repercutiram as notícias sobre a existência de um grupo
isolado (Myky), os Manoki passaram a reivindicar novos limites para suas terras, na
direção desses “arredios”. A ampliação foi parcialmente feita em 1977. Mas esses
limites foram homologados em 1990 para, logo em seguida, serem contestados
pelos índios. No ano de 1991, procuraram em Cuiabá o antropólogo Darci Pivetta
para que juntos pudessem retomar a luta por suas terras tradicionais.
Mesmo diante de todas as evidências históricas apresentadas, o governo
brasileiro está protelando a decisão final sobre a ampliação da Terra Indígena
Manoki. Ansiosos, os mais velhos argumentam que nos anos 70 não tinham uma
compreensão adequada do real significado das terras. Afirmam que toda negociação
foi encaminhada pela MIA Missão Anchieta, sem maiores esclarecimentos, além
disso: “(...) nós viemos para porque ainda tínhamos medo dos Tapayunas (...)”
(Celso Xinui, 2004). Por essa razão, ficaram definitivamente fora de seu habitat
natural original, constituído pelas áreas florestadas à direita do Rio Cravari e à
esquerda do Rio Sangue.
É oportuno lembrar que as primeiras notícias sobre um grupo Manoki arredio
datam de 1953. Os Manoki do Cravari anunciaram a existência de uma turma
65
isolada rumo ao norte. No início dos anos 60 foram realizadas pelo menos duas
excursões em busca dos arredios, sem sucesso. Acreditava-se que o motivo da
cisão do grupo teria sido uma rixa interna.
Em de julho de 1969, os Padres Thomaz, Edgard e Dornstaudter
sobrevoaram as cabeceiras do córrego Rico, pois um seringueiro goiano informava
que havia vestígios de índios naquele lugar. Localizaram duas aldeias nas
cabeceiras do córrego Rico: uma a 16 km e outra a 18 km do rio Papagaio.
Suspeitavam do grupo Múkú arredio. Viram os índios, jogaram do avião alguns
presentes e bateram fotografias das aldeias. (MOURA e SILVA e PEREIRA, 1975:
25).
Dois anos mais tarde, em 1971, foi feito um novo sobrevôo e outra aldeia foi
localizada num córrego a 20 km da antiga aldeia que foi batizada de Escondido por
estar encoberta pelo mato (ARRUDA, 2000:7). Organizaram uma expedição
terrestre e a equipe composta por missionários e dois Manoki acabou realizando o
primeiro contato com um grupo de 23 pessoas.
2.3. A Vida e o Cotidiano
O que a sociedade Ocidental caracteriza como história, os Manoki
compreendem como sendo o caminho da vida; entenda-se que viver é sempre
sinônimo de conviver. Por essa razão, os Manoki compartilham com os espíritos de
seus antepassados todo o produto alcançado através do trabalho realizado em
regime permanente.
Essa constatação nos causou uma inquietação tão profunda que, por vezes,
chegamos a considerar a possibilidade de não sermos realmente capazes de
traduzir a realidade ali vivenciada em um texto. Felizmente logo constatamos que
através da compreensão dos aspectos míticos e de caráter sagrado, que envolvem a
vida e o cotidiano desse povo, poderíamos alcançar as chaves que dão acesso ao
mundo Manoki. Em se tratando de mito são inúmeras as possibilidades de
interpretação. Nesse caso, de modo particular, analisaremos as relações
constituídas entre os homens e os alimentos por eles produzidos. Isto porque
66
observamos que os alimentos, além de garantirem a existência física dos homens,
servem como veículo de ligação entre o mundo humano e o espiritual.
A compreensão do sistema de prestações totais utilizado pelos Manoki é de
grande valia para compreender melhor o modelo de organização social adotado pelo
povo, bem como sua interação com a trajetória de contato estabelecida entre eles e
os representantes da sociedade nacional no início do século XX.
Para tanto, iniciaremos nosso percurso rumo ao “universo” Manoki com a
narrativa mítica a seguir:
Vou te contar a história do Yetá. O Yetá foi um presente que Irantxe recebeu
do céu. Um dia o homem estava sozinho na aldeia e escutou o canto do
Maka’hy, que hoje nós chamamos de sabiá. Não era o sabiá. Só tinha o canto
(som), bem bonito. Como se fossem flautas que as mulheres nunca podem
ver ou falar sobre o assunto. (Atanásio Jolasi, 2005).
A narrativa mítica contada pelo senhor Atanásio Jolasi recebeu tom
emocionante. O grupo de homens que estava presente na escola da aldeia Paredão,
naquela tarde de domingo, manteve-se atento a cada nova revelação. Apenas os
velhos Alonso Werawali e José Alfredo Jalukali interrompiam a narrativa com o
intuito de ilustrar a história.
É importante registrar que encontramos um certo grau de dificuldade ao
buscar a identificação das habilidades e distinções do conjunto de divindades que
compõem o plano celeste segundo a crença do Povo Manoki.
Tivemos a oportunidade de conversar, em outros momentos posteriores,
sobre o mesmo tema com outros homens. Porém, todos relatam existência dos
mesmos grupos. Alguns velhos dão conta da possível existência num tempo remoto
de outras divindades, mas não são capazes de dizer quando e nem quais seriam.
Diante desse quadro podemos afirmar que o plano celeste Manoki é composto
por espíritos humanos que habitaram suas aldeias aqui na terra; com alguns
mantiveram relações de parentesco e afinidade, enquanto com outros, como é o
caso de Mãxapuli, encontramos indicações de animosidade.
O fato é que os relatos Manoki apresentam entidades que podem ser
identificadas como gente ou pequenos animais, prioritariamente pássaros. Para
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nossa surpresa, alguns indicam Palusi (coruja) como sendo também pertencente ao
grupo do sapo fêmea.
Pode ser que em algum outro momento da história novas pesquisas sobre o
tema possam melhorar tais definições. Acreditamos estar diante de um problema de
tradução para a língua portuguesa. Por isso, optamos por manter as indicações
dadas pelos próprios Manoki durante a pesquisa de campo.
Nosso maior interesse nesta pesquisa é o de tentar compreender melhor
como o sistema religioso Manoki ajuda a definir um determinado padrão de
comportamento social nas aldeias de forma a interferir diretamente nas relações
interpessoais estabelecidas cotidianamente.
O homem maravilhado com o canto divinal do Maka’hy (Sabiá) pediu-lhe que
não fosse embora. Então, prometeu retornar na próxima lua cheia. Rapidamente, o
homem que em razão desse fato tornou-se o primeiro Tikiandá (chefe) Manoki
reuniu-se com os outros homens adultos da aldeia e relatou o que havia acontecido.
Segundo contam os velhos Manoki, o clima era de desconfiança diante da tal
história. Porém, em comum acordo resolveram fazer uma casa para abrigar os
presentes que lhes seriam trazidos por Maka’hy.
Conforme combinado Maka’hy retornou e trouxe: 1º) Mato; 2º) Pinxinxi (Beija
flor); 3º) Nhãuli (jacamim), 4º) Palusi (coruja ou sapo fêmea) e 5º) Naripiju (“chapéu
velho ou curió”), 6º) Mãxapuli, 7º) Muru ou Wuru (segundo informações este não
existe mais), 8º) Walaluku (grupo de mulheres que ajudavam na roça).
“(...) A cada nova lua cheia ouvia-se o canto do Maka’hy acompanhado de um
som (canto) ainda mais bonito. Assim sendo, passaram-se oito luas até Maka’hy
dizer-lhes que estava completo, não faltava nem mais um canto (...)” (Atanásio
Jolasi, 2005).
Num instante para algumas considerações dos outros homens ali presentes, o
senhor José Jalukali tomou a palavra dizendo:
Um Tikiandá (chefe) morava sozinho em uma pequena aldeia na sua casa,
tinha a esposa e seu único filho. O homem saía quase todos os dias para buscar o
que comer. A comida não era muita, mas o Tikiandá trazia sempre bastante mel. O
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menino vivia triste porque seu pai não lhe dava atenção, preocupado que estava
com a falta de comida na casa. Um dia, mãe e menino saíram pra passear. pelo
meio do caminho o menino pediu para a mãe que gostaria de ser enterrado. A mãe
ficou bastante surpresa com o pedido, mas logo o menino foi dizendo: “cava um
buraco raso e deixe-me de bruços”. A mãe ficou muito triste, pois era esse menino o
seu único filho. O menino despediu da mãe pedindo para ela não chorar, “eu não
vou morrer!” Como última palavra o menino falou: “Quero ficar com a cabeça para
fora. E não se esqueça de fazer um cesto (Xiri)”. A mãe saiu correndo sem olhar pra
trás. O barulho era forte mesmo.
“(...) Esse barulho foi trabalho feito pelo Yetá no lugar da mata, deixou
espaço para o nascimento da roça (...)” (Alonso Werawali, 2005).
“(...) O pai insatisfeito voltou no lugar com um Xiri bem grande para buscar
seu filho. Nesse momento, teve uma grande surpresa ao encontrar uma bela roça
onde seu menino havia sido enterrado (...)” (Celso Xinui, 2005).
De fato, o menino não havia morrido. Cada parte de seu corpo transformou-se
em um alimento que faz parte da alimentação tradicionalmente consumida pelos
Manoki.
Vejamos: as unhas (amendoim); as costelas (feijão costela); o estômago
(feijão fava); a cabeça (cabaça); o fígado (cará); o coração (cará roxo); o joelho
(cabaça pequena); os braços (mandioca brava); as pernas (mandioca mansa), o
pênis (araruta).
Antes de prosseguir com a narrativa gostaríamos de compartilhar o seguinte
pensamento:
O fato de o mito cosmogônico ser considerado o modelo exemplar de toda
“criação” é admiravelmente bem ilustrado pelo seguinte costume de uma tribo
norte-americana, os Osage. Quando nasceu uma criança Osage, convoca-se a
presença de “um homem que falou com os deuses”. Ao chegar à casa da
parturiente, ele recita do recém-nascido a história da criação do Universo e dos
animais terrestres. Somente depois disso é que o bebê é amamentado. Mais
tarde, quando o bebê quer tomar água, chama-se novamente o mesmo homem
ou outro. Mais uma vez ele recita a Criação, completando-o com a história da
origem da água. Quando a criancinha atinge a idade de ingerir alimentos
sólidos, volta o homem “que falou com os deuses” e recita novamente a
Criação, mencionando também desta vez a origem dos cereais e de outros
alimentos”. (ELIADE, 2006:35)
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Conforme havia prometido, o pai encheu o Xiri e voltou para casa chorando e
escondeu os produtos da roça. O marido e a mulher tiveram uma discussão, mas a
mulher não se importou, pois não estava triste. Esperou seu marido sair para colocar
um pedaço de mandioca no borralho para assar.
Uma formiguinha carregadeira levou um pedacinho da mandioca assada para
a casa vizinha. No dia seguinte todos queriam saber de qual roça tinham vindo os
produtos que estavam na casa do chefe.
Sua mulher, no dia anterior, havia replantado o cará roxo (o coração) e
parte dos ramos de mandioca que nasceram bonitas e fortes. Por essa razão, o
Tikiandá viu-se obrigado a repartir com as outras famílias o produto da roça, ou seja,
seu próprio filho.
Ao término das palavras proferidas pelo ancião percebemos que se não
estivéssemos atentos poderíamos nem notar o maior ensinamento contido nessa
bela história. Lá no final o senhor Jalukali contou que, ao perceber a beleza e a força
com que nasceram os ramos de mandioca que sua mulher havia replantado, o
Tikiandã decidiu compartilhar os demais produtos da roça.
Ao compartilhar seu próprio filho com seus companheiros o homem
demonstrou que a maior qualidade do Manoki é a generosidade. Lembre-se de que
o pai e filho não mantinham boas relações. Mesmo assim, o filho vendo as agruras
do pai na luta diária em busca do alimento pediu à sua mãe que o enterrasse.
O pai, por sua vez, ao perceber a ausência do filho sentiu-se culpado.
Sentimento esse que fora abandonado após constatar a força e a beleza dos ramos
de mandioca. Razão pela qual decidiu compartilhar para sempre os produtos da roça
com as outras famílias da aldeia. Nesse momento selou-se a paz e o mundo Manoki
ganhou uma nova harmonia.
De fato, ao vivenciarmos o cotidiano de suas aldeias é possível notar o
grandioso esforço feito por eles para que sua convivência entre os “invisíveis” com
os quais compartilham o espaço de suas aldeias seja o mais equilibrado possível.
Por isso, neste instante, propomos uma pausa no tema da religiosidade
Manoki. Iremos, agora, voltar nossa atenção para a vida cotidiana e social.
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Em princípio, pode-se pensar que a pausa proposta causaria uma ruptura no
texto. Todavia, desejamos entender como se a interação entre o visível e o
invisível no contexto das relações sociais constituídas nas aldeias. Para tanto,
tomaremos o casamento como ponto de partida.
2.3.1. O Yetá
Talvez essa discussão possa parecer desnecessária nesse momento
contudo, pareceu-nos uma boa alternativa para irmos nos aproximando do tema
Yetá, tão complexo e intrigante, de um modo mais suave.
O tema casamento é sempre motivo de “polêmica” entre os Manoki,
principalmente no que diz respeito às histórias que dão conta do período em que
viveram no internato de Utiariti.
Em campo tivemos a oportunidade de debater com algumas pessoas sobre o
tema. Porém, nenhum relato foi tão esclarecedor quanto o depoimento dado pelo Sr.
Miguel Taparasi e sua esposa Dolores, um típico casal Manoki.
Passamos uns três dias tentando encontrar alguém na aldeia Cravari que
pudesse nos esclarecer dúvidas relacionadas ao tema. De fato, consegui coletar
diversas informações. Contudo, todas fragmentadas. Num fim de tarde, cansado,
estávamos sentados na porta do Posto de Saúde a algum tempo observando
a brincadeira das crianças.
De repente avistamos ao longe o nosso velho amigo Tikiandá Miguel Taparasi
e sua esposa Dolores. Eles chegavam com a finalidade de visitar a equipe de saúde.
Ficamos por ali por mais de uma hora jogando conversa fora. Antes das despedidas
pedimos ao Sr. Miguel se poderíamos marcar um momento para falarmos sobre o
assunto muito importante para os Manoki: o casamento. Ele prontamente disse
concordou com o pedido.
Então, no dia seguinte, por volta das 9h00 da manhã fomos procurá-lo em sua
casa, conforme o combinado.
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Dolores recebeu-nos entre abraços e sorrisos e foi logo me dando café fresco,
pão caseiro e um banco para sentar enquanto aguardávamos Miguel. Ele chegou e
eu lhes expliquei a pesquisa que estava realizando com os Manoki. Sem nenhuma
objeção o Sr. Miguel iniciou a conversa.
– Mas, me diga, o que você quer saber?
Eu gostaria de entender melhor como os Manoki escolhem suas esposas e
seus maridos.
– Ah! Hoje é como vocês kewa (branco).
– Não, quero saber primeiro do tempo antigo. Depois vamos falar de hoje.
Dolores interrompe.
– Eu quero falar!
– Então, vamos lá!
– Entre nós o casamento se resolve bem mais fácil.
– Como assim?
Não tem que pensar muito. Quando a gente é criança sabe com quem
pode casar. Explica Miguel!
Dolores tomou a palavra:
– Que bom! Vamos lá!
– Você precisa saber das obrigações que hoje não se cumpre mais!
– Do que a senhora esta falando?
Estou falando dessa gurizada que não quer mais trabalhar e fazer roça.
Ninguém respeita o sogro e a sogra como antigamente.
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Considerando as informações oferecidas pelo casal que posteriormente foram
complementadas com ajuda da irmã Elizabeth Amarante e do professor Atanásio
Jolasi. Apresentamos algumas considerações a seguir:
A partir da união estabelecida entre um homem (nary) e uma mulher (naky) o
casal assume socialmente a dominação yatamã (esposo/esposa) e dessa união
nascem os filhos que são chamados de àtynã. A partir desse momento o jovem
casal envolve-se com uma série de novas atribuições em suas vidas. O homem
“deixa” de ser filho de seu pai (onã) passando a respeitar mais fortemente seu sogro
(koknã) que o considera desde o nascimento como yunã, filho da sua irmã. O
jovem casal estabelece sua moradia na casa da esposa que preferencialmente tem
suas tarefas domesticas cotidianas organizadas por sua mãe.
Enquanto isso os homens firmam compromissos de trabalho e alianças
políticas fundamentalmente com os irmãos mais velhos de sua esposa, jákanã
(cunhado), para que juntos possam prover o sustento da família.
Na prática, os Manoki consideram o irmão de seu pai (Majã) como sendo seu
pai verdadeiro. Assim sendo os casamentos não podem ocorrer entre os
descendentes considerados de mesma linhagem. Entretanto, os filhos de um
homem devem constituir matrimônio com os filhos e filhas da irmã do seu pai
(maknã), isto é, o casamento preferencial é entre primos cruzados. De fato o casal
tinha forte interesse em apresentar suas reflexões sobre a vida na aldeia nesse
início de século XXI. Comentaram sobre o trabalho assalariado e apontaram o
desejo por “coisas do branco” como sendo o grande vilão da história atual dos
Manoki.
O debate foi tão intenso que nem vimos o tempo passar. Quando nos demos
conta já era hora do almoço. Então, eu agradeci dizendo que voltaria um outro dia.
O Sr. Miguel e sua esposa Dolores convidaram-nos para retornar na parte da
tarde, pois lhes tinham avisado que D. Dometila Naãsi, esposa do velho Maurício
Tupxi (índio da paz), estaria lhes fazendo uma visita.
Lá pelo meio da tarde retornei para casa do simpático casal e tive uma grande
surpresa. Encontrei Dometila Naãsi, sentada num banco de madeira, saudando o
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senhor Alípio Xinuli e o velho Alonso Werawali que também chegaram naqueles
instantes. Foi uma grande “festa”, no melhor estilo Manoki.
Falamos de quase tudo, creio eu. E pelo meio de nossa confraternização o
Sr. Miguel Taparasi resolveu socializar a conversa que nós tínhamos tido na parte
da manhã.
E assim, como num passe de mágica, os visitantes seguiram com a mesma
linha retórica adotada pelo casal Dolores e Miguel anteriormente.
Ao perceber um breve espaço para que eu pudesse fazer uso da palavra pedi
a eles que me explicassem melhor como era no tempo dos antigos.
O velho Alonso tomou a palavra e disse:
– Você quer mesmo saber?
Eu respondi balançando a cabeça. E ele começou a contar como era no
tempo antigo.
Era muito melhor porque não tinha baile! Manoki mesmo, dançava o
Yakuli.
Antes de continuarmos gostaria de abrir um parêntese para explicar que
Yakuli é uma flauta feita de taquara. São cinco varas justapostas, e a maior delas
deve ter uns 40 cm de comprimento por 2 cm de diâmetro. As flautas pintadas com
urucum e os tubos são amarrados com envira ou fios de algodão.
A intensidade da melodia pode variar conforme o horário e a habilidade do
músico responsável pela condução da dança.
Alonso Werawali continua:
Os Manoki andavam visitando em todas as aldeias sem pressa e nem
preguiça. No tempo do milho todos os Tikiandá (chefe) sabiam que ia chegar
gente. Por isso, mandaram fazer bastante chicha de milho para esperar os
companheiros. Enquanto uns tocavam Yakuli no centro da roda, outros rodavam de
braço dado com uma companheira.
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O velho Alonso fez uma pausa, e o senhor Alípio emendou atrás dizendo:
A gente rodava a noite toda. Dançava com todas as mulheres sem ciúme.
Pela manhã os homens solteiros saiam para caçar, afinal, o rapaz que encontrava
moça solteira tinha que trazer um bom pedaço de carne para o seu futuro sogro.
O depoimento foi coletado na aldeia Cravari, no início do mês de fevereiro de
2005. O tema casamento permeará os próximos itens desse capítulo. Por isso,
concluiremos temporariamente o tema com o depoimento da Sra. Domitila Naãsi.
Permaneci anotando essas informações, enquanto eles continuavam a
conversar na língua Manoki.
A Sra. Domitila Naãsi virou-se em minha direção e disse:
– É meu filho! Hoje, as moças não sabem mais os cantos que acompanham o
Yakuli e os moços não querem mais caçar. Fico preocupada as turmas de nossas
famílias.
Em sua fala, a Sra. Domitila Naãsi aponta duas questões fundamentais para
compreendermos a organização Manoki:
1ª) A época do Yakuli promovia grandes festanças dentro do território Manoki.
A partir desses eventos, os rapazes freqüentemente retornavam para suas aldeias
de origem trazendo esposa.
2ª) As jovens não necessariamente pertenciam ao grupo da aldeia do seu
futuro esposo Manoki. Isto porque os Manoki mantinham laços cordiais e de
amizade com vários de seus vizinhos.
Concluir mais uma etapa de trabalho em campo é sempre uma satisfação. Ao
analisar os registros realizados em nossos cadernos de campo, observamos certa
lacuna no que se refere ao nascimento e morte entre os Manoki. Sempre
encontrávamos obstáculos para dialogar sobre o tema. De fato nunca encontramos
as verdadeiras razões para o surgimento de tais obstáculos. Em certo momento tal
questão causou-nos até certo mal-estar.
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Tendo em vista, a receptividade do casal Miguel e Dolores retornamos em
outra ocasião para tentar buscar as informações que nos faltaram, pois havíamos
conversado longamente sobre o casamento. Vale observar que as informações a
nós oferecidas foram complementadas em um momento posterior com ajuda de
Inocêncio, Isabel e Kamunu Myky moradores da aldeia Japuira em novembro de
2005.
2.3.1.1. Nascimento
Dentre tantas questões que surgiram durante nossas conversas à idéia de
concepção foi uma das mais interessantes que já tivemos a oportunidade de captar.
As informações são um pouco confusas, talvez porque os Manoki tem
conhecimento da teoria ocidental que explica a reprodução humana: encontro do
óvulo com o esperma.
Conforme os Manoki, a alma da criança está pronta. Assim sendo a mulher
deve recebê-la como um presente trazido dos céus pelos seus antepassados.
O útero materno é na concepção Manoki a primeira casa onde se mora
quando se é pequeno. Seu pai o chefe da casa tem a maravilhosa função de lhe dar
os primeiros ensinamentos para vida: “(...) O pai com muita paciência vai lhe dizendo
o quanto está sendo esperado (...)”. (Miguel Taparasi, 2005).
O ato sexual serve apenas para fortalecer o corpo físico da criança. Entre
risos contou-me D. Dolores: “(...) O meu cunhado pode ajudar a fazer a criança, mas
tem compromisso de contribuir com seu sustento até ficar com uns dez anos (...)”.
Isto porque as almas dos seus antepassados retornam ao convívio físico de
seus parentes em algum momento de sua existência.
A criança chega no mundo físico pela mão das avós. Porém a decisão sobre
qual o nome mais adequado para aquela criança é da avó paterna. Após o
nascimento, a família, como um todo seguirá uma rigorosa dieta alimentar e seus
pais devem manter-se interditados para o sexo durante um período de até um ano.
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Identificamos que normalmente um intervalo de dois anos entre uma gestação e
outra.
As crianças dão sentido e ritmo a vida Manoki. Atuam como importante elo de
ligação entre seus pais pois os Manoki entendem que a união de um homem e
uma mulher pode garantir a existência mutua dos indivíduos.
O conceito de coexistência permeia todo o processo de vida cotidianamente
estabelecido pelos Manoki. As relações vivenciadas entre homens e mulheres
servem como um bom exemplo para que possamos dar os primeiros passos em
direção a compreensão das relações entre Yetá e os humanos.
Os Manoki contam que no começo não sabiam ao certo como utilizar aqueles
“presentes” trazidos por Maka’hy. Houve muita conversa e aos poucos foram
experimentando essas diferentes forças com as quais compartilham a vida e o
cotidiano de suas aldeias. Apesar do Yetá ser considerado o maior e mais
importante entre todos os espíritos que compõem o universo celestial Manoki, os
indivíduos não conseguem marcar grandes distinções entre eles.
O mais importante em culturas muito visitadas por espíritos, onde o mundo
propriamente dito é uma ponte como as do Haiti, da África Ocidental, da
Melanésia e dos povos do círculo polar que classificamos de esquimós –, é
conhecer a natureza e o nome dos diversos visitantes, seu escalão, seus
poderes e suas esferas de ação. Estas culturas têm vigias e leões-de-chácara
que conhecem maneiras de barrar a entrada do que não pertence àquele
local naquele momento. (HILLMAN, 2001:121).
Assim sendo, seguimos em busca da melhor maneira apresentar para aos
leitores o universo do Yetá passo a passo.
2.3.1.2. O Primeiro Contato
Os rapazes têm seu primeiro contato com o universo ritual do Yetá entre onze
e treze anos de idade. Ao completarem essa idade têm o nariz furado em uma
grande festa pública. O furo é feito na parte interna do nariz pelo irmão da mãe que
é o sogro preferencial daquele rapaz ao alcançar a maturidade.
Logo após esta grande festa o Yetá deve sair ao terreiro. Daí os rapazes que
participaram da furação de nariz são levados para a casa onde vivem Yetá e os
77
outros companheiros em tempos rituais. Por ficam reclusos entre sete e dez dias
alimentando-se de produtos da roça tradicional, além da chicha de cará roxo.
Todos esses alimentos foram primeiramente oferecidos às entidades e podem
ser manuseados pelos mais velhos.
Os rapazes recebem a visita dos anciãos da aldeia entre duas e três vezes
por dia, e não devem conversar entre si durante o período de reclusão.
Após a conclusão desse período de iniciação os rapazes estão aptos para
os trabalhos nas roças comunitárias e têm a obrigação de tornarem-se guardiões
dos segredos que envolvem o Yetá, para sempre. Entretanto, somente após
constituir-se como chefe de família, isto é, ter esposa e filho, que poderá
compartilhar o uso dessas forças em caráter definitivo. Exemplo: Pinxinxi (“beija
flor”), Palusi (“coruja” ou “sapo fêmea”), Naripiju (“chapéu velho ou curió”).
2.3.1.3. Homens e Espíritos Guias.
Ao tornar-se adulto um homem compartilha as forças de um espírito sagrado
que deve acompanhá-lo até o fim de sua vida nessa terra. Isto porque o espírito de
um Manoki não se acaba, ele apenas vai viver em outras terras e, às vezes, retorna
para sua antiga aldeia com objetivo de visitar seus parentes. Nessas ocasiões
emprestam corpos de pequenos animais. Por esse motivo é comum, ao cair da
noite, escutar os velhos chorando bem baixinho, pois naquele momento estão
lembrando nominalmente de todos os que já partiram desse mundo.
2.3.1.4. As Turmas
Entre os Manoki não existe um único chefe poderoso que define os trabalhos
e ordens. Considerando a organização social e política do estado brasileiro, esse
78
é sempre um motivo de confusão, pois os órgãos oficiais querem sempre falar com o
“grande chefe”.
Para os Manoki a palavra que designa o chefe, Tikiandá, é derivada de
Takaá: um espírito superior, em português, literalmente, “aquele que sabe”. Este é
que tem a função de orientar os trabalhos comunitários, sendo o líder da turma.
As turmas formam-se no âmbito doméstico e levam em consideração os
compromissos formados entre sogro e genro, segundo os padrões de
uxorilocalidade, ou seja, o genro deve obrigações de trabalho e lealdade política ao
sogro. Tais relações tendem ao equilíbrio, pois, cada homem adulto, não se pode
esquecer, se relaciona com um espírito guia que forma o conjunto das forças
lideradas por Yetá. Segundo essas definições, quando divergências entre
indivíduos as aldeias são desmembradas. De fato observamos que as novas aldeias
lideradas por outro Tikiandá surgem após o genro cumprir seu período de serviços
prestados ao sogro: “(...) Um rapaz bom de serviço tem que trabalhar duro uns 5
anos para seu sogro. Depois ele pode ter sua própria casa. Se não fizer isso feio
para as famílias (...)”. (Celso Xinui, 2005).
Assim surgem novas aldeias lideradas por um outro Tikiandá. Entretanto, vale
salientar que após a separação as relações voltam ao normal: “(...) temos medo da
reação do Yetá! (...)”. (Celso Xinui, 2005). Mas Celso também fez referência ao
chamado Xõpy, uma espécie de feitiço. Tempos depois compreendemos que
quando uma pessoa comete algum ato socialmente “condenável” estará sujeita à
falação, que produzirá um efeito negativo. Em casos extremos, ela poderá
desequilibrar um organismo até a morte.
2.3.1.5. A Origem dos Grupos ou Turmas
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Os Manoki não atribuem sua origem à formação de clãs. Reconhecem
claramente que sua origem enquanto grupo social está intimamente ligada aos
casamentos e rituais que foram sendo compartilhados ao longo da história.
Pode-se afirmar que até a década 1870, do século XIX, época do I Ciclo da
Borracha, os diversos grupos que habitavam o noroeste mato-grossense viviam em
relativa harmonia.
Identificamos, conjuntamente com os Manoki, a existência de pelo menos
quatro grupos que podem indicar as origens das relações que caracterizam o grupo
que se autodenomina Manoki no século XXI.
Nossa observação pode ser ratificada pela fala da Sra. Angélica Kamunu:
“(...) Olha, um dia nós fomos diferentes. Meu pai era Poemia, minha mãe era
das turmas de Kusívero, meu velho é Kurali, parente de Mane Maria. Então, meus
filhos são Manoki! Hoje são tudo Manoki (...)”.
Veja o quadro:
Grupos Aldeias Chefe
Kusívero “os verdadeiros” Matama’y Acácio
Kurali Pareci Alory Manuel Maria
Poemia Beiço de pau Poiluka Antonio
Akomia Tukano Talukame Kanuto
Embora os Kusivero em alguns momentos se declarem como os
“verdadeiros”, não identificamos entre os Manoki grandes distinções que pudessem
atribuir maior ou menor peso para algum dos grupos acima citados, na formação da
identidade Manoki.
Cada um dos chefes citados no quadro acima é lembrado por ter uma
habilidade que os diferenciava: Acácio era considerado um grande caçador; Manoel
Maria relacionava-se com a magia e era um grande pajé; Antônio sabia pescar e
organizava bem o trabalho das mulheres em tempos de rituais; e Kanuto foi o maior
guerreiro Manoki.
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É importante notar que as características apontadas são valorizadas em
qualquer um dos homens que vivem na aldeia, entretanto, para tornar-se um
Tinkiandá um homem deve ser paciente, generoso e saber compartilhar os produtos
alcançados através do trabalho.
As turmas formam-se no âmbito doméstico e levam em consideração os
compromissos firmados entre sogro e genro: “(...) depois do casamento eu tenho
obrigação de ajudar meu sogro por toda a vida. A cada ano tenho que preparar a
roça e doar tudo para minha sogra. Eu preparo o terreiro e faço o plantio. Mas, é
minha mulher e minha sogra que vão administrar a roça (...)”. (Manuel Kanuxi,
2006). Esse compromisso é mais intenso nos primeiros dez anos do casamento,
sobretudo, quando se trata do primeiro filho de um casal. Passado esse período de
maturação um homem já pode deixar a aldeia do sogro e formar sua própria aldeia.
A separação das aldeias é sempre motivada por algum desentendimento ou
“falação”, que pode gerar xõpy (feitiço). Após a constituição da nova aldeia com seu
respectivo chefe tudo volta ao normal. É importante lembrar que o homem casado
está habilitado para liderar o ritual do Yetá, pois é guardião de um dos espíritos
sagrados para os Manoki.
2.3.1.6. A roça
Entre os Manoki encontramos dois tipos de roça: as comunitárias e as
familiares. Ambas seguem o calendário que respeita o ciclo da natureza.
As roças comunitárias são sempre realizadas com auxílio das forças
“invisíveis” liderados pelo Yetá. Cada um desses espíritos tem uma função
determinada, por exemplo, Mato e Nhauli são espíritos muitos fortes. Por isso, são
responsáveis pela derrubada que ocorre nos meses de seca. Pulusi toma conta da
catação de paus e raízes depois das queimadas no final desse mesmo período.
81
Imagem 3: Calendário do Povo Myky O calendário ilustra os alimentos tradicionalmente consumido
pelos Manoki/Myky durante um ano.
Fonte: Escola Estadual Indígena Xinui Myky.
Naripiju fica encarregado de animar a turma fazendo brincadeiras e buscando
mel para os outros companheiros. Pinxinxi é o companheiro de Naripiju e sua
principal função é “agradar as mulheres”. Entretanto, é importante observar que a
mulher é sempre prioridade, pois a roça feita pelos espíritos é doada para as
mulheres, prioritariamente, a sogra.
2.3.1.7. O Começo dos Trabalhos
Como vimos, Maka”hy trouxe o canto do Yetá e entregou-o aos Manoki.
Cada homem adulto recebe as forças “invisíveis” de um espírito que vai auxiliá-lo em
suas tarefas sociais e rituais durante a vida.
De acordo com o ciclo ritual em cada época de plantio, colheita ou caçada,
uma dessas forças espirituais assume a tarefa de movimentar os trabalhos. O
homem que compartilhará tais trabalhos com seu espírito guia recebe um aviso dias
antes como uma “premonição” de sua chegada. Numa reação em cadeia cada um
dos homens e seus espíritos guias vão sendo avisados. Apenas um companheiro
82
homem fica na aldeia para organizar o trabalho das mulheres e a recepção dos
outros homens e seus espíritos guias em seu retorno. Aqueles que permanecem na
aldeia atuam como “festeiros”; são eles os responsáveis pelo preparo do beiju e das
chichas que serão oferecidas durante o ritual.
Os espíritos deixam a aldeia logo ao amanhecer. Embora afirmem que nem
sempre as forças espirituais têm relações de parentesco na terra, é possível notar
que as turmas de trabalhos são praticamente “as mesmas” que realizam os rituais.
Naripiju é o primeiro a sair no terreiro. Ele fala alto para chamar todos os
outros. Enquanto isso as mulheres pedem ao Pinxinxi que traga bastante lenha.
Os espíritos ficam fora da aldeia em torno de três ou quatro dias. Ao retornar,
recebem do companheiro homem (festeiro), tudo o que foi cuidadosamente
preparado pelas mulheres. Assim seguem para casa do Ye onde compartilham
entre si todo o alimento disponível.
Os espíritos mais velhos entoam cantos rituais e dão conselhos que ensinam
como os indivíduos devem viver em harmonia nas aldeias com esse conjunto de
forças. Pinxinxi tenta sempre atrapalhar o encontro. Mas num determinado momento
Mãxapuli sai frenética em sua direção contendo em suas mãos uma taboca cheia de
espinhos. Enquanto isso, os demais tentam acalmar o ambiente sem sucesso, pois
Pinxinxi se esconde no mato enquanto Mãnxapuli bate com a taboca nos outros.
Segundo o que contam os Manoki, isso acontece para que ninguém esqueça dessas
forças; elas devem ser respeitadas.
Terminado o tumulto, os espíritos compartilham novamente os alimentos
sempre com a mão direta espalmada voltada para cima em sinal de respeito. Não
devemos esquecer que esse é o momento máximo do viver e compartilhar entre os
Manoki.
De repente, os espíritos vão saindo levando em suas mãos pedaços de
carnes e beiju. Nesse instante os homens retomam a consciência como se nada
tivesse acontecido, retornando imediatamente para suas casas levando o alimento
que fora “abençoado” e que por isso deve ser compartilhado com o maior numero de
pessoas que estiverem nas casas.
83
Ao entardecer ouve-se uma falação ao longe e num instante as mulheres
estão reclusas na casa tradicional Manoki, enquanto os espíritos tomam o pátio da
aldeia. As mulheres reclusas conversam entre si e respondem aos espíritos que
estão em “festa” no pátio da aldeia. Observa-se que, mesmo não estando presentes,
são as mulheres que fazem a ligação entre o mundo visível e o invisível. Muitas
vezes, são portadoras de “conselhos” que vão minimizar os conflitos internos nas
aldeias. Segundo Amarante (1994), é a mulher que cuida da espiritualidade e,
explicitamente, manifesta seu temor em face do poder dos espíritos maus. Se
compreendermos que para os Manoki o alimento é parte integrante da vida,
conseqüentemente, estaremos entendendo as razões que fazem as mulheres serem
as responsáveis pela festa; são elas que de fato fazem acontecer a vida e a festa
nas aldeias.
“(...) Tudo isso acontece porque temos que alimentar nossos mortos e viver
em paz entre nós aqui na terra.” (Celso Xinui, 2004).
2.3.1.8. Morte
Se falar sobre o nascimento foi trabalhoso, tratar a morte como um tema
parece ser uma tarefa praticamente impossível. Isto porque os Manoki tem pavor do
Aynã, um espírito devorador da carne dos mortos. Aynã está sempre presente na
sombra das sepulturas esperando um deslize dos humanos. Afinal, o espírito mal
tem predileção por carne ou “gente”.
“(...) Nosso céu é ao contrário dos brancos. Durante o dia tem muito caça,
pesca e mel tudo o que a gente gosta mesmo” (...). Durante a noite ele fica feio,
pavoroso mesmo. As árvores crescem e serpentes tomam conta do caminho. Daí é
que nossos parentes vêm visitar a aldeia (...).” (Inocêncio Irantxe Japura, 2005).
A fala do senhor Inocêncio nos ajudou compreender melhor e em caráter
definitivo duas questões apontadas pelo professor Atanásio Jalasi por ocasião de
um óbito ocorrido na aldeia: O jovem senhor não queria deixar o sepultamento
prosseguir se o corpo não fosse colocado em direção sol nascente. Esbraveja sem
parar até que conseguiu convencer os demais. Esperei que acalmasse para que
84
pudéssemos pedir uma explicação sobre o caso. O professor pediu-nos para que a
equipe de saúde tomasse sempre a precaução de observar o fato, pois, se essa
regra não fosse cumprida Aynã poderia matar ainda mais gente na aldeia e seus
antepassados não teriam mais como chegar ao pátio da aldeia.
Os relatos sobre nascimento e morte nos ajudam a comprovar a importância
da vida para os Manoki. O compartilhar é sempre parte vida.
De fato Aynã fica com a carne daquele que mudou de estado, pois os
homens apenas deixam de ser visíveis. Nesse sentido, a morte é entendida com um
desequilíbrio momentâneo que quer ser compensado rapidamente.
Capitulo III
3.0. De volta para Casa!
Os relatos dos Manoki que permeiam essa dissertação foram coletados desde
nosso primeiro encontro, em janeiro de 1998. A maioria deles registrados de modo
85
não sistemático durante nossas conversas ao longo de todo esse tempo. Ao
analisarmos nossos registros de campo observamos que eles não continham
referências importantes ao período compreendido entre a saída de Utiariti e a
organização das primeiras aldeias na TI Irantxe, onde vivem até os dias atuais.
Ficamos realmente surpresos ao constatarmos que não seria tão fácil
estabelecer um diálogo sobre esse tema com os Manoki. Depois de ter feito alguns
ensaios nessa direção, sem alcançar o sucesso almejado, decidimos seguir o
precioso conselho dado pelo Capitão Lourenço Janãxi: “(..) aqui na aldeia tem
três pessoas que podem te ajudar com isso: Celso, Miguel e o velho José Alfredo
(...).”
Tentamos inicialmente procurar o Sr. José Alfredo Jalukali. Entretanto nossa
conversa não foi muito produtiva, pois o “velho” fez algumas considerações sobre a
mediação feita pelos Jesuítas e saiu andando. Nós ficamos sem compreender muito
bem, quais as razões que haviam motivado aquela reação, diríamos, quase furiosa.
No dia seguinte, logo no primeiro período do dia saímos procurando o senhor
Celso Xinui para tentar esclarecer essa situação. Ele, por sua vez, foi bastante
cordial conosco. Primeiramente nos ofereceu um café com beiju e reclamou de uma
prótese ortopédica que carrega no fêmur, uns vinte anos, sem coragem de
removê-la. De repente disse:
- eu vou te contar paulista como foi nosso começo aqui! Eu e essa Mokixa
(esposa) viemos primeiro nessa terra (...) naquele tempo eu era moço e saia para
apanhar seringa próximo ao barracão quando eu pensava ‘um dia ainda venho
morar aqui!’ (Celso Xinui, 2005).
Depois de uma breve interrupção, perguntamos:
- Como, de fato, os Manoki chegaram nessa terra?
Celso prosseguiu dizendo:
- os padres nos mandaram embora! Você não sabe?
Eu abaixei a cabeça e, calado, deixei que continuasse:
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- Um dia, Utiariti acabou sem maiores explicações, e sem maiores
explicações viemos parar aqui.
De repente, fez-se perceber a presença do senhor Miguel Taparasi, que vinha
caminhando em nossa direção. Mais de que depressa, Celso puxou o pequeno
banco de madeira e ofereceu-o ao vizinho. Taparasi sentou-se e logo foi dizendo:
- Eu de de casa estou escutando essa conversa. Daí, resolvi chegar aqui
para ajudar.
Celso disse-lhe que seria bom que mais gente estivesse presente e, entre
risos, o Tikiandá “aposentado” continuou:
- Acho que o ano era 1967 ou 1968. Meu pai (Alonso) veio por essas bandas
acompanhando o velho Miguel e o Padre Iasi. - Uma breve pausa e o velho
Tikiandá continuou: - Penso que os dois acharam bom porque aqui não tinha quase
gente. Os velhos pensavam que os Tapayunas ainda andavam por essas bandas.
Acho que o velho Miguel ainda veio por aqui mais uma viagem antes da mudança.
Aproveitando a pausa, perguntamos sobre o fim de Utiariti. Elvira, esposa de
Celso, saiu de dentro da casa e com olhar firme disse:
- O fim de Utiariti foi assim: eu saí com minha prima para buscar melancia e
no caminho de volta resolvemos chupar uma. A Irmã descobriu e nós levamos uma
surra. No dia seguinte eu fugi para o Tolosa. eu vi o Celso, nem sabia direito
dele. Naquele tempo ele trabalhava na seringa. porque as irmãs souberam que
ele estava por fizeram nós casar (...) Eu sofri muito aqui! O velho queria que eu
fizesse beiju do jeito dele. Mas eu não sabia ralar mandioca. Os Kayabi afundam a
canoa com a mandioca para depois fazer a massa (Elvira Kayabi, 2005).
Os compadres esperaram que ela se acalmasse para que Miguel concluísse
seu pensamento. Feito isso, seguimos em frente:
- Na reunião que os padres anunciaram o fim de Utiariti, nós estávamos
presente. Ninguém acreditou! Era domingo e a mudança estava marcada para a
próxima terça-feira. (Miguel Taparasi, 2005).
87
É certo que não foi assim. O fim do internato foi ocorrendo de forma gradativa.
Entretanto, os Manoki demonstraram-se profundamente decepcionados com o fim
do internato.
Na prática, não compreendem até hoje os reais motivos que levaram os
padres a promover tamanha “traição”. Isto porque consideravam Utiariti sua
“verdadeira casa”.
Durante um animado café da manhã, em abril de 2004, alertou-me Arlindo
Leite:
- Os anos 70 foram tempos de muitas transformações. Além de uma nova
ordem dentro da Igreja Católica, instaurada pelo Concilio Vaticano II, o regime militar
obrigou-nos a tomar posições diante da vida! (...) Com aquele quadro político não
havia muita saída. (Arlindo Leite, 2004).
Hoje podemos contar, e contamos, com elementos que nos ajudam ter maior
clareza do conteúdo expresso na fala do Professor Arlindo. De fato, o ideal de
progresso preconizado por Vargas e Kubitschek, em diferentes momentos da vida
política brasileira, se aprofundou durante a década de 1970.
Foi durante a ditadura inspirada pelo Ato Institucional número 5 (AI-5) que a
porção central do país efetivamente passou a ser considerada como parte integrante
do território brasileiro.
Talvez nem todos concordem com essa afirmação, contudo, lembramos que
naquele momento histórico os militares contavam com uma série de elementos que
possibilitavam também o controle dos espaços considerados vazios.
Com o passar dos anos Utiariti foi enfraquecendo. Mudanças na linha de ação
da Igreja Católica e o endurecimento estatal, devido à ascensão do regime ditatorial
do país, contribuíram sensivelmente para minar o acesso às principais fontes
financeiras que em momentos anteriores financiaram o internato.
Cientes dessa nova conjuntura política, os Jesuítas aliaram-se
momentaneamente ao regime militar estabelecendo diálogo com os gestores da
88
recém criada Fundação Nacional do Índio para garantir, por exemplo, a assinatura
do decreto 6.338 de outubro de 1968 que delimitou e demarcou a TI Irantxe.
3.1. Agora É Com Vocês!
Efetivamente, todos os Manoki que viviam em Utiariti transferiram-se para a
aldeia Waporé, atualmente conhecida como Waporé ou aldeia do Mané.
Foram tempos bastante difíceis, pois tudo era muito precário. Os Manoki
fizeram grandes esforços para se adaptarem em um ambiente natural
completamente diferente daquele que era culturalmente conhecido por eles.
Conforme observamos no retorno ao ambiente de aldeia buscaram retomar o seu
modo tradicional de vida, inclusive os rituais do Yetá. “(...) Sabe, quando nós
chegamos aqui eu era menino. E logo meu pai me disse que nós iríamos ter que
trabalhar com ajuda do Yetá. Ele tinha me falado sobre esse assunto antes, mas
nós não podíamos usar essas coisas fora da aldeia (...)”. (José Francisco Irantxe,
2004).
Somente em 1972, com a chegada dos missionários leigos da OPAN
Operação Anchieta, entidade criada em 1969 pelo Padre Egydio Schwade S.J. é que
as coisas começaram a melhorar. Jovens de todas as partes do Brasil, inspirados
pela Teologia da Libertação, mudaram-se para Mato Grosso com o objetivo de
conviver entre os Povos Indígenas.
Entre os Manoki, os jovens da OPAN atuavam sistematicamente nos anos
1972-1975 e são lembrados com imensa saudade, até hoje:
- Era muito bom! Jogávamos vôlei, fazíamos pão para comer em noites de
seresta embaladas pelo violão do Miguel. (Marlene Girotto, 2005).
- Não tínhamos muito que fazer, o negócio era trabalhar e compartilhar de seu
cotidiano. (Ivar Busatto, 2007).
89
É certo que naquela época, Ivar, com vinte poucos anos, não se deu conta de
que a convivência e a força para o trabalho são o melhor que uma pessoa pode
oferecer aos Manoki.
A partir de 1976 saíram do convívio diário das aldeias Manoki. Até 1978
mantiveram-se entre eles realizando trabalhos pontuais na condição de “missões
volantes”, pois, toda a infra-estrutura necessária para o bom desenvolvimento dos
trabalhos indigenistas estava localizada em Utiairiti.
Em 1973, a aldeia Waporé queimou. Curiosamente, uma brincadeira de
criança favoreceu que cada chefe de família constituísse sua própria aldeia,
resgatando um padrão antigo adotado pelos Manoki.
Assim ficaram distribuídos: Paredão, Cravari e Waporé. Tempos mais tarde,
novos desdobramentos deram origem a Perdiz, Recanto, Alípio e Recanto do Elias.
Observamos que essa configuração mantém-se até os dias atuais.
Nos anos 1978 e 1979, a Irmã Elizabeth Amarante tentou efetivar um projeto
de organização da educação escolar entre os Manoki. Por falta de condições
políticas e materiais o projeto não se consolidou. Assim sendo, a Irmã Elizabeth
Amarante acabou aceitando o convite do Pe. Thomas Lisboa para ir viver entre os
Myky.
É importante dizer que os Manoki demonstraram um profundo respeito pelos
Manoki do Escondido (Myky). Entretanto, durante muitos anos não mantiveram
relações sistemáticas e de modo saudável com seus parentes devido à forte
interferência missionária.
Se, por um lado, os Manoki durante muito tempo foram considerados um tipo
exemplar de povo assimilado, os Myky, por outro, são até hoje identificados com um
tipo exemplar de povo contatado no período onde ocorreram as maiores influências
da Teologia da Libertação.
Não cabe a nós criar polêmicas em torno desse tema. Contudo, devemos
observar que os Manoki do Cravari sempre apresentam em seus relatos
ponderações negativas sobre o trabalho missionário realizado entre seus parentes.
As palavras do senhor Celso Xinui expressam bem esse sentimento: “Eu quis me
90
mudar pra lá! A Irmã Beth disse que tudo bem. Mas eu não poderia levar nem
bicicleta nem rádio, mesmo minha mulher e o menino” (Celso Xinui, 2004). É
importante salientar que ao citar o episodio da mudança do senhor Celso queremos
apenas marcar a diferença existente no que diz respeito à perspectiva política
adotada pela Igreja Católica na relação de contato com os povos em questão
Entre 1974 e 1979 os Manoki contaram com algum apoio da Missão Anchieta
no campo da saúde, bem como na participação das assembléias indígenas que
discutiram os possíveis impactos causados pela abertura da BR 364.
No ano de 1978 a OPAN esteve na aldeia Pareci do Rio Verde executando
um projeto que visava a implantação de roças mecanizadas de arroz. Cada núcleo
contemplado pelo projeto ganhou todo o material necessário para a viabilização de
tais roças, inclusive, um trator.
Os Manoki, por extensão, também foram contemplados. A carcaça do trator
que lhes foi doado nessa ocasião podia ser vista na aldeia Asa Branca até pouco
tempo atrás.
Entre fins dos anos 70 e meados dos 80, apenas as fazendas São Paulo
Cravari e Membeca localizavam-se próximas ao entorno da Terra Indígena Irantxe.
De repente, um novo ciclo econômico impulsionou as frentes de expansão
rumo ao centro norte do país. O projeto denominado Pólo Noroeste financiou através
dos recursos do Banco Mundial a organização de grandes latifúndios visando a
atividade agropecuária em escala comercial, impulsionando as primeiras grandes
roças mecanizadas de arroz, milho e soja. Em pouco tempo, os Manoki viram as
fazendas tomar conta de todos os espaços vazios próximos às suas terras.
Conforme contou-nos Lourenço Janãxi em 1994, todos os homens adultos saíram
para trabalhar nas fazendas. Em 1998 o depoimento dado por Joãozinho Kanunxi
aos colegas do projeto Xamã causou-nos apreensão: “Sou eu quem prepara o
veneno e depois fica na baliza para o avião borrifar a lavoura”. (Joãozinho Kanunxi,
1998).
Nos términos das atividades perguntamos se ele tinha conhecimento dos
perigos causados pelo contato direto com o veneno. Ele respondeu: “Sim. Mas me
91
orgulho muito do Patrão me dar essa obrigação, pois o veneno é muito caro”.
(Joãozinho Kanunxi, 1998).
Foram aproximadamente 20 anos sem apoio sistemático dos órgãos
indigenistas oficiais e entidades não governamentais até 2000. Em 1998 retomaram
as conversas com seus velhos “companheiros da OPAN”. Vale observar que a
entidade indigenista desligou-se oficialmente da igreja católica em 1989 passando a
chamar-se Operação Amazônia Nativa. Esse entendimento consolidou uma nova
parceria que gerou dois projetos, ambos de fundamental importância para que os
Manoki pudessem inserir-se no contexto das discussões políticas e sociais rumo
século XXI.
3.2. Rumo ao Século XXI.
Foto 4: Ademilson Ezonomaece,2006
Fonte: Markus Muthe/Acervo do Povo Manoki
Em 2000 fizemos parte da equipe opanista que retomou o trabalho junto aos
Manoki. Em janeiro daquele ano visitamos as aldeias da TI Manoki com o objetivo de
identificar as necessidades mais urgentes que seriam enfrentadas pela equipe de
92
saúde recém contratada com os recursos 1402/99, celebrados entre a Fundação
Nacional de Saúde e a Operação Amazônia Nativa, em consonância com a portaria
ministerial 9.836/99, que criou os Distritos Sanitários Especiais Indígenas.
Fomos carinhosamente recebidos. Contudo, o ambiente era “tristeza e
solidão”. Naquela ocasião tivemos a oportunidade de constatar o reflexo perverso
das políticas sociais implementadas em Mato Grosso.
Oficialmente, iniciamos o trabalho da equipe de saúde em fevereiro daquele
ano. Durante a reunião inaugural o senhor Alípio Xinuli disse: “Vamos ver quanto
tempo vocês vão sofrer com a gente!”.
Sem dúvida, o período compreendido entre os anos 2000 e 2002 foram os
mais intensos das vidas de todos os que compartilharam os espaços das aldeias
Manoki. De um lado vivenciamos as alegrias propiciadas pela construção das casas
tradicionais e a movimentação gerada a partir do fortalecimento das relações entre
os Manoki e Myky visando a reativação dos seus rituais tradicionais. Conjuntamente,
partilhamos o cotidiano tenso da equipe de saúde. De fato, os problemas não eram
tão graves. Porém, as explicações e a burocracia demandadas pelos trabalhos da
saúde geravam reuniões intermináveis. O clima era de profunda angústia. Afinal,
estávamos diante de uma demanda reprimida historicamente e incomensurável.
Todavia, o melhor ainda estava por vir.
Em maio chega Adu Schwade, um dos cinco filhos de Egydio Schwade.
Maurício, Adu, ou simplesmente Tupxi, colocou em prática a receita que inspirara
seu pai trinta anos antes ao criar a Operação Anchieta, a convivência.
A organização dos apiários familiares e a construção de uma maloca
tradicional Manoki serviram-nos como combustível para animar as demandas
existentes.
Enquanto Adu motivava as turmas para os trabalhos tradicionais, a equipe de
saúde esforçava-se para compreender o processo e concomitantemente atender o
cotidiano das demandas de saúde em todas as aldeias. Por isso, é sempre bom
lembrar que, no início dos anos 2000, estiveram também: Gonçalo, Rose,
Elizabeth e Fátima. Sempre compartilhando suas alegrias por poder conviver entre
93
os Manoki. Também vivenciaram momentos de frustração na ânsia por alcançar
uma organização “ideal” dos serviços de saúde nas aldeias atendidas pela equipe
OPAN/FUNASA.
Em 2003 Adu saiu para estudar Ciências Econômicas na Universidade
Federal do Amazonas e a OPAN compôs uma nova equipe indigenista para dar
seqüência aos trabalhos. Assim chegaram, ao Cravari, André e Edemar. Os dois,
mais os Manoki, fizeram as primeiras visitas ao Território Tradicional Manoki
financiadas com recursos do PDPI Programa para Projetos Demonstrativos
Indígenas.
Nessa ocasião, os Manoki também demonstraram interesse pela parceria
com fazendeiros da região no plantio de soja. Essa opção acabou levando André e
Edemar a decidirem pela não permanência no projeto de trabalho da OPAN.
A partir de 2004 os Manoki passaram a contar com o apoio do indigenista
Sérgio Lobato que associou sabiamente sua habilidade em produzir vídeos e
pequenos filmes ao interesse emergente dos Manoki pela construção de uma nova
auto-imagem.
De fato, os Manoki do século XXI não são mais lembrados apenas como
herdeiros de Utiairiti. Atualmente sua atuação política fundamental no campo da
saúde é considerada como referência para os outros povos que vivem na região.
Isto porque os Manoki e a OPAN, que tem sua equipe de saúde localmente
orientada pela experiente indigenista Cleacir Sá, trabalham cotidianamente na
construção de um sistema de saúde que seja o mais próximo da realidade das
aldeias, compartilhando todos os caminhos percorridos e decisões tomadas pela
gerência do projeto que está localizada em Cuiabá.
Em 2005, por falta de orçamento, a Fundação Nacional de Saúde não
cumpriu os repasses financeiros no tempo determinado conforme termo de
celebração do convênio 1331/2004 firmado com a Operação Amazônia Nativa. Por
essa razão as comunidades e os membros da equipe de saúde passaram por
diversos transtornos ao longo do ano. Tais transtornos acabaram impulsionando um
episodio que marcará a trajetória das relações constituídas entre os Manoki e a
sociedade brasileira. Depois de muitas conversas, em outubro daquele ano, os
94
Manoki conduziram um evento que ficou popularmente conhecido como a invasão
da FUNASA. Em meados de setembro, representantes das comunidades indígenas
atendidas pelo convênio OPAN/FUNASA, acompanhados por dois representantes
dos funcionários da OPAN, procuraram a sede do Distrito Sanitário Especial
Indígena de Cuiabá em busca de informações sobre o andamento do repasse
financeiro prometido dias antes. Depois de uns 40 minutos de conversa firmaram
então uma nova data para o mês de outubro. Curiosamente, todos concordaram
sem maiores manifestações, entretanto, ao retornar para sede da OPAN declararam
sua real intenção: “Caso não cumpram o prometido nós iremos voltar
acompanhados de todos os outros”. (José Francisco Irantxe, 2005).
Dias depois ouvimos informações que os Manoki estavam realmente se
mobilizando para chegar a Cuiabá. Contudo, não acreditávamos que esse intento
poderia lograr êxito. Tivemos uma grande surpresa quando numa tarde de domingo
estacionou na porta da sede da OPAN um ônibus que trazia 35 pessoas vindas de
Brasnorte. Em sua grande maioria, estavam indígenas que pleiteavam uma reunião
com os chefes da FUNASA para o dia seguinte, liderados por Joãozinho Kanunxi.
Os Manoki, Myky, Enawene e Nambikwara permaneceram pintados e prontos para
guerra durante uns quatro dias até que o recém empossado coordenador regional da
FUNASA pôde atendê-los. Muitos foram os comentários, ninguém acreditava que
aquele grupo liderado por jovens Manoki tinha articulado toda aquela ação sem
qualquer apoio externo. Ciente disso, Joãozinho Kanunxi, pintado para guerra,
disparou: “Se nós viemos aqui de calça jeans e óculos escuro não somos índios!
Somos motorista de ônibus! Se a gente vem pintado para guerra com borduna vocês
dizem que nós não somos assim! Afinal, o que é que você querem? Isso tudo é uma
tremenda falta de respeito! ”. (Joãozinho Kanunxi, 2005).
O fato é que o episódio sem precedentes ganhou as páginas dos jornais e
TVs locais. Várias daquelas fotos ainda foram publicadas pela revista National
Geographic, ilustrando uma série jornalística que discute a influência do plantio de
soja em escala industrial para o modo de vida das populações tradicionais indígenas
que habitam a porção centro norte do país. Desse modo é que a nova “identidade
Manoki” vem sendo apresentada para o mundo globalizado.
95
Certamente os Manoki são um bom exemplo para melhorarmos nossa
compreensão a respeito das mudanças ocorridas na sociedade brasileira ao longo
do século XX, que eles foram parte integrante do projeto de desenvolvimento
idealizado para a porção centro norte do país em diferentes épocas. De índios
mansos e de índole pacifica passaram a católicos e trabalhadores na segunda
metade do século passado, para, depois de terem seu território devassado e
expropriado pelas frentes de expansão, tornarem-se índios aculturados e sem futuro.
Nas palavras de Alípio Xinuli: “Nós queríamos mesmo é ser branco. Eu mandei
minha filha estudar fora, pois achava que aqui não ia dar mais para nós. E veja
no que deu!”. (Alípio Xinuli, 2004).
Os que interpretavam a trajetória Manoki através de uma visão determinista e
fadada à desgraça, hoje, devem sentir-se constrangidos diante da nova realidade.
Isto porque os Manoki demonstram força e determinação na construção dessa sua
nova identidade que leva em conta aspectos importantes de sua cosmogonia que,
convenientemente, muitos dos atores que participaram de sua vida cotidiana deram
por esquecida e desaparecida em diferentes momentos dessa trajetória.
96
Considerações Finais
Passaram-se praticamente três anos desde o dia em que retornamos à sala
de aula como aluno do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da
PUC/SP.
Durante esse período estivemos submersos em uma série de livros, pastas e
documentos que nos ajudaram ao transporte para o início do século XX, mais
precisamente, para dentro do universo Manoki.
Lembro-me da primeira vez que encontrei os Manoki, em janeiro de 1998, na
cidade de Tangará da Serra. Naquela ocasião foram-me apresentados como os
“Irantxe”. Alguns dias mais tarde, intrigado com as histórias contadas por Celso
XInui, saí em busca de mais informações sobre este povo.
Descobri rapidamente que se tratava de uma gente que havia sido salva da
extinção através de uma ação missionária efetivada pelos Jesuítas em meados da
década de 1940. Por essa razão, ficaram também conhecidos como “os índios da
igreja”.
Ao longo do século XX sempre que citados foram lembrados como um bom
exemplo de povo indígena completamente assimilado pela sociedade nacional.
Viveram esquecidos e quase sem apoio dos órgãos oficiais e entidades não
governamentais, principalmente nas últimas duas décadas do século passado.
Em certo momento, até os missionários que atuavam entre os Myky,
reconhecidamente descendentes dos sobreviventes do massacre promovido na
aldeia localizada às margens do córrego Tapuru, por volta do ano de 1900, deixaram
de se preocupar com a realidade vivenciada pelos Manoki porque eles eram
considerados quase “brancos”. Nesse momento histórico as relações estabelecidas
entre os missionários e os grupos indígenas recém contatados, por exemplo, os
Myky, eram pautadas segundo ideais inspirados pela Teologia da Libertação.
Cientes de toda essa problemática que envolveu a relação de contato do
Povo Manoki com a sociedade nacional partirmos em direção ao universo Manoki
com o objetivo de investigar alguns dos principais aspectos que envolvem a vida
ritual e a organização social desse povo para que pudéssemos compreender certas
97
características de sua dinâmica histórica, simultaneamente de transformação e
continuidade, como coletividade dotada de uma especificidade cultural e identitária.
É certo que as considerações de caráter etnográfico ainda podem ser
complementadas em momentos posteriores de continuidade dessa pesquisa ou até
mesmo por outros pesquisadores. Nesse momento, gostaríamos de ressaltar
algumas considerações importantes para o término desta etapa de trabalho:
observamos que, de fato, os Manoki, apesar de terem tido seu território tradicional
expropriado e conseqüentemente sua vida ritual interrompida, nunca abandonaram
efetivamente os princípios das forças que compõem o universo do Yetá que lhes foi
apresentado por Maka’hy em um tempo mitológico.
De fato, observamos que os Manoki evitaram o conflito direto com
seringueiros e com outros representantes das frentes de expansão que rasgaram
seu território não por serem índios mansos e de índole pacífica como julgará o
superior Apostólico da Prelazia Diamantina em meados dos anos 30 João Batista du
Dréneuf. Tal comportamento é resultado da obediência ao princípio da convivência
entre todos aqueles que compartilham um determinado espaço num período de
tempo. Caso esse pressuposto não seja respeitado, segundo eles e sua tradição,
uma reação de proporções jamais vista pode destruir a natureza, os homens e tudo
aquilo que garante a manutenção da vida Manoki.
Ao se fazer uma leitura superficial da trajetória percorrida pelos Manoki e
conseqüentemente dos aspectos rituais mais importantes que compõem a sua vida
cotidiana poderemos até acreditar que as mulheres desempenham um papel
secundário na vida desse povo. Entretanto, é importante notar que são as mulheres
as responsáveis pelo contato direto com os “invisíveis” que compartilham o universo
cotidiano de suas aldeias. A elas cabe expressar, através de seus gestos e palavras,
o respeito que os homens devem ter na manutenção das forças compartilhadas com
seus espíritos guias. Nesse sentido é curioso apontar que despretensiosamente
acreditamos ter encontrado uma explicação possível para o fato das mulheres,
obrigatoriamente, manterem-se reclusas durante o período em que Yetá e seus
companheiros estão no pátio das aldeias. Verdadeiramente as mulheres têm a
sensibilidade necessária para manter um dialogo equilibrado com tais forças. Esta
constatação nos condições para afirmar que as figuras masculinas e femininas
98
atuam de forma inteira e complementar na sociedade Manoki. Isto significa não
simplesmente que um inteiro é igual a dois, mas um inteiro é a conjunção das
relações entre homens e mulheres.
Diante dessa realidade, agora compreendemos as razões que levaram a Irmã
Elizabeth Amarante em nos motivar lançando a seguinte idéia: “(...) às mulheres
cabe a tarefa de acordar a humanidade (...)” (Elizabeth Amarante, 2004). Essa
afirmação também nos levou a observar melhor as relações constituídas entre
casais idealizados durante o período em que estiveram sob a tutela dos Jesuítas em
Utiairiti, pois, em alguns momentos dessa pesquisa encontramos como um dos
principais argumentos para justificar a destruição da cultura Manoki os casamentos
pluriétnicos ajustados de modo inadequado. Contudo, vemos que tal relação não
precede, pois as mulheres vindas de outros universos culturais incorporaram as
práticas e o papel social a elas indicado pela sociedade Manoki sem maiores
prejuízos.
Felizmente, o discurso histórico que promoveu o avanço de diversas frentes
de trabalho em direção a Mato Grosso no século passado caiu em desuso. A nova
ordem mundial recomenda o respeito às diferentes culturas existentes no planeta.
Freqüentemente nos deparamos com discursos governamentais exaltando as
belezas da diversidade cultural existente num país. Podermos afirmar sem medo de
errar que, no Brasil, não existem pessoas que não reconheçam a plurietnicidade
existente em nosso país. Entretanto, isso não quer dizer que tais pessoas aceitem
os diferentes.
O exemplo dos Manoki é com toda certeza um dos mais ricos que
encontramos para ilustrar essa situação: viveram praticamente vinte anos de
esquecimento e, assim como os Manoki do início do século que foram até o
Barracão Queimado em busca de ferramentas, em 1998, também saíram ao
encontro da OPAN em busca de novas ferramentas. Iniciaram pela segunda vez, em
menos de um século, um processo de intensificação do contato com a sociedade
brasileira. Sabiamente, decidiram entrar de vez no cenário político regional e
também no de âmbito nacional. Os Manoki se reorganizaram política e culturalmente
em torno da idéia de construir uma nova imagem identitária. Nesse sentido, o
99
trabalho compartilhado com os Manoki através das equipes da OPAN que vem
atuando em suas aldeias desde o início do ano de 2000 é de fundamental
importância. A entidade funciona principalmente como um agente que procura apoiar
a transformação de seus anseios em energia para essa nova jornada em processo
de desenvolvimento.
Atualmente os Manoki vivem aquela que talvez seja a melhor fase de todo
seu histórico de contato com a sociedade nacional. Isto porque saíram da condição
de miseráveis, aculturados e sem perspectiva de reação, para uma condição
favorável nesse início de século. Somam uma população de 430 pessoas nas duas
Terras Indígenas localizadas na porção noroeste de Mato Grosso. Contam com uma
importante renda fixa gerada a partir dos trabalhos por eles realizados,
fundamentalmente nos setores da educação e saúde, sem considerarmos ainda os
aposentados e pensionistas. quem aponte a entrada desses recursos com um
grande problema na vida atual da sociedade Manoki. Contudo, consideramos que
esses recursos são importantes não por garantirem evidentemente o acesso a
um maior número de bens materiais para as aldeias, mas por estarem sendo
distribuídos, na maioria das vezes, segundo os princípios de reciprocidade
ensinados aos Manoki por Maka’hy e seus companheiros.
Surpreendentemente incorporaram os valores atribuídos pela sociedade
ocidental à importância da sua auto-imagem. Mobilizam-se em torno de eventos tais
como a semana do índio, realizada na cidade de Bertioga em São Paulo, as
Olimpíadas Indígenas, promovidas pela FUNAI, bem como as reuniões do Considi
Conselho Distrital de Saúde em Cuiabá. Dessa forma eles têm conseguido uma
representação política bastante interessante no cenário regional.
Ainda faz parte desse processo, a sua incansável luta pela reconquista de seu
território tradicional. O processo FUNAI/BSB 1600/82 arrasta-se na justiça entre
perícias e contraditórios faz anos, especialmente seu último lance iniciado a partir do
ano 2002, época em que Arruda identificou, através de estudos e produção de
relatório circunstanciado, os limites tradicionais de ocupação utilizada pelos Manoki.
Entretanto, o estado brasileiro, que não pretende mais assimilar os grupos indígenas
e até desenvolve políticas públicas de referência em alguns setores, continua
construindo planos de homogeneização do crescimento econômico no país, haja
100
vista o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) apresentado pelo governo Lula
no último mês de janeiro.
Os governos republicanos do Brasil sempre tiveram consciência da
diversidade cultural existente em nosso país, porém, não sabem como equacionar
questões relacionadas ao tão sonhado “desenvolvimento” e à diversidade cultural.
Nesse sentido acreditamos que os Manoki continuaram caminhando em direção à
convivência e ao diálogo com os representantes estatais, mas não estarão livres dos
impactos causados pelas novas expedições que alcançarão suas aldeias nesse
início de século XXI.
101
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107
ANEXOS
108
Entrevista com Elizabeth Amarante em 26/04/2004
Por Edson Benedetti
- Como você veio ao Mato Grosso?
- Eu sempre trabalhei com educação. E em um determinado momento tive
essa vontade. Você sabe? Creio que por influência do meu avô. Ele sempre cuidava
dos índios e de Mato Grosso com carinho!
- E como foram seus primeiros contatos com a questão indígena?
- Pois é! Naquele tempo o CIMI era uma novidade. Daí eu entrei em contato
com o pessoal do CIMI.
- Mais precisamente com o padre Uchoa?
- Ele me fez um convite para trabalhar com o Bororo do Córrego Grande.
- Em que ano?
- Em 1977. Mas o projeto não avançou. E daí veio o convite para ir trabalhar
com os Irantxe na questão da escola.
- Ah! Que interessante. E como foi sua experiência lá no Cravari?
- Boa, fiz muito boas amizades. É, me lembro bem Paulina, Aurelina e
Dometila. São muitas histórias.
- Mas e o projeto da escola?
- Pois é, esse começou bem e praticamente não acabou.
- Como assim?
- No início tudo era animação. Depois eles já começaram não queriam mais.
109
- Mas como?
- Primeiro eles queriam aulas de língua e também português. Eu até estava
me preparando um pouco para iniciarmos.
- E eles não queriam?
- Eles queriam português. Assim por falta de apoio e viabilidade política
interna acabei saindo.
- E como foi sua inserção com os Myky?
- Eu vim a convite do Thomas, pois já conhecia um pouco da língua e daquele
tipo de trabalho. Tinha tudo a ver como o espírito da época.
- Como uma última coisa, fale-me da relação entre os Manoki e Myky?
- É, muito já foi dito sobre isso. Mas a verdade é que os Irantxe que agora são
Manoki sempre tiveram uma relação de respeito com os Myky. Quase uma saudade!
Mas ao mesmo tempo queriam lhes ensinar as “coisas boas” do progresso. E isso
de fato nem eu e nem o Thomas aceitamos.
Entrevista com o senhor Xinui em 17/11/2005
Por Edson Benedetti
Kiwxi acertou previamente o horário e o assunto da nossa conversa. Abaixo
reproduzo um trecho da conversa, inserindo alguns comentários:
O velhinho chegou, sentou-se e logo fiz a primeira pergunta:
– O senhor viveu na aldeia do Tapuru?
– Sim.
– Como foi que aconteceu o ataque na aldeia Tapuru?
– Dias antes os seringueiros haviam atacado outra aldeia ali perto.
110
De fato, nunca havia tido essa informação em nenhum momento. Como ele
resolveu falar sobre outras coisas, então, pedi-lhe que me contasse a história desde
o começo. Para tanto, fiz uma nova pergunta:
– Os Irantxe sabiam da presença dos seringueiros ali perto?
Sim. Todos na aldeia sabiam da presença dos seringueiros, nunca
fizemos nada, porque Irantxe não é de briga.
– Qual foi a outra aldeia atacada?
Eu não sei o nome. Naquele tempo eu andava no braço da minha mãe.
Tudo o que estou falando foi ela quem me contou.
Daí em diante não fiz mais nenhuma intervenção, deixando que Kiwxi
conduzisse a conversa:
Pois dias antes os Kewa (não índios) tinham tentado invadir uma aldeia
menor. Mas o pessoal da casa saiu cedo para a roça. Os seringueiros botaram
fogo nas coisas da casa e deixaram os diversos utensílios espalhados no pátio da
aldeia.
Um de seus filhos o senhor Mãty’y que prestava atenção em nossa conversa
disse: “Conte mais papai”. E o velhinho continuou seu relato dizendo:
Às vezes, os Nambikwara também faziam visitas nas aldeias Irantxe.
com vontade de pegar algumas coisas. Nosso Tikiandá (chefe) estava meio bravo
com eles que tinham levado algumas coisas das casas no outro dia que o pessoal
saiu para visitar seus parentes. Também andava preocupado porque os Kewa
estavam chegando perto demais. Um dia bem cedo os homens se reuniram e
resolveram fazer uma grande caçada para Yetá. E assim foi, um foi caçar, enquanto
outros saíram para pegar taboca para preparar novas flautas.
Nossa conversa foi silenciada por alguns instantes e todos os presentes se
emocionaram com a expressão facial do velho Xinui. Passados alguns minutos,
perguntei-lhe:
– Os homens ficavam muitos dias fora da aldeia?
111
Uns três ou quatro dias. Caçando, pescando e preparando tudo, porque a
aldeia tinha bastante gente. Minha mãe contou depois que a noite parecia que gente
estranha estava chegando.
Kiwxi interveio:
Eu acho que os seringueiros estavam sondando. Como sabiam que os
homens estavam fora, resolveram esperar para matar mais gente.
Xinui continuou:
A turma chegou e todos estavam bem alegres. Trouxeram muita caça e as
mulheres tinham feito bastante chicha. Era chicha mesmo! No cair da noite as
mulheres se recolheram e Yetá estava no terreiro grande, quando Kewa chegou. O
movimento era forte, mas nosso pessoal pensou que era uma turma de Kurali
(Pareci) que vinha chegando.
Todos ficaram parados e os olhos do velhinho encheram-se de lágrimas.
Pensei que não haveria mais condições para continuarmos tratando do assunto.
Entretanto, Xinui tomou forças e retomou a palavra.
- Os Kurali chegaram com um monte de gente e ninguém sabia o que estava
acontecendo.
Confesso que esse foi o momento mais difícil de todo o percurso da
entrevista, pois estávamos ali por quase uma hora. Não havia grande interesse
das pessoas pela nossa conversa. Mas, naquele momento, pude perceber como o
relato mexera com aquelas quatro ou cinco pessoas que ali estavam.
Xinui, apesar da sua idade, descreveu o episódio como se tivesse ocorrido na
noite de ontem. Continuando:
Nossa aldeia era bem grande. Umas 10 casas grandes mais ou menos.
Foram muitos tiros e fogos, todos queriam sair dali. Os Kewa destruíram uma casa
com todo mundo dentro, gente que não teve como correr. Numa outra casa
atacaram e queimaram todo o milho e o feijão fava que estava no teto.
112
Diante da descrição feita me considerava satisfeito. Porém, o velhinho
ainda encontrou palavras para descrever o período pós-ataque:
Acho que ninguém teve coragem para voltar na aldeia. Todos ficaram
com muito medo. Daí em diante vivemos um tempo de tristeza e morte!
Entrevista com a Dolores, o senhor Miguel, Alonso Werawali e D. Dometila
Naãsi em 04/02/2005.
Por Edson Benedetti
Dolores recebeu-nos entre abraços e sorrisos e foi logo me dando café fresco,
pão caseiro e um banco para sentar enquanto aguardávamos Miguel. Ele chegou e
eu lhes expliquei a pesquisa que estava realizando com os Manoki. Sem nenhuma
objeção o Sr. Miguel iniciou a conversa.
– Mas, me diga, o que você quer saber?
Eu gostaria de entender melhor como os Manoki escolhem suas esposas e
seus maridos.
– Ah! Hoje é como vocês kewa (branco).
– Não, quero saber primeiro do tempo antigo. Depois vamos falar de hoje.
Dolores interrompe.
– Eu quero falar!
– Então, vamos lá!
– Entre nós o casamento se resolve bem mais fácil.
– Como assim?
Não tem que pensar muito. Quando a gente é criança sabe com quem
pode casar. Explica Miguel!
Dolores tomou a palavra:
– Que bom! Vamos lá!
113
– Você precisa saber das obrigações que hoje não se cumpre mais!
– Do que a senhora esta falando?
Estou falando dessa gurizada que não quer mais trabalhar e fazer roça.
Ninguém respeita o sogro e a sogra como antigamente.
O debate foi tão intenso que nem vimos o tempo passar. Quando nos demos
conta já era hora do almoço. Então, eu agradeci dizendo que voltaria um outro dia.
O Sr. Miguel e sua esposa Dolores convidaram-nos para retornar na parte da
tarde, pois lhes tinham avisado que D. Dometila Naãsi, esposa do velho Maurício
Tupxi (índio da paz), estaria lhes fazendo uma visita.
Lá pelo meio da tarde retornei para casa do simpático casal e tive uma grande
surpresa. Encontrei Dometila Naãsi, sentada num banco de madeira, saudando o
senhor Alípio Xinuli e o velho Alonso Werawali que também chegaram naqueles
instantes. Foi uma grande “festa”, no melhor estilo Manoki.
Falamos de quase tudo, creio eu. E pelo meio de nossa confraternização o
Sr. Miguel Taparasi resolveu socializar a conversa que nós tínhamos tido na parte
da manhã.
E assim, como num passe de mágica, os visitantes seguiram com a mesma
linha retórica adotada pelo casal Dolores e Miguel anteriormente.
Ao perceber um breve espaço para que eu pudesse fazer uso da palavra pedi
a eles que me explicassem melhor como era no tempo dos antigos.
O velho Alonso tomou a palavra e disse:
– Você quer mesmo saber?
Eu respondi balançando a cabeça. E ele começou a contar como era no
tempo antigo.
Era muito melhor porque não tinha baile! Manoki mesmo, dançava o
Yakuli.
114
Alonso Werawali continua:
Os Manoki andavam visitando em todas as aldeias sem pressa e nem
preguiça. No tempo do milho todos os Tikiandá (chefe) sabiam que ia chegar
gente. Por isso, mandaram fazer bastante chicha de milho para esperar os
companheiros. Enquanto uns tocavam Yakuli no centro da roda, outros rodavam de
braço dado com uma companheira.
O velho Alonso fez uma pausa, e o senhor Alípio emendou atrás dizendo:
A gente rodava a noite toda. Dançava com todas as mulheres sem ciúme.
Pela manhã os homens solteiros saiam para caçar, afinal, o rapaz que encontrava
moça solteira tinha que trazer um bom pedaço de carne para o seu futuro sogro.
A Sra. Domitila Naãsi virou-se em minha direção e disse:
– É meu filho! Hoje, as moças não sabem mais os cantos que acompanham o
Yakuli e os moços não querem mais caçar. Fico preocupada as turmas de nossas
famílias.
Em sua fala, a Sra. Domitila Naãsi aponta duas questões fundamentais para
compreendermos a organização Manoki:
1ª) A época do Yakuli promovia grandes festanças dentro do território Manoki.
A partir desses eventos, os rapazes freqüentemente retornavam para suas aldeias
de origem trazendo esposa.
2ª) As jovens não necessariamente pertenciam ao grupo da aldeia do seu
futuro esposo Manoki. Isto porque os Manoki mantinham laços cordiais e de
amizade com vários de seus vizinhos.
Entrevista com Celso Xinui e Elvira em 06/2005.
Por Edson Benedetti
No dia seguinte, logo no primeiro período do dia saímos procurando o senhor
Celso Xinui para tentar esclarecer essa situação. Ele, por sua vez, foi bastante
115
cordial conosco. Primeiramente nos ofereceu um café com beiju e reclamou de uma
prótese ortopédica que carrega no fêmur, uns vinte anos, sem coragem de
removê-la. De repente, disse:
- Eu vou te contar paulista como foi nosso começo aqui! Eu e essa Mokixa
(esposa) viemos primeiro nessa terra (...) naquele tempo eu era moço e saía para
apanhar seringa próximo ao barracão quando eu pensava ‘um dia ainda venho
morar aqui!’ (Celso Xinui, 2005).
Depois de uma breve interrupção, perguntamos:
- Como, de fato, os Manoki chegaram nessa terra?
Celso prosseguiu dizendo:
- os padres nos mandaram embora! Você não sabe?
Eu abaixei a cabeça e, calado, deixei que continuasse:
- Um dia, Utiariti acabou sem maiores explicações, e sem maiores
explicações viemos parar aqui.
De repente, fez-se perceber a presença do senhor Miguel Taparasi, que vinha
caminhando em nossa direção. Mais de que depressa, Celso puxou o pequeno
banco de madeira e ofereceu-o ao vizinho. Taparasi sentou-se e logo foi dizendo:
- Eu de de casa estou escutando essa conversa. Daí, resolvi chegar aqui
para ajudar.
Celso disse-lhe que seria bom que mais gente estivesse presente e, entre
risos, o Tikiandá “aposentado” continuou:
- Acho que o ano era 1967 ou 1968. Meu pai (Alonso) veio por essas bandas
acompanhando o velho Miguel e o Padre Iasi. - Uma breve pausa e o velho
Tikiandá continuou: - Penso que os dois acharam bom porque aqui não tinha quase
gente. Os velhos pensavam que os Tapayunas ainda andavam por essas bandas.
Acho que o velho Miguel ainda veio por aqui mais uma viagem antes da mudança.
116
Aproveitando a pausa, perguntamos sobre o fim de Utiariti. Elvira, esposa de
Celso, saiu de dentro da casa e com olhar firme disse:
- O fim de Utiariti foi assim: eu saí com minha prima para buscar melancia e
no caminho de volta resolvemos chupar uma. A Irmã descobriu e nós levamos uma
surra. No dia seguinte eu fugi para o Tolosa. eu vi o Celso, nem sabia direito
dele. Naquele tempo ele trabalhava na seringa. porque as irmãs souberam que
ele estava por fizeram nós casar (...) Eu sofri muito aqui! O velho queria que eu
fizesse beiju do jeito dele. Mas eu não sabia ralar mandioca. Os Kayabi afundam a
canoa com a mandioca para depois fazer a massa (Elvira Kayabi, 2005).
117
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