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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
COMUNIDADE CANAFÉ:
HISTÓRIA INDÍGENA E ETNOGÊNESE NO MÉDIO RIO NEGRO
RICARDO NEVES ROMCY PEREIRA
BRASÍLIA
MARÇO DE 2007
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
COMUNIDADE CANAFÉ:
HISTÓRIA INDÍGENA E ETNOGÊNESE NO MÉDIO RIO NEGRO
RICARDO NEVES ROMCY PEREIRA
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social
como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Antropologia Social.
Banca Examinadora:
Professor Dr. Paul Elliott Little (Orientador), Universidade de Brasília.
Professor Dr. Hênyo T. Barretto Filho, Instituto Internacional de Educação do Brasil.
Professor Dr. Antônio José Pimenta, Universidade de Brasília.
BRASÍLIA
MARÇO DE 2007
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3
RESUMO
Esta dissertação aborda um caso específico de um processo mais amplo de afirmação
étnica e construção de identidades coletivas no médio rio Negro. Abordando a história das
fronteiras regionais, com ênfase na história indígena, busco mostrar a comunidade Canafé
como uma identidade coletiva historicamente criada por migrantes indígenas no bojo dos
processos de expansão e retração das frentes de expansão no século XX. Tenta-se evidenciar
a multiplicidade de situações e agentes envolvidos neste caso através de uma etnografia
pautada na apreensão dos valores e sentidos compartilhados por coletividades de indígenas e
caboclos que vivem na zona rural dos municípios de Barcelos e Santa Isabel. Busca-se, com
isto, uma abordagem antropológica que valorize os pontos de vista nativos a cerca dos
processos históricos em que estão inseridos, apontando para a existência de sujeitos ativos de
uma história ocultada.
ABSTRACT
This dissertation approaches a specific case of a broader contemporary process of
ethnic affirmation and construction of collective identities in the middle Negro river. Through
the approach of a regional historical frontiers constitution and dynamics this work try to
shows the Canafé Community as a collective identity historically created by migrants indians
in the context of the expansion and retraction of the expansion fronts in twentieth century. It
tries to show the multiplicity of situations and agents involved in this case through an
ethnography based in the apprehension of shared values and senses by collectivities of
caboclos and indians who live in the rural zone of the Barcelos and Santa Isabel municipality.
With this, it searches an anthropological approach that values the native vision towards the
historical processes in which they are inserted, pointing out to the subjects of an occulted
history.
4
Ao pessoal de Canafé e aos caboclos e ativistas
indígenas do médio rio Negro.
5
AGRADECIMENTOS
À Isadora que chegou ao mundo alegrando muitas vidas.
Aos meus pais, Elias Romcy e Odete das Neves, e meus irmãos, Marcelo e Rodrigo,
pela incontestável importância de suas presenças em minha história de vida.
À Mariana Andrade pelo amor, amizade e companheirismo. Aos seus pais, Joaquim P.
de Andrade e Maria Helena F. de Andrade pelo acolhimento, incentivo e apoio.
Ao professor e orientador Paul Eliot Little pelas aulas e pela clareza, paciência e bom
humor com que compartilhou seu rico conhecimento comigo, ajudando-me a organizar
minhas idéias.
Ao professor Stephen Baines pelas aulas e pelo incentivo que remonta ao ano de 1996.
Aos amigos e colegas do PPGAS/UNB tanto pela possibilidade da convivência
acadêmica quanto pela troca de informações e percepções sobre o curso de antropologia e
sobre a própria antropologia. Sou grato à Adolfo Neves pelos comentários e revisão crítica da
versão preliminar deste trabalho. A Cloude de Souza, Ronaldo Lobão, Juliana Melo, Rodrigo
Pádua, Odilon Morais, Márcia Leila, Ney Maciel, Alessandro de Oliveira, Cristina Dias,
Mariana de Lima, André Godim, Eduardo Di Deus, Priscila Calaf, Paulo Rogers, Carlos
Alexandre, Júlio Borges, Héber Grácio, Luiz Cayon, Gonzalo Diaz, Elena Nava, Rosana,
Roderley Nagib, Sônia Cristina, Luís Guilherme, Sílvia Monroe, Laura Ordóñes, Lena Tosta,
Marcel Taminato e Rodrigo.
À CAPES pelo financiamento do curso de mestrado.
Aos secretários do DAN, Rosa Cordeiro, Adriana Sacramento e Paulo Gomes.
A Dona Iracilda Rocha da Silva que nos ajuda manter o espaço da Katakumba.
Sou muito grato à Clarindo Chagas, presidente da Associação Indígena de Barcelos,
pelo apoio a minha pesquisa. Com ele tive verdadeiras aulas sobre o mundo indígena e o
6
ativismo no rio Negro. O mesmo pode ser creditado à José Augusto, ativista indígena do
médio rio Negro. Ambos compartilharam comigo um pouco de suas trajetórias, experiências e
perspectivas sobre o movimento indígena no rio Negro.
Aos ativistas indígenas de São Gabriel da Cachoeira, Edílson Melgueiro, Rosilene
Fonseca, Miguel Maia, Maria, Bonifácio José, André Fernando, Estevão Lemes, Álvaro Maia.
À Marta Azevedo, Carlos Alberto Ricardo, Aloísio Cabalzar e Flora Cabalzar, ambos
do Instituto Socioambiental, por me proporcionarem a oportunidade inicial de conhecer um
universo tão interessante como é o rio Negro.
Aos funcionários do Museu da Universidade do Amazonas pela gentileza e confiança
em me disponibilizar documentos do acervo J. G. Araújo ainda não publicados.
À Andréa Prado pela hospitalidade em Manaus.
Ao Waldir e sua família da comunidade Tapereira pela hospitalidade e apoio no
transporte até a comunidade Canafé.
Por último, mas de grande importância, aos moradores e ex-moradores da comunidade
Canafé por terem me recebido de braços abertos. Foram muitos que apoiaram a pesquisa
contribuindo com informações e conversas. Devo agradecer nominalmente à Joaquim
Gonçalves, Euclides e Noemia, Manuel Wiliame e Vivina, Manoel e Maria Sidinéia, João
Bosco, Amílson, Hênio, Luís Carlos, José Décio, Hênio Jesus, Francisco Trindade e Cleide
Teresinha, Edimilson Basílio e Cleidiane Gomes, Erival do Basílio e Suliete Macedo, Roberto
Mateus e Orlandina da Silva. Gabriel Almeida, Almerinda Brazão e família por terem me
acolhido durantes três dias em seu lar. De forma semelhante agradeço a hospitalidade de
Dona Arlete e Seu Edir.
7
CONVENÇÕES
Por médio rio Negro me refiro ao trecho deste rio e seus afluentes situados entre os
núcleos urbanos de Barcelos e Santa Isabel.
As palavras grifadas com estilo de fonte “itálico” correspondem a termos e categorias
nativas.
Nos diagramas de parentesco (pág. 103 e 128), o indivíduo de sexo masculino está
representado como um quadrado, e não como um triângulo como se costuma usar. Os
divórcios estão indicados por linhas em marrom e com dois traços diagonais. A viuvez é
representada com uma linha preta com um “X” sobre a mesma.
8
“A dependência é sempre péssima, mas nem
sempre é o fim da história.”
Marshall Sahlins.
9
SIGLAS
ASIBA – Associação Indígena de Barcelos
ACIMRN – Associação das Comunidades Indígenas do Médio rio Negro
AIAC – Associação Indígena da Área de Canafé
AQUABIO – Projeto de manejo integrado da biodiversidade aquática e dos recursos hídricos
na Amazônia
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
CEB – Comunidades Eclesiais de Base
CF – Constituição Federal
DSEI/RN – Distrito Sanitário Especial Indígena do Rio Negro
FOIRN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
GT – Grupo Técnico
IBAMA – Instituto brasileiro de meio ambiente e recursos naturais
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ISA – Instituto Socioambiental
MMA – Ministério do Meio Ambiente
PPGAS – Programa de Pós Graduação em Antropologia Social
PROECOTUR - Programa de Desenvolvimento do Ecoturismo na Amazônia Legal
10
SUMÁRIO
Introdução 12
– Primeiro trabalho de campo e a complexidade da questão indígena 12
no médio rio Negro
– A construção do objeto de pesquisa e o trabalho de campo em 2006 15
– Proposta 17
– Marco teórico: cultura, etnogênese e identidade 21
1 – O Médio rio Negro e a população indígena 33
1.1 – Caracterização ambiental 33
1.2 – A diversidade indígena do Noroeste Amazônico 38
1.3 – A população indígena do médio rio Negro 43
1.4 – Médio rio Negro como objeto de pesquisa antropológica 48
2 – Histórias de fronteira e histórias indígenas 52
2.1 – A conquista colonial do rio Negro 52
2.2 – A organização do extrativismo no médio rio Negro 64
a partir do final do século XIX
3 – Canafé: de propriedade privada à comunidade 77
3.1 – Fluxos indígenas em territórios mercantis 78
3.2 – Trajetórias dos antepassados 80
3.3 – Territorialidade e domínio do patrão 82
3.4 – Interação entre os fregueses 86
3.5 – Formação da comunidade 88
3.6 – Algumas considerações sobre a etnogênese primária em Canafé 91
4 – A comunidade Canafé 96
4.1 – Localização e aspectos físicos 96
4.2 – Demografia e migração 99
4.3 – Parentesco 100
4.4 – Sociabilidade 104
4.5 – Economia 106
4.6 – Religião e saúde 108
5 – Etnicidade em Canafé: utopias e estratégias contemporâneas 110
5.1 – Novos agentes e as modalidades de ocupação territorial 111
5.2 – Resistindo à migração 117
5.3 – Adesão ao movimento indígena 120
5.4 – Identidade local e etnicidade 124
5.5 – Se situando na história e projetando um futuro 130
6 – Considerações Finais 133
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 138
11
ANEXOS
1 – Registro fotográfico 150
2 – Levantamento populacional da comunidade Canafé 157
(nome, idade, etnia e local de nascimento)
3 – Resumo de depoimentos de caráter autobiográfico 160
CROQUIS
1 – Sítio Solidão 97
2 – Comunidade Canafé 98
MAPAS
1 – Imagem de satélite do médio rio Negro 36
2 – Diversidade étnica do Noroeste Amazônico 39
3 – Comunidades indígenas e ribeirinhas no médio rio Negro 46
TABELAS
1 – Perfil étnico dos povoados coloniais em 1775 59
2 – Demografia das “villas e lugares” em 1775 59
3 – “Pessoas livres, índios e escravos” em 1786 61
4 – Comerciantes e suas respectivas localidades entre 1935-1940 73
DIAGRAMAS
1 – Genealogia dos membros da comunidade Canafé 103
2 – Relação de parentesco entre os rezadores da comunidade Canafé 128
12
INTRODUÇÃO
Primeiro trabalho de campo e a complexidade da questão indígena no médio rio
Negro
Esta dissertação é o resultado de uma reflexão que venho desenvolvendo desde
quando percorri o rio Negro desde Manaus à São Gabriel da Cachoeira, entre agosto e outubro
de 2002. Nesta ocasião eu coordenava um Grupo Técnico (GT) incumbido de fazer uma
pesquisa para o então Departamento de Identificação e Delimitação (DEID) da Fundação
Nacional do Índio. Não se tratava propriamente de uma identificação de terra indígena, mas
de um Levantamento Preliminar
1
regulamentado e instituído no âmbito do DEID, com vistas
ao planejamento para a regularização fundiária de prováveis terras indígenas na região.
A viagem que fiz ao longo do rio Negro durou setenta e dois dias e teve como objetivo
produzir e sistematizar informações sobre as coletividades que se manifestavam formalmente
enquanto comunidades indígenas em Manaus, Barcelos e Santa Isabel. Dois ativistas da
região compuseram o GT instituído pela Funai não como guias, mas como informantes e
interlocutores privilegiados do levantamento, acompanhando e participando da pesquisa em
suas áreas de atuação.
O levantamento buscou identificar as características sociais, culturais e territoriais dos
moradores destas comunidades, apontando para soluções quanto ao pleito fundiário
endossado pela Associação Indígena de Barcelos.
Durante os quinze dias iniciais realizei um levantamento bibliográfico na Biblioteca
Municipal de Manaus e no Museu da Universidade do Amazonas, buscando fontes históricas
e etnográficas sobre o rio Negro. Nos cinqüenta e dois dias seguintes percorri o rio Negro
entre Manaus e São Gabriel, bem como o baixo e médio curso dos afluentes Araçá/Demeni e
Cuiuni. Neste percurso visitei 30 comunidades ao longo do rio Negro na companhia de dois
reconhecidos ativistas indígenas do médio rio Negro Clarindo Chagas da etnia Tariana, e
José Augusto, Arapasso.
1
Levantamento Preliminar das comunidades indígenas do baixo rio Negro sobre as reivindicações das áreas
indígenas denominadas Baixo Rio Negro e Rio Cuieras, instituído pela Instrução Executiva 94/DAF/2002. O
“preliminar” indica um processo de investigação feito antes da identificação da Terra Indígena. Neste sentido, o
levantamento deveria construir subsídios etnográficos para, dada as demandas indígenas, programar e planejar a
ação indigenista na região. Quatro Levantamentos Preliminares foram realizados nas gestões dos antropólogos
Marco Paulo Fróes Schettino e Terri Valle de Aqui entre 2002 e 2004. Nestes dois anos foram feitos estudos
preliminares no Acre, no rio Solimões, no rio Tapajós e no rio Negro, identificando e sistematizando as
demandas territoriais de quase uma centena de comunidades indígenas. Geralmente tinham o objetivo de
percorrer uma grande área onde para identificar e caracterizar demandas pulverizadas. Como tais demandas
provinham em sua maioria de coletividades genericamente denominadas de “caboclos” ou “ribeirinhos”, a Funai
não possuía nenhuma informação sobre tais coletividades.
13
No dia 26 de setembro participei da II Mobilização Extraordinária das Comunidades
Indígenas de Santa Isabel, realizada no colégio da missão salesiana na sede deste município.
Neste evento, organizado pelas associações indígenas FOIRN e ACIMRN participaram
representantes de 21 comunidades indígenas do município de Santa Isabel, ativistas e
representantes de associações indígenas, da Funai de São Gabriel da Cachoeira, o secretário
de meio-ambiente e o prefeito de Santa Isabel.
Além das sete comunidades visitadas no rio Cuieras, situado no limite sudoeste do
município de Manaus, as reivindicações por demarcação de terras indígenas no rio Negro
incluíam um mosaico de comunidades ao longo do trecho ribeirinho desde Santa Isabel até
Barcelos, totalizando 44 comunidades. Neste percurso havia comunidades também nos rios
Preto, Padauiri, Jurubaxi, Araçá, Demeni e Cuiuni.
O relatório produzido no contexto da ação indigenista apresentou um perfil
demográfico, populacional e étnico dos membros destas comunidades, bem como aspectos da
territorialidade nativa e de suas relações com agentes e agencias no âmbito regional (Pereira,
2003). Como anexo foi apresentado a transcrição de cerca de 10 horas de conversas e
entrevistas gravas em fita k7. Além disto, produzi paralelamente material fotográfico e
videográfico.
A recente adesão de um grande contingente populacional ao movimento social
indígena sediado em Barcelos e em Santa Isabel vem fortalecendo os sentimentos de
identidade coletiva no âmbito local e macro-regional, formalizando a existência e dando
visibilidade a uma coletividade indígena multi-étnica que perpassa e extrapola o âmbito das
comunidades.
O cenário sócio-cultural destas comunidades desafiava o entendimento do senso
comum. Era uma sociedade híbrida, cujos aspectos básicos de sua organização e sociabilidade
sui generis pareciam se constituíam a partir de uma fusão de elementos sócio-culturais
indígenas e elementos ocidentais e nacionais. Tanto do ponto de vista da identidade indígena
quanto em relação às condutas territoriais destas coletividades, a compreensão da situação
exigia uma pesquisa histórica e uma investigação etnográfica mais detida.
No contexto do trabalho indigenista foi possível apenas ter uma idéia geral das
dimensões do processo histórico de organização do segmento indígena no contexto regional.
As breves visitas de um dia em cada comunidade visitada permitiram compreender
superficialmente suas características sociais e históricas mais gerais e que compunham um
certo “denominador comum” de um processo de etnogênese na região.
14
Tais questões, que o relatório do levantamento pode resolver en passant e nos
limites de sua função administrativa, ficaram guardadas comigo após ter me desligado da
Funai em 2005. Neste mesmo ano ingressei no PPGAS/DAN/UNB, orientado pelo objetivo
de entender melhor o processo de emergência e afirmação étnica do ponto de vista de uma
coletividade indígena da zona rural.
A investigação histórica preliminar apontou para a antiguidade da presença colonial na
região e para a complexidade da colonização e das transformações ocorridas ao longo de mais
de três séculos e meio da conquista portuguesa.
A situação de guerra de conquista que se iniciou por volta de 1657 e se estendeu
intensamente desde o primeiro quarto do século XVIII até o início do XIX promoveu
etnocídios, migrações e diásporas nos povos do tronco lingüístico Aruak que ocupavam o
baixo e médio rio Negro. Ao final do XVIII cronistas oficiais tomavam notas da grande
hecatombe demográfica ocorrida e suas influências eram fortemente sentidas no alto rio
Negro.
A conquista colonial provocou um grande vazio demográfico no médio rio Negro,
bem como um intenso processo de migração indígena compulsória. Com isto Portugal se
aproximava dos limites territoriais que configuram o Brasil contemporâneo. Após a conquista
definitiva do rio Negro, a mudança da capital da Província de Barcelos para Manaus no início
do século XIX consolidou um processo de mudança na orientação geral política colonial
portuguesa para a região.
Neste processo Barcelos foi progressivamente perdendo sua centralidade no contexto
das políticas coloniais e o médio rio Negro momentaneamente esquecido. A Cabanagem, a lei
de terras e o boom da borracha foram acontecimentos posteriores que promoveram novas
ondas de transformações sociais, demográficas, étnicas e territoriais intensas.
A nova frente de expansão, representada pelo extrativismo, ao mesmo tempo em que
intensificou a presença de comerciantes, promoveu uma re-indigenização da região através
das práticas de descimentos e arregimentação de mão de obra para os trabalhos nos seringais.
Este contingente indígena, que se estabeleceu nas adjacências dos seringais, dos barracões e
dos sítios dos patrões, desde o início do século XX foi numericamente superior aos
comerciantes.
A investigação histórica em fontes escritas e os depoimentos coletados em 2002
mostraram que as lacunas de informações sobre as populações indígenas nesta região
poderiam ser complementadas com a história oral veiculada por indígenas e outros moradores
locais e regionais.
15
A construção do objeto de pesquisa e o trabalho de campo em 2006
Na medida em que escolhi partir de uma situação observada em campo para depois
construir os marcos teóricos da pesquisa mencionarei brevemente o processo de construção do
objeto e da unidade de análise da pesquisa.
As primeiras impressões que tive durante a viagem inicial à região eram de um
processo recente e generalizado de afirmação da identidade indígena caracterizado pelo rápido
crescimento do associativismo na região, a inclusão de comunidades da região em políticas
voltadas para indígenas e o surgimento de reivindicações por cidadania diferenciada e por
regularização fundiária.
O tema do território e da identidade indígena ocupou o centro das atenções na minha
primeira viagem. Busquei saber quem eram os moradores daquelas comunidades, suas
histórias, filiações de parentesco e étnicas, tempo de residência, áreas tradicionalmente
ocupadas em caráter permanente, atividades econômicas, situações de conflito sócio-
ambiental, etc. Contato interétnico, história da Amazônia, diversidade cultural regional,
identidade indígena, economia extrativista, migrações, território, trabalho para patrões,
conflitos socio-ambientais e reivindicações territoriais foram os temas mais evidentes.
Foi necessária uma análise crítica dos conceitos de aculturação e integração para
entender as particularidades etnográficas da região e ver o processo histórico como fenômeno
que envolve re-elaboração e criatividade por parte dos supostos “caboclos aculturados”.
Passei então a buscar a história destes indígenas que surgiam no cenário político do rio Negro
no sentido de entender os valores, experiências subjetivas e agencia neste processo histórico
de construção de identidade coletiva.
As comunidades que observei em 2002 não eram totalidades auto-contidas tampouco
partes de uma massa indistinta. Os nomes das comunidades se mostravam como rótulos
étnicos em aparente contraste com a pluralidade étnica, a fluidez das identidades, a
mobilidade espacial e as redes de coletividades intercomunitárias.
Nesta linha de raciocínio, busquei alternativas para a “ausência de etnografia”
provocada pelos enfoques das teorias da aculturação e integração (Gow, 1991:14). A análise
dos sentidos e valores existentes naquilo que os nativos falam e fazem permitiu discernir
níveis locais e regionais de convivência e pertencimento social, considerando a complexidade
sócio-cultural do médio rio Negro.
Evitei, por outro lado, substancializar a comunidade indígena como uma entidade a-
histórica. Neste sentido, este trabalho não dialoga com os “estudos de comunidade”
coordenados por Charles Wagley nas décadas de 1940 e 50. A comunidade, embora venha
16
construindo estratégias e mecanismos para se unificar, não é uma totalidade sócio-cultural
fechada, derivada das sociedades indígenas autóctones da região.
Como pretendo mostrar, a comunidade indígena é uma criação histórica resultante da
ação de distintos agentes, entre eles os caboclos da região. Embora a memória indígena e os
etnônimos que despontam neste processo remetam à diversidade étnica do alto rio Negro, a
criação da comunidade Canafé é vista pelos seus moradores algo recente, associado à ação
missionária na região na década de 1980.
Passei a focalizar as particularidades sócio-culturais do segmento que vinha se
identificando como indígena motivado por entender melhor quem eram aqueles sujeitos, o
que pensavam sobre si e sobre seu passado e, entre outras coisas, sobre o movimento
indígena. A afirmação indígena pressupunha trajetórias e experiências individuais e coletivas
que precisavam ser mais bem analisadas por meio de uma pesquisa da história regional e
local.
Daí surgiu a idéia de abordar uma coletividade específica para poder entender o
processo histórico de etnogênese sob o ponto de vista de seus agentes principais. Passei a
enquadrar a comunidade como a unidade de análise privilegiada para a pesquisa,
considerando, entretanto, fatores como a multi-localidade, as migrações intra-regionais, os
laços de parentesco entre membros de distintas comunidades, bem como as redes e processos
mais amplos que formam a comunidade.
As leituras de Peter Gow (1991), Cristiane Lasmar (2005), João Pacheco de Oliveira
(1988, 1998 e 1999), Robin Wright (2005), Jonathan Hill (1996) e Sidnei Peres (2003) foram
muito importantes em distintos aspectos para a construção do objeto deste trabalho. Foi
necessário também visitar a extensa literatura etnológica produzida sobre o Noroeste
amazônico, pois a maioria das identidades étnicas que eram acionadas na região - Baré,
Baniwa e Tukano (e sub-grupos do tronco lingüístico Tukano) - remetiam para diversidade
indígena do alto rio Negro.
Em agosto de 2006 retornei ao médio Negro novamente com intenção de passar um
mês em alguma das comunidades cujos moradores vinham se engajando no movimento
indígena. Nesta viagem, registrei conversas e entrevistas com o presidente da Associação
Indígena de Barcelos.
Conversei também com um ex-prefeito de Barcelos e com dois chefes de família de
Canafé que haviam se mudado para Barcelos. Dormi uma noite na comunidade Tapereira e
passei os 19 dias seguintes na comunidade Canafé, observando a vida cotidiana e conversando
sobre os temas aqui abordados. Além dos depoimentos registrados, utilizo alguns
17
acontecimentos observados neste período como material etnográfico para exemplificar as
discussões deste trabalho.
Proposta
Objetivo geral desta dissertação é compreender o processo de construção e
manutenção de identidades coletivas na zona rural do médio rio Negro, evidenciando os
sentidos e os significados locais atribuídos pela coletividade indígena de Canafé às dinâmicas
sociais mais ou menos impostas por agentes “externos” situados em distintas dimensões
espaciais.
A peculiaridade da questão indígena no médio rio Negro levou a opção por uma
abordagem metodológica que privilegia o uso da história oral e, particularmente, a história
indígena. A etnogênese contemporânea nesta região é resultado de uma história específica e
os índios que agora se fazem visíveis não se enquadram tanto em dicotomias clássicas que
opõe índio e caboclo, quanto em categorias étnicas clássicas.
O processo contemporâneo de etnogênese e reivindicação de territórios no médio rio
Negro é parte de um processo histórico mais amplo de transformações na estrutura social e
territorial da região. As diferentes frentes de expansão e interesses mercantis coloniais
provocaram intensos e duradouros impactos sociais e territoriais sobre os povos indígenas no
médio rio Negro. Para compreender a ocupação contemporânea da região é necessário
investigar as dinâmicas sociais instauradas pela conquista colonial, na medida em que estas
apresentam os marcos cio-políticos mais gerais dos processos de etnocídio e etnogênese na
região.
A história da conquista colonial do alto rio Negro tem sido relativamente bem
documentada por historiadores e antropólogos, principalmente no contexto dos estudos
etnológicos e de contato interétnico da área que passou a ser conhecida como cabeça de
cachorro”
2
. Observa-se, entretanto que a maioria dos estudos etnológicos e registros
etnográficos e históricos focalizam grupos da bacia do alto rio Negro, enquanto que a jusante
de São Gabriel da Cachoeira há profunda uma lacuna documental.
Como mostra o historiador Victor Leonardi (1999:199), os motivos que levaram a uma
escassa documentação estão associados à invisibilidade dos indígenas “aculturados”, tapuios e
caboclos, bem como à ausência de interesse de antropólogos e agentes indigenistas na
2
Para uma bibliografia mais completa ver site do Instituto Socioambiental (www.isa.org.br).
18
região. O fato é que ainda conhecemos muito pouco a população indígena do médio rio
Negro.
Ao abordar o processo de decadência do Velho Ayrão no baixo rio Negro, Leonardi
mostra que os motivos da crise que arruinou este povoado do baixo rio Negro estão
intimamente associados à própria lógica auto-destruidora da colonização que despovoou
progressivamente a região.
As guerras, rebeliões, epidemias, descimentos, recrutamentos e o uso de meios
violentos na exploração do trabalho indígena, foram elementos perenes da história da
colonização, os quais infringiram bruscas descontinuidades às populações do médio rio
Negro. O violento etnocídio dos povos Manao e Baré ao longo do século XVIII marcou a
colonização portuguesa no médio rio Negro, causando o esvaziamento de uma região
altamente povoada.
O tema do esvaziamento das aldeias, da decadência e abandono dos povoados da
região vem sido discutido desde as duas últimas décadas do século XVIII até os dias de hoje.
Frente a tais descontinuidades, indivíduos e famílias de índios, tapuios e caboclos se
empenharam em constituir identidades coletivas duradouras, possuir terra, construir uma
própria história e, enfim, existir. Distintas estratégias foram acionadas, seja resistindo através
de lutas e fugas para regiões menos acessíveis, seja se acomodando, apropriando, consentindo
e/ou influenciando e se misturando em novos contextos em que se inseriam (Little, 2001: 05).
Os movimentos migratórios em massa deflagrados nas primeiras décadas do século XVIII
fizeram diversos grupos indígenas se dirigirem para as cabeceiras dos afluentes do rio Negro e
até penetrarem em territórios de outros grupos étnicos.
Hill (1996: 152) indícios do alto potencial das populações indígenas Aruak para se
re-organizarem para manterem identidades coletivas. Creio que o mesmo pode ser pensado
para o processo de criação de novas identidades. Em relação ao processo macro-histórico de
etnogênese entre os povos indígenas do tronco lingüístico Aruak no rio Negro, Hill enfatiza as
descontinuidades e mostra que distintos povos puderam se re-organizar a cada momento de
retração do poderes coloniais e nacionais na região, conseguindo manter suas identidades
coletivas em novas situações.
Isto nos mostra que o processo de etnogênese no médio rio Negro está altamente
influenciado por esse macro-processo que os Aruak protagonizam ao longo de seu território
tradicional.
3
Outro dado que corrobora essa hipótese é o fato de que, a maioria do contingente
3
Para um panorama amplo e abrangente das sociedades indígenas pertencentes à família lingüística Arwak ver o
livro Comparative Arwakan Histories de Jhonatan Hill (org.) 2002.
19
indígena contemporâneo da região é Baré e Baniwa
4
. Isto não implica desconsiderar os grupos
Tukano, mas apontar que estamos falando de território milenar Aruak.
É a partir deste contexto histórico mais amplo do rio Negro, que situo a etnogênese da
comunidade Canafé. Sua coletividade não é um dado, mas o resultado de outra longa e
complexa história. A história própria da comunidade é uma construção recente que está
intimamente atrelada às dinâmicas históricas das fronteiras regionais e da multiplicidade dos
agentes ali inseridos.
Investi na história indígena como o fio condutor desta investigação pela possibilidade
que tem de revelar a agencia, idéias e práticas dos caboclos envolvidos na criação da
identidade coletiva Canafé. A ênfase na história oral como complemento da abordagem
histórica traz para a análise a agencia da população indígena frente aos poderes regionais e do
mercado mundial, vendo-os como agentes ativos de uma história ocultada. É neste sentido
que Peres argumenta que os processos de territorialização e tutela analisados por João
Pacheco de Oliveira (1998) precisam ser complementados e combinados com as noções de
cidadania e etnificação (op. cit: 34).
Creio que este enfoque possa contribuir para repensar pressupostos epistemológicos e
metodológicos que afastam os antropólogos da investigação de situações interétnicas em
sistemas de fronteiras marcados por bruscas descontinuidades históricas, pela mestiçagem
(Gruzinsky, 2001) e pela hegemonia da ideologia do Estado-nação.
No primeiro capítulo abordo o ambiente e a população do médio rio Negro. Descrevo
brevemente sobre a diversidade indígena da área cultural comumente chamada de Noroeste
Amazônico para contextualizar a população indígena da região aqui analisada, haja vista que
a maioria destes é descendente de migrantes do alto rio Negro ou são oriundos desta região.
O segundo capítulo tem um perfil histórico mais acentuado. Inicio com uma
abordagem da historiografia e de fontes históricas escritas no sentido de contextualizar a
história de Canafé.
Com isto mostro os elementos que caracterizam o médio rio Negro como uma
fronteira regional alvo de distintos processos de etnocídio, etnogênese e de transformações
sociais radicais. Chamo atenção para sínteses sociais, os rearranjos estruturais e as re-
configurações sócio-territoriais resultantes das distintas ondas de impactos causados pela
4
De acordo com Peres 72% da população indígena do núcleo urbano de Barcelos é formada por Baré (2/3) e
Baniwa (1/3). Os levantamentos populacionais que fiz (Pereira, 2003) nas comunidades indígenas do interior
também apontam nesta direção.
20
conquista colonial sobre os povos indígenas da região, bem como para a agência destes
últimos frente a este processo.
É depois de cerca de 150 anos de conquista colonial que se forma o terreno para o
surgimento, no final do século XIX, de uma “sociedade extrativista” marcada pela hegemonia
da cosmografia
5
mercantil (Little, 2002: 04). Trato de reconstruir a sociedade extrativista do
médio rio Negro incorporando às fontes escritas, fontes orais buscando traçar a história
indígena nesta região. Com isto apresento os precedentes da formação da população indígena
e cabocla que vem se reproduzindo socialmente na região até os dias de hoje, da qual Canafé
é parte.
Veremos os precedentes históricos da etnogênese contemporânea no médio rio Negro,
mostrando como a organização sócio-espacial da região foi moldada pela cosmografia
mercantil através do progressivo “loteamento” da região por comerciantes do extrativismo da
borracha. Apresento a organização do extrativismo e o re-povoamento da região com um
contingente majoritariamente indígena. A abordagem da história indígena começa a ganhar
corpo na análise das peculiaridades dos domínios do comerciante de Canafé, abordados a
partir do ponto de vista dos seus empregados e fregueses.
No terceiro capítulo analiso a formação da comunidade observando as interrelações
entre distintos agentes e fatores internos e externos deste processo, vendo a comunidade como
uma criação histórica apropriada e re-interpretada pelas coletividades de indígenas e caboclos.
No quarto capítulo apresento a comunidade do ponto de vista de sua organização
própria e de seus elementos que a singularizam no contexto regional do médio rio Negro.
No quinto e último capítulo abordo as estratégias dos moradores de Canafé para a
manutenção de suas formas de vida. Apresento inicialmente a conjuntura contemporânea da
região marcada pela presença de novos agentes sociais, observando as distintas formas de
apropriação dos recursos naturais na zona rural. Em seguida mostro como percebem o recente
engajamento no movimento etnopolítico e como constroem práticas e discursos sobre a
identidade e o território.
Nas considerações finais tento apontar que existe um grande campo de investigação
sobre a história indígena no rio Negro a jusante de São Gabriel da Cachoeira que precisa ser
olhado com mais atenção por antropólogos e historiadores.
5
Refiro aqui às ideologias e identidades que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território.
Como mostra Little, “a cosmografia de um grupo inclui seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que
mantém com seu território específico, a história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que
dá ao território” (idem: 04).
21
Marco teórico: Cultura, etnogênese e identidade
Cultura
A abordagem geral deste trabalho se vale da recente re-valorização do conceito de
cultura e sua re-elaboração conceitual enquanto instrumento analítico elementar para a análise
antropológica. Marshall Sahllins (1997) apresenta e analisa a sócio-gênese deste conceito
argumentando que o mesmo ainda possui valor central para a disciplina. Cultura, nesta
perspectiva, não é uma unidade monolítica rigidamente associada a um povo, mas sim os
meios simbólicos através dos quais os sujeitos organizam suas experiências e ações (Idem:
41). A cultura não é uma substância inerte e assessória do homem, mas sim um substrato
simbólico que orienta e capacita os sujeitos pensar, agir e se organizar.
Esta re-significação do conceito de cultura no contexto de abordagens situacionais da
identidade abre a possibilidade para que segmentos indígenas marcados pelo estigma da perda
cultural e pela desestruturação social possam ser enfocados por outra perspectiva. Não se
busca uma cultura monolítica e autêntica”, mas sim os sentidos da ação social que podem se
basear em elementos e estruturas de distintos sistemas simbólicos. De acordo com Geertz, o
importante é descobrir o que eles acham que estão fazendo (2004: 84).
Desde a década de 1980 surgiram novas abordagens sobre as sociedades indígenas do
alto rio Negro que passaram a valorizar a agência histórica dos índios enfatizando a
capacidade dos indivíduos de articular as forças globais às configurações locais e interpretar o
fluxo dos acontecimentos conferindo-lhe diferentes significados (Wright, 2005). Essa
orientação se consolidou como uma referência para a etnologia dos povos indígenas
amazônicos.
Algumas pesquisas atuais tendem a se afastar de uma visão substancialista da cultura e
enfatizar seu duplo aspecto político e valorativo. Como mostra Peres, em sua análise do
associativismo indígena em Barcelos/AM, a cultura é também “(...) um espaço de
investimento político, de lutas por significados e pelo estabelecimento de novos parâmetros
de formulação do consenso e do dissenso, de uma nova formatação institucional e valorativa
para a legitimidade política, de invenção e negociação de identidades que alimentam
movimentos de contestação de injustiças sociais (...)” (op.cit: 29).
Entretanto o próprio Sahlins (op.cit) adverte que esta valorização do conceito de
cultura não deve levar a formação de um otimismo sentimental
6
, pois não devemos ignorar os
6
O otimismo sentimental seria o pólo oposto da postura que se instalou na antropologia e que Sahlins (1997)
chamou de pessimismo sentimental. Este pessimismo se fundamenta na idéia de um fim do objeto da
antropologia na medida em que os povos indígenas perderiam suas culturas e passavam a fazer parte de um todo
22
avassaladores impactos da conquista da “civilização” ocidental, mas sim refletir sobre a
complexidade envolvida nos processos de resistência, re-elaboração e invenção de identidades
coletivas.
Tendo em vista a importância do conceito de cultura como exposto acima, apresento a
seguir uma breve leitura da teoria antropológica que estrutura a análise deste trabalho. Partirei
do conceito de etnogênese para abordar conceitos correlatos como identidade e etnicidade.
Etnogênese
O conceito de etnogênese tem uma função heurística e instrumental neste trabalho na
medida em que orienta a pesquisa para a análise dos processos históricos e contemporâneos
relativos à construção de identidades coletivas.
O fenômeno denominado de etnogênese tem sido bastante discutido no contexto dos
estudos de etnicidade. Desde a obra clássica de Fredrik Barth, publicada em 1969, a idéia da
etnicidade como produto da organização política situou em outros termos o debate sobre a
identidade, a cultura e suas interconexões.
Barth destacou o aspecto organizativo da identidade étnica, sendo a cultura um fator
importante, mas não determinante. Neste sentido a etnicidade não depende de uma base
cultural unificada e pode haver diferença cultural dentro de um grupo étnico. Pathan não é
aquele que apenas fala a língua Pusto, mas o que pratica certos códigos de ação comuns
conhecidos como Pusto. Além disto, destaca instituições e valores centrais que delineam o
pertencimento Pathan: a reclusão masculina, a primazia masculina na esfera pública e a
proibição da mulher de mostrar o rosto. Analisa a importância da competição por recursos e
fatores ecológicos para a separação territorial dos grupos étnicos. Destaca a manipulação da
identidade Pathan e argumenta que a manipulação da identidade é vantajosa em contextos e
situações em que a identidade do indivíduo não é valorizada.
Cohen (1969) privilegia uma abordagem cultural e relacional da etnicidade
focalizando as formas de interação entre grupos sociais articulados em contexto social
comum. A partir da crítica ao conceito de etnia (na medida em que representa um artefato
simbólico criado pelo Estado para homogeneizar a diversidade social para fins de dominação)
busca entender a etnicidade como fenômeno que envolve tanto processos simbólicos
(objetificações de representações coletivas) quanto processos organizacionais.
sócio-cultural homogêneo moldado pelos processos hegemônicos do capitalismo e da globalização. Para os
“pessimistas”, a desestruturação social e a perda da cultura própria seriam dois elementos do processo que
levaria ao fim do objeto antropológico.
23
Na abordagem comparativa de fronteiras étnicas Leo Depres (1975) enfatiza a
etnicidade como fator de organização de grupos envolvidos com a competição por recursos.
Depres mostra que os grupos étnicos são formados quando os atores usam categorias étnicas
para se identificar.
Em 1976, observamos uma das primeiras tentativas de sistematização do conceito de
etnogênese por Gerald Sider. Por etnogênese Sider se referia a “criação histórica de uma
população que freqüentemente se inicia depois de geração de dominação, com um pouco mais
que um sentido de sua própria identidade coletiva” (1976: 161).
Por etnogênese apontava-se, de maneira genérica, para o surgimento de novas
coletividades social e culturalmente organizadas que, via de regra, afirmam frente ao Estado-
nação princípios de autoctonia e natividade. Muitas destas coletividades naturalizadas e
substancializadas pelos termos “tribo”, “etnia” eram vistas como fragmentos de
reconhecidas sociedades indígenas do passado que haviam sido exterminadas no processo de
conquista colonial. Falava-se assim em ressurgimento, em remanescentes, etc. Por outro lado
vemos surgir também coletividades que se apresentavam sob uma adscrição coletiva nova e
desconhecida, causando embaraço na idéia de continuidade sócio-histórica com povos pré-
colombianos.
Existem críticas em relação ao termo etnogênese, mas a razão de sua consolidação no
campo da antropologia, creio eu, reside em enfatizar a riqueza etnográfica dos processos
históricos e criativos de constituição de novas identidades coletivas. A gradual elaboração do
conceito de etnogênese e das noções de etnicidade acabaram por conduzir ao rompimento
com a naturalização das unidades sociais e das identidades, mostrando-as como uma
construção histórica cujos limites fluidos são socialmente estabelecidos.
O caso de etnogênese entre os Saramaka do Suriname, apresentado por Richard Price
(1983), é interessante, pois se refere a um grupo quilombola que constitui uma sociedade sui-
generis e uma nova sociabilidade no interior da floresta amazônica a partir da resistência de
escravos africanos ao sistema colonial. Formados por grupos de escravos que se rebelaram do
sistema de trabalho nas plantações no Suriname, os Saramaka remetem sua origem à África e
somavam, à época dos estudos de Price, aproximadamente vinte mil indivíduos.
O autor, que busca evidenciar a agência nativa, argumenta que este grupo quilombola
se etnificou na medida de sua resistência ao sistema escravista (idem: 01). Ao observar o
processo de criar parentesco entre indivíduos de diferentes grupos atomizados pelo sistema
escravista do Suriname, Price revela que o passado de escravidão se apresenta como elemento
central da identidade coletiva desta sociedade, representado pela história sagrada do “first
24
time”. A história, neste caso, tem uma função social marcada, na medida em que estrutura a
organização dos clãs, certos cultos e orienta o presente e o futuro.
Os estudos sobre os processos de etnogênese se expandiram e conduziram a produção
de um vasto material etnográfico e a uma renovação dos debates sobre identidade e cultura,
enfatizando o seu aspecto situacional. No livro History, Power and Identity: ethnogenesis in
the Américas, 1492-1992, organizado por Jonathan Hill (1996), diversos antropólogos
abordam os processos de resistência e formação de novas identidades indígenas e afro-
americanas. Os artigos que compõe esta coletânea abordam casos de etnogênese em distintos
locais das Américas e sob diferentes enfoques e períodos históricos, apresentando um
panorama multifacetado dos processos de resistência e reelaboração étnica.
Na introdução do livro, Hill coloca a importância analítica do conceito de etnogênese
afirmando que este termo não se trata de apenas um rótulo para fenômenos de emergência
histórica de povos culturalmente distintos (idem: 01). Ao conduzir os debates para uma crítica
histórica do conceito de cultura, Hill toma a cultura como elemento central de um processo
dinâmico de conflito pela existência, mostrando que a importância analítica do conceito de
etnogênese é que ele traz para o campo de análise “as lutas simultaneamente culturais e
políticas para criar identidades duradouras em contextos gerais de mudança radical e
descontinuidade” (Idem. Tradução minha).
Mais do que um rótulo, a idéia é que o termo etnogênese seja uma referencia de
entrada para investigações históricas e etnográficas sobre os processos políticos e culturais de
construção de identidades coletivas. Por etnogênese Hill se refere ao gradual processo através
do qual antigas categorias e fronteiras étnicas são redefinidas (op.cit.). O termo também é
utilizado para se referir as transformações ou mudanças de alianças de identidade culturais
pré-existentes enquanto elas se tornam politizadas em novos contextos. Também se refere a
coletividades e identidades coletivas inteiramente novas, formadas por indivíduos de distintas
procedências, como é o caso analisado nesta dissertação.
A consolidação da ideologia colonial, civilizadora e, posteriormente, nacionalista no
rio Negro é um fator que deve ser considerado na análise que proponho, pois coloca os
marcos cognitivos da “colonialidade do saber” (Lander, 2005) e os parâmetros comunicativos
para os processos de construção de identidade e resistência indígena na região.
No rio Negro, distintos modelos de se pensar a indianidade, situados em rias
dimensões espaciais, se interrelacionam nas interpretações sobre a situação histórica da
região. Para a oligarquia regional do médio rio Negro, o processo de afirmação indígena é
uma contradição inaceitável no contexto de um suposto processo de evolução histórica rumo à
25
civilização. O modelo regional de indianidade, que tem seus núcleos nos centro urbanos, se
propaga com distintas intensidades na zona rural.
Esse modelo regional de indianidade também está presente no pensamento dos
indígenas da região. O modelo indígena difundido através da organização do movimento
indígena tem trabalhado no sentido de subverter os esquemas de classificação da versão
regional, atribuindo valores positivos a identidade indígena. Interessa-me particularmente o
modelo articulado pela população indígena, o qual se nutre de significados ontológicos e
ideológicos que compõe a semântica da etnicidade no médio rio Negro (Peres, 2003: 311).
Para muitos dos indivíduos e famílias que vêm aderindo ao movimento indígena na
região a mistura dos genes não é o que mais importa na definição da sua identidade individual
e coletiva, mas sim as lembranças de suas histórias e a de seus pais, as origens e trajetórias,
suas formas de se relacionar com parentes, estranhos e com o espaço, entre outras
características de um peculiar modo de viver.
Keneth Bilby chama a atenção para a abrangência analítica e histórica do conceito de
etnogênese, pois se refere tanto a formação de novas coletividades como também à maneira
pela qual, coletividades passam a se perceber como etnicamente distintas dentro do bojo de
uma identidade nacional e articulam elementos de criação e manutenção de fronteiras sociais.
O caso que este autor analisa é de uma “verdadeira nova etnogênese” com a “formação de
sociedade e culturas inteiramente novas quando indivíduos de diferentes procedências são
colocados juntos pelo destino a criarem sociedade novamente” (1996: 119).
De acordo com Bilby, a etnogênese é um processo histórico de médio e longo prazo e
desencadeia na etnificação da unidade social, mas as abordagens que se construíram em torno
deste tema enfatizam a dicotomia entre dois campos analíticos do processo. O autor constrói a
distinção entre etnogênese primária e secundária, distinguindo duas abordagens analíticas do
processo sócio-histórico. Tais dimensões analíticas estão, por sua vez, associadas à dimensões
temporais.
A etnogênese primária é a gradual emergência de grupos inteiramente novos e a
formação do grupo étnico ao longo do tempo. Para Bilby, este enfoque revela mais claramente
a complementaridade e interdependência de fatores situacionais e primordiais na construção
histórica de identidades étnicas. A etnogênese secundária se refere ao processo de afirmação
étnica e se caracteriza pela tomada de consciência da etnicidade pela mobilização social do
grupo étnico. O autor argumenta que essa abordagem é mais restrita e levou a focalizar a
natureza situacional da etnicidade num dado presente.
26
Em relação à questão da identidade étnica, Bilby mostra que nos casos dos grupos
quilombolas na Jamaica e no Suriname, os laços étnicos e as noções de pertencimento e
continuidade étnica se constituem baseados tanto em noções de descendência comum e
substancia compartilhada, como também em processos políticos e culturais de resistência
frente a forças políticas e econômicas mais amplas. Se, por um lado, a etnogênese requer a
primordialização da identidade do grupo, como a identificação de um ancestral comum ou de
um local referencial para a identidade étnica, por outro, “(...) identidades e sentimentos
étnicos não precisam estar associados com um passado antigo ou imemorial para ser
amparadas pelas forças dos laços primordiais e das lealdades” (idem: 137).
Ideologias e práticas políticas e religiosas são outros aspectos interconectados deste
processo. No caso dos quilombolas da Jamaica, a relação com os ancestrais cria um senso de
continuidade histórica da identidade e comunidade ao longo das gerações. Rituais religiosos
como a Dança Kromanti atuam mantendo o elo entre os vivos e os ancestrais através da
incorporação de espíritos pelos médiuns fete-man. (idem: 123).
Em relação aos elementos condicionantes da etnogênese de comunidades quilombolas
na Jamaica, Bilby (idem) destacou as interações de três fatores primários: disponibilidade de
terra, a emergência de grupamentos de parentesco dividindo uma base territorial e o
desenvolvimento de uma ideologia religiosa que reflete e apóia a emergente ordem social.
De acordo com Oliveira Filho (1999), a etnogênese é um processo de individualização
de uma coletividade étnica. A formação desse coletivo é situacional e relativa a um elenco de
grupos e situações de interação e à competição por recursos em dada situação histórica. Para o
autor a etnicidade envolve tanto questões administrativas, imposições políticas e
ordenamentos jurídicos, como também uma comunhão de sentido e valores. Neste sentido,
“cada comunidade é imaginada como uma unidade religiosa e é isto que a mantém unificada e
permite criar as bases internas para o exercício do poder” (idem :27).
No livro A Viagem da Volta, Oliveira Filho aborda a etnogênese no Nordeste
brasileiro no contexto das situações históricas do contato interétnico e mostra que muitas
coletividades foram criadas no contexto dos processos de aldeamento compulsivo, os quais
compeliam a constituição de coletividades ocupando territórios determinados pela dinâmica
de expansão das frentes econômicas. Esse autor mostra que no Nordeste do Brasil os grupos
indígenas nativos foram sujeitos à uma reorganização forçada por processos de
27
territorialização
7
deflagrados pela expansão de segmentos da sociedade e do Estado brasileiro
sobre as coletividades indígenas. Destaca-se o aspecto de objeto político-administrativo destas
coletividades (1999: 21).
Oliveira Filho também aponta para a importância da história no processo de afirmação
do grupo enquanto uma unidade e mostra que a re-atualização da história, antes de distorcer
as origens coletivas, contribui para reforçá-las. E as origens, por mais distantes e esquecidas
que estejam, são essencializadas como instrumento da etnificação coletiva.
Rodrigo Grunewald, ao abordar o caso de etnogênese entre os índios Atikum da serra
do Umã, no sertão pernambucano, mostra que “eles não são um caso de perdas que um grupo
específico sofreu até tornar-se resíduo de uma cultura aborígine prévia; ao contrário trata-se
de pessoas de diversas origens étnicas (índios descendentes de diversos grupos distintos,
negros e brancos) que, ameaçadas de perderem seu recurso básico (a terra), resolveram
constituir-se como comunidade indígena e atribuir a si próprios tradições, tais como o órgão
tutor exigia para o reconhecimento de reservas indígenas no Nordeste” (1999: 154).
Em relação à etnologia do Noroeste Amazônico, os estudos de Robin Wright sobre
história e mito contribuíram para a consolidação de uma nova orientação teórica que
privilegia a investigação da história indígena e suas re-elaborações coletivas frente ao
processo histórico do contato interétnico. Esta abordagem influencia diretamente este
trabalho, pois considero a história indígena um importante elemento político e cultural dos
processos de construção de uma identidade coletiva autônoma no médio rio Negro, além de
recurso metodológico importante para se entender valores e sentidos próprios.
Identidade
Desde Barth (1969) novos entendimentos sobre a categoria identidade vêm sendo
produzidos no âmbito das Ciências Sociais principalmente a partir da década de 1970 no
contexto de crises sociais e paradigmáticas. Nas ciências sociais as teorias de identidade
passaram ao centro de debates que demonstraram seu aspecto provisório e mutante, sendo
parte de um processo e de uma história específicos. Categorias como hibridez e mestiçagem
passam a substituir a idéia de pureza e substância atribuídas à identidade e à cultura.
O conceito de identidade utilizado neste trabalho também se filia aos debates sobre
etnicidade construídos a partir da crítica aos estudos de aculturação. Nesta perspectiva, os
7
De acordo com Oliveira o processo de territorialização é o movimento pelo qual um objeto político-
administrativo vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria,
instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando suas formas culturais (: 21).
28
fenômenos identitários são vistos como fluidos e resultantes de processos simbólicos e
práticos de criação e negociação. A identidade é uma construção social resultante de
interações e de lutas culturais e políticas entre grupos conflitivos.
Em relação a indianidade no médio rio Negro, Peres indica que não se trata de um
núcleo identitário substancial, mas de um campo de práticas e estratégias representacionais de
construção social da etnicidade indígena que pressupõe um complexo articulado de redes
transnacionais por onde circulam fluxos de significados e formas culturais. Trata-se de um
princípio de múltiplas possibilidades de identidade (op.cit: 33).
Como no município de Barcelos as relações sociais são forjadas sob o signo da
ambigüidade e da mistura, abre-se um amplo leque de possibilidades para a inovação cultural.
Neste contexto, a ambigüidade da categoria caboclo e sua posição oscilante entre o civilizado
e o indígena, podem muito bem conduzir a conformação da categoria de “índio civilizado”,
dependendo do contexto e dos cálculos sociais envolvidos.
A recente adesão em massa ao movimento indígena no médio rio Negro reacendeu os
debates sobre as fronteiras étnicas, dando visibilidade e problematizando os limites entre as
identidades ‘caboclo’ e ‘indígena’ na região. Observa-se a negociação de identidades em
interações distintas. Ao aderir ao movimento indígena o sujeito passa em muitas vezes a
“aceitar” a identidade indígena tendo em vista, tanto benefícios imediatos, quanto uma utopia
com a qual se identificam.
Aderir ao movimento indígena e “buscar os direitos da comunidade” tem um forte
potencial de conduzir à etnificação da comunidade e se dá através da comunicação e interação
com agentes e instâncias que possam torná-los visíveis frente ao Estado. A idéia de
etnificação, entendida como o congelamento da identidade no âmbito de ideologias étnicas,
chama a atenção para a agência indígena no processo de politização da identidade.
Estes construtos ideológicos indígenas “podem inscrever-se na ossatura institucional
do Estado e das redes de movimentos sociais e organizações civis, baseadas na consciência
reflexiva da cultura e que fundamentam esforços deliberados de revitalização cultural
promovidas em comunidades argumentativas em que a ancestralidade precisa ser representada
convincentemente diante de interlocutores difusos” (idem: 36).
Os principais agentes “externos” de interação são padres, prefeitos, e mais
recentemente, membros de associações indígenas como a FOIRN, ACIMRN e ASIBA, bem
como antropólogos associados e pesquisadores, ONGs não-indígenas e agentes da Funai.
De forma semelhante ao baixo rio Urubamba, no sudeste do Peru (Gow, 1991), no
médio rio Negro também se observa a importância do conhecimento “externo” na constituição
29
da comunidade indígena, expresso pela escola. Em Canafé veremos que missionários,
antropólogos, indigenistas e ativistas indígenas são alguns “outros” que fazem parte do
processo de formação e etnificação da comunidade. A capacidade de interagir com estas
alteridades potencialmente perigosas, mas detentoras de conhecimentos poderosos é parte das
estratégias locais e fonte de reconhecimento interno.
Entendo o conceito de etnificação a partir de Sidnei Peres quando se refere ao
processo de “etnificação da consciência social de grupos indígenas como a elaboração de
retóricas e políticas a partir de um campo semântico da etnicidade, isto é, de um universo
simbólico constituído em contextos interétnicos localizados” (2003: 36). Neste sentido, não se
trata da reprodução de categorias de indianidade forjadas pela agência indigenista, mas sim os
constantes atos de reinterpretação oriundos de um campo complexo e assimétrico de diálogo e
negociação cultural.
A etnificação da comunidade envolve desta forma, a relação com distintos sistemas de
conhecimento. Pajés, rezadores, benzedores e ativistas indígenas são, neste sentido tradutores
que atuam na interação com estas alteridades no plano ontológico e ideológico. Em vista
disso, são reconhecidos por manipular conscientemente outras províncias de significado. A
análise da indianidade e da semântica da etnicidade em Barcelos revela a complexa economia
simbólica da alteridade embutidos nos discursos xamânicos. Neste sentido, o discurso
xamânico provê as bases simbólicas para a reflexão sobre as alteridades (Peres, 2003).
As reflexões sobre as alteridades realizadas no âmbito do movimento indígena em
Barcelos se amparam em concepções cosmológicas indígenas expressas por meio do
conhecimento xamânico e noções peculiares de pessoa, sociedade e pertencimento. As
reflexões promovidas pela organização política indígena promovem um estreitamento e
fronteiras do pertencimento coletivo indígena através da elaboração de um sistema de
diferenças que envolvem distintos agentes e agencias que atuam na região. Neste sentido,
concepções xamânicas e ideologias do ativismo indígena articulam distintos sistemas
simbólicos na construção de um discurso que orienta indivíduos e coletividades indígenas a
afirmarem um “nós” frente à figuras básicas da alteridade.
Ao analisar as concepções de saúde entre grupos Tukano Oriental, Buchillet mostra
que a fecundidade do sistema xamânico consiste em “sua potência criativa de absorver, se
apropriar, de elementos estranhos e perigosos, à primeira vista perturbadores, e transforma-los
em símbolos eficazes, fontes de novas dimensões semânticas, mas domesticadas e controladas
pelos xamãs, contribuindo dessa maneira a uma reafirmação da validade do universo
conceitual indígena” (1991: 168, apud Silva, 2001:43).
30
É interessante observar que a proximidade com o conhecimento indígena (xamânico,
de produção agrícola, pesca) bem como a memória dos ancestrais são elementos altamente
valorizados no processo de construção de identidade coletiva em Canafé. O conhecimento
xamânico confere um caráter peculiar à comunidade Canafé no contexto das demais
comunidades indígenas do médio rio Negro, pois ainda é um conhecimento atual e operante.
Embora os próprios ativistas e rezadores de Canafé percebam que o conhecimento do
mundo espiritual indígena
8
está se acabando
9
no médio rio Negro, é importante observar que
o conhecimento xamânico difundido pelos migrantes indígenas descidos do alto vem sido
mantido, atualizado e reinventado através de gerações na região de Canafé. Ali tem a maior
concentração de rezadores reconhecidos da área.
Ao abordar a etnicidade na comunidade Canafé, enfatizo a organização social, política
e cultural decorrente da intenção deliberada de aderir a uma luta pela manutenção de um
estilo de vida baseado no acesso comum à terra e recursos como o rio, os peixes, as ilhas, as
praias, caça, etc.
No contexto de reflexão histórica e identitária, o resgate das trajetórias e experiências
de vida passa a ser importantes elementos no processo de construção de uma “política
própria” (Jimeno, 1996: 69). A afirmação indígena se constitui em material tanto para uma
luta política quanto para uma luta cultural e elemento para reflexão sobre a identidade
individual e coletiva. A particularidade dos sentidos atribuídos a este processo de mobilização
social e de resgate da indianidade remete a trajetória de grupos familiares específicos e deve
ser entendido a partir de uma investigação histórica e etnográfica destas coletividades.
A identidade étnica é, desta forma, uma dimensão política da identidade coletiva que
envolve valores e percepções locais. O envolvimento político, por sua vez, se sustenta em
valores locais socialmente construídos. O pertencimento à matriz indígena e atualização de
um sistema simbólico peculiar se reflete na escolha/adesão a luta por um modo de ser, de
produzir, de reconhecer os parentes, de se relacionar com o meio-ambiente e de terem formas
de interlocução proveitosa com o Estado.
O recente desenvolvimento da dimensão reflexiva da etnicidade em Canafé está
vinculado ao crescimento (tardio em relação ao alto rio Negro) do movimento indígena de
nível macro-regional no rio Negro. O engajamento no movimento indígena representa um
período específico de um processo histórico mais amplo que envolve trajetórias de grupos
8
O conhecimento xamânico me foi colocado nestes termos por um ativista e rezador Tariana de Barcelos.
9
Em relação aos Baré do município de São Gabriel da Cachoeira, Silva notou que seus entrevistados “não
reconhecem qualquer Baré de São Gabriel da Cachoeira que seja Pajé”. Existem rezadores ou benzedores, e que
somente na Venezuela existem pajés Baré. (2001: 43).
31
familiares etnicamente distintos e que culminou com a construção de novas percepções sobre
a história, a identidade, a cultura, o território e o futuro. É sobre o pano de fundo histórico da
interação de distintos grupos familiares indígenas no seio de um sistema social mutante que se
a construção de um projeto de futuro comunitário e a decisão consensual de agir se
representar politicamente enquanto uma unidade, visando conseguir benefícios comuns junto
ao Estado, à sociedade civil e à instancias transnacionais.
Aderir ao movimento indígena é uma forma de tornar públicas demandas que refletem
a intencionalidade em relação a um modo de vida específico. É uma opção por um modo de
vida que possibilite poder continuar no interior, viver de roça, pesca e caça e as demais
implicações derivadas do modo de vida característico desta vida do interior no médio rio
Negro. O interior é uma categoria espacial que aponta para uma forma de sociabilidade
específica e um modo de vida estruturado pelo acesso comum a recursos naturais por
indivíduos pertencentes as redes sociais estruturadas pelo parentesco, co-residência e
vizinhança.
Destaco o fato de que a comunidade Canafé é também uma criação recente, formada
pela co-residência de grupos familiares Baré e Tukano conectados entre si por laços de
parentesco. Embora o nome Canafé seja antigo e remonte ao tempo do patrão, a comunidade
foi instituída na década de 1980, influenciada principalmente pela ação missionária salesiana
na região. Sua formação, como veremos no terceiro capitulo, está associada à trajetória de
alguns grupos familiares do alto rio Negro rumo aos seringais que ainda eram ativos em
meados do século XX nas proximidades de Tapuruquara, atual Santa Isabel.
As reflexões sobre a indianidade se debruçam sobre a memória dos ancestrais
indígenas, enfatizam a possibilidade de transformação e a hibridez da identidade e se
estruturam pela relação com o espaço, com ênfase na idéia de natividade. Através do processo
de re-significar a indianidade, resgata-se a memória e problematiza-se a identidade. Neste
sentido, ser da região e ser filho daqui são expressões centrais na afirmação do pertencimento
coletivo.
Tento mostrar que em Canafé não uma história própria consolidada que reforce o
sentido da coletividade. Esta história está sendo construída através do encontro das memórias
individuais no contexto das interações e reflexões desencadeadas pelo movimento
etnopolítico
10
associativista. História, cultura, símbolos de identidade e território o
10
Assim como Miguel Bartolo “entendo o movimento etnopolítico como as afirmações protagônicas da
etnicidade, estruturadas em formas de organização não tradicionais orientadas a defesa dos interesses dos grupos
étnicos” (1996: 04).
32
construções coletivas realizadas para possibilitar o estabelecimento de canais de comunicação
com o Estado e organizações não-governamentais em prol de sua sobrevivência enquanto
sujeitos representantes de um modo peculiar de viver.
A emergência étnica entre os moradores de Canafé não significa a tentativa de reviver
um passado indígena que fez parte da vida de seus ancestrais invocados e que sabem não ter
mais volta. Um passado comum de violência é resgatado, re-significado e situado como
elemento de uma história própria, tendo em vista a construção de um projeto de futuro próprio
frente às contemporâneas ameaças à sobrevivência de seus modos de vida e de suas pessoas.
33
CAPÍTULO 1 – O MÉDIO RIO NEGRO E A POPULAÇÃO INDÍGENA
1.1 - Caracterização ambiental
O objetivo deste capítulo é descrever o meio ambiente e a população do médio rio
Negro. O ecossistema de “águas pretas”
11
do rio Negro se destaca no contexto da Bacia
Amazônica por algumas características peculiares, tais como a falta de nutrientes aquáticos e
as múltiplas implicações ecológicas que daí derivam. Antropólogos, ecólogos e historiadores
que fizeram pesquisa na região ressaltam que o refinado conhecimento do meio-ambiente foi
um fator crucial para a sobrevivência e sucesso da ocupação humana na região.
Para os propósitos desta dissertação, ressalto aqui a importância da relação
homem/meio-ambiente e suas implicações para a estruturação das formas de ocupação social
e econômica do território. Ao analisar o processo de decadência do povoado Airão, o
historiador Victor Leonardi (1999), mostra que o ambiente bio-físico é um elemento
fundamental da história social do rio Negro. Sob o ponto de vista da ecologia as pesquisas
atuais sobre esta região partem da premissa de que homem e natureza se inter-relacionam num
processo de interferências mútuas e co-evolução (Silva, 2003:18).
Ao longo de mais de dois milênios de ocupação humana no rio Negro, os grupos
indígenas alteraram os padrões florestais construindo elaborados conhecimentos, práticas,
técnicas e instrumentos para o uso e manejo dos recursos naturais (FOIRN/ISA, 1998: 55). O
espaço natural tem um papel importante nas formas de ocupação e adaptação humana na
região, sendo percebido e socializado diferencialmente por distintos grupos étnicos.
As pesquisas ecológicas sobre o rio Negro enfatizam as características peculiares deste
rio, o qual forma um ecossistema sui generis no contexto da floresta amazônica. Geralmente
associados aos estudos de etnologia, as abordagens ecológicas do alto rio Negro buscaram
entender as implicações de um ambiente pobre em nutriente para as populações indígenas da
região e suas relações intertribais. Tais estudos acabaram por construir um enfoque das
relações adaptativas humanas na região, percebendo os índios como profundos conhecedores
da ecologia e cujas práticas sociais se amparam em elaboradas estratégias e técnicas de
manejo.
Berta Ribeiro (1995) observa que o indígena do alto rio Negro, “desenvolveu
estratégias e técnicas adequadas ao manejo dos recursos do meio ambiente”. A autora destaca
as seguintes:
11
Preta é a cor da aparência geral do rio. Vista da beira da praia ou dentro de um copo percebe-se que a cor da
água é marrom- avermelhada.
34
“manutenção de pequenas aldeias e roças que minimizam o impacto da exploração
humana sobre peixes, mamíferos aquáticos, quelônios, caça terrestre e
arborícola;
dispersão de comunidades ao invés de seu amontoamento;
manutenção de uma terra de ninguém entre as áreas ocupadas para formação de
reservas faunísticas;
mobilidade freqüente das roças e aldeias para evitar a superexploração do ambiente;
pequena taxa de incremento populacional mediante a contenção da natalidade;
tabus alimentares destinados a salvaguardar espécies ameaçadas;
plantio de espécies vegetais nas margens dos rios, nas capoeiras, ao longo das trilhas,
em clareiras naturais da floresta, destinadas a atrair caça e a aumentar a
população faunística.” (: 13).
Nesta publicação, Ribeiro analisa em detalhes a horticultura, a tecnologia de pesca e a
etnobotânica dos Desana, grupo da família lingüística Tukano. Em relação à horticultura
observa-se que o refinamento do complexo sistema de processamento da mandioca brava
(Manihot esculenta) se expressa no alto nível de aproveitamento dos nutrientes dessa raiz, a
qual representa a principal fonte de alimento da população que habitam o rio Negro.
Muitos dos conhecimentos ecológicos e adaptativos observados nos grupos do alto rio
Negro fazem parte do cotidiano da população indígena do médio, principalmente um conjunto
matricial de conhecimentos sobre o meio-ambiente, sobre saúde, bem como de técnicas e
instrumentos necessários à realização das atividades cotidianas nas margens do extenso leito
do rio de águas pretas.
1.1.1 - O médio rio Negro e a região de Canafé
O rio Negro é o maior rio de águas pretas do mundo, sendo também o tributário que
possui a maior diversidade de peixes. É o segundo maior rio do mundo em vazão de água e
possui uma vasta rede de drenagem, formando um longo canal fluvial que conecta o mar do
Caribe e o rio Orinoco ao rio Amazonas. Com exceção dos trechos encachoeirados, o rio
Negro possui correnteza fraca.
Em certos trechos, como na região de Canafé, possui extensões enormes entre suas
margens. Boa parte do que se de terra ao longo de uma viagem de barco no rio Negro
(entre Manaus e Santa Isabel) não são margens, mas sim ilhas. A distância entre uma margem
e outra pode chegar a até 10 quilômetros.
A distancia entre as margens dos principais canais do rio é um fator crucial para a
atividade pesqueira, principalmente aquela realizada artesanalmente e pequena escala. Um
morador antigo da comunidade de Canafé me disse que, por volta de 1945, dois grupos de
caboclo do Caiari (Tukano do rio Uaupés), que se estabeleceram nas proximidades de
Canafé, ficaram uns três anos e depois que alguns se afogaram o grupo retornou para o
35
Uaupés, pois desgostaram do lugar, alegando que a margem era muito extensa, difícil para
pescar e perigoso para se transportar. Enfim, morar na margem do rio, onde a distância entre
as margens é muito grande tem suas peculiaridades e requer estratégias específicas,
principalmente para o transporte e para a pesca.
Desde a foz até o seu médio curso, o rio Negro é pontilhado por vários arquipélagos,
dentro os quais se destacam o de Anavilhanas, próximo a Novo Airão, e o de Mariuá, nas
proximidades de Barcelos. Acima de Mariuá existem ilhas pequenas, médias e grandes
dispersas ao longo de seu curso no território brasileiro.
Dentre as ilhas grandes do médio rio Negro, as mais conhecidas são: ilha da
Providencia, ilha do Silva, ilha Tamanquaré e ilha Grande. A infinidade de ilhas e labirintos
aquáticos ao longo do baixo e médio rio Negro, assim como as formações graníticas acima de
Canafé, exige grande habilidade dos práticos
12
que navegam o rio.
Da foz até a Ilha do Silva os solos do rio Negro não são rochosos. As ilhas são
alagadas nos períodos chuvosos, o que as torna impróprias para o assentamento humano
permanente. Estas ilhas alagadas e a margem esquerda foram espaços privilegiados para a
extração de borracha até meados da década de 1950.
Acima deste trecho a estrutura dos solos se modifica e passa-se a observar vestígios do
maciço guianense, através de solos rochosos, pedras no leito e nas margens do rio, bem como
elevações mais expressivas no relevo.
Entre Barcelos e Canafé as ilhas são todas alagadas durante o inverno (abril-
setembro), tendo sido, desta forma, as áreas mais valorizadas nos tempos da exploração da
borracha porque era onde se concentrava a maior quantidade das árvores de borracha da
região. A margem esquerda do rio Negro, entre o rio Araçá e Santa Isabel do rio Negro
também existem grandes extensões de áreas alagadas, onde abundam seringueiras e piaçabais.
No médio e alto curso dos afluentes da margem esquerda há incidência de corredeiras e
cachoeiras.
A margem direita do médio rio Negro possui maior quantidade de terra firme, áreas
agricultáveis e castanhais. Observa-se também a existência de grandes barrancos que se
estendem por dezenas de quilômetros.
Canafé situa-se na área de transição solos argilosos e pedregosos no rio Negro. Além
das rochas que afloram ambas as margem, as ilhas são outro índice desta transição. Acima de
Canafé as ilhas já não estão sujeitas à inundação e algumas são habitadas, como São Tomé,
12
Guia e piloto de embarcações.
36
Santa Luzia e outras. A partir do sítio São Tomé começa o trecho pedregoso do rio. De
maneira geral, as ilhas e seus lagos internos o considerados locais privilegiados para a
pesca, principalmente no verão. De uma forma geral o relevo é baixo e possui altitudes que
variam de 40 - 60 metros acima do nível do mar.
Mapa 1 – Imagem de satélite do médio rio Negro.
Santa Isabel do Rio Negro
* *
Comunidade
Canafé
Barcelos
*
Fonte: Nasa World Wind.
A paisagem vegetal caracteriza-se pela ocorrência de tipos gerais de vegetação como
igapós, mata virgem, capoeira, catinga, também conhecidas como campinaranas. Os igapós
são trechos de floresta alagada situados nas margens do rio e nas ilhas. Nesta floresta o
deslocamento é feito por canoa. O ambiente conhecido como mata virgem são florestas
situadas em solos de terra firme e, muito tempo, inalteradas pela ação antrópica. São
também conhecidas como floresta de terra firme.
As capoeiras são áreas de floresta de terra firme derrubadas pela ação antrópica e em
processo de recomposição. As capoeiras se caracterizam pelo elevado nível de endemismo de
espécies vegetais, principalmente espécies de valor medicinal. Capoeiras mais antigas e com
solos recompostos são os espaços ideais para a plantação. A campinarana ou caatinga são
37
paisagens de vegetação rasteira, lenhosa oligotrófica dos pântanos. Este tipo de vegetação é
arbustivo e disperso.
A sazonalidade é outro fator ambiental de extrema importância para entender as
dinâmicas sociais no médio rio Negro. Tanto o extrativismo quanto a agricultura, a pesca, a
coleta e a caça são atividades altamente condicionadas pela sazonalidade e pelo regime do rio.
O ano possui apenas duas estações: verão e inverno.
Os regimes de chuvas e do rio são os marcadores mais explícitos das variações
sazonais. No período de verão, que vai de outubro a abril, o principal marcador é o lento
processo de surgimento das praias. Verão é o período mais farto, tempo da sempre esperada
desova dos quelônios.
No médio rio Negro, em período de verão, ainda há um equilíbrio entre a oferta
natural de peixes e as demandas locais. No entanto, a memória dos moradores Canafé atesta
que este equilíbrio frágil vem sendo ameaçado pelo menos desde a década de 1970,
principalmente pela exploração predatória (pesca comercial) e, mais recentemente, pela pesca
esportiva. Nos períodos de inverno a situação alimentícia, pelo menos em relação à oferta de
peixes, fica comprometida.
O ambiente aquático e as tramas fluviais que circundam a comunidade Canafé tais
como igarapés, lagos, ilhas, (com lagos e furos próprios), praias, paranás, etc, foram os
principais elementos da paisagem mencionados por um grupo de jovens da comunidade cuja
principal ocupação econômica é a pesca. Nas proximidades de Canafé foram identificadas 38
ilhas, cada uma delas contendo de 1 a 20 lagos internos.
Os homens de meia idade da comunidade Canafé percorreram vários lugares
principalmente nas imediações de Canafé e dos rios Preto/Padauiri, na maioria das vezes,
envolvidos com trabalhos nos piaçabais e seringais. Apenas uns três já foram até Manaus e
muitos vão bi-mensalmente à Barcelos. Através de padrões de mobilidade espacial e uso de
recursos próprios, bem como através da inserção na economia extrativista, os moradores de
Canafé construíram, em cerca de 50 anos, uma gama de conhecimentos ecológicos sobre
aquela região específica.
Este conhecimento local se revela na relação de intimidade com o ambiente fluvial, na
habilidade para as atividades básicas e no conhecimento da fauna e da flora. Boa parte da vida
dos jovens e adultos homens se passa no rio, pescando, se transportando, passeando, se
divertindo, tomando banho, preparando e estocando alimento entre outras atividades.
38
1.2 - Diversidade indígena do noroeste amazônico
1.2.1 – O Noroeste Amazônico
O Noroeste Amazônico é considerado um complexo-sócio cultural sui generis no
contexto da etnologia amazônica. Trata-se do território tradicional de mais de duas dezenas de
grupos étnicos pertencentes às famílias línguísticas Tukano Oriental, Aruak e Maku. Estima-
se que a ocupação desta região pelos diversos grupos indígenas teria se processado há mais de
2.000 anos (ISA, 1998), em diversas ondas migratórias envolvendo os membros das
diferentes famílias lingüísticas citadas. Grupos Maku, Tukano e Aruak teriam, nesta ordem,
ocupado progressivamente a região.
De acordo com Curt Nimuendaju (Apud Buchillet, 1990: 3), “a primeira onda teria
sido constituída por grupos de cultura bastante rudimentar, desconhecendo a lavoura,
nômades e vivendo essencialmente da caça e da coleta”, ou seja, os Maku. Numa segunda
onda migratória, teriam vindo do norte, os grupos de origem Aruak e, do oeste os grupos de
língua Tukano. A última onda de povoamento foi representada pela ocupação não indígena,
resultando numa cultura interétnica caracterizada pelo uso da língua geral e certos rituais e
festas (Jurupari e Dabucuri). Ao observar a diáspora Aruak, Hill (1996:159) argumenta que
quando os Tukano orientais chegaram da bacia do Uaupés, as fratrias Aruak do alto rio já
estavam estabelecidos.
Os diversos grupos lingüísticos e dialetais de origem Aruak, Tukano e Maku fazem
parte de uma área etnográfica específica no bojo da cultura indígena amazônica. Além de
similaridades nos sistemas tecnológicos, econômicos e de crenças, os diversos grupos étnicos
que habitam o alto rio Negro mantinham – e mantêm em certa medida - uma complexa rede
de relações sociais envolvendo trocas materiais, sociais e simbólicas.
Esta rede multiétnica se conectava a outras. Os grupos da família Arwak, também
estavam ligados ao sistema macro-regional que Arvelo-Jimeno chama de Sistema de
Interdependência Regional do Orinoco (2001). De forma semelhante, os Manaus do baixo rio
Negro mantinham relações com grupos indígenas Karib através do rio Branco.
39
Mapa: 2 – Diversidade étnica do Noroeste Amazônico
Fonte: I SA/2007. (socioambiental.org/pib/epi/nwam/localiza.shtm.)
Os grupos indígenas pertencentes às famílias lingüísticas Tukano e Aruak são
comumente chamados na literatura etnológica da região de índios do rio, enquanto os Maku
são reconhecidos por serem os índios da floresta. Segundo Buchillet, a floresta e o rio
representam dois tipos distintos de adaptação ecológica e ideológica que fundamentam as
modalidades de relação entre os diversos grupos indígenas desta região (1990: 03).
Os primeiros moram em pequenos povoados ao longo das margens dos rios e em ilhas.
A maloca, onde morava a família extensa virilocal foi substituída por casas monofamiliares
dispostas paralelas ao rio devido à intensa ação missionária na primeira metade do século XX.
Os grupos da família Maku são seis. Nadob, Dow, Hupda, Yuhupde, Kakwa (ou Bara)
e Nukak se dispersam num território cuja forma é um arco que vai desde a margem esquerda
do médio rio Japurá até o rio Inírida no sudeste da Colômbia.
Cabe observar que alguns grupos Maku também participam desta interação intertribal
realizada entre Aruak e Tukano, mas de forma marginal. É interessante notar que ao longo do
40
arco territorial dos Maku há pontos de encontro com distintas regiões ocupadas por grupos
ribeirinhos.
Os interflúvios formados entre o alto curso dos rios Içana e Uaupés é um importante
ponto de encontro entre os territórios Aruak e Tukano e os grupos étnicos desta micro-região
tinham uma singularidade destacada frente ao Aruak e Tukano, sendo genericamente
denominados de Boupés (Wright, 2005). Estes pontos de encontro era espaços propícios para
trocas e produção de novas sínteses sócio-culturais. Este parece o caso de grupos Tukano
aruakizados (Kubeu, Uanano) e dos grupos Aruak tukanizados, como por exemplo, os Tariana
(Hill, 1996).
Na medida em que as trocas matrimoniais entre unidades sociais (grupos lingüísticos
e fratrias) permitem vislumbrar a intensidade da interação intertribal, observa-se que os Maku,
diferentemente dos demais grupos indígenas da região, casam-se dentro do grupo dialetal.
Alguns grupos Maku se relacionam, de forma pouco freqüente, com certos grupos Tukano da
região do rio Uaupés, às vezes trabalhando em suas roças e caçando para estes em troca de
produtos industrializados e outros que não produzem.
Entre as características sócio-culturais dos índios do rio que marcam suas diferenças
perante os Maku está sua tradição de horticultores, o fato de habitarem grandes malocas nas
margens dos rios, possuírem uma complexa organização social, envolvendo ritos de iniciação
masculina com flautas proibidas às mulheres, uso de plantas mágicas (Banisteriopsis sp.),
exogamia lingüística, além da observação de tabus alimentares em diversas ocasiões
específicas. Concebem a floresta como um espaço potencialmente ameaçador, cheia de
espíritos malévolos e por isto a temem e respeitam.
Buchillet afirma que a regra da exogamia lingüística, presente na organização social
dos grupos Tukano Oriental, faz com que a procura de cônjuges extrapole necessariamente os
limites do grupo lingüístico, propiciando desta forma a interação entre diferentes grupos
étnicos e a “aculturação intertribal” (1990: 05). A exogamia lingüística é uma valor peculiar
da organização social dos grupos Tukano e foi uma importantes estratégia de resistência
frente as ondas migratórias de fratrias Arwak durante o período colonial (Hill, 1996:159).
1.2.2 - Os Tukano Oriental
Entre os Tukano Oriental existem 16 grupos lingüísticos, a saber: Tukano, Desana,
Kubeo, Wanana, Tuyuka, Pira-tapuya, Miriti-tapuya, Arapaço, Karapanã, Bará, Siriano,
41
Makuna, Tatuyo, Yuruti, Barasana e Taiwano. Os últimos quatro grupos moram em território
colombiano.
A troca de irmãs entre grupos patrilineares exogâmicos, através de um sistema de
aliança prescritiva simétrica, é a base do sistema social comum aos diversos grupos Tukano.
(Hugh-Jhones, 1979; Buchillet, 1983, 1990b apud Oliveira, A., Meira, M., Pozzobon, J., 1994
). A língua e a especialização artesanal são os principais critérios de distinção dos grupos
sociais. A exogamia lingüística propicia além das trocas matrimoniais, trocas de bens e
serviços. “Casam-se indivíduos que possam aplicar-se reciprocamente os termos para afins
segundo a terminologia de estrutura dravidiana” (Oliveira; Pozzobon; Meira, 1994: 37).
A maioria dos grupos não possui território definido, embora a distribuição espacial
dos diferentes grupos étnicos/lingüísticos ao longo do curso dos principais afluentes do rio
Negro e seus respectivos tributários seja informada por meio das narrativas míticas.
No caso dos grupos da família Tukano, que habitam tradicionalmente o rio Uaupés, a
distribuição especial dos distintos sibs de um mesmo grupo lingüísticos se na viagem da
canoa da transformação. Desde sua saída do Rio de Leite
13
a cobra-canoa levou uma proto-
humanidade que em cada localidade do rio se tornava um povo distinto, com língua e
território próprio.
Os grupos com maior status irmãos maiores - ocupam o baixo curso dos rios, locais
mais piscosos, enquanto que os de menor status irmãos menores - ocupam as cabeceiras dos
rios, onde o leito é mais estreito. A hierarquia cerimonial entre irmão maior e irmão menor é
ponto de referência mítico para a organização social dos sibs. Cada povoado é uma unidade
econômica independente.
1.2.3 - Os Aruak
Os grupos étnicos do tronco lingüístico Aruak são genericamente conhecidos como
Baniwa, Kuripaco, Baré, Werequena e Tariana. Os territórios tradicionais dos grupos da
família Aruak se estendem ao longo de todo médio e alto rio Negro e seus afluentes, com
exceção do rio Uaupés. Um grupo Aruak que habita o Uaupés é o dos Tariana, que migraram
para lá há cerca de três séculos e atualmente falam a língua dos Tukano.
O termo Baniwa é um termo em língua geral usado para se referir aos povos Aruak do
rio Içana. As variações dialetais entre as fratrias não impedem a comunicação e a interação
13
Segundo Cristiane Lasmar (2005), o ponto de partida da canoa da transformação foi a Baía de Guanabara no
Rio de Janeiro.
42
entre elas, que se consideram-se “nós” frente aos grupos Tukano e Maku. Possuem vinculação
lingüística e cultural com os Baré e Tariano. (Idem)
Da foz do rio Negro até as imediações de Santa Isabel habitavam, até meados do
século XIX, diversos grupos genericamente denominados de Manaós. Estes foram
completamente extintos até o final do século XIX devido à guerras declaradas, epidemias,
trabalhos forçados e outras violências da conquista colonial.
Deste trecho para cima era o território dos grupos genericamente denominados de
Baré, como os Mandahuaca, Manacá, Bária, Cunipusana e Pasimonare, sobre os quais muito
pouco se sabe. Acredita-se que tenham sido clãs exogâmicos separados de um troco comum
por volta de meados do século XVI. De acordo com Perez, o termo Baré é derivado de bari
que significa branco, ou seja homens brancos em contraposição a homens negros (1988: 446).
Os Manaos e os Baré foram os povos indígenas mais impactados pelo conquista
colonial. Como mostra Meira (1994), desde o início da colonização foram empregados como
mão de obra na extração da borracha e de outros produtos. Também serviram de
intermediários entre comerciantes e grupos indígenas mais isolados, como por exemplo os
Dow (Maku).(1994:337).
Depois de sofrerem os efeitos etnocidas do contato interétnico foram ambos
considerados extintos. Os Baré conseguiram migraram para o sul da Venezuela, continuando
em território Aruak, onde puderam manter a língua e outras tradições culturais. Muitos outros
buscaram refúgios em território de povos inimigos, o que lhes causou novos infortúnios.
No médio rio Negro, por exemplo, um grupo de Baré resistiu até meados de do século
XX subindo até o alto rio Cauburis. Todavia ficaram espremidos entre os Yanomami que
vieram do Norte e os comerciantes da borracha no rio Negro (Meira, 1994: 340). Não se sabe,
porém que rumo tomaram. Parece que rumaram, através de varadouros, para o alto curso do
rio Negro nas imediações de Marabitanas conforme o depoimento de uma moradora Baré de
Cucuí.
Pelo meu conhecimento os Baré ocupavam a calha do rio Negro desde o canal de
Cassiquiare (Venezuela) até o médio rio Negro. Hoje, se não me engano, existem grupos no
baixo xié e no baixo Içana. Existiram anos atrás uma guerra entre dois grupos: Yanomami e Baré
no rio Marauiá (Marajá). Desde essa vez os Baré começaram a se espalhar, abrindo varadores
(caminhos) para vários lugares, seja por terra e por rios. Falarei alguns: do rio Cauburis (não
identificado) passando pela serra do Machuca (farinha) a foz do Ia (calango da água). Outro
grupo que ficaram no Matchuca foram para o rio Ciapa (Venezuela) passando pelo Orinoco.
Hoje esses varadouros permaneceram como trajetos dos Yanomami. Assim começaram a se
espalhar com a chegada dos regatões, tornando escravos. Vendendo os produtos como borracha,
sorva e piaçava, eram mal pagas pelos patrões. E assim foram se espalhando. Serviram de
marinheiros (moradora de Cucuí apud Silva, 2001: 25).
43
Em meados da década de 1940 Nunes Pereira relatou que “os Baré ao tempo da
conquista constituíam uma grande tribo, sendo, incontestavelmente, os senhores do rio Negro,
como reconheceram Meillet & Cohen (...) Hoje são bem raros os baré, em todo o rio Negro,
mas vimos mais de 15 deles no Jurubaxi, abaixo de Santa Isabel. E entre eles encontramos
vários narradores da literatura oral de sua tribo” (Apud Oliveira, 2001).
Depois de passarem pela extinção declarada, os Baré passaram a reaparecer no Brasil
num processo de reconstrução da identidade indígena pautada na revalorização de suas
tradições culturais e na reivindicação de direitos que garantam sua reprodução social e
cultural.
Atualmente os Baré estão em toda a extensão do rio Negro desde sua foz até o canal
de Cassiquiare no sul da Venezuela e, inclusive, nos núcleos urbanos de Manaus, Barcelos e
Santa Isabel. Dominique Buchillet estima que sua população atual seja de 1500 pessoas.
Entretanto, nota-se que nos últimos dez anos, o número de indivíduos que se identificam
como Baré cresceu vertiginosamente, principalmente no médio e baixo rio Negro. No
contexto do processo de etnogênese no rio Negro, observa-se que o termo Baré também se
tornou um “curinga identitário” em casos em que o indivíduo sabe que é índio, mas
desconhece suas origens e a de seus antepassados.
A conquista colonial do rio Negro também levou indivíduos de diversas outras etnias
para longe de seus territórios tradicionais e em direção ao baixo rio Negro. Entre São Gabriel
da Cachoeira e Barcelos pode-se encontrar representantes de quase todas etnias originárias do
alto rio Negro (Oliveira, Pozzobon e Meira, 1994; Pereira, 2003; Peres, 2003), mas
principalmente Baré, Baniwa e Tukano.
É interessante notar que se por um lado a configuração multi-étnica que se observa
atualmente nas comunidades situadas nos cursos baixo, médio e alto do rio Negro é resultante
dos processos históricos de descimentos e migração compulsória, instaurados pela conquista
colonial. Por outro lado, motivos próprios da organização social indígena (como a busca por
áreas mais piscosas e terras mais férteis, a migração devido à morte de parentes ou acusações
de feitiçaria) também foram importantes fatores deste processo.
1.3 - A população indígena do médio rio Negro
O médio rio Negro possui uma diversidade social ainda muito pouco conhecida.
Atualmente é habitado por uma população multi-étnica marcada pelo processo histórico de
mestiçagem biológica e cultural que se desenrolou ao longo da constituição da sociedade
extrativista na primeira metade do século XX. Os principais grupos sociais que interagiram
44
neste contexto de uma “cultura de fronteira” foram os portugueses, indígenas de distintas
etnias e uma pequena quantidade de nordestinos.
Se por um lado as formas de acesso coletivo e o uso dos recursos naturais são um fator
de identificação coletiva entre os moradores de comunidades e sítios da zona rural, por outro,
o crescimento da auto-declaração indígena delineia fronteiras sociais mais circunscritas a
redes de grupos familiares que demandam reconhecimento no contexto das políticas de
identidade.
O IBGE apontou no ano 2000 que 34% dos 10.561 habitantes do município de Santa
Isabel do rio Negro se auto-declararam indígenas e que esse percentual no município de
Barcelos era menor, embora a quantidade numérica fosse superior. Em Barcelos 25,6% dos
24.197 se identificou como indígena frente aos agentes do senso (IBGE 2000, apud Almeida,
2006).
Em levantamento feito para subsidiar políticas públicas de saúde indígena em 2000,
Peres e Oliveira (FOIRN/ISA, 2000) apontaram a existência de 44 comunidades e 52 sítios ao
longo do rio Negro e seus afluentes, no município de Barcelos. Se cruzarmos as informações
da FUNAI (2002) com os dados da FOIRN/ISA (1998), chegaremos próximos à soma de 50
assentamentos humanos, entre comunidades e sítios.
em 2002, a FUNASA informava que o DSEI do Alto Rio Negro contemplava 2013
indígenas em Barcelos e 2000 em Santa Isabel, distribuídos em 27 e 20 comunidades
respectivamente em cada município.
Ainda em 2002 a FUNAI
14
identificou 22 comunidades indígenas no município de
Barcelos e 23 em Santa Isabel, com populações de respectivamente 1273 e 1242. Associadas
a estas comunidades havia uma quantidade menor de sítios que não foram computados.
Recentemente a emergência das organizações indígenas em Barcelos e Santa Isabel tornou
visível a população indígena rural e urbana. Em Barcelos os dirigentes da ASIBA estimam
que cerca de 40% da população total do município é indígena (Peres, 2003: 241), o que
equivaleria à cerca de 8.000 pessoas. Em Santa Isabel um ativista indígena que já foi
presidente da ACIMRN me assegurou que neste município à população indígena
corresponderia à mais de 90% do total.
Segundo Peres (idem: 253) 48% da população indígena do município de Barcelos se
identificam como Baré, 24% como Baniwa, 14% Tucano, 5% Desana e 9% outras etnias
15
.
14
A Funai identificou 44 comunidades situadas em Barcelos e Santa Isabel, apontando para um total de 2.515
pessoas, sendo que 90 % deste contingente se identificou com alguma etnia indígena.
15
Com exceção de uns raros Tikuna e Wapixana, a maioria é proveniente do Noroeste Amazônico.
45
Sítios e comunidades são as formas elementares da vida na zona rural do rio Negro.
Colocações são locais de trabalho e não unidades residenciais propriamente ditas, embora
algumas sejam sazonalmente ocupadas. Os sítios são unidades residenciais que abrigam
apenas uma família e são desprovidos de qualquer assistência pública. Atualmente a maioria
dos moradores dos sítios acessa serviços oferecidos nas comunidades.
As comunidades são unidades residenciais mais inclusivas, onde são oferecidos
serviços públicos básicos como educação e saúde. Geralmente abrigam uma quantidade de
moradores que varia de 40 a 100 pessoas. Em toda a extensão do rio Negro, apenas cerca
de 10 núcleos populacionais com mais de 150 pessoas. No médio rio Negro, apenas as
cidades de Barcelos e Santa Isabel do rio Negro e as comunidades de Floresta e Cumarú têm
mais de 100 habitantes. A primeira está altamente envolvida com o extrativismo de peixes
ornamentais; a segunda é a sede de um Pólo Base do DSEI do Alto Rio Negro.
Em Barcelos, o centro urbano concentra atualmente mais de 60% da população total
16
do município. Em Santa Isabel do Rio Negro uma grande concentração de sítios e
comunidades em ilhas e foz de rios afluentes próximas à sede municipal e ao longo das
margens no curso do rio até a comunidade Maçarabi.
16
Segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde a população do município era de 7.277 pessoas em 1999.
46
47
Fatores sócio-culturais indígenas e aqueles associados à expansão das fronteiras
históricas ao longo dos séculos XIX e XX certamente impuseram limitações à concentração
populacional no rio Negro. A hegemonia do sistema extrativista no século XX teve forte
impacto nos padrões produtivos e na organização espacial dos índios que repovoaram o médio
rio Negro. A ênfase no extrativismo provocou uma diminuição na atividade de agricultura e
concentrou indivíduos e famílias nas proximidades de nichos de recursos extrativistas
17
valorizados pelo mercado.
De uma forma geral, no médio rio Negro, os caboclos indígenas e não-indígenas que
residem em comunidades e sítios possuem uma territorialidade específica
18
(Almeida, 2005:
25), baseada no regime de uso comum dos recursos naturais. A circunscrição do
pertencimento coletivo para fins do acesso comum aos recursos naturais é dada tanto pelo
parentesco como pela co-residência.
Destaca-se, nesta modalidade de uso dos recursos, a preponderância dos ambientes
aquáticos. Unidades de paisagem terrestres também se constituem como espaços de uso e
ocupação destas coletividades organizadas pelo parentesco e co-residência. um consenso
sobre as áreas de ocupação e exploração de recursos entre comunidades vizinhas.
Os limites entre as comunidades são geralmente marcados por acidentes naturais,
principalmente cursos d’água. Este consenso sobre as áreas de determinados grupamentos de
parentesco apresenta as bases para a definição dos “territórios” atualmente reivindicados pelas
comunidades indígenas da região.
Os principais recursos naturais explorados por este segmento são a fauna aquática, as
terras agricultáveis, as fruteiras silvestres (castanha, tucumã, inajá, ucuqui, açaí), madeiras e
palhas dispersas na área da comunidade. No ambiente aquático, peixes e quelônios são
preferidos. A caça é esporádica e associada a outras atividades como a coleta. Todavia
representam importante complemento protéico.
No rol de conhecimentos econômicos e ecológicos construídos pela população
regional destacam-se as modalidades de entendimento e relação com a natureza baseado em
tradições de origem indígena. Os índios da zona rural não têm título de propriedade ou posse
17
Entre estes nichos se destacam as seringueiras e outras árvores que produzem látex e os piaçabais nas ao longo
dos rios Padauiri/Preto e seus igarapés. A maioria das árvores de borracha se situa em ilhas e áreas sujeitas à
inundação temporária. Os piaçabais são encontrados em sua maioria em margens inundáveis. Ainda na margem
esquerda o rio Araçá é outro ponto de referencia para a extração da piaçava. Na margem direita existem diversos
castanhais.
18
(...) as delimitações físicas de determinadas unidades sociais que compõem os meandros de territórios
etnicamente configurados [e que] podem ser considerados como resultantes de diferentes processos sociais de
territorialização e como delimitando dinamicamente terras de pertencimento de coletivo que convergem para um
território” (idem).
48
dos terrenos que ocupam, mas apenas o reconhecimento por parte da prefeitura de sua
ocupação.
A população indígena desta região tem uma alta mobilidade espacial e desloca-se
constantemente para visitar parentes, utilizar serviços públicos e para trabalhar no
extrativismo, sendo que conflitos internos e escassez de recursos são motivos para a migração
e a mudança do local de residência. Como veremos no próximo capítulo, uma série de
choques e mudanças territoriais e sociais, assim como diversas ondas de despovoamento, que
se processaram ao longo da história da região, tiveram influências sobre a mobilidade espacial
própria dos povos indígenas, influenciando a conformação dos atuais padrões migratórios
intra-regionais e a organização sócio-espacial no médio rio Negro.
1.4 - Médio rio Negro como objeto de estudo antropológico
1.4.1 - Os estudos de aculturação
O médio rio Nero ficou totalmente marginal em relação a esta produção etnológica
sobre o Noroeste Amazônico. As razões para estão esquecimento está associada à dizimação
das sociedade indígenas autóctones e da constituição da sociedade extrativista no final do
século XIX. A “ausência” de indígenas não atraiu a atenção de cientistas sociais. Tampouco
figurou como espaço da ação da agencia indigenista oficial na região.
A literatura sobre o dio rio Negro e sua população é extremamente escassa e se
limita aos estudos de aculturação empreendidos por Eduardo Galvão e Adélia Engrácia de
Oliveira nos anos de 1970.
Do ponto de vista da antropologia temos Eduardo Galvão (1955, 1959, 1979), Darcy
Ribeiro (2004 [1970]) e Oliveira (1971), enfocando a questão da mudança social e o processo
de assimilação do índio na sociedade regional. A orientação geral destes estudos tem um viés
do marxismo e da teoria da aculturação. (Cardoso de Oliveira, 1981[1964]). Nessa ótica,
discutiu-se se os índios da região poderiam ser enquadrados como “camponeses”. A cultura
indígena é percebida como em termos de substancia e unidade sujeita a processos de perdas
ao longo de sua inexorável inserção na “sociedade regional”.
Gow argumenta que os estudos de Galvão produziram a constatação de que os índios
da região, como haviam sido destribalizados e aculturados, foram se transformando em
camponeses na medida em se integravam à sociedade regional e nacional e perdiam
elementos de sua cultura indígena “tradicional”, o que os tornava, de certo modo, um “objeto
menor” para uma análise etnográfica.
49
Galvão denomina genericamente a sociedade do médio rio Negro “sociedade cabocla”
e oscila em enfatizar as perdas culturais e a atualização da cultura indígena na região. Ao
abordar a mudança cultural Galvão chamou a atenção “(...) para os processos gerais de
formação e desenvolvimento da cultura e sociedade caboclas (...), [utilizando] como método
de abordagem a análise da área cultural como um todo, deixando para mais tarde a análise de
comunidades representativas de diferentes faixas de aculturação” (1979: 121).
Interessado em caracterizar e distinguir as diferentes faixas de aculturação ao nível
regional, Galvão se concentrou em análises sobre a imersão dos caboclos e indígenas na
economia regional enfatizando principalmente a ação de comerciantes e regatões que faziam
descimentos de índios destinados aos trabalhos da coleta de borracha, castanha e piaçava.
A integração na sociedade regional se expressava pelo engajamento em sistemas de
trabalho controlados por agentes e agências nacionais e pela dependência que passavam a ter
de bens materiais e pelo acesso a bens simbólicos da sociedade nacional.
Embora Galvão sustente uma visão fatalista do processo de assimilação, alguns
elementos importantes sobre as dinâmicas sócio-culturais da região podem ser extraídos de
interessantes observações que fez. No que se refere a fornecer pistas etnográficas sobre os
processos que ocorriam no médio rio Negro em meados dos anos de 1950, três artigos de
Galvão possuem significativa importância: Mudança cultural na região do rio Negro,
publicado pela primeira vez em 1954, Aculturação indígena no rio Negro, relativo à
observações feitas em duas viagens de campo realizadas em 1951 e 1954-5, e, finalmente,
Encontro de sociedades tribal e nacional no rio Negro, Amazonas, publicado em 1979.
Em todos os artigos Galvão enquadra caboclos e indígenas como indivíduos em fase
de assimilação na sociedade regional. Mas oscila em vários momentos, acentuando a
vitalidade de formas de pensar e fazer indígenas. Galvão abordou os “índios” dos povoados
da região como indivíduos que se inseriam progressivamente no contexto de uma sociedade
regional, sofrendo pressões dissociativas e desagregadoras do trabalho extrativista. Estes
fatores minavam a manutenção das formas de vida e “as normas tradicionais tal como nas
malocas de onde procedem” (idem).
Para Galvão o caboclo era uma categoria que indicava a proximidade com a sociedade
regional e a inexorável transformação do índio em caboclo em seu processo de assimilação à
sociedade nacional.
O autor enfatiza ainda que as crenças e formas culturais e organizacionais indígenas
foram atenuadas e perderam suas expressões rituais. Um princípio implícito no modelo das
perdas culturais é a dicotomia radical entre tribal e nacional, tradicional e moderno,
50
impossibilitando ver a questão da mudança e da transformação através de um viés positivo,
através do ponto de vista dos sujeitos que a vivem.
Em várias observações Galvão apresenta indícios que nos levam a pensar num “outro
sentido da aculturação” no rio Negro (Gow, 1991), evidenciando a força e a vitalidade do
pensamento, do conhecimento e das formas adaptativas indígenas. O autor não se restringe ao
plano da cultura material e relata também a persistência do “reconhecimento de parentesco e
de filiação aos sibs e linhagens tribais”, bem como a persistência de crenças indígenas em
seres encantados e festas de dabucuri.
No trecho abaixo, o autor enfatiza a presença de modelos organizacionais indígenas e
sua atualização pelos índios descidos do alto.
O índio, recentemente “descido ou de segunda geração e fixado nos sítios e
seringais, não atua como elemento simplesmente passivo que engajado na economia local e
tendo abandonado a sociedade tribal substituiu seus elementos culturais pelos do caboclo com
quem está em convívio. Pelo contrário, atua sobre a cultura do caboclo reavivando nelas os
elementos indígenas herdados na geração passada (1979: 123).
No artigo de 1959, Galvão se convence de que “restará sempre um núcleo
tradicionalista constituídos por indivíduos emocionalmente inadaptáveis às novas condições e
que tentarão manter vivas a língua, as tradições e o sentido de comunidade” (1959: 144).
Em artigo publicado em 1971, Engrácia de Oliveira descreveu e analisou algumas
particularidades de um povoado situado nas proximidades Santa Isabel do Rio Negro. A
autora menciona que tinha a intenção de pesquisar um grupo indígena do alto rio Negro e por
impossibilidade de transporte decidiu realizar a pesquisa nas proximidades de Tapuruquara.
Em 1972 o povoado era habitado por 50 pessoas distribuídas em 11 famílias nucleares,
dentre elas “elementos de extradição indígena recente”, como o Tukano, Baniwa, Baré,
Piratapuio e Tariana. A vida para os grupos familiares indígenas não era como a dos não-
indígenas, pois “o preconceito com o índio é bem acentuado nessa área” (:33). Neste contexto
os índios taxados de “ladrões, preguiçosos, mentirosos e bêbados”, eram pressionados para
esconder e minimizar sua origem indígena.
Oliveira apresenta a genealogia da comunidade e distingue a existência de famílias
extensas e famílias nucleares. Argumenta que a comunidade se organizava numa hierarquia
em função da origem étnica do indivíduo estando os índios do Uaupés e Içana em posição
inferior.
Em 1971 havia dois moradores presos por dívidas e se observava uma diminuição
da atividade extrativista e a intenção dos moradores locais de se dedicar mais à agricultura.
51
Todavia, um comerciante de São João havia ido até o rio Uaupés, de onde “trouxe” cerca de
dez pessoas que “vieram para fazer roçado e trabalhar com as variedades de gomas,
principalmente a seringa e a ucuquirana” (op. cit.: 05). Oliveira menciona que este mesmo
sujeito foi posteriormente ao rio Içana de onde trouxe aproximadamente quatro pessoas.
A pesquisa de Adélia Engrácia de Oliveira apresenta valiosas descrições etnográficas
sobre o início da década de 1970, embora seu enquadramento teórico geral não contribua para
dar visibilidade aos “índios descidos” como sujeitos ativos de sua história e, neste sentido,
como objetos legítimos da análise antropológica.
Além de ter abordado o médio rio Negro por acaso, os caminhos de pesquisa que a
autora sinaliza na conclusão do seu artigo direcionam os esforços de investigação num sentido
contrário ao entendimento das trajetórias e experiências dos grupos familiares indígenas.
Engrácia de Oliveira rotula a comunidade São João como campesina e volta suas perspectivas
para a sociedade nacional, chamando a atenção para a importância de estudos mais detidos
nos fatores que levaram a decadência do sistema de aviamento na região.
52
CAPÍTULO 2 - HISTÓRIAS DE FRONTEIRA E HISTÓRIAS INDÍGENAS
2.1 – A conquista colonial do rio Negro
Neste capítulo apresento uma esquemática contextualização histórica da conquista
colonial e imperial brasileiro (1670 1870), apontando para descontinuidades e as re-
configurações sociais que resultaram na construção de novos perfis sociais e territoriais na
região. Chamo atenção para a especificidade da história do médio rio Negro, a qual pode ser
entendida como uma fronteira histórica regional (Little, 2001) marcada por fluxos
descontinuados de ação colonial e nacional.
As observações de Hill (1996) sobre o processo de etnogênese no alto rio Negro são
bastante esclarecedoras das descontinuidades do processo histórico e das etnogêneses
deflagradas no rio Negro.
A história das relações interétnicas no alto rio Negro não é caracterizada por uma
suave, progressiva incorporação dos povos indígenas Aruak dentro dos impérios coloniais ou
dos Estados-Nações, mas por períodos de intensas mudanças seguidas de períodos de
recuperação durante o qual os povos indígenas retornaram para suas terras ancestrais para
formar novas alianças. O final dos séculos XVIII e XIX foram períodos de um intenso nível
estatal de expansão no alto rio Negro e grandes mudanças irreversíveis para as sociedades
indígenas da região. Cada um desses períodos de mudança intensificada foi seguido de períodos
de declínio do nível estatal de poder e permitiu as sociedades indígenas se recuperarem das
perdas de população, terra e autonomia. Foi precisamente durante estes períodos de recuperação
depois de grandes mudanças traumáticas que a etnogênese floresceu na região do alto rio Negro
(1996: 152).
Através da noção de fronteira (Martins, 1997; Nugent, 1998) enfatizo as
descontinuidades históricas e as peculiaridades do sistema social estrutura e reestruturado ao
longo do processo de constituição de um território colonial e nacional nesta região. Os
sistemas de fronteira devem ser referenciados a momentos históricos específicos.
Focalizaremos a história da região a partir da conquista colonial.
No período que vai de 1550 a 1650 acontecem as primeiras expedições, onde os
Portugueses tomam conhecimento da região e começam a planejar a captura de escravos. As
primeiras passagens de europeus pela região no século XVI fomentaram o intuito de
conhecer a região a ser conquistada e iniciar a captura de escravos indígenas. Antes mesmo da
criação do Forte da Barra, atual Manaus, a região passou a ser alvo de comerciantes e
traficantes de escravos de Belém na segunda metade do século XVII. A grande mortandade
53
dos grupos indígenas do tronco lingüístico Tupi e a necessidade de mão de obra
19
explicam
em parte a expansão portuguesa rumo ao oeste da província do Pará.
Todavia, a colonização ganhou ímpeto com a construção de um forte da foz do rio
Negro, em 1669, o que permitiu o estabelecimento das primeiras bases territoriais coloniais ao
longo do rio. A primeira delas foi o povoado de Santo Elias do Jaú, formada em 1694, gerido
por padres Carmelitas e formado pelo aldeamento de índios Tarumã na margem direita do rio
Negro (Leonardi, 1999: 25).
As ações historicamente entrecruzadas, justapostas e intercaladas de militares,
missionários e comerciantes, promoveram intensas e distintas transformações na estrutura
social da região. Esta tríade colonial, que se estabelece mais fixamente a partir do XVIII, foi a
principal força motriz que permitiu a efetivação dos interesses territoriais e mercantis dos
portugueses no rio Negro.
É, entretanto, nas primeiras décadas do século XVIII no rio Negro que ocorrem as
primeiras grandes transformações na estrutura social e territorial da região. Além dos
aldeamentos e dos descimentos, são construídos fortins e fortalezas e realizadas guerras
prolongadas com povos indígenas estrategicamente definidos como inimigos.
Desde as primeiras expedições de reconhecimento e captura de cativos até meados de
1750, a conquista do rio Negro teve como base as precárias e instáveis unidades de
povoamento coloniais gerenciada por missionários.
A construção de uma infra-estrutura militar na foz do rio Negro (então chamada de
fortaleza da Barra) em 1669 foi o primeiro passo para a instauração de uma territorialidade
colonial
20
no rio Negro, permitindo a entrada de militares e missionários portugueses numa
região altamente povoada pelos povos indígenas pertencentes à família linguística Arwak,
principalmente os Manaós e Tarumã. A atividade dos descimentos
21
e as agarrações
22
de
índios para serviços compulsórios foram os elementos perenes da política colonial durante o
processo da conquista das terras e dos corpos indígenas.
19
Victor Leonardi (op.cit) aborda muito bem como o tema sempre presente da escassez de mão de obra era
ideologicamente importante na mentalidade colonial, tanto que encontrou espaço na historiografia tradicional. O
argumento central deste artifício ideológico é a difundida equação que associa o insucesso da colonização à
indolência do nativo.
20
Baseada no estabelecimento de fortes e aldeias missionárias, bem como na prática do descimento de índios
escravizados ou “resgatados” por tropas militares e particulares. Outro elemento importante da territorialidade
colonial foi o estabelecimento de alianças com grupos habitantes das fronteiras coloniais.
21
Processo de captura de índios de distintas etnias para o aldeamento ou para servirem de escravos nas obras
públicas e para a elite dos núcleos coloniais.
22
Mobilização da força de trabalho através da coerção.
54
Aos indígenas descidos e aldeados juntavam-se mais índios descidos e, assim, as
aldeias funcionavam como reserva de mão de obra não só para os missionários, como também
para os núcleos coloniais emergentes mais próximos. A organização social dos aldeamentos
era controlada por missionários carmelitas através do intermédio de lideres locais (“principais
indígenas”)
23
. Os principais eram chefes de grupos indígenas, aliados dos portugueses, que
passavam a habitar as aldeias controladas pelos missionários. A população aldeada no médio
rio Negro era formada basicamente por índios do alto e médio rio Negro, principalmente por
remanescentes dos Manaós.
Este período inicial foi marcado pela conquista de territórios estratégicos, através da
guerra, descimento e aldeamento dos Tarumã, Manaós, Baré, Baniwa e Tukano. A Coroa
portuguesa, com o apoio de missionários carmelitas, construiu uma cosmografia colonial
(Little, 2002: 04) híbrida, formada com elementos missionários e militares, com um forte
ethos mercantil. Os militares forneciam a força para a aquisição de mão de obra para a
colônia, enquanto os missionários construíam as bases ideológicas da conquista. Aldeias
missionárias e fortes militares eram os lados de uma mesma moeda.
Sob o regime das missões, mercedários e carmelitas administraram o aldeamento São
Elias do Jaú, iniciado em 1694, pouco acima da Foz do rio Negro. Perto da foz do rio Negro,
muitos índios Tarumã foram aldeados em Itarendaua (Moura), outros tantos foram
escravizados e outros subiram o rio Branco, refugiando-se na Guiana. No baixo rio Negro, os
Mura, os Manaós e os Waimiri Atroari eram os grupos mais temidos pelos brancos do baixo
rio Negro, devido aos seus famosos ataques armados aos aldeamentos e vilas.
Os aldeamentos missionários passavam a representar os interesses de Portugal sobre o
território conquista e sobre o “butim” a ser administrado (Souza Lima, 1995: 49). A
conversão dos gentios em cristãos e a imposição de uma cosmografia missionária nos anos
subseqüentes à derrota do lendário Ajuricaba e seus aliados em 1723 tiveram papel central na
conquista colonial.
A década de 1720 deflagrou um longo período de guerras e perseguições aos
indígenas da região, principalmente aos Manaós. Em 1723 a expedição comandada por
Belchior Mendes capturou o líder indígena Ajuricaba e apreendeu cerca de 2000 índios
(Ferreira, 1983: 106). No lugar de uma aldeia dos Manaós foi criada, em 1724, pelos padres
carmelitas a aldeia de Mariuá, a principal da região, a qual foi, trinta anos depois, elevada à
23
“Principal” era o nome dado aos líderes indígenas aldeados. Para uma análise da figura dos principais
indígenas na Amazônia portuguesa ver o capitulo 5 da tese de doutorado de Almir Diniz de Carvalho Júnior
(2005: 215).
55
categoria de vila, ganhando um nome português (Barcelos) e centralidade na política colonial.
Com a guerra declarada aos Manaós, durante os primeiros anos da cada de 1720, os
portugueses prosseguiram devassando o rio Negro a montante, forçando os índios a descerem
o rio e se fixarem nos núcleos coloniais e em suas imediações. Wright mostra que, entre 1738-
1744, oito mil escravos foram certificados na aldeia de Mariuá, outros quatro mil índios foram
retirados de suas aldeias e outros seis mil foram batizados, o que totalizaria uns vinte mil
índios descidos do alto rio Negro ao longo da década (2005: 25).
À montante, diversos grupos Manaós ainda resistiram mesmo após a derrota de
Ajuricaba e seus seguidores, sendo que até o final do século XVIII habitaram nos
aldeamentos missionários e povoados coloniais nas imediações de Barcelos e Santa Isabel.
Mesmo trinta anos após a morte de um de seus principais líderes, muitos chefes Manaós
enfrentaram com armas o poder dos missionários
A instauração do Diretório dos Índios em 1757 marcou um novo tempo. Os
missionários foram expulsos e um plano laico para a colonização foi criado (Almeida, 1997),
intensificando os descimentos e capturas de índios e sua utilização como mão de obra. A
definição das fronteiras coloniais, entre Portugal e Espanha, no alto rio Negro foi um fator
importante desta mudança, trazendo novos contingentes de europeus e negros escravos,
promovendo uma maior militarização da região. Foi um período muito violento para as
populações indígenas do rio Negro.
Com o fim do “regime das missões”, militares e agentes coloniais passaram a ter mais
influência na administração do tráfico de índios escravos, promovendo a consolidação da
ocupação colonial, intensificando e consolidando as conquistas territoriais e capturando índios
para viver e trabalhar nas aldeias e vilas coloniais do rio Negro e em Belém.
De acordo com Anísio Jobim, na segunda metade do século XVIII “os Muras
atacavam os habitantes de Moura e dos arredores, pondo-os em fuga (...). (...) outras levas de
índios começaram a chegar, engrossando a população. Eram os Aroaquis, os Cricanas ou
Crichanas [Waimiri-Atroari] e, por fim, perseguidos pelos Muras os Manaós, feroz e bravio”
(Jobim, 1938: 31).
Muitos grupos de índios Baré (e provavelmente outras etnias, como os Baniwa)
migraram para o alto rio Negro e se concentraram no sul da Venezuela. Robin Wright mostra
que entre os Baniwa do rio Içana, este movimento foi em direção ao rio Uaupés. Alguns
grupos de língua Aruak, como os Baniwa e os Kubeo, teriam passado por um processo de
“tukanização”, a partir de meados do século XVIII, ao penetrarem os territórios dos Tukano
Oriental (2005: 73).
56
Mais próximo da foz do rio Negro, os “crichaná”, atualmente conhecidos Waimiri-
Atroari, resistiram através de lutas armadas enquanto puderam, até meados do século XX. A
resistência armada foi uma das principais estratégias adotadas por este grupo para defender
seu território. Diversas “expedições punitivas” e doenças causaram uma drástica redução
populacional dos Waimiri-Atroari, os quais sofreram um etnocídio prolongado até a década
de 1960 quando foram “pacificados” e territorializados pela Funai e inseridos no âmbito
paternalista e tutelar do “indigenismo empresarial” (Baines, 1988).
O controle missionário, que sempre foi um complemento da ação dos militares durante
a guerra de conquista, passava a não ser mais bem quisto pelos administradores coloniais. A
intensidade da conversão e a força da opressão religiosa da conquista também eram
constantes fontes de conflitos e ressentimentos para os índios aldeados. No mesmo ano da
criação do Diretório dos Índios aconteceu a Revolta de Lamalonga, que reuniu vários índios
aldeados contra o controle missionário no médio rio Negro. Este foi um dos mais expressivos
eventos de resistência armada indígena contra a opressão colonial no médio rio Negro que se
tem notícia desde a resistência do líder Ajuricaba (FOIRN/ISA, 1998: 78).
Na revolta de Lamalonga, em 1757, os líderes indígenas desta aldeia reuniram
diversos índios das proximidades e destruíram igrejas de três localidades, matando alguns
agentes coloniais. O processo de rebelião iniciou na aldeia de Lamalonga e, descendo o rio,
novos membros indígenas aderiram ao grupo no povoado de Poiares e investiram contra os
povoados de Moreira e a vila de Tomar. Em Moreira os índios mataram o missionário
carmelita frei Raimundo de Santo Eliseu, entre outras pessoas, e queimaram a igreja local
(idem: 79). Em Thomar
(...) roubarão os moveis preciozos da igreja, degollárão a imagem de Santa Roz;
aplicaram a cabeça da Santa para figura de proa das suas canoas, queimarão-lhe o corpo sobre o
altar, atravessarão o rio para a mergem fronteira, e nella matárão dous soldados somente, porque
tanto os outros soldados, como alguns paizanos, que ali se achavão, se avião refugiado na ilha de
Timoni (Ferreira, 1983).
Destruíram instrumentos sagrados das igrejas, deceparam imagens de santos e
pregaram a cabeça de um deles na proa um de suas canoas. Esta revolta foi interpretada como
sacrilégio, o que forneceu forte motivação ideológica para iniciar um intenso processo de
repressão aos índios revoltosos e uma nova onda de despovoamento na região.
Este evento instaurou um momento de forte tensão na região, deflagrando um processo
de repressão que resultou na perseguição aos revoltosos e o enforcamento de líderes indígenas
em Moreira, propiciando, nas palavras do Padre Noronha, (...) “huma paz e socego, em que
57
até o prezente se tem vivido nesta capitania” (op.cit: 108). Esta paz, certamente, era uma
percepção governamental e colonial da situação vivida na região.
A ocorrência de movimentos de resistência indígena em meados do século XVIII
contra, principalmente, a opressão política e ideológica exercida pelos missionários é
indicativo da resistência dos indígenas do rio Negro. Contudo, parece que a organização
étnica dos tapuios no rio Negro na segunda metade do XVIII sofreu um forte impacto da
supressão armada à revolta de Lamalonga e pela subseqüente intensificação da presença
militar e do tráfico de escravos indígenas.
A Revolta de Lamalonga é o pouco que se sabe sobre os processos de resistência e
formação de alianças e identidades indígenas frente à situação colonial no médio Negro
durante o século XVIII. Pelos relatos de Francisco Xavier Sampaio e do Padre Noronha,
podemos observar a ocorrência de muitas migrações forçadas, criação e dissolução/fissão de
grupamentos indígenas no médio rio Negro, revoltas indígenas e tendências milenaristas.
Ainda neste período, ao comentar sobre a figura de Ajuricaba, Sampaio observava
indícios da forte orientação milenarista indígena (Wright, 2005) que iria se intensificar em
meados do seguinte século no alto rio Negro.
O que na verdade eh mais célebre na história do Ajuricába, he que todo os seus
vassallos, e os mais da sua nação, que tributavão o mais fiel amor, e obediência, com a illuzão,
que fazem na fantazia estas razões, parecendo-lhe, quasi impossível que elle morresse, pelo
dezejo que conservavão de sua vida, esperavão por elle, como pela vinda de ElRei D. Sebastião
esperão os nossos sebastianistas (Sampaio, 1824:112).
Frente ao processo de conquista colonial, os povos indígenas da região reagiram de
maneiras diversas, elaborando estratégias distintas para sobreviverem e manterem a coesão
grupal de acordo com os contextos em que passavam a se inserir. Para muitos dos indígenas
que acabaram se estabelecendo nas aldeias missionárias do médio rio Negro, o ano de 1757
representou uma oportunidade para demonstrar sua insatisfação contra o poder colonial,
resistindo belicamente. As alianças que se formaram em torno desta revolta abrangeram
grande área do médio rio Negro.
A continuidade dos processos de captura para o trabalho compulsório, a contenção
militar das revoltas que aconteceram no médio rio Negro, as fugas constantes de indígenas e a
repressão da cabanagem foram fatores estruturais que agiram contra o processo de etnogênese
dos índios reunidos nas missões.
A segunda metade do século XVIII no rio Negro é marcada pela construção de fortes
em São Gabriel e São José de Marabitanas no alto rio Negro e pela consolidação da presença
58
dos missionários Carmelitas (FOIRN/ISA, 1998: 83). Neste período, consolidam as festas
católicas de santos padroeiros, tradição que se perdura até os dias de hoje na região.
O Tratado de Madrid, firmado em 1750, veio legitimar o processo de expansão
portuguesa sobre áreas que, de acordo com o Tratado de Tordesilhas, pertenciam à Espanha.
A implantação do Diretório dos Índios no ano seguinte representou a mudança oficial de
orientação na política colonial através da instituição de um projeto laico de civilização e na
utopia da mobilização não-compulsória do trabalho indígena (Almeida, 1997).
Trata-se de um período muito tenso para as populações indígenas do rio Negro. A
conquista colonial neste período se acentuou, intensificando a escravidão indígena e
provocando diversos fluxos migratórios e o despovoamento do baixo, médio e alto rio Negro.
Neste período também se intensificam as caçadas aos diversos grupos indígenas dos rios
Içana e Uaupés, ocorrendo diversas ondas migratórias e guerras interétnicas e intertribais.
Como mostra Rita Heloisa de Almeida, a Coroa portuguesa busca dar um sentido mais
programático e civilizatório para a colonização. Para isto criou um plano para a colonização e
civilização dos índios que, embora apresente rupturas e novos ingredientes com o período em
que vigorava o Regime das Missões, continua e consolida as ações colonizadoras anteriores
(op.cit: 14). Buscava-se, acima de tudo, a assimilação dos indígenas à sociedade colonial.
As principais ações do Diretório no sentido da “civilização” da região e dos índios
foram as seguintes: a substituição da língua geral pelo português como língua obrigatória, o
incentivo aos casamentos entre índios e “civilizados”, a delegação do controle político das
aldeias aos colonos civis e militares e a instituição de um sistema de trabalho público. A
Coroa portuguesa buscava a diluição da diversidade indígena no contexto das fronteiras
coloniais em expansão.
Tentou-se também promover a agricultura e o extrativismo com mão de obra indígena.
Estas medidas acabaram por acentuar o controle colonial sobre os índios. O processo de
escravização indígena se mantém e o governo colonial passa a investir na economia
extrativista para fins de exportação.
Neste período são inseridos novos contingentes populacionais de escravos africanos e
se o aumento da presença de colonos portugueses e espanhóis principalmente em torno de
atividades militares e mercantis. Negros africanos de Cabo Verde e Angola, além de
“crioulos” vindos da Bahia e degradados de várias outras capitanias teriam migrado para o rio
Negro entre 1758 e 1778 (Missões Salesianas do Amazonas, 1933: 34).
Em 1775 os principais povoados coloniais do rio Negro, da foz para montante, eram: o
Forte da Barra, Carvoeiro, Moura (Itarendaua), Barcelos (antiga aldeia Mariuá), Tomar
59
(antiga aldeia Bararoá), Poiares (antiga aldeia Jurupariporaceitaua ou Cumarú), Moreira
(antiga aldeia Cabuquena), e Lamalonga (antiga Dari). Barcelos e Tomar eram os povoados
com maior presença de brancos, enquanto os demais eram “lugares de índios”.
Em Barcelos e Thomar havia pelourinhos em praça pública para punir índios que se
negavam a trabalhar para os brancos. Em 1786, o naturalista Alexandre Barbosa Rodrigues
registrou a existência de uma forca em Moreira, provavelmente aquela utilizada para executar
três índios envolvidos na revolta de 1757.
Tabela 1: Perfil étnico dos povoados coloniais em 1775
Villas e Lugares
Grupos étnicos habitantes
Barcelos Manaós, Baré, Baiani, Bayâna e Uariquena
Thomar Manaós, Baré, Yayuaná e Passe
Poiares Manaós, Baré e Passe (descidos do Japurá)
Moreira Manaós e Baré
Lamalonga Manaós, Baré e Baniwa
Santa Izabel Uaupá
Fonte: Sampaio, 1824.
Na tabela 2 abaixo temos um resumo do Mappa dos índios, fogos e de todas as mais
circunstancias que a respeito de cada villa, e lugar de índios na capitania do rio Negro
observou o intendente Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio na correção que dellas fez no
ano de 1775, documento anexo ao Diário de Viagem do Ouvidor Sampaio (1824).
Tabela 2: Demografia das Villas e Lugares do médio rio Negro em 1775 .
Villas e
Lugares
Principais
Capitães
Mores
Sargentos
Móres
Capitães
Alfaiates
Alferes
Todos os
índios e índias
Fogos
(Casas)
Barcelos 1 0 0 1 0 2 724 29
Thomar 3 1 1 0 0 1 579 61
Moreira 4 0 0 0 0 0 276 31
Poiares 3 0 0 1 0 2 508 50
Lamalonga 4 0 0 1 0 0 255 48
Santa Izabel 0 0 0 0 0 0 110 6
Fonte: (Sampaio, 1824).
As vilas de Barcelos, Moreira e Tomar eram locais de maior ocupação não-indígena.
Moreira à essa época era “habitada por muitos moradores brancos que se dedicam a cultura do
café, e cacao, de que já tem bem estabelecidas fazendas. As nações que a habitam são Manáo,
e Baré” (Sampaio, 1824:105). Todavia a população indígena era muito superior.
60
A povoação de contingentes europeus se inicia principalmente por soldados
portugueses que compunham a comissão de demarcação de limites de 1754. Após os términos
dos trabalhos muitos teriam se estabelecido na região e se casando com índias, geralmente
filhas dos líderes indígenas das aldeias. Um caso sui generis aconteceu bem antes disto, em
1693, quando “subindo o rio o Sargento Guilherme Valente, da fortaleza de São José da
Barra, conseguiu relacionar-se com diversas tribus, desposando a filha de um tuchaua da
grande nação dos Manaós.” (Missões Salesianas do Amazonas, 1933: 34). Este registro nos
permite inferir que a dinâmica de geração de filhos de pais “brancos” com mães “indígenas”
se inicia ainda no período das tropas militares, dando início à mestiçagem biológica e cultural
que iria se intensificar ao longo da história nesta região.
Ao percorrer grande parte da Capitânia de São José do Rio Negro, em 1775, Francisco
Xavier de Sampaio e Padre José Monteiro Noronha, passaram pela região do médio rio
Negro, pelos lugares de Poiares, Moreira e Tomar, deixando valiosos registros sobre a
composição étnica dos habitantes destes locais. Além dos índios que habitavam a região à
época de 1775, ambos agentes da coroa portuguesa deixaram registros dos grupos que a
habitavam anteriormente.
Uma importante informação que se depreende dos registros de Sampaio é a
instabilidade das aldeias que eram criadas e re-criadas, com o mesmo nome, em outros
lugares. Processos de rompimento de alianças indígenas também ocorriam e os conflitos
internos entre líderes indígenas de uma mesma aldeia também promoveram a retirada de
contingentes indígenas para outras regiões. (Sampaio, 1824; Jobim, 1961).
O processo de cisão interna das aldeias era muitas vezes motivado por conflitos entre
Principais, o que dava origem ao surgimento de outras aldeias. Lamalonga, por exemplo,
surge a partir de uma cisão entre os Principais de Thomar. O povoado de Moreira surge a
partir de uma cisão interna no lugar de Moura (Sampaio, 1824: 71).
Antes de ser fundada a povoação pelo principal Joseph João Dari, tanto elle como os
índios do seu partido vivão aldeados na aldeia de Bararoá, em quanto não se separárão do
principal Alexandre de Souza Cabacabari. A dezavença que houve entre os dous irmãos, deu
motivo a separação, que se seguio. Fundada a nova aldêa de de Dari, aggregarão-se-lhe os índios
da outra aldeia de Ananidá situada então na margem austral d’este rio, pouco superior a sobre
dita aldeia de Dari (Ferreira, 1982:92).
Com as descontinuidades provocadas por migrações forçadas e o tráfico de escravos e
as inconstâncias do sistema de fronteira rionegrino, cronistas do governo colonial
percebiam, no final do século XVIII, a drástica redução demográfica da região e o estado
61
precário das aldeias e vilas. Nesta conjuntura sócio-histórica, os descendentes dos antigos
indígenas que viviam nos aldeamentos e vilas passam a ser denominados “tapuios”. Moreira
Neto (1988) mostra que o termo tapuio era uma denominação genérica para índios
destribalizados, mas que ainda conservavam seus “nexos comunitários indígenas”.
Ao analisar a região do baixo rio Amazonas, Paul Little (2001) mostra que a formação
dos tapuios como grupo étnico no século XVIII é parte do processo colonial de alienar os
povos indígenas de seus territórios. A guerra contra os Manaós, a formação das aldeias
missionárias, as guerras, epidemias e o tráfico de indígenas produziram efeitos semelhantes
no rio Negro.
A partir de 1784, o Coronel Manoel da Gama Lobo D’almada, então governador do Rio
Negro, percorreu a região promovendo a formação de novos povoados e buscando repovoar
os antigos povoados abandonados. Alexandre Barboza Rodrigues Ferreira relata o clima de
instabilidade social e as deserções nos povoados do rio Negro neste período (1983: 252). O
contínuo processo de redução demográfica das populações indígenas, que perdurou
intensamente até o início do século XIX através do tráfico de escravos indígenas e da
ocorrência de epidemias, causou o amplo despovoamento da população do rio Negro.
Em 1786, Ferreira mostra ainda que Dari, além da decadência da agricultura, tinha
uma população tão diminuta como a das outras povoações do rio Negro. (1983: 94). No fim
do século XVIII o rio Negro estava amplamente despovoado, a economia estagnada e o foco
dos interesses portugueses se deslocava para a foz do rio Negro, para o Forte da Barra. Com a
consolidação das fronteiras no Noroeste do Brasil, Barcelos perde progressivamente sua
importância no contexto das políticas coloniais, dando lugar à emergência do lugar de Barra
como centro colonial do rio Negro.
Tabela 3 – Pessoas livres, índios e escravos no médio rio Negro em 1786
Fonte: (Ferreira, 1982: 719).
Freguesias e
povoações
Das pessoas livre em geral.
Dos índios e dos escravos.
Das pessoas
livres
Dos
índios
Dos
escravos
Dos fogos
Poiares 459 28 366 65 118
Barcelos 1097 227 756 114 89
Moreira 318 63 226 29 23
Thomar 648 79 565 4 62
Lamalonga 208 9 199 ..... 19
Santa Izabel
223 2 221 ..... 15
62
No início do século seguinte, a mudança da capital de Barcelos para Manaus arrefeceu
os interesses coloniais no médio rio Negro, pois os interesses geopolíticos de Portugal sobre a
região estavam praticamente assegurados. Entre 1800 e 1830 o rio Negro foi menos assediado
por interesses coloniais, o que deu certa folga para os índios se re-organizarem. Essa relativa
paz momentânea, que poderia ter fortalecido a formação de novas identidades coletivas, bem
como a re-organização de antigas identidades coletivas na região, foi interrompida pela
Cabanagem.
A cabanagem foi outro evento que despovoou a região, banhando de sangue o rio
Negro e consolidando a decadência de rias vilas e povoados nas décadas que se seguiram.
As fontes históricas indicam que a década de 1830 foi um período de grande violência no rio
Negro com muitas mortes e fugas.
Ocorrida durante a segunda metade da década de 1830, a Cabanagem foi um
movimento de resistência que se iniciou em Belém e se espalhou pelo rio Amazonas
envolvendo as classes populares e provocando revoltas espontâneas de mestiços e tapuios
oprimidos contra as elites locais. A Cabanagem provocou uma nova onde de despovoamento
na Amazônia e, segundo o historiador Décio Freitas, “foi, de longe, a mais sangrenta guerra
civil da América Latina no século XIX. Foi um estupro coletivo, praticado por mercenários.”
(http://www.ufpa.br/beiradorio/arquivo/beira08/entrevista. htm).
Não pesquisas, mas indícios na historiografia, sem o devido aprofundamento no
tema, de que a Cabanagem também causou impactos no médio rio Negro e que os índios da
região lutaram tanto a favor como contra os legalistas. Mas o foco recai sobre Ambrósio
Aires, um líder legalista.
Anísio Jobim (1961: 60), por exemplo, relata a mobilização de Ambrósio Aires,
morador da vila de Thomar, a favor dos legalistas e o engajamento deste “caudilho fugido do
Pernambuco” no combate armado contra os revoltosos. Em meio à “sangueira” Ambrósio
teve que fugir e esconder-se pela floresta, pois “todos os povoados do rio foram devastados”.
Segundo Jobim, o homem de fala mole, grande assassino e sedutor de cunhãs descrito pelo
naturalista Wallace, “devia ser Ambrósio Aires.” (Idem: 49). Não há menções sobre indígenas
neste movimento social.
O contingente que apoiava o governo estava concentrado nas vilas de Barcelos e
Thomar, locais onde vivia um maior número de colonos portugueses e brasileiros. Os demais
63
povoados (e mesmo as vilas) eram majoritariamente ocupados por tapuios e foram, nas
palavras de Anísio Teixeira, devastados (idem)
24
.
Com a repressão dos cabanos, intensifica-se a presença militar na região. Por volta de
1930, o comando militar de Belém enviou uma tropa ao rio Negro com o objetivo de
reconstruir, com mão de obra indígena as fortalezas de São Gabriel da Cachoeira e
Marabitanas. Neste período foi criada a Companhia de Trabalhadores, provocando o
recrudescimento das relações interétnicas.
Desde 1832 a missão do rio Negro voltou a ficar a cargo dos carmelitas e
posteriormente (1880) dos franciscanos, “os quais tiveram forte participação, juntamente com
militares na repressão aos índios e na exploração de seu trabalho, principalmente no
extrativismo.” (FOIRN/ISA, 1998). A partir de 1830 começa a se estabelecer um comercio
mais intenso no alto rio Negro, em torno das cidades de São Gabriel e Marabitanas.
Os impactos da cabanagem e dos recrutamentos compulsórios que se seguiram foram
duradouros, promovendo um intenso despovoamento da região. Em 1854 o Major Hilário
Maxmiliano Antunes Gusmão em sua Descrição da viagem feitas desde a cidade da Barra do
Rio Negro até a Serra do Cucuí atribuiu “o decrescimento que se nota em quazi todas as
Povoações deste rio” à ausência de vigários para obrigar o povo a comparecer aos domingos e
aos dias santificados.
Em 1850, o rio Negro sofre transformação em seu status administrativo, passando à
Província do Amazonas, sendo seu primeiro governador Bento Tenreiro Aranha. Neste
período se retoma novamente a instituição do trabalho compulsório e recria-se a função de
diretor dos índios.
A precária situação dos povoados no rio Negro foi relatada por viajantes nos anos de
1842, 1854 e 1861. Após a cabanagem, onze povoações foram extintas no rio Negro, dentre
elas Poiares e Lamalonga. Trata-se de um momento de progressiva expansão dos interesses
mercantis em produtos florestais do médio e baixo rio Negro. A introdução da navegação a
vapor no rio Negro, em meados de 1850, foi fator importante para impulsionar a economia
extrativista.
A inércia do extrativismo na região, todavia, não era apenas uma questão de
transporte. A grande dependência do trabalho indígena, bem como a crescente escassez” do
24
O ex-prefeito de Barcelos (1981-1985) Edson Marconi foi uma das únicas pessoas que me relatou algo
sobre este período, afirmando que na ilha de São Tomé, abaixo de Santa Isabel, havia uma torre de observação
utilizada para antever a chegada dos cabanos. Não consegui encontrar nenhuma contraprova para esta
afirmação.
64
mesmo são fatores importantes para entendermos porque o extrativismo não tenha prosperado
até o final do século XIX no rio Negro.
Victor Leonardi mostra que, embora houvesse conhecimento de abundantes e
diversificados recursos florestais e animais na região, a colonização portuguesa em Ayrão,
baixo rio Negro, no final do século XVIII, em pouco menos de cem anos de existência
apresentava sinais claros de decadência (op.cit: 35-37). O argumento da “falta de braços” e da
“indolência indígena”, que marca a historiografia tradicional, encobre o fato de que os
colonos não conseguiam, nem queriam trabalhar a terra e a floresta com seu próprio trabalho.
Em 1861, o comércio no rio Negro envolvia a exploração piaçava, estopa, breu, peixe
seco e salsa. O corte de lenha para as embarcações a vapor também foi outra atividade que
começou a se desenvolver neste período.
A economia da borracha nas últimas três décadas do século XIX provocou a entrada
de novos contingentes populacionais “estrangeiros” no rio Negro. Entre 1870 e 1920 observa-
se a ocorrência da migração de comerciantes portugueses e espanhóis a partir de 1880 e a
migração nordestina para a Amazônia em 1890. Com a expansão da economia da borracha
uma nova onda de povoamento e ocupação territorial da região é instaurada pela ação de
seringueiros e comerciantes.
As principais unidades de povoamento deste período não são as aldeias, mas sim os
seringais, as colocações e os sítios, controlados por comerciantes que moravam ao longo do
rio negro. Os comerciantes de borracha foram os principais responsáveis pela exploração do
trabalho indígena neste período e pela migração de um grande contingente populacional dos
rios Içana e Uaupés para os seringais do médio e baixo rio Negro.
O primeiro “boom” da borracha no início do século XX provocou um processo de
povoamento, bem como o loteamento do médio rio Negro entre comerciantes, posteriormente
conhecidos como “coronéis de barranco”. Neste período também se intensificaram os
casamentos entre comerciantes e indígenas migrantes do alto rio Negro.
2.2 - A organização do extrativismo no médio rio Negro a partir do final do século
XIX
Caracterizo agora a ocupação do médio rio Negro no contexto do extrativismo
deflagrado no final do século XIX em função da crescente demanda mundial por borracha.
Aponto para a centralidade do médio rio Negro no sistema de aviamento deste rio, mostrando
que a região nas imediações de Canafé se constituiu como um centro gravitacional do rio
65
Negro, atraindo contingentes populacionais de distintas regiões, mas principalmente de índios
de distintas etnias do alto rio Negro, do rio Içana e rio Uaupés.
Investiguei este processo de re-povoamento tanto em fontes bibliográficas (Koch-
Grunberg, [1909] 2005; Nimuendaju, 1927; Boanerges, 1928; Oliveira, 1975; Santos, 2003),
quanto em fontes documentais no Arquivo J. G. Araújo no Museu da Universidade do
Amazonas. Cabe aqui frisar os importantes registros etno-históricos registrados por Oliveira
(1975).
Também pesquisei relatos orais e registros escritos de moradores e ex-moradores da
região do médio rio Negro. Junto a Oscar Macedo, ex-morador de Canafé e filho do
comerciante José Martins de Macedo (Zeca Macedo), obtive também valiosas informações
escritas presentes em duas cartas familiares, das quais uma foi escrita na década de 1940
relatando acontecimentos de 1919.
Como indicaram alguns pesquisadores da região (Dias, 1992; Leonardi, 1999;
Santos, 2003), as correspondências da firma J.G. Araújo, constituem vasto e rico material para
o estudo da história do extrativismo na Amazônia. Busquei explorar um pouco desta riqueza
documental para reconstitui a rede de aviamento e a cosmografia mercantil no médio rio
Negro do início dos anos de 1940.
O material documental a que tive acesso consistia em 788 páginas de resumo de
correspondências, informando os principais assuntos tratados e algumas informações
veiculadas pelo documento original. Pelas minhas estimativas este material chega a quase 5.9
mil
25
cartas resumidas. A maioria destas cartas foi remetida dos mais diversos locais da
Amazônia, mas havia muitas outras oriundas de outras regiões do país e do mundo.
Este material tem uma divisão cronológica explícita, podendo ser agrupado em dois
blocos que, de certa forma, correspondem a dois períodos da história do extrativismo na
região. O primeiro bloco contém correspondências dos anos de 1879, 1881, 1884, 1885, 1894
e 1895. O segundo é um pouco anterior ao segundo boom da borracha e abrange os anos de
1935, 1938 e 1940.
A análise das distintas fontes consultadas permitiu construir uma compreensão mais
precisa dos acontecimentos que formaram o contexto sócio-histórico ideal que possibilitaria o
surgimento de comunidades indígenas naquela região outrora dominada (demográfica,
política e economicamente) por patrões portugueses e nordestinos.
25
Segundo a própria funcionária do Arquivo J.G. Araújo, este número representa apenas uma ínfima parte das
correspondências amontoadas no Museu da U.A. e que ainda não foram arquivadas adequadamente.
66
Edneia M. Dias mostra que até o final do século XIX a participação da Amazônia no
mercado econômico mundial foi inexpressiva, pois “a maior atenção se voltava para o
desenvolvimento de estratégias que pudesse defendê-la contra possíveis invasores e
exploradores de suas riquezas naturais, ao mesmo tempo em que buscava mecanismos para
garantir sua integridade” (op.cit: 08).
É com a primeira grande demanda mundial por borracha que se iniciam amplas
transformações na Amazônia em função da economia extrativismo. A partir de meados de
1870, o panorama cio-econômico de diversas regiões amazônicas passa a sofrer bruscas
alterações. Embora o rio Negro não fosse um grande produtor de borracha no contexto
extrativista amazônico, a exploração deste e de outros produtos promoveu transformações
radicais e consolidou um sistema social sui generis no médio rio Negro.
O sistema regional de organização da economia extrativista, conhecido como
aviamento
26
, provocou “profundas alterações nas antigas formas de relações existentes”.
(idem: 11), estruturando um sistema social particular e um novo modo de viver, marcado por
“um emaranhado hierárquico de relações de sujeição-proteção-exploração” e uma exploração
desenfreada (Leonardi, 1999: 138). Um novo povoamento da região se processou com
contingentes oriundos de distintas regiões, principalmente por índios do alto rio Negro,
portugueses e nordestinos. Relatos de moradores locais mostram que os arigós (como eram
chamados os nordestinos seringueiros) se concentraram mais no rio Padauiri, onde morreu a
maioria. Para o historiador Fernando Dumas dos Santos (2003), interculturalidade e
mobilidade espacial foram aspectos centrais no processo de formação deste novo sistema
social.
A referência histórica mais antiga que encontrei sobre a organização do sistema de
aviação no médio rio Negro é uma correspondência de Victor Serrão de Azevedo. A carta foi
escrita em Barcelos em outubro de 1879 e indica que o sistema coordenado pelo
“comendador” J.G. Araújo estava ainda se consolidando
27
, pois o remetente informava a falta
de seringueiros em São Gabriel e no distrito de Thomar.
Todavia, neste período a rede de comerciantes locais ligados à empresa se estendia
por vários lugares da Amazônia e, inclusive em Maroa, na Venezuela. Em 1879 esta rede de
26
Como mostra Ednéia Dias, “aviar, na Amazônia, é fornecer mercadoria a crédito” (1992: 11). Esse crédito
recebido deveria ser ressarcido sob a forma de produtos florestais. No rio Negro os principais produtos que
tiveram valor de troca foram a borracha, a piaçava e a castanha. Distintos aviados ligavam o extrator às casas
aviadoras situadas em Manaus.
27
A maioria das cartas deste ano foi remetida do rio Solimões, principalmente de Tabatinga, Tefé, Codajás, rio
Careiro e rio Iça. De outros locais da Amazônia cartas do rio Madeira de Uyanari, do Pará e do forte de São
Joaquim, no Rio Branco.
67
aviamento tinha aviados em diversos lugares no Brasil. No rio Negro os remetentes da
empresa J.G.Araújo eram de Manaus, Moura, Barcelos, São Gabriel da Cachoeira e Cucui.
Em poucos anos o número de aviados de J.G. Araújo cresceu muito.
Cinco anos depois são numerosos os correspondentes de J.G.Araújo nos distritos de
Moreira e Tomar. Em Moreira havia pelo menos 12 comerciantes que eram aviados pela
empresa de Manaus. Em Tomar esse número era de no mínimo 24. Em 1886, comerciantes
das seguintes localidades do rio Negro possuíam vínculos comerciais com a empresa:
Tauapessassu, Airão, Moura, Carvoeiro, Barcelos, Moreira, Tomar, Santa Isabel, rio Uneiuxi,
Camanaus, São Gabriel, Marabitanas, Cucuí, Missão de São Marcelino, Missão de São
Francisco de Taracuá e Santa Cruz (Ugarte, 1992: 54).
Em janeiro de 1893, os sócios Gonçalves e Fernandes, habitantes do distrito de Tomar,
informavam o envio de borracha fina e sernambi (látex de qualidade inferior à seringa ou
“borracha fina”). Os sócios mencionam ainda que viajaram para o rio Uaupés com quatro
índios que estavam a seu serviço.
Como nota Victor Leonardi a elite de comerciantes do baixo rio Negro (e vale também
para o médio rio Negro) não era um bloco homogêneo. Além de diferenciais econômicos
(capacidade financeira) e políticos (prestígio e influência junto a casa aviadora e de mais
homens importantes de Manaus), havia também diferenças na instrução e autonomia frente à
casa aviadora. Todavia, se inseriam na produção e comercialização da borracha na qualidade
de proprietários, frente a uma massa de seringueiros e ribeirinhos em geral (caboclos e arigós)
(1999: 137).
É nos primeiros anos de 1890 que se inicia a saga de Júlio Martins (pai de Zeca
Macedo), um jovem que saiu do Rio Grande do Norte para tentar a vida com o extrativismo
na Amazônia. Em uma das cartas de Oscar Macedo
28
, seu pai escrevia resumidamente a
biografia de Júlio. Jovem e solteiro viajou para Manaus, onde “trabalhou em Manaus como
auxiliar de farmácia tendo recebido lucrosos oferecimentos do trabalho para comerciantes do
interior embarcou e foi ao rio Negro com destino aos seringais onde ia empregar seus esforços
como auxiliar de produção de borracha” (Acervo familiar de Oscar Macedo).
Júlio Martins casou-se em 1893 em Uaupés (atual São Gabriel da Cachoeira) com uma
“filha de português com cabocla”, tendo oito filhos. Zeca Macedo seria o filho continuador do
estilo de vida do pai. É a partir da expansão e da decadência dos domínios (territorial, político
28
Oscar Macedo nasceu em Manaus em 1940, mas morou em Canafé a maior parte de sua vida até se mudar
para Barcelos no início da década de 1990.
68
e econômico) de Zeca Macedo que a coletividade da comunidade Canafé começa a tomar
forma.
2.2.1 - Os índios e o trânsito entre patrões
No fim do século XIX o médio rio Negro se tornou o principal centro extrativista da
região, particularmente os distritos de Barcelos, Moreira e Tomar. O etnólogo Koch-Grunberg
mostra que em 1903 a região de Santa Isabel do rio Negro e do rio Padauiri era uma área
central do extrativismo no rio Negro. Santa Isabel era o fim da linha do barco a vapor e local
de intenso tráfego, sendo “o ponto mais importante para o comércio com o alto rio Negro”
(op.cit: 38). O etnólogo notou que São Joaquim era um dos sítios mais “vistosos e limpos” do
rio Negro.
Um dos filhos de Zeca Macedo me contou que São Joaquim naquela época era uma
vila grande que tinha jornal, tinha cinema. “São Joaquim e Laranjal tudo tinha cinema por aí.
Era só gente estrangeira que era os patrões. Era português, era espanhol. Para animar a
freguesia colocava cinema.”
A organização do extrativismo no rio Negro teve forte impacto para os povos
indígenas dos rios Içana e Uaupés, pois comerciantes brasileiros e colombianos passaram a
invadir as malocas no alto rio Negro para capturar trabalhadores. Neste período se inicia um
novo ciclo de descimentos de indígenas para o rio Negro, promovendo a re-indigenização da
região (Peres, 2003: 293).
A maioria das terras nesta região estava nas mãos de comerciantes portugueses e
nordestinos ligados a J.G. Araújo. A possibilidade de ter terra durante este período passava,
desta forma, pelo pertencimento à rede de aviamento centralizada na pessoa de J.G. Araújo e
de sua firma em Manaus.
O estabelecimento de sítios por parte dos extratores indígenas estava condicionado ao
seu engajamento no extrativismo com algum patrão. Era difícil que índios estabelecessem
sítios próprios e autônomos na região. Grupos de índios que estavam estabelecidos na região
até o início do século XX tiveram que se mudar coletivamente para regiões mais inacessíveis.
O historiador Fernando Dumas dos Santos menciona, baseado em dados etno-
históricos, que no começo do século XX “toda uma comunidade descendente dos Baré”
abandonou o povoado Maçarabi, acima de Santa Isabel, e subiu o rio Cauburis. Santos avaliou
que esta estratégia foi acionada com vistas a “fazer frente ao crescente avanço da civilização”
no início do século XX (2003: 69-70).
69
Os índios que chegavam no médio rio Negro viviam itinerantes à busca de um bom
patrão e de produtos industrializados através do trabalho no extrativismo. A atividade de roça,
que caracteriza um estilo de vida menos móvel, era pouco praticada e desestimulada pelos
comerciantes. Todo esforço produtivo era canalizado para a extração de borracha, piaçava e
castanha.
As condições de vida e de trabalho em que se engajavam os índios descidos eram
geralmente precárias, vivendo os mesmos sujeitos as infindáveis dívidas e maus-tratos
impostos pelos comerciantes. A dívida era o elemento central que conectava os fregueses aos
patrões numa relação ambígua marcada pela assimetria de poderes.
A analise do ex-governador da Província do Amazonas Tenreiro Aranha (1907) sobre
o processo de recrutamento forçado de indígenas explicita a violência envolvida no
extrativismo e do processo de migração que povoaria o médio rio Negro com indígenas dos
rios Uaupés, Içana e Xié. O abuso das autoridades no recrutamento de índios para serviços
públicos e as “pegas” de curumins por recrutador de menores aprendizes de marinheiro eram
práticas comuns neste período.
Tenreiro Aranha relata indignado a ação dos regatões que compravam meninos
indígenas para vendê-los a seringueiros e pescadores de pirarucu, peixe boi e tartaruga. Ao se
referir à migração indígena, o grande mal é atribuído...
[...] Ao seringueiro, do baixo rio Negro, que interna-se nas vastas bacias do Uaupés e
Içana, remonta suas cachoeiras, devassa suas florestas, assalta casa a casa dos seus índios, e
viola o lar de cada um da família destes, para seduzir com fementidas promessas de lucros
vantajosos o dono da casa, o irmão, o sobrinho, cunhado e filho, fiando mercadoria a elles, ás
suas mulheres, ás filhas, irmãs, cunhadas e sobrinhas. É esta a peor causa, porque excita um a
um, por meio da cachaça, já embriagados, a promoverem dabacuris saturnaes, no meio das quaes
prostitui-lhes enlevadas por essas bárbaras e debochadas danças, esposa, filha, cunhada e
sobrinha. Depois da festa, no dia seguinte, isola do marido a esposa, do pae os ternos filhinhos,
do filho o pae e a mãe extremecidos, do irmão a irmã, da qual é o amparo, e os conduz para o
seringaes dos distritos de Santa Isabel, São Joaquim, Tomar, Moreira, Barcelos e Carvoeiro
(Tenreiro Aranha, 1907: 63-65 apud FOIRN/ISA, 1998: 87).
Apesar do controle dos comerciantes sobre os índios fregueses, as constantes fugas
29
e
a mobilidade espacial foram algumas das estratégias acionadas pelos indígenas para não
sucumbirem ao sistema de trabalho extrativista no médio rio Negro.
Em outra carta da família Macedo, datada do verão 1919, é relatada a morte de
Monsenhor Lourenço Giordano, missionário salesiano, que chegou a São Gabriel da
29
Em abril de 1896 o comerciante Alfredo Venâncio de Souza Cruz, residente no Sitio do Barata, escreveu uma
carta para a firma J.G.Araújo informando que havia tido prejuízo no trabalho e pedindo ajuda para que os índios
que fugiram no batelão de Pedro Level fossem detidos na Vila de Moura.
70
Cachoeira em 1916, designado pelo Papa Bento XV, para ser o dirigente da prefeitura
apostólica do Alto Rio Negro. Por esta carta ficamos sabendo que, estabelecido em Canafé,
Júlio Martins recebe o salesiano Monsenhor Lourenço Giordano em seu seringal (Porto
Javari) na margem esquerda do rio Negro.
Esta carta também apresenta informações sobre os sítios próximos e seus moradores.
referência a seis localidades nas imediações de Canafé, das quais cinco tem indicação de
seus proprietários: Bom lugar, de Elias de Souza; Bom Futuro, de Diogo Gonçalvez; Vista
Alegre, de Joaquim Gonçalvez Aguiar; Seringal Macará, de Marina Rodrigues, Seringal
Nazaré e Seringal Tapera. É mencionado também o comerciante Frederico Machado, o dono
da Lancha Paraíso, o qual viria a ser um grande regatão da região em meados dos anos de
1940.
A carta escrita pelo jovem José Macedo indica também a relação de intimidade entre
Júlio Martins e o Monsenhor, mencionando também a grande quantidade de fiéis que
acompanhou a missa e o cortejo fúnebre e sepultamento do padre (Acervo familiar de Oscar
Macedo).
O padre, que tinha como objetivo específico realizar missas em alguns locais da
região, já revelava para Júlio Martins as ambições dos missionários para civilizar os índios do
alto rio Negro, mencionando ainda que a educação seria o principal instrumento da ação dos
salesianos. Zeca Macedo inclusive ajudou os salesianos na elaboração de uma gramática de
língua geral (Oscar Macedo - Comunicação pessoal).
A visita do padre salesiano aconteceu no momento inicial do processo de
territorialização do poder salesiano na região (Peres, 2003: 69). Depois da criação da
Prefeitura Apostólica em 1914, em São Gabriel da Cachoeira, foram criadas unidades
pastorais em Manaus (1922), Barcelos (1925), Taracuá (1929), Iauaretê (1929), Pari-
cachoeira (1940), Tapuruquara (1942), ana (1950), Cauburis (1958), Cucuí (1958) e
Maturacá.
A ação missionária no rio Negro promoveu um processo de transformação violento e
radical nos costumes, crenças e rotinas dos índios do alto rio Negro. Todavia, frente aos
ataques dos comerciantes brasileiros e colombianos, os padres representaram uma força aliada
para muitos grupos indígenas do alto rio Negro (Meira e Pozzobon, 1999).
Quando Júlio Martins Morreu, em 1924, seu segundo filho mais velho foi o principal
seguidor de suas atividades no médio rio Negro. É depois da morte de Júlio Martins que se
inicia o tempo do patrão Zeca Macedo, tempo este que possui centralidade na memória
coletiva dos atuais moradores da comunidade indígena Canafé.
71
Em artigo publicado em 1979 a antropóloga Adélia Engrácia de Oliveira apresenta
importantes referências etno-históricas sobre trajetórias indígenas que se passam no médio rio
Negro em meados de 1920. A antropóloga coletou sete depoimentos de índios Baniwa do rio
Içana “com o objetivo de exemplificar a relação entre índios e ‘civilizados’ no alto rio
Negro”.
Foram entrevistados índios da comunidade Nazaré e de outras comunidades do rio
Içana que ali aportavam. Adélia Engrácia de Oliveira ressalta que a maioria dos índios
“mostravam-se ‘saturados’ da experiência com o ‘civilizado’ e, em 1971, parecia procuram
não mais ‘aviar-se’ com os regatões e trabalhar por conta própria” (1979: 05).
A autora não menciona as relações de parentesco entre os depoentes e moradores da
comunidade formada por índios Baniwa, principalmente do clã Tatu. Comparando os
depoimentos entre si percebe-se que o membro mais velho da comunidade Nazaré, chamado
Liberato, residia com alguns de seus filhos, os quais também prestaram depoimentos para
Oliveira.
Liberato, um senhor do clã Tatu nascido por volta de 1903 no rio Guainia, relata que
sua saga se iniciou por volta de 1919 quando tinha 15-16 anos e resolveu procurar sua mãe. A
mãe, que havia fugido da região do rio Guainia devido a ataques de comerciantes
venezuelanos, estava morando na foz do rio Cuiari, um afluente do Içana, na comunidade
Santa Rita. Liberato a encontrou e ficou morando com a sua família própria e a de seus dois
irmãos. Depois mudou para fazer roça em São Felipe, próximo a foz do rio Içana, onde teve
um filho. Dois ou três anos depois Liberato voltou para Santa Rita quando...
(...) um comerciante veio de Cana (Perto de Barcelos) me levou para trabalhar com
seringa. Vivi por trabalhando como aviado em barracão. O homem era bom, mas gritava
muito, querendo que a gente trabalhasse ligeiro. Dois companheiros que estavam com febre
(malária) e não podiam trabalhar, apanharam de um capataz do sr. Zeca Macedo (nome do
“patrão”, comerciante). Não sei se eles roubavam no peso, porque nessa época eu não entendia
nada. Depois que trabalhamos na seringa, o patrão mandou a gente trabalhar com piaçava. Eu
estava sem mulher, sozinho. Mas tinham dois que tinham mulher que tinham ido ajudar os
maridos. Em seringa trabalhei 3 meses e 6 em piaçava. Aos domingos agente descansava. O
patrão me deu cigarro, sabão e querosene. Mas só dava para as despesas. Nunca dizia: vamos ver
o saldo para pagar-lhe. Depois disso embarquei, embarquei com o patrão, junto com outros no
barco. Fomos até Camanaus, logo abaixo de São Gabriel (Uaupés). Aqueles que patrão batera
fugiram. A mulher de um ficou como empregada e a outra morreu na fugida. Depois que o
patrão deixou a gente em Camanaus, ele voltou para Cana Fé. Eu e um outro do Cuiari voltamos
para Santa Rita. Ganhei um pouquinho de roupa, cigarro, fósforo e sal, mas só para uso. O patrão
foi quem mandou a gente ir embora. Vivi mais um ano em Santa Rita quando nasceu Mário.
consegui um patrão novamente, de Tapuruquara. O patrão se chama Rafael Ogarte e era
Venezuelano vivendo no Brasil. Fugira também por causa da guerra. O patrão era bom, não
berrava, não batia, dava farinha e outras coisas que a gente precisava. Fiquei seis meses.
Fiquei essa temporada, porque o delegado do Uaupés dera ordem para esse tempo
(Engrácia de Oliveira, 1979: 11).
72
Depois disto Liberato ainda se envolveu com mais vários outros patrões, voltando para
as imediações Tapuruquara e depois viajando para Colômbia até finalmente se estabelecer
definitivamente em Nazaré.
Alguns elementos da trajetória deste Baniwa merecem ser destacados. Primeiro, o
caráter violento de Zeca Macedo, um patrão que gritava e batia
30
. Esta característica de Zeca
Macedo também é reforçada de maneira quase unânime por moradores e ex-moradores da
comunidade Canafé. Até a sua própria neta que atualmente é a presidente da comunidade
reflete que ele era excessivamente rígido e, muitas vezes, violento com seus fregueses.
Veremos mais adiante que o domínio econômico do patrão, escravidão e trabalhos forçados
sem pagamento são outros importantes elementos que fazem parte da memória coletiva da
comunidade Canafé.
Outro ponto interessante da trajetória de Liberato é sua grande mobilidade espacial e
seu trânsito entre distintos comerciantes. Sua história de vida abrange desde o rio Guainia, na
Colômbia, até o rio Araçá no médio rio Negro. A sua história de inserção no extrativismo
acontece basicamente no médio rio Negro e envolve o trânsito entre, pelos menos, cinco
patrões desta região.
Não obstante sua mobilidade, Liberato tem o rio Içana (território tradicional dos
Wakuenai, povo englobado pelos comumente chamados de Baniwa) como referência espacial
de origem e destino. Durante jovem vive na comunidade Santa Rita, no rio Cuiari (afluente do
Içana), e, depois de suas andanças pelo médio rio Negro, se estabelece na comunidade
Nazaré, no baixo rio Içana.
A história de Liberato apresenta muitos elementos em comum com a de muitos outros
índios do rio Negro que circulavam pela região, mudavam de patrões e rumavam para outras
direções. Como nota Buchillet, na década de 1920 a maioria da população adulta dos índios
do alto rio Negro trabalhava no extrativismo no “baixo” (1992: 17). Muitos destes indígenas
migrantes e transeuntes acabavam por se estabelecer definitivamente na região.
Meira e Pozzobon argumentam que o período situado entre os anos de 1910-1930
pode ser considerado como uma transição importante, pois “significou um recuo do poder
quase absoluto que estes [comerciantes] tiveram ao longo da segunda metade do século XIX,
30
Zeca Macedo mantinha relações comerciais com o temido Manduca (Higino Albuquerque) no rio Uaupés, um
patrão extremamente violento que dominou o extrativismo e cometeu atrocidades na exploração do trabalho
indígena no rio Uaupés. Oscar Macedo me afirmou que se pai precisava de autorização da família Albuquerque
para poder levar índios para Canafé.
73
em que os índios [do alto rio Negro] viviam em grande parte sob o seu controle e escravidão.
Nesta nova situação, a decadência econômica reduziu o fôlego dos comerciantes e
consequentemente permitiu aos índios uma certa calmaria” (1999: 296).
Se por um lado os missionários salesianos representaram um freio aos abusos dos
comerciantes, por outro foram extremamente rigorosos e impiedosos no processo de
homogeneização da diferença indígena no contexto nacional. A destruição das malocas e a
educação infantil nos internatos foram os principais eixos da ação missionária para
transformar os índios em cristãos brasileiros.
Neste processo o estigma da indianidade se acentuou progressivamente. As línguas
indígenas, as crenças e práticas religiosas, as vestimentas e hábitos cotidianos foram os
principais objetos da atitude intransigente dos missionários salesianos. Através de noções de
civismo e patriotismo, os índios deveriam se tornar brasileiros por meio da prática de uma
vida “verdadeiramente cristã” (Peres, 2003).
A ação da igreja e do Serviço de Proteção ao Índio, a partir de 1914 e 1919
respectivamente, pode ter contribuído para inibir uma maior territorialização do poder
mercantil extrativista no alto rio Negro. Entretanto, é importante lembrar que as descrições de
Curt Nimuendaju feitas em 1928 (1982), ainda testemunham o clima de terror e o abuso dos
comerciantes brasileiros e colombianos, que mantinham os índios sob o sistema da
patronagem.
Entre 1935 e 1940 ainda havia muitos comerciantes nas imediações de Tapuruquara,
no médio rio Negro e também muitos índios. A partir das correspondências do acervo J.G.
Araújo observa-se que os territórios mercantis mantinham vigor neste período. Na tabela
abaixo vemos o nome dos principais comerciantes e seus locais de trabalho no médio rio
Negro. É importante notar que se trata do período imediatamente anterior ao segundo boom
da borracha, acontecido concomitante a Segunda Guerra Mundial. Os anos de 1943-1945
dariam novo fôlego, embora curto, para muitos destes comerciantes.
Tabela 4 - Comerciante e suas respectivas localidades no medio rio Negro entre 1935 e 1940.
Comerciante Local
R. F Oliveira Reis Thomar
Oswaldo Bento (Bento & Cardoso) Tapera, Santa Isabel
Luís Manoel Peres Vista Alegre
Nair de Sá Viana Céu Aberto
José Rodrigues Bento São José, Nova Vida, Tapera e
Rio Preto
74
Raimunda Amazonas de Sá, William A. de Sá Beleza.
Henriqueta Sá de Almeida
Bom Jardim, Santa Isabel
Augusto Lacerda (Laceda & Cia) Nova Vida e São Joaquim
Antônio Cavalcante Sobrinho Padauiri
Noemia Macedo Bento Tapera
Albino Pereira da Silva Piloto
Mateus Ribeiro São João
F. Cardoso & Irmão Providência
José Gomes de Carvalho Themendary
Atílio S. Padauiri
João F. Pereira de Souza São Vicente/Santa Izabel
Gandra & Irmãos Providencia e Amparo
Gonçalves Costa & Cia Santa Isabel
Gonçalo Rodrigues Guajará
Alcíbia Feitosa Padauiri
Abílio Cavalcante Padauiri e Nova Vida
Almerinda de Lacerda Padauiri
Hercília Correia Cardoso da Costa Santa Isabel
A. S. da Silva Floresta
Afonso Silvério da Cunha Amparo e Providencia
Hermínio S. Ambrósio Santa Isabel
Fonte: Arquivo J. G de Araújo do Museu da Universidade do Amazonas.
À tabela acima apresentada, Oscar Macedo acrescentou uma família de venezuelano
no Laranjal, Antônio da Silva, no Tucumanduba; Joaquim Gonçalves em São Tomé e em
Vista Alegre; Joaquim Ugarte no Macará e Raimundo Machado em Nova Vida.
A cosmografia mercantil instituiu uma nova toponímia no médio rio Negro, formando
muitos dos nomes dos locais atualmente conhecidos pela população local e regional. A
toponímia, neste contexto, também servia como forma de legitimar domínios territoriais, pois
muitos lugares (principalmente os nichos de recursos valorizados pelo extrativismo) recebiam
o sobrenome de seus “donos” – Ilha do Silva, Ilha do Sodré, Lago do Joaquim Alves, etc.
De acordo com informantes locais, o médio rio Negro era “muito habitado” na cada
de 1940. Assim como Zeca Macedo, muitos comerciantes ainda persistiram na região após a
“guerra da borracha”. Os principais coronéis e detentores de terra da região eram Zeca
Macedo, Augusto Lacerda e Albino Pereira da Silva. Este último também tinha grande poder
político na região.
Piloto era um lugarejo famoso. Era do Albino Machado. Comerciante e chefe político.
Não era aviado de JG. Era representante do SPI na região. Vinha muita mercadoria para os
índios. Ele trocava com índios por piaçava. No tempo de eleição ele determinava o candidato.
Era o único. Ele comandou isso aqui (o município de Barcelos) durante 20 anos. De 1935 a 55.
Os prefeitos que ele nomeou eram fantoches na mão dele. Eram manipulados pelos filhos que
moravam em Manaus (Edson Marconi – morador de Barcelos).
75
Outros homens, como os membros da família Gandra e Frederico Machado também
são lembrados como grandes comerciantes. O “comendador” J.G. de Araújo pairava acima de
todos em Manaus. Além de deter o monopólio do comércio no rio Negro, na região todos
sabiam que ele era “o verdadeiro donodaquelas terras todas do rio Negro. O prestígio social
e o monopólio comercial e territorial de J.G. de Araújo se reforçavam pela grande importância
que os administradores públicos atribuíam ao papel do comerciante (Dias, 1992:13). No
médio rio Negro havia também patrões pequenos para “quebrar galho” (Edir Miranda
morador da comunidade Canafé). Este não era o caso de Zeca Macedo.
Todo caboclo que residia naquelas imediações era freguês de algum destes patrões,
principalmente dos mais ricos e detentores de mercadoria. No sítio de Canafé faziam a festa
de São Pedro durante três dias e três noites. Nestas festas,
(...) matava boi. Ia muita gente. Ia gente de Barcelos, ia os coronéis. [os caboclos
participavam?] os caboclos participavam. [Tinha muito caboclo nesta época?] Deus o livre!
Cada patrão tinha 100, 150 freguês (Oscar Macedo – morador de Barcelos).
Como veremos, as vidas destes caboclos giravam em torno de trabalhar no
extrativismo para saldar infinitas dívidas e, “nas horas livres”, plantar roça e cuidar da
família.
A fidelidade mercantil ao patrão, princípio elementar do regime do patronato, passou a
ser burlada com a re-emergência de regatões por volta de 1945. Ao representar uma nova
forma de acesso a produtos que os caboclos dependiam, os regatões desferiram um forte golpe
contra a hegemonia econômica dos patrões da região. Isto representou também uma fonte
perene de conflitos entre os caboclos da região e os patrões que se diziam donos das áreas em
que moravam.
Agora sim, antigamente não tinha esses regatão que falam. Esse dque era a raiva do
Zeca Macedo. Eles andavam roubando, se aproveitando [risos]... aí ele não gostava. As vezes
não tinha o que a gente queria na loja dele. A gente ia no regatão ia e fiava. Isso é que
escangalhava a nossa vida. Ninguém sabia trabalhar com um. A gente fazia assim. Por causa
disso o finado Zeca ficava muito bravo com nós. [risos]. É, a vida da gente aqui... Eu sofri muito
(Arlete Basílio – moradora da comunidade Canafé).
Outros acontecimentos importantes deste período foram: a migração para a Venezuela,
onde os preços da borracha eram melhores do que no Brasil, e a instalação de uma base aérea
norte-americana no médio rio Negro. Em 1944 o exército americano se instalou na
propriedade de Zeca Macedo, no local chamado Carabi. Várias centenas de soldados
76
americanos aportaram com aviões anfíbios quadrimotores, inaugurando um novo movimento
e fluxo de pessoas e bens pela região. O exército americano construiu uma base na região e o
comércio de borracha pelo leito do rio Negro foi interrompido por alguns anos. Muita
borracha, neste período, era escoada via Porto Caiena e Miame, nos E.U.A.
A memória dos veteranos da comunidade Canafé sobre este período permite mostrar a
visão dos caboclos sobre aquelas mudanças repentinas na região.
Veio um barco grande trazendo material. Aí sábado chegou o avião aí. Eu e um
compadre meu. ‘Bora ver o avião? Bora.’ Caboclo nunca tinha visto avião na vida [risos].
atravessou um avião que estava fugindo da guerra. A guerra tava forte. Ele tava carregado de
bala, dentro. A gente chegava e escutava o tiroteio, atirando boto. Eles estavam fugindo,
foram dar uma voltazinha fora da guerra. pedimos licença deles. ‘pode ir’ eles disseram.
fomos e eles ficaram batendo fotos os sacanas. pronto, não faltava avião lá. Eles fizeram
um flutuante deles no meio. Para botar diesel. Gasolina. chegava muita gente, trabalhando.
Aquilo foi pido. Passou uns meses as casas já estavam todas no jeito. Tinha muita gente.
Quando via do outro lado parecia uma cidade, tudo iluminado. Aí seu Macedo disse pra nós ‘isso
vai se acabar, a guerra ta forte e a borracha está proibida de passar pelo rio Negro. Estavam
fazendo o transporte da borracha por avião. Passou uns três anos e foram desmanchar de novo.
Eu fui ajudar (Gabriel Almeida – morador da comunidade Canafé).
Zeca Macedo construiu uma loja no Carabi e nos dias de sábado o trabalho parava ás
três horas, quando os soldados iam tomar banho, beber cerveja e cachaça. Segundo Gabriel
Almeida, neste período “um bocado de caboclo baixou daqui baixou e foram estudar para
soldado”.
Aquilo viria a ser uma cidade. A pena é que quando a guerra acabou eles se retiraram.
Meu pai tinha duas casas de comércio, uma em canafé outra em Carabi. Tinha padaria. Ali os
fregueses aproveitavam aquela época para vender alguma coisa para os americanos, eles
pagavam bem. Naquela época foi uma grande coisa por que houve mais progresso. Depois eles
foram embora e a coisa voltou para o que era: castanha, sorva, borracha, piaçava (Oscar Macedo
– morador de Barcelos).
No próximo capítulo abordarei com base nos relatos dos atuais moradores da
comunidade indígena Canafé a extensão do poder político e econômico de Zeca Macedo, bem
como sua decadência, observando a formação da comunidade e sua organização social.
77
CAPÍTULO 3 - CANAFÉ: DE PROPRIEDADE PRIVADA À COMUNIDADE
Neste capítulo busco reconstituir os domínios e a decadência do poder político e
econômico do comerciante Zeca Macedo. Observo algumas das trajetórias dos antepassados e
veteranos da comunidade Canafé, chamando a atenção para os fatores locais que
possibilitaram a constituição da rede de parentesco que viria a formar a comunidade Canafé.
Ao explorar os domínios deste antigo e expressivo patrão do médio rio Negro,
considero o sistema de aviamento baseado no endividamento mais do que uma relação
comercial assimétrica, onde o freguês é apenas uma vítima. Nos termos de Peres (2003), trata-
se de um “amplo circuito de trocas e de dádivas, de dívidas, de generosidades, de favores e
obrigações, de coerções e negociações, violência e proteção, exploração e doação, desprezo e
consideração estrutura-se em relações hierárquicas fundadas em duas categorias básicas: o
patrão e o freguês”.
Peres chama a atenção para a observação dos aspectos simétricos desta relação, o que
não implica em desconsiderar a assimetria. Reciprocidades e alianças também sustentam este
comércio que se orienta por uma economia moral das relações ideais entre freguês e patrão. O
idioma de afinidade utilizada nesta relação situa o patrão na posição liminar entre o aliado e o
inimigo, o próximo e o distante, o parente e o estranho, o protetor e o predador (Peres, 2003:
308).
Na memória coletiva dos moradores da comunidade Canafé Zeca Macedo é
representado como figura liminar entre o patrão zeloso, aconselhador e rigoroso e o patrão
ruim, que batia e maltratava os fregueses. Com exceção dos familiares mais próximos, as
lembranças sobre a figura de Zeca Macedo remetem a aspectos de sua personalidade e de sua
conduta agressiva.
Tais aspectos são enfatizados de forma geral por todos os moradores mais velhos de
Canafé. Nestas memórias Zeca Macedo é um patrão sovina
31
(atributo altamente indesejável
nos modelos nativos de sociabilidade) que impedia o uso dos recursos e submetia seus
fregueses à dívidas, violência física e humilhação.
Ele era ruim de mais. Eu estava canso de ver. Eu trabalhava na casa dele. Eu tava canso
de ver freguês quando chegava assim, ele não queria que o freguês levasse um produtinho assim
pequenininho, ele não aceitava não. os produtos grandes. Ele era ruim de mais. Isso eu posso
dizer porque eu me criei na casa dele. Eu tomava conta de criança. Por isso que eu digo agora a
gente está numa boa né. Quando eu comecei a trabalhar a ter minha vida, meus filhos, hã!
Trabalhava na casa do Zeca Macedo, todo dia aqueles que trabalhavam, trabalhavam dia e noite
31
Mesquinho e egoísta.
78
com ele. Dava pena, diz que. E a esposa do Zeca era tão boa. Ele canso de pegar aqueles...
Naquele tempo num pegava aqueles couro de peixe?... Para dar lapada nas costas dos fregueses,
dos rapazes que trabalhava com eles. Eu cheguei uma vez a ver ele bater num rapaizinho. Ele
tirou o coro das costas do rapaz, com aquele coro. quando eu passei dia de domingo aqui pra
minha mãe eu falei que não queria morar mais naquela casa. Que ele era ruim de mais. Ele fazia
tudo com os fregueses. Antes ele chegou a enterrar gente vivo, seu Ricardo. Ele chegou a
enterrar um rapaz que ainda não tinha nem morrido, nesse cemitério aí. O rapaz estava assim
doente. Ele mandou fazer o buraco e enterrar o pobre do rapaz. Assim como esse meu filho aqui
(Vivina Basílio – moradora da comunidade Canafé).
O depoimento acima explicita, com a credibilidade de quem vivia dentro da casa do
patrão, um tempo de escuridão baseada no uso da violência psicológica, moral e física, onde o
patrão “fazia de tudo com os fregueses” e ameaçava mandar prender quem desobedecesse
suas regras.
É intrigante observar que seu poder frente aos caboclos advinha em grande parte de
sua performance e de suas atitudes. Segundo os moradores da comunidade Canafé ele não
tinha capangas, “seus capangas eram seus filhos”. Devido às suas constantes ameaças e maus-
tratos, os fregueses em geral tinham medo de Zeca Macedo. Embora a opressão fosse intensa,
não houve rebelião. Uma moradora me relatou apenas um caso de enfrentamento físico, onde
o freguês lutou desarmado com o patrão. Depois disto o patrão passou a dar outro tratamento
a este freguês em particular, oferecendo-lhes lanches, crédito, gentilezas, etc.
Com o espírito crítico que vem sendo despertado por meio da relação com o
movimento indígena, a depoente ponderou que “se todo mundo fizesse o que ele fez, Zeca
Macedo não maltratava os fregueses”. Embora importante, o medo não era a única estratégia
para a imobilização da massa de trabalhadores. O controle sobre os recursos (naturais da
região e mercadorias vindas de Manaus) eram elementos centrais do poder do patrão, que se
sustentava numa performance ameaçadora. Ainda no final da década de 1960, residir nas
extensas áreas dominadas por Zeca Macedo significa ser seu freguês e o sitiante deveria
seguir a fidelidade e demais regras determinadas pelo patrão.
3.1 - Fluxos indígenas em territórios mercantis
Por território mercantil entendo o conjunto das áreas e os recursos naturais controlados
pelos comerciantes da região no período aqui focalizado. Vimos que, entre 1920-1940, houve
um intenso fluxo de índios de distintas etnias, principalmente Baniwa, Baré e Tukano, os
quais transitavam entre os vários patrões da região (Augusto Lacerda, Zeca Macedo, Rafael
Ugarte, etc). Pelos relatos de Curt Nimuendaju, podemos observar que em 1927 a maioria da
população adulta dos rios Uaupés se encontrava no rio Negro. O etnólogo do SPI estimou que
79
cerca de 1600 “almas” do rio Uaupés estavam trabalhando “nas propriedades dos civilizados”
(1928:33).
Arrumar um bom sítio
32
nas proximidades de um bom patrão parece ter sido o grande
desejo da maioria das famílias indígenas que desceram o rio Negro entre 1920 e 1950. A
construção dos internatos salesianos em São Gabriel (1914) e Santa Isabel (1942) também
atraiu considerável contingente indígena do alto rio Negro.
Além da procura pela melhor forma de acesso a bens dos quais dependiam e que não
produziam, os índios, que transitavam pela região e entre patrões, também migravam em
função de conflitos internos às unidades sociais (fomentados pelo contato interétnico) no alto
rio Negro e em busca por nichos de recursos valorizados.
Como mostra a antropóloga Ana Guita de Oliveira, os índios também fugiam de
disputas territoriais, ocorridas entre povos de língua Arwak e Tukano, como procuravam
terras mais férteis e águas mais piscosas (1995: 22).
Entre 1920-50 muitos índios Baniwa e Tukano devem ter ficado em Canafé somente
durante algumas temporadas e depois foram para outros lugares nas imediações ou para locais
mais distantes. Além de Liberato, outros índios chegaram em Canafé e partiam pouco tempo
depois, na busca de um patrão melhor. Muitos também morriam por ali, de doenças contraídas
nas colocações de seringa e piaçava.
Eduardo Galvão relata que em 1954 rios sibs Baniwa, além de índios Piratapuia,
Tariano e Tukano, estavam reunidos na localidade chamada Campinas, no baixo curso do rio
Preto. Oscar Macedo estimou que por volta de 1940-50 havia cerca de 150 pessoas
trabalhando em diversas atividades para seu pai em Canafé.
As imediações de Santa Isabel, rio Padauiri, Paraná da Floresta e rio Aracá, ambos na
margem esquerda, foram os principais pólos de atração do contingente indígena que buscava
ou se envolvia (com pouca ou nenhuma voluntariedade) no trabalho com patrões.
A população de extratores se concentrou mais na região, nas imediações do rio
Preto/Padauiri, bem como na margem oposta. Muitos dos nordestinos extratores (arigós)
morreram no rio Padauiri de doenças como impaludismo e béri-béri. Desta forma, os
descendentes de indígenas permaneceram como maioria nesta região.
32
A concepção de “um bom sítio” pode variar entre indivíduos de distintas etnias no alto rio Negro, mas alguns
elementos em comum podem ser observados. Além de aspectos ecológicos, que envolvem áreas piscosas e terras
férteis, de preferência próximas, aspectos espirituais e xamânicos também estão em jogo na escolha do sítio de
moradia. A pessoa tem que entender e se relacionar os espíritos do lugar, demonstrando sua intenção de se
relacionar com respeito com o lugar e observando um determinado código de conduta. Beber chibé ou comer
suado ou depois de trabalhar ou apagar uma fogueira com água são ações que podem desencadear reações
perigosas dos espíritos locais. Defumação e benzimento são as formas ideais de se começar um bom
relacionamento com o lugar.
80
Antes de analisarmos melhor os domínios de Zeca Macedo, vejamos algumas das
trajetórias e alianças que foram cruciais para a formação da comunidade Canafé.
3.2 – Trajetórias de antepassados indígenas
Arranjados em festas ou não, os inter-casamentos entre este contingente de grupos
familiares, que orbitavam em torno Zeca Macedo e de outros patrões da região, deram forma
à distintas coletividades formada pelos índios alto rio Negro, rio Içana e rio Uaupés e os
poucos patrões e seus descendentes. É interessante notar que uma minoria de casamentos
aconteceu entre patrões e mulheres indígenas. Esses descendentes se ficavam na região,
geralmente arrumavam um cônjuge caboclo e tendiam a viver um modo de vida indígena
rionegrino.
Os antepassados evocados pelos moradores da comunidade Canafé são, desta forma,
os pais e avôs dos atuais homens e mulheres mais velhos
33
. Noventa por centro destes
antepassados nasceu no alto rio Negro e nos rio Içana e Uaupés e alguns estão enterrados no
cemitério de Canafé, reforçando a importância da ancestralidade para o sentimento de
pertencimento coletivo ao espaço e para o processo de etnogênese desta comunidade.
Os irmãos da família Miranda remontam sua história ao avô, que mudou-se do rio
Içana para Canafé no início do século. Miguel Miranda veio viúvo do rio Içana para trabalhar
com Zeca Macedo. Seu filho Eugênio casou-se com uma cozinheira de Zeca Macedo, “uma
cabocla da região que se criou na cozinha do patrão”. Sua esposa morava no tio chamado
Piradabi, à jusante de onde seu Gabriel mora atualmente. Eugênio se estabeleceu no sítio
Barreirinha, onde nasceram Edir e Euclides. As memórias deste período são herdadas e
difusas.
Eu não sei. Eu era pequeno. Meu pai era que me contava. Naquele tempo papai era
pequeno. O finado bisavô deles era os bichão de lá. Ele falava uma coisa o cara não entendia
nada. Até que papai chegou aqui ele não falava quase nada. Não sabia escrever, não sabiam fazer
um nada. Até que ele arranjou aqui uma mulher daqui aí pronto, aí foi indo, foi indo e pronto. Aí
daí fabricou nós e até que nós estamos por aqui e papai finado saiu. Então hoje eu estou órfão de
pai e mãe (Euclides Miranda – morador da comunidade Canafé).
Os signos da ancestralidade ressaltado neste relato são fundamentais nas concepções
sobre identidade étnica no rio Negro. A radical distintividade lingüística e o desconhecimento
das “coisas” do mundo dos brancos (entre elas a escrita) são os elementos principais que se
valem para atestar o alto nível de alteridade de seus antepassados. Nesse ponto de vista eles
33
Ver árvore genealógica no próximo capítulo.
81
eram muito diferentes do que seus descendentes são hoje. A memória dos antepassados de
Miguel, por exemplo, fortalece o elo simbólico que aproxima Canafé do centro carismático”
da indianidade rionegrina (Peres, 2003: 312).
Outro ancestral é Pedro Basílio, pai das irmãs Vivina e Arlete. Pedro veio do Içana
com 18 anos, mas nasceu em Maroa na Venezuela e, segundo Vivina, falava a língua
Werequena. Pedro teria saído de um povoado do rio Içana por volta dos 18 anos, ainda
solteiro. “Assim como falam agora, os matis
34
queriam matar ele pra lá.” Vivina conta uma
história que envolve imposições unilaterais de casamento entre duas famílias.
A família de um pequeno garoto foi pedir a irmã de Pedro em casamento. A família de
Pedro não aceitou porque o jovem tinha apenas cinco anos de idade e a outra família queria
que eles terminassem de criar o futuro marido. Os familiares de Pedro disseram que somente
dariam a mão da menina para um rapaz que trabalhasse. Vivina conta que naquela noite
ninguém dormiu mais, pois os matis atacavam.
‘Pra lá é assim minha filha, por isso que nós viemos embora de lá’. Eles matam mesmo,
eles invadem a casa. Quiseram matar meu pai, envenenando a farinha e o biju. Na fruta, na roça.
Passavam coisa até no banco da canoa, na roupa. Tudo isso ele contava (Vivina Basílio
moradora da comunidade Canafé).
Pedro chegou ao médio rio Negro e casou-se com a filha de um “português velho” que
morava num sítio próximo. Casaram-se no Porto Javari, aonde Zeca Macedo possuía um
seringal, e foram morar no sítio Barreirinha. Depois de adulto passou a trabalhar com Zeca
Macedo. Trabalhava seringa na ilha do Japó. Quando Pedro morreu Zeca mandou os filhos
pegarem todos seus pertences (espingarda, canoa, roça) para pagar uma suposta dívida de um
cruzeiro. Furtou os pertences do finado e não deixou nada para os seus filhos de Pedro, apenas
os anzóis e terçados que já possuíam.
As lembranças dos antepassados e reconstruções feitas a partir das memórias
biográficas destes constituem um substrato para construções míticas sobre a origem da
comunidade, pois se referem a acontecimentos históricos, cujas lembranças fragmentadas
possuem centralidade na construção da memória coletiva da comunidade.
A memória coletiva dos moradores de Canafé é uma construção recente que revela um
processo de luta política e cultural que tem no máximo cinco décadas. A inserção no
movimento indígena, no final da década de 1990, foi o contexto cio-histórico desta
construção mnemônica.
34
Ser humano com poderes sobrenaturais que habita as florestas. Os matis são extremamente perigosos e podem
ser também o espírito de um pajé.
82
O exercício da memória é um elemento importante do processo de etnificação da
comunidade Canafé. Os caboclos de Canafé se remetem ao passado como uma forma de se
manter no presente e no futuro. Ao partir de um momento de ruptura (migrações) e abordar
com centralidade um longo período de privações (escravidão) que se contrasta com o presente
“em que vivem sossegados”, buscam condições de manter o acesso e uso comum dos recursos
naturais que necessitam para sobreviver e se reproduzir socialmente.
3.3 – Os domínios do patrão
Ao longo de sua história na região, a família Macedo ocupou três sítios principais. O
primeiro lugar ocupado pelo pai de Zeca Macedo foi Carabi, a juzante de Canafé. Neste
período, havia um outro morador (avô de Joaquim Alves) morando em Canafé. Depois da
morte deste, Júlio Martins mudou-se para Canafé. Joaquim Alves lembra que depois que seu
avô morreu “Zeca Macedo passou a tomar conta de tudo”.
A principal área de domínio de Zeca Macedo se lolicava na margem direita do rio
Negro. Nesta região possuía extensas terras que divisava com as terras do coronel Augusto
Lacerda. Na margem esquerda Zeca Macedo também possuía uma pequena ilha, a partir de
onde administrava diretamente o seringal Porto Javari na margem esquerda.
Foi em Canafé que se processou a maior parte da história de Zeca Macedo lembrada
pelos atuais moradores de Canafé. A mudança de Zeca Macedo de Canafé para outro sítio
mais à montante (Torócari, que em língua geral significa casca de castanha”), no início da
década de 1970, simbolizou o fim da hegemonia territorial do antigo patrão de Canafé.
Canafé era a base da administração da produção de castanha, de plantações de criação
de gado. De acordo com Oscar Macedo o nome Canafé foi criado pelo seu pai inspirado nas
suas plantações de cana e café. Cana + café = Canafé. Na memória dos moradores locais,
Canafé era um lugar bonito, bem cuidado, com bastante movimento de pessoas,
principalmente nos sábados, dia de entrega da produção e acerto de contas com o patrão. Esse
dia fatídico para os fregueses que não produziam o esperado pelo patrão faz parte, inclusive,
de lembranças herdadas.
No tempo dele não tinha folga nem de domingo. As vezes tinha que trabalhar no
domingo. Pra evitar problemas no dia do acerto de contas [quinzenal]. A gente tinha medo de se
encontrar muito ridículo nas coisas. Esse ai era que era o perigo. Ele pode pegar arma, mandar
maltratar a gente... eu ouvi falar que ele fazia. Ele maltratava mesmo. Eles contavam. Um
pedacinho do meu avô. O meu apassou noite e dia trabalhando. Pai da minha mãe. Eu não sei
contar a lenda dele não (Amílson Basílio Brazão – morador da comunidade Canafé).
83
Na margem direita, o principal produto explorado era a castanha. Todavia, a maioria
dos comerciantes que se situavam na margem direita, assim como Zeca Macedo, explorava
seringa e piaçava nas ilhas e na margem oposta, respectivamente. É importante notar que
Canafé era um destes pólos do extrativismo no médio rio Negro. Porto Javari era o barracão e
ponto de referencia de Zeca Macedo para a exploração de seringa. O barracão situava-se
numa ilha inundável, onde havia árvores de seringa.
“Era uma infinidade de terras, fora o seringal”, me afirmou Oscar Macedo sobre as
terras de seu pai. Ao lembrar deste episódio, Oscar deixou implícito que o domínio de seu pai
sobre aquelas grandes extensões de terra era amplamente reconhecido e que durante a
segunda guerra até mesmo o exército americano entrou em contato com o coronel de barranco
antes de instalar uma base aérea nas imediações de Canafé. Este é um evento marcante na
memória de todos os moradores e ex-moradores de Canafé.
Nessa época ali era seringa, castanha. Era extrativismo. Depois melhorou um pouco
por que em 1944 chegou a base aérea norte americana. Os americanos procuraram um lugar que
não estava no mapa e encontraram Canafé. Eles aproveitaram e foram falar com meu pai. Meu
pai cedeu uma área logo abaixo de Canafé, Carabi em termo de comodato (Oscar Macedo
morador de Barcelos).
Este episódio indica que a ausência do Estado nesta região era enorme e que as
autoridades locais na zona rural eram os próprios comerciantes de maior poder econômico e
com influência política em Manaus. Como mostra Dias (1992), o governador do Amazonas
Silvério Nery em 1903 chegou ao exagero de afirmar que “a palavra do comerciante em
Manaus devia ter a força de uma obrigação escrita” (:13). Zeca Macedo tinha, segundo seu
filho, “enorme prestígio” junto a pessoa de J.G. Araújo, sem duvida um canal mais que
privilegiado de articulação política na capital.
Vinina Basílio, que trabalhou como ama de criança na casa de Zeca Macedo na década
de 1960, conta que Canafé tinha uma extensa área roçada, com diversas fruteiras, um grande
paiol para armazenar castanha, uma padaria e uma casa grande de alvenaria onde morava o
patrão e sua família.
Havia também um sino que servia para, entre outras coisas, chamar os múltiplos
empregados domésticos, os quais eram principalmente pescadores, babás e amas de criança,
além da cozinheira. Por ironia do destino ou por força das circunstâncias este mesmo sino
hoje serve para chamar os moradores da comunidade Canafé para os cultos católicos na
capelinha local. Os moradores da comunidade relataram que Zeca Macedo tinha muitos
fregueses, empregados e inclusive um “escravo”.
84
Todos estes, a maioria caboclos, eram mantidos sob um regime de terror, onde a
violência física, moral e psicológica enchia os moradores locais de medo e ressentimentos. À
título de exemplo, os “pescadores do patrão” que não traziam espécies apreciadas pelo seu
algoz estavam seriamente sujeitos à chicotadas com couro de peixe. Vivina Basílio presenciou
um caso destes, em que um “pescador velhinho” foi chicoteado, abaixou a cabeça e saiu
calado. “Ele fazia como se a pessoa fosse uma criança” e muitos tinham muito medo do
coronel. Neste dia, o infeliz freguês/empregado ainda teve o almoço vetado pelo patrão e
apenas jantou.
Parece que o nível de domínio do patrão sobre as pessoas locais se classificava pelas
categorias freguês, empregado e escravo, denotando o tipo de relação com o patrão a partir de
um escala de dependência e sujeição.
Os sítios e espaços domésticos dos caboclos da região também eram objetos do
domínio do patrão, pois todos estavam em sua propriedade”. Não se podia fazer roças em
qualquer lugar, pois não podiam derrubar certas árvores que eram “o coração do patrão”.
O “escravo” do patrão, chamado Pita, trabalhava em troca apenas do “prato de
comida”. Este caboclo era responsável por averiguar se os fregueses em geral não estavam
fazendo “nada de erradoem seus próprios sítios. Zeca Macedo periodicamente obrigava Pita
a percorrer as roças dos fregueses para verificar se não havia ninguém, derrubando
castanheira, tucumanzeiro, inajazeiro, etc. Pita percorria sítio por sítio para ver se não haviam
sido derrubadas e voltava para denunciar os fregueses que haviam desobedecido às regras do
patrão.
Em função deste constrangimento territorial, as roças tinham que ser muito pequenas
porque, como me relatou uma moradora de Canafé, é extremamente difícil você fazer uma
roça de tamanho razoável (50m x 50m) num lugar que não tenha nenhum exemplar das
espécies que o patrão proibia derrubar. Os fregueses argumentavam em o que a preparação
do terreno para a plantação não matava necessariamente as árvores proibidas. Estas não eram
derrubadas junto com a mata/capoeira, e o processo de queimada da roça atingia-as somente
superficialmente o que não chegava a matá-las.
O veterano Gabriel conta que por volta de 1952 começou a trabalhar com Zeca
Macedo. Quando o barco de J.G. Araújo aportava em Canafé “trabalhava a noite inteirinha
embarcando castanha pro porão.” Depois de perceber que o trabalho para este patrão não
estava lhe rendendo nada procurou outro, motivo pelo qual sofreu fortes represálias de Zeca
Macedo.
85
depois eu tava com a mulher e não achei bom não. Ele roubava muita gente no
trabalho. Pessoal de todo esse pedaço aqui era freguês do Zeca Macedo. A fui trabalhar com
outro patrão. Zeca achou ruim. Não queria que eu fizesse roça mais aqui, queria me expulsar
daqui. Eu disse daqui eu não vou. Que eu to aqui. Mandou buscar polícia. Eu tava aqui
mesmo. Polícia veio aqui. Disse que eu estava derrubando as castanheiras. eu já conhecia a
polícia, eu viajava com eles para São Gabriel. Ele falou devagar comigo. Tava até o Oscarzinho.
Tavam brabo comigo. A polícia falou que eu podia ficar à vontade. A terra é para fazer
plantação. Ele disse que pagava direito... mas o cara vivia sujigado e eu não gostei não. Eu já era
velho, entendido. Eu trabalhei muitos anos. Por volta de 1969 larguei o velho (Gabriel Almeida
– morador do sítio Solidão).
Vemos assim, que este caso de enfretamento direto ao patrão acontece em 1969,
quando Gabriel resiste em ocupar seu terreno mesmo rompendo com o patrão. Parece ser um
período de transição, pois até então todo sitiante caboclo que chegava pela região tinha que
trabalhar para Zeca Macedo. Isto significava quase que necessariamente, se submeter (com
uma pequena margem de manipulação) a uma relação cujas regras eram determinadas pelo
patrão. Tudo indica que o aspecto simétrico da relação frueguês-patrão era uma idealização de
difícil concretização.
De acordo com os depoimentos locais, Zeca Macedo tratava bem os fregueses que
podiam representar alguma ameaça a sua integridade física. Este foi um dos casos
testemunhados por Vivina, que viu um freguês, depois de ser ludibriado em suas contas, rolar
no chão com o patrão e ameaçá-lo de morte. Falou que mataria o patrão e sua família de noite
quando todos estivessem dormindo. Depois deste dia Zeca Macedo passou a conceder uma
série de privilégios ao freguês que quase lhe matara no dia anterior.
Conscientemente alheios aos domínios de Zeca Macedo estavam alguns grandes
grupos Tukano do rio Uaupés, que se estabeleceram temporariamente pela região. Alguns
destes grupos se estabeleceram autonomamente no Xiuari e no Xibaru (áreas vinculadas a
Canafé) durante alguns anos e Zeca Macedo não opôs resistência. Dona Vivina me disse que
aqueles eram índios bravos e que Zeca Macedo tinha medo deles, pois sabia que poderia
morrer a qualquer momento. Entre estes havia também alguns pajés, pois Gabriel conta que
aprendeu boas coisas sobre reza e trabalho com os caboclos do Caiari.
Os caboclos que estava estabelecidos mais tempo na região eram em sua maioria
sujigados pelo patrão. Além da violência e arbitrariedade, outro ponto em comum entre todos
os depoentes da comunidade Canafé era o fato de que com Zeca Macedo o trabalho dos
fregueses não tinha valor. “Ele pagava com bombons a produção de borracha.” Todos esses
fatores enchiam de ressentimentos a grande massa de fregueses da região, como mostra o
depoimento abaixo.
86
Foi uma vida triste, o que ele fazia com os pobres. Meu pai ele dizia que ficava muito
triste como o seu Zeca Macedo fazia. [ele maltratava o pai da senhora também?] maltratava era
muito. Quando ele começou trabalhava com o Zeca ele já era velhinho. Produziu muito, mas ele
não ajudava. Quando Pedro morreu Zeca mandou os filhos pegar todos seus pertences
(espingarda, canoa, roça) para a pagar a conta. Não deixou nada para os filhos do Pedro. os
anzóis e terçados que já tinham (Vivina Basílio – moradora da comunidade Canafé).
As estratégias acionadas para manter alguma autonomia frente ao gido sistema do
patrão consistiam em mudar-se de local ou quitar as dívidas e procurar outro patrão. Parece
que o caso de Gabriel indica o início de novos tempos marcado pelo declínio da hegemonia
do patrão. Depois disto outros fregueses romperam com o patrão e continuaram ocupando o
mesmo sítio dentro daquilo que, outrora, o patrão considerava como seu domínio.
Hun!!! Tinha mais conta do que saldo. Hun! Naquele tempo... ...maltratava muita gente.
A gente ia daqui pra lá. Mas eu vi que não dava certo e retirei. Paguei minha conta e vim me
embora... e até hoje. fiz casa aqui e fique até hoje (Euclides Miranda morador da
comunidade Canafé).
Para os fregueses de Zeca Macedo, o trabalho do extrativismo determinou, durante
muito tempo, seus ritmos e dinâmicas de vida. A radicalidade das situações de trabalho e vida
expressas pela memória coletiva da comunidade Canafé tem seu auge na menção da nítida
impressão de escravidão.
Como eu vou dizer? Nós trabalhava, sabe lá... nós era mesmo escravo para bem dizer.
Nesse tempo [setembro/outubro] seu Ricardo a gente tava se arrumando já pra atravessar para a
ilha para cortar seringa. Quando acabava esse a gente atravessava de novo para cá...o trabalho
da gente, a roça da gente estava no mato. A gente limpava durante os meses do inverno. Os que
estavam devendo não podiam ficar parado. Tinham que ir atrás de castanha, outros pro igarapé
cortar piaçava porque não podia. Porque se o freguês ficasse devendo no verão ele não queria
das mais nada de crédito enquanto não pagasse a conta. Não podia ficar parado. Quando a gente
trabalhava lá... Eu sei lá, eu acho que agente não pensava com certeza. A farinha acabava. Muita
gente para pouca farinha. O patrão não comprava farinha. A gente comia carne pura, sem
farinha, sem nada. Sofria muito na mão desses patrões aí. Ainda bem que eles já morreu. [risos].
Graças a Deus estou vivo, estou vivendo ainda. Naquele tempo ninguém ficava parado aqui não!
Nesse tempo assim [início do verão] tava todo mundo plantando roça, fazendo sua farinha.
Trabalhava seringa e plantava sua roça. Acabava de plantar, os patrões chegavam para levar
para trabalhar. [senão quisesse ir?] Se não quisesse ir tomava tudo o que a gente tinha. A gente
não tinha nada para ele tomar naquele tempo. Tinha que ir para pagar a conta. Negócio sério
(Arlete Basílio – moradora da comunidade Canafé).
3.4 - Interação entre os fregueses
Eduardo Galvão observou no início da década de 1950 que o sistema extrativista no
médio rio Negro não permitia um convívio social mais íntimo entre as pessoas. As famílias
de seringueiros viviam atomizadas, com um mínimo de contato entre si. Galvão atribuiu a
87
dispersão social tanto à dispersão natural dos recursos explorados quanto ao rigoroso controle
e violência exercidos pelos patrões (op. cit: 137).
As lembranças dos excessos e abusos do patrão também estão permeadas por um
evento de significado especial para a massa de trabalhadores que se envolvia com o
extrativismo - as promessas e festas para santos padroeiros. As festas de santo eram um dos
únicos momentos de lazer e encontro dos fregueses, que passavam três dias juntos bebendo,
comendo, dançando e se divertindo. Era um evento social que possibilitava a co-residência
momentânea de rios grupos familiares de fregueses locais em torno de promessas aos
santos e que acabava sendo diferencialmente custeado (alguns poucos fregueses eram
responsáveis por adquirir os produtos a serem consumidos na festa).
Eu também trabalhei muito, eu to com 52 anos. Antigamente era uma conta doida para
o cara pagar. Para comprar um motorzinho stohl daquele era uma tonelada ou duas toneladas.
Até hoje eu me lembro uma vez a gente passou no Padauiri [Cururu Alto rio Preto] o verão
todinho, nós vimos a cahoeira secar todinha. Pra poder pagar um feijão. [vocês não tinham
roça?]. Tinha, mas nós estávamos a muito tempo e tinha que pagar o motor. Às vezes voltava
pra uma festa de São Tomé que era no fim de junho. Aí a gente voltava de novo.[tinham
patrões na festa?] não era os caboclo. Eles vinham para pagar promessa. Trabalhava o verão
inteiro para pagar um pedacinho de ferro. [como era esse negócio de promessa?] promessa era
levar nós para e nós ir pagar né. Quando nós ia pra lá ele dizia ‘a festa tá chegando, a tua festa
está chegando’. Mês de junho, agosto. Pra deixar pro santo. Papai naquele tempo era mordomo.
Mordomo é o cara que bate o tambor para fazer a correria. vai bebendo, bebendo. Terminou
aquilo acabou a promessa do cara. Todos bebem. tem tudo cachaça guaraná, suco, batida.
pronto ele acabou a promessa dele. Quer dizer que é promessa aquilo. No fim da festa pronto. É
esperar o patrão chegar, pegar a rede um bagulhinho, embarca na canoa e vai à reboque.
Todos que estavam espalhado vinham. Os antigos vinham do Padauiri, de cima, do rio Preto.
ficava um monte daquele doido. Era gente na canoa adoidado (Euclides Miranda morador da
comunidade Canafé).
Depois que acabava a festa quem havia patrocinado a festa (na condição de mordomo)
tinha que pagar para o patrão o que havia sido adquirido a crédito. Se por um lado a festa
aproximava os fregueses entre si, por outro, promovia o inevitável endividamento dos
mordomos que tinham a obrigação ritual de patrocinar a festa.
Estas festas eram um raro momento de interação social entre os vários grupos
familiares que se identificavam entre si, seja por relações de parentesco ou por sua condição
de submissão aos patrões locais eram quase todos fregueses e caboclos. É razoável supor
que estas festas eram acontecimentos propícios para troca de informações e experiências,
namoros e para a configuração de novas alianças por meio de arranjos matrimoniais.
88
3.5 - Formação da comunidade
Vejamos agora como se deu a formação da comunidade Canafé no contexto de
decadência dos domínios de Zeca Macedo. Abordarei este período histórico principalmente a
partir da memória individual e coletiva dos moradores locais.
O fim dos domínios de Zeca Macedo foi parte de um processo geral de perda de poder
dos coronéis de barranco na Amazônia, que se intensificou no final da década de 1950. Esse
processo foi mais ou menos lento em distintas regiões, sendo que no rio Negro persistiu
moribundo até início da década de 1990.
Como vimos, ainda em 1954, Eduardo Galvão (1978) testemunhou a resiliência da
economia regional, mostrando que os descimentos de índios ainda aconteciam de forma
expressiva. No entanto, para os moradores de Canafé o marco dos novos tempos foi a
“falência da borracha” e a morte de Zeca Macedo, acontecida quase meio século depois das
descrições de Galvão, no início dos anos de 1990.
Um importante elemento para se entender a grande resiliência da economia extrativista
no médio rio Negro consiste na diversificação dos produtos explorados além da borracha.
Piaçava e castanha foram os principais produtos alternativos em épocas de sub-valorização
das diversas variedades de borracha. O fim do segundo ciclo da demanda mundial por
borracha marcou o início da desestruturação e retração progressiva do sistema de aviamento
no rio Negro.
Ainda em meados de 1950 Zeca Macedo passou a administrar a filial de empresa J. G.
Araújo & Rozas em Santa Isabel do Rio Negro, mas após alguns anos voltou para Canafé
onde ficou trabalhando basicamente com extração de castanha. Na década de 1960 a demanda
mundial por peixes ornamentais reaqueceu o extrativismo do médio rio Negro. Entretanto, o
regime dos coronéis de barranco já estava em fase terminal.
No início da década de 1970, Zeca Macedo retraiu suas atividades extrativistas,
mudou-se de tio e passou a viver de agricultura e ocupar extensivamente suas terras com
criação de gado. O incipiente negócio de castanha foi continuado por um de seus filhos, Dico
Macedo. O gado ficou abandonado a sua própria sorte, morrendo em pouco tempo.
Provavelmente no final da década de 1970,
depois que o compadre Dico foi embora aí pronto. Ele não queria mais saber dos
fregueses. Ele não queria mais comprar as coisas por que ele não tinha com o que comprar. Ele
disse pro pessoal ‘eu vou embora compadre, eu vou para Manaus e vocês ficam aqui. To
castanhal, seringal, se vocês quiserem trabalhar trabalha.’ Ninguém mais trabalhou depois que
ele saiu. A borracha perdeu o valor também no Atauí Mirim. que nós trabalhava. Quando
ele foi embora ele entregou para nós (Almerinda Brazão – Moradora do sítio Solidão).
89
A partir da fala de Dona Almerinda, vemos o processo de abandono da família
Macedo dos seringais e castanhais que o patriarca Zeca Macedo possuía. Ela enfatiza o
processo de transmissão informal de direitos territoriais de patrão para freguês (“ele entregou
para nós”). Desde então os lotes de castanha da região passaram a ter outros donos. Aqueles
caboclos que não podiam extrair nem uma pequena quantidade de castanha para o consumo
agora eram “donos” de todos os castanhais da região.
Com exceção das castanheiras, os demais recursos passaram a ser utilizados com base
num regime de uso comum
35
entre os grupos de ex-fregueses. Este momento parece encerrar
o tempo em que os patrões eram figuras centrais de suas vidas. Este é também o tempo de
uma maior liberdade de acesso e uso dos recursos naturais, de comerciar livremente e,
sobretudo, de poder “trabalhar por conta própria”.
Nas décadas de 1970 e 1980, com a proliferação da cultura de massa, aumentou o
acesso dos caboclos a informações oriundas dos centros urbanos. Em 1971, Oliveira destacou
o rádio de pilha, o regatão e a missão salesiana como os principais de meios de acesso dos
caboclos à elementos da cultura urbana nacional e regional (1975: 40). Os moradores da
comunidade de Canafé sabem que o acesso à informação é outro elemento fundamental neste
processo de libertação coletiva dos caboclos.
É por isso que eu to dizendo que sempre existiu [índios no médio rio Negro]. O que
faltava era uma pessoa descobrir a idéia de quem morava por aqui que sempre existiu assim um
direito do índio. Mas naquele tempo ninguém tinha condições de ir a Barcelos procurar nossos
direitos, procurar como incentivar, procurar uma pessoa que pudesse correr atrás das coisas para
gente. Como eu to dizendo. Meu avô era patrão e ele mandava em tudo. Ele tinha comércio e
tinha que comprar nele. Quem iria daqui para Barcelos de canoa? Quem tinha rabetinha para
ir? (Suliete Macedo – moradora da comunidade Canafé).
Através da ação missionária, a escola se constitui como fator de agrupamento e co-
residência das famílias dispersas na região. Por volta de 1982, os missionários construíram
uma escola em Canafé e passaram a incentivar os moradores da região a construir suas casas
próximas à escola. Junto com a escola são construídos o centro social e a capela, instâncias de
modelagem do convívio social imprescindíveis - os pilares da organização comunitária, nas
palavras de Peres (2003: 260).
35
As formas de uso comum designam situações nas quais o controle dos recursos básicos se através de
normas específicas, combinando uso comum de recursos e apropriação privada de bens, que são acatadas de
maneira consensual, nos meandros das relações sociais estabelecida entre vários grupos familiares, que
compõem uma unidade social. (Almeida, 2006: 23-24).
90
A comunidade Canafé foi fundada oficialmente em 29 de junho de 1985, dia de São
Pedro, seu santo padroeiro. A partir de então passa a ser administrada pela prefeitura de
Barcelos.
A coletividade que viria a dar origem à comunidade Canafé foi-se constituindo no
contexto das interações entre os extratores e empregados de comerciantes da região. Muitos
comerciantes se casaram com mulheres indígenas. indícios de que mulheres comerciantes
também tenham se casado ou “juntado” com homens indígenas. Os inter-casamento entre uma
maioria indígena e uma minoria de comerciantes não-indígenas deram forma a coletividades
espacialmente dispersas, mas com complexos elos de ligação via parentesco e compadrio.
Tais grupos domésticos pouco interagiam, pois moravam distantes uns dos outros. As
festas de santo eram uma das únicas ocasiões em que os fregueses e “compadres” se reuniam
e podiam construir alianças. Durante três dias realizavam a festa e depois retornavam para os
seringais, piaçabais e castanhais.
A ausência de liberdade para o uso do território e a dispersão física e social não
possibilitavam a consolidação e o fortalecimento de ligações estabelecidas pelas redes de
parentes ao longo das décadas anteriores.
O fim do controle territorial de Zeca Macedo em Canafé acontece definitivamente
no começo da década de 1980, o que desencadeou ações favoráveis à organização das
coletividades de “caboclos da região”. Foi nesta conjuntura que a ação missionária promoveu
a organização destas coletividades que se encontravam difusas e dispersas. Para os caboclos e
ex-fregueses, a adesão à proposta missionária era uma forma de ter acesso à escola. Surgia
então a categoria sócio-espacial “comunidade” na paisagem rural da Amazônia. Os santos
padroeiros seriam os marcadores deste feito.
O projeto católico de formação das comunidades eclesiais de base (CEB) surge no
médio rio Negro de forma mais tardia do que em relação ao contexto mais geral da Amazônia.
Talvez isto tenha acontecido porque a decadência da hegemonia das oligarquias locais nesta
região também foi tardia. É interessante lembrar que, segundo os moradores locais, a
“falência da borracha” foi declarada mesmo em 1993, um ano após a morte de Zeca
Macedo.
A escola é o lugar
36
privilegiado da memória coletiva sobre a formação da
comunidade. A maioria das comunidades do médio rio Negro tem a escola como marco
inaugural. Quando indagadas sobre a formação da comunidade um jovem se remeteu ao
36
Me apoio na idéia de “lugar da memória” (Pollak, 1992:202), como lugares particularmente ligados a uma
lembrança.
91
tempo de Zeca Macedo, mostrando uma memória herdada de acontecimentos que não
presenciou, mas os ouviu de sua mãe. Antes da comunidade...
Era só um sítio. Depois que resolveram fazer uma comunidade aqui, juntaram o pessoal,
roçaram, tocaram fogo e fizeram suas casas aí. Aí foi formando a comunidade. veio o pessoal
de São Francisco, da Barreirinha onde nós morávamos. Veio daí de cima. Antes disso, essa área
era aqui era matagal. Essa área era do finado Zeca Macedo. Aqui tinha um campo grande, tinha
boi, tinha tudo. Depois que ele se mudou para para o Toró acabou aqui. Ai cerrou. Aqui
ficou praticamente abandonado, com três moradores só. Ficou para [toró]. Quando passou uns
5 anos começaram de novo a retornar para cá. Vieram para a escola, mas escola era bem ali onde
está essa casa. A escola era no Toró. foi para em 85. Para morava em sítio. Seu
Gabriel morava no Toró. Naquele tempo nós era tudo moleque. Quando nós fomos entender a
comunidade estava pronta. Depois fizemos estrada para baixo, para casa de forno...
Quando viram que a comunidade ia crescendo, aí entrou a paróquia de Barcelos, o padre
Schneider começou a entrar e ajudar mais. Em 85 fundaram a comunidade. O padroeiro da
comunidade é São Pedro. Dia 29 de junho foi fundada. depois a prefeitura começou a se
interessar e começou a crescer. Já teve grande aqui. (João Bosco Basílio Brazão morador de
Canafé).
A mãe deste morador de Canafé situa este processo de um outro ponto de vista,
a partir de uma memória de quem participou de perto dos eventos relatados e tinha
motivos para aderir à proposta dos padres salesianos.
Depois que ele [Zeca Macedo] deixou este lugar e foi morar no Toró ele deixou com
um vigia, um finado tio meu. depois viemos aqui para a comunidade porque tinha uma
escola. Viemos botar os meninos para estudar. Tava tudo precisando de estudo (Arlete Basílio
moradora da comunidade Canafé).
Zeca Macedo ocupava ainda uma grande área em Canaffé com uma criação de bois
que definhava por falta de cuidados. Para acelerar o processo de apropriação comunitária do
espaço alguns moradores que moravam nas vizinhanças do pasto davam tucupi para os bois
beberem, pois estes representavam um infortúnio (pisoteavam roças, defecavam em demasia,
destruíam as casas, etc) quando vivos.
Poucos anos depois de formada, por volta de 1985 a comunidade atingiu seu auge
demográfico chegando a abrigar mais de 20 famílias ou cerca de 150 pessoas. Desde então, os
moradores da comunidade passaram a acionar algumas estratégias para evitar o declínio
demográfico ocasionado pela migração para a cidade de Barcelos.
3.6 - Algumas considerações sobre a etnogênese primária em Canafé
Seguindo a proposta metodológica de Kenneth Bilby, tentei mostrar a primeira fase do
processo local de etnogênese em Canafé, ou seja, a gradual emergência de um grupo étnico
inteiramente novo. O objetivo desta distinção entre etnogênese primária e secundária é revelar
92
mais claramente a complementaridade e interdependência entre fatores situacionais e
primordiais envolvidos na construção histórica de identidades coletivas no médio rio Negro
(1996: 136).
Apresentei inicialmente os elementos e as dinâmicas históricas que nos permitem
caracterizar a região de Canafé como uma zona fronteiriça
37
(Hannerz, 1997) marcada por
grandes descontinuidades históricas e por sucessivos povoamentos e despovoamentos e pela
sobreposição de fluxos de significados e formas culturais. Neste sistema social de fronteira,
repletos de fluxos e misturas, indivíduos das etnias Baré, Baniwa e Tukano, oriundos de
distintos locais do médio e alto rio Negro e afluentes à jusante de Santa Isabel e São Gabriel
da Cachoeira, foram recorrentes e constituíam maioria demográfica em Canafé.
Junto com a decadência da aristocracia rural e a atuação salesiana na década de 1980
(através da territorialização dos caboclos em ‘comunidades’), novos agentes sociais
emergiram no cenário regional, assim como outros se mantiveram, mas com uma nova
posição no sistema social. A grande maioria dos descendentes dos coronéis do rio Negro não
manteve a herança dos seus imóveis rurais. Outros continuaram atividades comerciais com o
extrativismo da piaçava e em outras atividades como o transporte fluvial.
Embora o coronelismo tenha ruído, a figura do figura do patrão não se extinguiu, mas
mudou de perfil. O atual patrão do rio Negro não é mais o coronel de barranco que controla,
sob a égide do medo e da violência, os recursos naturais e a mão de obra local com poderes
plenos (políticos e econômicos). Agora o patrão é um pequeno comerciante, tipo regatão, com
poucas posses, mas que em alguns casos, ainda controla os recursos naturais e reivindica,
baseado em supostos direitos (herdados e/ou adquiridos), a propriedade particular de extensas
áreas.
Em relação ao papel do capital mercantil na região, Stephen Nugent (1993) analisa o
importante relacionamento entre a viabilidade histórica das sociedades e das economias
Amazônicas e o grau de penetração do capital internacional, formando uma teoria de
contração e expansão das sociedades locais (apud, Harris, 2006: 89).
Os descendentes de indígenas, portugueses e nordestinos que continuaram na região
após a retração dos comerciantes do extrativismo passaram a priorizar as necessidades locais,
buscando intensificar a atividade da agricultura e da pesca. Muitos ainda passaram um tempo
tentando obter acesso a mercadorias no incipiente extrativismo de piaçava e peixes
37
De acordo com Ulf Hannerz, trata-se de “(...) regiões, nas quais uma coisa se transforma gradualmente em
outra, onde há indistinção, ambigüidade e incerteza” (1997: 20).
93
ornamentais que ainda vigora na região. Como indica Mark Harris, os sistemas locais se
fortalecem quando há ligações mais fracas com os mercados externos (2006: 90).
Em muitas comunidades, principalmente naquelas em que o contingente indígena é
menos expressivo, se observa uma maior dependência em relação ao extrativismo. Em uma
dessas comunidades nas proximidades de Barcelos, as mulheres da comunidade ficam
sozinhas durante os dois meses em que os homens saem para pescar peixes ornamentais.
Neste período todos os assuntos da vida comunitária são resolvidos pelas mulheres.
A atuação do movimento indígena em Barcelos e Santa Isabel, principalmente entre
1999 e 2002, tem sido responsável pela construção de uma nova consciência crítica,
principalmente entre aqueles indivíduos e grupos familiares que passavam a aderir ao
processo de politização da cultura. Dentro desta nova consciência, “trabalhar por conta
própria” é um aspecto central.
Podemos entender a comunidade indígena Canacomo uma nova fase da vida dos
grupos de parentesco dos caboclos, descendentes de indígenas, que se formaram a partir da
década de 1950. O período contemporâneo situado entre a criação da comunidade e a atuação
do movimento indígena na região foi crucial no processo de etnogênese no médio rio Negro,
pois a população rural dispersa e invisível passou a se concentrar em espaços “comunitários”
e ser reconhecida enquanto coletividades organizadas, vinculadas a áreas específicas e objetos
da ação administrativa dos governos locais.
Neste novo contexto muitos grupos familiares de caboclos se empenharam em se
manter em “suasáreas e garantir o acesso ao uso comum de recursos fundamentais para sua
reprodução frente a antigos agentes da região e novos agentes vindos “de fora”.
Sobre a capacidade dos caboclos de se adaptar criativamente a novas conjunturas, as
análises de Mark Harris são pertinentes, pois ressaltam que as principais características do
“campesinato amazônico” são sua flexibilidade e resiliência, isto é, sua capacidade de se
adaptar criativamente à novas condições e se manter enquanto coletividades. A capacidade de
conseguirem negociar as condições do presente é a razão básica de seu sucesso adaptativo e
característica elementar deste segmento social peculiar.
Harris argumenta que os caboclos são modernos devido à sua capacidade de abraçar a
mudança, sem que isso resulte o fim de seu modo de vida corrente. Além disto, possuem uma
economia agrária “suficientemente resiliente para se expandir nas épocas de relativa
estagnação do mercado” (idem: 91). No que se refere aos caboclos do médio rio Negro,
devemos acrescentar às observações sobre a plasticidade econômica a questão das
possibilidades de identidade.
94
Depois da “falência da borracha”, ficar no interior não era uma solução auto-evidente,
pois a agricultura era uma atividade que poucos ainda mantinham. A roça foi desencorajada
no contexto do trabalho extrativista, passando a ser vista como uma atividade penosa. No
tempo de Zeca Macedo, os caboclos tinham apenas dois meses por ano para cuidar de suas
plantações familiares. A maioria dos moradores adultos de Canafé lembra que quando
voltavam do seringal suas roças estavam geralmente cobertas de mato. Suas casas eram
apenas pequenos tapiris, com paredes e teto de palha.
Depoimentos de um ativista indígena de Barcelos e de moradores da comunidade
Tomar (a mais próxima de Canafé), por exemplo, indicam que, na década de 1980, a maioria
dos caboclos tinha uma visão pouco positiva em relação à agricultura como forma de
sustento. Muitos ainda procuraram alternativas de renda, se engajando na pesca de peixe
ornamental e continuando imersos em dívidas e potencial submissão às determinações de seu
credor, pois esta atividade que deu novo impulso econômico a Barcelos entre 1960-1990 é
realizada nas mesmas bases clássicas do trabalho extrativista de barracão, isto é, com base no
aviamento.
O presidente da ASIBA nota que a atividade da agricultura passou a ser um importante
elemento no processo de adaptação criativa aos novos tempos no médio rio Negro. Além
disto, a agricultura passou a ser também um elemento de indianidade valorizado no contexto
do movimento indígena regional.
Ao comentar a migração que acontece em Barcelos nos últimos vinte anos, Clarindo
Chagas identifica determinadas comunidades que passaram a representar formas indígenas de
adaptação, tornando-se referências para a vida no interior.
Fim da demanda por borracha é que causou a migração para Barcelos. Os índios e
caboclos desacostumaram a fazer roças. Quando a borracha acabou, acabou a esperança. Quem
melhorou um pouco foi o [ex-prefeito] Beleza. Ele mudou a face da cidade. As casas da cidade
eram pequenas, tapiris, como minha casa de farinha. Na época que eu cheguei [1982]. Visitei [a
comunidade] Dom Pedro II e Cauburis tinha mulheres, os homens estavam todos no piaçabal.
Muitos foram para Barcelos e vivam de vender carvão por 25 centavos a lata. Faziam roças
muito pequenas que se cair uma árvore por cima destrói tudo. Isso é preocupante. E continua
isso. Mas não é total. Nestes últimos anos, décadas, tivemos várias migrações com outras formas
de visão e formas de vivência. Os Baniwa que moram em comunidade não trabalham com
patrão. Os de Samaúma são mais independentes. Esta diferença começou a aparecer e outros
começaram a imitar. Mas não cresceu muito (Clarindo Chagas morador de Barcelos e
presidente da ASIBA)
Enquanto muitos migravam para o núcleo urbano de Barcelos, outros continuaram
vivendo em seus sítios, plantando suas roças, pescando, vendendo um pouco de suas
95
produções e ocasionalmente se engajando no resiliente extrativismo da piaçava do rio
Padauiri ou na pesca de peixe ornamental.
Embora não possuíssem documentos que atestassem sua posse sobre a terra, estavam
livres da grande pressão territorial exercida pelo sistema de aviamento de Zeca Macedo. Além
disto, era notório o conhecimento, pelo senso comum, de que aquelas famílias estavam
ocupando aquela região há pelo menos duas gerações.
A década de 1980 testemunhou uma maior conexão da zona rural com o núcleo
urbano. A criação das comunidades significou o reconhecimento público da população da
zona rural como sujeitos de direitos coletivos (embora a relação com o poder público seja
estruturada por uma política paternalista e clientelista caudatária do coronelismo). A migração
para Barcelos também teve aspectos positivos na medida em que possibilitou que parentes do
interior e da cidade mantivessem conexões, facilitando o acesso à cidade para quem morava
na zona rural. Porém, novos agentes territoriais surgiram na região ao longo das décadas de
1980/90, causando conflitos de outros tipos para os moradores das comunidades.
Todavia, a influência dos patrões sobre suas vidas não era a mesma e tinham muito
mais tempo para si, podendo trabalhar por conta própria. Tinham suas próprias roças e
passavam a discutir sobre a defesa de seus direitos e sobre a “área da comunidade”. Esta área
corresponde aos recursos naturais monopolizados pelo patrão no sistema de aviamento. O
espaço comunitário, neste sentido, significa a ausência do sistema de aviamento.
Quando se remetem ao tempo do patrão, o principal aspecto enfatizado na memória
coletiva é a mudança. Mudança social e ecológica. Embora o presente seja um tempo em que
menos fartura de pesca e caça, agora “vivem mais sossegados” e “sem perseguimento de
patrão”.
96
CAPÍTULO 4 - A COMUNIDADE CANAFÉ
4.1 – Localização e aspectos físicos
A região da comunidade Canafé é um dos pontos de menor densidade demográfica e
maior dispersão populacional do médio rio Negro. Canafé é uma das comunidades mais
isoladas desta região. Os povoados mais próximos ficam a, pelo menos, quatro horas de canoa
motorizada com “rabeta” (motor de popa de 3 a 5 hp). Rio acima, o povoado mais próximo é
a comunidade Tapereira, na outra margem. Rio abaixo, a comunidade Tomar na mesma
margem de Canafé. A primeira é habitada por índios Baré e Tukano, enquanto na última,
indígenas das etnias Baré e Tukano vivem junto com caboclos não-indígenas.
Embora esteja ligada administrativamente à Barcelos, Canafé fica mais próximo de
Santa Isabel. Os percursos para os núcleos urbanos são longos: para Santa Isabel se gasta
umas sete horas de rabeta. Para Barcelos são mais de quinze horas descendo o rio numa canoa
pequena. Barcelos é o núcleo urbano mais freqüentado pelos seus moradores que se deslocam
periodicamente (de mês em mês ou de dois em dois meses) para receber a aposentadoria,
acessar serviços de saúde, bem como comprar mantimentos, o rancho.
Os marcos naturais que delimitam a região de Canafé são as duas grandes ilhas, a saber,
a do Silva e a da Providência. Na margem oposta, o rio Padauiri/Preto é outra importante
referência natural. A ilha do Silva é a principal referência espacial da comunidade Canafé.
A comunidade Canase situa em um trecho de terra firme na margem direita do rio
Negro. O terreno em que se situa a comunidade faz parte de uma extensa e larga área de terra
firme que vai até Tomar. À oeste da comunidade há uma longa faixa de campos alagados e ao
sul uma área de campinarana chamada de queimada
38
pelos moradores locais. Atrás da
queimada passa o rio Ararihá, que corre paralelo ao rio Negro, passando ao sul da
comunidade Tomar, até desembocar mais à jusante do rio Negro, nas proximidades da
comunidade Baturité. Nessa área existem extensos castanhais disposto mais ou menos
paralelos ao rio Negro.
Em outubro de 2006 a comunidade Canafé estava habitada por 51 pessoas divididas em
sete casas dispostas em duas fileiras paralelas ao rio. Com exceção das construções
comunitárias (centro social, escola, capela e casa de radiofonia) as casas da comunidade são
38
indícios de que esta área se chame assim devido ao fato de ter sido atingida por um incêndio florestal
noticiado em março de 2003 que afirmava que “comunidades de Floresta, Santa Rita e Canafé, onde vivem cerca
de cem famílias de ribeirinhos podem ser atingidas (
http://www.pernambuco.com/diario/2003/03/01/
brasil4_0.html, acessado em 25/11/06).
97
construídas sobre palafitas e coberta com palha. As casas possuem duas ou três divisões
internas e prateleiras de madeira na cozinha. Em apenas duas casas a cozinha é externa.
Cada grupo familiar possui um porto em frente a sua casa, onde limpam peixes e outros
animais, lavam roupas e louças, buscam água e tomam banho. As casas geralmente são
rodeadas por quintais com antigas fruteiras e pequenas hortas. As roças ficam dispostas num
arco em volta das casas, numa distancia que pode variar de 100 metros à cerca de um
quilômetro da comunidade.
Apenas uma família, a do “veterano” Gabriel Almeida, não mora na comunidade. Ele
mora no mesmo tio que ocupa desde 1954, há um quilômetro à montante da comunidade.
Não há caminho terrestre entre a comunidade e o sítio. O percurso fluvial dura quinze minutos
remando numa pequena “montaria”. Gabriel também possui uma casa na comunidade para
eventuais estadias.
Croqui 1 – Sítio Solidão
Como nas demais comunidades do rio Negro, Canafé se compõe do conjunto
arquitetônico cujo modelo foi difundido pelos salesianos na década de 1980. Centro social,
capela e escola são os pilares da sociabilidade da comunidade. Posto de saúde, radiofonia,
gerador, televisão, antena parabólica são outros elementos importantes que surgiram
posteriormente. Atrás da comunidade há um grande campo de futebol e, mais atrás, se
encontram os roçados familiares.
98
O centro social é o espaço para se tratar de assuntos coletivos, para receber a chegada de
alguém de fora, para comemorar eventos e datas importantes. No centro uma televisão
pequena. A televisão é ligada geralmente às 20h00min e funciona durante uma hora e meia,
de acordo com a disponibilidade de diesel. Os principais programas assistidos são jogos de
futebol, novela e telejornal. Durante minha estadia assistimos, além de alguns capítulos de
novela, um debate entre os candidatos a presidência da república.
Croqui 2 – Comunidade Canafé
A construção da escola por padres salesianos é unanimemente apontada como o marco
inaugural da comunidade. Vivina Basílio lembra que a primeira escola da comunidade foi
construída pelo padre Frederico, por volta de 1982, e um tempo depois (mais ou menos quatro
anos) a irmã Rosa propôs a criação da comunidade para facilitar o acesso dos alunos que
moravam em sítios dispersos. A partir de então os moradores da região foram construindo
casas perto da escola. cresceu a comunidade no lugar em que antes morava o patrão Zeca
Macedo. Fatores de ordem familiar, como a morte de parentes, também estimularam a
mudança para a comunidade.
Com a formação da comunidade “cada qual ficou cuidando de sua vida”, mas sob uma
nova forma de sociabilidade baseada na co-residência e objetificação de um espaço público
no interior. Todos os moradores da comunidade foram fregueses do finado Zeca Macedo, com
exceção de Meri Macedo, filho do patrão que passou a dirigir a comunidade no cargo de
99
presidente. Segundo relatos dos moradores, Meri foi um importante incentivador da formação
da comunidade no local onde ela se situa hoje. Suliete, filha de Meri Macedo, é a atual
presidente da comunidade.
4.2 - Demografia e migração
O atual contingente populacional da comunidade flutua devido à mobilidade espacial de
seus moradores. Pescarias, extrativismo, festas e torneios esportivos em outras comunidades,
bem como visitas à cidade (para sacar o dinheiro da aposentadoria, vender produtos da roça
ou para tratamento médico) são os principais motivos de deslocamento.
Por volta da segunda metade da década de 1980 a comunidade chegou a abrigar mais de
vinte famílias e a ter cerca de 130 pessoas. Desde 1985, Canafé perdeu quase um terço de sua
população. Várias famílias se mudaram para Barcelos nos últimos quinze anos. Este processo
sem dúvida mexeu com a estrutura da comunidade, mas é visto como algo que já passou e nas
atuais conjunturas o risco da migração é controlado por algumas estratégias. Nas palavras da
presidente da comunidade, “quem tinha que ir já foi”.
Devido às migrações deflagradas nos últimos quinze anos, a estrutura demográfica da
comunidade Canafé sofreu diversas alterações, causando também modificações em seu perfil
multi-étnico. Os principais grupos étnicos formadores da comunidade Canafé eram o Baniwa,
Baré e o Tukano. Atualmente, a maioria de seus moradores se identifica com as duas últimas
etnias. Dos Baniwa só ficaram duas pessoas, parentes dos irmãos Hermes e Bento.
Embora o processo de migração para a cidade tenha provocado um esvaziamento da
comunidade, estratégias locais foram acionadas para mantê-la. É interessante notar que o
funcionamento da escola indica, do ponto de vista demográfico, a saúde da comunidade.
Neste sentido, os moradores de Canafé tentam manter a comunidade com um contingente
mínimo, para, ao menos, manter a escola funcionando. Possuir pelos menos 10 crianças aptas
a cursar a primeira etapa do ensino fundamental é fundamental para a vida comunitária.
Convidar parentes que residem distante para morar na comunidade, bem como a aceitação de
novos membros
39
são algumas das estratégias acionadas para evitar o declínio demográfico.
É importante notar que ir definitivamente para a cidade não significa necessariamente a
perda de vínculos com a comunidade. Voltar para a comunidade, embora pouco provável, é
possível. Alguns que foram para a cidade ainda expressam vontade de voltar para a
39
A aceitação de novos membros se baseia em critérios estruturados pelo parentesco, co-residência e
pertencimento à rede de coletividades que tradicionalmente praticam o uso comum dos recursos naturais.
100
comunidade, mas concluem que suas possibilidade são remotas, pois se estabeleceram com
a família na cidade. Este é o caso de Celso, irmão de Edir Miranda, abaixo relatado.
Até meu irmão. Tal de Celso. Ele foi daqui mesmo. Eles tinham duas filhas. ele
levou. Um dia eu fui para um dia e... coitado ele está se arrependendo. Ele tinha vontade de
vim para cá, mas a mulher dele não quer voltar. Ali eles passam um mau bocado. Tem dia que
come tem dia que não come. Ás vezes briga com a mulher, se larga por aí. Eu disse pra ele:
‘bora pra lá. você não paga farinha, não paga peixe, não paga nada. Tu tava tão bem aqui.
Tinha tua casinha’. Parecem que foram umas nove ou dez famílias daqui para Barcelos (Edir
Miranda – morador da comunidade Canafé).
Os irmãos Baniwa Hermes e Bento Gomes, por exemplo, foram para a cidade de
Barcelos com suas respectivas famílias por volta de 2003. No entanto, uma filha de Hermes
permaneceu em Canafé casada com Euclides Miranda, e um filho de Bento passou a morar
em Canafé desde que sua esposa começou a lecionar na escola da comunidade em 2006.
4.3 - Parentesco
Não tomo o parentesco como um elemento que permita apreender uma suposta
totalidade da comunidade Canafé. Ao invés, vejo o parentesco como o elo condutor da
memória oral e um importante princípio ordenador das dinâmicas locais e das estratégias de
manutenção do acesso aos recursos vitais para as populações ribeirinhas e indígenas no médio
rio Negro (Harris, 2006).
A rede de parentesco no médio rio Negro é uma formação sui generis deflagrada no
contexto de transformações específicas das fronteiras históricas no século XX no rio Negro.
Como vimos, a formação de grupos parentesco nesta região foi possível devido às diásporas
do processo migratório do alto rio Negro e das alianças que se formaram entre as famílias
indígenas e caboclas que se estabeleceram junto aos patrões do “médio”. Um elemento
unânime na memória coletiva sobre a região de Canafé é o fato de que, desde os anos de
1940, todo o “beiradão” foi ocupado somente por “caboclos do alto”. Raras e episódicas são
as menções a fregueses nordestinos (arigós) nesta região.
Em meados de 1950, Eduardo Galvão notou que as regras exogâmicas que ainda
prevaleciam no povoado de Campinas [próximo à Canafé], no médio rio Negro, transferiram-
se dos sibs para as tribos. E significa que um Baniwa evitava cônjuges de sibs desta tribo,
preferindo um que fosse de descendência Tariana ou Tukano. Galvão enfatizou ainda que as
regras de casamento constituíam um importante fator de “coesão tribal” (1979: 175).
De acordo com a análise macro-regional de Peres (op.cit: 253) sobre a zona rural de
Barcelos, 82% dos casamentos envolvendo indígenas em comunidade e tios do interior se
101
deram entre ambos cônjuges indígenas. Os Baré são os principais fornecedores de maridos e
esposas. Os casamentos interétnicos mais freqüente acontecem entre Baré/Baré,
Baniwa/Baniwa, Baniwa/Baré e Baré/Tukano. Baré e Baniwa casam mais entre si, enquanto
Tukanos casam mais com Baré e depois com Desana e Baniwa.
Em Canafé, os casamentos dos atuais chefes de família se deram mais entre
Baré/Tukano e depois Baré/Baré, Baré/Baniwa, Baniwa/Tukano, Baniwa/Baniwa. Em
casamentos mais recentes um caso que poderia ser associado ao avunculato, outro entre
primos paralelos e ainda outro entre primos cruzados. Estes casos demonstram uma forte
tendência endogâmica na comunidade.
Por outro lado, uma jovem Tukano menos de 4 anos casou com um Baré da
comunidade Campinas do rio Preto. Este casal foi morar em Canafé um ano a pedido da
presidente da comunidade. A filha de Euclides também arrumou um cônjuge em Campinas,
passando a morar lá.
Para Harris a abordagem do parentesco na sociedade cabocla chama a atenção para “a
rede de potencialidades de acesso aos recursos materiais e ao apoio moral”, mais o que para
um sistema de relações envolvendo obrigações e direitos. (op. cit.: 82). Neste sentido é
importante notar que a constituição das redes de parentes consangüíneos e afins se pauta em
estratégias e cálculos de manutenção do acesso e o uso comum aos recursos naturais.
Casamentos internos à comunidade e casamento com membros da comunidade
Campinas do rio Preto tem se figurado como os mais expressivos nos últimos dez anos e
parecem seguir uma estratégia que visa manter o acesso (e uso comum) aos recursos restritos
a certas coletividades conectadas por laços de parentesco.
Em 2006, a coletividade de Canafé se estruturava em torno de quatro famílias principais,
cujos chefes eram Gabriel, Vivina, Edir e Euclides. Dois tipos de laços de parentesco se
mostravam centrais na constituição da comunidade, a saber, a relação entre alguns grupos de
irmãos e a relação entre dois cunhados. No diagrama que se segue após a próxima página
vemos a representação esquemática dos laços de parentesco entre os membros mais velhos da
comunidade Canafé, focalizando as principais filiações e alianças, e considerando a
multilocalidade desta coletividade.
Nas duas primeiras linhas superiores da genealogia da comunidade Canafé estão os
migrantes indígenas que desceram o rio Negro para os seringais e piaçabais nas imediações de
Santa Isabel. Foi a partir da relação entre suas famílias que a coletividade da comunidade
Canafé passou a tomar forma.
102
A genealogia da comunidade Canafé, em seus momentos iniciais, chama atenção para a
importância da relação entre irmãos e para a relação entre cunhados como princípios
organizativos da coletividade. Em suas observações feitas em 1971, Engrácia de Oliveira
ressalta a importância da relação entre cunhados para a formação das coletividades locais na
região mostrando que a povoação de São João
40
, a qual era um antigo sítio abandonado, foi
reerguido por integrantes de duas famílias cujos chefes eram cunhados, um nativo da área e
outro proveniente do rio Grande do Norte. (1975: 56).
Alianças matrimoniais entre primos paralelos, primos cruzados e uma forma invertida
de avunculato
41
destoam do padrão exogâmico valorizado no contexto dos grupos indígenas
do alto rio Negro, mas tendem a fortalecer as relações entre grupos domésticos co-residentes
nesta comunidade.
O casamento com não-parentes de outras comunidades permite estabelecer laços com
outras redes de parentesco com as quais possuem identidade histórica, social e cultural, como
é caso da comunidade Campinas, na outra margem. O compadrio e o apadrinhamento também
são importantes instituições que trazem indivíduos, através da afinidade, para o âmbito do
parentesco. Este é o caso do velho Joaquim que, embora não tenha relações de
consangüinidade com ninguém da comunidade, faz parte da parentela por ser padrinho de
diversos jovens e compadre dos mais velhos.
40
Segunda comunidade À montante de Canae na mesma margem. Atualmente a coletividade de São João
ainda existe, mas sob a forma de uma comunidade indígena. Durante as atividade da Funai em 2002 a maioria
dos moradores se identificaram Baré e outros como Tukano, Baniwa e Pira-tapuia.
41
Neste caso foi o sobrinho materno do falecido que casou-se com sua esposa.
103
104
4.4 - Sociabilidade
As noções de sociedade, pessoa e convivência no médio rio Negro se alimentam de
simbolismos de distintas províncias de significado. Trata-se de um contexto caracterizado
pela ambivalência da mistura e pela reinvenção de diversas tradições deslocadas (Harris,
2006: 84). A relação com poderes e conhecimentos externos é fundamental para a noção de
pessoa e sociedade na região (Peres, 2003: 260).
É fundamental perceber que os nexos de sociabilidade tecidos pelas relações de
parentesco e co-residência também estão referenciados aos valores e processos emanados de
outros espaços e tempos. As conversões dos índios do rio Negro em cristãos no século XVIII
e XX, bem como os processos de expansão de fronteiras e as territorializações promovidas
pelos poderes missionário e mercantil na região em distintos períodos são processos que
marcaram o pensamento da sociedade cabocla da região.
Apenas para citar alguns elementos mais marcantes, é possível observar as influências
do catolicismo popular que se desenvolveu na região desde meados do século XVIII, com as
festas e promessas para os santos. Somam-se a estes valores religiosos noções mais recentes
associadas a atuações mais progressistas da igreja católica na década de 1980. Isto apenas
para ser ter uma idéia de elementos católicos no pensamento mestiço do caboclo do médio rio
Negro.
Peres descreveu e analisou a incorporação de elementos “externos”, - principalmente
elementos católicos e aqueles ligados à idéia de civilização - para a constituição da
sociabilidade local, demonstrando que “‘ancestralidade’ e ‘civilização’ não são termos
excludentes seja na consciência histórica, seja na consciência mítica dos migrantes indígenas”
(op.cit: 261).
O “externo” é constitutivo da comunidade. Externo entre aspas porque a comunidade
não é um todo discreto. As oscilações e pressões do mercado são elementos externos de sua
formação histórica. A ação missionária em distintos períodos, as interações com caboclos do
alto e, mais recentemente, a filiação à ASIBA são outros elementos sócio-culturais de
distintas procedências que tiveram influência na formação e no desenvolvimento da
comunidade Canafé.
Novas instituições e papeis sociais foram construídos pelos salesianos nos anos 70 e 80
no rio Negro para engendrar dinâmicas de vida “comunitárias” estruturadas segundo preceitos
católicos. Como vimos, os padres salesianos foram centrais no processo de formação das
comunidades e ainda incentivaram a atividade de agricultura, fomentaram a organização
comunitária e ajudaram na construção e manutenção de escolas.
105
Frente à multi-localidade dos indígenas e caboclos, os missionários buscavam fixar os
ribeirinhos em espaços determinados onde pudessem levar uma vida cristã e “comunitária”.
Segundo o modelo salesiano, as Comunidades Eclesiais de Base “deveriam se a unidade
básica de uma vida verdadeiramente cristã e da conscientização do povo de Deus sobre seus
problemas como o caminho para a sua salvação, autonomia e promoção social.” (idem: 260).
Para os missionários o sofrimento dos caboclos derivava de sua condição de ignorância e
desorganização.
“Os pilares da organização comunitária estavam organizados num tripé: a capela, a
escola e o centro social. Estas três instâncias de modelagem do convívio coletivo são
imprescindíveis, eram as expressões arquitetônicas das três posições de autoridade também
essenciais personificadas nas figuras do presidente, do professor e do catequista.” (Idem).
Fora de seus momentos de atuação específica esses papéis não representam autoridade e nem
conferem prestígio social. O prestígio social local parece estar mais ligado aos mais velhos e
aos “veteranos” da região.
Em relação às idéias sobre a vida em comunidade, o sítio é o contraponto básico para se
refletir sobre o que é viver em co-residência com outras famílias. Os serviços, a comodidade e
o lazer que a comunidade proporciona exigem atitudes de compreensão, paciência e
adaptação de todos grupos domésticos entre si.
No sítio você tem sua casa e mora sozinho. Não tem vizinho. Se você tem dinheiro você
pode comprar um motor de luz, uma antena parabólica, uma bomba para puxar água. Se você
não tem você vai viver com lamparina. Uma vida mais sossegada. Vive em paz. Na comunidade
não. Vomora com vários tipos de pessoas, com vários sistemas, jeitos. Tem uns que são bons,
tem um que são ruins, tem outros que entendem outros que não entendem. Se você tem um
cachorro e late de noite tem um vizinho que já reclama né. No sítio não. Tudo que tem lá é seu.
As vezes as crianças de brigam com as daqui e as mães discutem. No sítio não. É muito mais
sossegado. Na comunidade é bom que agente vive unido. Nessa hora, 5 horas tem gente pra
brincar uma bola. No sítio vc não pode fazer um campo de futebol pra jogar com sua mulher
[risos]. A pessoa que mora na comunidade tem que ser muito compreensiva com todos. Tem que
se adaptar com todos. Tem que ter muita paciência (Suliete Macedo moradora da Comunidade
Canafé).
Este depoimento chama a atenção para a importância da convivência entre
grupos domésticos, revelando aspectos de uma visão nativa sobre a convivialidade
(Overing & Passes, 2000: 14) no médio rio Negro.
106
4.5 - Economia
A coletividade de Canafé vive da agricultura, da pesca, da caça, coleta e da renda de
aposentadoria. A maioria do que é produzido é consumido pelo grupo doméstico e uma
pequena parte destina-se à venda. O principal produto plantado é a mandioca brava. Em
consórcio também são plantados abacaxi, batata, cará, cana e banana.
Na comunidade existem duas casas de farinha funcionando. Cada família possui pelo
menos uma roça. A única exceção é o Seu Joaquim que mora e não tem roça, vivendo
apenas da renda da aposentadoria.
Os jovens em geral se dedicam mais à pesca e alguns ajudam suas mães na roça.
Seguindo o padrão indígena rionegrino, a roça em Canafé aparenta ser um espaço de trabalho
feminino. Isso não impede que homens possuam suas roças, mas de maneira geral são as
mulheres que “possuem” e mantém as roças. Os homens adultos “ajudam” suas mulheres na
roça e pescam.
O Ajuri é uma instituição de trabalho em mutirão que tem grande importância para gerar
solidariedade interna. No segundo dia depois da minha chegada na comunidade aconteceu um
Ajuri em Canafé. Depois de todos avisados, o marido da dona da roça ofereceu um café da
manhã no dia seguinte para os parentes e compadres que iriam trabalhar no ajuri. Era final de
setembro e o trabalho era de plantio, mas o Ajuri também acontece para a derrubada da mata.
O trabalho teve uma divisão sexual nítida. Homens preparavam a terra com a enxada
enquanto as mulheres cortavam as varas de maniva e as enfiavam no solo. O suco nas horas
de intervalo e o almoço coletivo também ocorreram por conta dos donos da roça.
A pesca também tem grande importância para a economia local, sendo a principal fonte
de proteína animal das famílias da comunidade. De acordo com as observações feitas e com
informações de pescadores, até 20% do pescado é destinado à venda na cidade. A pesca
possui maior produtividade no verão, quando o rio está seco. No inverno é mais difícil
encontrar espécies apreciadas. Os locais ideais para a pescam são os igapós e lagos das ilhas
próximas. A pesca é geralmente feita de canoa, usando malhadeira, espinhel, zagaia e currico,
dependendo do tipo específico de peixe ou quelônio que queiram capturar.
A maioria pesca apenas para consumo. Dois jovens
42
da comunidade pescam
especificamente para comercializar. Para um morador de meia idade da comunidade Canafé, o
importante é diversificar os produtos para poder se obter uma melhor renda.
42
Eles são considerados como membros da comunidade, embora não morem nela. São como pequenos
regatões que vivem itinerantes da pesca comercial em pequena escala. Por outro lado representam uma forma
que a comunidade tem de ter acesso a produtos da cidade
107
Eu falo pro meu genro, hoje em dia o cara tem que abrir os olhos. O negócio é
plantação. O cara vive de todo jeito. O cara não vai levar de um tipo só. Ele tem que levar um
pouco de peixe, um pouco de salgado, um pouco de banana, um pouco de cará. Quando no fim o
cara ta com 500, 1000 reais. Compra o ranchinho e trabalha tranqüilo. [Ta mais fácil do que
antigamente?] pra mim ta. Eu já não saio mais. Antes era mais difícil porque andava no igarapé
arriscando a vida. De repente a gente vai e adoece. Tinha muita malária. Hoje em dia não. Eu
pego com patrão 600 reais em mercadoria. fico tranqüilo. Até chegar a época que eu vou
vender de novo né. Por que pescaria eu não sei. Tem gente que vive de pescaria, mas eu não vi
lucro nenhum. O kilo do peixe varia entre R$ 1,50 e 1,80. É o que eu digo: ‘planta melancia,
planta abacaxi, planta mandioca porque quando a banana ta de vez o abacaxi está quase bom’.
Né? o cara tem que levar um pouco de cada (Euclides Miranda morador da comunidade
Canafé).
A coleta de castanha ainda representa uma renda esporádica para algumas famílias.
Quando Zeca Macedo morreu seus filhos “entregaram” os lotes de castanha a alguns certos
chefes de família, em particular a Eugênio Miranda, a Gabriel e a Joaquim. Gabriel mensura
que em seu lote deve haver cerca de 200 castanheiras.
A caça representa apenas uma fonte de alimentação esporádica. Os animais mais
freqüentes são o porco, a paca, a anta e o veado. Criam extensivamente algumas galinhas e
patos. Salgar e defumar (moquear) são as formas mais utilizadas para estocar alimentos.
Algumas famílias fazem buracos no quintal de suas casas para manter quelônios estocados
por algum tempo. Uma alternativa para postergar o consumo de quelônios consiste em deixa-
los na margem do rio amarrados com uma linha pelo casco.
Quatro pessoas recebem renda de aposentadoria. O agente de saúde e a professora
também recebem, cada um, um salário mínimo por mês.
O extrativismo não representa mais uma fonte de renda. Os moradores de Canafé dizem
não querer mais trabalhar para patrões. A reflexão sobre o assunto nos últimos sete anos
promoveu uma consciência local de que é melhor trabalhar por conta própria. Este
“desinteresse” pelo extrativismo que está associado ao “fim da borracha” vem sendo
instrumentalizado ASIBA, a qual promove a reflexão sobre as décadas de experiências
negativas dos indígenas com trabalhos para patrões.
Em 2006 havia apenas um morador que se encontrava fora da comunidade por conta da
extração de piaçava. Sua irmã contou que da última vez que chegou da empresa, seu irmão
voltou com um short velho rasgado e com mais dívidas junto ao patrão. Forçando o
estreitamento dos vínculos com seu freguês, chamando-o de “cunhadinho”, o patrão sempre
empurrava o acerto de contas para um futuro indeterminado e, desta forma, sempre tinha
argumento para convencer o recalcitrante freguês.
A depoente afirmou ainda que seu irmão é um dos últimos que ainda persiste no
trabalho com patrões e que ela, depois de trabalhar como empregada doméstica para alguns
108
patrões, percebeu que o melhor era trabalhar por conta própria, na roça com a família. Sua
mãe, que “era uma dessas brabinhas”, lhe dizia que era melhor ela trabalhar em casa e que
trabalhar na casa de gente rica não se ganha nada.
4.6 - Religião e Saúde
A religiosidade no médio rio Negro foi definida por Peres como sendo catolicismo
popular, caracterizado principalmente pelas festas de santo padroeiro. Em Canafé, o padroeiro
é São Pedro, e seu dia, 29 de junho, marca a data de inauguração da comunidade.
Simbolicamente a festa do santo se confunde com a comemoração da fundação da
comunidade. São Sebastião (18/01) e São Alberto (04/08) são outros santos padroeiros com os
quais os moradores da região de Canafé têm promessa.
Todo domingo missas na capela e rezam o terço nas terças-feiras. O catequista e os
próprios moradores conduzem as cerimônias. Um padre vindo de fora reza algumas missas na
comunidade durante o ano. Conhecimentos xamânicos, expressos na linguagem do feitiço, na
crença em seres encantados e na importância dos procedimentos protetores e curativos,
também fazem parte das concepções religiosas e de saúde em Canafé.
Os conhecimentos que os rezadores mantém e atualizam ainda é operativo nas
concepções e práticas sobre saúde e doença individual e coletiva em Canafé. O trabalho de
rezadores e os remédios do mato auxiliam no tratamento de doenças. O atendimento de saúde
da população rural do rio Negro é de maneira geral precário. As doenças mais comuns são
verminoses e gripes. Algumas mudanças ocorreram desde a implantação do DSEI em 1999,
mas de forma geral o serviço de saúde é considerado deficitário. um posto de saúde, que
serve para guardar os remédios administrados pelo agente de saúde.
Rezadores representam outro importante papel social reconhecido e valorizado na
comunidade e na região. Os rezadores em Canafé se filiam a uma tradição indígena e a
conhecimentos xamânicos difundidos por “caboclos do alto”, principalmente oriundos do rio
Uaupés. Elementos católicos e termos do espiritismo kardecista também podem ser
observados juntamente com noções de feitiço, encanto e pajelança.
Em 2006 havia três rezadores em Canafé. Seu Gabriel é o rezador mais velho e
aprendeu a rezar com seu cunhado tukano Sinésio e, depois, com alguns caboclos do Caiari
que passavam alguns anos pela região de Canafé. O filho do falecido Sinésio é outro rezador.
Amílson tem 36 anos e não aprendeu a rezar com outras pessoas, mas nasceu com o dom que
vêm desenvolvendo através dos sonhos. O terceiro rezador é Manuel de Jesus, morador de
Campinas do rio Preto e cunhado de Amílson. É peculiar os elos de parentesco entre os três
109
rezadores. Discutiremos melhor a figura do rezador e a importância do conhecimento de pajés
e rezadores para a identidade coletiva local no próximo capítulo.
110
CAPÍTULO 5 – ETNICIDADE EM CANAFÉ: UTOPIAS E ESTRATÉGIAS
CONTEMPORÂNEAS
Neste capítulo pretendo abordar, por meio das falas e ações de moradores locais, as
estratégias que a coletividade da comunidade Canafé, e de outras comunidades e sítios
próximos, têm acionado para se reproduzir socialmente no contexto contemporâneo do médio
rio Negro.
Iniciarei apresentando o contexto contemporâneo regional, indicando os principais
agentes que fazem parte do campo social onde os caboclos indígenas lutam cultural e
politicamente para a manutenção do acesso e uso privilegiado dos recursos naturais.
Tento mostrar os aspectos situacionais da tomada de consciência sobre a etnicidade em
Canafé sem desconsiderar a peculiaridade dos processos sociais e das elaborações simbólicas
internas à comunidade. Todavia, a consideração dos aspectos que poríamos considerar como
primordiais e próprios da organização social destes grupos não se estruturam por tradições
consolidadas de “culturas atávicas” (Glissant, 2005).
O engajamento no movimento etnopolítico do rio Negro é um aspecto da etnogênese
regional que promove a visibilidade deste processo. É nesta conjuntura que moradores de
distintas comunidades e sítios passam a re-elaborar a cultura discursivamente e afirmar os
contornos de uma identidade coletiva fundamentada no parentesco, na ancestralidade e em
territórios comuns.
A tomada de consciência sobre a sua própria etnicidade é o que Bilby (1996: 136)
chama de etnogênese secundária. Esta por sua vez não é apenas situacional, e inclui
elementos peculiares à organização sócio-cultural do grupo social.
A criação formal da comunidade Canafé em 1985 marcou o coroamento da primeira
fase de etnificação do grupo, apresentando as bases para a consolidação das áreas de uso
comum por grupos de parentes caboclos e indígenas dispersos ao longo do médio rio Negro,
durante a decadência da elite extrativista. No contexto da tomada de consciência sobre a
etnicidade, o “território” passa a figurar como as espinha dorsal das narrativas políticas a
partir das quais os moradores da comunidade Canafé constroem a comunidade como uma
unidade étnica.
Se o fim da hegemonia dos “patrões-coronéis” havia chegado, o que aumentou a
liberdade para o uso dos recursos naturais por parte dos caboclos e indígenas, outros agentes
sociais surgidos na década de 1990 passaram a representar novas fontes de conflitos sobre o
uso dos recursos na região.
111
Estas novas ameaças, bem como a resiliente economia extrativista, se constituíram
como os principais alvos do discurso étnico que vem se formando na região. Além de fazer
visitas, reuniões, assembléias e levantamento de informações junto aos seus associados, a
ASIBA relatou situações de conflito, fez denúncias formais e recorreu à Procuradoria da
República e a FUNAI para encaminhar as demandas locais. Em minhas duas viagens à região,
em 2002 e em 2006, pude ouvir diversos relatos que mencionam elementos de escravidão por
dívidas na relação entre freguês e patrão, principalmente no extrativismo da piaçava.
As mobilizações da ASIBA nas comunidades do interior acabaram por constituir uma
motivação para o fortalecimento do pertencimento coletivo entre caboclos e indígenas que
utilizavam economicamente seus territórios baseado em códigos simbólicos partilhados e sob
regimes de acesso e uso comum dos recursos naturais. A reflexão sobre a identidade coletiva
também passou a se fazer, em maior ou menor intensidade, parte da vida dos moradores
locais. O nome Canafé, que foi criado como mbolo de propriedade privada extrativista,
passou a se constituir como emblema identitário desta comunidade de caboclos ou “índios-
civilizados”.
O contato com os direitos indígenas difundidos pela ASIBA em mini-assembléias e
viagens de consolidação institucional provocou mudanças na dimensão daquilo que os
moradores locais concebiam como seus direitos. No contexto destas reflexões, a área de
Canafé passou a representar um objeto central da ação política e cultural de seus moradores,
fazendo parte da sigla da associação
43
que pretendem criar. Vejamos primeiro os agentes
sociais contemporâneos e suas formas de ocupação do espaço e uso recursos naturais para
posteriormente analisarmos os discursos e práticas referentes à identidade coletiva e a área da
comunidade.
5.1 - Novos agentes e modalidades de ocupação territorial
Vimos que o médio rio Negro é habitado por uma população misturada e multi-étnica,
com distintas categorias de pertencimento coletivo. Esta diversidade social implica em
distintas formas de assentamento humano e ocupação territorial. A diversidade social e
fundiária da região é uma fonte perene de tensão e conflitos econômicos, territoriais e
ambientais. Tais conflitos (e os agentes a eles associados), como veremos, são os objetos
centrais para a construção de uma semântica da etnicidade, a qual provê de significados e
simbolismos culturais e políticos os discursos étnicos na região (Peres, 2003).
43
Associação Indígena Área de Canafé - AIAC.
112
Além do regime de uso comum do território por ribeirinhos, caboclos e indígenas, uma
outra forma de ocupação territorial no médio rio Negro é representada pela ão dos patrões
de piaçava que se concentram no rio Padauiri/Preto, no Paraná da Floresta e no rio
Araçá/Demeni. Estes comerciantes contemporâneos do extrativismo (descendentes ou
compradores dos “direitos” de antigos comerciantes da região) detêm o controle das
atividades extrativistas e do sistema de aviamento ainda existente na região.
Este grupo social reivindica extensas áreas com concentração de produtos
extrativistas, principalmente a piaçava. Justificam seus direitos argumentando que tais áreas
e/ou tais rios “pertenciam” aos seus pais e avós. De fato, um reconhecimento geral de
senso comum que tais áreas eram do comendador J.G. Araújo desde o começo do século
passado. Este, por sua vez, concedia extensões de terra a seus aviados.
Como vimos, nesta época, os comerciantes mais expressivos se apropriavam de
extensas regiões legitimando sua ocupação territorial através de suas relações econômicas e
políticas com a pessoa e a empresa de J. G. de Araújo. Era muito difícil uma família indígena
se estabelecer autonomamente num desses territórios mercantis. Esse panorama se alterou
após a década de 1950.
O crescimento das atividades de regatão na área, a partir de meados da década de
1940, adicionou novos elementos à dinâmica mercantil na região e significou uma força
contrária ao domínio dos comerciantes sobre os recursos explorados no extrativismo. É
importante observar que poucos destes patrões antigos que realmente possuíam títulos
herdaram formalmente seus imóveis. De modo que atualmente são raros os patrões de piaçava
que realmente têm direitos formais sobre as áreas que exploram.
Atualmente a legitimidade das reivindicações de propriedade fundiária dos patrões tem
sido ameaçada pelo fato de não terem títulos da terra e pela organização do movimento
indígena e a reivindicação pela demarcação de terra(s) indígena(s) na região. O depoimento
abaixo exemplifica este processo do ponto de vista de um ativista indígena de Barcelos:
Muitas vezes eles [os patrões] chegavam comigo e diziam: "seu Clarindo, o Sr. vai
fechar os rios de piaçava e a gente não vai mais ter trabalho". Eu disse: “olha, fechar rio eu não
sei, eu não sei se Deus pode fazer, mas o ser humano, eu acho que ele não pode fechar o rio, se a
gente fecha com pedras ou cimento o rio vai correr para o outro lado", eu brinquei, né? Eles
disseram: "não, a gente quer saber como é que vai ficar". Eu disse: "olha, meus amigos, eu não
estou aqui para resolver problemas de vocês. Quem pode resolver o problema de vocês é o
prefeito, ele é o governo do município, não comigo, eu sou da associação indígena. Eu estou
defendendo o povo indígena, o povo discriminado e explorado, é isto que eu estou defendendo
(Clarindo Chagas – presidente da ASIBA).
113
De acordo com um morador de Campinas do rio Preto, um consenso entre os
próprios patrões sobre a “propriedade” das áreas de exploração de piaçava nos rios
Padauiri/Preto. Esse consenso é de conhecimento público e a maioria dos indivíduos adultos
desta micro-região sabe que, em tese, cada comerciante é “dono” de um igarapé ou trecho do
rio.
O rio Padauiri e os núcleos urbanos são os espaços de maior domínio de
comerciantes/patrões. Nas comunidades mais próximas destes locais, os comerciantes
(patrões de piaçava e peixe ornamental) dão o tom da dinâmica social local, mobilizando
moradores de comunidades e sítios para o trabalho nas colocações
44
e utilizando estas
comunidades como entrepostos de suas atividades comerciais particulares. Estes patrões
geralmente moram em Barcelos, mas passam parte do tempo nas comunidades e nos
percursos para as colocações.
A colocação é a sede da base territorial dos patrões. A modalidade de ocupação do
espaço destes comerciantes de piaçava abrange as colocações, os piaçabais, trechos de rios e
igarapés, principalmente ao longo dos rios Preto/Padauiri, no Paraná da Floresta e no rio
Aracá. Diferentemente dos comerciantes de peixe ornamental, que exploram o meio aquático
e seguem os fluxos de cardumes específicos (principalmente as espécies conhecidas como
Acará Disco e Cardinal), os patrões de piaçava exploram áreas terrestres fixas, nichos de
piaçabais nativos.
A extração de piaçava tem um aspecto fundiário mais pronunciado do que a extração
de peixe ornamental, embora ambas operem através do sistema de aviamento. Os patrões de
piaçava consideram os rios que exploram como suas propriedades, argumentando direitos
adquiridos ou comprados. Os patrões de piaçava têm um acordo tácito entre si sobre os limites
de seus territórios. Funciona uma rede de comerciantes. Nesta rede todos seus agentes são
conhecidos e comerciantes de fora são rapidamente identificados e tomados como ameaça se
não respeitam os códigos locais deste grupo.
É principalmente no contexto dos rios Padauiri/Preto que se observa a interação mais
intensa de distintos segmentos sociais com distintas formas de uso do território e com
territorialidades sobrepostas. Nestas regiões, moradores de comunidades e sítios disputam
espaço com patrões. Devido à pressão feita pelos patrões, estes são os locais onde os ativistas
indígenas têm a maior dificuldade de atuação.
44
Local de referência para a atividade extrativista, geralmente situado em regiões remotas, nas cabeceiras dos
igarapés, onde os fregueses são deixados por um longo período até extraírem uma quantidade satisfatória de
piaçava.
114
Ali na Tapera, Floresta são tudo contra [o movimento indígena] porque não estão bem
mobilizados né. Eles dependem muito dos patrões fica difícil. vão trabalhar quando o
patrão manda. Quando patrão chega ele pega aquela quantidade de rancho e vai embora
trabalhar. Eu acho que o trabalho da piaçava não tem futuro não. Porque eu já trabalhei e vejo
que não tem futuro. tem futuro para o patrão, porque para quem está no meio da mata não é
bom não. Cortar, amarrar, transportar até a boca para entregar para o patrão. A entrega tem
despesa alta. 120 reais a lata [20 litros] de gasolina. (João Bosco morador da comunidade
Canafé).
O Padauiri é reconhecidamente o principal nicho de concentração de piaçava no médio
rio Negro, um antigo “lugar de patrões”; um espaço historicamente vinculado às atividades
extrativistas e a ação dos comerciantes. A piaçava do rio Padauiri é explorada desde os
tempos coloniais. A comunidade Tapera, situada na foz deste rio, é também um “entreposto”
dos patrões. é feito o despacho dos fregueses e o produto extraído é armazenado para
posterior transporte para Barcelos.
Outros agentes que têm feito presença na região são os empresários do turismo e
turistas. Iniciada na segunda metade da década de 1990, a implantação do ecoturismo na
região desencadeou a emergências da conduta territorial governamental e de novos agente
ligados ao capitalismo verde.
Neste novo contexto dois segmentos agem em consonância através de políticas
públicas como o PROECOTUR: o Estado (em rias instancias: MMA, IBAMA e
Prefeituras) age através da criação de unidades de conservação e o controle sobre o acesso a
determinadas áreas de uso comum da população local, abrindo espaço para a penetração do
capital privado. Os empresários do turismo, por sua vez, constroem “hotéis de selva” e
organizam as atividades de pesca esportiva. A pesca esportiva do tucunaré (Chichla spp.) é o
grande atrativo do turismo na região.
Com a implantação do ecoturismo, os governos locais de Santa Isabel e Barcelos
passaram a delimitar espaços destinados à “preservação” em consonância e sincronia com a
necessidade de espaços para a realização da pesca esportiva. As prefeituras locais, neste
contexto, passam a circunscrever extensas áreas de uso comum das comunidades e sítios para
a criação de “reservas ambientais”. Esta prática tem causado insatisfação por parte dos
moradores de comunidades e sítios que utilizavam tais locais para pesca, caça e coleta. Em
relação a isto um morador da foz do rio Jurubaxi me relatou o seguinte:
Eu tô com o meu barracão aí que é só você vendo: já todo destelhado porque eu
costumava cobrir com palha de caranã. Eu costumava tirar nesse rio, bem ali, daqui para dá
uma hora de rabetinha. Eu costumava tirar palha e quando foi agora eu não pude mais tirar
porque proibido né. Eu fui lá com o seu Paulo Damasceno [Secretário de Meio Ambiente], em
Santa Isabel, tirar uma permissão para mim tirar uns feixes de caranã para mim cobrir meu
barracão. Ele disse: - nem uma palha, ta fechado então não pode tirar. E nós, como somos filhos
115
nativos daqui, não temos direito do que é nosso. E assim eu digo que pode acontecer aqui
também. Vai ser proibido muita coisa. Eles vão criar as leis. Será que nós como filhos nativo
daqui, nós vamos perder esse nosso direito? Nós não vamos mais ter o direito de tirar um pau,
uma palha né. Eu acho que isso são as ameaças que tá acontecendo (morador da comunidade São
Francisco).
Em relação à ação empresarial é fundamental notar que a apropriação dos recursos
pelos turistas vai muito alem das dependências dos hotéis ou lodges, como preferem chamar.
A pesca esportiva é uma atividade altamente extensiva e necessita transitar por grandes
extensões de água, pois se baseia principalmente na busca por uma espécie particular de
peixe, o tucunaré.
Os tucunarés são encontrados mais em abundância em trechos sem correnteza, em
lagos mais parados. Isto leva os turistas a valorizar os principais lagos mais intocados pelo
homem, locais considerados como santuários ecológicos pelos moradores da região. Os lagos
centrais são considerados pelos moradores locais como espaços de reprodução biológica.
Crenças e concepções cosmológicas sobre a natureza e a relação homem/natureza dão suporte
a idéias e práticas sobre a preservação dos recursos nestes espaços considerados como
sagrados pela ecologia nativa.
foi registrado (Peres, 2003; Silva, 2003; Pereira, 2002) que as atividades turísticas
na região promovem conflitos com a população ribeirinha e são consideradas pelos indígenas
como uma grande ameaça às formas de uso comum destas áreas por membros de
comunidades e sítios. O depoimento abaixo de um morador de Canafé revela uma censura
moral às atividades turísticas, mostrando a consciência local de que a pesca esportiva é um
lazer estrangeiro que se sobrepõe às necessidades locais.
Essa pesca amadora, que eu acho, que a gente deve ver o que é certo e o que é errado.
Por mais que eles digam que é pesca amadora, que não vai consumir e é para filmar e tudo,
mas o que eu acho estranho e que não está certo, é ferir o peixe e deixar ele ir embora, sem tratar
né. Com certeza, depois que ele soltar quem vai cuidar dele, alguém vai ser o médico dele?
Ninguém. Pode ser médico, pode ser o que for de turista, depois que solta o peixe, como é que
ele vai ficar? Muita gente viu o peixe ferido tão grave que ele chega a morrer. Então, o que
adianta a pessoa fazer isso? Quer dizer que para eles é bom porque é uma admiração, mas para a
gente não... E por outra parte querem proibir que o pessoal pesque o tucunaré porque aquele é
um peixe que eles gostam muito e o cara não pode pescar nem para sua própria alimentação,
para o consumo ou para comercializar mesmo né. Querem proibir a pesca como aconteceu várias
vezes aqui no município (Alair Mateus – ex-morador da comunidade Canafé.).
Uma moradora de Canafé, que foi trabalhou no “hotel do Felipe” (Rio Negro
Lodge), percebe que o poder daquele espaço capitalista está aumentando em detrimento
das formas de ocupação indígena e ribeirinha.
116
Eu já trabalhei no hotel do Felipe. O Felipe ta pegando eles aqui [na mão]. Dá emprego.
Ainda não ta proibindo pescar, mas caçar sim, bicho de casco não pode, ovos não pode. Esses
anos ele vem botando o pessoal todinho aqui na mão. Daqui uns dias ele vai dizer ‘pronto essa
área é minha e acabou para vocês’. E aí? Ou então ele vai oferecer dinheiro para as pessoas
desocuparem o local (Suliete Macedo - moradora da comunidade Canafé).
Além do serviço hoteleiro de primeira classe, enormes peixes que os turistas podem
exibir em fotos (e até lhes render medalhas em competições) e o exotismo da Amazônia são
os principais produtos oferecidos pelo capitalismo verde no rio Negro aos consumidores de
países do primeiro mundo.
Outra política pública de caráter ambiental, o Projeto Manejo Integrado da
Biodiversidade Aquática e dos Recursos Hídricos na Amazônia (Aquabio), firmado entre o
governo federal e Banco Mundial, é a mais recente investida do Governo Federal na região.
Um dos objetivos centrais do Aquabio é prover as condições organizativas para a gestão
compartilhada de recursos naturais de ambientes aquáticos. Segundo o Instituto
Socioambiental o projeto i“investir em iniciativas que promovam a conservação e o uso
sustentável dos recursos naturais e melhoria nas condições de vida das populações da
Amazônia” (http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id= 2324).
Em documento disponível na internet, mas que “somente pode ser utilizado pelos
recebedores
45
na obrigação de seus deveres oficiais” podemos observar que o interesse do
Banco Mundial é financiar ações que preservem a biodiversidade aquática de algumas regiões
do Brasil, através de ações criação de espaços políticos para a gestão compartilhada dos
recursos aquáticos.
Em sua “Estratégia Indígena”, o Aquabio revela-se, em suas próprias palavras, um
projeto “eminentemente de cunho ambiental e irá envolver atores locais, incluindo povos
indígenas, principalmente em treinamentos e capacitações com o objetivo de permitir uma
participação efetiva nos fóruns locais que o Projeto pretende criar ou apoiar, e possivelmente
em algumas das atividades demonstrativas (sub-projetos que serão apoiados pelo AquaBio).”
Na medida em que o projeto será gerido por agentes da tecnocracia governamental
correlata àquela que geriu o Proecotur é prudente questionar se a “melhoria na qualidade de
vida das populações da Amazônia” não é mais um artifício de retórica de uma política
“eminentemente de cunho ambiental” (como também é o caso do Proecotur), mas que abre
espaço para interesses capitalistas em detrimento do desenvolvimento local. Outro ponto de
45
Aquele que recebe o arquivo pela internet em seu o computador. Como o acesso ao arquivo não é restrito,
qualquer indivíduo que tiver acesso a web pode ser um “recebedor” deste documento “restrito”.
(
www.wds.worldbank.org/.../2006/02/22/000090341_20060222102449/Rendered/PDF/IPP1620IPDP0
Portugues0final.pdf).
117
confluência entre estas duas políticas públicas é que ambas operam baseadas em
financiamentos externos (BID e Banco Mundial).
Uma outra modalidade de ocupação do espaço vem sendo construída pelo movimento
etnopolítico do rio Negro. A reivindicação por direitos territoriais em Barcelos e em Santa
Isabel aponta para a criação de novas terras indígenas na região.
A Terra Indígena representa uma modalidade territorial em potencial, na medida em
que vem sendo demandada através da agencia política que emana do movimento indígena
formado por associações “de base” confederadas na FOIRN. O levantamento realizado em
2002 pela FUNAI (Pereira, 2003) foi o primeiro passo para o planejamento da identificação
de terras indígenas a serem realizadas este ano
46
.
É frente a este cenário contemporâneo mutante que os moradores da comunidade
Canafé buscam, por meio de distintas estratégias, condições para continuar vivendo em suas
áreas sem precisar de emprego e salário para viver na cidade.
5.2 – Resistindo à migração
Imposições de ordem demográfica pesam na definição das estratégias locais para os
membros da comunidade Canafé se manterem em suas áreas. A migração, que reverteu a
proporção entre a população rural e urbana em Barcelos nos últimos 20 anos, ainda atrai
muitas famílias do interior dos municípios de Barcelos e Santa Isabel, principalmente para o
núcleo urbano do primeiro. Vimos que Canaperdeu cerca de dois terços de sua população
entre 1985 e 2000. Ainda em 2002, duas famílias migraram para Barcelos.
Frente a esta pressão migratória, os moradores desta comunidade procuram condições
para continuar a viver no interior e assegurar seus direitos de acesso e o uso dos recursos
naturais fundamentais para a reprodução social da comunidade. A exploração dos ambientes
aquáticos e terrestres forma a base da vida econômica e social da população indígena e
cabocla do médio rio Negro.
Este é um dos principais desafios colocados contemporaneamente para muitos dos
povos indígenas e “tradicionais”, não do médio rio Negro, os quais não têm mecanismos
para terem reconhecidos e fazer valer seus direitos territoriais advindos da posse comum. Para
os índios a reivindicação de direitos territoriais tem respaldo jurídico e maior visibilidade do
46
Em Dezembro de 2006 a FUNAI publicou em seu sítio eletrônico os resultados do Edital 21 e 22 para a
contratação de antropólogo para coordenar os estudos de identificação das terras indígenas Tapuruquara, Rio
Jurubaxi, Cumarú,. Baixo Rio Negro, Rio Araçá e Rio Padauiri.
118
que para os caboclos que não se identificam como indígenas. Esta é uma questão que pretendo
retomar adiante. Continuemos na manutenção da vida no interior.
Os núcleos urbanos da região são espaços que faz parte da vida de quem mora no
interior, mas sobre o qual deve se manter certa distancia, pois a vida na cidade é um perigoso
espaço social que pode promover transformações intensas na pessoa e nos grupos. A cidade
tem as mercadorias que precisam, mas tem também drogas, brigas, crimes, prostituição, fome,
entre outros atributos negativos. Para os moradores da comunidade Canafé, a cidade não é o
oposto do interior. É antes um complemento necessário.
Se por um lado a migração para Barcelos pode representar a conquista de novo espaço
pela extensão das redes de parentes (que se formaram originalmente no interior e depois se
expandiram para o núcleo urbano), também representa um risco para a identidade coletiva,
mudando hábitos e concepções e podendo causar a dissolução das coletividades de parentes
numa malha homogênea e anônima. Um morador de meia idade de Canafé se queixava que na
cidade os seus sobrinhos não tiram mais bença
47
e “passam de durão”.
Embora toda a família seja afetada com a migração, os jovens são vistos como os
principais alvos da pressão modificadora da cidade
48
, pois precisam continuar seus estudos e
geralmente dependem dos pais para tal. A presidente da comunidade Canafé, ao comentar o
caso de uma outra pessoa, demonstra que, mesmo com a importância de continuar a educação
escolar, é preferível ficar no interior, pois a cidade é repleta de perigos, principalmente para
os jovens.
Queria que o filho soubesse apenas assinar o nome aqui para não me dar dor de cabeça
lá. Como muitos que foram daqui. Uns souberam aproveitar, hoje fizeram ano, 2º ano, já
estão na faculdade, na sala de aula, outros com um trabalhozinho mais ou menos. E outros estão
fazendo os pais sofrerem lá. Os pais que têm um bom freio moram na cidade, mas quem não
tem... O diploma que alguns pegam na cidade, diz meu pai, é uma barrigada [gravidez], ou uma
garrafa de 51. Né? Então coitado. o foi vantagem para ele. Meu pai se esforçou tanto para ir
para a cidade para nada (Suliete Macedo - moradora da comunidade Canafé)
Se os jovens são os principais atraídos pela cidade, os velhos aposentados também se
sentem estimulados devido à relativa estabilidade financeira que alcançam com a
aposentadoria rural. Em Canafé e na comunidade vizinha Tapereira, os antepassados
47
Tirar bença é uma atitude de deferência de jovens frente aos parentes de geração ascendente, geralmente mais
velhos.
48
uma concepção de senso comum que afirma que quem a cidade com seus atrativos (luzes, gasolina,
televisão, informações) não quer ser mais índio ou viver no interior. Ser índio neste caso se refere a reconhecer a
rede de parentes oriundos do interior. Assim um homem de meia idade afirmou que alguns de seus sobrinhos que
foram para a cidade não mais pedem benção, atitude ritual que afirma e reforça os laços entre parentes. No
entanto, segundo a ética do interior a pessoa não pode ser “fraca” e se deixar levar pelo “cheiro da gasolina” ou
pelas “luzes da cidade”.
119
enterrados no cemitério da comunidade representam um elemento de pertencimento ao espaço
do interior, inibindo o desejo de migrar para a cidade.
Aqui [na comunidade] é bom, eu acho bom. Eu sou forte. Eu sempre seguro as coisas.
Eles queriam que eu fosse para Barcelos. Hum, se eu fosse para Barcelos eu estava enrolada com
esse tanto de filho. Uns tinham matado. Por que é assim. Quem tem filho homem sofre mais é
isso. Mas eu não. Eu agüentei aqui. Eu vou deitar junto do meu pai e da minha mãe que estão ali
em baixo (Arlete Basílio - moradora da comunidade Canafé)
Pelo depoimento acima vemos que é preciso “ser forte” e “segurar as coisas” para
resistir, entre outras coisas, à forte tendência migratória. A busca de alternativas a esta
pressão migratória vem sendo reforçada pela ação da ASIBA. Este apoio se traduz mais em
motivações ideológicas e na luta pelo reconhecimento dos direitos territoriais indígenas.
Um morador de Canafé que participa ativamente do movimento etnopolítico do rio
Negro desde 1999 avalia o isolamento social da comunidade e aposta na escola como
elemento de fortalecimento das relações inter-comunitárias e como uma alternativa para ao
êxodo rural.
O nosso problema aqui... era para ter muita gente. que os nossos governantes que
não se interessam por nós. Por que nós estamos aqui. Somos raros demais, pouca pessoas. Por
que muitos quiseram ver os filhos para ser alguém na vida. Não pode ser porque a cidade hoje
está muito perigosa. tiveram que abandonar a comunidade para ir para a cidade. Foram oito
famílias daqui para a cidade. Também nós seguremos aqui. Eu sempre ando nesses eventos por
aí, fico debatendo. Eu falo que não tem melhor coisa que o interior. Eu to lutando com a
prefeitura para que venha uma escola de 5ª a para cá. Até esse ano o secretário ta falando que
vem para a série. Agora o que eu vou fazer. Eu vou unir as duas comunidades [Canafé e
Tomar]. Unindo as duas vai dar o número de alunos suficientes. aqui nós somos 22 jovens
para fazer a quinta série, para dar o andamento. Em Tomar tem mais uns dez, aíuns trinta e
da para começar a funcionar (João Bosco – morador da comunidade Canafé).
A necessidade por educação escolar, que representou uma força centrípeta no processo
de formação da comunidade, atualmente representa uma força de desagregação das formas de
vida no interior, levando os moradores do interior para Barcelos. As estratégias dos
moradores de Canafé não negam o valor da escola. Pelo contrário buscam reforça-la e trazê-la
com mais intensidade para o âmbito das comunidades.
Paralelo às reivindicações territoriais, a possibilidade de estudar o ensino fundamental
(o antigo ginasial, ou a séries) na zona rural é vista como uma estratégia básica para se
manter no interior e resistir à migração para a cidade.
120
5.3 - Adesão ao movimento indígena
Já depois que eu cheguei em Barcelos que eu vim saber desse
negócio de indígena (Hermes Gomes - Ex-morador de Canafé).
A adesão ao movimento indígena é um processo recente que para os moradores de
Canafé representa uma importante estratégia para a manutenção das formas de vida que se
constituíram na margem do rio Negro. A interação com ativistas do movimento levou a
construção de novos significados e valores positivos (autonomia, liberdade, auto-suficiência,
auto-estima) sobre um modo de viver com o qual se identificam em distintos aspectos.
Os contatos com o movimento político em Santa Isabel e a filiação formal à
Associação Indígena de Barcelos tem motivado a reflexão sobre suas origens e a de seus
antepassados. Esta reflexão consolida os sentimentos de pertencimento coletivo e de união em
torno da comunidade e de sua área.
Pelos depoimentos de moradores e ex-moradores de Canafé vemos que até o final de
1990, ninguém havia ouvido falar “nesse negócio de índio”. Muito pelo contrário, o termo
“índio” sempre significou algo que tinha que ser escondido. Ainda em 1971, a antropóloga
Adélia Engrácia de Oliveira (1975) apresentou fortes indícios neste sentido, mostrando que no
Povoado São João os indivíduos que possuíam traços e descendências indígenas buscavam
minimizá-los e escondê-los. Somente após a criação da Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro (FOIRN) em 1987 e com a Constituição Federal de 1988 é que esse
quadro ganha bases políticas e jurídicas para se modificar.
Pouco antes disto, a inexorabilidade do processo de transfiguração étnica foi sendo
empiricamente posta em xeque pela ação da própria dos missionários Salesianos, que, num
mea culpa pelas violências psicológicas e morais cometidas contra os povos indígenas do rio
Negro
49
, passou a re-orientar sua ação missionária. Os missionários salesianos da década de
1970-80 não buscavam mais a assimilação dos índios na nação brasileira, mas sim criar as
condições para que índios e caboclos, objetificados como vítimas e reprimidos, se tornassem
os próprios sujeitos de sua libertação material e espiritual (Peres, 2003: 19).
As novas estratégias missionárias no rio Negro na década de 1970-80 (baseadas na
Teologia da Libertação) faziam parte de uma orientação mais geral da Igreja para a ação junto
aos pobres. O Conselho Indigenista Missionário desde 1972 passou a incentivaram a
organização das populações indígenas principalmente através das assembléias organizadas
49
A cruz levemente entortada para frente da missão de Santa Isabel é o símbolo mais explícito do
reconhecimento da igreja católica pelas suas violências cometidas nas primeiras décadas do século XX.
121
pelo mesmo. A partir de então o processo organizativo indígena ganha proporções nacionais,
conseguindo importantes aliados não-indígenas e criando associações em todo o país (Ramos,
1997).
No rio Negro, a ameaça do projeto Calha Norte e de empresas mineradoras motivou a
união de algumas associações locais para a criação de uma federação indígena que
contemplasse o interesse comum de distintas etnias. Com apoio do Centro Ecumênico de
Documentação Indigenista (CEDI) e, posteriormente, do Instituto Socioambiental (ISA), a
FOIRN foi criada em 1987 para fazer frente às pressões militares para retalhar os territórios
indígenas em “áreas indígenas” separadas por “florestas nacionais”.
As conquistas da FOIRN foram notabilizadas pela demarcação de um conjunto de
cinco Terras Indígenas contínuas, todas à montante de Santa Isabel do rio Negro, somando
mais de 8 milhões de hectares. As conquistas (principalmente territoriais e assistenciais) do
movimento etnopolítico no alto rio Negro abriram precedentes para a reivindicação de terras
indígenas em áreas em que a presença indígena era considerada inexistente. Na década de
1980 sete organizações indígenas foram criadas no alto rio Negro e afluentes.
Na ausência de um dispositivo legal que assegure o direito territorial para o
campesinato histórico (Harris, 2006) caboclo e indígena da região, a Terra Indígena surge
significando uma nova forma de acesso ao respaldo legal sobre a posse da terra. Mostrando
que a consciência deste processo permeia o senso comum uma moradora de Canafé me disse
que “agora os índios tem mais direitos que os brancos”.
No contexto dos estudos para a implementação do Distrito Sanitário Especial Indígena
do Rio Negro (DSEI/RN), a FOIRN contratou três antropólogos para realizarem um
levantamento na região do “baixo rio Negro.” O levantamento (Oliveira; Peres e Pozzobon,
2001) produziu não só informações surpreendentes sobre a presença indígena na região, como
também fomentou a organização política e a criação da Associação Indígena de Barcelos.
A implementação do DSEI/RN em 1999 parece ter acentuado a impressão regional de
que os índios têm privilégios junto ao governo federal, pois apenas os que se declaravam
como indígenas eram incluídos na política de saúde. Os caboclos, não-indígenas, muitas vezes
vizinhos e até mesmo parentes dos que se declaravam indígenas, provavelmente se sentiram
preteridos neste processo de acesso a direitos e serviços do Estado. Esta, todavia, é uma
questão que merece uma discussão à parte.
A organização do movimento indígena no alto rio Negro também teve impactos na
região à jusante de Santa Isabel e em Barcelos. Das 34 associações criadas na década de 1990
e filiadas à FOIRN, duas se concentraram nas imediações de Santa Isabel e uma em Barcelos.
122
A Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro (ACIMRN) foi criada em
1995 com sede em Santa Isabel do rio Negro. Em 1999 a Associação Indígena de Barcelos foi
criada com base na sede do município.
Em 1999, a organização do movimento indígena em Barcelos culminou com a criação
da Associação Indígena de Barcelos (ASIBA), sediada no núcleo urbano. A ASIBA, desde
sua criação, tem sido presidida por um índio da etnia Tariana que nasceu no rio Papuri e
mudou-se para Barcelos em 1982. As principais atividades desta associação se dirigem no
sentido de identificar melhor e tornar visível a população indígena de Barcelos, promovendo
sua mobilização através de assembléias, mini-assembléias e reuniões, onde são discutidos os
principais problemas socioambientais e apresentados os direitos indígenas.
A ASIBA atualmente enfrenta problemas semelhante aqueles que atingem as
organizações indígenas de todo o país. Na falta de experiência para lidar com questões
financeiras e administrativas, em pouco tempo perdem o apoio das organizações
governamentais que financiam suas ações. Isto leva à estagnação das atividades e à
dificuldade de interagir com seus filiados. Todavia, a ação da ASIBA e da ACIMRN
possibilitou o reconhecimento e a visibilidade da população indígena e de suas áreas de
abrangência.
É interessante notar que a organização do movimento indígena em Barcelos se
desenvolve no contexto urbano e somente depois passa a agir e ganhar adeptos entre os
ribeirinhos da zona rural. Na zona urbana as demandas indígenas giram em torno da conquista
de uma cidadania diferenciada, pela reversão do histórico preconceito e pelo acesso digno a
serviços de educação, saúde e moradia. Na zona rural figura em primeiro plano a
reivindicação pelo reconhecimento formal do direito ao usufruto exclusivo dos recursos
naturais das áreas das comunidades”. O “articulador indígena” da comunidade Canafé
mostra, no depoimento abaixo, que esta comunidade se tornou um espécie de célula do
movimento indígena em sua micro-região.
Aqui nós já estamos conscientizados. Aqui é a comunidade mais preferida como
comunidade mais indígena. Fomos escolhidos pela ASIBA, tivemos uma Mini-Assembléia
indígena para formar uma associação. Era para formar a associação e capacitar os
coordenadores, fazer os estatutos, fazer o projeto. Ficou parado por aí. Nossa sigla é AIAC,
Associação Indígena Área de Canafé. Nossa área de abrangência ficou Tapera, Floresta, Canafé
e São Francisco. Quando fomos para a mini-assembléia as demais não compareceram. nós
que coloquemos. Formamos uma comissão provisória. Estamos esperando a ASIBA se interessar
para capacitar os coordenadores (João Bosco – morador da comunidade Canafé)
123
A adesão ao movimento indígena coordenado pela ASIBA envolve tanto a
possibilidade de serem atendidas demandas imediatas (melhor atendimento de saúde,
aposentadoria), quanto demandas perenes como cidadania diferenciada e direitos territoriais.
Além disto, o associativismo indígena promove ações de politização da identidade e da
cultura indígena, abrindo um campo de possibilidades para a re-significação da indianidade e
a reversão de estigmas.
Os moradores de Canafé entendem a ASIBA e FOIRN como uma instituição “de
fora”, mas que entende profundamente a história, modos de vida dos caboclos e os “orienta”
sobre seus direitos. O acesso ao conhecimento externo e às informações veiculados por estas
instituições são os elementos fundamentais de um processo de construção de autonomia e
futuro que foi possível vislumbrar em um certo período histórico após a queda da
hegemonia da oligarquia rural do médio rio Negro.
Então é como isso que você ta perguntando. existia índio? Existia, mas ninguém
veio de falar para nós que o direito do índio era esse, assim como hoje. Porque hoje o índio
tem mais direito que o branco. É o que sempre falam. Ninguém tinha condições de sair daqui
para Barcelos, para Manaus para saber das coisas. Hoje em dia não, nós temos rádio, temos
televisão, temos tudo. Temos motor. Pega 50 reais embarca ali e vai embora para Manaus para
Barcelos. Hoje se você quiser descobrir quais são os direitos dos índios você vai. Antigamente
não. Antigamente ninguém podia descobrir nada. (Suliete Macedo, moradora da comunidade
Canafé).
A participação em atividades de mobilização promovidas pela ASIBA e filiação
formal é parte da estratégia para continuar a viver no interior e assegurar o direito sobre o
acesso e o uso dos recursos naturais.
Nos eventos organizados pela ASIBA as falas e ações são permeadas com um alto
grau de formalização, envolvendo a invocação de signos de indianidade como danças, ações
rituais como o benzimento do local, etc. Assembléias, mini-assembléias, mobilizações,
levantamentos, cadastramentos e danças são momentos e espaços de ação institucionalizados
para a representação da ancestralidade e da indiandade. Nestes eventos políticos ritualizados,
moradores da comunidade e ativistas interagem na elaboração de nteses discursivas,
construindo um discurso étnico que visa articular demandas locais à questões globais. (Peres,
op. cit)
A expectativa pela demarcação da área de Canafé como Terra Indígena fortaleceu a
identidade coletiva dos grupos de parentes pertencentes à área de Canafé. Este é um novo
projeto de futuro que seus moradores passam a construir entre si e no contexto mais geral do
diálogo com o movimento indígena regional. Esta agência “externa” apresenta os
124
instrumentos (conhecimento, cultura, propostas de ação) de uma forma de viver com a qual se
tem e se constrói identidade em diversos aspectos.
Frente à ausência histórica do Estado na região
50
e da dominação paternalista exercida
pela elite política e econômica regional, a interação com o (e no) movimento indígena
possibilita estreitar o diálogo destes caboclos de Canafé com aqueles que chamam de “os
nossos governantes”.
5.4 – Identidade étnica em Canafé
A identidade individual e coletiva é uma temática central posta pela expansão do
movimento etnopolítico na região nos últimos dez anos. A ação política e cultural da ASIBA,
ACIMRN e FOIRN fomentou um processo amplo de construção de um “nós” frente a
“outros” contemporâneos potencialmente ameaçadores das formas de viver indígenas.
As informações difundidas pelos ativistas indígenas tiveram repercussão em muitas
coletividades de parentesco que se baseiam no acesso e uso comum dos recursos naturais. O
levantamento que coordenei para a Funai em 2002 contou com a consultoria direta de dois
importantes dirigentes das associações de Santa Isabel e Barcelos. Foi a partir de suas
informações que pude visualizar que as adesões ao movimento indígena e a politização da
identidade nativa se estendiam por uma extensa região envolvendo mais de quatro dezenas de
comunidades do médio rio Negro. Sem mencionar sete comunidades indígenas ribeirinhas na
no município de Manaus.
Ao falar em “identidade nativa” chamo a atenção para o fato de que relação com o
espaço é um importante fator para a classificação social na região. Além do parentesco, a
modalidade de acesso e as formas específicas de utilização econômica de um território
comum e dos recursos naturais é um importante critério do pertencimento micro-regional.
As distintas redes de parentesco, que vivem, com ênfases variadas, da agricultura,
pesca, caça e extrativismo, constituem os limites mais gerais do sentimento de pertencimento
entre os nativos da região ou filhos daqui mesmo. Pertencer a esta rede enquadra o sujeito em
certos códigos de conduta ética que por sua vez lhe confere o reconhecimento de direitos
sobre o livre acesso e uso do espaço e dos recursos naturais.
Estas complexas redes de parentes, que partilham códigos de conduta na relação com a
natureza e um regime de acesso e uso comum, constituem limites para o sentimento de
50
Em relação à Stephen Nugent (2006:35) coloca que mesmo durante o ciclo da borracha o Estado pouco
intervinha nas relações cruciais que se davam entre a Amazônia e os mercados internacionais. Dsupõe-se que
os problemas dos caboclos sempre foram questões alheias ao Estado.
125
pertencimento coletivo na região. Como é o caso de Canafé, estes limites vêm sendo
reafirmados e estreitados pelo resgate da ancestralidade e o engajamento nas políticas de
identidade por parte de algumas destas coletividades.
As expressões que os moradores de Canafé utilizam para se referir a si são
semelhantes as que utilizam para se referir aos membros das comunidades vizinhas. Paralelo a
estas identificações que acentuam a relação com espaço, no plano sócio-histórico os
moradores de Canafé têm se apropriado da categoria caboclo dotando-a de um sentido
específico, enfatizando que são descendentes (de primeira ou segunda geração) dos caboclos
do alto que desceram o rio para trabalhar no extrativismo.
Os moradores de Canafé exploram a ambigüidade que o termo caboclo carrega (que o
coloca entre o branco e o índio) se aproximando tanto do indígena quanto do civilizado,
dependendo das questões colocadas e da situação. Em relação ao conhecimento do “mundo
civilizado” se consideram mais perto dos brancos. Porém, em relação ao trato com a
natureza, às histórias de vida e ao uso do espaço se vêem mais pertos dos índios.
As identificações de caboclo, brasileiro ou indígena não são vistas como contraditórias
e excludentes pelos moradores locais. Ao contrário, tais identificações podem ser acionadas
em distintos contextos, baseadas em cálculos específicos que cada situação requer. Cumpre
não esquecer que a identidade indígena, no médio rio Negro, é permeada de estigmas e
significados negativos, motivo pela qual é mantida em estado de latência, sendo acionada
principalmente no contexto das interações com setores governamentais (FUNAI, FUNASA)
ou não-governamentais (ASIBA, antropólogos) associados à política indigenista.
O que nos interessa notar é que no nível local e regional o termo “índio” ainda possui
um forte potencial de gerar constrangimentos. Todavia, nas interações com poderes nacionais
e transnacionais (âmbitos que, via o associativismo, se mostram mais propicias à articulação
das demandas locais) passa a ser positivamente valorado. Uma característica interessante
deste processo de afirmação étnica é que o termo “índio” quase sempre é adjetivado por
atributos que denotem proximidade ao branco, como civilidade e conhecimento. Frases do
tipo “somos índios, mas já sabemos um pouco das coisas” são comuns.
Tratamos, nos capítulos anteriores, de alguns fragmentos da memória coletiva sobre o
período histórico anterior à formação da comunidade. Vimos também que as trajetórias dos
antepassados dos moradores mais velhos de Canafé e a sua inserção no sistema extrativista do
médio rio Negro são pontos de referencia para a formação da identidade coletiva local.
Alguns destes antepassados e muitos parentes estão enterrados no cemitério que era do
patrão e agora pertence à comunidade. O jazigo de mármore de Zeca Macedo contrasta com
126
os demais jazigos de fregueses e empregados caboclos e indígenas. A morte de um parente,
que no contexto da convivialidade indígena do alto rio Negro pode ser um motivo para a
mudança de local, para os moradores de Canafé tem o potencial de representar um suporte
fortalecedor da identidade coletiva na medida associa a coletividade fisicamente ao espaço
local por meio dos ancestrais em comum.
As auto-atribuições étnicas construídas na comunidade Canafé são construções do
presente baseada em memórias difusas e, muitas vezes, herdadas sobre os antepassados, suas
trajetórias. a título de exemplo temos o caso de uma moradora cujo pai era Werequena e
cuja mãe era Baré. Esta se casou com um homem Tukano. Seus filhos se identificam com a
etnia do pai e ela se identifica com a etnia da mãe.
Desde então, os moradores de Canafé passaram a se identificar com etnias associadas
aos locais de origem dos seus antepassados. Aqueles que tinham antepassados no rio ana
passaram a se identificar como Baniwa ou Baré. Os que tinham antepassados no Uaupés
passaram a se identificar como Tukano.
Finado meu pai é todo de cima. São do Içana. São Içaneiros. Içaneiro era tudo
pintado. Antigamente aqueles velhos, aquilo não era bonito não. Falava língua geral. Agora não.
Olha como nós não somos pintado. Mudou!!! Aqui antigamente tinha uma senhora que morava
bem ali...aquela sim, era pintada. A avó do seu Bento. Eram de eles. Por isso que eu digo que
esses velhos que moravam na beirada aqui era tudo do alto (Edir Miranda morador da
comunidade Canafé).
Os estudos para a implantação do DSEI/FUNASA e sua conseqüente efetivação foram
eventos cruciais que demandaram uma posição dos moradores da comunidade no sentido de
se atribuírem categorias étnicas. Posteriormente, a ação da ASIBA e de pesquisadores
(principalmente antropólogos e eu me incluo) motivou a busca mnemônica pela
ancestralidade e os indicadores da indianidade que os interlocutores “de fora”, envolvidos
com as políticas de identidade, passaram a demandar.
Além do resgate da ancestralidade pela memória, a língua geral (nhengatu) atua um
importante fator para o estabelecimento de fronteiras étnicas na comunidade Canafé e em
outras comunidades do médio rio Negro (Barros; Borges; Meira, 1996). Ocorre em Canafé
algo semelhante às observações de Meira (1991) sobre a importância da língua geral como um
fator de constituição de identidade coletiva no médio rio Negro à montante de Santa Isabel.
Em Canafé a língua geral é falada apenas pelos Baré, enquanto os Tukano se valem de
outros indicadores para reforçar sua identidade étnica. A atuação militante no movimento
indígena e as atividades de rezadores são dois elementos de indianidade ressaltados e
associados às famílias com origem ou influência dos Tukano.
127
A atuação da ASIBA, entre 1999 e 2001, conferiu posição central ao conhecimento do
mundo espiritual indígena no contexto das atividades do movimento etnopolítico. É
interessante notar que interesses acadêmicos e etnopolíticos se interrelacionam neste processo
de desenvolvimento do movimento indígena em Barcelos. Gabriel Almeida, de Canafé, me
contou que certa feita foi procurado por um antropólogo:
Teve um senhor que mandou me chamar. Ele tinha um gravador e eu ia falando e ele
gravando. [simulando parte da conversa com o antropólogo] ‘Nunca paciente seu morreu?’.
Quando está para morrer, eu não vou mais rezar, não adianta atrapalhar a viagem [risos] (Gabriel
Almeida – morador da comunidade Canafé).
Gabriel comentou que o antropólogo o incentivou a ficar na cidade curando as
pessoas. Parece que a identificação da rede de rezadores e pajés na cidade e a revalorização
desta atividade no âmbito público eram interesses compartilhados entre os ativistas indígenas
e o acadêmico. Gabriel não se mudou de seu sítio, mas demonstrou ter tido uma boa
impressão da conversa com o antropólogo.
Sobre seu conhecimento como rezador, Gabriel contou que aprendeu “o trabalho” com
índios do Uaupés, principalmente com seu cunhado Sinésio. Atualmente a importância do
conhecimento xamânico em Canafé é associada à figura do veterano Gabriel que por sua vez
aprendeu com o finado Sinésio. Amílson Brazão, filho de Sinésio, considera seus trabalhos de
rezador como um importante elemento para a união da comunidade. Este jovem é reconhecido
por Gabriel como um importante rezador, cujo dom foi utilizado para curar inúmeras
pessoas.
É interessante notar como o conhecimento dos rezadores exerce um papel importante
na organização social da comunidade Canafé na medida em que se constitui como um
fortalecedor da relação entre os cunhados Gabriel e Sinésio. Um fato que me chamou a
atenção foi as conexões de parentesco entre os quatro rezadores que fazem parte da história da
comunidade. Todos estão de alguma forma, ligados à figura de Sinésio, sendo que “o velho no
trabalho foi ele”, afirmou seu filho.
128
Diagrama 2: Relação de parentesco entre os rezadores da comunidade Canafé.
Sinésio
Brazão
Amílson
Basílio
Brazão
Sinésio
Brazão
Manoel
de
Jesus
Gabriel
Almeida
A base dos conhecimentos de pajelança e reza da comunidade Canafé se estabeleceu
na relação entre os cunhados Sinésio e Gabriel. Esta relação foi também um dos pilares da
organização da comunidade tal como ele se encontra atualmente.
Se por um lado os rezadores mais velhos aprenderam com outras pessoas, por outro, os
outros dois rezadores da geração descendente ou nasceram com o dom do conhecimento ou
desenvolveram por si próprios. Amílson diferenciou o seu trabalho do de seu pai dizendo que
“o meu é publico, o meu é da natureza mesmo”.
Amílson deu a entender que seu pai era pajé e que ele apenas “segurava o trabalho do
pai”. Um rezador tariana que mora em Barcelos tentou me exemplificar a diferença entre pajé
e rezador através de analogias com a medicina ocidental. O primeiro, que “chupa a doença”,
seria como o cirurgião. O segundo, o qual afasta o mal, fecha e protege o corpo e o espírito
com orações, seria como o enfermeiro. Mostro apenas um exemplo das concepções locais
sobre este assunto, pois não é meu propósito discorrer sobre o tema mais complexo das
relações entre pajé e rezador.
Um interessante episódio que ocorreu durante minha estadia em Canafé, em outubro
de 2006, mostra como o rezador é um especialista no trato com alteridades. Algumas
alteridades precisam ser “amansadas” para que possa haver diálogo e interação.
Quando todos haviam deixado a comunidade para votar nas eleições presidenciais,
apenas eu e Amílson ficamos na comunidade. Eu queria conversar com aquela intrigante
figura que não se interessava por votação e era altamente crítico de seus próprios compadres
e, principalmente, dos “de fora”. Quando perguntei por quê não fora com os demais para
votar, Amílson disse o seguinte:
129
Quem vai se eleger depois eles nem olham para a pessoa. A gente tem que olhar é aqui.
Meu trabalho é aqui. Não é nem com o Eduardo nem com o Amazonino. em Santa Isabel
eles me perseguiram para votar no Eduardo. Eu disse olha o que eles estão fazendo comigo.
Fazendo eu de papel humano. Papel humano foi o que de mim fizeram. Mas não fazem o que eu
quero (Amílson Brazão – morador da comunidade Canafé).
Numa certa tarde, uma voadeira aportou na comunidade vazia. Um prático de Santa
Isabel (conhecido do pessoal de Canafé) trazia uma antropóloga de uma organização não-
governamental que atua no rio Negro. Ela queria visitar brevemente a comunidade, pois
estava se dirigindo para a comunidade Campinas do rio Preto, situada na outra margem do rio
Negro, no rio Preto.
Quando a antropóloga viu a mesa de trabalho de Amílson e soube que estava de frente
para um rezador seu interesse na comunidade cresceu e passou a querer saber mais sobre
aquela pequena figura. O rezador, depois de uma longa conversa, cordialmente lhe disse que
se ela quisesse conhecer mais sobre suas atividades deveria passar uma temporada na
comunidade. Afirmou ainda que, como ela estava de passagem não poderia lhe falar nada
sobre seus trabalhos de reza.
A possibilidade de um diálogo mais intenso entre as partes ficou condicionada a
permanência da antropóloga no espaço da comunidade. Posteriormente Amílson afirmou que
só fala de suas atividade na comunidade, embora possa fazer curas em qualquer lugar.
Amílson disse que a antropóloga, embora contrariada, garantiu que iria retornar.
Ao trazer a antropóloga para a comunidade, puxando-a pelo seu interesse em conhecer
os trabalhos de reza, o rezador assegurou que o diálogo com um “outro”, possivelmente (mas
não necessariamente) aliado, seria feito nos seus termos, ou seja, na comunidade e após algum
tempo de permanência da “estranha”. Este caso parece demonstrar a peculiaridade do
conhecimento da pajelança nesta região enquanto um signo de indianidade e afirmação da
identidade indígena.
A construção da identidade coletiva em Canafé mostra que seus moradores
privilegiam mais a identidade coletiva que a comunidade representa do que os rótulos étnicos
que os indivíduos que a constituem atribuem à sua pessoa nas políticas de identidade. Desta
forma, não são um grupo Baré, Tukano ou Baniwa, mas sim a comunidade indígena Canafé.
Para se tornar um rótulo étnico, o termo Canafé vem sendo re-significado e sua carga
de dominação resgatada pela memória coletiva para que possa ser definitivamente exorcizada
através da construção de uma história própria e de projeto de futuro indígena.
130
5.5 – Se situando na história e projetando um futuro
Ao serem estimulados a reconstruir suas lembranças sobre a ancestralidade, sua
infância e trajetórias individuais e familiares e trabalhos para patrões, os moradores das
comunidades envolvidas com o associativismo indígena acabam por dar forma a uma
memória coletiva que extrapola o âmbito das comunidades.
Além do parentesco, as semelhanças estruturais entre as lembranças resgatadas
constituem outra via para a formação de uma identidade coletiva indígena no médio rio
Negro. Através da construção da memória coletiva, os caboclos de Canafé buscam se colocar
na história a partir de um ponto vista peculiar o ponto de vista do presente, momento em
que não são mais dominados ou sujigados, como eles dizem. Foi somente a partir da
mudança das conjunturas históricas que eles tiveram possibilidades concretas de pensar e
orientar suas ações a partir de categorias de entendimento próprias.
Este passado construído no presente se caracteriza pela dominação do Coronel Zeca
Macedo e somente termina com o processo de sua morte. Desde então tiveram acesso, pelo
intermédio de determinados agentes, a bens materiais e simbólicos que possibilitaram a
reprodução das redes de parentes mesmo com a brusca mudança econômica que acontecia.
Os padres salesianos foram responsáveis pela criação da unidade social que passaria a
dar visibilidade para este segmento social e promoveria condições para a constituição de
grupos de pertencimento, cuja identidade social tinha como referência imediata a relação com
um determinado local. A comunidade, resultado de um processo de territorialização peculiar,
nasceu com um forte potencial para a etnificação, principalmente aquelas ocupadas por
descendentes de indígenas que ainda não havia perdido a memória de seus antepassados.
Este potencial para a constituição de um grupo étnico foi ativado pela ação do
movimento etnopolítico na região. Não só em Canafé a comunidade se colocou com o
emblema da etnicidade e centro a partir do qual se passou a definir um território. A afirmação
territorial é um elemento central neste processo de etnificação no médio rio Negro.
As premissas gerais da política indigenista reinterpretadas e difundidas pelos ativistas
indígenas representam um material central para a construção do território das comunidades
onde a maior parte de sua população vem se identificando como indígena no médio rio Negro.
As visitas dos ativistas da ASIBA, ACIMRN e FOIRN abriram um outro campo de
possibilidades cognitivas e práticas de direitos territoriais para grupos familiares que apenas
possuíam a pretensão de serem proprietários de seus sítios.
Se por um lado os moradores de Canaafirmam seu território específico a partir do
diálogo com as premissas difundidas pelo movimento indígena, por outro, a relação histórica
131
com os espaços que ocupam moldou e foi moldada por valores, significados e afeições
peculiares que estruturam o sentimento de pertencimento coletivo à “área de Canafé”. A
difusão dos direitos indígenas pelos ativistas promoveu a reflexão local sobre os quesitos que
fundamentam uma terra tradicionalmente ocupada segundo os preceitos do artigo 231 da CF.
Toda essa terra devoluta é da União. Ninguém pode meter a mão (Suliete Macedo
Moradora da comunidade Canafé).
De modo análogo, inspirados no artigo 232, passaram a demonstrar a intenção de
constituir uma associação
51
para lutar pela defesa de seu território e direitos.
O grande atrativo da adesão ao movimento etnopolítico é a possibilidade de ter
reconhecido formalmente o direito à terra. Esta não é vista como mercadoria, mas como um
meio que possibilite a continuidade com uma forma de vida peculiar de famílias
historicamente conectadas entre si e que possuem raízes na região. Com isto buscam uma
forma de viver libertados dos patrões (um ícone da opressão) e das potenciais e efetivas
ameaças à sua forma vida. Trata-se de “proteger antes que os de fora tomem conta”.
Esse negócio de demarcação de terras é muito importante porque como está agora o
pessoal não quer respeitar, invade, pesca, caça. Invade como uma coisa que não tem dono.
Depois que o terreno for demarcado ninguém pode fazer mais isso (Hermes Gomes - ex-morador
da comunidade Canafé).
Depois que atacarem nossa área aqui nós estamos fumados. Para onde que nós vamos.
Eles [ativistas indígenas] falam assim, que eles [os de fora] tomam mesmo (Edir Miranda -
morador de Canafé).
Vemos que o “território” é algo criado para preservar o acesso a recursos
naturais. A visão nativa sobre a territorialidade indica a necessidade de proteger bens
coletivos frente a novos agentes potencialmente ameaçadores das formas de viver
construídas por caboclos e indígenas ribeirinhos do médio rio Negro. O depoimento
abaixo é interessante porque explicita o tom de ponderação ante uma “proposta”
colocada pelos ativistas do movimento indígena. Eles refletem que demarcar é a única
alternativa para defenderem o que é deles e não sucumbirem.
Se nós não fizermos isto daqui uns dias nós estamos perdidos. [todos ao lado
concordando] por que os outros estão demarcando [em São Gabriel e Santa Isabel] e nós não
fizermos. É um direito? É uma coisa boa? É. É um direito do índio. Augusto mostrou no mapa.
Nós temos que abrir o olho e fazer também. Se não daqui uns dias alguém demarca essa área e
nós vamos ter que sair. Essa área é nossa (Suliete Macedo - Moradora da comunidade Canafé).
51
Os moradores de Canafé atualmente buscam apoio institucional para fundar a AIAC (Associação Indígena da
Área de Canafé).
132
Para finalizar este capítulo vejamos alguns dos elementos presentes nas
concepções que o “articulador indígena” da comunidade Canafé constrói sobre o futuro
da comunidade.
Ainda vai durar um bocado de tempo para ser demarcado a terra, 30 anos, quarenta
anos, mas a gente ainda está com a esperança de estar com nossas terras protegidas. (...). Para
nós tudo é facilitado: o rio é manso. A gente vai para cidade, para aonde a gente bem entender.
Agora tem uns, nossos próprios irmãos mesmo... quer dizer, os nativos vão na conversa dos
outros, na conversa dos brancos, ai começa a ficar ruim. o querem se identificar... No rio
Preto isso é mais forte. Até em Campinas, muitos sofrem pressão dos patrões. Eles dizem que no
dia em que for demarcado não vão querer de levar mercadoria para eles e não vai ter mais
trabalho para eles. Mas é diferente. Eles [moradores de campinas] têm piaçava, tem o barco
deles e podem muito bem pegar o produto pra vender na cidade. Aqui nós somos livres,
independentes. Patrão ninguém tem. A hora que a gente quiser vender a gente vende. Todas as
coisas que a gente quer a gente vai por pelas ilhas, a gente pesca ou senão a gente faz uma
farinha. E não precisa mais de patrões. (...). Futuro é trabalhar por conta própria. Nós que
estamos coordenando o movimento indígena sempre debatemos isso. ‘vamos acabar com
patrões, vamos acabar com esse negócio porque nós temos por onde sair.’ que tem gente que
ainda não estão acreditando. Agente também queria se juntar Tomar e Canafé para formar uma
associação de comunidades. Só que não tem gente para reivindicar. A pior coisa da gente é não
ter esse interesse para reivindicar, para solicitar para os problemas da comunidade. As
comunidades são caladas. Só tem uma comunidade para reivindicar (João Bosco Brazão –
morador da comunidade Canafé).
“Não cair na conversa dos brancos” é fundamental para garantir a força do
movimento. Trabalhar por conta própria em sua própria área e fortalecer as alianças
micro-regionais são elementos centrais desta nova utopia que os moradores de Canafé
constroem.
133
6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
De forma geral, os índios em situações críticas de dominação têm sido enquadrados
como vítimas de um processo histórico inevitável, e considerados, no âmbito das ciências
sociais, como um objeto menor, sendo estigmatizados pelas perdas culturais que sofreram e
pela marginalidade a que foram submetidos. Os índios nesta condição foram invisibilizados e
tratados como grupos sem cultura e sem história.
Os indígenas e caboclos do rio Negro se inserem neste panorama, na medida em que
foram sistematicamente marginalizados no processo histórico de constituição do Estado-
nação. Na academia, principalmente na historia e na antropologia feitas no Brasil, a percepção
crítica desses processos é bastante recente e passa a se consolidar paralelo ao processo de
afirmação e luta indígena iniciado nos anos de 1970.
A visão tradicional da história colonial, marcada pela ideologia nacionalista, ignora o
fato de que as transformações indígenas estão relacionadas a conjunturas históricas
específicas marcadas pelos conflitos estruturais do contato interétnico.
Jonathan Hill (1996) e Robin Wright (2005) mostraram que nos intervalos dos
despovoamentos causados pelo avanço do poder colonial, vários grupos étnicos do alto rio
Negro puderam se re-estabelecer e re-criar suas identidades coletivas. Embora a pressão da
sociedade colonial e nacional tenha sido grande no médio rio Negro, desde derrota dos
Manaós até os dias atuais a região foi ciclicamente ocupada por indígenas das famílias
lingüísticas Aruak, Tukano e Maku.
Os grupos familiares e indivíduos indígenas que contribuíram para a formação de uma
cultura de fronteira no médio rio Negro no século XX se integraram à sociedade regional de
diversas formas. Para muitos, esta integração não significou necessariamente assimilação. Em
situações em que podem se recuperar enquanto coletividade, estes grupos dominados mostram
que não são apenas vítimas e que podem agir no processo histórico. Isto choca o poder e o
conhecimento estabelecido.
Como mostra Pollack, o silêncio sobre o passado pode ser parte de uma escolha, mais
do que esquecimento (1989:08). Em Canafé, muitos caboclos mantiveram latente uma
memória subterrânea que, no cenário contemporâneo, vêm lhes servindo aos seus propósitos
de lutar pela manutenção de suas formas de vida. Com os esforços para reversão dos estigmas
em relação à identidade indígena, a memória que era proibida e clandestina passa a ocupar um
lugar de destaque na luta cultural local.
134
O exercício da memória individual e coletiva é, desta forma, um aspecto importante no
processo de etnificação da comunidade Canafé, na medida em que leva construção de uma
história peculiar, uma história indígena numa região de fronteira marcada pela ideologia
nacionalista. Como observa Cardoso de Oliveira, a construção da história é uma condição
básica do processo de emergência étnica (1976: 13).
A memória que se encontrava suprimida emerge como parte de uma estratégia de
manter a coesão interna e defender as fronteiras sociais da comunidade, fomentando um
sentimento de identidade coletiva crucial para se posicionar e agir frente às ameaças
contemporâneas.
A identidade étnica em Canafé é uma dimensão política e cultural da identidade
coletiva de seus moradores. Engajados no movimento indígena sediado em Barcelos e Santa
Isabel, os moradores de Canafé agem imbuídos de experiências, significados e valores
próprios, historicamente construídos e com sentidos culturais peculiares. Neste sentido, o
recente processo de reversão do estigma da identidade indígena é motivado por uma utopia,
por um projeto futuro que vem sendo publicizado pelo movimento etnopolítico do rio Negro.
Nesta dissertação busquei mostrar como tais processos de re-elaboração da identidade
coletiva são gestados e geridos de dentro da comunidade por meio da reflexão sobre a
ancestralidade; da valoração de lembranças subterrâneas (Polack, 1988) para a construção de
uma memória coletiva e de uma história própria; e de construções discursivas para a reversão
de estigmas e a politização de sua relação sui generis com espaço bio-físico.
Com a descrição e análise da conquista colonial no rio Negro, vimos as características
peculiares de uma história repleta de descontinuidades, principalmente no que se refere ao
povoamento da região. Isto nos permitiu caracterizar o médio rio Negro como uma fronteira
regional, com aspectos sócio-históricos que a diferencia da região do alto.
A apresentação da sociedade extrativista que se formou a partir do final do século XIX
buscou contextualizar o longo período de dominação política, econômica e territorial que os
índios migrantes foram enquadrados. Neste período, os caboclos, que estavam sujeitos a
inúmeras formas de violência psicológicas, morais e físicas, se esforçavam para ocultar sua
identidade indígena. Além disto, estes grupos de fregueses possuíam um acesso e uso limitado
dos recursos naturais, vivendo em condições de penúria, embora trabalhassem
excessivamente.
A dispersão social causada pelo sistema extrativista e pelo controle patronal coibiu o
estreitamento de laços extra-familiares entre esta massa de trabalhadores. Todavia, muitos
casamentos foram feitas na região, formando novas coletividades de caboclos fregueses. A
135
intensidade da dominação inerente ao sistema extrativista se reduziu gradativamente após a
segunda guerra mundial até dar claros sinais de decadência na década de 1980, abrindo
espaço para uma nova investida missionária.
A ação missionária contribuiu para criar uma nova unidade social – a comunidade. Isto
legitimou a ocupação dos caboclos sobre os antigos domínios territoriais dos coronéis de
barranco da região. Este evento marcou a primeira fase da etnificação destes grupos de
caboclos e indígenas, territorializando-os ao atribuir-lhes uma identidade coletiva, um espaço
físico determinado e uma conexão formal com o Estado (embora precária).
É importante notar que os domínios patronais no rio Negro não formaram
propriedades privadas formalmente reconhecidas. Com exceção dos atuais patrões de piaçava,
os descendentes dos antigos patrões-coronéis não herdaram suas terras e muitos se mesclaram
com os caboclos e indígenas, passando a morar em comunidades. O crescimento do
movimento indígena na década de 1990 teve forte impacto no médio rio Negro, mobilizando
grande parte da população das zonas rural e urbana em torno das políticas de identidade. A
inserção deste contingente no movimento etnopolítico envolve um processo complexo e não-
linear de negociação e comunicação entre ativistas e seu público.
Ao atentar para a agência histórica dos caboclos e indígenas da região, busquei
focalizar não somente as respostas locais à pressões externas, mas principalmente os sentidos
relevantes e os significados específicos desta história e do projeto de futuro indígena para um
determinado grupo de pessoas. São, sem dúvida, processos motivados e influenciados por
agentes externos, mas também reflexões e protagonismo acontecendo dentro da
comunidade, pois muitos indivíduos que têm ancestralidade indígena aderem ao movimento
etnopolítico, enquanto outros não.
Além disto, a margem para manipulação da identidade tem limites delineados pelo
próprio movimento indígena. A título de exemplo, a aceitação da filiação por parte da
associação indígena passa pela comprovação de uma série de pré-requisitos, dos quais a
descendência indígena paterna reconhecida é muito importante. Todavia, em alguns casos a
linha paterna da mãe pode comprovar a ancestralidade indígena. Antes de ser uma decisão
baseada em critérios fixos, trata-se também de uma negociação entre os dirigentes das
associações e os aspirantes à filiação formal a este movimento social.
Em Canafé a etnificação significa agir, em determinados momentos, enquanto uma
unidade, visando conseguir benefícios e direitos para a comunidade. Aderir ao movimento
indígena é uma forma de tornar pública sua intencionalidade em relação a um projeto de vida
136
específico que consiste basicamente em poder continuar no interior vivendo de agricultura,
coleta, caça e pesca. O que não significa excluir a cidade como campo de ação.
O desenvolvimento dos processos de politização da diferença étnica no rio Negro tem
ampliado as conquistas indígenas na região nos últimos vinte anos, promovendo o
crescimento da adesão às organizações indígenas situadas nas cidades de São Gabriel, Santa
Isabel, Barcelos e Manaus.
A adesão ao movimento indígena organizado em moldes associativos é um fenômeno
que problematiza a idéia de limites gidos das identidades étnicas, principalmente quando
tratamos de regiões de fronteira habitada por caboclos e indígenas. Neste sentido, Peres (op.
cit) mostra que o caso do médio rio Negro se parece com o caso dos Cocama (Gow, 2003),
onde as identidades de caboclo e indígena não são excludentes.
Em algumas situações, as pessoas me diziam que passaram a “aceitar” a identidade
indígena. Todavia, esta “aceitação” não é apenas um ato passivo, pois os moradores locais se
valem de cálculos sociais específicos para tomar tal decisão de refletir e construir a própria
indianidade. Mais do que se filiar a um conjunto de traços culturais distintivos, parece que
esta indianidade está mais próxima da idéia da ênfase na natividade, ao pertencimento local,
do fato de ser da região, filho daqui, em contraposição aos de fora que acabam por se instalar
“como doença” na região.
A proximidade histórica com índios, o conhecimento indígena (da língua geral, do
xamanismo, de produção agrícola e pesca, de artesanatos), bem como a ancestralidade são
importantes elementos apresentados como representativos da distintividade da identidade
étnica em Canafé. O pertencimento à matriz indígena, a um sistema simbólico peculiar, se
traduz na escolha/adesão a um modo de ser, de produzir, de reconhecer os parentes, de se
relacionar com o meio-ambiente, de ter direitos reconhecidos.
A força da etnicidade em Canafé vem tanto da política e da cultura emanada do
movimento etnopolítico rionegrino, quanto da organização social, política e cultural de grupos
de parentes, os quais explicitam sua intenção deliberada de aderir a uma luta pela manutenção
de um estilo de vida baseado no acesso comum ao espaço e seus recursos. Se “etnificar” é
uma alternativa para continuar vivendo de uma forma específica consolidada com o fim da
hegemonia dos patrões-coronéis, ou seja, uma vida sem patrões.
Enfim, busquei nesta dissertação enfatizar que o processo de construção de identidade
coletiva envolve a criatividade e a agência num processo de interpretação local de premissas
mais amplas e gerais, tudo isso num contexto regional caracterizado por uma multiplicidade
de agentes que não cessam de emergir. Apontar para estas construções sociais não significa
137
lançar suspeita sobre a legitimidade da identidade étnica destes caboclos, mas antes chamar a
atenção para a plasticidade e resiliência de sua organização social e sua capacidade de
construir sua história e re-orientar o presente através de um projeto de futuro que é novo e
tradicional ao mesmo tempo. Espero com isto ter apresentado algumas evidências empíricas e
lançando alguma luz sobre as complexas construções de identidade étnica em áreas de
fronteiras regionais como é o caso do médio rio Negro.
138
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ARQUIVOS CONSULTADOS
Acervo da empresa J.G. Araújo – Museu da Universidade do Amazonas
Acervo familiar da família Macedo
Arquivo Público de Manaus
149
ENTREVISTAS REALIZADAS
Moradores das comunidades Cauburis, Lago Grande, Floresta, Santa Rita, Baturité,
Cumarú, Ponta da Terra, Bulixú, Valério, Bacuquara, Cuquí, Elesbão, Romão, Samaúma,
Bacabal, Santa Luzia, Canafé, Tomar, Tapera, Acuacú, São Francisco, São João,
Perseverança, Campinas do rio Preto e Tapereira. (setembro e outubro de 2002).
Moradores da comunidade Canafé (setembro e outubro de 2006).
Ex-moradores da comunidade Canafé (setembro de 2006).
Edson Marconi Mendes – Ex-prefeito de Barcelos (setembro de 2006).
Clarindo Chagas – Presidente da Associação Indígena de Barcelos (setembro e outubro
de 2002 e setembro de 2006).
SITES DA INTERNET CONSULTADOS
www.ada.gov.br
www.funai.gov.br
www.mma.gov.br
www.pernambuco.com/diario/2003/03/01/brasil4_0.html
www.ufpa.pa.gov.br
www.socioambiental.org.br
www.wds.worldbank.org/
150
ANEXO 1 – Registro fotográfico
151
Foto 1 – Canafé vista do rio Negro.
Foto 2 – Rua principal da comunidade Canafé.
152
Foto 3 – Sítio Solidão.
Foto 4 – Interior da capela da comunidade Canafé.
153
Foto 5 – O antigo sino do patrão hoje se encontra na capela da comunidade Canafé.
Foto 6 – Plantação de roça em Ajuri.
154
Foto 7 – O quelônio é um tipo de “pescado” muito apreciado na região.
Foto 8 – Tratando um porco do mato.
155
Foto 9 – Alunos, professora e jovens cantam hino nacional durante o hasteamento das
bandeiras do município, do estado e do país.
Foto 10 – Crianças de Canafé observando a chegada de um pequeno regatão.
156
Foto 11 – Assédio ambientalista e capitalista. Esta placa foi colocada na comunidade Canafé
por funcionários do hotel rio Negro Lodge.
Foto 12 – Ruínas seringalistas na área da comunidade Tapereira.
157
ANEXO 2 - Levantamento populacional
da comunidade Canafé (nome, idade, etnia e
local de nascimento)
158
Nome Idade Etnia Local de
Nascimento
Família 1
Euclides Miranda 51 Baré Barreirinha –
Canafé
Noemia Mateus Gomes 48 Baniwa Canafé
Cleidemar Gomes Miranda 26 Baré Canafé
MariaAuxiliadora 10 Baré Canafé
Gilcicleide Gomes Miranda 7 Baré Canafé
José Cleidemar Gomes Miranda 16 Baré Canafé
Claudinéia Gomes Miranda 13 Baré Canafé
Família 2
Francisco Trindade Soares Cavalcante 22 ?
Cleide Terezinha Gomes Miranda 18 Baré Canafé
Francicleide Gomes Miranda 01 Canafé
Família 3
Edir Miranda 61 Baré Canafé
Arlete Basílio Miranda 57 Baré Barreirinha –
Canafé
Genival Basílio Miranda 29 Baré Canafé
Erilaves Basílio Miranda 23 Baré Canafé
Orivaldo Basílio Miranda 20 Baré Canafé
Maria Conceição Basílio Miranda 17 Baré Canafé
Família 4
Edimilson Basílio Miranda 31 Baré Canafé
Cleidiane Gomes Miranda 21 Baré Canafé
Cledenílson Mateus Mirana 05 Baré Canafé
Ediane Gomes Miranda 03 Baré Canafé
Família 5
Erivaldo Basílio Miranda 33 Baré Barreirinha –
Canafé
Suliete Macedo 36 Baré Canafé
Família 6
Gabriel Almeida 69 Baré Xiauri – Canafé
Almerinda Brazão 72 Tukano Camanaus – São
Gabriel da
Cachoeira
Aristote Almeida Brazão 44 Baré Solidão – Canafé
João Almeida Brazão 40 Baré Solidão – Canafé
Elzimara Almeida Brazão 29 Baré Solidão – Canafé
Família 7
Erimar Almeida Brazão 33 Baré Solidão – Canafé
Maria Alcinéia Basília Brazão 25 Tukano Solidão – Canafé
Milena Basílio Brazão 01 Ba Solidão – Canafé
Família 8
Manuel Wiliame Almeida Brazão 48 Baré
Vivina Basílio 53 Baré Barreirinha –
Canafé
Amílson Basílio Brazão 36 Tukano Ilha do Japó –
159
Canafé
João Bosco Basílio Brazão 32 Tukano Solidão – Canafé
Sinésio Basílio Brazão 21 Tukano Solidão – Canafé
Maria Elinéia Basílio Brazão 17 Tukano Solidão – Canafé
Luis Carlos Basílio Brazão 26 Tukano Solidão – Canafé
José Décio Basílio Brazão 20 Tukano Solidão – Canafé
Ênio Jesus Basílio Brazão 16 Tukano Solidão – Canafé
Família 9
Manoel de Jesus 39 Baré Campinas do rio
Preto
Maria Sidnéia Basílio Brazão 29 Tukano Solidão – Canafé
Márcio 08 Baré Campinas do rio
Preto
Auxiliadora 06 Baré Campinas do rio
Preto
Maurício 04 Baré Campinas do rio
Preto
Sebastiana 7 meses Baré Canafé
Família 10
Roberto Mateus Gomes 30 Baniwa Canafé
Orlandina da Silva Pinheiro 32
Canafé
Caroline da Silva Gomes 11 Baniwa Barcelos
Carolaine da Silva Gomes 09 Baniwa Barcelos
Glaice Caroline da Silva Gomes 06 Baniwa Barcelos
Leonídia da Silva Gomes 04 Baniwa Barcelos
Joaquim Gonçalves 67 Baré Canafé
Baseado no cadastro do posto de saúde local e em depoimentos de moradores da
comunidade Canafé.
160
ANEXO 3 - Resumo de depoimentos de
caráter autobiográfico
161
Joaquim Gonçalves
Seu pai (Joaquim Gonçalves) nasceu em 1915 e trabalhou a maior parte do tempo
como freguês de Zeca Macedo. Não sabe quantos verões trabalhou em seringa. No inverno ia
para Canafé tirar castanha. Tinha mulher e roça. Fazia farinha para levar para comer na
barraca da seringa.
Gabriel Almeida
Nasceu no Xiuari abaixo de Canafé. Seu pai nasceu na região e já trabalhava com Zeca
Macedo. Não chegou a conhecer o pai que morreu envenenado, por engano, com olho de
piranha
52
. O veneno era para outra pessoa. Gabriel foi criado por um pai adotivo e começou a
trabalhar com Zeca Macedo quando tinha aproximadamente 15 anos de idade. Trabalhava
embarcando castanha no porão do barco. “Aí depois eu tava com a mulher e não achei bom
não. Nunca pagava a conta. Ele roubava muita gente no trabalho.” Morou abaixo de Canafé
com a mãe até quando esta faleceu em 1954 e se mudou para o sítio que ocupa até hoje. “Foi
eu que abri, estoquei pau, fiz essa barraca aqui e estou até agora. Aqui foi aberto em 1956”.
Almerinda Brazão
Esposa de Gabriel. Nasceu “lá pro lado de Camanaus”, em São Gabriel da Cachoeira.
Sua mãe era viúva e não conheceu o pai. Este morreu quando ainda estava engatinhando.
Estudou em São Gabriel quando tinha sete anos de idade e não sabia falar português. “Minha
mãe estava sozinha e eu desisti de estudar. Quando sai do colégio estava enganando
[falando português]. Daí nós viemos para e eu encontrei o toco de pau [Gabriel] e nós
fiquemos por aqui.” Antes disto estavam “por pela beira [risos] que ninguém sabe”. Depois
que tiveram filhos se estabeleceram no sítio Solidão.
Hermes Gomes
Nasceu no rio Preto, onde o pai trabalhava. Ficou órfão de pai aos nove anos de idade
e foi para Canafé, onde ficou como filho adotivo de Zeca Macedo. Em 1957 foi “despachado”
pelo patrão para Canafé, onde morava um finado filho dele. Casou-se em 1957 e morei uma
temporada com o patrão. Depois saiu para trabalhar por conta própria, mas continuou
trabalhando como freguês na firma. Ia da seringa para a castanha. Quando tinha um
tempinho trabalhava em roça. Para sobreviver. Assim fui levando a vida”. Em 2002 se mudou
52
Um tipo de veneno do mato.
162
para Barcelos para que seus filhos pudessem estudar. Sua minha mulher que adoecia tinha que
ir, de vez em quando, para o hospital. Quando conseguiu uma casa se estabeleceu
definitivamente.
Bento Gomes
Irmão de Hermes. Depois da morte do pai passou a morar com a avó, uma índia do rio
Içana. Quando ela morreu passou a morar com Zeca Macedo, junto com seu irmão.
“Amadureci em Canafé. Com 17 anos fui trabalhar por conta própria. Ganhei o piaçabal.
Morando em Canafé. Passei a viver até que casei. O padre que fez nosso casamento foi o
falecido Badalotti. Em 2002 mudou-se para Barcelos para acompanhar os estudos do filho
caçula. Sua esposa nasceu no Uneiuxi e depois foi para Canafé. O pai [nasceu no Uneiuxi, são
filhos de lá, caboclo como chama] era freguês do Zeca Macedo e pouco antes de morrer
passou a trabalhar com o comerciante Augusto Lacerda.
Edir Miranda
Nasceu no sítio Barreirinha, abaixo de Canafé. “Nós moramos mesmo. De
viemos para cá. Nós estamos com 22 anos aqui [em Canafé]. Pra que eu comecei, meus
filhos pra tudo. Comecei a trabalhar [com patrão] no Padaiuiri ainda. O primeiro patrão
com que trabalhou chamava-se José Basílio e morava em Barcelos. “Não era patrão grande:
era só pra quebrar o galho dos fregueses. Patrão grande que tinha aqui era finado Seu Zeca
Macedo.” Trabalhou piaçava e seringa com ele dentro de um igarapé no rio Padauiri. Depois
trabalhou uns três anos com Arismar Feitosa, ainda no rio Padauiri. Este patrão morava no
sítio chamado Salazar. “Aí depois viemos aqui para a comunidade porque já tinha uma escola.
Viemos botar os meninos para estudar. Tava tudo precisando de estudo.”
Euclides Miranda
Irmão de Edir. Nasceu em Canafé. Estudou dois anos no internato de Santa Isabel
quando tinha cerca de 10 anos. Trabalhou com Zeca Macedo durante aproximadamente
quatro anos e depois, quando tinha seus 16 anos, foi trabalhar seringa e piaçava no rio
Padauiri para um pequeno patrão chamado Basílio, no barracão Vila Conceição. Ficava na
colocação de seringa chamada Maranhão. Depois de trabalhar para outro patrão (Arismar
Feitosa) voltou para trabalhar novamente com Zeca Macedo e mudou-se com o pai para
Barreirinha. Estudou também na casa de Zeca Macedo. Quem dava aula era uma nora do
patrão. Tinha muitos alunos. Vinha da barreirinha para estudar pela praia. Também trabalhou
163
em embarcações. Recolhia mercadoria (seringa, borracha, castanha, piaçava) no beiradão e no
Unini e descarregava em Manaus. Ficava uns quatro dias em Manaus. Era uma baleeira
grande com três motores empurrando. Euclides era vigia e recebia um salário. O negócio
terminou e Euclides voltou para Canafé. Casou-se numa capela de barro em Canafé. Se
mudou do sítio Barreirinha para morar na comunidade Canafé 22 anos. Se criou em
Canafé, foi ao Padauiri e voltou para Canafé.
Arlete Basílio
Nasceu num sítio pouco acima de Canafé. Trabalhava nas ilhas do Cunuarú, Japó. Não
saiu para outro lugar e sempre ficou por mesmo. Depois quando baixou com Edir Miranda
foi para Barreirinha.
Perdeu a mãe antes do pai. O pai ficou morando sozinho, não queria morar com
ninguém. Ia passear na casa dos filhos. Morreu no sítio dele. Quando sua mãe morreu
deixou um filha de 3 meses. Criou duas meninas: sua filha e sua irmã. As duas mamavam
ainda. Falou com o pai e o pai disse que era ela mesma que tinha que ficar com e menina
porque não tinha para quem dar. Ficou. “Eu sempre fui forte. Fiquei pele e osso criando as
duas crianças. Hoje ela foi para Manaus e nem lembra de mim”.
Depois disso é que foram para o Padauiri trabalhar seringa com outro patrão [finado
Basílio] Arlete tem três irmãs, sendo que duas estão no médio rio Negro e outra está em
Manaus. O dia que tiver dinheiro quer que o irmão a leve até a capital.
“Depois que Zeca Macedo morreu continuamos morando na Barreirnha”. Ficaram
trabalhando com esse patrão uns 5 anos. Moraram em Barreirinha e depois quando fundaram
a comunidade vieram “para levar os meninos para estudar”.
Vivina Basílio
Irmã de Arlete. Filha de Brasilina da Silva e Pedro Basílio. Avô paterno era de São
Gabriel, do rio Içana. O avô materno era um português chamado Gabriel Mardelo. Nasceu e
se criou num sítio situado entre Canafé e o sítio Solidão. Aos 3 anos foi batizada na casa
grande de Zeca Macedo pelo padre João Badaloti.
O primeiro companheiro de sua mãe foi um índio. Ela teve uma filha daquele índio. A
menina foi criada numa aldeia no rio Cauburis. Uns quatro anos depois seu pai foi buscar a
menina. Falou com Tuchaua. Eles argumentaram que a mãe da menina havia arrumado um
marido. O Tuchaua autorizou e mandou chamar a menina. Quando foram carregá-la ela
mordia porque não queria ir embora..
164
Criou-se junto da mãe e hoje está em Manaus. Não se criou na casa do pai, se criou
mais por fora, viajando. Com 9 anos saiu da casa dos pais para estudar e trabalhar. Passou 4
anos em Santa Isabel trabalhando, tomando conta de criança na casa do comerciante Paulo
Sela.
“Se criou na casa do Zeca Macedo.” Trabalhou dos 9 [+1961] aos 18 anos na casa do
Zeca depois passou a trabalhar em roça com sua mãe. Durante os anos que trabalhou (9 anos)
ganhou uma rede e duas mudas de roupa como pagamento. Trabalhava em roça e ajudava o
pai na extração de seringa e piaçava “la pro igarapé.” Casou-se aos 13 e mudou-se para a
comunidade Canafé aos 30. Teve 12 filhos. 6 homens e 6 mulheres. Todos sobreviveram.
“Depois que meu marido morreu pronto. Passei a morar na comunidade.”
Amílson Basílio Brazão
Filho de Vivina. Nasceu na ilha do Japó. Da ilha veio morar na beira. “Daí eu vim
crescendo, crescendo e comecei a estudar. No meio do estudo eu tive esses dom de estudo
para mim aprender, pra mim curar o que estão precisando. Viemos morar na beira. Ficamos lá
na beira. no Solidão junto com seu Gabriel. Dse aportemos para para a comunidade.
O pai era compadre de Gabriel. Eram só as duas famílias lá”.
É rezador. “Então quando eu nasci eu nasci com um negócio de uma coroa na minha
cabeça. Bem aqui. Mamãe me falou. E antes disso eu chorei três vezes na barriga dela. Chorei
mesmo. ela não se preocupou com aquilo. O nosso pai ele sabia bem. Ele era um médium
também de espírito. Ele disse: ‘é isso mais tarde vai lhe servir. Vai lhe dar muita dor de
cabeça mais servir em você’.”
trabalhou no extrativismo de castanha, mas atualmente trabalha mais com pescaria.
Trabalhou mais de doze anos em roça ajudando sua mãe.
Bosco Basílio Brazão
Filho de Vivina. Fez até a 6ª série. Não estudou mais porque não se interessou.
“Oportunidade tive demais. Saí daqui com doze anos para a cidade. Eu parei de estudar
porque meu pai começou a ficar doente era distante para e para cá. Até chegou o dia de
ele ficar bem ruim mesmo. ele acabou falecendo e eu deixei o estudo de lado. Eu sou
articulador do movimento indígena. Eu to com dez anos no movimento indígena. Essa
homologação que ta tendo. Em junho [2007] que estão prevendo estas equipes né. Vai ser
dividido em 5 equipes pegando cada calha. Eu tava até pensando se seu trabalho era este.”
165
João Bosco entrou no movimento indígena em 1998. Participou da assembléia da
ACIMRN em 1999 em Santa Isabel. A partir daí participou em outros eventos e se envolveu
na organização para a constituição da associação das comunidades Campinas e Canafé. “Eu
tive em campinas mobilizando. Mas já está bem conscientizado lá. fizeram umas três mini-
assembléias no rio Preto. Eu vou para incentivar”. Atualmente é vice-presidente da
comunidade e conselheiro local de saúde.
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