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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CUIDADO E SUSTENTAÇÃO DA VIDA: A INTERFACE DA EDUCAÇÃO
POPULAR NO COTIDIANO DE MULHERES RECICLADORAS.
Débora Alves Feitosa
Banca Examinadora:
Profa. Dra. Edla Eggert (UNISINOS)
Profa. Dra. Simone Valdete dos Santos (FACED/UFRGS)
Profa. Dra. Nadia Geisa (PPGEDU/UFRGS)
Prof. Dr. Reinaldo Matias Fleuri (UFSC)
Profa. Dra. Malvina do Amaral Dorneles (orientadora)
Porto Alegre (RS), 2005
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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CUIDADO E SUSTENTAÇÃO DA VIDA: A INTERFACE DA EDUCAÇÃO
POPULAR NO COTIDIANO DE MULHERES RECICLADORAS.
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da
Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, como requisito para
obtenção do título de Doutora em
Educação.
Aluna: Débora Alves Feitosa
Orientadora: Profa. Dra. Malvina do
Amaral Dorneles
Porto Alegre (RS), 2005
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2
Ao meu pai,
in memorian,
que mesmo sem
querer, me ensinou a viver como nômade,
em busca dos meus desejos.
3
AGRADECIMENTOS
Agradecer talvez seja o momento mais esperado quando realizamos
um trabalho que ocupa um tempo significativo em nossa vida como a feitura
de uma Tese, mas é também um momento que requer atenção. É quando, de
alguma forma, rememoramos rapidamente os fragmentos que constituem um
longo percurso do qual fazem parte tantas pessoas que partilharam conosco
sensações que transfiguram uma trajetória apresentada finalmente na
forma de texto.
Agradeço à minha família, minha mãe e meus irmãos: Mônica, Eliomar,
Joaquim e Edinho que, mesmo à distância, me deram afeto, incentivo e
aconchego. Ao meu pai, que ao seu modo, se fez presente nesta etapa da
minha vida. A Sara, Beto e Anaterra que me deram a alegria de viverem
comigo cada momento de prazer, vitórias e encontros nessa trajetória.
Agradeço a minha orientadora Malvina do Amaral Dorneles que, com
sua sabedoria e paciência, me orientou a trilhar meu próprio caminho na
constituição desse trabalho. Seu conhecimento e persistência contribuíram
para as escolhas que resultaram na qualidade e satisfação em realizar este
trabalho de Tese.
Ao Prof. Michel Maffesoli que me recebeu como coorientador no
estágio doutoral realizado na Université Paris V, possibilitando-me a
experiência de ouvir suas exposições que alimentaram em mim, o apetite de
produzir um conhecimento cheio de vida.
Agradeço aos meus colegas de Departamento da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB-Campus XII, Guanambi) que prontamente me
dispensaram para realização do doutorado. À Coordenação de
4
Aperfeiçoamento de Pesquisa de Ensino Superior-CAPES, que tornou
possível minha dedicação a este trabalho por meio da concessão de bolsa. Ao
Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, pela disponibilidade dos funcionários em atender e orientar
minhas demandas. Aos professores do PPGEDU pelas contribuições
adquiridas nos seminários ao longo do curso deste trabalho.
Aos colegas de orientação: João Vicente, Marta, Sonia, Patrícia, Cida,
Fátima, Silvio, Rafael, Rose, Johnson, Luis Oscar, Ronaldo, Regina, Malu,
Jorge Adão pela amizade que brotou nessa caminhada.
Aos funcionários da Maison du Brésil pela acolhida afetuosa em Paris
para realização do estágio doutoral. Agradeço a Gentil Corazza meu
primeiro guia nas ruas de Paris. A Beatriz, Ana Paula, Emilie Pasternak e
Samira Otto companheiras de pedaladas, conversas e festas na Maison;
Paulo Merísio, Juvenal, Frédéric e Amaranta pelas noitadas nonsense; A
Mônica Marçal que foi mais que amiga foi conselheira; Flávia Sarti, Kátia
Melo, Cristina, Soraya Noor, Celso, André Fávero, Melânia, Cíntia Lopes,
Walquiria e Aécio, Juliana, Rodney, Jimena, Oscar, Onésimo (o arqueólogo
franco nordestino) Mateus, Carlos, Luis, Nilton Milanez pela extraordinária
convivência pontilhada pelas festas, passeios, feijoadas, trocas de
conhecimentos, escutas, cuidados e afetos que partilhamos em Paris.
Agradeço ainda, ao Clewton pelos passeios na arquitetura das ruas de
Paris e arredores. Aos amigos da APEB- (Associação de pesquisadores e
estudantes brasileiros na França) pela incursão no “movimento estudantil”
de brasileiros na França. A Yara pelo carinho e companhia no divertido
trabalho dos Domingos de Sol da APEB.
Agradeço a Ana Maria Peçanha, Tânia Pitta, Mário e Vanderlan
colegas do CEAQ. A Nina Rosa Walker que, com sua competência e alegria,
me introduziu no universo da língua francesa.
5
Aos amigos José Valdinei e Gil, Nalú e Zé Damico, Rafael e Lú,
Marcelo, Emílio, Karine, Daniel, Rodrigo, Silvia pela amizade inestimável e
pelos encontros festivos que intercalavam o cansaço da vida acadêmica. A
Luciane Uberti, Sabrina Moureau e Suzi pela alegre amizade, o carinho e o
incentivo em momentos decisivo dessa jornada. A Mirela Meira pela amizade
sensível e divertida.
A Fabiana Amorim, amiga sempre disposta a colaborar de forma
incondicional. Agradeço por sua interlocução, seu crédito e incentivo as
minhas iniciativas, por sua presença alto-astral. A Lia Sant’ana, amiga
inseparável, que me presenteia com seu alegre otimismo. A Edilma Cotrim
que, à distância, torcia pelo meu sucesso. A Kátia Montalvão que sempre
reconheceu e estimulou meu trabalho. A Carmem Brunel, parceira de
trajetória desde o mestrado. A Giseli e Zuleika, amigas presentes em
muitos momentos desta minha passagem em Porto Alegre.
Ao Luis Fernando pela interlocução e estímulo ao meu trabalho, pela
companhia divertida e desafiadora durante a minha estadia em Porto
Alegre.
Agradeço por fim, a todas as mulheres do Galpão Rubem Berta, que
me acolheram e contaram suas histórias, confiaram a mim seus sentimentos.
Sem elas, esta Tese não seria possível.
6
SUMÁRIO
RESUMO ...............................................................
RESUMÉ................................................................
1 APRESENTANDO SITUAÇÕES, POSIÇÕES E DISPOSIÇÕES
DA PESQUISA....................................................
1.1.Sobre o Tema Pesquisado........................................
1.2.Sobre o Pesquisar e o Pesquisado...............................
1.3.Sobre Os Sujeitos ...............................................
2 O TRÁGICO COTIDIANO........................................
2.1 A Mística do Estar-Junto ......................................
2.2 A Outra Face da Mesma Moeda.................................
3 CUIDADO E SUSTENTAÇÃO DA VIDA DAS MULHERES
RECICLADORAS ......................................................
3.1 Um modo de ser Gênero.........................................
3.2 Ser Mãe...........................................................
3.3 Ser Recicladora...................................................
3.4 Ser Saber de Experiência.......................................
4 BIBLIOGRAFIA....................................................
7
8
9
10
19
34
63
64
82
101
102
112
124
140
153
7
RESUMO
Esta Tese se propôs descrever o Cotidiano de um galpão de separação
de resíduos sólidos urbanos, apresentando as ações e as relações entre os
sujeitos, compreendidas como atitudes de Cuidado. A investigação foi
desenvolvida em uma perspectiva qualitativa, descrevendo como o grupo
investigado estabelece em seu interior relações sociais, relações de
trabalho e relações de gênero.
A descrição do Cotidiano do Galpão Rubem Berta mostrou como este
grupo se organiza, mostrou como se manifestam as atitudes de Cuidado
entre as mulheres e de que modo esta dimensão pode ser percebida na
atividade que realizam. Como resultado, foi possível afirmar que a Educação
Popular é uma interface do universo do Galpão, um espaço mediador de
aprendizagens e de construção de saberes, sistematizados a partir da
convivência e visibilizados nas relações e nas ações das mulheres
recicladoras.
Para fundamentar teoricamente esta Tese, recorri às contribuições
de Michel Maffesoli, Georg Simmel, Martin Heidegger, Carlos Rodrigues
Brandão, dentre outros autores, que favoreceram a compreensão desse
grupo desde uma perspectiva que valoriza a efervescência e a vitalidade nas
relações sociais. Trata-se, portanto, de uma abordagem teórica que se
aproxima e se reconcilia com a vida, tendo-a como uma obra de arte em
criação permanente.
8
RÉSUMÉ
Ce travail se propose de décrire le quotidien d’un hangar de tri de
déchets solides urbains, en présentant les actions et les rapports entre les
sujets en tant qu’attitudes de Souci. La recherche a été développée dans
une perspective qualitative, en décrivant la façon dont le groupe étudié
établit en son sein des rapports sociaux, des rapports de travail et des
rapports de genre.
La description du Quotidien du Hangar Rubem Berta a pu montrer
comment ce groupe s’organise, comment s’y manifestent les attitudes de
Souci entre les femmes et de quelle façon cette dimension peut être perçue
à l’intérieur de l’activité qu’elles réalisent. À la fin, on a pu affirmer que
l’Éducation Populaire a sa place dans l’univers du Hangar, un espace
médiateur d’apprentissages et de construction de savoirs systématisés à
partir de la convivialité et rendus possibles dans les rapports et dans les
actions des femmes trieuses.
Pour les fondements théoriques de cette Recherche, j’ai eu recours à
des contributions de Michel Maffesoli, Georg Simmel, Martin Heidegger,
Carlos R. Brandão, parmi d’autres, ce qui m’a mené à la compréhension de ce
groupe social à partir d’une perspective qui met en valeur l’effervescence et
la vitalité des rapports sociaux. Il s’agit donc d’une approche théorique qui
va vers la vie et se réconcilie avec elle, en la considérant comme une oeuvre
d’art en un devenir créatif permanent.
9
1. APRESENTANDO SITUAÇÕES, POSIÇÕES E DISPOSIÇÕES DA
PESQUISA.
Como é difícil propor uma coisa ao julgamento alheio, sem
corromper o juízo do julgador, pela maneira de apresentá-la! Se
dizemos: ‘Acho-o belo, acho-o obscuro’, ou coisa semelhante,
atraímos a imaginação para esse julgamento, ou a irritamos, ao
contrário. O melhor é nada dizer: e então ele julga segundo o
que é! Ou seja, o que é no momento e segundo o que lhe sugiram
as demais circunstâncias de que não somos causa. Ao menos não
teremos insinuado nada, a não ser que esse silêncio produza
também seu efeito, segundo a interpretação que o julgador
fizer, ou segundo o que conjecturar dos movimentos e aspecto
do rosto e do tom da voz, na medida em que for fisionomista,
tão difícil é manter um juízo no seu natural, ou melhor, tão
poucos existem firmes e estáveis (Pascal, Pensamentos, 105).
10
1.1 SOBRE O TEMA E A PESQUISA
Ouvem-se diversos sons: vidros sendo quebrados, tonéis com latas de
alumínio sendo esvaziados provocando um barulho ensurdecedor, garrafas
plásticas sendo despejadas no silo, o som da prensa se sobressaindo ao
formatar o material separado. De repente, alguém grita para transmitir um
recado: “Violeta, telefone para ti!”. As conversas paralelas ao trabalho são
abafadas por essa variedade de sons emitidos pelos materiais em
movimento, pelo lixo em via de transformação. As vozes femininas ecoam
alto: “Não quero esse lixo, bota no final do cesto”, enquanto o caminhão do
DMLU (Departamento Municipal de Limpeza Urbana) despeja bruscamente
no cesto os resíduos recolhidos nas ruas da cidade.
De repente, ressoa de forma estridente a campainha, é hora do
intervalo. Todas interrompem imediatamente o trabalho e seguem para os
seus nichos para desfrutarem meia hora de descanso, momento que
aproveitam para alimentar o corpo e o espírito: com o lanche, as piadas, as
conversas, as fofocas, as gargalhadas que se reproduzem entre os fardos
amontoados de lixo prensado.
Este é o cotidiano de um galpão de separação de resíduos sólidos
urbanos, é o cenário de um trabalho que se desenrola através das mãos
ágeis de muitas mulheres e dos braços fortes de alguns homens. Entre
gritos e sons diversos, catam cuidadosamente a sobrevivência cotidiana e
encaminham para outro lugar o lixo que parece não ter mais utilidade.
Esta Tese descreve o cotidiano desse espaço coletivo, sublinhando
suas nuances, suas tensões, suas potências, suas aprendizagens, seus laços
afetivos e sociais. Coloca em relevo o que o constitui e sustenta, tendo como
11
perspectiva a noção de Cuidado enquanto um elemento constituinte do Ser e
que contribui para a sustentação subjetiva das suas vidas e da vida da
coletividade, quando cuidam do ecossistema através do trabalho que
realizam.
Os conhecimentos e compreensões que são produzidos e partilhados
ao lado das relações sociais que tencionam e dão coesão ao grupo, são
apresentados como uma interface da Educação Popular, que ocorre nas
trocas convivênciais, enquanto acontecimento, enquanto um querer viver,
diferente da educação como ilustração que ensina pelo processo de
assimilação de uma informação externa, que tem como objetivo uma
formação para um dever ser. Dentre esses conhecimentos, estão a
compreensão do valor social do trabalho que realizam, bem como a forma de
viver as tragédias cotidianas.
Utilizei o Diário de Campo constituído a partir da observação no local
de trabalho e entrevistas semi-estruturadas como instrumento de coleta de
dados, a partir dos quais descrevi o Galpão Rubem Berta enquanto cenário
no qual se tecem fios que proporcionam não somente a sobrevivência, mas a
aprendizagem produzida a partir dos desafios vividos nesse universo,
atravessado pelas relações sociais de trabalho, de lazer, de convivência
coletiva e individual.
O Galpão é apresentado, também, como um espaço de mediação dos
processos educativos, um espaço de educação na e para a vida, no e para o
trabalho. Mostra que nas ações, nas relações, nos conflitos e tensões
cotidianas as mulheres recicladoras agregam saberes, constroem posturas
de Socialidade, Afetividade, Cuidado. Constituem seu
Ethos
Social, a
organicidade que as mantém juntas. A Educação Popular vem a ser o
12
amálgama de uma “Ética Estética” vivenciada por esse grupo, reconhecendo
os saberes de experiência, identificados nas suas práticas cotidianas
enquanto saberes válidos.
Faço a descrição do Cotidiano do Galpão Rubem Berta, apresentando
como se desenrola o trabalho, como se dá à divisão das tarefas, a
administração dos problemas, a relação com o poder público representado
pelo DMLU, como é a chegada do material, enfim, como ocorre a jornada
diária de trabalho dessas pessoas e como se dão as relações sociais.
Por meio da observação e do registro em Diário de Campo, pude ver
as regularidades desse universo e os eventos que alteram esse cotidiano,
tendo como referência a formulação feita por Maffesoli (2001), para quem
o Cotidiano é formado pelas ocorrências banais, a efervescência, o tédio, a
monotonia e as aventuras vivenciadas pelo coletivo.
O Cotidiano é apresentado com uma perspectiva positiva, no qual se
tecem as relações sociais e o jogo de ambivalência desenvolvido por esse
grupo como uma forma de afrontar as tragédias, para as quais não se espera
uma solução, porque se vive o agora, o instante em toda sua intensidade.
Uma forma de viver que Nietzsche definiu como “
amor
fati”
, significando
aceitar o que deve ser vivido, amar e viver com intensidade, o que não pode
ser modificado. Para Maffesoli (2003) isto não significa resignação, nem
tampouco alienação, mas uma forma de viver intensamente a tragédia, sem
esperar por um futuro ou apostar em um devir, um projeto de vida ordenado
como o proposto pela Modernidade.
Nesta perspectiva, descrevo como ocorre a problematização da
remuneração entre as recicladoras e as formas como é vivida esta situação,
sendo esta identificada como uma questão que atravessa e tenciona o
13
cotidiano do grupo. Para as recicladoras, a remuneração é insuficiente, mas
não o bastante para justificar o abandono do trabalho, pois, segundo elas, no
Galpão elas não têm patrão, elas não têm que obedecer a um estranho e,
quando elas precisam de alguma coisa, gozam de liberdade para solicitar às
colegas, responsáveis pela administração, que lhes ajudem, por meio de um
vale, de uma dispensa do trabalho para resolver algum problema pessoal.
Elas reconhecem e valorizam as vantagens que esse local de trabalho lhes
oferece e que é, para elas, relativamente tão importante quanto a
remuneração.
Estes são aspectos característicos do cotidiano desse grupo, que
identifico como uma forma de Socialidade ou uma solidariedade de base que
sustenta essa tribo social. O trajeto comum e a possibilidade do exercício
de uma solidariedade orgânica é uma boa justificativa para esse grupo
Estar-Junto. Assim como a identificação que ocorre, entre outras coisas,
mediante um modo exuberante de viver: “Exuberância pagã que se aproxima
dos gozos do presente, levando a uma vida audaz, intrépida, a uma vida
atravessada pela frescura do instante, no que ele tem de provisório, de
precário e, portanto, de intenso” (MAFFESOLI, 2003, p. 27).
A exuberância da qual fala Maffesoli é uma marca evidente no
cotidiano dessas mulheres, e é uma atitude responsável por eventos
dramáticos, e, às vezes, não tão felizes, como alguma relação amorosa
desastrosa, uma gravidez indesejada, problemas de saúde provocados pela
forma exagerada e aventureira de viver um momento
1
.
1
Reservei-me o direito de não relatar algumas ocorrências observadas durante a pesquisa,
que possam causar constrangimento às mulheres pesquisadas. Mas os argumentos que
desenvolvo neste trabalho estão fundamentados em fatos concretos, os quais estou
caracterizando como “exuberante”.
14
Para me aproximar de uma compreensão do cotidiano desse espaço
social, recorri à Sociologia Formal, pensada por Georg Simmel, que consiste
em analisar as formas que estruturam a interação entre os indivíduos e que
constituem a sociedade
2
. A Sociologia das Formas Sociais está sistematizada
por polaridades, ou pelo princípio da dualidade e da relação entre as coisas,
tal como: distinção e imitação, oposição e integração, resistência e
submissão, diferenciação e expansão, distanciamento e reaproximação
(VANDENBERGHE, 2001. Tradução minha).
Esclarecendo melhor a formulação de Simmel para a noção de Forma, o
autor parte de uma revisão relativista do criticismo neokantiano
3
saindo de
uma visão metafísica do mundo (Kant) e se aproximando de uma percepção
Vitalista
4
(Goethe, Nietzsche e Bergson), transformando a filosofia
transcendental da consciência para o sentido de uma filosofia quase
transcendental da vida. Para Simmel, o conhecimento encontra suas raízes
nas profundezas irracionais da vida, concebida como uma efervescência
contínua e criadora de pulsões, de energia e de conteúdos da consciência que
2
Este é apenas um aspecto da contribuição de Georges Simmel no campo da Sociologia e da
Filosofia. Para este trabalho me interessa sua abordagem sobre as formas de interações
nos grupos sociais. A aproximação com a obra de G. Simmel justifica-se, para melhor
compreender o “Formismo”, termo proposto por Michel Maffesoli (1988).
3
O neokantismo (ou neocriticismo) foi um movimento filosófico prevalecente na Alemanha
entre 1850 e 1920 que compreendia que a Filosofia pode e deve ser uma ciência rigorosa, e
não uma visão do mundo, que se pergunta sobre o fazer científico e, de forma mais geral,
sobre o fazer da cultura, em um esforço para descobrir as condições de possibilidade
entre as atividades da consciência. Os neokantianos substituíram a ontologia por uma
analítica das categorias de entendimento. Cf. VANDENBERGHE, (2001 p. 23, tradução
minha).
4
A Filosofia da vida esteve em voga na Alemanha e na França por volta da primeira Guerra
Mundial. Foi um movimento derivado do movimento romântico na poesia (Goethe, Herder,
Novalis) e da filosofia de Fichte, Schopenhauer e Nietzsche. É um movimento filosófico
que consiste em uma compreensão do irracional como um aspecto importante para as ações
do homem (VANDENBERGHE, 2001, p. 34, tradução minha). A Filosofia da vida não filosofa
sobre a vida, é a própria vida que filosofa nela mesma. “Como filosofia, ela quer ser um
órgão dessa vida; quer intensificá-la, abrir-lhe novas formas e figuras. (...) Ela não indaga
pela utilidade de um conhecimento, mas pela sua potência criadora” (SAFRANSKI, 2000, p.
78,79).
15
nos leva a uma experiência imediata, isto é, o Vitalismo. Para Simmel a vida é
antítese da forma, mas para se realizar, a vida deve produzir as formas, o
movimento das interações sociais, criando outra coisa, que vem a ser mais
que a vida
5
. O autor chama atenção para o processo das interações humanas
e para a multiplicidade de possibilidades de compreensão sobre uma
realidade social que produz a Forma, a imagem do movimento.
Com a proposição “Formal”
6
Simmel espera estudar a forma da vida
social, ou seja, descrever de dentro, os contornos da vida em sociedade
(MAFFESOLI, 1988). A partir da idéia de Forma, o que se espera é
apresentar o movimento que produz as formas de organização social, traçar o
quadro produzido a partir da interação entre os sujeitos, as múltiplas
criações ou situações da vida cotidiana, valorizando as cores, sua complexa
arquitetura, a ambiência intensa, a profunda aparência da vida ordinária
(MAFFESOLI, 1988). Para isso, é necessário um olhar perspicaz e atento
para capturar os acontecimentos e apresentá-los em sua textura, expondo
sua diversidade e suas facetas sem, no entanto, perseguir uma conclusão
definitiva, pois, para Simmel, existe uma pluralidade de caminhos
interpretativos e uma infinidade de significados para os acontecimentos
sociais, sendo salutar se fazer um esforço de aproximação ao fenômeno
estudado (WAIZBORT, 2000).
Georg Simmel busca colocar em relevo, por intermédio do método, as
relações sociais minúsculas que pontuam os interstícios da sociedade, que
para ele estavam até então negligenciadas pela Sociologia, que se preocupava
em estudar os fenômenos sociais em que as relações de interação já estavam
cristalizadas. O autor entende que, além dos fenômenos perceptíveis, existe
5
Cf. VANDENBERGHE F. 2001, p. 34-35.
6
No sentido de imagem e não de formalismo, de conduta.
16
uma gama de formas menores de interação entre os homens, às vezes,
aparentemente insignificantes que se movem entre as amplas formações
sociais reconhecidas, constituindo na verdade a sociedade como a
conhecemos.
Tais interações são atravessadas por polaridades opostas que o autor
acredita ser responsável pelo equilíbrio da relação interativa entre os
indivíduos, constituindo os grupos sociais e, assim descritas por Simmel:
Que os homens se olhem uns aos outros, e que eles sejam invejosos
entre si; que eles troquem cartas ou almocem juntos; que eles
inteiramente independentes de quaisquer interesses
compreensíveis, se achem simpáticos ou antipáticos; que a gratidão
e uma obra altruísta ensejem um efeito ligador contínuo e
ilacerável; que um pergunte ao outro sobre o caminho e que eles se
vistam e se enfeitem uns para os outros -todas as milhares de
relações, de pessoa a pessoa, momentâneas ou duradouras,
conscientes ou inconscientes, inconseqüentes ou conseqüentes, das
quais estes exemplos foram colhidos aleatoriamente, atam-nos
incessantemente. A cada instante esses fios são tecidos, desatados,
retomados, substituídos por outros, entrelaçados a outros. Aqui
repousam as interações, só acessíveis à microscopia psicológica,
entre os átomos da sociedade, que sustentam a tenacidade e a
elasticidade, a variedade e a unidade desta vida tão nítida e tão
enigmática da sociedade. (SIMMEL, 1977, p. 30, tradução minha).
Simmel chama a atenção para a importância dos “nadas” que
constituem a vida, dos fios delicados que compõem as relações entre os
grupos sociais e dão forma à grande figura que é a vida em sociedade. O
autor entendia que, para melhor compreender o tecido das relações sociais, é
importante olhar com acuidade para as formas que se insinuam no movimento
das interações entre os sujeitos, constituindo tais relações. Neste sentido,
MAFFESOLI (2004, p. 68, tradução minha) salienta que a Forma “é o
corolário de uma ambiência estética, aquela dos afetos comuns, aquela do
emocional, onde a criatividade do todo em cada um depende da comunidade
na qual ele se inscreve”. Em outras palavras, a Forma é o contexto no qual se
17
tecem as relações sociais, é o matiz que colore a vida cotidiana, é o fio
rouge
que delineia a vida em comunidade.
Partindo de Simmel, MAFFESOLI (1988) produz um neologismo
teórico, o “Formismo”. Referindo-se ao procedimento de revelar as
características da vida social com a preocupação de não deformá-las, ou seja,
tentar apresentá-las o mais próximo do que aparece ao observador,
descrevendo a imagem do movimento do jogo das formas sociais. Com isso, o
autor procura dar importância às imagens, ao movimento, à aparência que dão
forma aos fenômenos sociais, aspectos, para ele, negligenciados nas análises
predominantes nos trabalhos científicos. Maffesoli lembra a desconfiança
que a imagem despertava na tradição científica e que teve origem na tradição
iconoclasta judaico-cristã, que desconfiava da expressão dos sentidos que se
faziam mediante as imagens.
Para Gilbert Durand (1998), tal desconfiança foi herdada do
monoteísmo expresso na Bíblia que proibia a substituição de Deus pela
imagem. Para a filosofia socrática, a verdade era alcançada a partir de uma
lógica binária: “um falso e um verdadeiro”. Tal idéia teve prosseguimento
através do empirismo que buscava a verdade por meio da experiência dos
fatos e da lógica do raciocínio binário, ou de uma dialética que tinha como
princípio a exclusão de um terceiro, ou de uma terceira conclusão, além da
verdadeira e da falsa. Em seu argumento, que mostra a exclusão da imagem e
do imaginário que a produz nos processos intelectuais, DURAND (1998, p. 10)
lembra...
Lógico que, se um dado da percepção ou a conclusão de um raciocínio
considerar apenas as propostas ‘verdadeiras’, a imagem, que não
pode ser reduzida a um argumento ‘verdadeiro’ ou ‘falso’ formal,
passa a ser desvalorizada, incerta e ambígua, tornando-se impossível
extrair pela sua percepção uma única resposta ‘verdadeira’ ou ‘falsa’
18
formal. (...) A imagem pode se desenovelar dentro de uma descrição
infinita e uma contemplação inesgotável. Incapaz de permanecer
bloqueada no enunciado claro de um silogismo, ela propõe uma
‘realidade velada’ enquanto a lógica aristotélica exige ‘claridade e
diferença’.
Talvez por ver as interações sociais como um tecido que suporta
infinitas interpretações, Simmel tenha buscado a imagem como eixo de
derivação para uma compreensão sociológica. Maffesoli, tributário da
imagem, da aparência, do banal e da efervescência que mobiliza a vida em
sociedade, propõe o “formismo” como categoria epistemológica para a
compreensão da vida cotidiana e do conhecimento ordinário nela produzido.
Para Maffesoli, numa perspectiva Formista, a realidade pode ser aceita em
sua incompletude, sua parcialidade e efemeridade,
...a atitude Formista respeita a banalidade da existência, das
representações populares e das minúsculas criações que pontuam a
vida de todos os dias. Ela não é doadora de sentido; ela não inscreve
nada numa dada finalidade religiosa, política ou econômica; ela não
formula imperativos categóricos. À sua maneira, ela se contenta em
dizer seu tempo, incorporando-se ao discurso polifônico que uma
sociedade produz a seu próprio respeito (MAFFESOLI, 1988, p.
112).
A Forma, por não ser algo definido
a priori,
mas que vai se fazendo no
processo das relações sociais, em se tratando da formação dos grupos em
sociedade, é uma atitude epistemológica que procura compreender o que
dizem as aparências, agregando os acontecimentos à sua configuração. Em
outras palavras, a atitude formista acolhe os aspectos constituintes do
fenômeno estudado sem uma preocupação de explicá-lo, de justificá-lo, mas
antes de apresentá-lo.
Neste sentido, faço uma aproximação da perspectiva formista em
Maffesoli por considerá-la teoricamente generosa, possibilitando realizar a
descrição do Cotidiano do Galpão Rubem Berta, deixando sobressair os
19
aspectos e fios que constituem a tessitura do espaço estudado. Trazendo as
falas e os movimentos dos sujeitos, os saberes que se formulam a partir
desta convivência em comum, as tensões e os prazeres que pontilham esse
cotidiano, busco traçar a forma e os contornos do
lócus
pesquisado.
1.2. SOBRE O PESQUISAR E O PESQUISADO
O itinerário teórico-metodológico que fundamenta e delineia minha
incursão pelo universo investigado vai se desenvolvendo trazendo para o
diálogo as pessoas entrevistadas, mostrando o contexto do Galpão. Utilizo
nome de flores para denominar as entrevistadas
7
, recurso que permite
manter suas identidades no anonimato e, ao mesmo tempo, tratá-las de um
modo afetivo, não escondendo sua humanidade atrás de um código (X ou Y,
por exemplo). Dentre as entrevistadas, duas pessoas preferiram ter seus
nomes revelados, vendo nas entrevistas uma oportunidade de dar testemunho
da positividade que vêem em seu trabalho.
Como procedimento para coletar os dados, e que também me
proporcionou familiarização
8
com o espaço em questão, fiz observações
durante a jornada de trabalho em diferentes dias da semana, acompanhando
o desenrolar da atividade, ouvindo-as conversar, atenta aos olhares, ouvindo
os barulhos, sentido os cheiros do material remexido, a poeira que passeia
pelo ar quando o caminhão despeja os sacos no cesto, me assustando com o
respingo de líquido podre que se espalha quando o saco cai rompendo-se com
7
Utilizo o artigo feminino, pois oitenta por cento dos sujeitos entrevistados são do sexo
feminino.
8
“Vou abrir um lugarzinho aqui para tu trabalhar”, me disse ironicamente Violeta certo dia,
como forma de registrar minha presença freqüente no Galpão. Algumas mulheres que não
me conheciam tinham curiosidade em saber por que eu ia tanto ao Galpão, se eu tinha algum
parente trabalhando lá. A maioria me conhecia e sabia sobre minha pesquisa e, sempre se
dirigia a mim como “professora”.
20
o impacto. Os gritos de reclamação pelo excesso de material e, às vezes, pela
falta deste no cesto. As piadas feitas para a colega que está seescorando
no trabalho. Todos esses fatos e impressões por eles causados foram
registrados em Diário de Campo ou no “caderninho” como diziam as
recicladoras.
Durante cerca de duas a três horas diárias, o tempo de permanência
no Galpão era determinado pelos acontecimentos e por minha programação de
trabalho, em um período de aproximadamente um ano permaneci no Galpão
para “catar informações
9
”. Procurava chegar sempre um pouco antes do
intervalo para o lanche, que ocorre às 09h30min e se estende até às 10 h.
Durante o lanche, elas se agrupam por afinidade, por parentesco, por
interesse em “filar” o cigarro, o chimarrão. Eu costumava ficar junto com o
grupo formado por Violeta, Margarida do Campo e Íris (filha de Violeta). Ao
tocar a campainha, elas lavavam as mãos, abriam um espaço entre os tonéis,
colocavam caixotes que serviam de banco, colocavam ainda uma caixa no
centro do grupo que utilizavam como mesa. Ali, dispunham o que cada uma
tinha para comer. Sempre colocavam um banco para mim, forravam com
jornal: “é a almofada” diziam.
O lanche sempre tinha macarrão e algum tipo de “mistura”, tipo pão
com mortadela ou outro tipo de carne enlatada ou embutida. O pão era feito
por Margarida do Campo, o macarrão geralmente era a contribuição de
9
Fala de Violeta, uma das pessoas mais importantes no processo de coleta dos dados.
Sempre que a conversa ficava mais interessante, ou seja, que os dados começavam a
aparecer, eu sacava minha agenda, ela então dizia: “Agora que a conversa está boa ela vai
começar a anotar no caderninho das informações. Ela fica aqui catando informações”. Vale
ressaltar que nesta fala não havia intenção de censurar minha presença nem tampouco
minha atividade ali.
21
Violeta, Íris, em geral, comprava algo pronto
10
. Juntando todas as
contribuições, faziam uma lauta refeição que era finalizada com uma xícara
de café e um cigarro. Elas sempre me ofereciam café, e comentavam que o
copo estava limpo. Muitas vezes lavavam ali mesmo dando-me certeza do que
estavam falando.
As outras mulheres também se reuniam: tinha o grupo que se juntava
na frente da escola e sempre contavam muitas piadas e riam alto; outro que
se juntava no barracão, na entrada do Galpão, onde ficam armazenados os
vidros. Este grupo era formado por três casais e, nas poucas vezes que
permaneci com eles, falavam muito sobre os acontecimentos do bairro, sobre
as dificuldades de suas vida, e, às vezes, das colegas de trabalho. Além do
parentesco entre alguns e do vínculo amoroso, o cigarro e o chimarrão eram
importantes para a união deste grupo. Tinha ainda o grupo que se agregava
ora dentro do Galpão, ora no portão de acesso ao Galpão. Era o grupo menor e
do qual tentei me aproximar, mas percebia que havia uma reserva delas em
relação a outras pessoas
11
.
No escritório se reunia o pessoal da diretoria e, geralmente, aqueles
que tinham algum parentesco com algum membro da diretoria. Não era um
grupo fechado, pois sempre que outra pessoa precisava de um cigarro, ou
mesmo de um gole de café, não se constrangia em se juntar ao grupo. Os
diretores também se deslocavam para os outros grupos para pedir cigarro e
café aos seus colegas de trabalho. Cada grupo tinha seu ponto de
aglomeração, seu território, mas havia trocas e interação entre eles,
10
Durante um período da observação, Íris estava grávida e era a que mais comia no grupo,
embora fosse a que menos se preocupava em providenciar o próprio alimento. Era protegida
pela mãe e a amiga.
11
Quando estava realizando as entrevistas, entrevistei uma pessoa deste micro-grupo e
tentei entrevistar uma outra que marcou comigo por duas vezes e, na última hora, ficava
temerosa sobre meu interesse em entrevistá-la. Por fim, acabei desistindo da entrevista.
22
mudanças dos sujeitos de um grupo para outro conforme os acontecimentos e
os interesses em questão.
O Galpão é um local que, à primeira vista, pode provocar repulsa,
provavelmente em decorrência da imagem que construímos do lixo em nosso
imaginário, como sendo algo ligado ao sujo, mal-cheiroso e sem nenhuma
utilidade. Este é o lixo orgânico. O lixo seco pode ser limpo e sem odor desde
que nós, utilitários dos materiais descartáveis, comecemos a estabelecer
outra relação com o lixo que produzimos, como esclarece uma recicladora:
Tu encontras sacolas que até dá gosto de olhar porque está tudo
separado, está escrito se é vidro, são pessoas que a gente até
gostaria de conhecer, gostaríamos que esta pessoa se identificasse
para nós, porque se tem um caco ela se preocupa em escrever,
cuidado vidro! Mas tu abres outra sacola e encontra fralda
descartável, absorvente, papel higiênico junto com o material
reciclável, daí tu te apavora e pensa: pôxa, mas aquela pessoa tão
consciente e essa outra já não colabora. Mas é a realidade. Isso não
deveria acontecer porque há quanto tempo existe a Coleta Seletiva
em Porto Alegre? Já era para as pessoas estarem mais conscientes,
mas nós ainda temos esse tipo de problema (MARIZA, 43, 2004).
As mulheres recicladoras já estabeleceram outra relação com o lixo: o
Galpão é o seu local de trabalho. Elas diferenciam o espaço que cada uma
ocupa para fazer a sua atividade de separação limpando a sujeira, algumas
colocam tapetes para proteger seus pés, varrem antes de começar o
trabalho, limpam o balcão, enfim, fazem a separação entre o que é lixo, que
não serve, e o material por elas separado para venda. Toda semana uma
mulher é destacada para varrer o Galpão recolhendo o lixo que fica pelo chão
e o que cai no pátio quando o caminhão descarrega o material no cesto. Há
uma preocupação com a manutenção do local de trabalho: “Trabalhamos com
lixo, mas não temos que viver no meio do lixo”, diz Mariza, justificando a
preocupação com a limpeza do Galpão.
23
Por minhas constantes visitas ao Galpão, acabei me acostumando com o
cheiro, com o barulho provocado pelo material que é atirado no cesto, nos
silos, nos tonéis, as latas que caem em cascata, o vidro que é quebrado, o
alumínio que é prensado.
Figura 1: Prensa Galpão Rubem Berta
É uma infinidade de sons que compõem um fundo onde vozes gritam de
forma estridente para dar um recado à colega que se encontra no final do
Galpão, ou ainda vozes mais suaves que sustentam uma conversa para ajudar o
tempo passar mais depressa, para amenizar a incômoda posição de trabalho,
para embalar as ágeis mãos que separam com minúcia o útil do descartável. É
um trabalho fatigante, repetitivo, exaustivo, que exige paciência na
separação:
Eu não gosto de separar o lixo do Correio porque a gente tem que
aproveitar só o lacre, tendo que tirar todo o papel (etiquetas) que
vem junto. É muito chato! (DÁLIA, 53, 2004).
E que exige proteção:
24
Veio um caminhão errado do Hospital, a Rosa está com alergia
porque estava trabalhando com esse lixo
12
(JACINTO, 60, 2004).
Apesar de saberem da periculosidade do trabalho que realizam, o uso
de equipamentos de proteção não é uma realidade no Galpão Rubem Berta. Há
algumas justificativas para isso. A mais corrente é que o uso de luvas, por
exemplo, dificulta o tato para a separação, diminuindo o desempenho das
recicladoras e, conseqüentemente, diminuindo a renda. Mas este é um
problema que poderia vir a ser resolvido caso o uso de material de proteção
fosse obrigatório. Entendo que os principais fatores para o não uso de
equipamentos de proteção são: 1) a falta de obrigatoriedade e, por
conseqüência, de fiscalização por parte de algum órgão público de proteção
ao trabalhador, pois, não sendo esta uma atividade regulamentada, não há
nenhum tipo de fiscalização; 2) a falta de condição do próprio Galpão para
adquirir os equipamentos que representam um investimento alto para a
receita deles:
Luvas, as coisas que a gente usa para trabalhar são doados pela PUC.
Quando eles trocam o fardamento deles: os jalecos, calças, botinas,
luvas, vêm tudo para cá e nós reaproveitamos. Porque não temos
dinheiro para comprar e isso aí (o lixo) é um perigo porque tu
trabalhas com tudo quanto é tipo de coisa, tu nunca sabes o que vais
encontrar quando abre uma sacola (MARIZA, 43, 2004).
As mulheres trabalham em uma posição incômoda, de pé durante todo
o dia diante do cesto, ou seja, a imagem diária é a de uma montanha de lixo.
Imagem desagradável, de uma monotonia que é quebrada quando o saco
12
O galpão recebe semanalmente um caminhão de lixo hospitalar que não é colocado no
cesto, é despejado no pátio e separado ali mesmo, deste lixo se aproveita basicamente os
frascos, mas vêm muitas outras coisas juntas, já se encontrou até feto. Esse lixo é
perigoso e, por isso, rejeitado por outros galpões. É destacado um grupo para fazer a
separação desse material e, em geral, as mulheres reclamam porque sempre ficam com
alergia.
25
atirado no cesto por alguém, que não se lembra que existe outra pessoa do
outro lado do muro, se rompe espalhando detritos pelo ar. As doenças
respiratórias são comuns entre elas, bem como as doenças de pele.
Todos os aspectos aqui levantados dão Forma ao Cotidiano deste
espaço de trabalho e de convivência, Forma, às vezes, monstruosa, mas
paradoxalmente sempre afirmativa da vida. Engendrada numa vitalidade que
supera as tensões, as dores e as decepções que fazem a tragédia diária.
Chamo de vitalidade a capacidade que estas mulheres demonstram ao
permanecerem neste cenário e, apesar dele, constituírem atitudes de
solidariedade, de ajuda mútua, de lazer, de descontração, pois como elas
dizem: “este é um trabalho como outro qualquer!” (MARIZA, 43, 2004).
Figura 2: mulheres trabalhando no cesto
Atendendo ao apelo de vida que há nessa tribo
13
, que não quer ser vista
com piedade nem preconceito, que desafia diariamente os obstáculos da
existência, optei por apresentar justamente os fios invisíveis que sustentam
13
Maffesoli usa o termo Tribo como metáfora para designar “... o aspecto ‘coesivo’ da
partilha sentimental de valores, de lugares ou de ideais que estão, ao mesmo tempo,
absolutamente circunscritos (localismo) e que são encontrados, sob diversas modulações,
em numerosas experiências sociais” (Maffesoli, 2000b, p. 28). O tribalismo é visto como um
sentimento de pertencimento a um grupo social que não está reduzido à lógica do racional.
Sentimento de pertença que parte do vivido, de se sentir parte de algum tipo de
comunidade seja ela qual for.
26
o Cotidiano do Galpão Rubem Berta. Como um caleidoscópio que forma várias
imagens conforme o seu movimento, o espaço social aqui exposto oferece
várias visões, todas com sua porção de veracidade, todas fundadas a partir
de uma realidade social polissêmica. Sendo que a imagem mais comum, a que
salta aos olhos é a imagem da miséria, de um trabalho que causa espanto, de
um espaço que provoca aversão, de uma gente que desperta piedade
14
. Porque
esta é a imagem exposta e a que comove nossa cultura higienista
15
.
Invertendo um pouco a lógica ao invés de perguntar, por que homens e
mulheres necessitam remexer o lixo para garantir sua sobrevivência, de
buscar as causas de tal realidade e, por conseguinte, obstinar-me a chegar a
uma proposição de superação desse estágio de vida preferi buscar
compreender
Como essas pessoas sobrevivem nesse contexto. O que está,
para além do econômico, conformando
esse grupo e o quê os mantém na
atividade de separação de resíduos sólidos urbanos?
É importante lembrar que o foco deste trabalho não é o lixo, mas as
pessoas que lidam com esse fenômeno social. É compreender que, “... a vida
social em sua integralidade está imersa numa atmosfera estética, é feita
14
Observei a reação das pessoas que, ao visitarem o Galpão, em geral misturavam piedade e
espanto, além de taparem o nariz para se protegerem do cheiro desagradável do lixo. Certo
dia, ouvi a recomendação de uma recicladora que acompanharia um grupo de crianças em
visita ao Galpão para que não olhassem para as mulheres com espanto porque elas estavam
trabalhando, a única diferença entre o trabalho delas e o trabalho de outras pessoas, era
que elas separavam lixo, mas aquele era um trabalho digno como qualquer outro.
15
Cláudia Fonseca (2000) nos alerta para o discurso das classes privilegiadas sobre os
pobres que “oscila entre a compaixão e a condenação indignada” e lembra que: “Relativizar
as práticas de pessoas que partilham de nosso universo é questionar nossos próprios
valores; é admitir as contradições de um sistema econômico e político que cria subgrupos
com interesses quase opostos. Procurar compreender certas dinâmicas não significa louvá-
las, nem advogar sua preservação. Significa, antes, olhar de forma realista para as
diferenças que existem no seio da sociedade _ sejam elas de classe, gênero, etnia ou
geração; significa explorar o terreno que separa um indivíduo do outro na esperança de
criar vias mais eficazes de comunicação” (Fonseca, 2000, p. 13-14).
27
antes de mais nada, e cada vez mais, de emoções, de sentimentos e de afetos
compartilhados” (MAFFESOLI, 1998, p. 116).
Dentre tantas outras possibilidades teórico-metodológicas, optei
trabalhar com a descrição do Cotidiano investigado mostrando como se
desenrola o dia-a-dia do trabalho, a interação entre as pessoas, as tensões e
as mediações que dão forma a este universo. Para MAFFESOLI (1988; 1998),
a descrição é um recurso metodológico que se presta para uma “mostração do
dado societal”, ou seja, mostrá-lo sem uma explicação
a priori,
ou mostrar a
vida social como ela é, pois,o próprio da descrição é, justamente, o respeito
pelo dado mundano. Ela se contenta em ser acariciante, em mais acompanhar
do que subjugar uma realidade complexa e aberta” (MAFFESOLI, 1998, p.
116).
Em uma perspectiva fenomenológica de atenção ao dado como tal, a
descrição
16
não se propõe a uma categorização, conceituação, explicação e
delimitação de juízo. Propõe-se, sobretudo, a abrir horizontes de
compreensão dos fenômenos investigados. Desta forma, por meio da
descrição posso colocar em relevo a textura do Cotidiano do Galpão
vivificado pelas pessoas que nele operam as trocas, a convivência, os
conflitos, a “socialidade”. A descrição dos fatos aqui apresentada é de algum
modo minha interpretação
17
, que se coaduna com uma escolha de abordagem
teórica. Reconheço que, muitas são as possibilidades de compreensão e, optei
por apresentar a face que me parece ser a menos visível neste universo: a de
16
Cf. José Ferrater Mora (2001) sobre o significado e uso do verbete Descrição na
Filosofia e nas Ciências.
17
Os dados aqui descritos não são puros, estes já foram alterados pela objetivação do meu
olhar, por meus interesses investigativos. E quando insisto em mostrar os dados como estes
se apresentam, estou querendo, contudo escapar de uma postura de julgamento, me
refugiando numa “atitude relativista” (OLIVEIRA, 2000) enquanto estratégia
metodológica.
28
um grupo de mulheres trabalhadoras, como qualquer outro, como afirma este
depoimento de uma recicladora:
Eu disse para umas pessoas que vieram nos visitar há uns quinze
dias, eles perguntaram: vocês se sentem humilhados por
trabalharem com lixo? Eu respondi: A troco do quê? Aí eu perguntei
para um deles onde ele morava, ele respondeu que mora na (rua)
Cristóvão Colombo. Pois é, seu lixo vem todo para cá. O senhor já
pensou se não fossemos nós limpando seu lixo como é que estaria sua
casa, ou a sua rua. Estaria acumulada de lixo e imundície (MARIZA,
43, 2004).
É justamente a positividade expressa na fala acima, e em tantas
outras entrevistas, que escolhi apresentar, considerando que os aspectos
mais duros desta realidade já estão por demais explorados e o que interessa
às mulheres recicladoras é serem vistas como trabalhadoras, serem
respeitadas pelo que realizam e mais que isso, terem seus direitos enquanto
cidadãs e trabalhadoras reconhecidos. É certo que existe aquelas que estão
ali temporariamente e que têm vergonha de sua atividade, como a filha de
uma recicladora que por estar “parada” (sem trabalho) trabalhou alguns dias
no Galpão. Ela se recusava a trabalhar no pátio porque ficava exposta aos
transeuntes, e só colocava a roupa de trabalho dentro do galpão, porque “eu
não quero que os moleques da rua me chamem de lixeirinha”, dizia ela.
Não pretendo fazer um elogio romântico ao trabalho de separação de
materiais recicláveis, mas, por outro lado, não quero ignorar a valorização que
as recicladoras atribuem ao seu trabalho. Vale lembrar que essas pessoas não
estão ali por escolha e que esta é uma atividade resultante de uma sociedade
desigual que produz riqueza e avanço tecnológico, que alimenta o consumismo
e, ao mesmo tempo, se mostra “incapaz” de atender a todos com eqüidade.
Para as mulheres recicladoras, o fator mais importante não é o tipo de
trabalho que realizam, mas o que esse trabalho lhes proporciona que é, antes
29
de tudo, a sobrevivência com honestidade que tiram dessa atividade. O que
me chama a atenção é que, mesmo trabalhando em condições precárias, essas
pessoas não se atêm a esse aspecto, mas avançam constituindo laços sociais,
tecendo uma rede de proteção, auto-estima e solidariedade, valores que a
sociedade lhes nega e tem dificuldade em enxergar nessa tribo social. Ao
descrever fragmentos do Cotidiano desse grupo, quero compreender a
dinâmica que produz esses valores entre elas e mostrar outro aspecto de
uma realidade difícil:
A gente sabe que a vida não é um mar de rosas nem para aqueles que
têm dinheiro, quanto mais para nós que somos humildes, que vivemos
de baixa renda, mas eu acho que, às vezes, uma palavra amiga vale
mais do que um monte de dinheiro (MARIZA, 43, 2004).
A aceitação do trabalho que realizam está presente na fala das oito
pessoas entrevistadas: seis mulheres e dois homens. Foram entrevistados o
presidente, a tesoureira e a secretária da Associação Ecológica Rubem
Berta, quatro mulheres recicladoras, duas delas concorreram ao cargo de
presidente e vice-presidente na última eleição para escolha da diretoria da
Associação. Os outros entrevistados, duas mulheres e um homem, nunca
concorreram a nenhuma função eletiva na Associação. As entrevistas foram
realizadas ao longo de seis meses, tendo sido agendadas previamente. Por
ocorrerem no horário de trabalho, algumas entrevistas se arrastaram por
alguns dias, pois tive a preocupação de não tirá-las, por muito tempo, da sua
atividade. As entrevistas com os diretores, tiveram que ser adiada várias
vezes em função da falta de tempo de quem eu desejava entrevistar. No final
do mês, por exemplo, é quase impossível, e até mesmo desaconselhável,
conversar com os diretores, que estão ocupados e preocupados com a folha
de pagamento.
30
A observação sistemática da rotina do Galpão teve como objetivo
apreender de forma panorâmica o Cotidiano do espaço e do grupo
investigado. Procurei ir ao Galpão em momentos e em dias diferentes da
semana, pois cada dia e cada momento, embora parecesse igual, tinha uma
característica própria, como por exemplo, os dias que antecedem o
pagamento quando todos ficam apreensivos e curiosos para saber quanto e
quando vão receber. Nesses dias, no horário do lanche, as idas ao escritório
se intensificam. Vão pedir um cigarro, tomar um chimarrão, mas ao mesmo
tempo vão em busca de qualquer informação, que sempre se reproduz entre
os outros grupos, mesmo que seja a ausência de informação, o que significava
que a situação não era boa. Os diretores ficam mais calados e mais
estressados, é perceptível uma tensão no ar. As piadas giram sempre em
torno do assunto salário. Após o pagamento, se observa um silêncio e uma
quietude, como se estivessem à procura de uma explicação para o fato da
remuneração, mais uma vez, não ter sido suficiente para pagar as contas.
Algumas vezes, cheguei ao Galpão e o encontrei vazio, silencioso, os
balcões ocupados pelos gatos, os cachorros passeando livremente. O trabalho
tinha sido suspenso naquele turno porque o material era insuficiente para
ocupar todos, ficando apenas alguns da diretoria e aquelas que parecem não
ter vida fora do Galpão, como Violeta. Ficavam no escritório conversando
bobagem, contando piadas, aguardando a ligação de um comprador ou
esperando o caminhão para entregar alguma carga. A maioria aproveitava o
turno livre para pôr em dia o trabalho doméstico.
No horário do meio dia, quando a atividade é suspensa para o almoço,
aquelas que moram em bairros mais distantes, fazem sua refeição no Galpão
mesmo, esquentando sua marmita e se aglomerando longe do cesto para
almoçar. O cigarro e o chimarrão alimentam a conversa até o horário de
31
retorno ao trabalho. As mulheres que moram próximo ao Galpão vão em casa
alimentar a família, lavar a roupa, encaminhar os filhos para a escola. No dia
do pagamento, o trabalho é somente de um turno para que elas possam ir ao
banco retirar seu dinheiro. Geralmente as mulheres que moram em outro
bairro se arrumam no próprio Galpão para irem ao banco: trocam de roupa,
arrumam os cabelos, colocam batom e saem em bando, para se protegerem e
para se ajudarem, pois algumas não sabem ou têm medo de utilizar o caixa
eletrônico do banco
18
.
Com as idas freqüentes ao Galpão pude observar os movimentos,
participar das rodas de chimarrão e ouvir as estórias, os risos, as piadas,
saber das tragédias individuais, ser o alvo da curiosidade delas. Algumas
queriam saber da minha vida, se era casada, se tinha filhos, porque ia tanto
ao Galpão, se admiravam do meu interesse pelo trabalho delas, falavam
palavrões para me testar, me faziam pedidos. Enfim, minha freqüência ao
Galpão acabou estabelecendo um laço de afetividade com a maioria delas, o
que me favoreceu enquanto pesquisadora e, ao mesmo tempo, me trouxe
alguns constrangimentos, pois toda essa proximidade acabava gerando um
excesso de escrúpulos quando era necessário especular para além do exposto
pelo grupo.
Durante um tempo, Violeta foi a única informante mais freqüente.
Quando eu chegava ao Galpão, as mulheres já me indicavam a localização de
Violeta, ou gritavam: “Violeta, visita para ti”. Minha relação se estendeu para
Margarida do Campo, que estava sempre com Violeta, e confesso que os
18
Para escaparem dos constantes assaltos no período do pagamento, há cerca de dois anos
o Galpão abriu conta para todas as recicladoras e o pagamento é depositado em conta
corrente. Cada uma tem um cartão eletrônico para a movimentação da conta. É a primeira
vez que a grande maioria delas tem uma conta bancária e algumas não se acostumaram com
a situação e não vão ao banco, entregam seu cartão para uma colega pegar seu dinheiro.
32
olhares me incomodavam, assim como me incomodava ter a “cara de pau” de
chegar ao grupo e ficar “assuntando”, puxando conversa para amainar a
estranheza que poderia causar minha presença. Participei das reuniões do
grupo de saúde, uma atividade desenvolvida por Amélia Mano, como uma
forma de me aproximar de todo o grupo e justificar minha presença no
Galpão
19
. Como outras iniciativas, esta também não foi muito adiante e o
grupo de saúde se desfez
20
.
Quando já tinha mais claro o que investigaria no Galpão, tomei a
atitude de falar formalmente com a diretoria sobre meu trabalho. Tive uma
excelente receptividade e me senti autorizada e legitimada para freqüentar
o Galpão e desenvolver minha pesquisa. Os recicladores esperam que este
seja o procedimento de todos os pesquisadores e curiosos que aparecem,
diariamente, no Galpão Rubem Berta, o que nem sempre acontece.
A observação foi também uma forma de mapear o espaço, ver como os
acontecimentos afetavam as pessoas, como se davam as relações, quais eram
os mais engajados no contexto do Galpão, quais as pessoas que tinham mais
conhecimento sobre o funcionamento e a história daquele espaço, que tinham
conhecimento da reciclagem como prática social e ambiental, participavam de
atividades na comunidade. MORIN (1994) chama de “observação
fenomenográfica”, essa ação de observar de forma mais ampla para melhor
compreender o fenômeno estudado ou, metaforicamente, fazer do olhar uma
19
Médica e mestranda em educação no PPGEDU no período da pesquisa.
20
Desde 1999, um grupo de alunos de diversos cursos de graduação e do curso de Pós-
Graduação em Educação da UFRGS, desenvolve projetos de extensão, coordenado pelo
prof. Dr. Nilton Fischer, que oferece um programa de escolarização para as recicladoras,
além de colaborarem na busca de solução para os problemas administrativos. As atividades
oferecidas por esse grupo ocorrem de acordo com a disponibilidade de profissionais
atuantes, por exemplo, médico, psicólogos, entre outros.
33
câmera circulante que tenta pegar o conjunto das imagens do campo
observado.
A observação foi uma fonte da emergência dos dados, que subsidiaram
as entrevistas realizadas. Este procedimento foi importante para respaldar
as questões iniciais da investigação. A partir das ações dos sujeitos no
contexto observado, as suspeitas foram ganhando força e delineando o olhar,
fechando o foco na imagem que se apresentava para uma compreensão.
A entrevista foi um instrumento importante para esclarecer certos
fatos observados, compreender melhor o funcionamento do Galpão como, por
exemplo, saber que o fato de toda a diretoria trabalhar nas prensas e em
outras atividades que os possibilite estar próximo ao escritório não é por
acaso e nem tampouco “privilégio”. É para facilitar o exercício concomitante
das funções administrativas e de separação. Ou seja, estando próximo ao
escritório, tem-se uma visão de quem entra no Galpão como os compradores e
os visitantes, ouve-se o telefone chamar, o que pode ser tanto um chamado
importante para alguém, como uma oportunidade de negócio para o Galpão.
Estando todos os diretores trabalhando juntos, facilita a tomada de decisões
de urgência quando necessário.
A escolha dos sujeitos foi ocorrendo de forma casual, mas convergindo
para a configuração de um mosaico representativo do espaço e do grupo
investigado. Dentre os sujeitos entrevistados, uns forneceram mais
elementos que outros, mas de um modo geral todos se dispuseram a colaborar
com a pesquisa: “Nós te ajudamos e tu nos ajuda divulgando lá fora o que tu
veres aqui dentro”, disse Mariza quando lhe informei da minha intenção de
pesquisar no Galpão.
34
Esse compromisso inicial foi importante, mas, ao mesmo tempo, me
causou um temor: o de que eu teria que ter um certo cuidado com o que iria
investigar e, conseqüentemente, divulgar. Tal temor se desfez quando
entrevistei o presidente do Galpão e a própria Mariza. Falaram de forma
serena sobre todas as questões colocadas, inclusive questões melindrosas
que tensionam o Cotidiano do Galpão. Ouvindo as conversas nos momentos de
observação, temia que a atitude dos diretores fosse de escamotear alguns
temas como, por exemplo, a questão salarial, sobre a qual têm opinião
diferente daqueles que estão trabalhando no cesto. Por outro lado, eles têm
mais elementos para esclarecer a situação, acham legítimas as reclamações e
estão igualmente insatisfeitos, porém com a obrigação de encontrar uma
solução que reverta as críticas sobre eles.
Não consegui entrevistar todas as pessoas pensadas inicialmente: uma
recicladora que planejei entrevistar, ficou muito doente e abandonou o
trabalho, mudando-se para outra região da cidade
21
; outra, em função do
receio de se expor e se prejudicar, resistiu a dar entrevista. Inicialmente,
ela até concordou, mas, por três vezes, criou empecilhos. Compreendi as suas
razões: seu silêncio e sua resistência também eram uma forma de
posicionamento.
1.3. SOBRE OS SUJEITOS
Apresento os sujeitos entrevistados, traçando um perfil dos mesmos a
partir dos dados individuais, identificando os traços que os aproximam, o
lugar que cada um ocupa neste espaço e explicitando seus posicionamentos
em relação ao trabalho realizado no Galpão.
21
Maria Alfredina, a recicladora mais idosa, com vários anos de trabalho no Galpão, é
diabética e teve uma infecção que agravou seu estado de saúde. Ficou internada durante
algum tempo, recuperou-se, mas não retornou ao trabalho no Galpão.
35
1) VIOLETA
Figura que se destaca por revelar uma sabedoria incomum para jogar
com as situações que a vida lhe oferece, considero Violeta uma personagem
emblemática desse local de trabalho: com 37 anos, tem quatro filhos (a mais
velha já trabalha com reciclagem) e dois netos. Está no Galpão Rubem Berta
há cerca de dez anos. Conhece bem a história desse lugar, suas dificuldades
e vantagens, e expressa assim o que pensa sobre sua atividade:
Eu acho que é importante porque mantém a cidade limpa, e é da onde
a gente ganha também, é um meio de manter a cidade limpa,
organizada, o ar fica mais puro. E o lixo não fica acumulado. É daqui
que tiro o meu sustento e sustento meus filhos. Foi aqui que eu
consegui comprar minha moradia, daqui eu levo roupa, calçado, coisas
para casa, então eu gosto. Já até me fizeram outras propostas de
trabalho, mas eu não quero sair daqui. Aqui eu não tenho patrão,
ninguém me manda (VIOLETA, 37, 2004).
Violeta
22
nasceu em Caçapava do Sul, foi criada pelo pai e pela avó
paterna porque os pais se separaram e a mãe deu os filhos por falta de
condição de criá-los. Trabalha desde cedo: ajudava no serviço doméstico na
casa da avó, cortava lenha, cuidava dos porcos, limpava o pátio e depois ia
cuidar de um bebê. Fugiu de casa aos 12 anos, após apanhar do pai porque não
fez o pão.
Trabalho desde criança era levada pela mão para trabalhar. Eles me
levavam para a casa da mulher para eu cuidar do guri. Fugi de casa,
fui morar na casa do guri que eu cuidava, mas ele morreu. Daí perdi o
emprego e a moradia. Quis voltar para a casa da minha mãe, mas ela
não me quis, fui morar com outra mulher (VIOLETA, 37, 2004).
A maioria das mulheres que hoje trabalham no Galpão Rubem Berta é
de origem camponesa, viveu parte da infância no interior do Rio Grande do
22
Violeta foi sujeito da minha pesquisa de Dissertação de Mestrado, realizada entre 1999
e 2001. Denominei-lhe Violeta por ser uma mulher de baixa estatura e de pele negra com
um tom arroxeado, como a violeta africana.
36
Sul e começou a trabalhar muito cedo. Segundo BRANDÃO (1999), para as
famílias camponesas o trabalho e a escola são as instituições formadoras do
caráter. O trabalho mais que a escola, tendo em vista que o acesso à escola
ainda é difícil para a população camponesa em algumas regiões, e que o
trabalho é considerado uma obrigação, uma necessidade para garantir a
sobrevivência do grupo familiar, encarado mesmo como uma instituição
formadora de valores, de princípios. Observo que as mães no Galpão ficam
bastante preocupadas com os filhos em idade ativa, se este não tem uma
ocupação: “acabam indo para o mau caminho”, dizem elas.
Violeta conta que morou em Sarandi, onde conheceu seu primeiro
marido, “ele tinha uma casa e eu fui morar com ele”, com quem teve sua
primeira filha, e do qual se separou ainda durante a gravidez, indo trabalhar
e morar em um aterro sanitário. Morou em um barraco até a criança nascer:
Lá cada um juntava seu lixo, trabalhávamos dia e noite juntando lixo
durante uma semana, 15 dias, para depois vender (VIOLETA, 37,
2004).
Violeta conta esses fatos sem muita precisão, e com muita amargura.
Segundo ela, ficou com a memória prejudicada depois de sofrer dois
acidentes. Sua vida é marcada por fatalidades desde a infância. Durante
algum tempo, morou na rua: “morava numa caixa”, uma construção
abandonada, só as paredes, sem cobertura. Já tinha dois filhos, saía com as
crianças para catar material na rua. Conta que chegou ao Galpão Rubem Berta
levada por uma sobrinha e está lá até hoje.
Violeta cria sozinha seus filhos, os mais novos, uma menina com quatro
anos e um menino com um ano, são filhos do mesmo pai que faleceu em 2004.
Sua maternidade precoce se repetiu com sua filha mais velha, que teve o seu
primeiro filho aos 16 anos e, aos 21 anos, o segundo.
37
Violeta é uma mulher muito resistente, que encara a vida de forma
tragicômica, como uma estratégia de sobrevivência, ou de resistência, diria
Maffesoli. Ironiza sua tragédia diária. Vejo sua relação com seu destino
como uma sabedoria, uma forma esperta de enfrentar seus problemas.
Violeta me apresentou como sua psicóloga na creche onde deixa seus filhos,
usando o argumento de que estava conversando comigo para justificar seu
atraso no horário da amamentação do filho mais novo. Quando eu quis saber
por que tinha feito isso ela respondeu:
É porque elas acham que eu tenho problema e que preciso conversar
com uma psicóloga, elas pensam que conversar vai me ajudar, mas
até que tem ajudado mesmo e depois que eu falei isso elas me
deixaram em paz (VIOLETA, 37, 2004).
BALANDIER (1997a) denomina tal atitude de “mentira social”, ou um
artifício necessário para conformar um discurso aceito dentro de uma ordem
moral pela sociedade. É um modo de responder às cobranças, neste caso, de
dissimular a desconfiança, dar uma “volta” nos problemas
23
. Segundo
BALANDIER (1997a, p. 118, 120),
A esperteza está sempre escondida nas relações humanas. (...) A
esperteza não é apenas de uma inesgotável fecundidade, mas
beneficia-se de um preconceito positivo considerável; está acima
da violência e da força: é algo melhor.
Provavelmente funcionei mesmo como psicóloga para Violeta. Muitas
vezes ela se alegrou com a minha chegada repentina porque estava “com a
cabeça quente e precisando conversar com alguém”. Segundo ela, eu a
compreendo e, falando comigo, se sente mais leve. Ela é irônica e sempre
encontra uma forma de satirizar qualquer coisa, mas ao falar comigo sobre
alguns momentos de dificuldade da sua vida, é possível ver a sombra da
23
A Assistente social da creche tinha sugerido que Violeta procurasse uma psicóloga, como
condição para manter seus filhos na creche. Por ser ex-usuária de drogas, Violeta é sempre
vista com desconfiança.
38
amargura e da tristeza em seu rosto. Nestes cinco anos de pesquisa, Violeta
me ligou uma vez, para pedir que eu fosse ao Galpão, pois precisava muito
conversar comigo, “estava precisando desabafar”.
Por toda essa proximidade, Violeta se tornou a principal informante
nesta pesquisa, com quem tive a oportunidade de estar em situações
diversas, além do Galpão. Pude acompanhar sua mudança de atitudes,
revelando-se uma mãe zelosa, uma pessoa generosa e passando a preocupar-
se consigo mesma, abandonando hábitos perniciosos para sua saúde:
A Violeta é uma pessoa inédita! Uma pessoa fora de série. Eu a
conheço há dez anos e posso te dizer que a Violeta hoje é uma mãe,
uma dona de casa, uma companheira de trabalho. Ela vem, trabalha,
para ela não tem nada ruim (MARIZA, 43, 2004).
Este personagem é extremamente significante, pois estando neste
espaço há bastante tempo, já passou por várias fases, conhece os problemas
e as tentativas de solução, tem sua opinião formada, mas jamais se posicionou
publicamente ou participou ativamente de algum grupo oposto à direção do
Galpão. Todos sabem sua posição, ou suspeitam de suas opiniões, mas a
respeitam, pois ela não se indispõe: “eu me dou bem com todo mundo”. Utiliza
a comicidade para dizer o que pensa, para escarnecer do que ela discorda e,
às vezes, tem um comportamento cínico com as colegas que ela não confia.
A entrevista com Violeta teve uma longa duração e se fez necessária
para sistematizar os dados sobre sua pessoa, para afinar certas informações
acumuladas ao longo das nossas inúmeras conversas, das tantas observações
que fiz no Galpão, em sua casa, em algumas visitas nos finais de semana.
Posso denominar de “entrevista aprofundada”, conceito utilizado por MORIN
(1994), cuja função é fazer emergir a personalidade, as necessidades
essenciais, a concepção de vida do entrevistado. Neste tipo de entrevista
39
importa a duração dos encontros, a simpatia que se estabelece entre
entrevistado e entrevistador e que pode ajudar na superação da inibição do
entrevistado, na liberação da palavra, gerando uma real comunicação onde o
sujeito entrevistado também se interessa pelas questões apresentadas pelo
entrevistador. Quando iniciei a fase de entrevistas com Violeta, apesar de
ela conhecer meu trabalho, a conversa tornou-se difícil quando passei a
utilizar o gravador: ela falava baixo, olhando para o chão, quase
impossibilitando a gravação. Na seqüência dos encontros, essa timidez foi
desaparecendo e, certo dia, enquanto conversávamos informalmente, ela
mesma sugeriu que eu usasse o “gravadorzinho”.
2)
MARGARIDA do CAMPO
Margarida do Campo
24
é amiga de Violeta, trabalham em dupla, lancham
sempre juntas. Aproximei-me dela através de Violeta. Tem 35 anos, é casada,
tem quatro filhos com idade entre 17 e 10 anos. Nasceu em Ijuí, morou em
Cruz Alta e vive em Porto Alegre há 10 anos. Morava em área de risco e foi
transferida para a Vila Rubem Berta. Estudou até a 5ª série: “parei porque
tinha que trabalhar”. De família camponesa, veio embora para a cidade porque
os pais venderam a terra onde trabalhavam. Margarida trabalha no Galpão há
dois anos,
Eu já tinha trabalhado aqui antes durante 03 anos, daí sai. Quer
dizer, me saíram. Daí fui trabalhar com faxina, mas a mulher para
quem eu trabalhava foi embora, fiquei desempregada. Voltei para
trabalhar aqui porque precisava, não tinha outro serviço
(MARGARIDA DO CAMPO, 35, 2004).
Margarida é alegre, tem pele clara, cabelos longos, uma beleza rústica
e uma personalidade forte. Embora goste do seu trabalho, tem uma visão
24
Ela mesma escolheu sua denominação, Margarida do Campo, porque lembra sua origem e,
segundo ela, é uma flor resistente e bonita.
40
crítica do Galpão. Candidatou-se na última eleição para presidente da
Associação. Quando lhe pergunto sobre o trabalho, as condições de
realização, ela responde com veemência:
Condições de trabalho? Aqui é nenhuma, não dá para realizar nada, o
dinheiro daqui não dá para nada, é só para sobreviver um pouquinho,
para não ter que... se não trabalhar vai roubar? Vai matar? Eu acho
que nosso serviço tinha que ser mais valorizado, mais respeitado
pelas pessoas que vêm aí. Têm muitos que não respeitam, chegam aí
tampam o nariz. Eu acho que deveriam respeitar porque isso aí não é
culpa nossa, nós estamos fazendo um bem para o povo, para a
cidade, eles deveriam respeitar. Porque é como se a gente tivesse
cheirando mal e não é isso. Isso aí são eles mesmos que produzem
esse lixo e na hora de botar fora não pensam na gente
(MARGARIDA DO CAMPO, 35, 2004).
Margarida do Campo demonstra preocupação com o futuro, por
exemplo, com a aposentadoria, com a saúde e pensa que o poder público faz
muito pouco por elas, que se aproveita do trabalho delas divulgando na mídia,
se promove a partir da imagem delas:
Para todo mundo isso aqui é uma maravilha, mas não é! Não é só uma
maravilha. Tomamos sol direto, trabalhamos muito, temos que cuidar
dos filhos, vir trabalhar, tudo isso. Eles não mostram as dificuldades
que temos para fazer este trabalho, acho que é importante mostrar
as dificuldades para vermos como podemos avançar, ir para frente e
não só achar lindo maravilhoso como se tudo estivesse perfeito e
não precisássemos de mais nada (MARGARIDA DO CAMPO, 35,
2004).
Apesar do seu posicionamento, Margarida do Campo não se indispõe
com os diretores, trabalha com seriedade, freqüenta a sala de aula, faz
campanha para arrecadar donativos para o Galpão, como a campanha do
agasalho em benefício de todo o grupo. É séria, mas como suas colegas não
perde uma piada, uma fofoca. Às vezes, questiona a relação de Violeta com os
filhos, acha que ela os protege demais. Raramente fala da sua vida particular,
mas por sua postura parece ter uma vida doméstica tranqüila, não é do tipo
41
que engole desaforo. “Margarida é bem realista, ela sempre foi assim”,
comenta Violeta.
Pode-se considerar esta mulher “uma figura de desordem”. Balandier
caracteriza como figuras de desordem,
Figuras ordinárias, no sentido de que se encontram banalmente
presentes dentro da sociedade, mas em situação de ambivalência
por aquilo que é dito delas e aquilo que elas designam. Complementar
e subordinadamente, elas são o outro objeto de desconfiança e de
medo em razão de sua diferença e de seu
status
inferior, causa de
suspeita e geralmente vítima de acusação. Ocupam a periferia do
campo social no sistema de representações coletivas dominantes,
muitas vezes em contradição com sua
condição real e o
reconhecimento de fato de seu papel. Tais figuras são instrumentos
de ordem, ao mesmo tempo que agentes potenciais de desordem
(BALANDIER, 1997 b, p. 103).
Dentre as figuras de desordem Balandier apresenta a mulher
25
, por
sua ambivalência, por esta ser mais ligada ao mundo natural, representado no
poder da fecundidade, da criação e da reprodução, gerando a descendência.
Margarida do Campo pode representar bem tal figura, pois com destreza e
harmonia ela provoca o questionamento, ela apresenta uma postura de
insatisfação sem perder a graça, sem gerar rompimentos. Porém não é dócil,
não se cala diante do que a incomoda. Mesmo sem se alterar, sem se
manifestar verbalmente se percebe sua postura de insatisfação, na figura da
mulher guerreira que espera sempre mais, que deseja melhorar sua condição
de trabalho, que desconfia dos gestores públicos:
Ninguém sobrevive disso aqui e eles (os políticos) não se preocupam
com a gente. Se preocupam só em tirar o lixo da rua e largar aí. Com
nosso bem estar, se está dando renda para nós, se estamos bem de
saúde, ou em ajudar em alguma coisa para melhorar, com a
manutenção do galpão, eles não se preocupam com nada. Daí vão para
25
O autor faz uma análise da mulher enquanto figura de desordem nas sociedades
tradicionais africanas e os rituais que são feitos para conter o poder de desordem, que
representa esse personagem para essas culturas.
42
a televisão, para as rádios falar como se eles fizessem tudo. Na
realidade quem faz somos nós e ninguém está preocupado com a
gente (MARGARIDA DO CAMPO, 35, 2004).
Ao se candidatar, Margarida do Campo tinha como preocupação mudar
esta situação, melhorar as condições de trabalho, lutar pelo pagamento do
INSS
26
para garantir uma aposentadoria. Mesmo sem fazer alarde, alguns
temiam que, caso ela fosse eleita presidente da Associação, iria mudar tudo,
poderia mandar algumas colegas embora, temores que circulavam na forma de
fofoca e que junto vinha a tentativa de desviar suas intenções, argumentando
que ela não tinha condição de administrar o Galpão. Este argumento é
recorrente e, em geral, é uma espécie de astúcia empregada por aqueles que
têm uma relação de dependência, ou que precisam de algum tipo de proteção
dos diretores, seja pela idade, seja porque causam problemas no local de
trabalho ou ainda porque “são daqueles que gostam de se escorar nos outros”.
Acompanhei este e outros processos eleitorais no Galpão e, todos
tiveram dois grupos disputando a direção da Associação. Porém existe a
disputa, não a rivalidade entre os grupos. Passado o processo, a disputa
torna-se um episódio superado. Nesta última eleição, após a votação e
apuração dos votos, o presidente eleito para mais um mandato de dois anos
conclamou a união do grupo “porque a luta é de todos”.
3)
RENATO FALEIROS
Cláudio Renato da Silva Faleiros
27
tem 36 anos, está no Galpão há seis
anos. Veio trazido por sua mãe que já trabalhava no Galpão. É casado e tem
26
Segundo o estatuto da Associação Ecológica Rubem Berta cada associado deve pagar o
INSS como autônomo, mas isso não acontece porque o rendimento deles nunca é suficiente
para tal despesa.
27
Ao lhe esclarecer que uso nome de flores para identificar os entrevistados como uma
forma de preservar a identidade das pessoas, ele compreendeu, mas fez questão de ser
43
dois filhos. Estudou até a 7ª série, toca violão e, segundo ele, “gosta da
natureza”. Está no segundo mandato como presidente da Associação
Ecológica Rubem Berta. Foi incorporado na diretoria logo que ingressou no
Galpão, em função da sua escolaridade que lhe facilitava desenvolver as
atividades administrativas. É uma pessoa curiosa e engajada no trabalho do
Galpão, fala sobre política, ecologia, cultura. Quando lhe pergunto como se
sente trabalhando entre tantas mulheres responde:
Tu queres saber como eu me sinto como minoria no meio de uma
maioria? Em primeiro lugar, eu respeito muito o trabalho dessas
mulheres, às vezes, eu me sinto um pouco tímido, um pouco
envergonhado. Sabes que entre colegas de trabalho existem
brincadeiras, às vezes, brincadeiras pesadas, então eu já estou
acostumado com o linguajar das pessoas e, se eu não gosto, o
máximo que eu faço é não sorrir da brincadeira, fico quieto
(RENATO FALEIROS, 36, 2004).
A história de vida de Renato Faleiros não difere das outras histórias
encontradas neste grupo. Seu pai faleceu
28
e sua mãe casou-se novamente
como uma alternativa de sobrevivência. Sentindo-se rejeitado pelo padrasto,
começou a trabalhar muito cedo como gari na prefeitura de Alvorada. Voltou
a freqüentar a escola, mas não foi adiante: perdeu um olho em um acidente e
parou de estudar. Tem muitas habilidades com carpintaria, marcenaria,
construção civil, tudo aprendido na prática. Sobre o trabalho de separação
ele pensa que:
Para mim é uma coisa natural, eu gosto de trabalhar, eu sempre
trabalhei. Antes de trabalhar aqui eu trabalhei até de gari, então eu
trabalhei com lixo antes de vir para cá, então para mim é uma coisa
natural. Mas eu acho que a maior parte desse povo que trabalha aqui
se sente excluído, diminuído e não deveria. Acho que alguns
identificado porque não tem vergonha do trabalho que faz e gostaria mesmo de divulgar seu
trabalho e suas opiniões.
28
Conheci mais detalhes da história de Renato através da sua mãe que participou da minha
pesquisa de Mestrado. Na época, ela trabalhava no Galpão e era aluna da turma de
alfabetização.
44
recicladores são preconceituosos, têm preconceito de si mesmo
(RENATO FALEIROS, 36, 2004).
Renato Faleiros fala das dificuldades em administrar o Galpão e pensa que a
maioria dos recicladores não compreende a dinâmica de funcionamento, e
estão sempre desconfiando da diretoria:
Eu observo que existe um certo conflito e que isso é natural porque
uma das características do ser humano é o questionamento, a
resistência. Mas, às vezes, eu me sinto um pouco magoado porque
sinto um pouco de ingratidão nas pessoas (RENATO FALEIROS, 36,
2004).
Ele deseja encontrar um modo de esclarecer melhor os associados
para que haja um maior entendimento sobre o funcionamento da Associação e
do Galpão. É claro que todos os questionamentos giram em torno do item
salário e o próprio Renato reconhece que, até ingressar na direção, ele
também pensava que havia algo de errado na administração dos recursos.
Ele compreende que sempre haverá críticas, “seja quem for a
diretoria”, mas ressalta que eles conseguiram algumas coisas para o Galpão,
que a administração exige muito esforço, mas não existe reconhecimento por
parte dos recicladores,
Todo ser humano gosta de ser elogiado, não ser elogiado, mas no
mínimo dizer: ‘pô, legal teu trabalho! Pode melhorar, isso aqui não
está legal’. Mas tem que de vez em quando ouvir alguma coisa
positiva, não só negativa (RENATO FALEIROS, 36, 2004).
Renato Faleiros começou a trabalhar no Galpão ainda sob a
administração de Hilma, que lhe ensinou os trâmites de funcionamento
daquele espaço. Por ter uma escolaridade superior àquela da maioria das
recicladoras, ele tornou-se peça fundamental dentro da Associação. Após o
falecimento de Hilma, Renato e Mariza tornaram-se a dupla responsável pela
administração do Galpão Rubem Berta. Penso que as recicladoras o acolheram
45
como se acolhe um filho, ensinando o trabalho, ajudando a vencer suas
limitações e dando conselhos. A mãe de Renato não trabalha mais no Galpão,
mas ele considera as recicladoras sua “segunda família”.
O grupo majoritário é feminino e as diretrizes administrativas neste
espaço são definidas por este seguimento, existe uma generificação do
trabalho no Galpão como explicita Renato:
Eu acho que esse trabalho do cesto na minha concepção ele é mais
feminino, porque quando foram colocados os homens foi por causa do
carregamento dos fardos pesados, mas houve uma época que as
mulheres carregavam os caminhões, elas faziam todo o processo,
não tinha homens.
E porque o trabalho do cesto é mais feminino?
Porque a mulher tem mais paciência, tem mais agilidade. O homem é
para fazer força mesmo. Eu não conseguiria ficar catando,
separando uma coisa aqui outra ali, isso é um tipo de machismo (fala
rindo). Mas é bem assim, não sei se todos os colegas sentem a
mesma coisa. Mas nunca se viu nenhum homem ajudando a catar aqui
não. Se ele tem as feições dele mesmo no lugar, que seja homem.
Houve um ou dois casos raros aqui de homens trabalhando no cesto,
eu até acho engraçado (RENATO FALEIROS, 36, 2004).
Ele reconhece que esta é uma postura machista e acrescenta que o
homem que trabalha no cesto está fugindo do trabalho:
Está querendo vagabundear, tem preguiça de pegar no pesado.
Aquele setor ali é feminino para nós. Mas se for necessário o homem
vai fazer isso sim e a mulher pode ir ajudar o homem a empurrar o
fardo. Existe este intercâmbio, graças a Deus que existe isso
(RENATO FALEIROS, 36, 2004)
.
De fato existe esta complementaridade nas tarefas, sendo que é mais
comum ver as mulheres trabalhando na prensa, amarrando fardos e ajudando
a carregar os caminhões, que são atividades que exigem força e habilidade,
46
do que ver os homens trabalhando no cesto
29
. As mulheres não gostam que
eles fiquem no cesto, pois segundo elas, “mais atrapalham que ajudam”.
O relacionamento entre nós é a mesma coisa, como se fosse mulher
e mulher, homem e homem, aqui não tem diferença nenhuma. A única
coisa diferente é que eles ficam com o serviço pesado e por ter mais
mulheres nós ficamos no cesto e homem não vai querer trabalhar na
separação (MARGARIDA DO CAMPO, 35, 2004).
A questão de gênero será retomada mais adiante, pois embora este
aspecto não gere conflito explícito neste espaço, está presente e faz
diferença na relação entre eles e, como outros temas, é tratado pelo grupo
de um modo cômico, como se pode perceber neste relato:
É, às vezes é difícil. Esses dias eu chamei o Renato atenção, porque
eu pedi para ele fazer um negócio para mim ele veio, porque ele é o
presidente, o titular daqui. E o Renato é um guri grande como eu
digo, aí eu disse: ô Renato tu fizeste aquilo lá de má vontade e está
tudo errado. Daí ele disse: ô dona Mariza eu sou o presidente! Eu
respondi: e daí? Não interessa, tu como presidente tinha que fazer
as coisas certas para eu não te cobrar, mas se fizeste errado, tu
vais lá
fazer outra vez porque está mal feita. Então vira comédia:
Ba! A Mariza manda no Renato, manda no César. Mas não é o caso de
mandar, trata-se da organização da coisa, se está errado tu tens
que falar para que eles se alertem. Eu até brinquei com eles, dizendo
que isso aqui era melhor quando não tinha homem para ficar
incomodando (MARIZA, 43, 2004).
4) MARIZA MARQUÊS LEITE
30
Mariza Marquês Leite é tesoureira da Associação Ecológica Rubem
Berta e trabalha com separação de resíduos há 10 anos. De família
camponesa, nasceu em São Francisco de Assis. Trabalha desde os 10 anos de
idade: “Tomava conta da casa, fazia comida para os peões, meu pai tinha 14
29
Tive oportunidade de ver tal cena apenas uma vez, um homem que se juntou a um grupo
de mulheres para separar plásticos, mas sua participação durou até chegar um caminhão
para ser carregado.
30
Mariza fez questão de ter seu nome revelado. Para ela é uma oportunidade de dar
testemunho da positividade do trabalho realizado pelas recicladoras.
47
peões e eu com 10 anos fazia comida, servia a mesa e todo mundo comia”
(MARIZA, 43, 2004).
Estudou até a 3ª série, “parei de estudar porque tinha que trabalhar
para ajudar meu pai e minha mãe a criarem meus irmãos”. Veio para Porto
Alegre com uma filha recém-nascida. Tem duas filhas e um neto. Antes de vir
para o Galpão trabalhou em “casa de família” como empregada doméstica,
teve que abandonar o trabalho para cuidar de sua filha mais nova que tinha
um problema de saúde e precisava de cuidados especiais. O trabalho no
Galpão lhe possibilitou cuidar da filha, já que Mariza, como a maioria das
recicladoras, mora próximo ao local de trabalho.
Não foi fácil conseguir agendar uma entrevista com Mariza, pois como
lhe disse ao iniciar a entrevista, ela é o coração do Galpão. Tanto no sentido
objetivo da administração, quanto no sentido subjetivo da pessoa que cuida
de todos, que ajuda todos a “administrarem” seus problemas, que escuta, que
“dá um ombro amigo”. Mariza é o equilíbrio desse espaço, pois ela tem
autoridade para chamar a atenção, para ajudar, para conversar, para mandar
embora alguém que está causando problema. Sua simpatia e generosidade são
reconhecidas por todos:
Ela é uma pessoa muito humana, muito querida, muito atenta. Não
importa quem seja, ela pode, às vezes, nem conhecer bem, mas se
está com problema... Todas elas
vêm conversar com dona Mariza, eu
acho isso lindo. Eu sou o presidente, mas elas procuram sempre a
dona Mariza, elas se entendem, pois têm problemas semelhantes e é
mais fácil para elas se entenderem (RENATO FALEIROS, 36,
2004).
Mariza conhece cada pessoa que trabalha com ela, sabe da história de
cada uma, é chamada de “tia Mariza” pelos filhos das recicladoras. Vai às
escolas do bairro falar sobre seu trabalho, está sempre buscando parcerias
para o Galpão. Embora Renato seja o presidente, ela é a figura que melhor
48
representa o grupo. Ele desempenha bem as funções administrativas, mas é
Mariza quem produz a imagem de dinamismo, solidariedade, preocupação com
os outros. Desde que ela assumiu a Associação, o Galpão estabeleceu mais
contato com a comunidade local, trabalhando em parceria com a Associação
de Moradores, por exemplo.
Antes de Mariza, a liderança do Galpão era exercida por Hilma, uma
mulher forte, mas que tinha outra linguagem, outro modo de lidar com o
grupo que a respeitava, mas a temia. Nesse período, Mariza agia como uma
intermediária entre o grupo e Hilma, que tinha outro modo de administrar:
Quando a dona Hilma estava aqui ela não ensinava ninguém a fazer
nada. Quando eu entrei para a diretoria eu não sabia fazer nada,
mas agora eu já sei fazer e já estou ensinando para as outras
colegas (MARIZA, 43, 2004).
Observo que Mariza faz uma gestão mais coletiva, ao contrário da
administração anterior que tinha um caráter centralizador, quando não se
acreditava na capacidade de gestão das outras pessoas; quando se pensava
que o autoritarismo era a linguagem entendida pelo grupo. Hoje a linguagem
do afeto é a mais praticada:
A gente está a tantos anos aqui que, quando eles chegam de manhã,
eu sei quem está bem e quem está mal só em olhar para a cara deles.
Pelo bom dia que eles me dão eu já sei que aquele não está legal e
que alguma coisa está acontecendo. Então, quando eu vejo que uma
pessoa não está bem eu procuro dialogar, conversar para ver o que
está acontecendo, porque, às vezes, tu podes ajudar (MARIZA, 43,
2004).
Este modo de administração é um fator importante na sedimentação
dos laços sociais que se tece nesse grupo. Na socialidade que se traduz
justamente nesse compartilhamento do mundo, nessa convivência que suscita
generosidade, novas formas de solidariedade que se expande produzindo uma
imagem diferente do Galpão Rubem Berta diante da comunidade. Em um
49
espaço onde se produz a sobrevivência material e subjetiva, onde se
recuperam pessoas, onde se produz esperança.
Segundo Maffesoli (2003) esta é uma das características dos grupos,
ou das tribos pós-modernas, como prefere o autor, a existência de uma
“solidariedade orgânica, uma empatia social” que age sobre os grupos
provocando uma atração e um modo de “estar-com” o outro nesta tragédia
cotidiana de reconhecer o outro e reconhecer-se nele:
Não existimos senão porque o outro, meu próximo, ou o Outro, o
social, me dá existência. Sou fulano porque o outro me reconhece
como tal. (...) a vida social empírica não é senão a expressão de
sentimentos de pertença sucessivos. Somos membros, fazemos
parte, nos agregamos, participamos ou, para dizer trivialmente,
‘somos de’ (MAFFESOLI, 2003, p. 32).
Mariza é, sem dúvida, a principal artífice dessa convivência, a
incentivadora da prática da escuta e da compreensão. Ela é o bombeiro que
“esfria” os conflitos estabelecendo uma via de entendimento que freia a
possibilidade do caos destruidor no interior do grupo. Com sua baixa estatura
e seu sorriso sempre aberto, Mariza passa seus dias circulando pelo Galpão,
fumando um cigarro com uma colega, brincando com outra, acompanhando o
ritmo do trabalho, detectando os entraves e a melhor forma de contorná-los:
É complicado tu comandares um grupo de trabalho como esse e é
complicado no final do mês fazer a contabilidade, porque sempre
têm aqueles que não ficam no seu local de trabalho e aqueles que
trabalham mais (MARIZA, 43, 2004).
Como lidar com essa situação?
A gente vai levando não é minha filha (responde rindo). Se tu vês
que tem um que está devagar, tu vais lá e conversa, chama pro
ladinho, que eu não sou de falar na frente de todo mundo, e
pergunto o que está acontecendo? Tu eras tão boa no serviço e
agora está lenta... Na semana passada aconteceu isso, ‘ah estou com
isso, estou com aquilo’ daí tu senta, conversa e sempre temos bons
50
resultados, as colegas mesmo comentam. Porque antigamente era
aquela coisa, brigavam com as pessoas em público, humilhavam, as
pessoas ficavam com vergonha, a tendência é tu criares raiva e não
fazer porcaria nenhuma (MARIZA, 43, 2004).
Seu discurso sobre o Galpão é otimista e contagiante. Ela acredita no
que diz e se dedica intensamente ao seu trabalho. Dificilmente se ausenta
daquele ambiente e quando isto acontece em geral às colegas recorrem a ela
para vir apagar os incêndios. Mariza é, além de tudo, uma espécie de
caderneta de poupança de algumas recicladoras:
Quando eu recebo meu dinheiro eu compro o que eu preciso e o que
sobra, quando sobra, eu peço para a Mariza guardar para mim, daí
quando eu preciso, eu pego com ela (VIOLETA, 37, 2004).
No sábado, dia de folga no Galpão, as colegas vão visitar Mariza. Não
exatamente porque sintam saudades, mas porque em geral precisam
conversar algum assunto que não foi possível tratar no Galpão, ou somente
para se distrair, tomar um cafezinho e colocar a conversa em dia. A conversa
é animada por piadas e largas gargalhadas. Violeta é presença assídua: “venho
para espairecer”. São atitudes como estas que ultrapassam o econômico e
produzem um “elã vital” (MAFFESOLI, 1998), que consiste em uma atitude
gregária e de afirmação da vida, tão presente no discurso e na prática social
de Mariza.
O Galpão de reciclagem é como sua “segunda casa” e as pessoas que ali
trabalham são para ela “sua família”. É com os princípios que educa suas
filhas, que Mariza age no seu trabalho e ajuda as pessoas a se recuperarem
dos vícios ou a resolver problemas com os filhos, os companheiros:
Existem pessoas aqui que são como a minha família. Claro que
existem aquelas que tu tens mais dificuldade de lidar, que é mais
difícil para tu conversar, é mais difícil deles te entenderem, mas
conversando eles chegam na realidade que a vida não é isso aí, que a
vida é bem diferente. Mas, às vezes, tu precisa de um apoio, de uma
51
conversa para que a pessoa se acorde. (...) A gente não tem que
julgar ninguém, a gente tem que tentar ajudar e fazer com que
aquela pessoa se dê conta de que não está agindo “corretamente”,
que ela pode agir de outra forma (MARIZA, 43, 2004).
Na fala acima, Mariza não deixa de fazer um julgamento, mas que ela
entende ser para o bem, é sua forma de cuidar e ajudar aqueles que
precisam. O que parece uma atitude “maternal” é a forma que Mariza utiliza
para confortar todas as mães com filhos doentes, com filhos com problemas
de delinqüência, as mulheres com desavenças com seus companheiros, que
socorre nos momentos que falta pão para a criança:
É que nem eu digo para elas: gurias, uma mãe jamais vai chegar a
aconselhar um filho errado, por mais que o filho tenha defeito, que
ele apronte, mas, mãe é mãe, ela está sempre ali procurando ajudar
seu filho. Todos nós somos seres humanos e temos que procurar
entender as pessoas, temos que procurar dialogar (MARIZA, 43,
2004).
É também por questões como esta que as mulheres do Galpão
valorizam tanto este local de trabalho, porque sabem que ali encontram apoio
nos momentos difíceis. As atitudes de Mariza não são encaradas como
filantropia ou coisa que o valha, mas como um princípio administrativo
respeitado por todos, princípio que varia de acordo com a fase do Galpão.
Falo das atitudes de rigor que tentam impor para melhorar o funcionamento
do Galpão, como, por exemplo, limitar o tempo de tolerância para os atrasos.
Em geral as regras mais duras têm vida curta, no máximo um mês, pois, no
primeiro problema grave que alguém sofre, ocorre a mudança da norma e, a
partir disso, todos voltam aos velhos hábitos:
Na última assembléia decidiram que a tolerância para chegar
atrasado é de vinte minutos. O Fabiano chegou atrasado vai lá ver se
eles descontaram alguma coisa? (MARGARIDA DO CAMPO, 35,
2004).
52
A gente ganha 15 dias aí depois... Antigamente nós tínhamos o tal de
fundo que era só para pagar os doentes, agora nós não temos mais
nada disso, terminou tudo. Não sei para onde é que foi esse dinheiro
(DÁLIA, 53, 2004).
5) DÁLIA
Dália é uma senhora de baixa estatura, pele branca, cabelos pretos,
com 53 anos. Trabalha no Galpão Rubem Berta há nove anos. Nesse período
se envolveu em um problema e foi dispensada, mas, cerca de dois meses
depois, foi readmitida. Sua função é recolher as garrafas que as mulheres
separam no cesto e levar para o depósito onde são estilhaçadas. Às vezes, ela
é chamada para o cesto, mas em geral está circulando recolhendo garrafas ou
cuidando do portão. Dália ouve muitas conversas entre as mulheres e,
geralmente, é assunto das conversas entre as colegas.
Faz parte do grupo formado por casais que se reúne durante o lanche
na casa onde fica o vigilante, na entrada do Galpão. Juntos tomam o café que
a “véia”, como é chamada por todos, prepara dez minutos antes de tocar a
campainha para o intervalo, quando compartilham o lanche, tomam chimarrão
e fumam coletivamente alguns cigarros. Dália tinha muita reverência por
Hilma e lamenta sua falta:
Teve uma pessoa que chegou a se ajoelhar nos pés da finada Hilma
dizendo que ‘iam botar ela para a rua, mas que o Galpão não iria mais
para frente’ e está bem certinho, ela morreu e não foi nada para
frente e não vai mais (DÁLIA, 53, 2004).
Dália parece procurar na religião conforto para seus problemas, talvez
por isso ela aprovasse tanto a administração de Hilma, que tinha a prática
religiosa como uma das obrigações no Galpão:
Pode ser que esse ano nós ganhemos um pouquinho melhor, Deus há
de ajudar! Tem que melhorar alguma coisa bá! Por mais que a gente
peça a Deus que melhore... É que não se interessam. Antigamente,
cada final de mês, a finada Hilma mandava rezar uma missa aqui,
53
agora nem isso fazem mais. É uma mistura de religião aí dentro, tem
evangélico, tem gente do batuque, tem de tudo aqui dentro (DÁLIA,
53, 2004).
Mãe de quatro filhos homens, viveu a infância em Porto Xavier onde
freqüentou a escola por cerca de um ano. Participou da turma de
alfabetização no Galpão por, pelo menos dois anos, mas não se alfabetizou.
Veio para Porto Alegre há vinte anos. Hoje mora em Alvorada e caminha uma
longa distância para chegar ao Galpão: “o troco não dá para pagar passagem”.
Dália reclama muito da remuneração, mas reitera que, “não adianta sair daqui,
mesmo que seja pouquinho eu sempre tenho alguma coisa, ou chego na Mariza
e posso pedir um vale”.
Quando foi dispensada do Galpão em 2000, Dália sofreu muito, insistiu
e esperou o tempo necessário para ser readmitida. Foi na administração da
Hilma e talvez isso justifique um pouco sua reverência por ela. Como suas
colegas, Dália tem seus momentos de contradição, pois já concorreu à
direção do Galpão em um grupo de oposição que acreditava poder mudar o que
julgava errado, fazia críticas à diretoria, à forma de tratamento que
recebiam de Hilma. Hoje, além de ela sentir falta da autoridade que antes
criticava, também critica as colegas que se colocam com disposição para
mudar o Galpão:
Depois da eleição tem umas aí que ficaram bicudas, porque elas
achavam que iam ganhar. Mas a gente tem que pensar, a gente que
faz anos que está aqui dentro sabe que não é assim. Porque tem
gente que tu te dar bem, mas tu não tens aquela amizade, se dar
bem assim... Hoje tu estás lá dando risada, mas não é aquela
intimidade como a que a gente já tem com elas (as diretoras), com
elas a gente já tem outra intimidade. E a amizade ajuda na
administração, porque não adianta tu entrares na diretoria se tem
gente que não gosta de ti, já vai ficar uma coisa bem diferente
(DÁLIA, 53, 2004).
54
6) ACÁCIA
Dentre as recicladoras que apresentaram uma chapa de oposição na
última eleição, está Acácia, com 39 anos, três filhos, nascida em Porto
Alegre, trabalha no Galpão há quatro anos. Acácia é uma figura que se
destaca pelo seu tamanho, sua pele muito negra e seu alvo sorriso. Sua voz
aguda ecoa em todo o Galpão quando está reclamando da distribuição do lixo
no cesto. Ela exerce a liderança de um pequeno grupo formado por suas
irmãs, que também trabalham ali, e outras colegas. Este é um grupo que, em
geral, se coloca à margem das demais. Acácia é vista como uma pessoa de
temperamento difícil.
Apesar de sua imagem, é uma pessoa expansiva e gosta de participar
de atividades fora do Galpão, relacionadas ou não ao trabalho. Gosta de
fazer cursos e participar de reuniões, gosta de teatro e de aprender coisas
novas, gosta do trabalho que faz, embora não demonstre muita convicção no
que diz:
Olha, no começo a gente tem dificuldade para aprender, eu não
sabia separar o material, mas agora, graças a Deus, eu valorizo meu
serviço. Temos que valorizar, porque cada um tem uma coisa para
fazer, eu valorizo muito! Porque a gente está limpando o meio
ambiente, o ar (ACÁCIA, 39, 2004).
Acácia faz críticas à direção do Galpão e às colegas, reclama da falta
de equipamentos de proteção e da falta de consciência da população que não
separa seu lixo adequadamente. Quando pergunto o que ela pensa sobre quem
produziu o lixo sujo no momento em que ela está separando, responde rindo:
Eu às vezes retruco! Reclamo porque a pessoa não pensa em separar
em casa, porque poderia pensar um pouco na gente e separar seu
lixo, mas não! Às vezes a gente excomunga: desgraçada! Porque não
limpou o lixo, manda sujo para a gente limpar. A gente sempre
55
reclama, tem sempre um ok que a gente não gosta (ACÁCIA, 39,
2004).
Para Acácia existe muita divisão no Galpão e só alguns se preocupam
com os colegas. Ela pensa que falta união entre o grupo e que a diretoria não
valoriza o trabalho delas:
Eu acho que ninguém trabalha aqui porque queira. Eu não acredito
nisso. Eu acho que as pessoas estão aqui por necessidade e por isso
temos que valorizar mais o colega, não ter essa divisão. No café
cada um faz seu montinho e sai sempre uma fofoca. Eu acho que o
colega tem que respeitar o outro aqui dentro. Não importa se não se
dão bem fora do portão (ACÁCIA, 39, 2004).
A crítica de Acácia não é velada, todos a conhecem no Galpão pelo seu
temperamento. Também não é exagero o que ela detecta: as fofocas, as
divisões, as desconfianças, os descontentamentos. São fios que
complexificam as relações e a convivência entre o grupo, que tensionam esse
Cotidiano que é um universo de significações, onde cada um faz sua
interpretação. Nesta textura significante, cada um vai interpretá-lo de modo
a encontrar seu objetivo (A. SCHULTZ, 1993).
Nesse universo não há unanimidade, a forma deste Cotidiano é móvel.
Ela é tecida conforme o movimento dos sujeitos, a imprevisibilidade, as
minúsculas coisas, o ritual que constitui a existência social dessa tribo,
produzindo uma imagem diversificada conforme a perspectiva que se olhe. É
dentro dessa amplitude que se legitima o olhar de Acácia sobre suas colegas
e vice-versa, que conforma o que V. Pareto
31
chama de “derivação”, ou seja, a
racionalização de uma forma de ser, constituída a partir do resíduo, ou
daquilo que fica, que é, que caracteriza um grupo social.
31
Cf. R. ARON, 1993. Principalmente o Cap. VII sobre Valfrido Pareto (p. 407-486).
56
7) JACINTO
Jacinto tem um papel importante e árduo no Galpão Rubem Berta, que
é o de receber e acompanhar, através de planilhas, a chegada e a distribuição
do material no cesto:
Olha é uma guerra! Elas vêm reclamar comigo por causa da
distribuição do material. Quando é o lixo do Correio, dos hospitais,
elas não gostam e reclamam comigo. Mas eu não ligo, tem umas aí que
nem falam comigo (JACINTO, 60, 2004).
Com 60 anos de idade, Jacinto trabalha no Galpão Rubem Berta há
quatro anos. Hoje ele cuida da segurança, controla a entrada de caminhões,
corta a grama do pátio, faz pequenos concertos. Mas já fez de tudo:
O primeiro teste que eu fiz foi no turno da noite. Nós pegávamos às
cinco da tarde e trabalhávamos até seis, seis e meia da manhã.
Trabalhei assim uns 15 dias, aí acabaram com o turno da noite. Daí
fiquei trabalhando como segurança do Galpão. Fiquei assim por uns
dois anos e pouco. Depois fui trabalhar nas prensas. O único
trabalho que eu não fiz aqui foi no cesto (JACINTO, 60, 2004).
Após um grave problema de saúde, Jacinto foi para sua atual função.
Do seu posto, ele observa tudo o que acontece no entorno, quem entra, quem
sai do Galpão, quem não foi trabalhar, quem recebe visita, quem namora
quem. Ele é bem informado também sobre os fatos que estão fora do alcance
dos seus olhos porque é bem relacionado com os colegas que trabalham
dentro do Galpão,
Eles (da diretoria), às vezes perguntam: ‘o senhor viu alguma coisa?’
Eu respondo: eu não vi nada, meu setor é aqui fora, meu serviço é
receber os caminhões, o que está acontecendo lá dentro eu não
tenho nada a ver, eu não tenho autorização para estar falando as
coisas, eu não sou fiscal e faço de conta que não vejo. Caso eu fale,
depois eles se acertam e eu que fico por ruim não é! Não tenho
tempo para estar brigando (JACINTO, 60, 2004).
Ele esclarece qual é sua função no Galpão:
57
Eu marco a entrada dos caminhões, o dia, a hora e onde foi
despejado o material. Fica tudo marcadinho e, na segunda feira, eu
entrego no escritório para eles mandarem para a prefeitura. Porque
já aconteceu de vir caminhão que não era para vir para cá e
caminhão que deveria ter vindo e não veio. Então tem que ter o
controle de tudo certinho com dia, hora e identificação do caminhão,
para reclamar se for o caso (JACINTO, 60, 2004).
Antes de trabalhar no Galpão, Jacinto trabalhou em “firmas”, e já
cuidou de sítios. Conta que começou a trabalhar aos oito anos com o pai em
uma olaria: “trabalho pesado!” Hoje, com idade avançada, pensa que o
trabalho no Galpão para ele é bom,
Não é um trabalho pesado... Se eu me queixar de ficar sentado
abrindo e fechando um portão onde é que eu vou trabalhar então?
(fala rindo). Se eu sair daqui e for procurar trabalho, quando
perguntarem a minha idade e eu disser, eles vão me responder: olha
o senhor errou de endereço, aqui não é asilo. Então eu vou ficando
por aqui até quando der (JACINTO, 60, 2004).
Sobre a implicação da produção sobre a remuneração, ele tem um
posicionamento crítico, e, em sua fala, esclarece mais um aspecto do
funcionamento do Galpão, que corrobora com outros depoimentos e
complexifica mais a questão salarial das recicladoras:
Tem a hora do café, do descanso, mas na hora do serviço vamos
pegar sério. Tem delas aí que o cesto está baixinho, porque ela baixa
a cabeça e trabalha, mas aí ela olha para o lado e a colega está
conversando, daí ela pára também, porque quando um cesto está
mais baixo que outro, elas têm que ajudar a baixar. Então têm umas
que fazem o seu serviço e ainda têm que ajudar a outra a fazer o
serviço dela. Enquanto a outra poderia trabalhar sério também, mas
não, fica
parando, vai fumar um cigarro, vai tomar água, buscar fogo,
aí não dá! (JACINTO, 60, 2004).
Jacinto encara o Galpão, antes de tudo, como um local de trabalho,
talvez por já ter tido outras experiências com as quais traça um paralelo. Por
outro lado, não deixa de reconhecer a importância desse espaço para ele ao
lhe oferecer a oportunidade de trabalho, apesar da sua idade e do seu
58
estado de saúde. É um observador atento e esperto, pois ao tempo que capta
todos os movimentos mantém-se numa postura de “indiferença”. É uma
estratégia que preserva uma boa relação com todos e garante sua
permanência ali.
8)
ROSA
Rosa tem 44 anos, é separada, mãe de cinco filhos, todos freqüentando
a escola. Ela estudou até a 5ª série. Sua filha mais velha trabalha no Galpão
dois anos e tem dois filhos que, ou ficam na creche ou com a avó quando
possível. O trabalho no Galpão é fundamental para Rosa manter a
subsistência da família:
Na verdade eu vou ser bem franca para ti. Olha, aqui do Galpão eu
mantive, antes da minha filha vir para cá, eu mantive minha família
por um ano e seis meses só daqui, só
eu trabalhando, porque eu sou
separada do meu marido e eu não gosto de esperar ele me dar as
coisas, eu acho ruim. Eu mantenho meus filhos daqui: dou colégio,
dou roupa, dou tudo daqui (ROSA, 44, 2004).
Rosa ocupa a função de suplente de tesoureira da Associação e
trabalha em parceria com Mariza. Com o tempo, ela aprendeu a executar as
funções administrativas e de representação do Galpão, participando das
reuniões externas com o DMLU, com outros galpões, momentos em que ela
diz que defende “muito bem o Galpão” por valorizar e compreender a
importância do seu trabalho:
O meio ambiente é muito importante, tem que cuidar. E, eu, para
mim o (trabalho) que eu faço é muito importante, eu adoro o meu
serviço (fala empolgada). Amanhã eu vou a uma reunião representar
o Galpão, isso é muito importante para mim. Antes de eu vir para cá,
eu trabalhava em casa de família e eu vi que aqui é bem melhor. É um
serviço como os outros. Eu não tenho vergonha do que eu faço, se eu
vou a uma loja fazer um crediário e me perguntam onde eu trabalho,
eu não escondo, não minto. Há nove anos eu trabalho aqui e eu gosto
muito (ROSA, 44, 2004).
59
Rosa morava em uma área de risco no bairro Navegantes, foi
remanejada para a vila Rubem Berta, como a maioria dos moradores dessa
região. Como diretora Rosa é atuante e age em consonância com as diretrizes
que caracterizam a administração do Galpão. Na ausência de Mariza, em
geral, é Rosa que dá os encaminhamentos.
A diferença de perspectiva dos entrevistados sobre o Galpão Rubem
Berta, o relacionamento entre eles, os benefícios, as tensões, as ausências e
as regalias, as alegrias e tragédias, são aspectos constituintes do Cotidiano
que me propus descrever. São fios que atravessam aquele espaço,
promovendo uma ligação entre os sujeitos que ali se encontram, pois,
A vida cotidiana não é tributária da simples razão, ou antes de tudo
esta não é a chave universal. Deve-se juntar a ela os sentimentos
partilhados. Convém integrá-los, implicar o jogo dos afetos, a
imprevisibilidade dos humores, ver o aspecto factual das
ambiências, sem esquecer a repercussão que não deixa de ter, a
longo prazo, a memória coletiva, àquela das alegrias e infortúnios
que, por sedimentações sucessivas, tem constituído o sentimento de
pertencimento próprio ao fazer comunitário (MAFFESOLI, 2004, p.
41-42, tradução minha).
Isto significa que as falas aqui apresentadas fizeram emergir a forma
do ambiente pesquisado com suas imperfeições, suas qualidades, criações e
degenerações próprias das relações sociais, próprias do humano. É o que
propõe a Sociologia das Formas, pensada por Simmel, na qual busco
elementos para a composição do meu esforço de compreensão do contexto e
dos sujeitos investigados. A intuição, agindo como um modo de conhecimento
interior e anterior à razão, me aproximou das figuras com as quais poderia
tecer este diálogo, trazendo à tona as facetas que possibilitam uma melhor
composição do ambiente e, portanto, uma compreensão mais próxima do que
se arquiteta naquele Cotidiano.
60
Para Henri Bergson (2003), a intuição, enquanto método filosófico de
conhecimento é a faculdade que nos possibilita distinguir a natureza de um
problema para além da perspectiva do que seja falso ou verdadeiro. A
intuição age com uma pluralidade de acepções, uma multiplicidade de pontos
de vista, uma compreensão que nos coloca além do território da
racionalidade, para melhor compreendê-la e, portanto delimitá-la. A intuição
age como um conhecimento que nos aproxima do mistério da vida
32
.
A imprevisibilidade gerou na pesquisa outras possibilidades de ação.
Ofereceu outra perspectiva ao olhar, como, por exemplo, chegar ao Galpão
sem saber que o trabalho tinha sido suspenso. Isto me proporcionou vê-lo
vazio e me fez ter a dimensão da presença das mulheres. Perceber a
importância dos ruídos na composição do ambiente, a partir do silêncio que
reinava naquele instante vazio. Ruídos que, no dia-a-dia, não apenas quebram
o silêncio, mas que a longo prazo causam danos na audição de quem se expõe
diariamente a ele. As entrevistas adiadas me oportunizaram mais tempo para
observar, ou ainda, estar livre para entrevistar quem tinha disponibilidade
em um momento insólito, como foi o caso da entrevista com Renato, que
ocorreu em função da desistência de outra pessoa.
As ausências de Violeta também me levaram a procurar outros
informantes, possibilitando-me, naquele momento, ter acesso a outros dados
e outras interpretações dos fatos ocorridos no Galpão. Foram muitas as
incertezas que me levaram a buscar na literatura esclarecimentos que me
promovesse uma certa tranqüilidade com relação, por exemplo, ao
envolvimento com alguns personagens. Roberto Damatta (1987) lembra a
possibilidade do surgimento da emoção e do afeto no trabalho de campo como
um dado inerente à situação de investigação, principalmente quando
32
Cf. DELEUZE, 1998; SAFRANSKI, 2000.
61
consideramos o encontro das subjetividades dos envolvidos, já que não se
coloca uma barreira de isolamento entre as pessoas investigadas e o
pesquisador.
A insegurança surge quando confrontamos os princípios teóricos, dos
quais nos cercamos, e o acaso, que proporciona a vivência no campo
investigado, onde as aproximações ocorrem por empatia entre os sujeitos e
não exatamente pelo exercício do ofício. Tal empatia facilita o trabalho do
pesquisador, mas creio que a mesma não está restrita à investigação.
MAFFESOLI (1998) denomina de “Pensamento Orgânico” ou mesmo “Razão
Sensível”, esta perspectiva epistemológica em que há a idéia de comunhão,
participação, sintonia, tendo como princípio da relação, entre o sujeito
investigado e o pesquisador, o afeto, o gesto, o não dito, a simpatia, a
apetência ou a atração pelo fenômeno social que integra a dimensão subjetiva
do pesquisador.
Foi atenta a esta perspectiva que procurei estabelecer minha relação
com os sujeitos e o campo investigado, reconhecendo a conjunção existente
entre razão e sentimento. Assim, mostrei esse universo social onde o ritual
diário é composto pelos gestos, alegrias, tensões, movimentos de
aproximação e retração comum às relações sociais, onde as disputas, as
ironias e anedotas, a solidariedade e a ambição atravessam, tecendo e
sustentando os laços sociais, o sentimento de partilha que caracteriza esta
tribo.
Não é possível capturar tudo porque o olhar é falível, é seletivo, nos
levando a incorrer numa atitude de indiferença ao que não nos interessa. De
modo que, aqui, contêm facetas do Cotidiano observado, aspectos dos
62
sujeitos que, por sua imensurável riqueza, torna-se impossível desnudá-los
por inteiro.
63
2. O TRÁGICO COTIDIANO
Nada é mais insuportável ao homem do que
um repouso total, sem paixões, sem
negócios, sem distrações, sem atividade.
Sente então seu nada, seu abandono, sua
insuficiência, sua dependência, sua
impotência, seu vazio. Incontinenti subirá do
fundo de sua alma o tédio, o negrume, a
tristeza, a pena, o despeito, o desespero.
(Pascal, Pensamentos, 131).
64
2.1. A MÍSTICA DO ESTAR JUNTO
O sentido dado ao trágico Cotidiano parte do entendimento de que a
tragédia é uma forma de dizer sim à vida, um modo de viver o presente com
a potência que o constitui, quer dizer, com seus problemas e embates
cotidianos vividos intensamente. Esta noção tem como fonte Maffesoli
33
,
que compreende a tragédia como uma marca deste tempo vivido e por ele
definido como Pós-modernidade, onde o linearismo cede lugar ao cíclico, “a
espiral do destino”, às múltiplas sensações, a um pensamento progressivo em
uma lógica da conjunção “e...e” (Maffesoli, 2003). Penso que a comunidade
do Galpão Rubem Berta, sujeito desta investigação, vive o seu cotidiano em
uma perspectiva trágica, afrontando com intensidade e sabedoria o que a
vida lhe oferece.
Não, pelo contrário, e nem pode. Porque não é negativo, é positivo!
Eu acho assim, tudo aquilo, como eu digo para as gurias, que tu
fazes com honestidade, com sinceridade, tudo é bonito. É que nem
tu pegares uma planta com carinho para plantar e outro vir sem
vontade para plantar, qual é a que vai prosperar? É aquela que tu
plantou com vontade, que tu regou, que tu cuidou. Agora se tu
pegares uma planta hoje, tu botares lá e esqueceres dela, tu não
puxares mais a terra, não botares mais adubo, não botares mais
água certamente ela vai morrer (MARIZA, 43, 2004).
É desta forma que Mariza, tesoureira da Associação Ecológica Rubem
Berta, reage à minha intenção de apresentar uma imagem positiva da
atividade das recicladores. Como ela, todas as entrevistadas reconhecem a
positividade do trabalho que realizam. Isso não significa que ignorem a face
dura dessa atividade, aspecto por demais publicizado, mostrado pela mídia e
ressaltado pelo movimento social engajado em uma mudança desta face: que
estar nesta atividade não foi uma escolha; que trabalhar com lixo é
33
Maffesoli formula sua compreensão sobre tragédia a partir de Nietzsche. Cf. Maffesoli,
2003.
65
desagradável e perigoso porque grande parte da população ainda não separa
adequadamente seus resíduos domésticos; que é cansativo porque trabalham
de pé durante todo o dia, carregam peso, ouvem barulhos constantemente;
que é uma atividade mal remunerada e desvalorizada devido a ausência de
regulamentação profissional; que é uma atividade realizada por mulheres
pobres. Todos esses aspectos são ainda pouco considerados pelas
autoridades competentes e pelo conjunto da sociedade que se beneficia do
trabalho realizado nos galpões e cooperativas de separação de resíduos
sólidos espalhados hoje em todo o território nacional.
Porém, existe a outra face. E é o reverso desta moeda que pretendo
apresentar, não com o intuito de fazer um elogio negando a face
desagradável, mas mostrando a ambivalência constituinte desse espaço.
Ambivalência que atravessa também a história e o Cotidiano dessas pessoas,
“... consistindo numa mistura de intensidade e banalidade, de efervescência e
tédio, de aventura e monotonia, de felicidade e tristeza” (MAFFESOLI,
1988, p. 65).
É neste jogo ambivalente que apresento os recicladores entrevistados
enquanto trabalhadores que, como em qualquer tipo de trabalho, têm alegrias
e dissabores, tensões e gozos diários:
Às vezes, as pessoas vêm nos visitar e perguntam como é que nós
nos sentimos: a gente se sente um ser humano igual a qualquer um,
nós somos igual àquele que está lá dentro do escritório numa
cadeira, atrás de uma mesinha rodando e tal. Nós sentimos dor, nós
sentimos fome, nós sentimos frio tudo nós sentimos igual aos outros.
Nós somos seres humanos iguais, nós não estamos atrás de uma
mesa porque não tivemos oportunidade de estudar quando éramos
novos (MARIZA, 43, 2004).
66
O Galpão Rubem Berta está situado na zona Norte da cidade de Porto
Alegre e emprega cerca de 35 pessoas, 30 mulheres e 5 homens
34
. Todas as
manhãs, após deixarem os filhos na creche, localizada próximo ao Galpão, as
mulheres vão se aproximando lentamente, agregando-se em torno de uma cuia
de chimarrão e um cigarro partilhado saborosamente, enquanto atualizam a
conversa e aguardam o horário de iniciar a jornada. O trabalho de separação
é feito vagarosamente até que cada uma pegue o ritmo. O pequeno grupo
dirigente inicia o dia pela parte administrativa, reunindo-se no escritório
para dar encaminhamento às questões referentes à gerência do Galpão tais
como: os deslocamentos e delegações de funções; ouvir aquelas que precisam
ser dispensadas por algum motivo particular que geralmente é doença;
calcular quanto material precisam separar para atingirem uma renda
suficiente para cobrir as despesas de manutenção do Galpão e pagamento do
salário
35
. Esta é uma tarefa difícil e pouco compreendida por quem já está
trabalhando acelerado no cesto separando o lixo e esperando ansioso pela
hora do lanche.
Por volta de nove horas chega o primeiro dos cinco caminhões que,
durante o dia, deixam o lixo recolhido nas ruas da cidade. Entre o barulho
dos sacos caindo e a nuvem de poeira que levanta, ouvem-se os gritos das
mulheres: “Aqui não! Bota lá no fundo do cesto”; “Eu não vou limpar esse lixo
do correio que é muito nojento, a gente trabalha e não vê o resultado, manda
pra outro lugar”. Os sacos que caem podem trazer surpresas desagradáveis
quando estouram respingando restos de líquidos ou de comida, resultado da
34
Esse número é relativo ao período de realização da pesquisa, uma vez que o número de
trabalhadores é flutuante e regulado pelo volume de trabalho que, por sua vez, é variável
conforme a época do ano.
35
Para as recicladoras lixo é o que não tem nenhuma utilidade, o refugo que vai para o
contêiner. O que elas separam é denominado “material”. Para a Organização Mundial de
Saúde, Lixo é “qualquer coisa que seu proprietário não quer mais, em um dado lugar e num
certo momento, e que não possui valor comercial”. Cf. MIRANDA, 1995.
67
separação inadequada do lixo doméstico. As mãos ágeis separam
cuidadosamente o que tem valor de mercado dos rejeitos, olham mais
atentamente quando encontram um livro ou uma revista, que folheiam,
comentando sobre a beleza das roupas, estampadas nas páginas de uma
revista de moda ou em catálogos de divulgação de lojas, fazem piadas ou
simplesmente desdenham da impossibilidade de acesso àqueles bens. Os
vidros de esmalte e os restos de perfume são separados e usados como
moeda de troca por passagem de ônibus, cigarro, por exemplo. Os cartões
telefônicos são checados para verificar se ainda têm alguma unidade para
uso, ou usados para “encher a carteira”. As pilhas são usadas à exaustão nos
velhos radinhos, encontrados também entre o material.
A prática da troca é constante no Cotidiano do Galpão e, no meu
entendimento, tem um simbolismo que ultrapassa o aspecto da satisfação
material, sendo também uma forma de demonstrar a empatia, de agradar o
outro. Durante o lanche, por exemplo, a comida é partilhada entre elas, assim
como o cigarro e a cuia de chimarrão. Os objetos com valor de uso,
encontrados na triagem do material, sempre são destinados a alguém: roupas,
sapatos, utensílios, que ainda podem ser aproveitados, tanto podem ser
utilizados pelas mulheres mesmo como podem ser destinados a outras
pessoas. Os brinquedos, cadernos, livros, são destinados às crianças.
A roupa que não serve a quem a encontrou será bem utilizada por outra
pessoa. É assim que Violeta, por exemplo, estreita os laços com seus vizinhos,
para quem ela destina aquilo que não lhe serve. Em contrapartida, seus
vizinhos lhe têm estima e oferecem seus préstimos quando ela necessita de
ajuda para levar suas crianças ao posto de saúde no meio da noite. O dinheiro
que às vezes é deixado por engano, e encontrado pelas recicladoras entre o
material, é festejado e partilhado entre o grupo que trabalha próximo de
68
quem o encontrou, atitude que pode ser vista como uma forma de estender a
generosidade com a qual casualmente foram agraciadas.
Para Maffesoli (2001), a troca é um dos fundamentos da socialidade e
compõe o tecido dos laços sociais na medida em que ela existe a partir de
uma incompletude que me leva a buscar no outro possibilidades de atender
minha necessidade proporcionando uma relação. A troca, lembra Maffesoli,
não deve ser vista como algo linear e puro. Como outros aspectos do
Cotidiano, ela é conflituosa e pode ocorrer sobre a disparidade e a diferença
entre o que é dado e o que é devolvido. No Galpão há a partilha e há, também,
a “subtração”, que ocorre quando algo que interessa a alguém está no cesto
da vizinha. A astúcia para subtraí-lo impede, no entanto, que cheguem a
situações limite de disputas
36
. Ocorre, também, que muitas coisas de valor
são interceptadas antes mesmo de chegarem ao cesto. Algumas recicladoras
estabelecem trocas com os funcionários do DMLU (Departamento Municipal
de Limpeza Urbana) que as privilegiam com mimos retirados na triagem feita
por eles durante o percurso do material até o Galpão.
A figura de uma santa, que está no alto em uma posição de proteção,
também foi encontrada no meio do material: “fiquei com ela porque achei
bonita, nem sei que santa é essa!”. No espaço onde trabalham os homens,
junto às prensas, estão expostas bandeiras do time de futebol preferido,
fotos de mulheres despidas que também vieram no lixo. É o sagrado e o
mundano cumprindo sua função naquele espaço constituído harmonicamente
pelo útil e o descartável, a alegria efêmera provocada pelo “estar junto”,
36
Certo dia presenciei uma situação em que uma mulher queria o ventilador que estava no
cesto da vizinha e se aproveitou de sua ausência durante o lanche para puxá-lo para o seu
cesto. Guardou o ventilador fora do alcance visual da outra, fiquei observando para ver a
reação caso a colega percebesse, mas estabeleceu-se uma conversação, uma brincadeira,
uma tamanha troca de gentilezas que sequer foi percebido o desaparecimento de tal
objeto.
69
muitas vezes, sufocando a angústia causada pela doença de um ente familiar,
a tragédia vivida de forma estrategicamente cômica porque se tem de
prosseguir.
O Galpão de Reciclagem da Associação Ecológica Rubem Berta foi
fundado em 1991 por iniciativa de uma mulher que não pertence mais ao
grupo:
Quem fundou o Galpão foi a Matilde e o Ir. Antonio Ceccim. Eu
cheguei aqui em 1992, nós trabalhávamos em grupo de 04 mulheres,
eram 06 grupos. Depois vieram a Hilma e o Egídio para ajudar. Eu
vim do nada! Vim seguindo atrás dos outros procurando um canto
para parar (VIOLETA, 37, 2004).
O Galpão surgiu como uma alternativa de geração de emprego e renda
para famílias que viviam em área de risco na Avenida Sertório e foram
remanejadas pela Prefeitura Municipal para o bairro Rubem Berta, zona
Norte da cidade. No princípio, a mão de obra era toda feminina, e empregava
cerca de 20 mulheres.
No começo era só mulher, não podia ter homem. Foi feito pra mulher
trabalhar, homem não podia, a não ser que chamasse os homens só
para carregar os caminhões, daí era pago separado. Depois foi
liberado porque éramos nós que carregávamos os caminhões, era
muito pesado e a maioria se machucava, principalmente a coluna. Não
tinha nem elevador era tudo braçal então isso prejudicava muito, daí
a gente fez uma assembléia e achou melhor colocar homens, mas
poucos, no começo eram poucos, mais para fazer o serviço pesado e
daí continuou e ficou assim (MARGARIDA DO CAMPO, 35, 2004).
O Galpão é hoje considerado um ponto de referência no bairro, “muita
coisa mudou no Galpão, a comunidade mesmo reconhece” (MARIZA, 43,
2004). O Bairro Rubem Berta é um bairro de classe popular. A região é
topograficamente dividida, o que favorece também a diferenciação entre
seus habitantes. Na parte alta do bairro encontram-se os conjuntos
70
habitacionais, construídos pelo antigo Banco Nacional de Habitação (BNH)
37
,
e os terminais de ônibus que ligam o bairro a outras regiões da cidade.
Também ficam ali pequenos comércios, posto de saúde, escolas, posto
policial, salão comunitário, sede da Associação de moradores, salões de festa.
Esta região do bairro é pavimentada, com asfaltamento nas ruas e coleta
seletiva. Na região onde está localizado o Galpão, na parte baixa do bairro,
não existe coleta seletiva. O Galpão Rubem Berta criou um Pevs (posto de
entrega voluntária) para recolher o material descartável desta área. Na
linguagem dos moradores, a parte baixa onde habitam as recicladoras, é
conhecida como vila.
A região onde está localizado o Galpão é povoada pela população
remanejada de áreas de risco da cidade. Aqui as moradias são mais precárias
e pode-se observar que estão sempre em processo de construção. Seus
moradores estão sempre melhorando o estado de suas habitações, é uma laje
que sobe sustentando outra “peça”, uma grade na janela, uma pintura. Como
em qualquer bairro popular, a casa funciona como um núcleo de aglomeração
de várias famílias, ou seja, os filhos se casam e permanecem com os pais, os
netos vão nascendo um parente que migra do interior. Daí a necessidade de
ramificação da casa que, além de ocorrer por uma questão econômica, acaba
por sedimentar um modo de vida das classes populares, qual seja, a de
preservar a vida em comum do grupo doméstico. É interessante notar que,
mesmo habitando na mesma casa, cada grupo tem seu próprio espaço e, por
conseguinte, sua intimidade e particularidades. A vida em comum se encontra
no espaço do pátio, onde a convivialidade do grupo doméstico se manifesta
por meio das conversas em torno da cuia de chimarrão, das refeições, dos
jogos de cartas e dos churrascos nos finais de semana, momento em que o
37
Segundo relatos de moradores, os blocos de apartamentos foram ocupados pela
população há cerca de 30 anos.
71
grupo se abre para a convivência com os vizinhos, em que a música ecoa
alegremente dando um tom de festa ao encontro.
A presença do poder público nesta região é pontual. Entre os anos de
2002 e 2004, a presença da Prefeitura Municipal de Porto Alegre pôde ser
notada com mais freqüência, realizando, no último ano, a pavimentação de
uma grande área do bairro, como demanda do Orçamento Participativo. Nessa
região se conta com a ajuda de Organizações não Governamentais que têm
como preocupação prestar serviço à comunidade, como também com a Igreja
Católica, que mantém um centro de educação e lazer e uma creche que
atende toda a população. O próprio Galpão, que atua em parceria com o
CESMAR - Centro Educacional Marista oferece não somente ajuda material,
mas espaço de lazer, de agregação afetiva e espiritual, e a oportunidade de
aprendizagem de uma ocupação através de pequenos cursos
profissionalizantes.
A comunidade reclama da ausência do Estado no cumprimento do seu
papel de provedor de serviços sociais, mas por outro lado vale-se da
“solidariedade orgânica” tanto como uma forma de ajuda mútua, quanto como
uma atitude de resistência e proteção à sua identidade do olhar
preconceituoso e classificatório do Estado
38
:
38
Émile Durkheim (2004) classifica a Solidariedade Social em: Solidariedade Mecânica e
Solidariedade Orgânica. A primeira é produzida pelo corpo social coletivo que absorve a
individualidade e promove um conjunto de regras coerentes com o que deseja o corpo social
coletivo, ou seja, a sociedade. Por sua vez, a Solidariedade Orgânica é constituída pela
consciência individual. A partir de Durkheim, Maffesoli (2001, p. 233) desenvolve a
compreensão de que a solidariedade orgânica é possível na medida em que a personalidade
individual se perde, é absorvida no organismo coletivo (característica das sociedades
tradicionais), ao passo que a solidariedade mecânica não depende senão do ‘bem querer’ da
decisão de uma personalidade tipificada, característica das sociedades atuais de tipo
econômico, onde reina a atomização e é o cálculo que preside as relações, o que pode
remeter ao mecanismo.
72
Ela pensa que eu estou com vigarice e me chamou atenção na
reunião na frente de todo mundo, eu fiquei bem quietinha porque se
eu falasse ali eu ia brigar com ela. Ela é assistente social, eu sou
uma coitada que trabalha com lixo. Depois eu liguei pra ela e hoje eu
vou lá pra uma reunião com ela, eu vou explicar pra ela e vou dizer
que ela não pode falar assim com as pessoas e que eu acho que ela
não tem competência pra fazer o trabalho dela, a outra assistente
social não tratava a gente assim. Ela é muito novinha, tem só 19
anos, não tem competência pro trabalho dela, ela fica querendo
saber coisas da minha vida pessoal com meu marido, isso está errado
(CRISÂNTEMO, 2003).
Neste relato, uma recicladora fala sobre seu desentendimento com
uma responsável por um programa social no bairro, uma pequena
demonstração da relação que, às vezes, o Estado estabelece por meio das
Políticas de Assistência Social com essa população, aplicando um pré-
julgamento, diferente da solidariedade orgânica exercida no espaço do
Galpão onde:
Muitas vezes um abraço, uma conversa, escutar o outro, vale mais do
que brigar, reclamar; eu penso que ser da diretoria não é só
administrar, mas é também se preocupar com as pessoas (MARIZA,
43, 2004).
O dia-a-dia no Galpão é pontuado pelas histórias individuais de cada
pessoa que, ao se juntarem, formam um enredo às vezes monstruoso: é uma
que está com o filho doente, outra que tem que ser afastada do trabalho
porque está doente, o irmão ou marido que está preso, um parente que morre
subitamente, o namorado que tombou em um tiroteio com a polícia, a falta de
dinheiro. São histórias que assustam até algumas delas: “temos que fazer
uma oração para limpar isso aqui, tem muita coisa ruim acontecendo” (DÁLIA,
53, 2004); Mas há quem pense que o “monstruoso” é constituinte da vida e se
torna temível a partir da perspectiva que se olha:
É que nem eu digo para as gurias, elas dizem: ah parece que desabou
uma bomba aqui, eu digo não, é que cada família, cada ser humano
tem a sua cruz para carregar e como aqui é um grupo de 35 pessoas
73
se atingem dois ou três, parece que desabou uma bomba. Não tem
bomba nenhuma, são coisas que
acontecem na vida da gente, assim
como tu estás sã tu ficas doente e, nós temos que entender uns o
lado do outro (MARIZA, 43, 2004).
É essa sabedoria orgânica, um modo de compreensão fundado no
trivial, na experiência que permite relativizar a tragédia diária, vivendo-a
como um aspecto constituinte do Cotidiano; isso que para um determinado
modo de compreensão da vida social, pode significar uma atitude de
passividade ou alienação, me parece uma estratégia de resistência à
realidade posta como inexorável, uma espécie de astúcia para negociar o
prosseguimento à vida; uma forma de viver o presente sem um sentimento de
recusa ou lamentação, esgotando suas possibilidades de alegrias e amarguras
sem creditar sua potência no aguardo de prazeres futuros. A esperança, o
amanhã é imediato. A preocupação está em satisfazer as necessidades
emergenciais, fugindo de uma perspectiva que aposta que a felicidade e o
bem-estar estão ancorados em um devir alhures:
Diria que há uma inegável e árdua sabedoria no reconhecimento da
‘força das coisas’. Sem dúvida, é duro viver. Mas essa aspereza é o
sal da vida intensa. É isso mesmo o que, nas histórias humanas, faz
do trágico o vetor dos verdadeiros momentos culturais. Aceitando
reconhecer que tudo que chega legitimamente, ‘o grande dizer sim
à vida’ nietzscheano, não é senão o eco da humilde grandeza da
vida ordinária: toda existência humana é formada de húmus. É
levar em conta essa
sombra
(grifo do autor)
que assegura, em
última instância, a perduração no ser (MAFFESOLI, 2003, p. 15).
Esse modo de encarar o Cotidiano difere de uma perspectiva pensada
pela Modernidade, quando se esperava ser possível racionalizar, inclusive, a
potência da vida, fugir do acaso e prever todos os acontecimentos como uma
forma de proteger o homem e oferecer-lhe uma possibilidade de felicidade,
sendo esta entendida como a expressão de uma vivência baseada na
saciedade de todas as necessidades materiais, esquecendo-se que “
...
74
felicidade e desgraça são dois irmãos gêmeos que crescem juntos”
(NIETZSCHE, 1997, p. 276, tradução minha). Ou seja, que tanto a
felicidade quanto o infortúnio são constituintes da existência humana.
A perspectiva que se toma aqui é a de um Cotidiano
39
constituído a
partir da conjunção dos minúsculos acontecimentos, das múltiplas situações,
dos diversos entrecruzamentos entre os fatos que marcam a vida social e
subjetiva de um grupo, das contradições e pluralidades que perpassam as
ações desse coletivo. Ou seja, é numa perspectiva inclusiva (e/e) de
compreensão cuja trama social é tecida por diversos fios com diferentes
matizes, garantindo uma organicidade e um equilíbrio que possibilita
relativizar a tragédia cotidiana, apontando para uma atitude de aceitação da
vida, expressando uma potência incomum, um
querer viver
(MAFFESOLI,
1985), um
“amor fati”
(Nietzsche, 2002)
40
, diria, uma forma sábia de viver
as tragédias do cotidiano.
Para Maffesoli o querer viver, é uma espécie de conservatório
energético da vida social que proporciona a exaltação da vida, atitude que
pode ser identificada no Cotidiano do Galpão Rubem Berta quando sua
comunidade reconhece que a remuneração pelo seu trabalho é insatisfatória,
mas reitera que não gostaria de mudar de atividade porque valoriza os laços
sociais que criou, porque valoriza a autonomia que esse ambiente de
trabalho proporciona e reconhecem que, apesar de tudo, é importante
contar com a solidariedade das companheiras de trabalho.
39
Nas Ciências Sociais, o Cotidiano é tido como um campo conceitual polissêmico, com
abordagens críticas, e, abordagens tidas como Pós-Modernas, que fazem uma leitura
positiva do Cotidiano, abordagem assumida nesta Tese. Cf. TEDESCO, 1999.
40
Expressão que significa não evitar, não se conformar e menos ainda dissimular o seu
destino, mas afirmá-lo, amar o que não pode ser mudado, mesmo sendo trágico e
imprevisível e por isso mesmo potencialmente plural.
75
Eu gosto de trabalhar aqui! (responde enfática) apesar de que o
dinheiro é pouco, mas eu gosto. Mas, é importante (se refere ao
trabalho), claro que é importante! É importante pro meio ambiente,
pro futuro também. Ecologicamente é importante! E é um serviço
bom de lidar. É perto de casa, tem como eu atender os filhos, casa
e serviço tudo junto, então pra mim facilita bastante. E eu acho
interessante trabalhar com lixo. Porque além do trabalho a gente
está fazendo um bem pra... Para o mundo bem dizer, para a cidade,
para as pessoas, tudo isso aí. E aqui eu tenho a parceria com as
minhas colegas (rindo e olhando para as colegas) ah! A gente brinca
não é, tem horas que tem aquelas discordâncias tu brinca com a
pessoa e ela não gosta, mas no mais é bom por causa disso, está
toda hora brincando, sempre inventando uma coisa e outra, aí passa
o tempo, quando você está meio chateada também sempre tem um
para soltar uma brincadeira não é Violeta? E isso é bom! Em outro
setor de serviço tu já ficas mais isolada, eu gosto desse movimento
porque eu não gosto de me sentir sozinha, nunca gostei, então para
mim é bom (MARGARIDA DO CAMPO, 35, 2004).
É com simplicidade e veracidade que Margarida do Campo exprime sua
opinião sobre seu trabalho e os aspectos positivos que ela desfruta dele,
critica com veemência o que ela desaprova e as atitudes do poder público em
relação à atividade dos catadores. Na última eleição, em julho de 2004,
compôs uma chapa para a diretoria do Galpão. Margarida se candidatou à
presidência do Galpão, recebendo 08 votos, contra 25 do candidato eleito.
Como suas colegas, no horário do lanche, ela se aglomera com o seu grupo
para repartirem o lanche, o chimarrão e o cigarro. Abrem espaço entre os
tonéis, limpam o chão, colocam uma caixa no centro e outras em torno, “é a
mesa do lanche”, lavam os copos onde distribuem o café que acompanha o
cigarro arrematando o final do lanche.
Nesse momento singelo e indispensável para continuarem a jornada,
elas contam suas histórias, falam sobre o que viram na novela e o juízo que
fazem dos personagens, criticam a direção do Galpão, comentam as notícias
que ouviram no rádio e expressam suas fantasias. Falam sobre suas
intimidades, que geralmente torna-se motivo de anedota e combustível para
76
a imaginação. Fazem fofocas sobre aquelas que se aglomeram em outros
cantos do Galpão, zombam dos casos amorosos entre os colegas de trabalho,
apontam os defeitos e satirizam alegremente a vida alheia, até que soa, de
forma estridente a campainha chamando para o trabalho e todas resmungam
enfadonhamente pelo fim do descanso.
Esse “estar-junto” é a base para a sustentação dos laços sociais
estabelecidos nesse espaço. Essa ambivalência, onde o trágico e o anedótico
pontilham e estabelecem as relações, constitui o dado social apresentado
como o tecido que sustenta o cotidiano, a vivência coletiva atravessada pela
tensão e a harmonia conflitual que consiste em uma composição e integração
desses opostos (MAFFESOLI, 1988), das múltiplas situações que
constituem este espaço de com-vivência produzindo uma liga, uma “mística
do estar-junto”,
Com efeito, o próprio da vivência é pôr a ênfase sobre a dimensão
comunitária da vida social; vindo a mística sublinhar aquilo que une
os iniciados entre si, aquilo que conforta, de modo misterioso, o
vínculo, ao mesmo tempo tênue e sólido, que faz com que essa
comunidade seja causa e efeito de um sentimento de pertença que
não tem grande coisa a ver com as diversas racionalizações pelas
quais, na maioria das vezes, se explica a existência das diversas
agregações sociais (MAFFESOLI, 1998, p. 176).
Talvez seja justamente essa mística da qual fala Maffesoli que
sustenta a relação tensa e ambígua desse grupo de recicladoras. Ao mesmo
tempo em que questionam o “corpo mole” de alguns no desenrolar do
trabalho, defendem o direito imperioso da mãe de ficar em casa quando seu
filho está doente, ou de se preocupar com a colega que largou
temporariamente o trabalho em função de um mal estar. Por decisão de
assembléia foi estatuído o direito a qualquer um de se ausentar do trabalho
por questões de saúde, sua ou de algum familiar, sem que tenha desconto em
77
sua remuneração. Embora não tenham carteira assinada e não tenham
garantido seus direitos trabalhistas, sendo esta uma reivindicação delas, a
prática social que estabeleceram a partir de uma vivência e de um
sentimento de pertença ultrapassa aquilo que poderia estar garantido por
uma legislação vertical e que, sem dúvida, não acataria os imprevistos
constantes no cotidiano de trabalho deste grupo.
As regras de funcionamento do Galpão estão previstas em estatuto e
regimento interno, as decisões são tomadas em assembléias que são
realizadas conforme a necessidade e urgência imposta pela realidade
cotidiana, havendo uma flexibilidade e, quando necessário, um enrijecimento
das regras. Esse fazer democrático é motivo constante de elogios e críticas
ao grupo responsável pela árdua tarefa de manter essa “harmonia conflitual”
que, a meu ver, é o melhor termo para expressar as relações de trabalho
neste espaço. Uma “harmonia conflitual” que prima pela manutenção do
vínculo que circunda e mantém junto esse grupo; uma harmonia que vai se
engendrando conforme cada situação e que, ao mesmo tempo, vai deixando
um rastilho de questionamentos e descontentamentos conforme a situação
momentânea de cada sujeito. Ou seja, cada um compreende e absorve a
regra na medida em que se sente contemplado e afetado por ela.
Tais questionamentos, no entanto, não chegam a impossibilitar a
legitimidade e a necessidade dessa flexibilidade. É como se cada situação
provocasse uma busca de aprimoramento das relações sociais geridas por
esse grupo, como explica Rosa, uma das diretoras do Galpão, ao ser
questionada sobre como administram as situações delicadas nas relações de
trabalho:
Olha a gente chega lá e pede, por favor, não é. Conversamos, a
gente não chega gritando, a gente chega ali e diz: olha fulana faz
um favor pra mim. Eu sou assim, as outras também são, eu chego lá
78
e digo: tu fazes o favor de subir no cesto, espalhar o cesto para
mim. A gente pede um favor para elas, a gente não manda. Só que,
às vezes, quando a gente precisa ter uma conversa a gente chama
lá no escritório, conversa, pede pra ela direitinho, mas não
chegamos gritando assim na frente dos outros. A gente trata bem
para ser bem tratada (ROSA, 44, 2004).
Explico para ela, durante a entrevista, que esse procedimento eu
chamo de Cuidado, pois com tais atitudes elas demonstram preocupação
umas com as outras. Ela concorda e começa a narrar um fato:
Foi ontem, uma colega minha que está com infecção e ela veio
trabalhar porque o médico não deu mais atestado, mas nós da
diretoria, eu e a Mariza chegamos e dissemos para ela: tu não vais
trabalhar desse jeito, tu não podes trabalhar, tu vais pegar mais
infecção nesse lixo, vai para casa quando tu estiveres boa tu voltas
e nós estamos pagando ela. Claro, não adianta, uma pessoa está
doente, pega uma infecção, ela já está com infecção e ainda pega
mais, ela tem filhos também para criar e nós dissemos assim para
ela: olha o Galpão fica e tu vais! Vai para casa cuidar do teu filho. E
ela
foi. Mas a gente conversou direitinho com ela numa boa. A gente
entende não é. Às vezes, tem umas que dizem que a gente
trabalha muito com o coração, mas se não trabalharmos com o
coração como é que a gente vai trabalhar?(ROSA, 44, 2004).
“Trabalhar com o coração” não quer dizer permissividade ou
entendimento absoluto entre o grupo, pode significar relativização das
tensões e aborrecimentos, capacidade de negociação tendo em vista o
objetivo imediato. Significa uma atitude atravessada pelo que Maffesoli
(1998) denomina “Politeísmo de Valores”, provocado por uma perspectiva
pluralista de considerar que a trama social é constituída por diversos
elementos que, arquitetonicamente, se aproximam e se distanciam em um
79
movimento que produz o que já identifiquei como sendo uma forma
harmônica de vivenciar os conflitos e as tensões cotidianas
41
.
Maffesoli (1996) compreende esse fenômeno no social como uma
forma de “Estar-junto”, ou seja, uma forma de estar no mundo, idéia que se
coaduna com o pensamento de Heidegger (1981), em que o “
Ser-com
” é
constitutivo do “
Ser-aí
”, ou seja, do existir humano. “
Ser-com
” significa algo
junto ou alguém na presença do outro, estar com, ou estar na presença do
outro, que vem a ser a “
existenciálidade”
, “
maneiras características de se
relacionar e de viver
”. Pode se dizer que “
Estar-Junto-Com
” (MAFFESOLI,
1996) vem a ser a forma como me relaciono com os outros, como atuo, sinto,
penso, vivo com os meus semelhantes.
O fundo formado pelo tecido dessa relação, ou desse “
estar-junto-
com
”, constitui a “
Ética Estética”
(MAFESSOLI, 1996) própria desse
conjunto social. Uma ética estabelecida a partir dos vínculos afetivos, das
necessidades materiais e subjetivas, que caracteriza esse grupo que, ao
compartilharem emoções, afetos, conflitos, produzem uma estética própria
da vida ordinária
42
. Uma trama que os caracteriza e os une nesse trajeto
pontuado pelo trágico, pelo onírico e pelo anedótico, entre outras qualidades
que formulam e sustentam esse cotidiano.
A noção de ética em Maffesoli aponta para a existência de uma
maneira de ser, fundada na empatia, na proximidade. É uma ética particular
de atenção ao seu grupo, à sua tribo, sem que esta ética se submeta a uma
41
Para G. Simmel, “as relações sociológicas são condicionadas de forma absolutamente
dualista: a união, a harmonia, a cooperação que valem enquanto tal como as forças
socializantes devem ser atravessadas pela distância, a concorrência, a repulsão, para dar
lugar às configurações reais da sociedade” (Cf. VANDENBERGHE F. 2001, p. 32).
42
O termo estética está sendo utilizado com o sentido atribuído por Maffesoli (1996),
enquanto a potência coletiva de sentir, de experimentar o que afeta um conjunto social.
80
moral universal fundada em um dever ser, mas que toma “forma” a partir de
um “estar junto comunitário”. Na compreensão de Maffesoli, a moral e a
ética dos grupos ou tribos sociais são fundadas em uma determinada
situação, em um ajustamento a cada momento, é uma “... nova ética social em
gestação feita de cooperação, de novas formas de solidariedade, de
atitudes caritativas e outras manifestações de socialidade...” (MAFFESOLI,
1998, p. 77).
Pode-se dizer que, no Galpão Rubem Berta existe, uma ética em
relação a tudo que afeta a esse grupo, da divisão do lanche e do cigarro aos
bens encontrados entre os materiais. Mesmo quando há subtração, existe
uma astúcia que evita a disputa. As mulheres recicladoras utilizam
estratégias e sagacidade que poupa o vínculo, que está para além do objeto
em questão.
Outra forma de se observar a existência de uma ética, que sustenta
esse grupo, diz respeito à preocupação com a sobrevivência do outro. Tal
preocupação se materializa com a conduta de manutenção da remuneração
da colega que, por motivos alheios a sua vontade, não pode comparecer ao
trabalho, seja por motivo de doença, ou por necessidade de cuidar de algum
familiar que necessite de atenção, como já foi colocado acima. Entre o
grupo, existe a compreensão de que aquela pessoa ajudada hoje poderá
ajudar outros posteriormente, como esclarece o presidente da Associação
sobre a conduta em relação aos problemas que surgem no Cotidiano do
Galpão, principalmente em relação ao cuidado com os filhos:
Na realidade o seguinte, filhos eu também tenho três, eu sou quase
pai e mãe porque a mãe deles trabalha fora há muito tempo,
inclusive final de semana, eu acho que por isso eu já sei do
problema não é! O mesmo problema que elas têm eu tenho e em
segundo lugar eu não tenho nenhum tipo de preconceito não, eu
acho que problemas todo mundo tem. Se a gente passa pelos
81
mesmos problemas, a gente sabe os problemas do grupo, então
quando se tem uma idéia, se coloca para o grupo e ele vai autorizar
por via de assembléia, para que isso seja feito e assim funciona.
Também muito por solidariedade dessa parte, eu acho que somos
todos muito humanos, existe solidariedade neste sentido (RENATO
MALHEIROS, 36, 2004).
Tal atitude não é fixa. Por ser orgânica, ou seja, por se constituir a
partir das necessidades apresentadas pelo cotidiano, as normas estão
sujeitas a variações, podendo tanto ser aperfeiçoadas quanto suspensas
quando se observa um certo abuso dos princípios estabelecidos pelo grupo,
gerando uma deturpação. Neste caso, é possível até uma interrupção da
prática comum adotada para que haja uma acomodação dos princípios que
alimentam a norma instituída pelo grupo, para que a mesma possa ser
retomada mais adiante. Foi o que aconteceu, por exemplo, com as dispensas
para as mães cuidarem das necessidades especiais dos seus filhos. Adotou-
se atitudes mais austeras tais como: limitar o tempo de dispensa, solicitar
apresentação de atestado do médico, do juizado ou da escola como
comprovação da causa de ausência ao trabalho.
O procedimento acima foi necessário, pois, segundo a diretoria,
estava ocorrendo abuso de alguns no uso da prática da dispensa. Esta é mais
uma característica pertinente aos grupos sociais denominada por Max
Weber e utilizada por Maffesoli como “comunidade emocional”, em que...
(...) a emoção coletiva é algo encarnado, algo que joga com o
conjunto das facetas daquilo que o sábio Montaigne chamou
‘l’hommerie’: esse mito de grandezas e de infâmias, de idéias
generosas e de pensamentos mesquinhos, de idealismo e de
enraizamento mundano, em uma palavra, o homem (MAFFESOLI,
2000, p.31).
Significa que, diferente de uma comunidade racional fundada no
princípio da individuação, da separação, uma comunidade emocional está
assentada no efêmero, numa composição em movimento, numa ausência de
82
organização moldada em um enrijecimento institucional (MAFFESOLI,
2000). Ou seja, a organização e as regras de funcionamento do Galpão têm
uma forma maleável, definida a partir dos acontecimentos, do presenteísmo
cotidiano.
Sem querer fazer uma distinção, justamente por compreender que o
cotidiano é constituído de forma ambivalente no qual as alegrias e tensões
dançam harmonicamente neste espaço, mostrarei a seguir um aspecto que
produz desentendimentos, que é o valor econômico do trabalho que este
grupo realiza. Essa problemática será apresentada sem a pretensão de uma
compreensão exaustiva ou ainda de solução, pois a mesma merece por si só
um estudo. A questão econômica é o principal foco de tensão entre as
recicladoras, mas é, ao mesmo tempo, um elo de aglutinação deste grupo e
não pode deixar de ser abordado, pois, “... a vida cotidiana, à imagem dos
indivíduos e dos grupos sociais, é fundamentalmente imperfeita, e é sobre
essa imperfeição, inconscientemente assumida, que repousam sua harmonia
e seu equilíbrio, sua beleza fascinante também” (MAFFESOLI, 2001, p. 60).
2.2.
A Outra Face da Mesma Moeda.
O Cotidiano do Galpão Rubem Berta é também constituído pela
repetição dos gestos, dos rostos descontentes, dos risos que ecoam
desdenhando do “micho salário” que recebem a cada final de mês; pela
tensão que se apodera do grupo dirigente no momento em que estão
fechando a folha de pagamento quando mais uma vez percebem que o
retorno econômico será insatisfatório e que novamente terão que se
justificar perante o grupo. O descontentamento, a revolta mesmo, as trocas
de gestos rudes entre o grupo dirigente e o grupo “subordinado” é um ritual
83
que se estabelece e tensiona as relações permitindo se observar neste
momento uma distinção entre a direção do Galpão e os associados:
Olha, aqui tem muitas divisões, começa pelo grupo, nós mesmos que
somos catadores, é cada um por si, não são colegas, não respeitam
cada um de nós que somos catadores (...) como a diretoria (...)
porque a diretoria faz as coisas e não nos comunicam, para eles nós
não somos ninguém. Só quando precisam para ir numa reunião para
nos xingar, para reclamar que não fazemos nada certo, que não tem
produção. A gente se mata trabalhando o dia todo de pé e nós não
temos valor, só eles têm valor acima de nós (ACÁCIA, 39, 2004).
A remuneração no Galpão ocorre pela produtividade do conjunto dos
trabalhadores, ou seja, não se ganha pela produção individual. Todo dinheiro
arrecadado com a venda do material é utilizado para pagamento das
despesas de manutenção das prensas, pagamento de contas de água, luz,
telefone e segurança noturna do Galpão. O que resta é igualmente dividido
pelo número de trabalhadores, incluindo àaqueles que estão afastados por
motivos de saúde. Cada pessoa recebe um rancho mensal, que é descontado
na sua remuneração, e, ao longo do mês, são dados ainda os vales que
também são descontados.
Nos últimos anos, a remuneração caiu bastante já que ela depende da
quantidade, da qualidade e do valor de mercado do material recebido. Como
na agricultura ou no comércio, o trabalho no Galpão tem sua entressafra e
sua “alta estação”. Sofre a influência da vida da cidade, uma vez que esta é
responsável pela produção de lixo. Durante as férias de verão, por exemplo,
a produção de material é baixa, pois a cidade está vazia. Já no período de
aulas e do calendário de festas, a quantidade de lixo aumenta
consideravelmente sendo possível inclusive a contratação de mais pessoas.
Outro aspecto que influencia é o número de catadores nas ruas da cidade
que se antecipam aos caminhões do DMLU, recolhendo o material de mais
84
valor de mercado como o alumínio
43
. Há ainda o desperdício do lixo
provocado pela separação incorreta feita pela população, a mistura do lixo
orgânico com o lixo seco impossibilita o aproveitamento de todo o material
recebido
44
.
Tanto a separação incorreta quanto a sujeira dos materiais
reutilizáveis provocam alguns problemas para os recicladores:
desvalorização do material; descarte de produtos que poderiam ser
reaproveitados; o trabalho improdutivo de separar um material que não será
vendido; aumento do risco de contaminação ao manusearem produtos
deteriorados. Somados todos esses fatores, temos aí mais um elemento que
incide na baixa remuneração dos trabalhadores da separação de resíduos. A
remuneração é um aspecto bastante polêmico que sofre influência de vários
aspectos e tem várias interpretações. Para uma mãe com três filhos como
Violeta “o que se tira aqui não dá para nada”; uma pessoa que vive sozinha
considera o ganho razoável como é o caso de Jacinto que diz:
Ah, já foi melhor! Mas fazer o quê? Tem mais é que pegar aquele
dinheirinho e sair faceiro. Mas já foi melhor. Eu quando vim para
cá, no primeiro mês recebi um dinheiro que eu nunca tinha pegado
na minha vida, até estava olhando o recibo um dia desses: 344,00
e uns quebrados. Agora está dando uns 150,00, mas não adianta
ficar discutindo, para mim está bom. Mas uma hora melhora, a
gente tem essa esperança (JACINTO, 60, 2004).
A diretoria por sua vez contabiliza outros benefícios como, por
exemplo, a creche mantida pelo CESMAR onde as recicladoras têm
43
Recentemente tem surgido pessoas, ou pequenas empresas que recolhem o material
reciclável nos condomínios, supermercados, empresas. É crescente o número de
atravessadores no mercado da reciclagem.
44
É importante lembrar as pessoas que fazem adequadamente a separação de seus
resíduos domésticos. Estas pessoas têm o reconhecimento e a gratidão das recicladoras,
que até rezam por quem envia seu lixo limpo e com alertas quando se trata de material
periculoso.
85
prioridade para matricular seus filhos, como esclarece a tesoureira da
Associação:
Nosso salário na realidade ele é baixo, mas se formos avaliar tudo
que temos ao nosso redor, como a nossa creche que nós temos para
deixar nossos filhos o dia todo: nós largamos às 7h da manhã e
pegamos às 5h da tarde, com alimentação, com médico, inclusive
com a fralda descartável para retornar no outro dia, também
temos o centro social marista e no horário em que as crianças não
estão na escola, estão ali fazendo curso, aprendendo alguma coisa.
Então se nós formos avaliar o todo do nosso trabalho não é só um
galpão de reciclagem, mas uma creche onde os filhos são bem
cuidados, um centro social onde as crianças ficam em horário que
não estão na escola. Eu acho que se nós avaliarmos tudo isso o
nosso salário é muito bom, porque uma creche hoje em dia, qualquer
creche que tu tens que levar alimentação ela não é menos de 60, 70
reais por mês. Eu acho que se a gente avaliar tudo isso, a gente tem
um salário digno sim, outra coisa, as pessoas podem estudar em
horário que estão trabalhando, o horário em que uma turma vem
para a escola a outra turma está trabalhando lá dentro sem
reclamação, então isso é uma coisa que a gente construiu há quatro
anos para que as pessoas consigam estudar, pelo menos para
aprender a ler, porque agora nós conseguimos os cartões
magnéticos para a conta salário para as pessoas receberem seu
dinheirinho no banco, porque nós tínhamos muito problema de
assalto, e para isso elas precisam ler (MARIZA, 43, 2004).
Independente da forma como se contabiliza a remuneração, o fato é
que este é um aspecto que merece atenção. Durante esses anos de pesquisa
no Galpão Rubem Berta, eu acompanhei várias iniciativas que visavam
melhorar a renda dos recicladores: a diminuição do número de
trabalhadores, a parceria com instituições como a PUC-RS (Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e o Correio - que consiste no
envio de seu material descartável para o Galpão – e, ainda no último ano, a
86
implantação de um posto para comprar o material recolhido pelos catadores
de rua
45
.
Todas essas iniciativas não chegaram a um resultado satisfatório e a
questão da quantidade de material é tão séria que, às vezes, a jornada de
trabalho é suspensa para diminuir as despesas do Galpão.
Para os recicladores a questão da baixa remuneração é um tanto
difícil de compreender quando relacionada com a quantidade de horas de
trabalho e a quantidade de material que sai do Galpão: “eles dizem que são
as contas, mas que contas?” (VIOLETA). Na primeira semana do mês o clima
de apreensão é visível no Galpão, cada um quer saber quanto receberá,
enquanto a diretoria tem a dura missão de ratear a parca receita resultante
de um mês de trabalho:
Muitas vezes por a gente não ter conhecimento de como é que
funciona, não se tem noção do valor de venda do material. A gente
vê uma carga dessa e pensa que vale uma grana. Eu até já perguntei
para uma sócia quanto ela calculava que valia uma carga, ela deu
7.000,00 numa carga que valia 800,00. Quem está lá
fora não sabe
dessas coisas. Eu mesmo pensava assim antes de entrar para a
diretoria: tanta carga que sai daqui e a gente ganha tão pouco, tem
alguma coisa errada. (RENATO MALHEIROS, 36, 2004).
Um estudo sobre as cooperativas de catadores no interior de São
Paulo mostra que, na realidade, tais instituições não seguem os princípios do
cooperativismo e que seus associados não têm conhecimento do preço de
venda do material, não participam das decisões e, em algumas, os associados
não têm participação financeira, ferindo os princípios básicos da idéia de
cooperação (MAGERA, 2003). No Galpão Rubem Berta, há também
45
O posto de compra de material foi implantado como uma iniciativa da Prefeitura
Municipal, que emprestou 500,00 como capital de giro para as primeiras compras. Tal
quantia deveria multiplicar-se para pagamento do empréstimo e geração de capital para as
próximas compras, o que não ocorreu. O resultado foi negativo e o Galpão acabou
contraindo mais uma dívida comprometendo ainda mais a remuneração das recicladoras.
87
desinformação sobre as questões administrativas e de gestão, embora haja
tentativas de circulação das informações, tais como a publicação da planilha
com os valores dos materiais, balanço do movimento mensal. Todas as
medidas são discutidas e decididas em assembléias, mas isso não garante um
consenso entre o grupo e não dissipa as críticas dos descontentes.
Para alguns membros da diretoria, o problema da baixa remuneração
está no valor de mercado do material separado, no desvio do lixo de
qualidade, pelos catadores de rua, empobrecendo o lixo recolhido pela
coleta seletiva. O ritmo lento de trabalho de algumas recicladoras que, por
não conhecerem o valor de mercado do material separado, concluem que não
vale a pena trabalhar em ritmo acelerado, também influencia na queda da
produção. Ao perguntar à Marisa, tesoureira do Galpão, se as trabalhadoras
compreendiam a forma de definição do valor do salário ela deu a seguinte
resposta:
A maioria não compreende e esta é uma dificuldade, porque a
maioria ainda não se conscientizou. Uma coisa é tu vires oito horas
para o Galpão e trabalhar até meio dia e pegar às duas e largar às
cinco da tarde. Outra coisa é tu vires para dentro do Galpão
caminhar, entendeu! Essa é a dificuldade maior, porque tu veres no
meio de um grupo de 35 pessoas existem aquelas que se encostam,
que não pegam junto e quando a dificuldade está maior parece que
a coisa fica pior, porque elas pensam assim: ‘o meu salário já está
pouco mesmo eu vou trabalhar rápido para quê?’ Só que não é essa
a realidade, se o teu salário está pouco, tu tens que trabalhar mais
para que ele venha aumentar e isso é um transtorno muito grande
dentro da associação (MARIZA, 43, 2004).
Essa justificativa para a baixa produção também é partilhada por
alguns associados, como demonstram estes entrevistados quando pergunto
sobre a valorização do trabalho do grupo:
Olha, sinceramente, aqui tem pessoas que não valorizam isso aí não!
Trabalham, trabalham, vivem daqui, mas não dão valor. Como agora,
88
hoje é dia 29, perto do pagamento, aí elas ficam ali no pátio
conversando, contando historinha, aí o que
acontece? Não dá
produção, pára a prensa, aí quando chega no dia do pagamento que
dá pouquinho reclama, mas não pega sério! (JACINTO, 60, 2004).
Naquele tempo era puxado (refere-se ao período em que o Galpão
era administrado por Hilma), naquele tempo não era como hoje que
se trabalha na maior moleza. Ela já fazia assim: as que eram
ligeiras trabalhavam de um lado e as lerdas trabalhavam noutro
lado, as lerdas que não desciam o cesto eram descontadas. A
caneta comia. Então a gente trabalhava bastante, mas também
ganhava bem e agora o que adianta? Trabalha, trabalha e o ganho é
lá em baixo. Eu às vezes fico em casa me deito de noite e começo a
pensar: cruzes, meu Deus! Como é que caiu tanto assim (DÁLIA, 53,
2004).
Tem algumas mulheres doentes, outras não querem trabalhar, não
vale a pena pelo que estamos ganhando
46
! (VIOLETA, 37, 2004).
O que se pode observar é que a questão da renda é importante na
medida em que afeta a sobrevivência de todos, e falo aqui de sobrevivência
imediata, do alimento diário. Mas esta é uma questão recorrente para a qual
ainda não se encontrou uma solução de longo prazo, porque se vive o
presente, o hoje! Este aspecto pode ser compreendido pelo fato de que no
grupo de recicladoras, mesmo para os dirigentes, não existe uma
preocupação economicista. Como todas esperam somente garantir a
sobrevivência cotidiana do seu grupo familiar, recorrem a soluções
imediatas e até desfavorável à sua situação financeira como, por exemplo,
aceitar empréstimo oferecido por um colega de trabalho com cobrança de
altos juros. Isso ocorre com anuência da diretoria que desconta na folha o
débito em favor do credor. Para algumas é a salvação, para outras uma
proteção da diretoria a alguém que as explora.
46
Resposta à minha observação ao número baixo de trabalhadoras certa feita no Galpão,
situação que ocorreu por três ou quatro vezes ao longo do 2º semestre de 2004, bem como
a suspensão de um turno de trabalho de todo o grupo ou dispensa dos homens por falta de
trabalho para eles.
89
Esta é uma situação que se pode interpretar de várias maneiras:
simplesmente condenar tal atitude entendendo-a como uma legitimação da
exploração das recicladoras vítimas de outras espoliações; pode-se, no
entanto, ver aqui um exemplo da ética proposta por Maffesoli (1996) em que
a preocupação com o grupo ultrapassa a perspectiva moralista. Ou seja, não
interessa se alguém está ganhando ilicitamente com a situação, importa
poder ajudar aquele necessitado agora, prevalecendo o laço social instituído
no grupo. Esta atitude é também uma demonstração da harmonia conflitual
proporcionada pela duplicidade de valores necessários, para a manutenção
da arquitetura deste grupo social, cujo conflito, a tensão e o contraditório
são aspectos constituintes deste cotidiano.
Talvez seja importante esclarecer mais uma vez que, embora seja um
empreendimento difícil, não quero esboçar nenhum tipo de valoração com
relação à atitude do grupo, mas constatar suas configurações. Identifico
nas relações cotidianas do Galpão uma característica importante aos grupos
sociais, que é justamente a capacidade demonstrada de negociar com uma
pluralidade de valores. No sentido mais comum, tende-se a pensar a
harmonia enquanto um conjunto homogêneo de semelhanças. MAFFESOLI
(1988) nos convida a pensar numa “
coincidentia oppositorum”,
ou uma lógica
de relação dos contrários que tem como objetivo menos solucionar os
problemas do que conviver com as contradições inerentes à vida em
sociedade
47
:
Com efeito, quando não apostamos numa vida perfeita, num paraíso
celeste ou terrestre, nos acomodamos com aquilo que temos. (...),
47
Para Simmel o conflito é uma forma de interação e de associação entre os indivíduos.
Toda associação contém elementos de conflito, contém forças atrativas e repulsivas. A
sociedade precisa de uma certa relação quantitativa de harmonia e de conflito, de
associação e de concorrência, de benevolência e malevolência para chegar a se constituir.
Cf. VANDENBERGHE (2001); SIMMEL (1977).
90
os protagonistas da vida diária são, concretamente, de grande
tolerância de espírito com relação ao outro, aos outros e aquilo que
acontece. Isto é o que faz com que, por paradoxal que possa
parecer, da miséria econômica possa brotar uma inegável riqueza
existencial e relacional (MAFFESOLI, 2000, p. 175).
Para MORIN (1998a) esta é uma perspectiva dialógica ou o diálogo
entre duas lógicas. Pode se utilizar tal perspectiva para pensar também as
questões políticas deste espaço e compreender a existência de uma
hierarquia de papéis entre os que dirigem a Associação e administram o
Galpão Rubem Berta, e os associados que delegam poderes aos dirigentes,
por meio de eleição, e deliberam em assembléias os procedimentos
cotidianos deste local de trabalho, o que não impede os conflitos. Mas, por
outro lado, é esta tensão de uns sobre os outros no interior do grupo que
assegura a perenidade deste conjunto, conforme a lógica das relações até
aqui apresentada.
A diretoria da Associação Ecológica Rubem Berta tem um mandato de
02 anos executado por presidente, vice-presidente, tesoureiro, secretário,
conselho fiscal e os respectivos suplentes para cada função. A última eleição
ocorreu em Julho/2004, quando se utilizou o princípio da proporcionalidade
de votos para preenchimento dos cargos. Cada sócio com mais de 01 ano no
quadro pode concorrer a uma função e com 06 meses de associado tem
direito a voto. Sempre ocorre disputa na eleição havendo um grupo de
“oposição” à diretoria em gestão, mas curiosamente é sempre o grupo da
“situação” que vence.
É uma questão bastante complexa, e ao mesmo tempo bizarra se
considerarmos as estruturas tradicionais para se pensar eventos políticos
nos grupos populares. Dito de outra forma: é difícil compreender esse
contexto quando se idealiza o aspecto político como uma relação linear e
91
pura onde se espera que a transparência reja os acontecimentos. Como em
qualquer outro contexto, aqui também existe a disputa e o contraditório, há
críticas feitas ao grupo gestor e deste ao grupo que o opõe. O aspecto
interessante é que tais críticas ocorrem de forma velada. O grupo opositor
demonstra um temor à represália do grupo gestor e este, por sua vez, teme
perder a disputa e tornar-se vítima do grupo opositor. De modo que as
críticas são sabidas, mas são exercidas de forma discreta, estabelecendo-
se um pacto tácito de preservação de uma ética que venha garantir a
convivência futura.
É com aparente ingenuidade e, ao mesmo tempo, com sinceridade que
uma recicladora fala da sua participação no grupo de oposição:
Para mim foi uma experiência nova. Eu não ia participar aí depois eu
decidi participar para ver qual é a emoção, para ver quantos votos
eu ia ganhar, para saber se eu sirvo para alguma coisa aqui dentro.
Eu ganhei 11 votos, essas onze pessoas acham que eu mereço ser
vice-presidente (ACÁCIA, 39, 2004).
Acácia trabalha no galpão Rubem Berta há 04 anos. Foi levada por
Violeta que é sua vizinha e, além dela, trabalham duas irmãs que, agregadas
a outras recicladoras, formam um pequeno grupo que fazem juntas o lanche.
Além do trabalho no Galpão, durante cinco anos Acácia foi catequista e
participou de outros cursos oferecidos pelo CESMAR, desenvolveu trabalho
com a comunidade, fez curso de informática e participou do 1º congresso
nacional dos catadores de materiais recicláveis, realizado em Brasília em
junho de 2001, do qual ela fala com entusiasmo:
Foi uma experiência ótima! Foi muito bom, eu participei bastante.
Participei em teatro, em debates, em feira. Sempre fui convidada
lá para participar em teatro porque eu adoro teatro, adoro!
(ACÁCIA, 39, 2004).
92
Como suas colegas, Acácia, mesmo fazendo críticas sérias ao grupo
gestor, não tem nenhum constrangimento em partilhar com este grupo
momentos de lazer, de descontração e até mesmo de participação no poder.
Observo que a atitude de oposição se dissipa quando está em jogo algum
interesse circunstancial como, por exemplo, a partilha de doações recebidas
pelo Galpão.
É importante pensar nessa trama na qual não existe a harmonia
perfeita nem a divisão inexorável, em que a vida é vivida da forma como
cada ator manuseia sua máscara, conforme o papel que lhe é atribuído
representar. Neste jogo, todos participam e desempenham sua função sem
que os laços se estilhacem e se perca toda uma socialidade que circunda e
sustenta este grupo. Socialidade que está amalgamada por uma viscosidade
que suporta a disputa, a ironia, a fofoca, o interesse, pois para, além disso,
existe a identificação, o cheiro, o
húmus
que os faz sentirem-se parte de
um universo orgânico porque é verdadeiro. Um universo onde importa aquilo
que constitui seu
ethos
ignorando deliberadamente o que não lhe serve, ou
se poderia dizer, utilizando estrategicamente uma ética que lhes convêm.
Acompanhei outras eleições no Galpão Rubem Berta e em todas elas
havia dois grupos disputando o direito de administrá-lo. A primeira eleição
que presenciei foi em 2000 quando acompanhava o projeto de escolarização.
Naquele momento observamos uma inovação interessante causada
justamente pela disputa e pelo processo de escolarização onde ocorriam
reflexões a cerca do funcionamento do Galpão. Pela primeira vez os dois
grupos reuniram-se e criaram uma plataforma de campanha onde
apresentavam uma proposta de administração caso fossem eleitos. O grupo
dirigente manteve-se na administração, mas a postura de acolhimento das
93
contribuições e até de estímulo à participação era visível, e segundo alguns,
foi até coercitivo.
Aquele era um momento em que a principal liderança do Galpão tinha uma
postura um tanto controversa e hoje questionada pelo atual presidente:
houve uma época em que eu dizia à dona Hilma que ela parecia
Hitler, mas brincando. Ela era muito autoritária e quando eu e a
dona Mariza entramos na diretoria tinha muita coisa que a gente
não concordava, achava muito duro e começamos a dar a nossa
opinião e fomos mudando isso (RENATO MALHEIROS, 36, 2004).
Quando a dona Hilma estava aqui ela não ensinava ninguém a fazer
nada. Quando eu entrei para a diretoria não sabia fazer nada, mas
agora já sei fazer e já ensinei a Eleonora a tirar nota (MARIZA,
43, 2004).
Mariza e Renato se referem à liderança mais antiga do galpão Rubem
Berta. Originaria dos grupos de base da Igreja Católica, Hilma veio para o
Galpão com a “missão” de ajudar o grupo a se estruturar baseada numa visão
um tanto dura a respeito dos grupos populares: “tem que ser assim, esse
pessoal só entende as coisas assim” dizia Hilma. Sua dedicação, no entanto,
relativizava para alguns recicladores sua maneira de agir, principalmente
porque ela acreditava estar agindo da melhor forma, ou seja, do modo que o
grupo entendia e respeitava, ou respeitava porque a temiam:
Ela (a Hilma) se interessava muito, ela podia ter os defeitos dela...
ela dizia: ‘gurias hoje vamos fazer uma missa aqui dentro, vamos
rezar um pouco para sair os males’, ela era católica mesmo, fazia a
gente ir onde tinha missa, ‘vocês vão tudo se não vocês vão ser
descontadas no final do mês’. Bom, ela não deixava a gente
sossegar, era reunião do Orçamento Participativo e ela sempre
dizia que se não fossemos teríamos desconto no salário. Isso era
bom porque muitas coisas nós conquistamos quando andávamos
nestas reuniões, agora ninguém mais vai (DÁLIA, 53, 2004).
Esse estado de insatisfação mútua entre associados e dirigentes é
permanente sem que aja, no entanto um rompimento entre ambos, pois
94
existe um jogo de ambivalência que proporciona o questionamento e produz
um movimento de equilíbrio. Observo que existe uma falta de clareza dos
associados com relação à forma de funcionamento da associação, o papel da
diretoria e do seu próprio papel enquanto associado, que pode ser causado
pelo fato de o aspecto político organizacional neste grupo ser de certa
forma secundário, por não se sentirem atrelados a uma perspectiva de
projeto político, ou a uma idealização de organização coletiva. Ou seja, este
grupo se aglomera em função do trabalho, que desenvolvem coletivamente, e
se sustentam pelos laços sociais que constituem a partir deste cotidiano, e a
falta de esclarecimento sobre o papel político de cada um não deixa de ser
um combustível benéfico a este estar-junto que privilegia a necessidade
imediata, o presente, um dos fundamentos da vida cotidiana.
A organização em forma de Associação é uma exigência jurídica para
gerir a atividade produtiva. A maioria dos recicladores são céticos com
relação à atividade política, seja no micro espaço do Galpão “... é só
incomodação, não vai nem ganhar nada. Se ao menos ganhasse um salário
melhor
48
...”; seja em uma perspectiva mais ampla na relação com o poder
público ou com os políticos profissionais:
Eles só tiram proveito daqui. Quando tiram algum proveito eles
desaparecem. Quando querem lucrar alguma coisa eles estão aí
fazendo campanha disso, campanha daquilo. Depois que eles ganham
ou tiram proveito de alguma coisa, já
era. Ninguém mais aparece ou
vem perguntar se estamos precisando de alguma coisa
(MARGARIDA DO CAMPO, 35, 2004).
Tal atitude de desconfiança com aqueles que representam o universo
da política institucionalizada é comum neste grupo. Para Maffesoli (2000),
48
Margarida se refere às candidaturas para a diretoria da Associação, ela mesma acabou
concorrendo à função de presidente contra Renato Malheiros que foi reeleito para o cargo
por mais dois anos.
95
tal distanciamento pode ser compreendido se considerarmos que, para os
grupos populares, o que importa é a pessoa e aquilo que lhe afeta, que lhe é
próximo. Em uma compreensão sobre a relação dos grupos sociais ou “tribos”
com a política, em contraposição ao projeto da Modernidade, o autor faz
uma distinção entre pessoa e indivíduo, onde, o indivíduo tem uma função
que é pensada por um projeto político distante e fundado no eu individual,
enquanto a pessoa desempenha um papel congruente com tal ou qual
situação,
.O indivíduo é livre, ele contrata e se inscreve em relações
igualitárias. Isso servirá de base ao projeto, ou melhor, à atitude
projetiva (isto é, à política). Em contrapartida, a pessoa é
tributária dos outros, aceita um dado social e se inscreve num
conjunto orgânico. Em suma, podemos dizer que o indivíduo tem
uma função, e a pessoa um papel (MAFFESOLI, 2000, p. 93).
Pode-se, assim, compreender o descrédito do grupo social aqui
analisado com relação às práticas políticas e aos políticos, mais ainda se
levarmos em conta que muitas vezes essas pessoas são vítimas de
discriminação e descaso quando, por exemplo, utilizam os serviços públicos
tais como: posto de saúde, escolas e outros serviços sociais. São vários os
relatos de mães que tiveram dificuldade quando os filhos precisaram de
atendimento médico, ou mesmo para manterem seus filhos freqüentando a
escola, ou ainda no cumprimento da exigente burocracia para tirarem um
documento, por exemplo
49
. Esta prática política desencarnada causa
descrédito e afasta o grupo de interessar-se e compreender outras
práticas.
Richard HOGGART (1970), em estudo etnográfico sobre a classe
popular inglesa mostra que, para esse seguimento social, existe “eles e nós”,
49
Entre as recicladoras, poucas têm documentos de identificação, já foram feitas algumas
tentativas para reparar esta situação, mas sem sucesso.
96
ou seja, um universo social constituído por àqueles que pertencem a outras
classes como os empregadores ou patrões, os representantes do poder
público no bairro como policiais e outros funcionários públicos e os políticos.
Segundo HOGGART (1970, p. 139) “As classes populares vêm ainda os
funcionários públicos como ruins ou perigosos” (tradução minha). A classe
popular diz ainda o autor, tem um sentimento muito forte de pertencimento
a um grupo e este sentimento tira sua força das relações de vizinhança, de
camaradagem, de cooperação expressadas em ditados populares como: “nós
estamos todos no mesmo barco; a união faz a força” (p. 125, tradução
minha).
Para HOGGART (1970), a coesão da maior parte dos grupos sociais
está no seu poder de exclusão, ou melhor, no sentimento de diferença que
estes estabelecem entre “nós” e “aqueles”. Para a classe popular é mais
importante a casa e a relação de vizinhança, e esta coesão produz um
sentimento de que o mundo dos “outros” é um mundo desconhecido e
freqüentemente hostil. Tal atitude, justifica o autor, ocorre como um
resquício da antiga relação que se estabelecia entre “a cabana e o castelo”
transposta do campo para a cidade.
Esta visão de que existe, “eles”, os outros que vivem em outra
realidade social, que dispõem de outros mecanismos para solucionar seus
problemas e que utilizam as benesses sociais de uma forma diferente, é
fortalecida a partir da relação que “Eles” representam e a forma como se
relacionam com os membros da classe popular seja através da prestação de
serviço público, quando estes esperam longas horas em uma fila de hospital
para receberem atendimento, ou mesmo através do tratamento dado aos
seus filhos na escola. Quanto aos políticos, a fala de Margarida apresenta
97
bem o entendimento que elas têm sobre a relação destes com a classe
popular, reafirmada em outro depoimento:
Eles não têm essa consciência que o reciclador é ser humano igual
aos outros, que ele sente as mesmas coisas que aquele doutor ou
advogado que está lá estão sentindo. E isso é uma coisa que não era
para ser, era para haver uma consciência nas pessoas, agora mesmo
é época de política (eleição) o que vem de político aqui eu vou te
contar, mas depois passa as eleições eles somem,
evaporam pelo ar.
É o tipo de coisa que não devia acontecer, mas infelizmente a gente
sabe que tem isso aí, que nem todo mundo é igual e nem poderia,
temos que ser diferentes uns dos outros (MARIZA, 43, 2004).
Há que se lembrar, no entanto, que existe a possibilidade de uma
relação cordial entre membros destes dois mundos a partir das necessidades
vividas pelas classes populares, para as quais criam estratégias que visam
instituir uma relação para atendimento de suas demandas, por exemplo, no
caso do atendimento médico. Quando iniciei meu trabalho de investigação no
galpão Rubem Berta, Violeta me relatava seus desentendimentos com os
médicos do posto de saúde do bairro que, ao atendê-la, sempre davam o
mesmo diagnóstico, sem ao menos lhe examinar. Este tratamento lhe
afastava do uso deste serviço. Atualmente, Violeta tem duas crianças que
necessitam de cuidados médicos permanentes, o que a fez estabelecer uma
relação de cordialidade com a médica que assiste seus filhos como forma de
garantir assistência quando necessário. Neste caso, para HOGGART (1970), o
médico não é o “outro”, este assume uma fisionomia social por ser necessário
estabelecer um conhecimento com o seu paciente, por criar uma relação de
proximidade com o outro
50
.
50
Segundo MOURÃO (2002), para uma parcela dos profissionais em saúde existe a
preocupação e um esforço para superar o fosso cultural existente entre as instituições de
saúde e a população. Nesses casos, um lado não compreende a lógica do outro. Para
solucionar esta distância cultural, se faz a sistematização de uma prática de educação
popular nos serviços de saúde, que consiste, entre outras coisas, em reconhecer a
98
Penso que, de algum modo, quando as recicladoras tensionam uma
possível divisão existente entre “eles” da diretoria e “nós”
51
, os recicladoras,
mais que uma constatação, é uma espécie de vigilância para que estes não se
distanciem dos propósitos que os juntou, não se esqueçam de que
compartilham o mesmo universo e a mesma condição de vida, de que o
sentimento de solidariedade que os une não deve ser sacrificado em nome de
uma prática organizativa desencarnada e estabelecida por um estatuto ou um
regimento de normas administrativas.
De alguma forma, o tensionamento provocado pelas disputas e pelos
questionamentos mantém vivo os laços sociais criados a partir do sentimento
de pertencimento e de partilha de um cotidiano concreto e imediato sobre o
qual estes devem atuar garantindo a sobrevivência permanente e imediata.
Ou seja, antes mesmo que aja uma divisão, existe um cuidado para que esta
ameaça não se concretize por meio de práticas divisionistas. É também uma
maneira de rechaçar uma espécie de prática política que não tenha relação
com o vivido, de preservar a identidade do grupo.
Penso, também, que, diferente de uma perspectiva asséptica e linear
de entender as relações sociais e políticas, este grupo aprendeu a conviver
com a ambivalência e o anódino como traços que constituem e legitimam o seu
cotidiano. BALANDIER (1997b) recorre à noção de “Ambivalência” para
refletir sobre o movimento de “ordem e desordem” presente nas realidades
sociais. Para o autor tanto a ordem quanto a desordem são aspectos
heterogeneidade e diversidade das classes populares e estabelecer uma aproximação com
os movimentos sociais locais.
51
É desta forma, “eles lá da diretoria e nós” que os associados se referem à diretoria. É
uma separação simbólica demarcada pelo território do escritório, pois como já apontei, em
outros espaços e em outros momentos esta divisão se dissipa. Observo, no entanto, que
somente alguns freqüentam o escritório no momento do lanche, por exemplo. E outros
adentram este território quando estão em busca de algum benefício, seja uma informação,
uma doação, um vale ou até um cigarro. Esse espaço, vale ressaltar, é franqueado a todos.
99
constituintes das realidades sociais e a ambivalência atua como um artífice
equilibrador neste movimento entre ordem e desordem. Identifico os
questionamentos, as tensões, bem como a partilha, a compreensão, a
flexibilidade, exemplos desse jogo ambivalente entre ordem e desordem,
como uma forma mesmo de viverem os valores emergentes do seu cotidiano.
É importante registrar que, muitas vezes, as tensões e os
questionamentos são apresentados de forma cômica, metafórica, o que de
certa forma evita um confronto propriamente. É como Violeta se expressa
quando tentam, no pequeno grupo durante o lanche, entender a contabilidade
do Galpão e decifrar o percurso do dinheiro arrecadado: “Para onde está indo
o dinheiro? Lá em casa não está não, lá não tem banco, só uma cadeira e um
sofá velho (risos)” (VIOLETA, 37, 2004). De uma forma “sutil” e irônica elas
expressam suas insatisfações e fazem suas críticas acerca do que ocorre
naquele espaço. Para BALANDIER (1997b), “a ironia desmoraliza o poder e as
hierarquias”.
Violeta recorre sempre à comicidade para tratar de assuntos desde os
mais banais aos mais graves. Quando lhe indago sobre essa sua veia cômica
ela responde: “Tenho que rir para ver se melhora!”. Esta forma anedótica de
encarar a vida presente nos corredores do Galpão Rubem Berta me parece
um modo de defender-se das tragédias cotidianas, um modo de relativizá-las,
o que não quer dizer ignorá-las ou minimizá-las. Ao contrário, pode se
entender como uma forma de resistência, pois “apesar de tudo, à vida!”.
Quanto às práticas políticas no espaço do galpão, seja àquelas
praticadas pelos recicladores mediante sua representação, seja às relações
com o poder público, observo que para a maioria esta é uma questão
secundária. Talvez isto ocorra em função da saturação de um projeto político
100
que remetia a uma sociedade ideal, mas abstrata, distante, que se colocava
para além da cotidianidade, que se ancorava em uma promessa de futuro
melhor. Esta promessa não cabe mais na vida terrena, pois segundo
MAFFESOLI (1997), a política contemporânea perdeu sua força de
reliance,
ou sua capacidade
de religar as pessoas que partilham de pressupostos
comuns.
Para o autor, na sociedade atual o poder (a política), está saturado
dando lugar à potência (a socialidade), “que coloca em profundidade a
multiplicidade de comunidades dispersas, fragmentada e, no entanto ligadas
umas às outras em uma arquitetônica diferenciada se exprimindo naquilo que
chamei harmonia conflitual” (MAFFESOLI, 2000 a, p. 62, tradução minha).
Ou seja, é mais viável pensar que no galpão Rubem Berta prevalece a força
dos laços sociais instituídos a partir de um destino comum partilhado pelo
coletivo e que a necessidade do instante seja mais definidora das relações de
solidariedade do que um projeto abstrato. Os pequenos fatos cotidianos são
mais significativos e levam a ações criativas que os permite prosseguir,
sustentando esse “estar-junto”.
101
3. CUIDADO E SUSTENTAÇÃO DA VIDA DAS MULHERES
RECICLADORAS.
A complexidade do mundo interno das mulheres, e sua capacidade de expressá-lo
de forma ativa no mundo, é de uma riqueza que precisamos reconhecer e valorizar.
Para isso, é importante não nos deixarmos intimidar por desqualificações. Ser
complexa não é a mesma coisa que ser complicada. Somos complexas porque somos
cheias de reentrâncias que escapam ao olhar do outro e, muitas vezes, ao nosso
próprio. Esta complexidade, ao mesmo tempo que atrai a curiosidade e fascina,
também desperta temor e leva à desqualificação, por desafiar o enquadramento
em categorias conhecidas e reconhecíveis ( Mônica Von Koss, 2000, 239-240).
102
3.1 UM MODO DE SER GÊNERO.
Já assinalei que as mulheres são majoritárias no Galpão Rubem Berta.
Na realidade, as mulheres representam a maioria na atividade de separação
de resíduos, bem como em outras atividades classificadas como precárias,
como trabalho informal ou de tempo parcial, que têm como característica a
instabilidade, a má remuneração, a não exigência de formação, a limitação ou
inexistência de direitos sociais (HIRATA, 2001).
Nesse sentido, sendo a atividade de separação uma atividade
“feminina”, pode-se afirmar que o Galpão Rubem Berta é um espaço feminino,
considerando que 95% da mão de obra é constituída por mulheres. Além do
dado quantitativo, são elas que organizam o trabalho e administram o Galpão,
sendo a maioria na diretoria. Da mesma forma, suas práticas e relações
sociais primam pelo Cuidado às pessoas e à família. Segundo SANTOS
(2004), o envolvimento das mulheres dos meios populares em alternativas de
geração de emprego e renda ocorre de forma mais simples em relação ao
homem, por estas já estarem imersa em uma cultura de troca e solidariedade
com o seu meio, sendo esta mais do que uma característica, representando
uma alternativa de sobrevivência para a mulher e seu núcleo familiar.
A relação entre homem e mulher, e entre as mulheres no espaço de
trabalho do Galpão Rubem Berta, será apresentada, aqui, a partir dos relatos
dos entrevistados, das observações e anotações extraídas no Diário de
Campo. Assim, não tensionarei, a compreensão de gênero incorporada pelo
grupo pesquisado
52
.
52
MEYER (2004, p. 6-7), apresenta duas compreensões para gênero, dentre tantas outras
formas de entendimento e utilização teórica: “Por um lado, gênero foi e continua sendo
103
A principio, não existe nenhuma tensão no que diz respeito à relação
de trabalho. As atividades são divididas de acordo com o que, no senso
comum, se compreende que seja atividade de homem e atividade de mulher:
os homens fazem o trabalho que exige força física; as mulheres realizam o
trabalho que exige habilidade, paciência, - como a separação do material,
diplomacia e compreensão para administrar as relações no grupo - o que
significa cuidar da relação entre as pessoas no local de trabalho.
A construção social e cultural do que seja masculino e feminino, e o
que compete a um e ao outro realizar no trabalho, é aceita com naturalidade
neste grupo: às mulheres cabem as atividades “leves”; aos homens cabem às
atividades que exigem força. Embora isto esteja delimitado, as mulheres
realizam atividades que exigem força caso seja necessário, como esclarece
esta diretora:
Olha, na verdade mesmo, para mim, porque quando eu peguei aqui era
só mulher, mas tem muitos homens aqui que as mulheres batem
neles! Batem neles assim na brincadeira, quero dizer, trabalham
muito mais. Tem uns homens que são muito devagar nas coisas, e se
nós botarmos as mãos nós fazemos. Tem mulher que não faz o que
eu faço: se eu tenho que quebrar vidro eu quebro, se eu tenho que
bater latão e despejar na prensa eu faço, nós fazemos tudo, tem
mulher que não faz tudo isso, mas tem homem que não faz o que nós
fazemos (ROSA, 44, 2004).
Quanto aos homens é muito difícil vê-los realizando uma atividade
considerada feminina, como separar o material. Mas esta é uma questão
usado como um conceito que se opõe, ou complementa, a noção de sexo biológico e se refere
aos comportamentos, atitudes ou traços de personalidade que a(s) cultura(s) inscreve(m)
sobre corpos sexuados...” Sem dúvida, esta é a compreensão de gênero para o grupo
pesquisado e, como não pretendo fazer o exercício da problematização deste conceito,
apresento a forma como apreendi as relações de gênero no grupo. Meyer apresenta outra
compreensão para o conceito de gênero, que, segundo a autora, tem sido utilizada pelas
teóricas pós-estruturalistas, por compreenderem que: “gênero remete a todas as formas
de construção social, cultural e lingüística implicadas com processos que diferenciam
mulheres de homens, incluindo aqueles processos que produzem seus corpos, distinguindo-
os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade”.
104
flexível, pois, às vezes, o serviço é suspenso por não ter homens para realizar
as tarefas ditas pesadas, e, às vezes, ocorre de algum homem ser deslocado,
ainda que temporariamente, para a separação de material, atividade tida
como leve e de domínio das mulheres. Porém, são situações esporádicas e que
fogem à regra da divisão do trabalho no Galpão:
Nós temos um homem no portão, que faz a segurança; outro no caco
(para quebrar vidros) e o bomboneiro, que é aquele que fica só para
recolher o material separado, e outro lá na prensa. Mas nós vimos
que ele não estava dando conta sozinho, daí colocamos uma mulher
para trabalhar com ele (na prensa). Fica ruim trabalhar sozinho na
prensa porque tem que colocar o material, baixar a prensa e depois
amarrar o fardo é difícil. Daí resolvemos fazer uma experiência e
deu certo (ROSA, 44, 2004).
No entanto, se na questão da produção a relação entre homem e
mulher é de complementaridade, no exercício do poder parece ser mais
conflitiva para os homens, pois sendo as mulheres a maioria, está
subentendido que elas mandam e os homens acatam. Porém, é necessário que
haja um certo modo para mandar, que envolve o cuidado ao falar e o respeito
ao colega: princípios que perpassam a relação da diretoria com todos os
companheiros de trabalho independente do sexo. Mas o que pensam os
homens sobre isso?
Eu não sei o que os outros pensam, mas é claro que a gente se sente
um pouco inferiorizado, tem mais mulher. E isso muda! Tem mulher
que grita com a gente, até comigo mesmo que sou o mais velho aqui
dentro. Ontem uma gritou comigo aí eu me invoquei, eu tenho idade
para ser pai dela, ela veio falando como se estivesse falando com o
filho dela, o irmão. ‘Não, minha filha, não é assim não, vai
devagarzinho’. Ela veio me chamar de velho desgraçado, eu disse: o
que é isso? E é gente que está sempre brincando comigo. Depois ela
veio me pedir desculpa, daí eu disse: ‘eu fiquei sentido contigo’!
Então a gente acha assim, não sei se elas acham também, porque nós
somos minoria elas querem comandar, dizer o que a gente tem que
fazer (JACINTO, 60, 2004).
105
Este outro entrevistado sente-se privilegiado por ter conseguido
trabalho nesse ambiente:
Eu me sinto até orgulhoso, privilegiado e abençoado porque eu acho
que isso foi uma coisa conquistada por mim, vamos dizer assim. Eu
vim para cá porque estava há muito tempo procurando emprego e
não arrumava nada. Quem me recebeu aqui foi a dona Mariza, não me
esqueço até hoje, ela me perguntou: queres trabalhar rapaz?
Respondi: Eu quero! Agora? Perguntou ela, daí fiquei trabalhando
aqui (RENATO FALEIROS, 36, 2004).
Na relação entre as mulheres e os homens no Galpão, observo que elas
utilizam recursos como o “jeitinho” maternal. Isso é possível observar, por
exemplo, na relação entre as mulheres mais velhas e os homens mais jovens,
especialmente, no caso do presidente do Galpão com as diretoras. Trata-se
de uma atitude que lembra, em muito, a relação doméstica entre mãe e filho.
Entre as mulheres mais jovens percebo que há uma certa descontração, em
relação ao tratamento; às vezes ordenam em tom de brincadeira, às vezes
com a autoridade de quem ensina os homens a realizarem seu trabalho. Esta
relação depende, também, da condição do homem, se ele é muito jovem, se
acabou de ingressar no Galpão, se não demonstra muita atenção ao trabalho.
Já presenciei muitas chacotas delas sobre os homens. Em geral, a figura
satirizada é daquele que trabalha mais próximo delas, o bomboneiro e,
dependendo da sua situação, aquele muito jovem, novo no trabalho – e, nesse
caso, os colegas homens fazem coro com as mulheres. Por outro lado, os
homens não revidam porque estão em minoria.
No geral, entre as mulheres mais jovens e os homens o erotismo é
latente nas relações, representado nas falas com duplo sentido, nas piadas
maliciosas, chegando, às vezes, até a se concretizar uma relação de
intimidade entre um casal. Quando pergunto a um entrevistado o que ele acha
da relação de trabalho em que a maioria dos colegas de trabalho são
106
mulheres, este responde com uma risada espontânea que expressa sua leitura
da situação: “isso aqui é o paraíso! Cinco homens e trinta mulheres. São seis
mulheres para cada homem!”.
Esse aspecto da relação entre os sexos é vivido de forma ambígua,
pois, ao mesmo tempo se tenta ter privacidade, existe a curiosidade e a
necessidade de exposição da intimidade - o que ocorre por meio das fofocas,
das piadas que expõem uma situação íntima do seu interlocutor: da vizinha
que passa na rua, da vendedora de lanche. Nos últimos tempos, percebi que as
relações amorosas entre os colegas se dão de forma mais discreta. Algumas
mulheres falam de sexo com liberdade, de uma forma “picante” e não deixam
de fazer brincadeiras maliciosas com qualquer homem que adentre no Galpão.
Quanto aos homens, em geral, não tomam iniciativas, mas reagem quando são
provocados, correspondendo ao gracejo recebido.
Observo que as mulheres têm um papel ativo na erotização das
relações, não se incomodando com as brincadeiras e, muitas vezes, são elas
que tomam iniciativa quando há interesse. Porém, elas podem ignorar ou
ficarem ofendidas quando o homem que lhe corteja não lhe interessa. Esse
comportamento não é generalizado. Algumas mulheres não participam das
brincadeiras embora não se escandalizem. Ao contrário, se divertem com as
piadas e histórias das colegas.
A conversa entre as mulheres versa sobre suas aventuras e
desventuras amorosas, os maridos que são como um “encosto” e “só dão
trabalho” – chegando a pedir conselhos para se livrarem deles. Certa vez,
Violeta falava sobre o pai de seus dois últimos filhos e do quanto ela não
suportava mais a presença dele em sua casa. Ela fez uma denúncia contra ele
na Delegacia da Mulher, o que resultou no seu afastamento da casa. Depois
107
de algum tempo, ele retornou porque não tinha onde morar e, segundo ela,
“moradia, a gente não nega nem para um cachorro”. Mesmo assim, Violeta
continuava querendo se livrar dele, chegando a recorrer ao extremo. Ela
contou, rindo e provocando gargalhadas em todo o grupo, a forma que
encontrou para resolver a situação:
Um dia desse eu fiz a comida para ele, porque ele só quer isso,
comer! Eu fiz a comida, daí fiz uma salada de comigo ninguém
pode
53
, porque ele adora salada. Eu fiz a salada, temperei bem
temperadinha e dei para ele comer, fiquei esperando o desgraçado
morrer. Pois ele é tão ruim, que nem veneno mata! Acabei minha
planta e ele está aí me atazanando a vida. Na próxima vez não vou
temperar para ver se funciona (VIOLETA, 37, 2004).
Essas ocorrências, como as desavenças, a separação e a troca de
companheiro, não têm entre elas uma repercussão dramática, são fatos
corriqueiros que alimentam as rodas de fofocas. Nem todas as mulheres
expõem sua vida íntima, algumas são bastante discretas e recatadas, o que
não as livra do julgamento das colegas. Em estudo etnográfico sobre as
relações de gênero em grupos populares na cidade de Porto Alegre, Claudia
Fonseca (2000) apresenta o uso do humor na referência às relações
amorosas. A autora é cuidadosa na compreensão deste aspecto, preocupada
em não cair em estereótipos, o que, segundo ela, é comum tanto na literatura
antropológica quanto no senso comum. A autora argumenta que,
O humor apresenta-se como entrada conveniente para os discursos
‘alternativos’ que tenderiam a ser esquecido na ‘norma hegemônica’.
(...) Aí, aparecem representações também estereotipadas, mas com
a vantagem de serem
diferentes
(grifo da autora) dos estereótipos
presentes no discurso normativo. Ajudam, assim, a subverter algo da
lógica jurídica de muitos modelos teórico-metodológicos que
procuram interpretar a experiência das pessoas em termos de leis
unívocas. Foi, portanto, a partir do humor, junto com fofocas e
outros discursos ‘espontâneos’, que procuramos construir a lógica
53
Uma espécie de planta venenosa.
108
subjacente à criatividade cotidiana (...), das relações de gênero
nesse bairro urbano (FONSECA, 2000, p. 138-139).
Já ressaltei que a ironia e o humor são marcas constantes nos diálogos
do Galpão Rubem Berta. Para Fonseca, esta é uma relação assumidamente
ambígua com a realidade e cada sinal, cada elemento que compõe este diálogo
é significativo. Lembro de certa ocasião em que conversava com elas sobre
sexualidade. Um gesto impensado que fiz foi interpretado de outra forma
por elas, provocando risos e comentários maliciosos e proporcionando, no
entanto, uma relação de reciprocidade no assunto.
Pode-se dizer que, seja nas relações de trabalho na qual existe a
possibilidade de comando, seja nas relações sociais em que só a amizade
perpassa, ou mesmo em uma relação erotizada, não existe uma “dominação
masculina”, aqui entendida como um modo de imposição do poder do homem,
ou o estereótipo do homem macho e a mulher submissa. Pode-se considerar
que homens e mulheres são ativos nas relações sociais que se estabelecem
neste espaço.
Tais relações não são tranqüilas, vide a opinião de Jacinto sobre o fato
de receber ordens de mulheres. Para as mulheres, às vezes, os homens
atrapalham, pois sua presença exige mais recato no ambiente de trabalho.
Violeta lembra que, antes de empregarem os homens, elas trabalhavam mais à
vontade. Nos dias muito quentes trabalhavam com roupas sumárias. Porém,
depois, com a entrada dos homens, tiveram que usar roupas mais compostas
para “evitar situação de perigo”, conclui ela, rindo.
A partir dos relatos e das observações, não fica evidente um conflito
que impeça uma relação amistosa de trabalho e convivência entre homens e
mulheres neste espaço, ou a existência de uma relação de disputa entre os
sexos. Como em outros aspectos, neste também se observa um jogo
109
ambivalente que equilibra as faces opostas que constituem a convivência
social. Margarida do Campo descreve assim a relação com os colegas, quando
pergunto se é mais fácil trabalhar com homens ou com mulheres:
Ah, para mim é a mesma coisa, os homens nem ficam aqui (no cesto).
Trabalhar no meio de mais homens é bem melhor (fala rindo).
Por quê?
Eu não sei, até no conversar com homem é diferente do que
conversar com mulher. Mulher é mais fofoqueira (rindo), o homem
não tem essa coisa de enredo
54
(MARGARIDA DO CAMPO, 35,
2004).
Para esta diretora, também é tranqüilo o relacionamento profissional
entre homens e mulheres no Galpão, porque as funções estão estabelecidas
desde o princípio: o respeito às normas é regra básica para manter-se no
trabalho, regra vigente para ambos os sexos:
É tudo igual! Eu acho tudo igual, porque a gente pede, por favor,
para todo mundo, a gente não chega com estupidez. Eles respeitam,
tudo numa boa. É ótimo trabalhar com eles, porque quando nós os
pegamos (para trabalhar), nós já os botamos em nosso ritmo. A
gente já falou para eles como era e como não era para fazer, se eles
precisam, como diz o outro, eles vão obedecer. Não é obedecer, eles
vão fazer aquilo para não irem para a rua, mas é legal trabalhar com
eles (ROSA, 44, 2004).
Para esta outra recicladora, a presença dos homens no trabalho é
importante, faz diferença não só na atividade, mas nas relações:
Eu acho que os tonéis cheios são pesados e a gente às vezes está
tão cansada de baixar o cesto, de puxar o lixo e se virar toda hora,
porque os tonéis ficam
atrás de nós, então temos que nos virar para
54
FONSECA (2000), apresenta a fofoca como um componente da realidade do grupo
pesquisado por ela e identifica-a como uma prática de discurso mais utilizada pelas
mulheres. A autora ressalta o papel da fofoca nos grupos sociais na constituição da imagem,
no papel educativo a partir da veiculação de normas e princípios morais expostos nas
histórias, circulação de informações entre pessoas não alfabetizadas, e, principalmente,
para informar e consolidar sobre a reputação e imagem pública de alguém ou de um grupo.
110
colocar o lixo. Eu acho que tem que ter homem para nos ajudar
(ACÁCIA, 39, 2004).
E a relação entre homens e mulheres é tranqüila?
Tem um pouco de diferença, porque eu não sou muito de ficar em
grupinho sabe. Eu venho antes, às vezes eu fico na conversa e depois
venho para o meu cesto, mas eu venho antes porque eu não gosto de
fofoca e sempre tem um ok, e eu acho que aqui temos que respeitar
os colegas (ACÁCIA, 39, 2004).
Sobre o fato de terem um homem como presidente esta diretora
ressalta que “têm um relacionamento muito bom, de confiança, quando ele
está errado nós conversamos, quando nós estamos erradas ele fala conosco e
assim a gente se entende” (ROSA, 44, 2004).
Operar com a categoria de gênero é para mim um exercício teórico
difícil, por entender este como um campo que constitui infinitas
possibilidades de compreensão. Portanto, no que diz respeito à relação de
gênero no Cotidiano do Galpão, a palavra é das mulheres e dos homens que
tecem no seu dia-a-dia tais relações, apresentando em suas falas os
questionamentos, as contradições, as ambigüidades, a forma como é vivida a
relação de gênero.
Observo, por exemplo, que o fato de um homem exercer a função de
presidente, função legalmente mais importante, não causa conflito entre
elas, pois, na realidade isso não significa uma demarcação de espaço. Mas
compreendo, a partir do princípio da co-gestão, que caracteriza o grupo, que
isto ocorre por uma questão de funcionalidade administrativa do Galpão. Para
se entender melhor esse fato, talvez se tenha de resgatar um aspecto
peculiar das mulheres das classes populares: a pouca escolarização é um
aspecto que não difere muito, homens e mulheres deste segmento, mas o
aspecto que, em sua maioria, estas mulheres tiveram basicamente
111
experiências de trabalho doméstico ou familiar (seja na roça com a sua
família, seja como diarista na casa de outras famílias) é proeminente. Com
isso, quero lembrar que a experiência administrativa e fora do lar para estas
mulheres é inexistente, ou melhor, era inexistente para este grupo
específico, porque elas estão construindo este conhecimento no seu espaço
de trabalho.
Compreendo que, principalmente em função de um aspecto prático, é
que um homem, por reunir a escolaridade necessária e o conhecimento da
função administrativa, foi alçado à posição de diretor presidente. Mas ele
não determina sozinho as diretrizes do Galpão, até porque quem tem o poder
político-afetivo naquele espaço são as mulheres, como já foi identificado
anteriormente. Penso que a relação entre homens e mulheres na
administração do Galpão ocorre também em uma forma de
complementaridade.
O olhar delas sobre a relação entre os sexos é constituído pelos
estereótipos formados culturalmente. Porém, não se trata de uma imagem
fixa, nem tampouco elas se posicionam enquanto sexo frágil, até mesmo
porque a vida exige delas atitudes de bravura na luta pela sobrevivência
diária. Ao longo do tempo, tive a oportunidade de acompanhar situações
diversas no campo das relações de gênero, atitudes de preconceito delas
contra as companheiras de trabalho por razões diversas, como a orientação
sexual, conflitos causados por relações entre colegas de trabalho. Muitos
casais se formaram e se desfizeram, muitas mulheres reagiram aos seus
companheiros violentos, muitas crianças nasceram, muitas mulheres ficaram
sozinhas criando seus filhos. Enfim, situações diversas comuns a qualquer
outro universo feminino, vivido sem dramaticidade, com reação e resistência,
112
mas também com ludicidade. E, talvez, este seja um diferencial nas relações
de gênero neste grupo popular.
Talvez, a comicidade seja uma forma de transfiguração dos fatos
vividos para salvaguardar seu amor-próprio nesta relação em que nenhum dos
sujeitos deseja assumir o papel da vítima ou do fraco. Tal atitude pode se
justificar pela história de vida da maioria destas mulheres que, desde cedo,
tiveram que se autoproteger. Nas relações amorosas, penso que elas não
idealizam uma relação baseada no amor romântico: as que têm uma relação
estável vêem no homem um parceiro da luta diária pela sobrevivência; as que
têm uma relação menos duradoura, vivem a relação amorosa como um modo de
diversão, reconhecendo a fugacidade e insegurança que esta lhe oferece.
Mas sem drama.
3.2 SER MÃE
Ser mãe é uma qualidade comum a todas as mulheres deste grupo.
Todas elas, mesmo as mais jovens, já têm um ou dois filhos que, em geral, é a
motivação principal de elas se entregarem ao trabalho: garantir o mínimo de
condição para criarem seus filhos. O fato de terem acesso à creche é
bastante valorizado por elas, considerando que ter um lugar para deixar as
crianças representa uma condição importante para trabalhar fora de casa,
além de ser um serviço social que não contempla toda a população de baixa
renda
55
. A creche oferecida aos filhos das recicladoras faz parte da ação
55
Para BRUSCHINI (2002), a maternidade é um dos fatores que mais interferem no
trabalho feminino, considerando que é das mães a responsabilidade pela guarda, o cuidado e
a educação dos filhos. A insuficiência de equipamentos coletivos, como creches, corrobora
para sobrecarregar a responsabilidade das mulheres trabalhadoras.
113
social da Igreja Católica nessa região, e as mulheres que trabalham no Galpão
têm prioridade no acesso às vagas oferecidas.
O motivo mais freqüente das mulheres se ausentarem do trabalho se
refere ao cuidado com os filhos, quando precisam ficar em casa para cuidar
das crianças doentes, levá-los ao médico ou ainda quando precisam
comparecer à escola ou ao juizado para resolver algum problema. Por essa
razão, ficou estabelecido que as mães podem se ausentar do trabalho para
cuidar dos problemas familiares, desde que apresentem atestado ou outra
justificativa para a ausência. É comum ainda aquelas que, por alguma razão,
não tenham com quem deixar o filho, permitir que elas o leve,
esporadicamente ao trabalho, onde recebe atenção de todas
56
. Aquelas que
já têm filhos adolescentes também se preocupam e se dedicam ao cuidado
dos mesmos, às vezes conduzindo-os à escola numa tentativa de protegê-los
dos perigos oferecidos pela rua. Se necessário mudam da região para
salvaguardá-lo das “más companhias”. É comum as filhas mulheres, logo que se
encontram em idade considerada oportuna, se engajarem no trabalho do
Galpão, junto com a mãe, para reforçar o orçamento familiar. Quanto aos
filhos homens, em geral procuram trabalho no comércio local ou, com uma
carroça, catam material na rua.
Nas festividades de final de ano, a diretoria faz campanhas para
arrecadar brinquedos a serem distribuídos entre os filhos das recicladoras.
Observo que o laço entre a mãe e a criança prevalece sobre o laço conjugal,
sendo comum as mulheres se desentenderem com seus companheiros em
defesa dos filhos que, às vezes, foram gerados em outra relação matrimonial.
É como se aceitassem a relação conjugal como passageira e a relação mãe e
56
No período de férias da creche, a diretoria escolhe algumas mulheres para cuidar das
crianças. Em cada turno uma recicladora cuida da alimentação, higiene e recreação dos
filhos das suas colegas.
114
filho como permanente e que, por isso, deve ser preservada. Um fator que
contribui para a valorização do trabalho no Galpão é o fato de estarem
próximas de casa, de não precisarem se deslocar para fora do bairro,
permitindo conciliar o trabalho com o cuidado com a família.
A proximidade da casa “facilita” a jornada extenuante dessas
mulheres, como revela esta recicladora ao descrever seu dia-a-dia:
Levanto às cinco horas da manhã para preparar a comida para os
dois filhos levarem para o trabalho. Não faço à noite porque a
comida fica fria, velha, é melhor fazer bem cedo. Depois fico
acordada para arrumar os outros que vão para a escola e esperando
a hora de ir para o Galpão. Meio dia vou em casa arrumar as camas,
lavar a louça e fazer a comida que eu levo para comer no lanche da
tarde porque não dá tempo de almoçar. No final da tarde retorno
para casa lavo roupa até por volta de nove dez horas, quando tomo
banho, janto e vou dormir
57
(CRISÂNTEMO, 2002).
Essa rotina é comum à maioria das mulheres recicladoras durante toda
a semana, incluindo o sábado, dia que elas dedicam inteiramente à família e a
casa, restando pouco tempo para o descanso, o lazer e o cuidado consigo. São
poucas as mulheres deste grupo que contam com uma presença masculina no
acompanhamento afetivo e na subsistência dos filhos. Dentre os
entrevistados, três mulheres têm um casamento estável, uma delas conta
com a compreensão e ajuda do marido: “meu marido, ele é muito consciente
do que eu faço, a gente tem uma relação muito boa” (Mariza); outra lembra
que tem “um marido muito ignorante”, quando se refere à incompreensão do
companheiro em relação à sua participação nas atividades do bairro (Acácia);
57
Esta mulher cresceu órfã de pai e mãe, segundo ela contou em uma das reuniões do grupo
de saúde. Ao nascer, sua mãe a abandonou. Ela foi criada por uma família que a maltratava,
após uma agressão doméstica, foi viver na FEBEM. Aos 16 anos se casou. Tem nove filhos.
Ela não foi um sujeito efetivo da pesquisa, seus depoimentos foram colhidos em outras
atividades que acompanhei no Galpão, por esse motivo ela não figura no item 1.3. no qual
caracterizo as mulheres entrevistadas.
115
a outra entrevistada casada não fez referência ao marido, pois se reporta
pouco à sua família.
As outras entrevistadas estão separadas e uma é viúva do último
matrimônio. Dentre os homens, um diz que é quase pai e mãe, pois sua mulher
trabalha fora e ele tem mais flexibilidade no trabalho para dar atenção aos
filhos. Assim como as mulheres, ele também goza de licença para cuidar dos
filhos quando necessário.
Cuidar de alguém, ocupar-se de, ocupar-se com alguém é uma atitude
que aparece desde cedo na história de vida destas mulheres. Quando ainda
crianças, elas cuidavam dos irmãos mais novos, ocupavam-se das atividades
domésticas para ajudarem as mães, disponibilizavam sua força de trabalho no
cuidado com o grupo familiar. A preocupação se agiganta quando constituem
sua própria família e, na maioria dos casos, não podem compartilhar com
outrem a tarefa de cuidar. Estou identificando como Cuidado
58
a atitude de
proteção que cada uma destas mulheres demonstram ter com os filhos e
familiares, a preocupação com o sustento dos mesmos, buscando
proporcionar-lhes bem estar e desenvolvimento. Para isso, elas se postam de
forma vigilante entre a casa e o trabalho, acordando cedo para fazer a
comida que os alimentará no trabalho (Crisântemo); trabalhando próximo de
casa para atender a filha que necessita de cuidados especiais (Mariza);
esticando a jornada de trabalho doméstico para lavar a roupa que a criança
levará para a creche (Violeta); na mãe que se debruça sobre o leito do filho
doente, velando por sua vida (Rejane). São nestes atos rotineiros que
observo a preocupação das mulheres recicladoras, enquanto uma postura
58
O termo Cuidado/Cura em Heidegger, além de expressar preocupação interna e externa
consigo, significa ainda “preocupar-se com algo; tomar conta de, cuidar de, fornecer (algo
para) alguém; obter, adquirir, prover algo para si mesmo ou para outra pessoa.” (INWOOD,
2002, p. 26).
116
existencial com relação aos filhos, familiares e com aqueles que estão em seu
entorno.
Ao narrar sua história de vida, Violeta coloca os filhos como centro de
suas motivações e é devido a esta dedicação que todo o grupo observa seu
processo de mudança e amadurecimento. Por não ter moradia ela perdeu por
um tempo a guarda dos dois filhos mais velhos:
Eu saía com o guri dependurado e a guria do lado e a mochila de
roupa nas costas. Não podia deixar porque não sabia se ia poder
pousar na mesma árvore. Eu fiquei oito meses assim, sem ter casa,
daí foi quando o pai da guria me tirou ela, a mãe (dela) ficou com o
guri. Daí eu comecei a ter problemas na cabeça, comecei a usar
muita coisa ruim. Quando eu melhorei me dei conta do que estava
acontecendo e disse: agora eu vou tentar recuperar meus filhos.
Mas no juizado me disseram que eu só poderia pegar as crianças de
volta quando eu tivesse onde morar e tivesse trabalho para
sustentar eles. Daí foi quando eu vim trabalhar aqui no Galpão
(VIOLETA, 37, 2004).
Ela conta que logo conseguiu um terreno próximo ao Galpão onde
construiu uma “pecinha” em mutirão, com a ajuda dos maridos de algumas
colegas e pegou seus filhos de volta. Ela narra com orgulho o processo de
aquisição do terreno:
Tivemos que acordar de madrugada, eu e a finada Hilma para ir
falar com o chefe que estava distribuindo os terrenos Eu tinha
comprado umas madeiras e largado aqui no pátio do Galpão
(VIOLETA, 37, 2004).
Fala com um sorriso tímido que quando construiu a “pecinha”, foi pegar
os filhos:
A mãe fez uma casa para nós, aí eles ficaram faceiros. A casa era de
chão batido, fomos ajeitando, fizemos uma cama com uns pedaços de
sofá e hoje já está melhor (VIOLETA, 37, 2004).
117
Violeta perdeu um bêbê, “morreu de pontada”, conta ela com tristeza.
Acompanhei as duas últimas vezes em que ela engravidou. Na última, nasceu
um menino como ela tanto desejava para compensar a perda daquele que não
“vingou”. Ela cuida do bebê com dedicação: amamentou-o até aos 2 anos, leva
ao médico com freqüência e observa atenta seu desenvolvimento. Quando
Violeta relata sua rotina doméstica, percebe-se que toda sua preocupação é
voltada para o bem-estar dos filhos: limpar a casa porque eles são alérgicos,
lavar a roupa para eles não irem sujos para a creche e colocarem em dúvida
sua reputação de mãe zelosa, trançar os cabelos da menina “para não pegar
bichinhos”, acompanhar o mais velho até a escola numa tentativa de que o
mesmo freqüente a sala de aula, priorizá-los com aquisição de remédio,
vestimenta e calçado:
Se eu for comprar uma roupa para mim eu não consigo comprar para
um filho, eu prefiro comprar para eles, eu posso esperar. Que nem
dia desse eu encontrei umas coisas que dava para vender, daí eu
comprei roupa pros guris, calçado para a guria. Para mim não compro
nem uma calcinha porque é muito cara, daí eu digo ‘não, deixa, com
esse dinheiro eu compro um pão, leite’ e assim eu vou levando com o
que eu acho aqui, o que eu ganho, porque sou só eu para sustentar
todo mundo (VIOLETA, 37, 2004).
Em suas atitudes, de alegria quando está com as crianças, de tristeza
e preocupação quando algum deles está doente, ou com o filho adolescente e
seus problemas comuns à idade, percebe-se sua absorção em torno deles.
Suas ações são voltadas para a intenção de protegê-los, sustentá-los e assim
garantir o bem-estar deles. A mesma atitude se observa na maioria das
mulheres, o que as caracteriza como mães cuidadoras. Mesmo que, para
terceiros, suas atitudes possam não representar tudo o que deveriam fazer,
para elas significa tudo o que podem realizar para atender às necessidades e
para promover o bem-estar dos filhos. Para estas mulheres, cuidar dos filhos
118
significa ocupar-se com eles, preocupar-se com eles, principalmente no
aspecto material da sobrevivência e do bem-estar físico.
Para NODDINGS (2003, p. 23) o ato de cuidar oferece muitas
implicações: “Será a ação direta, externamente observável, necessária ao
cuidado? O cuidado pode estar presente na ausência de ação em prol do
objeto do cuidado?”. A partir de questões como estas, sem a intenção de uma
classificação das atitudes de cuidado ou de ausência do mesmo, a autora
problematiza o conceito e as formas de Cuidado: os riscos que oferece a
relação entre a cuidadora e o objeto de Cuidado; qual o lugar da cuidadora na
relação de Cuidado; qual a expectativa da cuidadora em relação ao objeto
Cuidado; quais os conflitos vividos pela cuidadora na relação de Cuidado.
Enfim, uma série de questões que reflete com acuidade a complexidade da
atitude de cuidar, na perspectiva da identificação de uma ética feminina do
Cuidado.
Dentre as problematizações formuladas por Noddings, utilizarei alguns
dos argumentos oferecidos por ela sobre a relação da cuidadora e o sujeito
cuidado, que considero pertinente para compreendermos a relação das
mulheres recicladoras com seus filhos. A autora ressalta que, ao cuidarmos
de alguém, devemos considerar sua natureza e compreender a realidade de
quem cuidamos. Neste exercício, somos levados a nos deslocar da nossa
própria realidade para a realidade do outro do qual cuidamos. Observo que as
mães do Galpão tomam atitudes considerando o interesse dos filhos, por
exemplo, ao mudar de bairro para proteger o filho que cometeu um ato
ilícito, ou por este estar envolvido com pessoas que ameaçam sua integridade;
ou mesmo quando abrem mão de adquirir um objeto para si em prol dos filhos,
seja uma roupa ou o remédio.
119
Pode parecer uma compreensão essencialista, e sem dúvida o é para a
maioria das teorias feministas, mas para as mulheres recicladoras o bem-
estar dos filhos significa o seu bem-estar, a realidade dos seus filhos não é
distinta da sua realidade
59
. A partir desta perspectiva, não existe nenhum
conflito de interesse nesta relação, pelo menos do ponto de vista objetivo,
porque, para elas, o papel da mãe é cuidar dos filhos. Para Noddings, a
realidade do outro pode tornar-se uma possibilidade de fazermos algo que vai
beneficiar o outro e a mim mesma quando expresso por meio do outro um
apreço pelo
self,
Quando enxergamos a realidade do outro como uma possibilidade
para nós, devemos agir para eliminar o intolerável, para reduzir o
sofrimento, para suprir a necessidade, para realizar o sonho.
Quando estou nesse tipo de relacionamento com outra pessoa,
quando a realidade do outro torna-se uma possibilidade real para
mim, eu me importo com ela (NODDINGS, 2003, p. 28).
Na pesquisa de Mestrado (FEITOSA, 2001), concluí que as mulheres
tinham interesse em aprender a ler e escrever para ajudar os filhos em
idade escolar; para que eles não sentissem vergonha da mãe iletrada; para
melhorar a relação entre mãe e filho, pois tendo ela o que lhe ensinar poderia
ter mais a sua companhia; elas poderiam, ainda, alfabetizar aquele filho que
só aprenderia com sua ajuda, pois somente ela teria a paciência necessária
para fazê-lo superar sua deficiência escolar. Os benefícios passavam antes
pelos filhos, podendo ajudá-los estariam se ajudando:
Captar a realidade do outro, sentir da maneira mais próxima o que
ele sente, é a parte essencial do cuidado do ponto de vista da
cuidadora. Pois se eu encaro a realidade do outro como uma
59
MONTENEGRO (2001) faz uma revisão sobre a compreensão do conceito de Cuidado no
campo dos estudos feministas e de gênero. Segundo Montenegro, nos estudos feministas
sobre Cuidado se observa uma polarização entre Cuidado e racionalidade traduzida em duas
posturas: uma de valorização da racionalidade que enfatiza a necessidade de competição
por parte das mulheres; a outra, ao contrário, valoriza as qualidades tidas culturalmente
como femininas, ligadas à afetividade e à intimidade, relacionadas ao Cuidado.
120
possibilidade e começo a perceber a sua realidade, sinto também
que devo agir de acordo com ela; ou seja, sou impelido a agir como se
fosse no meu próprio interesse, mas em nome do outro
(NODDINGS, 2003, 30).
A preocupação com o futuro dos filhos, em oferecer-lhe o que elas não
tiveram para que possam ter uma vida diferente ocorre principalmente com
os filhos do sexo masculino. Talvez porque estes, do ponto de vista das mães,
estejam mais vulneráveis. As filhas mulheres em geral ficam mais próximas,
estão mais ao alcance do cuidado permanente da mãe e, talvez, por já serem
vistas “naturalmente” como cuidadoras
60
.
Em contrapartida, estas mulheres pouco cuidam de si mesmas.
Seguindo a lógica ambivalente que perpassa este grupo social, pode-se
observar a “ausência” de Cuidado consigo em prol do outro. Podemos dar
como exemplo o fato de elas não trabalharem com luvas porque o uso das
mesmas compromete o ritmo da produção e, portanto, a renda será então
menor, ou ainda, o fato de sacrificar o sono para cumprir com os afazeres
domésticos, proporcionando, assim, mais conforto aos filhos.
É evidente que o
status
sócio-econômico condiciona as atitudes das
mulheres recicladoras. Podemos citar como exemplo disso, o fato de
trabalhar até os últimos dias de gravidez e não cumprir a licença-
maternidade para não colocar em risco a subsistência da família - situação
60
NODDINGS (2003) apresenta a lenda de Ceres, deusa cuidadora da terra, numa alusão à
sensibilidade feminina, ao Cuidado e amor natural e à ética nele fundada. Em contraposição,
Abraão em obediência a Deus ofereceu seu filho em sacrifício. Para Noddings a atitude de
Abraão é regida pelo dever e obediência a Deus que o leva a relativizar o amor ao filho em
nome de uma relação absoluta com o Divino, para as mulheres a relação com os filhos é
regida pelo Cuidado natural, enquanto a ética masculina é regida pela devoção à divindade
ou mesmo a regras e princípios. Este modelo de relação entre mãe e filho/a pautada pelo
amor incondicional, proposto por Noddings, que constituiria a base de uma ética alternativa
à ética da justiça, considerada masculina, tem sido criticado por outros autores. Cf.
MONTENEGRO (2001).
121
vivida por Violeta nas duas últimas vezes em que ficou grávida. Esta situação
mostra, também, a diferença que demarca a forma de viver o Cuidado entre a
mãe e o pai, que, neste contexto, se omite da responsabilidade de garantir a
subsistência de sua prole, enquanto a mãe se move completamente para
proteger e garantir o bem-estar dos filhos. Usando ainda Violeta como
exemplo, tanto ela quanto as crianças sofrem de alergia respiratória. No
entanto, as crianças são sempre privilegiadas no momento de garantir a
medicação para combater mais uma crise: “
se eles estão bem, eu fico
melhor”, justifica ela. Esta opção pelos filhos pode ser entendida como um
modo de cuidar de si, caso compreendamos esta postura como uma forma
indireta de atingir o seu bem-estar:
A preocupação se comprova, pois, como uma constituição ontológica
da pre-sença que, segundo suas diferentes possibilidades (grifo
meu), está imbricada tanto com o seu ser para o mundo da ocupação
quanto com o ser para consigo mesmo (HEIDEGGER, 2002, p. 174).
Mas, apesar de observar um conjunto de atitudes que denotam cuidado
com os filhos, pode-se pensar que, em suas práticas diárias, estas mulheres
não demonstram uma preocupação consigo. Aqui me refiro à adoção, por
parte dessas mulheres, de hábitos que prejudicam a saúde e até de um certo
descuido com o seu bem-estar físico. Quando acompanhei o grupo de saúde,
ouvi certos depoimentos que retratavam situações de descaso consigo,
atitudes talvez sedimentadas pela falta de informação, pelo
desconhecimento do próprio corpo, e até em função de um atendimento
médico inadequado, que não oferecia informações que estimulassem atitudes
voltadas para a preservação do seu bem-estar. Talvez, em fuão de todo um
contexto, de toda uma história de vida, estas mulheres se habituaram a não
cuidarem de si e estarem sempre disponíveis a cuidar de outrem. Talvez
122
sempre se viram como aquela que cuida, não tendo se sentido jamais o sujeito
do Cuidado.
Uma das pistas que vislumbro como justificativa para a permanência
delas no Galpão é que, sentindo-se parte de um grupo, elas se vêem
protegidas e cuidadas: pela rede de solidariedade que estabelecem entre si;
pelas regras de funcionamento do Galpão que privilegia seus problemas e
respeita a forma de ser que as caracteriza; pela flexibilidade que permite
um ajustamento do trabalho às suas necessidades individuais. Trata-se, pois,
de justificativas que elas comumente apresentam para a permanência nesse
espaço de trabalho, possibilitando se pensarmos assim, o papel do Galpão
como instituição: “a ‘preocupação’, no sentido de instituição social de fato,
por exemplo, funda-se na constituição ontológica da pre-sença enquanto ser-
com” (HEIDEGGER, 2002, p. 173).
Mariza assenta sua forma de relacionamento com as colegas na
preocupação com o outro, no desejo de confortá-las nas dificuldades:
Muitas vezes tu precisas de um carinho, de atenção e tu não estás
tendo em casa, daí tu vens para o trabalho com a cabeça
perturbada, porque tu entras aqui para trabalhar, mas o teu
problema permanece. Então, se muitas vezes tu conversares,
dialogar, se tiveres um abraço, um aperto de mão com sinceridade
aquilo ali te levanta. E essa é a realidade que a gente vive aqui
dentro, então temos que procurar dar as mãos uns aos outros e
procurar entender para que a coisa venha a funcionar (MARIZA, 43,
2004).
Ainda que isto seja insuficiente para solucionar o conjunto dos
problemas vivenciados por elas, é inegável que, de alguma forma, estas
mulheres cuidam umas das outras,
A atitude de aceitação afetuosa e de confiança é importante em
todos os relacionamentos de cuidado. (...) Devo enxergar o objeto do
meu cuidado como ele é e como pode ser – como ele imagina seu
123
melhor
self
- para poder confirmá-lo. A atitude que é percebida
como cuidado pelo objeto cuidado é gerada pelos esforços da
cuidadora para realizar a inclusão e a confirmação. É uma atitude
que ambos aceitam e confirmam. É uma atitude que não aceita e
depois joga fora - ela aceita, abraça e leva adiante. Questiona,
responde, solidariza-se, desafia, encanta (NODDINGS, 2003, p. 88,
91).
Mesmo que seja imperceptível, e não figure como diretriz explícita de
funcionamento desse espaço, o Cuidado constituiu-se como uma rede que
permeia as relações e enquanto um princípio do modo de administrar. De uma
com-vivência que transpira e inspira Cuidado, solicita a atenção e o olhar do
outro, espera acolhida nos momentos de angústia trazidos pela doença, por
exemplo, quando socorrem àquele que necessita de ajuda para vencer o forte
apelo de um vício. O Galpão é um lugar onde se partilha a dor e se
confraterniza as pequenas alegrias; um lugar onde todos precisam de
cuidados pela própria natureza do trabalho que realizam ali, mais ainda pelo
Cuidado enquanto vocação ontológica que fundamenta este espaço enquanto
instituição.
Observo que nas ações das mulheres recicladoras, o Cuidado é um
componente perceptível, seja na relação com os filhos, seja na relação com as
colegas. A preocupação, a disposição em cuidar, em ajudar, é uma atitude
constante e pode ser compreendida como um modo de ser existencial no
sentido explicitado por HEIDEGGER (2002 p. 175):
O ser com os outros pertence ao ser da pre-sença que, sendo, está
em jogo seu próprio ser. Enquanto ser-com a pre-sença “é”,
essencialmente, em função dos outros. Isso deve ser entendido em
sua essência, como uma proposição existencial.
No entanto, se observa até então que a preocupação com as pessoas
que atuam na atividade de separação de resíduos é um aspecto pouco
124
desenvolvido, tanto pelos gestores e propositores das políticas públicas,
quanto pelo conjunto da sociedade.
3.3. SER RECICLADORA
É necessário aceitar a face do mundo, ainda que seja monstruosa, já
que lá embaixo, mais além, nos transmundos, não sabemos se haverá
face (MAFFESOLI, 2003, p. 134).
O que não mata nos fortalece! (adágio popular)
Figura 3: Mãos que separam o lixo
É cada vez mais comum, nos centros urbanos, a presença de homens e
mulheres realizando uma atividade não tão recente: a coleta. Coletar no seu
habitat
vegetais, carcaças de animais terrestres e frutos do mar para se
alimentar é uma prática ancestral na história da humanidade. Esta porém,
deixou a prática ecológica de coleta para fins de subsistência, instituindo o
planejamento, a previsibilidade e o armazenamento, tornando uma prática
econômica voltada para o consumo coletivo como fim de garantir a
sobrevivência.
125
Hoje, a coleta realizada nos centros urbanos também é utilizada para
fins de sobrevivência por aqueles que estão à margem do mercado de
consumo, do mercado de trabalho, e que figuram nas estatísticas da
população sem teto, sem educação escolar formal, sem acesso aos serviços
sociais mínimos. São pequenos gigantes que se misturam aos automóveis no
trânsito das grandes cidades, puxando pelos braços o carrinho e
transportando um peso acima da sua capacidade.
Atualmente, apenas cerca de 237 municípios brasileiros oferecem o
sistema de Coleta Seletiva como um serviço público. Em contrapartida,
estima-se que mais de 500 mil pessoas têm como fonte de renda a catação
de resíduos sólidos urbanos. Na cidade de Porto Alegre, esta população
circula pelas ruas puxando seus carrinhos ou carroças, ou estão distribuídas
entre as onze unidades de triagem espalhas pela periferia da cidade.
Em Porto Alegre, a atividade de catação de materiais recicláveis
ganhou visibilidade a partir da década de ’80, devido a presença de homens e
mulheres recolhendo os resíduos nas ruas da cidade
61
. Em outubro de 1990,
mediante a Lei Complementar nº. 27, foi instituída a obrigatoriedade da
Coleta Seletiva em todo o município, em cumprimento ao artigo 227 da Lei
Orgânica Municipal
62
(CABRAL, 2001). Tal iniciativa ocorreu em atendimento
ao dispositivo legal, mas também para atender a reivindicação dos catadores
61
Cf. CABRAL, Sueli Maria. Trabalhadores do lixo: o relato de uma pedagogia da
desordem. Porto Alegre: UFRGS, 2001. Dissertação de Mestrado. Em seu trabalho, a
autora apresenta de forma detalhada, a partir de fontes documentais, o processo de
instituição do sistema de limpeza pública na cidade de Porto Alegre, do séc. XIX até a
atualidade, com a adoção da Coleta Seletiva em 1990.
62
A limpeza urbana e gestão dos resíduos são serviços que devem ser oferecidos e
regulamentados pelos poderes públicos constituídos conforme sugere a CF de 1988 nos
seus arts. 196, 225 e 23, incisos VI, IX e X, os quais manifestam preocupação e zelo pela
saúde pública da população, que deve ser garantida por meio do serviço de saneamento
básico, habitação adequada e proteção ao meio ambiente. Fonte: manual de gerenciamento
integrado de resíduos sólidos, site:
http://www.resol.com.br . Consulta: 11-05-2005.
126
que já se organizavam enquanto categoria, de maneira que, assim, eles
poderiam obter melhores condições de trabalho e reconhecimento público da
sua atividade. Junto a isto, a iniciativa veio, também, como resultado da
reclamação de moradores de algumas regiões da cidade onde o lixo se
acumulava desordenadamente, exigindo do poder público uma solução.
Com a implantação da Coleta Seletiva, a prefeitura criou galpões para
triagem dos resíduos oferecendo espaço físico, equipamentos, assessoria
jurídica e administrativa para legalização das associações responsáveis pela
gestão dos galpões. Atualmente, segundo dados
63
do DMLU (Departamento
Municipal de Limpeza Urbana), cerca de 700 pessoas trabalham formalmente
no processo de separação de materiais recicláveis, organizados nas unidades
de triagens e estima-se que milhares estejam informalmente nessa atividade.
A preocupação com o destino dos resíduos produzidos nas unidades
domiciliares e industriais é um fato recente. Após a Segunda Guerra Mundial,
com o crescimento e modernização da indústria, o mercado produtor passou a
gerar material descartável em grande quantidade. Em seguida, a preocupação
com o meio ambiente ganhou destaque na agenda global, sendo a discussão
com o manejo dos resíduos uma conseqüência desse contexto. A
problematização dessa questão passa pela busca de um modo sustentável de
produção que inclui o reaproveitamento, o que promove economia de energia e
matéria prima, resultados obtidos pela prática da reciclagem de resíduos.
No Brasil, esta discussão ganhou importância a partir da década de
’70. Ela foi provocada também a partir do desenvolvimento industrial e da
migração populacional do campo para os centros urbanos, movimento que
ocorreu de forma desordenada e que agravou o problema de infra-estrutura
63
Matéria publica no Jornal Zero Hora (Porto Alegre-RS), em 28/10/2004. “Quanto custa
errar na separação do lixo”.
127
e de saneamento básico nas cidades e que acabou produzindo uma mudança
dos hábitos da população, como descreve MINC (2001, p. 245):
Nas sociedades pré-industriais não havia uma separação tão
marcante entre o urbano e o rural, entre a agricultura, o artesanato
e a manufatura. Os restos de alimentos eram convertidos em comida
para os animais, a sobra de madeira de uma construção virava lenha,
as aparas de tecido da confecção artesanal convertiam-se em
colchas de retalhos. A industrialização gerou maior divisão social e
técnica do trabalho e crescente especialização das atividades. As
matérias primas passaram a percorrer milhares de quilômetros e os
rejeitos deixaram de ser reaproveitados localmente. A urbanização
maciça dissociou as casas das hortas e da criação de animais e
debilitou o artesanato caseiro, agentes da reciclagem.
Para receber a enorme quantidade de resíduos produzidos
principalmente nas unidades domésticas
64
, adotou-se a construção de lixões e
aterros sanitários
65
. Na maioria das cidades, o procedimento ainda é de
adoção dos lixões construídos em locais afastados e que, em geral, são
percebidos pelos eflúvios fétidos que exalam. Esses lixões se tornaram local
de trabalho de milhares de pessoas desempregadas que garimpam, entre os
detritos, objetos que possam ser vendidos e reutilizados. Este procedimento
oferece perigo para essa população, que arrisca a vida disputando os
materiais despejados pelos caminhões e ingerindo produtos descartados pelo
mercado justamente por sua inadequação para o consumo.
64
O Ministério do Meio Ambiente-MMA estima que a geração
per capita
de lixo doméstico
por dia, gira em torno de 1.100 gramas nas regiões metropolitanas; 700 gramas em cidades
com mais de 500 mil habitantes e cerca de 500 gramas em municípios com menos de 500
mil habitantes. Site: http: www. diesat.org.br/informativos. Consulta realizada em
12/05/2005
65
Segundo CABRAL (2001, p. 60), “lixão é um local a céu aberto onde são depositados
resíduos sólidos, sem qualquer separação ou tratamento”. Enquanto o aterro sanitário é “o
processo utilizado para a disposição de resíduos no solo que, fundamentado em critérios de
engenharia e normas operacionais específicas, permite uma confinação segura em termos
de proteção ao ambiente e à saúde”.
128
Foi no contexto da crise ambiental gerada por um modelo de produção
que tem como característica a utilização de padrões tecnológicos baseados
na exploração exaustiva da natureza que, em longo prazo, provoca o
esgotamento da matéria prima natural, a degradação da qualidade de vida, a
concentração de renda e a diminuição dos postos de trabalho. Dessa forma,
os resíduos sólidos surgiram como um agente importante, na adoção de um
modo diferente de produção. Um modo de produção que utilize o
reaproveitamento e faça o manejo adequado dos materiais, e que represente
um campo de geração de emprego e renda para os desempregados sem a
qualificação necessária para acesso ao mercado de trabalho formal.
Essas questões exigem, no entanto, uma política que regulamente e
ordene a realidade da prática da reciclagem, definindo questões como: o
destino final de determinados produtos de alta periculosidade; o
reaproveitamento dos resíduos como geração de emprego e renda; a
implantação da coleta seletiva em todo o território nacional; a
regulamentação da atividade dos catadores; normatização e fiscalização do
mercado receptor de resíduos sólidos.
Na ausência de uma legislação federal
66
, que disponha sobre diretrizes
para o gerenciamento, regularize a responsabilidade e os parâmetros
técnicos para o manejo de resíduos sólidos no território nacional, o comércio
e a atividade de reciclagem vêm sendo realizados a partir de parcerias entre
o mercado produtor de resíduos e os trabalhadores da reciclagem,
organizações não governamentais e os poderes públicos nas diferentes
66
O Projeto de Lei 203/91 que trata da criação e implantação da Política Nacional de
Resíduos Sólidos, não foi votado até o momento. Nesta conjuntura o Conselho Nacional de
Meio Ambiente-CONAMMA, ligado ao Ministério do Meio Ambiente, tem sido o órgão que
legisla sobre as questões mais emergentes referentes à utilização dos resíduos sólidos,
tratando de questões isoladas.
129
esferas administrativas. Esta parceria tem contribuído para a consolidação
da prática de reutilização, estando o Brasil bem colocado no
ranking
dos
países que mais reciclam
67
.
O benefício ao mercado e a geração de subrenda para a população que
se ocupa deste ofício parece ser suficiente para justificar aos gestores
públicos a prática da Coleta Seletiva, considerando que estes não envidaram
até o momento, um esforço real para a ordenação legal da separação de
resíduos enquanto profissão e da responsabilidade do mercado com o
recolhimento e manejo dos descartes por ele produzidos:
...tudo o que economicamente “tem sentido” não necessita do apoio
de nenhum outro sentido _ político, social ou categoricamente
humano. Num mundo em que os principais atores já não são estados-
nações democraticamente controlados, mas conglomerados
financeiros não-eleitos, desobrigados e radicalmente desencaixados,
a questão da maior lucratividade e competitividade invalida e torna
ilegítimas todas as outras questões, antes que se tenha tempo e
vontade de indagá-las... (BAUMAN, 1998, p. 61).
A discussão em torno da reciclagem de resíduos privilegia os aspectos
econômicos e ambientais, negligenciando o aspecto humano, ou seja, as
pessoas que atuam na separação destes resíduos. Pouco se fez para melhorar
as condições de trabalho dessas pessoas, fornecendo, por exemplo,
equipamentos de proteção para os recicladores:
Eles (DMLU) só se preocupam em se livrar do lixo, as condições de
trabalho das pessoas não preocupam eles não (MARIZA, 43, 2004).
Quem é que cuida de nós? Eles (os políticos) só têm o trabalho de
tirar o lixo da rua e largar aqui, eles não estão preocupados com a
nossa saúde, nosso bem estar, se isso aqui está gerando renda para
67
Segundo dados do CEMPRE (Compromisso Empresarial para a Reciclagem), Maio/junho
2004, o Brasil se destaca na reciclagem de latas de alumínio reaproveitando 45% de latas e
78% das latas de aço utilizadas para bebidas; 87% de embalagens de alumínio; 44% de
embalagens de vidro; 17,5% de embalagens plásticas; 43,9% de papel e 73% de papelão.
Site:
www.cempre.org.br Consulta realizada em 11/05/2005.
130
nós, eles não se preocupam com a manutenção, eles não se
preocupam com nada! O negócio deles é tirar o lixo da rua e botar
aqui para a gente trabalhar. Daí vão para a televisão, para as rádios
falar como se tivessem feito tudo! Na realidade quem faz somos nós
e ninguém se preocupa com isso (MARGARIDA DO CAMPO, 35,
2004).
O descaso do poder público com os recicladores, manifestado nas falas
acima, corrobora para o fortalecimento de uma imagem negativa sobre as
pessoas que sobrevivem da separação de resíduos. A falta de uma política
que regulamente e fiscalize esta atividade favorece a sua realização de
forma precária, o que reforça um imaginário higienista, construído desde o
século XVIII, que perdura entre nós e é responsável pelo constrangimento
pelo qual passam as mulheres recicladoras quando o médico freqüentemente
lhes prescreve medicamentos para doenças de pele - atitude, segundo elas,
decorrente do trabalho que exercem; ou, ainda, quando seus filhos sofrem
constrangimento na escola por serem filhos de “lixeira”, pois para a maioria
das pessoas, ser recicladora, ou “trabalhar no lixão” (denominação habitual),
é ser “maloqueira”, é ser “moralmente suspeita”. Nesses imaginários, o
trabalho com lixo desqualifica a pessoa. A sujeira representa a desordem, no
sentido de alguma coisa que está fora do lugar. Para o imaginário higienista
que usa a limpeza, como uma forma de controle, quem lida com a sujeira pode
ser com ela comparada (BAUMAN, 1998).
As recicladoras acreditam que esta imagem perderia força caso a
profissão fosse reconhecida e os direitos trabalhistas cumpridos.
Juridicamente, elas seriam trabalhadoras da reciclagem, o que lhes
conferiria um
status
simbolicamente importante. Isso seria, além de uma
conquista social, uma iniciativa que estaria aliando à prática de
reaproveitamento de resíduos sólidos um caráter sócio-econômico-ambiental,
de fato.
131
O modo como tem sido tratada a Coleta Seletiva, tem provocado
questionamentos como os de LAYRARGUES (2002), que entende que a Coleta
Seletiva, da forma como vem sendo realizada, beneficia mais uma vez o
mercado produtor que, ao reaproveitar a matéria-prima gerando novos
produtos reduz o custo da produção. O fato de não haver a Coleta Seletiva
obrigatória implantada em todo o território nacional, o que garantiria a
participação do Estado como prestador de serviço, possibilita a delimitação
das regras de comercialização pelo mercado, o que beneficia o comprador,
uma vez que é ele mesmo que estabelece o valor da mercadoria e o catador
não tem nenhum poder nesta negociação.
Para Layrargues, a reciclagem, ao invés de ser entendida como uma
prática “politicamente correta”, visando uma mudança comportamental no
tratamento dos resíduos, deveria tornar-se um tema gerador provocando a
problematização das causas e conseqüências da geração de lixo e uma
reflexão sobre a necessidade de mudança dos valores culturais que
alimentam o modelo predominante de produção e consumo na sociedade.
GUATTARI (2001), ao refletir sobre o desequilíbrio ambiental, ressalta que
as abordagens sobre este problema têm ocorrido em uma perspectiva
tecnocrática. O autor propõe que se faça uma reflexão mais ampla, em uma
perspectiva ético-política, por ele denominado de “ecosofia”, que articula os
três registros ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da
subjetividade humana. A partir disso, ele propõe que se repense não só a
forma de relação com o meio ambiente físico, mas se repense também as
práticas políticas e culturais da sociedade.
Entendo que, ao reclamarem a ausência do Estado, as recicladoras não
o fazem no sentido de higienizar ou de controle da atividade de reciclagem,
pois um dos aspectos que elas mais prezam nesse trabalho é o fato de “não
132
ter ninguém para mandar”, mas esperam que o Estado lhes assegure um
status
profissional respaldando a importância social da atividade que
realizam. A presença do Estado é requerida para favorecer o reconhecimento
dessa atividade como uma prática ambiental, que tem como objetivo
premente a sua sobrevivência, mas, por extensão, contribui com a
preservação da natureza, renovando seus fluxos de vida, sem a qual o homem
não se sustenta.
Compreendo que a atividade de separação pode ser tida como uma
forma de cuidar do ambiente porque, ao retirar os resíduos, as recicladoras
estão contribuindo para o controle da degradação ambiental, para a
recuperação das potencialidades perdidas do ecossistema, favorecendo nossa
sobrevivência. Com o ecossistema sendo recuperado ele beneficiará
inexoravelmente as próximas gerações e todas as formas de vida na Terra.
Ao cuidarem do presente, as recicladoras, estão zelando por sua
sobrevivência imediata, mas elas estão, por outro lado, cuidando da
sobrevivência das gerações vindouras que poderão vislumbrar um futuro
melhor para o planeta. Nesse sentido, as recicladoras podem ser tidas como
cuidadoras do ecossistema:
Eu acho que o nosso trabalho não é muito percebido. Só quem é
daqui do Galpão, ou quem vive aqui por perto tem mais conhecimento,
mas a população em geral não reconhece nosso trabalho e eu acho
que a população brasileira em geral pensa muito pouco na ecologia,
no ecossistema, no que ela está deixando para seus filhos, seus
netos em nível de planeta. Eu acho que a humanidade, de uns tempos
para cá, conforme vai passando as décadas vai reduzindo seu tempo
de vida. Eu acho que as pessoas precisam começar a pensar nisso
(RENATO FALEIROS, 36, 2004).
O “cata-dor” (JUNCÁ, 2001) é esse trabalhador que se ocupa em
recolher o que é descartável para a sociedade de consumo, retirando de
circulação uma presença indesejada, significado que tem o lixo para aquele
133
que o produz por meio do consumo. Os catadores recolhem para outro lugar o
resíduo que nos incomoda, que ocupa espaço, que compromete a estética dos
lugares públicos e privados, possibilitando a reutilização daquilo que
descartamos. Observa-se que o Galpão de separação representa, para muitos
dos que produzem o lixo, apenas um lugar de descarte não só de materiais,
mas, de vidas e histórias, pois tratam de forma semelhante ao lixo às pessoas
que o manuseiam, é o que sugere o apelo desta recicladora:
Eu gostaria que as pessoas soubessem que nós somos gente igual a
eles! E que nos ajudassem em alguma coisa, qualquer coisa, até na
manutenção. Que pensassem, ‘pôxa o pessoal está trabalhando com
aquilo lá, fazendo aquilo por nós, vamos dar uma mão não é’. Até no
material mesmo, que mandassem já limpo, separassem do orgânico,
porque boa parte do material vai fora porque está misturado com o
orgânico, se tivessem estes cuidados para nós já era uma grande
coisa (MARGARIDA DO CAMPO, 35, 2004).
O Galpão de reciclagem, além de ser um local de trabalho, pode ser
visto como um espaço que oferece outras interrelações, representando para
os catadores “um lugar que tem alma demais” (...), pois, “a partir da
possibilidade de trabalho e convivência oferecidos, restitui identidades
perdidas, recompõe relações de solidariedade, recria histórias e movimentos
de fundação do sujeito” (JUNCÁ, 2001, p. 63).
Penso que a atividade das mulheres recicladoras pode ser
compreendida enquanto atitude de Cuidado, na medida em que as mesmas se
preocupam
68
com a sobrevivência física e subjetiva, individual e coletiva da
família e dos companheiros de trabalho; preocupam-se, a partir do manuseio
dos materiais reutilizáveis, com o ecossistema natural, social e humano,
68
Uso o termo preocupação (füsorge) dentro da compreensão de Cuidado desenvolvida por
Heidegger: como nós nos ocupamos com alguém, como é a nossa postura com as pessoas que
nos circundam;
ocupação (besorgen) ocupar-se de, ou com algo, como trato e produzo
alguma coisa. Cf. Heidegger, 2002.
134
contribuindo para a preservação da vida e do ambiente beneficiando a si, ao
próximo e às futuras gerações.
A atividade de separação de resíduos ocorre inicialmente na vida
destas mulheres como uma possibilidade de geração de renda, mas para
algumas a atividade extrapola este aspecto, tornando-se um espaço onde
tecem laços de socialidade, constituem identificações, relações sociais que
permitem um entendimento e uma empatia orgânica, onde se inclui o
sentimento, a emoção, o imaginário, o lúdico (MAFFESOLI, 1996).
A partir da atividade que exercem, as mulheres recicladoras
desenvolvem um modo de Cuidar da Terra, pois na medida em que contribuem
para o reaproveitamento de materiais, evitando o acúmulo destes agentes
poluidores no ambiente, adiam o esgotamento da natureza pela extração de
matéria-prima. Deste modo, elas estão constituindo um modo de “habitar a
Terra” zelando pela sustentação e manutenção da vida, o que revela segundo
Heidegger (2002), um modo de habitar protegendo a quaternidade (mundo,
terra, deuses, homens).
Ainda que indiretamente, e mesmo que a preocupação das mulheres
recicladoras não ocorra de forma intencional, todos nós nos beneficiamos
com a atividade realizada por elas. É a partir do entendimento do Cuidado
como atitude estruturante do Ser, da preocupação como característica
existencial que proponho um olhar sobre a atividade de separação de
resíduos enquanto uma atitude de Cuidado extensivo do Ser ou um modo de
ser-com o outro.
A partir da atividade que executam, as mulheres recicladoras
desenvolvem um modo de Cuidar da Terra, interagindo com um paradigma de
relação com o ambiente que tem a sustentação de sua capacidade de
135
sobrevivência como estruturante desta relação. Defender os recursos
naturais significa defender a própria vida, defender sua morada, seu abrigo
no Cosmo
69
. Significa compreender o ambiente e a natureza como algo
referente a si...
O ambiente é aquilo que habitamos mais imediatamente, aquilo que
nos diz respeito e que nos concerne mais persistentemente e,
conseqüentemente, aquilo cuja significação se interliga mais
continuamente com o curso de nossas vidas (FOLTZ, 1995. p. 206).
Zelar por sua morada quer dizer que, “... morar é acima de tudo uma
vigilância, um cuidar, um conservar daquilo que nos abriga e nos circunda”
(FOLTZ, 1995, p. 194). Esta concepção da relação do homem com seu
habitat
contraria um modelo de desenvolvimento tecnológico, que não se intimida em
explorar os recursos naturais como bens inesgotáveis, que não se preocupa
com sua capacidade de regeneração, comprometendo o ciclo natural de
renovação dos recursos ambientais indispensáveis para a sustentação da vida.
O paradigma de desenvolvimento predominante até o momento tem
produzido concentração de riqueza e poder, favorecido pelo domínio da
técnica em benefício de poucos, gerando de outro lado fome, miséria,
subjugação política e tecnológica, fragmentando o planeta entre
“desenvolvidos e subdesenvolvidos; primeiro e quarto mundo; entre os que
produzem a poluição e os que sobrevivem da poluição” (CAPRA, 2002 a.).
HEIDEGGER (2001), em sua reflexão sobre a Técnica, argumenta que,
diferente da idéia de Técnica que na sua “pro-dução desencobre” o que
estava encoberto como o lavrador que dispunha a semente na terra, a
69
Na língua francesa a palavra
Soutenir
significa defender, dar sustentação no sentido de
apoiar, proteger e é este sentido que quero dar ao termo
defender neste texto. Em nossa
língua, a palavra
defender não tem o mesmo sentido de forma tão explícita.
136
Técnica Moderna, ao contrário, impõe à natureza uma exploração para fins,
entre outros de armazenamento, de dominação:
Hoje em dia, uma outra posição também absorveu a lavra do campo,
a saber, a posição que dis-põe da natureza. E dela dis-põe no sentido
de uma exploração. A agricultura tornou-se indústria motorizada de
alimentação. Dispõe-se o ar a fornecer azoto, o solo a fornecer
minério, como por exemplo, urânio, o urânio a fornecer energia
atômica; esta pode, então ser desintegrada para a destruição da
guerra ou para fins pacíficos (HEIDEGGER, 2001, p. 19).
Para Heidegger, Técnica é o modo como deixamos emergir os entes,
é o saber que orienta nossa forma de lidar com a
physis
(o emergir dos
entes), “o possuidor da
techne
primordialmente sabe como revelar os entes e
não apenas como fazê-los” (INWOOD, 2002, p. 181). Esta concepção de
Técnica vai ao encontro da compreensão empreendida até o momento, que
seria a de instrumentalização da tecnologia enquanto um meio de desvelar os
entes, caracterizada pelo uso de uma estrutura que ordena, regula e controla
a auto-emergência dos entes (FOLTZ, 1995). Heidegger questiona o modo
como a Técnica Moderna lida com a natureza, ou como a desvela: “O
desencobrimento, que rege a técnica moderna, é uma exploração que impõe à
natureza a pretensão de fornecer energia, capaz de, como tal, ser
beneficiada e armazenada” (HEIDEGGER, 2001, p. 18-19).
Fundamentalmente, o que Heidegger questiona, é o modelo de técnica
que temos desenvolvido, e que produz benefícios, mas tem provocado, a longo
prazo, problemas de ordem vital para a natureza, para o ambiente e para
todos os seres vivos que nele habitam. Os resíduos produzidos pelo modelo
de produção industrial são tidos, consensualmente, como agentes poluidores
e são manuseados diariamente por nós consumidores em escala cada vez
maior. A produção e o uso de resíduos, na forma de embalagens, entre tantos
outros bens de consumo considerados poluidores, carecem de uma
137
regulamentação. Além disso, temos que dispor destes materiais de um modo
menos agressivo ao ambiente - o que já ocorre em alguns países
70
.
Não se trata de responsabilizar o uso da técnica como um fator
simplesmente responsável pelo desequilíbrio em que vivemos hoje, mas de
problematizar a forma como nos relacionamos como dispomos e desfrutamos
da tecnologia, que revela um modelo de desenvolvimento no qual se produz
sempre a necessidade de consumo atendida pelo progresso tecnológico, que
gera mais necessidade em um percurso que nunca se finaliza, pois nunca se
satisfaz. Não temos que banir a técnica e o progresso dela derivado, mas
pensarmos sobre um paradigma de progresso que atenda nossas necessidades
e promova a sustentação da vida, em como devemos agir para não sermos
banidos do ambiente por nós deteriorado. Cuidando da Terra, estamos
preservando a nossa morada.
Para que a vida se sustente é necessário um usufruto fundado na
conservação, o que não significa não tocar, não utilizar. No entendimento de
Heidegger, “o conservar (...) genuíno, é algo de positivo e ocorre quando
deixamos alguma coisa de antemão à sua essência, quando a entregamos
especificamente à sua essência” (FOLTZ, 1995, p. 194) Na linguagem
heideggeriana, isto é o “desencobrimento”, o “desvelamento” da essência, ou
seja, descobrir a verdade. Segundo Foltz, “conservar a essência” na
compreensão de Heidegger, ocorre quando utilizamos alguma coisa mantendo-
a íntegra. Aqui, utilização significa uso sem aviltamento, esgotamento ou
exploração:
70
Nos países da União Européia, por exemplo, se prefere as embalagens de vidro às de
plástico, a coleta seletiva é uma prática obrigatória e nos supermercados cada consumidor
recebe um número mínimo de sacos para transportar suas compras, fazendo com que o
consumidor use carrinhos ou sacolas, diminuindo o uso de sacos plásticos.
138
Deixar que alguma coisa permaneça na sua essência implica portanto
utilização: a casa não é genuinamente uma casa se for meramente
preservada e não habitada. Mas a sua utilização deve ser
marcadamente distinguida da mera utilização, exploração e
esgotamento- que representam todos tipos de utilização
degenerados (FOLTZ, 1995, p. 194).
Pensar o trabalho de separação dos resíduos sólidos urbanos como
atitude de Cuidado justifica-se por ser uma atividade de importância social
relevante e ainda, carente de reconhecimento enquanto tal. Justifica-se,
ainda, mais, pela necessidade de regulamentação e implantação de práticas
seguras para quem a realiza, visando garantir não apenas renda, mas respeito
e reconhecimento pelo trabalho realizado, proteção e garantia da integridade
física no exercício da atividade. Estes são aspectos que, devem ser
contemplados pela Política Pública, já que esta é a esfera na qual se definem
os princípios que orientam as políticas que regulam a vida em sociedade.
Estes são procedimentos que resultam em benefício ao conjunto da
sociedade e revela uma preocupação com o legado para as gerações futuras.
Para os recicladores, a ação do poder público em relação ao custo-
benefício proporcionado pelo trabalho que realizam é insuficiente:
Quanto por exemplo o DMLU (Departamento Municipal de Limpeza
Urbana) economiza com esse lixo que é reciclado? E que a princípio
está beneficiando a comunidade como um todo pelo fato de
estarmos retirando do meio ambiente todo esse lixo. No caso, em
um aterro sanitário eles gastam muito dinheiro para tratamento
destes resíduos, é um processo que custa caro, é muita grana que
está sendo economizada e que poderia ser revestida para ajudar os
recicladores, sendo investido, por exemplo, em aquisição de
equipamentos de proteção, que nós não temos condição de comprar
(RENATO FALEIROS, 36, 2004).
A prática de reutilização de materiais já ocorre em diversos setores,
na arte, na moda, na construção civil, em diversas produções industriais. Os
resíduos orgânicos, além de produzirem insumos utilizados na agricultura, são
139
fonte de produção de energia alternativa por meio do aproveitamento do gás
natural gerado quando tais resíduos são adequadamente manuseados
71
. Estas
e tantas outras iniciativas de alcance global representam o nível de
apreensão do mundo frente à crise ambiental e a tentativa das instituições
em gerar medidas que visam à conservação e manutenção da Terra.
No entanto, para que ocorra uma conservação de forma genuína não se
pode excluir ou negligenciar o Cuidado com as pessoas que, em nosso
contexto, são os agentes diretos da prática da reciclagem, os recicladores.
Aproprio-me da compreensão do Cuidado como aspecto estruturante do Ser,
com a intenção de visibilizar este aspecto na atitude das pessoas que atuam
na atividade de separação de resíduos, numa perspectiva de valorização e
reconhecimento do trabalho que realizam, mas principalmente para lembrar a
negligência da sociedade para com estas pessoas. Se não pensarmos no
reconhecimento e na segurança desta atividade, mais uma vez estaremos
privilegiando a dimensão econômica em detrimento da dimensão humana,
esvaziando uma iniciativa que pode vir a instituir um outro modo de relação
com a Terra e com os seres que nela habitam.
Dentro da perspectiva do Cuidado, o que podemos aprender com as
mulheres recicladoras? O que a educação enquanto um modo de
sistematização do conhecimento tem a ver com a separação de resíduos
sólidos urbanos? Como podemos interagir com um galpão de separação,
universo tão díspare dos nossos asseados espaços tradicionais de construção
do saber? É esta relação que desenvolverei a seguir, é a interface da
Educação neste local de trabalho que apresentarei. Falo do campo da
Educação Popular, compreendendo-a enquanto ação de construção de saberes
71
O gás metano gerado pelos resíduos orgânicos depositados nos aterros sanitários se
tornou matéria de negociação entre vários países, o Brasil inclusive, desde que passou a
vigorar o Protocolo de Quioto, em Fevereiro de 2005.
140
no cotidiano pelos diferentes grupos sociais; saberes construídos sem uma
finalidade instrumental previamente estabelecida.
3.4. SER SABER DE EXPERIÊNCIA.
Em todos os seus “tempos
72
”, a Educação Popular esteve preocupada
em fazer uma crítica à Educação vigente buscando estabelecer outros
processos educativos para que os “sujeitos das classes populares não fossem
compreendidos como beneficiários tardios de um serviço, mas como
protagonistas emergentes de um processo”, (BRANDÃO 2002 p. 142).
Nesta perspectiva, identifico como Educação Popular o saber de
experiência que é exercitado pelas mulheres recicladoras no seu Cotidiano,
saber que abrange desde o campo da subjetividade, traduzido em uma forma
de como se relacionar e conviver com o outro, até a compreensão da sua
atividade econômica enquanto prática ambiental. Esses saberes são
sistematizados a partir da convivência e são visibilizados nas relações do
grupo e nas ações do trabalho.
A explicitação de um saber ambiental, por exemplo, ocorre mediante
informações que as mulheres oferecem para os vários grupos de visitantes
72
BRANDÃO (2002), identifica cinco momentos na história da educação brasileira que
contribuem para a constituição da identidade da Educação Popular: 1) a criação das escolas
anarquistas no final do Século XIX, início do Século XX; 2) os movimentos por escolas
públicas gratuitas e laicas, na década de 20; 3) a década de ’60 foi marcada pelo
surgimento de Paulo Freire e dos círculos populares de cultura, fatos que proporcionaram a
sistematização de um ideário e de experiências do que hoje conhecemos por Educação
Popular; 4) as lutas da Sociedade Civil por democracia nas décadas de ’70 e ’80 ocorreram,
também, por meio das organizações populares estreitamente vinculadas as idéias e práticas
da Educação Popular. Com a abertura política estas ações ganharam força dando uma
dimensão latino-americana à Educação Popular, aglomerando pessoas e idéias em várias
partes do mundo; 5) o último momento está vinculado às chamadas administrações
populares e democráticas, que incluem o ideário e as práticas da Educação Popular no corpo
das suas políticas públicas de educação.
141
que comparecem ao Galpão para conhecerem mais sobre as atividades que
desenvolvem. Dentre estas atividades está a visita guiada, para isso uma ou
mais recicladoras, dependendo do tamanho do grupo, é destacada para
apresentar o Galpão, explicando cada etapa do processo de separação. A
visita guiada não é uma atividade esporádica ou acidental: ela é previamente
agendada pelos interessados com a direção do Galpão, que, por sua vez,
escolhe a pessoa mais adequada para desenvolvê-la.
Outra atividade relevante são as palestras realizadas pelas mulheres
recicladoras nas escolas do bairro, momento em que elas prestam
esclarecimentos sobre sua atividade e a importância de práticas ambientais
como a separação dos resíduos sólidos domésticos:
Eu fiz três meses de palestra o ano passado (2003) na Escola
Grande Oriente. Porque ali nós temos 400 crianças no turno da
manhã, 400 no turno da tarde e 100 adultos no turno da noite. E o
que nós queríamos com estas palestras: conscientizar a comunidade
para eles entenderem a importância da separação do lixo, a
importância de não colocarem o lixo no valão. Com esse trabalho, nós
tivemos um bom retorno. Hoje nós temos um PEV (posto de entrega
voluntária) na escola. As crianças separam o material em casa e
levam para lá. A prefeitura traz para o Galpão (MARIZA, 43, 2004).
Nestas atividades, as mulheres dão informações sobre como
executam a separação, a vida dos objetos separados e os danos que causam
ao meio ambiente caso fiquem expostos, sem reaproveitamento. A
classificação técnica é outra informação que as mulheres oferecem aos
visitantes, esclarecendo e demonstrando o que pode ser reciclado e separado
em casa pelo usuário
73
:
73
Nem tudo que é descartável pode ser reutilizado. Dentre os materiais que já podem ser
comercializados estão as embalagens
tetrapack
(que as mulheres chamam entre elas de
“leite” ou “branco”), plásticos variados (que são por elas separados de acordo com a textura
e a cor), PET (que também é separado por cor), vidro (que é separado por cor), papel
142
Uma coisa é tu veres a reportagem na televisão, outra coisa é tu
vires aqui ver na prática. E a gente construiu com essas crianças (da
escola grande Oriente) isso aí. Eles vieram nos visitar, tinha tarde
que vinha até cinco turmas, cada uma de nós pegávamos vinte
crianças e demonstrávamos o trabalho para elas. Quando eu estive
na creche, eu tive a preocupação de levar um pouco de cada material
para mostrá-los. Eu esclareci que a garrafa PET, de refrigerante,
tem três tipos de material que pode ser reaproveitado: a tampa, o
rótulo e a garrafa. Então uma coisa é tu veres falar, outra coisa é tu
veres e teres noção de como é realizado o nosso trabalho (MARIZA,
43, 2004).
Ao ingressarem neste trabalho, estas pessoas não detinham tais
informações, já que não foram para este campo levadas por uma escolha
ideológica ou por uma prática politicamente correta de relação com o meio
ambiente. Elas nem mesmo receberam qualquer treinamento dos órgãos
públicos responsáveis. Mas fica evidente no relato acima uma sabedoria
sobre como sensibilizar as pessoas para sua atividade, sabedoria na escolha
do público (as crianças) e no modo como ensinar (ou seja, mediante a
demonstração). Desta forma, as crianças não só apreendem a informação,
como também se divertem ao descobrir o valor do material que é comumente
descartado. Elas chegam a sonhar com o dinheiro que poderão ganhar com o
material que juntarem em sua própria casa.
Esta atividade de visitas às escolas e creches do bairro tornou-se
sistemática nos últimos anos a partir da participação mais decisiva da Mariza
na administração do Galpão. Esta iniciativa tem como preocupação, além de
informar e incentivar a comunidade a separar seus resíduos domésticos, a
intenção de ir superando o preconceito existente em relação ao trabalho que
as recicladoras realizam.
(branco e pardo, liso e ondulado) e alumínio. Cada material tem uma utilização e um valor de
mercado e todos estes aspectos são informados aos visitantes.
143
Eu fui ao Cesmar
74
falar sobre Coleta Seletiva para as crianças. Eu
comecei perguntando quem me conhecia e somente uma criança
levantou o braço. Aí eu comecei a chamar as crianças que eu
conhecia pelo nome, que são filhos de minhas
colegas, e falei: vocês
não me conhecem? Por que vocês têm vergonha de falar que a mãe
de vocês trabalha
ali não Galpão? Isso não é uma coisa feia! Feio é a
mãe não ter o que dar para os filhos comer. Daí as crianças vieram,
me abraçaram e me chamaram de tia Mariza, como fazem quando me
encontram na rua ou vêm ao Galpão (MARIZA, 43,2004).
As mulheres novatas nesta atividade trabalham sempre em parceria
com uma colega veterana, que repassa as instruções sobre os materiais que
devem ser separados. Os conhecimentos adicionais dessas novatas foram e
são adquiridos na medida em que elas vão conhecendo melhor seu trabalho,
que vão agregando fragmentos de informações que escutam das colegas mais
experientes e dos discursos propagados pela imprensa, que com freqüência
visita o Galpão em busca de notícia e que, por conta das perguntas
formuladas pelos jornalistas, acabam também por informar também aqueles
que ali trabalham.
Estou identificando como Educação Popular os acontecimentos que
atravessam o Cotidiano do grupo no qual é possível identificar as trocas de
experiência e de afeto que se estabelecem em uma convivência de
compartilhamento. Observo que neste espaço se aprende sobre o trabalho,
mas se aprende também sobre a convivência, sobre a constituição de um
ethos
social que caracteriza o grupo. Entendo que este modo de aprender e
de saber se diferencia de um modo de educação vista como ilustração, que
ensina pelo processo de assimilação de uma informação externa (UNGER,
2001) e, às vezes, um pouco distanciada do universo daqueles que a recebem.
74
Centro Escolar Marista, mantido no bairro pela congregação religiosa Irmãos Marista.
Trata-se de um espaço que oferece atividades escolares e de lazer aos moradores do
bairro.
144
No caso das mulheres recicladoras, a prova disto talvez seja a reação delas
com os grupos que se oferecem para ensiná-las alguma coisa
75
.
Compreendo que o fenômeno que estou identificando como Educação
Popular se aproxima do entendimento ampliado,
...da natureza da educação, a de considerá-la não apenas como um
lugar de produção e aprendizado de conhecimentos, mas também
como um lugar de cultura, de arte, de espiritualidade e de vida;
como um processo intercultural, humano e humanizador, que se
constitui e se expressa como movimento e no movimento de
produção, organização e gestão da vida e do Cuidado (DORNELES,
2003, p. 11).
Nessa perspectiva, Educação Popular no espaço do Galpão e para o
grupo que lá transita, se constitui e se revela, sob o meu ponto de vista,
enquanto atitude de relação com o outro, relação que comporta o afeto, no
sentido mesmo do ato que toca o outro; a tensão que provoca tanto a
manifestação da proximidade quanto da indiferença de alguns; que provoca a
solidariedade de uns e a resistência de outros; um exercício de relação
pontilhada pelo trágico e o anedótico coexistindo em uma “harmonia
conflitual”. Enfim, a sabedoria revelada no modo de transitar neste universo
caracterizado por aspectos tão diversos e díspares é o que compreendo
enquanto a interface da Educação Popular. O malabarismo exercido por
alguns sujeitos, revela um conhecimento da natureza humana, uma sabedoria
para lidar com os conflitos, relativizando as tensões que atravessam
permanentemente este grupo, preservando os laços que os mantêm juntos,
favorecendo a sustentação desta trama social.
75
Durante a pesquisa, tive a oportunidade de acompanhar a tentativa de um grupo de alunos
da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) desenvolver no galpão
uma oficina de reaproveitamento de pneus para confecção de vasos, lixeiras e sandálias.
Dez pessoas se inscreveram para a oficina, mas somente quatro compareceram. O curso
terminou com uma única recicladora, a evasão foi a forma de resistência mais visível à
relação que se estabeleceu entre o grupo de alunos instrutores e os alunos aprendentes.
145
O que identifico como interface da Educação Popular no Cotidiano do
Galpão é um saber de experiência, sendo este entendido como o saber “que
se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo
ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que
nos acontece” (LARROSA, 2002, p. 27).
Enquanto observadora, admira-me a forma como essas pessoas jogam
com os fatos cotidianos, como estes os tocam sem os dominar, sem os fazer
esmorecer. Falo de fatos dramáticos, como as doenças que acometem as
mulheres recicladoras ou alguém próximo delas, da baixa renda que limita as
condições de sobrevivência. Falo das tristezas produzidas por todos estes
acontecimentos que fazem a tragédia cotidiana e que poderiam torná-las
ranzinzas, cabisbaixas, esmorecidas ou sisudas. Admira-me vê-las
transformar suas tragédias em anedotas, produzindo uma espécie de catarse
que não vem através das lágrimas, mas do riso, do escárnio.
Tal atitude não quer dizer descaso com o que lhes acontece, mas no
meu entendimento traduz uma forma de saber lidar com sua realidade e de
como elas se dispõem para esta realidade:
O saber de experiência sublinha, então, sua qualidade existencial,
isto é, sua relação com a existência, com a vida singular concreta de
um existente singular e concreto. A experiência e o saber que dela
deriva são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida
(LARROSA, 2002, p. 27).
Este é um saber orgânico (MAFFESOLI, 1998) que germina na
experiência das relações sociais, atravessadas pelas polaridades que
caracterizam as interlocuções humanas. Um saber enraizado no senso
comum, que não tem a pretensão de normatizar ou pôr em julgamento,
preferindo acompanhar os movimentos do corpo social, aprendendo e
constituindo-se nele. As práticas sociais que estou identificando como
146
Educação Popular têm fundamento em um pensamento sensível, no qual a
monovalência da razão dá lugar à coerência complexa e precária dos
fenômenos sociais; cujo discurso pode ter como substrato a experiência, o
vivido. Maffesoli faz uma aproximação do pensamento sensível com a
estética da figura de Dioniso, como uma forma análoga de representar a
multiplicidade de práticas sociais e emoções vividas em comum, e que pode
ser identificando como Educação Popular.
Como um saber dionisíaco que reconhece essa ambivalência
emocional, descreve seus contornos, participando, assim, de uma
hermenêutica social que desperta em cada um de nós o sentido que
ficou sedimentado na memória coletiva. (...) É assim, igualmente,
que opera o mundo poético do conhecimento: fazer sobressair
aquilo que é, já, aqui, e dar-lhe um estatuto epistemológico
(MAFFESOLI, 2003, p. 193).
É esta sensibilidade teórica que tenho compreendido como interface
da Educação Popular, e que pode ser identificada na fala de Mariza, uma das
pessoas que representa bem esse saber de experiência:
Eu me criei escrevendo em papel de pão, por que nós não tínhamos
caderno, sabes aquelas folhas de papel de pão? Eu escrevia ali e
hoje eu digo para as gurias: gurias, eu aprendi muito com vocês aqui
dentro. Eu aprendi a dar mais valor às coisas, eu aprendi a valorizar
aqueles que estão ao meu lado e que muitas vezes eu não valorizava.
Porque eu trabalhava fora eu achava assim, ‘ah eu tenho o que eu
preciso, porque vou me preocupar com os outros’? Eu aprendi a
dividir, eu aprendi a entender as pessoas. Se eu tenho um pão e o
outro do lado não tem eu reparto. Eu aprendi muito, eu aprendi a ser
humilde (MARIZA, 43, 2004).
É esta sabedoria que Mariza utiliza como princípio para administrar o
trabalho com suas companheiras, saberes constituídos na relação coletiva,
sem os quais ela aprendeu que é difícil manter a convivência. Compreender as
colegas é regra básica para manter o grupo, escutar sempre o que o outro
tem a dizer sem antes julgar, é outro princípio que Mariza invoca para
147
administrar este espaço. Estes saberes, como ela mesma declarou, foram
constituídos na vida em comunidade, dando a este espaço uma dimensão de
criação e de produção dos processos de convivência humana inerentes aos
espaços institucionais. As habilidades administrativas, a participação em
atividades públicas, a capacidade de negociação com os órgãos públicos e com
os comerciantes foram constituídas na prática. Foi observando as
administrações anteriores do Galpão, que Mariza instituiu uma forma de
administrar fundada no Cuidado, no afeto, no respeito pelas colegas. Lendo
as reações das colegas a uma administração praticada com autoritarismo,
compreendeu que a escuta produz um resultado melhor.
Penso que neste espaço de convivência, a Educação Popular inclui a
dimensão da subjetividade humana enquanto um aspecto que agrega e
corrobora para a constituição de um saber popular que se sedimenta a partir
da interrelação entre as pessoas, a partir do senso comum e dos eventos
vividos em comunidade. Os saberes práticos, relacionados à atividade que
desempenham, é também constituído na relação com os outros e é valorizado
e reconhecido pelas recicladoras:
Eu aprendi tudo aqui. No tempo em que eu freqüentei a escola, o lixo
ainda não era um problema, nem era reciclado, era tudo enterrado.
Eu aprendi tudo aqui. É importante o trabalho que nós fazemos
porque com isso estamos evitando o desmatamento, evitando a
sujeira, a contaminação da terra, da água e tudo isso é importante.
E antes de vir trabalhar aqui eu não tinha esta noção. Eu aprendi
bastante aqui, a gente sempre está aprendendo alguma coisa não é?
(MARGARIDA DO CAMPO, 35, 2004).
Este saber orgânico vai se sedimentando em microscópicas práticas
cotidianas e constituindo, assim, a identificação deste grupo, como, por
exemplo, ter consciência do trabalho que realizam enquanto uma prática
ambiental importante, que lhes agrega valor e os diferencia de outros grupos
148
e pessoas. Esta compreensão é formada no contexto do trabalho e da
convivência no grupo, e é “espertamente” invocada por algumas quando se
ressentem do tratamento recebido pela sociedade, estabelecendo
diferenciação positiva entre aqueles que produzem o lixo e elas, que separam
e reaproveitam o lixo.
Embora saibam que a defesa do meio ambiente interessa a muitos
outros segmentos, este grupo não se filia a outros coletivos, mesmo aqueles
ligados a outros galpões, por exemplo, à Federação dos Catadores
76
. A
participação do Galpão neste organismo é pontual e quando ocorre é no
sentido de tratar de questões estritamente ligadas ao trabalho dos
catadores. Cabe reforçar um aspecto já tratado neste texto, que diz
respeito ao descrédito deste grupo a pessoas ou agremiações ligadas à
política institucional, tal como partidos políticos, ou mesmo aquelas que
querem representá-los fora do âmbito de ação do grupo
77
.
Nesta perspectiva, a Educação Popular que se realiza neste grupo se
diferencia de um tipo de ação voltado para um projeto político-social amplo,
comum ao campo tido como tradicional da Educação Popular. As ações
praticadas pelas mulheres recicladoras, e que estou identificando como
Educação Popular, não estão subordinadas a um projeto de longo prazo
voltado para solucionar problemas de ordem política no sentido clássico, que
mobiliza a maioria dos movimentos populares. Ao contrário, este grupo está
voltado para seus problemas mais imediatos de sobrevivência mediante a
76
Em outro momento, o galpão Rubem Berta era uma das lideranças do movimento dos
catadores, representado na pessoa de Hilma antiga liderança já falecida, que agia como
animadora do movimento dentro e fora do Galpão, estimulava a participação do grupo em
atividades ligadas ao movimento social. Segundo me informou o presidente do Galpão,
atualmente estão afastados da federação porque não concordaram com as atitudes do
grupo que está dirigindo a instituição.
77
BRANDÃO (2002) atribui este modo de compreensão e de relação com a esfera política
e suas instituições aos grupos classificados como Novos Movimentos Sociais.
149
geração de renda, prática que pode ser identificada como “ecologismo
popular” (ALIER, 1998).
Para atingir seus objetivos, suas articulações ocorrem com parceiros
como a Igreja Católica, representada pela congregação Irmãos Marista que
atua no bairro, alguns dos compradores de materiais recicláveis, empresas
como a Gerdau que lhes oferece doações e, às vezes, o Galpão busca parceria
na Associação de Moradores do bairro quando necessita exercer alguma
pressão política junto ao DMLU. E mesmo estas ações pontuais são iniciativas
que não envolvem o grupo por inteiro, mas estão, sim, centralizadas na
diretoria do Galpão, não tendo, portanto, um caráter orgânico justamente por
não aglutinar todo o grupo.
Em outros estados, os catadores estão ligados ao movimento dos
cooperativados ou a ONG’s ambientalistas, ou seja, iniciativas da Sociedade
Civil, e fazem parte de uma rede de articulação do conjunto dos movimentos
sociais. Em Porto Alegre, penso que existe um diferencial porque os galpões
de separação são parte de uma ação mais ampla do poder público
circunscritos a um programa político administrativo
78
. Mesmo tendo surgido
da articulação de grupos populares e contando com o apoio de religiosos
dedicados às causas populares, a nuance do Movimento Popular, ou mesmo as
características dos movimentos sociais, não é predominante em todos os
galpões. No galpão Rubem Berta, esta característica ainda que tênue, esteve
presente com a participação de Hilma, liderança oriunda dos movimentos
populares da Igreja.
78
Refiro-me à Administração Popular e Democrática, exercida pelo Partido dos
Trabalhadores, no período de 1989 a 2004, na Prefeitura Municipal da cidade de Porto
Alegre.
150
As características do grupo das recicladoras se aproximam da
descrição dos novos movimentos sociais feita por BRANDÃO (2002 p. 267):
Alguns dentre os
novos movimentos sociais
(grifo do autor) pensam
o amanhã como o agora e praticam uma política de direitos do
cotidiano. As reivindicações são, em muitos casos, relativas a
exigências e cobranças imediatas, em nome de soluções justas a
problemas solúveis, desde que haja vontade política.
O grupo das recicladoras, apresentado como sujeito desta
investigação, tem características particulares, até mesmo com relação aos
movimentos ecológicos, que para muitos autores (BRANDÃO, 2002;
CARVALHO, 2001; ALIER, 1998) são considerados como Novos Movimentos
Sociais. Grupos como este, constituído pelas mulheres recicladoras, é
definido por ALIER (1998, p. 37) como “movimento ecológico dos pobres” por
suas lutas ocorrerem pela sobrevivência, sendo movimentos ecológicos que
têm como objetivo preservar a natureza porque a tem como fonte de
atendimento de suas necessidades ecológicas para a vida: energia, água e ar
limpos, espaços para morar.
Para ALIER (1998) existe uma diferença entre este ecologismo, que
sempre existiu enquanto prática de defesa da sobrevivência pela população
pobre no mundo, e o “ecologismo de abundância”, oriundo dos países ricos e
consumidores preocupados em recuperar o ambiente por eles degradado
como modo de garantir sua qualidade de vida.
Não é meu propósito me estender nesta questão. A referência que
faço é simplesmente para marcar a diferença do grupo estudado no que diz
respeito às suas características tanto no campo da Educação Popular quanto
do Movimento Social clássico e mesmo dos Movimentos Ecológicos ou
Ambientalistas. Para além de uma classificação ou catalogação, capturei
neste grupo investigado uma prática de relação humana e de produção de
151
saberes que identifico enquanto Educação Popular, por compreender que
esta...
Não é tanto uma teoria ou um método restrito de trabalho
pedagógico atrelado a uma tendência ideológica única a respeito da
pessoa humana, da sociedade e da educação. Ela é o imaginário e a
vocação múltipla de uma ou de algumas vocações de escolhas.
Escolhas de sujeitos, de modos de interação, de sentidos e de
significados dados a destinos humanos através do saber. Escolhas
que, uma vez estabelecidas, podem ser pensadas dentro de mais de
uma teoria e podem ser realizadas por meio de mais do que um único
método (BRANDÃO 2002 p. 41).
Identifico neste trabalho a Educação Popular não somente nas
características do grupo investigado, mas na natureza do saber que ali se
sistematiza. Nos objetivos comuns que levou este grupo a conformar-se
enquanto tal, nos vínculos que ali produzem e também na natureza do olhar e
da interlocução que estabeleci com estas pessoas para melhor compreendê-
las e, portanto, para melhor apresentá-las como elas são. Procurei sempre me
aproximar da dinâmica que atravessa este grupo com o intuito de
compreendê-lo na sua complexidade, tecida pelas contradições, tensões,
ambigüidades que enriquecem um Cotidiano que não se presta para um olhar
classificatório e explicativo.
Cotidiano que não comporta em um campo disciplinar porque, dada a
sua complexidade compõe-se de fragmentos advindos de um mundo amplo e
diverso. Busquei a interlocução com vários campos do conhecimento para
revelar as várias interfaces deste Cotidiano que se expressa por intermédio
do trágico destino compartilhado, ou no entendimento de MAFFESOLI (p.
223, s/d), “da sabedoria popular que se traduz socialmente pelo cuidado
coletivo de aproveitar este tempo que passa”.
152
Sem pretender ordenar ou higienizar o Galpão Rubem Berta, dispus-me
a mirar este espaço com admiração, com estranhamento para mostrar o que
ainda não se desvelou. Para ver que, entre tantos eventos, está a capacidade
dessas pessoas de constituírem entre amontoados de objetos descartáveis,
atitudes de afeição, amorosidade, Cuidado. Saberem jogar com a tristeza, a
tensão e os problemas diversos que atravessam a vida cotidiana, onde quer
que esta se dê. Retirar o riso da tragédia diária é sem dúvida uma sabedoria
que caracteriza este grupo. Lançar um olhar cômico à dor é uma forma de
enfrentá-la sem se deixar subsumir nela. O que identifiquei como saber de
experiência, saber orgânico e Educação Popular é nada mais do que o saber
do senso comum, tecido diariamente nas relações efêmeras, nas tensões e
embates diários, que se equilibra na alegria trágica da vida Cotidiana.
153
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( http://www.livrosgratis.com.br )
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