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Os índios que chegavam no médio rio Negro viviam itinerantes à busca de um bom
patrão e de produtos industrializados através do trabalho no extrativismo. A atividade de roça,
que caracteriza um estilo de vida menos móvel, era pouco praticada e desestimulada pelos
comerciantes. Todo esforço produtivo era canalizado para a extração de borracha, piaçava e
castanha.
As condições de vida e de trabalho em que se engajavam os índios descidos eram
geralmente precárias, vivendo os mesmos sujeitos as infindáveis dívidas e maus-tratos
impostos pelos comerciantes. A dívida era o elemento central que conectava os fregueses aos
patrões numa relação ambígua marcada pela assimetria de poderes.
A analise do ex-governador da Província do Amazonas Tenreiro Aranha (1907) sobre
o processo de recrutamento forçado de indígenas explicita a violência envolvida no
extrativismo e do processo de migração que povoaria o médio rio Negro com indígenas dos
rios Uaupés, Içana e Xié. O abuso das autoridades no recrutamento de índios para serviços
públicos e as “pegas” de curumins por recrutador de menores aprendizes de marinheiro eram
práticas comuns neste período.
Tenreiro Aranha relata indignado a ação dos regatões que compravam meninos
indígenas para vendê-los a seringueiros e pescadores de pirarucu, peixe boi e tartaruga. Ao se
referir à migração indígena, o grande mal é atribuído...
[...] Ao seringueiro, do baixo rio Negro, que interna-se nas vastas bacias do Uaupés e
Içana, remonta suas cachoeiras, devassa suas florestas, assalta casa a casa dos seus índios, e
viola o lar de cada um da família destes, para seduzir com fementidas promessas de lucros
vantajosos o dono da casa, o irmão, o sobrinho, cunhado e filho, fiando mercadoria a elles, ás
suas mulheres, ás filhas, irmãs, cunhadas e sobrinhas. É esta a peor causa, porque excita um a
um, por meio da cachaça, já embriagados, a promoverem dabacuris saturnaes, no meio das quaes
prostitui-lhes enlevadas por essas bárbaras e debochadas danças, esposa, filha, cunhada e
sobrinha. Depois da festa, no dia seguinte, isola do marido a esposa, do pae os ternos filhinhos,
do filho o pae e a mãe extremecidos, do irmão a irmã, da qual é o amparo, e os conduz para o
seringaes dos distritos de Santa Isabel, São Joaquim, Tomar, Moreira, Barcelos e Carvoeiro
(Tenreiro Aranha, 1907: 63-65 apud FOIRN/ISA, 1998: 87).
Apesar do controle dos comerciantes sobre os índios fregueses, as constantes fugas
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e
a mobilidade espacial foram algumas das estratégias acionadas pelos indígenas para não
sucumbirem ao sistema de trabalho extrativista no médio rio Negro.
Em outra carta da família Macedo, datada do verão 1919, é relatada a morte de
Monsenhor Lourenço Giordano, missionário salesiano, que chegou a São Gabriel da
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Em abril de 1896 o comerciante Alfredo Venâncio de Souza Cruz, residente no Sitio do Barata, escreveu uma
carta para a firma J.G.Araújo informando que havia tido prejuízo no trabalho e pedindo ajuda para que os índios
que fugiram no batelão de Pedro Level fossem detidos na Vila de Moura.