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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CARMEN TERESINHA BRUNEL DO NASCIMENTO
A CASA, A ESCOLA E A RUA:
ESPAÇOS DE MÚLTIPLAS PRÁTICAS SOCIAIS NO COTIDIANO DE MENINOS E
MENINAS QUE FREQÜENTAM TRÊS ESCOLAS PÚBLICAS NA PERIFERIA DA
CIDADE DE PORTO ALEGRE
Porto Alegre
2005
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1
CARMEN TERESINHA BRUNEL DO NASCIMENTO
A CASA, A ESCOLA E A RUA:
ESPAÇOS DE MÚLTIPLAS PRÁTICAS SOCIAIS NO COTIDIANO DE MENINOS E
MENINAS QUE FREQÜENTAM TRÊS ESCOLAS PÚBLICAS NA PERIFERIA DA
CIDADE DE PORTO ALEGRE
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Educação, da Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
como requisito parcial para obtenção do título de
Doutor em Educação.
Orientadora:
Profa. Dra. Jaqueline Moll
Porto Alegre
2005
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2
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO-NA-PUBLICAÇÃO (CIP)
N244c Nascimento, Carmen Teresinha Brunel do A casa, a escola e a rua : espaços de
múltiplas práticas sociais no cotidiano de meninos e meninas que freqüentam três escolas
públicas na periferia da cidade de Porto Alegre / Carmen Teresinha Brunel do Nascimento. –
Porto Alegre : UFRGS, 2005. f.
Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de
Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2005, Porto Alegre, BR-RS.
Orientadora: Jaqueline Moll.
1. Espaço urbano – Práticas sociais – Jovem – Classe popular – Porto Alegre.
2. Comportamento – Jovem – Ensino público – Porto Alegre. I. Moll, Jaqueline.
II.
Título.
CDU – 316.728-053.6(816.51)
Bibliotecária Maria Amazilia Penna de Moraes Ferlini – CRB 10/449
Ao Marcos
Encontro marcado. Companheirismo.
Peregrinos em busca.
O meu melhor, sempre!
3
AGRADECER, HOJE E SEMPRE!
Neste momento muitos são os agradecimentos. À vida, a Deus, à oportunidade
de estudar, de escrever, de ler, de ter amigos, familiares, professores e alunos. Enfim,
situações e pessoas que enchem nossos dias de alegria e de sentimentos de amor
verdadeiros. Agradeço, com carinho, a todos os que aqui forem citados e todos aqueles
que de alguma forma contribuíram para a realização deste trabalho. A todos o meu
reconhecimento sincero.
Aos meus pais Justina e Lucídio, pelas lições de amor, respeito ao outro e
sabedoria que fazem com que, a cada novo dia, eu aceite a vida com entusiasmo e
coragem.
Ao Hugo, luz em meu caminho, pela oportunidade de aprender a amar e ter sido
amada, incondicionalmente.
Aos jovens Bárbara, Elisabeth, Fernanda, Iracema, Joice, Katiele, Nara,
Rebeca, Bruno, Diogo, Jonata, Júlio, Maicon, Rafael e Rodrigo pelo carinho,
disponibilidade e pelas lições que recebi durante todo o tempo de convívio com eles.
À Priscila, filha do coração, pela dedicação constante e empenho em ajudar-me
em todos os momentos deste trabalho. À minha irmã Eva, meu cunhado Antônio Carlos,
as minhas sobrinhas Karen e Cristiane e a meus sobrinhos Júnior, Rafael, Mateus, Pedro,
Gabriel e Guilherme. Minha família, sempre presente.
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Aos amigos Benhur, Zoleima, Rogério, Lene, Ilneida, Rogerinho, Regina e Márcio
pela presença carinhosa nesta trajetória. Aos amigos de estágio em Paris, Nádia, Lurdi,
Maria Helena, Fernando, Sinara, Rose e Andréia pelas lembranças alegres e pelos
momentos inesquecíveis que passamos juntos.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS pela oportunidade de
realização do curso de Doutorado, ao CNPq pelo apoio financeiro durante todo o tempo
de elaboração da tese e à CAPES pela oportunidade de realizar um estágio no exterior.
A todos os funcionários da Secretaria do Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFRGS, em especial, à Ione, à Mary, à Marisa, à Neiva, ao Eduardo e ao
Douglas, pela atenção e ajuda durante todo o curso,
Agradeço à professora Jaqueline Moll pelas orientações carinhosas e
competentes e pelas várias oportunidades de aprendizagens que, ao aceitar-me como sua
orientanda, foram sendo descortinadas nesses últimos anos.
Ao Professor Bernard Charlot pela acolhida em sua equipe de pesquisa em
Saint-Denis, pela amizade e orientações acadêmicas sempre tão importantes.
Às professoras Carmem Craidy e Marília Sposito e aos professores Nelson Rego
e Paulo Carrano pelas orientações recebidas e pela oportunidade de aprender com seus
ensinamentos e dividir com eles as minhas reflexões.
Às colegas de orientação e grandes amigas Carla, Carolina, Ivany, Iara, Gisele,
Débora, Nilda, Márcia, Anelise, Marcinha e Tânia pelo convívio fraterno e pelos diálogos
acadêmicos.
A todos os jovens que participaram desta pesquisa, pela alegria do encontro,
pela disponibilidade em cooperar e pelo carinho recebido.
Aos professores, diretores e funcionários das escolas onde a pesquisa foi
desenvolvida, em especial, às professoras Liége, Gessi e Sueli que tão generosamente me
ajudaram em todos os momentos em que estive nas escolas.
5
Os jovens fazem a cada dia uma nova
cidade que, em grande medida, é terra
estrangeira para aqueles que não
compartilham dos mesmos referenciais de
identidade e se tornam impotentes para
reconhecer a multiplicidade de sinais que
emanam de suas múltiplas práticas.
(
CARRANO, 2003, p. 109)
6
RESUMO
Nesta tese investigaram-se os espaços nos quais uma parcela de jovens, estudantes de três
escolas públicas localizadas na periferia da cidade de Porto Alegre, transita no seu cotidiano e
as práticas sociais produzidas por eles nesses espaços. O objetivo foi identificar os espaços
aos quais os jovens das classes populares estão tendo acesso na cidade e como as suas práticas
interferem nas suas relações sociais, comportamentos e estilos de vida. A pesquisa empírica
foi realizada em duas escolas públicas municipais e em uma estadual e tem como sujeitos de
pesquisa jovens do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Para a construção dos dados, a
pesquisa agregou diferentes perspectivas metodológicas abordadas a partir de um estudo
quantitativo e qualitativo do campo estudado. Diferentes autores, principalmente, Alain
Vulbeau, Marília Sposito, Bernard Charlot, Paulo Carrano, Alberto Melucci, Henri Lefebvre,
Roberto DaMatta e Milton Santos contribuíram para as reflexões e tessitura da tese. Neste
estudo, as categorias casa, escola e rua deram suporte para o reconhecimento dos espaços e
das múltiplas práticas desenvolvidas pelos jovens na cidade, revelando um cenário complexo
e multifacetado de vivências e experiências juvenis.
PALAVRAS-CHAVE: Jovens; Espaço; Práticas Sociais; Escola e Cidade
7
RÉSUMÉ
Dans cette thèse, nous avons fait des recherches sur les espaces dans lesquels une parcelle de
jeunes étudiants, auprès de trois écoles publiques de la périphérie de Porto Alegre, évolue
dans leur quotidien et les pratiques sociales qu’ils effectuent dans ces espaces. Le but a été
d’identifier les espaces auxquels les jeunes des classes populaires ont accès dans la ville et
comment leurs pratiques interfèrent dans leurs relations sociales, comportements et styles de
vie. La recherche empirique a été faite auprès de deux écoles publiques municipales ainsi que
dans une de l’Etat et, a comme sujets de recherche, des jeunes de l’enseignement élémentaire
et de l’enseignement moyen. Pour établir des données, la recherche a agrégé différentes
perspectives méthodologiques abordées à partir d’une étude quantitative et qualitative du
domaine étudié. Différents auteurs, principalement, Alain Vulbeau, Marília Sposito, Bernard
Charlot, Paulo Carrano, Alberto Melucci, Henri Lefebvre, Roberto DaMata et Milton Santos
ont contribué aux réflexions et à la tessiture de la thèse. Dans cette étude, les catégories :
maison, école et rue ont donné du soutien afin que nous puissions reconnaître les espaces et
les diverses pratiques développées par les jeunes dans la ville, révélant un scénario complexe
et à facettes multiples de faits vécus et d’expériences juvéniles.
MOTS-CLEF: Jeunes; Espace; Pratiques Sociales; Ecole et Ville.
8
LISTA DE SIGLAS
APEB- Associação dos Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na França
CAPES- Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CEE- Conselho Estadual de Educação
CEEE- Companhia Estadual de Energia Elétrica
CESMAPA- Centro Social da Vila Mapa
COOTRAVIPA- Cooperativa dos Trabalhadores Autônomos das Vilas de Porto Alegre
CPI- Comissão Parlamentar de Inquérito
CRBC- Centre de Recherche sur le Brésil Contemporain
DMAE- Departamento Municipal de Águas e Esgotos
DMLU- Departamento Municipal de Limpeza Urbana
EHESS- École des Hautes Études en Sciences Sociales
EJA- Educação de Jovens e Adultos
ESCOL- Éducation, Socialisation et Colectivités Locales
FASC- Fundação de Assistência Social e Cidadania
FEE - Fundação de Economia e Estatística
FESC- Fundação de Educação Social e Comunitária
IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICV- Índice de Condição de Vida.
IDH- Índice de Desenvolvimento Humano
IDJ- Índice de Desenvolvimento Juvenil
INEP- Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
OIT- Organização Internacional do Trabalho
ONG- Organização Não Governamental
ONU- Organização das Nações Unidas
OP- Orçamento Participativo
PCdoB- Partido Comunista do Brasil
PDEE- Programa de Doutorado no País com Estágio no Exterior.
PED/Porto Alegre- Pesquisa de Emprego e Desemprego em Porto Alegre
PIB- Produto Interno Bruto
PNAD- Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PNUD- Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PPGEDU/UFRGS- Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul
PSB- Partido Socialista Brasileiro
PT- Partido dos Trabalhadores
RMPA- Região Metropolitana de Porto Alegre
SEJA- Serviço de Educação de Jovens e Adultos
SMAM- Secretaria Municipal do Meio Ambiente
SMED- Secretaria Municipal de Educação
9
LISTA DE TABELAS
1- Idade dos Jovens...........................................................................................................
2- Renda Familiar.............................................................................................................
3- Escolaridade do Pai e da Mãe.......................................................................................
4- Da Relação com o Bairro..............................................................................................
5- Relação com o Bairro- Meninos e Meninas.................................................................
6- Relação com o Bairro - Jovens do Ensino Fundamental e Médio................................
7- Necessidades do Bairro................................................................................................
8- Necessidades do Bairro - Jovens do Ensino Fundamental e Médio.............................
9- Necessidades do Bairro - Meninos e Meninas..............................................................
10- Idas ao Centro da Cidade - Freqüência Semanal .......................................................
11- Espaços em que os Jovens Mais Circulam..................................................................
12- Espaços em que os Jovens Mais Circulam - Meninos e Meninas...............................
13- Espaços em que os Jovens Mais Circulam - Jovens do Ensino Fundamental e
Médio ...............................................................................................................................
14- Atividades Cotidianas.................................................................................................
15- Atividades Cotidianas de Meninos e Meninas............................................................
16- O Melhor da Escola.....................................................................................................
17- Locais Preferidos na Escola........................................................................................
18- Participação em Atividades Dentro e Fora da Escola.................................................
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10
LISTA DE GRÁFICOS
1- Renda Familiar - Jovens do Ensino Fundamental e Médio......................................
2- Dificuldades Encontradas para Transitar na Cidade.................................................
3- Turno de Saída do Bairro..........................................................................................
4- Espaços de Maior Preferência Juvenil .....................................................................
5- Espaços de Menor Preferência Juvenil. ...................................................................
6- Participação em Atividades de Grupo - Meninos e Meninas....................................
7- Participação em Atividades de Grupo - Jovens do Ensino Fundamental e Médio...
109
122
136
144
146
154
155
11
LISTA DE FIGURAS
Fig.1: Rádio Comunitária......................................................................................
Fig.2: Luana na Biblioteca.....................................................................................
Fig.3: Eduardo na Oficina de Música....................................................................
Fig.4: O Arco..........................................................................................................
Fig.5: Um Jogo de Futebol ....................................................................................
Fig.6: Gustavo na Usina.........................................................................................
Fig.7: Grupo de Jovens na Igreja...........................................................................
Fig.8: As Meninas do Grupo..................................................................................
188
199
210
214
225
238
243
247
12
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..............................................................................................................
2 ESPAÇOS E PRÁTICAS SOCIAIS: CATEGORIAS QUE EMERGEM DO
COTIDIANO....................................................................................................................
2.1 Espaços do Cotidiano.................................................................................................
2.1.1 O Espaço Social.......................................................................................................
2.2 Jovens em Busca de Novos Espaços e Novas Práticas Sociais ................................
2.3 A Casa, a Escola e a Rua: Cenários Juvenis...............................................................
2.3.1 Os Espaços e os Tempos da Casa e da Rua.............................................................
2.3.2 A Escola, a Casa e a Rua: Espaços Imbricados.......................................................
3 CONDIÇÃO E CULTURA JUVENIL: CONTEMPLANDO TEMPOS E ESPAÇOS
3.1 Jovens Gregos e Romanos: Poder e Cultura...............................................................
3.2 Idade Média: Os Jovens entre o Amor e a Valentia....................................................
3.3 Séculos XVII e XVIII: A Criança e o Jovem Ganham Novo Status..........................
3.4 Século XIX: A Escola Consolida-se como Espaço de Aprendizagem.......................
3.4.1 Funções Sociais da Escola........ ...............................................................................
3.5 Século XX: A Cultura Racionalista e Científica Triunfa............................................
3.5.1 Uma Nova Concepção de Juventude ....................................................................
3.5.2 Entre a Juventude Dourada e a Transviada..............................................................
3.5.3 Os Jovens Ocupam as Ruas: Companheiros na Alegria e na Dor............................
3.5.4 Maio de 68: Os Jovens Protestam............................................................................
3.5.5 O Lema Agora é Paz e Amor....................................................................................
3.5.6 Anos de Ditadura Militar: Jovens Silenciados à Força............................................
3.5.7 Democratização na Política, na Escola e Crise no Emprego....................................
3.5.7.1 As Tribos se Multiplicam......................................................................................
3.5.8 Dos Caras Pintadas ao Rap: O Cenário é a Rua.......................................................
4 OS CAMINHOS DA PESQUISA – A METODOLOGIA............................................
4.1 Chegando no Villa......................................................................................................
4.2 Aproximação ao Campo Estudado..............................................................................
4.3 Os Espaços da Pesquisa..............................................................................................
4.4 O Problema de Pesquisa..............................................................................................
4.5 Metodologia de Pesquisa.............................................................................................
4.6 A Construção dos Dados ............................................................................................
4.7 Os Sujeitos da Pesquisa...............................................................................................
4.7.1 O Momento das Escolhas: Uma Tarefa Difícil.........................................................
4.8 Caminhos Metodológicos............................................................................................
5 JOVENS NA ESCOLA: RADIOGRAFANDO CONDIÇÕES E SITUAÇÕES DE
VIDA NA PERIFERIA URBANA...................................................................................
5.1 Ser Menino, Ser Menina: Condições Distintas na Casa, na Escola e na Rua..............
5.2 Inserções no Mundo do Trabalho................................................................................
5.3 Condição de Classe, Renda e Escolaridade Familiar...................................................
5.4 Das Relações com o Bairro e a Cidade........................................................................
5.4.1 Percepções Acerca das Necessidades do Bairro.......................................................
5.4.2 Sobre Interdições e Discriminações.........................................................................
5.4.3 Da Relação com o Centro da Cidade........................................................................
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5.4.4 Dos Espaços de Maior Circulação e das Rotinas Diárias.........................................
5.4.5 Espaços da Vida Cotidiana.......................................................................................
5.4.5.1 Espaços de Maior Circulação Juvenil....................................................................
5.4.6 A Questão Religiosa para os Jovens.........................................................................
5.4.7 Atividades Cotidianas: Para Além da Escola...........................................................
5.4.8 Os Espaços Preferidos pelos Jovens........................................................................
5.4.9 A Relação com o Espaço Escolar............................................................................
5.4.9.1 Os Espaços na Escola ...........................................................................................
5.4.9.2 Abertura da Escola nos Finais de Semana e nas Férias.........................................
5.4.9.3 Atividades Dentro e Fora da Escola: Cultura, Esporte e Lazer ...........................
6 JOVENS NA CIDADE DE PORTO ALEGRE: ESPAÇOS DE CIRCULAÇÃO E
PRÁTICAS SOCIAIS ......................................................................................................
6.1 A Cidade e Um Pouco da Sua História.......................................................................
6.2 A Porto Alegre de Hoje...............................................................................................
6.3 As Escolas Surgem com o Crescimento das Comunidades .......................................
6.3.1 As Escolas da Lomba: O Villa e o Guerreiro...........................................................
6.3.2 A Escola Padre Rambo: Outro Histórico, Outras Histórias.....................................
6.4 Os Jovens Falam .......................................................................................................
6.4.1 Raquel: Um Cotidiano Repleto de Práticas Sociais ................................................
6 .4.1.1 O CESMAPA: Um Espaço de Múltiplas Práticas ............................................
6.4.1.2 A Rádio Comunitária: Espaço de Socialização e Sociabilidade............................
6.4.1.3 Roqueiros e Pagodeiros na Escola .......................................................................
6.4.1.4 A Umbanda: Um Espaço de Práticas Religiosas..................................................
6.4.1.5 A Relação com a Cidade........................................................................................
6.4.1.6 Raquel na Busca por Espaços e Direitos...............................................................
6.4.2. A Casa e a Escola: Espaços de Resistência e Encontros no Cotidiano de Luana....
6.4.2.1 Um Estilo Próprio: Direito de ser Diferente..........................................................
6.4.2.2 Incursões pela Rua.................................................................................................
6.4.3 A Música na Vida de Eduardo: Oportunizando Espaços e Práticas.........................
6.4.3.1 A Escola: O Espaço da Diversidade......................................................................
6.4.3.2 A Escola e a Música se Confundem......................................................................
6.4.4 Erick: O Rock como Desencadeador de Práticas Sociais ........................................
6.4.4.1 O Arco na Visão de Erick: Um Espaço Democrático...........................................
6.4.4.2 Grunge: Uma Banda em Formação.......................................................................
6.4.4.3 A Escola: Um Espaço de Encontro.......................................................................
6.4.5 A Casa e o Campo de Futebol: Histórias de Fernando.............................................
6.4.5.1 O Campo de Futebol: Um Espaço Conquistado ..................................................
6.4.6 Gustavo: Um Encontro Com a Cidade ....................................................................
6.4.6.1 As Escolas: Do Villa-Lobos ao Padre Rambo.......................................................
6.4.6.2 O Bonde do Mal .................................................................................................
6.4.6.3 Espaços na Cidade: As Ruas, as Esquinas e os Parques.......................................
6.4.7 A Igreja Como Espaço de Circulação e Práticas Sociais: A Vida de Marta
6.4.7.1 Um Sábado na Igreja: O Exército da Paz..............................................................
6.4.8 As Meninas do Grupo: A Música como Articuladora de Espaços e Práticas
Sociais.............................................................................................................................................
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................
8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................
9 ANEXOS........................................................................................................................
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1 INTRODUÇÃO
Este estudo foi desenvolvido em três escolas públicas da periferia da cidade de Porto
Alegre e tem como sujeitos de pesquisa jovens do Ensino Fundamental e do Ensino Médio,
estudantes dessas escolas. A questão central da pesquisa foi conhecer os espaços nos quais
esses jovens transitam no seu cotidiano e as práticas sociais desenvolvidas por eles nesses
espaços. A escolha dessa temática tem na sua base a intenção de estudar esse jovem, dentro
de um contexto de profundas transformações tanto no que diz respeito à definição da
categoria jovem nas últimas décadas quanto no estabelecimento de novos comportamentos
juvenis e de novos espaços por eles trilhados.
Para Boaventura de Souza Santos (2000), as categorias espaço e tempo, no fim do
século XX e no início do XXI, parecem estar no centro das análises do modo de pensar a
sociedade. Para o autor, os tempos em sociedades contemporâneas são progressivamente mais
espaciais. Sendo possível identificar nas trajetórias pessoais a sucessão do tempo da família,
da escola, do trabalho e do lazer.
Nesse sentido, para cada tempo existe, simultaneamente, a convocação de um espaço
especifico que confere uma materialidade própria às relações e às práticas sociais. Para
Boaventura de Souza Santos (2000), a unidade de prática social é a dimensão ativa do espaço
estrutural, o princípio organizador da ação coletiva e individual e o principal critério de
identidade e identificação dos indivíduos e dos grupos envolvidos em relações sociais.
As práticas sociais, no contexto dessa pesquisa, foram entendidas como um conjunto
de atividades culturais, esportivas, políticas, de lazer, familiares e escolares desenvolvidas
tanto por sujeitos individuais, fora de um grupo socialmente constituído, quanto na dinâmica
dos grupos aos quais muitos deles pertenciam.
Conhecer essas práticas teve por objetivo mostrar novas formas de participação social,
política e econômica que são reveladoras das potencialidades e das dificuldades vividas por
uma parcela de jovens que mora na periferia da cidade de Porto Alegre. Práticas essas que, se
reconhecidas pela sociedade, podem facilitar a ascensão desses jovens a um status de direito e
15
cidadania, enquanto que o desconhecimento delas pode continuar gerando cerceamento de
atitudes e expressões, interditando espaços e calando vozes.
Estudar esse jovem estudante, não somente nos limites da escola, ampliando a análise
para outros espaços e outras práticas não escolares, teve também por objetivo entendê-lo não
somente pela perspectiva escolar, mas, como Sposito (2003) defende, optar por um recurso
analítico e metodológico importante que é a perspectiva não escolar para entender o que se
passa no cotidiano desses jovens.
Para Sposito (2003), a instituição escola tem ocupado o centro da reflexão sociológica
sobre a educação no Brasil. Entretanto, a autora acredita que o estudo de outras situações
educativas e de outras práticas socializadoras que podem ser observadas na família, na
vizinhança, na rua, nos grupos de jovens que se reúnem dentro e fora da escola, nos
movimentos sociais e no convívio com os adultos tanto na esfera pública quanto na esfera
privada podem se apresentar como um caminho promissor na ampliação das análises sobre a
escola e sobre os jovens que convivem nesse espaço.
Assim, segundo Sposito (2003), ao nos debruçarmos sobre esse aparente paradoxo do
“não escolar” com o escolar, é preciso que façamos uma distinção importante entre a escola
como categoria analítica, e a unidade empírica – escola – como objeto de investigação.
Sposito ainda esclarece que na contemporaneidade “ocorre o reconhecimento da perda do
monopólio cultural da escola, e a cultura escolar – apesar de sua especificidade - tende a se
transformar em uma cultura dentre outras”. (SPOSITO, 2003, p. 3)
Bernard Charlot (2000), quando trata da relação dos jovens com a escola e com o
saber, aponta a existência de outros espaços, além do escolar, que interferem na experiência
escolar de cada um deles. Quando se refere ao espaço familiar, por exemplo, ele esclarece que
esse não é um espaço homogêneo e que há práticas familiares que são educativas, como as
práticas religiosas, de cultura, de militância política, entre outras, que fazem a diferença na
história individual de cada aluno. Nesse sentido, o autor esclarece que as experiências vividas
fora do espaço escolar são singulares, como a experiência escolar também o é, pois é de um
sujeito singular, com uma história particular e original.
16
Charlot (2000) ainda explica que o espaço escolar é um espaço-tempo partilhado com
vários sujeitos onde o que está em jogo não é só o epistêmico, o didático, mas também as
relações que esses sujeitos estabelecem com o outro, consigo mesmos e com o mundo. Para
Charlot (2000), aprender é uma atividade de apropriação de um saber que não se possui, mas
cuja existência é depositada em objetos, locais e pessoas.
Assim, tendo como base a premissa de estudar esses jovens estudantes, não somente
nos limites do espaço escolar, mas avançando no entendimento sobre o cotidiano deles e suas
múltiplas práticas, vários foram os autores que deram suporte teórico para a pesquisa.
Entretanto alguns foram fundamentais na tessitura do texto. Bernard Charlot e Marília Sposito
foram os autores que mais contribuíram no sentido de compreender a escola e os jovens que a
freqüentam para além do espaço escolar. Paulo Carrano, Alain Vulbeau, Olivier Galland e
Alberto Melucci foram fundamentais na compreensão da categoria jovem e suas práticas
sociais na contemporaneidade. Henri Lefebvre, Milton Santos, Boaventura de Souza Santos e
Robert Castells contribuíram no sentido de entender a categoria espaço, principalmente em
âmbito macrossocial e Roberto DaMatta na compreensão do espaço em uma perspectiva
microssocial, trazendo as categorias casa e rua para o debate sobre o cotidiano dos jovens.
A pesquisa empírica foi desenvolvida em três escolas da rede pública de ensino na
periferia da cidade de Porto Alegre. Duas delas de Ensino Fundamental, localizadas no bairro
Lomba do Pinheiro, e uma de Ensino Médio, localizada no bairro Partenon. Em um primeiro
momento foi solicitado aos alunos dessas escolas que respondessem a um questionário,
perfazendo um total de 266 alunos. Após essa fase foram entrevistados 112 alunos e desses
foram escolhidos 11 jovens para novos diálogos e novos encontros.
A partir do convívio em uma das escolas de Ensino Fundamental desde o ano de
2002, da aplicação dos questionários, das entrevistas, das observações e dos encontros em
diferentes espaços com os 11 jovens, foi possível identificar os espaços que eles percorrem
diariamente e as práticas sociais que eles desenvolvem nesses espaços. Assim, com as leituras
que deram suporte teórico para a tese, com as orientações recebidas e com a pesquisa
empírica desenvolvida nas três escolas, a escrita da tese foi sendo tecida.
O capítulo I inicia com um relato sobre a minha trajetória como professora de
Educação de Jovens e Adultos (EJA), campo de trabalho e de estudo no qual atuei por 13 anos
17
consecutivos, de 1987 a 2000, e sobre a minha experiência como pesquisadora no Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(PPGEDU/UFRGS), basicamente, no curso de Mestrado, no qual desenvolvi um estudo sobre
o rejuvenescimento da população que freqüenta a Educação de Jovens e Adultos. Em um
segundo momento, o capítulo traz à tona as categorias de análise, algumas já pensadas desde o
início do trabalho e outras que foram surgindo no decorrer da pesquisa empírica.
O Capítulo II trata de uma abordagem histórica sobre a categoria jovem,
apresentando-a conforme a literatura oficial a registrou em diferentes épocas, sociedades e
culturas. Nesse sentido, cabe ressaltar que os jovens, em grande parte da literatura, foram
representados pelo sexo masculino, branco, ocidental e de classe social privilegiada. Assim, a
categoria, em algumas análises, pode estar restrita a um contexto histórico, no qual as
representações sobre juventude contemplam uma imagem dominante que atravessa os tempos,
desconsiderando a existência de outras juventudes que não tiveram tanta visibilidade e
oportunidade de expressão. Nesse capítulo, também, são abordados os espaços e as práticas
juvenis dos jovens em diferentes épocas e sociedades e a participação deles nos diversos
movimentos sociais, políticos e culturais que se tornaram visíveis no Brasil e no mundo.
O Capítulo III trata da metodologia usada na pesquisa. Nesse capítulo, o leitor
conhecerá as três escolas estudadas, os critérios de escolha dos sujeitos investigados, os
instrumentos de análise e os autores que contribuíram de maneira significativa na opção pela
metodologia usada e nos princípios éticos que estiveram presentes durante todo o
desenvolvimento da pesquisa.
O Capítulo IV apresenta um quadro ampliado sobre o cotidiano dos jovens que
fizeram parte da pesquisa. Através dos questionários e das entrevistas foi possível obter um
material rico em dados, palavras e gestos que possibilitou a constituição desse capítulo.
Trago, em um primeiro momento, dados diretamente ligados à vida particular dos jovens,
como idade, sexo, escolaridade dos pais, renda familiar e as dificuldades que encontram de
inserção no mercado de trabalho.
Em um segundo momento, os dados são referentes à relação deles com o bairro onde
vivem, com a escola e com os amigos. Nesse capítulo, eles falam sobre as dificuldades que
encontram para transitarem pelos mais variados espaços da cidade, os espaços em que mais
18
circulam e nos que menos circulam, os espaços em que sentem mais prazer em estar e aqueles
de que menos gostam, as atividades que desenvolvem durante a semana além de irem à
escola, e as reivindicações que fazem para que o lugar onde moram se torne melhor. Os
espaços onde os jovens preferem estar na escola e o que mais gostam no espaço escolar
também estão contemplados nesse capítulo.
No Capítulo V, o leitor é convidado, principalmente pelos 11 jovens, meninos e
meninas, que participaram de vários encontros com a pesquisadora, para com eles circular por
casas, ruas, becos, praças e parques da cidade. Assim, através dos espaços que eles circulam e
das suas práticas cotidianas, eles irão mostrar um pouco dessa cidade, que é a cidade natal da
grande maioria dos jovens da pesquisa.
Nesse capítulo, será apresentado um breve histórico sobre a formação da cidade de
Porto Alegre, alguns dados estatísticos sobre a realidade socioeconômica da Capital e algumas
notas sobre a história de cada escola e de cada comunidade. E, por fim, através da fala dos 11
jovens, vamos conhecer os espaços ocupados e percorridos por eles e as práticas sociais que
desenvolvem no seu cotidiano.
Durante toda a pesquisa, muitos sonhos foram explicitados, muitas dificuldades
expostas, crenças e magias declaradas, pequenos segredos revelados e muitas práticas sociais
contadas e observadas no percurso diário deles, seja na casa, na escola ou na rua. Assim,
percorrendo a Lomba do Pinheiro, o Morro da Pedreira, a Villa-Lobos, a Quinta do Portal, a
Guerreiro Lima, a Agronomia, o Partenon, a Padre Rambo, o Jardim Botânico, a Chácara das
Pedras, o Centro da cidade, a Usina do Gasômetro, o Shopping Praia de Belas, o Mercado
Público, o Moinhos de Vento, o Parcão, a Redenção e muitos outros bairros e conhecendo
muitas práticas cotidianas, vamos visualizar o cenário onde se desenvolveu essa pesquisa.
Ouvir os jovens atentamente e deixar que falassem sobre os espaços que percorrem e
sobre as práticas sociais que desenvolvem cotidianamente, teve também por objetivo abrir um
canal para que, a partir da sua palavra e da sua percepção de mundo, cada um pudesse dizer
como vive no seu cotidiano, o que deseja no momento atual para ter uma vida melhor e o que
espera e projeta para o futuro, para que possam interferir no desenvolvimento dos espaços em
que circulam e participar das ações e projetos que a eles são destinados na cidade.
19
2 ESPAÇOS E PRÁTICAS SOCIAIS: CATEGORIAS QUE EMERGEM DO
COTIDIANO
A realidade vem mostrando que os jovens brasileiros têm tido sua palavra
cassada, e reagem muitas vezes com violência. Abrir espaço para os jovens
(adolescentes e jovens adultos) para que eles possam dizer a sua palavra e
participarem das políticas a serem construídas em função deles, com eles e
para eles é um dos grandes desafios para sociedade brasileira atual.
(CRAIDY & GONÇALVES, 2005, p. 146)
O desejo de estudar os espaços e as práticas sociais de uma parcela de jovens,
estudantes de três escolas da periferia da cidade de Porto Alegre surge a partir da minha
trajetória como educadora de jovens e adultos e do meu comprometimento com as questões
sociais, políticas e econômicas que atravessam o país. Em 1999, inicio o curso de Mestrado
no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
tentando entender a mudança do perfil dos alunos, do antigo Ensino Supletivo, hoje
denominado de Educação de Jovens e Adultos (EJA)
1
, modalidade na qual eu trabalhava
desde 1987.
Na dissertação, elegi a categoria jovem como central a ser analisada, mostrando o
aluno do supletivo não somente pelo viés da exclusão, mas como um sujeito participativo e
atuante na escola e nos mais diversos espaços da sociedade. Em 2001, defendo a Dissertação
de Mestrado
2
, tendo como tema principal o rejuvenescimento da população dessa modalidade
de ensino.
O trabalho se propôs também, tentando superar o estigma da exclusão, mostrar uma
outra face da Educação de Jovens e Adultos, pois a imagem desses alunos e desta modalidade
de ensino historicamente foi negativa, criando no imaginário das pessoas imagens pejorativas
que eram traduzidas em chavões, como por exemplo: “aluno de EJA não gosta de estudar”;
1
A Resolução Nº 250/1999 do CEED/RS no seu artigo 1
o
. explica que: “A Educação de Jovens e Adultos é uma
oferta de educação regular, destinada àqueles que não tiveram acesso à escolarização na idade própria ou cujos
estudos não tiveram continuidade nos níveis fundamental e médio, com características adequadas às suas
necessidades e disponibilidades”.
2
Dissertação de Mestrado sob o título “Jovens no ensino supletivo: reconstituindo trajetórias”,
PPGEdu/UFRGS, 2001.
20
“não gosta de seus professores”; “não tem interesse pelo saber”; “os professores são pouco
qualificados”.
Neste contexto, ouvir os jovens e conhecer a trajetória escolar de cada um deles foi
importante para que outros olhares pudessem se constituir, desmistificando idéias
preconcebidas e rótulos que freqüentemente a eles são dirigidos, “naturalizando” este espaço
como um local de alunos “fracassados”, “atrasados”, “inferiores”, entre outros adjetivos.
Nos dois anos que permaneci no Mestrado, priorizei a investigação no campo da
Educação de Jovens e Adultos, na esfera privada, pois este tinha sido o meu campo de
trabalho durante 12 anos e era nesta rede de ensino que se evidenciava mais este
rejuvenescimento. Entretanto, durante todo o tempo de trabalho, pude constatar que a maioria
dos jovens era proveniente de escolas públicas. Desta maneira, mesmo trabalhando na esfera
privada, eu convivia com os problemas da rede pública de ensino.
A pesquisa possibilitou-me também conhecer um pouco da realidade de uma parcela
de jovens da cidade de Porto Alegre. Através dos depoimentos, foi possível perceber que
estes, apesar das muitas dificuldades encontradas, buscam um lugar na sociedade e no
mercado de trabalho. Exigem respeito pela sua cultura e pelo seu jeito de ser. A cada
depoimento ia se descortinando um universo extremamente rico, pois muitos deles se
apresentavam como sujeitos participativos, capazes de se posicionarem de maneira solidária e
consciente, frente aos seus problemas e aos do país, com uma clareza de pensamento
surpreendente. Muitas das falas incentivaram-me a continuar pesquisando a categoria jovem.
Entre elas:
Ser jovem é esperar que o melhor ainda aconteça neste país, é esperar
que se possa sair de dia ou de noite sem correr riscos, é esperar que a
justiça aconteça não só com os pobres, mas sim com os ricos que
prejudicam muito mais este país. Eu espero particularmente que os
políticos que roubam sejam castigados severamente, não com multinhas
absurdas. Eu espero poder usufruir do SUS sem ter que esperar quatro,
cinco, seis horas por uma coisa que eu tenho direito, já que todos
pagamos nossos impostos. (LUISA, 22 anos)
Ser jovem está quase impossível, pois a cada dia que passa temos que nos
tornarmos mais velhos, mais sábios para lidar com a realidade que nos é
21
mostrada. Armas, drogas, miséria e doenças acabam com o lado jovial de
uma geração dita futuro do país. Como podemos aproveitar a juventude
em meio a tanta brutalidade? Se saímos pela noite, somos assaltados. Se
queremos amigos novos, temos que nos drogar, pois é difícil achar alguém
careta hoje em dia. Se queremos sexo, temos que lembrar do fantasma
sempre presente da AIDS. O que aproveitamos da juventude? O que o
Brasil tem a nos oferecer, em troca de nosso patriotismo, que a mim foi
passado no Exército? Tenho sonhos, esperanças, mas sinto que minha
força de vontade deverá elevar-se para a milésima potência, pois, a cada
dia, o país revela-se um péssimo local para colocar pilares para uma
futura construção pessoal
.
(
AFONSO, 19 anos)
Em outros depoimentos, pareceu-me que os jovens estão sem referências, esperando
que as gerações que os precederam lhes apontem caminhos. Esperam que o mundo adulto não
somente cobre atitudes e comportamentos, mas que possa lhes transmitir conhecimentos e
valores. A experiência, a partir do vivido, e a postura ética dos adultos frente aos problemas
atuais parecem ser importantes para as novas gerações. Neste sentido é importante a fala de
Gustavo, 20 anos, no que diz respeito à postura dos adultos em relação aos jovens.
Os adultos acham fácil culpar os jovens pelos conceitos deturpados da
juventude, mas para falar a verdade, será que não são os adultos que
merecem boa parte da culpa pelo que está acontecendo com os jovens na
atualidade? Não há dúvida que o colapso da família, divórcios, discórdias
e conflitos entre os adultos, além do que está passando nosso país com
desemprego, miséria, crianças abandonadas nas ruas, nossos governantes
a cada momento sendo cassados por fraudes. O que poderemos esperar
do novo milênio? O que tínhamos no passado está difícil no presente, e o
futuro? Apesar disso sou um jovem com esperança no retorno da
humanidade e num futuro mais humano.
A pesquisa também mostrou que muitos jovens estão decepcionados com a escola
pública e com a falta de políticas públicas responsáveis e competentes na área da educação e
no que diz respeito aos jovens. Muitas foram as falas que demonstraram esta realidade, das
quais trago apenas uma que ilustra a angústia de muitos estudantes.
Eu particularmente acho a escola pública muito desorganizada, esquecida
pelo governo, mas existem professores muito interessados com todos os
alunos. O fracasso escolar é a falta de professores e o desinteresse do
governo. (LEILA, 19 anos)
22
O fenômeno do rejuvenescimento da população que freqüenta os programas de
Educação de Jovens e Adultos apontou caminhos para a compreensão dos processos que
desencadeiam as descontinuidades e rupturas no processo escolar de muitos jovens, bem
como mostrou que este fenômeno só pode ser compreendido como uma decorrência das
problemáticas que afetam a escola na contemporaneidade.
Nesta tese dou continuidade ao estudo da categoria jovem, mas agora trabalhando com
jovens que freqüentam a Escola Municipal de Ensino Fundamental Heitor Villa-Lobos, a
Escola Municipal de Ensino Fundamental Afonso Guerreiro Lima e a Escola Estadual de
Ensino Médio Padre Rambo. O desejo de ampliar o campo de estudo, saindo dos limites da
escola privada e partindo para o ensino público, advém da complexidade da categoria
estudada e porque acredito que muitos são os caminhos a serem trilhados para entendermos o
universo juvenil na contemporaneidade.
Estudar a categoria jovem não é tarefa fácil, principalmente se considerarmos os
desafios que os jovens precisam enfrentar na atualidade. Para Melucci (2001), nas sociedades
tradicionais, primitivas, o mundo era mais estável. Nas sociedades atuais, de maior
complexidade, o futuro é menos previsível. Existe uma ampliação das possibilidades e ao
mesmo tempo um vazio a preencher.
Segundo Melucci (1997), considerando a perspectiva temporal do jovem, o momento
atual tornou-se menos previsível, tudo dependerá da escolha de cada um. Nas sociedades do
passado, a incerteza em relação ao futuro, em geral, era resultante de eventos aleatórios e
incontroláveis (epidemias, guerras, colapsos econômicos), raramente envolvia a posição de
cada um. O nascimento e o contexto familiar e social do jovem eram determinantes. Em
sociedades contemporâneas, a juventude convive com a incerteza, com medos e com uma
certa descrença no futuro.
Melucci (2001) assinala ainda que as características juvenis, tão amplamente
divulgadas pela literatura, fazem da juventude um espelho de toda a sociedade, uma espécie
de paradigma dos problemas cruciais em sistemas complexos: tensão entre expansão das
oportunidades de vida e controle difuso, entre possibilidades de diferenciação e definições
externas de identidade. Nesse contexto, os jovens, por não se deixarem reduzir a códigos de
23
normalidade, tornam-se atores de conflitos, surgindo daí um interesse crescente dos
sociólogos do conhecimento em estudá-los.
A cultura juvenil explicita alguns dos temas que definem o campo dos
conflitos pós-industriais. O silêncio, antes de tudo, ou a rejeição da palavra.
Parece que num mundo de palavras se instaura, por parte dos jovens, a
impossibilidade do discurso completo, a fragmentariedade, a expressão
partida, incoerente: a linguagem juvenil aproxima-se da perda parcial ou
total da capacidade de compreender a palavra. Todavia nessa palavra que
não é palavra, nessa dificuldade de articular e concluir exposta à indignação
ou à ironia dos paladinos do bem senso, há alguma coisa além da ausência.
Há a afirmação de uma palavra que não aceita ser mais separada das
emoções, há um dizer que quer centrar-se no ser mais do que no fazer e volta
por isso à pobreza essencial, às rupturas e aos vazios da experiência
profunda de cada um. (MELUCCI, 2001, p. 102)
O autor também questiona o conceito de adolescência, quando esta definição coloca
o adolescente como aquele que será alguém no futuro, um vir a ser. Nessa visão, os jovens
são percebidos como objetos de observação e não como indivíduos em relação com aqueles
que os observam. Na contramão desta definição, Melucci (2001) explica que a adolescência é
uma fase que nunca será abandonada completamente, que irá dialogar com as outras fases,
através de seus medos e desejos, durante toda a existência do ser humano.
Fabbrini & Melucci (1992) dizem que a adolescência não é uma doença, mas uma
estação da vida, feita de turbulências e de estagnações, de ações que se esgotam em gestos e
de projetos que permanecem em sonhos. A memória juvenil e seu rastro prolongam-se nas
grandes etapas da existência, com um eco vivido continuamente re-despertado.
Para os autores, o período de indeterminação próprio da adolescência se estende
cada vez mais. A fase de inserção profissional está mais longa e incerta. Este alongamento da
fase de estabilização de emprego, conseqüência da precariedade das oportunidades destinadas
aos jovens e da necessidade de aperfeiçoamento para a ocupação dos poucos postos
disponíveis para esta faixa etária, define hoje a juventude como uma fase de espera para
ambições sociais e profissionais.
A transitoriedade, a precariedade e a incerteza (GIROUX, 1996; MELUCCI, 1997;
GALLAND, 1997; MORIN, 1999) são termos recorrentes quando se fala de juventude e
também quando se faz referência às demandas das sociedades contemporâneas. Giroux (1996)
24
coloca que a instabilidade e a transitoriedade tão difundidas quando se fala em jovens devem-
se a alguns pressupostos básicos como: a perda geral da fé nos discursos modernos do
trabalho e o reconhecimento de que a indeterminação em relação ao futuro leva-os a lutar e
viver das esperanças imediatas.
A instabilidade econômica e a falta de perspectivas podem gerar vários conflitos e um
sentimento de apatia e desesperança nos jovens. Para os jovens, o trabalho não significa
apenas a garantia de um espaço econômico na sociedade, mas também a possibilidade de
adquirir bens de consumo que os identifiquem como jovens e uma certa sensação de
liberdade.
Quando questionamos os jovens sobre os motivos de sua inserção no mundo
do trabalho, a maioria respondeu porque era pobre e precisava ajudar na
família. Porém, quando aprofundamos a discussão nas entrevistas
individuais e em grupos, outros motivos ficaram evidentes como: ter mais
liberdade, garantir os estudos, ter dinheiro para comprar roupas e gastar no
fim de semana, ter uma carteira de trabalho, etc. Entre esses jovens, o
trabalho, ao mesmo tempo em que os coloca numa situação de explorados,
possibilita a afirmação de sua identidade. Ao contrário do discurso
moralizante de seus pais sobre a necessidade do trabalho para transformá-los
em pessoas responsáveis, eles vêem no trabalho seu caráter provedor.
(MARQUES, 1997, p. 71)
Charlot & Glasmann (1998) lembram que os jovens vivem uma fase marcada pela
crise do emprego e advertem que o diploma, antes garantia de colocação no mercado de
trabalho, serve, no momento atual, de credencial para entrar em um processo seletivo, no qual
o acúmulo de títulos e experiências é o que dará o veredicto final.
Dès lors, la position que le jeune peut occuper dans la division sociale et
professionelle du travail est fortement corrélée à celle qu’il a réussi à
atteindre dans le système scolaire: le niveau d’accès au marché du travail
dépend en bonne partie de la dernière classe fréquentée et du dernier
diplôme obetnu
3
. (CHARLOT & GLASMANN, 1998, p. 18)
Para Guillhaume (1998), a juventude contemporânea é geralmente compreendida
como um período no qual se desenha um futuro e se preparam os engajamentos para a vida
3
Desde então, a posição que o jovem pode ocupar na divisão social e profissional do trabalho é fortemente
correlata àquela que ele conseguiu alcançar no sistema escolar: o nível de acesso ao mercado de trabalho
depende em boa parte da última classe freqüentada e do último diploma obtido. Tradução da autora (T A).
25
adulta. É a idade na qual os sonhos são livremente expressados e os projetos tomam forma,
mesmo sabendo que estes projetos trazem no seu bojo uma certa imprevisibilidade e incerteza
no futuro. O autor lembra também que não podemos esquecer que esta é uma idade de
escolhas, o que pode parecer cruel, quando falamos em jovens de classes populares, nas quais
as oportunidades de inserção social e de consumo se reduzem. Todavia, o autor nos adverte
que, apesar de todas essas dificuldades, somente será possível interferirmos nessa lógica se
compreendermos as experiências que se constituíram no percurso biográfico dos jovens.
Melucci (1997) alerta também para a natureza precária da juventude, na qual os
indivíduos não são jovens apenas pela idade, mas porque assumem culturalmente a
característica juvenil. Através das suas práticas diárias, da trajetória individual de cada um e
das atividades culturais que eles desenvolvem nos mais diversos espaços, os jovens expõem
ao mundo as suas necessidades e dificuldades, o que os torna visíveis para a comunidade em
que vivem e para a sociedade como um todo.
Dayrel (2001) esclarece que o mundo da cultura aparece como um espaço privilegiado
de práticas, representações, símbolos e rituais, no qual os jovens buscam demarcar uma
identidade juvenil e, que longe do olhar dos adultos, assumem-se como protagonistas, atuando
sobre o meio em que vivem e construindo um olhar crítico sobre o mundo e sobre eles
mesmos. Nesse sentido, Giroux (1996) também alerta os educadores para o fato de que as
identidades juvenis estão sendo produzidas fora do espaço escolar e que esses outros espaços
precisam ser reconhecidos pela escola.
Os educadores precisam entender que as diferentes identidades entre os
jovens estão sendo produzidas em esferas geralmente ignoradas pelas
escolas. Aqui caberia incluir-se uma análise de como a pedagogia trabalha
para produzir, circular e confirmar formas particulares de conhecimento e de
desejos naquelas esferas públicas e populares em que sons, imagens, textos e
cultura eletrônica tentam utilizar o significado a favor e contra a
possibilidade de estender a justiça social e a dignidade humana. Os centros
comerciais, cafés, cultura televisiva e outros elementos da cultura popular
devem converter-se em sérios objetos do conhecimento escolar. (
GIROUX,
1996, p. 80)
Bernard Charlot (2001) explica que, no seio de uma mesma classe social, existem
comportamentos diferentes em relação aos diversos tipos de saberes e de aprendizagens e que
jovens de meios populares, resistentes ou não, face aos saberes escolares, podem, fora da
26
escola, apresentar comportamentos de uma certa complexidade que supõem aprendizagens
profundas. Ele alerta também para o fato de que vários jovens, quando fora das tarefas
escolares, no que se refere à linguagem, se revelam belos falantes dentro de seus grupos ou na
produção de textos de rap. Detentores de um capital cultural que os permite fazer poesias,
compor músicas, participarem de peças de teatro ou outra atividade cultural com desenvoltura
surpreendente.
Para Sposito (1996) não é por acaso que o mundo da produção cultural e das artes atrai
tanto os jovens. A música, a poesia, o teatro e a dança são algumas atividades que ocupam
grande parte do universo juvenil. Todavia, as políticas públicas, capazes de oferecer
condições para que estes jovens possam mostrar suas habilidades, são deficientes. Nesse caso,
quanto mais ausente se mantém o Estado na oferta de locais de socialização juvenil, mais as
drogas, o tráfico e a violência poderão ocupá-los.
Sposito (1996) lembra ainda que a juventude no Brasil foi silenciada praticamente por
duas décadas, do final dos anos 60 até os anos 80. Silêncio esse que talvez possa ser explicado
devido à intensa participação dos jovens na recusa ao regime autoritário instalado nos anos
sessenta. Entretanto, com a abertura política iniciada nos anos oitenta e com a volta da
democracia, às discussões sobre os jovens ganham força, principalmente na área educativa. O
que não aconteceu sem dificuldades e outros silenciamentos.
De um lado, o estereótipo é aliado íntimo do preconceito, fato criador de
enormes dificuldades para aqueles que se dedicam ao trabalho educativo. De
outra parte, o estereótipo não permite que interroguemos o sujeito – neste
caso o aluno jovem – ao qual atribuímos determinadas características a priori
e negamos o direito da fala, isto é, nos negamos escutar o que ele teria a nos
dizer sobre si mesmo. (SPOSITO, 1996, p. 99)
Entretanto, mesmo com a abertura de novos canais de comunicação, podemos
observar, através da mídia e em vários debates, uma ênfase demasiada a fatores negativos no
que diz respeito aos jovens. A droga, a prostituição, a delinqüência, a gravidez indesejada e as
doenças sexualmente transmissíveis são temas muito explorados quando o assunto é
juventude.
27
Para Vulbeau (2001) e Dubéchot & Le Quéau (2001), a juventude, na
contemporaneidade, está fortemente associada a representações negativas. Entretanto, os
autores explicam que, longe de ser vazio, o período atual da juventude se apresenta rico de
experimentação no qual os jovens desenvolvem competências e estratégias de inserção que
traduzem um senso de adaptação inédita e, segundo os autores, os jovens, mesmo quando não
reconhecidos pelos espaços mais institucionalizados, não desistem facilmente de procurar o
seu lugar na sociedade.
Nesse contexto, a frágil inserção profissional, a violência, as dificuldades familiares
e a estigmatização sofrida pelos jovens das classes populares são desafios postos para a
juventude. Joëlle Bordet (1999), em seu livro “Les jeunes de la cité”, que traz o cotidiano dos
jovens que vivem na periferia de Paris, reconhece que o acesso dos jovens a um status social
reconhecido constitui um desafio que só a mobilização democrática do conjunto da sociedade
poderá superar. Para Bordet (1999), trabalhos e pesquisas de cunho social contribuem no
sentido de mostrar possíveis saídas para as situações de exclusão social vividas pelos jovens e
ajudam no reconhecimento de novas resistências e solidariedade nesse grupamento humano.
2.1 ESPAÇOS DO COTIDIANO
Não há espaço vazio, nem de matéria nem de significados; nem há espaço
imutável. Nada é mais dinâmico do que o espaço por que ele vai sendo
construído e destruído, permanentemente, seja pelo homem, seja pelas forças
da natureza. Também nada existe nem se articula fora dele. Justamente
porque ninguém escapa à inevitabilidade de viver e de se relacionar com
pessoas e objetos num espaço material e concreto, carregado de significado.
(LIMA, 1989, p. 13)
O desejo de estudar os espaços que os jovens percorrem no seu cotidiano surge, em
um primeiro momento, a partir do convívio com estudantes da Escola Municipal de Ensino
Fundamental Heitor Villa-Lobos no ano de 2002
4
e se consolida no convívio com os jovens
das outras escolas nos dois anos seguintes.
4
Durante todo o ano de 2002 freqüentei a Escola Municipal de Ensino Fundamental Heitor Villa-Lobos em
média, dois dias por semana. A opção de ir a campo, antes que as minhas questões de pesquisa estivessem bem
definidas, deu-se pela vontade de conhecer mais de perto a realidade de uma escola pública de periferia e o
cotidiano dos jovens que ali estudavam. As outras escolas foram incorporadas à pesquisa nos dois anos
seguintes.
28
A questão do acesso, ou do não acesso, aos mais diversos espaços da cidade esteve
sempre presente na fala dos jovens. A pouca opção de lazer no bairro e a falta de dinheiro
para a locomoção que os possibilitaria realizarem atividades esportivas, culturais ou cursos
que possam ajudar na inserção deles no mercado de trabalho também foram algumas
constatações percebidas no convívio com eles
5
.
Vou na casa da Laura, aqui perto, pra conversar ou vou pro Morro da
Cruz. Aqui não tem nada. Eu mudaria tudo, a rua onde eu moro é toda
suja, feia e eu reformaria o colégio também. (LUCIANE, 15 anos)
Eu fico lá no meu beco, eu jogo vôlei, futebol. Não tem muito espaço, mas
a gente joga. Gostaria de praticar natação para competir. (RAFAEL, 15
anos)
Eu sempre estudei no Villa
6
. Eu gostaria de estudar longe, assim a gente
sai um pouco da MAPA
7
. Para as gurias é mais difícil. As mães não deixam
sair. Tem muita violência, briga, eu concordo com meus pais, é muito
violento, eles têm razão, mas os guris eles deixam! (LEILANE, 15 anos)
A partir dessas e de outras falas, percebi que a vontade de transitar por outros espaços
fora do bairro é fundamental para os jovens. Pareceu-me que o desejo de percorrer espaços
diferentes do habitual é despertar para o desconhecido. É querer vivenciar horários e mistérios
novos. É descobrir onde pode e onde não pode ir. É reconhecer direitos e deveres.
Para Milton Santos (2002), no mundo da globalização, o espaço geográfico ganha
novos contornos e novas características, revelando o mundo e tornando-o historicizado e
geografizado, isto é, empiricizado. Assim, o espaço é determinado por uma rede de relações
sociais que dão vida e forma a um lugar, um espaço vivido de experiências sempre renovadas.
5
O nome dos jovens que participaram da pesquisa foram alterados com o objetivo de preservar a identidade de
cada um deles.
6
“Para não confundir VILLA com VILA: HEITOR VILLA-LOBOS – nome próprio que homenageia o patrono
da escola, grande maestro e compositor; VILA MAPA - neste caso “VILA” é um substantivo que designa lugar,
bairro, conjunto de casas” (Definição retirada do Fanzine organizado pelos alunos e professores da escola,
intitulado “Retratos do VILLA”, Ano IV, 2003, página 25).
“O Fanzine é uma publicação underground que teve sua origem nos fã-clubes de bandas de rock. É feito de
colagens de materiais diversos e valoriza a coletividade, a comunicação entre os grupos e a liberdade de
expressão” (Retratos do VILLA, Ano IV, 2003, página 01).
7
“Vou falar sobre um humilde bairro cujo nome é MAPA. Bom, eu acho que vocês todos estão se perguntando:
– “Por que MAPA?” Pois vou explicar: MAPA significa Movimento Assistencial de Porto Alegre, que foi
fundado pelo prefeito da época Célio Marques Fernandes e sua esposa Maria Marques Fernandes” ( Aluno da
turma C-32; Retratos do VILLA, Ano IV, 2003, página 02).
29
2.1.1 O Espaço Social
Trazer para a análise os espaços em que os jovens circulam na cidade nos remete, em
um primeiro momento, a uma dimensão macrossocial na qual encontramos um espaço social
estruturante e estruturado por um conjunto de práticas que dá forma ao tecido urbano, dando
vida e contorno às cidades. Lefebvre (2000) explica que todo o espaço social resulta de um
processo de múltiplos aspectos, de movimentos significantes e não significantes, percebido e
vivido, teórico e prático e que todo o aspecto social tem uma história. E se existe uma história
do espaço associada a períodos, sociedades e práticas sociais não podemos deixar de falar,
considerando a sociedade em que vivemos, em um espaço do capitalismo e conseqüentemente
em uma sociedade atravessada pelas relações de poder. Assim, a produção desse espaço tem
seu aspecto histórico que não é somente de um sujeito ou de um objeto, mas de uma realidade
social composta por um conjunto de relações.
Considerando o aspecto histórico, a modernidade traz um novo jeito de pensar os
espaços e de agir cotidianamente. As relações se redefinem e o espaço social se produz e se
reproduz, basicamente, em conexão com as relações de produção. A partir das práticas
industriais é que novos modelos de cidades e relações irão se estabelecer. A preocupação
dominante passa a ser com os objetos, com as máquinas e com os produtos que este mercado
vai abarcar.
A própria cidade é uma obra, e esta característica contrasta com a orientação
irreversível na direção do dinheiro, na direção do comércio, na direção das
trocas, na direção dos produtos. Com efeito, a obra é valor de uso e o
produto é valor de troca. (LEFEBVRE, 2001, p. 4)
Para Lefebvre (2000, 2001), esses objetos e produtos não contêm a sua verdade, eles
são a expressão somente das necessidades e das satisfações que eles trazem. Eles dissimulam
o tempo de trabalho social que levam para serem produzidos e as relações sociais de
exploração e dominação que trazem no seu bojo. Os produtos e os circuitos que eles
engendram no espaço adquirem uma importância tão significativa que passam a ter um valor
mais do que concreto, de existência material, para alcançar um valor simbólico.
30
Nesse contexto, o objeto adquire uma importância ímpar para aquele que o adquire,
trazendo consigo um poder, ilusório ou real. E nesse ponto da discussão, distinguir o que é
ilusão e o que é real em sociedades baseadas no capital e no consumo, não é tarefa fácil. Para
o autor, a aparência e a ilusão não são coisas objetivas, mas suportam signos e significações
que trazem consigo mensagens. Todavia, os objetos e as coisas, esses, sim, contêm, mesmo
que dissimuladas, as relações e os espaços sociais que os produziram.
Para entender essa dinâmica, não podemos esquecer que os espaços sociais são
produtos de práticas que implicam economia, técnica, política, estratégias, relações e
empregos, o que nos obriga a falar em vários espaços. Para Lefebvre (2000), o conhecimento
do espaço oscila entre a descrição e a fragmentação. Descreve-se o espaço em coisas que o
contêm ou em pedaços de espaços. Espaços parciais no espaço social. Podemos assim falar
em espaço demográfico, geográfico, informático, bem como, em espaço da pintura, da
música, de morar, do trabalhar, de lazer, do turismo, do esporte, entre outros.
O autor ainda alerta para a diferença entre o conhecimento do espaço real que
habitamos e aquele sonhado. O que não poderá prescindir da noção de tempo no e através do
espaço. O conhecimento da noção de tempo deverá permitir não prever o futuro, mas trazer
elementos que coloquem uma perspectiva de futuro, “um projeto de um outro espaço, de um
outro tempo, ou uma outra sociedade, possível ou impossível”. (LEFEBVRE, 2000, p. 109)
Para Lefebvre (2000), não é possível dissociar a idéia de espaço da idéia de tempo,
porque a história do espaço, em sociedades capitalistas, traz consigo uma história do tempo na
qual a produção do espaço como produto industrial permite a repetição e a reprodução das
relações sociais, agindo também sobre a reprodução natural, sobre a natureza como um objeto
e seus tempos naturais.
A partir dessa matriz, formou-se um sistema urbano e comercial. Para Lefebvre
(2001), no século XX, o tecido urbano cresce em torno das cidades e com ele a
industrialização e conseqüentemente o urbanismo. Define-se então o local da casa, do
trabalho, do estudo, do lazer e assim por diante. O espaço começa a aparecer como meio de
acumulação, de crescimento, e as práticas sociais que aí são gestadas, nascem e se
desenvolvem, com a marca, real ou simbólica, desse tempo e desse espaço que coincide com a
acumulação do capital.
31
A vida urbana, a sociedade urbana e ‘o urbano’, separados por uma certa
prática social de sua base morfológica já meio arruinada e procurando uma
nova base: assim é que se apresentam os arredores do ponto crítico. ‘O
urbano’ não pode ser definido nem como apegado a uma morfologia
material (na prática, no prático-sensível) nem como algo que pode se separar
dela. (
LEFEBVRE, 2001, p. 81)
Castells (1999), ao tratar sobre o espaço/tempo na contemporaneidade, também
entende que o espaço não pode ser definido fora da dinâmica da matéria e sem referência às
práticas sociais desenvolvidas no espaço. Ele explica que o espaço é um produto material em
relação a outros produtos materiais, objetos ou pessoas, os quais estão envolvidos em relações
sociais que dão ao espaço uma forma, uma função e um sentido social. Assim, para
definirmos o espaço do ponto de vista das práticas sociais, é preciso que trabalhemos a
historicidade dessas práticas e o surgimento e a consolidação de novas formas de pensar o
tempo e o espaço.
Nesse sentido, Castells (1999) entende que, para entender o espaço, é preciso entender
o tempo, e afirma que todo o tempo, tanto na natureza quanto na sociedade, parece ser
específico a um determinado contexto, chegando a declarar que o tempo é local. E salienta
que, na sociedade atual, ainda em grande parte dominada pelo conceito do tempo cronológico,
tão importante para a constituição do capitalismo industrial, nos é apresentada uma outra
forma de interpretar o tempo e o espaço. Uma cultura da virtualidade real associada a um
sistema multimídia eletronicamente integrado que contribui para a transformação desses
conceitos.
Para Castells, a informação instantânea em todo o globo, com reportagens via satélite,
ao vivo, de locais distantes ou próximos, e a comunicação via computadores oferecem a
instantaneidade temporal, como nunca antes imaginado, aos acontecimentos sociais e às
expressões culturais que acontecem em qualquer parte do planeta. Invertendo uma tendência
histórica de pensar o tempo e o espaço de uma maneira linear, inaugurando também um novo
jeito de pensar a sociedade: a sociedade em rede.
A comunicação mediada por computadores possibilita o diálogo em tempo
real, reunindo pessoas com os mesmos interesses em conversa interativa
multilateral, por escrito. Respostas adiadas pelo tempo podem ser superadas
com facilidade, pois as novas tecnologias de comunicação oferecem um
sentido de instantaneidade que conquista barreiras temporais. (CASTELLS,
1999, p. 486)
32
Assim, ao tentar identificar os espaços nos quais circulam os jovens dessa pesquisa e
as práticas sociais cotidianas vividas por eles, as vividas em tempo real e também, aquelas
desejadas, projetadas para o futuro, próximo ou distante, nos ajudarão a entender quem são
esses jovens, como eles vêem a cidade em que habitam e como eles interferem na construção
desse espaço com o seu jeito de pensar e com suas ações, pois, de uma forma ou de outra, de
maneira visível ou invisível, a cidade em que habitam, está continuamente sendo construída e
reconstruída por todos aqueles que nela habitam através de práticas sociais cotidianas que
podem ser de cerceamento, segregação e dominação, e outras que podem ser de
reconhecimento e integração.
2.2 JOVENS EM BUSCA DE NOVOS ESPAÇOS E NOVAS PRÁTICAS SOCIAIS
Nos primeiros encontros com os jovens, a impressão que tive foi que eles estavam
circunscritos ao seu bairro, sem acesso a outros espaços na cidade e sem a possibilidade de
intercâmbio com outros jovens, de outras classes sociais ou de outras tribos
8
. Penso que esta
impressão, em um primeiro momento, foi pertinente se considerarmos que vivemos em uma
sociedade excludente, preconceituosa e extremamente consumista, o que não é exclusividade
da sociedade brasileira, mas de uma “ordem econômica mundial” que aceita e reverencia a
todos aqueles que estão no topo da pirâmide social. Entretanto, no convívio com os jovens e a
partir dos diálogos que ocorreram durante todo o tempo da pesquisa empírica, descobri que,
apesar das dificuldades, muitos deles conseguem inserir-se, mesmo que temporariamente, em
outros espaços fora do seu bairro.
No decorrer da pesquisa empírica, através dos diálogos com os jovens, este panorama
evidenciou-se. Muitos deles estão sem dinheiro para o ônibus, há poucos locais de lazer na
vila onde moram, e, no caso das meninas, as oportunidades limitam-se, talvez por uma
questão cultural que preconiza que lugar de menina é dentro de casa, ou pela
responsabilidade que lhes pesa dentro do espaço doméstico, considerando que muitas delas
ficam encarregadas dos afazeres domésticos, de cuidar das crianças ou dos doentes da família.
8
Para Maffesoli (1988), os microgrupos, as tribos, podem constituir-se dentro de um espaço concreto, bem como
em um território simbólico, mas, de qualquer modo, um não é mais real do que o outro, pois elas se formam a
partir de um sentimento de pertencimento, em função de uma ética específica e no quadro de uma rede de
comunicações.
33
Temos também a questão da violência, que atinge a todos os jovens
9
, cerceando
espaços e preocupando os pais e até mesmo eles. Entretanto, essa preocupação parece ter um
peso maior quando se trata das meninas, como fator limitante para saídas em direção a outros
espaços fora da comunidade. Nas conversas com os jovens, o medo que os pais e os irmãos
têm de que as meninas sejam violentadas sexualmente ficou muito evidente, até mais do que
na fala das próprias meninas. Na fala delas, a interdição maior ao espaço da rua deve-se ao
fato de os pais temerem uma gravidez indesejada.
Assim, o espaço da casa, para os pais, é mais “apropriado” para as meninas.
Conseqüentemente, as práticas de lazer realizadas por elas, na maioria dos casos, estão
circunscritas a redes de sociabilidade ligadas à família e à vizinhança. Sair com os pais para
festas em casa de parentes, conversar com as amigas no portão ou na pracinha próxima de
casa, bem como o tradicional “churrasco de domingo” e as ida à igreja ocupam um tempo
valioso na vida das meninas.
O medo dos assaltos, dos tiroteios na comunidade, dos espaços dominados pelas
drogas, principalmente à noite, também é fator limitante ao acesso dos jovens a determinados
espaços dentro da comunidade e na cidade como um todo.
Nos diálogos, pude perceber que existem locais, dentro e fora das comunidades, nos
quais não é “qualquer pessoa” que entra, são espaços que como eles mesmos dizem: “lá não é
qualquer um que vai, tem que ser aceito”.
Na fala de Douglas, 17 anos, é possível perceber que existem discriminações e
interdições dentro da cidade. Ele sabe que existem lugares na cidade que são acessados
somente com dinheiro para o ingresso, outros que só aceitam quem estiver bem vestido ou for
expressamente convidado. Douglas percebe também a existência de lugares na cidade que são
9
No Anexo A, podemos observar gráficos que mostram, em números absolutos, os homicídios sofridos e
cometidos por adolescentes, os estupros sofridos e cometidos por eles e o número de adolescentes apreendidos
por porte e tráfico de drogas no RS nos anos de 2000, 2001 e 2003. Os gráficos foram retirados do livro
“Medidas sócio-educativas: da repressão à educação; a experiência do Programa de Prestação de Serviços à
Comunidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul” de Carmem Maria Craidy e Liana Lemos
Gonçalves, 2005. Os dados mostram que os adolescentes, facilmente responsabilizados pela violência social, são
mais vítimas do que agressores.
34
violentos. Lugares com pouca segurança e pouco policiamento, nos quais as pessoas que não
pertencem a ele são olhadas com desconfiança.
Existe bairro pobre e bairro rico. Aí tem discriminação. Tem lugares que
pobre não entra. No museu, no teatro, numa festa de debutante, de
casamento fino, isto eu não entro. E tem rico que não entra em festa
funk
. Cada lugar tem a sua lei, tem lugares que são fechados, nesses
lugares o cara tem que se cuidar. O que vale é a lei do lugar e tem
lugares que são mais calmos que reina a lei oficial. Nos locais mais
fechados, tem menos contatos, a polícia nem entra. É a lei do lugar que
conta. Nos lugares mais tranqüilos a polícia entra. O nosso bairro é mais
ou menos tranqüilo, mas sempre rola uma treta, tem que se cuidar.
A questão econômica também apareceu como outro fator limitante para a circulação
dos jovens da periferia em determinados locais da cidade, reforçando o olhar estigmatizante
dos moradores de bairros considerados de “nível social mais elevado”, principalmente no que
se refere às roupas usadas, à maneira de ser e de falar dos jovens da periferia. Essa limitação é
vivenciada na prática pela falta de dinheiro para o transporte, pela impossibilidade de comprar
ingressos para assistir a shows ou a eventos juvenis e para a compra de roupas da moda, as
chamadas roupas de grifes, valorizadas por jovens de todas as camadas sociais. Nesse sentido,
Douglas ainda esclarece:
A pessoa vale o que ela tem. Tem que andar na moda, querer se ajeitar,
mas é difícil ter dinheiro. As roupas são caras. Ter dinheiro para sair, é
difícil.
Esta valoração das marcas, que se observa nas roupas e nos objetos ditos do “mundo
jovem”, não está somente no preço, mas no valor simbólico que elas carregam, dando ao
usuário uma sensação de pertencimento a um grupo ou a uma tribo. Este fato não é de difícil
compreensão, pois uma grande parcela da juventude atual vê televisão, aprecia e lê os belos
outdoors sobre moda e comportamento juvenil e olha as capas das revistas. Existe uma
indústria do consumo que atinge todos os níveis da população e que dita normas de bem vestir
e de como se apresentar “adequadamente” na sociedade, alheia às condições socioeconômicas
da maioria dos jovens brasileiros, contribuindo, senão direta, mas indiretamente para a
estigmatização ou a não aceitação destes jovens em determinados espaços, tanto no que se
refere à permanência deles aí quanto na “apresentação” para a seleção a um emprego.
35
De outra parte, nos momentos de diálogo com os jovens, foi surpreendente saber que
nem todas as portas estão fechadas, e que eles encontram brechas neste caminho um tanto
tortuoso que possibilita interagirem com outros grupos em outros espaços, proporcionando
intercâmbios artísticos, de saberes e de lutas possíveis, visando a uma outra concepção de
mundo, mais fraterna, solidária e aberta às diferenças. Frente a este paradoxo -muros/brechas
- nos deparamos com a importância da criação de espaços na cidade onde esses jovens possam
mostrar suas potencialidades e seus talentos nas mais diversas áreas do conhecimento,
contribuindo para que eles tenham acesso aos diversos espaços da cidade, interagindo com
outras comunidades, afastando o fantasma do isolamento.
Douglas com toda sua sensibilidade e aguçada percepção da realidade disse “quem
mora no morro também pode escolher não precisa ir sempre pela cabeça dos outros, pode
procurar os seus caminhos”.
Nessa frase, ele explicita que, apesar de todas as dificuldades
vividas, consegue visualizar brechas nesses muros invisíveis que insistem em dividir a cidade,
compartimentando-a em pedaços, reforçando o conceito já existente de “diversas cidades”
dentro de uma só. O que não seria ruim, caso o critério de diferença entre elas não fosse,
basicamente, o econômico. Nesse sentido, as diversas cidades, as diversas escolas e as
diversas juventudes são predominantemente classificadas pelo poder econômico dos
diferentes grupos sociais.
Durante a pesquisa, pareceu-me que os jovens, mesmo sofrendo as vicissitudes do seu
tempo, sentem-se na obrigação de construir um mundo melhor do que está posto. No entanto,
o desejo de mudança, de entender o que se passa e de construir um mundo de possibilidades
iguais para todos, pode gerar neles sentimentos contraditórios, que podem ir da euforia para a
apatia ou vice-versa, e em alguns momentos, chegar à revolta.
Carlos, 15 anos, ao referir-se ao preço da passagem de ônibus, expressa um tom de
indignação e raiva. Para ele, este é um fator que restringe os seus passos e conseqüentemente
o impede de ter acesso a outros espaços fora do seu bairro e a oportunidades decorrentes deste
trânsito, fechando portas e o excluindo de futuras oportunidades.
O problema dos cursos fora da vila é a passagem, e eu não entendo
porque eles sobem, a gente não pode pagar. Eu não tenho culpa de não
ter passagem. Eu fico com raiva. (CARLOS, 15 anos)
36
Essa raiva contundente frente a uma situação comum vivida pelos jovens da periferia
demonstra consciência frente a uma injustiça social que acaba contribuindo para que eles não
tenham acesso a espaços e oportunidades que poderiam melhorar a vida deles.
Aos pesquisadores, pais, professores e políticos, até então, coube a tarefa de falar
sobre os jovens. Felizmente, nos últimos anos, os jovens aparecem nas pesquisas como
interlocutores dos pesquisadores. Os próprios jovens mostram, através de palavras e ações,
como são, como vivem e como percebem o mundo a sua volta. Essa postura, que traz no seu
bojo uma mudança metodológica e epistemológica na maneira de entender os jovens, permite
que eles explicitem, através da sua palavra e da sua maneira de ser, o anúncio de novos
tempos e de novos espaços a conquistar.
2.3 A CASA, A ESCOLA E A RUA: CENÁRIOS JUVENIS
No transcorrer da pesquisa empírica, a partir da fala dos jovens, três categorias de
análise foram se delineando e são com elas que vamos nos mover para entendermos o que os
jovens têm a nos dizer sobre os espaços que eles percorrem no cotidiano e as práticas sociais
desenvolvidas por eles nesses espaços. Assim, a casa, a escola e a rua se constituíram como
espaços privilegiados, no cotidiano deles, tanto na comunidade onde habitam quanto na
articulação com o conjunto da cidade.
A casa, para os jovens dessa pesquisa, é o local da segurança, do afeto, dos conflitos
internos e do descanso depois de um dia de estudo, trabalho e de agitações. A casa tem
ligação estreita com a família e com a vizinhança. A casa e a família são referências
importantes na vida deles. Espaço privado e, historicamente, de predominância feminina. Em
casa espera-se encontrar a harmonia, uma certa ordem, segurança e o aconchego.
O mundo da casa é o lugar onde as relações predominantes são as de parentesco, de
compadrio e de amizades (DAMATTA, 1991). Universo onde o sujeito se sente um cidadão.
Ali ele tem direitos que em outros espaços podem lhe ser negados. Dentro da casa, de sua rede
37
de parentesco e de amizade, ele é um ser dividido e relacional cuja existência social se
legitima pelos elos que mantém com outras pessoas.
Moro nesta casa porque sou filho de X e tenho o direito de usar dos recursos
sociais ali alocados porque sou membro da família Y. Não sou eu como
indivíduo que formo a família, mas é a família e as relações que se fazem
por meio dela que me legitimam como membro daquele espaço social.
(DAMATTA, 1991, p. 99)
DaMatta (1991) esclarece ainda que a categoria casa somente pode ser definida,
ideologicamente, quando em contraste ou em oposição a outros espaços e domínios. Assim, as
reflexões e análises sobre o espaço da casa só teriam sentido quando em oposição ao mundo
exterior, ao universo da rua. Dessa maneira, a casa e a família que a habita não poderiam ser
entendidas somente no seu espaço geográfico delimitado ou no estudo de sua árvore
genealógica, mas percebidas pelos seus contrastes, complementaridades e oposições.
Assim, em contraste com a casa, a rua é o lugar do movimento, dos prazeres, das
transgressões, dos vícios, dos medos, e do aprender a se “virar”. É o espaço onde se aprende
desde pequeno que cada um tem que se virar sozinho frente às leis do mundo e da sociedade,
com todos os deveres e pouquíssimos direitos. Espaço público, mais afeito aos meninos do
que às meninas. Na rua, eles aprendem a brigar, a namorar nas esquinas, a jogar futebol e a
brincar livremente. Circulam por esse espaço com mais autoridade do que elas.
Entretanto, para as meninas, mesmo que alguns espaços externos e horários lhes sejam
negados, a rua também significa liberdade. Estar na rua é não cuidar dos irmãos, não fazer
comida, não limpar a casa. Da mesma forma, como no caso dos meninos, é o espaço de
aprender as coisas da vida, de transgredir, de namorar escondido, de ajudar as amigas a
ficarem com os guris, de passear com as colegas, muitas vezes, em escapadelas, entre aquele
tempinho que sobra entre a saída da escola e a volta para a casa ou aproveitando as saídas
mais cedo do espaço escolar.
Durante a pesquisa, foi possível perceber que as meninas, em primeiro lugar, realizam
as tarefas domésticas, para depois poderem sair e sempre com hora marcada para a volta. Os
meninos podem sair ou retornar a casa, a qualquer hora do dia ou da noite. As meninas, em
geral, reúnem-se em casa e depois saem para rua. Eles já encontram os amigos fora de casa,
38
nas esquinas e nas praças. Contudo, a rua, mesmo que mais limitada para as meninas do que
para os meninos, não está fora do alcance delas. Elas vivem intensamente os momentos
permitidos ou furtados deste espaço que a sociedade, ainda no século XXI, tenta privá-las na
sua totalidade, circunscrevendo-as na maior parte do tempo ao espaço da casa, o privado.
De fato, a categoria rua indica basicamente o mundo, com seus imprevistos,
acidentes e paixões, ao passo que a casa remete a um universo controlado,
onde as coisas estão nos seus devidos lugares. Por outro lado, a rua implica
movimento, novidade, ação, ao passo que a casa subentende harmonia e
calma: local de calor (como revela a palavra de origem latina Lar; utilizada
em português para casa) e afeto. E mais, na rua se trabalha, em casa se
descansa. Assim, os grupos sociais que ocupam a casa são radicalmente
diversos daqueles da rua. Na casa, temos associações regidas e formadas
pelo parentesco e relações de sangue; na rua, as relações têm um caráter
indelével de escolha, ou implicam essa possibilidade. (DAMATTA, 1997, p.
91)
Em relação à escola, acredito que esse seja um espaço multidimensional que pode ser
analisado considerando as referências que os jovens têm dos outros dois espaços: a casa e a
rua. Para os jovens, a escola é o local da ordem e da desordem, onde se aprende regras e
também como transgredi-las. A escola, por um lado, é a sala de aula, que, como a família, tem
regras e deveres a cumprir. Por outro, ela é o pátio, o local central do encontro, do
movimento, do correr, do suar, das brigas, do namoro e do convívio mais próximo com os
colegas.
No desenrolar da pesquisa, foi possível perceber que a escola, mais do que um espaço
de aprendizagem didática, é também um espaço sociocultural onde encontramos uma
diversidade de jovens que nela interagem. A escola, para esses jovens, por um lado,
representa a alegria de estar com os colegas e a possibilidade de participar das diversas
atividades sociais e culturais ali desenvolvidas. Por outro lado, a escola representa um
trampolim para levá-los a outros espaços, para conhecer novas pessoas e para conseguir um
bom emprego. Mesmo que a percebem como insuficiente para tal tarefa, eles ainda apostam
na escola como uma via possível de conquistar bens legítimos, abrindo caminhos e
possibilidades de trânsito livre por outros espaços diferentes dos seus, constituindo-se, nesse
sentido, em um passaporte para alçar “vôos” maiores.
Craidy & Gonçalves (2005) explicam que vivemos o paradoxo de uma escolarização
que é indispensável, mas ao mesmo tempo insuficiente. E que os jovens sabem disso, mas
39
sabem também que a escola é o último espaço público ao qual eles podem recorrer, tanto no
caminho de uma profissionalização quanto na possibilidade de socialização e sociabilidades
imediatas. Principalmente, se considerarmos que os pátios das casas, em geral, quando
existentes, são pequenos e que os locais de diversão nos bairros pobres são poucos. A escola
torna-se, para os jovens da periferia, um espaço importante de sociabilidade juvenil.
Sem esquecer que a escola, para as classes populares, talvez seja o único espaço
público de acesso ao conhecimento dito científico e universal. Conhecimentos fundamentais
que junto com outros, ditos do senso comum, são necessários para um bom desenvolvimento
intelectual, e que poderão servir, tanto no momento atual quanto no futuro para que possam
competir em igualdade de condições com outros jovens da mesma classe social ou de outras
classes na busca por um emprego, na entrada em alguma Universidade, na realização de
provas para concorrer a vagas em concursos públicos ou na seleção para cargos no setor
privado.
Para Craidy & Gonçalves (2005), quanto menor a escolaridade maior a possibilidade
de que adolescentes e jovens caiam na delinqüência. Em geral, esses são os mais facilmente
atraídos para o consumo e o tráfico de drogas, a cometer pequenos crimes, o que pode evoluir
para situações mais graves como a privação de liberdade e a morte. Craidy & Gonçalves
explicam que a escola não responde às necessidades e as aspirações juvenis, mas, sem dúvida,
ela funciona como forma de controle social. Entretanto, as autoras alertam para o fato de que:
Seria equivocado simplesmente mantê-los na escola de qualquer forma e
sem motivação, mas faz-se necessário criar as condições para que essa
motivação surja, o que poderia ser conseguido através de transformações
profundas na escola e também nas condições para que os adolescentes
possam freqüentá-la e dela usufruírem. (CRAIDY & GONÇALVES, 2005,
p. 120)
Na fala dos jovens dessa pesquisa, a escola ainda é o depositário de muitas esperanças.
Para eles, vários dos seus sonhos terão alguma chance de se realizarem caso consigam
estudar, fazer um curso técnico ou entrarem em uma Universidade. Sonhos, em geral,
perseguidos fora da comunidade. Não que todos tenham o desejo de abandonar a vila, mas
sair do cotidiano dela para fazer uma faculdade, conseguir um bom emprego para obter uma
vida melhor para eles e para os seus familiares. O desejo de ajudar a família, principalmente a
40
mãe, sempre esteve presente na fala dos jovens. Comprar uma casa boa ou um apartamento
confortável para reunir toda a família é um desejo de muitos.
2.3.1 Os Espaços e os Tempos da Casa e da Rua
Roberto DaMatta (1991) explica que a casa e a rua são categorias sociológicas que,
para os brasileiros, não designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas
mensuráveis, mas entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de
positividade e domínios culturais institucionalizados. Categorias capazes de despertar
emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas.
Especificando um pouco mais, ele faz uma divisão entre os espaços e os tempos da
casa e da rua. Os tempos e os espaços da casa são os internos, mais lentos, mais previsíveis,
dedicados à família e predominantemente femininos, enquanto os da rua são externos,
acelerados, de difícil previsibilidade e historicamente reconhecidos como espaços legítimos
dos homens. Para DaMatta (1991), o código da casa e da família é avesso à mudança, ao
individualismo, à economia, enquanto que o da rua está aberto ao legalismo jurídico, ao
mercado e ao progresso individualista.
Na sociedade brasileira, ainda é presente a imagem do espaço da rua, como um espaço
de roubos, de tragédias e desavenças, lugar de “qualquer um”. DaMatta (1991) recorda que
nada é mais dramático para alguém “de boa família” ser tratado na rua como um “Zé-ninguém
sem eira nem beira” ou um rapaz ser tomado como um moleque de rua ou uma moça ser vista
como “uma mulher da vida”. Nada é mais triste para um cidadão do que se imaginar tendo um
desmaio em plena rua ou um ataque do coração, perdendo o controle sobre o seu próprio
corpo longe de casa. Para ele, tudo isso revela o quanto o espaço da rua pode estar associado
aos medos e às inseguranças.
Assim, à primeira vista, é difícil pensarmos em uma conexão entre estes espaços,
considerando que possuem códigos e lógicas diferenciadas. Entretanto, o autor esclarece que
as duas categorias são complementares, pois não se pode falar em casa, sem mencionar o seu
espaço gêmeo a rua, apesar da complexidade do tema quando a oposição casa/rua é colocada.
Assim posto, a casa e a rua se reproduziriam mutuamente, visto que existem espaços na rua
41
que podem ser fechados ou apropriados por um grupo ou uma categoria social fazendo
daquele espaço a sua “casa” ou o seu “ponto”.
A rua pode ter locais ocupados permanentemente por categorias que ali
‘vivem’ como se ‘estivessem em casa’, como dizemos em linguagem
corrente. Não preciso acentuar que na rua devem viver os malandros, os
meliantes, os pilantras e os marginais em geral – ainda que esses
personagens em casa possam ser seres humanos decentes e até bons pais de
família. Do mesmo modo, a rua é local de indesejável individualismo, de
luta e de malandragem. Zona onde cada um deve zelar por si, enquanto que
deus olha por todos, conforme diz o ditado tantas vezes citado em situações
nas quais não se pode mais observar as normas da casa e da família.
(DAMATTA, 1991, p. 61)
Craidy (1998) também entende que os que vivem na rua redefinem este espaço,
erguendo paredes invisíveis onde se daria a “partilha” desses locais, subvertendo a ordem e
privatizando o que seria público a ponto de realizar na rua os atos mais íntimos, como as
necessidades fisiológicas, o banho, o sono, entre outros.
DaMatta (1991) entende que tanto o espaço da rua tem espaços de moradia, quanto o
da casa tem seus espaços de rua ou como ele mesmo chamou espaços arruados. As janelas, as
varandas, as salas de visita, os quintais fariam as pontes entre o interior e o exterior dos
lugares ocupados.
Magnani (2005) também fala de espaços que nos oferecem experiências da rua, que
não são a rua em si. Espaços internos existentes em meio ao caos urbano que dão a
sociabilidade que se espera encontrar na rua ou que antigamente ali era encontrada. O
shopping center, as galerias, algumas lojas que promovem encontros, livrarias onde as
pessoas compram livros e tomam café são alguns exemplos.
Talvez se descubra, por exemplo, que para determinados grupos e faixas
etárias e em determinados horários seja o espaço do shopping-center que
ofereça a experiência da rua; para outros, recantos do centro como galerias e
imediações de certas lojas constituem o local de encontro, troca e
reconhecimento; na periferia, um salão de baile nos fins de semana ou a
padaria no final do dia são pontos de aglutinação; às vezes, um espaço é
hostil ou indiferente durante o dia, mas acolhedor à noite. (MAGNANI,
2005, p. 3)
42
2.3.2 A Escola, a Casa e a Rua: Espaços Imbricados
Em se tratando de escola, acredito que seja possível encontrar espaços arruados
(DAMATTA, 1991) e também espaços que chamarei aqui de domiciliados no espaço escolar.
Nessa perspectiva, andar pelos corredores da escola ou da casa seria como percorrer as ruas
de uma cidade. As portas e janelas seriam as pontes de acesso ao externo, que conduziriam à
rua, e os pátios e quintais seriam, pensando em uma cidade, as praças e os recantos.
Na escola, os corredores, o pátio, os banheiros e as escadas são espaços de circulação
que podem fornecer experiências encontradas na rua, sem sair dos domínios do privado. A
sala de aula, a biblioteca, o refeitório, os locais de direção são espaços centrados na ordem, na
organização e no seu caráter provedor, lógicas encontradas no espaço da casa. Espaços
fechados onde cada um teria seu papel e local definido.
Ficar a maior parte do tempo sentado na sala de aula, fazer silêncio na biblioteca,
portar-se corretamente à mesa no refeitório são atitudes que se espera encontrar em ambientes
onde existam normas de convivência, como a escola e a casa. Isto pode ser observado, quando
comumente ouvimos os professores dizerem:
Hoje, temos que ensinar tudo aos alunos, a falar bem, a sentar
corretamente, a comer com bons modos, antigamente isso se aprendia
primeiro em casa.
No decorrer da pesquisa empírica, foi possível perceber a existência de redes de
sociabilidade, que perpassam a casa, a escola e a rua, que inserem esses jovens, mesmo que
precariamente, nos mais diversos espaços da cidade permitindo o desenvolvimento de uma
multiplicidade de práticas sociais, a descoberta de novos trajetos e a possibilidade de que
novas relações se estabeleçam, apesar das muitas dificuldades encontradas no caminho de
cada um deles. No convívio com os jovens, pude perceber que eles não estão excluídos de
todas as possibilidades de inserção no mundo da cultura, da arte, do lazer e do trabalho.
Conhecer os espaços que esses jovens percorrem no seu cotidiano e as práticas sociais
que eles desenvolvem nesses espaços teve também por objetivo saber, a partir das suas falas,
quem são esses jovens, como vivem, a importância de cada espaço na vida deles e como as
43
suas práticas interferem nas relações sociais que eles estabelecem nos diversos espaços da
cidade.
44
3 CONDIÇÃO E CULTURA JUVENIL: CONTEMPLANDO TEMPOS E ESPAÇOS
Porque existe “uma questão juvenil”? De onde vem o interesse para estudar
os jovens? A resposta, em termos de sociologia do conhecimento, é
relativamente simples: porque os jovens são atores de conflitos. Esta é razão
principal pela qual nos interrogamos sobre a condição juvenil. (MELUCCI,
2001, p. 100)
Fazer uma abordagem histórica acerca da categoria jovem não tem a pretensão de
dizer como eram ou viveram todos os jovens em cada época estudada. Ao analisarmos a
categoria ao longo do tempo, nas diferentes sociedades, observamos que os jovens
manifestam-se de maneira diferente conforme a cultura do seu tempo, a de seus antepassados,
as relações pessoais que estabelecem, a posição social e econômica de cada um, entre outros
fatores. Essa diversidade poderá ser encontrada na juventude de uma mesma época e na
comparação entre épocas diferentes. A complexidade da categoria nos remete ao estudo não
somente de uma juventude, mas de várias juventudes a serem consideradas.
Nessa perspectiva, temos que considerar que, na maior parte da literatura oficial, os
jovens foram representados pelo sexo masculino, branco, ocidental e de classe social
privilegiada. Este dado importante deverá nos acompanhar por todo o capítulo, para que
tenhamos consciência de que milhões de vozes juvenis que não tiveram oportunidade de
expressão e de deixar marcas visíveis de sua passagem nos diferentes tempos e espaços, aqui
estarão silenciadas.
3.1 JOVENS GREGOS E ROMANOS: PODER E CULTURA
Ao estudarmos a civilização grega, a literatura nos diz que entre os jovens existia uma
relação de intensa sociabilidade, tão importante que substituía até os laços de sangue. Os
jovens eram reunidos, em geral, sob o comando de um chefe. O regime de treinamento
consistia em atividades como a caça, a corrida e os exercícios físicos que revelavam tanto
suas capacidades pessoais quanto suas aptidões coletivas (SCHNAPP, 1996).
45
Essas práticas sociais faziam parte de uma etapa importante na vida deles. O corpo dos
jovens estava no centro das preocupações da cidade. O serviço militar para eles era um
momento de aprendizagem complexa e de preparação para a vida coletiva. A caça não se
reduzia somente à perseguição ao animal, mas exaltava a bravura e a destreza do caçador. Era
uma questão de estilo e de boa educação. Os exercícios físicos, a caça e os treinamentos
militares desempenhavam papel decisivo nesse período de formação.
Neil Postman (1999) diz que os gregos eram apaixonados pela educação e que o maior
filósofo ateniense, Platão, escreveu intensamente sobre como promover a educação dos jovens
e como ensinar a eles a virtude e a coragem. O autor esclarece que não parece haver dúvida de
que os gregos inventaram a idéia de escola. A palavra que usavam para designar escola era
“ócio”, pois a crença ateniense supunha que no ócio uma pessoa civilizada gastava
naturalmente o seu tempo pensando e aprendendo.
Os espartanos também fundaram escolas e sabe-se que meninos de sete anos eram
matriculados em escolas onde faziam exercícios, brincavam e aprendiam um pouco de leitura
e escrita, o suficiente para que isto lhes fosse útil. Entretanto, o maior número delas foi de
iniciativa ateniense, disseminando a cultura grega por todo o mundo.
Havia ginásios, colégios de efebos, escolas de retórica, e até escolas
elementares, em que eram ensinadas leitura e aritmética. E embora as idades
dos jovens estudantes – digamos, na escola elementar – fossem mais
avançadas do que poderíamos esperar (muitos meninos gregos só aprendiam
a ler na adolescência), onde quer que haja escolas, há consciência, em algum
nível, das peculiaridades dos jovens. (POSTMAN, 1999, p. 21)
Percebe-se, nesta época, um sistema de vida em sociedade que enaltece os valores
masculinos, deixando às mulheres somente os papéis privados, de mães, esposas e filhas. Não
lhes era permitida a participação nos jogos do estádio (exceto em Esparta). Entretanto, muitas
eram poetisas, musicistas, dançarinas e, às vezes, algumas se apresentavam como nadadoras e
ginastas. O papel da mulher estava bem definido, ela não deveria ameaçar o mundo
masculino, pois isto poderia acarretar um desequilíbrio na sociedade.
46
A diferença na representação masculina e feminina, tanto no que diz respeito à
juventude ou à outra classe de idade, é bem definida nas diferentes civilizações. É possível
perceber que os espaços, os papéis e até mesmo o tempo estão delimitados ou aprisionados a
estas representações. No que se refere ao universo feminino, essas representações podem se
constituir em ações ou convenções discriminatórias, segregadoras e cerceadoras de um livre
agir e pensar.
Em Roma, as mulheres também sofriam com as condições que lhes eram impostas. Ao
contrário dos homens, segundo Fraschetti (1996), elas não eram definidas pela idade, mas
pela condição física ou social: fisicamente virgenes, antes do casamento; socialmente uxores,
depois do matrimônio; matronae se haviam tido filhos e com a designação genérica de anus,
para a velhice. A jovem romana até casar-se permanecia sob o poder do pai, dos irmãos e,
após o casamento, sob o jugo do marido, sem jamais alcançar a emancipação plena.
Em se tratando do universo masculino, a imagem do jovem romano (FRASCHETTI,
1996) estava sempre ligada às caçadas, à esgrima, à equitação e à caça às feras nas arenas,
onde os jovens participavam como combatentes. Em Roma, a adolescência ía dos 15 aos 30
anos e a juventude dos 30 aos 45. Este prolongamento, tanto da adolescência quanto da
juventude, devia-se à instituição jurídica, tipicamente romana, do patria potestas, o pátrio
poder, onde os pais tinham sobre os filhos direito de vida e de morte.
Este direito lhes dava total controle sobre os filhos em questões de herança, de
sucessão e de casamento. Não se deixava a juventude facilmente. A autoridade paterna em
muitos casos era exercida de forma brutal, podendo o pai atirar o filho desobediente em um
hospital ou em um reformatório (GALLAND, 1997).
3.2 IDADE MÉDIA: OS JOVENS ENTRE O AMOR E A VALENTIA
Na literatura da Idade Média, o jovem é descrito como corajoso ou cortês, mesmo que
na vida real não fosse bem assim (MARCHELLO-NIZIA, 1996). O personagem principal é
sempre do sexo masculino e da nobreza. A imagem do homem está sempre ligada à valentia e
à sabedoria.
47
Entre os séculos XI e XVI, há uma predominância literária no que diz respeito ao amor
e à proeza: a cavalaria e a cortesia. Dois mitos fundadores da cultura ocidental. A nobreza é
uma questão de nascimento, e a cavalaria é uma atividade militar e judiciária. Em um
romance, por volta de 1230, “Roman de la Rose”, aparece pela primeira vez a idade de 20
anos, como designação da categoria jovem.
A cavalaria aparece como um espaço de jovens nobres, representando o poder e a
guerra, e em contrapartida, a cortesia aparece representando o amor e a cultura. Em relação à
mulher, fala-se em “sincera, bela, sensata e elegante”. O amor cortês é cavalheiresco,
associado à coragem e à bravura. Morrer de forma exemplar e se possível estética, em favor
da sociedade ou para assegurar a sobrevivência do grupo, parece ser o destino dos jovens.
Entretanto, o jovem, como a mulher, era objeto de medo e de cuidados. Embora de
maneira diversa, ambos são uma ameaça. Às mulheres são destinados os ensinamentos
domésticos e sobre como transitar adequadamente na sociedade. Dizem que os jovens e as
mulheres cedem facilmente às modas indecentes e vergonhosas, e juntos participam de
divertimentos, bailes e festas. Acredita-se que estas duas categorias podem afetar a ordem
social estabelecida, tornando importante a imposição de uma socialização controlada pela
comunidade, evitando assim confusões e desordens.
Pierre Bourdieu (1984) explica que as divisões das idades são arbitrárias, pois não se
conhece bem a fronteira entre a juventude e a velhice, em todas as sociedades. O autor cita a
literatura do século XVI para mostrar que a juventude sempre foi associada a questões de
virilidade e de violência, pois era a maneira de distanciá-los da sabedoria, ou seja, do poder.
Ele acrescenta que, na Idade Média, os limites etários que definiam a condição juvenil eram
objeto de manipulação por parte dos detentores do patrimônio. Era interessante manter a
juventude em um estado de irresponsabilidade, pois de outra maneira os jovens poderiam
pretender a ascensão ao poder. “En fait, la frontière entre jeunesse et vieillesse est dans toutes
les sociétés um enjeu de lutte
10
” (BOURDIEU, 1984, p.143). Para o autor, esta ideologia que
também perpassa a relação entre os sexos e entre as classes tem por objetivo estabelecer o
lugar de cada um na sociedade.
10
Na verdade, a fronteira entre juventude e velhice é em todas as sociedades um desafio (T.A).
48
Nesse contexto, considerando a fragilidade do corpo na infância, e com a chegada da
adolescência, a fragilidade da alma e da razão, acreditava-se na necessidade do limite e do
governo para que a juventude não se entregasse ao mal. A juventude confunde-se com o
tempo do consumo desregrado, dos apetites e dos prazeres. O tempo de espera até que os pais
lhes passem o poder é um tempo de latência e de impaciência, no qual os jovens vivem de um
lado, sob o prisma do luxo, dos jogos e dos amores fáceis e, por outro, nos combates e nas
expedições: “la jeunesse constitue dans la société aristocratique, l’organe d’agression et de
tumulte
11
” (GALLAND, 1997, p. 15).
Dizem que os jovens de todas as classes são atores de turbulências, de violência, de
luxo e prazeres. Mesmo os mais pobres não estão totalmente excluídos dos divertimentos e
das transgressões, pois se organizam em bandos, saem à noite, perambulam pelas ruas,
participam dos jogos. Os jovens de todas as classes infringem as regras cristãs e sociais, são
movidos pela mesma impaciência e pela recusa à ordem estabelecida. Sobre eles pesam a
suspeita e o medo. No final da Idade Média, desenha-se uma imagem perigosa dos jovens.
Sem saber o que fazer e qual a função social dos jovens na sociedade, muitas comunidades
optam pela repressão ou organizações locais de socialização.
Le rôle et la place de la jeunesse sont donc, à la fin du Moyen Âge,
ambiguis: elle est fortement et durablement dépendante de la génération des
pères, mais cette dépendance est d’ordre économique plutôt que moral, et
elle s’exerce plus dans le cadre familial stricto sensu que dans celui de la
cité. La durée de la phase d’établissement ne se justifie pas, comme
aujourd’hui, par les besoins de l’éducation, et tout se passe comme si la
force collective reconnue et admise de la jeunesse était directement
proportionnée à la faiblesse individuelle de ses membres et à la vacuité de
leur rôle fonctionnel
12
. (GALLAND, 1997, p. 17)
Segundo Postman (1999), no mundo medieval, não havia nenhuma concepção de
desenvolvimento infantil, nenhuma concepção de pré-requisitos de aprendizagem seqüencial,
nenhuma concepção de escolarização como preparação para o mundo adulto, como também
não havia nenhum conceito de vergonha, pelo menos como foi entendido no mundo moderno.
11
A juventude constitui, na sociedade aristocrática, o órgão de agressão e de tumulto (T. A).
12
O papel e o lugar da juventude estão ao fim da Idade Média ambíguos: ela estará fortemente e por muito
tempo dependente dos pais, mas esta dependência é mais de ordem econômica que moral, e se exerce mais no
quadro familiar stricto sensu que naquele da cidade. A duração da fase de estabelecimento não se justificava,
como hoje, pela necessidade da educação, e tudo se passava como se a força coletiva reconhecesse e admitisse
na juventude a fragilidade individual de seus membros e a vacuidade de seu papel funcional (T.A).
49
A idéia de vergonha, para o autor, repousaria, em parte, nos segredos que o mundo adulto
conhece, nos seus mistérios, nas suas contradições, violências e tragédias, “cujo conhecimento
não é considerado apropriado para as crianças e cuja revelação indiscriminada é considerada
vergonhosa” (POSTMAN, 1999, p. 29). Para o autor, a falta de alfabetização, a falta do
conceito de educação e a falta do conceito de vergonha são as razões pelas quais o conceito de
infância não existiu no mundo medieval.
Nesse sentido, Ariès (1981) ressalta que no mundo moderno começou uma obsessão
pelos problemas físicos, morais e sexuais das crianças, o que não acontecia na civilização
medieval, pois nessa sociedade assim que a criança era desmamada, ou um pouco além dessa
fase, ela já participava do mundo adulto.
Foucault (2001), quando fala sobre a sexualidade no século XVIII, afirma que uma das
grandes novidades nas técnicas de poder dessa época foi o surgimento da população, como
problema econômico e político. Os governos entendem que as resoluções tomadas não devem
ter como alvo simplesmente os indivíduos, nem mesmo o povo, mas uma população com seus
fenômenos específicos e suas variáveis próprias. Nesse contexto, as taxas de natalidade,
morbidade, fecundidade, expectativa de vida, incidência de doenças, forma de alimentação e
moradia são índices a serem controlados para que haja um mínimo de equilíbrio na sociedade.
Para o autor, no cerne desta problemática está, o sexo. Será preciso analisar e controlar
a taxa de natalidade, a idade certa para a realização dos casamentos, os nascimentos legítimos
e os ilegítimos, a precocidade e a freqüência das relações sexuais, o celibato e as medidas
contraceptivas. Tudo será objeto de análise do governo, pensado e analisado para o bem geral
e da economia política da população.
A partir de então, será necessário regular o sexo através de discursos úteis e públicos.
Surgem as campanhas sistemáticas que, mais do que apelos morais, religiosos ou fiscais,
tentam fazer do comportamento sexual dos casais uma conduta econômica e política. Entre o
Estado e o indivíduo, o sexo tornou-se objeto de disputa pública. Uma série de discursos,
informações, comportamentos, movimentos da vida estão imbuídos desta nova lógica.
Segundo Foucault (2001), progressivamente, os risos alegres, o contato com os adultos
nos jogos e nas danças, que durante muito tempo acompanharam o desenvolvimento das
50
crianças, desaparecem nesses tempos. Nas escolas, os diretores e professores estão em estado
de alerta, tentando cumprir à risca as novas disposições, pelo jogo das punições e
responsabilidades.
O espaço da sala, a forma das mesas, o arranjo dos pátios de recreio, a
distribuição dos dormitórios (com ou sem separação, com ou sem cortina),
os regulamentos elaborados para vigilância do recolhimento do sono, tudo
fala da maneira mais prolixa da sexualidade das crianças. O que se poderia
chamar de discurso interno da instituição. (FOUCAULT, 2001, p. 30)
A sexualidade do colegial, muito mais do que a do jovem em geral, no decorrer do
século XVIII, torna-se um problema público. Os médicos concentram suas orientações nos
diretores e professores das escolas e enviam conselhos às famílias. Os pedagogos elaboram
projetos e os submetem às autoridades locais. Os professores fazem recomendações nas salas
de aula, redigem livros repletos de conselhos médicos e bons exemplos. Uma literatura
recheada de normas, pareceres, advertências e orientações médicas cresce e se dissemina em
torno do colegial e de seu sexo.
Ariès (1981) conta que, no início da Idade Média, a música, a dança e as
representações dramáticas reuniam toda a coletividade e misturavam as idades tanto dos
atores como dos espectadores e que, ao longo dos séculos XVII e XVIII, isto muda. Em nome
de um novo sentimento de infância que se estabelece e de uma nova preocupação, no sentido
de preservar a moralidade infantil, e também de educação, proíbem-se determinados jogos e
recomendam-se outros, classificando-os como bons ou maus.
Segundo o autor, os médicos do século XVIII, inspirados nos antigos “jogos de
exercício”, na ginástica latina dos jesuítas, criaram uma nova técnica de higiene corporal: a
cultura física. No final desse século, os jogos de exercício receberam uma outra justificativa,
de caráter patriótico, através dos quais os rapazes eram preparados para a guerra. Na
realidade, separar as crianças dos adultos, classificar, organizar, corrigir, separar é a meta dos
novos tempos. Ter boas maneiras, ser higiênico, não se misturar, fazer silêncio sobre certos
assuntos, será um meio de determinar o lugar de cada um na sociedade, separando os
indivíduos por classes de idade, social e até racial, se for preciso, para manter a ordem.
51
Entretanto, Foucault (2001) esclarece que nos colégios do século XVIII não se fala
menos sobre sexo, mas ao contrário, fala-se de outra maneira, por outras pessoas e a partir de
novos pontos de vista e para obter determinados efeitos. Na realidade, os discursos deveriam
atingir as crianças e os jovens, de forma racional e útil. Era interessante que os adolescentes
tivessem uma educação sexual e soubessem discursar sobre temas ligados ao sexo, à
procriação, ao nascimento sem constrangimentos e de forma clara e precisa.
Não se deve fazer divisão binária entre o que se diz e o que não se diz; é
preciso tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer, como são
distribuídos os que podem e os que não podem falar, que tipo de discurso é
autorizado ou que forma de discrição é exigida a uns e outros. Não existe um
só, mas muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que apóiam e
atravessam os discursos. (FOUCAULT, 2001, p. 29)
3.3 SÉCULOS XVII E XVIII: A CRIANÇA E O JOVEM GANHAM NOVO STATUS
Até o início do século XVII, percebemos que a criança é vista com indiferença. As
taxas de mortalidade são altas, não estimulando os pais a investirem em afeição e educação
nesse “pequeno adulto” em crescimento. Entretanto, no final deste século, a criança e também
o jovem passam a ser vistos como indivíduos a serem educados. As obras literárias
consagradas à educação surgem e multiplicam-se. A preocupação com a educação, em um
primeiro momento, visa apaziguar a índole e o temperamento juvenis, para, em uma segunda
fase, percorrer ideais de igualdade e de progresso da burguesia. Nessa época, pela primeira
vez, o privilégio do sangue é contestado.
No século XVIII, a ideologia do mérito avança. A educação aristocrática vai dando
lugar a uma educação burguesa. A idéia é formar cidadãos úteis, forjando assim a idéia de
uma educação nacional. Galland (1997) explica que a educação burguesa terá como base a
secularização, para sair da escravidão do pedantismo e da escolástica; a profissionalização,
com o objetivo de formar mestres competentes; a planificação e o enquadramento moral.
Nesse novo contexto, a representação juvenil vai se transformar sensível e lentamente, junto
com o novo ideal educativo da época. A idade das frivolidades, das agressões e dos tumultos
juvenis vai dar lugar à idade do aprender.
52
Ariès (1981) esclarece que, a partir desse século, dois tipos de ensino estão colocados:
um para o povo, e outro para as camadas burguesas e aristocráticas. Por um lado as crianças
foram separadas por idade, e por outro, os ricos foram separados dos pobres. Para o autor, esta
medida teve por objetivo distinguir o que estava confundido e separar o que estava apenas
distinguido, promovendo um novo conceito de sociedade, em que as divisões de classe e
também de espaços substituíam as “promiscuidades” das antigas hierarquias. Para Ariès,
existe um sincronismo entre a classe de idade moderna e a classe social. Ambas teriam
nascido, praticamente, ao mesmo tempo. A primeira, ao fim do século XVIII e, na metade
deste, a burguesia.
A escola única foi substituída por um sistema de ensino duplo, em que cada
ramo correspondia não a uma idade, mas a uma condição social: o liceu ou o
colégio para burgueses (o secundário) e a escola para o povo (o primário).
(ARIÈS, 1981, p. 192)
Nesse e no século seguinte, uma nova mentalidade pedagógica alcançará o seio da
família, com a ascensão da intimidade familiar, e por conseqüência a elaboração de uma
forma moderna de juventude. Inicia-se, então, uma outra relação entre pais e filhos. Fala-se
em amor paternal com objetivos educativos. A criança progressivamente adquire um lugar de
destaque na família e na sociedade. O respeito e a preocupação em protegê-la serão a regra,
para tanto será preciso separá-la do mundo adulto. Passa-se a acreditar que a criança tem
necessidades diferentes e que é essencial educá-la e instruí-la.
Le nouveau père pédagogue doit toujours être “sans colère, sans
emportement, sans passion, sans aigreur”– et l’orienter selon une visée
éducative
13
. (GALLAND, 1997, p. 20)
Esclarecendo um pouco mais essa mudança de comportamento, Ariès (1981) explica
que a casa, onde viviam os ricos até o século XVII, era habitada por muita gente: criados,
aprendizes, parentes, clérigos, auxiliares e viajantes. Eles formavam um verdadeiro grupo
social. A casa grande desempenhava uma função pública, era o lugar de receber amigos,
clientes, parentes e protegidos. Os servidores e os clérigos aí residiam, sem contar que sempre
tinha lugar para os visitantes. Estes últimos não precisavam preocupar-se com a hora da
13
O novo pai pedagogo deve sempre estar sem cólera, sem arrebatamentos, sem paixão, sem aspereza – e
orientar segundo uma visão educativa (T. A).
53
chegada ou da saída. Não havia horário determinado para as refeições. Nas salas podia se
fazer de tudo, comer, dormir, dançar e trabalhar. Entretanto, a partir do século XVII, as
relações sociais e familiares mudam. Os pais, os educadores e os médicos não aceitam mais
essa situação e consideram prejudiciais as visitas fora de hora.
Eles acreditavam que esse estado de coisas impedia um horário regular para a
realização das atividades domésticas, especialmente para as refeições, o que era considerado
por eles prejudicial para o desenvolvimento físico e mental das crianças, estabelecendo assim
elementos para a construção de uma rotina familiar. No final do século XVIII, era indelicado
ir à casa de um amigo ou sócio a qualquer hora do dia ou da noite sem aviso prévio. As
pessoas agora passam a se encontrar em dias e horários marcados. Enviam-se reciprocamente
cartões através dos criados.
No século XVIII, a família começou a manter a sociedade a distancia, a
confiná-la a um espaço limitado, aquém de uma zona cada vez mais extensa
de vida particular. A organização da casa passou a corresponder a essa nova
preocupação de defesa contra o mundo. Era já a casa moderna que
assegurava a independência dos cômodos fazendo-os abrir para um corredor
de acesso. (ARIÈS, 1981, p. 265)
No que se refere à juventude, este é um tempo consagrado, por um lado, à promoção
da juventude como classe de idade e, por outro, é um período de enquadramento moral e
institucional no qual a família limitará as ações dos jovens. Inaugurando assim a forma
moderna do conflito de gerações.
3.4 SÉCULO XIX: A ESCOLA CONSOLIDA-SE COMO ESPAÇO DE APRENDIZAGEM
Boaventura de Sousa Santos (2000) explica que a Modernidade ocidental surge
referendada num ambicioso e revolucionário paradigma sociocultural dominado por uma
dinâmica entre regulação e emancipação social. E acrescenta que, em meados do século XIX,
já consolidada a convergência entre o paradigma da Modernidade e do Capitalismo, esta
dinâmica entra num processo histórico de degradação caracterizado pela gradual e crescente
transformação das energias emancipatórias em energias regulatórias.
54
Nesse contexto, o surgimento de valores de intimidade na esfera privada é
acompanhado por valores utilitaristas na esfera pública, fazendo emergir uma sociedade mais
materialista. A criança passa a ser o centro da família. Os pais começam a se preocupar com
sua educação, visando a uma carreira e a um futuro promissor. Entretanto, Galland (1997)
adverte que a criança popular, nessa época, é relegada ao trabalho precoce e ao
enquadramento social e moral das obras católicas e somente mais tarde às regras do sistema
escolar.
Ariès (1981) complementa a questão ao perguntar até que ponto não houve uma
regressão durante a primeira metade do século XIX, considerando a demanda de mão-de-obra
infantil na indústria têxtil. O trabalho infantil na fábrica mantinha uma característica da
sociedade medieval: a precocidade da passagem para a vida adulta. Para o autor, esse fato está
relacionado com a mudança no tratamento escolar da criança burguesa e da criança do povo.
O autor lembra ainda que na Idade Média o serviço doméstico se confundia com a
aprendizagem. Ele era entendido como uma forma muito comum de educação. A criança
aprendia pela prática e essa prática não parava nos limites de uma profissão, até porque neste
tempo histórico não havia limites entre a profissão e a vida particular. Era através do serviço
doméstico que o mestre transmitia a uma criança, não necessariamente ao seu filho, mas ao
filho de outro, o cabedal de conhecimentos, a experiência e os valores humanos que possuía.
Assim, a educação se fazia na prática e a noção que se tinha de educação tinha uma
amplitude maior do que a conhecida hoje. Ariès (1981) conta que as famílias não
conservavam as próprias crianças em casa. Elas eram enviadas a outras famílias, para que
com essas morassem e aprendessem boas maneiras ou mesmo para que freqüentassem uma
escola para o aprendizado das letras latinas. Muitas dessas crianças passavam longo tempo
sem contato com a família de origem. Esse tipo de aprendizagem era um hábito difundido em
todas as camadas sociais.
Entretanto, a partir do século XVIII, a família e a escola retiram juntas a criança da
sociedade dos adultos. A escola enquadra a criança em normas rígidas e disciplinares e a priva
da liberdade que tinha no convívio com os adultos. Ariès (1981) menciona que até o chicote e
a prisão, correções comuns reservadas aos condenados, eram aplicadas às crianças e jovens
que viviam nos internatos. No entanto, ele nos alerta que esse rigor traduzia um sentimento
55
diferente da antiga indiferença que se tinha pela criança na Idade Média. Um novo conceito
de família, de classe e, como relata o autor, talvez até de um sentimento de raça, se impõe. A
intolerância diante da diversidade e a preocupação com a uniformidade estão postas. Proteger
excessivamente a criança e amar sem limites esse ser em construção é o que dita as normas da
sociedade a partir do século XVIII.
As escolas de caridade do século XVII, fundadas para os pobres, atraíam
também as crianças ricas. Mas a partir do século XVIII, as famílias
burguesas não aceitaram mais essa mistura, e retiraram suas crianças daquilo
que se tornaria um sistema de ensino primário popular, para colocá-las nas
pensões ou nas classes elementares dos colégios, cujo monopólio
conquistaram. (ARIÈS, 1981, p. 278)
Moll (2004, p.102) salienta que a “instituição escolar consolida-se como marco
importante para a modernidade pela força disciplinadora, reguladora e civilizatória que
exerce, sobretudo, em relação aos rebeldes e populares”. Entretanto, a autora esclarece que
essa força não se firmou sem tensionamentos e contradições, pois se de um lado engendrou
uma lógica de enclausuramento, de silenciamentos e de homogeneizações dos saberes, por
outro permitiu ao povo ter acesso aos saberes chamados clássicos ou científicos,
democratizando-os, fazendo da escola um espaço também de acesso a direitos sociais, com
possibilidades de intervenção nesta lógica.
Neste contexto surge a escola e seu projeto cultural civilizatório. O desenvolvimento
econômico e as novas exigências sociais fazem da escola o principal espaço de educação.
Com a ascensão do pensamento cientificista e racionalista e o surgimento das ciências sociais,
o século XX nasce sob a égide de um novo tempo, contribuindo para que uma nova
concepção de escola se estabeleça.
3.4.1 Funções Sociais da Escola
Martuccelli (2000) fala em quatro grandes funções sociais e históricas da escola: a
integração social, a dominação social, a modernização social e a fabricação de indivíduos.
56
A integração social estaria ligada à integração nacional, na qual as sociedades
modernas, socialmente divididas, são integradas pelo viés de uma cultura comum e
constituídas por um conjunto de símbolos e de normas estruturadas. Assim, o papel da escola
seria central no sentido de impor a prática de uma língua comum, de um território carregado
de valor simbólico, estruturado por um conjunto de hábitos e normas comuns e com uma
memória coletiva ligada a uma história também comum. Tudo isso ligado a uma vontade
política e às exigências de uma economia industrial calcada na identidade nacional. A escola
certificaria escolarmente a cultura nacional, alfabetizaria o povo assegurando a transmissão
seletiva de uma língua e de um conjunto de valores patrióticos. A escola, neste sentido,
serviria para transmitir uma cultura única, suporte da integração social.
Em relação à dominação social, o autor alerta que aqui há divergência de idéias entre
os autores que se dedicam ao estudo da escola. Alguns estudiosos da sociologia da educação
contestam o caráter universal e objetivo dos saberes escolares. Para esses, a escola não seria
mais do que um aparelho ideológico do Estado no qual a socialização, via escola, seria
responsável pela manutenção de uma ideologia de classe (ALTHUSSER, 1970). Nesta
perspectiva, a escola refletiria a distribuição do poder na sociedade, favorecendo os alunos das
classes sociais mais elevadas (BERNSTEIN, 1975; FORQUIN, 1989). Outros autores
criticam a suposta neutralidade social (VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D., 1994) da
forma escolar, na qual a escola operaria somente como uma organização específica de saberes
sob a forma de uma sistematização do conjunto dos conhecimentos, instaurando relações
sociais de docilidade e obediência, permitindo, sob a forma de uma autoridade reconhecida,
impor regras impessoais tanto aos professores quanto aos alunos.
Autores como Baudelot & Establet (1971) e Bowles & Gintis (1976) discutem, ainda,
a escola em termos de relações entre os níveis de formação escolar e as funções profissionais,
onde a dinâmica da instituição escolar estaria subordinada àquelas do capitalismo. Neste caso
a autonomia da escola seria colocada à prova, pois ela estaria a serviço das necessidades do
capital.
Martuccelli (2000) lembra também que a principal crítica endereçada à escola estaria
na sua função de legitimação. A escola desenvolveria uma cultura de massa, na qual, através
de um conjunto de mecanismos certificáveis, legitimaria a classe dirigente a selecionar
57
indivíduos de acordo com suas exigências funcionais. Nesse caso os melhores diplomas
estariam nas mãos das classes mais privilegiadas, pois estas teriam mais tempo e dinheiro para
adquiri-los, e o sistema educativo não faria mais que legitimar o poder que as classes
privilegiadas têm em conseguir as melhores ocupações. Assim, a escola refletiria a cultura da
classe dominante rejeitando e desvalorizando as outras culturas provenientes de outros grupos
sociais (BOURDIEU & PASSERON, 1970). Desta maneira, todas as outras culturas se
definiriam em relação a esta cultura considerada legítima. Nesta perspectiva, a escola estaria a
serviço de uma ideologia dominante, o que favoreceria ainda mais as desigualdades sociais
via desigualdades escolares.
Em se tratando do papel da escola na fabricação dos indivíduos, o autor nos diz que
toda a teoria da socialização porta uma concepção determinada dos indivíduos e que existe
uma relação estreita entre a natureza da autoridade moral produzida pela interiorização das
normas e o processo de formação da personalidade dos indivíduos. Esta imbricação
contribuiria para que os sujeitos, através da interiorização das normas, aceitem facilmente os
valores ditados pela sociedade. No que se refere à transmissão destes valores, ele nos diz que
tanto Parsons (1973), e antes dele, Durkheim (1922) deram grande importância à escola e ao
sistema educativo neste aspecto, mas salienta que esta concepção generalizada e fortemente
institucional pode ser interpretada de duas maneiras, uma “encantada” e outra “crítica” e que,
nos dois casos, a socialização é sempre concebida como a interiorização pelo indivíduo de
normas e de esquemas de atitudes comuns à sociedade ou a um grupo determinado. Neste
sentido, o indivíduo seria um “personagem social”, onde a subjetividade e a posição social
apareceriam como duas imagens de uma mesma realidade (DUBAR, 1991).
A outra grande função da escola estaria calcada no seu papel enquanto fator de
modernização social, seu valor viria da expansão do saber como condição maior da
modernização. “L’éducation était entrevue désormais comme um “investissement productif”, et le
“capital humain” comme un atout majeur dans le développement” (MARTUCCELLI, 2000, p. 308)
14
.
Nesta perspectiva, a sociedade
moderna baseada, não mais na economia agrária, entrava na era
industrial, mudando a geografia das cidades, com novas exigências sociais e tendo na
racionalidade e nas explicações científicas o seu suporte máximo. A escola passa então a se
constituir numa necessidade incontestável da modernidade.
14
A educação começava a ser vista a partir de então como um investimento produtivo, e o capital humano como
o trunfo maior do seu desenvolvimento.
58
3.5 SÉCULO XX: A CULTURA RACIONALISTA E CIENTÍFICA TRIUNFA
Na sociedade do século XX, a instituição escolar organizada pelo Estado é pensada na
perspectiva da reprodução de um saber sistemático e científico, no domínio da cultura escrita.
Um novo modelo “emancipador” de sociedade se instaura. A participação efetiva dos
cidadãos é propalada e assumida como necessária. Os alunos vêem na escola a possibilidade
de um futuro melhor.
A escolarização passa a ser encarada pelos trabalhadores como necessária para a sua
organização e inserção no mercado de trabalho. A escola torna-se universal e consolida-se
pelas demandas da modernidade. Uma destas demandas é o racionalismo, através do qual a
sociedade é organizada pela ordem e pelo cientificismo. Engendra-se, assim, um homem que
questiona suas certezas e que procura incessantemente respostas para a sua vida, não mais nos
mitos e tradições, mas nas razões explicitadas pela denominada racionalidade científica.
Para Galland (1997), a cultura científica triunfa introduzindo uma revolução nas
representações da juventude. Pela primeira vez, pensa-se na juventude como um processo,
uma passagem difícil, um momento de crise marcado por apetites sexuais, por sentimentos
contraditórios e na luta por ideais, “s’effectue ce passage et en s’appuyant sur le paradigme
sociologique: la jeunesse devient un processus de socialisation
15
” (GALLAND, 1997, p. 58).
Com o advento da Primeira Guerra Mundial e a transformação nas estruturas
socioeconômicas caracterizadas pelo trabalho nas fábricas, as relações sociais entre os
indivíduos são alteradas. O serviço militar coloca o jovem no mundo dos adultos, exigindo
destes meninos atitudes de homens. Nessa época, antes de ir para o exército, a maioria dos
jovens participava das atividades agrícolas e manufatureiras da família, trabalhava como
empregados domésticos ou nas fábricas, pouquíssimos eram estudantes (LORIGA, 1996).
Após a Primeira Guerra Mundial são feitas as primeiras pesquisas sobre juventude, de
cunho social, visando entender este novo grupamento humano, pela via da pedagogia, da
medicina e principalmente da psicologia. Estes estudos servirão para apresentar,
15
“se efetua essa passagem apoiando-se sobre o paradigma sociológico: a juventude vem a ser um processo de
socialização (T. A).
59
principalmente para a classe burguesa, uma nova fase da vida, a adolescência, uma idade na
qual o indivíduo não é mais criança, nem está pronto para entrar no mundo dos adultos. “Il
faut, dans la classe bourgeoise et dans la partie supérieure des classes moyennes, donner aux
familles des moyens nouveaux de comprendre et de diriger ces adolescents: c’est autour de la
psychologie que va s’organiser la pédagogie
16
” (GALLAND, 1997, p. 39).
Do princípio de uma pedagogia da culpa passa-se, pelo menos no plano ideológico,
para uma pedagogia da confiança e, conseqüentemente, a pedagogia que antes era autoritária
passa a ter um cunho mais participativo. Estas evoluções, no campo intelectual e ideológico,
perpassam o seio familiar encontrando guarida na escola e reconhecendo este lugar como um
local de socialização
17
dos adolescentes. O projeto educativo, nesse contexto, não se limitará à
formação profissional, mas estará atento aos lazeres, aos hábitos alimentares, à sexualidade e
à saúde dos jovens.
Segundo Galland (1996), a juventude, como categoria social, foi construída por
instituições inventadas pelos adultos para enquadrar os jovens ou fazê-los participar dos
desafios do mundo dos adultos. Entretanto, sabemos que a juventude não se apresenta, ao
longo do tempo, como uma categoria passiva ou dominada. Ela procura caminhos próprios e
reage a esta constante necessidade que tem o mundo dos adultos de tentar subordiná-la ou
relegá-la, conforme seus interesses, a um status menor na sociedade.
No período entre as duas grandes guerras mundiais, temos poucos elementos sobre o
modo de vida dos jovens e por isso a dificuldade de saber sobre o sucesso das tentativas de
enquadramento e as reações dos adolescentes nesta época, pois “les chercheurs et les
historiens ont en effet concentré leurs efforts, soit sur le XIX siècle, soit sur la seconde moitié
du XX siècle. Il y a là un vide que la recherche historique devrait combler
18
” (GALLAND,
1996, p. 28).
16
É necessário, dentro da classe burguesa, e nas classes médias altas, dar às famílias os novos meios de
compreender e dirigir os adolescentes. É em torno da psicologia que vai se organizar a pedagogia (T. A).
17
Émile Durkheim, na sua obra Éducation et Sociologie (1922), coloca pela primeira vez, em evidência, a
característica social da educação (GALLAND, 1997). Segundo Durkheim, a educação é a socialização metódica
da nova geração.
18
Os pesquisadores e os historiadores têm concentrado seus esforços, seja sobre o século XIX, seja sobre a
segunda metade do século XX. Existe aí um vazio que a pesquisa histórica deveria preencher (T. A).
60
Durante a Segunda
Guerra Mundial, os jovens serão vistos como objeto de
manipulação pelo mundo adulto. Poderíamos lembrar aqui a maneira como os jovens foram
manipulados por regimes autoritários neste período. Nos governos de Hitler, na Alemanha, e
de Mussolini, na Itália, os jovens foram conclamados a lutarem e a disporem de suas vidas
pelo bem da pátria. Eles foram o grande trunfo publicitário da guerra. A imagem de corajoso,
destemido e salvador da pátria foi dada a eles. Deveriam esquecer tudo, sua família, seus
conceitos morais e éticos, enfim, servirem sem hesitar.
3.5.1 Uma Nova Concepção de Juventude
No pós-guerra, os jovens não representam mais o futuro promissor da sociedade, mas,
ao contrário, são vistos como possíveis desagregadores da ordem social. A juventude será
vista como uma categoria que deverá ser educada sob regras morais rígidas e para o trabalho,
visando preservar o jovem da delinqüência. Para tanto, a escola e a família estarão juntas no
processo de socialização dos jovens.
As normas e os costumes da classe média vão se impor. Pela primeira vez, a juventude
começa a ser vista com preocupação pelo Estado. A etiqueta burguesa, o ensino universitário
e a delinqüência juvenil estão na pauta de discussão quando a temática é juventude. É a partir
destes pressupostos que irá se impor a concepção sociológica da juventude. Galland (1997) e
Cohen (1955) alertam que o discurso sobre a delinqüência vai propor mais efetivamente uma
análise dos diferentes modos de socialização das crianças das classes médias e das crianças
das classes populares, sendo que estas últimas estarão submetidas a um conflito cultural e a
um processo contraditório de socialização familiar e de socialização escolar.
Nos anos que sucederam ao pós-guerra
19
, surge a primeira onda de massificação na
escola, inclusive no Ensino Médio, lócus específico da juventude estudante. Para François
Dubet (1991), esta é uma época na qual se consolidam as expressões de uma sociabilidade e
de uma cultura juvenil marcadas por comportamentos e vestimentas próprias. Uma nova
19
Durante a Segunda Guerra Mundial, a condição demográfica dos países que participaram mais diretamente da
guerra era crítica. Entretanto, ao fim dos anos 60, a realidade é outra. As taxas de natalidade aumentam e o
número de jovens é bem superior aos números anteriores à guerra (HOBSBAWM, 2004).
61
cultura fomentada pela indústria e associada cada vez mais a uma crescente escolarização de
massa. Segundo Galland (1996, p. 32), “la classe d’âge adolescente est définitivament constituée
par le temps scolaire et invente sa culture propre
20
”. Neste período, os jovens irão se confrontar
com uma sociedade adulta que não estará pronta para aceitar este novo ator social, e os novos
enfrentamentos se darão nas classes populares, passando pela burguesia até chegar à
Universidade, com a revolta estudantil nos anos sessenta.
Após a segunda guerra mundial, a população juvenil escolarizada cresce no Brasil. Para
tanto, muitos segmentos populares lutaram por um maior acesso das classes populares à
escola
21
, principalmente pelo ensino secundário. Os jovens viam na escola a possibilidade de
um futuro melhor. Entretanto, esse avanço na escolarização nacional não foi uma dádiva
concedida pelas classes dominantes, ela constituiu-se a partir da mobilização e da luta das
camadas populares. Os pais também se engajam e lutam por novas escolas. A qualificação
técnica e as novas exigências de uma sociedade em transformação fazem com que os
educandos ampliem seu grau de escolarização e conseqüentemente sua consciência crítica.
Esta realidade fará com que os alunos exijam cada vez mais escolas e melhores condições de
vida.
A juventude começa então a aparecer no cenário social de uma forma diferente e ter
um novo papel dentro da sociedade, surgindo assim uma nova categoria social. A indústria e
a mídia estarão atentas a este novo alvo comercial que logo se tornará promissor. Em um
primeiro momento, o modelo cultural adolescente é representado pelos jovens da classe média
e pelos seus hábitos de consumo. A juventude deste meio social adota rapidamente os
modelos standardizados da cultura juvenil oferecidos pela mídia. Galland (1996) esclarece
que o modelo cultural adolescente dos anos cinqüenta e sessenta é caracterizado por novas
20
A classe de idade adolescente é constituída definitivamente pelo tempo escolar e inventa sua própria cultura
(T. A).
21
Paulo Freire, nos primeiros anos da década de 1960, aparece no panorama nacional com o seu inovador
método de alfabetização. Segundo Beisiegel (1992), vários foram os fatores que possibilitaram a criação e a
prática do método Paulo Freire e, sem dúvida, um novo olhar sobre a educação popular no Brasil. Entre eles,
podemos destacar: a ‘emergência das massas urbanas’ e, no final do período, também de alguns contingentes das
‘massas camponesas’; a miséria popular no país subdesenvolvido e as potencialidades revolucionárias inerentes a
esta condição; a atuação das lideranças “populistas” e a política populista em geral; o nacionalismo; a ação social
da Igreja católica e a atividade política de partidos ou agrupamentos revolucionários.
62
formas musicais, pelo jeito próprio de falar e de vestir e pelas novas formas de
reagrupamentos, as bandas.
3.5.2 Entre a Juventude Dourada e a Transviada
No Brasil, segundo Do Carmo (2003), a década de 1950 é um período de grandes
transformações no cenário brasileiro e na forma de pensar dos jovens. A influência da
filosofia existencialista francesa, o movimento dos poetas e escritores da chamada geração
beat e o surgimento do rock and roll americano interferem na postura e nos atos da juventude
brasileira. O rádio e a telenovela também despontam nesse cenário ganhando força e prestígio.
Segundo o autor, na tentativa de contrapor o rigor acadêmico da época, muitos jovens
brasileiros se aprofundavam na filosofia existencialista. Os pais não viam com bons olhos
essa filosofia. Eles não poderiam imaginar seus filhos com trajes em desalinho, com barbas
por fazer, roupas escuras e perambulando pelas ruas e cafés, bebendo, dançando ou recitando
poemas. Essa era a imagem que representava a figura do existencialista. Ser existencialista era
desviar-se do caminho habitual e infringir regras já estabelecidas.
Sartre passou a ser o responsável pelo caráter permissivo, em particular dos
adolescentes atormentados da época. “A vida não tem sentido, Deus está
morto, não existe lei moral, o homem é uma paixão inútil”. Ao falar dessa
maneira, o filósofo insuflava os jovens, os rebeldes e os descontentes. (DO
CARMO, 2003, p. 26)
O movimento poético e literário chamado beat, de inspiração americana, rejeitava os
costumes burgueses, valorizando a espontaneidade, a natureza e a expansão da percepção.
Allen Ginsberg um dos gurus do movimento, fazia uso de alucinógenos para ampliar a
percepção e a sensibilidade. As drogas, o jazz e as religiões orientais faziam parte deste novo
caminho em busca de um mundo menos frio e calculista.
No entanto, se a maneira de protesto dos jovens brasileiros não fosse via
existencialismo, ou via movimento beat, sobrava o rock and roll, como veículo de
transgressão e irreverência juvenil. O rock foi um estilo musical que encantou o público
jovem de imediato. Jovens, sedentos por expressar seu descontentamento e revolta,
63
encontravam no rock uma alternativa. Era um tipo de música que escandalizava os mais
velhos, principalmente pelo jeito irreverente de os jovens dançarem. Rebolando os quadris,
com movimentos alusivos ao ato sexual.
O rock foi mais do que um gênero musical, ele influenciou os jovens na maneira de
vestir, de falar, de cortar os cabelos, enfim, nas atitudes e comportamentos, contribuindo de
uma certa forma para aproximar os jovens de diferentes classes sociais. Elvis Presley com sua
voz sensual, com seu jeito ousado de dançar e cantar quebra definitivamente com os padrões
musicais até então impostos.
Outro fato importante nesse período é a popularidade do rádio. Esse veículo de
comunicação de massa desponta com toda a sua força lançando novos cantores no cenário
nacional. Entre eles, Ângela Maria e Cauby Peixoto. Os concursos de Rainha do Rádio e de
Miss Universo são famosos e muito concorridos. Nessa época, a Rádio Nacional transmite a
radionovela “O Direito de Nascer”, e a televisão apresenta a primeira telenovela (DO
CARMO, 2003; DICK, 2003). As novelas fazem o maior sucesso e emocionam o público com
seus dramas e histórias de amor.
Quantos aos papéis sociais femininos e masculinos, estes estavam bem definidos. Para
a moça da década de 50 estava reservado o papel de futura “rainha do lar” e ao jovem o de
“chefe de família”. As jovens eram separadas em dois tipos, as moças de família e as levianas.
Manter-se virgem até a hora do casamento era a regra número um que uma moça de família
deveria seguir. No tocante aos rapazes, a sociedade da época era mais permissiva. Esses
podiam viver a sua sexualidade com mais liberdade. A eles as aventuras sexuais não só eram
permitidas como incentivadas.
Do Carmo (2003) esclarece também que, nessa época, uma parcela dos jovens da
classe média, a chamada juventude dourada
22
, intranqüilizava mais a cidade do que os
delinqüentes da época. Eles usavam seus automóveis para promover rachas, consumir bebidas
22
Hobsbawn (2004) chama os anos 50 de anos dourados, sobretudo aqueles passados em países
“desenvolvidos”, considerando a prosperidade desses e principalmente se levarmos em conta a situação dos
países antes da Segunda Guerra. A reestruturação do capitalismo e a internacionalização da economia foram
fundamentais nesse sentido. As novidades tecnológicas em aparelhos domésticos e de lazer, como televisão,
geladeira, discos de vinil são as vedetes da década.
64
alcoólicas e para encontrar-se em pontos determinados com o pessoal que conduzia as então
famosas lambretas.
Entretanto, nem todos os jovens tinham automóveis ou lambretas, a grande maioria
divertia-se indo a pé para as festas, para a missa ou para um simples passeio pela praça. O
espaço público era reservado predominantemente às pessoas e não aos carros. Dar uma volta
em torno da praça era o meio mais comum de os jovens se divertirem.
Naqueles tempos, o espaço público estava reservado ao homem, e não ao
automóvel. Em todas as cidades do país, à saída da missa ou durante os
festejos públicos ocorria a prática do “vai-e-vem” (ou footing), que consistia
em caminhadas de um lado para outro da rua ou da praça como forma de a
moçada flertar ou namorar. (DO CARMO, 2003, p. 21)
3.5.3 Os Jovens Ocupam as Ruas: Companheiros na Alegria e na Dor
Edgar Morin (1984) foi um dos precursores no âmbito das pesquisas e das análises
socioculturais dos temas ligados à cultura e à subcultura juvenis. Em seu texto “1963: ‘Salut
les Copains’”, do livro Sociologie (1984), ele explica que a adolescência surge como classe de
idade, em meados do século XX, sob a estimulação permanente do capitalismo do espetáculo
e do imaginário, e que este fenômeno, observado nos mais diferentes países, obedece mais a
um espírito do tempo que às determinações nacionais ou econômicas.
Essa nova classe cercada de valores de consumo, de um individualismo moderno e de
uma homogeneização de gostos e valores, abre as portas para uma cultura de massa.
Entretanto, o autor nos diz que esta classe de idade não é totalmente homogênea, ela apresenta
seus heróis e uma imagem múltipla e complexa de seus constituintes. A juventude apresenta-
se envolvida em uma esfera própria, representada por roupas, maquiagens, instrumentos
musicais, linguagem comum e culto aos ídolos musicais e/ou cinematográficos.
La nouvelle classe adolescente apparaît comme um microcosme de la
société tout entière; elle porte déjà en elle les valeurs de la civilisation en
développement: la consommation, la jouissance, et elle apporte à cette
civilisation sa valeur propre: la jeunesse
23
. (MORIN, 1984, p. 218)
23
A nova classe adolescente aparece como um microcosmo na sociedade do mundo todo; ela carrega consigo
valores da civilização em desenvolvimento: o consumo, o prazer, e traz a esta civilização seu valor próprio: a
juventude (T. A).
65
Nessa mesma época, em plena guerra fria, a Revolução Cubana contribuiu para
propagar ideais revolucionários de igualdade e de justiça para todos. Che Guevara aparece
como um símbolo, principalmente para a juventude estudantil da época, proveniente da classe
média urbana, estudantes dos melhores colégios e Universidades do Brasil. Até hoje Guevara
é um mito para muitos jovens.
No campo cultural, já no final dos anos 50, surge a bossa nova revolucionando o
samba-canção, até então muito escutado com João Gilberto, Tom Jobim, Nara Leão, entre
outros. Nos anos 60, a produção musical brasileira vive um momento rico de inspiração. A
ascensão do rock, a resistência ao golpe militar de 64, o melhor da Música Popular Brasileira
(MPB) cantada nos festivais da Rede Record revolucionam o cenário cultural. No festival de
1967, Caetano Veloso, com a música Alegria, alegria, dá inicio a uma nova ruptura na música
brasileira, um novo movimento musical: o tropicalismo.
A crítica conservadora, no entanto, chocava-se com o fato de Caetano,
atento às novidades, apresentar suas músicas acompanhado de guitarras
elétricas, e o acusava de violar a pureza da MPB. Por outro lado, ao seu
modo e com talento, Chico Buarque de Holanda se consolidava como grande
compositor e intérprete, concorrendo com a canção Roda-viva. (DO
CARMO, 2003, p. 66)
Por outro lado surge, também, nessa década, a jovem guarda, um pouco antes do
movimento hippie e das repercussões funestas da Guerra do Vietnã. Roberto Carlos desponta
como o expoente maior desse gênero musical. A jovem guarda seguia os embalos do rock.
Feitas para dançar e para cantar, as músicas agradavam a garotada. A televisão acolhe o novo
estilo musical e veicula produtos e dita moda de acordo com o gênero musical.
3.5.4 Maio de 68: Os Jovens Protestam
Circundando todos estes movimentos culturais, chegamos ao fim da década com os
eventos de maio de 1968, que floresceram na França e se estenderam para muitos países,
inclusive para o Brasil, com a adesão de muitos jovens e trabalhadores. Esse movimento
reivindicatório e contestatório e, em alguns momentos, violento, mobilizou um grande
66
número de jovens no mundo inteiro. As reivindicações passavam pelas críticas ao sistema
universitário e estendiam-se ao sistema político, social e econômico vigente na época.
Morin (1984) alerta para a ambivalência desta crise e nos diz que um diagnóstico
sobre ela é muito difícil. Ele fala de um fenômeno de vedetização da crise. Paris foi a vedete
em detrimento de outras províncias da França; os estudantes foram as vedetes em detrimento
aos pós-estudantes e outros jovens; os operários em detrimento a outras classes de
trabalhadores e de jovens trabalhadores.
O autor ressalta que a crise tem, na sua radicalidade, a sua importância, pois questiona
a sociedade nas suas raízes, traduzindo os problemas de adaptação-modernização impostos
aos cidadãos. Ele explica que é possível fazer dois diagnósticos da crise, um leve e outro
pesado
24
. Em relação ao diagnóstico leve, considera que a conjunção do movimento estudantil
e do movimento dos trabalhadores assalariados foi um fenômeno mais de conjuntura do que
de conjugação e salienta a divergência de um lado e do outro nas orientações do movimento.
Ele vê o movimento dos trabalhadores como reivindicativo, e o dos estudantes como visando
à reforma universitária.
Em relação ao diagnóstico pesado, ele se fundamentará sobre a desestruturação social,
profunda e rápida, eclodindo em maio de 68, um movimento virulento e dinâmico, o que se
pode interpretar como uma revolta estudantil, considerando a violência dos enfrentamentos
verbais e físicos que aconteceram.
A notre sens le diagnostic léger n’est pas absolument incompatible avec le
diagnostic lourd. Il n’est pas rar e qu’un mouvement de réformes
s’accompagne d’une poussée révolutionnaire, et qu’une poussé
révolutionnaire aboutisse en fait à une réforme. On peut penser que le
mouvement étudiant s’est électrolysé d’une part sur une restructuration
réformatrice des pouvoirs dans l’Université, voire une réforme générale dans
la relation entre jeunesse et âge mût au sein de la société, d’autre part sur
une contestation radicale de cette société
25
. (MORIN, 1984, p. 295)
24
Morin (1984) nos alerta que a maioria dos observadores da crise, e muitos ainda hoje, optam pelo diagnóstico
pesado (T. A).
25
Ao nosso ver o diagnóstico leve não é incompatível com o diagnóstico pesado. Não é raro que um movimento
de reformas seja acompanhado de um impulso revolucionário, e que um impulso revolucionário resulte em uma
reforma. Podemos pensar que o movimento estudantil se inflamou, de uma parte, pela reestruturação
reformadora dos poderes da Universidade, na verdade uma reforma geral na relação entre a juventude e a idade
madura no seio da sociedade, de outra parte sob uma contestação radical da sociedade (T. A).
67
No Brasil, nessa época, os jovens lutavam contra uma ditadura militar e contra a
reforma educacional imposta pelo governo. Era um tempo de medo, insegurança e de muita
revolta contra os atos abusivos da polícia, principalmente contra os jovens engajados na luta
contra o regime autoritário instalado em 1964. Perseguições e mortes foram realizadas em
nome da preservação da ordem pública.
Com os sindicatos amordaçados pelas intervenções e a imposição de apenas
dois partidos políticos – Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e
Movimento Democrático Brasileiro (MDB) - consentidos pelo regime,
foram os estudantes universitários que saíram à frente das manifestações
políticas contra a ditadura militar. (DO CARMO, 2003, p. 82)
Depois dos acontecimentos de 68, temos uma situação de crise no plano ideológico e
no sistema escolar, permeado por uma nova configuração política em muitos países, com ecos
na América do Sul e no Brasil. Todo este cenário causa uma certa nostalgia
26
em relação aos
sonhos e às lutas empreendidas pelos jovens do mundo inteiro, sem falar que cresce a
problemática do papel da juventude como revelador do mal espalhado na sociedade
(MORIN,1984).
3.5.5 O Lema Agora é Paz e Amor
Muitos jovens, no mundo inteiro e também no Brasil, descontentes com o avanço do
capitalismo, contra o consumismo, a cultura oficial permitida, as guerras e as injustiças
sociais optaram por viver uma vida simples, muitas vezes em comunidades alternativas, sem
luxo, imbuídos do lema paz e amor. Era o movimento Hippie que surgia como uma recusa
radical da juventude, basicamente de classes médias urbanas, aos valores morais e éticos da
sociedade vigente. O movimento pregava o amor livre, a recusa aos padrões morais da época,
contra a discriminação racial, a sociedade consumista e o autoritarismo. No Brasil, o grupo
musical Os Novos Baianos, com Gal Costa, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Betânia, é
portador desse novo estilo de vida.
26
Dubet (1991) conta que os anos sessenta começam com o rock e terminam com o sonho da revolução e que os
jovens de hoje parecem querer resgatar aquele tempo através da música e das lembranças dos seus pais. É como
se eles sentissem uma certa nostalgia da experiência juvenil de outra geração, talvez privados de uma parte da
história importante para eles. Segundo o autor, após 1968, o tema da inserção socioeconômica vai suplantar
aquele das culturas e das subculturas juvenis.
68
As mulheres têm mais liberdade sobre o seu próprio corpo. A pílula anticoncepcional é
um aliado importante nessa conquista. Esses avanços feministas já se observavam quando da
participação feminina, embora percentualmente pequena em relação aos homens, nas lutas
contra o regime autoritário instalado, indicando uma mudança significativa no comportamento
e no papel da mulher na nossa sociedade. A mulher já não era vista somente como esposa e
mãe, lentamente ela vai se libertando desses estigmas e alçando espaços até então ocupados
pelos homens.
Um dos desdobramentos da contracultura da década de 60, ocorrido no
Brasil dos 70, foi certa opção pela vida simples, à margem dos valores da
sociedade de consumo. Muitos jovens desejavam sair de casa, ser livres, sem
as cobranças paternas. Ter vida própria, enfim: levar uma vida modesta,
contentar-se com pouco. Bastava o colchão em um canto do piso do quarto,
o som ao lado, revistas e livros empilhados, almofadões em substituição ao
sofá e geladeira quase sempre vazia. (DO CARMO, 2003, p. 118)
3.5.6 Anos De Ditadura Militar: Jovens Silenciados à Força
Dick (2003) nos fala que a década de 1960 foi tão significativa que a de 1970 é
chamada por alguns de “anos de ressaca”. Entretanto, ele alerta que fatos importantes
ocorreram no Brasil e no mundo inteiro nesse período. No Brasil, em plena ditadura militar,
esses eram chamados de “anos de chumbo”. A crise do petróleo abala a economia mundial
com repercussões no cenário econômico brasileiro. O Brasil inicia a década de 1970 com o
lema “Brasil, ame-o ou deixe-o”, e termina com a volta de centenas de exilados políticos. A
liberação dos costumes, iniciada nos anos 60, consolida-se, e novas possibilidades de ruptura
no campo político e social surgem.
Do Carmo (2003) também concorda que muitas das bandeiras levantadas pelos jovens
nos anos 60 são conquistadas na década de 1970. A anistia política, o novo sindicalismo e os
chamados “novos movimentos sociais” entram em cena. Os movimentos ecológicos, de
mulheres, dos negros, dos jovens, das donas de casa são alguns exemplos. A Igreja Católica
também entra nessa batalha, organizando o povo na luta por direitos sociais através das
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que agregam e mobilizam, nos seus quadros, um
grande número de jovens por todo o Brasil.
69
No campo educacional, em plena ditadura militar, permanecem os discursos sobre a
educação utilitária e tecnicista. Há promessas de um maior acesso à escola pública para todos
as camadas da população. Contudo, só as lutas sociais garantiram tal acesso, muitos
movimentos, principalmente de mulheres, se manifestaram no panorama nacional. Elas
lutavam por uma educação mais digna e acessível em todos os níveis (SPOSITO, 1993).
Os jovens, nesse período, nos mais diversos países, passam a viver uma nova fase
marcada pela crise do emprego. O desemprego é uma realidade juvenil agravada,
particularmente, quando se trata de jovens sem diploma ou com baixa escolarização. Freitag
(1989) lembra que a partir da década de 60, e especialmente na década de 70, o ensino
privado no Brasil passa a ser a única via formal de ascensão para as classes assalariadas.
Para que muitos jovens pobres, em pleno período de formação escolar, continuassem
na escola seria necessário que assumissem um trabalho remunerado, e assim tivessem
condições de pagar os estudos, em geral, em cursos noturnos. Dessa maneira, muitos
conseguiam terminar o Ensino Médio, ingressando, em seguida em Universidades pagas.
Segundo Freitag (1989), enquanto o Ensino Superior público se elitizava, o privado se
proletarizava.
À rede pública e diurna foi reservado o aprendizado de ciências exatas de
alto nível qualitativo. Em contrapartida, à rede privada e noturna, foi
reservado o aprendizado na área das humanidades, com baixo nível de
ensino e pesquisa. Nesta constelação se encaixava perfeitamente o modelo
de classes e sua reprodução na etapa do capitalismo modernizador
“antibacharelesco”, característico do regime militar: as classes médias e altas
disputavam entre si as vagas escassas do ensino público de alto nível,
voltado para a ciência e a tecnologia. (FREITAG, 1989, p. 37)
Sob o ponto de vista do comportamento, Dick (2003) recorda que, nos anos 70, a atriz
Leila Diniz vira símbolo da emancipação feminina. O Brasil é tricampeão mundial, sob o
ritmo de “Pra Frente Brasil”. Nos Estados Unidos, Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison
morrem de overdose, e acontece a primeira manifestação homossexual em protesto contra a
discriminação sofrida pelos gays.
70
Raul Seixas e Rita Lee são nomes importantes do rock nacional. Chico Buarque,
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Elis Regina, entre tantos outros, soltam a
voz, driblando a censura até onde podem, para mostrar a triste realidade daqueles tempos de
ditadura. Na metade da década, surge o grupo “Secos e Molhados”, com uma estética nova.
Ney Matogrosso, maquiado, com pouca roupa e dançando sensualmente, cria uma nova
performance nos palcos brasileiros. A cultura juvenil, em especial a urbana, é ampliada.
O cinema ganha novo fôlego com produções nacionais importantes, as revistas em
quadrinhos caem no gosto popular, os skates e os patins invadem as ruas das grandes cidades
e é nessa época que os primeiros fanzines aparecem com o objetivo de divulgar a cultura
juvenil de forma simples e barata, basicamente aquela que não é veiculada pela mídia oficial.
No final da década, surgem em São Paulo, ainda que timidamente, os primeiros grupos punks,
movimento que irá se consolidar no nosso país somente nos anos 80.
Segundo Abramo (1994), a música punk aparece como uma reação ao “estrelismo” do
rock progressivo que reinava nos anos 70, com seus mega-shows, produzidos por esquemas
empresariais fortes e muito dinheiro envolvido. O punk surge então com uma proposta
baseada em uma estética simples. Seus materiais eram rudimentares e suas roupas rasgadas. A
aparência era agressiva e estranha, passando uma imagem de violência. O que nem sempre
correspondia ao perfil daqueles jovens. Segundo a autora, o termo é de origem inglesa e quer
dizer “madeira podre”, mas que serve também para designar coisas sem valor ou pessoas
desqualificadas.
O punk aparece como uma nova subcultura juvenil na Inglaterra no final da década de
1970. Os punks são principalmente jovens das classes trabalhadoras vivendo em uma época
de crise econômica e desemprego sem precedentes. Tentando romper com esta falta de
expectativas e poucas esperanças, o punk agita o cenário cultural e comportamental da
juventude inglesa e aqui no Brasil também.
Para Do Carmo (2003), o punk era uma reação contra o otimismo e uma certa
“alienação” da geração paz e amor, caracterizada pelos hippies. Enquanto os primeiros eram
jovens operários ou filhos de operários, os segundos eram provenientes da classe média.
71
3.5.7 Democratização na Política, na Escola e Crise no Emprego
A expansão da escolarização com o objetivo de democratizar o ensino e de elevar a
taxa de escolarização no Brasil, marca os anos 80 como uma época de redemocratização
27
do
país e de tentativas de diminuição nos índices que indicavam as desigualdades sociais. A
partir desta época o acesso à escola é ampliado e crescem as taxas de escolarização.
Entretanto, esta onda de aceleração e massificação escolar afeta o capital cultural
que estes diplomas possam conter, trazendo no seu bojo um mecanismo seletivo que
acrescentará mais um ponto aos desafios que a juventude terá que enfrentar, dando início a
um processo de estigmatização dos adolescentes de classes populares, tendo, na precariedade
das oportunidades de trabalho e no desencanto de uma possível ascensão social via instituição
escolar, seus pontos principais.
A massificação do ensino no Brasil, em todos os níveis e setores, não foi,
portanto, uma conseqüência de inovações tecnológicas no setor de ensino
que redefiniram o caráter intrínseco da educação e da atitude de consumo da
clientela, mas sim o resultado da pressão exercida por uma demanda que o
Estado, por razões políticas e de “segurança nacional” não quis atender. A
massificação do ensino e a deterioração da qualidade da educação no Brasil
decorrem justamente do fato de ter sido negligenciada toda e qualquer
inovação e abandonados, simultaneamente, os níveis de exigência de
qualidade do ensino tradicional, que na época dos Pioneiros da Educação
Nova (1930) e do debate da LDB de 1961 tinham atingido para o Brasil
moderno apreciáveis padrões de excelência. Daí a “democratização” entre
aspas. (FREITAG, 1989, p. 76)
François Dubet (2000) diz que a massificação democrática, abrindo a escola a todos,
independente da origem social do estudante, teve como pressuposto básico o ideal de
igualdade no interior de uma instituição onde os destinos seriam colocados segundo o mérito
individual. O debate ganha força quando se tenta explicar a distância entre esta norma de
27
Após a queda da ditadura e com o retorno do governo civil, percebe-se através da literatura que as relações no
campo social e político democratizam-se e vários espaços da sociedade abrem-se para as demandas educativas.
Esse processo de abertura e de mobilização da sociedade civil, do parlamento e, conseqüentemente, dos setores
jurídicos e legais serviu para desencadear a promulgação da Constituição Federal de 1988, que instituiu o direito
universal ao Ensino Fundamental público e gratuito independente da idade, no seu artigo 208.
72
“igualdade” e a trajetória escolar dos jovens, pois se sabe que existem diferenças sociais e
culturais na vida deles que colaboram para a produção de novas desigualdades.
Nesta perspectiva, a dificuldade de inserção dos jovens no mercado de trabalho, bem
como o prolongamento do tempo juvenil e conseqüentemente a discussão sobre a entrada
deles na vida adulta, toma corpo nessa época. A dificuldade dos jovens de inserirem-se no
mercado de trabalho e as altas taxas de desemprego atravessarão o tempo chegando aos
nossos dias de forma trágica.
As mudanças introduzidas tanto na organização do processo de trabalho,
quanto no conteúdo do trabalho, ou seja, na natureza das atividades, nas
exigências de qualificação ou requalificação profissional, e que parecem
configurar um novo tipo de trabalho e de trabalhador, se já provocam
situações difíceis para os trabalhadores adultos, no caso dos jovens elas
ganham certa dramaticidade. (MARTINS, 1997, p. 99)
3.5.7.1 As Tribos se Multiplicam
Fala-se que a geração dos anos 80 viveu, no Brasil, a chamada década perdida, com
índices inflacionários altíssimos e retrocesso econômico. Os jovens parecem desencantados
com o novo cenário político e social e com o fim das utopias. Cazuza, quando cantava “meus
heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder. Ideologia eu quero uma pra
viver”
28
, representava bem esse período.
É nessa época que surgem as “tribos”, como os darks, metaleiros, skinheads, grunges,
rastafáris, rappers, entre outras. Cada uma delas com um visual próprio e forma diferenciada
de expressar a sua maneira de ser ou a sua inconformidade com os rumos da sociedade. Para
Maffesoli (1988), as tribos juvenis podem constituir-se tanto em um espaço concreto quanto
em um território simbólico. O que na verdade os une é um sentimento de pertencimento, em
função de uma ética específica e de uma rede de comunicação que os liga.
Pais (2002) explica que, nas tribos juvenis, a subversão aparece estreitamente
associada à idéia de conversão e que fazer parte de uma delas cria nos jovens um sentimento
28
“Ideologia”, música de Frejat e Cazuza.
73
de pertença ao grupo de convívio que garante a eles afirmações identitárias. “Por isso, nesses
grupos encontramos manifestações de resistência à adversidade, mas também vínculos de
sociabilidade e de integração social” (PAIS, 2002, p. 23).
Nessa época, e até hoje, as tribos e a juventude de uma maneira geral são alvo
privilegiado das instituições que promovem a segurança. Não será novidade que eles sejam
vigiados e colocados sob suspeita, até que provem o contrário, principalmente se forem
pobres, negros e “mal-vestidos”.
Eram comuns os atritos entre policiais e jovens (principalmente os mais
pobres, considerados suspeitos até que se aprovasse o contrário), que passam
por constantes revistas ou por uma “geral”. Aliás, é freqüente a população
mais idosa e conservadora afirmar que “tem policia de menos” e muitos
jovens sentirem na pele que “tem policia demais”. Nesse sentido, ela se
torna alvo favorito do ataque de bandas, como símbolo de medo e violência.
Os Titãs lançaram o brado de revolta, já que eles próprios haviam sido
vítimas desse aparato repressivo. (DO CARMO, 2003, p. 154)
Na esfera musical, muitos grupos fazem sucesso no cenário nacional, levando
multidões aos estádios ou shows. Entre elas, Legião Urbana, Titãs, Blitz, RPM, Paralamas do
Sucesso. Em Porto Alegre podemos citar as bandas: Os Engenheiros do Havaí e Nenhum de
Nós e nomes importantes da música na nossa cidade como Nei Lisboa, Nelson Coelho de
Castro, Vítor Ramil, entre outros.
No campo da cultura, o livro de Marcelo Rubens Paiva, “Feliz Ano Velho”, retrata
bem a juventude da classe média da época. De maneira simples e agradável ele retrata as
angústias e alegrias da sua geração. A MTV, canal americano, dedicado a um público jovem,
difunde a música pop e o rock.
No que se refere ao comportamento, surge a AIDS e sua sentença de morte, fazendo
com que jovens e adultos do mundo todo mudem o comportamento sexual. Usar sempre
camisinha nas relações sexuais, não usar drogas injetáveis e manter um parceiro fixo são as
novas regras que todos deverão cumprir. Cazuza, quando canta, “o meu prazer agora é risco
de vida”
29
, mostra bem toda a dramaticidade da doença.
29
“Ideologia”, música de Frejat e Cazuza.
74
No campo da política, não podemos esquecer a mobilização de toda a sociedade pelas
“Diretas Já”, em 1984. A eleição de Tancredo Neves ocorre em 1985. Surge o PT, Partido dos
Trabalhadores, que em 1989, com Luís Inácio da Silva, o Lula (atual Presidente da
República), disputa, em eleição direta, o segundo turno com Fernando Collor de Mello. Collor
sai vitorioso da disputa.
3.5.8 Dos Caras Pintadas ao Rap: O Cenário é a Rua
A década de 1990 inicia, então, com um governo eleito pelo povo. Entretanto o
governo Collor é confuso e tumultuado. Já no início ele confisca a poupança da população,
deixando o povo aturdido e estabelece um novo plano econômico com uma nova moeda
nacional. No decorrer do seu governo, várias acusações de esquemas de corrupção chegam
aos meios de comunicação, denunciando negociatas de toda a ordem, gerando indignação e
revolta em toda a população.
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) é instalada para averiguar as acusações
contra o presidente da república. A CPI tornara públicas inúmeras falcatruas do governo. Em
agosto de 1992, os estudantes saem em protesto. Uma garotada indignada com os escândalos
do governo pinta o rosto, de norte a sul do país, para exigir o impeachment do presidente.
Passeatas por todos os cantos, principalmente nas grandes capitais, reúnem milhares de
pessoas. As manifestações dão resultado, sem violência ou golpe de estado, Fernando Collor
de Mello é afastado do governo.
Os jovens que protestaram contra o governo Collor não são os mesmos das
manifestações de 68 e conseqüentemente a forma de ação é diferente. Alegres, coloridos, eles
saíram às ruas pela ética na política, sem enfrentamento com a polícia e distante dos ideais
revolucionários dos anos sessenta. É interessante destacar que eles foram criticados pela
maneira ruidosa e festiva com que protestaram. Essa geração, chamada de geração coca-cola,
em contraste com a geração revolucionária dos anos 60, foi classificada por muitos de
consumista, alienada e preocupada somente com o prazer imediato.
75
O grupo Legião Urbana já havia expressado com categoria esse brado
de revolta em Geração Coca-Cola. Uma geração cobrada pelos mais
velhos e filha tanto da ditadura militar quanto da revolução nos
costumes que explodiu nas décadas seguintes. Trata-se de uma nova
geração totalmente gestada através do olhar eletrônico da tevê e que
irá cuspir todo o lixo comercial e industrial enlatado dos Estados
Unidos. (DO CARMO, 2003, p. 166)
No cenário musical, o punk-rock reaparece com a banda Nirvana, e com ele o
chamado movimento grunge, na cidade de Seattle, nos Estados Unidos. O líder da banda,
Kurt Cobain, avesso à mídia e a seus ditames, contribui para a estética grunge: calças largas,
tênis, bermuda abaixo do joelho, camisa xadrez e camisetas com estampas dos seus ídolos
preferidos. No Brasil, o movimento também tem espaço. Muitos jovens aderem ao estilo. Por
outro lado, a música sertaneja, o axé e o pagode ganham força no cenário musical e
conquistam o interesse popular.
No entanto, uma outra juventude, até então silenciada, aparece na cena juvenil. É a
juventude que vive na periferia das grandes cidades. Pela primeira vez a periferia fala por si.
Não há mais necessidade de que a classe média fale por ela. Através, primeiro do funk e
depois do RAP (ritmo e poesia), ela se faz ouvir.
O rap, discurso poético e político, gênero musical com raízes no funk, mas diferente
desse por afirmar-se como um som de protesto e de conscientização da juventude pobre e
negra, toma a cena. Os jovens da periferia se reconhecem como cidadãos, dotados de direitos
e soltam a voz. A cultura hip hop, expressa no rap, no break e no grafite ocupa cada dia mais
espaços entre os jovens da periferia. Considerada uma cultura de rua, tem nas classes
populares e no sexo masculino a sua predominância. Entretanto, no final da década,
lentamente essa cultura nascida na periferia vai se impondo e alcançando outras classes
sociais e aumentando o número de meninas que encontram nela um espaço de expressão.
No Brasil, tomando os códigos do rap, os Racionais expõem a vida dos
habitantes da periferia, a violência policial, os pregadores evangélicos, a
vida nas prisões e o tráfico. Os Racionais dizem se recusar a fazer música
para agradar a playboyzada. Falam dos jovens que passam constantes blitze
policiais e que são tachados de “marginais” simplesmente por ser pobres ou
viver nos subúrbios. (DO CARMO, 2003, p. 186)
76
No aspecto socioeconômico, a partir dos anos 1990, novas configurações sociais e
políticas apresentam-se, afetando a entrada dos jovens na vida adulta de uma maneira
ambígua e contraditória. De um lado, temos uma nova onda de acesso a todos à escola, e de
outro, as altas taxas de desemprego aumentam no mundo todo, afetando particularmente a
vida dos jovens. Esta realidade afetará especialmente aqueles de classe popular, pois a família
terá que manter esses jovens por mais tempo sob sua dependência, o que não será tarefa fácil,
pois ela terá dificuldades em manter por muito tempo este jovem somente na categoria
estudante.
A entrada na vida adulta, em sociedades contemporâneas
30
, até poucas décadas atrás,
era entendida sob duas perspectivas: uma escolar e profissional ligada à esfera pública; e a
outra familiar, ligada à vida privada dos jovens. Em relação à primeira, podemos falar na
conclusão dos estudos e no início da vida profissional e a segunda estaria ligada à saída da
casa dos pais e à formação de uma nova família (GALLAND, 1997).
Vulbeau (2002) explica que saímos de uma época na qual o lugar da juventude era
pensado através das instituições e que uma determinada programação fixava de maneira
previsível as posições, os percursos e o destino dos jovens. A juventude era uma página em
branco na qual o adulto redigia e assegurava uma lista de inscrições primárias obrigatórias: na
escola, no serviço militar, na família e no trabalho.
Entretanto, uma outra sociedade emerge na qual os papéis entre as gerações participam
de processos de reciprocidade, e as inscrições são elaboradas dentro de um novo espaço de
socialização. As inscrições, agora, secundárias, se efetuam nos lugares de experimentação,
pouco referendadas, pouco legítimas e pouco avaliadas pelos adultos. Para o autor, a transição
entre estas duas ordens de inscrição social não é nem total nem irreversível.
Para Vulbeau (2002), pensar como se processam essas inscrições é ter acesso a
algumas chaves que nos ajudam a entender as metamorfoses nos quadros de socialização que
são colocados para a juventude e por eles mesmos. O aparecimento e o desenvolvimento de
novos locais de encontros e de manifestação juvenis, como por exemplo, a cultura hip hop,
não podem existir e se manter sem o debate, qualificado e aberto, com os adultos que
30
Nas sociedades primitivas eram os ritos de passagem que proporcionavam a entrada dos jovens na vida adulta.
77
trabalham com eles. A passagem, às vezes, agitada e confusa, da inscrição juvenil no espaço
público não se dá somente através da desorganização, ela é também um sinal de reinvenções e
de novas maneiras de reconstruir um pouco mais do laço social.
Reconhecer a diversidade existente nos grupos juvenis é necessário para que os
adultos possam trabalhar com eles e assim construir laços de amizade, solidariedade e respeito
mútuo. Carrano (2003) esclarece que os jovens não constituem uma classe social homogênea,
mas compõe agregados sociais com características continuamente flutuantes, o que pode ser
entendido se considerarmos a complexidade dos grupos sociais que se formam nas sociedades
do nosso tempo. Ele lembra que a ambigüidade e a indefinição no conceito de jovem são
reflexos dessa situação de complexidade.
O estudo sobre os jovens, nos mais diversos espaços e tempos, aqui apresentado,
serviu de subsídio para percebermos a complexidade da categoria estudada, contribuindo de
maneira significativa para percebemos as diversas juventudes que se constituíram ao longo do
tempo, e o contexto social, cultural e econômico em que viveram. Todo esse estudo permitiu
um entendimento maior sobre a situação socioeconômica vivida pelos jovens dessa pesquisa,
contribuindo também na análise dos espaços e das práticas sociais desenvolvidas por eles.
Espaços e práticas juvenis que atravessam a escola (MOLL, 2000) e que os insere, de forma
diferenciada, na dinâmica da cidade em que vivem.
No capítulo seguinte, apresento a metodologia de pesquisa, especificando e
justificando os métodos utilizados, as escolas e as turmas escolhidas para a realização da
pesquisa empírica e o número de jovens que participaram desse estudo.
78
4 OS CAMINHOS DA PESQUISA – A METODOLOGIA
Por questão de método, jamais oriento diretamente minha atenção ao objeto
que me desafia no processo do conhecimento. Pelo contrário, tomando
distância epistemológica do objeto, faço minha aproximação cercando-o.
‘Tomar distância epistemológica’ significa tomar o objeto em nossas mãos
para conhecê-lo; no “cerco epistemológico”, para melhor me apropriar da
substantividade do objeto, procuro decifrar algumas de suas razões de ser.
No cerco epistemológico não pretendo isolar o objeto para prendê-lo em si;
nessa operação procuro compreender o objeto no interior de suas relações
com outro. (FREIRE, 1995, p. 74)
A pesquisa empírica foi desenvolvida em três escolas públicas da periferia da cidade
de Porto Alegre, tendo como principais sujeitos de pesquisa jovens estudantes, do terceiro
ciclo
31
das Escolas Municipais de Ensino Fundamental Heitor Villa-Lobos e Afonso
Guerreiro Lima, e jovens, do primeiro e do segundo ano, estudantes da Escola Estadual Padre
Rambo. As escolas municipais, ambas localizadas no bairro Lomba do Pinheiro, oferecem
somente Ensino Fundamental e a escola estadual, localizada no bairro Partenon, oferecia,
ainda no ano de 2004, uma turma de 7ª. e uma de 8ª. série
32
, e Ensino Médio completo.
Considerando o pensamento de Paulo Freire, optei por conhecer de perto o cotidiano
de uma escola pública da periferia da cidade de Porto Alegre, pois minha experiência efetiva
com o ensino público e com escolas da periferia se limitava a dois anos de trabalho na rede
pública estadual de ensino, no período de maio de 1992 a outubro de 1993, como professora
do Ensino Fundamental, na disciplina de Ciências Físicas e Biológicas.
Dessa maneira, no início do ano letivo de 2002, dou início à primeira etapa da
pesquisa empírica em uma escola pública municipal na periferia da cidade de Porto Alegre. O
desejo de conhecer mais de perto a realidade de uma escola pública de periferia e o cotidiano
dos jovens que ali estudavam fez com que eu fosse a campo antes que as minhas questões de
pesquisa estivessem bem definidas e que a metodologia estivesse clara.
31
As escolas municipais, na cidade de Porto Alegre, são estruturadas por Ciclos de Formação. O Ensino
Fundamental nessas escolas é organizado em três Ciclos de Formação, tendo cada um a duração de três anos
.
32
Estas são as últimas turmas de Ensino Fundamental. No momento em que os alunos que freqüentam essas
turmas concluírem o curso, a escola passará a oferecer somente Ensino Médio.
79
Durante um ano freqüentei a Escola de Ensino Fundamental Heitor Villa-Lobos, em
média, dois dias por semana. No decorrer deste tempo, participei de várias atividades na
escola. Conversei com professores, alunos, equipe pedagógica, realizei entrevistas,
acompanhei os alunos em atividades na escola, conversei informalmente com eles, desenvolvi
trabalhos em sala de aula, no laboratório de computação, participei de reuniões de
professores, conselhos de classe, entre outras atividades. Enfim, participei ativamente de
várias atividades que estavam sendo desenvolvidas na escola, tentando, conforme Freire
ensinou, fazer um “cerco epistemológico” ao campo estudado.
Para que tenhamos uma idéia do cenário inicial da pesquisa e das múltiplas
motivações que, a cada dia, me incentivavam a conhecer melhor o campo investigado, trago
alguns momentos vividos na Escola Municipal Heitor Villa-Lobos para que possamos
conhecer um pouco do cotidiano de uma escola pública da periferia da cidade de Porto
Alegre.
Entendo que cada escola tem suas particularidades e diferenças, mas acredito também
que, no cotidiano escolar, muitos episódios e experiências vividas em uma escola podem
encontrar eco no cotidiano de outras. Assim, apresento algumas passagens vividas na Escola
Municipal Heitor Villa-Lobos que me instigaram a permanecer nessa escola durante todo o
tempo da pesquisa e a procurar novos caminhos que me levassem a outras escolas, outros
jovens e a outros espaços da cidade.
4.1 CHEGANDO NO VILLA
“Cora Coralina
Coca cocaína
Drogas e rotina
Na triste MAPA
Hoje em dia
Em nossas vidas
33
33
Poesia retirada do FanzineRetratos do VILLA”, Ano IV, 2003, p. 07.
80
Em abril de 2002, faço o primeiro contato com a escola. Ao chegar percebo que várias
crianças e jovens ocupam todo o pátio. O espaço é pequeno para tanta efervescência. Entro no
prédio e procuro pela supervisora. Sou bem recebida e explico o desejo de realizar a pesquisa
na escola.
A alegria do pátio e os vários comentários que ouvi das pessoas que conheciam a
escola incentivaram-me a conhecê-la melhor. Na Secretaria Municipal de Educação (SMED),
em conversa com algumas professoras, elas comentaram: “é uma escola que tem alguns
problemas, estão precisando de ajuda, estão começando um trabalho novo lá, tem problemas na
direção
”.
Em outro momento, conversando com uma professora, que já tinha lecionado na
escola, ela comentou: “eu já trabalhei nas três escolas da Lomba, o Villa é o mais difícil!”.
Nesse primeiro dia, conversei com a direção sobre a possibilidade de acesso a
documentos e registros que contassem a história da escola. Falaram com orgulho da Orquestra
de Flautas, das atividades culturais ali desenvolvidas e do empenho da nova direção em fazer
um trabalho bonito e diferenciado.
Antes de ir embora, quando saio do prédio, vejo um pequeno grupo de meninos
tocando flauta. O clima estava diferente daquele de quando cheguei. Não tinha mais a correria
do intervalo, as brigas, os gritos, o jogo de vôlei na quadra, o pouco espaço. Fiquei olhando.
Após alguns minutos, uma menina aparece e avisa que o som das flautas está muito alto. Pede
para saírem dali. Eles saem, procuram, talvez, um outro lugar, e eu sigo o meu caminho.
Vários pensamentos afloram: o pouco espaço do pátio, a fala das professoras e o som das
flautas.
No
segundo dia, cheguei na escola antes das dez horas. Conversei com a professora
Lídia que faz parte da equipe pedagógica e com a supervisora Raquel, que tinha chegado há
pouco tempo na escola, enviada pela SMED, para “ajudar” a escola. Nesse dia, conversei com
a professora Lídia mais ou menos duas horas, com algumas interrupções. Foi um diálogo rico
com várias trocas de informações e idéias.
Durante a nossa conversa, apareceu um menino avisando que um colega quebrou um
vidro da sala de aula, machucando o olho de um outro colega e que um outro menino pegou
81
os cacos e cortou o braço. A professora Lídia saiu correndo para levar o menino ao Posto de
Saúde. Em seguida, uma funcionária chega e diz que os meninos estão quebrando o banheiro,
um outro professor vai ver o que se passa. Uma outra professora que estava em sala de aula
aparece na sala da direção e avisa que um aluno não está bem, pois não tomou a medicação
diária. As professoras saem para resolverem os problemas.
Enquanto esperava, observei o comportamento de alguns jovens no pátio. Estavam ali,
mais ou menos uns 8 meninos, jogando futebol, e uma roda de 5 meninas conversando,
pareciam ter entre 12 e 15 anos. Não demorou muito e elas desfizeram a roda e começaram a
observar o jogo. Todos na quadra. Os meninos jogavam futebol, um pouco sem regras, quase
uma brincadeira. Um menino apareceu, beijou as meninas no rosto e foi jogar. Pareceu-me
que estar ali, meninos (jogando) e meninas (na roda de conversa, observando o jogo), fazia
parte de um ritual já conhecido e sem regras rígidas. Só sabia quem dele participava.
As meninas olhavam o jogo, cochichavam, sorriam entre si, de novo olhavam o jogo,
às vezes, um menino se aproximava, conversava com uma, sorria para as outras e voltava ao
jogo. Pareceu-me que o futebol era o pretexto para o encontro, para a aproximação de
meninos e meninas.
No final da manhã, foram encaminhados dois adolescentes para a direção. Um dos
meninos tinha dado um soco no olho do colega. Uma professora que estava próxima conta
que o aluno agressor já tinha estado outras vezes ali devido a ocorrências consideradas
indisciplinares. Ela desabafou:
Meu Deus, isto acontece sempre e a gente tem que cuidar para
não achar que é apenas um empurrão, que não é nada, mas é violência e a violência está banalizada,
hoje, eles se soqueiam, atiram cadeira um no outro, eles quebram as coisas, se machucam e
parece que é normal para eles”.
Por parte dos alunos, durante todo o tempo que convivi com eles nessa escola, muitas
foram as reivindicações e reclamações, tanto no campo escolar quanto no social e econômico.
Nas suas falas, eles exigiam mais computadores na escola, um espaço maior para as
atividades de recreação e educação física, uma rádio estudantil, mais oficinas e reclamavam
das poucas oportunidades de acesso à sala de informática, da falta de professores, da violência
escolar, entre outros. Fora do espaço escolar, citavam as poucas oportunidades de lazer no
82
bairro, a dificuldade de inserção no mercado de trabalho e as dificuldades econômicas que
viviam no cotidiano.
Em relação à escola, nessa fase da pesquisa, os jovens se mostraram confiantes,
relacionando, ao menos verbalmente, a escola a palavras como segurança, futuro melhor e
esperança. O que me fez refletir sobre muitos dos chavões
34
que estão na fala de alguns
professores e pesquisadores quando o tema é a relação dos jovens da periferia com a escola. A
partir de alguns depoimentos, ficou registrado também que a escola representa um caminho
possível de inclusão numa sociedade que exclui e subjuga todos aqueles que não estão
munidos de um razoável capital cultural e econômico.
A escola é como um hospital, eles estão cuidando de ti e tu mesmo ti
cuida. Lá fora tu não é nada. Eu vejo uns caras assim fumando, cheirando,
não se cuidam. Se deram mal na vida. (LÚCIO, 15 anos)
Sem a escola a gente não vai pra frente. Não tem emprego, não aprende
nada, não tem profissão. (HENRIQUE, 15 anos)
Na escola a gente aprende a ser alguma coisa na vida. (LEILANE, 16
anos)
Talvez estas falas possam ser consideradas, em uma análise rápida, como respostas e
opiniões que estariam dentro de um contexto de respostas que os alunos dariam sem pensar,
baseadas no senso comum, ditas de uma maneira espontânea, ou que já se encontram prontas
no discurso dos jovens e, assim, não teriam crédito dentro de uma pesquisa séria e confiável.
Entretanto, acredito que essas considerações feitas pelos jovens revelam algo mais do que um
simples falar e pensar sem sentido ou reflexão, trazendo no seu cerne algo que também é real
e positivo: a esperança e uma certa confiança nesse espaço.
Freire (1997, p. 11) lembra que “sem um mínimo de esperança não podemos sequer
começar o embate, mas sem o embate, a esperança, como necessidade ontológica, se
desarvora, se desendereça e se torna desesperança que, às vezes, se alonga em trágico
desespero. Daí a precisão de uma certa educação da esperança”. Boaventura de Souza Santos
(1989) ajuda na reflexão quando nos recorda que não é correto ter do senso comum uma
34
“A escola não tem sentido para eles”; “a escola está longe da realidade destes meninos”; “eles querem
mesmo é trabalhar”, “a escola está em segundo plano”, são alguns dos chavões comumente ouvidos.
83
concepção fixista, pois, dependendo do conjunto das relações sociais de uma sociedade, ele
pode revelar concepções diferentes e afirma que:
Uma sociedade democrática, com desigualdades sociais pouco acentuadas e
com um sistema educativo generalizado e orientado por uma pedagogia de
emancipação e solidariedade por certo produzirá um senso comum diferente
de uma sociedade autoritária, mais desigual e mais ignorante. (SANTOS,
B.S., 1989, p. 38)
Boaventura de Souza Santos (2000) também acredita que o sentimento da esperança é
necessário no estágio atual em que vivemos, no qual as “certezas” que a modernidade tão bem
propalou são colocadas à prova, e as dúvidas se multiplicam. Nesse sentido, o autor alerta
para a importância de recuperarmos esse sentimento, apesar da instabilidade e das incertezas
que permeiam o nosso tempo.
A esperança não reside, pois, num princípio geral que providencia por um
futuro geral. Reside antes na possibilidade de criar campos de
experimentação social onde seja possível resistir localmente às evidências da
inevitabilidade, promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas
em todos os tempos e lugares excepto naqueles em que ocorreram
efectivamente. É este o realismo utópico que preside às iniciativas dos
grupos oprimidos que, num mundo onde parece ter desaparecido a
alternativa, vão construindo, um pouco por toda a parte, alternativas locais
que tornam possível uma vida digna e decente. (SANTOS, B.S., 2000, p. 36)
Assim, durante todo o ano de 2002, convivi com os jovens que freqüentavam o
terceiro ciclo nessa escola. Essa experiência me permitiu conhecer um pouco mais sobre o
cotidiano de uma escola pública urbana e perceber, através da fala deles, reivindicações,
dificuldades e alegrias que fazem parte desse universo.
No início do ano de 2003, volto à escola para retomar as observações. A maioria dos
jovens anteriormente entrevistados tinha terminado o Ensino Fundamental e estava estudando
em outras escolas. Considerando esse fato, achei pertinente localizar alguns deles para
continuarmos o diálogo. Entretanto, na escola não havia dados sobre os egressos, mas,
conversando com alguns alunos que ainda permaneciam na escola, descobri que quatro
alunos, que tinham participado da pesquisa no ano anterior, cursavam o Ensino Médio na
Escola Estadual Padre Rambo.
84
Dessa maneira, a Escola Estadual Padre Rambo de Ensino Médio, localizada no bairro
Partenon
35
, passa a fazer parte da pesquisa com o objetivo de entender um pouco sobre esse
trânsito escolar, de conviver com jovens de uma idade mais avançada e de conhecer um
espaço escolar situado em outro bairro da cidade. A intenção foi ampliar os dados sobre o
cotidiano dos jovens das escolas públicas e não a de fazer um estudo comparativo entre as
duas escolas.
Nessa época, continuei freqüentando a Escola Municipal Heitor Villa-Lobos e
mantendo contato com seis jovens de turmas que tinham participado da pesquisa no ano de
2002, quatro meninas e dois meninos. Os diálogos, na Escola Estadual Padre Rambo, se
deram com quatro jovens, egressos da Escola Heitor Villa-Lobos, três meninos e uma menina.
Durante os encontros, conversávamos sobre o cotidiano deles, como eles percebiam a nova
escola e quais as relações que eles iam construindo naquele novo espaço. Nas primeiras
conversas, também ficaram evidentes as poucas possibilidades de lazer na comunidade onde
vivem e a dificuldade de locomoverem-se para outros espaços da cidade. Os depoimentos dos
jovens já apontavam caminhos a serem trilhados durante todo o desenvolvimento da pesquisa.
A gente fica parado na esquina, jogando bola na frente da casa dos
amigos. A gente joga na nossa rua mesmo, faz uma goleira de tijolo. Tem
o campinho, mas são os guris de cima que usam mais, a gente não se dá
com eles, então a gente joga aqui embaixo, na rua. Eu acho que poderia
ter uma quadra de esportes aqui na vila. (GUSTAVO, 16 anos)
Eu queria ir ao baile sozinha e em outros lugares fora da vila, mas meus
irmãos não deixam, sou muito nova, eu nem peço. (MARIANA, 16 anos)
Nasci aqui. Eu já quis mudar, mas agora tá mais calmo. Tinha muita
violência, tiroteio, rixa entre eles mesmos. (HENRIQUE, 15 anos)
Mantive contato com esses alunos somente até o final de abril de 2003
36
, pois em maio
daquele ano iniciei um estágio de seis meses na Université Paris 8 em Saint Denis, na equipe
de pesquisa “Éducation, Socialisation et Colectivités Locales” (E.S.C.O.L), na França, sob
orientação do Prof. Dr. Bernard Charlot, através do Programa de Doutorado no País com
Estágio no Exterior (PDEE), mantido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES).
35
Ver, no Anexo B, a localização do bairro Partenon e Lomba do Pinheiro no Mapa da Cidade de Porto Alegre.
36
Voltei à escola, somente no final de dezembro para participar da formatura dos alunos.
85
Um dos objetivos do estágio foi conhecer os estudos feitos pela sua equipe de pesquisa
sobre a relação dos jovens com a escola e com o saber, e aprofundar os conhecimentos já
obtidos anteriormente sobre a Teoria da Relação com o Saber, desenvolvida pelo professor
Bernard Charlot. O que foi possível através das orientações recebidas e nos seminários
realizados durante o estágio
37
.
Na época do estágio, o professor Bernard Charlot era diretor da Equipe de Pesquisa
E.S.C.O.L. A equipe desenvolve estudos sobre jovens que estudam e vivem na periferia da
cidade de Paris. Esse estágio contribuiu de maneira significativa para o desenvolvimento
dessa pesquisa, pois as problemáticas vividas pelos jovens que vivem nos banlieues
38
parisienses, em muitos aspectos, se assemelham às nossas.
O professor Bernard Charlot é um pesquisador que conhece bem a realidade brasileira,
e as pesquisas educacionais desenvolvidas no Brasil, o que facilitou o meu trabalho,
proporcionando um ambiente de estudo harmonioso e tranqüilo. Considerando que o
professor Charlot é um autor reconhecido internacionalmente e com muitos livros publicados
na área da educação de jovens, foi possível, a partir de suas indicações, conhecer outros
grupos de pesquisa e autores que trabalham na área da educação de jovens, na França e em
outros países, ampliando o diálogo com autores e pesquisadores que até então eu não
conhecia.
A pesquisa bibliográfica e documental sobre o tema também foi um dos objetivos do
estágio. Neste aspecto, quero salientar a qualidade das bibliotecas encontradas por toda a
cidade
39
, e em especial a biblioteca da Universidade que me acolheu durante o estágio, pois a
biblioteca da Université Paris 8 é ampla, bem organizada e com um acervo grandioso,
37
Seminário de Formação Doutoral « Le Rapport au Savoir et la Methodologie de la Recherche », ministrado
pelos professores Bernard Charlot, Elisabeth Bautier e Jean Yves Rochex, na Université Paris 8. Saint Denis-
França. Durante o estágio, participei de mais dois seminários no Centre de Recherche sur le Brésil Contemporain
(CRBC), na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), em Paris, e assisti a palestras, colóquios e
defesas de teses.
38
Subúrbios.
39
Além da Université Paris 8, em Saint Denis, outras bibliotecas, centros de estudos e Universidades serviram de
locais de estudos. Entre eles podemos citar: a Biblioteca do Centre George Pompidou, a Biblioteca Nacional da
França François Miterrand, a Biblioteca da Cité Internationale Universitaire de Paris, a Biblioteca do Musée du
L’Homme, a Biblioteca Sainte Geneviève, a Biblioteca da Université Paris X em Nanterrre, a Biblioteca da
Université Paris III e a Biblioteca da Université Paris V.
86
possibilitando àqueles que a freqüentam um ótimo local de estudo e a opção de empréstimo
dos livros. O que foi feito em todo o tempo do estágio.
As orientações do professor Bernard Charlot, os seminários realizados, as palestras
assistidas, o contato com outras equipes de pesquisa
40
, as bibliotecas visitadas, o
aperfeiçoamento da língua e os diversos livros adquiridos durante o estágio foram
fundamentais tanto nas reflexões e nos aportes teóricos quanto na escrita para a elaboração da
tese.
De retorno ao país, em novembro de 2003, retomo a escrita do Projeto de Tese e em
dezembro participo da formatura dos alunos da Escola Municipal Heitor Villa-Lobos. Em
abril de 2004, defendo o Projeto de Tese e, conforme as diretrizes tomadas a partir do diálogo
com os professores que constituíram a banca e com a minha orientadora, professora Jaqueline
Moll, volto às duas escolas anteriormente estudadas e agrego a estas uma nova escola para dar
continuidade à pesquisa empírica. Assim, apresento a metodologia usada para a coleta dos
dados que serviram de base para a elaboração da tese.
4.2 APROXIMAÇÃO AO CAMPO ESTUDADO
Ao estudar o homem, devemos estudar tudo aquilo que mais intimamente
lhe diz respeito, ou seja, o domínio que a vida exerce sobre ele.
(MALINOWSKI, 1984, p. 31)
A intenção de ir a campo, na fase inicial da pesquisa, foi de conhecer e me deixar
envolver por um espaço ainda pouco conhecido. Dialogar com os jovens, tentando, através
das suas falas, conhecer o cotidiano deles, tanto dentro quanto fora do espaço escolar, foi o
mais importante naquele momento.
Gilberto Velho (1978) orienta que para conhecer certas áreas ou dimensões de uma
sociedade é necessário um contato, uma vivência durante um período de tempo razoavelmente
40
No final do estágio, no dia 24 de outubro de 2003, apresentei minha pesquisa no Ciclo de Conferências da
Associação dos Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na França (APEB), na Maison du Brésil, na Cité
Internationale Universitaire de Paris, com o objetivo de mostrar um pouco do trabalho desenvolvido durante o
estágio. Foi um momento de diálogo com pesquisadores da área e demais interessados pelo tema.
87
longo, pois existem aspectos de uma cultura ou de uma sociedade que não são explicitados,
que não aparecem à superfície e que exigem um esforço maior, mais detalhado e aprofundado
de observação e empatia.
Concordo com o autor e acredito que esta primeira parte do trabalho investigativo foi
importante, pois o olhar do pesquisador, no primeiro momento, é de um estranho, que aos
poucos vai conhecendo o universo dos pesquisados e descobrindo coisas que vão se
mesclando com o já lido, com a experiência acadêmica do pesquisador, nas conversas com
colegas e orientadores, com as bibliografias que vão surgindo, para que no final da pesquisa
ele tenha um pouco de tudo e de todos que generosamente contribuíram com ela.
Para Malinowski (1984), o pesquisador de campo depende da inspiração que lhe
oferecem os estudos teóricos. Entretanto, ele nos alerta que conhecer bem a teoria científica e
estar a par de suas últimas descobertas não significa que devamos ir a campo sobrecarregados
de idéias preconcebidas. Assim, após um ano de trabalho nas escolas, do estágio no exterior,
dos diálogos com os orientadores, brasileiro e estrangeiro, com colegas de orientação e das
indicações da banca do projeto, apresento a metodologia usada.
4.3 OS ESPAÇOS DA PESQUISA
A primeira etapa da pesquisa, realizada até abril de 2003, junto à Escola Municipal de
Ensino Fundamental Heitor Villa-Lobos e à Escola Estadual Padre Rambo
serviu para que eu
conhecesse melhor o cotidiano de uma escola pública da periferia da cidade de Porto Alegre.
Penso que o trabalho desenvolvido durante todo o ano de 2002 e início de 2003,
principalmente na Escola Municipal Heitor Villa-Lobos, foi de crescimento pessoal e
acadêmico. Acredito ter conseguido estabelecer uma relação de confiança mútua e de troca de
conhecimentos com alunos, professores e direção dessa escola
41
.
41
Em 2003, entreguei à escola um texto contendo as falas dos alunos, dos professores e algumas reflexões sobre
o estudo feito até aquele momento. Várias citações desse texto fizeram parte de um Fanzine elaborado pelos
alunos, com ajuda dos professores, e entregue à comunidade escolar no final do ano. No anexo C podemos ver
fragmentos desse Fanzine.
88
Após a defesa do Projeto de Tese, ficou definido que mais uma escola de Ensino
Fundamental faria parte da pesquisa empírica com o objetivo de ampliar o campo de estudo
nesse nível de escolaridade, trabalhando com um número maior de jovens estudantes de uma
mesma região. Desta maneira, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Afonso Guerreiro
Lima, localizada no bairro Lomba do Pinheiro, entra no cenário.
No primeiro contato com a escola, em abril de 2004, fui bem recebida pela
coordenação e de imediato expliquei o objetivo do meu estudo e o interesse em realizar a
pesquisa empírica na escola. Assim, em maio de 2004, inicio o trabalho nessa escola. Todo o
tempo que permaneci ali, tanto no contato com o pessoal da direção quanto no envolvimento
com os alunos, o ambiente de trabalho e de estudo foi tranqüilo e favorável.
Assim, com as três escolas definidas, dou início à segunda etapa da pesquisa empírica.
O estudo nessas três escolas desenvolveu-se até o final do ano de 2004. Durante todo o ano,
muitos foram os diálogos, as observações, as anotações, as leituras e os encontros com os
jovens nos mais diversos espaços da cidade para que o problema de pesquisa que eu tinha me
proposto a entender pudesse ser trabalhado.
4.4 O PROBLEMA DE PESQUISA
O objetivo principal dessa pesquisa foi conhecer os espaços nos quais os jovens,
estudantes de três escolas públicas, localizadas na periferia da cidade de Porto Alegre,
transitam no seu cotidiano, e quais as práticas sociais desenvolvidas por eles nesses espaços.
Para o desenvolvimento desse estudo, algumas questões de pesquisa foram colocadas
com o objetivo de conhecer esses jovens; o espaço escolar em que eles estudam; o que eles
fazem durante a semana na casa, na escola e na rua; para onde se dirigem nos finais de
semana; como se divertem; do que gostam; do que reclamam; o que acreditam ter direito; o
que aprendem nos mais diversos espaços; e como se relacionam com seus pais, amigos e
professores.
89
QUESTÕES DE PESQUISA
1 Quais os espaços em que os jovens percorrem no seu cotidiano?
2 Existem dificuldades no cotidiano dos jovens que impeçam o trânsito deles pelos
mais diversos espaços da cidade?
3 Os espaços percorridos pelos meninos e meninas são os mesmos?
4 Quais as atividades diárias desenvolvidas pelos jovens durante a semana (de segunda
a sexta-feira) e nos finais de semana?
5 Quais os espaços de sociabilidade identificados no cotidiano dos jovens?
6 Como os jovens percebem a cidade em que vivem?
7 Qual a importância do espaço escolar no cotidiano deles?
8 Quais as práticas sociais que os jovens desenvolvem na família, na escola e nos mais
diversos espaços por onde transitam?
9 As práticas sociais não-escolares desenvolvidas no cotidiano dos jovens, nos mais
diversos espaços da cidade, são reconhecidas pela escola?
4.5 METODOLOGIA DE PESQUISA
Neste estudo, a escolha por diferentes perspectivas metodológicas, abordadas a partir
de um estudo quantitativo e qualitativo do campo estudado, deve-se à complexidade do
universo pesquisado. Assim, para a construção dos dados, a pesquisa agregou instrumentos de
análise de natureza quantitativa e qualitativa utilizando diferentes estratégias para a coleta de
dados. Neste contexto, a aplicação de questionários, a realização de entrevistas semi-
estruturadas, uma escuta sensível e atenta por parte da pesquisadora, idas ao campo
pesquisado e a elaboração de um diário de campo foram fundamentais na realização da
pesquisa empírica. Alguns documentos obtidos em órgãos públicos e em sites da Internet,
contendo dados sobre a educação nacional e local, sobre a realidade social, política e
econômica dos jovens, também fizeram parte da metodologia usada.
90
4.6 A CONSTRUÇÃO DOS DADOS
Em um primeiro momento, após alguns contatos com a direção das escolas, foram
aplicados os questionários aos alunos das três escolas. Nas escolas municipais de Ensino
Fundamental, que são escolas por Ciclos de Formação, os questionários foram aplicados nas
turmas que estão concluindo o terceiro ciclo. Na Escola Heitor Villa-Lobos, foram quatro
turmas, e na Escola Afonso Guerreiro Lima foram seis, todas no turno da manhã. Na Escola
Estadual Padre Rambo de Ensino Médio, os questionários foram aplicados em seis turmas,
sendo duas no turno da manhã, duas no turno da tarde e duas no turno da noite.
No final de cada questionário, foi colocada uma pergunta através da qual o aluno
expressaria a vontade ou não de participar de uma entrevista com a pesquisadora. No
questionário
42
foram colocadas perguntas referentes aos espaços que os jovens ocupam na
cidade; sobre as atividades realizadas por eles no seu cotidiano; sobre as dificuldades que os
impedem de transitar livremente nos diversos espaços da cidade; como eles percebem a
cidade onde vivem; do que gostam e o que exigem para que o bairro em que vivem seja
melhor; sobre os espaços em que eles preferem transitar e nos que eles menos gostam de estar.
Questões sobre renda familiar, escolaridade dos pais, sobre trabalho, participação em grupos
de sociabilidade e sobre o espaço escolar também foram contempladas.
No total das três escolas, 266 alunos responderam ao questionário. Destes 127
aceitaram fazer a entrevista e 139 não aceitaram. Dos 127 que aceitaram, 112 foram
entrevistados. Dos 74 alunos que responderam ao questionário na Escola Municipal Heitor
Villa-Lobos, 33 participaram da entrevista. Na Escola Municipal Afonso Guerreiro Lima, dos
86 alunos que responderam ao questionário, 39 foram entrevistados. Na Escola Estadual
Padre Rambo, 160 alunos responderam ao questionário, 40 foram entrevistados. As
entrevistas foram realizadas nas escolas, e os dias foram combinados com a equipe
pedagógica das mesmas.
Tendo em vista que alguns alunos que aceitaram fazer a entrevista não estavam no dia
marcado, retornei às escolas em outros dias, de comum acordo com os professores
responsáveis para conversar com eles. Mesmo assim, alguns alunos que aceitaram realizar a
42
No Anexo D, podemos ver o questionário.
91
entrevista não puderam ser localizados. Alguns alunos trocaram de escola, outros não foram
localizados para a entrevista por motivos de doença, problemas pessoais, troca de turno e
ausência não justificada.
4.7 OS SUJEITOS DA PESQUISA
Dentre os alunos que participaram da primeira entrevista, 11 jovens foram escolhidos
para continuarem participando da pesquisa. Após uma primeira conversa com esses alunos e a
devida autorização dos pais, por escrito, ficou combinado que teríamos, em média, quatro
encontros com cada um deles. É importante salientar que dos 11 jovens, quatro meninas
foram escolhidas por se constituírem como um “grupo de meninas”. Nesse caso, os encontros
ocorreram em conjunto.
A escolha desses jovens obedeceu a critérios objetivos como: gênero (meninos e
meninas), etnia (diversidade étnica), idade (de 12 a 25 anos) e o fato de terem aceitado
participar da entrevista (opção explicitada no questionário). A diversidade de interesses
musicais, de preferência por espaços da cidade, e de “filiação” ou engajamento, mesmo que
informal, a diferentes espaços e estilos considerados do mundo juvenil foram critérios
subjetivos incorporados no momento da escolha dos jovens.
Para Sposito (1993), no Brasil, segundo dados estatísticos, os adolescentes seriam
aqueles indivíduos entre 12 e 17 anos, e os jovens seriam aqueles entre os 18 e 25 anos.
Entretanto, ela nos alerta que, em países do primeiro mundo, o índice superior é elevado para
29 anos
43
. A autora adota, metodologicamente, a categoria jovem para designar os dois
conjuntos etários. Critério também adotado nessa pesquisa.
43
Na literatura, encontramos várias definições, no que se refere a faixas etárias, para designar a categoria jovem.
Entretanto sabemos que a categoria não pode ser definida somente por esse critério. Sposito (1996) diz que a
definição do que é juventude precisa ser historicizada e tratada sob a ótica relacional. Segundo a autora, ser
considerado jovem depende de circunstâncias históricas determinadas, como é o caso, por exemplo, de algumas
estatísticas de países europeus na atualidade, que consideram jovens os indivíduos que possuem até 29 anos.
Essa elevação na faixa etária decorre, entre outros fatores, principalmente socioeconômicos, do prolongamento
da escolaridade nessas sociedades e no aumento do período de convivência com a família de origem. Martins
(1997, p. 99) complementa: “esclareço que entendo por jovens aqueles que estão compreendidos na faixa etária
que se estende dos 15 aos 25 anos”. O autor ainda cita o critério usado pela OIT, onde a denominação de
adolescentes abrangeria aqueles que têm entre 15 e 19 anos e a de jovem os de 20 a 24 anos”.
92
4.7.1 O Momento Das Escolhas: Uma Tarefa Difícil
Não foi fácil escolher esses jovens, pois o universo juvenil é rico em palavras,
símbolos, histórias, músicas e muitos sonhos. Dentre tantos e tão interessantes foram,
escolhidos 11 jovens para que fosse possível um diálogo mais constante.
Na Escola Heitor Villa-Lobos foram escolhidos dois jovens, Raquel e Erick, ambos
com 15 anos. Estes moram próximos um do outro, mas percorrem caminhos diversos no seu
cotidiano. Cada um vivendo o seu tempo conforme a sua maneira e a dos seus pares. O
cotidiano dinâmico dos dois, a vontade de expor as dificuldades e as alegrias vividas no dia-a-
dia de cada um e uma vontade grande de interferir no mundo, a partir das suas convicções,
foram fundamentais no momento da escolha dos dois, junto com os critérios já citados.
Na Escola Afonso Guerreiro Lima encontrei a mesma dificuldade para escolher os
jovens que ouviria mais densamente. Ouvi-los era sempre muito prazeroso e elucidativo, pois
a cada entrevista conhecia um pouco mais do universo juvenil. Assim, com a mesma atenção
e cuidado analisei as entrevistas feitas nessa escola e fiz novas escolhas. Em um primeiro
momento escolhi três jovens para participarem mais ativamente da pesquisa. Duas meninas e
um menino. Luana de 13 anos, Fernando de 14 anos e Marina de 15.
Marina (15 anos) por ter explicitado no questionário que fazia parte de um “grupo de
meninas”, na primeira entrevista que fiz com ela, perguntei como era esse grupo. Ela disse: “a
gente se encontra pra falar de ‘coisas de menina’, de música, pra conversar e pra fazer trabalhos
da escola”.
São colegas da mesma classe e se reúnem, basicamente, na biblioteca da escola,
criando ali um espaço de encontro e de diálogo permanentes.
Considerando as particularidades do grupo, convidei todas a participarem dos
diálogos. São todas meninas, gostam muito de música, conhecem várias bandas, algumas
escrevem letras de música e pensam em formar uma “banda só de meninas”. Entretanto, não é
somente a música que as une, a escola e a amizade foram fundamentais para a formação do
grupo. Acredito que outro ponto a destacar desse grupo é que elas têm personalidades fortes,
são diferentes na maneira de ser, de se vestir e de falar, saindo um pouco do estereótipo de
alguns grupos no qual todos professam as mesmas idéias e crenças. E mesmo na música, onde
93
todas escolheram o rock como estilo musical preferido, nem todas gostam somente desse tipo
de música.
Dessa maneira, Sabrina de 13 anos e Camila e Beatriz, ambas com 14 anos de idade,
passam a fazer parte dos encontros junto com Marina. As quatro meninas foram ouvidas
sempre em conjunto, às vezes com a ausência de uma delas, mas, na maioria dos encontros,
estavam todas presentes. Considerando que os encontros com elas não foram em número
muito maior do que com os outros jovens, em média 4 para cada jovem, optei por deixar
correr entre elas um caderninho, no qual foi solicitado, sem nenhuma obrigação formal, que
escrevessem um pouco sobre si mesmas, suas dúvidas, medos, sonhos, do que gostavam ou do
que não gostavam, enfim, que escrevessem livremente o que gostariam que eu soubesse sobre
o cotidiano de cada uma delas.
Depois de alguns encontros, elas entregaram-me o caderninho quase cheio de
anotações. Ao pegá-lo surpreendi-me com os textos maravilhosos ali escritos, com desenhos
feitos, com letras de música de autoria delas e de compositores conhecidos do cenário musical
juvenil
44
. Contaram situações, alegres ou tristes, vividas por cada uma delas. Escreveram
sobre namoros, sobre a escola, sobre as dificuldades diárias e sobre os seus sonhos.
Na Escola Estadual Padre Rambo que faz parte da pesquisa desde 2003, após a
aplicação dos questionários e das entrevistas feitas nos três turnos da escola, em 6 turmas,
foram escolhidos três jovens para continuarem participando da pesquisa. Dois meninos e uma
menina. Gustavo de 18 anos, ex-aluno da Escola Villa-Lobos e participante da pesquisa desde
2002, Eduardo de 17 anos e Marta de 16 anos.
Durante todo o tempo em que estive em contato com os jovens as aprendizagens
foram múltiplas. Foram momentos de muita escuta, de descobertas, de conhecer novas
músicas, novos grupos, novas modas, novas gírias e também de esperar algumas horas até o
aluno chegar para o encontro marcado, ter que voltar outro dia devido ao não-
comparecimento ao encontro ou porque na hora marcada ele não podia ficar para a entrevista.
Entretanto, nenhum destes fatos impediu que, juntos, tivéssemos momentos ricos de troca de
44
Durante os diálogos, freqüentemente os jovens falavam de suas produções musicais, de seus desenhos ou de
seus escritos. Nesses momentos, eu sempre perguntava sobre a possibilidade de eles mostrarem esses materiais.
Assim, muitas letras de músicas, desenhos de roupas e desenhos sobre os espaços que eles percorrem no seu
cotidiano foram entregues pelos jovens. Alguns desenhos podem ser vistos no Anexo E.
94
saberes e afetividades, pelo contrário, tentei sempre aprender com todas as experiências
vividas nesse tempo.
4.8 CAMINHOS METODOLÓGICOS
A escolha por diferentes perspectivas metodológicas, baseada num estudo quantitativo
e qualitativo do campo estudado, deve-se à complexidade do universo pesquisado. Neste
sentido, Becker (1992) diz que os princípios gerais encontrados nos livros e artigos sobre
metodologia são uma ajuda, mas, sendo genéricos, não levam em consideração as variações
locais e as peculiaridades de cada campo pesquisado. Sendo assim, ele esclarece que sempre
trabalha desenvolvendo uma metodologia própria à medida que as circunstâncias da pesquisa
exigem. Nessa linha de pensamento, Combessie (2001) explica que a escolha de um método
se inscreve em uma estratégia de pesquisa e que o método é um guia para chegarmos ao
caminho desejado, esclarece muitas coisas, mas não decide a rota.
Becker (1992) esclarece ainda que a metodologia é o estudo do método, e para os
sociólogos presume-se que seja estudar os métodos de como fazer uma pesquisa sociológica,
de como analisar o que pode ser descoberto através deles e o grau de confiabilidade do
conhecimento adquirido, e de tentar aperfeiçoar estes métodos através da investigação
fundamentada e da crítica de suas propriedades.
Compreendendo a complexidade do estudo e o grande número de alunos que fariam
parte da pesquisa, desde o início do trabalho achei pertinente ter um diário de campo para que,
principalmente, as impressões e os pequenos detalhes não se perdessem durante todo o tempo
da pesquisa. Para Winkin (1998), o diário de campo tem três funções. A primeira seria a
função catártica, pois ele será o lugar do corpo-a-corpo consigo mesmo, ante o mundo social
estudado. A segunda função é empírica, pois nele será anotado tudo o que chamar a atenção
do pesquisador durante as sessões de observação e a terceira função é reflexiva e analítica.
Sobre a importância do diário de campo, o autor acrescenta:
Deve-se fazer sempre o diário; o que se deve fazer às vezes: fotografias;
gostaria de dizer por fim uma palavra sobre o que, a meu ver, não se deve
fazer nunca: Observação escondida. Tentar ‘esconder-se’ para melhor ver.
Isso não funciona. Não se brinca com as pessoas. (
WINKIN, 1998, p. 140)
95
Mills (1965) lembra que muitos pesquisadores adotam o diário, pois a necessidade de
uma reflexão sistemática exige que se mantenha um e que nele se unam a experiência pessoal
e as atividades profissionais do pesquisador, bem como os estudos em elaboração e os estudos
já planejados. O diário servirá também como controle para evitar repetições de trabalho e
estimulará a captura dos pensamentos marginais e as várias idéias que podem ser subprodutos
da vida diária, trechos de conversa ouvidos na rua ou, ainda, sonhos.
Malinowski (1984) complementa a idéia quando afirma que o trabalho de coleta e
registro de impressões deve ser feito desde o início, ou seja, desde os primeiros contatos,
porque existem certos fatos que impressionam como novidade, mas que deixam de ser
notados à medida que se tornam familiares.
Os relatos orais, provenientes de conversas individuais ou em grupos, de papos ou
diálogos informais, foram fundamentais neste trabalho, pois o objetivo foi dar voz aos jovens,
abrindo um espaço, mesmo que pequeno, para que eles expressassem suas dúvidas, angústias,
medos e desejos. Queiroz (1988) diz que tudo que é relatado oralmente é importante, mesmo
que possa parecer supérfluo no momento, pois tudo se encadeia para compor e explicar uma
existência ou um fato. Para tanto, o pesquisador utilizará em seu trabalho partes do relato que
sirvam aos objetivos fixados, destacando os tópicos que considera mais importantes e
desprezando os demais. Para Queiroz (1988), o relato oral constituirá sempre a maior fonte
humana de conservação e difusão do saber, tanto daquele saber que se refere a um passado
longínquo ou recente quanto daquele proveniente da experiência do dia-a-dia.
Neste caminho, a escuta sensível é fundamental, pois exige do pesquisador interesse
por tudo o que é narrado. Sensibilidade para perceber a importância do que está sendo dito
para quem diz, e respeito pela fala do outro para que o interlocutor sinta-se à vontade ao dizê-
lo. Para Barbier (1993), a escuta deve ser sensível, não compreendendo só a audição, mas os
outros sentidos também. Deve-se prestar atenção, não somente na fala do outro, mas nos
gestos, nos silêncios, no sorriso ou no olhar triste de quem fala.
96
A técnica de gravar
45
, mediante a aceitação do aluno
46
, também se insere neste
trabalho. Combessie (2001) lembra que a gravação facilita a memorização de pontos
importantes que possam ter sido observados de relance durante a entrevista ou a localização
de algum tema ou dado importante para a pesquisa. Ele alerta que, para uma boa análise das
falas, devemos transcrevê-las com a maior precisão possível, não somente de maneira literal,
mas com indicações de hesitações, dos silêncios, dos risos, e que uma transcrição precisa, fiel
e exaustiva é muito importante, principalmente nas primeiras entrevistas.
Durante a pesquisa, muitos foram os momentos em que os jovens falaram da família,
dos amigos, dos seus amores e segredos. Acredito que isto se deu por dois aspectos
fundamentais. Primeiro, por um sentimento de confiança que se criou com o passar do tempo
entre pesquisador e os sujeitos da pesquisa, permitindo a eles falarem das suas dúvidas,
desejos e segredos, sem medo de represálias. O segundo, pela necessidade que os jovens têm
de serem ouvidos e de conversarem com alguém que se interesse por eles, pelo que dizem, por
suas criações, pelas suas reivindicações e pelo seu estilo próprio de viver. Nos diálogos,
pareceu-me que eles se sentiam valorizados em saber que alguém se interessava por suas
histórias.
Cláudia Fonseca (1998) explica que este vínculo de intimidade que se estabelece,
muitas vezes durante a pesquisa, é normal e que estes momentos permitem ao pesquisador
abordar temas ligados à emoção e ao sentimento. E lembra, que quando os sujeitos da nossa
pesquisa, “começam a sentir-se em casa na nossa presença, zombam de nós ou até nos
ignoram, aí passamos além dos diálogos ‘para inglês ver’” (FONSECA, 1998, p. 12). Isto
ficou evidente no decorrer da pesquisa. Os jovens foram perdendo aquele ar formal, aquela
postura rígida na cadeira, e alguns silêncios que ocorriam nas primeiras conversas lentamente
desapareceram. Com o passar do tempo, nos cumprimentávamos mais cordialmente, eles
falavam com mais liberdade sobre o seu dia-a-dia, claro que alguns com mais cerimônia do
que outros, falavam de problemas pessoais e da sua família. Nos últimos encontros,
brincavam e sorriam com muita naturalidade durante os diálogos.
45
Para Queiroz (1988), o gravador é uma técnica útil, colocada à disposição do pesquisador social para captar
fielmente tudo aquilo que é dito no momento real.
46
Foram gravadas somente as falas dos 11 jovens já citados anteriormente.
97
As entrevistas semi-estruturadas foram de grande valor, após a aplicação dos
questionários, considerando o número elevado de alunos que concordou em participar. Nessa
etapa, as perguntas foram basicamente sobre a rotina diária dos jovens, sobre as atividades
realizadas por eles nos turnos manhã, tarde e noite, sobre o que eles faziam nos finais de
semana; os locais que eles percorriam com mais freqüência pela cidade; os locais na escola
que eles preferiam estar; o tipo de música preferida; sobre os amigos e confidentes mais
próximos. Em relação à escola, foi pedido que falassem sobre o espaço escolar, sobre os seus
professores e sobre o ensino ministrado. Os locais preferidos na escola, o cotidiano deles
nessa instituição e a importância desse espaço nas suas vidas também fizeram parte das
perguntas.
A realização dos encontros com os 11 jovens, objetivou aprofundar os dados já obtidos
nos questionários e nas primeiras entrevistas, esclarecer dúvidas e ampliar a discussão sobre o
campo até então estudado. Nesses encontros, a escuta atenta foi fundamental para o
desenvolvimento da pesquisa. No início das conversas, em geral, eu lançava uma questão e
dessa partíamos para uma nova ou voltávamos a algum assunto discutido anteriormente, e
assim íamos levando os nossos diálogos, cada dia mais, interessantes e reveladores.
Combessie (2001), comparando o questionário com a observação e com a entrevista
nos diz que as duas últimas, por um lado, favorecem uma aproximação intensa com os
pesquisados, aprofundando informações, mas que, por outro, limita o número desses.
Enquanto o questionário, ao contrário, tem por função dar à pesquisa uma extensão maior e
verificar estatisticamente até que ponto são generalizáveis as informações e as hipóteses
inicialmente constituídas.
Malinowski (1984) alerta que há uma série de fenômenos de suma importância que
não podem ser registrados apenas com o auxílio de questionários ou documentos estatísticos,
pois não dão conta da realidade em sua plenitude. A esses fenômenos ele dá o nome de os
“imponderáveis da vida real”. São esses “imponderáveis” que foram se descortinando com a
continuidade dos diálogos.
98
Um rico material escrito, contendo Dados documentais e estatísticos sobre as escolas
públicas e sobre as condições socais e econômicas dos jovens na cidade de Porto Alegre, foi
obtido através das escolas pesquisadas, das Secretarias de Educação Municipal e Estadual, das
Secretarias da Cultura, Esporte e Lazer e da Secretaria Municipal da Juventude, criada no ano
de 2005
47
.
Assim, a partir do material obtido através das várias abordagens trabalhadas, foi
possível conhecer como vivem os jovens dessa pesquisa; conhecer os espaços que eles
percorrem no seu cotidiano; os espaços em que transitam com facilidade pela cidade e aqueles
de difícil acesso; os espaços que eles preferem percorrer e com quem eles compartilham esses
momentos; e as práticas sociais cotidianas que eles desenvolvem nos mais diversos espaços da
cidade.
Todo esse processo de investigação permitiu ampliar o leque de conhecimentos sobre
o universo estudado. Assim, lentamente fui tendo acesso ao mundo desses jovens, tecendo
considerações, descobrindo coisas, tirando dúvidas e adquirindo outras. Percebendo a
realidade vivida pelos jovens, conforme aquilo que vi, ouvi e li durante todo o tempo da
pesquisa. Gilberto Velho (1978) fala que a realidade é sempre filtrada por determinado ponto
de vista do observador e percebida de maneira diferenciada por vários olhares e que esse
ponto de vista não fere o rigor científico no estudo da sociedade, mas permite percebê-la
enquanto objetividade relativa, mais ou menos ideológica e sempre interpretativa.
O autor lembra ainda que, em uma sociedade complexa como a brasileira, o
pesquisador social apresenta a sua interpretação, que, por mais que possa ter certa
47
A Lei nº 9.722, de 27 de janeiro de 2005, “cria, na Administração Centralizada do Município, a Secretaria
Municipal da Juventude, com o objetivo de articular, juntamente com outros órgãos do Executivo Municipal,
normas e procedimentos ao planejamento, execução e acompanhamento das políticas públicas de estímulo à
cidadania e qualificação profissional dos jovens”. Através de informações obtidas na Gerência Executiva da
Coordenação de Projetos e Programas, foi possível saber que a cidade de Porto Alegre foi uma das dez capitais
do país escolhida para desenvolver o Programa “Projovem”, do Governo Federal, em parceria com as prefeituras
das Capitais. O Projeto visa atender jovens de 18 a 24 anos que possuam até a quarta série do Ensino
Fundamental, mas que não o concluíram e sem vínculo formal de trabalho. O programa visa oferecer aos jovens
um curso integrado para a conclusão do Ensino Fundamental, oportunizar uma formação profissional e
desenvolver ações comunitárias. O programa, em Porto Alegre, espera atender 7.200 jovens até o final do ano.
Em julho de 2005, o programa contava com 1.200 jovens inscritos. A previsão de início das aulas, para os
moradores da Zona Norte da cidade, é agosto de 2005. Para o restante dos jovens, das outras regiões da cidade, é
outubro deste ano. O jovem que participar do projeto receberá uma Bolsa Auxílio de 100 reais mensais.
Segundo informações recebidas, através da Coordenação de Projetos, a existência, na cidade, de uma Secretaria
Municipal da Juventude, foi decisiva no momento da escolha da Capital para desenvolver esse programa. No
anexo F, podemos ver a Lei que cria a Secretaria e um folheto explicativo sobre o “Projovem”.
99
respeitabilidade acadêmica, é mais uma versão que concorrerá com outras (artistas, políticos e
profissionais de ciências sociais ou não), permitindo múltiplas reflexões e interpretações sobre
a nossa sociedade.
Com a mesma visão generosa, explicitada por Gilberto Velho, que permite aceitar e
compartilhar saberes sobre uma dada sociedade ou questão, e com os dados referentes ao
conjunto das escolas, dos alunos e, principalmente, a partir das falas registradas durante as
entrevistas, dos seus gestos, estilos e mesmo de suas ausências, apresento, nos próximos
capítulos, a partir dos dados obtidos, as minhas reflexões e análises sobre tudo aquilo que vi,
ouvi e conversei com os jovens, sem esquecer os diálogos com amigos e colegas, com os
orientadores e com os autores que deram suporte teórico para a elaboração desta tese.
100
5 JOVENS NA ESCOLA: RADIOGRAFANDO CONDIÇÕES E SITUAÇÕES DE
VIDA NA PERIFERIA URBANA
O papel do lugar é determinante. Ele não é apenas um quadro de vida,
mas um espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que
permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indagação
sobre o presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um
papel revelador sobre o mundo. (SANTOS, M., 2002, p. 114)
Neste capítulo, serão apresentados, de forma ampla, as escolas e os jovens que fizeram
parte da pesquisa. Este estudo é decorrente da análise dos dados obtidos através dos 266
questionários respondidos nas três escolas e das 112 entrevistas realizadas. No próximo
capítulo, tratarei mais especificamente de cada escola e dos 11 jovens que foram convidados a
continuar participando da pesquisa, após a primeira entrevista. Entretanto, a fala dos jovens:
Raquel (15 anos), Erick (15 anos), Marina (15 anos), Beatriz (14 anos), Camila (14 anos),
Sabrina (13 anos), Luana (13 anos), Fernando (14 anos), Gustavo (18 anos), Eduardo (17
anos) e Marta (16 anos) já estarão contempladas neste capítulo.
Para conhecermos os jovens que fizeram parte da pesquisa, os espaços nos quais
circulam e as práticas sociais cotidianas que eles desenvolvem será apresentado, em um
primeiro momento, algumas informações ligadas à vida particular e familiar deles, como:
idade, sexo, situação profissional, renda familiar e escolaridade dos pais. Para, em um
segundo momento, apresentarmos os bairros onde moram e a interação desses jovens com
outros espaços da cidade.
Vamos saber se gostam ou não do lugar em que habitam; com que freqüência e horário
saem do bairro; quais as exigências que fazem para que este espaço seja um lugar bom de se
viver; quais os lugares em que transitam com maior freqüência pela cidade; quantas vezes vão
ao centro da cidade; quais as atividades que realizam durante a semana além de irem à escola;
quais os espaços de que mais gostam e menos gostam de estar e quais as suas percepções
acerca das dificuldades de acesso a espaços fora do seu bairro.
101
No final do capítulo, vamos tematizar a escola e saber do que eles mais gostam nesse
espaço; os lugares que eles preferem estar no espaço escolar; o que eles pensam da
possibilidade de as escolas abrirem nos finais de semana e nas férias para a comunidade; quais
as relações sociais que eles estabelecem nesse espaço e se fazem parte de algum grupo no
qual realizam atividades esportivas ou culturais dentro ou fora do espaço escolar.
A partir dos dados obtidos através dos questionários e das entrevistas teremos, uma
visão geral de como vivem e quem são esses jovens. Entretanto, não temos, neste capítulo, a
pretensão de traçar um perfil dos jovens que estudam nas três escolas e vivem nas duas
comunidades, mas de localizá-los nos espaços em que transitam diariamente e identificar as
práticas sociais cotidianas desenvolvidas por eles nesses espaços.
Algumas dificuldades e reivindicações, aqui colocadas pelos jovens, tanto na família
quanto na escola e nos mais diversos espaços por onde transitam, já poderão, em parte, ser
compreendidas e analisadas com base no estudo feito no capítulo 3, principalmente no que se
refere ao desemprego, a dificuldade de acesso a espaços fora do bairro e às problemáticas
referentes à escola pública, principalmente àquela destinada aos jovens das classes populares.
Para começar, vamos apresentar uma tabela que mostra a classificação dos alunos por
idade, comentando apenas os mais representativos. Em relação à idade, constatamos que o
índice maior é de jovens com 14 anos, seguido em escala decrescente de 15, 16 e 17 anos. Os
outros índices são bem menores e podem ser visualizados na tabela a seguir. Conforme a
tabela, a maioria dos sujeitos desta pesquisa tem entre 14 e 17 anos, dado que deverá nos
acompanhar em todas as outras análises. É a voz desses jovens que ecoará durante as nossas
reflexões.
102
Tabela 1
Idade dos Jovens
Idade Freqüência Porcentagem
13
14
15
16
17
18
19
21
22
24
26
27
31
32
33
37
56
Total
Abstenção
Total
18
69
59
47
35
7
10
4
2
2
1
1
1
1
1
2
1
261
5
266
6,8
25,9
22,2
17,7
13,2
2,6
3,8
1,5
0,8
0,8
0,4
0,4
0,4
0,4
0,4
0,8
0,4
98,5
1,9
100,0
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários.
5.1 SER MENINO, SER MENINA: CONDIÇÕES DISTINTAS NA CASA, NA ESCOLA E
NA RUA
Considerando os 160 questionários aplicados no Ensino Fundamental e os 106 no
Ensino Médio, o grupo de pesquisa compõe-se de 149 jovens do sexo feminino, 115 do sexo
masculino e dois alunos que não responderam à questão. No Ensino Fundamental
encontramos 85 alunas e 73 alunos. No Ensino Médio, são 64 alunas e 42 alunos. Aqui
podemos observar um aumento considerável no número de alunas no Ensino Médio. A
constatação de um número maior de alunas no espaço escolar não é novidade dessa pesquisa,
pois sabemos que esta é uma realidade nacional. As alunas estão em maior número nas
escolas, nos diversos graus de ensino, do fundamental ao superior, e permanecem por mais
tempo nesse espaço, dados esses confirmados no levantamento feito pelo Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), com base no Censo Escolar de 2003.
103
No convívio com os jovens e a partir das entrevistas, foi possível perceber que alguns
fatores contribuem para que o número de meninas na escola seja maior que o de meninos.
Poderíamos citar o fato de elas, em geral, aceitarem com maior facilidade as regras impostas
pelos professores na sala de aula. Considerando, que o espaço da sala de aula tem lógicas
semelhantes àquelas do espaço da casa, as meninas “aceitam” melhor as regras escolares ou as
“suportam” com maior facilidade que os meninos, já que em casa elas acatam as regras
impostas pelos pais com menor resistência que eles.
As jovens, em geral, são consideradas mais obedientes às normas e mais interessadas
na realização das tarefas escolares. Constatamos que esse padrão de comportamento diminui
os conflitos com professores e direção, atraindo a atenção destes para a figura feminina,
contribuindo, de certa forma, para que eles se dediquem mais à aprendizagem delas em sala
de aula. Essa aparente submissão das meninas pode se constituir numa estratégia de
sobrevivência nesse espaço, já que elas acreditam, segundo os seus depoimentos, mais do que
os meninos, na perspectiva de uma vida melhor via escola. Nesse sentido, Freire (1997, p.
108) alerta para o fato de que “é de aprendizado em aprendizado que se vai fundando uma
cultura de resistência, cheia de ‘manhas’, mas de sonhos também. De rebeldia, na aparente
acomodação”.
Na fala de Raquel, 15 anos, parece que essa “postura de menina”, baseada no
cumprimento das regras sem grandes questionamentos, é uma estratégia usada para que não
ocorram maiores conflitos no espaço escolar. Entretanto, elas declararam que gostariam de ter
a mesma liberdade que é dada aos meninos, mas acreditam que os professores são mais
complacentes com eles por estarem mais acostumados às atitudes transgressivas dos meninos
nos diversos espaços da escola.
Eu acho que tudo é mais difícil para as meninas, porque na sala de aula
tem que ter postura de menina, nós brincamos, brigamos, entre nós,
principalmente quando o professor vira as costas. Quando ele vira de
novo nós paramos e só recomeçamos quando ele sai. Os guris podem
brincar o tempo que quiserem, podem ficar de brincadeira no recreio e
no refeitório. Nós não! No refeitório eles podem ficar mais à vontade.
Nós não! Nós temos que ficar direitinhas! (RAQUEL, 15anos)
Quando se trata do espaço da casa, das relações familiares, Raquel também tem
queixas quanto às obrigações impostas às meninas e a uma maior liberdade dada aos meninos
104
em contraposição àquela permitida a elas. O que é complementado pela fala de Beatriz (14
anos):
Porque a gente tem que cozinhar e ainda fazer as compras? Porque a
gente lava roupa e eles não? O meu irmão chega em casa almoça e some.
A gente tem que ficar limpando prá depois sair. Namorar só em casa.
Eles podem ficar com 500 namoradas no portão, na rua ou na padaria.
(RAQUEL, 15anos)
É mais difícil para as meninas, né? Olha só! Meus irmãos são pequenos,
né, mas a minha mãe já diz que eu vou começar a fazer as coisas mais
tarde, que eu vou sair mais tarde, ela deixa eu sair sabe, não todo o dia,
namorar só com 15 anos, mas os meus irmãos já tão começando, eles
podem, desde agora, eles tão namorando. (BEATRIZ,
14 anos)
Nessas falas, percebe-se que as meninas, ainda hoje, enfrentam situações de
desigualdades, tanto na família quanto na escola e na rua, que cerceiam e limitam atos e
palavras, mas que não as desencorajam de continuar na luta e na resistência, muitas vezes
feitas de silêncios e acordos, mas firmes na procura e expansão por espaços e direitos.
Melucci (2001) explica que, atualmente, a figura feminina está ligada a uma
diversidade de pertencimentos claramente marcados pela rapidez nas mudanças estruturais e
de sentido, ocorridas ao longo do tempo e no alongamento do ciclo de vida, determinando e
aumentando esse potencial de diversificação. Entretanto, o autor lembra que alguns elementos
fundamentais de comunhão permanecem ainda vivos na experiência feminina, como uma
história de resistência contínua à submissão e à opressão que se constitui como uma forma
diferente de luta daquela travada pelo masculino.
Outro fator que pode contribuir para explicar a permanência das meninas por um
tempo maior no espaço escolar, é que elas, através dos diálogos, pareceram mais convictas do
que os meninos na crença de que a escola poderá melhorar a situação social e econômica
delas no futuro e, também, para muitas, a escola é um dos poucos espaços na comunidade de
lazer, de encontrar amigos e namorados e de “livrarem-se” das tarefas domésticas.
Constituindo-se assim, naturalmente, em um espaço de sociabilidade juvenil. A fala de Luana,
14 anos, ilustra bem essa realidade:
105
O meu dia-a-dia é muito agitado porque eu chego da escola e já começo a
limpar a casa. Depois vou fazer os meus temas e no final da tarde busco
meu irmão na creche. Quando sobra um tempinho eu tiro uma soneca, até
porque eu também sou filha de Deus e mereço um descanso, né? Mas eu
não quero ficar a minha vida toda em casa, eu valorizo muito essa coisa
de trabalho porque sei que quando eu for morar sozinha, vou precisar de
dinheiro e pra conseguir dinheiro eu tenho que estudar e depois
trabalhar. Eu faço planos para quando crescer, mas sei que não é fácil
conseguir um emprego porque o mercado de trabalho está cobrando mais
estudo do trabalhador que em alguns casos tem até segundo grau, mas
não tem curso técnico, nem faculdade. (LUANA)
5.2 INSERÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO
Em relação à situação profissional, constatamos 206 alunos que não trabalham e 60
que exercem alguma atividade remunerada, mesmo que informal
48
. Em se tratando dos que
trabalham, 24 cursam o Ensino Fundamental e 36, o Ensino Médio
49
. No Ensino
Fundamental, encontramos 15 jovens do sexo feminino e 9 do sexo masculino. No Ensino
Médio, foram 16 do sexo feminino e 20 do sexo masculino.
Dos 60 alunos que disseram trabalhar, muitos trabalham com os pais ou na casa de
algum vizinho ou familiar próximo. Algumas meninas cuidam de crianças ou fazem algum
tipo de serviço doméstico em casa de família e alguns meninos em obras com parentes.
Muitos desses trabalhos são temporários, precários e, em geral, mal remunerados. Os dados
mostram a dificuldade dos alunos, principalmente do Ensino Fundamental, em conseguir um
emprego regular. A pouca escolaridade e a falta de experiência profissional dificulta a
inserção deles no mercado de trabalho.
Durante as entrevistas, foi recorrente, na fala das meninas, o fato de elas cuidarem das
crianças da família e ajudarem na casa de algum parente. Elas levam crianças menores para a
48
Conforme dados retirados do Índice de Desenvolvimento Juvenil (IDJ), da Organização das Nações Unidas
para a Educação, Ciência e Cultura, os jovens que apresentam maior escolaridade recebem salários maiores.
“Um jovem que tenha quatro anos de estudo, por exemplo, ganha em média 1,28 salário mínimo. Já o que possui
11 anos (o equivalente ao término do Ensino Médio) recebe 2,27 salários mínimos. A diferença é de quase um
salário mínimo. A cada série estudada a renda aumenta em 2,2% as chances de encontrar um trabalho
remunerado. A desigualdade racial também é relevante se considerada a renda. A renda média dos negros e
pardos é inferior à de brancos em quase todos os estados brasileiros (www.rits.com.br
).
49
No ensino Médio, 5 alunos disseram ser estagiários em órgãos públicos (Companhia Estadual de Energia
Elétrica – CEEE, Banco do Brasil, Delegacia de Polícia (dois jovens), Departamento Municipal de Água e
Esgoto - DMAE.
106
escola e buscam no final da tarde e por isso ganham algum dinheiro no final da semana.
Algumas ajudam uma tia que mora sozinha e recebem por estes pequenos trabalhos, ajuda em
roupas, dinheiro e material escolar. No caso dos meninos, alguns disseram trabalhar,
eventualmente, com tios ou com o pai em serviços de pintura, na construção ou reformas de
casas, no corte da grama, descarregando alguma encomenda ou ajudando em oficinas
mecânicas, geralmente, nos sábados e nos finais de tarde, o que lhes possibilita aprender a
“mexer” em carros e a dirigir, o que consideram bom como aprendizagem e pelo prazer que
sentem em entender o funcionamento e o domínio da máquina.
Considerando a idade dos alunos pesquisados, o ideal seria que todos estivessem
preocupados somente em continuar e aperfeiçoar os seus estudos, mas a necessidade de
adquirir, não só o básico para a sobrevivência diária, mas objetos e serviços que fazem parte
do universo juvenil, como roupas e o pagamento de entradas em shows, cinemas e festas, faz
com que eles desejem ardentemente um trabalho, mesmo sabendo das dificuldades que terão
que enfrentar até conseguirem um emprego mais estável.
Sabe-se que o desemprego, hoje, é uma problemática que afeta indivíduos de todas as
idades, mas que ganha certa dramaticidade no caso dos jovens, principalmente daqueles sem
experiência profissional e com baixa escolaridade. Mesmo assim, eles continuam na busca por
um emprego estável para a realização de sonhos, no presente e no futuro. Todavia, eles
entendem que empregos para toda a vida, praticamente, não existem mais, e que para os
jovens com baixa escolaridade as opções estão cada dia mais difíceis, não possibilitando a
construção de um projeto ou planejamento de vida a longo prazo.
Assim, a regra atual é não pensar em empregos seguros e eternos ou em gordas
poupanças para emergências. O que se tem hoje deverá servir para o agora e não para suprir
necessidades do amanhã. O agora é a palavra certa, o futuro é incerto e nebuloso. Nesse
sentido, Bauman (2001) explica que o adiantamento da satisfação perdeu seu fascínio, pois
não é certo que o trabalho e o esforço investidos no presente venham contar como recursos
quando chegar a hora da recompensa.
107
5.3 CONDIÇÃO DE CLASSE, RENDA E ESCOLARIDADE FAMILIAR
A renda familiar dos alunos também foi um dado analisado neste estudo, já que as
escolas se localizam na periferia da Capital, onde se concentram as classes populares.
Entretanto, cabe ressaltar que o conceito de classe social neste trabalho não deverá ser
entendido somente pelo viés econômico, através da renda familiar, mas também pela divisão
desigual de poder na sociedade e, pelo status social que cada pessoa tem, conforme seu
prestígio social ou político. O que pode explicar como em uma mesma classe social, sendo
esta de periferia ou não, encontramos pessoas com status social e situação financeira diversos.
Milton Santos (2004) explica que a palavra periferia pode ser usada em diferentes
acepções dependendo da disciplina que a usa. No caso da geografia, a periferia não será
definida somente pela distância física entre um pólo e as zonas tributárias, mas em termos de
acessibilidade. O acesso ou não a bens e serviços dependerá, prioritariamente, da existência
de vias e meios de transportes e da possibilidade efetiva, de essas vias e de esses meios serem
utilizados pelos indivíduos, objetivando a satisfação das reais necessidades deles. A
incapacidade de acesso a esses bens e serviços é que determinará a definição de uma situação
periférica.
Favelas e cortiços constituem, nos países subdesenvolvidos, uma realidade
multiforme e mutável, de acordo com cada país e cada cidade. No interior de
uma mesma cidade podemos encontrar tipos diferentes de cortiços, em
função de sua localização, sua aparência, a proveniência e a atividade de sua
população, a distribuição das rendas individuais e familiares. (
SANTOS,
M., 2004, p. 51)
Para Zaluar (2000), o uso alternativo do conceito de classes populares parece resolver
o problema da categorização operário industrial/trabalhador marginal, que, na
contemporaneidade, é rígida demais para explicar a realidade dos trabalhadores das grandes
cidades que passam de uma posição a outra no processo de produção. A autora lembra ainda
que no interior das famílias encontramos trabalhadores de várias categorias e que existe uma
lacuna no conhecimento sobre as formas de relação entre as várias categorias de
trabalhadores, o que dificulta uma melhor compreensão do que vem a ser classes populares
urbanas. Entretanto, Zaluar, esclarece alguns pontos:
108
Buscar uma identidade comum a eles como “moradores subalternos” e a
articulação de seus interesses comuns como produto da questão urbana na
qual se reduz a questão social, articulação esta proporcionada pelos
movimentos de moradores, corre o risco de tratar exclusivamente das
demandas que opõem as associações de moradores ao Estado. Destas ficam
excluídas, por coerência teórica, as práticas clientelistas, paroquiais,
‘fisiológicas’ que também são acionadas como estratégias para melhorar as
condições de moradia, ou mesmo os rituais de solidariedade da vizinhança,
cuja articulação com a política é bem mais distante. (
ZALUAR, 2000, p.
39)
Mesmo acreditando que não seja tão simples definir classes sociais em tempos de
transição paradigmática como os atuais, não podemos desconsiderar que ainda vivemos em
uma sociedade dividida em classes e com dificuldade de diálogo e de reconhecimento entre
elas. Paulo Freire (1997) explica que há momentos históricos em que a sobrevivência do todo
social coloca às classes a necessidade de se entenderem, o que não significa dizer que estamos
vivendo um tempo histórico vazio de classes sociais e de seus conflitos, mas um novo tempo,
no qual as classes continuam existindo e lutando por interesses próprios.
Segundo Freire (1997), a partir de uma nova prática democrática, será possível ampliar
espaços para que pactos entre as classes possam ocorrer, consolidando posições radicais e
superando as sectárias, para que possamos pensar em construir uma sociedade mais humana e
justa para todos. O que não extinguiria as classes sociais e as ideologias, como proclama certo
discurso pragmaticamente pós-moderno.
Não uma “história nova”, sem classes sociais, sem a luta entre
elas, sem ideologia como se, de repente, num passe de mágica,
as classes sociais, seus conflitos, as ideologias sumissem pelas
mangas do paletó negro de um grande mágico. (FREIRE,
1997, p. 197)
Entretanto, um dos índices usados para determinar a classe social a qual um indivíduo
pertence é o econômico. Nesse sentido trazemos os dados referentes à renda familiar dos
alunos, contribuindo para um melhor conhecimento sobre as suas condições de vida. Os dados
obtidos através dos questionários mostram que 61 famílias recebem até um salário mínimo e
129 famílias, de 2 a 5 salários, considerando que, em muitos casos, essas famílias são
numerosas, a renda mensal, geralmente, não cobre todas as despesas familiares. Situação que
ficou evidente na fala de muitos jovens, principalmente quando citavam o elevado valor da
109
passagem de ônibus, dos alimentos, das roupas e a dificuldade que encontravam para pagar o
ingresso para assistir um show ou um filme.
Tabela 2
Renda Familiar
Renda Freqüência Porcentagem
1- SM 61 22,9
2 a 5- SM 129 48,5
5 a 10- SM 35 13,2
Mais de 10- SM 8 3,0
Total 233 87,6
Abstenção 33 12,4
Total 266 100,0
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
Tanto nas escolas de Ensino Fundamental quanto na Escola de Ensino Médio, a
maioria das famílias recebe de 2 a 5 salários mínimos. Nos gráficos a seguir, é possível
observar algumas particularidades que nos ajudam a entender as condições de vida dos
jovens, considerando o lugar onde vivem.
Gráfico I
Renda Familiar - Jovens do Ensino Fundamental e Médio
50
FUNDAMENTAL MÉDIO
1 - SM
2 à 5 - SM
5 à 10 - SM
mais de 10 - SM
Renda Familiar
Pies show counts
Nas Escolas de Ensino Fundamental identificamos um número maior de famílias com
renda mensal até um salário mínimo em relação às famílias dos alunos das escolas de Ensino
Médio, o que pode ser explicado, considerando que esse é um bairro mais afastado do centro
da cidade e historicamente de famílias
51
de baixa renda e de maiores dificuldades financeiras.
50
Todos os gráficos foram feitos a partir dos dados obtidos através dos questionários.
51
No capítulo 6, será apresentado um breve histórico dos bairros e das escolas estudadas.
110
Entretanto, no mesmo gráfico encontramos um número maior de famílias no Ensino
Fundamental que recebem de 5 a 10 salários mínimos. Esse dado, talvez, possa ser explicado,
pelo fato de a região Lomba do Pinheiro, onde se encontram as escolas de Ensino
Fundamental, no decorrer dos últimos anos, ter recebido várias benfeitorias, como
asfaltamento, tanto nas vias principais quanto no interior das suas vilas, saneamento básico,
escolas, creches, postos de saúde, melhorando visivelmente a vida e as condições dos
moradores, e conseqüentemente, atraindo cada vez mais habitantes de outras regiões da
cidade, e de outras classes sociais, como pequenos empresários e comerciantes interessados
em investir na região. Essa melhora nas condições de vida da população local também foi
constatada nos diálogos com os 11 jovens, pois a maioria deles, com exceção de uma aluna,
disse que as condições socioeconômicas da família, na época da pesquisa, estavam melhores
do que em tempos atrás.
Nesse sentido, Milton Santos (2004) alerta para a existência, em uma mesma
comunidade ou região, basicamente em áreas urbanas, de um grande número de pessoas que
vivem com salários irrisórios ou provenientes de biscates, ao lado de uma minoria com poder
econômico e renda mensal elevada, criando na sociedade um abismo entre aqueles que têm
acesso de maneira permanente aos bens e serviços e aqueles que não têm.
Com efeito, a favela não reúne todos os pobres de uma cidade, e nem todos
os que nela vivem podem ser definidos segundo os mesmos critérios de
pobreza. Uma favela pode compreender tanto biscateiros, que vivem de
rendas ocasionais, como assalariados dos serviços e das indústrias e mesmo
pequenos empresários. (SANTOS, M., 2004, p. 75)
Em relação à escolaridade dos pais, foi constatado que a grande maioria são
alfabetizados, fato que pode estar relacionado ao baixo índice de analfabetismo na cidade de
Porto Alegre, em torno de 3%, segundo o Censo Escolar de 2000. Somente dois jovens
colocaram que os pais não tinham freqüentado a escola. Em um dos casos, a mãe de um
menino não tinha estado nos bancos escolares, mas segundo o aluno sabia ler, escrever e fazer
conta, e uma menina colocou que a mãe era analfabeta.
111
Tabela 3
Escolaridade do Pai e da Mãe
ENSINO
FUNDAMENTAL
ENSINO MÉDIO ENSINO SUPERIOR ABSTENÇÃO
Pai
Mãe
157
195
77
51
11
11
21
9
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
Na tabela nota-se que um maior número de mães cursou o Ensino Fundamental
enquanto que um maior número de pais freqüentou o Ensino Médio. Entretanto o número de
mães e pais que cursaram o nível superior foi o mesmo. Observa-se, na tabela, que a ausência
de informação sobre a escolaridade do pai foi maior. Nesse caso, durante as entrevistas, foram
identificados alguns jovens que não conhecem a figura paterna, outros só conviveram com o
pai quando ainda eram muito crianças e outros sabem da sua existência, mas não têm contato
com ele.
5.4 DAS RELAÇÕES COM O BAIRRO E A CIDADE
Tabela 4
Da Relação com o Bairro
Relação com o bairro Freqüência Porcentagem
Sim-gosto
Não-gosto
Total
Abstenção
Total
218
37
255
11
266
82,0
13,9
95,9
4,1
100,0
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
Através das entrevistas e das respostas dadas nos questionários os jovens mostraram
que conseguiram estabelecer uma relação positiva tanto com o bairro quanto com o conjunto
da cidade. Mesmo conscientes da questão da violência, da falta de oportunidade de emprego
na comunidade e da distância do centro da cidade, os jovens disseram gostar do bairro em que
vivem.
112
Tabela 5
Relação com o Bairro – Meninas e Meninos
Relação com o Bairro Sim-Gosto Não-Gosto
Meninas
Meninos
125
93
18
17
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
Em relação à cidade de Porto Alegre, dos 266 que responderam ao questionário 237
disseram gostar da cidade, 7 disseram não gostar, 8 disseram gostar mais ou menos e 14 não
responderam à questão. Quando falamos da cidade de Porto Alegre e sobre a visão que os
jovens desta pesquisa têm sobre ela, em que a maioria tem entre 14 e 17 anos, não podemos
esquecer que esta cidade, no ano de 2004, contava com 16
52
anos de uma administração
popular, de um governo de concepção socialista, e que estes jovens nasceram e cresceram sob
a ideologia de um partido, voltado para as questões sociais e comprometido na construção de
uma cidade onde o maior número possível de pessoas pudessem ter voz e voto a partir da
participação e da mobilização dos seus habitantes.
Neste sentido, trazemos algumas reflexões sobre o Orçamento Participativo (OP).
Prática social que engloba processos políticos, econômicos, culturais e pedagógicos e que
confere a cidade um diferencial reconhecido dentro e fora do país. Permitindo, desta maneira,
o surgimento de novas redes de solidariedade e um maior comprometimento entre os cidadãos
que a habitam, “forjando assim novas redes no tecido social e novas possibilidades para a
esfera pública”. (MOLL & FISCHER, 2000, p. 145)
A partir da implantação do OP, em Porto Alegre no ano de 1989, a cidade conhece um
jeito novo de manifestar as suas opiniões e procurar soluções, via participação dos seus
habitantes, a chamada democracia participava. É também neste contexto que as práticas
pedagógicas nas escolas do município começaram a ser pensadas e problematizadas. Ouvir,
mediar e decidir, em conjunto, foram alguns pressupostos básicos norteadores dessas práticas.
52
A primeira gestão da Frente Popular, em 1989, era formada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), pelo Partido
Socialista Brasileiro (PSB) e pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B).
113
No caso específico do Orçamento Participativo, desenvolvido na cidade de
Porto Alegre desde 1989, a partir da mudança da administração municipal,
para a gestão da Frente Popular (encabeçada pelo Partido dos
Trabalhadores), instaura-se concretamente um conjunto de condições que
recriam a ação do Estado, a partir de outras e diferenciadas relações com a
população. Desde o princípio instauram uma pedagogia de mediação que,
suplantando a tradicional forma de tutelas e negociatas, inaugura bonitos e
indescritíveis momentos de conhecimento em ações de reciprocidade, entre
quadros técnicos do estado e parcelas da população. (MOLL & FISCHER,
2000, p. 153)
Durante todo o tempo da pesquisa, ao se referirem ao bairro e à cidade, muitos jovens
falaram de algumas conquistas obtidas pelos moradores para a melhoria das condições de vida
da população da cidade. Alguns falaram diretamente da importância do OP, mas a maioria
citava as benfeitorias feitas no bairro e a mobilização popular para tais conquistas. O
asfaltamento nas vilas, a melhoria no transporte público e na manutenção e conservação dos
Postos de Saúde foram as mais citadas.
O bairro se organizou graças ao OP, lá tem gente de tudo que é lugar.
Aqui no bairro, cada pedaço foram as pessoas que organizaram. Pena que
ainda não tem local pra festa. Não saio muito durante à noite, só para
aniversários e em festas de amigos. (PEDRO, 17 anos)
Nas entrevistas, a grande maioria disse gostar do local onde vive, principalmente na
fala dos jovens do Ensino Fundamental. Eles demonstraram muito carinho pelo espaço em
que habitam, apesar da violência que dizem encontrar, mas ressaltaram que essa é uma
problemática nacional, vivenciada no cotidiano de muitos jovens.
Tabela 6
Relação com o Bairro - Jovens do Ensino Fundamental e Médio
Relação com o Bairro Sim-Gosto Não-Gosto
E.Fundamental/L.Pinheiro
E. Médio/Partenon
124
94
28
9
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
A maioria dos jovens que mora na Lomba do Pinheiro disse sentir-se seguro no bairro,
mais do que em outros espaços da cidade, e que a violência existente na comunidade não é
114
privilégio local, mas entendida como uma realidade nacional. Para esses jovens, os vizinhos e
os amigos são os responsáveis pelo prazer de morar ali. Eles falaram muito da relação de
amizade e solidariedade entre os moradores e da relativa calma existente no bairro.
Magnani (2005) explica que o primeiro contexto no qual se pode perceber a relação
entre uma forma de sociabilidade e determinado espaço urbano é o bairro popular, de
periferia. Para descrever e explicar a relação entre ambos os níveis o autor elaborou a
categoria pedaço para explicar essa relação. Para Magnani (2005) não basta a pessoa morar
perto ou freqüentar determinados lugares para ser do pedaço, é preciso estar envolvido em
uma rede de relações tecida pelos laços de parentesco e pela vizinhança.
Sobre o bairro Lomba do Pinheiro, alguns jovens disseram:
Aqui é um lugar quieto, tem uma praça onde as crianças se divertem, tem
associação para melhorar a vila. Tem alguns guris bonitos, muitos amigos,
muita gente legal. É muito bom morar no Pinheiro, apesar da
malandragem, da droga e de gente nas esquinas fumando e bebendo.
(ANELISE, 16 anos)
Tem posto de saúde perto, escola, ônibus e mercado. (MARA, 15 anos)
O meu bairro é bom, mas calmo não é. Nenhum bairro é calmo. Que nem
sábado passado, deu tiroteio lá. A gente tava sentado na rua e quando
vimos começou. Passou os policiais, os brigadianos, e começou a dar tiro,
e nós continuamos lá sentados, na frente de casa. Os caras tirotiando e
nós lá sentados, na frente. Ah! A gente tava conversando com umas
gurias (risos), e as gurias pegaram e não saíram, e daí a gente não saiu
também né? Não vamos sair, deixa eles se pegarem na bala. Botaram
fogo na casa de um cara lá, mas ninguém morreu, só se tirotiaram a fu!
Ficaram uma meia hora se tirotiando, eles e a polícia. Eu acho que era
intriga entre eles, por briga, não sei. Eles que são bandidos que se
entendam, né? (GUSTAVO, 18 anos)
Os jovens que moram no bairro Partenon, disseram gostar de morar no bairro pela
facilidade de se locomoverem para outros espaços na cidade, em função da variedade de
linhas de ônibus existentes próximas às moradias, do comércio variado e da proximidade com
o centro da cidade. Identificamos, também, na fala de alguns jovens do Ensino Médio, que
eles reconhecem o bom desempenho da prefeitura em asfaltar as ruas, no trabalho de
saneamento básico e nos serviços oferecidos nos postos de saúde.
115
Fácil locomoção para o centro e para outros bairros da cidade. Tem
shopping, padaria, tabacaria. Em geral é tudo perto. (EDUARDO, 17 anos)
Entretanto, mesmo que percebam que o bairro oferece, em geral, boas condições de
vida e que reconheçam que o poder público nos últimos anos se empenhou na melhoria das
condições básicas de vida da população, os jovens entendem que muitas são as dificuldades
vividas pelos moradores das periferias e que o preconceito tanto racial quanto econômico e
social, ainda hoje, se mantém forte e discriminatório.
Eduardo, um jovem de 17 anos, aluno do Ensino Médio, salientou que existe uma
nítida divisão entre os bairros da cidade, considerando, principalmente, a localização, e que
ela pode ser percebida no cuidado com as ruas, com os parques e com a pavimentação de
certas ruas ou bairros. Ele percebe um tratamento diferenciado nos bairros de classes
economicamente mais favorecidas. Segundo Eduardo, esses bairros recebem mais atenção e
cuidado dos governantes, enquanto que outros bairros populares sofrem com o descaso em
certas regiões da cidade. Entretanto, Eduardo reconhece que a cidade é bonita, que muita
coisa foi feita nos últimos tempos, mas que ainda falta muito para a cidade ficar “igualitária e
equilibrada”.
A cidade é dividida. Eu vejo assim, tem lugares onde tem parques,
hospitais, e são bons, mas têm muitos bairros que são muito precários,
onde a gente não tem condições de atendimento bom, onde muitas
pessoas doentes ficam no corredor dos hospitais. Tem lugares que as
ruas estão muito detonadas, precisando de asfaltamento, apesar de
saber que tem muita pavimentação sendo feita por aí. Em geral a cidade
é boa, é bonita, tem uma estória legal, né, do Porto dos Casais de
antigamente. Eu me contento com ela, mas precisa de mais hospitais
porque os melhores ficam perto da zona dos ricos, né, tem a
desigualdade, não adianta, em tudo há desigualdades e a cidade com isso
não é equilibrada, né, porque tem gente que vai querer equilibrar um lado
para deixar o outro desequilibrado.
Essa fala ilustra bem como esse jovem percebe as contradições existentes na cidade.
Por um lado, a cidade o encanta e o contenta, e por outro, ela traz no seu bojo a marca da
desigualdade, dificultando trânsitos e relações. Essas contradições perturbam os jovens, pois
eles vivem a cidade a partir do seu bairro e o reconhecem como um espaço geográfico e
116
identitário, de grande significação na sua formação e representativo do seu jeito de ser e de
entender a vida.
Para os jovens, mesmo que reconheçam a importância do bairro onde moram e o
quanto ele os constitui como sujeitos eles não perdem o desejo de percorrer outros espaços,
além dos limites da comunidade. Entretanto, eles admitem que a precariedade de recursos
financeiros disponíveis na família dificulta a inserção deles em outros espaços fora do bairro,
contribuindo para o isolamento e para a estigmatização de quem mora na vila.
“Não fale com estranhos”, advertência muito comum proferida antigamente pelos pais
cuidadosos de seus filhos. Hoje, segundo Bauman (1998), tornou-se estratégia da normalidade
adulta. A chegada de um estranho para muitos tem o impacto de um terremoto, que pode
despedaçar a rocha sobre a qual repousa a segurança da vida diária dos “bem-nascidos”. Esses
temores são percebidos pelos jovens das classes populares, causando sentimentos de
indignação, medo e raiva.
Sentimentos que os pode levar ao isolamento e a uma sensação de não pertencimento,
o que é negativo para a auto-estima dos jovens e para a imagem que eles constroem de si
como cidadãos. Segundo Paulo Freire (1997), o medo que o oprimido sente, como indivíduo
ou como classe, pode inibi-lo de lutar, pois esse medo não é uma abstração, é concreto e
causado por motivos concretos. Essa concretude pode ser percebida no depoimento de Raquel
(15 anos), quando fala sobre a estigmatização e a discriminação que os moradores da periferia
sofrem e sobre a diferenciação existente no cuidado com os bairros.
A cidade é bonita, tem homens bonitos e vários locais bonitos, mas, às
vezes, a gente chega em determinados lugares e não é bem recebida só
porque a gente mora aqui, porque a gente é do Pinheiro. É mais pobre,
tem menos venda, é mais vila. Tem discriminação de um bairro pro outro.
Só porque aqui é um lugar humilde, eles acham que a gente vai roubar a
bolsa ou a carteira deles. Eu sei que tem gente aqui que faz isso, mas não
é todo mundo que vai fazer. (RAQUEL, 15 anos)
Considerando a fala de Raquel, sabemos que os habitantes da periferia, com menor
possibilidade de acesso a bens de consumo, são discriminados por uma sociedade consumista
que avalia o ser humano pela quantidade de cartões de crédito que possui e pela
potencialidade dela em adquirir um maior número de bens materiais possíveis. O que permite
117
denominar, na concepção de muitos, esta sociedade como civilizada. Entretanto, Bauman
(1998) lembra que a principal característica da civilidade é a capacidade de interagir com
estranhos sem utilizar essa estranheza contra eles ou fazer com que renunciem a alguns traços
que os fazem estranhos, respeitando-os nas suas diferenças.
Ao contrário de muitas apologias da nova tolerância pós-moderna, ou
mesmo de seu suposto amor à diferença. No mundo pós-moderno de estilos
e padrões de vida livremente concorrentes, há ainda um severo teste de
pureza que se requer seja transposto por todo aquele que solicite ser ali
admitido: tem de mostrar-se capaz de ser seduzido pela infinita possibilidade
e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar
com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça
interminável de cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante
experiência. Nem todos podem passar nessa prova. Aqueles que não podem
são a “sujeira” da pureza pós-moderna. (
BAUMAN, 1998, p. 23)
5.4.1 Percepções Acerca das Necessidades do Bairro
Em se tratando das dificuldades
53
enfrentadas e da necessidade de melhorias no bairro,
a segurança é o maior problema e a reivindicação primeira dos jovens, tanto das meninas
quanto dos meninos. A falta de segurança percebida no bairro e nos diversos espaços da
cidade é sentida pela maioria.
Tabela 7
Necessidades do Bairro
Necessidades do Bairro Total
Segurança
Ginásio de Esporte
Locais para festa
Limpeza
Campo de futebol
Outros
154
116
11
88
53
32
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
Muitos jovens, principalmente as meninas, reclamam da falta de segurança para saírem
à noite, irem às festas, ou andarem livremente nas ruas. Esta intranqüilidade as restringe mais
ao espaço da casa, pois muitos pais não as deixam saírem sozinhas. A violência sexual contra
53
Em virtude de vários jovens terem escolhido mais de uma opção em algumas questões foram contabilizadas
todas as vezes que cada opção foi escolhida.
118
as meninas foi muito citada, basicamente, na fala dos meninos quando questionados sobre o
porquê de os pais as prenderem tanto em casa. Na fala de um jovem, ele justifica: “Minha irmã
não sai depois das 5 horas da tarde, meu pai não deixa. É muito perigoso
para as meninas ficarem
nas ruas durante a noite”.
Os meninos também reclamam da falta de segurança, eles citam os
assaltos nas paradas de ônibus, os tiroteios na vila e a violência existente em decorrência do
consumo e do tráfico de drogas.
O tio avisa para não ficar na rua até muito tarde, tem muita
marginalidade. É muito perigoso. Tem assalto, violência, há muitos loucos
na rua, picham, não respeitam ninguém, são uns vândalos. (VINICIUS, 18
anos)
Eu confesso que tenho medo da violência na cidade. Ser assaltado com
uma arma é o que mais me preocupa. O medo da violência é um
sentimento ruim e que sempre está presente, por isso não volto para a
casa tarde da noite. Olha! Mesmo sendo alto e forte, se um ladrão me
assaltar com uma arma, eu entrego tudo. (GUSTAVO, 18 anos)
A segunda reivindicação é pela construção de mais ginásios e pistas de esportes. Os
jovens sentem falta de locais para jogos com bola, que tenham aparelhos para ginástica e que
possam servir de espaços para realização de gincanas, festas e torneios. Em relação às pistas,
o interesse maior é por uma de skate. Mesmo que alguns não saibam praticar este esporte, eles
falam do interesse em aprender. Quem gosta de skate reclama que não pratica porque as pistas
são fora do bairro. Na conversa com uma jovem de 13 anos, do Ensino Fundamental, ela
contou que gostaria de ser skatista profissional, que gostava muito do skate e de tudo que
cerca este esporte. Ao ser questionada se praticava o esporte e onde, ela respondeu:
“eu não
tenho e não sei andar de
skate
, professora!”
Neste momento, constatou-se o quanto essa jovem estava distante do seu sonho. Ela
conhecia bem o esporte e tinha amigos skatistas. Na prática ela não faz parte deste universo,
se considerarmos que ela mora longe das pistas, não tem skate e não sabe andar. Entretanto,
simbolicamente, ela faz parte dessa tribo, pois conhece bem o esporte pelas revistas, pelos
amigos e presencia os meninos praticarem na rua. Usa roupas que, segundo ela, os skatistas
vestem.
119
Locais para festas foi outra solicitação importante, principalmente na fala das meninas.
Elas reclamam que é difícil sair do bairro para se divertirem. Segundo elas, os pais não as
deixam percorrer espaços longe do bairro, onde estariam os lugares legais para dançar. As
meninas reclamam também que não possuem dinheiro para sair do bairro e para pagar a
entrada nas boas discotecas da cidade. Enfim, elas dizem: “aqui no bairro não tem nada que
presta, prefiro não sair se for para dançar por aqui”!
No sábado em geral eu fico em casa e namoro. Uma vez na vida e outra
na morte, eu saio do bairro. Já fui no barzinho da Cidade Baixa e no
Strike
. No domingo, às vezes, vou para a casa da minha irmã na
Agronomia ou fico em casa. É difícil sair para dançar, não se tem
dinheiro. (ANA, 14 anos)
Os meninos também apontaram que é difícil sair do bairro à noite. Eles reclamam que,
mesmo que tenha ônibus durante a madrugada, os horários são limitados, fazendo com que
eles tenham que esperar um bom tempo nas paradas, o que se torna perigoso. A falta de
dinheiro para a entrada nos bailes, para locomoção, bebida e, eventualmente, ter que pagar a
entrada para uma namorada ou amiga torna esta diversão difícil de ser realizada. Entretanto,
mesmo com todas as dificuldades encontradas, os meninos saem mais do que as meninas e se
sujeitam às poucas opções de lazer existentes no bairro. Foi comum, ouvi-los dizer entre uma
conversa e outra: “Eu vou lá, não é muito legal, mas vou; “para os guris, não dá nada, professora”;
a gente vai com os amigos, qualquer “rolo” que der um ajuda o outro, a gente se vira”.
Essas falas devem ser consideradas quando se pensa em políticas públicas
direcionadas aos jovens. Eles gostariam de ter locais para festas, principalmente festas-baile,
com segurança, a preços acessíveis e em um ambiente agradável e bonito. Em geral, eles
reclamam que os lugares de diversão com a qualidade desejada estão a cargo dos chamados
“empresários da noite” e praticamente inacessíveis economicamente para eles.
Considerando que os jovens que participaram da pesquisa moram em bairros
diferentes, para uma melhor análise, vamos apresentar os dados que mostram as percepções
deles sobre as necessidades de cada bairro.
120
Tabela 8
Necessidades do Bairro - Jovens do Ensino Fundamental e Médio
Necessidades do Bairro
Ensino Fundamental Ensino Médio
Segurança
Ginásio de esportes
Locais para festa
Limpeza
Campo de futebol
Outros
98
59
75
60
14
19
61
43
37
30
14
15
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
Para os jovens do Ensino Fundamental, moradores da Lomba do Pinheiro, a segurança
é a exigência primeira. A violência é uma preocupação constante no cotidiano deles. Em
seguida vem o pedido de locais para a realização de festas na comunidade. Em terceiro lugar,
os jovens reivindicaram um cuidado maior com a limpeza do bairro, seguida de perto pelo
pedido de mais ginásios para a prática de esportes.
Na escola de Ensino Médio, localizada no bairro Partenon, a reivindicação maior
também foi por segurança, seguida por ginásios de esportes, depois os locais para festas. Estes
dados mostram que as políticas públicas destinadas à juventude devem estar atentas às
reivindicações dos jovens tanto, no que se refere à segurança, ao saneamento básico e à
limpeza dos bairros quanto ao que se refere à construção de locais para a prática esportiva e
de lazer.
Tabela 9
Necessidades do Bairro – Meninos e Meninas
Necessidades do Bairro Meninos Meninas
Segurança
Ginásio de esporte
Locais para festa
Limpeza
Campo de futebol
outros
56
66
40
27
34
12
103
55
62
63
21
12
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
121
Na comparação entre meninos e meninas, os meninos exigem, em primeiro lugar, mais
ginásios de esportes, seguido de perto de mais segurança e de locais para festas. Para as
meninas, a reivindicação primeira e bem mais significativa que as outras é por segurança,
depois vem a limpeza do bairro e os locais para festas.
Tipo assim, vamos jogar no ginásio, só tem um por aqui, daí tá a galera
jogando futebol, chega outra galera e vai querer jogar futebol também,
daí tem que esperar, e o pessoal não vai querer esperar, daí já rola um
quebra-pau. (ERICK, 15 anos)
Para as meninas a falta de segurança as restringe ao espaço da casa, dificultando a
saída delas do bairro e se constituindo também em um bom argumento para que os pais as
proíbam de saírem sozinhas ou com as amigas, principalmente à noite. A questão da limpeza
também foi significativa para as meninas. Elas constantemente falavam da sujeira das ruas:
A cidade de Porto Alegre é uma cidade bonita, mas chegando aqui no
bairro é que tu vais ver a realidade mesmo. Lá é tudo lindo. O centro
mesmo é uma beleza. Aí tu chega aqui é cheio de lixo, às vezes, o caminhão
atrasa, os cachorros rasgam o lixo, e fica aquela sujeira. Pra lá é tudo
bonitinho, tiram até foto. É assim porque lá tem gente com mais condições
e daí o caminhão passa na hora certa. (RAQUEL, 15 anos)
5.4.2 Sobre Interdições e Discriminações
Identificar os motivos que dificultam a circulação destes jovens pela cidade apontou
caminhos para entendermos o acesso ou a interdição deles nos mais variados espaços. O valor
da passagem foi o motivo mais apontado por jovens de ambos os sexos. Eles sofrem também
com a distância do bairro em relação ao centro da cidade. Nesse caso, as variáveis estão
relacionadas entre si, pois, se os jovens não possuem dinheiro para a condução e o bairro é
afastado do centro da cidade ou dos locais que eles gostam de circular, este trânsito acaba
sendo dificultado.
122
Gráfico 2
Dificuldades Encontradas para Transitar na Cidade
Dificuldade encontrada para transitar na Cidade
Out
r
as
Falta
d
e
Companhia
D
esc
onheci
m
ent
o
de
p
Discriminação
Distância
do
C
ent
r
o
Val
or
da Pa
s
sagem
M
i
ssi
ng
Count
200
100
0
Em relação à falta de companhia, percebe-se que os amigos também não possuem
dinheiro para saírem do bairro, e muitas meninas reclamam ainda que os pais não as deixam
saírem sozinhas, nem com amigas ou namorados, permitindo saídas somente com familiares
ou vizinhos mais velhos.
Nesse contexto, os jovens de bairros populares acabam privados da maioria das
oportunidades oferecidas àqueles de bairros mais centrais, sendo comum ouvi-los dizer que
não possuem um ‘vt’ (vale transporte) para irem ao centro da cidade, o que lhes possibilitaria
verem um show gratuito ou apenas passearem em um parque onde outros jovens passam as
tardes de domingo. Para as meninas, as opções de lazer e divertimento são ainda mais
restritas, restando para a maioria a televisão e as amigas mais próximas de casa.
Além das poucas condições econômicas, existe a estigmatização sofrida pelos jovens
pobres, pois a imagem de violentos e perigosos, muito forte no imaginário das pessoas,
também os restringe ao seu espaço geográfico. A circulação por determinados bairros mais
centrais, onde vive uma população de maior poder aquisitivo, é praticamente interditada a
123
eles. Mesmo que não exista uma placa dizendo “proibido pobres”, o olhar estigmatizante das
pessoas desses lugares não lhes facilita o acesso. São estranhos na sua própria cidade. Espaço
legítimo de circulação tanto a eles quanto aos moradores desses bairros.
Esta exclusão geográfica favorece a estigmatização dos jovens que habitam a periferia
da cidade, promovendo atitudes discriminatórias que são tomadas por todos os que entendem
que tudo o que é diferente ou estranho a eles deve ser banido e colocado à margem, em
espaços fechados e escondidos, idéias que serviram de base para aqueles que pensaram e
executaram os guetos no passado.
Nesse sentido, Lefebvre (2001) lembra que a separação dos grupos sociais não
acontece de imediato, vai surgindo aos poucos, até aparecerem os primeiros indícios de
segregação e que o caso-limite, o último estágio, é o gueto, e que este pode ser de vários tipos:
o dos judeus, dos negros, mas também dos intelectuais ou dos operários.
Para Lefebvre (2001), o fenômeno da segregação deve ser analisado segundo índices e
critérios diferentes. Fatores sociológicos e estruturais é que determinarão o grau e em que
direção esta segregação caminha. Nesse contexto, não serão, somente, as boas intenções e
vontades filosóficas que irão resolver o problema, mas as práticas sociais realizadas ou
pensadas por toda uma sociedade. São as práticas sociais que determinarão o fim ou a
continuidade desses fenômenos.
A seu modo, os bairros residenciais são guetos; as pessoas de alta posição,
devida às rendas ou ao poder, vêm a se isolar em guetos da riqueza. O lazer
tem seus guetos. Lá onde uma ação é preparada tentou reunir as camadas
sociais e as classes, uma decantação espontânea logo as separou. Ecológicos
(favelas, pardieiros, apodrecimento do coração da cidade), formais
(deterioração dos signos e significações da cidade, degradação do urbano por
deslocação de seus elementos arquitetônicos), sociológico (níveis de vida e
modos de vida, etnias, culturas e sub-culturas, etc). (LEFEBVRE, 2001, p.
94)
A discriminação, tanto social quanto racial, também apareceu de maneira significativa
nas entrevistas, de modo um pouco mais expressiva na fala dos jovens do Ensino
Fundamental, mas também encontrada na dos jovens do Ensino Médio, como um empecilho a
mais, a ser ultrapassado para transitarem livremente pela cidade. Através dos depoimentos,
124
eles dizem sofrer discriminação nos bancos, nas lojas, com o policiamento e até nos ônibus.
Um aluno comentou que a discriminação racial existe nos mais diversos ambientes, inclusive
nos ônibus da cidade, mesmo no do seu bairro. Ele declarou que, “algumas pessoas não sentam
do lado da gente só porque eu sou negro, tem vezes que pode o ônibus estar cheio, mas eles
não
sentam”!
Outro menino comentou que as pessoas de bairros com maior poder aquisitivo e
mesmo a polícia sabem quem é morador da vila só pelo jeito de andar, de se vestir e por isso
os discriminam.
Eu sou um trabalhador, se estou andando na rua só porque sou jovem, uso
calça larga, boné, o brigadiano já me olha desconfiado e me pára. Eles
esquecem que tem muito traficante de terninho por aí. Eu já saio com a
carteira de trabalho no bolso. Os brigadianos sabem que a gente mora na
vila só pelo jeito de andar. Aí eles vêm em cima. (RODRIGO, 17 anos)
Para Carrano (2002), um dos motivos apontados para a circulação limitada dos jovens
pelos diferentes espaços é a histórica discriminação da cidade em relação aos moradores da
periferia, que percebem esses bairros como espaços de miséria e de violência constante,
sendo, por isso, discriminados e colocados à margem da cidade. Segundo o autor, os conceitos
de centro e periferia são definidos pelas regras do jogo de uma cidade, onde mais importante
do que saber com precisão geográfica os limites entre territórios centrais e periféricos é saber
quando e como a participação política das diferentes localidades no jogo da cidade
acontecem.
A pouca transparência nas regras entre os parceiros é um dos elementos que
compromete a ocorrência do próprio jogo democrático. O mais grave na
separação entre centro e periferia está no distanciamento cultural e político
que marginaliza e afasta o conjunto dos cidadãos periféricos da possibilidade
da participação e da convivência democrática com a totalidade da cidade.
(CARRANO, 2002, p. 168)
Além dos fatores citados como discriminatórios no cotidiano dos jovens, o fato de ter
“pouca idade” também se constitui em um fator a mais de discriminação. O que não é
novidade, pois, a partir da década de 1960, a juventude começa a ser vista como um mal
espalhado na sociedade (MORIN, 1984), chegando nos anos 1990 a ser identificada,
basicamente, a de classes populares, como um “problema social”. Nesse contexto, o jovem de
classe popular, negro, morador de regiões afastadas e com pouco estudo é alvo de
125
discriminação. Enquadrando-se em duas dessas classificações, as dificuldades encontradas no
dia-a-dia desse jovem se avolumam.
Paulo Freire, em “Pedagogia da Esperança” (1997), imbuído de uma amorosidade
permanente, fala da sua rebeldia contra toda espécie de discriminação, da mais explícita e
gritante a mais disfarçada, que segundo o autor não é menos ofensiva e imoral. Ele declara
que desde muito pequeno reagia, quase que instintivamente, contra toda palavra, todo gesto,
todo sinal de discriminação racial em relação aos pobres que mais tarde ele definiria como
discriminação de classe.
Freire (1997) adverte que a nossa indignação contra todo o tipo de preconceito e
discriminação deve ser contundente, sem medo ou pena, e que devemos deixar bem clara a
nossa posição, sem meias palavras ou atitudes que não explicitem bem a nossa real posição
frente a uma situação discriminatória. Freire, em toda a sua obra, nos ensinou que só podemos
respeitar a nós mesmos, se respeitamos o outro, igual ou diferente, e para tanto, o diálogo e o
amor são os ingredientes necessários para a tarefa.
O que eu quero dizer é o seguinte: nas minhas relações com negros, com
chicanos, com chicanas, com homossexuais, com homeless, com operários,
brancos ou negros, não tenho porque tratá-los paternalistamente,
transbordante de culpa, mas de com elas e eles discutir, debater, deles ou
delas discordar como companheiros já ou como companheiros que poderão
vir a ser companheiros de luta, de caminhada. (FREIRE, 1997, p. 153)
Na entrevistas, os jovens falaram que sofrem discriminação de todo tipo. Eles
comentaram, que muitas vezes, não se sentem respeitados nos locais públicos, nas lojas e nos
mais variados ambientes da cidade. A imagem dos jovens, na sociedade contemporânea, está
fortemente ligada às drogas e à delinqüência.
A facilidade que os adultos têm para rotular os jovens, conforme padrões
ultrapassados, os impossibilita de conhecer e reconhecer quem eles realmente são. Talvez, o
medo seja de reconhecer a existência desta diversidade juvenil e a complexidade deste
universo. O que colocaria à prova muitas das “certezas” construídas durante toda uma vida,
pois o contato com o novo pode abalar concepções até então inquestionáveis, inibindo os
adultos a uma maior aproximação com os jovens.
126
Sabrina (13 anos) e Raquel (15 anos) nas suas falas exemplificam bem a questão da
discriminação sofrida pelos jovens, e falam da importância do adulto nesta fase da vida:
Eu acho que os jovens são discriminados, pensam que o jovem não tem
direitos, que eles têm que ir pelos mais velhos. É impressionante, mas
eles não dão importância para os jovens, não os ouvem. Por isso muitos
jovens têm depressão. Parece que tudo que a gente pensa está errado.
Dá vontade de sumir. São muitos os problemas. Parece que ninguém gosta
da gente. Por isso acho que andamos em bando, tipo um consolo.
(SABRINA)
A cidade não acolhe bem os jovens e muitos adultos falam que o jovem
não é nada, que esta etapa é muito ruim, que não devia de existir. Então,
por que não existe uma lei que coloque o dia do jovem? Tem o dia do
estudante, mas não tem o dia do jovem, como tem o dia da criança, o dia
dos pais, dia das mães. Tem o dia do trabalhador, mas nós não
trabalhamos. Eu acho que poderia melhorar a nossa situação se eles
abrissem mais espaços para gente, sem deixar que a gente abuse, pois eu
sei que a gente abusa um pouco. Por exemplo, poderia ter um professor
para fazer um grêmio estudantil, a gente precisaria do apoio dele, porque
sem o apoio dele a gente não faz nada. Eu acho que o controle poderia
ser de ambas as partes. Mas tem que ser um adulto que saiba conversar,
que entenda a gente, porque às vezes a gente se estressa muito rápido.
A gente precisa de alguém calmo que não se estresse junto pra piorar a
situação. (RAQUEL)
5.4.3 Da Relação com o Centro da Cidade
Nas conversas, os jovens citaram várias vezes o centro da cidade como um espaço de
circulação freqüente. Muitos deles disseram não gostar muito de circular por esse espaço, mas
o percorriam com relativa freqüência. Segundo o que contaram, o centro é um espaço de
compras para o abastecimento da casa, de pagamentos de dívidas, de fazer cursos técnicos, de
renovar o vestuário e de visitar parentes e amigos que trabalham ali.
127
Tabela 10
Idas ao Centro da Cidade - Freqüência Semanal
Idas ao centro da cidade Freqüência Porcentagem
Uma vez
Duas a três vezes
Quatro a seis vezes
Todos os dias
Total
Abstenção
150
79
20
11
260
6
56,4
29,7
7,5
4,1
97,7
2,3
Total 266 100,0
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
Erick (15 anos), um jovem do Ensino Fundamental, contou que a imagem que ele tem
do centro da cidade não é muito positiva, pois, quando era pequeno, ia ao centro com o avô e
via muitas pessoas pedindo dinheiro e outras roubando, mas que hoje percorre esse espaço
somente para fazer compras e para visitar o pai no serviço. Entretanto, apesar da imagem, em
geral negativa, que Erick tem do centro, ele disse gostar de ir ao Mercado Público
54
com os
amigos e porque acha a região central da cidade muito bonita.
Era ruim ver aquele cego trabalhando lá, que bah! Tri ruim, eu me sentia
mal né, e também a gente tava uma vez caminhando, eu e meu vô, lá na
rua da Praia e daí passou um cara e simplesmente roubou uma senhora
que estava do nosso lado e o cara pum, levou a bolsa dela. Daí eu não me
apeguei a andar no centro.
Durante as entrevistas, no diálogo sobre a rotina dos alunos, constatou-se que os
jovens que vão ao centro da cidade uma vez por semana são aqueles que vão às compras ou
para fazer algum pagamento; de duas a três vezes na semana são aqueles que fazem cursos,
principalmente os de informática; e os que vão de quatro a seis vezes ou todos os dias, são os
que trabalham ou estudam regularmente nesse espaço.
54
O Mercado Público Central é uma construção em estilo neoclássico, com data de 1869. O mercado público é o
ponto mais característico e tradicional de abastecimento da cidade, devido à manutenção da venda a granel e pela
oferta de produtos mais simples até especiarias gastronômicas. Através da Lei Municipal nº. 4317/77, o mercado
foi reconhecido como Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre. Em 1997, termina a obra de restauração
do mercado, com recursos municipais aprovados pelo Orçamento Participativo de Porto Alegre e também através
da colaboração dos comerciantes do mercado. É um espaço onde se compra carnes, peixes, erva-mate,
hortifrutigranjeiros, artigos religiosos, diversas especiarias, e onde se pode apreciar um delicioso sorvete caseiro
e um chopp bem gelado. (PORTO ALEGRE, 2004)
128
5.4.4 Dos Espaços de Maior Circulação e das Rotinas Diárias
Para que tivéssemos uma visão mais ampla do que os jovens fazem no seu dia-a-dia,
foi colocada uma pergunta no questionário sobre os espaços nos quais eles mais circulam
durante a semana. Para melhor analisarmos este questionamento, foi pedido, nas entrevistas,
que os alunos relatassem a sua rotina diária. Primeiro foi perguntado o que eles faziam pela
manhã, tarde e noite, de segunda a sexta-feira, e depois a rotina deles no sábado e no
domingo.
Considerando que a questão central da pesquisa é conhecer os espaços nos quais os
jovens transitam no seu cotidiano e as práticas sociais produzidas por eles nesses espaços,
tanto as respostas dadas nos questionários quanto as falas no momento das entrevistas
serviram de rota para a compreensão de seus itinerários e de suas práticas cotidianas.
Dessa forma, os espaços percorridos e as práticas sociais desenvolvidas por eles foram
se delineando a partir de suas falas. Assim, quando perguntávamos sobre o cotidiano de cada
jovem, tentávamos, a cada resposta dada saber um pouco mais sobre tudo o que os envolvia e,
dessa maneira, fomos descobrindo que na rotina de cada jovem, mesmo que essa,
aparentemente, parecesse sem grandes novidades, se apresentava rica em espaços circulados e
em práticas surpreendentes.
Pais (2002) explica que a idéia de rotina é próxima daquela que expressa o hábito de
fazer as coisas sempre da mesma maneira, considerando a sua regularidade, normatividade e
repetitividade. Entretanto, o autor alerta que, se nos detivermos nessa idéia, a vida cotidiana
pode ser entendida como inerte, calma e superficial. O que não é verdade. Para Pais (2002), a
“aparente” repetitividade não deve ser entendida como uma qualidade, mas como uma
situação, e que a rotina é um elemento básico das atividades sociais do dia-a-dia e que o nosso
olhar de pesquisador deve esmiuçar a paisagem social, prestando atenção nas margens, nos
interstícios para, ao juntar pequenos acontecimentos, dar a eles um sentido mais amplo.
O que à sociologia da vida quotidiana verdadeiramente interessa são os
processos através dos quais as micro e as macroestruturas são produzidas;
são as práticas sociais produtoras, na sua quotidianeidade, da realidade
social. (
PAIS, 2002, p. 48)
129
Para Pais (2002), o social vivido é formado por tudo aquilo que acontece, sejam fatos
anônimos, cotidianos ou transitórios, pois são eles que irrigam o corpo social. Caminhar pela
rua, trocar idéias com os amigos, cumprimentar os vizinhos, esperar na fila ou tomar um
cafezinho, constituem-se em fatos, em geral repetitivos, mas que acabam por nos socializar e
formar uma unidade de interesses, de mentalidade ou personalidade. Pais entende que o
cotidiano é um lugar privilegiado da análise sociológica na medida em que tem o poder de
revelar determinados processos do funcionamento e da transformação da sociedade e dos
conflitos que a atravessam.
À primeira vista, a vida quotidiana saltita diante de nossos olhos como uma
bola de bilhar: redondinha, perfeita, polida e, o mais importante, compacta,
elástica, capaz de vibrar inteira e rodar no verde do pano da nossa mesa de
trabalho a uma qualquer bem dada tacada epistemológica. Contudo, todas
estas primeiras impressões se desvanecem quando nos lançamos no estudo
da vida quotidiana. (PAIS, 2002, p. 157)
Pais (2002) alerta também que não podemos desconsiderar a temporalidade da vida
cotidiana. Temporalidade essa que não é necessariamente cíclica, repetitiva, nem vivida
exclusivamente no presente, mas que dá lugar a uma história da vida cotidiana que não pode
ser encarada como uma história de tudo aquilo que se produz de forma repetitiva, banal e
efêmera.
Nesse contexto, cabe uma reflexão sobre a categoria tempo, pois se de um lado ele se
apresenta de forma concreta, condicionando vidas e organizando dias, por outro, é fluido, pois
é uma invenção, da qual não temos o controle real. Nós é que nos deixamos controlar ou nos
subordinamos a regras impostas pelo relógio, com horários a serem cumpridos.
Para tanto, Pais (2002) distingue duas categorias de tempo: o primeiro seria um tempo
de condutas rígidas, reguladas e hierarquizadas, próprio de um cotidiano repetitivo, cíclico e
organizador de tarefas. Um tempo estabelecido socialmente e de aparente imobilismo.
Entretanto, o autor nos diz que esta aparente rigidez encobre um outro tempo, cheio de
explosões, de surpresas e de imprevistos. Assim, o tempo pode nos parecer, à primeira vista,
cerceador de práticas cotidianas, mas ele jamais perderá a sua força vivificante e inédita.
130
Pais (2002) explica que o primeiro seria aquele marcado pelas instituições e estruturas
sociais que regulam as condutas e criam no nosso imaginário uma cena repetitiva. É o tempo
que mais facilmente denominamos de “o tempo da vida cotidiana”. O segundo é aquele que
Pais chama de “tempo inédito”, que nos faz lembrar de Paulo Freire (1997), quando fala dos
“inéditos viáveis”
55
, que imaginamos ocorrer nessa categoria de tempo, considerando que são
tempos de sonhos, de surpresas e inovações, mas também, de esperas, incertezas e ilusões.
Um tempo onde tudo pode acontecer.
Trazendo os jovens da pesquisa para esse debate, em uma primeira análise,
poderíamos pensar que as meninas da pesquisa se enquadrariam melhor no tempo da vida
cotidiana e os meninos no tempo inédito. Na fala delas, em geral, o cotidiano se apresenta
muito monótono e repetitivo. Pela manhã ir para a escola; depois ir para a casa, almoçar, lavar
a louça, ver televisão ou tirar uma soneca; à noite dar a janta aos irmãos menores, novamente
ver televisão ou conversar com uma amiga no portão da casa e depois dormir. Na fala dos
meninos, é a escola pela manhã; à tarde o encontro na praça para um bate-papo ou o jogo de
futebol com os colegas; à noite caminhar pelo bairro com a gurizada, ficar com as namoradas
na praça ou no portão de alguma casa, e, de vez em quando, algumas saídas noturnas para fora
do bairro.
Entretanto, o brilho nos olhos das meninas ao contar sobre uma caminhada com as
amigas pelo bairro, as ficadas nas festas, a criação de uma música ou de um croqui de roupas,
uma ida ao shopping, mesmo que com menor freqüência que os meninos, era maior do que
quando os meninos contavam as mesmas coisas. Em geral, as histórias das meninas vinham
sempre acompanhadas de sorrisos, de silêncios, de vergonhas, e muitas vezes com um tom de
vitória, como se um pequeno ato de transgressão praticado tivesse dado ao acontecido um
tempero novo.
Quando saio mais cedo da escola, eu e algumas colegas, ficamos, às
vezes, aqui na escola ou caminhando pela rua. Depois descemos a rua,
vamos até a pracinha, conversamos com os guris e ajudamos as amigas a
ficarem
com eles. (LUANA, 13anos)
55
“O ‘inédito-viável’ é na realidade uma coisa inédita, ainda não claramente conhecida e vivida, mas sonhada e
quando se torna um ‘percebido destacado’ pelos que pensam utopicamente, esses sabem, então, que o problema
não é mais um sonho, que ele pode se tornar realidade” (Freire, 1997, p. 206).
131
Parece que o fato de as meninas transitarem menos por espaços fora da casa ou do
bairro, faz com que esses momentos sejam aproveitados mais intensamente e de maneira mais
ampla, abrindo um campo de possibilidades maiores para que o inédito aconteça. Nesse
sentido, Pais (2002) diz que os tempos cotidianos não são exclusivamente cíclicos, como uma
espécie de dança no mesmo lugar, uma rodinha na mesma pista. Para o autor, o tempo
cotidiano é também o lugar do surgimento da alteridade radical, do novo não trivial.
5.4.5 Espaços da Vida Cotidiana
Magnani (2003), no seu livro “Festa no Pedaço”, ao trazer a questão do lazer em
populações de baixa renda, que vive nos grandes centros urbanos, lembra-nos que, mesmo
que os trabalhadores desta classe gastem a maior parte da sua energia para assegurar a
sobrevivência da família, eles não dispensam as partidas de futebol no campinho do bairro, os
bailes no sábado à noite ou as festas de aniversário ou casamento na casa de um amigo ou
familiar.
O mesmo ocorre com os jovens dessa pesquisa. Para eles, apesar da dificuldade de
inserção em alguns espaços da cidade, seja pela falta de dinheiro para o ingresso de um show
do seu cantor preferido, para a compra de uma “roupa da moda” usada nas discotecas da
cidade, ou simplesmente a falta de dinheiro para a condução, o lazer e a festa não estão
totalmente afastados das suas vidas. Nos finais de semana, eles procuram as praças e parques
da cidade, visitam parentes em outros bairros, e ali encontram amigos e fazem novas
amizades, acampam nos arredores da comunidade, aceitam um convite por parte de uma
amiga ou amigo mais velho para irem ao cinema ou em uma pizzaria, e, mesmo a
oportunidade de passarem algumas horas em uma oficina próxima de casa, aprendendo a
dirigir um carro e a mexer na “máquina”, se constituem em momentos de divertimento e
alegria.
Magnani (2003) fala da importância de estudarmos os espaços de encontro e de lazer
das pessoas que vivem nos bairros periféricos, mas nos alerta para que não nos detenhamos
somente nas associações de bairro ou nas condições de precariedade em que vivem esses
sujeitos, mas que dirijamos nossa atenção também ao bar da esquina, ao futebol de várzea, às
rodas de samba, aos rituais de candomblé, entre outras manifestações. Trazendo para essa
132
pesquisa, poderíamos acrescentar as pracinhas do bairro, os campinhos de futebol
improvisados com goleiras de tijolo na frente das casas, o pessoal do rock que se reúne à noite
para tomar seu vinho, seja atrás da igreja ou em uma esquina perto de casa. Sem esquecer as
rodas de pagode, de chimarrão, as rádios comunitárias, as produções culturais desenvolvidas
dentro dos quartos, bem como as diversas oficinas, tanto na escola quanto nos centros
comunitários, e as cerimônias religiosas do candomblé, das igrejas ou dos centros espíritas.
DaMatta (1991) explica que as festas, mesmo dentro da comunidade, tiram as pessoas
do seu cotidiano normal, obrigando-as a ocuparem outros espaços, promovendo
deslocamentos e dando a sensação de um tempo louco e vibrante, de uma temporalidade
acelerada, onde tudo parece estar fora do lugar, muito diferente do cotidiano vivido, das
rotinas consagradas, das conversas diárias com os amigos no portão ou na sala de casa.
Maffesoli (1999) também fala que as festas, as procissões, e mesmo as refeições feitas
em famílias ou com amigos, é um modo de expressar o prazer de estar-junto, do gosto bom de
viver, dos bate-papos, da alegria de beber com os amigos, e da importância do presente vivido
em uma experiência compartilhada. Para Maffesoli, o cotidiano é o terreno natural para a
multiplicidade das práticas sociais, dos pequenos hábitos, dos diversos rituais, e do modo de
ser que adotamos sem prestarmos atenção.
Trata-se de um saber incorporado, o que se pode chamar, para fazer imagem,
de pensamento vicinal que, em virtude de uma sabedoria trágica, sabe que
“os prazeres da vida”, comer, beber, tagarelar, amar, discutir, passam logo, e
que convém fazer uso deles aqui e agora. Nunca se repetirá o suficiente tais
banalidades, pois, de um lado, esquecemo-nos sempre de levá-las em conta,
e, de outro, elas constituem, queiramos ou não, o elemento de base da
“construção” social da realidade. (MAFFESOLI, 1999, p. 107)
Nesses espaços de festa e alegria, a dança, a música, a fé, os símbolos, as ideologias se
fazem presentes e são partes constituintes das várias famílias, das várias juventudes e das
várias cidades existentes em um território conhecido. Para Magnani (2003), estas
manifestações culturais e estas formas de entretenimento mostram que a cultura é mais que a
soma de produtos, é um processo de constante recriação num espaço socialmente
determinado.
133
Espaços que abarcam famílias com suas culturas próprias e com uma riqueza religiosa,
que, em uma análise superficial, podem ser vistas como fator de dominação e alienação,
entretanto, quando aprofundamos a análise, essas manifestações culturais ou religiosas
passam a não ser mais consideradas somente pela lógica do capital e do poder, mas por outras
lógicas, carregadas de alegria e de sonhos, que são portadoras de identidade e constitutivas
desses espaços.
Magnani (2003) explica que a sociedade, na qual vivemos, é atravessada por valores
próprios de uma sociedade industrial, onde a centralidade das preocupações diárias ainda está
em torno da categoria trabalho e marcada por relações de poder. Todavia, ele esclarece que a
organização da vida familiar, as relações de vizinhança, as formas de entretenimento, cultura
e celebração podem constituir-se em tempos e espaços de esquecimento das dificuldades
cotidianas, convertendo-se assim em espaços de prazer.
DaMatta (1991) também fala da importância das festas, das procissões e dos encontros
com os amigos, e esclarece, ainda, que há um tempo vigente na rua, um outro tempo vigente
na casa e um tempo eterno do outro mundo e que somente um sistema complexo de festas
pode relacionar tudo isso, pois ele engloba a sociedade em cada uma destas perspectivas.
Assim, as festas, religiosas ou não, seriam ocasiões privilegiadas nas quais poderíamos ligar a
casa, a rua e o outro mundo, que por alguns momentos, formariam um todo coeso.
Nesse sentido é que Milton Santos (2000) fala da necessidade de revalorizar o dado
local, de revalorizar o cotidiano como categoria filosófica e sociológica, mas também como
categoria geográfica, pois é na vida de todos os dias que a sociedade global vive, interagindo
com o seu próprio entorno, mantendo relações com os de fora, e refazendo cotidianamente a
sua dinâmica interna, onde, de um jeito ou de outro, todos agem sobre todos.
134
5.4.5.1 Espaços De Maior Circulação Juvenil
Tabela 11
Espaços em que os Jovens mais Circulam
Espaços
Total
Casa de amigos e parentes 126
Festas 61
Parque e praças 46
Local de trabalho 44
Shopping 44
Outros 42
Igreja 17
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
O jovem, independente do sexo e do grau de escolaridade, circula muito nas casas de
amigos e de parentes
56
. Com exceção do espaço escolar, esses são os lugares de maior
circulação juvenil. Nos finais de semana, não é muito diferente. As visitas continuam sendo
feitas, principalmente, a parentes, mas agora para bairros mais afastados. Muitos passam o
final de semana com uma madrinha, uma avó ou com os tios. A visita à casa do pai, no caso
dos pais serem separados, foi muito citada. Comer o tradicional churrasco no domingo na casa
de parentes também é comum na rotina dos jovens.
Magnani (2003) conta que nos fins de semana passados na vila, onde fez a sua
pesquisa, ele observava muita movimentação local e diversões variadas na comunidade.
Casamentos, aniversários, batizados, festas religiosas, bailes, ensaios de escola de samba,
excursões, torneios de futebol de várzea, parques, e mesmo ficar em casa, dormir e assistir à
televisão se constituíam em momentos de prazer para os seus sujeitos de pesquisa.
Tudo parecia ser permitido a todos, mas um olhar mais aguçado do pesquisador
percebeu que o bar era privativo dos homens, mas que, em todas as outras atividades e
espaços, o trânsito era livre tanto para mulheres quanto para homens. E, mesmo que o futebol
fosse jogado somente por homens, atraía um grande público feminino. Com o passar do
tempo, ele foi percebendo que nas regularidades, diferenciações e preferências iam-se
delineando espaços e definindo-se relações.
56
Nesta questão vários alunos escolheram mais de uma opção. Desta maneira foram contabilizados todas as
vezes que cada opção foi escolhida.
135
Na comparação, entre meninos e meninas, considerando os espaços percorridos e as
práticas sociais vividas pelos jovens dessa pesquisa, a diferença está intimamente ligada ao
cerceamento dos pais. Determinando, proibições e facilidades, na circulação pelos mais
variados espaços da cidade.
Tabela 12
Espaços em que os Jovens mais Circulam - Meninos e Meninas
Espaços
Meninos Meninas
Casa de amigos e parentes
Festas
Parque e praças
Local de trabalho
Shopping
Outros
Igreja
46
31
23
24
24
13
9
90
32
15
17
20
26
10
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
Assim, considerando as opções escolhidas pelos meninos e meninas, um dado se
destaca. A circulação das meninas pelos espaços privados é mais visível no cotidiano delas.
Verifica-se que as oportunidades de circulação fora do bairro são maiores para os meninos.
Nesse ponto, a permissão dos pais é determinante. Nenhum menino comentou a interdição da
família a determinados espaços. Nos diálogos, eles declararam ter permissão para transitarem
pela cidade, sem restrições de horários e lugares. Enquanto que as meninas, ao justificarem a
sua permanência, por mais tempo, ao espaço da casa, afirmaram:
“eles não precisam arrumar a
casa antes de saírem para rua”
ou “os guris não precisam cuidar das crianças no final da tarde e
fazer a janta à noite”.
Essa liberdade maior abre várias oportunidades de lazer para os meninos, como por
exemplo, acampar, namorar nas esquinas, ficar até tarde da noite na rua ou nos bares perto de
casa, irem alguns bailes longe da comunidade, pegar carona, andar de skate, entre outros.
Desde pequena os guris saem sempre antes das gurias porque quando as
gurias são pequenas elas gostam menos de sair. Gostam de ficar em casa
e os pais ficam mais cautelosos com a gente. É a mania da gente ficar em
casa, sempre em casa, mas hoje eu não gosto. (CAMILA, 14 anos)
136
Entretanto, mesmo com a permissão dos pais para sair à noite, os rapazes evitam esse
horário e preferem circular pela cidade durante o dia. Muitos deles revelaram que nos finais
de semana saem do bairro após o almoço para divertirem-se nos parques da cidade e voltam
para casa no final da tarde.
Eu gosto mesmo é de ir pro Gasômetro
57
porque só ficar em casa enjoa, é
bom ficar em casa, mas às vezes enjoa. Aqui a gente conversa, faz
amigos e tem um pessoal que se encontra sempre. Chego no começo da
tarde e volto lá pelas 19h. Eu não gosto de sair à noite. Em geral viemos
em três, o Márcio, o Lucas e eu. (GUSTAVO, 18 anos)
Na fala deles, a falta de segurança e, conseqüentemente, a violência são fatores
determinantes neste contexto. No gráfico abaixo, podemos observar a preferência de saídas do
bairro durante o dia em ambos os sexos, um pouco maior no caso das meninas. No caso das
jovens, não é somente uma questão de preferência, mas de permissão maior às saídas diurnas.
Gráfico 3
Turno de Saída do Bairro
FEM MASC
Dia
Noite
Turno de saída do Bairro
Pies show counts
No caso das meninas, outro fator limitante são as tarefas domésticas que ficam, na
maior parte do tempo, a cargo delas, criando empecilhos diários para a livre circulação e,
também, o medo que os pais têm de que as meninas sofram violências de toda a ordem
57
O Centro Cultural Usina do Gasômetro é uma antiga usina termelétrica, inaugurada em 1928, com uma
chaminé de 117m construída em 1937. Essa chaminé é hoje considerada um ponto de referência na cidade.
Desde 1991, a usina é um dos mais importantes centros culturais de Porto Alegre, com 18mil metros quadrados
de área com espaços para exposições, eventos e oficinas de arte. Comporta anfiteatros, auditórios, salas de
múltiplo uso, um laboratório fotográfico, um estúdio de gravação, videoteca restaurante, café e livraria. A usina
tem também uma sala de cinema, um teatro chamado Elis Regina e um terraço perfeito para os apreciadores do
pôr-do-sol no Guaíba (PORTO ALEGRE, 2004).
137
quando expostas à rua e à noite, sendo essa a justificativa maior deles. Nesse contexto, o
espaço mais apropriado para elas é o da casa e o tempo o do dia, enquanto que dos meninos é
o da rua e o tempo todo.
Em relação à escolaridade, observamos que os jovens do Ensino Fundamental
circulam um pouco mais pela casa de parentes e amigos, em relação aos jovens do Ensino
Médio. Este dado pode ser analisado por vários ângulos. Primeiro, pelo fato de serem mais
novos, poucos trabalharem e dependerem totalmente dos pais economicamente; segundo, pela
falta de autonomia em circularem sozinhos fora do bairro e, em alguns casos, da não-
permissão ou resistência dos pais em permitir que os filhos ainda tão jovens circulem por
lugares distantes ou desconhecidos deles.
Tabela 13
Espaços em que os Jovens mais Circulam - Jovens do Ensino Fundamental e Médio
Espaços
Ensino Fundamental Ensino Médio
Casa de amigos e parentes
Festas
Parque e praças
Local de trabalho
Shopping
Outros
Igreja
89
40
22
14
24
19
13
47
23
16
27
20
20
6
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
No caso dos jovens do Ensino Médio, muitos deles além de terem mais idade e maior
autonomia para circularem sozinhos, já trabalham e ganham o seu próprio dinheiro, o que os
possibilita transitarem mais livremente pela cidade. Durante uma entrevista, um menino
comentou:
“Bah! Eu conheci uma menina lá do Parcão
58
, antes eu ia lá, tava trabalhando com meu
tio, tinha um dinheiro, agora não dá mais. Sem trabalho, não dá. A gente tem que ter dinheiro pra
sair com as gurias, ainda mais daquele lado de lá”.
58
O Parque Moinhos de Vento, popularmente chamado de Parcão, localiza-se no Bairro Moinhos de Vento, zona
nobre da cidade. Oferece uma infra-estrutura para diversas atividades esportivas e de lazer. No interior do parque
existe uma biblioteca com mais de mil livros de literatura infanto-juvenil. A sede administrativa do parque fica
dentro da réplica de um moinho de vento (PORTO ALEGRE, 2004).
138
Em relação às festas, os jovens do Ensino Fundamental disseram freqüentar mais esses
espaços que os do Ensino Médio, talvez porque alguns desses trabalhem durante todo o dia,
estudem à noite e no final de semana estejam muito cansados. Encontramos também alguns
jovens que ajudam no sustento da família e com contas para pagar no final do mês, o que os
impede de despenderem dinheiro com festas.
Entretanto, mesmo que seja difícil para os jovens encontrarem locais na comunidade
ou fora dela, para dançarem, ou que não tenham dinheiro para pagar o ingresso de uma
discoteca, a diversão não está ausente do cotidiano deles. As festas em família, os
aniversários, os casamentos, alguns bailes na comunidade ou em outros bairros não estão fora
da vida deles.
O shopping center também foi muito mencionado na fala dos jovens das duas escolas.
Esse é um espaço muito apreciado por eles, independente do sexo e da classe social.
Canevacci (1993) explica que o shopping center é a somatória máxima do estilo pós-
moderno. Espaço urbano protegido e seguro “no qual todos os modelos se somam, se
justapõem sincronicamente, onde se experimenta e se entra em contato com a hierarquia dos
olhares, entre a fantasmagoria das mercadorias e dos narcisismos. Espaço no qual o tempo é
como que suspenso, ou, por assim dizer, adiado” (CANEVACCI, 1993, p. 139).
Na fala dos jovens, o desejo de circular por esses espaços ficou evidente. Todavia, a
falta de dinheiro, a distância e a discriminação social e racial faz com que eles não circulem
tanto por eles quanto desejariam. Até porque, a partir de algumas falas, eles denunciaram a
existência de shopping onde “pobre não entra”.
No s
hopping
A’ eu só ia quando tava trabalhando, era um bico, em obras.
Agora tá difícil de arranjar dinheiro, tá enrolado, não posso mais ir, ando
sem dinheiro. Agora, no
shopping
‘B’ já dá, é mais do povão, do gueto,
sabe? (MAURÍCIO, 15 anos)
Lá tem discriminação econômica e racial. Uma vez no
shopping
, eu fui
discriminada com as minhas amigas por um outro grupo de meninas que
estavam lá! (PAULA, 15 anos)
Quando Bauman (2001) escreve sobre os shoppings e as relações que ali se
estabelecem, ele lembra que os encontros, nesses espaços, em geral lotados, precisam ser
139
breves e superficiais e que esse é um lugar protegido contra todos aqueles que não estão de
acordo com as regras que governam esses espaços. Aqueles que não estiverem
comprometidos com a lógica do consumo são considerados consumidores falhos e
conseqüentemente classificados de intrometidos, chatos e indesejáveis. Para Bauman, “o
templo consumo bem supervisionado, apropriadamente vigiado e guardado é uma ilha de
ordem, livre de mendigos, desocupados, assaltantes e traficantes” (BAUMAN, 2001, p. 114).
O local de trabalho, como espaço de circulação, foi escolhido em segundo lugar pelos
jovens da escola que oferece Ensino Médio, isso se deve porque é nessa escola que
encontramos um número maior de jovens com empregos fixos ou estagiários. Os jovens que
conseguiram um emprego fixo disseram gostar da experiência e do ambiente de trabalho. Nas
primeiras entrevistas, o espaço religioso foi pouco citado pelos jovens tanto do Ensino
Fundamental quanto do Ensino Médio. Na fala deles, a crença em Deus é maior do que a
crença em doutrinas religiosas.
5.4.6 A Questão Religiosa para os Jovens
Nos diálogos com os 11 jovens que participaram de vários encontros com a
pesquisadora, eles colocaram o que a experiência religiosa significa na vida de cada um deles.
Mesmo que os jovens não tenham dado muita ênfase a essa questão, ela não esteve ausente na
fala deles. Todos declararam ter uma crença, seja através de uma religião institucional, seja
em algo que está fora dos limites do material.
Erick, 15 anos, em um momento da pesquisa disse não ter uma religião oficial.
Entretanto, ele declarou: “a minha religião é o
Rock
”. Ele segue e professa a ideologia do
movimento grunge, do qual pertence, e, segundo sua fala, o faz transcender para um plano
filosófico e mesmo espiritual, vendo no movimento valores que não são religiosos, mas
éticos, nos quais ele acredita e divulga. O mesmo acontece com Sabrina, 13 anos, que
somente ia à igreja por imposição da mãe e no momento está procurando em filosofias
alternativas, como a Wicca
59
, estabelecer relações com o místico e com o filosófico. No caso
59
Não reconhecemos nenhuma hierarquia autoritária, mas honramos aqueles que ensinam, respeitamos
aqueles que compartilham seu conhecimento e sabedoria superiores, e validamos aqueles que, corajosamente, se
doam a uma liderança”(6º Princípio da Crença Wiccaniana, retirado do site: www.claudiahauy.com.br).
140
da Camila, 14 anos, ela declarou que já foi espírita, e que hoje não é nada, mas que acredita
em Deus, o mesmo disse Fernando, quando falou sobre religião: “eu não tenho religião, mas
acredito em Deus”.
Não gosto da igreja católica. No momento não tenho religião.
Antigamente eu ia à igreja quando a mãe me obrigava. Agora estou
estudando a ‘Wicca’, que é uma religião que respeita a natureza. Tem
Deuses e Deusas. Foi a minha irmã que me apresentou à religião.
(SABRINA, 13 anos)
Os outros jovens declararam ter uma religião. Eduardo, 17 anos, contou que a religião
que freqüenta é o Batuque. Explicou que é uma crença que tem origem na África e que a
segue por ser uma opção de família. Marina, 15 anos, declarou que na questão religiosa, não é
“radical”. Ela vai à missa, confessa os pecados, reza, faz catequese, mas a religião que segue é
a Umbanda. Ao falar sobre a sua crença, declarou existir muito preconceito em torno dessa
religião.
Luana, 13 anos, é espírita, nos sábados à tarde participa do grupo de evangelização de
jovens no Centro Espírita, localizado perto da sua casa, e diz gostar muito das atividades da
Oficina de Teatro que há no Centro. Beatriz, 14 anos, às vezes, no domingo, vai à igreja
católica situada no bairro. Considera-se um pouco espírita e um pouco católica. Raquel, 15
anos, se declara umbandista, mas também freqüenta a Igreja Católica, a Igreja Evangélica e o
Centro Espírita do bairro.
Eu estava muito revoltada comigo mesma e com todo mundo. E então para
me acalmar, eu entrei pra Umbanda. Toda vez que eu estou me sentindo
mal, eu vou lá, fico na frente dos pais, acendo uma vela e peço para que
eu me sinta melhor. Eu acho que a fé ajuda muito. A fé te deixa bem
melhor. (RAQUEL, 15 anos)
Gustavo, 18 anos, contou que, uma vez por semana, vai à Igreja Evangélica da qual a
família faz parte, mas não participa do grupo de jovens da igreja. Marta, 16 anos, também é
evangélica, segue fielmente os dogmas da sua igreja e participa ativamente de todas as
atividades desenvolvidas nesse espaço. Durante as nossas conversas, a questão religiosa se fez
presente em todos os momentos. Freqüentemente a jovem falava da sua fé, dos seus irmãos
em crença e da importância da igreja na sua vida e na vida das pessoas.
141
Segundo Marta, os jovens procuram nas festas, nas bebidas e, alguns, nas drogas a
felicidade. Ela acredita que os prazeres conseguidos por esses caminhos são momentâneos e
efêmeros, pois, quando terminam, não resta nada de bom, ficando um vazio na pessoa, que
para ela e o grupo da igreja só a fé consegue preencher.
DaMatta (1991), que até aqui, nos ajudou a entender a importância das categorias
sociológicas, casa e rua, nos traz também, através de seu estudo antropológico sobre a
sociedade brasileira, a forte relação que os brasileiros têm com o mundo espiritual, e explica
que é nesse contato com o outro mundo que “somos capazes de construir as compensações
que muitas vezes não conseguimos realizar quando nos confrontamos com o conflito e o
dilema ‘deste mundo’ de casas e de ruas, de amigos e de leis impessoais, de desejos
individuais e demandas morais coletivas” (DAMATTA, 1991, p. 163) .
5.4.7 Atividades Cotidianas: Para Além da Escola
Mesmo reconhecendo as limitações dos jovens no que se refere às opções de lazer e
circulação pelos mais variados espaços da cidade, sabemos que eles realizam algumas
atividades
60
durante a semana, além de irem à escola. De acordo com os questionários, os
afazeres domésticos e os esportes foram os mais referidos, seguidos dos cursos.
Tabela 14
Atividades Cotidianas
Atividades Total
Atividades domésticas
Esportes
Cursos
Trabalho temporário
Trabalho fixo
Outros
Igreja
149
94
50
40
35
32
20
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
A realização de cursos tem um lugar especial na rotina dos jovens. Na fala deles,
basicamente, isto se deve a uma exigência do mercado. Os jovens entendem que a escola não
60
Nesta pergunta, os alunos também escolheram mais de uma opção. Assim foram contabilizados todas as vezes
que cada opção foi escolhida.
142
os prepara adequadamente para entrarem no mercado de trabalho e que precisam se
aperfeiçoar para lutar por uma vaga nesse mercado. Os cursos de informática foram os mais
citados, seguido dos cursos de papel reciclado, de padaria, borracharia, corte e costura,
lavagem de automóveis e de mecânica.
Tabela 15
Atividades Cotidianas de Meninos e Meninas
Atividades Meninos Meninas
Atividades domésticas
Esportes
Cursos
Trabalho temporário
Trabalho fixo
Outros
Igreja
23
64
21
22
16
9
8
111
27
30
17
22
18
12
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
A opção esporte, mais escolhida pelos meninos, se deve basicamente ao futebol,
desenvolvido, em geral, nas praças e campinhos perto das moradias. Nas conversas com os
meninos, poucos foram os que disseram não jogar futebol, principalmente no Ensino
Fundamental, e muitos deles praticam o esporte quase que diariamente.
Em se tratando de afazeres domésticos, os dados deixam claro que esta é uma
atividade prioritariamente desenvolvida pelas meninas. A limpeza da casa, a higiene com a
roupa e com os alimentos, em geral, ficam a cargo delas. Esta situação também foi observada
durante as entrevistas, quando as jovens relataram a sua rotina diária. Na fala delas esta
situação é recorrente, mas não é aceita sem queixa e desaprovação. Elas falaram sobre o
assunto com uma certa revolta e culpam os pais, principalmente as mães, por este estado de
coisas. Alguns meninos também afirmaram realizar essas atividades, mas não falaram da
obrigatoriedade de fazê-las.
À tarde eu arrumo a casa, assisto TV e converso com as amigas na casa
delas ou na frente da minha. (CÁTIA, 14 anos)
143
Eu cuido da minha irmã, limpo a casa, cuido dos cachorros, lavo a roupa.
Durante a semana não posso conversar com as amigas só no sábado e no
domingo. (EVA, 13 anos)
Eu levo a minha irmã no colégio, arrumo casa, a janta e depois vou para a
casa do meu namorado que é aqui perto. (RAFAELA, 15 anos)
Eu arrumo a casa de tarde e fico lá, quando a mãe não está eu aproveito
e saio, vou para a casa de amigas e colegas ou fico na frente da casa. O
meu irmão pode tudo e, só porque é guri, não faz nada em casa. (SILVIA,
15 anos)
Considerando essas falas, Melucci (2001) afirma que é na resistência cotidiana que se
afirma o patrimônio da experiência feminina e que é no dia-a-dia da família, nos gestos, nos
movimentos repetitivos, na lentidão do tempo, feito de silêncios, mas cheio de símbolos e
sinais, que essa resistência toma forma.
Melucci (2001) ainda quando se refere à condição feminina e às atividades que as
mulheres, ainda, e sempre, dedicam à família, ao conchego e organização do lar, lembra que é
nestas atividades que se descobre o valor e o significado da resistência cotidiana como
patrimônio da experiência feminina e que a família foi e ainda é o espaço do cotidiano, “o
tempo mais típico da historia das mulheres, símbolo dos ritmos do nascimento e da morte, do
amor e do sofrimento. Um tempo lento, quase igual a si mesmo, feito pela repetição de dias e
gestos, um tempo de muitos silêncios e poucas palavras” (MELUCCI, 2001, p. 106).
5.4.8 Os Espaços Preferidos pelos Jovens
Com o objetivo de sabermos os espaços nos quais os jovens preferem estar no seu
cotidiano, foi solicitado a eles, considerando as 14 alternativas propostas no questionário, que
enumerassem em ordem crescente os seus espaços preferidos
61
. Os gráficos a seguir dão conta
deste questionamento, complementando e ratificando questões anteriores.
61
Para a confecção dos gráficos foi escolhida a opção de número 1 para o espaço de maior preferência e a opção
14 para o de menor preferência.
144
Gráfico 4
Espaços de Maior Preferência Juvenil
FEM MASC
ginásio
centro
escola
palco
rua
festas
campo
praças
trabalho
lar
quarto
casa de amigos
shows
igreja
Espaços que mais gosta de estar
Pies show counts
O lugar de preferência das meninas é o seu quarto, local, caracterizado por elas, de
refúgio e de sonhos. Muitas meninas disseram gostar do quarto por ser um local onde elas
podem narrar as suas confidências no diário, escrever cartas, compor letras de música e ficar a
sós com seus sonhos e medos. É um local de paz e intimidade. Depois é o lar, local de
segurança e de compartilhamento. Ali, junto com os familiares, elas dividem as alegrias, as
tristezas e a lutas diárias.
Não gosto de ser quieta, mas não consigo mudar isso. Tenho momentos
que me sinto solta e outros não. Gosto de expressar minhas opiniões
sobre as outras pessoas, assim desde os 6 anos tenho um diário onde
escrevo todos os meus “pensamentos pessoais”. O que mais faço quando
estou em casa é escrever. Adoro ler, escrever letras de música de minha
autoria e as que eu escuto. (BEATRIZ, 14 anos)
Quando estou em casa gosto de ficar no meu quarto escrevendo qualquer
bobagem e ouvindo música. (CAMILA, 14 anos)
Eu fico no meu quarto, escrevo para amigos aqui no Rio e brasileiros que
estão fora do país que eu conheço só por fotos. Eles estão falando de
Deus lá fora, e a igreja ajuda, então alguém tem que manter contato.
Eles mandam correspondência e eu gosto de escrever, aí eu comecei a
mandar cartas. (MARTA, 16 anos)
As festas apareceram em terceiro lugar. Nesses espaços elas aproveitam para dançar,
encontrar os amigos, os colegas da escola, para ficar
62
ou namorar. Nos diálogos elas
reivindicaram de maneira contundente um local para festas, com preços acessíveis e com
62
“Ficar” é uma expressão muito usada pelos jovens e adolescentes. Eles consideram o “ficar” como uma etapa
anterior ao namoro. Com beijos, carícias e até a relação sexual, mas não necessariamente. Em geral, o que sela o
“ficar” é o beijo. Entretanto, o ficar com um menino ou menina não determina que o namoro irá acontecer. Em
geral, quando as “ficadas” com o mesmo parceiro se tornam freqüentes, pode-se passar à categoria de “ficante
oficial”.
Espaços em que mais gosta de estar
145
segurança. Poucas meninas saem para dançar nos finais de semana, o que lhes deixa tristes,
pois sem as condições que elas reivindicam a freqüência a este tipo de divertimento é cada
vez menor.
Para os meninos o ginásio de esportes é o local preferido. Praticar esportes e jogar
futebol é uma atividade constante no cotidiano deles. A casa foi escolhida como segundo
espaço. Para eles, a casa é o local do conforto e da segurança. Nas entrevistas, eles falaram da
importância da família na superação de problemas, da ajuda dos familiares para enfrentar as
dificuldades diárias e da sensação de proteção que a casa oferece em relação a outros espaços
circulados.
Durante a noite, menos na quinta eu vou para a academia, é minha prima
que paga, ela é bem legal, a gente sai junto, ela tem 23 anos, mora com a
minha avó e com a minha tia nos fundos da casa. Eu vou também na
quadra do ginásio aqui perto, é uma opção para quem não pode pagar
academia. No final de semana eu saio com minha prima para as festas
fora do bairro. Na época do Carnaval eu vou aos ensaios na quadra dos
Imperadores do Samba. Às vezes vou com meu tio que mora aqui atrás
para o jogo do Grêmio, de noite a gente sempre conversa, troca uma
idéia, ele me dá conselhos. (LUÍS, 18 anos)
É difícil ser jovem hoje, mas tendo o pai e a mãe difícil não é. No meu
caso que o pai trabalha, a mãe trabalha, tem uma estrutura boa lá em
casa, o pai bota comida dentro de casa, dá dinheiro, faz tudo aquilo que
um pai tem que fazer pra um filho, não é tão difícil. (FERNANDO, 14
anos)
Os locais onde acontecem shows foram escolhidos como o terceiro espaço em que eles
preferem estar. Para os meninos esse é um espaço onde estão seus ídolos, de aglomeração
juvenil, da possibilidade de encontros, de fazer novas amizades e de sentirem-se livres. A
imagem que eles têm desses locais os reporta a um espaço recheado de luzes, música bem alta
e diversão garantida. Entretanto, a maioria deles não tem dinheiro para participar com
freqüência desses eventos.
O que eu gosto mesmo é ir a shows, mas não tenho ido ultimamente. Em
geral são caros. (ERICK, 15 anos)
146
Gráfico 5
Espaços de Menor Preferência Juvenil
FEM MASC
ginásio
centro
escola
palco
rua
festas
campo
praças
trabalho
lar
quarto
casa de amigos
shows
igreja
Espaços que menos gosta de estar
Pies show counts
Confirmando dados anteriores, o espaço religioso foi o de menor interesse para ambos
os sexos. Entretanto, conforme o gráfico e a fala das meninas, mesmo não apreciando muito
este espaço, as meninas o freqüentam um pouco mais que os meninos. Esse é um espaço que
os pais permitem que as meninas circulem sem problemas e, em geral, elas vão acompanhadas
pelos familiares. O campo de futebol também não é muito atraente para as jovens da pesquisa.
Nas entrevistas, somente uma menina comentou que gostava de jogar futebol. O prazer de
estar no palco também foi registrado por poucas meninas.
Quanto aos meninos, em primeiro lugar está o espaço religioso, como um local de
pouco interesse. Durante as primeiras entrevistas, os meninos praticamente não falaram sobre
a questão religiosa. O trabalho e a escola também foram apontados por eles como espaços de
menor preferência. O trabalho que eles conseguem, segundo depoimentos dos jovens,
principalmente do Ensino Fundamental, é, na maioria das vezes, precário e temporário.
Muitas vezes trabalhando muito e ganhando pouco. Talvez, essas falas justifiquem o pouco
interesse por permanecerem nesse espaço. Foi comum ouvir, durante os diálogos, que eles
freqüentemente trabalham como ajudante de obra ou em algum outro trabalho pesado e
sempre com baixa remuneração.
O espaço escolar apontado nos questionários em terceiro lugar como de pouco
interesse pelos meninos, também durante as entrevistas foi citado com pouco entusiasmo.
Fora as amizades e as atividades lúdicas, a escola foi sempre mencionada como um espaço
necessário para a vida deles.
Espaços em que menos gosta de estar
147
Nos depoimentos, em geral, a escola é o lugar de aprender a falar bem, de se
comportar na sociedade e de “ser alguém” na vida. A partir dos diálogos, foi possível perceber
que no espaço escolar, ainda hoje, persiste a imagem de um sujeito que apenas aprende e
cumpre regras, o sapiens, e que na rua existe um outro, que briga, inventa e cria, o demens
(MORIN, 1999), criando abismos e dificultando relações nesse espaço.
Perceber essas duas faces, do mesmo sujeito, que não é homogêneo, mas único na sua
diversidade, pode contribuir para que o sapiens possa se manifestar na rua e que o demens
tenha reconhecimento na escola, permitindo que, principalmente, a sala de aula não se
constitua somente como um lugar de tarefas a serem cumpridas, mas também de ludicidade.
5.4.9 A Relação com o Espaço Escolar
Durante as entrevistas, a escola, como instituição formadora, só apareceu na fala dos
jovens quando lhes era perguntado algo específico sobre o ensino ou sobre os professores. Na
fala deles, a escola, freqüentemente, era citada como um espaço de encontros, de alegria, de
fazer novos amigos, conversar e namorar.
No questionário, quando perguntados sobre o que mais gostavam na escola, a opção
“colegas e amigos” foi a mais escolhida por jovens
63
de ambos os sexos, tanto do Ensino
Fundamental quanto do Ensino Médio. A opção “aprendizagem” também teve destaque,
ficando em segundo lugar na preferência dos jovens. Indicando que o aprender também é
prazeroso na escola e mostrando a importância dela para eles.
63
Aqui também vários alunos escolheram mais de uma opção. Desta maneira, foram contabilizados todas as
vezes que cada opção foi escolhida.
148
Tabela 16
O Melhor da Escola
O Melhor da escola Total
Colegas e Amigos
Aprendizagem
Professores
Outros
Livros e Cadernos
Alimentação
181
120
50
22
21
17
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
Nos diálogos, eles expressaram a alegria do encontro com colegas e amigos na escola.
Em relação aos conteúdos curriculares transmitidos pelos professores e os temas trabalhados
em sala de aula, estes praticamente não foram citados pelos jovens. Entretanto, quando
perguntados sobre o ensino que lhes era ministrado na escola e sobre a relação deles com seus
professores, a maioria disse gostar dos professores, mas não de todos, e quanto ao ensino, em
geral, disseram que poderia ser melhor.
5.4.9.1 Os Espaços na Escola
Durante as primeiras entrevistas, foi perguntado aos jovens quais os locais no espaço
escolar nos quais eles preferiam estar. Nessa micro-geografia (Rego, 2004)
64
, o pátio foi o
mais escolhido. Para os jovens, esse é um espaço de encontro com os colegas e amigos, de
praticar esportes, das brincadeiras e do bate-papo, enfim, da sociabilidade, da interação e do
movimento.
64
Fazer uma “micro-geografia” da escola, a partir da fala dos jovens, foi uma sugestão do Prof. Dr. Nelson Rego
(2004), no momento da defesa do Projeto de Tese, para que com esse questionamento os jovens pudessem
indicar espaços mais visíveis na escola e mais propícios à cumplicidade dos segredos, espaços que podem se
converter em cenários para múltiplas relações. Para Nelson Rego, “ ‘cenários’ são tanto aquilo que possibilita a
cena quanto aquilo que é constituído por ela”.
149
Tabela 17
Locais Preferidos na Escola
Local na Escola Ensino Fundamental Ensino Médio
Pátio
Saguão
Fundos da escola
Sala de aula
Frente da escola
Bar dentro da escola
Sala de informática
Bar fora da escola
Quadras
Biblioteca
Ginásio
Corredor da escola
Refeitório
23
-
2
7
8
-
6
-
6
6
10
4
4
11
4
4
5
3
2
2
1
1
1
-
-
-
Fonte: Dados Obtidos Através das Entrevistas
Entretanto, outros espaços na escola, também foram citados por eles. Lugares que
podem estar tanto dentro quanto fora dos domínios institucionalizados. Mostrando, dessa
maneira, que a escola não é somente a sala de aula ou o pátio, mas que existem outros espaços
que a compõem. Os internos, que denominei anteriormente de domiciliados, que podem ser a
biblioteca, a secretaria, o refeitório, e outros que se identificam com o espaço da rua, os
arruados, como por exemplo, a frente da escola, os corredores ou as escadas próximas ao
portão central.
A frente da escola pode ser classificada como um espaço de transição entre a rua e a
escola, pois ao mesmo tempo em que os jovens estão na escola, eles estão na rua. Na prática
eles estão fora, mas simbolicamente estão nos domínios da escola. Eles sabem que a qualquer
momento podem entrar, não estão totalmente desligados deste universo, mas também não
estão inteiros na escola. Os jovens que freqüentemente optam por esse espaço e que ficam ali
alguns períodos ou mesmo horas são alunos que de uma hora para outra podem evadir-se.
Outros jovens também citaram o saguão, os fundos da escola, o bar, as quadras de esportes,
como locais agradáveis de estar. Algumas falas justificam a preferência pelos espaços
arruados. Alguns declararam:
150
Eu gosto do banquinho lá dos fundos, é bom pra conversar.
Eu acho a sala de aula muito xarope, gosto mesmo é de ficar no saguão.
Eu gosto da frente da escola, do lado de dentro, lá tem um solzinho
gostoso e a gente vê o movimento todo da rua.
Eu prefiro a parte dos fundos, lá perto do barranco, a gente fica lá e
ninguém incomoda.
Eu gosto do corredor, entre uma aula e outra a gente vê o movimento,
conversa e brinca.
As quadras são legais. Eu adoro vôlei, jogar com os guris, é bem legal.
O pátio, na hora do recreio, é o local que eu posso conversar com as
minhas amigas, elas são de outra turma.
Ao citarem os espaços internos, os domiciliados, a biblioteca foi a mais citada. Esse é
o espaço de quem gosta de ler livros, de pegar revistas da moda e aquelas direcionadas
especificamente ao público juvenil. É o preferido também de quem não gosta de ficar no pátio
na hora do recreio e nas horas livres. Muitas foram as solicitações para que as bibliotecas
ficassem permanentemente abertas. No Ensino Fundamental, os pedidos foram mais
numerosos, muitos alunos reclamaram que as bibliotecas nem sempre estão abertas.
Um maior acesso à sala de informática foi outra reivindicação freqüente. Muitos
disseram não freqüentarem esse espaço pela dificuldade de acesso a estas salas. Eles
declararam:
A sala de informática nunca está aberta!;A gente só pode ir lá se um professor
levar, e eles quase nunca levam”; “A gente só pode usar a internet para trabalhos que a
professora manda, eu queria mexer no computador, ver o que eu gosto, navegar, como o pessoal
fala”!
Nessas falas, estão colocadas algumas solicitações freqüentes dos alunos das três
escolas. Entretanto, as maiores reclamações foram feitas pelos alunos do Ensino Fundamental.
As solicitações talvez sejam maiores nesse nível de escolaridade devido ao fato de
encontrarmos alunos no Ensino Médio que tenham computadores em casa ou no trabalho.
Nos diálogos com os jovens, a sala de aula foi descrita basicamente como um local de
estudo. Alguns citaram casos ocorridos ali relacionados à indisciplina, a conflitos com
professores e alguns apelidos dados por eles a determinados professores. Os jovens que
escolheram a sala de aula como o melhor local na escola, são na maioria as meninas, os mais
151
quietos e os de poucos amigos. Na escola de Ensino Médio, dos 5 alunos que escolheram esse
espaço como mais agradável de estar, 4 são jovens do sexo feminino (2 com 15 anos, 2 com
19 anos) e 1 aluno do sexo masculino de 32 anos. Na escola de Ensino Fundamental, dos 7
jovens que escolheram esse espaço, 6 são do sexo feminino (1 com 13 anos; 3 com 14 anos; 1
com 15 anos e 1 com 16 anos) e 1 jovem do sexo masculino de 14 anos.
Peter Mclaren (1992) ao falar sobre o cotidiano escolar de uma escola secundária,
enfoca as maneiras pelas quais as ideologias dominantes se manifestam nos vários rituais
vivenciados nas escolas que podem instigar ou limitar as práticas sociais e as experiências
vividas pelos jovens estudantes. Para o autor, os rituais escolares podem abranger múltiplos
significados e permitir que se desenvolvam formas de dominação e também de resistência no
espaço escolar. Nesse sentido, o capital cultural dominante pode entrar em conflito com a
cultura própria que os jovens trazem para a escola.
Para entender esta dinâmica, Mclaren (1992) fala de “estados de interação” que
sugerem estilos de interação com o ambiente e com os outros. Para Mclaren (1992), os
“estados de interação” podem ser entendidos como conjuntos organizados de comportamentos
dos quais emerge um sistema dominante de práticas vividas. O autor explica que os estados
de interação estão ligados entre si e emaranhados em um sistema central dominante. No
contexto investigativo dessa tese, dois estados de interação são anunciados, o “estado de
estudante” e o “estado de esquina de rua”.
O “estado de estudante” se refere a uma série de normas, hábitos e costumes que se
espera do aluno. O objetivo maior dos jovens nesse estado será estudar, trabalhar muito e
cumprir as normas instituídas. Em geral, eles são forçados a entrar no “estado de estudante”
através de um sistema que os premia ou pune.
No estado de estudante, os jovens geralmente ficam quietos, demonstram
boas maneiras, são previsíveis e obedientes. Há uma sistematicidade
pronunciada nos gestos. (MCLAREN, 1992, p. 138)
Enquanto envolvidos no “estado de esquina de rua”, os jovens são livres, donos de seu
próprio tempo e mais dinâmicos. Eles mantêm relações com os colegas, preservam suas
identidades e constroem relações que são forjadas na rua ou no pátio. O pátio da escola ou a
152
rua propriamente dita torna-se palco onde o indivíduo representa seu drama, suas vitórias,
vinganças, resistência ou revitalização. Os jovens, quando estão no “estado de esquina de
rua”, freqüentemente se sentem mais alegres e dão vazão a frustrações reprimidas.
Para Mclaren (1992), existe um controle por parte dos professores que tentam
demarcar limites entre o “estado de esquina de rua” e o “estado de estudante”, permitindo que
esses limites sejam permeáveis apenas durante tempos prescritos, tais como o intervalo entre
uma aula e outra ou ao final do dia escolar, para que haja ordem no espaço escolar e um bom
andamento das atividades propostas, cerceando, com freqüência, no espaço escolar, palavras e
atos.
Mclaren (1992) explica que os jovens, quando estão no “estado de esquina de rua”,
exibem uma exuberância não controlada, muito diferente daquela do “estado de estudante”.
Lembrando também que as práticas juvenis, quando realizadas no espaço da rua, são mais
soltas, o contato físico é mais intenso e os movimentos são geralmente irrestritos e
desgovernados. O tempo no “estado de esquina de rua” é relativamente não-estruturado, o que
significa dizer que várias atividades podem ocorrer simultaneamente, possibilitando aos
jovens uma ampliação nas suas capacidades criativas e de conhecimento. Diferente do tempo
no “estado de estudante”, que é mais metódico e linear, no “estado de esquina de rua”, os
jovens são capazes de criar seus próprios horários e desenvolver livremente suas práticas
sociais.
5.4.9.2 Abertura da Escola nos Finais de Semana e nas Férias
Em relação a abertura das escolas nos finais de semana e nas férias, a maioria foi a
favor, sugerindo a possibilidade de a instituição oferecer cursos, promover oficinas, organizar
gincanas, realizar festas e liberar as quadras para a prática de esportes e a biblioteca para a
comunidade. Dos 266 alunos que responderam ao questionário, apenas 66 alunos foram
contra a abertura, 33 meninos e 33 meninas.
Para esses jovens, as férias e os finais de semana não são períodos de irem à escola.
Para alguns, as férias são épocas de descanso e, para outros, a escola poderia ser depredada
nesses períodos. Nas entrevistas, foi possível perceber também que muitos acreditam que a
153
escola quando aberta nas férias e nos finais de semana desenvolveria as mesmas atividades
realizadas no período oficial de aula. Algumas meninas disseram:
Acho que está bom como está, afinal todo mundo precisa descansar.
Não, porque eles bagunçariam mais do que ela já está.
A escola está bem organizada agora, a comunidade não saberia cuidar.
Alguns meninos complementaram:
Prefiro ficar com a minha família e com as pessoas que gosto.
Férias é bem longe da escola, já basta agüentar elas (
as professoras
) no
ano letivo.
Não, já é ruim quando abre para ter aula.
Por mim poderia até fechar que não fazia falta.
5.4.9.3 Atividades Dentro e Fora da Escola: Cultura, Esporte e Lazer
Nos questionários, vários alunos responderam que participavam de alguma atividade,
em grupo, tanto dentro quanto fora do espaço escolar. Entretanto, os índices daqueles que não
participam foi bem superior. Um dado significativo se considerarmos, que durante as
entrevistas, os jovens que disseram não participar de nenhuma atividade em grupo, fora
aquelas realizadas no horário escolar, declararam que gostariam de participar.
Tabela 18
Participação em Atividades Dentro e Fora da Escola
Participação Freqüência Porcentagem
Sim 74 27,8
Não 188 70,7
Total 262 98,5
Abstenção 4 1,5
Total 266 100,0
Fonte: Dados Obtidos Através dos Questionários
154
Nos gráficos a seguir, vemos que os meninos realizam mais atividades fora do horário
escolar do que as meninas. Nos questionários e durante as entrevistas, os jovens contaram que
essas atividades são realizadas na escola onde estudam, em centros comunitários, nas praças
perto de casa, em espaços religiosos, em grupos de atletismo, em equipes esportivas, em
escolinhas de futebol, em ONGs e clubes da Capital.
Gráfico 6
Participação em Atividades de Grupo - Meninos e Meninas
FEM MASC
Sim
Não
Realiza atividades sociais, esportivas, culturais em grupo
Pies show counts
Entre os jovens que disseram não participar, mas que afirmaram que gostariam, as
justificativas foram variadas. A falta de dinheiro para a locomoção, o horário, a distância e a
falta de tempo foram citados como empecilhos. A não-permissão dos pais ou responsáveis foi
encontrada somente na fala de algumas meninas do Ensino Fundamental.
No Ensino Médio, foi possível constatar que os jovens desse curso realizam em menor
proporção essas atividades. Segundo o que declararam, isto se deve à falta de tempo e de
dinheiro. Alguns jovens, nesse nível de escolaridade, trabalham durante todo o dia e já ajudam
no sustento da casa.
155
Gráfico 7
Participação em Atividades de Grupo - Jovens do Ensino Fundamental e Médio
Sim
Não
Realiza atividades sociais, esportivas, culturais em grupo
Pies show counts
FUNDAM ENTAL MÉDIO
Os dados até aqui analisados, através dos gráficos e das entrevistas apresentaram uma
radiografia de como os jovens das três escolas estudadas eso vivendo no seu dia-a-dia, os
espaços em que mais circulam e algumas práticas sociais cotidianas desenvolvidas por eles.
Neste capítulo, foi possível identificar também algumas dificuldades pelas quais eles estão
passando, suas preferências, crenças, algumas inserções pela cidade e algumas reivindicações
que tornariam melhor a vida deles, tanto na família, na escola, na comunidade quanto na
possibilidade de acesso aos mais diversos espaços da cidade.
No próximo capítulo, a partir, basicamente, dos diálogos mantidos com os 11 jovens
que foram acompanhados mais de perto nessa pesquisa, vamos percorrer alguns espaços com
eles; saber um pouco sobre a vida particular de cada um; conhecer alguns de seus sonhos e
medos; as relações que eles estabelecem na família e na escola; os espaços em que transitam
na cidade e as práticas sociais cotidianas desenvolvidas por eles nesses espaços.
156
6 JOVENS NA CIDADE DE PORTO ALEGRE: ESPAÇOS DE CIRCULAÇÃO E
PRÁTICAS SOCIAIS
Porto, que apesar de tudo alegre. Porto dos sonhos dos jovens e de todos que
habitam essa cidade. Porto das descobertas e das amoreiras. Porto do Rock e
do Pagode. Dos guris e das gurias. Do OP e do Fórum. Porto do Partenon, da
Lomba do Pinheiro e do Jardim Botânico. Do Inter e do Grêmio. Do pôr-do-
sol que comunga com os que lhe admiram e faz o vibro das palmas encher o
rio mais de amor do que da água das chuvas. Porto do Verso e do Inverso.
Porto do Arco, do Harmonia e da Redenção.
Trazer os 11 jovens para o cenário da pesquisa não teve a pretensão de mostrar como a
juventude da periferia da cidade de Porto Alegre se apresenta, mas de apresentar alguns
jovens que a constitui. Esses jovens, com suas histórias singulares, irão reafirmar a não-
existência de uma única juventude, mas de várias juventudes constituídas por sujeitos únicos
na sua diversidade e ricos na sua simbologia.
A partir dos encontros com esses jovens, abriu-se um canal de comunicação baseado
num diálogo sem restrições à palavra, e tendo como tônica, por parte da pesquisadora, uma
escuta sensível e atenta. Nesses momentos, os jovens falaram sobre a família, sobre a
importância da escola para eles, sobre a cidade e sobre os amigos ou colegas que a eles se
unem, seja por laços de afeto, por uma ideologia comum ou por um estilo adotado. Contaram
como vivem; como se relacionam em casa, na escola e na comunidade; como percebem o
espaço escolar; o que pensam do lugar onde moram e sobre as dificuldades e alegrias que se
apresentam no cotidiano de cada um deles.
A partir dos diálogos, que ocorreram, no pátio da escola, na biblioteca, nas ruas do
bairro, em salas de aula, nas salas de coordenação, nos parques da cidade, no centro
comunitário, na casa de uma jovem, na igreja, na oficina de música, no campo de futebol, foi
possível conhecer os espaços que os jovens percorrem na cidade e as práticas sociais
produzidas por eles nesses espaços.
Sposito (1994) explica que a cidade revela múltiplas formas de relações sociais que
estão presentes nos mais diversos espaços e que refletem as diferenças não só entre as classes
sociais, mas também, diferenças geracionais e de gênero. Carrano (2003) complementa que as
cidades são como arenas culturais nas quais é possível reconhecer que a produção da
157
comunicação é resultante do diálogo multicultural entre sujeitos sociais heterogêneos e que
nesses diálogos há uma disputa por territórios e sentidos. Uma disputa entre posições
antagônicas: de um lado estão aqueles que acreditam na solidariedade para a realização de
interesses comuns, e de outro, aqueles que tentam ignorar a existência de uma cidade repleta
de privações.
Para Le Goff (1988), as cidades, visualizadas na sua superficialidade, parecem tornar
todos os homens livres e iguais, mesmo que a realidade mostre algo bem diferente deste ideal.
Pesavento (2002) lembra que, no interior da cidade moderna, existia uma má cidade cercada
de muralhas internas, simbólicas, mas nem por isso menos sólidas, estruturadas através de
comportamentos, imagens e discursos discriminatórios. Muralhas que protegiam do “outro”,
do perigo e do indesejado. Cidades e muralhas ainda bem presentes em sociedades
contemporâneas.
Milton Santos (2000) entende a cidade na sua multidimensionalidade. A cidade é
resistência, perspectiva, conflito, surpresa e solidariedade. Ela reúne pessoas das mais
diversas origens, dos mais diversos níveis de instrução e de riqueza. “Constitui-se em um
lugar onde é possível uma mistura de interpretações mais ou menos corretas do mundo, do
país e do próprio lugar. Há uma enorme riqueza de perspectivas” (SANTOS, 2000, p. 55).
Viver na cidade possibilita que, num convívio mais próximo com vizinhos e amigos, as
pessoas se comparem e se perguntem sobre as suas diferenças, como vivem e o que sentem,
estabelecendo relações e dividindo opiniões e sentimentos.
Para Magnani (2003), a cidade grande é vista, principalmente pelos moradores da
periferia, como um lugar onde é possível sonhar com uma vida melhor, um bom emprego,
casa própria, acesso à escola e a serviços de saúde.
Para os jovens dessa pesquisa, a cidade grande também tem esse glamour, muitos
disseram desejar terminar a escola e arranjar um bom emprego na cidade (referindo-se ao
centro) e alguns pensam em sair do Rio Grande do Sul, para fazer uma carreira de sucesso
como músico em São Paulo ou no Rio de Janeiro, cidades mais centrais e de maior
reconhecimento internacional.
158
Para conhecermos a cidade onde a pesquisa foi desenvolvida trago, primeiramente,
elementos do cenário histórico, social e demográfico da cidade de Porto Alegre, o que nos
ajudará a entender como a cidade se constituiu ao longo do tempo e o quanto a sua formação
interfere na vida atual de seus habitantes. Em um segundo momento, localizo e conto um
pouco da história de cada escola, que se mescla com a história de cada comunidade e
apresento os onze jovens entrevistados, trazendo alguns fragmentos da sua trajetória pessoal,
os espaços por onde se movem e as práticas sociais cotidianas desenvolvidas por eles nesses
espaços.
6.1 A CIDADE E UM POUCO DA SUA HISTÓRIA
A fundação da cidade de Porto Alegre data de 26 de março de 1772
65
, quando um
edital eclesiástico dividiu em duas a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Viamão e
criou a Freguesia de São Francisco do Porto dos Casais. O nome Porto dos Casais refere-se à
vinda dos açorianos para o sul do Brasil. Conta-se que muitas foram as dificuldades vividas
pelos casais de açorianos que chegaram para povoar e defender esse recanto esquecido do
país, sem falar que muitos deles morreram no trajeto.
Macedo (1973) adverte que pouco se tem falado sobre as inúmeras dificuldades
passadas pelos primeiros açorianos que aqui viveram, sem direito à posse da terra que lhes
fora prometida, vivendo anos no Porto de Viamão, na espera da viagem para Rio Pardo,
plantando em áreas que não lhes pertenciam, diferente do tratamento dispensado aos
imigrantes de outras nacionalidades que aqui chegaram no século seguinte, que passaram,
também, por grandes dificuldades iniciais, mas não tão dramáticas como as vividas pelos
açorianos.
A triste saga desses imigrantes pode ser entendida quando Macedo (1973) fala sobre
as constantes tragédias que se abatiam sobre os açorianos que eram trazidos para o país. Para
dar uma idéia das dificuldades, Macedo (1973) conta um caso, que trata do transporte de
quinze casais açorianos que estavam em um navio com destino ao sul do país, onde apenas
um casal sobrevivera. Ele salienta, ainda, que mesmo que esses acontecimentos fossem de
65
Dados sobre as datas e os antigos nomes da cidade de Porto Alegre foram retirados do site:
www.portoalegre.rs.gov.br/infocidade. Portal da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Data de acesso:
19/03/2005.
159
conhecimento público, não alterava o posicionamento dos governantes quanto ao transporte e
à sobrevivência deles depois de aqui chegarem. Mesmo assim, com todas as dificuldades,
continuavam vindo açorianos para povoar as terras do Rio Grande do Sul, sobrevivendo,
plantando e defendendo as fronteiras do extremo sul do país.
O episódio se tornara comum. Nem os transportadores e nem o Império
cuidava da segurança e do transporte. Torna-se moda transportá-los como
carga e quanto mais barato, melhor. De graça, se possível. A experiência de
tantos desastres não se tornara ensinamento. (MACEDO, 1973, p. 38)
Porto Alegre, localizada no extremo sul do Brasil, tem seu nascimento retardado em
comparação a outras Capitais do país. Segundo Pesavento (2002), embora a região da atual
Porto Alegre fosse coberta por outras duas sesmarias, foi na Estância de Sant’ Ana, de
Jerônimo de Ornelas, atuais bairros do Centro, Cidade Baixa, Bom Fim, Independência,
Moinhos de Vento, Floresta e Navegantes, que a povoação teve início, desenvolvendo-se na
desembocadura do Arroio Dilúvio, local conhecido como Porto do Dornelles, com a chegada
dos açorianos.
A capital dos gaúchos, antes de ser elevada à categoria de cidade, teve quatro nomes:
Porto de Viamão (1732); Porto do Dorneles (1740); Porto dos Casais ou Porto de São
Francisco dos Casais (1772) e Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre (1773). Em
1808, através de Dom João VI, esse espaço de terra é elevado à categoria de Vila e pela Carta
de Lei, de 14 de novembro de 1822, o Imperador Dom Pedro I eleva a Vila de Nossa Senhora
Madre de Deus de Porto Alegre à categoria de Cidade. Com a Revolução de 1930, foi
nomeado o primeiro prefeito da Capital, passando a Intendência a chamar-se Prefeitura
Municipal.
Considerando as “raízes da cidade”, conforme designa Pesavento (2002), entrelaçadas
no trinômio guerra-estância-fronteira, temos a dimensão aventureira e heróica dos primeiros
desbravadores ao lado da estabilidade e da ordem propiciada pelos lendários 60 casais
açorianos, “eles, também chegados ao sul por imperativos da guerra com os castelhanos – os
casais d’El-Rei vindos povoar as Missões” (2002, p. 247). É esta estabilidade que daria
condições para o desenvolvimento da futura cidade de Porto Alegre. Os açorianos entram na
cena histórica da cidade em meio a conflitos militares entre as monarquias ibéricas pela
fronteira do Prata.
160
As origens de Porto Alegre são representadas, pois, sob uma dupla égide: a
do contraponto da guerra e do espírito indômito com o da ordem e da
tenacidade dos casais, constituindo uma síntese vital que conduzia ao outro
enfrentamento: o da natureza com a cultura. (PESAVENTO, 2002, p. 248)
A autora esclarece ainda que a natureza parece ter sido a mola inspiradora das
apreciações positivas dos primeiros cronistas que falaram sobre a cidade, bem como, dos
viajantes que sobre ela escreveram. Pesavento (2002, p. 248) conta que Saint-Hilaire, quando
passou pela cidade, lá pelos anos de 1820, “a descreve como que disposta em anfiteatro sobre
um dos lados da colina que atravessa a península, dando-lhe um formoso aspecto e
comparando os passeios encantadores que margeavam o Guaíba a tudo quanto existia de mais
agradável na Europa...”.
Para Pesavento (2002), o visual da cidade, com suas ruas, praças, monumentos e belos
prédios são marcos de referência que extravasam a dimensão espacial e dão força a padrões
identitários. No entanto, a paisagem e, principalmente, o Guaíba, com suas ilhas, deu à cidade
uma beleza maior do que aquela visualizada pela cultura, em termos de imagem e discurso.
Assim, o reconhecimento, tanto externo como interno, do gaúcho esteve sempre ligado a sua
identificação com o rural. Nesse sentido, a autora esclarece que estamos diante de um núcleo
simbólico de formulação identitária do Rio Grande que passa antes pelo campo, opondo-se à
cidade e que nessa disputa entre a natureza/campo e cidade/cultura vence o pampa, as guerras,
as lutas de fronteira e as atividades da estância.
Na vitória da natureza sobre a cultura, a elite letrada volta-se para a natureza
triunfante que, mesmo desde a cidade, se incorpora em seu discurso e
metaforiza o social. Assim, os citadinos se vêem diante de uma
compensação simbólica em face da cidade canhestra: mesmo habitando um
burgo humilde e acanhado, são herdeiros das “gloriosas tradições de 35”, o
gaúcho é o personagem-símbolo no qual é possível enxergar-se e que, ao
mesmo tempo, fornece o arquétipo idealizado pelo qual se estabeleceu o
reconhecimento externo sobre o Rio Grande. (PESAVENTO, 2002, p. 261)
6.2 A PORTO ALEGRE DE HOJE
A cidade de Porto Alegre
66
está situada no Paralelo 30° sul
67
, com 30 Km
longitudinais e 15 Km de largura no sentido leste-oeste, circundada por morros, com espaços
66
Os dados sobre a cidade foram obtidos através do site: www.portoalegre.rs.gov.br/infocidade. Portal da
Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Data de acesso: 19/03/2005.
67
Longitude W Greenwich -51; Latitude S-30º e Altitude 10m.
161
de planícies e limitada pela orla fluvial do lago Guaíba
68
. A cidade é composta por 1.360.
590 habitantes (Censo IBGE/2000). Deste total 635.820 são homens e 724.770 são mulheres,
com uma expectativa de vida média de 71,4 anos ( homens: 66,2 e Mulheres: 76,2), de 25
etnias. Ocupa uma área total de 476,30 Km², com uma densidade de 29 habitantes por
hectare e um crescimento populacional de 1,35% ao ano (1996/2000).
A área total é dividida em 431,85 Km² de terra firme e 44,45 Km² de ilhas. As 16
ilhas que estão sob a jurisdição da Capital somam um total aproximado de 4.500 hectares,
pertencentes ao Bairro Arquipélago e fazem parte do Parque Estadual Delta do Jacuí,
juntamente com as demais ilhas de municípios vizinhos. Entretanto, a única considerada como
zona urbana de Porto Alegre é a Ilha da Pintada com 426,20 hectares. As ilhas do Bairro
Arquipélago são: Ilha Grande dos Marinheiros, Casa da Pólvora, da Pintada, das Flores, do
Pavão, Chico Inglês, com uma população total de 5.061 habitantes, conforme Censo do IBGE
de 2000.
A cidade é considerada uma das metrópoles com a melhor qualidade de vida do
Brasil, com reconhecimento pela Organização das Nações Unidas (ONU), acumulando mais
de oitenta indicações, entre prêmios e títulos, que a qualificam como uma das melhores
cidades brasileiras para se viver
69
.
Esses títulos que a cidade vem recebendo ao longo dos últimos anos nos apontam para
avanços importantes nas condições socioeconômicas da população. Entretanto, o Relatório de
Indicadores Sociais de Porto Alegre, publicado no ano de 2001, esclarece que, no final dos
anos de 1990, constata-se que, apesar da melhoria significativa dos indicadores sociais de
68
Limites da cidade: Norte: Triunfo, Nova Santa Rita, Canoas e Cachoeirinha; Sul: Viamão, e Lago Guaíba
(Barra do Ribeiro); Leste: Alvorada e Viamão; Oeste: Lago Guaíba (Eldorado do Sul, Guaíba e Barra do
Ribeiro.
69
1 - Metrópole número 1 em qualidade de vida no Brasil - 2003, outubro, pesquisa da ONU realizada em todos
municípios brasileiros, destaca Porto Alegre como a metrópole de melhor índice de Desenvolvimento Humano
do país. O Atlas de desenvolvimento humano revela que o IDH Municipal cresceu de 0,824 (em 1991) para
0,865, considerado de “alta qualidade de vida”. 2 - Destaque no combate à pobreza - 2003, outubro, relatório do
Programa de Gestão Urbana/Habitat,da ONU, destaca 10 municípios nas políticas públicas de combate à pobreza
na América Latina e no Caribe. Os três brasileiros são: Porto Alegre, São Paulo e Icapuí (CE). 3 - Modelo de
Política Pública – 2003. No Relatório Anual sobre o Desenvolvimento Humano, divulgado pela ONU em 8 de
julho, o OP é destacado, juntamente com o Programa Fome Zero, como modelo de política pública. 4 - Capital
com mais alto índice de desenvolvimento humano - 2001, em pesquisa realizada pela ONU entre 12 metrópoles
brasileiras. 5 - Metrópole numero 1 em Qualidade de Vida no Brasil - 1998. Eleita pela ONU em pesquisa
realizada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Porto Alegre teve o melhor índice
de Desenvolvimento Humano (IDH) e o melhor Índice de Condição de Vida (ICV) do País. O IDH analisa a
longevidade, educação e renda, infância e habitação (PORTO ALEGRE, 2003).
162
Porto Alegre, como redução de mortalidade infantil, extensão nos serviços de saneamento
básico às camadas populares da cidade, diminuição no índice de analfabetismo e ampliação da
escolarização de crianças e adolescentes, a pobreza absoluta ainda atinge um número elevado
de pessoas, mesmo com o decréscimo na proporção de pobres na população se comparado aos
dados do início da década.
O relatório indica ainda que as transformações ocorridas no mercado de trabalho na
década de 1990 resultaram na diminuição de postos de trabalho e numa maior seletividade no
momento da contratação dos profissionais, acarretando uma precarização nas condições de
vida dos segmentos mais pobres da população. Situação essa identificada através de uma
procura maior pela assistência social do município e daquela oferecida por entidades não
governamentais e através dos dados obtidos através de pesquisas desenvolvidas pela Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD e da Pesquisa de Emprego e Desemprego em
Porto Alegre - PED/Porto Alegre.
Alguns indicadores de qualidade de vida
70
dão uma visão geral da situação
socioeconômica da cidade de Porto Alegre. São eles: Índice de mortalidade infantil: 13,93
óbitos por 1.000 nascidos vivos (SMS, 2002); Abastecimento de água: 99,5% da população
(DMAE); Fornecimento de energia elétrica: 98% domicílios; Coleta de esgoto: 84% da
população (DMAE); Esgoto tratado: 27% da população (DMAE); Recolhimento de lixo:
100% dos bairros (DMLU); Coleta seletiva do lixo: 100% dos bairros (DMLU); Arborização:
1 milhão de árvores em vias públicas; 80.038 hectares de áreas verdes (SMAM); PIB: R$ 11
bi 179 milhões 288 mil (431,00); PIB per capita: R$ 8.081,00 (FEE/2002).
No que se refere a educação, a cidade conta com três redes de ensino. A Rede
Municipal de Ensino conta com 92 escolas municipais. Dessas, 33 oferecem Educação
Infantil
71
. No Ensino Fundamental encontramos 51 escolas, sendo 45 delas de ensino regular,
uma de Ensino Fundamental e Médio, 4 de Educação Especial, uma de Educação de Jovens e
Adultos (EJA) e 133 Creches Comunitárias conveniadas. Na Educação Infantil são 5.619
alunos, no Ensino Fundamental 51.875 e no Ensino Médio 2.113. Na Esfera Estadual
72
, temos
70
Dados retirados do site: www.portoalegre.rs.gov.br/infocidade. Portal da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
Data de acesso: 19/03/2005.
71
A Educação Infantil também é oferecida em 07 praças da cidade.
72
Os dados relativos à esfera estadual foram obtidos na Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul,
Departamento de Planejamento/Divisão de Informática. Fonte: Dados Finais do Censo Escolar 2004 – MEC.
163
227 escolas que oferecem Ensino Fundamental, com 118.206 alunos e no Ensino Médio 62
escolas com 47.844 alunos. Na Esfera Federal, temos o Colégio de Aplicação da UFRGS, a
Escola Técnica da UFRGS e o Colégio Militar de Porto Alegre.
Os fatos e dados até aqui elencados tiveram por objetivo localizar - histórica,
geográfica e socialmente - o leitor na cidade em que foi desenvolvido este estudo. Trazer um
pouco do histórico e do momento atual da cidade servirá de base para entendermos algumas
situações vividas pelos jovens, os espaços por onde circulam, suas escolhas e suas práticas
cotidianas.
No capítulo anterior, buscamos construir uma visão geral da realidade social e
econômica que permeia a vida de uma parcela dos jovens que estuda nas três escolas
pesquisadas. A partir de agora, antes de apresentar os jovens, os espaços por onde eles
transitam e as práticas sociais cotidianas desenvolvidas por eles nesses espaços, trago alguns
dados referentes ao histórico de cada escola.
6.3 AS ESCOLAS SURGEM COM O CRESCIMENTO DAS COMUNIDADES
A história da formação das duas escolas localizadas na Lomba do Pinheiro
73
é muito
semelhante. Elas originaram-se em outros bairros e depois foram transferidas para essa região.
O histórico da formação das vilas onde as escolas se localizam também se assemelha. Os
moradores que vieram ocupar essas terras chegaram, praticamente, expulsos de seus locais de
origem. Famílias em precárias condições econômicas procuraram essas áreas ou foram
trazidas para essa região, de pouca valorização comercial, após serem despejados de suas
antigas moradias pelos mais variados motivos.
Pela localização da então região rural, de baixa valorização e sem infra-
estrutura urbana, equipamentos e serviços, serviu como receptora de
73
Conforme o “Diagnóstico da Situação Habitacional de Porto Alegre”, de setembro de 2001, feito pela
prefeitura da cidade de Porto Alegre, a Região 04 do Orçamento Participativo - Lomba do Pinheiro abrange os
bairros Lomba do Pinheiro e Agronomia. Esta região concentra uma população de 47.407 habitantes, o que
representa um percentual de 3,69% do total de habitantes da cidade de Porto Alegre, em uma área de 5.065,2 ha.
Segundo informações apresentadas no citado diagnóstico, inicialmente a região era uma área de ocupação rural
que aos poucos foi sendo dividida pelos próprios proprietários ou por pessoas que adquiriam essas áreas com o
propósito de criar loteamentos irregulares e clandestinos. Data dos anos 50 a formação das primeiras vilas
irregulares e, nos anos 70, o surgimento de vários núcleos habitacionais. Dados atualizados registram 39 núcleos
habitacionais e algumas vilas irregulares.
164
populações que foram removidas de regiões mais valorizadas, de ocupações
de área de risco, de leito viário, de áreas onde seriam implantados novos
equipamentos urbanos e de despejos de áreas particulares. (PORTO
ALEGRE, 2001, p. 15)
Nesse contexto histórico, foram implantadas as duas escolas na Lomba do Pinheiro. A
terceira escola, por localizar-se em outro bairro e ter um histórico bem diferente das
primeiras, terá sua história contada logo depois. Assim apresento as escolas da Lomba do
Pinheiro.
6.3.1 As Escolas da Lomba: O Villa e o Guerreiro
A Escola Municipal de Ensino Fundamental Heitor Villa-Lobos
74
, fundada em 26 de
novembro de 1959, pelo Decreto nº 1885, inicialmente localizava-se na Vila Padre Cacique,
no bairro Cristal. Em 1966 foi transferida para a Lomba do Pinheiro, região 4 da cidade de
Porto Alegre, na mesma época da fundação da Vila MAPA (Movimento Assistencial de Porto
Alegre). No início, a escola contava com 178 alunos distribuídos em classes de 1ª a 4ª séries.
Em 4 de agosto de 1988 foi construído o novo prédio da escola, passando a chamar-se Heitor
Villa-Lobos – CIEM
75
.
A história dessa escola mescla-se com a formação da vila. Em 1965, vindos de
diversas localidades da Capital, em decorrência de uma grande enchente que avassalava a
cidade, moradores do Beco do Carvalho, Ilhas da Pintada e do Pavão, Vila Maria da
Conceição (conhecida como Maria Degolada), Sarandi, Passo da Areia, Glória, entre outras,
aportaram nesse lugar, como náufragos e pioneiros, com seus sonhos, medos e muita
coragem. Ingredientes necessários para os que vivem e sobrevivem em situações tão difíceis
como estar sem lar e sem moradia.
As primeiras famílias que chegaram na vila foram agrupando-se ao redor de uma
pequena casa onde já habitava um antigo morador. Foram pioneiros e desbravadores, pois
naquela época não havia água encanada, luz, calçamento, enfim, as condições básicas de
74
A história da escola foi escrita tendo como fonte um material mimeografado, elaborado pelo Dr. Jorge
Andrade Motta, dentista, que trabalhou na escola. A beleza do texto original mostrou o carinho e o cuidado que
ele dedicava à escola e à comunidade.
75
CIEM. Centro Integrado de Educação Municipal, proposto como escola de tempo integral na administração
municipal de 1995 -1988, na gestão do prefeito Alceu Collares (PDT).
165
infra-estrutura eram deficientes. No final de 1965, começa a ser construída a primeira creche
municipal na vila, o que se constituiu em um grande ganho para a comunidade. Alguns meses
depois começam as obras da antiga Escola Municipal Heitor Villa-Lobos, onde, hoje,
localiza-se o Centro Comunitário, inicialmente com dois pavilhões, chegando a cinco no
decorrer dos anos. A escola funcionaria neste prédio por vinte anos.
Com o passar do tempo, construíram um posto policial e um posto do Departamento
Municipal de Águas e Esgotos (DMAE). No início a água vinha através de um carro-pipa, três
vezes por semana, obrigando os moradores a organizarem-se em extensas filas para
conseguirem a água. Para a lavagem das roupas, existiam dezenas de tanques comunitários
onde as senhoras lavavam seus pertences.
As mulheres, como na maioria das histórias de formações de vilas populares
(BRUNEL & DILIGENTI, 2000; MOLL, 2000), tiveram um papel importante na
sobrevivência e na formação desses espaços. Elas, em geral, protagonizam histórias generosas
e solidárias. Na vila Mapa não foi diferente. Conta-se que os partos eram feitos por duas
moradoras, e que uma outra senhora fazia e distribuía o sopão comunitário, na sede da
Assembléia de Deus, o que a dispensava da enorme fila para adquirir a água.
Naquela época, o único transporte era o ônibus Pinheiro que só passava três vezes por
dia. Anos depois é que foi implantada a linha de ônibus MAPA
76
. Como não havia asfalto,
quando chovia o lamaçal era grande e para o ônibus não atolar, os moradores tinham que
juntar galhos e folhas de árvores, as “vassourinhas”, para que ele não atolasse. Deste fato é
que vem a origem do nome do principal bloco carnavalesco da época: “Os Vassourinhas”.
Nos primeiros tempos, o único recurso em caso de emergência noturna era o auxílio do
Quero-Quero, um jipão da polícia civil que fazia a ronda pela comunidade, este nome foi dado
pelo som característico que ele fazia. Na década de 70, com a implantação da Unidade
Sanitária, o trabalho do Quero-Quero, durante o dia, era feito pela diretora e pelo cirurgião
dentista da escola, pois eram os únicos carros disponíveis na vila. As professoras nessa época
vinham todas em uma kombi da prefeitura municipal.
76
MAPA aqui significa o nome de uma linha de ônibus que passa na frente da escola. MAPA também é o nome
da vila onde está localizada a escola.
166
A história da formação da Escola Municipal de Ensino Fundamental Afonso Guerreiro
Lima
77
não foi muito diferente da anterior. Conta-se que a escola surgiu em 1956, no bairro
Partenon, a partir da fusão de duas outras escolas situadas em bairros próximos e que, em
março de 1957, ela foi transferida para a rua Guilherme Alves, quase no topo do morro, na
Vila Maria da Conceição, conhecida como Maria Degolada
78
, permanecendo nessa região por
25 anos. Entretanto, somente em 26 de novembro de 1959 deu-se a aprovação do Decreto de
Denominação de nº 1884/59 que criava a Escola Municipal Afonso Guerreiro Lima.
Na época, a escola era constituída por apenas dois pavilhões de madeira pintados de
verde, o que lhe deu o apelido carinhoso de “coleginho verde”. Em 31 de outubro de 1980,
através do Decreto nº 7578/80, a escola passa a denominar-se Escola Municipal de 1º grau
incompleto Afonso Guerreiro Lima. No ano de 1982, a escola começa a ter problemas para
permanecer na sua sede própria e passa a funcionar temporariamente em outra escola. Em
novembro daquele ano é transferida para a Vila Nova São Carlos, na Lomba do Pinheiro.
Durante os meses de dezembro de 1982 e janeiro e fevereiro de 1983, realizam-se as
primeiras matrículas em um pequeno barraco, sede da Associação dos Moradores da Vila. Os
primeiros professores chegaram em 8 de março para a primeira reunião administrativa e
pedagógica, e no dia seguinte, a escola abriu suas portas para receber 206 alunos da 1ª a 5ª
séries, dando assim início ao ano letivo.
Nessa época, a escola contava com três pavilhões de madeira e um de alvenaria. Em
dezembro de 1991, o pavilhão central de madeira foi substituído por outro de alvenaria, mais
moderno e mais amplo. Nos dois pisos existiam 5 salas de aula, uma de vídeo, uma de
computação e outra de audiovisual. A secretaria, a direção, a biblioteca e os setores de
supervisão e orientação educacional também estavam situados ali.
77
A história da formação da escola foi escrita a partir de vários materiais mimeografados conseguidos na direção
da escola. Dentre eles podemos citar um jornalzinho chamado “Expediente”, produzido por três alunos e
coordenado por uma professora, e um material escrito em 1970, chamado “Nosso Bairro”, organizado por uma
professora da escola.
78
O nome “Maria Degolada” vem do fato de uma jovem, moradora do bairro, ter sido degolada por um soldado
da Brigada Militar ao pé de uma figueira situada no topo do morro. Os moradores após a sua morte ergueram um
túmulo em sua homenagem e até hoje rezam e depositam ali os seus pedidos mais íntimos. Pessoas de todas as
classes sociais e de toda a parte da cidade colocam flores e acendem velas no seu túmulo que é conservado
sempre limpo e pintado pelos moradores (Nota feita a partir de um texto mimeografado obtido na escola).
167
Na escola não foi possível conseguir material que contasse a história da Vila Nova São
Carlos. Desta maneira, solicitei à Associação de Moradores algum material de pesquisa nesse
sentido, através do qual foi possível saber que os primeiros moradores dessa comunidade,
antes de fixarem-se ali, moravam na avenida Antônio de Carvalho, esquina com a avenida
Ipiranga e, por estarem vivendo em uma área ocupada irregularmente, o Departamento
Municipal de Habitação (DEMHAB) retirou as famílias ali existentes e reassentou-as na
Lomba do Pinheiro.
Na época, alguns moradores já habitavam o local, e a vila chamava-se São Carlos.
Com o tempo passou a denominar-se vila Nova São Carlos e, em decorrência do aumento do
número de famílias assentadas na comunidade, em 02 de fevereiro de 1982, é organizada a
sede da Associação de Moradores. Pouco tempo depois a associação começa a oferecer
atendimento médico e a disponibilizar uma área de lazer para as crianças. A creche
79
existente
na associação funciona praticamente desde a construção da mesma, mas tem como data oficial
de criação março de 1997.
Atualmente as escolas contam com um número maior de professores e alunos e com
uma infra-estrutura bem melhor que nos primeiros tempos. A Escola Municipal de Ensino
Fundamental Heitor Villa-Lobos, no ano de 2004, contava com 1594 alunos, 85 professores,
11 funcionários estatutários, 7 funcionários da Cooperativa dos Trabalhadores Autônomos das
Vilas de Porto Alegre (COOTRAVIPA) e 7 estagiários. A escola, além de oferecer o Ensino
Fundamental durante o dia e Serviço de Educação de Jovens e Adultos (SEJA) no noturno,
oportuniza, entre outras atividades, a Orquestra de Flautas, a Invernada - Danças Gauchescas-
e a Capoeira.
A realidade atual da Escola Municipal Afonso Guerreiro Lima não é muito diferente.
Em 2004, a escola contava com 1580 alunos, 97 professores, 25 funcionários estatutários, 20
funcionários da Cooperativa dos Trabalhadores Autônomos das Vilas de Porto Alegre
(COOTRAVIPA) e estagiários. A escola, além de oferecer Ensino Fundamental durante o dia
e Serviço de Educação de Jovens e Adultos à noite, possui uma sala de atividades múltiplas e
79
A Creche Comunitária, no ano de 2004, atendia 86 crianças distribuídas por faixa etária, oferecendo a
comunidade Berçário (I e II) e Maternal (Jardim A e B). Dados obtidos na Associação de Moradores.
168
de artes e técnicas onde são realizadas oficinas de flauta, de informática, de línguas
estrangeiras, danças e escolinha de futebol, entre outras atividades.
No que se refere a informações mais atualizadas sobre o bairro Lomba do Pinheiro,
segundo dados do ano de 2000, da Prefeitura Municipal de Porto Alegre
80
, o bairro ocupa uma
área de 2.455 ha, com uma população de 30.388 moradores, em 8.434 domicílios, com um
rendimento médio mensal dos responsáveis pelo domicílio de 2,92 salários mínimos.
Quanto ao ensino, as duas escolas, por serem municipais, são estruturadas por Ciclos
de Formação e a proposta político-pedagógica dessas escolas é baseada em uma reformulação
dos tempos e dos espaços educativos, bem como dos currículos e das práticas avaliativas, com
o objetivo de formar cidadãos conscientes de seu entorno e participantes do seu processo
educativo. A estrutura do Ensino Fundamental nas escolas municipais de Porto Alegre
organiza-se em três Ciclos de Formação, tendo cada ciclo a duração de três anos.
Nos últimos trinta anos, muitas mudanças ocorreram na Lomba do Pinheiro. Observa-
se que o acesso à vila e à escola foi facilitado, devido ao aumento no número de linhas de
ônibus que serve a região. Existe, nas duas vilas, posto de saúde próximo das escolas, creche
municipal, centro comunitário e calçamento em boa parte da região.
Entretanto, apesar das benfeitorias feitas no local, muitos ainda são os problemas a
serem resolvidos na região. Nos diálogos com os jovens, eles reclamaram da violência no
bairro e da falta de policiamento mais ostensivo. Solicitaram mais ônibus circulando durante à
noite, mais postos de trabalho no bairro e mais escolas de Ensino Médio na região. Um
cuidado maior com as praças, a criação de mais ginásios de esportes e locais de lazer para as
crianças e os jovens da comunidade.
80
Dados retirados do site: www.portoalegre.rs.gov.br/infocidade. Portal da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
Data de acesso: 19/03/2005.
169
6.3.2 A Escola Padre Rambo: Outro Histórico, Outras Histórias
A Escola Estadual Padre Rambo localiza-se no bairro Partenon
81
, região 07 do
Orçamento Participativo, está inserida na pesquisa desde abril de 2003. Ela foi escolhida por
localizar-se em um bairro diferente das outras escolas, oferecer Ensino Médio, oportunizar o
contato com jovens de idade mais avançada e também com a intenção de acompanhar alguns
alunos oriundos da Escola Municipal Heitor Villa-Lobos.
A partir de um material obtido na secretaria da escola, mais especificamente dois
grandes cadernos escritos à mão por uma professora
82
que lecionou na escola desde a época
da sua formação, recheado de fotos, reportagens, editais e colagens diversas, foi possível
conhecer a história da formação dessa escola.
A escola teve início através de um Decreto de número 17.790, de 7 de fevereiro de
1966, quando o governador do Estado, na época,
83
determina a criação de vários
estabelecimentos de ensino secundário de grau ginasial na Capital e no Interior do Estado.
Entre esses, um ginásio no bairro Partenon, em Porto Alegre. Foi assim que, em 28 de janeiro
de 1967, através do Decreto nº 18.417, o referido ginásio passa a denominar-se Ginásio
Estadual Padre Rambo.
No esforço de criação e construção desse ginásio, destaca-se o trabalho da comunidade
e de um vereador local
84
. Em um jornal de grande circulação na cidade, esse vereador justifica
a criação do ginásio em função do grande desenvolvimento do bairro, à multiplicação das
vilas populares na região e à carência de estabelecimentos de ensino no bairro, o que obrigava
um grande número de crianças e adolescentes a se locomoverem para o centro da cidade,
enfrentando despesas e dificuldades de toda ordem para continuarem os seus estudos.
As atividades escolares começam a funcionar em 1967, em caráter provisório, apenas
no turno da noite, nas salas de aula do Grupo Escolar Balduíno Rambo, com 4 turmas. Já de
81
A região 07 do Orçamento Participativo - Partenon abrange os bairros Coronel Aparício Borges, Partenon,
Santo Antônio, São José e Vila João Pessoa. Esta região concentra uma população de 125.594 habitantes, o que
representa um percentual de 9,77% do total de Porto Alegre, em uma área de 1.451,4 ha. Segundo dados que
constam no Diagnóstico da Situação Habitacional de Porto Alegre de setembro de 2001, os primeiros
loteamentos nesta região começaram a ser implantados no ano de 1870.
82
Professora Suzana Gonçalves Franz.
83
Governador Sr. Ildo Meneghetti.
84
Vereador Carlos Pessoa de Brum
170
início tiveram mais de 500 alunos inscritos para os exames de admissão, 580 alunos nas sete
turmas de primeira série, três turmas de segunda série, duas terceiras e duas quartas séries. Na
época não foram aceitas mais inscrições por falta de espaço na escola para as salas de aula.
Os professores foram apresentados à escola no dia 15 de abril, e as aulas iniciaram no
dia 18 de 1966. Em 1967, é criada a Associação de Pais e Mestres, dando início à campanha
de construção do prédio próprio para o ginásio. Assim, em 2 de agosto do mesmo ano, é
lançada a pedra fundamental do ginásio. Em 18 de maio de 1968, os alunos do diurno
recebem as primeiras salas de aula, iniciando regularmente as atividades do curso diurno no
prédio próprio do ginásio. No início do ano letivo de 1969, o Ginásio Padre Rambo encontra-
se totalmente pronto e atendendo nos três turnos.
Várias reportagens em jornais da época salientam a participação efetiva da
comunidade na construção do prédio. Na Folha da Tarde de 9 de dezembro de 1969, na
página 34, aparece a seguinte manchete: “Foi a comunidade que construiu este ginásio”.
Os recortes, as fotos, os convites para festas e atividades que contam a história da
escola mostram que esta, ao longo do tempo, oportunizou várias atividades aos seus alunos e à
comunidade. Teatro, gincanas, torneios, campeonatos de atletismo, grandes solenidades de
formaturas, Coral, Parada da Juventude, Jogos da Primavera, bailes, Feira de Arte e
personalidades da esfera artística e cultural aparecem em fotos ministrando palestras e
oficinas.
Em 1974, o ginásio promove um Festival de Música com grande aceitação dos alunos
e da comunidade. No ano de 1975, várias melhorias são feitas na escola. Pintura interna,
reposição de vidros, aquisição de material pedagógico, reformas internas e externas melhoram
o ambiente escolar deixando-o mais bonito e agradável ao estudo.
No ano seguinte, o Conselho de Pais e Mestres dá início a uma campanha que visa
ampliar a área da escola com o objetivo de oferecer Segundo Grau aos alunos. Assim, em
abril de 1977, o Secretário Estadual da Educação e Cultura, face ao Parecer nº 164/77, do
Conselho Estadual de Educação (CEE), autoriza o funcionamento da Escola Estadual de 2º
Grau Padre Rambo, com as habilitações de Auxiliar de Escritório e Auxiliar de Contabilidade.
171
A escola, ainda no ano de 2004, mantinha duas turmas de séries finais do Ensino
Fundamental. Quando esses alunos concluírem o curso fundamental, a escola passará a
oferecer somente Ensino Médio. A Escola Padre Rambo é seriada, com matrícula por
disciplinas. Em março de 2004, contava com um total de 797 alunos matriculados. Desses,
754 cursavam o Ensino Médio, divididos em 317 alunos pela manhã, 109 à tarde e 328 à
noite. No Ensino Fundamental ainda permaneciam 43 alunos concluindo o curso. A escola
nessa época contava com 51 professores e 11 funcionários no seu quadro. Ela oferece Sala de
Informática, uma biblioteca bem organizada e aberta durante todo o tempo de funcionamento
das aulas, uma sala para o Grêmio Estudantil desenvolver suas atividades estudantis e
Projetos na área musical.
O bairro Partenon é muito conhecido na cidade. É um bairro antigo e com um belo
histórico de lutas e resistências. Apesar de localizar-se próximo ao centro da cidade, não
perdeu totalmente sua identificação com o rural, mantendo ainda uma certa “aura interiorana”,
o que lhe dá um charme especial. O bairro possui uma significativa parcela de moradores de
baixa renda, mesclada com uma população de classe média oriunda do rico comércio
existente ao largo de suas avenidas. Conta com uma considerável população de moradores de
origem africana que, desde a formação do bairro habita essa região. O Partenon é um bairro
onde encontramos grandes avenidas, cortadas por ruas e ruelas onde se enfileiram grandes
casas, casinhas e casebres.
Conta a história (PORTO ALEGRE, 2001) que os primeiros loteamentos na área
começaram a ser implantados nos anos de 1870. A referência principal dessa região era a
antiga Estrada do Mato Grosso, a atual e muito movimentada avenida Bento Gonçalves
85
, que
deu origem a outras ruas importantes no bairro. Nessa época, essa antiga estrada ligava a Vila
dos Açorianos, atual cidade de Porto Alegre, à então capital da Província de São Pedro do Rio
Grande, atual município de Viamão.
Praticamente na mesma época, mais especificamente em 18 de junho de 1868, foi
fundada em Porto Alegre a Sociedade Literária e Beneficente Partenon Literário, reunindo a
intelectualidade da época
86
. Conta-se que a sociedade começou quando alguns literatos locais
e pessoas ligadas ao teatro começaram a encontrar-se com freqüência para conversarem,
85
A escola localiza-se ao longo dessa avenida.
86
Ver site: www. nos bairros.com.br/partenon.htm
172
surgindo assim a idéia de organizarem-se em uma sociedade. De início sem endereço fixo,
circulavam pelas livrarias e cafés da Porto Alegre da época. Com o tempo e com o aumento
de seus participantes e reconhecimento público, o grupo se organiza para a construção de uma
sede própria. Com a doação de algumas terras à sociedade, em uma região de belas paisagens
ao pé do morro, próximo à Estrada de Mato Grosso, os membros da sociedade sonharam em
construir ali uma réplica do Partenon grego.
Desavenças entre os membros da sociedade e a falta de dinheiro impediram o
cumprimento da obra. Algum tempo mais tarde, em um acordo, o loteamento recebe o nome
de Partenon e a sociedade recebe parte do terreno para ser loteado. Infelizmente, em 1899, a
sociedade se dissolve e doa os seus terrenos a uma instituição de caridade, a Santa Casa de
Misericórdia.
Entretanto, os fundadores, apesar de todas as dificuldades encontradas para a
construção da sua sede e divulgação dos seus ideais apregoados em prol da liberdade e da
emancipação social, não desistiram facilmente. Os propósitos perseguidos pelos seus
fundadores não se limitavam às letras, lutavam pela liberdade em todos os sentidos e pela
abolição da escravidão. Conta-se que encenavam peças de teatro sobre o tema da escravidão e
que compravam cartas de alforria com a venda de lotes que ganhavam.
Defendiam ideais republicanos, eram a favor do ensino gratuito e acessível a todas as
camadas da população, eram contra a pena de morte e o preconceito contra as mulheres.
Lutavam a favor de questões sociais e políticas que, na época, se apresentavam em desacordo
com seus ideais de liberdade. Como legado escrito, houve a circulação, de 1869 a 1879, da
Revista Partenon Literário, deixando para as gerações futuras um rico material de estudo
sobre a intelectualidade da época.
Através desse breve histórico, foi possível conhecer um pouco sobre a formação do
bairro e algumas características peculiares desse espaço. A partir desse cenário trago agora
alguns dados mais atuais para um melhor entendimento da região. Segundo dados da
Prefeitura Municipal de Porto Alegre, ano de 2000, o bairro Partenon tem uma área de 570 ha,
com uma população de 47.460 moradores em 14.899 domicílios e com um rendimento médio
mensal dos responsáveis pelos domicílios de 7,54 salários mínimos.
173
Nesses cenários da cidade estão inseridos os 11 jovens com os quais foi possível
estabelecer um diálogo maior e mais constante. Com eles vamos percorrer alguns espaços e
conhecer algumas práticas sociais que eles desenvolvem no seu cotidiano, para que possamos
entender as relações que eles estabelecem nesses espaços, conhecer as práticas sociais que
eles desenvolvem, e saber como a escola, os acolhe e reconhece as suas práticas.
A partir de agora vou apresentar cada jovem, localizando-o no seu espaço escolar, na
família, e em alguns espaços da cidade. Assim, acompanhados pelos jovens, vamos viajar por
espaços e conhecer uma variedade de práticas. Vamos saber um pouco da vida particular de
cada um, suas condições sociais e econômicas, seus desejos, medos, algumas atividades
diárias desenvolvidas tanto dentro quanto fora da escola e alguns espaços importantes no
cotidiano deles.
Conforme referências iniciais dessa tese e elementos empíricos apontados no capítulo
anterior, os espaços nos quais os jovens mais circulam no seu cotidiano são aqueles que
envolvem a família, tendo na sua própria casa ou na de seus familiares e amigos o eixo central
das suas atividades. Outro espaço importante na vida de todos é a escola, com seus espaços
internos e externos ou aqueles que através da escola são oportunizados. Há também os
espaços da rua, onde os jovens encontram os amigos para divertir-se, passear, fazer novos
contatos, praticar esportes ou simplesmente caminharem livremente sem rumo
preestabelecido.
Nesse contexto, a tríade - casa, escola e rua – será o eixo através do qual vamos
conhecer os espaços e as práticas cotidianas dos jovens. Entretanto, as categorias serão
trazidas para o texto livremente, pois, como já dissemos anteriormente, a casa tem seus
espaços arruados, como os quintais e os portões que fazem a ligação com o exterior e seus
espaços domiciliados, que seriam aqueles mais do convívio estritamente familiar, como o
quarto e a cozinha. O mesmo acontecendo com a escola, com suas salas de aula localizadas no
interior do prédio, e as escadas, pátio e corredores que fazem a ponte com o externo. Bem
como a rua, lugar público, de liberdade, aventuras e perigos, mas que, em algumas situações,
pode proporcionar conforto e aconchego. Sensações e sentimentos mais afeitos à casa.
174
6.4 OS JOVENS FALAM
6.4.1 Raquel: Um Cotidiano Repleto de Práticas Sociais
Vivemos esperando
O dia em que seremos melhores
Melhores no amor, melhores na dor
Melhores em tudo
87
.
Raquel tem 15 anos, estuda na Escola Municipal Heitor Villa-Lobos, mora na Lomba
do Pinheiro e nasceu em Porto Alegre
88
. Os pais são separados. Mora com a mãe, tem contato
eventual com o pai. Tanto o pai quanto a mãe cursaram o Ensino Fundamental. Tem 9 irmãos,
contando com os filhos do pai, os da mãe e com seus irmãos por parte de pai e mãe. O pai é
empreiteiro de obras e a mãe é recicladora em uma cooperativa. A renda familiar é de um
salário mínimo por mês
89
.
Raquel é uma menina muito ativa, fala bem, gosta de se envolver em tudo que diz
respeito à escola e à comunidade. O cotidiano dela é bem movimentado. Pela manhã vai à
escola. Nas 2ªs e 5ªs à tarde participa da Oficina de Rádio Comunitária, no Centro Social da
Vila Mapa (CESMAPA), mantido pela prefeitura da cidade, e nas outras tardes tem aula de
dança break (Hip Hop) no mesmo local e aula de Street Dance na escola. Das 17h30min às
20h trabalha como Agente Jovem
90
da prefeitura e recebe uma bolsa de 65,00 reais por este
trabalho. Em algumas tardes, durante o mês, participa de um grupo de adolescentes que se
87
Dias Melhores. Música de Jota Quest e Rogério Faustino.
88
Dos 266 alunos que responderam ao questionário, apenas 36 não são naturais da cidade de Porto Alegre.
89
Os dados sobre a Renda Mensal dos 11 alunos foram obtidos através das respostas dadas no questionário.
90
Conforme dados contidos no Relatório de Indicadores Sociais de Porto Alegre (PORTO ALEGRE, 2001, p.
129), o Programa “Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano”, do Governo Federal, em parceria com
as prefeituras, tem por objetivo proporcionar à juventude, em situação de risco social, a formação e transferência
de renda para a atuação no apoio a ações de cidadania, construindo com os participantes uma perspectiva de
transformação social através de sua atuação como agentes multiplicadores de saúde e cidadania. Para o ingresso
no programa, são aceitos jovens na faixa etária de 15 a 17 anos, com baixa escolaridade, oriundos
prioritariamente dos programas e serviços assistenciais, recebendo uma bolsa-auxílio, repassada pelo Governo
Federal, no valor de R$ 65,00. Esse programa federal, as oficinas dentro das escolas e as diversas atividades
desenvolvidas no CESMAPA foram os únicos exemplos, citados pelos jovens da pesquisa, de política pública
direcionada a população juvenil na cidade de Porto Alegre. Em uma pesquisa coordenada pela Professora
Jaqueline Moll e pelo Professor Nilton Fischer sobre políticas públicas direcionadas à juventude, na cidade de
Porto Alegre e Região Metropolitana, iniciada em 2004, revela que o número de programas e de projetos
desenvolvidos nos municípios de Porto Alegre e Alvorada representam mais de 40% de todos os projetos que são
realizados na Região Metropolitana e em Porto Alegre. O município de Porto Alegre, nesse mesmo ano, era o
município com o maior número de programas e projetos direcionados à população juvenil, o equivalente a 25%
dos programas e projetos desenvolvidos nessa região.
175
encontra em um hospital privado da cidade. Em alguns sábados participa do Orçamento
Participativo (OP) da Juventude.
Grande parte das atividades nas quais Raquel participa têm uma ligação muito estreita
com o espaço escolar. A escola é o eixo central na qual estão ligadas todas as suas práticas
cotidianas. A relação que essa jovem mantém com esse espaço é muito forte, mesmo
reconhecendo as limitações que a escola pública apresenta. A principal queixa da jovem é em
relação à sala de aula. Para ela, esse é um lugar onde o estudante fica só copiando, com pouco
diálogo entre professores e alunos e que por conta disso o conteúdo estudado fica mais difícil.
Nas conversas, Raquel sempre deixou claro que sempre que precisou de ajuda, seja em
questões diretamente ligadas à vida escolar seja na vida pessoal, ela procurou a direção e
encontrou o apoio necessário na figura da diretora, da psicóloga ou da orientadora
educacional. Em uma das nossas conversas, ela disse: “as gurias são legais, quando a gente tem
algum problema elas conversam, dão um abraço e eu já me sinto bem melhor”.
Raquel explicou que, se o jovem procurar a direção e disser que está com algum
problema, os professores irão ajudá-lo, orientando-o no momento ou encaminhando-o para
um lugar mais apropriado para o seu caso. Ela contou que os professores a ajudaram a entrar
no grupo de dança e a encaminharam para uma psicóloga fora da instituição. Isto se deu em
uma época que ela não conseguia mais ir para a escola, uma fase difícil da sua vida, de muita
tristeza e muito choro. Declarou que a psicóloga, durante todo o tratamento, manteve contato
com os seus professores e que esta ponte foi muito importante para os avanços que lentamente
foram ocorrendo na sua vida e com isso ela foi se fortalecendo.
Comecei a fazer cursos, conheci gente da França, da Escócia, tudo
através do CESMAPA, porque o colégio me mandou para lá e para a
psicóloga, senão eu não teria conseguido. A escola me abriu as portas. A
escola ajuda, sendo uma boa aluna ou não sendo uma boa aluna, eles te
ajudam. Eles sempre dizem que tu podes, que tu tens condições, te
abrem um espaço, deixam de cumprir as tarefas para te ajudar. Eles
diziam que eu tinha que me esforçar, e eu dizia que não tava com
vontade, que não queria fazer nada e elas me chamavam a atenção, mas
também diziam que eu ai conseguir. Assim, eu fui me alimentando, fui
gostando mais da psicóloga, me abrindo mais com os professores. Tanto
que hoje eu digo que foram eles que me ajudaram.
176
Ao contar essa passagem, Raquel mostra o poder do diálogo, da procura e do encontro
com o outro. Deixou claro que quando procurou a escola ela teve o retorno esperado.
Encontrando apoio e reconhecimento daqueles que ali se reúnem para juntos construírem
algo, evitando o isolamento em que muitos jovens caem.
Freire (1997) afirma que, na relação democrática, o diálogo é a possibilidade de abrir-
se ao pensar dos outros, é a procura do outro para não fenecer no isolamento, e Melucci
(2004) lembra que é, na relação com o outro, que se dá a possibilidade do reconhecimento
mútuo e que a relação somente ocorre quando aquilo que nos distingue dos outros é aceito e
torna-se base para a comunicação. Para o autor, comunicar é considerar os pontos em comum
que temos com os outros para descobrirmos e afirmarmos a diversidade existente.
A possibilidade de escolha introduz em nossas relações com os outros
(afetivas, familiares e de amizade) a contingência e o risco, transformando-
as num campo de investimento e auto-reflexão. A fragmentação e o
isolamento são a face escura desse processo, o resultado de nossa
incapacidade de escolher ou da dificuldade de reger o esforço da
comunicação. (
MELUCCI, 2004, p. 127)
A partir do encaminhamento da escola para uma psicóloga que trabalha com
adolescentes no CESMAPA, Raquel foi modificando a sua relação com a escola, com os
colegas e até com a família. Ela contou que conversava muito com a psicóloga, contava seus
problemas familiares, as suas dificuldades íntimas e, com o tempo, as dificuldades foram
sendo superadas.
Eu gostei porque lá eu tava tendo assistência social e psicológica. Tinha
pediatras e vários médicos simplesmente para ajudar a gente. Temos um
grupo de teatro sobre drogas e tem um ator que é médico e quer
conhecer a gente e vai dar umas dicas sobre teatro.
O trabalho da psicóloga, acompanhado pela escola, repercutiu de maneira positiva para
melhorar a auto-estima de Raquel, fortalecendo a sua disposição de aprender coisas novas e
de enfrentar desafios. Esses encontros com o grupo de jovens, coordenado pela psicóloga
propiciaram à Raquel conhecer outros espaços fora da vila, fazer novos amigos e conhecer
pessoas diferentes. Durante uma de nossas conversas, ela contou sobre uma atividade da qual
participou, com mais 4 jovens da comunidade, através do CESMAPA, onde se observa como
177
pequenas ações e encontros podem propiciar momentos de integração, comunicação e
aprendizagem surpreendentes.
Raquel contou que foram num encontro de jovens com a psicóloga do Centro
Comunitário
91
. Estavam em 5 pessoas. Ao chegar no local já encontraram 5 grupos formados.
Conversavam sobre vários temas ligados aos jovens, as crianças, a escola, a mídia, entre
outros. Cada grupo falava sobre um tema. Participavam meninos e meninas de 7 a 16 anos.
Quando Raquel chegou levou um susto. Imaginou encontrar cerca de 10 ou 15 pessoas no
total, mas havia cerca de 20 pessoas em cada sala. Ao chegar lhe colocaram um crachá, um
boné e a enfiaram em uma sala. Antes de entrar lhe perguntaram: “Em que eixo tu vais agora”?
Raquel respondeu surpresa: “Que eixo”? Pensou: “Acho melhor eu ir para o da escola, afinal sei
tudo sobre escola”.
Quando entrou teve outro impacto. Viu crianças de 7 anos participando, não havia
somente adolescentes como ela. Ali estavam crianças mostrando o que tinham aprendido e
visto na escola. Segundo Raquel, a sensação que teve naquele momento foi como se um balde
de água gelada, no inverno, estivesse caindo sobre ela. Ela não estava acostumada com aquele
espaço e com aquela diversidade de pessoas. Com calma sentou e um professor de teatro que
estava lá começou a fazer brincadeiras, ler livros, falar sobre adolescentes, etapas da vida e
ela foi interessando-se cada vez mais. Depois o professor começou a perguntar sobre a escola
e ela foi respondendo e entrando na brincadeira, e quando percebeu estava dentro de um
círculo, brincando com as crianças.
A primeira idéia que lhe veio à mente foi de aprender ao máximo tudo o que lhe
ensinavam. Ela lia, conversava, aprendia, conhecia gente nova, fazia amigos. Naquele dia,
Raquel conheceu pessoas diferentes, professores novos, pessoas do teatro e pessoas de outros
países. No contato com tanta gente nova, conhecia a cultura deles e eles a dela. Contou que
quando conhecia alguém, perguntava: “Oi como tu vais? Como é o teu colégio? É de ciclos? E
como é a cultura lá?
Raquel aprendeu muito nesse dia e com orgulho declarou: “se me
perguntarem como é a cultura em tal colégio, eu vou dizer, é assim, assim, assim”!
91
Esse encontro com crianças e adolescentes de escolas públicas foi uma atividade desenvolvida pela psicóloga
que trabalha no CESMAPA e que faz parte de um projeto maior desenvolvido por um grupo de estudos de uma
Universidade privada na cidade de Porto Alegre.
178
Sempre que Raquel falava sobre a escola, a palavra cultura era a tônica do diálogo. Ela
comentava com entusiasmo as atividades culturais desenvolvidas na escola. Em um dos
nossos diálogos, ela destacou a Feira do Livro, o brechó, as atividades de leitura
desenvolvidas na biblioteca e o mutirão para a limpeza da escola como atividades culturais,
organizadas por alunos e professores. Raquel entendeu o mutirão como uma atividade cultural
de preservação e cuidado para com algo que é patrimônio deles.
A cultura aqui no colégio tá ampliando, o pessoal tá se interessando, no
sábado que teve a feira do livro, mesmo chovendo o pessoal veio pra ler
os livros, comprar livros. Tanto que a biblioteca tá com recordes de
leitores. Muitas vezes são os professores que mais compram, eles
compram para os alunos, pras turmas, e os alunos pedem pros profi. E a
professora vai ali e compra, e os alunos fazem os trabalhos. E teve
também o mutirão. A gente achou que não ia dá. O colégio tava todo
riscado, do chão até o teto, até a lâmpada tava pichada. Então a gente
organizou um mutirão, junto com a direção, e no outro dia não teve aula,
só alimentação. Veio gente de vassoura, de pano, fardado com luva. Hoje
não tá mais riscado, porque eles valorizam. Eu acho que isto é um pouco
da cultura e do lazer que eles ensinam pra gente. Que não se pode riscar,
porque é nosso, dos nossos filhos, então é um pouco da nossa cultura.
Desde a nossa primeira conversa, fiquei surpresa com as diversas atividades
desenvolvidas pela aluna. O que não é muito comum, principalmente no cotidiano das
meninas. Raquel atribui à escola todo este movimento no seu cotidiano. Foi através do espaço
escolar que várias oportunidades se abriram na sua vida. Através da escola ela foi para o
CESMAPA, onde faz oficina de grafite, de dança, participa da rádio comunitária e participa
do Grupo de Adolescentes, que é organizado e mantido por uma Universidade privada, sob
orientação de uma psicóloga. Em relação a esse grupo ela declarou: “no início eu achei que era
perda de tempo, mas hoje acho bem legal”.
6.4.1.1 O CESMAPA: Um Espaço de Múltiplas Práticas
O CESMAPA é um Centro Social, localizado próximo à escola, e de grande
importância no cotidiano de Raquel. Foi fundado no final dos anos 70 como centro de lazer,
esporte, e local para a realização de eventos na comunidade. Em 1994, através de um Projeto
de Lei Municipal, passa a denominar-se FESC (Fundação de Educação Social e Comunitária),
ampliando os seus objetivos e garantindo uma maior assistência social à comunidade. Em
179
1998 novamente é alterado o nome oficial para FASC (Fundação de Assistência Social e
Cidadania). Apesar das mudanças no nome todos continuam a referir-se ao local pela primeira
denominação. A sede atende crianças em situação de risco social. As famílias carentes
recebem assistência social e psicológica e os idosos participam de atividades sociais, culturais
e esportivas. Crianças de 7 a 14 anos realizam oficinas no turno inverso ao da escola. São
oferecidas Oficinas Pedagógicas, Culturais e de Recreação. Dos 14 aos 18 anos, as oficinas
têm um enfoque voltado para o mundo do trabalho. Há oficina de Reciclagem de Papel e
Rádio Comunitária. Jovens de 15 a 17 anos podem participar do “Projeto Agente Jovem”, que
visa repassar a outros jovens da comunidade conhecimentos sobre saúde, sexualidade, drogas
e cidadania aprendidos no projeto. Para tanto, os jovens recebem uma bolsa mensal de 65,00
reais. Trabalham no local, os técnicos que são funcionários públicos da prefeitura municipal,
os oficineiros e o pessoal da limpeza que são terceirizados.
A escola encaminhou Raquel para esse centro onde realiza duas oficinas, a de Hip Hop
e a de Rádio Comunitária. Essas atividades estiveram sempre presentes nos diálogos. Em
relação à oficina de Hip Hop, ela explicou que a dança e o grafite são atividades fundamentais
no seu cotidiano, pois ajudam a diminuir o estresse e liberar as angústias. A Rádio
Comunitária, para Raquel, é o local da palavra, de mostrar para outros jovens o que ela pensa
e da possibilidade de ser ouvida por um maior número de pessoas.
Quando entrou na oficina de Hip Hop, achou que tudo o que era desenvolvido ali era
bobagem, “
coisa de louco, de maloqueiro”. Mesmo assim, fez um ano de dança e de grafite, mas
não valorizava muito o trabalho. Não se interessava de verdade pelas atividades. Saiu e, com
o tempo, começou a sentir falta das oficinas. “Fiquei um ano lá dentro e não consegui fazer
Hip
Hop
, eu não me interessava, quando saí foi que eu valorizei o que eu tinha lá dentro e comecei a
voltar”.
Durante o tempo em que esteve afastada, percebeu que a dança e o desenho eram
muito importantes para ela e voltou para as oficinas. Na época da pesquisa, ela participava da
oficina somente uma vez por semana e estava valorizando muito esse dia. Para Raquel, a
música, a dança e o desenho são maneiras de expressar os seus sentimentos e de entender a
realidade.
180
Eu valorizo muito este dia porque a gente se expressa pela música. O
professor colocou um refrão e começou o embalo, aí eu comecei a gostar
da música, porque uma parte da dança tu mexe os braços e dependendo
do jeito que tu mexe os braços é uma palavra. Se tu mexe assim (fez o
gesto), é cabeça grande, se tu abaixar é porque tu é muito baixo, se
botar a mão no meio assim para cima é porque a pessoa é muito burra, ou
assim (gesto) tu tá chamando a pessoa pra dançar contigo. Todo tipo de
dança tem um significado. O professor canta e dança
rap
e ele tenta
mostrar pra gente que a realidade pode ser mostrada através de sinais e
de música.
A oficina de Hip Hop, na concepção de Raquel, não serve somente para manifestações
artísticas, mas também para diminuir o estresse e para não descontar nos outros as suas
dificuldades. Ela entende que, antes de xingar alguém, é melhor dançar bastante, começar a
escrever ou desenhar para soltar um pouco o que a pessoa sente de ruim.
Senão alguém te diz: Oh! Guria! Aí tu responde: não sou guria, vou dar em
ti! Ai eu penso: Não, eu não posso. Eno, vai lá, tá um pouco cansada para
dançar, começa a escrever, desenhar, não consegue te acalmar, tá com
bastante nervosismo mesmo, chega ali, dança até cansar, dança bastante
mesmo.
A cultura Hip Hop, como já vimos no capítulo 3, representada pela dança (o break), a
música (o RAP – ritmo e poesia) e o desenho (grafite) são formas de expressão juvenil. Uma
cultura de rua, basicamente, masculina, de regiões pobres e da periferia urbana, mas que
lentamente segue atingindo outras camadas da população, outros espaços, atraindo, cada vez
mais, a presença feminina e o interesse das grandes distribuidoras de discos.
Segundo Do Carmo (2003), o rap é uma adaptação do canto falado da África
Ocidental e tem sua origem nos tempos das discotecas de rua, na Jamaica, nos anos 1960. Um
movimento espontâneo de valorização das raízes musicais mais tradicionais, das quais o
Reggae foi uma das fontes. Por ser uma cultura de rua, vinda das comunidades negras, sem
apoio da mídia ou da indústria cultural, o rap se estabelece como uma cultura marginal. Os
temas abordados nas músicas falam da discriminação, dos confinamentos e da realidade social
e econômica vivida pelos moradores pobres da periferia das grandes cidades.
No Brasil, o rap também nasceu e cresceu nas favelas, e suas músicas são de protesto
contra a discriminação, o descaso das autoridades com a situação de miséria vivida por muitos
181
brasileiros, principalmente os negros e pobres, e contra todas as práticas de opressão e
violência manifestas na cidade. Para Sposito (1994), o rap, criado nas ruas das cidades, em
geral, em bairros distantes onde vive parte da população empobrecida, passa a ser entendido
como produto da sociabilidade juvenil. Essa manifestação cultural revela uma forma própria
de apropriação do espaço urbano e do agir coletivo que mobiliza uma parcela dos jovens
excluídos em torno de uma identidade comum.
Assim, esse gênero procura articular, nem sempre organicamente, três
dimensões: a primeira, mais próxima de suas origens, aponta para as
questões específicas que afligem a população negra no interior de uma
sociedade marcada pela hegemonia do branco; uma segunda, de caráter
social, se expressa na denúncia das condições de vida das populações
trabalhadoras da sociedade; e a terceira aponta para as dimensões
excludentes das relações geracionais, remetendo a uma específica forma de
discriminação que atinge os jovens, marcados pela estreitas possibilidades
de emprego, pelas dificuldades escolares, pelos dilemas presentes no mundo
das drogas ou do crime e sobretudo, porque este setor se tornou alvo
privilegiado da violência policial e de grupos exterminadores. (SPOSITO,
1994, p. 8)
Assim, na procura de um reconhecimento maior, alguns grupos de rap que lutam para
se profissionalizar e alguns que já são reconhecidos pela mídia mostram que, através da
música, a gurizada da periferia pode ter uma chance de sonhar com uma vida melhor e mais
digna, afastando-se do tráfico de drogas que alicia milhares de jovens, que, sem trabalho e
estudo, tendem a ceder com mais facilidade às freqüentes investidas dos traficantes.
Do Carmo (2003) esclarece ainda que o grafite, expressão artístico-visual, surgiu no
início dos anos 70 nas comunidades negras da cidade de Nova York. No início como um ato
de transgressão e ousadia, quando os trens do metrô eram pichados com rabiscos de todos os
tipos indicando caligrafias de indivíduos ou de gangues.
Em se tratando da dança break, o autor lembra que o DJ Afrika Bambaataa foi um dos
criadores da prática de movimentar os quadris (Hip) após um salto (Hop). O Disc-Jóquei (DJ)
propunha também que as gangues do Bronx (EUA) resolvessem suas disputas através da
competição musical e da dança. Assim, o break, tendo como palco as ruas, exibia piruetas
atléticas, movimentos de tronco, saltos acrobáticos e movimentos rápidos, fazendo da rua um
espaço público de manifestação cultural.
182
Vulbeau (2002) explica que a cultura Hip Hop, para quem não a conhece, pode passar
uma imagem negativa, estranha, quase exótica, mas, quando a cultura é entendida nas suas
bases, percebe-se que as dinâmicas socioculturais que ela traz no seu bojo fazem com que o
movimento seja um meio de expressão juvenil que tenta passar uma mensagem para toda a
sociedade. O autor esclarece ainda que na chegada do Hip Hop, na França, sua mensagem era
etnocentrada e radical, mas que, com o tempo, ela se impregnou de um universalismo e de um
relativismo nas suas mensagens que permitiu sua abertura aos mais diversos públicos e ocupa,
hoje, um lugar de destaque nos mais diversos setores, como o cultural e o social.
Para Vulbeau (2002), essa aceitação progressiva que se observa no momento atual, ao
contrário dos primeiros tempos, é uma relativa consagração do movimento. Percebe-se que
aquilo que era uma intrusão se transforma em evento e em novidade. Um movimento estético
cuja expressão é visual, sonora e gestual. Um movimento que, a partir da metade dos anos 90,
recebe acolhimento da televisão, das revistas, da mídia oficial em geral.
Vulbeau (2002) explica também que a expressão cultural que esse movimento traz
com uma linguagem criativa mostra uma perfeita interação da arte com a rua. Interação que
não foi fácil de ser entendida de imediato, pois as primeiras impressões do Hip Hop foram de
um sentimento de intrusão visual, sonoro e gestual. Vulbeau (2002) lembra que os primeiros
grafites vistos em um muro, o primeiro rap ouvido em aparelhos grosseiros e a dança
observada na rua foram sinais culturais difíceis de serem decodificados. Classificados, em um
primeiro momento, como desvios de comportamentos e vistos pelo prisma da delinqüência.
Em relação ao rap feito nas comunidades, o autor traz uma reflexão significativa sobre
como as músicas são feitas. Em geral, sem instrumentos no sentido clássico do termo, tendo
somente a voz humana como único instrumento. Em alguns casos, a música é a mistura de
outras já registradas em discos. Nesse caso, o aparelho de criação musical é formado por duas
platinas sobre as quais se acham discos de vinil.
Para Vulbeau (2002), esse procedimento indica duas coisas. Primeira, todas as músicas
podem servir de base para a criação e, a segunda, as músicas são retrabalhadas para
parecerem originais. Nesse movimento, há uma reciclagem de sons perdidos e inutilizados
que se transformam em fontes de energia e passam a ter uma segunda chance.
183
O rap testemunha a importância da apropriação da palavra pelos jovens. No rap, a
palavra é o ponto chave da expressão e da informação. Entretanto, Vulbeau (2002) explica
que essa forma de expressão é, por vezes, apresentada à sociedade como um desvio dos
jovens e, por outra, como suporte das atividades de inserção e de prevenção social.
Nesse contexto, Vulbeau (2002) explica que o rap, ainda hoje na sociedade, encontra
pontos de indecisão. Por um lado tem o suporte da ação social de integração, e por outro, às
vezes, é visto com indignação. O rap pode, em alguns casos, retrabalhar a violência e o
silêncio em torno de uma situação que fez passar um jovem do status de vítima ao de infrator.
Para Vulbeau (2002), o rap pode ser um meio de identificar a violência e entender em
que situações ela ocorre e como se processa. Esse aspecto experimental é relevante, pois
explica que, em situações diferentes, os rappers, podem ser as vítimas e, às vezes, os
causadores da violência. O rap, nesse contexto, seria um momento em que a palavra que
consegue, enfim, sair da vergonha e do silêncio, procura, em outras palavras, aliados e
espaços possíveis de liberdade. Uma forma cultural como espaço de mediação paradoxal e
provocador de uma juventude que procura o seu lugar no espaço público.
Assim, a cultura Hip Hop, nessa interação entre processos de exclusão e de inserção
social, também pode ser vista como uma maneira de transformar a energia negativa que
muitos sentem em energia positiva. Segundo Raquel, a dança e o grafite têm o poder de
expressar, através do movimento e do desenho o que ela sente e pensa. Para os jovens, em
geral, o Hip Hop é um movimento que através do grafite, da dança e da música, tenta
transmitir valores universais, como a paz, a união, a não-discriminação e a luta contra as
drogas.
6.4.1.2 A Rádio Comunitária: Espaço de Socialização e Sociabilidade
A rádio é importante, não porque depois eu posso ser uma locutora, não
por isso, mas pelo momento, não penso no que vai dar depois. Para mim, o
importante é que a gente tá fazendo a nossa própria rádio, depois fazer
a rádio feminista que ainda não tem, que é uma coisa muito difícil, mas
vai acontecer a nossa rádio ‘Garotas POP’. (RAQUEL)
184
Desde a nossa primeira conversa, Raquel sempre enfatizou a importância da Oficina
de Rádio Comunitária no seu cotidiano. No final da primeira entrevista, ela convidou-me para
conhecer a rádio. O que aconteceu mais tarde. Percebi que a rádio comunitária era um eco da
sua fala que se expande para além dos seus domínios. Com a oficina, a jovem pretende que
sua voz seja ouvida por um número maior de pessoas. Na rádio ela exercita a fala, a escrita, a
dramaturgia, a liderança e o profissionalismo. Pareceu-me que, na rádio, ela consegue
expressar-se de maneira integral.
Para Milton Santos (2000), a rádio comunitária pode ser uma atividade central na vida
daqueles que têm pouco poder de fala, e representa uma vontade local que se irradia e chega à
vizinhança, mostrando a sua face e, escapando, assim, ao ataque das verticalidades. Quando
fala das verticalidades, no âmbito das relações, Milton Santos se refere às relações que se
estabelecem de cima para baixo, vindas de espaços fora da comunidade, e que, muitas vezes,
são tomadas sem discussões, com regras prontas, não respeitando as vontades e os direitos
locais.
Em contrapartida, ele esclarece que, em espaços da horizontalidade, onde a rádio
comunitária estaria incluída, são freqüentes as transformações. A ordem espacial seria
permanentemente recriada, adaptada aos reclames externos e, ao mesmo tempo, encontrando
uma lógica interna própria, um sentido próprio, localmente constituído, onde se defrontariam
a Lei do Mundo e a Lei do Lugar.
A rádio comunitária para Raquel tem essa amplitude, ela quer conhecer coisas novas,
trazer informações e conhecimento para a comunidade e mostrar o que o bairro tem. Na época
dos encontros, ela estava tentando entrar em um grupo para aprender a escrever letras de
música e melhorar seu desempenho na rádio. O microfone encanta Raquel. Colocar a rádio no
ar, discutir a pauta, organizar a mesa, distribuir as atividades diárias faz da rádio um lócus de
experimentação e expressão. Uma oficina de cabecinhas borbulhantes e desejosas de
aprendizagens e novas práticas.
RAQUEL EXPLICA A OFICINA:
A gente não tem como conseguir que a rádio saia em uma rádio comum. A gente pegou a caixa de
som emprestada, botamos na janela, que fica de frente para uma praça, uma creche e um posto
de saúde e uma loja. As caixas ficam ligadas para que o pessoal que está na praça, na rua ou na
185
quadra de futebol possa ouvir. Antes de liberar a caixa, a gente ensaia a voz e passa o som. Na
semana passada a gente ganhou uma máquina de escrever. Não está escrevendo muito bem, mas o
importante foi que a gente ganhou. Das 14h às 15h a gente escreve o programa, depois eu e alguns
colegas da oficina junto com o Monitor ensaiamos o que vai acontecer e o resto do pessoal monta
a mesa do som e organiza os lugares. Das 15h às 16h colocamos a rádio no ar. A gente queria pôr a
Rádio Feminista e a Rádio dos Guris, mas está difícil. O problema é que os guris gostam de falar
mais que as gurias e nós não estamos gostando. Outra coisa que nós, as meninas, não estamos
gostando é que só um menino tem mexido no som, é só um guri que sabe ser Dj e a gente pediu
para o professor que ajudasse uma das nossas amigas a mexer no som e ficasse como nossa Dj
para que a gente não precisasse de um guri. A nossa rádio é toda feminista, então queremos por
uma Dj mulher. Na oficina somos apenas 4 meninas, são 15 pessoas no total. A gente está
tentando aumentar o número de meninas. Por enquanto a gente está tentando conseguir uma
caixinha, com um furo em cima para largar os recados. Ainda não conseguimos um telefone. Seria
bom para ligar para as pessoas, entrevistar por telefone. A gente tem juntado dinheiro para
comprar algumas coisinhas para a rádio, porque este curso é do CESMAPA, nós não temos
dinheiro. Eles dão a sala, as cadeiras e o material para escrever.
O desejo de Raquel de colocar no ar uma rádio, que ela mesma denominou de
feminista, tem como objetivo abrir um espaço para que as meninas possam falar com mais
liberdade. Nos diálogos, ela deixou claro como as jovens são cobradas o tempo todo no
sentido de comportarem-se conforme os padrões vigentes na época de seus pais,
responsabilizarem-se pelo cuidado da casa e dos irmãos menores e pela preparação das
refeições destinadas à família.
AS MENINAS FALAM SOBRE A RÁDIO
Raquel: Fizemos uma reunião porque estávamos praticamente sem fazer nada na rádio. Os guris só
queriam
rap
e a gente queria uma rádio que falasse das gurias. O problema é que éramos somente
duas e as meninas não gostam muito de falar, de mexer no som, elas querem fazer outra coisa,
como mexer na máquina de escrever, organizar a programação.
Mirna: Entrou uma guria, mas ela ficou com os guris. Ela queria melhorar o que já tinha e não criar
um novo, e a rádio feminista é algo novo.
Raquel: A gente colocou a rádio um dia no ar. Foi muito tri. Eu penso em voltar, mas sozinha não
tem como, eu preciso de pelo menos uma voz diferente da minha.
Lílian: Eu já falei na rádio, mas não é muito pra mim (risos), eu sou mais de cantar. A gente pensou
em fazer a nossa rádio porque os guris só falam de
rap
, pagode e futebol, e a gente queria falar
um pouco de moda, beleza, cosméticos, essas coisas.
Mirna: A gente pensa em colocar todos os ritmos de música, nós gostamos de músicas mais
românticas.
186
UMA VISITA À RÁDIO COMUNITÁRIA
Eu vejo na TV. O que eles falam sobre o jovem. Não é sério. O nome do
Brasil nunca é levado a sério. Sempre quis falar. Nunca tive chance. Tudo o
que eu queria. Estava fora do meu alcance
92
”.
PROGRAMAÇÃO DO DIA
Rádio Comunitária
Rádio Sócio Educativa/ FASC
Programa-Ação Do Gueto
E na escola de hoje?
Horóscopo. Você acredita? Por quê?
Campanha do agasalho. Você acha legal?
Propaganda. Licor de Cacau, Jornal Da Hora
Entrevista: Pesquisadora
Poesia Cultura
Em uma quinta-feira à tarde cheguei à sala da rádio comunitária com Raquel. Fui
apresentada aos alunos que ali se encontravam e ao monitor da oficina. Fui bem recebida por
todos. Quando cheguei já estavam dois meninos e uma menina. Na chegada, o monitor
explicou-me que participavam da oficina mais ou menos uns 15 jovens. Conversei um pouco
com o monitor e, enquanto ele dava as instruções, fiquei observando o cenário. Em uma
parede da sala havia um armário com discos, CDs e o material da rádio. No centro estavam as
mesas de sons e de locução. Os meninos compenetrados preparavam o som, tentando, como
eles mesmos disseram ressuscitar algumas caixas. Uma menina trabalhava na máquina de
escrever, organizando a pauta da rádio. A máquina tinha sido ganha naquela semana. Não era
muito nova. O monitor explicou: “Ganhamos a máquina, estamos nos adaptando a ela. Estamos
felizes com mais esta doação”.
Os instrumentos de som eram precários. O que não diminuía a vontade de colocar a
rádio no ar e, para tanto, eles faziam milagres para que os instrumentos funcionassem. Soube
pelo monitor que ele, junto com os jovens, reciclam tudo o que podem. Impressionei-me com
o empenho e o profissionalismo deles. Cada um no seu lugar de trabalho, organizando tudo
para o início da rádio. O clima da sala era agradável e com calma organizavam tudo.
92
“Não é sério”. Música de Charlie Brow Jr.
187
A rádio é montada numa sala do CESMAPA, e as caixas de som ficam na janela e no
pátio. A pauta do dia foi definida por todos. Muitas notícias foram tiradas de jornais, revistas
e do próprio cotidiano dos jovens e da comunidade. A rádio transmitia, basicamente,
mensagens direcionadas aos jovens. O público ouvinte era constituído pelo pessoal do posto
de saúde, da creche, da escola, dos moradores próximos e do pessoal que fica nas ruas.
Quando começou a testagem do som, a energia daquele local mudou. O som era alto e
contagiante. Havia movimento e expectativa no ar. Às 14h30min a rádio deu inicio. Naquele
momento já eram 9 alunos, 4 meninas e 5 meninos. Raquel era a locutora junto com Pedro.
Lílian ficava um pouco em cada setor. Mirna na mesa do som. Laura organizava as notícias e
os outros meninos ajudavam no som e na organização geral da rádio. Tudo sob a supervisão
do monitor.
Conversando com um dos meninos, ele contou-me que são contra o funk que
discrimina as mulheres e que colocam “nome” (palavrão) nas letras das músicas. Segundo
eles, as duas coisas são muito freqüentes no funk atual. Ele contou que este entendimento foi
possível através da oficina na qual o monitor explicou que o funk dos anos 70 era diferente do
atual, porque os autores das músicas preocupavam-se em transmitir mensagens que
conscientizassem os jovens frente aos problemas sociais.
Portanto, o funk colocado na rádio era escolhido a partir destes pressupostos. Do
Carmo (2003), nesse ponto, adverte que, hoje, os rappers se diferem, basicamente, dos
funkeiros, por considerarem o funk uma corrente musical de decomposição melódica mais
pobre e de conteúdo mais leve, não promovendo a conscientização dos jovens pobres frente à
situação social e à discriminação sofrida.
A gente coloca
rap, funk
e pagode. Mais
funk
internacional, dos anos 70,
os mais antigos. Os que mais marcaram. É assim em função das letras.
Muitos atuais ofendem as mulheres, as loiras, ou tem palavrão. (PEDRO,
16 anos)
No final da tarde, quando terminou a programação da rádio, eu estava encantada com a
dinâmica do grupo. Houve a hora do conto, da entrevista comigo, do horóscopo, das piadas,
das histórias infantis e das notícias de utilidade pública para a comunidade e para os jovens.
188
Reencontrei alguns alunos da Escola Heitor Villa-Lobos que participavam da oficina. Fiz
algumas fotos dos jovens enquanto se organizavam e durante o funcionamento da rádio
93
.
Figura 1
Rádio Comunitária
Conhecer a rádio comunitária foi uma experiência impactante. Conviver algumas
horas naquele espaço e perceber a organização e o empenho, por parte dos jovens e do
monitor, para levar ao ar uma rádio com um alcance de som tão pequeno, foi uma experiência
gratificante. Aprendi naquele dia que a propagação do som até poderia ser pequena, mas que,
através de cada caixa que fica no pátio ou na janela da sala, um mundo novo e cheio de
possibilidades se abria. Descobri, também, que sabemos muito pouco sobre os nossos jovens,
sobre as suas potencialidades e o quanto eles podem estar fazendo longe dos olhos dos
professores e fora do espaço escolar. Conversando com o monitor Carlos, ele comentou
acerca deste desconhecimento dos professores e acrescentou que os jovens se sentem muito
valorizados quando alguém vem conhecer o trabalho deles, o que, segundo ele, é raro.
Através da importância que a rádio comunitária tem na vida de Raquel, do interesse
dos colegas de oficina em colocar a rádio no ar, apesar de todas as dificuldades para tal tarefa
e do trabalho consciencioso do professor/monitor, percebi o quanto esse espaço, que se
93
No final do ano, volto à oficina e entrego as fotos para os alunos.
189
propõe à socialização juvenil, pode oferecer inúmeras possibilidades de aprendizagens, trocas
de saberes e de convivência solidária, mesmo enfrentando diferenças e lutas internas por
espaço e voz. A rádio, nesse contexto, se estabelece como um espaço de socialização e de
sociabilidade permanentes.
Souza (2003) informa que parte da socialização dos jovens, na contemporaneidade,
vem ocorrendo em espaços e tempos variados, com múltiplas referências culturais, sendo
possível pensar os grupos de sociabilidade juvenis como articuladores de redes de
significados e vivências que, num jogo de relações e interações, reconstroem suas identidades.
Berger & Luckmann (1978) esclarecem que o indivíduo não nasce membro de uma
sociedade, mas com a predisposição para a sociabilidade, tornando-se membro dela no curso
de sua vida e sendo induzido constantemente a tomar parte na dialética da sociedade. Para os
autores, o ponto inicial de todo esse processo é a interiorização que se dá quando a
manifestação de processos subjetivos do outro se torna subjetivamente significativo para mim.
A interiorização, então, constituiria a base da compreensão de nossos semelhantes e da
apreensão do mundo como realidade social dotada de sentido.
Somente a partir desse processo que os autores chamam de ontogenético é que se
realiza a socialização, que pode ser definida como uma ampla e consistente introdução de um
indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela. É um processo pelo qual
os indivíduos de uma sociedade interiorizam os valores e as normas da sociedade na qual
vivem. Assim, a socialização se subdivide em primária e secundária. A socialização primária
é aquela que o indivíduo experimenta na infância e que o introduz na sociedade e a secundária
é o processo que introduz um indivíduo já socializado em novos setores do mundo objetivo de
uma sociedade, o que ocorrerá no curso de uma vida toda.
A socialização primária termina quando o conceito do outro generalizado (e
tudo quanto o acompanha) foi estabelecido na consciência do indivíduo.
Nesse momento é um membro efetivo da sociedade e possui subjetivamente
uma personalidade e um mundo. Mas esta interiorização da sociedade, da
identidade e da realidade não se faz de uma vez para sempre. A socialização
nunca é total nem está jamais acabada. (BERGER & LUCKMANN, 1978, p.
184)
No que tange à sociabilidade, Simmel (1983) explica que ela deriva de uma forma de
reunião, na qual não haja redução de autonomia ou de exacerbação pessoal. Sendo assim, a
190
sociabilidade demandaria o mais puro e o mais atraente tipo de interação, aquela que atrai
seres humanos que renunciam a alguns objetivos próprios, modificando sua participação
externa e interna no grupo, a ponto de se tornarem socialmente iguais.
6.4.1.3 Roqueiros e Pagodeiros na Escola
Em um dos nossos encontros, perguntei à Raquel como percebia os seus colegas e os
outros jovens da escola e da comunidade. Logo após a pergunta, ela começou a falar dos
pequenos grupos que se formam na escola e que são visíveis também na comunidade.
Explicou que os grupos são identificados pelas roupas que vestem, pela preferência musical,
pela maneira de falar e pelas atitudes tomadas tanto na escola quanto na rua.
Segundo Raquel, o grupo dos roqueiros é o mais forte, são os que se identificam mais
como grupo. Contou que eles não se misturam e que são muito fechados, são mais na deles.
Usam anéis, roupas pretas e brincos. Raquel conta que eles preferem ficar em casa ouvindo
música, pois o som deles não toca na rua: é melhor para eles ficarem em casa com o som bem
alto e o vizinho reclamando. E no calor com aquela roupa preta é ruim. É melhor ficar em casa
mesmo”.
Raquel percebe uma certa rivalidade entre os roqueiros e os pagodeiros, mas explica
que fora da escola a rivalidade é menor e que a disputa maior é no espaço escolar. Em relação
aos pagodeiros, explica que eles usam roupas mais justas e se misturam mais com a “galera”.
Na concepção de Raquel, os roqueiros são mais indisciplinados porque “eles não são de Deus e
não freqüentam a igreja
”.
Referindo-se aos roqueiros e pagodeiros presentes no espaço escolar, Raquel traz a
questão da diversidade de grupos existentes no universo juvenil. Na fala dela e de outros
jovens da pesquisa, esses dois grupos foram citados com freqüência e são identificados nas
comunidades e nas escolas pelas roupas que vestem, pela maneira que falam, andam, usam
acessórios, pela música que ouvem e pela maneira própria de pensar e de agir de cada um.
Situações e atitudes que interferem no processo de formação identitária dos jovens, na
produção das suas práticas sociais e na escolha por espaços ocupados.
191
Berger & Luckmann (1978) explicam que a identidade é um elemento-chave da
realidade subjetiva, e como tal acha-se em relação dialética com a sociedade. A identidade
seria então formada por processos sociais. E acrescenta que uma vez cristalizada, é mantida,
modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais.
Nesse sentido, a categoria identidade não é fácil de ser definida, principalmente se
falamos de sociedades contemporâneas. Perceber quem é este sujeito, que possui uma
identidade individual e coletiva que o obriga a autodenominar-se e ser denominado pelo grupo
ao qual pertence, não é tarefa fácil, principalmente, quando se fala tanto em crise de
identidade, em surgimento de novas identidades e em identidades fragmentadas.
Considerando que a identidade é um fenômeno que deriva da dialética entre um
individuo e a sociedade, conforme afirmam Berger & Luckmann (1978), somos obrigados a
refletir sobre a sociedade na qual vivemos, que, no final do século XX e no início deste, passa
por um período de grandes transformações estruturais, sociais e culturais. O conceito de
indivíduo e sociedade que estava “solidamente” estabelecido exige uma abordagem mais
ampla e complexa. O ser humano não é mais uno, como a modernidade tentou defini-lo, mas
plural e de natureza complexa.
Falar de identidade, quando o conceito está em crise, é expor dúvidas, procurar
caminhos e percorrer os mais variados campos do conhecimento. Para Hall (1999), a
identidade unificada, segura e coerente é uma fantasia. O conceito requer a complexidade e
não a simplificação, pois o nosso eu confronta-se com uma multiplicidade desconcertante e
cambiante com as quais poderíamos nos identificar, ao menos, temporariamente.
A modernidade colocou o individuo no interior das grandes estruturas, fortalecendo o
conceito de sujeito individualista e racional, esquecendo os valores éticos, estéticos e
singulares de cada um. Entretanto, no decorrer do tempo, com avanços na área da psicologia,
da lingüística e com o surgimento de movimentos feministas, ecológicos e juvenis, valiosas
contribuições foram dadas para o descentramento conceitual do sujeito cartesiano, ainda
presente na atualidade. Desta forma, o sujeito moderno, com uma identidade pretensamente
“fixa” e “estável”, dá lugar a um sujeito pós-moderno, contraditório e inacabado (HALL,
1999).
192
Melucci (2004) complementa o debate quando afirma que a identidade define nossa
capacidade de falar e de agir, diferenciando-nos dos outros e que a auto-identificação deve
gozar de um reconhecimento intersubjetivo para poder alicerçar nossa identidade. Para o
autor, a unidade pessoal que é reproduzida e mantida pela auto-identificação encontrará apoio
no grupo ao qual o indivíduo pertence, possibilitando um acolhimento em um sistema de
relações. Sendo assim, a construção da identidade depende do retorno de informações vindas
dos outros.
Encontramo-nos, pois, pertencendo a uma pluralidade de grupos gerada pela
multiplicação dos papéis sociais, das redes associativas e dos grupos de
referência. Entramos e saímos desses sistemas com mais freqüência e
rapidez do que no passado - animais migrantes nos labirintos da metrópole,
viajantes do planeta, nômades do presente. (
MELUCCI, 2004, p. 60)
Para o autor, a convivência em sociedades complexas como a que vivemos, em
constantes transformações, nos impele a fazer parte de muitos sistemas de relações e de nos
movermos por vários espaços no tempo e no curso de uma vida, tornando difícil realizar um
equilíbrio entre os vetores que constituem a identidade, abrindo espaço para que uma crise de
identidade aconteça oriunda da impossibilidade de manter no tempo e no espaço uma dada
configuração, aumentando a probabilidade de conflitos, sejam interpessoais ou entre grupos.
Para Melucci (2004), ao enfrentarmos esses desafios, a noção de identidade tende a esvaziar-
se de conteúdos estáveis e percorrer caminhos simbólicos de reconhecimento.
Participamos, na realidade e no imaginário, de uma infinidade de mundos
Cada um deles é caracterizado por uma cultura, uma linguagem, um
conjunto de papéis e de regras, aos quais devemos nos adaptar a cada
migração. Isso comporta uma pressão constante à mutação, à transferência, a
tradução daquilo que éramos um segundo atrás para novos códigos e novas
formas de relações. (MELUCCI, 2004, p. 60)
A partir das reflexões sobre identidade e dos múltiplos pertencimentos sociais nos
quais os jovens estão procurando fazer parte, Raquel mostra, através de suas práticas sociais e
dos espaços que percorre cotidianamente, as escolhas que faz, as relações que estabelece nos
diversos espaços e as magias em que acredita.
193
6.4.1.4 A Umbanda: Um Espaço de Práticas Religiosas
Na questão religiosa, Raquel contou que optou pela Umbanda, religião de origem
africana, mas que freqüenta outros espaços onde acontecem cultos religiosos. Na fala de
Raquel e na dos outros dez jovens, percebi que a tônica do discurso, sobre religiosidade,
sempre foi a procura pela paz e pelo equilíbrio, sem a necessidade de uma freqüência diária
ou contínua e, mesmo no caso de uma menina que freqüenta regularmente uma igreja
evangélica e dedica grande parte do seu tempo as atividades religiosas, a sua entrada na igreja
foi pela busca de diálogo e conforto em um momento difícil da sua vida, superado através do
carinho recebido dos participantes da mesma crença, sem desmerecer o aspecto lúdico que
existe nessas reuniões e que parece agradar aos jovens que ali se reúnem.
Para Raquel, o espaço religioso é um espaço de reflexão, de diálogo com o mundo
adulto, no qual encontra pessoas que a acalmam, onde pode falar das dificuldades diárias,
receber apoio em situações difíceis e realizar práticas religiosas que permitam a ela se ligar ao
mundo espiritual, trazendo calma e conforto nas horas de angústia.
O Ritual: Tem a nossa mãe, ela vai lavar a nossa cabeça. Vai pedir por nós, pela nossa saúde, pela
nossa paz e tranqüilidade. A gente escolhe uma madrinha na casa, que junto com ela vai lavar a
nossa cabeça também.
O Compromisso: Meu compromisso é acender uma vela para os meus pais. Caso eu precise, acendo
uma vela e peço pela minha paz, por proteção, para que nada de mal me aconteça, peço pelo bem
da minha família e deixo a vela ali. Eu entrei só na Umbanda. Eu sou afro. Preferi lavar a cabeça
só nesta linha, porque, se eu lavar em outra, serão outras ervas e outras obrigações maiores. Eu
entrei porque eu tava precisando, principalmente de saúde, paz e tranqüilidade. Eu estava muito
revoltada comigo mesma e com todo mundo. Toda vez que eu estou me sentindo mal, eu vou lá,
fico na frente dos pais e acendo uma vela. A fé te deixa bem melhor.
O Sincretismo: Essa religião permite que a gente freqüente a igreja quantas vezes quiser, não é
proibido. A igreja é que tem bastante preconceito. Eu vou ao Centro Espírita aqui da comunidade
também. Eu vou ali, eu me sinto muito bem. As pessoas não entendem que a Umbanda cultua a
Deus, só que com outro nome, mas é o mesmo de cima. Eu já fui na igreja, já li a bíblia. Vou à
igreja dos desbravadores, que é evangélica, eu ia mais. Conheço todos os tipos de deuses, e para
mim não tem preconceito nenhum, sendo pro bem está tudo bem.
194
6.4.1.5 A Relação com a Cidade
Durante uma de nossas conversas, Raquel contou-me que saiu como delegada do
Orçamento Participativo da Juventude, em uma eleição onde concorreram 150 candidatos. No
final saíram 4 delegados da Lomba do Pinheiro, e ela foi uma das escolhidas. Como delegada
do OP, contou que tem certificado e crachá. Segundo Raquel, o papel da delegada é discutir
os problemas da comunidade com os moradores e, na Assembléia Legislativa, com os
vereadores. O propósito é ajudar a comunidade. Os delegados lutam para conseguir mais
quadras de esportes, mais creches e oficinas. Disse já ter participado de um encontro com os
delegados do OP e ter dado uma entrevista, por telefone, para uma revista falando sobre o seu
trabalho na comunidade. Para ela, o trabalho que desenvolve no OP tem por objetivo lutar por
uma cidade melhor e mais humana para todos.
Raquel colocou no questionário a palavra desilusão para representar a cidade. Em uma
de nossas conversas perguntei, inicialmente, como ela via a cidade de Porto Alegre e, em um
segundo momento, o porquê de ela ter colocado a palavra desilusão como representativa da
cidade. Ela respondeu que, mesmo reconhecendo que existem muitos lugares bonitos por toda
a cidade, os bairros não são cuidados da mesma forma, e quem mora na vila é visto diferente,
contribuindo para que haja discriminação e distanciamento entre os moradores de um bairro
para o outro.
A jovem tem um entendimento crítico sobre a cidade que habita e uma preocupação
constante com a limpeza e a valorização do seu bairro. Contou que, quando era criança, tinha
um orgulho enorme em ser porto-alegrense, mas não podia fazer nada pela cidade, mas agora
que é adolescente tem responsabilidades para com a cidade em que nasceu e com o bairro
onde mora.
Quando tu é criança tu pensa que a cidade é tudo pra ti, tu bate no peito
e diz: eu sou de Porto Alegre, mas tu não está fazendo nada pra que a
tua cidade seja melhor, mais limpa. Tu simplesmente está dizendo que é
de Porto Alegre. Na verdade tu tens que valorizar a tua cidade, o teu
pátio, o teu canto. Tu tens que valorizar limpando e não deixando que
joguem lixo no chão. Não precisa enfiar na cabeça dos outros, vai
simplesmente fazendo que os teus filhos vão querer fazer também, teus
amigos e vizinhos. Assim eu acho que o mundo e a cidade vão ser bem
melhores.
195
Em relação à violência na cidade, ela explicou que para andar pela cidade é preciso ter
alguns conhecimentos que vão além daqueles aprendidos na escola. Ela entende que o jovem
tem que conhecer as ruas por onde anda e ter alguma orientação sobre drogas para não se
iludir e cair no vício: “tem lugar no centro onde é muito fechado, onde só têm drogados, ali tu
podes ser assaltada. É preciso conhecer algumas coisas sobre as drogas, senão a pessoa pode ter
curiosidade e aí vai se dar mal. Tem alguns lugares que são lindos, mas podem te fazer muito mal”.
Quando questionada sobre o bairro onde mora, Raquel confessou que o “Pinheiro” é
um bairro diferente dos outros por ser muito agitado. Contou que as pessoas do bairro
levantam muito cedo, principalmente os mais velhos e, mesmo aqueles que não trabalham,
acordam cedo. Explicou que os mais velhos caminham de um lado para o outro durante a
manhã e, no caso dos jovens, o movimento maior é pela tarde e na hora da entrada e da saída
do colégio.
Durante as minhas idas à escola e à comunidade, percebi um movimento intenso nas
ruas do bairro. Presenciei muitos jovens caminhando pelas ruas, agrupados nas esquinas
conversando ou simplesmente parados sem fazer nada. A falta de opção de espaços destinados
ao lazer no bairro talvez justifique a grande demanda deles por ginásios de esportes, campos
de futebol e centros recreativos.
6.4.1.6 Raquel na Busca por Espaços e Direitos.
Nos encontros com Raquel percebi uma jovem curiosa e dinâmica. Uma jovem que
quer aprender sempre e cada vez mais. A partir de suas práticas sociais, ela mostra que no
cotidiano de cada pessoa existem situações e caminhos que podem levar ao inédito, à alegria e
à troca com o outro. No caso de Raquel, as práticas cotidianas que ela desenvolve no
CESMAPA, na Rádio Comunitária, no OP, na comunidade como Agente Jovem, no Grupo de
Adolescentes na Universidade privada têm na escola seu eixo central.
Raquel sempre buscou na escola os meios para enfrentar as suas dificuldades pessoais,
escolares e familiares. A partir dos diálogos, foi possível perceber que a escola para essa
jovem não é somente a sala de aula. Ela jamais comentou sobre o conteúdo escolar ministrado
196
na escola e falava pouco sobre o que ocorria na sala de aula com colegas e professores. Sua
ênfase sempre era nas relações e ações que a escola oportuniza, no seu interior ou fora dela.
Isto se evidenciou também nas várias vezes que cheguei à escola e Raquel estava no pátio ou
na quadra de vôlei jogando. Locais na escola que elegeu de sua preferência, bem como os
corredores da mesma. Algumas professoras preocupadas com ela vieram avisar-me sobre as
suas constantes faltas às aulas.
A escola para essa jovem não é somente um local de aprender conteúdos e normas
sociais, mas um espaço que a lança para outros espaços ainda desconhecidos, possibilitando
novas experiências e grandes surpresas.
Podem dizer que o ensino da escola é fraco. Pode até ser fraco, mas pro
meu nível eu acho que o ensino é bom, e também o colégio não tá mais se
preocupando com o ensino, o ensino vem depois. Depois que tu tiver bem
aqui dentro de ti tu consegue aprender tudo, eu acho que o colégio
percebeu que se tu não estiver bem, tu não consegue aprender nada,
pode forçar, pode forçar, não aprende, tem que estar bem, se sentir
bem.
Para Raquel, a escola é um espaço que permite aos jovens, principalmente, de classes
populares, que, muitas vezes, não têm acesso a multiplicidade de espaços que formam o
conjunto da cidade, percorrer lugares ainda desconhecidos, conhecer pessoas diferentes, fazer
amizades, possibilitando que saiam do espaço da própria casa, do bairro e se lancem em vôos
maiores na busca de outros conhecimentos em outras paragens. Raquel, nas suas falas,
mostrou o quanto a escola tem participado de maneira significativa para o seu crescimento
pessoal e intelectual.
Hoje em dia a escola é importante para mim, ela vai ficar marcada na
minha vida. Foi onde eu aprendi a ser o que eu sou, onde além de eu ter
estudado, eu aprendi a sentir o que eu sinto pelos outros. Onde eu
aprendi me queimando ou não com os colegas e professores. Onde
aprendi cultura, não só a ler, mas a falar o que eu penso, não baixar a
cabeça só porque as pessoas têm dinheiro ou só porque alguém é teu
patrão vai poder te dizer o que quiser ou te mandar ficar quieta. Não! Eu
não fui ensinada assim e isso eu aprendi mais na escola do que em casa.
(RAQUEL)
197
6.4.2 A Casa e a Escola: Espaços de Resistência e de Encontros no Cotidiano de Luana
Luana tem 13 anos, estuda na Escola Municipal Afonso Guerreiro Lima, mora na
Lomba do Pinheiro e nasceu em Porto Alegre. Os pais são separados. A mãe trabalha como
empregada doméstica e o pai é motorista de uma empresa. Os pais cursaram o Ensino Médio.
Tem 5 irmãos, dos quais três moram com ela, duas meninas e um menino. É a mais velha de
todos. O pai tem mais um filho e uma filha do outro casamento. A renda mensal da família é
de um salário mínimo.
Luana é uma menina alegre que se comunica muito bem. Desde a nossa primeira
entrevista colocou-se à disposição para participar da pesquisa. Lembro-me de que no final da
entrevista, feita aos 112 alunos, sempre explicava que alguns alunos seriam chamados para
conversarmos mais algumas vezes e perguntava se o (a) jovem estaria disposto a participar
desses encontros. Luana não só respondeu positivamente, mas disse que ficaria esperando
ansiosa para conversarmos de novo, chegou a dizer que rezaria para que isso acontecesse.
Luana, como a maioria das meninas entrevistadas, passa a maior parte do tempo fora
aquele em que está na escola, dentro de casa. Ela passa as tardes arrumando a casa, às vezes
dorme um pouco e faz os temas (lições de casa). À noite fica dentro de casa ou conversa com
as amigas no portão. A mãe permite que ela saia de casa somente para ir à escola. Nesse
sentido, mesmo afirmando não gostar muito da escola onde estuda, esse é praticamente o
único espaço de diversão, aventura e de encontro com amigos e paqueras. Ir para a escola
encontrar os colegas, participar das atividades escolares e comparecer assiduamente à
biblioteca são os melhores momentos do seu dia-a-dia.
A rotina de Luana circunscreve-se no âmbito da casa e da escola. Durante a semana, a
rotina somente se altera quando sai mais cedo do espaço escolar. Nesses dias aproveita para
passear com as amigas, paquerar, caminhar pelas ruas e sentir-se um pouco mais livre das
obrigações diárias.
Quando saio mais cedo da escola, faço umas caminhadas com as amigas,
nós vamos até a parada “L” conversando, falando de tudo, conhecendo
gente nova. Depois descemos a rua, vamos até a pracinha, conversamos
com os guris e depois voltamos. Eu convivo pouco com elas fora da escola,
só de vez em quando com a Lú e com a Karem.
198
Aos sábados pela manhã, limpa a casa e cuida dos irmãos, como faz todos os outros
dias, mas à tarde, das 15h às 17h horas, participa do grupo de evangelização de jovens no
Centro Espírita que tem perto da sua casa. Luana declarou ser espírita e disse gostar muito das
atividades da Oficina de Teatro que há no Centro. Gosta do palco e dos aplausos depois da
apresentação. Nos sábados à noite fica em casa, pois a mãe não a deixa sair. Segundo ela, nem
para conversar com as amigas. Nos domingos, vai com a irmã menor para a casa do pai que
mora algumas paradas de ônibus depois da sua. Confessou que gosta muito de estar com o
pai, pois na casa dele a família toda se reúne, comparecem vários amigos e há muita música e
alegria.
Em relação à música, os estilos musicais de sua preferência são o rock, o reggae e o
pagode. Ouve os Detonautas, Felipe Dilon, Scank, Chimarruts, Armandinho e Ramones.
Percebe que o número de roqueiros está aumentando na escola e que eles são facilmente
identificados pelo tipo de roupa que usam e pelo modo que falam. Ouve mais rock e reggae.
Pagode escuta de vez em quando. Adora ler revistas que falam sobre a vida dos famosos da
televisão, sobre os seus ídolos musicais e sobre tubarões. Ela tem acesso às revistas através do
empréstimo feito na biblioteca da escola.
Para Luana a escola é fundamental para a realização de seus sonhos. Acredita que
estudando com afinco, lendo bastante e empenhando-se nas atividades escolares poderá
realizar os seus sonhos e ajudar a família. Espera conseguir um bom emprego, comprar um
apartamento grande e confortável para ela e seus filhos e ajudar a mãe a terminar de construir
a casa onde moram.
Eu tenho um sonho que espero um dia realizar. Sonho em ter um
apartamento no Jardim Botânico, com quatro quartos e que em todos os
quartos tenham banheiros e que tenha um banheiro para as visitas.
Quero uma sala de estar espaçosa, gostaria que tivesse uma mesa bem
grandona na sala de jantar para convidar a minha família para comer lá,
que tivesse uma área de serviço com uma máquina de lavar e outra de
secar e um varal. A minha cozinha vai ser toda branca e bonita. E como
eu pretendo ter duas filhas eu vou ter uma sala cheia de brinquedos para
elas. Com certeza vou ter uma sala de música para ficar dançando e
escutando música que eu adoro e vai ser cheia de almofadões.
199
Mesmo acreditando que a escola poderá lhe proporcionar um futuro melhor, ela sabe
das dificuldades que os jovens enfrentam para conseguir um bom emprego e que a escola não
é a única garantia de sucesso na vida profissional. Acredita que terá que fazer cursos técnicos
ou profissionalizantes para poder inserir-se no mercado de trabalho e no futuro cursar uma
faculdade. Para Luana, estar em um bom emprego é a chave para a realização dos sonhos,
alcançado somente com muito estudo e aperfeiçoamento técnico.
Sobre a escola que estuda declarou que o prédio lembra um presídio, em função das
brigas que ocorrem entre os alunos e das atitudes violentas que presencia na escola.
Entretanto, percebe que a violência diminuiu nos últimos tempos. O local que mais gosta na
escola é a biblioteca por ser um lugar calmo e agradável.
Chegou a afirmar que a biblioteca era o único lugar no qual gostava de estar na escola.
Nossas conversas sempre se deram nesse espaço. Nas várias vezes que estive na biblioteca,
principalmente quando estava na hora do intervalo (recreio), encontrei Luana retirando um
livro ou uma revista de sua preferência. Observei que chegava sempre sorrindo, conversava
com as professoras responsáveis pela biblioteca e depois seguia para as prateleiras em busca
de novas leituras.
Figura 2
Luana na Biblioteca
200
6.4.2.1 Um Estilo Próprio: Direito de Ser Diferente.
Várias vezes ouvi outros jovens da escola referirem-se à Luana, como a “loca”. Na
realidade não sentia um tom forte de negatividade nessa referência. Tinha a conotação de um
apelido. Às vezes eu perguntava a algum aluno: “Vocês viram a Luana hoje”? Era comum
responderem com outra pergunta: “Luana, a loca?”
De início surpreendi-me com o adjetivo e, em uma de nossas conversas, perguntei a
ela o porquê de os colegas a chamarem assim, e se ela tinha alguma restrição que eu
escrevesse sobre isso. Luana, tranqüilamente, explicou que não via nenhum problema no fato,
pelo contrário achava interessante o apelido que ela tinha na escola, pois a distinguia e a
identificava no meio de tantas “Luanas” que ali estudavam. Explicou que o apelido é “loca” e
não louca e que foi dado pelo seu modo de agir, pela sua maneira diferente de dançar e pelo
jeito peculiar de ser. Considera-se extrovertida, agitada e espoleta.
Eu tenho um estilo próprio. É largado, despojado, maloqueiro. Eu queria
inventar uma palavra, um jeito certo de me definir porque tem horas que
eu tô bem arrumadinha, tem horas que eu tô mais maloqueira, depende do
dia. Eu não sou de me importar com o que os outros pensam, porque
muitas pessoas aqui na escola se vestem como os outros, com a roupinha
da moda porque senão vão falar. Eu não, desde que eu entrei nesta escola
sempre vi que as pessoas falavam de mim, pelo meu jeito de dançar
diferente, pelo meu jeito de falar diferente. Pelo meu apelido ser
diferente! O meu apelido é loca, foram eles que me nomearam assim pelo
meu modo de agir.
Entretanto, explicou que sofre um pouco de discriminação pela sua maneira de ser e
pelo fato de ser negra. Sente que é maior por parte dos colegas. Na escola atual disse não
sentir preconceito por parte dos professores, mas em outra escola que estudou sofria
discriminação. Contou que uma professora a colocava no canto da sala, separada dos outros
colegas.
Nesta escola eu não sinto preconceito, mas na outra eu era separada de
toda a classe, levava bilhete todos os dias para casa. A professora não
gostava de mim. Eu era a única negra da sala
.
201
Luana entende que o preconceito existe em todo o lugar, não só na escola como na rua.
Comentou sobre uma vizinha e sobre as “pats”
94
que há na escola que não falam com ela pelo
fato de ser negra e pelo seu jeito de ser. Disse que tenta superar o preconceito não pensando
muito no fato, lutando pelos seus direitos e escolhendo para amigas pessoas que não se
preocupam com a cor da pele do outro ou com o jeito de ser de cada um.
Por ti tu não saía mais, ficava como um passarinho na gaiola, mas não dá,
temos que lutar por direitos iguais. Quando me sinto muito mal, com o
coração pesado, choro para ver se lavo a alma.
A fala de Luana expressa o preconceito racial existente no Brasil e mostra que ele se
faz presente no cotidiano de muitos jovens, colaborando para discriminações, segregações,
violências e falta de respeito diários. O que é odioso em qualquer parte do mundo, mas que
deve nos espantar ainda mais considerando a participação dos negros na formação da
população brasileira. Nesse sentido, Gilberto Freire (1966) quando fala sobre a influência
negra na formação do povo brasileiro, esclarece que em todo o brasileiro existe a marca do
africano.
Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na
alma e no corpo - há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo
Brasil - a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No
litoral, do Maranhão ao Rio Grande do sul, e em Minas Gerais,
principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano.
(FREIRE, G.,1966, p. 395)
Segundo Batista & Bandeira (2002), o preconceito é a mola central e o reprodutor
mais eficaz da discriminação e da exclusão, contribuindo de forma direta ou indireta para
violência em todas as esferas da vida e manifesto na questão de gênero, de cor, de classe, em
espaços individuais e coletivos e na esfera pública e privada, podendo apresentar-se de forma
clara ou disfarçada em “normas” correntes na sociedade, como a exigência de “boa aparência”
para ingressar no mercado de trabalho. Para os autores, o preconceito gera exclusões e define
94
Segundo definição de Beatriz (14 anos), uma das meninas do “Grupo de Meninas”, as Pats ou Patricinhas são
“aquelas meninas exibidas, que todo dia vestem uma roupa diferente e vivem jogando na cara ‘eu tenho e tu
não’ ”.
202
relações hierárquicas e de poder, com o objetivo de determinar previamente o que está certo e
o que está errado, o que serve e o que não serve, o que é bom ou ruim, feio ou bonito.
Segundo Pesavento (2001), a categoria exclusão, como categoria de análise, nos
reporta à idéia de estrangeiridade, de estigma, silenciamento e discriminação, noções que
revelam uma certa incapacidade dos grupos sociais para lidar com a alteridade. A autora ainda
esclarece que na, contraposição do eu com o outro, a exclusão se apresenta como uma versão
perversa da alteridade. A exclusão é a forma de representação que separa, recorta, recusa e
rejeita indivíduos e grupos expressa em práticas sociais, em palavras e imagens.
Pesavento (2001) lembra ainda que na sociedade brasileira, por um lado, a exclusão
tem cor definida, constituindo-se na imensa maioria de negros e mulatos e nas gradações
diversas que compõem a população e, por outro, pode se apresentar sexuada, tendo como
centro a figura feminina. Para a autora, a base do problema está em uma certa incapacidade
dos grupos sociais de lidarem com a alteridade e, nesse sentido, a exclusão contrapõe-se à
identidade.
Complementando, Melucci (2004) explica que na vida cotidiana o termo identidade
abrange múltiplos significados, sendo que três elementos estão sempre presentes. Primeiro
seria a existência de um sujeito que se conserva no tempo; segundo, a noção de unidade,
estabelecendo limites para a distinção entre um sujeito e outro; e, por último, a relação entre
os dois elementos, que se reconhecem como iguais.
Podemos falar de identidade a propósito de um indivíduo ou de um grupo.
Porém, em ambos os casos, referimo-nos a estas três características:
continuidade do sujeito, independentemente das variações no tempo e das
adaptações ao ambiente; delimitação desse sujeito em relação aos outros;
capacidade de reconhecer-se e de ser reconhecido. (
MELUCCI, 2004, p.
44)
Considerando que Luana é uma jovem, em processo de construção identitária, e que
seus pensamentos e atitudes ainda oscilam entre a infância e a adolescência, conviver com
situações de estigma e discriminação são desafios a mais que ela terá que enfrentar para se
auto-reconhecer e ser reconhecida pelo outros.
203
No relato sobre a sua vida particular, Luana explicou que, mesmo estando na
adolescência não abandonou definitivamente a infância. Ainda brinca com bonecas, enquanto
suas amigas já deram as suas para as irmãs menores. Contou que pretende fazer uma grande
festa nos seus quinze anos, com valsa, vestido comprido e todo o ritual que a cerimônia exige.
Confessou que a família está guardando dinheiro para a comemoração.
Ao se referir à família, contou que sua mãe não é carinhosa, o que a faz sentir-se um
pouco sozinha em casa e construir na sua imaginação um mundo de fantasia e amigos
invisíveis e imaginários. Luana, em alguns momentos, mostrou um lado de menina pequena
que brinca de bonecas e em outros se apresentou como uma jovem que pensa no futuro
profissional, em ter namorados e constituir família.
Eu já vi muitas amigas minhas darem as bonecas para as irmãs. Eu ainda
tenho boneca e brinco num mundo imaginário. Hoje eu sei para onde ir,
já sei pegar ônibus. Na escola, tipo assim, eu fico pensando nas amizades
que eu vou fazer, com quem eu vou
ficar
? Ah! Aquele guri é bonito,
aquele não! E uma criança não vai sair dizendo isso.
Melucci (2004) informa que os jovens de hoje possuem uma capacidade de escolha
maior que no passado, o que os possibilita posicionarem-se com maior facilidade em relação
aos outros e a si mesmos e de ocuparem seu lugar no mundo. Segundo o autor, a
possibilidade de acesso, principalmente ao campo cultural, amplia as fronteiras do imaginário
e incorpora, pelo menos no simbólico, experiências que vão possibilitando construções
cognitivas e relacionais, que não são mais aceitas como algo dado, mas que servem de pontes
ou vão sendo refeitas e transformadas.
Os jovens são aqueles que experimentam de modo mais direto o apelo dessa
dilatação de possibilidades. A abertura quase sem limites do campo
cognitivo e emocional, a reversibilidade das escolhas e das decisões e a
substituição de conteúdos materiais da experiência com construções
simbólicas parecem ser as novas fronteiras de uma condição juvenil definida
mais por estilos culturais e linguagens do que pela idade. (MELUCCI, 2004,
p. 134)
204
6.4.2.2 Incursões pela Rua
Luana gosta de passear. Quando pode, passeia pelas ruas do bairro com algumas
colegas. Às vezes vai com a mãe e os irmãos ao Parque da Redenção
95
. Adora ficar com a
família perto do lago, tomando chimarrão e conversando. Gosta das tradições gaúchas, do
vestido de prenda e lamenta ainda não ter um. Quanto aos espaços que percorre na cidade
citou a vila Cruzeiro, onde mora uma tia e alguns parentes, e o centro da cidade que vai
somente para fazer compras, principalmente roupas.
Contou que a mãe não a deixa sair sozinha. Situação que ela entende não ser somente
dela. Percebe que as mães prendem mais as meninas e acredita que é mais fácil ser menino do
que menina. Explicou que os meninos podem namorar mais, sair mais e podem viver
livremente. As meninas além de serem mais presas ainda têm que se preocupar com questões
como menstruação, primeira relação sexual e gravidez.
Tem esta questão da menstruação. Eu falo normal, mas as minhas amigas
não são de comentar muito. Eu comento tudo com a minha mãe, ela tá
sempre me alertando sobre tudo, sobre a primeira vez, ela fala bem
claro que é pra eu entender mesmo. Então é mais difícil ser menina
jovem. É sempre mais vantagem ser guri. Porque ele é homem, pode
namorar bastante e a menina tem que ser mais comportadinha, ter modos
para sentar e tudo mais. Tem toda uma regra enorme para a menina, que
para o menino não tem. O menino é livre desde que nasce, quando já tá
definido o sexo dele, ele já é livre.
95
95
O Parque Farroupilha, mais conhecido como Parque da Redenção, localiza-se no Bairro Farroupilha, entre
as avenidas Osvaldo Aranha, João Pessoa e José Bonifácio. É um dos parques mais populares da cidade, com
370 mil metros quadrados de área. Nele encontramos um Minizôo; canchas de futebol e bocha; pista de
atletismo; aparelhos de ginástica; o auditório Araújo Viana, onde se realizam shows e eventos com capacidade
para 4.500 lugares; 45 monumentos em cobre e mármore; uma fonte luminosa produzida em Nova Iorque e
inaugurada em 1935; um parque de diversão infantil; passeio para bicicletas; um laguinho onde se pode deslizar
através dos famosos “pedalinhos” e beber alguma coisa no pequeno, mas elegante Café do Parque; uma feira de
antiguidades e artesanato, chamado de Brique da Redenção, que se realiza todos os domingos com 300
expositores, entre eles: artesãos, antiquários e artistas plásticos; e um Monumento ao Expedicionário,
representando um duplo Arco do Triunfo que homenageia os combatentes da Segunda Grande Guerra Mundial,
de autoria de Antônio Caringi, inaugurado em 1953. O Parque é chamado de Redenção, porque, em 9 de
setembro de 1884, a Câmara propõe a denominação de Campos da Redenção para esse espaço em homenagem à
libertação de centenas de escravos do Terceiro Distrito da Capital, um ano antes da libertação dos sexagenários e
quatro anos antes do fim da escravidão no país. Em 19 de setembro de 1935, no ano do Centenário da Revolução
Farroupilha, o campo é sede de inúmeras atividades comemorativas, o que permitiu a implantação do parque.
Assim o “Campo da Redenção” recebeu a denominação de Parque Farroupilha, através do Decreto Municipal
307/35. Entretanto, o nome Redenção jamais saiu da memória dos gaúchos (PORTO ALEGRE, 2001;
FRANCO, 1998; www.redençao.com.br/index.htm).
205
Essa declaração de Luana demonstra como as meninas ainda são submetidas a regras e
imposições familiares e sociais, fazendo com que alguns espaços ainda sejam interditados a
elas, conseqüência da pouca liberdade que a família lhes dá, o que as limita e prende ao
espaço doméstico, muito mais do que elas desejariam. Assim sendo, o espaço escolar, para
essa jovem, constitui-se em um espaço de múltiplas práticas, local de fazer novos amigos, de
encontrar os pares, de novas leituras, de paquerar e também em uma ponte para chegar até
outros espaços, mesmo que sejam pelas ruas do bairro, nas saídas antecipadas do horário
escolar.
6.4.3 A Música na Vida de Eduardo: Oportunizando Espaços e Práticas
Eduardo tem 17 anos, estuda na Escola Estadual Padre Rambo, mora no bairro
Partenon, e nasceu em Porto Alegre. A mãe é dona de casa, mas já trabalhou em uma clínica
geriátrica. O pai é músico e despachante. Tem três irmãos. A mãe está cursando o Ensino
Médio e o pai cursou o Ensino Fundamental. A renda mensal da família é de 2 a 5 salários
mínimos.
Pela manhã ele vai à escola. No início das entrevistas, trabalhava no comércio em uma
loja de miudezas, das 14h às 20h. No segundo semestre saiu do emprego. Contou que o dono
da loja exigia que ele e os outros empregados fizessem serviços que não estavam no contrato.
Em duas tardes na semana participa da oficina de música na escola. Toca violão e percussão.
Já teve uma banda e está pensando em formar outra e gravar um CD. Às vezes toca em bandas
de amigos. Tem um irmão que toca cavaco.
Durante a semana, seu envolvimento maior é com a escola. Eduardo quando não está
na escola gosta de estar em casa com a família e com a namorada ou na casa de amigos
tocando e cantando. A religião que freqüenta é o Batuque
96
. Ele explicou que a crença é uma
opção de família que tem na África as suas origens. Contou com orgulho que o avô formou-se
em Química com muito estudo e esforço próprio.
96
Segundo Coruja (1996) os rituais religiosos africanos do “candombe” ou “candomblê”, em Porto Alegre são
conhecidos como “batuque”.
206
Declarou que gosta de estar na companhia de amigos com mais idade que ele, pois a
convivência com pessoas que nasceram em outra época permite que ele aprenda coisas novas,
diferentes do seu tempo. Entretanto, explicou que não esquece que é jovem e que gosta de
estar com amigos da mesma idade também. Em geral, não sai à noite. Às vezes, ele e os
amigos vão para um barzinho perto de casa.
No sábado à tarde, em geral, se reúne com os amigos para cantar e tocar. Adora
música. Gosta de MPB, reggae, pop e samba. Eventualmente saem do bairro. No domingo
fica em casa com a namorada ou sai com ela para passear em uma praça em outro bairro.
Disse gostar mais ou menos do bairro onde mora, mas reconhece que o comércio da região é
bom e a facilidade de locomover-se para outros bairros existe, devido as várias linhas de
ônibus que servem o bairro.
Em relação à cidade, ele observa que o cuidado com as ruas, com os parques e com a
pavimentação é diferente de um bairro para outro. Declarou que percebe que há desigualdades
no tratamento que os bairros de classes economicamente mais favorecidas recebem e o
descaso que muitos bairros populares ainda sofrem na cidade. No entanto, Eduardo acha a
cidade bonita, percebe que existiram conquistas nos últimos anos, principalmente graças ao
Orçamento Participativo, mas acredita que ainda falta muito a ser feito na cidade.
6.4.3.1 A Escola: O Espaço da Diversidade
A escola é um espaço fundamental no cotidiano de Eduardo. Além da oficina de
música, da qual faz parte, os colegas e amigos que ele encontra nesse espaço são definidores
das suas práticas sociais. Em uma de nossas conversas, quando falávamos sobre o espaço
escolar, Eduardo comentou sobre os grupos que ao longo do ano iam se formando por
afinidades nesse espaço. Falou com entusiasmo que, naquela semana, ele e um colega seu
tinham comentado sobre o tema. Explicou que eles estavam um pouco preocupados com
alguns colegas que não conseguiam interagir em nenhum grupo na escola.
Para Eduardo e seu colega, esses alunos seriam os “deprimidos” da escola. Interessei-
me pela observação e pedi que ele convidasse o colega para um encontro e que juntos
207
falássemos mais sobre o tema. Marcamos, então, um encontro com o jovem Augusto, de 15
anos, morador do Bairro Partenon. No diálogo, eles expuseram a preocupação que eles têm
com o isolamento de alguns jovens e a opinião deles sobre determinados grupos existentes na
escola, identificados pela maneira de ser, pela roupa que usam e pelas práticas que realizam.
Eduardo: Lembra que a gente ficou falando que existe o grupinho dos deprimidos na escola, os
que se acham feios?
Augusto: Não é que se achem feios. Eles têm alguma coisa por dentro que não deixa eles se
liberarem, mas às vezes essas mesmas pessoas em outro grupo se sentem bem.
Eduardo: Tem o grupinho dos deprimidos, dos alegres, dos roqueiros, dos ricos, dos pobres, dos
pagodeiros. É que quando tu te identificas é onde tu sempre vai querer ficar, né?
Augusto: E têm aqueles que não se encaixam em grupo nenhum, são os deprimidos.
Eduardo: É, mas alguns conseguem se encaixa entre si (risos).
Augusto. Mas tem o sozinho, sozinho!
Eduardo: A gente fala do que a gente vê, pode ser que não seja bem assim né, mas os roqueiros
geralmente são muito loucos, gostam de tocar um rock, de tá curtindo, mas não descarta aquela
parte deles também ter coração, porque todo mundo é um ser humano, como qualquer outro grupo
que existe na sociedade, do lado urbano. Tem os alegres que são aqueles que não têm preocupação
com quase nada.
Eduardo: É que os alegres não se preocupam tanto. É que se tu trabalha, estuda de manhã, tu
pega mais responsabilidade, e daí fica mais responsável.
Augusto: Eu acho que esses daí não são os mais maduros, os preocupados. Mas têm os normais que
são aqueles que não trabalham, e não tão nem aí se são bonitos ou feios, mas se dão com todo
mundo.
Eduardo: Tem a parte dos pobres, são geralmente os negros, sem preconceito de nada, né? Tem
mistura dos brancos com os negros também. Tem uns que observam os colegas e ficam pensando
bah, de repente, eu não tenho e ele tem, mas eu vou lutar também pra ter. São aqueles que
pensam assim, entendeu, mas tem uns que não pensam assim, mas vão indo. E têm os riquinhos, que
são cheios de onda, acham que são os donos do mundo, né, meu?
Augusto. É (risos). Geralmente é assim, mas tem muito rico aí que é legal. Eu não quero falar
muito pra não caracterizar ninguém, né? A gente queria fazer um texto sobre isso para passar a
nossa idéia para os outros.
Eduardo: Eu também, pra tentar unir eles todos, para mostrar que todo mundo é igual. Eu tenho
pena dos deprimidos, os lá do canto. Eu tenho uma música que fala da igualdade, da questão da
raça, da questão de ser pobre, de ser rico, da questão de tu ter idéias diferentes.
Nesse diálogo, é possível observar a existência de alguns grupos na escola e a
preocupação desses dois jovens com alguns colegas que não encontram seus pares no espaço
escolar. Situação que os preocupava a ponto de pensarem em escrever algo sobre o assunto e
levar o tema para um fórum de debate, de maior alcance, no espaço escolar, evitando dessa
maneira a discriminação no interior da escola.
208
No diálogo com esses jovens e com os outros que fizeram parte da pesquisa, pareceu-
me que eles têm uma certa preocupação com a solidão. Na fala deles, fazer parte de uma
turma, ter muitos amigos, sair em bandos, trocar conhecimento é fundamental para a
realização de suas práticas socais e no descobrimento de novos espaços a transitar.
Em todas as nossas conversas, Eduardo sempre se posicionou de maneira clara contra
todo o tipo de preconceito e segregação existentes. Sua postura sobre os problemas sociais e
econômicos que ele e uma boa parcela dos jovens, principalmente negros e pobres, sofrem na
contemporaneidade, sempre foi crítica.
Na primeira entrevista com Eduardo, após a aplicação dos questionários, realizada
junto com um colega de classe, eles falaram sobre a discriminação que os negros sofrem
diariamente. Como Luana, comentaram situações vivenciadas por eles que demonstram o
quanto a sociedade brasileira ainda é preconceituosa. Eduardo explicou:
As crianças crescem com o pessoal falando, ensinando a criticar os
negros. Eu não sei dizer bem, mas aprendi isso e entendi assim. Eu só não
sei explicar, é política, sabe? Eu falo tranqüilo porque tenho a
consciência limpa, se não gostam de mim, tudo bem. Não tem problema eu
não tô nem aí pra eles, né? Então é aquela coisa não pisem no meu calo.
Olha! Não tem lugar onde o preconceito é maior, é geral! Tu pensa que tá
livre, mas não ta! É no banco do ônibus, no supermercado, andando pela
rua, em tudo.
O colega Renato, 15 anos, contou que compunha músicas de rap e que algumas eram
sobre discriminação racial sofrida pelos alunos negros no cotidiano escolar. Perguntei a ele se
eu poderia conhecer uma delas. Algum tempo depois da nossa conversa, ele trouxe uma letra
de música com uma mensagem clara, bem articulada e que denuncia a discriminação sofrida
pelos alunos. Tema ainda pouco colocado em pauta nos debates escolares.
RAP DO ESTUDANTE
O professor é quem me diz:
Menino tá errado.
É complicado. Não sou superdotado
Professor me explica.
Vira a cara e se irrita.
209
Assim não vai render.
Eu quero aprender.
Só porque eu sou preto.
Eu não mereço o respeito.
Lá vem o preconceito.
Mas eu não ligo.
Só quero estudar.
Ele vai ter que respeitar
97
6.4.3.2 A Escola e a Música se Confundem
A música representa remédio, cura, produto que provoca. A música ao
escutarmos nos traz diversos sentimentos. Ela serve de consolo e de
companhia. A música faz a união de raças de pessoas e muito mais. Ela
purifica a alma. Para mim é vida, instrução, instrumento que expressa
aquilo que sinto, aquilo que quero dizer. (EDUARDO).
Eduardo é um aluno que não costuma faltar às aulas. É elogiado pela direção por ser
um jovem dedicado aos estudos, educado e maduro para a sua idade. Para ele, a escola é a
base de tudo. Local onde se aprende o que é bom e o que não é. A escola, segundo Eduardo,
prepara os alunos para o mundo. Disse gostar de ir à escola e se considera um aluno aplicado.
Participa de uma Oficina de Música oferecida pela escola. Os encontros são nas 4ª.s e 6ª.s
feiras. Seu local preferido na escola é o pátio, perto do portão e das canchas. Quando não há
aula, às vezes, fica tocando violão com os amigos embaixo de uma janela do prédio da escola.
A Oficina de Música que Eduardo freqüenta é oferecida gratuitamente na escola.
Nesse espaço, eles aprendem a tocar vários instrumentos, como violão, teclado, flauta, piano,
entre outros. As aulas são ministradas duas vezes por semana há 4 anos. Os alunos já fizeram
apresentações na escola e num shopping da cidade.
Eduardo procura assistir a todas as aulas para aprender cada vez mais sobre música e
sobre o instrumento que está tocando. Na época das entrevistas, estava aprendendo a ler
partitura e acredita que esse aprendizado é fundamental para quem quer ser um bom músico.
97
RAP composto por R.P.Q (15 anos). Entregue em 2004.
210
Para ele, as oficinas são importantes para despertar nos jovens o interesse pela música e, para
quem já gosta, serve para fortalecer a vontade de aprender.
A professora é super acessível, bem legal, gente boa. Não cobra as aulas
que nos dá. Faz a escolha do repertório, mas incentiva ou pede que
façamos música do nosso gosto também. Procura integrar ao máximo as
aulas, cobrando as nossas faltas, sempre arruma um jeito de ensinar que
satisfaça a todos.
Aprendeu a ler partitura com a professora Eleonora. Falou sobre a admiração e
respeito que tem pelo trabalho dela. As aulas com a professora ocorriam duas vezes por
semana com os colegas e uma hora de aula particular. Contou que no início aprendeu a tocar
flauta e que não tinha violão, apesar de já saber tocar. Com o passar do tempo comprou um
violão e aperfeiçoou o aprendizado.
Em setembro de 2004 fiz uma visita à Oficina de Música. A professora que coordena a
oficina atenciosamente explicou os objetivos do trabalho que ela estava desenvolvendo.
Eleonora é professora de Geografia e História e gratuitamente ensina música para os alunos
há quase 4 anos na escola. A oficina não é obrigatória.
Figura 3
Eduardo na Oficina de Música
211
Durante a oficina, falou da importância de levar conhecimento musical aos alunos.
Explicou que o trabalho com eles começa com a Musicalização. O objetivo é trabalhar
primeiro o ritmo e o som para depois chegar no instrumental. Em relação aos instrumentos,
contou que a escola tem um teclado e várias flautas. O violão eles trazem de casa e quem não
tem pede emprestado na aula. Os alunos também aprendem cavaquinho e canto. O repertório
é clássico e popular. No popular tem Samba e Bossa Nova.
A professora falou sobre outros objetivos da oficina, como: a socialização dos alunos,
a recuperação da auto-estima e a transmissão de conhecimento musical sistematizado.
Explicou também que tentava fazer uma ligação entre a música e as outras disciplinas, pois
acreditava na interdisciplinaridade na construção do conhecimento.
A forte relação que Eduardo tem com a música é de família. Durante uma conversa ele
disse: “Eu me puxo pelo som barbaridade! Inflncia de casa, né! O pai é músico e tem amigos e
parentes que também tocam e cantam. Na época da pesquisa estava tentando organizar uma
banda, apesar dos problemas para adquirir os instrumentos e local para ensaiarem. Contou que
tem mais de 20 músicas prontas e trouxe uma para que eu conhecesse e colocasse na tese
98
.
Eu aprendi o básico para formar a minha banda, mas a gente não teve um
ensaio ainda, são os instrumentos que faltam, mas tem música própria. O
nome da banda por enquanto é Diamante Preto.
No cotidiano de Eduardo, a música é determinante para a realização de suas práticas
sociais e na escolha dos espaços por onde transita. Na escola, na casa e na rua, a música está
sempre presente. Contou que pretende investir na carreira de músico sem esquecer os estudos
e no futuro entrar para uma faculdade.
A minha filosofia de vida consiste em buscar sempre mais e mais
conhecimentos para que eu tenha uma base forte na luta em prol dos
meus sonhos. Seguir o caminho do bem para que tudo se encaixe de
maneira certa e adequada, me proporcionando um futuro estável para o
descanso de uma longa luta.
98
Ver no Anexo G, a letra de uma música composta por Eduardo.
212
6.4.4 Erick: O Rock como Desencadeador de Práticas Sociais
Eu sou Erick, sou roqueiro. Eu já digo de cara, pois tem gente que não
gosta de roqueiro, mas tem os que gostam e é bem legal.
Erick tem 15 anos, estuda na Escola Municipal Heitor Villa-Lobos, mora na Lomba do
Pinheiro e nasceu em Porto Alegre. O pai é porteiro. Atualmente a mãe é aposentada, mas
quando trabalhava era empregada doméstica. Tem 4 irmãos, 3 meninas e 1 menino. A renda
mensal da família é de 3 a 5 salários mínimos.
A rotina de Erick está muito ligada à escola e à rua. Durante a manhã ele vai à escola.
No turno da tarde fica em casa ouvindo música ou vai para a escola para ficar com os amigos.
À noite, vai para casa dos amigos, onde conversam, tomam um vinho, escutam música, ou se
reúnem atrás da igreja para cantar e tocar violão. No verão, à noite, os amigos se encontram
mais nas esquinas e, no inverno, mais dentro das casas. Pretende cursar uma Faculdade de
Música.
Erick é grunge
99
. Gosta de rock, principalmente rock de protesto. Disse que foi
batizado na religião católica, mas que a sua religião é o rock. A música é uma constante no
cotidiano dele. O grupo musical de sua preferência é o Nirvana. Contou que estava montando
uma banda e esperava que estivesse pronta até o final do ano de 2004.
Nós estamos pensando em tocar na formatura do colégio. Nós até já
conseguimos ensaiar. Gravamos uma fita, uma amiga nossa ouviu e gostou
um monte. Eu toco guitarra e também canto. A gente está pensando no
nome
Grunge
para a banda.
Nos sábados pela manhã, Erick tem aula de percussão no colégio. Durante a tarde, fica
escutando rádio, tocando violão e guitarra e diz que “arranha no baixo. Nas noites de sábado,
escuta rádio em casa ou se reúne com os amigos no bairro e, freqüentemente, acampa nos
finais de semana em um morro nas imediações. No domingo, vai ao Parque da Redenção com
alguns amigos. No parque, eles se encontram com outros jovens que também gostam de rock.
Permanecem, na maior parte do tempo, próximos ao Movimento ao Expedicionário,
99
Grunge é um termo empregado para o barulho estridente da guitarra. Movimento de rock alternativo de
retomada do estilo punk, surgido em Seatle, Estados Unidos, em meados dos anos 80. O principal expoente do
rock californiano foi Kurt Cobain (1967-1994), da banda Nirvana” (Do Carmo, 2003, p. 266).
213
popularmente chamado de Arco
100
. Ficam conversando, ouvindo música, bebendo alguma
coisa até, aproximadamente, 20 horas e depois voltam para a casa.
A gente sai da Lomba e vai para o Arco, quase todos os domingos. A
gente sai daqui lá pelas 2 horas da tarde e chegamos lá pelas 3 horas. E
voltamos pro lado das 7 ou 8h30min da noite. No arco vem gente de todo
o lugar. Tem algumas pessoas que tem preconceito de cor, alguns punks,
não são todos. Tens uns que não gostam de ti, mas tu caminha mais um
pouco e tem 10 que gostam. Eu gosto de Porto Alegre, só que eu gosto
mais do Arco, da Redenção. Porque lá se reúne toda a galera, de tudo que
é lugar. Tem alguns lugares na cidade que são bem fechados, são cheios
de frescurinhas. É que eles têm medo e se fecham com todas as pessoas,
aí fica aquela porcaria.
O Parque da Redenção é o parque mais popular de Porto Alegre, visitado por pessoas
de várias partes da cidade e de todas as classes sociais. O parque é um espaço de lazer
importante na vida da cidade que tem no Arco um dos seus principais pontos de referência.
DaMatta (1991) fala que nas cidades existem espaços que são marcados por monumentos,
palácios, igrejas, mercados, quartéis que emolduram a vida social, e acrescenta ainda que nas
cidades, referindo-se, basicamente, às ibéricas e as brasileiras, a praça abre um território
especial, uma região teoricamente do povo, uma espécie de sala de visitas coletiva.
Pesavento (2002) explica que as praças, monumentos e prédios de valor histórico e
cultural são marcos de referência que extravasam a dimensão espacial e dão força a padrões
identitários para as cidades, centrando aí sua importância e reconhecimento. Lefebvre (2002),
em defesa do monumento, afirma que ele é o único lugar da vida coletiva, no seu aspecto
social, que combina poder ético e estético, reunindo controle e beleza.
Para Lefebvre (2002), os monumentos projetam uma concepção de mundo no espaço
em que são construídos, contendo, no seu seio, os traços da sociedade onde estão inseridos,
sem esquecer que esses monumentos inscrevem uma transcendência para o longínquo, para o
de fora. Segundo o autor, eles sempre foram utópicos e proclamaram, em altura e
profundidade, o dever e o poder, mas também, o saber, a alegria e a esperança.
100
O popularmente chamado “Arco” é um monumento ao expedicionário representando um duplo Arco do
Triunfo, construído em homenagem aos combatentes da Segunda Guerra Mundial. Atualmente é o lugar
preferido dos jovens roqueiros, punks, darks e grunges que passeiam pelo parque. Entretanto, esse é um espaço
que acolhe todos os tipos de jovens e não jovens também. É também um ponto de referência para as pessoas se
encontrarem e dali percorrerem outros recantos do parque.
214
Em toda parte a monumentalidade se difunde, se irradia, se condensa, se
concentra. Um monumento vai além de si próprio, de sua fachada (se tem
uma), de seu espaço interno. À monumentalidade pertencem, em geral, a
altura e a profundidade, a amplitude de um espaço que ultrapassa seus
limites materiais. (LEFEBVRE, 2002, p. 46)
6.4.4.1 O Arco na Visão de Erick: Um Espaço Democrático
Ali no Arco tem todos os estilos, lá tem roqueiro,
punk
,
grunge
, tem os metal também. Ali tem de
tudo, até pagodeiro às vezes tem ali, só que a maioria chega e larga fora porque o movimento
rock
, digamos assim, tomou conta. Conversamos com todos os grupos que ficam ali, porque saíram
todos de um estilo só, do
rock
.Tem uma expressão agora que todo
grunge
ou roqueiro está
usando, é no
sinal da anarquia
, que a maioria está se expressando para espalhar o movimento. Este
símbolo é encontrado em camisetas, cadernos e até em muros, onde o pessoal estiver, sempre
tem. No Arco nós temos outros amigos. Fazemos amizades com pessoas de outros bairros e tem
gente ali da área mesmo, que moram nos apartamentos e que vão para lá também.
Figura 4
O Arco
Durante uma de nossas conversas combinamos um encontro no parque. No domingo
marcado fui encontrar-me com Erick. Cheguei no Arco por volta das 15h, como o combinado.
Cheguei, olhei em volta, não vi ninguém conhecido e fiquei esperando. Esperei por três horas.
215
Erick não apareceu. No início, fiquei observando o movimento sem fixar atenção em nada
mais específico. Passados os primeiros 40 minutos meu olhar ficou mais detalhista e seletivo.
Erck tinha falado tantas vezes sobre o Arco e sobre o pessoal que ali se reunia todos os
domingos que comecei a identificar alguns personagens desta, como diria Abramo (1994),
cena juvenil. O Arco era um velho conhecido meu e de uma enorme parcela da população de
Porto Alegre, por ser um ponto de referência para as pessoas encontrarem-se no parque. Os
jovens e pessoas de todas as idades marcam encontro no Arco para depois dali percorrerem
outros espaços.
Enquanto esperava, comecei a prestar a atenção nos jovens que ali se encontravam. Os
freqüentadores do parque reconhecem aquele local como um espaço de punks e de roqueiros.
De uma certa distância do Arco, todos os jovens pareciam vestir preto. Realmente, a maioria
se vestia de preto, mas, com um olhar mais cuidadoso, fui notando que não eram todos que se
vestiam totalmente de preto.
Alguns chegavam e permaneciam ali como se estivessem esperando por alguém,
enquanto outros ficavam um pouco e continuavam a caminhar pelo parque. Vários chegavam
com garrafinhas de água ou latinhas de refrigerante. Outros sorviam o chimarrão, outros
bebiam cerveja e, apesar do calor, alguns traziam vinho em garrafas plásticas. Era interessante
observar que a maioria trazia a bebida de casa em sacolinhas de super-mercado. Ali eles
dividiam o que tinham trazido com os amigos.
Observei que a maioria dos jovens ficava horas ali somente conversando. Famílias
também chegavam com crianças ou adolescentes, paravam um pouco, passavam pelo meio
dos jovens, e em geral não ficavam muito tempo. Tinha o pessoal que vinha tomar uns dois
chimarrões e saíam novamente, e até componentes de bandas conhecidas do rock gaúcho
apareceram. Em certo momento, prestei atenção em um senhor de mais ou menos 60 anos,
vestido com traje típico de gaúcho. Estava ali parado, bem tranqüilo. Parecia que nada o
constrangia. Estava sozinho. Olhando e participando daquele cenário festivo e diverso.
216
Nesse mesmo dia, percebi que, na frente do Arco, estava aceso, sob uma pira, o fogo
simbólico. Afinal era setembro e comemorava-se a Independência do Brasil
101
. O fogo
simbólico estava sendo guardado por jovens que vestiam camisetas de um clube de jovens
pertencentes a uma Igreja Adventista. Esses jovens poderiam ser facilmente confundidos com
escoteiros. Eles guardavam a pira com muita seriedade e respeito. Eram meninos e meninas
de 10 a 15 anos. Era mais um grupo a contrastar e a complementar aquele espaço.
O local onde o fogo estava colocado, naquele dia, era o mesmo em que em outros
domingos os jovens, principalmente os roqueiros, sentam, deitam, bebem e brincam.
Entretanto, naquele dia, não era permitido nem ao menos sentar ali. Os jovens da igreja
guardavam o fogo simbólico, e o pessoal do rock respeitava.
Alguns desavisados, de vez em quando, sentavam, mas eram rapidamente lembrados
que não podiam fazê-lo. Durante todo o tempo que fiquei ali, mais ou menos 3 horas,
ninguém reclamou da interdição. Todos aceitavam bem o pedido de não sentarem naquele
lugar sagrado. Observei também que, enquanto duas meninas guardavam o fogo, mais 3
jovens pertencentes ao grupo permaneciam por perto aguardando a hora do revezamento. A
impressão que tive foi de que além de esperar o revezamento, davam apoio aos que ficavam
ao lado da pira.
Depois de observar por um bom tempo, fui conversar com os jovens da igreja que
ficavam perto da pira, já que os “guardiões” não conversavam. Estes permaneciam sérios e na
posição de sentido, nada muito rígido, como não poderem se mexer ou eventualmente falar.
Todavia guardavam uma postura de respeito. Apresentei-me como pesquisadora na área da
educação a uma menina que parecia coordenar e orientar aquela atividade cívica. Expliquei
meu trabalho e ficamos conversando informalmente.
A jovem foi muito atenciosa e colocou-se à disposição para tirar algumas dúvidas
sobre o grupo. Explicou que eles faziam parte de uma Igreja Adventista e que estavam ali para
guardar o fogo simbólico e para mostrar o trabalho deles. Contou que o grupo trabalha em
prol da cidadania e do civismo. Enfatizou que eles cultuam a pátria e reverenciam a bandeira,
entre outros dogmas.
101
A Independência do Brasil ocorreu em 07 de setembro de 1822.
217
Mesmo que a ideologia que os move seja diferente da ideologia dos grunges, que é
aquela que alimenta os pensamentos do Erick, percebi que visualmente os jovens de
diferentes tribos podem vestir-se de modo bem semelhante. Esta reflexão pôde ser feita
quando observei as duas meninas que guardavam o fogo simbólico descerem e tirarem a
camiseta do clube, que estava sobre uma outra peça do vestuário. Sem aquela camiseta, elas
não destoavam mais das outras jovens. Não estavam de preto, mas usavam jeans modernos,
com cintura baixa, tops coloridos e curtos. Cabelos compridos e com corte bem moderno. Não
pareciam mais as mesmas meninas, pelo menos na aparência.
Naquele dia, percebi a diversidade de grupos juvenis que um espaço pode abarcar.
Observei jovens de crenças, vestimentas e comportamentos diferentes dividirem o mesmo
espaço, pacífica e harmoniosamente.
Mais um encontro foi marcado e Erick não pôde aparecer. Um terceiro dia foi
combinado, mas como Erick naquela semana estava ajudando o pai na reforma de uma casa,
não pode comparecer. Assim, nosso encontro no Arco jamais aconteceu. Entretanto, minhas
esperas não foram infrutíferas, pois, enquanto esperava, observava e fazia várias anotações
sobre tudo o que via.
Nos dois outros domingos, prestei mais atenção nos detalhes das roupas, na maneira
de agir e de se comportar de cada grupo e no lugar que cada um escolhia para ficar. Notei que
permanecer bem próximo ao Arco ou mais distante dele não é uma escolha aleatória. Percebi,
naqueles dias, que, quanto mais próximo do Arco, mais se evidencia a presença de jovens
vestidos totalmente de preto, com muitas correntes, piercings e tatuagens por todo o corpo.
Os grupos que permaneciam mais afastados do Arco, em geral, vestiam jeans azul,
bermuda de surf, camiseta com letras de música de rock, mas com pouco preto. Em um desses
grupos que observei, encontravam-se 10 jovens, dentre eles só duas meninas tinham alguma
peça preta no vestuário. Conforme a minha observação naquele dia, a cor preta ia se diluindo
conforme a distância do Arco.
Muitos jovens que ali se encontravam vestiam-se totalmente de preto. Vários usavam
somente alguma peça preta na sua indumentária. A maioria das meninas estava com as unhas
pintadas de preto e alguns poucos meninos também. Nas roupas das meninas, junto ao preto,
218
notei que as cores vermelho e rosa são muito usadas. Nas camisetas, tanto dos meninos quanto
das meninas, constavam letras de música de rock, nome de bandas e de vocalistas famosos,
principalmente internacionais.
As vestimentas, as cores e os adereços são maneiras que os jovens encontram para se
comunicarem. Através da roupa, das marcas no próprio corpo, o estilo de cada um é expresso,
deixando evidente a tribo a qual cada um pertence ou se não pertencem a tribo alguma.
Percebi que alguns jovens ficam sentados no chão conversando, outros ficam o tempo
todo em pé. Outros trazem o violão e cantam em pequenas rodas. Há aqueles que ficam
sozinhos o tempo todo. Outros namoram tranqüilamente. Alguns chegam de bicicleta,
conversam um pouco e depois vão embora. Notei também que é comum cumprimentarem-se
com abraços e beijos carinhosos.
A cada domingo eu entendia melhor o porquê do Erick gostar tanto do Arco. Ali ele
encontrava seus pares, fazia novas amizades, falava sobre rock, relacionava-se com jovens de
diversas regiões da cidade e de diferentes classes sociais. No Arco a sociabilidade era intensa.
Um espaço de jovens na cidade.
Além da Redenção, Erick também gosta de acampar com os amigos em um morro
próximo ao seu bairro, o Morro da Antiga Pedreira. Em uma de nossas conversas, ele contou:
“a gente acampa, é bem legal, a gente vai na sexta e volta no domingo”. No acampamento eles
conversam, cantam, bebem e preparam a própria refeição. Explicou que cada um faz a sua
própria comida, mas quando está tudo pronto, cada um come um pouco do que o outro fez.
Contou que tem mais guris do que gurias e explicou:
“As mães não deixam, mas elas dizem que
vão dormir na casa de uma amiga e vão fugidas”.
A namorada de Erick não acampa, pois a mãe
não permite. Às vezes ela tem permissão para ir ao Arco.
Em relação a essa interdição da namorada, ele comentou que as meninas são muito
presas, porque a maioria das mães tem medo que as meninas sejam vítimas de estupro,
assaltos ou homicídios. Sendo assim, ele acredita que é mais fácil para os meninos
aproveitarem as coisas boas da juventude. Todavia, ele não vê somente vantagens nisso, acha
que há um descompasso e que seria melhor que a liberdade dada aos jovens fosse a mesma,
independente do sexo.
219
Pro homem não tem problema, as mães liberam. Tu vai e volta a qualquer
hora, porque elas sabem que homem é homem, mas as mulheres as mães
prendem mais, são mais meigas, digamos assim. Eu acho tipo assim, tá
certo que elas têm que trancar, só que tem que trancar um pouco menos,
né? E os meninos têm que trancar um pouco mais, daí ficaria bem melhor.
Outro espaço de circulação de Erick é a casa da namorada. Contou também que tem
dois amigos do Arco que, de vez em quando, ficam na casa dele e vão acampar também, mas
a maioria dos jovens que acampa é da Lomba do Pinheiro ou, como ele simplesmente diz: “a
maioria é aqui da Lomba mesmo
”.
Nos encontros explicou que não gosta de jogar futebol e que ele e seus amigos não
gostam de festa para dançar. Preferem ir a shows, onde cantam e dançam. Entretanto, são
raras as oportunidades de irem a esses eventos. Quanto ao futebol, ele explicou que prefere
não participar dos jogos, porque ocorrem muitas brigas, e o ambiente se torna violento. Em
relação a outros espaços da cidade, Erick citou o centro da Capital. Ele percorre este espaço
somente para fazer compras, visitar o pai no serviço e, às vezes, passear com os amigos. Falou
também das visitas que faz à madrinha em um outro bairro da cidade e que tem amigos que
moram perto da Redenção, no Parque dos Maias, na Assis Brasil e em Alvorada
102
. Esta
última é uma cidade que faz parte da Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA).
6.4.4.2 Grunge: Uma Banda em Formação
Um
grunge
pensa muito em rock na veia e Kurt
103
no coração. (ERICK)
O grupo de amigos que Erick conquistou a partir da música sempre esteve presente na
sua fala durante as nossas conversas. Ele explicou que, para a formação do grupo e a
conseqüente formação da banda, o sentimento de amizade e de união foi o que mais contou,
102
A RMPA é composta de 31 municípios, incluindo Porto Alegre, distantes no máximo a 79 Km da Capital.
A Região ocupa uma área de 9.652,54 km², correspondendo a 3,56% do território do Estado do Rio Grande do
Sul. Dos 31 municípios, Alvorada tem 192.789 habitantes, em 74,8 km² de área, e localiza-se a 15 km da
capital. Dados retirados do site: www.portoalegre.rs.gov.br/infocidade. Portal da Prefeitura Municipal de Porto
Alegre. Data de acesso: 19/03/2005.
103
Kurt Cobain era o líder do grupo Nirvana.
220
seguido da vontade que eles têm de profissionalizarem-se. O trabalho para organizar a banda,
a procura por espaços de ensaio e a batalha pela profissionalização, define muitos dos espaços
que Erick transita, as relações que ele estabelece e as práticas sociais que ele desenvolve. Para
Dayrel (1999), a solidariedade do grupo não está separada da busca pessoal e das
necessidades afetivas e de comunicação entre aqueles que se reúnem cotidianamente.
Um outro aspecto a ser levado em conta é a dimensão de pertencimento. Os
diversos grupos de estilo apresentam graus de articulação coletiva
diferenciados, bem como os níveis muito diversos de adesão. De um lado
evidenciam os estados de transição em que se encontram, como jovens, em
que as relações sociais têm um caráter de experimento: aliar-se a um grupo é
uma experiência que pode ou não dar certo, acarretando sucessivas
tentativas. Por outro revela uma nova condição posta pela sociedade
contemporânea. (DAYRELL, 1999, p. 31)
Nos momentos em que se encontram, debatem questões sociais, políticas e
econômicas que afetam o país e a eles como cidadãos. Mensagens de não violência e de não
adesão às drogas também fazem parte das conversas e dos protestos que se fazem ouvir
através das músicas que a banda toca.
O grupo é baseado em protesto, sabe, a gente vai protestar bastante
porque o Brasil de hoje em dia não tá bom, a gente vai passar a nossa
música, vê se eles se tocam, se o presidente se toca de algumas coisas
ruins e também a gente vai passar pra gurizada pra vê se eles se tocam e
saem do mundo das drogas.
Erick e os amigos escolheram o nome Grunge para a banda. Para ele, ser grunge é ter
estilo próprio. Quando pensaram em montar a banda, desejaram que ela tivesse um estilo
próprio não só na música ou na roupa
104
, mas na cabeça também. Uma banda que tivesse o
jeito deles. A preocupação com o estilo é comum em alguns grupos juvenis. Os adereços e
roupas que usam os identificam como grupo e expressam determinados valores por eles
adotados. Falou do desejo de profissionalizar a banda, de fazer shows, de conseguir um bom
patrocínio e sair do estado para conseguir fama e dinheiro para ajudar a família.
104
Calças caindo da cintura, bermudas abaixo do joelho, camisas xadrez de flanela e camisetas estampadas com
nomes de vocalistas e bandas preferidas, são vestimentas características dos grunges.
221
Quero fazer uns showzinhos, conseguir patrocínio e quando a gente tiver
legal arrancar daqui, saí do RS. O futuro é esse, quando tiver legal voltar
pra ajudar a minha mãe, a minha família.
Durante uma entrevista, ele contou que muitas pessoas, principalmente adultas, não
entendem o jeito de viver dos roqueiros, criando uma imagem mental, em geral, negativa
deles. Comentou também que é comum ouvir dizer que os roqueiros não são amigos, não são
normais, que todos usam drogas. Ele acredita que isso ocorra por serem julgados
principalmente pela aparência. “Ser
grunge
é ser amigo também. Eu não vou dizer que não bebo
de vez em quando, mas tipo assim, eles só enxergam este lado da gente, eles não enxergam o
nosso outro lado”.
Falou também sobre uma reportagem feita no Arco com um punk que demonstra a
imagem negativa e preconceituosa que muitas pessoas têm em relação aos jovens que ficam
nesse espaço. A reportagem foi feita com um punk que é bem conhecido pelo pessoal que
freqüenta o Arco. A indignação de Erick foi pelo fato de terem colocado no final da
reportagem que o punk fedia e outras declarações negativas. Para Erick, eles se fixaram
somente no aspecto visual e físico do rapaz e não na sua ideologia ou na sua opção de vida.
Eles colocaram na reportagem que o punk fedia, só que eles não
conversaram com o cara. Este foi o jeito que ele se inspirou para ser
punk, ele fez um estilo próprio e o pessoal começou a julgar ele, mas ele
é um cara super legal, bah! Lá no Arco ele se dá com todo mundo.
6.4.4.3 A Escola: Um Espaço de Encontro
A escola também é um espaço de várias práticas sociais no cotidiano de Erick. Além
do horário normal, talvez por morar bem perto da escola, ele freqüentemente vai à escola no
turno inverso da sua aula. Na primeira entrevista com Erick, perguntei o que ele achava da
escola, do ensino e de seus professores. Ele falou que a escola estava legal, que o ensino tinha
melhorado um pouco em relação ao ano anterior, e quanto aos professores disse gostar de
todos. Contou que o seu local preferido na escola era o pátio, perto das canchas.
222
A gente fica viajando com a galera toda, só pra ficar conversando. A
maioria não joga, gosta só de tocar.
Entendi que, se o pátio era tão bom como ele falava, voltar à sala de aula se tornava
uma tarefa difícil, por isso a sua permanência, algumas vezes, naquele espaço tão agradável
após o término do recreio. No segundo encontro que tivemos, conversamos mais
detalhadamente sobre a sua rotina diária. Ele voltou a falar da escola, mas agora dando mais
detalhes. Disse gostar da escola, porque lá estão os amigos e a namorada. Entretanto, nesse
diálogo, mesmo que o assunto fosse sobre o cotidiano escolar, Erick, em momento algum,
citou conteúdos dados em sala de aula ou situações vividas nesse espaço. Ele sempre falava
do encontro com os amigos no pátio, das vindas à escola no turno inverso ao da sua classe e
da namorada que estuda em outra turma. A namorada era sempre citada quando o assunto era
o seu cotidiano ou a escola.
Várias vezes em que fui à escola para combinar alguma entrevista com Erick, esperava
quase o término do intervalo para que ele pudesse aproveitar ao máximo os poucos minutos
que tinha com a namorada e com os amigos. Em uma de nossas conversas ele confessou: “tipo
assim, no começo do ano eu comecei a matar aula, mas daí eu comecei a falar com a Débora, daí a
gente
ficou
e agora a gente tá namorando, só que eu não mato mais aula”.
Em se tratando dos professores, na nossa primeira conversa ele disse gostar de todos,
mas aprofundando mais a questão, ele explicou que nem todos eram legais, pois alguns
professores não eram acessíveis ao diálogo.
Eu gosto do professor de história porque ele compreende quando a gente
fala as coisas. Sabe conversar. Acaba desculpando quando a gente não
faz algumas coisas certas. Tinha uma professora que parecia mãe, tinha
paciência, conversava, era super tri. Em geral, a gente gosta da matéria
se gosta do professor.
Em uma de nossas conversas, perguntei a ele se a escola conhecia ou apoiava o projeto
de formar a banda que ele e seus colegas estavam organizando. Ele respondeu que não e que
os ensaios eram na casa de um amigo que tem os instrumentos.
223
Falando francamente, eu acho que eles não podem ajudar. Até que se a
gente fosse pedir pra algum professor apoiar a gente, né? Mas eu acho
queo, talvez algum. Em geral o que o aluno faz fora da escola, a escola
não sabe! Eu acho que isto poderia mudar.
Erick, nessa fala, reivindica uma maior participação da escola na vida social e cultural
dos alunos. Entretanto, apesar da aparente dificuldade de um diálogo mais aberto com os
professores, a escola ainda se constitui para ele em um espaço de convívio diário e
permanente com seus pares, tanto no horário normal de aula quanto no turno inverso. Nesse
espaço, ele encontra os amigos, namora e aprende percussão. O espaço escolar, na
comunidade, é um dos poucos espaços que acolhe os jovens quando esses não estão no
horário escolar. É um espaço de encontro e de práticas sociais, pois na vila não existem
muitas opções de lazer que possam interessar a todos os jovens.
6.4.5 A Casa e o Campo de Futebol: Histórias de Fernando
Acredito que se as pessoas batalharem pelo que querem elas conseguem.
(FERNANDO).
Fernando tem 14 anos, estuda na Escola Municipal Afonso Guerreiro Lima, mora na
Lomba do Pinheiro e nasceu em Porto Alegre. Tem três irmãos, dois meninos e uma menina,
um dos meninos mora na praia. O pai é motorista de uma loja de móveis e a mãe cuida de
crianças em casa. A mãe cursou o Ensino Fundamental e o pai o Ensino Médio. A renda
mensal da família é de 2 a 5 salários mínimos.
A rotina de Fernando constitui-se em ir à escola e jogar futebol. Pela manhã estuda e, à
tarde, treina com seus companheiros de equipe. Confessou que não sai muito de casa,
geralmente vai à casa da avó que mora perto, na Vila MAPA, e no primo em Gravataí
105
, o
que não é muito freqüente por ser longe da sua casa.
105
Gravataí faz parte da Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), tem 243.485 habitantes em 497,83 km²
de área e está localizada a 23 km da Capital.
224
No início das nossas entrevistas ele fazia parte do Sport Clube Internacional
106
. No
decorrer do segundo semestre, foi liberado do time e participou de outro clube esportivo, mas,
na nossa última conversa, no final do ano, ele contou, muito contente, que o seu empresário
tinha conseguido que ele retornasse ao Internacional.
Fernando raramente sai para divertir-se fora da comunidade. Durante a semana e no
final dela prefere ficar no bairro com os amigos. Declarou que a casa e o campo de futebol são
os espaços principais de suas atividades diárias. No primeiro semestre, quando tinha uma
namorada, preferia ir para a casa dela e, de vez em quando, ajudava o cunhado a colocar som
em festas. Explicou que gosta do bairro onde mora porque há várias canchas de futebol e por
considerá-lo relativamente calmo. Não tem religião, mas acredita em Deus. Ouve Pagode e
Rap. Prefere Pagode e músicas que transmitam mensagens positivas.
No segundo semestre, mesmo com o término do namoro, disse que continuava não
saindo à noite para fora do bairro, preferindo ficar conversando com os amigos na própria
comunidade. Pretende ser jogador de futebol profissional.
6.4.5.1 O Campo de Futebol: Um Espaço Conquistado
Sempre que coloco aquela camiseta vermelha e branca com aquele
símbolo espetacular com o número 10 nas costas é uma sensação única.
Fernando pertence à categoria de base mirim do Sport Clube Internacional. Treina de
2ª a
6 ª das 14h30min às 17h. Às vezes joga no domingo. Contou que desde pequeno gosta de
jogar futebol, mas somente com 12 anos entrou para uma escolinha perto de casa. Através do
futebol fez algumas viagens dentro e fora do país. Conhece o Paraná e o Uruguai e já realizou
várias viagens dentro do Estado.
Para Fernando, o esporte representa a possibilidade de ter uma boa carreira
profissional e ter boa saúde. Ele acredita que o esporte é importante porque tira os jovens do
mundo das drogas. Confessou que a sensação de entrar em um campo de futebol lotado com
106
Sport Clube Internacional, fundado no ano de 1909. O Estádio chama-se José Pinheiro Borba, mais conhecido
como Beira-Rio, tem capacidade para 56 mil torcedores. Site: http://www.internacional.com.br
225
todos gritando o seu nome é uma experiência maravilhosa. Sente orgulho de fazer parte do
Internacional, time em que, segundo ele, todos os meninos querem jogar.
Bah, tive agora uma prova viva, lá em Veranópolis, na final contra o
Grêmio. A gente jogou com o estádio lotado, as pessoas gritando o teu
nome, sabe? Bah, só tu tando lá para sentir, o coração vai a mil, ainda
mais com a camiseta linda do Inter, e contra o Grêmio. Eu chego a
chorar. Eu entro dentro do campo e choro. É muito bom mesmo. É uma
coisa inexplicável.
Em um dos nossos encontros, combinei com Fernando que assistiria a um jogo de
futebol em que ele estivesse participando. O jogo foi em um estádio de futebol. Assisti à
partida e percebi o esforço de Fernando para fazer um bom jogo, e a cobrança sempre
presente do treinador para um melhor desempenho da parte dele. Freqüentemente, o treinador
gritava o seu nome na intenção de melhorar a sua performance.
Nas poucas horas que permaneci lá, presenciei muita dedicação de todos os jogadores
que estavam em campo. Pequenos no tamanho, mas grandes no empenho e nas jogadas. Não
pudemos conversar muito naquele dia, pois, após o término do jogo, eles se reuniriam para
uma conversa com o técnico. Durante o jogo, tirei algumas fotos do local e, após,
conversamos um pouco sobre a experiência de jogar em um campo de futebol profissional,
aproveitei a oportunidade para elogiar a sua participação na partida.
Figura 5
Um Jogo de Futebol
226
Em todas as oportunidades que tivemos de conversar ficou visível que Fernando não
se encanta somente com o esporte propriamente dito, mas com todo o cenário que envolve as
partidas e com os valores e normas que ele acredita que a prática do esporte incorpora.
Explicou que, para ser um bom jogador, o jovem tem que se alimentar bem, não sair muito à
noite e ficar em casa na véspera de jogo. Tem que haver companheirismo e união entre todos
da equipe. Não podem beber, nem ficar até tarde da noite na rua. Para Fernando, o jogador
tem que se cuidar bem e descansar o máximo possível para ter um bom rendimento dentro do
campo.
Em relação à escola, Fernando falou pouco sobre esse espaço. Segundo o que afirmou
nos encontros, a escola é necessária para que ele consiga um bom emprego no futuro, caso
não consiga vencer na carreira de jogador de futebol. O local preferido na escola é o espaço
onde se concentram as canchas de futebol. Nos diálogos, reivindicou que a prefeitura
construísse mais ginásios de esportes nas escolas e fora delas e que os professores e direção
das escolas conhecessem as atividades desenvolvidas pelos alunos fora do espaço escolar.
Fernando, como os outros jovens, praticamente não falou sobre conteúdos escolares e
não mencionou nenhuma atividade didática realizada em sala de aula. Para ele, escola é um
espaço necessário para progredir na vida e também para fazer e encontrar amigos. A presença
de grupos dentro da escola também foi percebida por Fernando, o que ele acha normal,
considerando que esses grupos se formam a partir de laços de amizade e de afinidades
construídos durante longo tempo de convivência escolar.
Sempre tem uns grupinhos, porque sempre tem aquele que é mais amigo,
que senta do lado da gente na sala, mas em geral é todo mundo amigo,
pelo menos na minha turma. A gente é colega desde a quarta série. É
quase cinco anos junto. Claro que sempre têm divisão, tem um ou outro
que não se dá, sempre tem, mas praticamente todo mundo se dá bem, são
todos mais ou menos iguais.
Fernando entende que os grupos existentes dentro da escola podem até causar divisões
e atritos entre os alunos. Entretanto, ele declarou que é legal que os jovens procurem ter um
estilo próprio para se diferenciarem um dos outros. Declarou que seu estilo é aquele adotado
pelos pagodeiros. Disse que gosta de usar calça boca de sino e moletom, mas não dispensa
227
totalmente uma calça de brim, blusão e tênis. Usa brinco e passa gel no cabelo. Às vezes
prefere sair com o uniforme do Inter.
Se o jovem é roqueiro gosta de usar roupa rasgada, cabelo grande, roupa
preta. Se é pagodeiro, usa calça boca de sino, sapato bico quadrado,
camisetinha apertada. Se é regueiro usa aquelas calças grandes, aqueles
blusões assim, cada um com o seu estilo, né? E isto é importante, porque
o que o cara gosta ele vai mostrar nas roupas, no jeito de andar.
Para Fernando e para uma boa parcela dos jovens, criar um estilo próprio é uma
maneira que eles encontram para se expressarem, se comunicarem com outros jovens e de
afirmarem-se como sujeitos. Entretanto, para Fernando, o mais importante no momento, é a
sua, como ele mesmo declarou, “mini-profissão”. Suas práticas sociais cotidianas e os espaços
nos quais circula na cidade estão intimamente ligadas ao esporte.
6.4.6 Gustavo: Um Encontro com a Cidade
Pegamos o ônibus, vamos até lá, sentamos na beira do rio e curtimos o
pôr-do-sol
”. (GUSTAVO)
Gustavo tem 18 anos, estuda na Escola Estadual Padre Rambo, mora na Lomba do
Pinheiro e nasceu em Porto Alegre. A mãe trabalha como empregada doméstica e o pai, como
técnico de filtros de água. A mãe cursou o Ensino Fundamental e o pai o Ensino Médio. Tem
4 irmãos, 2 meninos e 2 meninas. A renda mensal da família é de 2 a 5 salários mínimos.
Ele estuda pela manhã e pela noite. O horário das aulas em turnos diferentes é comum
na escola, pois as matrículas são por disciplinas. Nessa escola o aluno pode optar por
matricular-se em turnos diferentes. Isso acontece, geralmente, quando o aluno é reprovado em
alguma disciplina, caso não queira ficar com disciplinas pendentes. Os dois turnos que
Gustavo freqüentava se devia ao fato de ele ter sido reprovado em algumas disciplinas.
No horário da tarde, das 13h30mim às 18h30min, Gustavo faz um Curso de Mecânica
na Brigada Militar. Ele começou a fazer esse curso quando tinha 14 anos de idade, através do
CESMAPA, na época em que fazia recreação e oficina de arte e música naquele centro. Os
228
jovens que freqüentam os cursos da Brigada recebem uma carteirinha que os isenta de pagar a
passagem do ônibus, facilitando a permanência deles nesse espaço até o final do curso.
O curso na Brigada Militar possibilita que ele faça novas amizades, conheça diferentes
espaços e aprenda vários ofícios. Ele contou que fez cursos de marcenaria, pintura automotiva
e borracharia e acredita que um desses poderá lhe ajudar a conseguir um emprego no futuro.
Lá é bom, eles ensinam o cara e quando tu sair tu tem um diploma. É todo
mundo amigo, né? Os sargentos eu já conheço um tempão. Daí a gente
tem uma relação boa. Agora nós estamos em torno de 40, por aí, mas vai
entrar mais gente. Vai entrar guria também. Tinha uma guria lá que fazia
mecânica, ela era encarnada, gostava de mexer nos carros. É só se
inscrever nos cursos, mas são poucos os que se interessam”.
Nos finais de semana, gosta de ir ao Shopping Praia de Belas e aos diversos parques
107
existentes na cidade. Aos sábados à tarde, prefere a Usina do Gasômetro, onde ele e os amigos
esperam pelo pôr-do-sol, à beira do Guaíba, para voltarem para casa. Aos domingos gosta de
ir ao Parque da Redenção. Freqüenta pouco o Parque Marinha do Brasil e, no Parcão, ele
declarou que não vai. Do Parque Harmonia
108
gosta somente na época da Semana Farroupilha.
Às vezes vai a uma pista de skate no bairro IAPI. Em alguns finais de semana visita uma tia
que mora no bairro Partenon e a avó em Viamão
109
.
Gustavo contou que gosta de ler revistas que falam sobre carros. Em geral são revistas
que os amigos emprestam. Em relação à música, sua preferência é pelo rap e pelo reggae.
Não gosta de pagode e rock. Em se tratando de jogos esportivos, gosta de jogar handebol.
Gustavo contou, que uma vez por semana, vai à Igreja Evangélica da qual a família faz
parte, mas esclareceu que não faz parte do grupo de jovens da igreja. Em uma de nossas
107
Porto Alegre tem 7 parques urbanos. São eles: Farroupilha (Redenção): 40,01 hectares, criado em 1935;
Moinhos de Vento: 12 hectares, criado em 1972; Marinha do Brasil: 74,0 hectares, criado em 1967; Mascarenhas
de Moraes: 18,23 hectares, criado em 1982; Chico Mendes: 25,70 hectares, criado em 1992; Maurício Sirotsky
Sobrinho (Harmonia): 65 hectares, criado em 1981; Gabriel Knijinik: 12,0 hectares, criado em 2000. Dados
retirados do site: www.portoalegre.rs.gov.br/infocidade. Portal da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Data de
acesso: 19/03/2005.
108
O Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, mais conhecido como Parque da Harmonia, localiza-se nas margens do
Guaíba, possui churrasqueiras espalhadas pelo parque, canchas de esporte, pistas para corrida de cavalo e um
Galpão Crioulo com restaurante que oferece comidas típicas da culinária gaúcha.
109
Viamão faz parte da Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA). Tem 237.262 habitantes em 1612 km²
de área e fica a 10 km da capital.
229
conversas, ele contou que o pai lhe ensinou que todo o homem tem que ter um time e uma
religião e que ele concordava com o pai. Gustavo é evangélico e torce pelo Grêmio Foot-Ball
Porto-Alegrense
110
.
6.4.6.1 As Escolas: Do Villa-Lobos ao Padre Rambo
No primeiro contato que tive com Gustavo, ele tinha 16 anos e estudava na Escola
Municipal Heitor Villa-Lobos. Naquela época, contou que primeiro fez pré-escola, depois
entrou no Ensino Fundamental com 6 anos e que repetiu a primeira série. Disse que não
gostou do primeiro ano do Ensino Fundamental, porque achava a escola chata e a professora
também, mas lembra que gostou bastante do primeiro dia de aula. Mais tarde, já no terceiro
ciclo, cursou dois anos em turmas de CP
111
(Turma de Progressão do Terceiro Ciclo) nessa
mesma escola. Comentou que não gostou dessa experiência porque se sentia excluído do
ambiente escolar “normal”.
Os locais na escola em que ele gosta de estar é na frente da escola e no pátio. Em
relação aos professores do Ensino Médio, ele declarou que gosta de quase todos. Contou que
os professores tratam todos os alunos da mesma forma e que a maioria se preocupa em dar
uma boa aula, apesar deles manterem uma certa distancia dos alunos.
Gustavo imaginou que o Ensino Médio seria mais fácil. Considerava-se bem
preparado para o curso e contou que freqüentemente se lembrava dos conselhos das
professoras do Villa-Lobos, quando elas incentivavam os alunos a estudarem bastante
justificando que aqueles ensinamentos seriam úteis no futuro.
Eu tinha muita expectativa e um pouco de medo. Eu me decepcionei.
Estudei tanto tempo. Achei que ia ser uma barbada, mas não foi. Bem que
as professoras diziam: “estudem que vocês vão precisar”. Agora eu sei.
Eu só estudava para passar. Eu me preocupo com os meus colegas, não
quero que eles passem as dificuldades que eu tô passando.
110
Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. Fundado em 15 de setembro de 1903. O estádio é chamado Olímpico
Monumental e tem capacidade para 51.081 torcedores. Site: http://www.gremio.net
111
As Turmas de Progressão visam trabalhar com alunos em defasagem entre sua faixa etária e a escolaridade,
com o objetivo de superar dificuldades para que possam avançar no seu processo educativo, a qualquer
momento, já que não existe repetência nas escolas por Ciclos de Formação.
230
Em uma de nossas conversas perguntei o que ele tinha aprendido de mais importante
na vida. Ele respondeu fazendo uma diferenciação do que aprendeu na vida e do que aprendeu
na escola. Disse que na vida foi namorar e ser responsável, e na escola a não subestimar seus
adversários, para não se dar mal nas brigas. Disse também que a escola é importante para que
a pessoa aprenda sempre mais para não ficar parada no tempo.
Gustavo, como os outros alunos entrevistados, também percebeu a existência de
diferentes grupos na escola de Ensino Médio. Falou sobre o grupo dos roqueiros e dos
pagodeiros e, com tristeza, comentou sobre a dificuldade de encontrar colegas que gostassem
de rap na escola.
Ele contou que os roqueiros preferem ficar em um canto no pátio da escola, e alguns
andam sempre de corrente e de preto, enquanto que os que curtem pagode preferem ficar
dentro do prédio. Gustavo ainda identifica um grupo que classifica de “indecisos”. Segundo
ele: “esses gostam de pagode,
rap, rock,
enfim, gostam de tudo”.
Essa disputa entre roqueiros e pagodeiros, identificada na fala de Gustavo e de outros
jovens da pesquisa, revela a importância do rock e do pagode no cotidiano dos jovens das
duas comunidades estudadas. Esses dois grupos foram citados inúmeras vezes nas entrevistas
e são fortemente identificados na escola e na comunidade. Durante a pesquisa, foi possível
perceber que a escolha de alguns jovens por um estilo musical, pode determinar muitas das
suas práticas cotidianas e dos espaços em que eles transitam, tanto na escola quanto na
comunidade.
Segundo Maffesoli (1995), o estilo nada deve à lei geral ou a um código que “dita o
direito”, funcionando acima da lógica do “dever ser”, apoiado em um savoir-faire, segundo
um saber incorporado que tenta preservar o equilíbrio individual e social daquele que o adota.
Durante as primeiras entrevistas, os jovens expressaram as suas preferências musicais.
Ao serem indagados sobre o estilo de música preferido, o pagode e o rock foram os mais
citados. Dado importante a ser considerado na hora da organização e montagem de Oficinas
de Música nas escolas e nas comunidades. Permitindo assim que os próprios jovens escolham
as oficinas que mais lhe interessam.
231
Na opinião de Gustavo, os vários grupos existentes na escola não prejudicam o bom
relacionamento entre os alunos. Ele comentou que muitos pagodeiros e roqueiros são amigos,
apesar de ter presenciado brigas entre os dois grupos na outra escola na qual estudava. Neste
sentido, ele declarou:
Eu tenho amigos que são roqueiros e se dão com quem curte pagode,
normalmente. Existe a divisão de estilos, mas um não vai deixar de ser
amigo do outro por causa do estilo de música. Apesar de que deu uma
briga lá no Villa, entre os que curtem pagode e os que curtem rock. Eles
se pegaram!
Nos diálogos com Gustavo, pareceu-me que, na época das entrevistas, ele estava
encontrando dificuldades em permanecer em sala de aula. Nossos encontros sempre foram
difíceis de serem marcados ou de nos encontrarmos, pois freqüentemente ele faltava às aulas.
Entretanto, nas conversas ele sempre falava bem do espaço escolar e que gostava de estar ali.
Gustavo sempre comentava que a escola ainda era o melhor caminho para que ele pudesse
conseguir um emprego e obter sua independência financeira. Independência essa que lhe
permitiria comprar o que quisesse, ir para onde desejasse, sem a necessidade de pedir
autorização ou dinheiro para os pais. Gustavo declarou que o estudo era importante porque:
Sem estudo o cara não consegue trabalho. O serviço é bom, porque daí o
cara tem independência, não precisa tá pedindo dinheiro para o pai pra
sair, comprar roupas.
Contou também que, em anos atrás, estudar era um sacrifício para ele, pior do que
trabalhar, pois achava muito ruim levantar cedo, mas, naquele momento, não via mais essas
tarefas como sacrifício. Em uma de nossas conversas, disse que a experiência de estudar no
Ensino Médio contribuiu para que ele se tornasse mais responsável. Gustavo já trabalhou com
o pai de um amigo na reforma de uma casa e também com o próprio pai. Naquele momento
estava só estudando, mas explicou que, se fosse reprovado em várias disciplinas, teria que
trabalhar durante o dia e estudar à noite
Falou que estava vivendo uma fase nova e que tinha amadurecido muito naquele ano,
pois antes só pensava em jogar bola e brincar com os amigos e que o fato de estar estudando à
232
noite, convivendo com colegas de mais idade e com professores que não o tratavam mais
como criança, fez com que ele amadurecesse.
Quando eu estudava lá no coleginho era só gurizada, criança, né? Aqui as
professoras são diferentes, lá elas pegavam e levavam a gente numa boa,
aqui não, elas nos tratam como adultos. Já tá no 2º. grau, principalmente
de noite, que a maioria é gente de idade, eles te tratam como adulto.
Em uma de nossas conversas ele comentou que estava muito preocupado, pois gostaria
de arrumar um emprego e de poder continuar estudando para melhorar de vida. Gostaria de
ser técnico de futebol. Comentou que os jovens necessitam de apoio para enfrentar as
dificuldades cotidianas e que sua maior preocupação era a falta de vagas no mercado de
trabalho e a de seus amigos também. Contou que tem amigos que, por falta de dinheiro,
inclusive para a passagem do ônibus, faltam à escola e circulam menos pela cidade.
6.4.6.2 O Bonde do Mal
Não olhe só o grafite, entenda a mensagem. Arte Urbana é na lage
112
.
Ao falar do transporte na cidade, trago um diálogo com Gustavo, ocasião em que
conversávamos sobre temas que envolvem o sistema de transporte para além do preço da
passagem.
Foi em uma sexta-feira pela manhã. Eu e Gustavo tínhamos conversado bastante
naquele turno, e no final da manhã, quando estávamos saindo da escola, ele pára e escreve
algo em um mural, confeccionado para que os alunos deixassem ali alguma mensagem. Notei
que Gustavo escreveu “Bonde do Mal. 394.1”. Pedi a ele que me explicasse o significado da
mensagem. Ele contou que era o número da linha de ônibus que atravessa o seu bairro.
Perguntei porque “Bonde do Mal”. Ele tranqüilamente explicou que “Mal” vinha de
maloqueiro e que o pessoal da MAPA espalha o grafite na cidade para que todos que leiam a
mensagem saibam de onde ela vem.
112
Frase retirada de um grafite no muro da Escola Municipal Heitor Villa-Lobos.
233
É o número da linha de ônibus. É que quando a gente sai e faz grafite, a
gente coloca para quem lê saber que é lá da Mapa, pra identificar mesmo.
Assim eles sabem que fomos nós da MAPA que escrevemos
113
.
Alain Vulbeau (2002), em seu livro “Les Inscriptions de la Jeunesse”, que trata, entre
outros temas ligados à juventude, sobre os grafites encontrados nos muros de Paris,
basicamente os da periferia da cidade, explica que é comum na França os jovens da periferia
colocarem o nome das linhas de ônibus ou das estações de trem nas suas bandas, nas letras de
suas músicas e também nos muros, criando uma nova forma de serem identificados através do
lugar em que habitam, explicitado no número das linhas de ônibus ou no nome das estações
de trens.
Vulbeau (2002) explica que a rede de transporte na cidade, falando de Paris e
arredores, e, basicamente, dos metrôs e trens, são lugares de acolhimento e de experimentação
de novos comportamentos juvenis e também de novas práticas sociais. São espaços de
referência de uma nova forma de socialização e sociabilidade juvenis.
O autor lembra ainda que a socialização repousa sobre processos recíprocos, contínuos
no tempo e fragmentários no espaço, e que a socialização se opera nas interações da vida
cotidiana, de maneira heterogênea, segmentada em múltiplos submundos que nos servem de
referências.
Nesse contexto, a rede de transportes seria um lugar de porosidade onde se
encontrariam os mais diversos tipos de jovens e de culturas juvenis. Espaço onde pode ocorrer
a transferência, no imaginário, de um espaço funcional em um espaço simbólico. Para
Vulbeau (2002), o metrô é, sobretudo, um lugar de sociabilidade juvenil e um espaço de
inserção.
Pesquisando sobre bandas juvenis, formadas na cidade de Porto Alegre, encontrei uma
banda de RAP que se chama “Da Guedes”, originária do bairro Partenon, que mostra em suas
letras muito da cidade, dos parques, das festas, dos bairros, das dificuldades dos moradores e
também sobre os ônibus que percorrem as comunidades. Assim, trago uma pequena parte de
113
Prestando a atenção nos grafites da cidade, descobri na Avenida Ipiranga uma mensagem do Bonde do Mal.
234
uma música que fala sobre o dia do Passe Livre
114
na cidade e sobre a possibilidade de os
jovens encontrarem amigos e parceiros nos ônibus. Eles falam que o ônibus vem lotado, que é
apertado, tem empurrão, mas que o pessoal lota e aproveita. Afinal, eles dizem, foi um direito
adquirido.
Da Guedes
Passe Livre
O último domingo do mês, ou não sei que pelo menos uma vez. Vejam
vocês aqui o banzo é de graça pelo menos uma vez por mês - é bom- um
direito adquirido pelo cidadão comum sangue ... Um dia de visita, de
encontrar meu irmão Negro X já vai colar nesse buzão que sai aqui do
Partenon. O destino é bairro centro ai ladrão é só colar trocar uma idéia e
matar... A saudade dos chegados só pra começar... Coletivos lotados sempre
pra todos os lados. Quem depende deles e quem pega tá ligado que aqui não
tem frescura, é 1,2... Já foi dada a cara dura. É hoje que os mano tão tudo na
loucura. O cobrador tirou uma folga, hoje a roleta é toda tua. Nesse dia rola
cada figura. Volto no nascer da lua - pode crê. Muito aperto só os muito loco
banzo de graça, Ó!? Que sufoco sei que é nós na fita o coletivo hoje é do
povo lá de cima desce o morro, vem lotado é bicho solto....
115
Refletindo sobre a familiaridade que os jovens têm com as linhas de ônibus e trens
descritas por Vulbeau (2002), entendo que este tipo de transporte, por ser popular, é o mais
usado pelos jovens da periferia, sendo o único meio, na maioria das vezes, que possibilita aos
jovens saírem do bairro e circular pela cidade. O ônibus os leva para espaços, talvez, antes
desconhecidos, permitindo novas descobertas e experiências. O ônibus, de uma certa maneira,
os identifica como sujeitos pertencentes a um bairro ou a uma comunidade. E o grafite com o
número da linha os torna, ou pretende torná-los, visíveis para toda a cidade.
Durante as entrevistas, foi possível perceber que, circular de ônibus sozinho, pode se
constituir em um passaporte para entrar no universo juvenil. Circular, pela primeira vez, sem a
companhia de um responsável, significou para muitos uma emancipação, o que poderia nos
reportar aos ritos de passagem das sociedades primitivas, o que não é a mesma coisa que está
sendo dita aqui, mas que nos remete a conceitos de movimento, processo e deslocamento, que
está implícito mais na idéia de passagem do que de rito (DAMATTA, 1997).
114
O dia do Passe Livre é uma política pública do governo municipal que permite que os moradores da cidade de
Porto Alegre, uma vez por mês, circulem de ônibus pela Capital sem o pagamento da passagem.
115
Música retirada do site: www.imusica.com.br Acesso dia: 29/01/2005.
235
Circular de ônibus pela cidade, ficar, a festa de 15 anos para as meninas ou o primeiro
baile, podem ser entendidas como “marcos simbólicos” para uma possível “passagem” da
infância para adolescência. Entretanto, essa “passagem” não é total nem irreversível. Segundo
Bessin (2002), nas sociedades primitivas, fortemente hierarquizadas, os rituais tinham a
função de separação, de diferenciação e de determinar o papel de cada um, segundo o sexo e
as classes de idade. Os ritos de passagem, nessas sociedades, tinham também um papel de
integração social misturando os tempos individuais e os tempos coletivos, dando um status
novo àquele que era submetido a eles. Atualmente, os “marcos simbólicos”, estão mais de
acordo com a flexibilidade dos padrões sociais que orientam a vida em sociedades
contemporâneas.
6.4.6.3 Espaços na Cidade: As Ruas, as Esquinas e os Parques
Gustavo, em todas as nossas conversas, falou do prazer de estar na rua e de passear
livremente pelos parques. Ele disse gostar da cidade onde mora, pois acha que tem muita
mulher bonita e muitos lugares bons para passear. Gosta de sair do bairro e pegar ônibus.
Começou a pegar ônibus com 13 anos, mas naquela época saía somente com destino certo e
quando era pequeno não saía do bairro. Com 16 anos é que começou a conhecer melhor a
cidade.
Dizia sempre que gostava de ser jovem, pois podia percorrer outros bairros, conhecer
pessoas novas e lugares diferentes. Disse que não gostava do centro da cidade, principalmente
nos terminais de ônibus, em função da violência e de pessoas que usam drogas naquele
espaço. Gustavo confessou ter medo da violência na cidade, principalmente de ser assaltado
com uma arma. Explicou que o medo da violência é um sentimento ruim e que sempre está
presente, por isso não volta para a casa tarde da noite.
Gustavo acha o bairro onde mora bom de viver. Disse que não é um bairro muito
calmo, mas que também não conhece nenhum bairro calmo na cidade. Tem três grandes
amigos na vila onde mora. Durante a semana, ele e os amigos ficam parados nas esquinas do
bairro ou jogam bola na frente da casa de algum deles. Declarou que não faz questão de ir a
festas em clubes ou locais para dançar. Explicou que, se tiver dinheiro para ir, pode pensar na
possibilidade, mas que, muitas vezes, mesmo tendo condições para pagar o ingresso, opta por
236
não ir, a não ser que os amigos insistam muito. Durante a noite prefere ficar em casa com os
familiares.
O lugar de sua preferência na cidade é a Usina do Gasômetro. Vai para lá todos os
sábados Ele e os amigos ficam na usina cantando e tomando chimarrão. Até formaram uma
bandinha somente para divertirem-se. Eles tocam reggae e rap a tarde toda e depois voltam
para casa no final do dia.
Fazemos sempre a mesma rotina, pegamos ônibus, vamos até lá, sentamos
na beira do rio, curtimos o pôr-do-sol, e depois que passa o pôr-do-sol,
nós vamos lá para dentro da Usina. Ficamos um tempinho e depois vamos
embora, lá pelas 7 e meia da noite, de vez em quando, às 8h, mas
raramente. E daí a gente vai para casa, não tem outro lugar para ir. A
gente conversa pouco, às vezes rola uns assuntos, mas é mais música
mesmo.
O Parque Harmonia também é um local de circulação de Gustavo, apesar de ele
circular por esse espaço somente na Semana Farroupilha
116
, quando são montados galpões e
barracas, para que gaúchos e gaúchas de todas as partes do Estado e, principalmente, os porto-
alegrenses cultivem as tradições do seu Estado. Essa grande festa ocorre no mês de setembro.
Eu ajudei a montar o galpão pra Semana Farroupilha. Eles disseram que
quando eu quiser ir tem lugar pra pousar ou ir lá comer um churrasco com
eles, montar um cavalo, bah, é bom, é a época dos piquetes, vai muita
gente, tem muito churrasco, chimarrão. Tem um pessoal do curso e
outros que conheci porque moram lá perto da minha casa, né, no bairro?
Eles curtem outro tipo de música, mas na semana farroupilha é só música
gauchesca, daí é só gaúcho, é sempre bom o cara mudar, né, sair do
cotidiano.
Considerando que os parques da cidade e a Usina do Gasômetro são os espaços
preferidos de Gustavo, marquei com ele um encontro na Usina para conversarmos. As duas
primeiras tentativas não funcionaram, mas na terceira conseguimos nos encontrar.
116
No dia 20 de setembro, se comemora, na cidade de Porto Alegre e em todo o Estado, a Revolução
Farroupilha, mais conhecida como Guerra dos Farrapos. Foi uma guerra que durou 10 anos (1835 - 1845). Porto
Alegre, como hoje, na época da revolução, era a sede do governo.
237
No dia marcado, a Usina do Gasômetro e os espaços em torno dela estavam repletos
de pessoas. Na beira do Guaíba via-se muitos jovens passeando, conversando, andando de
bicicleta, tomando chimarrão ou outra bebida qualquer. Nessa tarde conversamos bastante e,
através desse diálogo, foi possível conhecer um pouco mais sobre a vida de Gustavo.
Gustavo demorou um pouco. Enquanto esperava fiquei caminhando e observando o
movimento em volta. Pessoas de todas as idades e classes sociais chegavam à Usina do
Gasômetro e às margens do Guaíba. Muitos jovens andavam de bicicleta, outros permaneciam
em pé conversando ou sentados em roda para bater um bom papo.
Nesse espaço foi possível identificar diversos grupos juvenis. O pessoal do rock era o
mais facilmente identificado. Ali estavam eles, sentados no chão, com suas costumeiras
roupas pretas e suas bebidas em garrafas de refrigerante marcando uma forte presença. Outros
jovens conversavam em um banco. Vários casais namoravam à beira do rio. Em uma roda
formada por meninas, o chimarrão passava de mão em mão. Em um pequeno palco, um jovem
cantava músicas latino-americanas. Viam-se jovens e adultos que saíam dos prédios próximos
e outros que vinham de longe de ônibus, como era o caso de Gustavo.
Quando ele chegou, sentamos no chão e ele começou a falar do prazer que sentia em
circular pela cidade, em sair um pouco do seu bairro, de encontrar amigos e de fazer novas
amizades. Falamos sobre o seu cotidiano, sobre a escola, sobre as suas atividades diárias,
sobre a vida dos jovens na cidade, sobre os seus amigos, suas dúvidas, sonhos e alegrias.
Depois de um longo tempo, nos levantamos e continuamos a conversa caminhando.
Passeamos um pouco, tiramos foto e nos despedimos. Um pouco antes de nos despedirmos ele
encontra uma amiga e saem juntos conversando para aproveitarem um pouco mais essa bela
região da cidade que, nos sábados e domingos, principalmente, os de sol, acolhe um grande
número de jovens de todas as partes da cidade.
238
Figura 6
Gustavo na Usina
6.4.7 A Igreja como Espaço de Circulação e Práticas Sociais: A Vida de Marta
Hoje em dia os jovens têm se escondido atrás de muitas coisas e a gente
tem procurado demonstrar o amor de Deus através da nossa banda.
(MARTA)
Marta tem 15 anos, estuda na Escola Estadual Padre Rambo, mora na Lomba do
Pinheiro e nasceu em Porto Alegre. A mãe é dona de casa e o padrasto trabalha como
mecânico e em serviços gerais. O pai é vigilante. Tem sete irmãos. Quatro homens e três
mulheres, todos casados. A mãe cursou o Ensino Fundamental e o pai o Ensino Médio. A
renda mensal da família é de 1 salário mínimo.
No turno da manhã, Marta vai à escola. À tarde assiste à televisão e ouve música. Às
vezes dorme ou fica no quarto escrevendo. Apesar de gostar muito de música, quando está em
casa, prefere ver televisão, em especial, as novelas e os telejornais. Acredita que a
programação atual influencia muito o pensamento infanto-juvenil e que a violência está em
tudo, inclusive nos desenhos animados. Gosta de escrever sobre temas relacionados ao seu
239
cotidiano e adora escrever cartas. Envia cartas para os amigos e faz novos amigos através
delas. Quando terminar o Ensino Médio pretende fazer Faculdade de Comunicação.
No final da semana vai à igreja. Freqüenta uma Igreja de Confissão Evangélica situada
no seu antigo bairro. A igreja é um espaço fundamental na vida de Raquel. Em todas as nossas
conversas, a crença em Cristo e o convívio com seus irmãos em fé estiveram sempre
presentes. Ela participa ativamente do Grupo de Jovens da igreja. Pega dois ônibus para ir ao
culto. Encontram-se todos os sábados para conversar, orar e cantar. O primeiro sábado do mês
é o dia de os jovens reunirem-se, no segundo é o dia das mulheres da igreja se encontrarem
para conversar sobre assuntos femininos, no terceiro o grupo todo se reúne para conversarem
e, no quarto sábado, trabalham em um projeto de assistência social desenvolvido pela igreja
para ajudar as pessoas mais carentes da comunidade.
No sábado à noite, em geral, aproveita para sair com um irmão e com o pessoal da
igreja para comerem uma pizza ou vão para a casa de algum deles para conversarem.
Freqüentemente dorme na casa do irmão mais velho que mora perto da igreja. Apesar de
gostar do bairro onde mora, de considerá-lo calmo e silencioso, acha que ele está localizado
muito longe do centro da cidade, da escola, da igreja e dos locais que gosta de transitar. No
domingo à tarde, às vezes, vai ao Parque da Redenção ou ao Parcão.
Os encontros com Marta ocorreram em três locais diferentes. Os encontros iniciais se
deram na escola, depois na sua casa, na escola novamente e por último na igreja que ela
freqüenta. Em todos os diálogos a sua fé em Cristo e a importância da igreja na sua vida
ficaram evidentes, determinando espaços, práticas sociais e posicionamentos frente a
situações vividas diariamente.
Em se tratando do espaço escolar, Marta declarou que os professores e a direção da
escola vêem todos os alunos da mesma maneira, e que a função principal da escola é passar
conhecimento formal, não se importando muito com a vida particular do aluno. Com o que ela
não concorda e acredita que essa relação poderia mudar. Entretanto, comentou que, nos
últimos tempos, a direção da escola estava tentando mudar essa realidade, ao incentivar os
jovens a mostrarem as suas habilidades artísticas e esportivas na escola, disponibilizando
espaços e horários para que essas atividades aconteçam. Apesar desses esforços, ela ainda
240
considera as iniciativas pequenas para que mudanças significativas ocorram na relação entre
os jovens e a escola.
Depois que o aluno sai da escola, a vida dele não tem mais importância. Eu
acho que deveriam saber mais sobre os alunos, as suas dificuldades e os
seus problemas. Agora, aqui na escola, até parece que tá tendo um pouco,
o Eduardo mesmo parece que tá tocando em uma banda, mas eu acho que
é alguma coisa entre alguns alunos que já fazem alguma atividade fora e
se reúnem dentro da escola.
No início das entrevistas, Marta considerava a escola ruim e o ensino fraco. No final
dos encontros, mais envolvida com as atividades escolares, declarou que estava gostando do
ambiente escolar. Tinha feito novos amigos e conhecido melhor os professores. Comentou
que, quando chegou à escola não tinha com quem conversar, porque todos os colegas com os
quais tentou fazer amizade já tinham filhos. Eram meninos e meninas de 15, 16 e alguns até
de 14 anos, mas, com o decorrer do tempo foi se adaptando aquela realidade e estabelecendo
relações de amizade.
Quando eu cheguei, o pessoal perguntava assim: E daí qual o teu nome?
De onde tu vens? Tem filho? Não! (risos). Aí diziam: Ah, mas tu não tem
filho? Não, não tenho (risos). Aí iam conversar com outras pessoas.
Parece que hoje tá tão normal, né?
Marta contou que começou a freqüentar a Igreja de Confissão Evangélica por
problemas familiares. Na época, os seus pais estavam se separando, e ela não conseguia falar
dos seus problemas com ninguém. Acreditava que por ser a menor da casa, ninguém a ouviria.
No início ela não gostava muito da igreja, mas com o passar do tempo começou a
gostar do local. Na igreja, ela encontrou pessoas que a ouviam e a aconselhavam. Contou que
há cinco anos faz parte da igreja. Nesse espaço, disse ter encontrado pessoas que a amam e
que nos momentos mais difíceis da sua vida estavam ao seu lado.
No grupo de jovens ela fez muitas amizades e realizou viagens. A existência de muitas
igrejas da mesma ordem em vários lugares facilita esse intercâmbio. Na época das entrevistas,
eles estavam se preparando para viajar para Santa Vitória do Palmar, interior do Estado.
Depois iriam para Rio Grande e Bagé.
241
Outra prática prazerosa para Marta é escrever cartas. Ela se corresponde com amigos
do Rio de Janeiro, do interior do Estado e do exterior. A maioria dessas amizades foi feita
através da igreja. Ela optou por escrever cartas para não perder o contato com os amigos e
para que eles saibam que ela, mesmo longe, continua se importando com eles. Escreve para os
amigos do Bairro Bom Jesus, onde morava até o início do ano, e para os amigos que foram
casando ou mudando de cidade ou de bairro e até para amigos que ela não conhece
pessoalmente.
Corresponde-se com um rapaz de 21 anos que está preso. O objetivo é ajudá-lo a
superar os momentos difíceis passados na prisão, pois o rapaz se sente muito solitário, e as
cartas são um conforto para ele. Esse jovem conheceu o pastor da igreja na prisão e, a partir
desse encontro, está seguindo os ensinamentos evangélicos. Marta explicou que, antes da
prisão, ele praticamente não freqüentava a escola e que lá dentro estava estudando, lendo e
escrevendo muito bem.
Quando eu tô em casa, eu gosto de escrever bastante, sabe, então para
não ficar cheio de papel por todo o lado
(risos),
eu levo as minhas coisas
lá pro quarto, aí eu fico deitada, lendo, escrevendo. Eu escrevo bastante
carta, eu escrevo pros meus amigos
(risos).
Em casa ela prefere ficar no seu quarto escrevendo e lendo. Contou ainda que tem uma
grande amiga na igreja que mora em Viamão e que as duas passaram por dificuldades
semelhantes e isto as uniu muito. Conheceram-se há dois anos na igreja e hoje são amigas
inseparáveis. Elas visitam-se com freqüência e dormem uma na casa da outra sempre que
podem.
Para Marta, os encontros com os outros jovens da igreja são fundamentais para que ela
não se sinta perdida e para que as angústias do cotidiano não a afetem em demasia. Ela e os
amigos da igreja acreditam que os jovens procuram a felicidade nas festas, nas bebidas e
alguns nas drogas. Para eles, o prazer e a alegria conseguidos por esses caminhos são
efêmeros, pois acreditam que quando a festa termina ou passa os efeitos das drogas não resta
mais nada de bom, permanecendo um vazio, que para ela e para o grupo da igreja só a fé
consegue preencher.
242
Eles acreditam que os jovens têm se escondido atrás de muitos prazeres fáceis, não
encontrando a paz e a felicidade tão esperada. Nesse sentido, estão montando uma banda para
levar a palavra de Deus e seus ensinamentos aos jovens.
Os jovens procuram a felicidade em algo que não é real, porque depois
que terminou a droga, acabou a felicidade, depois que terminou a festa,
não tem mais felicidade. E a gente não, a gente já pensa diferente, né? A
gente não precisa de bebida, de cigarro, de sair pra dançar pra ser feliz,
só que a gente vive como qualquer outro jovem que tem suas
dificuldades, os seus problemas, só que a gente tem a solução.
6.4.7.1 Um Sábado na Igreja: O Exército da Paz
A igreja sempre esteve presente nas nossas conversas. Para Marta, a igreja é o espaço
do encontro, da amizade, da fé e do apoio nas horas tristes. Considerando a importância desse
espaço no cotidiano dessa jovem, marcamos um encontro na sede da igreja, em um sábado à
noite, para que eu conhecesse de perto esse lugar tão especial para ela.
Assim, num sábado chuvoso, cheguei à igreja. Os ensaios da banda já estavam
acontecendo e o clima era festivo e tranqüilo. Ao chegar, uma menina recebeu-me
atenciosamente. Apresentei-me e falei do trabalho que estava desenvolvendo com Marta e
eles convidaram-me a entrar. Após alguns minutos todos os participantes do grupo vieram
cumprimentar-me e mostrar a sua alegria pela minha presença. Notei que esta atitude de
carinho e acolhimento era dispensada a todos que ali chegavam.
Sentei e comecei a assistir ao ensaio da banda e à organização dos instrumentos. Tudo
muito bem preparado. As luzes, as vestimentas, os efeitos especiais e as músicas que seriam
cantadas estavam em ordem. As roupas usadas representavam jovens soldados que lutavam
contra tudo que era contrário aos ensinamentos de Deus. Lutavam contra as injustiças, o ódio
e a falta de amor a Deus e aos seus semelhantes.
Várias atitudes e práticas me pareceram significativas naquele espaço. Notei o carinho
com que se dirigiam uns aos outros e a harmonia do grupo. Percebi também a maneira alegre
e acolhedora que eles recebiam a todos que chegavam à sala e a organização e competência
243
com que cantavam e tocavam as músicas. As letras eram todas com mensagens evangélicas e
o ritmo era o rock.
Os instrumentos e a aparelhagem eram novos e bem potentes. Vestiam-se como
soldados que lutavam pela paz. O som era alto, as vozes bem afinadas e o ritmo vibrante. A
banda não deixava nada a desejar para as bandas de rock tradicionais. A diferença estava nas
letras das músicas que eram compostas com o objetivo de transmitir e divulgar a palavra de
Jesus e mostrar um novo caminho a ser seguido pelos jovens.
Figura 7
Grupo de Jovens na Igreja
Naquele espaço, viam-se jovens alegres, comunicativos e bons músicos. Eram
meninos e meninas vestidos como qualquer outro grupo de jovens, cantando e tocando
instrumentos do seu agrado, divertindo-se com seus pares e buscando, através da música,
transmitir mensagens de paz e incentivar outros jovens a fazerem a mesma coisa.
Durante as nossas conversas foi possível perceber que o cotidiano dessa jovem está
permeado por práticas e espaços ligados à igreja. A formação da banda, os retiros, os
encontros aos sábados e os amigos que ele se corresponde, preenchem quase totalmente o seu
tempo.
244
Em uma das nossas conversas, ela contou-me que, na época do carnaval, a igreja
promove um retiro espiritual no qual os jovens participam ativamente das atividades
desenvolvidas. Eles organizam equipes de trabalho, fazem festas, desafios e brincadeiras para
distraírem os jovens. Cada ano há um tema a ser desenvolvido e discutido por todos. Para
Marta, esse é um momento muito especial do ano, uma oportunidade de estarem unidos e
fortes em nome da fé.
A gente sempre vai para o retiro na época do carnaval, lá tem um monte
de coisas bem legais. Neste ano o tema foi: “Qual é a real”? Tem
brincadeiras para os jovens, tem desafios por equipe. A gente trabalha
bastante por equipe, né, porque hoje em dia os jovens têm lidado muito
sozinho, né? Trabalhar com equipe é legal, eu conheci bastante gente lá.
A Igreja de Marta é de Confissão Evangélica, mas ela ressaltou que não é proibido
usar calça comprida, brincos e assistir à televisão. A igreja tem sedes em várias cidades do
Estado e fora dele. Os jovens participam também de Encontros de Jovens em outras igrejas
evangélicas. Nesses encontros eles cantam, dançam, apresentam coreografias e divertem-se
muito.
Nós participamos de um encontro que tinha 150 jovens de várias igrejas
evangélicas diferentes. Foi legal, teve apresentações, as gurias estavam
com roupas bem legais para fazer a coreografia, elas vestiam calças
vermelhas, boca de sino, com umas camisas bem bonitas, a coreografia
legal, aí teve um louvorzão, assim, por um bom tempo
.
Nos encontros com Marta, percebi a importância da religião na sua vida, determinando
espaços e definindo práticas sociais. Outro ponto importante, a destacar na fala dessa jovem,
foi constatar a dificuldade de interlocução com o mundo adulto fora da igreja. A carência de
um diálogo franco e aberto com seus pais e também com seus professores foi evidenciada na
fala dela. Para Marta, a solidão e o aparente abandono em momentos de crise foram superados
com a entrada na igreja. No espaço religioso, ela encontrou amigos e, como ela mesma
declarou, “mães” e “pais” que a aconselharam e a confortaram nas horas tristes. Na igreja, ela
conseguiu afeto, escuta e apoio não encontrado em outros espaços.
245
6.4.8 As Meninas do Grupo: A Música como Articuladora de Espaços e Práticas Sociais
Marina, estudante da Escola Afonso Guerreiro Lima, colocou no questionário que
fazia parte de um grupo de meninas, chamado Ti ti ti
117
. Durante a primeira entrevista, falou
que se tratava de um grupo de colegas da mesma sala de aula que se reuniam, basicamente na
escola, para conversarem sobre “coisas de meninas”. Nesse dia, falei do meu interesse em
saber mais sobre o grupo e conhecer as outras participantes. Assim, marquei com Marina um
novo encontro e pedi a ela que convidasse as suas colegas para participarem da conversa.
No dia combinado, todas compareceram e, depois das devidas explicações sobre o
estudo que eu estava desenvolvendo na escola, elas concordaram em participar da pesquisa.
Marcamos o nosso primeiro encontro, em conjunto, para a semana seguinte às 15h na
biblioteca da escola. Elas se encontrariam primeiro para realizarem uma tarefa escolar e
depois conversaríamos.
No dia combinado, cheguei à escola às 13h30min em ponto. Depois do primeiro
encontro com Luana, encontraria as meninas do grupo. Foi difícil chegar na hora certa, pois
vinha de longe. Entretanto, Luana, por problemas de ordem pessoal, não pôde comparecer.
Esperei ansiosamente até às 14h e depois fui caminhar um pouco pelo pátio da escola para
observar o movimento dos alunos naquele espaço. Após alguns minutos de caminhada, vejo
Camila, Beatriz e Sabrina sentadas em um banco conversando com dois meninos. Elas
esperavam por Marina que ainda não havia chegado para começarem a tarefa escolar.
Aproximei-me do grupo e começamos a conversar. Aproveitei, enquanto Marina não
chegava, para conversar um pouco com as meninas, já que ainda não as conhecia direito.
Expliquei o motivo de estar ali antes do combinado, falei novamente sobre o objetivo da
pesquisa. Perguntei se poderia permanecer na biblioteca durante a tarefa escolar que elas
iriam realizar. Elas responderam que sim e fiquei ali sentada conversando.
Durante o tempo em que ficamos no pátio à espera de Marina, elas falaram da banda
que estavam pensando em montar. Disseram que já tinha nome e vocalista. Conversamos,
117
O nome do grupo foi dado por Marina no momento de responder ao questionário, o que não foi confirmado
pelas outras e nem por ela como sendo o nome oficial do grupo. Na realidade disseram que o grupo não tinha
um nome definido, tinham somente o nome da banda que estavam organizando.
246
basicamente, sobre música e sobre os seus amigos e colegas de escola. Os dois meninos que
estavam com elas vestiam preto e nas camisetas viam-se imagens de vocalistas e nomes de
bandas de rock internacional. A única menina que estava praticamente toda de roupa preta era
Sabrina. Na sua camiseta era possível ler palavras como love, rose e feelings. A camiseta era
preta com desenhos rosa. Em vários momentos, durante toda a pesquisa, notei que misturar o
preto com o rosa é uma tendência nas roupas das meninas que optaram por usar o preto como
cor predominante.
Quando Marina chegou fomos todos para a biblioteca. Entrei e sentei-me com eles
enquanto realizavam a tarefa escolar. O trabalho desenvolveu-se de forma harmônica e com a
participação efetiva de todos. Os meninos permaneceram ali até o final do trabalho e depois se
despediram para que pudéssemos conversar mais tranqüilamente.
Elas contaram que o grupo existe desde de 2002, mas que naquele ano estava mais
forte e coeso. Explicaram que se encontram basicamente durante a semana e que no final de
semana é raro reunirem-se. Pensam em formar uma banda. O nome será KRAP NIKNIL em
homenagem a uma banda de rock muito apreciada por elas que se chama LINKING PARK.
Explicaram que o tipo de música que o Linking Park toca é um rock de auto-ajuda para
adolescentes. É um tipo de pop rock. Disseram que os meninos da banda são lindos e que o
som que eles fazem é bom de escutar, pois as músicas falam de amor e das dificuldades
vividas pelos adolescentes.
Nos diálogos, pude perceber que, apesar de constituírem-se como um grupo, elas
vivem o seu dia-a-dia de maneira singular. Vivem situações familiares diferentes, concordam
em muitos pontos de vista, discordam em tantos outros e possuem sonhos diversos. Não
optaram por um estilo único. Vestem-se de forma diferenciada e professam crenças e valores
diferentes. Somente em um ponto todas convergem: amam a música. O que demonstra a
formação de um grupo juvenil sem filiação a um estilo único. A amizade e a música são
referências básicas que as unem.
247
Figura 8
As Meninas do Grupo
Nas suas falas, vamos perceber as diferenças individuais de cada uma e como essas
diferenças não as separam, pelo contrário, abrem um canal para a troca de experiências e
aprendizagens mútuas.
Conforme já foi explicado no capítulo sobre a Metodologia da Pesquisa, foi solicitado
às meninas que escrevessem, em um pequeno caderno, algumas notas sobre a vida particular
de cada uma delas, seus sonhos, medos, preferências e tudo o mais o que quisessem. A escrita
era livre, sem número de páginas ou itens preestabelecidos. Assim, foram escolhidos alguns
escritos de cada uma delas. Os Pequenos Retratos Falados I, II, III e IV foram transcritos
desse caderninho.
PEQUENO RETRATO FALADO I
Oi, meu nome é Marina. Gosto de dançar e de conversar. Converso sobre namoro, sexo, drogas e
outros assuntos. Gosto de ir ao cinema, de comprar roupas, de escutar rádio, ler revistas e fazer
novas amizades. Tento ajudar os amigos e as amigas dando conselhos, mas eu acho que são eles
quem me dão conselhos. Alguns até me chamam de amiga conselheira. São amigos que demorei a
conquistar e a cada dia a amizade é mais forte. Adoro meus pais e minha irmã. Converso muito
248
com a minha mãe. Eu conto tudo o que acontece na escola para ela. Eu namorei só uma vez. No
começo era só felicidade. Era a primeira pessoa que eu estava gostando sério porque os outros
eram só para
ficar.
A gente terminou faz três meses. Eu acho que não está na hora de
compromisso sério. A experiência de ser uma pessoa empregada foi bem legal. Trabalhei quatro
meses e aprendi muito. Eu amadureci um pouco. Meus pais me dão liberdade, mas é importante
que os pais perguntem como foi o dia do filho. Sem diálogo não tem como o filho falar sobre o que
está sentindo e nem os pais entenderem o que se passa com ele.
Marina tem 15 anos, mora na Lomba do Pinheiro e nasceu em Porto Alegre. O pai e a
mãe cursaram o Ensino Fundamental. A mãe trabalha como babá e o pai é pedreiro. Tem uma
irmã. A renda mensal da família é de 2 a 5 salários mínimos. Na época da primeira entrevista,
primeiro semestre de 2004, trabalhava no centro da cidade em uma banca de revistas.
A rotina de Marina, no primeiro semestre, era um pouco diferente daquela das suas
colegas em função do trabalho. Pela manhã ia à escola e à tarde trabalhava em uma banca de
revistas fora do bairro. À noite ficava em casa ou na casa do namorado, às vezes na casa de
amigos ou na rua. No segundo semestre, a rotina de Marina mudou um pouco. Ela perdeu o
emprego, pois a loja na qual trabalhava pegou fogo, e o namoro acabou.
No sábado pela manhã fica em casa ajudando a mãe nos afazeres domésticos. À tarde
sai com as amigas e à noite, às vezes, vai ao cinema. Não sai à noite para dançar no bairro,
porque considera os locais para este tipo de lazer pouco “recomendáveis”. Em uma de nossas
conversas falou sobre os poucos espaços de lazer para os jovens do bairro e da falta de lugares
que ela considera bom para dançar: “Aqui só tem a “Dançante”
118
, mas tá na decadência”.
Aos domingos, em geral, fica em casa porque é o “dia do churrasco em família”.
Contou que quando pode vai ao Parque da Redenção, ao Shopping Total e ao cinema. Tem
amigos nos bairros Partenon, Restinga e Pitinga.
Marina adora música. Seu estilo preferido é o rock. Gosta do Linking Park, do CPM
22, do Tequila Baby, Detonautas, entre outros. Além do rock gosta de músicas românticas
como: KLB, Pedro e Tiago e Guilherme e Santiago. Gosta de ler revistas direcionadas ao
público juvenil.
118
Nome fictício do local no bairro para dançar.
249
Durante os encontros, contou que a sua rotina diária, mesmo com algumas mudanças
no segundo semestre, continua sendo ir à escola pela manhã, onde encontra as colegas que
tanto gosta. À tarde conversa com algumas amigas em casa e nas proximidades e à noite
reencontra algumas, na própria casa ou na casa de alguma delas. Em todos os encontros falou
sempre da família com muito carinho. Afirmou que a mãe é sua confidente e que a religião
que professa é a Umbanda, mas que não deixa de ir à missa e fazer a catequese.
Em relação à escola disse gostar do espaço escolar, acha que o ensino é bom e os
professores também. O local de sua preferência na escola é perto das canchas e na quadra de
futebol. Marina gosta de futebol e já jogou no passado. Pretende continuar os estudos e cursar
a Faculdade de Direito. Acredita que só estudando muito poderá melhorar financeiramente.
Nos encontros pareceu-me muito responsável para a sua idade. Em função do seu modo de
ser, tem no grupo um papel de mediadora, ouvindo a todas com atenção e unindo o grupo
sempre que pode.
PEQUENO RETRATO FALADO II
Meu nome é Sabrina. Adoro música. Muitas vezes acho que ninguém me compreende e que as
pessoas escutam coisas da minha boca que não são realmente o que quero que escutem. Talvez eu
seja muito exigente comigo mesma, talvez eu queira ser quase perfeita. Parece que ninguém se
importa realmente comigo. Não sei explicar direito. Gostaria que as pessoas falassem comigo, me
achassem legal e que perguntassem se estou bem, se estou viva ou não. Pode parecer normal, ser
apenas mais um problema natural da adolescência, mas me sinto diferente de todas que conheço.
Acho que nunca estou 100% feliz, por mais que eu aparente estar. Às vezes pareço ser um tanto
‘maluquinha’, mas acho que é para não demonstrar minha tristeza. Gosto de
rock
, especialmente
New Metal
e
Heavy Metal
. Não gosto de pagode e samba. Uma das minhas bandas preferidas é
Linking Park. Eles trabalham juntos para transmitir o que estão sentindo e pensando. Um dos
componentes da banda explicou que ‘Linking Park’ não significa e não está relacionado a nada, pois
desta maneira permite que o som que eles fazem defina o nome e não o contrário.
Sabrina tem 13 anos, mora na Lomba do Pinheiro e nasceu em Viamão. A mãe cursou
o Ensino Fundamental e o pai o Ensino Médio. Os pais são separados. Tem somente uma irmã
mais velha. A mãe trabalha em serviços gerais e o pai é serralheiro. A renda mensal da família
é de 2 a 5 salários mínimos.
Pela manhã Sabrina vai à escola. À tarde dorme um pouco e depois arruma a casa. Às
vezes conversa com as amigas. Durante a noite, em geral, fica em casa, de vez em quando vai
à casa de uma amiga que mora perto. Aos sábados à tarde sai com as amigas. Normalmente
250
vão ao Shopping Bourbon e, às vezes, ao Shopping Iguatemi. Nas noites de sábado não sai do
bairro, vai somente para a casa das amigas. Diz que não sai à noite, pois considera muito
perigoso sair nesse turno. No domingo, normalmente, sai do bairro. Vai ao cinema no
Shopping João Pessoa e na casa de uma tia em Gravataí.
Durante a semana, ela tem na casa seu principal espaço de convivência, mas no final
de semana gosta de sair do bairro, ir aos parques Marinha do Brasil
119
e Redenção e aos
shoppings da cidade com as amigas. Ao centro da cidade vai somente para fazer compras.
O estilo de musica que prefere é o rock e o new metal. Gosta somente de algumas
bandas do rock nacional e não gosta de punk rock. Explicou que punck e metalero não se
misturam. Lê revistas de música de rock e de metal. Acha que tem pagodeiro demais na
escola. Gostaria de formar uma banda e ser skatista. Acredita que a prefeitura poderia
construir uma pista de skate no bairro.
Declarou que não gosta da igreja católica e que antigamente ia à igreja por imposição
da mãe. No momento está estudando a “Wicca” que é uma religião que respeita a natureza e
cultua Deuses e Deusas.
Da escola disse não gostar muito, pois a acha monótona. O local de sua preferência
nesse espaço é o pátio. Considera fraco o ensino ministrado na escola. Pensa em fazer uma
faculdade no futuro, mas ainda não decidiu o curso. Sabrina tem poucas amigas no espaço
escolar. As colegas do grupo são algumas delas. Gosta de poucos professores. Acha que eles
gritam demais na sala de aula e que eles e os adultos em geral não entendem os jovens.
PEQUENO RETRATO FALADO III
Meu nome é Beatriz. Gosto de expressar minhas opiniões sobre as outras pessoas, por isso desde
os 6 anos tenho um diário onde escrevo todos os meus “pensamentos pessoais”. O que mais faço
quando estou em casa é escrever. Adoro ler e escrever letras de música de minha autoria
120
e as
que eu escuto. Gostaria de aprender a tocar violão, para colocar melodia nas minhas músicas.
Também gosto de escrever estórias sobre os meus colegas de aula e amigos. Eu acho que as
pessoas me acham muito “certinha” e não gosto nada disso! Gosto muito de ouvir os problemas dos
119
O Parque Marinha do Brasil foi criado em 1967. Tem 74,0 hectares com uma infra-estrutura que possibilita a
prática dos mais variados esportes, com vestuário e chuveiros. Tem pista de skate, patins, ciclismo e atletismo.
120
No Anexo H podemos ver a letra de uma música de Beatriz.
251
outros, assim lembro que além de mim existem outras adolescentes com problemas de não ter
quem entenda o que se passa com a gente nessa fase. Eu tenho medo que no segundo grau não
tenha uma professora para me ensinar o que eu não conseguir aprender, mas de uma coisa eu
tenho certeza, nunca vou parar de estudar. Se hoje eu conseguisse um emprego eu ficaria feliz,
pois é bom ter o próprio dinheiro e poder comprar as coisas que a gente precisa. Tem pessoas que
dizem que adolescente é tudo igual, de certo modo é, mas por outro lado a gente é muito
complicado. Eu digo isso pensando nas meninas, nessa fase acontecem muitas mudanças em nós. Já
para os meninos a adolescência é um momento de diversão. Isto é o que eu acho. Posso estar
enganada.
Beatriz tem 13 anos, mora na Lomba do Pinheiro e nasceu em Porto Alegre. Os pais
cursaram o Ensino Fundamental. Tem três irmãos. A mãe é empregada doméstica. O pai
trabalhou em vários lugares, já foi zelador, segurança e pedreiro. A renda mensal da família é
de 1 salário mínimo.
A rotina de Beatriz não é muito diferente das suas colegas e da maioria das meninas
entrevistadas. Ficar em casa, cuidar dos irmãos, realizar as tarefas domésticas, e ver televisão
são atividades que ela realiza no cotidiano. Pela manhã vai à escola. À tarde gosta de ver
novela mexicana. Cuida dos irmãos e da casa enquanto a mãe trabalha e, às vezes, depois das
tarefas domésticas dorme um pouco. À noite fica em casa e vê filmes na televisão.
Aos sábados passeia com os irmãos na pracinha perto de casa. No domingo, às vezes,
vai à igreja católica do bairro. Considera-se um pouco espírita e um pouco católica. À noite
vai visitar a avó que mora perto. Dentro da cidade gosta de circular pelo Shopping Total e
Shopping Praia de Belas. Às vezes visita os parentes que moram no Morro Santa Tereza, em
Porto Alegre, e alguns que moram em Viamão.
Disse ocupar grande parte do seu tempo escrevendo estórias no diário, escutando
música, pensando e estudando. Contou que a mãe exige que ela faça as tarefas domésticas e
que repete sempre as mesmas cobranças: “Ela sempre pede: ‘Beatriz vai arrumar a cama, varre a
casa pra mim. Você vai ter que aprender a fazer comida’. Daí começa aquela história: ’na minha
época as crianças ajudavam as mães nos afazeres domésticos’, mas ninguém é igual, cada um pensa
e age de um jeito, né”?
Beatriz gosta de ler revistas direcionadas ao público jovem, como Atrevida, Capricho
e Toda Teen. Tipo de música de sua preferência é o rock e não gosta de funk. Adora o
252
Eminem. Suas bandas preferidas são: Avril Laving, Evanescence, Red Hot Chili Peppers e,
em especial, a Linking Park. Gosta de Pop Rock e de Hip Hop. Disse gostar do Evanescence.
Contou que o vocalista escreve letras que ajudam a ele mesmo e a seus fãs, pois tratam de
problemas do cotidiano. Declarou não ter preconceito contra os pagodeiros.
O local preferido de Beatriz na escola é o lado de fora, na frente do prédio. Disse que
não gosta muito da escola porque ela é pouco atraente e interessante para os jovens. Considera
o ensino bom. Gosta de alguns professores. Confessou que ela e as gurias do grupo colocam
apelidos nos professores. Percebe também que há algumas divisões na escola, que acabam
formando grupinhos no espaço escolar, principalmente entre as meninas. Nas suas
observações constatou que existem 5 tipos diferentes de meninas e as “definiu”, já que este é
um dos seus passatempos preferidos, escrever sobre seus amigos, professores e colegas
quando está em casa:
As Patricinhas. São aquelas meninas exibidas, todo dia vestem uma roupa diferente, e vivem
jogando na cara ‘eu tenho e tu não’.
A Fofoqueira: É Aquela menina que adora fazer intriga e faz fofoca do colégio inteiro.
A Saidinha: É a menina que espera ansiosamente a idade de começar a namorar e vive de frescura
com os meninos.
A Interessada/Estudiosa: É aquela que presta atenção nas aulas, ajuda os colegas quando não
entendem a matéria, empresta o material e ajuda sua mãe nos afazeres de casa.
A Conversadeira: Conversa a aula inteira, mas quando a professora pergunta alguma coisa a
respeito da aula ela sabe tudo e conhece todos na escola.
Beatriz, em uma de nossas conversas, disse que
“a adolescência é uma fase da vida onde
a pessoa pensa no que é e no que quer ser”
e que ela pensava muito na sua vida atual e projetava
vários planos para o futuro. Contou que participou de uma peça de teatro no outro colégio em
que estudava e que gostou muito da experiência. Participou, também, de um coral e disse que
gostaria de fazer aulas de música para contribuir mais e melhor na formação da banda que
pretende montar com as outras meninas.
Seus planos para o futuro é poder trabalhar para, quando for maior de idade, alugar um
apartamento e morar com uma prima que é sua melhor amiga. Comentou que ficaria feliz se já
pudesse trabalhar e assim ter o seu próprio dinheiro para poder comprar objetos e roupas de
que precisa. Pretende fazer uma Faculdade de Teatro ou alguma atividade relacionada à
música. Acredita que o teatro a ajudará a se tornar mais desinibida.
253
PEQUENO RETRATO FALADO IV
Oi meu nome é Camila. Eu devo muito do carinho que tenho a minha tia e a minha avó materna. A
minha vida emocional até que tem melhorado do finalzinho do ano passado pra cá. Eu comecei a
o me importar mais se as pessoas gostam ou não de como eu sou. Eu mudei muito o meu jeito de
ser, de me vestir e gostei tanto desse novo jeito que agora eu não mudaria mais. Amo ler, ouvir
música, cantar e escrever letras de músicas. Não penso muito em ter um namorado agora, nem
casar e ter filhos. Eu tenho uns três amigos que eu já
fiquei
, mas eu primeiro
fiquei
com eles e
depois virei amiga. Não acho que tenha “
ficado
” muito. A única coisa em que penso é realizar os
meus sonhos. Um deles é arranjar um emprego e não depender do dinheiro dos meus pais. Eu
gostaria de ter uma mãe companheira e um pouco mais liberal. Os adultos querem que a gente se
espelhe neles, mas só mostram o lado ruim de cada um. Bom, vou falar do meu segundo sonho, que
é ser cantora. Minha banda já tem nome (Krap Niknil) e as letras de músicas também, mas é só
isso por enquanto. Na vida profissional, eu tenho jeito para muitas coisas e por isso não vou parar
de estudar até fazer todas as faculdades que desejo. Quero fazer faculdade de teatro e de
música. Quero fazer cursos de italiano, de moda e gráfica. Eu tenho jeito pra desenhar roupas
121
,
eu acho!.
Camila tem 14 anos, mora na Lomba do Pinheiro e nasceu em Porto Alegre. O pai
trabalha em uma empresa e a mãe é dona de casa. Tem três irmãos. A mãe cursou o Ensino
Fundamental e o pai o Ensino Médio. A renda mensal da família é de 1 salário mínimo.
Nas entrevistas, Camila falou várias vezes do prazer que tinha em caminhar e passear
pelas ruas, próximas a sua casa, sozinha ou com amigas. Entretanto, quando não está na rua, o
seu quarto é seu espaço preferido. No quarto ela aproveita para escrever, ler e desenhar.
Contou que, quando está em casa, não realiza tarefas domésticas, comum no cotidiano da
maioria das meninas, porque a mãe não cobra essas atividades dos irmãos homens e assim não
exige dela também.
Pela manhã vai à escola. Disse que adora o espaço escolar porque tem oportunidade de
encontrar os amigos e se distrair dos problemas familiares. À tarde fica em casa vendo
televisão ou na rua passeando ou visita uma tia que mora perto. Quando pode passa as tardes
conversando com as amigas. À noite fica em casa. No final de semana, a rotina de Camila não
muda muito. Aos sábados, em geral, fica em casa ou vai para a casa da tia. No domingo vai
para a casa da irmã na parada “B”.
121
No Anexo I podemos ver algumas músicas de Camila e alguns croquis de roupas para jovens desenhados por
ela.
254
Disse que gosta de ir ao Parque da Redenção, apesar de não ir com freqüência. Vai ao
centro da cidade somente para fazer compras. Atualmente, passa a maior parte do tempo no
bairro. Contou que quando era criança saía mais com a mãe. Segundo ela, quando os filhos se
tornam adolescentes, há um afastamento entre pais e filhos. Camila entende que os pais
somente lembram dos filhos quando esses fazem algo de errado.
Ela acredita que muitos adolescentes se trancam nos seus quartos por não terem com
quem conversar em casa. Para ela, a maioria das adolescentes faz do seu quarto a sua fortaleza
pessoal, um espelho de como elas gostariam que fossem suas vidas. Camila confessou que
gosta de ficar no seu quarto escrevendo, lendo e ouvindo músicas, mas sente-se muito feliz
em poder fugir para rua.
A rua é o meu melhor refúgio. Não falo da baderna da noite. Falo da rua
em si, do dia, onde posso andar por tudo sem ninguém ficar me vigiando,
mas quando estou em casa gosto de ficar no meu quarto escrevendo
qualquer bobagem e ouvindo música. Para mim, as duas melhores coisas da
vida são a música e a rua. Se eu pudesse juntar tudo isto seria o apogeu
da minha vida.
Em relação a música, sua preferência é pelo rock e não gosta de funk. Entretanto, gosta
de ouvir pop rock, pagode, rap e reggae. Contou que ela e as meninas do grupo estão
batalhando para formarem uma banda somente de meninas, o que não é fácil, pois o grupo
ainda não tem instrumentos próprios e nem quem possa emprestá-los.
Camila não tem uma pessoa como confidente, mas tem um diário onde escreve tudo o
que pensa e sente. Em se tratando do aspecto religioso, disse que já foi espírita e que naquele
momento não tinha uma religião, mas afirmou que acreditava em Deus.
Em relação à escola, disse que a considerava boa. Entretanto, acreditava que somente
10% dos professores são legais e que os maiores problemas que ocorrem em sala de aula é
porque eles “dão muita liberdade no começo do ano, depois cobram muito e acham que estão
sempre certos”.
Quanto ao ensino oferecido na escola, explicou que o considerava bom, mas
acreditava que poderia ser aproveitado melhor pelos alunos. O seu local preferido no espaço
escolar é o pátio. Em uma de nossas conversas, mesmo reconhecendo alguns problemas na
escola ela declarou:
“A única coisa que me deixa feliz é ir para a escola, porque lá eu sei que vou
rir e me divertir de verdade com meus amigos”.
255
Nos encontros com o grupo, em alguns momentos, as perguntas eram feitas
diretamente a alguma delas, e, em outros, elas ficavam livres para responderem. Lançar um
assunto e deixar que o diálogo acontecesse também foi um método usado. Nesses momentos
conversávamos sobre música, escola, trabalho, lazer, família e sobre o que elas sonhavam
para as suas vidas naquele momento e sobre a banda que elas pensavam em organizar no
futuro.
Assim, para conhecermos um pouco da dinâmica dos diálogos, vou transcrever apenas
dois que considero esclarecedores para entendermos o que foi que as uniu para que
conseguissem formar um grupo, considerando que cada uma tem uma personalidade ímpar,
gostos e crenças diferentes. Entretanto, em todo o tempo que estivemos juntas, percebi que a
escola e a música são os eixos fundamentais que sustentam a relação de amizade e
companheirismo que elas conseguiram estabelecer, bem como os espaços por onde transitam
e as práticas sociais cotidianas que desenvolvem.
A ESCOLA
Beatriz: Não é bom estudar, mas tem que servir para alguma coisa né? Eu preciso estudar pra
conseguir um emprego.
Camila: Hoje, todo mundo tem que ter 2º grau.
Marina: É bom estudar, porque talvez com o estudo a gente tenha um futuro melhor.
Beatriz: O bom é trabalhar pra poder comprar as minhas coisas, pois enquanto eu to lá na minha
casa eu dependo dos meus pais.
Marina: É que a partir do trabalho as pessoas amadurecem, viram independentes. Enquanto a
genteo trabalha, tem que pedir tudo para os pais e eles dizem: ‘Ah! Um dia. Talvez amanhã’. Aí
com o dinheiro da gente é bem mais fácil, a gente recebe, vai lá e gasta tudo (risos). Pode ser
roupa, revista, sapato, cartão de celular, maquiagem, CD, material para a escola.
Camila: Mas a gente vem para a escola também para conhecer gente, ter amigos, pra aprender a
conviver e não ser tão egoísta.
Sabrina. Pra isso não precisa ir à escola.
Camila: Precisa porque quando eu souber alguma coisa eu posso dividir e quando eu não souber
terei que perguntar para outra pessoa também.
Sabrina: Eu acho que é pra saber o que acontece no mundo. Entender melhor o teu pai e a tua mãe
e como eles olharam o mundo. Sei lá (risos).
Na fala das jovens, percebemos o quanto a escola ainda é importante para a realização
de muitos de seus sonhos e um espaço de várias aprendizagens. Mesmo que elas tenham
restrições a esse espaço, entendem que a escola interfere de maneira positiva no cotidiano de
cada uma delas e o quanto ela pode colaborar na realização de seus projetos futuros. Nas suas
falas, percebemos que elas não vão à escola somente para aprender a ler, escrever, saber sobre
256
história, geografia ou matemática, sem desmerecer nenhum aprendizado, mas, para elas, a
escola, é também um espaço lúdico, de convivência respeitosa, de troca de saberes, e uma
porta de acesso para outros espaços e outras práticas sociais.
A MÚSICA
Sabrina: Em toda a minha vida útil (risos), eu nunca vi um grupo inteiro só de meninas. Tem
sempre um vocalista, um baterista, ou um baixista, entendeu? Mas todas meninas, eu não conheço,
não de
rock.
Camila: A gente quer fazer uma banda só de gurias.
Marina: Nesse lado os guris são mais unidos, mais organizados.
Pesquisadora: A banda terá um estilo ou uma filosofia própria?
Camila: A gente vai falar do que gosta, do que não gosta, do que é bom e do que não é. É mais
sobre o dia-a-dia. Ao invés de fazer diário, a gente faz música sobre o que a gente tá pensando. A
banda vai ser p
op rock
. Eu sempre gostei do estilo de roqueira, né, só que, eu não sou totalmente
roqueira porque eu escuto pagode,
pop rock
, tudo, só não gosto de rancheira (risos). Quando eu
comecei mesmo, eu era fanática, pra falar comigo só se a pessoa vestisse preto. Até que foi legal
porque um monte de gente começou a se vestir de preto também.
Marina: Eu não tenho preocupação com estilo. O que importa é a mente.
Nesse diálogo e no convívio com as meninas, identifiquei um grupo que não está
preocupado em que todos os seus componentes pensem iguais, vistam-se iguais ou tenham
temperamentos semelhantes. Isso foi percebido em relação às roupas que cada uma usava, na
maneira diferente de cada uma pensar, nos espaços em que circulam e nas práticas sociais que
cada uma delas desenvolve no cotidiano. Através das suas falas, foi possível observar que elas
têm temperamentos diferentes, vestem-se conforme gostos e estilos próprios e vivem
situações familiares diversas. Entretanto, o que as une é a música, principalmente, o rock, que
é o estilo musical que todas preferem. A pluralidade de estilos, práticas e preferências é que
dá o diferencial ao grupo.
Para complementar, concordo quando Dayrell (1999) diz que pertencer a um grupo
não significa necessariamente uma fidelidade cega de seus componentes a espaços e
interesses, podendo cada um deles transitar livremente por outros grupos e em outros espaços.
Assim a ligação que os une não estaria submetida a espaços ou a interesses únicos. Nesse
sentido, ele lembra que os “grupos virtuais” de amizade, formados através da Internet, são
exemplos de grupos que desenvolvem suas atividades sem a necessidade de um encontro
pessoal. Para Dayrell, os grupos juvenis podem ser pensados como espaços dinâmicos de
construção de identidade, balizados na experiência cotidiana.
257
Não nos sentimos ligados aos outros apenas pelo fato de existirem interesses
comuns, mas, sobretudo, porque esta é a condição para reconhecer o sentido
do que fazemos, podendo nos afirmar como sujeitos das nossas ações.
(DAYRELL, 1999, p. 34)
Nesse sentido, o grupo das meninas nos mostrou que a diferença de gostos e de
interesses não excluiu nem inferiorizou ninguém, pelo contrário, tornou o grupo mais forte.
Através da música, que é o eixo que as une, elas se uniram e estão tentando realizar um
sonho: formar uma banda. Segundo as suas falas, com o passar do tempo, o grupo se
fortaleceu através do respeito e da solidariedade que existe entre elas. O que pode ser
confirmado quando, no primeiro encontro, elas disseram que o grupo já tinha dois anos de
formação, mas que naquele momento estava mais forte e unido.
258
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com cada jovem que conversei, em cada espaço que com eles percorri durante todo o
tempo da pesquisa, um universo rico em palavras, gestos e práticas sociais juvenis
continuamente ia sendo descoberto. Jovens com os mais diversos sonhos, estilos, preferências,
exigências e medos estão presentes nesta tese.
São jovens que ocupam os mais variados espaços na cidade. Eles podem ser
encontrados na escola, nas ruas do bairro, nas oficinas dos centros comunitários, nos ônibus,
nos parques, nos becos, na frente das casas, nos seus quartos, nas igrejas e nos mais diversos
espaços em que conseguem transitar. Eles aparecem e desaparecem na complexa rede que
constitui a cidade. Alguns são mais visíveis, circulam com mais facilidade, e outros
encontram empecilhos e interdições, mas todos procuram um espaço de reconhecimento em
uma sociedade que tenta ignorá-los, sem uma política pública clara e metas definidas no
sentido de proteger essa população e de inseri-los em espaços ainda fechados a eles.
Conhecer os espaços nos quais os jovens da pesquisa circulam e as práticas sociais
cotidianas desenvolvidas por eles nesses espaços nos reportou às relações macro e
microssocial que eles estabelecem na cidade. Segundo Vulbeau (2002), as reflexões que
articulam os níveis macrossocial e microssocial pertencem a duas escalas diferentes: uma da
ordem do social e outra da ordem das interações. No que se refere à ordem do social,
encontramos as instituições formais com suas normas e seu caráter mais global de perceber os
sinais que essa população emite. E a outra, da ordem das interações, as reflexões se voltam
para as práticas sociais cotidianas desenvolvidas pelos jovens nos mais diversos espaços, tanto
públicos quanto privados, nas dimensões da urbanidade.
Vulbeau (2002) lembra ainda que a juventude está ligada a duas idéias recorrentes na
sociedade contemporânea. A juventude como ameaça ou a idéia de uma juventude fonte de
esperanças e possibilidades. Imagens ligadas a duas figuras polarizadas. De uma parte uma
juventude incompetente, sobre a qual é necessário exercer uma tutela permanente. De outra, a
juventude competente que é vista como apta à civilidade e à cidadania. Os discursos correntes
sobre os jovens nos diversos setores da sociedade parecem apontar para uma leitura dos
259
jovens conforme essas duas figuras, gerando, em muitos casos, estigmas e discriminações. O
que pode vir a determinar que para uma parcela da juventude devam ser direcionadas as
políticas e para outra as polícias públicas.
Vulbeau (2002) explica que as políticas direcionadas à juventude apresentam dois
paradigmas propondo representações opostas. De um lado, temos a juventude próxima à
infância, frágil fisicamente, imatura mentalmente e incapaz juridicamente. Nesse caso, a
relação social é fundada sobre uma aura de irresponsabilidade, e os jovens aparecem como
uma classe de idade que precisa de proteção contra os outros e contra eles mesmos. O outro
paradigma está baseado na proximidade da juventude com a idade adulta, apostando na sua
capacidade de cidadania e promovendo uma relação social na qual a participação é o princípio
ativo. O autor lembra ainda que esses dois paradigmas não têm a mesma historicidade, nem o
mesmo peso institucional, pois a maioria das políticas tende mais para o paradigma da
proteção do que daquele da participação.
Boucher (2001) lembra que os jovens estudantes da periferia, face à violência na
escola, ao fracasso escolar e a alguns atos de incivilidade, são vistos, por muitos, como
desordeiros e desinteressados, nascendo assim o medo ao olhar os jovens das classes
populares, constituindo no imaginário da classe burguesa uma nova “classe perigosa”. O autor
lembra ainda que este olhar negativo em direção a esta “outra” juventude proveniente dos
bairros populares é reflexo de uma sociedade atravessada por relações de dominação e de
exclusão. Imagens fantasma de uma juventude imprevisível, violenta e descontrolada.
Dubéchot & Le Quéau (2001) explicam que, longe de ser vazio, o período atual da
juventude pode ser rico em experimentação no qual os jovens conseguem desenvolver
competências e estratégias de inserção, mesmo quando não reconhecidos pelos espaços mais
institucionalizados, permitindo a eles lutarem pelo seu lugar na sociedade.
Bier (2001) esclarece que, ao mesmo tempo em que os jovens são atores de
incivilidades e de violência, são também as primeiras vítimas, e alerta quando diz que
devemos pensar a cidadania para os jovens não porque lhes falta disciplina ou porque se
comportam mal, mas porque eles têm direito.
260
Na cidade de Porto Alegre e no Brasil (SPOSITO & CARRANO, 2003), ainda não
temos uma definição clara sobre as políticas públicas destinadas à juventude. As redes de
proteção aos jovens são fracas e as iniciativas existentes são descontínuas. Contudo, mesmo
em condições precárias, os jovens encontram meios de expressarem a sua indignação através
da sua cultura, dos seus grupos de estilo e nas marcas deixadas nos muros ou no próprio
corpo. A partir das suas práticas sociais, expressas através da música, do esporte, da escrita,
da religião ou do desenho, eles encontram uma via possível para mostrarem à sociedade quem
são e o que pensam, já que outros caminhos mais institucionalizados não lhes dão voz, nem
vez.
Na convivência com os jovens, uma multiplicidade de práticas sociais, de espaços e de
comportamentos juvenis era continuamente apresentada. A cada diálogo, eles falavam um
pouco mais sobre a sua vida particular, as relações que eles estabeleciam em casa, na escola e
na rua e sobre as suas práticas sociais desenvolvidas nos diferentes espaços da cidade.
São jovens que vivem na mesma cidade, em bairros próximos, mas que nem por isso
pensam da mesma maneira ou lutam pelos mesmos ideais. No universo estudado, foi possível
perceber que, entre amigos, vizinhos e colegas da mesma classe, existem jovens com,
atitudes, preferências e pensamentos completamente diversos. Carrano (2003), nas suas
pesquisas com jovens na cidade de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, já trazia essa realidade
à tona:
Torna-se impossível realizar o inventário das condições sociais de existência
em diferentes contextos sociais, e estabelecer um mínimo denominador
comum para caracterizar uma possível cultura da juventude. Num mesmo
ambiente, em uma mesma festa de família, se pode encontrar o jovem punk e
o executivo; o ateu e o religioso; o sério e o cínico; o que não fala com os
pais e aquele que, ao contrário, estabelece com eles uma relação intensa; o
que adora o estudo ou a escola e o que considera o esforço intelectual ou a
vida escolar um aborrecimento ou perda de tempo. (
CARRANO, 2003, p.
133)
No decorrer da pesquisa, os espaços da casa, da escola e da rua foram lentamente
fazendo parte do cenário. Eles falaram da importância do espaço familiar, do apoio não só dos
pais, mas dos tios e avós no cotidiano deles. Falaram do espaço da casa como lugar de
segurança, intimidade e de lazer também. Muitos citaram a sua própria casa e a casa de
amigos e familiares como espaço de encontro, festa e alegria. O churrasco de domingo, a
261
conversa na casa de uma amiga, as visitas às madrinhas, tias e avós foram freqüentes. Nesse
contexto, percebe-se que, cada vez mais, a sociabilidade juvenil é vivida na própria casa e na
casa de parentes e amigos. O lazer público assim vai dando lugar ao lazer privado.
No caso das meninas, considerando que muitos espaços e horários são limitados, a
casa e o quarto são fundamentais para que elas desenvolvam muitas das suas práticas sociais.
O que não as deixa menos criativas ou desligadas do mundo que as cerca. Nos seus quartos,
elas escrevem diários, cartas, poesias e letras de músicas, lêem livros e revistas, desenham e
projetam sonhos.
A companhia dos amigos, para um bate-papo na frente da casa, para um passeio nas
ruas do bairro, para uma roda de violão atrás da igreja, para uma conversa na biblioteca, para
organização de um retiro espiritual, para um jogo de futebol no campinho próximo de casa,
para a montagem de uma banda, para um encontro em alguma esquina ou nos parques da
cidade, é fundamental para eles. São momentos de alegria, de troca de saberes, de namoro, de
ficar, de descobrir músicas e cantores novos, de conhecer grupos de estilos diferentes, de
aprender gírias que estão sendo ditas em outros bairros ou em outras cidades. Para alguns,
parece que esses momentos substituem, em menor ou maior grau, a impossibilidade de irem a
uma discoteca da “moda”, a um show do cantor ou da banda preferida, a um cinema no
shopping, o que, na maioria das vezes, são espaços de difícil acesso a eles devido ao alto
preço dos ingressos.
Os amigos podem ser de fora do bairro ou do entorno. Podem ser aqueles conhecidos
há muitos anos ou os mais atuais, conquistados pelo celular, até que o cartão tenha créditos ou
pelo telefone de casa, até que a mãe descubra e proíba os próximos contatos. Nada importa,
quanto mais amigos forem feitos melhor. Eles podem estar na sala de aula, no pátio da escola,
na biblioteca, nas aulas de dança, nas saídas mais cedo da escola, nas escapadelas para um
passeio não permitido, nos portões das casas ou nos becos e esquinas. Em todos os momentos
há um amigo que está próximo, mesmo que seja em pensamento.
Em se tratando dos espaços percorridos fora do bairro, os parques foram os espaços
mais citados na fala dos jovens. Além do prazer de estar ao ar livre, só ou com amigos, são
espaços onde a natureza parece ter o poder de os acalmar e onde eles não precisam pagar
ingresso para divertirem-se. São espaços que abarcam um contingente enorme de pessoas,
262
oriundas dos mais diversos lugares e classes sociais e que acolhem diferentes grupos juvenis.
Nas falas, principalmente, de Erick, Fernando e Gustavo, as ruas, as esquinas, os parques, o
campo de futebol são espaços fundamentais e definidores de suas práticas sociais. Cada um
deles aproveita esses espaços conforme as suas preferências e a de seus pares.
Entretanto, alguns problemas sociais e econômicos enfrentados pelos jovens são a base
da interdição e do cerceamento de espaços e práticas sociais cotidianas. Muitos deles
vivenciam situações que dificultam o trânsito pelos mais diversos espaços da cidade. A falta
de dinheiro para a passagem, a discriminação que sentem em determinados lugares e a
dificuldade de interlocução com outros jovens de outros bairros e de outras classes sociais
contribuem para que permaneçam boa parte do tempo nas suas comunidades. No caso das
meninas, a dificuldade de circular pela cidade ficou mais evidente nas suas falas. Muitas saem
do bairro somente com os familiares. Nos finais de semana, a maioria delas visita amigos
próximos ou parentes e, algumas, passeiam nos parques da cidade ou vão para algum
shopping center.
Em se tratando do espaço escolar, os jovens acreditam que, por um lado, esse é o
espaço de aprender a falar bem, de saber o que está acontecendo no mundo, de dividir o que
aprendem com os outros, de entender melhor o que as pessoas dizem e de preparação para
entrar na competição por um emprego no mercado de trabalho, mesmo sabendo que a escola é
insuficiente para tal tarefa. Por outro, é o local de encontrar os amigos, de ocupar o tempo
livre, de participar de oficinas, de ficar, de conhecer pessoas novas, de jogar futebol e de
organizar festas e torneios.
No caso da Raquel, a escola possibilitou que ela ocupasse espaços fora dos muros da
instituição e fora da comunidade. Grande parte das suas atividades e dos espaços que percorre
diariamente está relacionada ao espaço escolar. A escola é o eixo central ao qual estão ligadas
muitas das suas práticas sociais e os espaços transitados por ela na cidade. Através de suas
atitudes e práticas cotidianas ela tem procurado se reconhecer e ser reconhecida como uma
jovem de direitos e deveres e com possibilidades concretas de intervenção no cotidiano da
escola, da comunidade e da cidade.
De forma simples, mas determinada, Raquel mostra o poder que a escola tem de
intervenção na vida dos seus alunos e da comunidade. A escola é o espaço do poder público
263
mais visível e de maior diálogo com a comunidade. As experiências vividas por ela mostram
o potencial que a escola tem e tudo o que ela pode proporcionar aos jovens, e o quanto eles
podem ganhar em experiências, trocas afetivas e de saberes, a partir de ações que a escola
viabiliza na interação com outros espaços, e mais, a importância de a escola conscientizar-se
de todo esse potencial. Para Raquel, a escola não é só um escutar, obedecer e repetir. Para ela,
a escola é um espaço sociocultural de aprendizagem contínua.
No caso do Eduardo, além de declarar que gosta de estar no espaço escolar, ele
encontra ali apoio para a realização de um grande sonho. Eduardo quer ser músico e há muitos
anos estuda música na Oficina de Música da escola, contribuindo para que a ligação com esse
espaço se fortaleça a cada dia.
Para as meninas do grupo, a escola é o local do encontro. Reúnem-se, diariamente, na
sala de aula, no pátio e, quando podem, fora do horário escolar, na biblioteca. Ir para a escola
todos os dias possibilita que elas façam amizades, conversem, saiam de casa, discutam sobre
música e tudo que cerca o universo juvenil, principalmente o feminino.
Para Luana, a escola é fundamental para a realização de seus sonhos futuros, além de
ser o lugar de encontrar os amigos, de se divertir, de ir à biblioteca buscar os livros que tanto
gosta de ler e de se “livrar”, por algumas horas, das atividades domésticas. O espaço escolar
para essa jovem é também um espaço de luta por reconhecimento e respeito. Luana tem um
estilo próprio que alguns colegas não entendem. Entretanto, ela se impõe com coragem
enfrentando preconceitos e discriminações no espaço escolar.
Para Bier (2001), os jovens precisam de um espaço público que os legitime e os
socialize, e a escola poderia ser este espaço, ponto de articulação entre o local e o central,
onde um projeto de cidadania poderia ser desenvolvido, no qual os jovens não seriam
pensados somente como objetos da educação, mas sim como sujeitos participativos. A escola
é o local da educação na cidade e, nesse sentido, o seu valor como instituição democrática e
formadora.
Dubet (1991) alerta que a educação escolar não pode ser reduzida a uma lógica de
adaptação, mas que deve proporcionar aos alunos a possibilidade de interferência no seu
processo educativo, a partir de suas próprias referências e não simplesmente aceitando um
264
papel que lhes atribuam e a interesses que lhes definam como melhores. Para o autor, um
caminho seria desenvolver uma consciência política nos jovens e novas práticas sociais junto
com eles. Novas formas institucionalizadas de participação, baseadas no diálogo, e
reveladoras de uma preocupação com a juventude local, conforme as necessidades da escola e
da comunidade em que vivem.
Nos diálogos foi possível perceber que a escola é um espaço de múltiplas
significações. Os jovens a percebem e a vivenciam de forma diferenciada. A preferência pelo
pátio e por outros espaços fora da sala de aula teve um destaque significativo e serve de
reflexão para professores e todos aqueles que se propõem a estudar a relação dos jovens com
a escola.
Nessa pesquisa, os jovens disseram preferir o pátio e os espaços, aqui chamados de
arruados, como os corredores, a frente do prédio, as canchas, as escadas, entre outros. Nesses
espaços, os jovens interagem com outros colegas, conversam, trocam informações, convivem
com situações que os desafiam, se auto-reconhecem e são reconhecidos pelos outros e
sentem-se livres para aprender com seus pares. Em contraposição a essa interação e
movimento, as atividades desenvolvidas em sala de aula, ficaram relegadas a um segundo
plano.
Os jovens praticamente não falaram sobre o que acontece em sala de aula, não
fizeram observações sobre o currículo, sobre o conhecimento transmitido pelos seus
professores e sobre as atividades intelectuais desenvolvidas ali. Segundo as suas falas, esse
espaço pareceu ser um local de regras, horários e de conhecimentos que servem, no presente,
para aprender a falar bem, saber conduzir-se em determinados lugares e, no futuro,
necessários para a colocação no mercado de trabalho e para a realização de alguns sonhos.
Para Charlot (2000), os jovens, em geral, acreditam que a escola seja um lugar de
normas, de horários e do cumprimento de deveres. Eles cumprem um ritual, vão à escola,
fazem os deveres, ouvem o professor e vão embora. Para a maioria deles, aprender na escola é
diferente de aprender na vida. Na escola se aprende a escutar e a repetir, e na vida é preciso
observar e refletir para sobreviver e superar as dificuldades do dia-a-dia.
265
Charlot (2000) também alerta para a necessidade de construir, aos poucos, uma
pedagogia que contemple atividades intelectuais que despertem no jovem o desejo de
apropriar-se de um saber que está fora dele, que está na humanidade, propiciando um
ambiente escolar onde se estabeleçam novas relações com o saber e com a escola, onde o
sentido e o prazer de aprender sejam a norma e não a exceção.
Para o autor, o aluno é um ser social que é jogado em um mundo do qual ele deverá
apropriar-se e no qual estará sempre se confrontando com a questão do saber. Residindo aí a
importância de se entender a relação que o aluno estabelece com o saber, pois essa relação,
embora sendo de um sujeito, não deixa de ser uma relação social. Nesse sentido, não há
relação com o saber senão de um sujeito e não existe sujeito senão em um mundo e na relação
com o outro.
Charlot (2000) explica ainda que toda a relação com o saber comporta uma dimensão
de identidade, ligada à história de um sujeito, seus desejos, medos, seu estilo de vida, sua
relação com os outros, a imagem que tem de si e aquela que ele deseja ter. Para o autor, o
sujeito do saber se dedica à busca do saber. Apropriar-se deste saber é entrar em um certo
domínio do mundo, em uma atividade. Atividade essa que supõe e sugere uma certa relação
com a linguagem, com o espaço e com o tempo.
Para Charlot (2000) o espaço do aprendizado é um espaço de significados e de valores
que constrói a singularidade do sujeito. Assim, a escola deverá perceber que o aluno é um
sujeito que tem uma história, construída nos diversos espaços da sociedade e que precisa ser
reconhecida no espaço escolar para que a interação entre aluno e professor aconteça.
Nos encontros com os jovens, eles falaram sobre a dificuldade de diálogo com os
professores na escola, e, também, com outros adultos, em outros espaços. Comentaram que
conversam pouco com os professores, em geral, os diálogos são sobre conteúdos escolares ou
assuntos relacionados ao espaço escolar. Em casa, alguns deles conseguiram estabelecer um
diálogo franco e aberto com os pais ou com algum familiar e falaram sobre a importância
dessa conquista.
Raquel, por exemplo, conseguiu manter um diálogo com o mundo adulto em alguns
espaços. Na Oficina de Rádio Comunitária com o monitor, na escola com os professores e
266
direção e com a psicóloga no Centro Comunitário. Ela chegou a dizer que os jovens precisam
dos adultos, mas daqueles que sabem ouvir e conversar com calma.
Fernando, em casa, conseguiu estabelecer um bom diálogo com os pais. O jovem
chegou a declarar em uma de nossas conversas que ser jovem para ele não era difícil, pois
tinha mãe e pai sempre presentes. Marina contou que fica mais tranqüila e confiante quando
conversa com a mãe, no fim da tarde, quando esta chega do emprego. Eduardo, ao falar da
admiração pela professora da Oficina de Música e pelo pai, que também é músico, reafirma a
importância do adulto na vida dos jovens.
No caso de Luana, ela reconhece que pode conversar sobre vários assuntos com a mãe
e que ela é bem clara nas respostas e acessível a qualquer pergunta, mas, por outro lado, a
proíbe de ir a vários lugares que ela gostaria de circular e nesse ponto não há diálogo. Erick,
pelo fato de ser roqueiro assumido, declarou que muitos adultos não o entendem e o
discriminam. Sabrina, Beatriz e Camila sentem uma certa dificuldade de conversar com os
pais, procurando em amigas, primas e tias a atenção que querem do mundo adulto. Sabrina
chegou a dizer que ninguém entende os jovens e que é por esse motivo que muitos deles se
reúnem em bando. No caso de Marta, ela encontrou na igreja a interlocução com o mundo
adulto que não conseguiu em outros espaços.
No convívio com os jovens, foi possível perceber que eles querem falar conforme o
seu tempo, as suas convicções e sobre temas que lhes digam respeito. Querem falar sobre
namoro, liberdade, emprego, festas, drogas, sexo, mas sem repressões e olhares de espanto já
nas primeiras palavras. Esperam que, no diálogo com o mundo adulto, a opinião deles seja
respeitada e que possam usar gírias e expressões próprias da sua época.
Para tanto, os jovens esperam que os adultos adotem uma postura aberta e acolhedora,
pois se perceberem preconceitos, discriminações e críticas a todo o tempo, o diálogo não
acontecerá. Nesse sentido, Vulbeau (2002) alerta que os jovens precisam ser reconhecidos e
ouvidos, para que possam se engajar socialmente, para que saibam claramente o seu papel na
sociedade e se o que fazem tem algum valor. Sem essas referências internas e externas, os
jovens sentem-se perdidos. Vulbeau ainda acrescenta que a ausência de políticas públicas
eficientes e a falta de interesse dos governantes, frente à questão juvenil, reforça sentimentos
negativos, e a crise de autoridade aparece. Para o autor, sendo percebidos pela sociedade
267
como objetos de sedução e de repulsão, os jovens não sabem mais em quem confiar e, se eles
não têm em quem confiar, não têm a quem respeitar.
Conhecer o cotidiano dos jovens que participaram desta pesquisa, os espaços que
percorrem e suas práticas sociais cotidianas nos oportunizou conhecer uma parcela dos jovens
das classes populares que habita esta cidade. Foi possível, através das suas falas, sabermos
como vivem em casa, como percebem a escola, quais os espaços e as práticas sociais que
desenvolvem nos mais diversos espaços da cidade. Do que gostam, do que não gostam, seus
cantores preferidos, o que pensam do bairro onde vivem, seus sonhos, medos, reivindicações e
as discriminações que sofrem em casa, na escola e na rua. Como percebem o presente e o que
sonham para a o futuro.
São jovens que moram na periferia da cidade de Porto Alegre, estudantes de três
escolas públicas, que, com seu carinho, generosidade e muita vontade de serem ouvidos e de
participarem de algo que eles mesmos diziam freqüentemente “tomara que tudo o que eu lhe
diga professora lhe ajude no seu trabalho e a nós também”,
nos apresentaram um cenário social
e geográfico, recheado de alegrias, medos, criatividade, angústias, sabedoria, cultura e muita
vontade de aprender.
Nos diálogos, eles mostraram que a cultura escolar é mais uma cultura entre tantas
outras, e que as práticas não-escolares desenvolvidas por eles no cotidiano são também
práticas que interferem no seu processo educativo.
Na escrita dessa tese, espero ter conseguido, a partir do convívio com os jovens das
três escolas, dar um pouco de visibilidade a essa população juvenil e ter oportunizado a eles
um espaço, mesmo que pequeno, para que pudessem reivindicar direitos, fazer perguntas,
reclamar de situações que acreditam serem injustas e dar sugestões para melhorar a vida deles
na família, na escola e nos mais diversos espaços da cidade.
Nas suas falas, eles mostraram que, mesmo com todas as dificuldades familiares,
econômicas e sociais que permeiam as suas vidas, acreditam no futuro e na possibilidade de
realizarem os seus sonhos mais caros. São jovens com histórias de vida bonitas que procuram,
através de suas práticas sociais cotidianas, ser reconhecidos como sujeitos de direitos e
268
deveres e capazes de contribuir na construção de uma cidade mais justa e igualitária para
todos.
Aprendi muito a cada instante que desenvolvi esse estudo. Nas conversas com os
jovens, nos lugares que conheci através deles, com seus estilos de vida, com as músicas de
que gostavam, com as suas gírias, com as pessoas que foram fazendo parte da pesquisa no
transcorrer do tempo e nos livros que li para entender um pouco mais sobre esse universo tão
complexo. Aprendi, também, com os freqüentes sorrisos, com alguns olhares de tristeza frente
a tantas dificuldades já vividas ou sentidas no presente e com o carinho deles jamais
esquecidos. Eles são jovens que precisam de outros jovens, de mais espaços, de oportunidades
imediatas, de acreditar nas instituições públicas e da confiança transmitida pelo olhar do
adulto.
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VULBEAU, Alain; BARREYRE, Jean Yves. La jeunesse et la rue. Paris: Desclée de
Brouwer, 1994.
277
WINKIN, Yves. A nova comunicação: da teoria ao trabalho de campo. Campinas: Papirus,
1998.
ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: As organizações populares e o significado da
pobreza. São Paulo: Brasiliense, 2000.
278
9 ANEXOS
279
ANEXO A
1 Números absolutos em relação a homicídios sofridos e cometidos por adolescentes no
Estado do Rio Grande do Sul, nos anos de 2000 a 2003
122
.
Homicídios 2000 2001 2002 2003
Adolescente
vitima
92 88 80 84
Adolescente
agressor
46 57 54 46
Fonte: Secretaria da Justiça e Segurança - Polícia Civil - Divisão de Planejamento e Coordenação - Serviço de Estatística
2 Números absolutos em relação a estupros sofridos e cometidos por adolescentes no
Estado do Rio Grande do Sul, nos anos de 200 a 2003.
Estupro 2000 2001 2002 2003
Adolescente
vitima
583 628 719 838
Adolescente
agressor
60 54 40 63
Fonte: Secretaria da Justiça e Segurança - Polícia Civil - Divisão de Planejamento e Coordenação - Serviço de Estatística
3 Números absolutos em relação a adolescentes apreendidos por porte e trafico de
entorpecentes no Estado do Rio Grande do Sul, nos anos de 2000 a 2003.
Adolescente
infrator
2000 2001 2002 2003
Posse 959 1013 942 830
Tráfico 120 104 108 134
Fonte: Secretaria da Justiça e Segurança - Polícia Civil - Divisão de Planejamento e Coordenação - Serviço de Estatística.
122
Os três gráficos aqui apresentados foram retirados do livro “Medidas sócio-educativas: da repressão à
educação; a experiência do Programa de Prestação de Serviços à Comunidade da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul” das autoras Carmem Maria Craidy e Liana Lemos Gonçalves publicado em 2005, p.69.
280
ANEXO B
MAPA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
Fonte: Listel, 2001
281
MAPA DA CIDADE DE PORTO ALEGRE
Quadrante 34 – 35 – Bairro Lomba do Pinheiro
Quadrante 21 – Bairro Partenon
Fonte: Listel, 2001
282
ANEXO C
Fanzine
283
284
ANEXO D
Questionário
OS JOVENS, A ESCOLA E A CIDADE
Nome: Sexo: 1- Fem.[ ] 2- Masc.[ ]
Idade: Turma: Data: Escola:
1-Ensino Fundamental [ ] 2- Ensino Médio [ ]
1) Qual é o bairro que você mora? É perto da escola?
2) Em qual cidade você nasceu?
3) Qual é a escolaridade de seus pais?
Mãe: 1-Ensino Fundamental [ ] 2-E.Médio [ ] 3-E.Superior [ ]
Pai: 1-Ensino Fundamental [ ] 2-E.Médio [ ] 3-E.Superior [ ]
4) Você trabalha atualmente? 1- Sim [ ] 2- Não [ ] Onde?.........................
5) Você sabe a Renda Mensal da sua família? S.M.(Salário Mínimo) = 260, 00 reais
1- 1 S.M. [ ] 2- 2 a 5 S.M. [ ] 3- 5 a 10 S.M [ ] 4- Mais de 10 S.M. [ ]
6) Com que freqüência você sai do seu bairro?
1- Todos os dias [ ] 2- 1 vez por semana [ ] 3- 2 a 5 vezes por semana [ ]
4- 1 vez por mês [ ] 5- 3 a 5 vezes por ano [ ] 6- Outra Opção:......................
7) Qual é o local que você transita pela cidade com maior freqüência?
1- Shopping [ ] 2- Igreja/Culto [ ] 3-Parques e Praças[ ] 4- Festas/Shows [ ]
5-Local de Trabalho [ ] 6- Casa de Parentes e Amigos [ ] 7- Outros:...............
8) Quantas vezes por semana você vai ao centro da cidade?
1-1 vez [ ] 2- 2 a 3 vezes [ ] 3- 4 a 6 vezes [ ] 4-Todos os dias [ ]
9) Você já viajou para fora da cidade, do estado ou país?_____ Onde?...........
10) Você gosta do seu bairro? 1- Sim [ ] 2- Não [ ]
11) Você acha que a escola deveria abrir nos finais de semana e nas férias para a comunidade?
Porquê? Dê sugestões de atividades a serem desenvolvidas.
12) Se você tivesse que convidar alguém para morar no seu bairro, o que apontaria como:
Vantagens:
285
Desvantagens:
13) Você sai do seu bairro com mais freqüência durante o (a)? 1-Dia [ ] 2-Noite [ ]
14) O que o seu bairro está precisando?
1- Campo de Futebol [ ] 2- Mais Limpeza [ ] 3- Ginásio ou Pistas de Esportes [ ]
4- Local para Festas [ ] 5- Mais Segurança [ ] 6-Outros:............................
15) Marque com um X as atividades que você realiza durante a semana além de ir à escola?
1- Cursos [ ] 2- Esportes [ ] 3- Afazeres Domésticos [ ] 4- Trabalho Fixo [ ]
5- Trabalho Temporário [ ] 6- Atividades na Igreja [ ] 7- Outras:....................
16) O que você mais gosta na escola?
1- Dos Colegas e Amigos [ ] 2- Dos Livros e Cadernos [ ] 3- Dos Professores [ ]
4- Da Alimentação [ ] 5- De Aprender [ ] 6- Outros:....................
17) Escolha uma palavra que possa representar a escola nos dias de hoje?
18) Você gosta da cidade de Porto Alegre? ____ . O que ela tem de melhor ou de negativo?
19) Qual é a maior dificuldade em transitar pelos vários espaços da cidade?
1- Valor da Passagem [ ] 2- Distância do Centro da Cidade [ ] 3- Discriminação [ ]
4- Não Conheço Ninguém Fora do Bairro[ ] 5- Falta de Companhia [ ] 6-Outras:............
20) Você faz parte de algum grupo que realiza atividades esportivas, sociais ou culturais? Onde?
21) O que você acha que tornaria melhor a vida dos jovens na cidade de Porto Alegre?
22) Escolha uma palavra que possa representar a cidade de Porto Alegre?
23) Qual é a maior dificuldade de ser jovem atualmente?
24) Escolha uma palavra que possa representar os jovens na atualidade?
25) Enumere, por ordem de preferência, os espaços que você mais gosta de estar:
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14
[ ] Ginásio de Esportes [ ] Centro da Cidade [ ] Escola [ ] Palco [ ] Rua [ ] Festas
[ ] Campo de Futebol [ ] Praças e Parques [ ] Trabalho [ ] Lar [ ] Meu Quarto
[ ] Casa de Amigos ou Parentes [ ] Shows Musicais/Bandas [ ] Igreja ou Centros Religiosos
*Você gostaria de participar de uma entrevista com a pesquisadora? 1- Sim [ ] 2- Não [ ]
*Caso o número de alunos que aceitarem fazer a entrevista seja muito elevado, haverá um
sorteio para a realização da mesma.
286
ANEXO E
Desenhos
287
288
289
ANEXO F
ProJovem
290
Lei
291
ANEXO G
Música de Eduardo
To cansado de ver o mundo desse jeito
O que fazer com tanto preconceito
Tenho pena dos irmãos que habitam a rua
Como dói o coração, me deixa a alma crua
O que todos devem ter para unir o mundo
É o amor (então haverá paz para todo mundo)
Se a solução é o amor você vai descobrir
Que de acordo com o Criador
Todos têm o seu valor
Todos têm o seu valor
Não importa a sua cor
Pobre ou rico
Dizem a palavra do senhor
Igualdade é pra todos
292
ANEXO H
Música de Beatriz
293
ANEXO I
Música de Camila/ Croquis de Camila
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