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Tese apresentada à Área de Concentração: Teoria e
Pesquisa em Comunicação, Linha de Pesquisa: Linguagem
e Produção de Sentido em Comunicação, da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção dotulo de Doutor em
Ciências da Comunicação, sob a orientação da Profa. Dra.
Maria Lourdes Motter.
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__________________________________________________________
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__________________________________________________________
O trabalho, ora apresentado, busca desvendar o modo como se
articula, no discurso microssérie, especificamente em O Auto da
Compadecida, a pluralidade de linguagens que julgamos ser
característica do formato. Nosso aporte teórico recaiu sobre a teoria da
linguagem a partir das idéias de Mikhail Bakhtin que entende o
discurso como espaço de relações intersubjetivas, tendo a enunciação
como ato verbal e extraverbal, produto que, enquanto processo, reteria
em si as marcas de seu fazimento, objeto de nosso estudo. Ainda em
Bakhtin, encontramos elementos que nos orientam no campo da
cultura popular com a qual o autor Guel Arraes estabelece um diálogo,
que permite a intertextualização e estilização presentes em sua obra.
O trabalho desenvolveu-se no sentido de surpreender o
funcionamento, as especificidades do discurso através da análise, de
modo a percebermos a complexidade e a criatividade da obra, que
consideramos como sendo estilizada, tendo o dialogismo como princípio
constitutivo, na qual a heterogeneidade é assumida e mostrada, no
processo de construção de novos significados.
Palavras-chave: dramaturgia televisiva, microssérie, linguagem,
dialogismo discursivo, produção de sentido.
This paper seeks to shed light on the way how, in the discourse of
TV series O Auto da Compadecida, a plurality of languages that we
consider typical of this format interacts. Our theoretical focus is based
on the language theory derived from the ideas of Mikhail Bakhtin, who
sees the discourse as a sphere of intersubjective relations, in which the
enunciation is both a verbal and extraverbal act a product which, as a
process, should retain in itself the signs of its making-off, object of our
study.
This paper is designed to take a snapshot of the workings, the
specificities of the discourse through its analysis. This will enable us to
understand the complexity and creativity of the work that we consider
stylized and built on dialogism, in which heterogeneity is acknowledged
and shown, offering new meanings.
Key words: TV dramaturgy, TV series, discourse, dialogism, new
meanings.
A
PRESENTAÇÃO
11
INTRODUÇÃO 16
P
ARTE
1
A
PROXIMAÇÃO AO
O
BJETO
23
1 O referencial teórico 24
2 Objetivos e hipóteses norteadoras 28
3 Procedimentos metodológicos 30
4 Descrevendo o objeto 31
4.1 O autor e sua obre televisiva 31
4.1.1 Telenovelas 33
4.1.2 Minisséries e microsséries 35
4.1.3 Seriados 36
4.1.4 Diversos (humor e variedades) 36
4.1.5 Humor 40
4.1.6 Variedades 42
4.2 Temática 43
4.3 Seleção da amostra 47
4.3.1 Recorte da amostra 48
4.3.2 O Auto da Compadecida 48
P
ARTE
2
F
ICÇÃO
T
ELEVISIVA
55
5 Conceituação 56
5.1 A questão do gênero televisivo 59
5.2 A minissérie 60
5.3 A microssérie 76
P
ARTE
3
O
T
EXTO
-F
ONTE
,
A
UTORIA
,
G
ÊNERO
,
T
EMÁTICA
82
6. O texto-fonte 83
6.1 O Movimento Armorial 88
6.2 Um ancestral português 91
6.3 As personagens do Auto da Compadecida 102
P
ARTE
4
A
MICROSSÉRIE
O
A
UTO DA
C
OMPADECIDA
144
7. A recriação 145
7.1 Inclusões-exclusões 146
7.2 Interferências nos diálogos 154
7.3 Desordem na fronteira 156
7.4 Sons e ruídos – leais acompanhantes 165
7.5 Onde o Brasil é medieval 166
7.6 O gótico nos estertores do século XX 169
7.7 A vinheta de abertura 173
7.8 Personagens de O Auto da Compadecida 174
P
ARTE
5
T
EORIA E
O
BJETO EM
D
IÁLOGO
180
8. Linguagem 181
9. O discurso 185
9.1 Enunciação 186
9.2 O dialogismo 192
9.3 Interdiscursividade 196
9.4 Estilização 198
10. Os gêneros discursivos 204
10.1 A dimensão espácio-temporal do discurso 208
10.2 Gênero primário e gênero secundário 214
10.3 Expressividade Discursiva 219
11. O campo do sério-cômico 223
11.1 Carnavalização 228
11.2 O riso 233
11.3 Realismo grotesco 252
12. A intenção discursiva 265
12.1 Os outros para quem o discurso se faz 268
P
ARTE
6
A
OBRA
O
A
UTO DA
C
OMPADECIDA NO CINEMA
270
13 Adaptação para o cinema 271
13.1 A supressão como procedimento de estilização 273
13.2 Uma palavra sobre o roteiro 279
13.3 Vocação cinematográfica 281
C
ONSIDERAÇÕES
F
INAIS
R
EFAZENDO O
P
ERCURSO
283
B
IBLIOGRAFIA
288
Figura 1 – O encontro de Chicó e Rosinha 147
Figura 2 – Major Antônio Moraes e Severino de Aracaju na porta da igreja 150
Figura 3 – O final da história: Rosinha, Chicó e João Grilo 152
Figura 4 – Chicó e João Grilo fazem a divulgação do filme A Paixão de Cristo 159
Figura 5 – O cortejo fúnebre de Bolinha 159
Figura 6 – Cinema na igreja 161
Figura 7 – Cristo em seu trono rodeado de anjos 162
Figura 8 – Ascensão dos anjos 162
Figura 9 – Chicó e seu cavalo bento 163
Figura 10 – O striptease de Dora 167
Figura 11 – O sagrado representado no ícone da parede da igreja 169
Figura 12 – A negociação entre o bispo e o padre na igreja 169
Figura 13 – A chegada triunfal da Virgem 170
Figura 14 – Diálogo entre Mãe e Filho 170
Figura 15 – A chegada do Encourado 171
Figura 16 – Fala de Chicó: ... mas eu gostava mesmo era de enganar aquela gente 172
Figura 17 – Fala de João Grilo: Valha-me Nossa Senhora,/ Mãe de Deus de Nazaré! 182
Figura 18 – Chicó e suas botinas 187
Figura 19 – Fala de João Grilo: Três dias passei... 188
Figura 20 – A chegada do Major Antônio Moraes a Taperoá 199
Figura 21 – João Grilo à porta do inferno 212
Figura 22 – O pauperismo do quintal da casa de Dora e Eurico 220
Figura 23 – As cores da casa de Dora e Eurico 220
Figura 24 – A linguagem publicitária em Taperoá 225
Figura 25– João Grilo fazendo sinal de corno para o Diabo 243
Figura 26– Fala de João Grilo: Esse sujeito é um mistura de tudo o que
nunca gostei, promotor, sacristão, cachorro e soldado de polícia 243
Figura 27– O velório de João Grilo 245
Figura 28– Fala de João Grilo: Por isso é que estou lascado, comigo era na mentira 246
Figura 29 A discussão entre o Bispo e Major sobre o fato de o Padre ter ou não
chamado a mulher do Major de cachorra 251
Figura 30 Chicó em uma noite com Dora 252
Figura 31 – Um bife passado na manteiga 252
Figura 32 – Fala do João Grilo: E aqui está a prova de que você agiu muito bem 255
Figura 33 – O olhar da imagem da Virgem na parede 263
Figura 34 – A morte de Dora e Eurico acompanhada pelo olhar da Virgem 263
Figura 35 – Comedor de macambira 264
Figura 36 – A volta de João Grilo 271
Figura 37 – O despertar de João Grilo para o Julgamento 272
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
luzes gêmeas sobre meu outono.



meu filho, que muito cedo cumpriu sua sentença e encontrou-se com o
único mal irremediável; também Heloísa Helena e Luiz Felipe.
Professora. Maria Lourdes,
para quem, rosianamente, Vivendo se aprende; mas o que se aprende,
mais, é só fazer outras maiores perguntas, por isso orientadora.
Professores Narciso Lobo e Marco Antônio Guerra,
participantes da qualificação, rosianamente, entenderam que Não se
toca boi à força, nem para o pasto melhor, por isso apontaram,
mostraram e abriram, com amor e rigor, as melhores pastagens.
Pedro Paulo (12), João Pedro (11), Marília (11), Gianlucca (10),
os desenhadores, espectadores assíduos de O Auto da Compadecida.
Jane,
amiga das horas difíceis, companheira de andanças, parceira de
pesquisas,...informata humana e competente.
Eliana, Cris, Maria Cristina, amigas-leitoras; Maria Ataíde que me
cooptou para o mundo televisivo; amigos todos, torcedores fiéis.
Miklos, que possibilitou a captura das imagens.
Amigos do CCA e do Pós, sempre disponíveis.
12
Há um risco sobre o pano, uma caixa com uma dezena de meadas
de linhas coloridas, uma cartela de agulhas de vários calibres, uma
tesourinha. Olhando tudo aquilo, uma menina. A irmã caçula da mãe
da menina, a quem ela nunca chamou de tia, deu-lhe a primeira aula
de bordado. E a mágica se concretizou. O pano antes descolorido,
marcado pelas linhas escuras do risco fez-se outro: uma menina de
tranças, usando um longo vestido e chapéu de palha, caminha por um
campo salpicado de florinhas amarelas, azuis, roxas.
uma longa mesa de jantar. Sobre ela um caderno simples,
brochura, capa mole. Um estojo de lata, lápis, borracha, apontador. A
menina estende à frente seu bordado. Observa atentamente. Bota o
lápis na boca, rói um pouco a extremidade, afina a ponta e abre o
caderno. Olhos fixos no bordado. ‘Ana é seu nome, você é uma princesa
e mora num palácio lá adiante, depois daquela curva na estrada...’
Um dia, a menina achou um livro grande com um título esquisito.
Folheou, leu uns poucos parágrafos e encontrou um nome que a
encantou: Aliocha. Alguém da família sentenciou: não é livro para você.
O livro sumiu da vida da menina, mas Aliocha virou uma cadela grande
e valente que a acompanhava pela floresta imaginária, nas
proximidades de um lago gelado. Pouco importava Aliocha ser nome
masculino. Sua Aliocha era feita de palavras mesmo, era dela e
morava no caderno de brochura.
A vida conduziu a menina por ásperos caminhos, mas não
conseguiu fazê-la desistir das histórias malucas que inventava a partir
das coisas acontecidas. Adulta, inventou para os filhos e inventa para
os netos. sempre um risco, sempre um livro, sempre um fato
na vida que a carrega para o mundo da ficção. O último foi O Auto da
Compadecida.
13
O risco feito por Ariano, Guel decalcou no papel. Provocou o
desbordamento. Transbordamento. Do papel levou ao celulóide. Deu
outra vida, a João Grilo, a Chicó, ao Padre João e a tantos outros, pela
imagem, pelas cores e movimento. Inventou Rosinha, tão linda. E a
Compadecida, como a fez maravilhosa! Cristo com uma cor tão bonita e
saudável, que até sua mãe se surpreendeu. Deu nome ao padeiro e sua
mulher. Duplicou e carregou para a televisão e para o cinema.
De quem será que Ariano emprestou o risco? Onde ele foi buscar?
Como transportou?
E Guel? Como fez para decalcar? De que modo trabalhou para
conseguir transbordar e não desmanchar, alagar tudo. Como
(re)coloriu? Porque o risco tinha cores, tinha seu jeito. Que linhas
escolheu, que tramas teceu ao (re)bordar? Perguntas são sempre
infindas.
A mulher em que a menina se transformou buscou refazer esse
bordado, desvelar o risco e revelar um texto.
Tendo como corpus constitutivo a microssérie O Auto da
Compadecida, o trabalho que ora apresentamos é produto de nosso
interesse pelo processo, pelo modo como o autor operacionalizou
elementos linguageiros de modo a chegar a uma unidade, a um todo
significativo. Buscamos perceber a estrutura que organiza as
linguagens que são constituintes de um discurso heterogêneo e múltiplo
como se apresenta uma microssérie. Interessa-nos entender a
organização das diferentes relações comunicativas manifestadas pelo
enunciado que configura um processo interativo, ou seja, o verbal e o
não-verbal que integram a situação e fazem parte de um contexto
amplificado, abarcando o histórico, o social.
Estruturando-se pelo estilo seleção operada nos recursos de
linguagem e sua combinação, ou construção, modo como organiza os
diferentes e variados recursos de que dispõe –, o discurso obriga-nos a
perseguir o processo, que pensamos ser dialogicizante,
intertextualizado, estilizado. Ancorado em um discurso precedente
14
risco sobre o qual trabalhou –, que está fincado no popular, a
microssérie em questão configura-se como ‘outro’ na praça onde se
ramifica, faz-se, ele próprio, um discurso.
O caminhar fez-se pelo risco traçado por Bakhtin, cujo caminho
se delineou como democrático a ponto de acolher um discurso de
massa, inserido num complexo e múltiplo universo cultural, que não
escapa à caracterização de global e capitalista. Mais ainda, aceita,
porque dialógico na sua essência, o diálogo com outras teorias num jogo
de aproximações e também de distanciamentos, de similaridades e de
oposição, ou seja, a inter-relação.
A exposição das idéias foi estruturada em cinco segmentos que se
apresentam inter-relacionados, mas não fechados e/ou arrematados
como compartimentos estanques. São capítulos que, circunscritos em
termos temáticos, estão dialogando uns com os outros, isto é,
pretendemos serem eles enunciados acabados, mas discursos que se
fazem inacabados pois que abertos a outras e novas possibilidades
dialogicizantes.
No primeiro capítulo, são apresentados o tema da pesquisa e
como se fez objeto científico. Os objetivos, as hipóteses que serviram de
balizamento para as interrogações são apontados e registrados os
pressupostos teóricos, a seleção da amostra, o recorte feito. Por fim o
objeto é descrito e contextualizado no universo da produção do autor.
O segundo capítulo discute a ficção televisiva, seus gêneros e
possíveis sub-gêneros ou formatos, chegando a uma possível
caracterização da microssérie – nosso objeto de estudo.
O terceiro capítulo promove um diálogo do texto-fonte, Auto da
Compadecida, da autoria de Ariano Suassuna com a microssérie, O
Auto da Compadecida, de Guel Arraes, pensado o primeiro como
ancoragem para o segundo, este percebido como um jogo de
apropriações, de estilização, constituindo-se num todo reelaborado,
recriado.
No quarto capítulo discute-se o objeto – O Auto da Compadecida
à luz da teoria proposta e aposta-se na leitura da microssérie, utilizando
15
categorias bakhtinianas como instrumento de análise do produto visto
como discurso cultural.
O sexto capítulo faz um rápido percurso sobre o filme considerado
como produto de um segundo exercício de estilização feito pelo autor
Guel Arraes.
Fazendo jus ao teórico que serviu de referência e amparo para o
trabalho, o último capítulo faz-se inacabado, pois a montante
vislumbram-se muitas inovações teledramatúrgicas.
17
I
NTRODUÇÃO
O que neste trabalho se pretende é desvendar, revelar o modo
como se articulam, no discurso televisivo ficcional microssérie, a
pluralidade de linguagens que julgamos existente nesse produto
cultural.
A escolha deveu-se, em grande parte, ao instante vivido. Momento
histórico que prioriza a imagem como modo de produção e percepção da
cultura, portanto, do mundo; instante em que a televisão é, no dizer de
Octávio Ianni, uma poderosa técnica social
1
e, como tal, exerce sobre o
homem contemporâneo ação de liderança e influência na organização
de seu cotidiano. Não nos negamos a partícipes dessa situação sócio-
histórica que empresta à serialização ficcional televisiva importância
como produção cultural de massa.
A ficção tem ocupado largo espaço em todo mundo, na categoria
entretenimento. No Brasil, a ficção televisiva tende a uma hegemonia
dentro do horário nobre, o que lhe empresta maior importância.
Produto considerado de ótima qualidade, tanto técnica como em termos
de conteúdo, as telenovelas têm recebido especial atenção de estudiosos
e pesquisadores. Segundo Lobo, São muitos os estudos sobre telenovela,
mas poucos sobre a minissérie
2
, motivo que, acrescido da constatação da
maior elaboração e caracterização diferenciada em relação à telenovela,
o teria levado a estudar esse formato, procurando nele as relações com
a realidade política do país. Seis anos após essa afirmação, é lícito
pensar que houve um aumento do interesse dos pesquisadores sobre
a minissérie, mas muito ainda está por fazer, face à riqueza do formato.
1
Para Ianni, as tecnologias da mídia quando inseridas nas atividades sociais, nos jogos das
forças sociais passam a dinamizar, intensificar, generalizar, modificar, bloquear relações,
processos e estruturas sociais, inclusive, as culturais. IANNI, Octavio. O príncipe
eletrônico. In: DOWBOR, Ladislau et al. (Orgs.). Desafios da Comunicação. Petrópolis: Vozes,
2000, p. 9.
2
LOBO, Narciso. Ficção e política: o Brasil nas minisséries. Manaus: Valer, 2000, p. 18.
18
Autores como Balogh
3
, e outros pesquisadores
4
da ECA muito
acrescentaram, em termos de estudos sobre o produto. Nessa
perspectiva, inserimos nosso interesse pela minissérie.
No formato, optamos por trabalhar com a obra de Guel Arraes,
centrando nossos questionamentos na minissérie O Auto da
Compadecida. Interessam-nos, especialmente, as articulações desse
discurso, produto dos meios de comunicação de massa, com o que
julgamos ser uma característica autoral: a busca de um texto para
ancorar, para elaborar a criação televisiva. Nossa hipótese é a de que a
busca ocorre na direção das manifestações culturais populares, textos
verbais literários e, no caso em pauta, um texto dramatúrgico que, visto
como crônica das origens e enraizado no padrão popular, permite a fuga
aos cânones vigentes o oficial e, em conseqüência, às regras
determinantes das produções culturais massivas, estirpe a que pertence
a minissérie. Paralelamente, essas fontes populares determinariam o
sistema de imagens e a concepção artística, marcando indelevelmente a
produção. Esse inter-relacionamento seria, ele mesmo, a
heterogeneidade, o entrecruzamento de linguagens postulado por
Bakhtin
5
para a enunciação.
Justificando a escolha da obra de Rabelais como objeto de seu
trabalho intelectual (e acadêmico), Mikhail Bakhtin afirma que, a par de
ser o mais democrático dos modernos mestres da literatura
6
, Rabelais
tinha como maior qualidade estar estreitamente ligado às fontes
populares e que estas determinariam o conjunto de seu sistema de
3
BALOGH, Anna Maria. O discurso ficcional na TV: sedução e sonhos em doses
homeopáticas. São Paulo: Edusp, 2002. BALOGH, Anna Maria. Conjunções Disjunções
Transmutações: da literatura ao cinema e à TV. São Paulo: Annablume, 2004.
4
OROFINO, Maria Isabel. Mediações na Produção de Teleficção: videotecnologia e reflexividade
na microssérie O Auto da Compadecida. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação)
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
5
Bakhtin, pensador russo cujas idéias serão discutidas adiante, fala em reflexo e refração do
signo, defendendo uma postura dialética (mas não polarizada); o ser refletido no signo não
reflete como refrata. Postura que nos parece adequada para se tentar uma resposta às
questões suscitadas pela prática da linguagem. BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e filosofia
da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
6
BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo, Brasília: Hucitec, EdUnb, 1993, p. 2.
19
imagens, assim como sua concepção artística
7
. Esse autor,
peculiarmente ligado às raízes populares, constrói uma obra que, e por
isso mesmo, nega-se ao caráter oficial, recusa-se à estabilidade, à
formalidade limitada. Mas ele não simplesmente se recusa. Vai além,
criando suas imagens, sua concepção de mundo. Por isso, Bakhtin diz
dele ser profético, no sentido que Michelet empresta ao termo quando
afirma a respeito de Rabelais: E através desses delírios aparecem com
toda a grandeza o gênio do século e sua força profética. Onde ele o
chega a descobrir, ele entrevê, promete, dirige. E que delírios são esses
vividos por Rabelais? Ainda Michelet: Rabelais recolheu sabedoria na
corrente popular dos antigos dialetos, dos refrões, dos provérbios, das
farsas dos estudantes, na boca dos simples e dos loucos
8
.
Essa mesma estreita ligação com o popular é que hipotetizamos
ser encontrada na obra de Guel Arraes. Mas essa ligação ocorre como
que mediatizada, emprestado o termo de Martín-Barbero, por um autor
impropriamente chamado, de acordo com Bakhtin, o primeiro, ou o
original: Ariano Suassuna. Ou seja, o “texto-fonte”, Auto da
Compadecida, de Ariano Suassuna, que na própria categorização – auto
remete ao popular, ao que está entre e no povo, nas praças e pátios
das vilas interioranas; nas avenidas, trens, metrôs, campos de futebol
das grandes cidades; nos folguedos de rua do não mais distante sertão,
nas encostas de vingativas montanhas em cujos barracos se aloja um
aparelho de TV. Ao trabalhar a temática popular, Arraes estaria,
especularmente, operando em reflexo e refração de caráter bakhtiniano,
ou seja, devolvendo ao espectador sua imagem.
A escolha pelo produto, a minissérie como formato ficcional
televisivo e O Auto da Compadecida, como material específico, aponta
para nossas preocupações: o discurso ficcional nos/dos meios de
comunicação de massa.
7
BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais, p. 2.
8
BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais, p. 1.
20
Ao nos decidirmos pelo aporte teórico bakhtiniano, devemos
esclarecer alguns pressupostos que permitirão justificar essa escolha,
ao mesmo tempo em que colocamos os porquês da eleição do objeto. A
grande preocupação de Bakhtin, fica bem claro em toda sua obra, é
com a linguagem verbal. Ao interrogar a obra de Dostoiévski, Bakhtin
busca surpreender o funcionamento e as especificidades do discurso do
grande romancista, pois estes refletiriam a complexidade da obra. Essa
relação umbilical de Bakhtin com o texto reflete claramente sua postura
em relação às ciências humanas, que teriam no homem social que fala e
que pode ser conhecido através dos textos
9
seu objeto de estudo.
que se estudar, portanto, o discurso do qual o homem é produtor. Daí a
percepção bakhtiniana de que a forma concreta dos textos e suas
condições, também concretas, de vida é que interessam a um trabalho
de análise. Mesmo tendo por interesse a linguagem verbal, em nenhum
momento ele subestima outras linguagens. Poderíamos afirmar que
Bakhtin prioriza a palavra, mas não exclui os demais signos:
A comunicação verbal entrelaça-se
inextricavelmente aos outros tipos de comunicação e cresce
com eles sobre o terreno comum da situação de produção.
Não se pode, evidentemente, isolar a comunicação verbal
dessa comunicação global em perpétua evolução. Graças a
esse vínculo concreto com a situação, a comunicação
verbal é sempre acompanhada por atos sociais de caráter
não verbal (gestos do trabalho, atos simbólicos de um
ritual, cerimônias, etc.), dos quais ela é muitas vezes
apenas o complemento, desempenhando um papel
meramente auxiliar.
10
É bom que nos lembremos de que as condições de vida de
Bakhtin, e seu tempo (1895/1975), não lhe permitiram a vivência da
grande mídia e menos ainda da informatização. Uma outra questão
importante e que nos permite reconhecer no texto a unidade discursiva
encontra-se no conceito de enunciação proposto por Bakhtin conjunto
de manifestações verbais e não-verbais que cercam o ato comunicativo.
Para explicitá-lo, o teórico russo coloca-se na perspectiva da
Metalingüística, pois nela estariam evidenciadas as relações que o
9
BRAIT, Beth. As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso. In: BARROS, Diana L. P.;
FIORIN, José Luiz. (Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. São
Paulo: Edusp, 1992.
10
BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e filosofia da linguagem, p. 124.
21
homem mantém com o mundo através da linguagem
11
. Metalingüística,
sob a ótica bakhtiniana, é a disciplina que estuda o dialogismo e suas
implicações no ato comunicativo. Considera enunciação tudo o que está
no entorno do ato comunicativo: o social, o histórico, as motivações de
ordem material, espiritual, moral etc. Ou seja, uma extrapolação do
puramente verbal. Assim concebida, a Metalingüística seria a
possibilidade de se alcançar a enunciação: ato verbal e extraverbal, esta
sim revelação, desvelamento do texto, produto como processo no qual
estão as marcas desse fazimento que serão objeto do nosso trabalho. O
enunciado verbal se arquiteta pelo estilo, isto é, pela seleção operada
nos recursos da língua léxicos, fraseológicos e gramaticais, bem como,
e para Bakhtin, sobretudo, por sua construção composicional
12
. Daí a
importância de se perceber o processo, ou seja, a arquitetônica modo
pelo qual são dispostos elementos, partes de uma obra, observando-se
estrutura, natureza e organização, pressupondo nessa arquitetura
normas, materiais e técnicas para se criar o todo que é a obra.
Consideraremos, portanto, a minissérie como um enunciado no qual o
verbal presente ancora e sustenta outros materiais altamente
significantes e que apresentam, como a linguagem verbal, um estilo
determinado pelas operações neles impressas pelo autor.
Guel Arraes busca em Suassuna o material a ser relido em termos
televisivos, empregando para tal as técnicas ficcionais próprias a uma
minissérie. Ele seria a segunda voz dentro do discurso. Situando-se fora
do discurso dramatúrgico, portanto, verbal, de Suassuna, Guel trabalha
a língua, a partir de um lugar fora dela, é alguém que possui o dom da
fala indireta bakhtiniana, que sabe ler no primeiro que não é tão
primeiro assim, pois para Bakhtin toda elocução expressão de idéias,
sentimentos posse do homem, por excelência, é um elo na cadeia
complexa da comunicação: interlocução, vista como processo de
interação entre indivíduos através da linguagem verbal ou não verbal
13
.
11
MACHADO, Irene A. O romance e a voz: a prosaica dialógica de Mikhail Bakhtin. Rio de
Janeiro, São Paulo: Imago, Fapesp, 1995, p. 48.
12
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 261.
13
BRANDÃO, Helena N. Introdução à Análise do Discurso. Campinas: Unicamp, 1995, p. 90.
22
No caso, esse elo é antecedido do texto de Suassuna que bebe nas
fontes populares, que seria seu primeiro.
E chegamos na boca do povo rabelaisiana: o popular dos antigos
dialetos, dos refrões, dos provérbios, das farsas dos estudantes, na boca
dos simples e dos loucos.
14
Desembarcamos no cotidiano, no lugar social
de onde se diz. A enunciação não ocorrese não for levado em conta o
auditório, visto ser o discurso um diálogo (se não muitos diálogos
interacionados). A situação social mais imediata e o meio social mais
amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir de seu
próprio interior, a estrutura da enunciação.
15
Para Motter, o cotidiano é a
organização do dia-a-dia da vida individual dos homens, repetição de
suas ações vitais fixadas na repetição diária, na distribuição do tempo de
cada dia, ela é a divisão do tempo e é ritmo em que se escoa a história
individual de cada um.
16
O horizonte social de Suassuna e, por conseguinte, de Arraes, é o
cotidiano do povo. E é nesse cotidiano que buscam o material a ser
estruturado de modo a, pelo imaginário, fazer-se um bem cultural em
diálogo com o dia-a-dia ao qual retorna, via ficção. Rompe-se a
mecanização, o marasmo da cotidianidade pelo acionamento de formas
de elevação no caso o produto minissérie que permite ao homem
viver a plenitude, ou seja, participar com seu “eu” de forma intensa,
visto que para ser inteiramente homem, ele precisa suspender a
cotidianidade, o singular, o imediato
17
, e uma das formas de isso ocorrer
é por meio da arte. Reconhecida como ficção, a narrativa (qualquer que
seja, não a tradicional escrita) tem um papel socializador.
Interpenetrada pela realidade, ela pode se tornar veículo de denúncias e
apontar saídas, ou pelo menos, alertas.
14
BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais, p. 1.
15
BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e Filosofia da Linguagem, p. 113.
16
MOTTER, Maria Lourdes. Ficção e realidade: a construção do cotidiano na telenovela. São
Paulo: Alexa Cultural, 2003, p. 26.
17
MOTTER, Maria Lourdes. Ficção e realidade: a construção do cotidiano na telenovela, p. 27.
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A atualidade se marca pela intensa presença da televisão na vida
cotidiana. Ela ocupa lugar de destaque como fonte de informação,
cultura e lazer, o que justifica a importância adquirida pelos produtos
culturais para e por ela criados. Novas linguagens, ou novas formas de
articular linguagens se fazem presentes e estão a solicitar análises
críticas que permitam uma sistematização, em termos teóricos, de seus
aspectos e modos criativos, organizadores, arquitetônicos enfim. Nossa
proposta é estudar a microssérie sob o ângulo de sua estruturação, de
sua arquitetônica, para nos atermos ao termo bakhtiniano. Pensando a
minissérie como um produto da e para a televisão brasileira, partiremos
de conceitos sobre a mesma elaborados por estudiosos e teóricos
brasileiros. Em Pallottini, buscamos conceitos sobre dramaturgia
televisiva, bem como suas características e seu desenvolvimento,
concomitante às transformações por que tem passado o Brasil.
Transformações que têm servido para tornar o produto cada vez mais
sofisticado e complexo, muitas vezes surpreendendo como obra das
mais bem elaboradas, embora, tal como as produções rabelaisianas,
fora dos padrões canônicos e regrados que têm marcado a arte e que
têm imposto categorias de análises também padronizadas. Embora
18
MOTTER, Maria Lourdes. Mecanismos de renovação do gênero telenovela: empréstimos e
doações. In: LOPES, Maria Immacolata V. de. (Org.) Telenovela, internacionalização e
interculturalidade. São Paulo: Loyola, 2004, p. 253.
25
Pallottini, usando de uma inteligente metáfora, afirme ser a minissérie
européia” moderada, civilizada, propositada, enquanto a telenovela
seria “latino-americana” desmesurada, mágico-realista, absurda,
apaixonada, temperamental
19
, o que nos parece ocorrer na obra de Guel
Arraes é a apropriação de algumas características novelescas,
anteriormente utilizadas por Suassuna, num formidável diálogo que,
transgredindo e impondo novas estruturações, mantém esses mesmos
elementos em suas minisséries, especialmente O Auto da Compadecida,
mas presentes também em A Invenção do Brasil, outro excelente
trabalho do mesmo autor e que não ficam de fora no unitário O Coronel
e o Lobisomem. Acresça-se a isso a possibilidade da presença do
fantástico e do maravilhoso. Aquele fantástico que nos foi permitido
pensar a partir do progresso da ciência no século XIX particularmente,
que nos aponta a existência de criaturas possuidoras de órgãos e
sentidos diferentes dos nossos, que nos permite sonhar mundos
imaginários, perceber o quão nos é ainda desconhecido não o
universo, mas o mundo que habitamos, esse nosso pequeno planeta
Terra e seus ocupantes. Mas também o maravilhoso, que na sua
essência supõe a interferência do sobrenatural, dos deuses, do divino
mesmo no destino humano. Nesse aspecto, nos serviremos mais uma
vez de categorias bakhtinianas ancoradas na teoria do dialogismo.
Dialogismo é concebido por Bakhtin como princípio constitutivo
da linguagem, e para alguns estudiosos de sua obra, também do
mundo, da vida. Termo rico em ressonâncias filosóficas e literárias
20
é
ele próprio plurilingüístico. Entende-se aqui dialogismo como sendo
princípio constitutivo e condição de sentido do discurso. É o
atravessamento do discurso por múltiplas linguagens que se atropelam
e se relativizam. Não apenas índices de outras linguagens e sim o
embate polêmico de vozes, que internamente ao discurso, reproduzem o
diálogo com outros textos. A outra faceta do dialogismo envolve a
interação entre enunciador e enunciatário e se constrói, pelo diálogo
cumulativo entre EU e OUTRO, entre muitos EUS e muitos OUTROS.
19
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão. São Paulo: Moderna, 1998, p. 38.
20
STAM, Robert. Bakhtin da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992.
26
Dialogismo visto como espaço interacional entre o EU e o OUTRO, onde
o discurso se faz diálogo com outros “textos” prévios e com o seu
receptor. O sujeito discursivo sempre situa seu discurso em relação ao
outro e a outros prévios discursos outras linguagens. Discurso que é,
a minissérie se marcaria pela heterogeneidade que Bakhtin tão bem
equaciona com a teoria do dialogismo.
Utilizamos como fundamentação teórica a teoria marxista da
linguagem, especialmente Mikhail Bakhtin. Em Adam Schaff
encontramos subsídios sobre linguagem e conhecimento. Embora os
pressupostos para a Análise do Discurso sejam prioritariamente
bakhtinianos, não nos furtamos às idéias de Pêcheux, Maingueneau,
Orlandi e Brandão. Fiorin, Barros e Brait nos fornecerão informações
lingüísticas relacionadas à Análise do Discurso sob a ótica bakhtiniana.
Outros teóricos bakhtinianos no Brasil estarão presentes nesta
caminhada: Boris Schnaidermann e Irene Machado. Dentre os
estrangeiros, sobressaem Robert Stam, Katerina Clark e Michel
Holquist. O aporte para as questões de linguagem, formato e gêneros
televisivos buscamos em Motter, Pallottini, Balogh, Borelli, Fadul, Lobo,
Nogueira, Machado. Heller, Lefebvre e Motter nos auxiliam no campo do
cotidiano. Umberto Eco e Roland Barthes, estudiosos das questões da
linguagem na linha semiótica/semiológica, assim como Jesús Martín-
Barbero e Néstor García Canclini, expoentes da comunicação de massa,
especialmente na América Latina, não explicitamente citados, não
podem ser deixados de lado pelo papel formativo que seus textos
tiveram.
A escolha do eixo teórico em Bakhtin decorre das preocupações
do mesmo com a enunciação e sua visão plural desta como produto,
processo, isto é, fazimento, portanto, inconcluso, aberto, irrepetível e
singular. Bakhtin tem como preocupação compreender como ocorre a
produção do sentido e como o texto é produzido e apreendido, seus
modos de inserção entre vários sistemas, cada um com seus próprios
discursos. Desse enredamento do qual emerge o significado e, por que
não, os saberes humanos, o homem se dá a conhecer. Os demais
autores foram escolhidos porque os percebemos inseridos na mesma
27
visão, pois que preocupados também com o homem, sua linguagem,
cultura e concepção de mundo. Incluídos numa linha de pensamento
sócio-histórica, acreditamos que tais teóricos fornecem subsídios
valiosos para nosso trabalho.
Nossa escolha teórica aponta para um estudioso da comunicação,
porque da linguagem, que a enunciação como sendo de natureza
social, isto é, a situação social, a condição real da enunciação vai
determinar todo e qualquer aspecto da expressão objetivada. A
enunciação é, portanto, processo interlocutivo, incluindo o contexto
histórico, social, cultural, as ideologias que perpassam as diferentes
instâncias sociais. Assim pensada, a enunciação tem como produto o
discurso, este sim manifestação que, supondo o diálogo (Bakhtin),
caracteriza-se por produzir um efeito de sentido
21
. Para Brandão, ponto
de articulação dos processos ideológicos e dos fenômenos lingüísticos,
cujo sentido se instaura no processo de interlocução
22
. Não há pois
discurso fora da sociedade, que ele existe no e para o social. A
microssérie é vista como discurso plural, dialógico, heterogêneo, posto
que nela se cruzam, se inter-relacionam em processo interlocutivo as
mais diferentes linguagens; por isso a sua importância e como tal,
justificada a sua feitura em objeto de pesquisa e de estudo.
Dentro dessa perspectiva, a escolha da obra de Guel Arraes
ocorreu determinada por aspectos subjetivos, não negamos, e objetivos.
Não nos considerando espectadora-modelo, fomos seduzidas pelo
trabalho de Arraes em O Auto da Compadecida. A objetividade da
escolha vem da percepção da complexidade do trabalho, da criatividade
da autoria, das operações, que sentimos, são praticadas em termos de
escolha, seleção dos elementos artísticos e da linguagem televisiva na
execução da minissérie. Consideramos que é na estruturação, na
composição, naquilo que Bakhtin chama de “arquitetônica” do discurso
que se manifesta a sua complexidade realizadora, daí a nossa
determinação em estudá-lo.
21
BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e discurso: história e literatura. São Paulo: Ática, 1995,
p. 91.
22
BRANDÃO, Helena N. Introdução à Análise do Discurso, p. 12 e 89.
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O material a ser trabalhado será a obra de Guel Arraes para a TV
Globo, no formato microssérie
23
, considerada gênero narrativo ficcional
televisivo ficção seriada. Face ao que consideramos complexidade da
empreitada em função da riqueza que se surpreende no produto, dentro
da obra fazemos um recorte que funciona mais como um referencial,
uma ancoragem. Centramos nossa análise na obra O Auto da
Compadecida pela sua significação em termos de aceitação pública e
também pela originalidade que suspeitamos disseminada por toda a sua
feitura. Essa suspeição é uma de nossas hipóteses de trabalho: ao
(re)elaborar o antecessor dramatúrgico suassuniano, a autoria da
minissérie adotaria procedimentos de linguagem, agora televisiva, de
modo a tornar o existente em outro, novo e original. Entretanto, não
nos furtamos ao cotejamento com outras produções da mesma autoria,
dentro é claro, do mesmo gênero, adotando aqui a categorização de uso
corrente pelos teóricos de nossa referência: Motter, Pallottini, Fadul.
Considerando a obra como plural, heterogênea e múltipla,
trespassada por várias e múltiplas linguagens, emergirão necessidades
de articulações dos elementos constitutivos entre si e com a realidade.
Assim o discurso da arte, que para Bakhtin precisa, supõe o discurso
da vida, e que não o reflete somente, mas refrata-o, portanto, deforma,
articula-se com outros prévios discursos que circulam em nossa
realidade cotidiana e com outras manifestações como a literatura, o
cinema, o videoclipe, os recursos gráficos das histórias em quadrinhos,
outros formatos ficcionais televisivos.
Supondo a produção artística de Arraes como obra de autoria,
ligada a raízes populares e por isso negar-se a um caráter oficial,
recusar-se à estabilidade e à formalidade limitadora, criando assim
imagem e concepção de mundo próprias, esses aspectos evidenciam-se
23
O conceito de microssérie será abordado na Parte II deste trabalho.
29
na obra e articulam-se com o constitutivo do veículo para o qual é
produzida. Pensamos aqui as questões bakhtinianas relativas ao
vocabulário e comportamento populares, da praça pública, as formas e
imagens do popular, o que implicaria a questão da carnavalização.
Entendemos, pois, como objetivo central de nosso trabalho,
perceber, surpreender o funcionamento e as especificidades do discurso
“gueliano” de modo a entender a complexidade da obra em seus
procedimentos linguageiros. Vista a obra como interação dialogal
autor/obra/espectador e obra/realidade/outras obras –, como esses
processos dialogicizantes são acionados pelo autor e como se articulam
com a linguagem da televisão e a estruturação própria do formato.
Constituindo-se a obra em diálogo com outras, nos propomos a
desvendar, buscar revelar como esse diálogo ocorre, em que termos ele
se estabelece, não se podendo excluir o cotidiano dessas fontes
primevas, à medida que o que está na praça de Taperoá é o cotidiano do
povo ou o seu contrário, o mundo de ponta cabeça, que é a
carnavalização para Bakhtin. Ao se apropriar de um estilo, de um
gênero, de uma forma, o autor está no campo da dialogicidade, mas,
no caso em pauta, ele reporta esse diálogo para outro gênero, a
dramaturgia teatral, e constrói um outro discurso. Ressignificações
podem emergir, hibridizações no campo da linguagem se constituirão a
partir do suporte por onde circula e se articula esse novo discurso: a TV
e suas especificidades gramaticais e sócio-históricas. Portanto, que
se verificar como essas andanças artísticas constituem-se, estruturam-
se e articulam-se com esse outro veículo, com novas mediações. E algo
novo surge com suas pluralidades, vozes e imagens, já não temos o auto
de Suassuna e sim o de Arraes, com sua maneira de ser e seus
elementos próprios em diálogo com seu receptor, de modo a se fazer
significado.
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O trabalho se desenvolve em termos de Análise do Discurso, visto
este como ato verbal e extraverbal, produto como processo, fazendo-se
inacabado, demandando novas e plurais possibilidades. Buscaremos
surpreender o funcionamento, as especificidades do discurso,
permitindo assim apontar o grau de complexidade e de criatividade da
obra. Destarte investigamos as marcas desse fazimento, que poderão
confirmar ou não as hipóteses propostas, resumidas como sendo o
dialogismo como princípio constitutivo. O discurso de Arraes apontaria
a apropriação de um discurso outro, prévio e que se mostra de forma
patente e clara, indiciando a estilização bakhtiniana. O discurso
primeiro para Arraes seria o de Suassuna, mas para Suassuna o
primeiro seria o diálogo que mantém com as fontes populares. Como
para Bakhtin o discurso é um elo na complexa cadeia comunicativa, o
Auto da Compadecida suassuniano não é primeiro e sim um outro de
um outro, de um outro, e assim sucessivamente.
Partimos do discurso dramatúrgico em sua forma verbal, face à
impossibilidade de recuperação da encenação. Denominamos esse
discurso Texto Fonte, entendendo-o como âncora: aquilo que atrai para
servir de esteio, de amparo mesmo; que permite a sustentação da obra
em construção, mas não impede a criatividade, a invenção.
Descrevemos e analisamos o discurso suassuniano discutindo as
questões referentes à autoria, gênero e temática. Mostramos sua
proximidade com o teatro vicentino e o Movimento Armorial, assim como
suas relações interdiscursivas com outros autores e textos bem como
com a realidade cotidiana e seu diálogo com as fontes populares.
Em um segundo movimento, descrevemos e analisamos a
microssérie O Auto da Compadecida, mostrando o interdiscurso com o
Texto-Fonte e seu diálogo com o cinema. Ao discutirmos o referencial
teórico a linguagem sob a ótica do pensador russo Mikhail Bakhtin
levantamos as categorias de análise bakhtinianas ao mesmo tempo em
31
que mostramos os procedimentos levados a efeito pela autoria da
microssérie Guel Arraes e que se estendem até a feitura do filme
homônimo.
O tratamento dos dados será o de uma investigação no campo
da(s) linguagem(ns), nos modos operacionais praticados pela autoria,
pois nosso interesse é a arquitetônica do discurso, ou seja, como
elementos díspares organizam-se, reorganizam-se e se fazem um
discurso outro, inserido num outro momento e espaço social e histórico,
fazendo-se significado na interação, na interlocução.
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4.1 O autor e sua obra televisiva
24
Miguel Arraes de Alencar Filho, nascido no ano de 1956,
brasileiro de Pernambuco, filho do lendário governador Miguel Arraes,
passou a grande parte de sua primeira mocidade no exterior, Argélia e
depois Paris, acompanhando o pai em seu exílio político. Em 1972
matricula-se no Curso de Antropologia, na Universidade de Paris VII.
Ingressa no Comitê do Filme Etnográfico, dirigido por Jean Rouch,
considerado mestre do cinema verdade. Tendo convivido com Rouch,
Guel afirma ter aprendido com ele a fazer cinema e, principalmente, a
paixão pelo cinema teria sido nele imprimida por Rouch sendo essa
paixão que o sustenta.
25
A essas alturas, Guel demonstra sua
versatilidade. Trabalha como projetista, arquivista, montador. Seus
primeiros trabalhos são documentários em super-8 e alguns curtas
como diretor. Dirige também um média-metragem Barbes Palace em
24
A fonte de informação utilizada foi: PROJETO MEMÓRIA DAS ORGANIZAÇÕES
GLOBO. Dicionário da TV Globo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. v. 1: Programas de
Dramaturgia & Entretenimento.
25
De acordo com entrevista concedida originalmente para o site CULTURA – Banco do Brasil
<www.cultura-e.com.br>. CONDE, Ana Paula. Diretor cabra da peste. Disponível em:
<http://www.ietv.org.br/pensar_tv_artigo.php?id=217>. Acesso em: 04 agosto 2004.
32
parceria com Ricardo Lua, ainda em Paris, ano de 1979. É nascido um
diretor de cinema.
Guel Arraes retorna ao Brasil em 1980, com a firme disposição de
implementar o que ele tinha aprendido como assistente na equipe de
Jean-Luc Godard, quando estudou em Paris. Embora Arraes afirme ter
sido esporádica a convivência com Godard, a influência do seu cinema
foi importante para sua formação. Entretanto, logo percebe que fazer
cinema no Brasil é mais complicado do que pensara. A sétima arte
ainda se encontrava sob a égide da Empresa Brasileira de Filmes
(Embrafilme), estatal criada pelo governo militar para promover o
cinema nacional e produzir filmes. Convidado por Paulo Ubiratan e
Roberto Talma, vai para a TV Globo. É nascido um diretor de televisão.
Observando-se a produção de Guel Arraes, norteando-se pela
classificação feita pela TV Globo, emissora para a qual o autor tem
trabalhado desde o início de sua carreira, nota-se a grande diversidade
de seu trabalho. A guisa de informação, vale dizer que o cinema, o tão
sonhado projeto quando de sua chegada ao país em 1980, tem se
concretizado, ao mesmo tempo em que é preocupação de acadêmicos
voltados para o setor como objeto de estudo.
Do início tímido como assistente de produção de telenovelas,
Arraes é hoje diretor de núcleo de produção. pelo ano de 1995, a TV
Globo passa a trabalhar com o que convencionou chamar de Núcleo,
seguido do nome de seu líder, ou seja, diretor de produção. O Núcleo
Guel Arraes tem se notabilizado por produções de grande sucesso junto
ao público, o que em TV não significa, obrigatoriamente, qualidade. Mas
a qualidade tem sido uma constante no trabalho desse núcleo sob a
batuta de Arraes.
Discutir a qualidade em televisão tem sido um embate às vezes
doloroso, entre críticos, estudiosos e produtores. Para se discutir um
produto é preciso conhecê-lo em possíveis e variadas dimensões; o
objeto de ser olhado, re-olhado, visto e re-visto. Categorias
adequadas e próprias ao produto devem ser acionadas e o problema
torna-se então ainda mais complexo, pois elas não estão ‘prontas’,
33
ainda ancoram-se em tradições estabelecidas pelas literatura e outras
produções canonizadas. No dizer de Machado
26
, ao olharmos a
televisão, a única coisa que vemos é lixo, isso porque nos recusamos a
ver, ficamos cegos quando encaramos a televisão. Para alguns críticos, o
fato de ser um produto de massa impede a televisão de elevar-se do
nível ‘mediano’. A academia, recentemente, e em algumas áreas, tem
reconhecido e aberto portas para a televisão como objeto de estudo, de
análise, ou seja, tem reconhecido seus produtos como passíveis de
estudos científicos.
Tendo como fonte de nossas informações o Dicionário da TV Globo,
estamos obedecendo à categorização por ele adotada, o que não
significa que não estejamos atentas para o que consideramos
inadequações, levando em conta todo o aparato teórico consolidado
pelos pesquisadores que nos servem de orientação e balizamento para a
construção de nosso referencial teórico. A intenção, por hora, é apenas
listar a produção, para dela termos uma noção geral e não deixarmos
que alguma coisa escape às notações.
4.1.1 Telenovelas
Em 1981, Arraes é assistente de Jorge Fernando na telenovela
Jogo da Vida
27
. Jorge Fernando e Sílvio Abreu vêm consolidando,
desde final da década de 70, um formato de telenovela caracterizado
pelo humor pastelão das chanchadas
28
e que vai marcar o horário das
19 horas da Globo. O humor vai aos poucos se inserindo na história e
acaba se fazendo humor rasgado. Jogo da Vida tem, em sua cena de
encerramento, uma novidade: os atores se apresentam em cima de um
26
MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Senac, 2000, p. 20.
27
Jogo da Vida. Escrita por Silvio de Abreu, inspirada no conto homônimo de Janete Clair,
direção de Roberto Talma, Jorge Fernando e Guel Arraes, produção de Antônio Chaves e
Manoel Alves. Veiculada entre 26 de outubro de 1981 a 8 de maio de 1982, às 19h; 167
capítulos.
28
SILVA, Gonçalo Jr. Pais da TV: a história da televisão contada por Gonçalo Silva Jr. São
Paulo: Conrad, 2001, p. 168.
34
palco de teatro, agradecendo os aplausos, exibindo assim a linha
demarcadora da ficcionalidade e inserindo a metalinguagem. Durante
1982, Guel dirige, ainda com Jorge Fernando e Roberto Talma, Sétimo
Sentido
29
, novela de Janete Clair; Sol de Verão
30
tem direção
compartilhada - Roberto Talma, Jorge Fernando e Arraes. Guerra dos
Sexos
31
consolida o estilo de comédia conceituado por Gonçalo Jr. como
sendo de humor pastelão das chanchadas. Uma telenovela divertida e
lúdica, com lances inovadores em termos de linguagem como o fato de
as personagens comentarem os acontecimentos com o espectador que
põe no vídeo dois monstros sagrados do teatro brasileiro: Fernanda
Montenegro e Paulo Autran, sob a direção compartilhada de Jorge
Fernando e Guel Arraes. Vereda Tropical
32
é outra parceria Jorge
Fernando/Guel Arraes que produziu uma confusão em um jogo de
futebol (Vasco da Gama e Corinthians) no Estádio do Morumbi. O
personagem Luca, jogador de futebol, estréia no Corinthians e a cena é
gravada no estádio, onde o protagonista Mário Gomes chega de
helicóptero; como se não bastasse, quando o jogador Serginho marca
um gol, o ator invade o gramado e é expulso pelo juiz da partida. No
final do jogo, a torcida corinthiana protesta contra o mau desempenho
dos seus jogadores, pedindo a entrada do ator Mário Gomes. Ficção e
realidade embaralham-se no gramado.
29
Sétimo Sentido. Escrita por Janete Clair, direção de Roberto Talma, Jorge Fernando e Guel
Arraes, produção de Antônio Chaves. Veiculada entre 29 de março a 8 de outubro de 1982,
às 20h; 166 capítulos.
30
Sol de Verão. Escrita por Manoel Carlos, direção de Roberto Talma, Jorge Furtado e Guel
Arraes, coordenação de produção de Antônio Chaves. Veiculada entre 11 de outubro de
1982 a 18 de março de 1983; às 20 h; 137 capítulos.
31
Guerra dos Sexos. Escrita por Silvio de Abreu com a colaboração de Carlos Lombardi,
direção de Jorge Fernando e Guel Arraes, sob a supervisão de Paulo Ubiratan e produção
de Manoel Alves. Veiculada entre 6 de junho de 1983 a 6 de janeiro de 1984, às 19h; 185
capítulos.
32
Vereda Tropical. Escrita por Carlos Lombardi, argumento e supervisão de texto de Silvio de
Abreu, direção de Jorge Fernando e Guel Arraes, produção executiva de Eduardo Figueira
e direção de produção de Manoel Martins. Veiculada entre 23 de junho de 1984 a 1º de
fevereiro de 1985, às 19h; 184 capítulos.
35
4.1.2 Minisséries e microsséries
Dona Flor e seus Dois Maridos
33
, tem texto de Dias Gomes com a
colaboração de Marcílio Moraes e Ferreira Gullar, sob a direção geral de
Mauro Mendonça Filho, inserida no Núcleo Guel Arraes.
O grande sucesso O Auto da Compadecida tem Arraes, em
companhia de Adriana e João Falcão, como autor do texto a partir da
obra homônima de Suassuna. Realizada inteiramente sob a direção de
Arraes, é também produzida pelo Núcleo Guel Arraes e apresentada
como uma microssérie, pois tem apenas 4 capítulos.
Invenção do Brasil
34
tem 3 capítulos, e é escrita e dirigida por Guel
Arraes e Jorge Furtado, sob produção do Núcleo Guel Arraes, fazendo
parte dos eventos comemorativos dos 500 anos do Descobrimento do
Brasil.
Cidade dos Homens
35
é um projeto coordenado por Arraes,
realizado pela produtora O2 Filmes que marca o retorno da parceria da
Rede Globo com produtoras independentes. Cidade dos Homens foi
apresentada em 4 episódios escritos e dirigidos por diferentes roteiristas
e diretores. Embora catalogada como microssérie, apresenta
caracterização mais próxima de série pelo tipo de estruturação. Uma
nova temporada, dirigida por Fernando Meirelles tem lugar em 2004,
ocorrendo ainda uma terceira temporada em 2005, anunciada como
sendo a derradeira, sempre na Globo e em parceria com a produtora O2
do próprio Meirelles
36
. Negociada para o exterior, a série chamou a
atenção do mercado internacional ao receber o prêmio categoria
televisão no Festival de Arte Cinematográfica de Genebra, em 2004.
33
Dona Flor e seus Dois Maridos, adaptação de Dias Gomes com a colaboração de Marcílio
Moraes e Ferreira Gullar da obra homônima de Jorge Amado. Tem direção Mauro
Mendonça Filho e direção do Núcleo Guel Arraes. Exibida de 31 de março a de maio de
1998; 20 capítulos.
34
Invenção do Brasil vai ao ar de 19 a 21 de abril de 2000.
35
Cidade dos Homens vai ao ar de 15 a 18 de abril de 2002.
36
BRASIL, Ubiratan. Miami exibe o melhor do cinema nacional. O Estado de S. Paulo, o
Paulo, 27 julho 2004, p. D6.
36
4.1.3 Seriados
Armação Ilimitada
37
é a primeira direção exclusiva de Guel Arraes
e marca o estilo inovador, experimental do diretor, valorizando
sobremaneira a linguagem cinematográfica e de videoclipe, explorando
também recursos gráficos próprios das histórias em quadrinhos. No
segundo semestre de 1986, a equipe de direção passa a contar com
Mário Márcio Bandarra e José Lavigne. No segundo semestre de 1988, a
direção geral passa às mãos de Mário Márcio Bandarra. Em dezembro
desse mesmo ano, o programa sai do ar.
4.1.4 Diversos / Variedades
Sob a rubrica Diversos / Variedades, estão categorizados
produtos cujos formatos devem ser estudados com outro olhar,
procurando a aplicação das teorias sistematizadas o que, certamente,
provocará uma outra categorização ou remanejamento para as
existentes.
Programa Caso Especial
38
. Dura 24 anos, sob nomes diferentes e
inserido em grades variadas, mantém a proposta e a estrutura iniciais.
Trata-se de episódios com uma hora de duração, apresentando histórias
originais ou adaptações, escritos e dirigidos por diferentes profissionais
da Globo. Para esse programa, Guel escreve ou dirige:
37
Armação Ilimitada. Escrito por Antonio Calmon, Euclydes Marinho, Patrícia Travassos e
Nelson Motta, com direção de Guel Arraes e produção executiva de Nilton Campello.
Exibida entre 17 de maio de 1985 a 8 de dezembro de 1988, sextas-feiras, às 21h20; 174
episódios.
38
Programa Caso Especial estréia em 10 de setembro de 1971 com Caso especial “Nº 1” e termina
em 05 de setembro de 1995 com A Farsa da Boa Preguiça, cujo texto-base é de Suassuna.
37
O mambembe
39
, adaptação de Guel junto com Pedro Cardoso,
Jorge Furtado e Naum Alves de Souza, da peça homônima de Artur de
Azevedo. Dirigido por Arraes.
O alienista
40
, adaptação da obra homônima de Machado de Assis
com a mesma equipe anterior.
Ed Mort nunca houve mulher como Gilda
41
, sob texto de Luís
Fernando Veríssimo, Guel Arraes dirige e faz equipe de escrita com
Jorge Furtado e Pedro Cardoso.
Lisbela e o Prisioneiro
42
, dirigido por Arraes, que é também um dos
autores do roteiro com Pedro Cardoso e Jorge Furtado. O texto-base é o
homônimo de Osman Lins.
Em companhia de Roberto Talma e Ignácio Coqueiro, Arraes
dirige, em 25 de outubro de 1993, O Besouro e a Rosa
43
, adaptação livre
de Manoel Carlos para os contos O besouro e a rosa e Jaburu de
Mário de Andrade.
Autor do texto com Jorge Furtado e João Falcão, Guel dirige, em
21 de junho de 1994, O Coronel e o Lobisomem
44
. Com os mesmos
parceiros escreve e dirige, em 23 de agosto de 1994, Comédia da Vida
Privada
45
.
Suburbano coração
46
, com direção de Guel sob texto de Jorge
Furtado, João Falcão e o próprio Arraes, trio que comanda na mesma
formação O homem que sabia javanês
47
.
Em O Engraçado Arrependido
48
, Guel trabalha com Pedro
Cardoso, Jorge Furtado, João Falcão e Ana Braga.
39
Exibido em 8 de junho de 1993.
40
Exibido em 6 de julho de 1983.
41
Exibido em 21 de dezembro de 1993.
42
Exibido em 31 de agosto de 1993.
43
Exibido em 25 de outubro de 1993.
44
Exibido em 21 de junho de 1994.
45
Exibido em 23 de agosto de 1994.
46
Exibido em 27 de setembro de 1994.
47
Exibido em 8 de novembro de 1994.
48
Exibido em 9 de maio de 1995.
38
A Comédia da Vida Privada, exibida em 1994 como especial,
acaba por fixar-se na programação da Rede Globo e vai ao ar uma vez
por mês, na Terça Nobre
49
, num total de 21 episódios. De início
baseados nas crônicas de Luiz Fernando Veríssimo, a partir de 1996 os
episódios passam a ser escritos por João Falcão, Pedro Cardoso,
Alexandre Machado, Fernanda Young, Adriana Falcão, Jorge Furtado e
o próprio Guel Arraes. São episódios que contam com a participação de
Arraes como diretor e/ou escritor:
Pais e filhos
50
, Solteiros x Casados
51
, Apenas Bons Amigos
52
, A
Casa dos Quarenta
53
, Sexo na Cabeça
54
, Mãe é Mãe
55
, Menino ou
Menina
56
, O Pesadelo da Casa Própria
57
, A Próxima Atração
58
, O Grande
Amor da Minha Vida
59
, O Mistério da Vida Alheia
60
, As Idades do Amor
61
,
Drama
62
, Papai foi pra Lua
63
.
Brava Gente
64
, produção do Núcleo Guel Arraes em 8 programas
exibidos em quatro dias e apresentado como especial de fim de ano em
dezembro de 2000. Numa segunda exibição, fica no ar a partir de 27 de
março de 2001 até 2003, sempre às terças-feiras, num total de 53
programas. O que caracteriza o trabalho é a variedade genérica em
função da diversidade estilística de cada diretor. Na segunda
temporada, (2001/2002) a produção passa a ser dividida entre os
núcleos de Arraes e Jayme Monjardim. Durante a exibição da
minissérie Presença de Anita, em agosto de 2001, Brava Gente deixa de
ir ao ar, retornando em setembro do mesmo ano.
49
Exibida entre 25 de abril de 1995 e 26 de agosto de 1997.
50
Exibido em 25 de abril de 1995.
51
Exibido em 23 de maio de 1995.
52
Exibido em 20 de junho de 1995.
53
Exibido em 4 de julho de 1995.
54
Exibido em 8 de agosto de 1995.
55
Exibido em 3 de outubro de 1995.
56
Exibido em 7 de novembro de 1995.
57
Exibido em 12 de dezembro de 1995.
58
Exibido em 2 de abril de 1996
59
Exibido em 30 de abril de 1996.
60
Exibido em 4 de junho de 1996.
61
Exibido em 20 de agosto de 1996.
62
Drama exibido em 29 de outubro de 1996.
63
Exibido em 1º de abril de 1997.
64
Exibido de 26 a 29 de dezembro de 2000.
39
Tiveram participação direta de Arraes os episódios:
Condomínio
65
, sob original de Luis Fernando Verissimo em
companhia de Jorge Furtado.
Morto do Encantado Morre e Pede Passagem
66
, adaptação junto
com Furtado da peça homônina de Oduvaldo Vianna Filho.
Pastores da Noite
67
, série composta de quatro episódios
autônomos com os mesmos personagens centrais (boêmios,
mulherengos e malandros “pastores”, oriundos da obra homônima de
Jorge Amado) e escritos por Arraes, Cláudio Paiva e Sergio Machado.
Essa série continuidade ao projeto de parceria com as principais
produtoras independentes do país.
68
Sitcom.br
69
é um novo quadro dentro do Fantástico, da grife
Arraes. São autores dos textos Adriana Falcão e Luiz Fernando
Veríssimo
Esses produtos têm, mesmo aqueles inseridos em outros
programas, características que permitem sua categorização no formato
unitário: fião para TV, levada ao ar de uma vez, com duração de
aproximadamente uma hora, programa que se basta a si mesmo, que
conta uma história com começo, meio e fim, que esgota sua proposição na
unidade e nela se encerra.
70
65
Exibido em 29 de dezembro de 2000.
66
Exibido em 1º de maio de 2001.
67
Exibido de 26 de novembro a 17 de dezembro de 2002.
68
O Dicionário da TV Globo coloca o título desta série como Brava Gente. Pastores da Noite é
exibida entre 26 de novembro e 17 de dezembro de 2002.
69
Estréia em 18 de julho de 2004.
70
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão, p. 25.
40
4.1.5 Humor
TV Pirata
71
é um humorístico que se propõe a satirizar a televisão
brasileira, com um elenco variado de redatores que empresta uma
característica bastante diversificada de humor. Com textos de Luis
Fernando Verissimo e seu humor mais refinado, passando pelo humor
de costumes dos textos de Pedro Cardoso e Felipe Pinheiro. Traz
também Mauro Rasi e sua crítica à burguesia, os personagens místicos,
os populares, chegando ao humor escrachado do grupo Casseta &
Planeta, o programa tinha de tudo em termos de riso. TV Pirata é uma
marca nos programas humorísticos e, segundo Arraes, é uma proposta
de que resgata o antigo humor do rádio e traz à cena o comediante, não
mais o humorista. Busca atores de teatro (Regina Casé) e descobre a
veia humorística de Débora Bloch, por exemplo, até então mocinha de
telenovelas, mas boa comediante no teatro.
Programa Legal
72
tem à frente Regina Casé e Luiz Fernando
Guimarães. O programa é bem uma produção de Arraes, um misto de
documentário, ficção e humor. Em cada ‘episódio’, é abordado um único
tema a partir do qual se organiza uma pauta jornalística. A cenografia
tem estrutura cinematográfica, edição ágil, ritmo rápido e grande
variedade informativa. Guel Arraes trabalha em dupla com Belisário
França na direção geral.
Dóris para Maiores
73
, dirigido por Arraes e José Lavigne, é um
programa mensal, que mistura jornalismo, ficção e humor. Apresenta
71
TV Pirata. Texto de Mauro Rasi, Luis Fernando Verissimo, Vicente Pereira, Patrícia
Travassos, Felipe Pinheiro, Pedro Cardoso, Hubert, Reinaldo, Bussunda, Cláudio Manuel,
Hélio de La Pena, Beto Silva e Marcelo Madureira, sob a coordenação de Cláudio Paiva,
com direção geral de Guel Arraes, direção de José Lavigne, Carlos Magalhães e do próprio
Guel Arraes, produção de J. de Camillis. Exibido de 5 de junho de 1988 a 31 de julho de
1990, e na segunda fase de 21 de abril a 8 de dezembro de 1992, às terças-feiras, às 21h30.
72
Programa Legal. Texto de Hubert, Pedro Cardoso, André Waissman e Marcelo Tas com a
colaboração de Jorge Furtado e Luis Fernando Verissimo, direção de Guel Arraes e
Belisário França. Exibido de 9 de abril de 1991 a 29 de dezembro de 1992.
73
Dóris para maiores. Direção de Guel Arraes e José Lavigne, coordenação de jornalismo de
Claufe Rodrigues, edição de jornalismo de Cláudio Manuel, Marcelo Madureira, Beto Silva,
41
em tom ensaístico fatos interessantes, com pauta variada:
vagabundagem, striptease masculino, impotência, rivalidades culturais
etc. Apresentado pela jornalista Dóris Giesse.
Casseta & Planeta, Urgente!
74
, de responsabilidade do Núcleo
Walter Lacet até 1995. Durante o ano de 1996, o humorístico não tem
quadros fixos e é dirigido pelo Núcleo J. B. de Oliveira (Boninho). Em
1998 passa a ser dirigido pelo Núcleo Guel Arraes e a partir de 07 de
abril desse ano torna-se uma atração semanal, com duração de 25
minutos. Na linha “jornalismo-mentira e humorismo-verdade”, através
da paródia ao jornalismo convencional, cria uma maneira engraçada e
particular de abordar os fatos da atualidade. Como Programa Legal e
Dóris para Maiores, o produto apresenta um enorme cuidado com o
visual, atraindo para o grupo inúmeros artistas plásticos.
A Grande Família (segunda versão)
75
é um remake do histórico
programa criado por Max Nunes em 1972, a primeira comédia de
costumes da Rede Globo, baseada inicialmente na série norte-
americana All in the Family. A partir do segundo ano de exibição,
adapta-se à realidade nacional e a redação passa a ser de Oduvaldo
Vianna Filho (Vianninha) e Armando Costa. O texto passa a apresentar
uma forte crítica social e política através de metáforas que – nem
sempre driblam a censura. Na nova versão, os problemas familiares
são atualizados: por exemplo, o filho contestador político de 1972 deixa
de existir. A filha é mais atuante, o genro vira motorista de táxi depois
de comprar o carro do sogro. Em abril de 2003 na reestréia da nova
temporada, apresenta outras modificações: Bebel, a filha, arranja um
emprego. No primeiro semestre de 2004, novas modificações são
introduzidas com a morte de Seu Flor (Rogério Cardoso). Os episódios
contam com a participação especial de vários atores.
Bussunda, Hélio de La Peña, Hubert e Reinaldo. Exibido de 16 de abril a 17 de dezembro
de 1991.
74
Casseta & Planeta, Urgente! Texto de Hubert, Cláudio Manuel, Bussunda, Hélio de Peña,
Reinaldo, Marcelo Madureira e Beto Silva integrantes do grupo Casseta & Planeta com
direção geral de José Lavigne, direção de Rogério Gomes, produção executiva de Andréa
Vaz, direção de produção de Marcelo Paranhos, produzido pelo Núcleo Walter Lacet até
1995. Durante 1996 e a partir de abril de 1998, pelo Núcleo Guel Arraes.
75
Exibida desde 29 de março de 2001 até o presente momento.
42
Os Normais
76
tem Fernanda Young e Alexandre Machado como
responsáveis pelo texto, sob direção de José Alvarenga Júnior e
produção do Núcleo Guel Arraes. Comédia de situação (sitcom), prevista
para ir ao ar em apenas doze episódios, faz imenso sucesso e acaba por
fixar-se na grade de programação. O seriado mostra grande
preocupação com o visual e apresenta um tratamento estético
cinematográfico, o que permite mais profundidade de campo às cenas.
Os personagens falam com a câmera e se dirigem aos telespectadores.
Tem como marca de encenação o improviso a última cena dos
episódios é sempre improvisada por Fernanda Torres e Luiz Fernando
Guimarães – e o corte da edição é empregado como piada.
4.1.6 Variedades
Brasil Legal
77
, criação do cleo Guel Arraes, é dirigido por
Sandra Kogut e apresentado por Regina Casé. A partir de 1995, Guel
Arraes é um dos diretores de programa. No dia 16/12/1997 vai ao ar o
último programa com o formato original: em andanças pelo país a
apresentadora mostrava os costumes, hábitos do povo, daí sua relação
com o cotidiano. O projeto Brasil Legal para 1998 consta de 6 episódios
distribuídos ao longo do ano. Apenas um vai ao ar, em 26/4/1998,
tendo como tema o Descobrimento o que sugere afastamento da
proposição inicial, que eram os temas cotidianos, e um deslocamento
para os grandes temas de interesse histórico. O programa gerou uma
série educativa no Canal Futura Histórias do Brasil Legal que
tirando proveito da verve humorística de Casé, explora as imagens
inusitadas e anônimas do país. Acaba tornando-se um documentário de
costumes. Brasil Legal é concebido a partir de um programa piloto
76
Os Normais. Texto de Fernanda Young e Alexandre Machado, direção de José Alvarenga
Júnior, produção do Núcleo Guel Arraes. Exibida de 1º de junho de 2001 até 2003.
77
Brasil Legal. Criação do Núcleo Guel Arraes, com direção de Sandra Kogut, apresentado
por Regina Casé. O programa-piloto é exibido em 28 de dezembro de 1994, os demais na
Terça Nobre entre 16 de maio de 1995 a 16 de dezembro de 1997, o último em 26 de abril de
1998, domingo, 21h30, inserido no Fantástico.
43
realizado dentro da programação de fim de ano da Rede Globo e exibido
em 28 de dezembro de 1994.
Muvuca
78
, produzido pelo Núcleo Guel Arraes e dirigido por Mauro
Mendonça Filho, tem apresentação de Regina Casé. Mistura talk-show,
reportagens especiais, entrevistas com gente famosa e também com
anônimos.
Cena Aberta
79
, apresentado por Regina Casé e com direção
compartilhada Arraes/Furtado, é um projeto do trio que mostra, como o
nome diz, a feitura de um especial de televisão, exibindo as técnicas, os
recursos, a preparação dos atores e assim como revela um pouco da
expectativa do público.
4.2 Temática
No Brasil, face ao interesse pela telenovela, muitos trabalhos têm
vindo à luz e apontado para aspectos interessantes, valiosos e
oportunos, especialmente em termos comunicacionais. Pesquisas, teses
e livros sobre o assunto têm surgido com certa freqüência, como pode
ser constatado na bibliografia deste trabalho. Europa e Estados Unidos
têm se notabilizado por preocupações, inclusive em termos formais,
pela produção televisiva e não a ficcional. Portanto, de se
reconhecer o status da televisão, não como campo da sociologia, da
tecnologia e do marketing, mas como indiscutível fato cultural de nosso
tempo
80
. Não nos cabe aqui discutir a questão da televisão de qualidade
(quality television), mas cremos que vale a pena, utilizando-nos do
levantamento feito por Machado, sob esse (e outros) conceito,
78
Texto de Genetton Moraes Neto, Hamilton Vaz Pereira, Rosane Svartman, João Carrascosa,
Sérgio Goldemberg, Tiago Worcman e Patrícia Guimarães, redação final de Rafael
Dragaud, coordenação de Regina Casé e Alberto Reanult, direção de Estevão Ciavatta,
direção geral de Mauro Mendonça Filho, direção de produção de Eduardo Figueira,
produzido pelo Núcleo Guel Arraes.
79
Apresentado em 4 episódios durante 2003. Exibido de 14 de novembro de 1998 a 22 de
agosto de 2000, aos sábados, às 21h40.
80
MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério, p. 21.
44
anotarmos o lugar reservado para a produção nacional e especialmente
para os trabalhos de Guel Arraes. Sob a rubrica Trinta programas mais
importantes da história da televisão temos os brasileiros: Auto da
Compadecida (de Arraes, 1998), Retrospectiva do Ano (de Tas, 1988).
Hitler (de Olivetto e Zellmeister, 1987). Sob a rubrica Trabalhos
brasileiros mais destacados, inserida numa categorização mais ampla,
Outros trabalhos importantes a considerar, entre 41 anotados por
Machado, o nome de Arraes aparece 5 vezes, isso até o ano 2000:
Armação Ilimitada, Comédia da Vida Privada, Invenção do Brasil,
Programa Legal, TV Pirata.
Dentro do quadro ‘qualidade’, fica notória a diversidade
temática, acrescentando-se a lista completa de trabalhos, visualiza-se
uma amplitude de temas, de gêneros e formatos. Essa diversidade
aponta o desafio como mola propulsora de Arraes, sempre subvertendo,
regenerando e constituindo novos modos de ser da produção televisiva.
Face ao nosso interesse pela minissérie, restringimos, em
princípio, o levantamento temático a esse formato. Suspeitamos a
impossibilidade de nos atermos somente às minisséries, face à
proximidade temática, e até estrutural, existente entre elas, e os
programas que consideramos unitários, seguindo a nomenclatura
proposta por nossos suportes teóricos.
Logo de início, nota-se, nas quatro minisséries ou microssséries
(subdivisão da minissérie, por ora, categorizada pela extensão), ser o
homem e seu estar no mundo a grande preocupação. O homem e sua
luta pela sobrevivência, em situações difíceis, mais ou menos, mas
sempre complicadas, em termos materiais, emocionais, sociais. Quando
falamos do homem, vale explicitar, do homem brasileiro. O único que
não é nascido e culturalmente não é brasileiro, Diogo, de A Invenção do
Brasil, ‘acultura-se’. Quando as coisas se ajeitam no âmbito material, o
coração dispara e o afetivo vem à tona, mostrando outra faceta do
homem. A tão cantada sexualidade do povo permeia os momentos
importantes. De início, explicitamente ausente de Cidade dos Homens,
com a entrada na adolescência de suas personagens, ela surge. O
45
cotidiano, mesmo em A Invenção do Brasil, que poderia sugerir algo
espetacular, distante do dia-a-dia e próximo ao palácio do descobridor,
emerge quando as ações deslocam-se para a oca, a rede, o amor, a
sexualidade. Diogo aprende a comer com as mãos, mistura amora com
namora. Entretanto, nem tudo fica no nível do divertido, embora o
humor seja uma constante. A crítica social dispara seus petardos em
Cidade dos Homens pelo riso, pelo olhar matreiro, jovem, de uma beleza
triste-alegre de Laranjinha e Acerola.
Dona Flor e seus Dois Maridos tem como foco narrativo as agruras
afetivo-sexuais de uma mulher jovem e sensual que perde seu marido,
farrista e um tanto vadio, mas a quem ela amava de todo o coração e de
todo o corpo. A luta cotidiana que sempre fora por ela travada para
ganhar o pão de cada dia deixa de ser prioritária quando se casa com o
farmacêutico, esse sim, um marido nos moldes burgueses ditados pela
sociedade. A luta agora passa a ser outra: livrar-se do espírito do
desejável primeiro marido. A cidade de Salvador é a moldura mais do
que adequada para um retrato do Brasil moreno, alegre e sensual que
revela nas suas ruelas e becos uma outra realidade.
Auto da Compadecida faz emergir um Brasil arcaico, com sua
religiosidade mística e um tanto mágica. A pobreza extrema, a
exploração do miserável pelo pobre e dos dois pelo rico. A crítica dura à
Igreja
81
é feita de um modo risível. A ausência do Estado que, quando se
faz representar, o é através de uma tropa policial mal treinada, mal
armada, formada por indivíduos preocupados consigo mesmos. Do
mesmo modo, os religiosos presentes são venais e os governantes estão
afastados e/ou distantes. A simplicidade esperta e matreira do
sertanejo, sua resistência a todos os tipos de inclemência, da natureza e
da sociedade.renovam a vontade de viver, a esperança de vencer. A
solidariedade, a amizade. A e a crença que fazem do homem o doador
de seu único bem. Acima de tudo, a misericórdia emerge como dom
maior.
81
Para Carlos Newton Júnior a crítica é menos à Igreja e muito mais dirigida aos homens que
dentro dela agem de modo contrário aos preceitos do Cristo. NEWTON Jr., Carlos. ‘Auto
da Compadecida’: 50 anos. In: SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro:
Agir, 2004.
46
A Invenção do Brasil mais do que tematizar o humano, aponta
para o homem brasileiro, para o país. Diogo Alvarez (Caramuru) é um
degredado cuja culpa foi ter se apaixonado por uma cortesã que
trabalhava para Vasco Ataíde e ter se apossado do mapa que serviria de
guia para Pedro Álvares Cabral para nele pintar o retrato da formosa
dama. Ou seja, ingênuo e apaixonado, chega a Pindorama onde conhece
o amor ‘bárbaro’ nos braços de Paraguaçu e de sua irmã Moema. Num
interessante processo de estilização, a minissérie mostra o encontro
entre culturas diferentes e resgata o drama que pertence ao imaginário
popular em ritmo de comédia e sensualidade, numa deliciosa mistura
de realidade e ficção, no mais puro estilo televisivo.
Sobre Cidade dos Homens e seus meninos-homens:
É através do olhar dos protagonistas Acerola
(Douglas Silva) e Laranjinha (Darlan Cunha), que a trama
toma forma, crianças como tantas outras que povoam essa
narrativa, apesar da infância, o cotidiano do mundo vivido
por esses personagens é apresentado sem inocência e o
lúdico próprio de suas idades vez à necessidade de
sobrevivência. Acerola e Laranjinha, para se equilibrarem
na fina linha entre o ‘certo’ e o errado’, entre o ‘bem’ e o
‘mal’, vivem a todo instante transpondo essa linha
imaginária com criatividade e sabedoria adquirida pela
vivência em ‘cidade de homens’.
82
São crianças agindo como homens para sobreviverem no
cotidiano hostil e violento dos morros cariocas.
Uma visada, ainda que panorâmica, nos demais trabalhos
ficcionais de Guel Arraes, mostra preferência por expressar a realidade,
o cotidiano, a história, enfim, do país e de sua gente: Auto da
Compadecida, Auto da Boa Preguiça, O Alienista, O Coronel e o
Lobisomem, Lisbela e o Prisioneiro, Pastores da Noite. Os autores do
Núcleo Guel Arraes estão a todo instante dando provas de conhecerem o
ofício da escrita, o país e sua gente, elementos que consideramos
índices apropriados da preocupação temática com o país e sua
produção cultural.
82
MALCHER, Maria Ataíde; VIDAL, Marly CB. Cidade dos Homens e Turma do Gueto:
oportunidades de inovações a partir das brechas. In: Anais do VI Lusocom, promovido pela
Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação Sopcom e pela Universidade da
Beira Interior – UBI, Covilhã, Portugal, 21 a 24 de abril de 2004.
47
Os seriados e os programas de humor mostram também uma
vivência com a gente do povo, com suas lutas, sonhos, tristezas e suas
festas. Disso são exemplos os programas Brasil Legal e Muvuca,
híbridos evidentes nos quais humor, informação, ficção misturam-se,
embaralham-se e se apresentam como algo inovador e criativo, abrindo
novas possibilidades de categorização, de classificação, numa
comprovação do espírito desafiador do diretor e sua trupe.
4.3 Seleção da amostra
#"
83
Estamos deparando-nos com um autor cujo talento se distribui
generosamente em várias direções no espectro produtivo da ‘invenção’
televisiva. O uso da palavra ficção foi aqui evitado pelo fato de estarmos
frente a programas, no nosso entender, híbridos, nos quais se misturam
documentário, ficção, humor, talk-show, entrevistas e o que mais for
possível percebermos numa visão atenta. Não descartamos, entretanto,
o termo invenção, pensando aqui a inventividade que consideramos
própria do autor, inventividade no sentido de, ao misturar, embaralhar,
criar novas possibilidades, fazendo disso sua arte.
Nesse universo amplo e diverso, optamos, em princípio, pela
ficção e, num segundo momento, pela minissérie, englobando no
substantivo a microssérie, pois até agora o que notamos como
diferencial (e isso provavelmente vai, se não modificar, influenciar o
produto) é a questão da extensão, ou seja, a microssérie tem 3, 4
capítulos (Invenção do Brasil, Auto da Compadecida) contra 20 de Dona
Flor e seus Dois Maridos, A Casa das Sete Mulheres (53 capítulos) e JK
83
Ditado nordestino que, segundo Suassuna, retrata João Grilo. FELINTO, Marilene; LEITE
NETO, Alcindo. Entrevista com Suassuna. Almanaque Folha On Line, 16 junho 2000.
Disponível em: <http://almanaque.folha.uol.com.br/leituras_16jun00.htm>. Acesso em:
25 de janeiro de 2006.
48
(segundo informações preliminares, 50). Ao fazermos esse primeiro
recorte, deixamos de lado alguns ‘unitários’ na nomenclatura de
Pallottini, também ficcionais como O Coronel e o Lobisomem, Lisbela e o
Prisioneiro, O Alienista, O Mambembe e outros mais.
4.3.1 Recorte da amostra
Dona Flor e seus Dois Maridos, O Auto da Compadecida, Invenção
do Brasil, Cidade dos Homens são considerados sob a rubrica
minissérie/microsséries pela Rede Globo.
84
Optamos por trabalhar com
O Auto da Compadecida, considerando que a minissérie em questão
pode ser relacionada, melhor, pode inter-relacionar-se, travar um
diálogo bastante proveitoso com Bakhtin, nosso teórico de referência.
Fazemos notar, outrossim, que não descartaremos, no correr do
trabalho, referências internas, isto é, a outras minisséries e até mesmo
unitários de Guel Arraes, bem como externamente, a minisséries de
outras autorias, como apoio e/ou comprovação de nossas idéias.
4.3.2 O Auto da Compadecida
O Auto da Compadecida
85
é uma minissérie do Núcleo Guel
Arraes, que se origina do texto homônimo de Ariano Suassuna para o
teatro. São autores do texto televisivo, junto com Arraes, Adriana Falcão
e João Falcão. A direção geral é de Arraes, com direção de produção de
Eduardo Figueira.
84
PROJETO MEMÓRIA DAS ORGANIZAÇÕES GLOBO. Dicionário da TV Globo, 2003.
85
O Auto da Compadecida. Adaptação de Guel Arraes, Adriana Falcão, João Falcão da peça
homônima de Ariano Suassuna, direção de Guel Arraes, direção de produção de Eduardo
Figueira, produzida pelo Núcleo Guel Arraes. Exibida nos dias 5 a 8 de janeiro de 1999,
22h30, 4 capítulos.
49
Filmada em película, O Auto da Compadecida, além do elenco,
contou com uma equipe de 65 pessoas que trabalhou durante 37 dias
de filmagem em Cabaceiras, no sertão paraibano (40% de externas); nos
estúdios do Projac e da Cinédia (60% de internas), no Rio de Janeiro. O
Auto da Compadecida ganhou o Grande Prêmio da Crítica, em 1999,
concedido pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).
Reeditada em 2000, com uma hora a menos de duração, foi levada ao
cinema e, posteriormente, lançada em DVD.
Um elenco escolhido a dedo marcou de forma indelével a
minissérie. Mateus Nachtergale foi o grande destaque na pele de João
Grilo, este uma pessoa despida de qualidades físicas e intelectuais (sob
o ponto de vista da oficialidade, da formalidade), mas inteligente e dono
de uma esperteza que lhe permite sobreviver às maiores agruras da vida
no sertão, e que defende, com Selton Melo, soberbo no papel do ingênuo
e loroteiro Chicó, o plot central da minissérie, sustentando o humor, o
riso e a ironia que se constituem em colunas mestras do trabalho. Esse
mesmo escárnio se espraia por outros personagens, como o pároco
(Rogério Cardoso) e o bispo (Lima Duarte), Eurico e Dora (Diogo Vilela e
Denise Fraga), que nada ficam a dever, nos limites da
representatividade narrativa, aos dois personagens centrais da trama.
Marco Nanini defende com bravura seu triste e valente cangaceiro que
tem Enrique Diaz como seu comparsa. Paulo Goulart no papel de
Antônio Moraes faz o pai perfeito de Virginia Cavendish, a linda e terna
Rosinha. Aramis Trindade, na pele do Cabo Setenta, parece que sempre
usou farda e quépi. Bruno Garcia com seu corpão sarado é Vicentão, o
valentão interiorano. Maurício Gonçalves faz um Jesus doce e alegre,
Luiz Melo como o Diabo é mais, é diabólico, e Fernanda Montenegro, a
Compadecida, é doce e maternal e faz jus ao epíteto de melhor atriz
brasileira da atualidade. Enfim um ‘cast’ perfeito, tanto na telinha
quando na tela grande.
A caracterização do elenco foi de responsabilidade de Marlene
Moura. Nachtergale recebeu uma prótese que tornou seus dentes
irregulares, amarelos e ainda forçou um olhar vesgo que deformava sua
fisionomia, além de ter a pele escurecida. Nanini recebeu um olho de
50
vidro, látex no rosto, peruca e roupas que chegavam a pesar 8 quilos.
Os figurinos foram criados por Cao Albuquerque, numa mistura do
universal arcaico com regional nordestino. As roupas foram
processadas tingidas, lavadas, cozidas de modo a adquirirem um
aspecto envelhecido, desgastado e empoeirado. João Falcão e Carlinhos
Borges foram responsáveis pela produção musical, a cenografia ficou a
cargo de Fernando Schmidt, Cláudio Domingos e Érika Lovisi, com
direção de fotografia de Felix Monti. O tratamento visual aplicado
favoreceu a identificação com o Nordeste da década de 30 e esteve sob
responsabilidade de Capy Ramazzina. Os efeitos especiais estiveram sob
a batuta de James Rothman. Lia Renha foi responsável pela direção de
arte e as mentiras os causos estapafúrdios contadas por Chicó
receberam tratamento de recursos de animação. Mia Batsow foi a
produtora de arte, Ricardo Fuentes, o câmera. A direção de produção foi
de Eduardo Figueira, a coordenação de Gustavo Nielebock e a gerência
de Andréa Cômodo.
Levantamos a hipótese de um trabalho de apropriação, de
estilização sob a ótica bakhtiniana: procedimentos que permitem a um
discurso a adoção de variantes estilísticas, ou seja, a exploração, no
discurso, de outros estilos, como se representasse artisticamente o
estilo de outrem, modificando o tom: um estilo suassuaniano num tom
‘gueliano’. As imagens de O Auto da Compadecida não podem ser
entendidas como sendo do autor formal Guel Arraes e sim do Suassuna
da peça Auto da Compadecida, mas penetradas pelos acentos de Arraes
e muitos desses acentos ele extrai de outros textos de Suassuna,
enveredando assim pela interdiscursividade: incorporação de um texto
(ou de textos) por outro. Isto é, a segunda concepção bakhtiniana de
dialogia, ou seja, Discurso que se apropria de outro, tecido de múltiplas
vozes polemizando, que se completam ou respondem umas às outras.
Essas vozes encontram-se, internamente no texto, reproduzindo
diálogos
86
. Essa intertextualização não se limita ao texto suassuniano,
pois Arraes visita outros autores, outras culturas, outros tempos dos
86
VIDAL, Marly CB. Mil e um fios: a escrita de Marina Colasanti. São Paulo: Alexa Cultura,
2003, p. 26.
51
quais extrai o que lhe interessa e reorganiza os elementos de modo a
dar-lhes outras configurações.
Estruturada em quatro capítulos, duas horas e meia de duração,
O Auto da Compadecida acaba por ser categorizado como microssérie
em face de sua extensão em relação às tradicionais da televisão
brasileira: O Testamento da Cachorra, O Gato que Descome Dinheiro, A
Peleja de Chicó Contra os Dois Ferrabrás, O Dia em que João Grilo se
Encontrou com o Diabo.
Ambientado na cidade paraibana de Taperoá, durante a década
de trinta, O Auto da Compadecida narra as peripécias de João Grilo um
pobre diabo que luta insanamente pela sobrevivência, e de Chicó, um
especialíssimo contador de lorotas, ambos amigos inseparáveis. Em
busca do pão de cada dia, acabam na padaria da pequena cidade,
pertencente a seu Eurico, onde a par da exploração a que são
submetidos, descobrem as traições (das quais Chicó participa)
cometidas pela esposa do padeiro (Eurico), Dora. Morta a cachorrinha
dos patrões, em troca de uns tostões, João Grilo e Chicó se
comprometem a conseguir o enterro da bichinha em terreno sagrado e
com a bênção do pároco local, padre João. Na azáfama de conseguir
enterrar a cachorrinha, enganam o padre e o bispo que está em visita à
cidade. São metidos todos numa confusão danada, provocada pelas
maquinações de João Grilo, um esperto de primeira linha, que para o
padre conta uma história, para o bispo outra e ainda mete na encrenca
um fazendeiro ricaço, Antônio Moraes. Por fim, acabam se deparando,
num entrevero com o cangaceiro Severino que durante muito tempo,
travestido de mendigo cego, esteve sentado esmolando à porta de Igreja
e era por todos, inclusive os religiosos, desprezado.
Engendrando mais um plano para ganhar dinheiro, Grilo se
aproveita da tristeza que se apoderou de Dora após a morte da cachorra
e vende para ela um gato que descome dinheiro, proeza conseguida
graças a Chicó que é obrigado por Grilo a enfiar moedas no rabo do
pobre gato. Descoberta a safadeza pelos patrões, eles correm atrás dos
empregados e ao chegarem ao quarto ocupado pelos dois na padaria,
52
João Grilo já inventou outro plano e está delirando com peste bubônica.
O casal sai apavorado e os dois malasartes fogem com o dinheiro.
Severino invade a cidade pela primeira vez, Grilo finge-se de morto e ao
ressuscitar engana Severino, que se retira da vila. João é então
aclamado herói, encerrando o segundo capítulo.
Desempregado, João procura o Major Antônio Moraes e passa a
trabalhar para ele. Sua primeira tarefa é buscar a filha do Major
Moraes, Rosinha, que chega à vila, vinda de Recife. No cumprimento de
sua tarefa, Grilo, com Rosinha sob seus cuidados, encontra-se com
Chicó e desse encontro, nasce, à primeira vista, o amor entre este e
Rosinha. No terceiro capítulo desenrolam-se todas as maquinações de
Grilo para casar Rosinha e Chicó. João Grilo engana o Major dizendo
que Chicó é fazendeiro e advogado para que Antônio Moraes permita o
casamento, assim como convence o Major a emprestar dinheiro para
Chicó pagar a reforma da igreja, preparando-a para a cerimônia.
Vicentão e o Cabo Setenta, entram na disputa pelo amor de Rosinha, o
que permite a Grilo armar mais uma das suas confusões que acaba
num hilário duelo do qual Chicó sai vencedor, desbaratando os outros
pretendentes e levando a fama de valentão, apesar de toda a sua
covardia.
O quarto e último capítulo mostra João Grilo armando um jeito de
roubar o dinheiro da cidade. Seu plano era fingir que matava Chicó com
uma facada que na verdade, atingiria a bexiga de galinha. Explica para
Chicó como a coisa deve funcionar, retira-se da cidade enquanto Chicó
passeia pela vila arrostando valentia. Nesse meio-tempo, o verdadeiro
cangaceiro invade a cidade, rouba o bispo, o padre, o padeiro e a
mulher. João Grilo chega fantasiado de cangaceiro e acaba junto com
Chicó empurrado para dentro da igreja, onde estão presos os outros.
Bispo, padre e o casal de padeiros são mortos pelo capanga de Severino.
Na hora de matar Chicó e Grilo, este inventa que tem uma gaita mágica
que tocada ressuscitaria um morto. Fazem uma demonstração em que
Grilo mata Chicó atingido na tal bexiga que ressuscita ao toque da
gaita e ainda diz ter visto o Padre Cícero enquanto estava morto.
Severino pede ao capanga que atire nele para que possa ver seu
53
padrinho Padre Cícero. É morto o cangaceiro. A polícia invade a cidade
e o capanga atira em Grilo. Chicó sobrevive à chacina. Levados a
julgamento no Tribunal das Almas, presidido por um Jesus negro
(Maurício Gonçalves) e tendo o Diabo (Luiz Melo) por acusador, acabam
sendo auxiliados por Nossa Senhora (Fernanda Montenegro) que os
livra da condenação ao inferno e faz reviver a João Grilo. De volta à vila
de Taperoá, este quase mata de susto seu amigo Chicó, que guardara
consigo o dinheiro que fora obtido com as falcatruas cometidas pela
dupla. A surpresa está em que João Grilo, feliz da vida por julgar-se
rico, descobre que o dinheiro deve ser doado à Igreja em cumprimento a
uma promessa que Chicó fizera para ter o amigo de volta. Chicó,
apaixonado por Rosinha, conta com o dinheiro da porquinha um cofre
que fora deixado pela avó da moça que seria dado a ela, quando se
casasse. Casados, descobrem que o dinheiro era moeda antiga e não
tinha mais valor de troca. Os três ganham a estrada, eles miseráveis
como sempre, Rosinha estreando sua pobreza.
O humor, a ironia, as redundâncias existentes no texto-fonte são
mantidas, a agilidade dos diálogos permanece. O espaço e o tempo
recebem tratamento diferenciado do texto-base. O espaço se expande,
assim como o tempo. A narrativa se expande em conseqüência da
entrada de novos personagens, mas os que morrem em Suassuna,
morrem em Arraes. A essência temática permanece e o fazer artístico
concretiza essas permanências. O perdão é concedido aos mortos pela
interferência da Compadecida, eles terão o purgatório, mas João
Grilo é abençoado com a ‘ressurreição’. Chicó, na terra e bem vivo,
saudoso do único amigo que tivera, promete o dinheiro que obtivera à
Virgem caso o companheiro voltasse e ambos cumprem a promessa. A
cena final recupera o Cristo negro do julgamento, agora como pedinte
do único bem que o trio possui: um pedaço de bolo, sobra da festa do
casamento de Chicó e Rosinha. No campo afetivo, temos um happy end:
teledramatúrgico, sem dúvida.
A filmagem externa no sertão paraibano, as tomadas, os ângulos.
As cores, o tratamento visual que se materializa em sertão esturricado e
queimado pelo sol, castanho, como diria Suassuna, aos olhos do
54
espectador. Música, figurino, cenários, especialmente os do julgamento,
de características que chamamos arcaicas, em tons medievais,
recapturando até mesmo aspectos da arte pictórica gótica, mas
possíveis pela tecnologia do presente. Todos esses elementos técnicos
que são linguagem fazem parte de nossa preocupação em termos de
análise, na tentativa de percebermos o quanto houve de criatividade, de
inovação, de um fazer outro que não mais o texto-fonte.
56
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87
Ficção é palavra oriunda do latim fictionen, cuja raiz é o verbo
fingo/fingere (fingir) que inicialmente tinha a idéia, o significado de
tocar com a mão, modelar na argila
88
. Para alguns estudiosos a palavra
ficção se relaciona com o verbo fazer que por sua vez se liga à palavra
poeta, que, no grego poiesis significa fazer. Poeta, portanto, é aquele
que faz, cria, modela.
No texto sagrado dos cristãos, a Bíblia, a palavra usada para dizer
que Deus criou o homem a partir do barro foi Deus, portanto, o
primeiro oleiro é o verbo fingo/fingere. Ora, o homem o é
imaginação, nem o pote criado pelo oleiro que se presta a armazenar
água, óleo ou outro qualquer material é imaginação. Dizer da ficção ser
criação da imaginação, da fantasia, coisa sem existência real, apenas
imaginária é um ato simplório, facilitário mesmo do problema que é a
questão ficcional. Modelar o barro é dar forma a alguma coisa, é criar
uma realidade. Assim, modelar a linguagem é criar uma realidade. Uma
realidade outra, construção voluntária da imaginação, criação
imaginária, resultante de uma interpretação subjetiva de um fato, de
um acontecimento, de um fenômeno. Criação de linguagem(s) em que o
autor faz uma leitura particular, original da realidade e de caráter
87
Conversando com Ariano. Diário Oficial de Pernambuco, Recife, agosto 1990, ano IV, n. 11, p.
5. Suplemento Cultural. Apud NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassuna: o cabreiro
tresmalhado. São Paulo: Palas Athenas, 2000.
88
HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 1347.
57
imaginativo, diferente, único. Construção a partir de elementos
imaginários calcados no real e/ou de elementos da realidade inseridos
em contextos imaginários.
Na sociedade letrada, a ficção se acomoda em romances, contos,
novelas, contos de fadas, mitos, lendas. Esquece-se que a ficção, como
criação do espírito humano, se apresenta nas diversas e múltiplas
linguagens que circulam pelo universo cultural, pois também elas são
criações, são fazeres do homem. Não à toa, na França do século XVIII,
retoma-se a discussão aristotélica sobre a narrativa, agora teatral.
Diderot e D’Alembert defendem o teatro como formador de almas e
Rousseau o como deformador, nocivo, evidenciando sua ótica
platônica da arte. Diderot retoma Aristóteles, na medida em que a ficção
teria a capacidade de revelar o ilusório do mundo, alcançaria o
universal pela mediação do particular, permitindo assim o
desvendamento da aparência e levando ao conhecimento das essências.
O teatro, embora fundado na palavra linguagem verbal não é
unicamente verbal, ao contrário; no teatro tem-se a imbricação de
música, iluminação, movimento, mais a presença da platéia, o espaço, o
desmembramento em apresentações que fazem dele uma linguagem
outra. O século XIX traz a fotografia, o cinema, novas linguagens, novas
formas de narrativas ficcionais. O século XX, num contexto de extremo
progresso tecnológico, subverte as linguagens com novas formas,
hibridações e, principalmente, com a vertiginosa velocidade em relação
às mudanças. Em 1923, um tubo de raios catódicos veio à luz quando
células fotoelétricas foram ativadas com elétrons em movimento: fez-se
a televisão. (...) um presente colorido e generoso, e nós nos alegramos
com ela
89
e com suas criações: Perdidos no espaço, Guerra nas estrelas,
Rin Tin Tin, O Zorro, I Love Lucy e, é claro, com a descida do homem na
lua, bem como com o terrível e inenarrável em palavras que foi a Guerra
do Vietnã. Vieram as imagens da renúncia de Jânio Quadros, o exército
nas ruas em 1964, em 1968, entretecidas às do Clube do Papai Noel,
Cirquinho do Arrelia, Família Trapo, misturando o medo com o riso
89
HOINEFF, Nelson. A nova televisão: desmassificação e o impasse das grandes redes. Rio de
Janeiro: Relume/Dubará, 2001, p. 9.
58
gostoso da infância. E foi muito bom ver tudo isso. Da televisão genérica
praticada desde os anos 40 pelas grandes redes por broadcast (...) que
tenta falar de tudo para todos e acaba não falando nada importante para
ninguém, a partir de 1962, pela ação dos satélites de transmissão,
universalização do cabo, chegando à revolução digital, está em
construção uma televisão que em nada se parecerá com a que
conhecemos até agora
90
. O século XXI reserva novas mudanças e,
conseqüentemente novas formas de narrar a ficção, novas linguagens.
A linguagem da televisão, e por isso também a da ficção televisiva,
se caracteriza por um intenso hibridismo. Para Balogh, o que
costumamos chamar de “linguagem de TV” é uma mescla originária da
literatura, das artes plásticas, do rádio, do folhetim, do cinema...
assimilados de forma assimétrica pela ‘linguagem de TV’’
91
. As inovações
tecnológicas se multiplicam, ampliando possibilidades e alcance,
modificando e, muitas vezes, determinando novos modos de recepção e
de interação espectador/produto. Não se pode deixar de pensar acerca
das interferências de linguagem que perpassam os produtos televisivos
ficcionais: o cinema com seus modos sonoros e imagéticos, os
enquadramentos herdados das artes plásticas, os ganchos que remetem
ao folhetim radiofônico e também ao literário. Motter
92
, ao discutir a
telenovela e suas imbricações com o cotidiano, com a realidade sugere
que o berço das telenovelas brasileiras desenhou-se nos folhetins
dominicais dos quais, Machado de Assis foi um autor. A pesquisadora
aproxima as idéias de folhetim com a de folhetim/crônica e desta com a
telenovela em sua acepção de crônica do cotidiano. Nesse contexto, o
fazer do roteirista moderno seria equivalente ao fazer do folhetinista de
final do século XIX. No Brasil, país que se caracteriza por uma cultura
televisiva exacerbada
93
, a televisão se fez com autores, técnicos e
administradores oriundos do rádio. A própria telenovela, que se tem
90
HOINEFF, Nelson. A nova televisão: desmassificação e o impasse das grandes redes, p. 16-
18.
91
BALOGH, Anna Maria. O discurso ficcional na TV: sedução e sonhos em doses
homeopáticas, p. 24.
92
MOTTER, Maria Lourdes. Mecanismos de renovação do gênero telenovela: empréstimos e
doações. In: LOPES, Maria Immacolata V. de. (Org.) Telenovela, internacionalização e
interculturalidade, p. 254.
93
HOINEFF, Nelson. A nova televisão: desmassificação e o impasse das grandes redes, p. 18.
59
firmado como um produto de qualidade internacional dentro do gênero,
tem sua ancestralidade fincada no rádio. A primeira telenovela
brasileira de sucesso nasce de sua congênere radiofônica: O Direito de
Nascer
94
êxito nos anos quarenta. A fragmentação própria do veículo
(pausas e interrupções para chamadas noticiosas, comerciais), o
ambiente de recepção – a casa –, que permite uma série de ações
simultâneas ao ato de assistir, o zapping são interferências que
provocam mudanças na linguagem, reafirmando seu hibridismo.
Segundo Hoineff
95
, mudanças ainda mais radicais estão por vir, as
quais afetarão a linguagem da TV: a televisão não organizará mais o
tempo do público e sim será organizada por ele: o espectador dirá a ela
o que quer ver, no momento em que quiser. Ou seja, a interatividade
espectador/televisão se radicalizará.
5.1 A questão do gênero televisivo
Nesse ambiente em ebulição, múltiplo e complexo, como se
organiza, em termos de gênero, aquilo que é o cerne da televisão: seus
programas? No caso em pauta, a ficção televisiva? Como se apresentam,
no momento, os diferentes formatos ficcionais televisivos?
Objeto de polêmica, desde os antigos gregos, a classificação das
obras por gêneros ainda é um parâmetro lógico e organizador para o
trabalho. O estabelecimento, pela tradição literária, das tipologias
genéricas constitui-se numa primeira referência para as demais
produções culturais e artísticas. O vocábulo gênero
96
refere-se às
categorias da lírica, da narrativa, do drama e às espécies: tragédias,
comédias, novelas, romances, contos. Entretanto, é preciso notar a
94
A telenovela O Direito de Nascer foi transmitida entre 1964/1965 e uma das primeiras a
serem apresentadas diariamente. O Direito de Nascer foi baseada na homônima radiofônica
da autoria de Felix Caignet. Apud ARAÚJO, Joel Zito. A negação do Brasil: o negro na
telenovela brasileira. São Paulo: Senac, 2000, p. 84.
95
HOINEFF, Nelson. A nova televisão: desmassificação e o impasse das grandes redes, p. 18.
96
AGUIAR e SILVA, Victor Manuel de. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina, 1976, p. 227.
60
impossibilidade de uma simples transferência ou transposição para
outros meios de produção, especialmente a TV. A crítica de produções
imagéticas eletrônicas, quando comparada à literária, mostra-se em
seus passos iniciais. Segundo Balogh,
97
os críticos de cinema e de TV
tendem a usar classificações consagradas pelo uso: drama, faroeste,
aventura, ficção científica etc. No caso da TV, acrescentam-se rubricas
próprias do veículo: soap opera, sitcoms. No Brasil, telenovela,
minisséries e até microsséries. Para Arlindo Machado, podemos pensar
no esgotamento ou inadequação de nossos conceitos de gênero para
pensarmos as produções contemporâneas. Por isso é dele a sugestão da
adoção de parâmetros mais abertos e, para tal, busca as idéias de
Mikhail Bakhtin concernentes às questões de gênero. Embora Bakhtin
tenha se restringido a pensar o gênero em relação à linguagem verbal
em suas várias manifestações orais e escritas, entendemos, a
necessidade de recorrer a um conceito mais flexível ou melhor adaptável
a um mundo em expansão e em rápida mutação. De todas as teorias do
gênero em circulação, a de Mikhail Bakhtin nos parece a mais aberta e a
mais adequada às obras de nosso tempo.
98
5.2 A minissérie
Ao considerarmos o homem como sendo detentor do poder de
elocução, e esta como um elo na cadeia da comunicação, consideramos
também como premissa a interlocução manifesta através da
enunciação: conjunto de signos circulando entre indivíduos socialmente
organizados. Estamos falando de linguagem que pode ser verbal e não-
verbal, portanto podemos pensar em enunciados híbridos, nos quais
linguagens várias encontram-se em relação.
97
BALOGH, Anna Maria. O discurso ficcional na TV: sedução e sonhos em doses
homeopáticas, p. 90.
98
MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério, p. 68.
61
Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual,
mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente
estáveis de enunciados, sendo isso que chamamos de gêneros do
discurso.
99
Múltiplas e variadas são as esferas de atividades humanas,
assim como múltiplos e variados são os gêneros discursivos, ou seja, os
modos de utilização da linguagem sem que implique comprometimento
de sua unidade. A variedade virtual da atividade humana comporta
uma larga variedade de discursos, pois cada uma das esferas comporta
um número inesgotável e cada vez mais desenvolvido de gêneros,
diferenciando-se e ampliando-se à medida que a sociedade se torna
mais complexa.
Enunciados se estabelecem e se estabilizam mediante a
organização de idéias, meios expressivos, recursos próprios da
linguagem, enquanto instituição discursiva, social e historicamente
codificada e objeto material, no caso em pauta, a materialidade da
imbricação das diferentes linguagens de um produto televisivo ao qual
se atribui o nome de minissérie. Estamos diante de um uso da
linguagem da linguagem televisiva numa esfera diferenciada: gênero
dramaturgia de televisão. Entre nós, os estudos sistematizados sobre o
tema surgem com a constituição, em 1992, de um núcleo de estudos na
ECA/USP
100
que tem desde então se dedicado a estudar, em seus vários
aspectos, a dramaturgia da teleficção
101
. Os pioneiros estudiosos da
dramaturgia televisiva nos fornecem os pressupostos iniciais: um
gênero dramatúrgico ficcional, uma história, uma fábula a ser contada,
com recursos próprios do veículo televisão que se desdobra em formatos
variados. O que está em jogo são as características formais, a
linguagem inerente: ficção televisiva, com características de ficção e de
TV, com a linguagem própria desse veículo...
102
Embora estejamos sugerindo as possibilidades de novas
abordagens sobre o objeto minissérie, não pretendemos, em nenhum
momento ou circunstância, negar o que está posto por estudiosos do
99
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 279.
100
NPTN – Núcleo de Pesquisa de Telenovela, CCA/ECA/USP.
101
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão, p. 20.
102
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão, p. 25.
62
tema. Ao contrário, nossa proposta é partir do dado e tentar abrir
novos canais de questionamentos. Tentar perceber as características
que, dentro de um conjunto discursivo, transformam-se, inovam-se,
tornam-se mutantes. Buscar entender como essa (des)ordenação ocorre,
provocando mudanças a cada novo objeto produzido, constituindo-se
em um outro.
Como qualquer programa televisivo ficcional, o que temos na
minissérie é
(…) uma história mais ou menos longa, mais ou menos
fracionada, inventada por um ou mais autores,
representada por atores, que se transmite com linguagem
e recursos de TV, para contar uma fábula, um enredo,
como em outros tempos se fazia com o teatro e depois
se passou a fazer também em cinema.
103
Embora a TV seja o exemplo mais citado e corriqueiro para
explicar nosso tempo como sendo o da primazia da imagem, a televisão
ainda se apóia no discurso oral e faz da palavra sua matéria-prima. Os
últimos trabalhos ficcionais apresentados fizeram uso mais
sofisticado de recursos imagéticos, inclusive de recursos gráficos
computadorizados. A Casa das Sete Mulheres
104
é exemplo claro de uso
de planos longos, típicos do cinema. Os Maias
105
, coincidentemente da
mesma autora, Maria Adelaide Amaral, explora, nas cenas iniciais, uma
ausência de quase 4 minutos de diálogo e imprime o tom melodramático
e realista que pretende para a minissérie, através de sofisticado
trabalho de câmera e música. Hélio Guimarães
106
, escrevendo sobre a
adaptação de Os Maias, chama a atenção para o uso da vinheta de
abertura,
(...) em que imagens de flores desabrochando em
movimento acelerado ganham a textura da tinta sobre a
103
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão, p. 23.
104
MOTTER, Maria Lourdes. Argumentos para o estudo da ficção: A Casa das Sete
Mulheres’: ficção, realidade e história. Revista Eco s, v. VII, n. 1, janeiro-julho 2004, p.
85-99. A minissérie A Casa das Sete Mulheres foi levada ao ar no segundo semestre de 2003.
105
Os Maias, minissérie escrita por Maria Adelaide Amaral com colaboração de João Emanuel
Carneiro e Vincente Villari, a partir do romance homônimo de Eça de Queiroz, produção
do Núcleo Luiz Fernando Carvalho. Exibida entre 09 de janeiro e 24 de março de 2001; 44
capítulos.
106
GUIMARÃES, Hélio. O romance do século XIX na televisão: observações sobre a adaptação
de Os Maias. In: PELLEGRINI, Tânia et al. (Orgs.). Literatura, cinema e televisão. o Paulo:
Senac, Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 101.
63
tela, na qual se escrevem, com caneta tinteiro dourada e
caligrafia antiga, as letras que vão compor Os Maias. Ao
completar o nome, as letras têm o mesmo destino das
imagens: a imobilidade.
A vinheta culmina na imagem do brasão da família, onde também
aparecem flores e letras reunidas no nome da família. Nota-se que,
mesmo explorando recursos visuais, a palavra tem um papel
importante, fundamental, que para o autor citado é uma postura
recorrente nas adaptações: a fetichização da escrita. Nessa linha de
pensamento, podemos supor que a televisão, mesmo quando se utiliza
de recursos gráficos que permitem a sofisticação da imagem, dá à
palavra certa primazia, tendo nela o elemento que detém o maior poder
de organização discursiva. Para Guimarães há, entretanto, uma maior
complexidade no trabalho em questão, pois a adaptação do romance
integra no processo de narração televisiva imagem, música e palavra.
Em Os Maias, o recurso à reprodução de trechos do texto de base é feito
de forma econômica, de modo a permitir que a narração se faça pelas
personagens em cena, pela movimentação da câmera, efeitos sonoros,
cenários, figurinos etc.
Dessa constatação não está longe a fala de Pallottini
107
de que a
TV se utilizou da experiência do cinema, do teatro, acrescentou os
recursos do rádio, da narrativa pura (gênero épico oral ou escrito). Tudo
isso, mais a tecnologia da imagem e transmissão posta à disposição dos
realizadores, possibilitaram a emergência de um sofisticado produto que
tem marcado a televisão brasileira: a ficção televisiva seriada, ancorada
nas formas dialogais e que apresenta desdobramentos com aspectos ora
coincidentes, ora antagônicos. Desdobramentos do gênero ficcional
televisivo se apresentam no Brasil como sendo telenovela, minissérie (e
microssérie), unitário e seriado.
Como se observa, num único recorte já é possível perceber a
variedade em que se desdobra o gênero visto como modo de trabalhar a
matéria televisual
108
. Por isso a adoção de uma teoria, a bakhtiniana,
que permite pensar os gêneros como sendo infindáveis, mutáveis,
107
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão.
108
MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério, p. 70.
64
predominantes em épocas, territórios e situações diferenciadas,
passíveis de desmembramentos em subgêneros. Categorias
heterogêneas, os gêneros estão em incessantes imbricações, trocas,
apropriações, paralelismos e oposições, em constante intercâmbio. Daí
a necessidade de se observar o objeto a ser analisado, contextualizando-
o e pensando-o em termos de produto e produção.
A minissérie é, na visão de Pallottini, uma espécie de telenovela
curta, totalmente escrita, via de regra, quando começam as gravações
109
,
uma narrativa geralmente constituída de 5 a 20 capítulos, número
arbitrário, mas que não ultrapassa em muito, pois não deve aproximar-
se de uma telenovela que tem, em média, 160 capítulos
110
. Estamos,
portanto, no reino da serialidade apresentação descontínua e
fragmentada do sintagma televisual
111
. A serialidade caracteriza-se pela
estruturação do enredo em forma de capítulos ou episódios,
subdivididos em blocos menores e separados por breaks para entrada
de comerciais ou chamadas para programas. Diferente do que se
convencionou chamar série ou seriado televisivo, porque, exibida
durante um certo período, diariamente, a minissérie desenvolve uma
trama básica, desenrolada ao longo dos capítulos, à qual se
acrescentam incidentes menores. Procura conter-se num plot, num
conflito básico, portanto, diferentemente da telenovela, que apresenta
diversidade de linhas de ação que vão se definindo ao longo da exibição.
A minissérie não dispensa o recurso do gancho de tensão que visa
manter o espectador interessado. Pode acontecer de os blocos iniciais
contextualizarem os acontecimentos anteriores para localizar a
audiência, fazendo os esquecidos lembrarem e os que perderam
capítulos encontrarem os fios narrativos. Segundo Pallottini
112
, a
minissérie tem caráter mais aristotélico: as personagens se mantêm
íntegras em termos de caráter, perseguem seus propósitos iniciais, as
109
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão, p. 28.
110
Ao falarmos em número arbitrário, é importante notar a existência de minissérie com 60
capítulos – Aquarela do Brasil – e telenovela, como o Beijo do Vampiro, alcançando a marca de
215 capítulos. É relativamente comum, minisséries apresentando 40/50 capítulos. A casa
das sete mulheres tem 53, JK tem 54.
111
MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério, p. 83.
112
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão, p. 38.
65
conseqüências finais são produtos das ações praticadas ao longo da
trama. Exige menos fidelidade, no sentido da presença do espectador
por períodos longos, face ao número menor de capítulos, menos tempo
de exibição, em relação às telenovelas.
Em termos de recepção, supõe-se para a minissérie um blico
mais sofisticado, em parte devido ao horário de exibição normalmente
após as 22 horas –, contando com uma audiência mais exigente pois
detentora de um leque maior de opções de lazer. Como produto, por ser
fechado, é menos sujeito à tirania da audiência. Possibilita ao autor, e
também ao produtor, um melhor acabamento, em virtude do menor
número de capítulos e tempo maior de realização. Dias Gomes
113
declarava, nos idos de 1995, que reescrevera a minissérie de sua
autoria, Decadência
114
, cerca de quatro vezes. Tivera tempo, portanto,
para burilar o texto, gastando nele seis meses de trabalho, período que
costumava despender para escrever uma telenovela com um número
bem maior de capítulos, situações de escrita e exibição diferentes,
caracterizadas pela tensão do tempo e da audiência.
Maria Adelaide Amaral
115
, discorrendo sobre o processo de criação
da minissérie A Casa das Sete Mulheres, afirma que leu cerca de 30
obras para, fazendo-as dialogar com o romance do qual se apropria
para a criação da obra televisiva, chegar ao roteiro final, o que seria
impossível se tivesse trabalhado sobre a obra que dá origem à
minissérie. Além, é claro, de fazer uma leitura atenta para realizar a
contextualização sócio-histórica adequada.
Da mesma forma que o autor tem tempo e possibilidades para
uma escrita diferenciada, a produção conta com recursos, os mais
sofisticados, (e isso não é de hoje na televisão brasileira) para a
realização do produto. notamos anteriormente, a questão da
113
Rádio & TV no Brasil, Diagnósticos e Perspectivas. Relatório da Comissão Especial de Análise
de Programação de Rádio e TV, 1995, p. 63. Pedro Simon, relator.
114
Decadência escrita por Dias Gomes, direção de Roberto Farias e Ignácio Coqueiro, direção
artística de Carlos Manga, direção de produção de Guilherme Bokel. Exibida de 05 a 22 de
setembro de 1995; 12 capítulos.
115
Conferência proferida no Seminário: História faz bem para a memória. Ficção e História: o
papel da ficção na recuperação da memória histórica brasileira as relações entre criação
ficcional e historiografia, realizado pelo NPTN na ECA – USP, 31 de março de 2003.
66
exploração dos recursos televisivos (imagem, som, palavras) em Os
Maias, da mesma autora. tempos, nas comemorações dos vinte anos
da Globo, a emissora nos brindou com O Tempo e o Vento
116
, Grande
Sertão Veredas
117
e Tenda dos Milagres
118
, primorosos trabalhos, cuja
feitura surpreende pela qualidade televisiva, pelo uso criativo do
aparato tecnológico. Balogh nota a minissérie como sendo festiva, usada
estrategicamente como marcadora de datas importantes
119
.
No início de 2004, a TV Globo coloca no ar Um Coração
120
, uma
homenagem a São Paulo em seus 450 anos, trabalho caracterizado por
uma produção sofisticada, cuidada e que usa de forma primorosa os
recursos tecnológicos da televisão contemporânea, ao mesmo tempo em
que indicia uma cuidadosa pesquisa antecedendo a criação textual.
Sem perder de vista a feição ficcional da minissérie, a autora trabalha
de modo osmótico invenção/realidade. Empresta à realidade histórica
da metrópole um brilho possível através da intromissão inteligente e
consciente da invenção folhetinesca, sem a vulgarização, a facilitação.
Para espectadores atentos, ficam claros os momentos de diálogo entre
as obras ficcionais do período, as informações formalizadas da história e
a imprensa contemporânea. que se convir que, mesmo trabalhando
em parceria, contando com uma equipe de assessores-pesquisadores, o
tempo despendido na escrita criativa de trabalho de tal porte é
demasiado grande. A complexidade do assunto, a multiplicidade de
fatos a exigir recortes precisos, acompanhamento contínuo que se
permitem num produto situado num gênero e espaço de produção como
a minissérie. Note-se, além disso, a proximidade da época retratada.
116
O Tempo e o Vento escrita por Doc Comparato, baseada na primeira parte da trilogia
homônima de Érico Veríssimo, O Continente. Direção de Paulo José, Denise Saraceni e
Walter Campos, produção executiva de Leonardo Petrelli. Exibida de 22 de abril a 31 de
maio de 1985; 25 capítulos.
117
Grande Sertão Veredas escrita por Walter George Durst baseada na obra homônima de João
Guimarães Rosa. Roteiro final e direção de Walter Avancini. Exibida de 18 de novembro a
20 de dezembro de 1985; 25 capítulos.
118
Tenda dos Milagres escrita por Agnaldo Silva e Regina Braga, baseada na obra homônima de
Jorge Amado, direção de Paulo Afonso Grisoli. Exibida de 29 de julho a 06 de setembro de
1985; 30 capítulos.
119
BALOGH, Anna Maria. O discurso ficcional na TV: sedução e sonhos em doses
homeopáticas, p. 124.
120
Um Coração, obra de Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira, com direção de Carlos
Manga e Ulisses Cruz. Rede Globo de Televisão, exibida em janeiro de 2004.
67
Muitos dos espectadores conheceram as personagens ou caracteres
presentes na trama. Alguns, na casa dos sessenta, encontraram-se,
na famosa Rua 7 de Abril, com Assis Chateaubriand, milhares foram
leitores dos Diários, centenas bisbilhotaram nas livrarias do centro
paulistano, onde se reuniam artistas, escritores, professores e estão
hoje, à frente da TV, com olhos, talvez demasiados críticos e exigentes
da realidade documental.
A minissérie envereda para um movimento dominado pela
telenovela - a incorporação da realidade, do cotidiano. De um modo
diferente daquele assinalado por Motter
121
em relação à telenovela que,
por ser uma produção longa e aberta, acaba sofrendo ingerências dos
fatos contemporâneos e também influenciando a pauta das
comunicações, a minissérie, especialmente a histórica, incorpora um
cotidiano vivido, passado. O velho barão, arrogante, autoritário e
preconceituoso, seus valores, quer morais, quer materiais
desaparecerem pelo ralo da crise instaurada e pela má gerência de seus
negócios e família, não enxergando outra saída que o suicídio
“honroso”, tão em voga na época retratada, de conhecimento e
experiência de muitas famílias paulistas empobrecidas. Yolanda
Penteado, a personagem central, vivida na tela por Ana Paula Arósio, a
aristocrata rica e bem posta na sociedade paulista, na vida real tem de
assumir a administração da fazenda Emphyreo, propriedade familiar,
apontando as transformações radicais que a metrópole vai
experimentar, a partir dos anos quarenta, especialmente, dos
cinqüenta. Ao mesmo tempo, assume as rédeas de sua vida afetiva.
Casa-se e separa-se mais de uma vez, indiciando as mudanças que
ocorrerão no campo das relações familiares e sociais.
Transformada em personagem de ficção, Yolanda Penteado
resgata a mulher bandeirante que ficava na fazenda nos campos de
Piratininga, defendendo família e propriedade, enquanto o marido ia em
busca de pedras preciosas e índios a serem apresados, mas aponta para
a mulher do século XXI que, segundo notícias da imprensa, detém hoje
um maior tempo de freqüência escolar e está demandando e garantindo
121
MOTTER, Maria Lourdes. Ficção e realidade: a construção do cotidiano na telenovela, p. 35.
68
sua formação cultural e profissional, interferindo na sociedade e na
economia. Yolanda, na vida real, junto com o segundo marido Ciccillo
Matarazo, foi fundadora da Bienal de São Paulo, hoje, a terceira mostra
desse tipo em importância, perdendo para a de Veneza (Itália) e a de
Kassel (Alemanha).
A minissérie em questão tem característica “de época”, ou ainda,
“histórica”, origina-se em fatos documentados, exibe traços de intenso
cuidado com a reconstituição histórica, de uma época e de seus ícones:
intelectuais, artistas, capitalistas, jornalistas que fizeram a cidade da
primeira metade do século XX. Ao lado de tomadas internas,
construídas em estúdio, a equipe se desloca para cidades interioranas,
até em território mineiro, que ainda resguardam aspectos de época.
As minisséries têm encontrado na cobertura da história um
caminho salutar que tem proporcionado trabalhos de fôlego. Ao lado da
trama romântica que lhe é peculiar, as minisséries terminam por ser
painéis de uma época, pinturas murais em movimento, na voz de
Balogh
122
. Exemplos caros aos estudiosos são Anos Rebeldes
123
, Anos
Dourados
124
, Agosto
125
. Anos Rebeldes, minissérie estudada por Lobo
126
,
recupera os anos traumáticos de nossa história recente a partir dos
sessenta. Agosto focaliza o suicídio de Getúlio para mostrar o Brasil do
início da década de 50. Um Coração é produto de um intenso
trabalho de pesquisa histórica e jornalística ao qual se junta o livro
autobiográfico de Yolanda Penteado, Tudo em cor-de-rosa, ao passo que,
Anos Rebeldes e Anos Dourados foram escritas como roteiro de
minisséries originalmente. Agosto é considerada adaptação do livro
homônimo de Rubem Fonseca.
122
BALOGH, Anna Maria. O discurso ficcional na TV: sedução e sonhos em doses
homeopáticas, p. 134.
123
Anos Rebeldes escrita por Gilberto Braga com a colaboração de Sergio Marques, direção de
Dennis Carvalho, Silvio Tendler e Ivan Zettel. Servem de referência ao autor 1968, o Ano
que não Terminou de Zuenir Ventura e Os Carbonários, de Alfredo Sirkis. Exibida de 14 de
julho a 14 de agosto de 1992; 20 capítulos.
124
Anos Dourados escrita por Gilberto Braga, direção de Roberto Talma. Exibida de 05 a 30 de
maio de 1986, 20 capítulos.
125
Agosto escrita por Jorge Furtado e Giba de Assis a partir do livro homônimo de Rubem
Fonseca, direção de Paulo José, Denise Saraceni e José Henrique Fonseca, supervisão
artística de Carlos Manga. Exibida de 24 de agosto a 17 de setembro de 1993, 16 capítulos.
126
LOBO, Narciso. Ficção e política: o Brasil nas minisséries, 2000.
69
Das 61 minisséries pesquisadas por Lobo entre 1982
127
e 1995,
anos denominados da redemocratização do Brasil, 29 são indicadas
como oriundas de textos não-televisivos, ou seja, são categorizadas
como sendo adaptações. A partir de 1996 até o primeiro semestre de
2006, temos 19 minisséries, das quais 5 são textos originais para a TV.
Qualquer listagem de produção de minisséries traz as rubricas autor da
obra original e autor da adaptação. Estudiosos falam em ‘obras de
referência’: textos nos quais o autor se apóia, se informa e que, com
mais ou menos intensidade, fornecem material ‘real’ ou ficcional a partir
do qual o roteirista trabalha ou com os quais ele estabelece um intenso
diálogo ou, aos quais, apenas e simplesmente faz alusões. Se essa
metodologia de trabalho autoral é importante para o estudioso que
busca detectar os mecanismos escriturais do autor, ela deve ser vista
com cuidados no quesito julgamento da obra, que exige seu
enquadramento na linguagem de sua especificidade; ou seja, uma
minissérie há de ser julgada sob o ponto de vista de um produto
televisivo o que remete para uma situação geral toda ela própria,
incluindo a recepção.
Construir uma obra para a televisão (e para o cinema, para o
teatro) não é apenas transpor do texto escrito para um novo suporte,
para um outro veículo. O ato de transposição é demasiado complexo,
desafia noções estabelecidas de autoria e hierarquização de bens e
produtos culturais
128
. O autor do roteiro ancora-se em uma ou várias
obras já estabelecidas, catalogadas, carregando o peso da tradição,
muitas vezes, de estudos acadêmicos. Doc Comparato afirma a
necessidade de se ter uma idéia para escrever um roteiro e que idéias
não surgem do nada. Provêm da memória, da vivência, de algo que
contam ao roteirista ou que ele capta no mundo que o rodeia; também
de uma leitura, que varia de um jornal a um folheto de propaganda, e
127
O primeiro trabalho registrado como minissérie foi Lampião e Maria Bonita, 8 capítulos.
Exibida de 26 de abril a 5 de maio de 1982, de autoria de Agnaldo Silva e Doc Comparato.
MALCHER, Maria Ataíde. O Protagonismo da dramaturgia na TV brasileira. Tese (Doutorado
em Comunicações) Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2005.
128
GUIMARÃES, Hélio. O romance do século XIX na televisão: observações sobre a adaptação
de Os Maias. In: PELLEGRINI, Tânia et al. (Orgs.). Literatura, cinema e televisão, p. 94.
70
até de uma encomenda
129
. À idéia nascida de uma ficção, de um livro,
de um filme, de uma obra de teatro, Comparato
130
o nome de idéia
transformada (twist). Citando uma fala corrente entre os roteiristas – um
autor amador copia, ao passo que um autor profissional rouba e
transforma. A transformação à qual alude Comparato é que torna as
coisas complexas e que dificulta a compreensão do processo de criação
para a televisão. A TV tem se caracterizado por ser antropofágica,
segundo Balogh
131
. O problema, portanto, é verificar como se esse
processo, que deve passar longe da cópia, do plágio, da transcrição pura
e simples e, que também não consideramos ser uma mera adaptação, o
que nos parece indicia que essa é nossa preocupação, ou seja, o
processo, digamos, de manipulação das idéias e as estratégias de
linguagem levadas a cabo pelo criador de discursos televisivos.
O diretor de TV tem um olhar pessoal, um olhar profissional e
técnico: os olhos da câmera. Mas entram em cena os responsáveis pelo
cenário, pela vestimenta, pela maquiagem, pela iluminação. Os atores e
seus modos de leitura e representação. Por mais acuidade que um
homem de TV mostre na direção do trabalho, por mais autoridade que
mantenha, os olhares outros são filtros que influenciarão o produto
132
.
Renata Pallottini
133
revela algo curioso nesse sentido. Conta ela que um
texto de sua autoria, Sapicuá de Lazarento, um unitário, sofre logo de
início uma mudança de título por motivos externos ao produto: saía o
lazarento porque considerado um termo forte e que poderia afastar os
possíveis espectadores (e por que não, patrocinadores). O trabalho vai
ao ar apenas como Sapicuá. Sapicuá é um cesto, que colocado na ponta
de uma vara, servia para as almas caridosas depositarem as esmolas
para os portadores de lepra, evitando assim o contato com os mesmos.
129
NEGRÃO, Walter. O Processo de Criação da Telenovela. In: In: LOPES, Maria Immacolata
V. de. (Org.) Telenovela, internacionalização e interculturalidade, p. 208.
130
COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p. 83.
131
BALOGH, Anna Maria. O discurso ficcional na TV: sedução e sonhos em doses
homeopáticas.
132
Ver: MOTTER, Maria Lourdes. Produção de telenovela no Brasil: tecnologia e criação
ficcional. In: AJZENBERG, Elza (Org.). Arte e ciência: mito e razão. São Paulo: ECA/USP,
2001. MOTTER, Maria Lourdes. A telenovela: documento histórico e lugar de memória.
Revista da USP, n. 48, 2001.
133
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão.
71
A expressão sapicuá de lazarento significa coisa desprezível, sem valor.
A exclusão de um termo leva à perda de um bocado de sentido, segundo
Renata. Mas as coisas não ficaram por aí. Feita a produção, depois a
gravação, quando a autora vê o trabalho final percebe que fora realizado
todo em tons de verde. Ora, cor é signo importante na linguagem visual,
no caso, fundamental para a compreensão de uma história que não se
passava na Amazônia nem nas profundezas das águas: era a história de
um menino que descobre sua sexualidade e a guerra, pois o tempo é
1932. Tratava também de um pobre diabo anarquista perdido no
interior do estado, tima do preconceito que o aparentava aos leprosos.
Para a autora do texto, a cor deveria ser o vermelho. A produção, por ela
imaginada como um drama de costumes, conotando crítica social
realista, ganhou na mão (e no olhar) de Fábio Sabbag um estilo
simbolista, impressionista, mais voltado aos detalhes visuais e
plásticos. Exemplo claro da importância do diretor no produto final e
das mudanças possíveis e acontecidas que, em cadeia, atingem toda a
realização. Para Pallottini, a intervenção dos realizadores na TV é
quantitativamente maior e resulta maior, também, qualitativamente.
Cabe ao dramaturgo organizar seu material de modo a contar
uma história em capítulos, para entrar no ar nas horas terminais do dia
de modo a preencher o tempo do programa. A ação parece ser
fundamental. Ainda segundo Pallottini, o autor deve comportar-se como
um escritor de um romance de ação e reservar um movimento da ação
para cada capítulo, pois em vinte capítulos deve condensar duzentas a
trezentas páginas de um romance, utilizando-se de diálogos e de
recursos da imagem televisiva. Os diálogos podem ser de natureza
conflituosa em termos de narrativa e a interação verbal estabelecida
entre falantes apontar a saída e a colocação de uma nova tese, a
dinâmica do movimento se instala. Pensando a ação como sendo
atividade com intenção, significado e objetivos, o que está em causa não
é somente a ação externa, por exemplo, um grupo de soldados em
desabalada carreira pelas coxilhas. É preciso que haja uma razão, uma
situação que anteceda a ação assim como uma que a suceda. de
existir motivos e emoções das personagens, conflitos entre elas e, é
72
claro, as conseqüências do fato. Mas, em se tratando de televisão é
preciso mostrar. Muito se tem falado sobre o fato de a linguagem
televisiva ser uma sucessão de closes; o jogo de distanciamento e
aproximação, as imagens criadas pela câmera cores da paisagem,
luzes, ondulações das coxilhas –, closes que deixem patentes o medo, o
esforço muscular despendido na corrida, os percalços como quedas,
ferimentos, são elementos da linguagem televisiva que devem fazer
parte das preocupações do dramaturgo de televisão.
Ao nos reportarmos à ação, remetemo-nos às personagens. A
personagem é aquilo que o dramaturgo criou no papel (ou na tela de
seu computador) e sua circunstância: o cenário em que circula, as
roupas que veste, o penteado, as cores, as luzes, a música que o
acompanha. Do texto constam a descrição das personagens, suas falas
e ações, assim como questões relativas aos recursos do gênero televisivo
como enquadramento, angulação de tomada da câmera, freqüência de
aparição, etc. Como em qualquer outro gênero dramático, cabe aos
personagens a ação. Personagens devem agir dentro das funções que
lhes foram designadas pela autoria, na situação escolhida, nas
circunstâncias que lhes foram dadas como próprias. Devem ter
coerência, deve haver correspondência entre seus atos, palavras e
caracterização. No seu caminho, relacionar-se-ão com outros
personagens, deparar-se-ão com obstáculos a serem enfrentados e
superados. Nada mudou no reino da dramaturgia desde os gregos a não
ser a parafernália técnica que permite ao fazedor de minissérie e afins a
utilização das imensas possibilidades não de todo ainda exploradas
da televisão.
Ainda sobre Maria Adelaide Amaral e A Casa das Sete Mulheres
134
,
de que dizemos pelo fato de a considerarmos uma criação outra que não
o romance homônimo
135
, que lhe serve de ponto de partida. No romance,
a personagem Manuela é uma guria na fala gaúcha que, durante a
Revolução dos Farrapos, enquanto seu tio Bento Gonçalves e os
134
MOTTER, Maria Lourdes. Argumentos para o estudo da ficção: A Casa das Sete
Mulheres’. Revista Eco-Pós.
135
WIERZCHOWSKI, Letícia. A casa das sete mulheres. Rio de Janeiro: Record, 2002.
73
homens da família guerreiam, permanece com as mulheres da família
na estância, sempre presa às normas e ditames da sociedade patriarcal,
sem um projeto de vida próprio. Sem querer ser indelicada, Manuela é
inexpressiva do ponto de vista do ser mulher, especialmente se
considerada a partir dos olhares da atualidade. Apaixonada por
Garibaldi, abre mão dele por determinação de seu tio, o Gal.Bento
Gonçalves, que decidira o casamento da sobrinha com seu filho
Joaquim. Conforma-se, confina-se na estância até o fim da guerra, não
se casa, embora tenha o primo como pretendente e prometido.
Contraditoriamente mantém um diário, reflexivo em vários momentos e
que faz a ligação entre os capítulos do romance, texto-fonte da
minissérie. Nas mãos de Maria Adelaide, ela se torna a contadeira da
saga da família de Bento Gonçalves, adquire status de personagem do
primeiro time e aponta para a diferença em relação ao romance. A
personagem contudo que ganha vida na interpretação de Camila
Morgado, transmutada que é em mulher de personalidade, que se o
direito do desejo, do amor e, principalmente, que luta, à sua maneira,
pelo homem que ama a par de outras ações que marcam a re-criação
pela dramaturga. Uma das mais bem elaboradas e produzidas cenas
dessa minissérie é justamente aquela em que Manuela e Anita
defrontam-se aos pés do leito em que o homem que ambas amam,
Garibaldi, encontra-se gravemente ferido. Cena de um breve e intenso
diálogo em que o jogo de gestos, e principalmente, olhares faz a cena.
São procedimentos postos em ação pelos autores que estão a exigir
outras aproximações dos estudiosos.
O espaço: sete mulheres de uma mesma família, cercadas pelos
escravos e peões que não foram à guerra e cuja tarefa mais importante
é esperar pelos homens e, claro, pela vitória que também lhes interessa,
clamam por um espaço: a estância. Inserida numa extensão maior, a
coxilha. É preciso um rio. Um estaleiro. A guerra exige um local que
permita o tratamento de feridos e que se encontra mais ao longe, na
cidade, que ainda não passa de um burgo. A história demanda o
espaço. Não se pode contar mostrar a Revolução Farroupilha, as
batalhas e entreveros, a soldadesca em ação na luta desenvolvida no
74
Sul que não no espaço aberto e infindo dos campos gaúchos. O Auto da
Compadecida carece de um outro espaço que é a cidade pobre,
pequena, das ruelas embaraçadas em torno da Igreja e de algumas
casas de comércio, lá no agreste nordestino. Um Coração localiza-se
na provinciana São Paulo que, aos quatrocentos anos de vida, busca a
modernização possível pela fase de industrialização que está vivendo. A
cidade que ainda exibe os casarões dos barões do café que, no início do
século, estabeleceram-se na Avenida Paulista. Outras histórias como as
policiais, as de mistério, reclamam um espaço fechado, escuro, distante
ou ao menos desconhecido de alguma comunidade que por acaso
exista por perto. Grande Sertão Veredas é o sertão-espaço. Riobaldo e
Diadorim poderiam existir no sertão mostrado por Avancini, depois
de construído por Rosa em palavras que são a memória de Riobaldo. O
espaço exterior cria uma dicotomia com o interior. Às vezes um, às
vezes outro se sobressai na razão direta da exigência da história, do
gênero, se assim se quiser. Uma ficção rural pede o exterior, uma
urbana pede o interior. outras dicotomias espaciais:
grande/pequeno; vazio/cheio; definido/indefinido; acessível/
inacessível, além dos aspectos que emergem dos modos de filmar:
campo e contracampo, de cima/de baixo; distante/próximo; incidência
e intensidade de luz. O espaço audiovisual pressupõe uma série de
escolhas, de seleções. Na televisão que se notar a expressa ligação
espaço/temporal em conseqüência da fragmentação, do fatiamento
próprio da linguagem televisiva.
Outra questão a ser tratada é a do tempo. Na dramaturgia teatral
o tempo ficcional pode ser igual ao tempo real. Em tantas horas de
espetáculo, tantas horas de história. Geralmente as coisas não correm
dessa maneira em relação ao tempo televisivo. Embora os fatos sejam
apresentados como em seqüência, percebe-se o passar de vários dias,
até meses ou anos. O tempo caracteriza-se por não se apresentar
definido ou limitado de forma clara, exata. Quando o conteúdo diz
respeito a um longo período na vida de personagens, por exemplo,
vários são os hiatos, os saltos no tempo que são indicados pelos
acontecimentos, pelas personagens em suas características, algumas
75
rubricas, demarcações feitas por outros recursos técnicos como
iluminação, cenários que mudam, e até por um narrador em off
136
.
O tratamento do tempo na ficção televisiva de ser observado
respeitando-se os diferentes formatos. Um unitário pode ter o tempo
tratado de modo semelhante ao teatro e ao cinema. Gravado em
estúdios, cenas interiores, é mais comum o tempo ficcional correr
paralelo ao tempo real. Embora nada impeça que em função da
espacialidade cenas exteriores ele receba outro tratamento. Podem
ocorrer as elipses (do tipo cinematográfico), os saltos temporais
necessários, alternâncias e mudanças de cenários, e ainda os intervalos
típicos do produto.
O seriado apresenta saltos indicados no interior de cada capítulo,
assemelhando-se ao unitário, mas também entre episódios. Visto o
seriado ser exibido por vários meses, alguns por vários anos, é natural a
passagem do tempo para as personagens, modificando-as física e
psicologicamente. Acontece que o seriado pode ter um episódio escrito
em uma seqüência e exibido em outra, isso é estrutural a ele, assim
como a realização pode ser feita em um breve tempo. Ou seja, a
cronologia entre capítulos se perde, em conseqüência das próprias
características da produção e do produto.
Na minissérie (assim como na telenovela), os problemas de tempo
são mais complexos em razão da própria freqüência de exibição, quase
sempre diária. O mesmo ocorre no formato que se convencionou
chamar microsséries Auto da Compadecida (4 capítulos), A Invenção
do Brasil
137
(3 capítulos) em que o tratamento do tempo, como na
telenovela e na minissérie, é resolvido quase sempre internamente ao
capítulo. O andamento temporal emerge nas cenas, das ações das
personagens e do fluxo dos acontecimentos. A representação do dia, da
noite, das mudanças meteorológicas está ligada também à categoria
136
Ver: MOTTER, Maria Lourdes. Produção de telenovela no Brasil: tecnologia e criação
ficcional. In: AJZENBERG, Elza (Org.). Arte e ciência: mito e razão. MOTTER, Maria
Lourdes. A telenovela: documento histórico e lugar de memória. Revista da USP.
137
A Invenção do Brasil escrita e dirigida por Guel Arraes e Jorge Furtado, com direção de
produção de Eduardo Figueira, produzida pelo Núcleo Guel Arraes. Exibida de 19 a 21 de
abril de 2000.
76
espacial. O crepúsculo luminoso e intenso do sul, em contraponto com
semanas a fio de neblina e chuva, marca de forma definitiva o tempo
das mulheres e dos revolucionários na coxilha. O trem lotado, no qual
pessoas sonolentas se acomodam, denota o amanhecer na grande
cidade, assim como a mesa do café da manhã é marca registrada em
todas as produções ficcionais de que um novo dia se inicia nos
apartamentos de Ipanema ou nos casarões paulistanos. A noite azulada
e fantasmagórica marca a chegada de Rosinha à fazenda do pai e
também a espera inútil do pobre Eurico, tapeado por sua mulher. A
passagem do tempo de um capítulo para outro se faz mais complexa
pelos ganchos como técnica de criação de suspense. A relação
estabelecida pelo gancho entre o conhecido e o desconhecido no
momento crucial de uma cena, deve ser resolvida no capítulo seguinte,
ou seja, o desconhecido, o mistério e seu desvendamento fazem parte
das expectativas do auditório. Se houver um salto no tempo, o problema
criado ficará esquecido. Além do que, não devemos esquecer que a
televisão tem de si mesma um discurso interrompido e descontínuo o
que faz com que a temporalidade quase que se impregne na linguagem
televisiva. Ao escritor e diretor cabe o encaixamento entre as seqüências
da trama, do enredo e as interrupções próprias do veículo: os intervalos
para os anúncios, as quebras programadas dentro da grade para a
entrada de uma nova atração, as chamadas para reportagens externas
ou fatos excepcionais no cotidiano.
5.3 A microssérie
O reinado da minissérie no país pode ser considerado longo. Lobo
trabalha com 61 obras desse gênero, situadas entre 1982 e 1995.
Nesses últimos dez anos, podemos acrescentar 16 produções
138
.
138
MALCHER, Maria Ataide. O protagonismo da dramaturgia na TV brasileira.
77
Acreditamos que muito se caminhou em termos de criatividade,
inovações levadas a cabo por demandas econômicas, tecnológicas e de
audiência.
Algumas das minisséries citadas no item anterior como A casa
das sete mulheres, Os Maias apresentam cerca de 40/50 capítulos;
outras como Aquarela do Brasil
139
chegam a 60. Anos Rebeldes, Anos
Dourados apresentam 20. Numa outra extremidade aparecem A
Compadecida com 4, Invenção do Brasil com apenas 3 capítulos. A
misteriosa e sombria Luna Caliente, exibida em 1999, de Jorge Furtado
(inserida num projeto de integrar cinema e televisão que utiliza a
técnica cinematográfica da ‘noite americana’), também tem 3 capítulos.
Seriam essas produções tão novas no cenário televisivo? Seriam
somente menos extensas ou sua maneira de ser apresenta inovações
e/ou diferenciações mais significações?
Lampião e Maria Bonita
140
tem apenas 8 capítulos. Se pensarmos
Aquarela do Brasil com 60 capítulos e levarmos em conta apenas a
extensão, podemos classificar Lampião e Maria Bonita como microssérie.
Baseada na vida do mais famoso e conhecido cangaceiro do país, figura
mítica, o recorte temático praticado (o objeto de sentido) levou em conta
aspectos históricos e sociais do entorno da personagem, o cangaço
como fato específico de um tempo, de uma região, de um momento
histórico do país (o intuito, o projeto discursivo do autor). Ou seja,
exaurir o objeto de sentido e levar a cabo o intuito autoral com toda sua
carga de subjetividade e estilo solicitou uma forma composicional que é
a microssérie.
Lampião e Maria Bonita tem cerca de 5 horas e 10 minutos de
duração contra 2 horas e trinta e sete de O Auto da Compadecida, 2
horas e quarenta minutos de A Invenção do Brasil
141
, portanto, uma
redução de quase 50% do tempo. E nesse mesmo tempo os autores
deram conta de seu tema, de seu projeto discursivo na mesma
139
Aquarela do Brasil. Original para TV escrita por Lauro César Muniz, exibida de 22 de agosto
a 01 de dezembro de 2000.
140
Lampião e Maria Bonita, de autoria de Agnaldo Silva e Doc Comparato, foi exibida de abril a
maio de 1982; 8 capítulos.
141
As duas últimas tiveram seu tempo reduzido em 100 minutos para o cinema.
78
composição formal e foram mais longe, pois diminuíram a extensão. A
extensão pode, portanto, ser considerada fator de caracterização da
microssérie. Ou seja, um processo de compressão levado a efeito
pela autoria, mas que não compromete o tema, o intuito e que se
formaliza, contendo-se em um exíguo tempo em relação a uma
minissérie, por falta de outra palavra, tradicional. A questão nos parece
conhecida: como contar o quê.
Em A invenção do Brasil, os autores, num processo de
intertextualização, dialogam com José de Alencar, Mário de Andrade e
Santa Rita Durão (O Uraguai) e fisgam o título de Darcy Ribeiro.
Trafegando entre o documentário, a ficção e a comédia, a microssérie
conta a vida do degredado, Diogo Álvares, desde o crime que o
transforma em réu, sua estada no Brasil e seus amores, passando por
sua redenção em Portugal, promovida por um jogo de interesses
econômico e político, até seu retorno ao país como líder dos
Tupinambás. um narrador (Marco Nanini) que faz a ligação entre
ficção e realidade, comentando fatos históricos. A microssérie exibe a
intertextualidade, a dialogia. O texto é original, isto é, foi escrito para
TV, para ser microssérie.
O Auto da Compadecida é reapropriação e reelaboração de uma
peça teatral. Sofre acréscimos de personagens, episódios, situações,
transformações essas motivadas por exigências do novo suporte e de
audiência. Principalmente, acresce um núcleo amoroso que remexe
atrevidamente com a picardia de um personagem e não deixa de manter
a característica picaresca. Desde o inicio de sua feitura, a inovação está
presente no uso do filme 35 mm e na procura, por parte de seu
realizador de, concomitantemente, traçar um caminho com vista ao
cinema. Essa visão autoral de trafegar para outro suporte interfere no
modo de fazer a microssérie. A própria escolha do formato (ou
subgênero) sugere já estar condicionada a essa visão futura do produto.
Hoje é dia de Maria
142
, de Luís Alberto de Abreu e Luiz Fernando
Carvalho, apresenta dois segmentos: Primeira Jornada e Segunda
142
Hoje é dia de Maria é exibida em seu primeiro segmento com 8 capítulos, em janeiro de 2005
e o segundo segmento, com 4 capítulos, no final do mesmo ano.
79
Jornada. Hoje é dia de Maria, é trabalho inovador, que põe na telinha o
maravilhoso numa atitude arrojada da autoria, a qual permite o
ingresso numa espécie de quarta dimensão, que é onde a obra de arte,
pelo maravilhoso, fala ao inconsciente de todos, segundo Sant’Anna
143
.
Obra que, mais do que experimenta a linguagem em suas múltiplas
dimensões e possibilidades, condensa-a de modo a fazer poesia;
concretiza renovações no sistema simbólico, cria novos recursos
expressivos, resgata e reutiliza o arcaico e, magicamente, se oferece, em
algumas poucas horas, ao deleite do público.
À sua maneira, todas as obras citadas exibem sua
intertextualização, mostram o processo de apropriação e seu diálogo
com outras obras de arte e/ou teóricas. A Fundação do Brasil de Darcy
Ribeiro está mais do que presente em A Invenção do Brasil quando
fornece o título inspirado no prefácio de seu livro. Pensar que não
embutimento de um conceito nessa escolha parece-nos ingenuidade.
Hoje é dia de Maria, roteiro para televisão escrito por Abreu e Carvalho,
calcado na obra de Sofredinni, navega por e com tantas obras que
muito trabalho será despendido para localizá-las, mesmo porque,
Sofredinni já se caracteriza por ser um andarilho da escritura.
Esse jogo dialógico e intertextual praticado assumidamente e
escancaradamente mostrado, exibido parece-nos um traço presente com
certa constância na microssérie. Levar a cabo essa dialogização, passear
por muitos textos, pinçar, selecionar e montar: pensamos estar a
chave da compressão do tempo, do encurtamento do tempo. A
familiaridade dos autores de microsséries com o cinema, com o vídeo
independente é notória. A questão fulcral do cinema, segundo muitos
estudiosos, é a montagem
144
. Diálogos rápidos, ações e imagens
simultâneas, a tela que se enche de informações e as transborda para o
espectador. Seqüências curtas, cortes rápidos. O uso da imagem de
forma consciente e intencional, que se mostra adequado para expressar
143
SANT’ANNA, Afonso Romano. Apresentação. In: ABREU, Luís Alberto de; CARVALHO,
Luiz Fernando. Hoje é dia de Maria. São Paulo: Globo, 2005, segunda contracapa.
144
Remetemos ao capítulo A Compadecida no cinema, no final deste trabalho.
80
a multiplicidade cultural da contemporaneidade em sua
heterogeneidade e movimentação.
Alguns produtos mais atuais, e pensamos aqui Hoje é dia de
Maria, apresentam inovações que reclamam uma observação acurada.
Porque hoje é dia de Maria, todos os dias são dias de Maria
145
, texto de
nossa autoria, procura resgatar a tecitura das histórias populares
entremeadas de fantástico e recriadas a partir da oralidade
característica primeira da narrativa, que se considera presente na
microssérie. A partir da teoria bakhtiniana buscamos compreender a
trama em sua intertextualidade formal entre a cultura popular e a
ficcional televisiva. Essa estrutura dialógica está presente na linguagem
verbal (marcada pela oralidade) e não-verbal (cenários, figurinos,
bonecos articulados, marcadamente mostrados como tais) que se
distingue por intensa heterogeneidade, além dos personagens animados
e inanimados que completam o encadeamento dos fatos e episódios
relatados. O tratamento espacial e temporal dado ao trabalho, a
artesania do processo a par da tecnologia de ponta; a ousadia narrativa
apontam para a microssérie como espaço por excelência de
experimentações mais ousadas às permitidas pelas minisséries. Diga-se
muito corretas, bem feitas, escritas e produzidas por gente que sabe o
que faz e como fazer bem feito. O que aqui está sendo sugerido é que a
radicalização, a ousadia criativa talvez encontrem melhor ambiência
num produto condensado, comprimido.
Para Fadul a microssérie foi possível a partir da minissérie, que
por seu turno viabiliza-se a partir da telenovela, ou seja, é um
desdobramento do existente. Não se pode negar que mudanças no
modo de operacionalizar o material televisual, comum a todas elas,
ocorram. Sutis ou evidentes, profundas ou superficiais, as inovações
surgem na feitura de uma microssérie, podendo, se não, diferenciá-la
da minissérie, suscitar outras categorias para sua observação e estudo.
Esse não é o projeto desse trabalho e estas rápidas observações aqui
145
VIDAL, Marly C.B.; MARQUES, Jane A. Porque Hoje é Dia de Maria, Todos os Dias são
Dias de Maria. In: Anais do XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Rio de
Janeiro, 5-8 setembro 2005.
81
estão para justificar o tratamento microssérie dado ao O Auto da
Compadecida.
83
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3
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
Disse um crítico: Como foi que o senhor teve aquela idéia do gato
que defeca dinheiro? Ariano respondeu: ‘Eu achei num folheto de cordel.’
O crítico: E a história da bexiga de sangue e da musiquinha que
ressuscita a pessoa? Ariano: ‘Tirei de outro folheto.’ O outro: E o cachorro
que morre e deixa dinheiro para fazer o enterro? Ariano: ‘Aquilo ali é do
folheto tamm.’ O sujeito impacientou-se e disse: Agora danou-se
mesmo! Então, o que foi que o senhor escreveu? E Ariano: ‘Oxente!
Escrevi foi a peça!’.
146
O Auto da Compadecida é um texto dos mais instigantes (e
intrigantes) da dramaturgia nacional. Tem suas ‘raízes’ em romances e
histórias populares nordestinas, aproxima-se dos antigos autos
vicentinos, do teatro espanhol do século XVII e também da commedia
dell’arte. Acima de tudo, sua criatividade autoral não se limita a uma
mera cópia, transposição ou adaptação. O que nos é dado a perceber é,
como citado, a recriação em termos brasileiros, tanto pela
ambientação como pela estruturação, configurando-se como uma obra
inédita em suas características, nova e, portanto, absolutamente
original.
147
Escrita em 1955 por Ariano Suassuna, um jovem paraibano que
ainda não contava 30 anos, Auto da Compadecida está completando 50
anos, gozando de plena vitalidade. Até o lançamento da Compadecida,
Ariano era conhecido basicamente no Recife, onde residia, como autor
de poemas e peças teatrais populares desde 1945. Encenado pela
146
TAVARES, Braulio. Tradição popular e recriação no ‘Auto da Compadecida’. In:
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 191.
147
Conforme apresentação de Henrique Oscar. In: SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida.
Rio de Janeiro: Agir, 1978, p. 10. Coleção Teatro Moderno.
84
primeira vez em 11 de setembro de 1956, no Teatro Santa Isabel, pelo
Teatro de Adolescentes do Recife, sob a direção de Clênio Wanderley,
numa curtíssima temporada de 3 apresentações, o Auto da
Compadecida teve a última delas cancelada por falta de público.
Em janeiro de 1957, a peça é o grande acontecimento do Primeiro
Festival de Amadores Nacionais, no Rio de Janeiro, no palco do Teatro
Dulcina, por iniciativa da Fundação Brasileira de Teatro. A encenação
teve a mesma direção e os participantes do espetáculo de estréia em
Recife. Grande sensação do Festival, a peça é premiada com a Medalha
de Ouro da Associação Brasileira de Críticos Teatrais, leva Suassuna a
ser considerado um dos maiores dramaturgos brasileiros e promove a
publicação do texto pela Editora Agir. Ainda no Dulcina, em 1959, a
peça é montada com elenco profissional no qual se destacam Soares
como o Bispo e Agildo Ribeiro fazendo João Grilo. Em 11 de março de
1967, o texto foi encenado em São Paulo, no Teatro Natal, pelo grupo
Studio Teatral sob a direção de Hermilo Borba Filho, com elenco
profissional em que Armando Bógus é o grande destaque no papel de
João Grilo.
O Auto da Compadecida foi traduzido para vários idiomas e
encenado em vários países, o que dificulta bastante uma cronologia de
suas apresentações. Além dos países da América do Sul, a peça foi
montada na Alemanha, Espanha, Grécia, França, Holanda, Polônia,
Suíça, Portugal, República Tcheca época Tchecoslováquia), Finlândia,
Israel, Estados Unidos e outros países. Na França, a montagem, no
Teatro Odéon em 1971, recebeu elogios da crítica parisiense nos jornais
Le Figaro e Le Monde. Em alguns países, o texto teatral tem sido
publicado em livros, conforme informação de Newton Jr.
148
: Holanda
(Het Testament van de Hond, 1959), na Polônia (Historia o milosiernej
czli testament psa, 1959), nos Estados Unidos (The rogue’s trial, 1963),
na Espanha (Auto de la Compadecida, 1965), na França (Le jeu de la
Misericordieuse ou Le testament du chien, 1970), na Alemanha (Das
148
NEWTON Jr., Carlos. ‘Auto da Compadecida’: 50 anos. In: SUASSUNA, Ariano. Auto da
Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 200.
85
Testament des Hundes oder Das Spiel von Unserer Lieben Frau der
Mitleidvollen, 1986) e na Itália (Auto da Compadecida, 1992).
Algumas particularidades curiosas, e também elucidativas ou de
alerta quanto aos procedimentos de tradução, merecem registro. A
tradução espanhola feita por um católico ortodoxo, Sr. José Maria
Pemán, adepto do regime ditatorial espanhol assim como de seu líder,
Generalíssimo Franco, substitui a personagem Bispo por um Secretário,
o que, não se pode negar, compromete bastante a intenção discursiva
do autor, configurando-se numa intromissão séria esteticamente
falando, inadmissível em termos estruturais e mais ainda levando-se em
conta a posição intencionalmente crítica de Suassuna.
149
O texto escrito,
como documento em que se configura, compromete a idéia suassuniana
que é a crítica aos homens da Igreja, aos clérigos mal intencionados e
hipócritas. A tradução americana coloca na boca de João Grilo: Você
pensa que eu tenho algum preconceito de raça?” (Do you think I have any
prejudice?) no lugar de Você pensa que eu sou americano para ter
preconceito de raça?” A alfinetada brilhante de Suassuna é abolida sem
piedade. A significação pretendida pelo autor desaparece em
conseqüência da reelaboração composicional levada a efeito pela
escolha do sujeito tradutor.
Evento dos mais sérios teve lugar na Venezuela em 1974. Jose
Ignacio Cabrujas
150
encenou o Auto da Compadecida sob o título El
testamento del perro , identificando-se como co-autor do texto. Após o
sucesso alcançado, Cabrujas paulatinamente retirou o nome de
Suassuna e se apossou da autoria. Passa a ser tratado como criador do
teatro venezuelano e as raízes e vivências que são pensadas por
149
El señor obispo es un excelente administrador. No quiere que se desprestigie la Iglesia de
Dios com entierros de perros cachorros. No desea tampoco que sea molestado el mayor
Antonio Morais, hombre importante y proprietario de las mejores minas de la comarca. Por
todo lo cual el señor obispo decide no ir a la parroquia del padre Juan, sino mandar a su
secretario. NEWTON Jr., Carlos. ‘Auto da Compadecida’: 50 anos. In: SUASSUNA, Ariano.
Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 201.
150
Jose Ignacio Cabrujas, dramaturgo venezuelano, no campo do humor e do melodrama,
premiado autor de telenovelas, conhecido no Brasil pela peça teatral El Día Que me
Quieras, em cartaz em São Paulo, em maio de 2005, dirigida por Marco Antônio Rodrigues
e interpretada pelo Grupo Folias. O Estado de S. Paulo, 06 maio 2005. Caderno 2 Cultura.
86
Suassuna em termos múltiplos e universais passam a locais pelo
discurso de Cabrujas:
Testamento do Cachorro é um encontro quente,
terrivelmente comovedor, com o país, com aquilo que é
nosso, com uma realidade que o teatro nacional esqueceu
com demasiada freqüência. Respira-se a plenos pulmões o
mágico da província de nossa infância... A maestria de
Cabrujas lhe permitiu fugir por completo de um
regionalismo barato. E o resultado é uma obra que vai às
próprias raízes de nossas vivências mais distantes, mais
autênticas. É, enfim, teatro…
151
Ariano
152
revela que em São Paulo aconteceu algo semelhante ao
sucedido na Venezuela. Sob o nome de O testamento do Cangaceiro”, o
senhor Francisco de Assis escreveu uma peça cujos personagens
tinham os nomes de João Grilo, Chicó, Encourado etc. O primeiro e o
segundo atos tinham sua ação na terra e o terceiro no céu. No
programa da peça, Assis declara ter se baseado no folclore nordestino e
em beletristas do nordeste e que o romanceiro e o folclore do nordeste
não eram propriedades exclusivas de Ariano Suassuna. Suassuna
concorda plenamente com isso, mas se defende, comprovando serem
suas as criações. João Grilo, o da Compadecida, tem nome de
personagem popular, mas é criação suassuniana; Chicó é o
companheiro criado por Suassuna para João Grilo e não é personagem
do folclore e sim um tipo da vida real paraibana experimentada por
Ariano. Assim como o Encourado. Primordialmente, Suassuna afirma: o
conjunto é meu, o arcabouço geral foi de concepção minha e a peça foi
urdida na minha cabeça, e não em nenhum ‘espetáculo folclórico’. Aliás o
próprio Suassuna declara na primeira página de seu texto: O Auto da
Compadecida foi escrito com base em romances e histórias populares do
Nordeste
153
, bem como deixa claro que seu teatro é mais aproximado dos
espetáculos circenses, da tradição popular de encenações públicas e de
151
Texto da crítica teatral venezuelana Alice Mayo citado por Suassuna. Diário de Pernambuco.
Recife, 23 agosto 1974. Apud NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassuna: o cabreiro
tresmalhado, p. 243.
152
DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Venezuelano se apropria de peça de Suassuna, 23 agosto
1974.
153
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 12. SUASSUNA,
Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1978, p. 21.
87
rua, do que do teatro moderno. Suassuna apropria-se e recria,
reelabora, reescreve, faz um outro objeto discursivo.
O herói do texto, João Grilo, é personagem lendário de dois
romances populares nordestinos intitulados As proezas de João Grilo.
Essa aproximação com o popular não exclui as possibilidades de uma
apropriação mais remota, se observarmos a semelhança com os antigos
autos medievais (Os Milagres de Nossa Senhora) em que, numa história
profana, o herói invocava a Virgem e esta o salvava física e
espiritualmente. Ou ainda com os autos vicentinos que, apresentados
nos palácios (e também nos átrios das igrejas medievais), eram o recado
crítico do povo, pela boca do artista, aos detentores do poder temporal
os endinheirados e nobres –, e do poder eterno, espiritual os
representantes de Deus na terra, o clero. Por outra linhagem, podemos
entrever em João Grilo o Arlequim, com sua esperteza, sagacidade e
astúcia que lhe permitem escapar das situações difíceis, mas sem
deixar de ser histriônico, bufão em sua luta pela sobrevivência. A falta
de sorte, as confusões em que se mete e acaba levando a pior, lembram
as agruras de D. Quixote.
As apropriações, o diálogo do autor levado a efeito com
procedimentos outros, em nada diminuem a criatividade e o valor do
texto e da encenação conseqüentemente, à medida que, sob a ótica
bakhtiniana, a apropriação é a dialogia, a corrente comunicativa
estabelecida entre os diversos produtos culturais, em que os elos jamais
se partem com pena de rompimento, o que deixaria de ser comunicação,
e não nos caberia tratar aqui.
De ingênua e singela concepção, o argumento segue o primarismo
dos recursos técnicos e de linguagem. Por primarismo aqui entendemos
a simplicidade, coisa difícil de se alcançar e que Suassuna consegue, de
modo a nunca comprometer o idioma e, principalmente a idéia de
discurso primário
154
, que nos fornece pistas para o desenvolvimento da
154
Bakhtin chama de discurso primário, o simples em contraste ao secundário, complexo que
aparece em circunstâncias de comunicação cultural mais elaborada, relativamente mais
evoluída e, geralmente, escrita. O discurso secundário cobre o romance, o teatro, o discurso
científico, etc., ou seja, aparece numa situação de comunicação mais complexa. O primário
seria o discurso próximo ao cotidiano e que se constitui em circunstâncias de comunicação
88
idéia de apropriação discursiva o que nos levará a uma ‘segunda’
apropriação, pela TV a microssérie O Auto da Compadecida e que se
constituirá terreno de apropriação para o cinema.
6.1 Movimento Armorial
Não se pode pensar Suassuna sem o Movimento Armorial.
Lançado oficialmente no Recife em 18 de outubro de 1970, numa
miscelânea bem urdida de música, gravura, pintura e escultura levada
a efeito numa igreja barroca Igreja de São Pedro dos Clérigos o
Movimento Armorial caracteriza-se como marca de Ariano ou, ao
contrário, tem a marca dele. Patrocinado pelo Departamento de
Extensão Cultural (DEC) da Universidade Federal de Pernambuco, à
época sob a direção de Suassuna, o Movimento, em seu programa,
pincela sua maneira de ser e suas intenções. Para Suassuna, Armorial é
uma bela palavra e ligada a coisas também belas, aos esmaltes da
Heráldica. Daí relacionar a palavra, como adjetivo, aos estandartes e
poemas de Cavalhada que Ariano via como brilhantes, puros, festivos;
coloridos como uma bandeira, um brasão ou toque de clarim. As pedras
armoriais dos portões e frontadas barrocas levaram-no a estender o
termo à escultura que ele sonhava para o nordeste. No campo da
música, descobre que armorial serviria para qualificar os “cantares” do
Romanceiro, os toques da viola e da rabeca dos cantadores. Para
Suassuna, a Heráldica popular está presente nos ferros-de-marcar-bois,
nas bandeiras das Cavalhadas, nos Pastoris da Zona da Mata com suas
cores vermelho e azul, nos estandartes do Maracatu e dos Caboclinhos,
também nas Escolas de Samba e camisas de clubes de futebol.
155
verbal espontânea. Ver: BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 281. Na 4ª
edição: tradução a partir do russo, em agosto de 2003, p. 263-264.
155
O texto referência é de 1972, O movimento armorial. Revista Pernambucana de
Desenvolvimento. Recife, v. 4, n. 1, janeiro/julho de 1972. Apud NOGUEIRA, Maria
Aparecida. Ariano Suassuna: o cabreiro tresmalhado. que se indagar sobre as marcas,
“grifes” esportivas apostas aos uniformes futebolísticos, os logos empresariais.
89
A arte armorial tem profundas ligações com o espírito dos
“folhetos” da Literatura de Cordel, com a música de viola e de rabeca,
com as bandas de pífanos que acompanham os espetáculos populares,
bem como a xilogravura que ilustra os folhetos. O folheto, na concepção
“armorial”, reúne três caminhos: um para a Literatura, Cinema e
Teatro, através da narrativa versificada; um segundo, para as artes
plásticas (gravura, pintura, escultura, cerâmica, tapeçaria e a talha)
através dos entalhes da xilogravura que se presta a ilustrar as capas; o
terceiro caminho é para a música pela vertente das “solfas” e
“ponteados” que estão presentes nos cantares. Observe-se que Ariano
não cita a televisão, veículo, à época (década de 70), ainda rejeitada por
ele, que hoje, não aprova seu auto na TV como nela aparece. Por
nossa conta e risco consideramos a produção cultural televisiva como
beneficiária dos caminhos armoriais.
Em um ensaio datado de 1974, Suassuna conceitua o movimento
e define suas intenções: (…) O Movimento Armorial pretende realizar uma
Arte brasileira erudita a partir das raízes populares da nossa Cultura.
Por isso, algumas pessoas estranham, às vezes, que tenhamos adotado o
nome “armorial” para denominá-lo. Acontece que sendo armorial” o
conjunto de insígnas, brasões, estandartes e bandeiras de um Povo, no
Brasil a Heráldica é uma Arte muito mais popular do que qualquer outra
coisa. Assim, o nome que adotamos significava, muito bem, que
desejávamos ligar-nos a essas heráldicas raízes da Cultura popular
brasileira
156
. Os artistas eruditos que se reúnem em torno do Armorial
apropriam-se do material popular e o transformam, recriam em outros e
novos modos expressivos, em outras e novas linguagens, resultando em
outras práticas artísticas. Retornando ao já pensado por Suassuna
quando do lançamento do movimento, a presença da heráldica nas
práticas culturais populares Cavalhadas, Pastoris, Maracatus,
Caboclinhos –, podemos falar em traços comuns entre as manifestações
populares e as tradicionalmente praticadas na Península Ibérica. As
touradas espanholas exibem o colorido brilhante dos estandartes e
156
SUASSUNA, Ariano. O movimento armorial. Recife: Universidade Federal de Pernambuco,
Editora Universitária, 1974.
90
bandeiras. As cores tradicionais do espetáculo são fortes e quentes, com
predomínio do vermelho. Os desfiles e apresentações iniciais na arena
espanhola guardam aspectos que podem ser observados nos desfiles de
cavalhada, nas manifestações populares do nordeste e também do norte
do Brasil, como o Festival de Parintins. Não podemos esquecer que,
para Suassuna, uma relação cultural entre a Península Ibérica e o
Brasil.
Importante notar, nesse projeto de produção de uma arte erudita
a partir do popular, a presença da preocupação teórica que acompanha
o Movimento Armorial. A teoria armorial, se assim pode ser chamada,
recusa a hierarquização de valores estéticos, tendo por base o social. A
arte erudita não é melhor, mais importante, mais elaborada do que a
popular. São meios, processos, públicos diferentes, mas isso não
significa falta de elaboração, ao contrário, o popular tem um alto grau
de elaboração e de complexidade tanto quanto a arte erudita, idéias que
aparecem discutidas em trabalhos de intelectuais participantes do
movimento além do próprio Suassuna. Vale notar a produtividade desse
grupo que trabalhou com grande competência o desdobramento, o
transbordamento e a transfiguração de sua criação, no dizer de
Nogueira, prática esta que promove um diálogo entre as diferentes
expressões artísticas. Textos que se constroem a partir do existente,
como faz Ariano em Romance do Bordado e da Pantera, que nasce de
um conto de Raimundo Carrero O Bordado e a Pantera. Pintores que
buscam no popular temas e imagens e que ao serem recriadas
aparecem como brasões, selos, em quadros de Francisco Brennand; o
Caju (insígnia vegetal brasileira) como emblema nacional, assim como a
Onça, animal heráldico característico do Brasil. A escultura, a
xilogravura, o bordado, a tapeçaria, enfim toda e qualquer expressão
artística, esta ou aquela linguagem estão presentes no movimento
armorial e em constante e gratificante diálogo. A pintura armorial
contemporânea tem em Dantas Suassuna um representante atuante em
franca produção, sendo ele o ilustrador da edição comemorativa dos
cinqüenta anos do Auto da Compadecida. Para Suassuna, a fonte
inesgotável de toda essa produção é o romanceiro popular do nordeste.
91
No campo do espetáculo e do teatro, dois nomes armoriais são
significativos: Antônio Nóbrega e sua companheira, a atriz Rosane de
Almeida, radicados em São Paulo, e Romero de Andrade Lima, criativo e
inovador diretor teatral. Nóbrega, em seu Teatro Brincante, está levando
a cabo as idéias armoriais em suas pesquisas e espetáculos, tendo por
companheiros Wilson Freire, Bráulio Tavares e outros. No campo da
música, o movimento se caracteriza por trilhar as orientações de Villa
Lobos e Mario de Andrade, pesquisadores voltados para o nacionalismo
que, segundo Nogueira, é tendência visível na música pernambucana
com a adoção da rabeca por diversos músicos, a revalorização e a
recriação presentes no Movimento Mangue, com o falecido Chico
Science & Nação Zumbi, Mestre Ambrósio e outros grupos radicados no
nordeste, que buscam a fusão de ritmos nacionais, com o rock, o hip-
hop e o popular como o maracatu, o reisado, coco-de-roda, pastoril. O
cinema armorial encontra-se representado pelo Auto da Compadecida,
de George Jonas (1968), Os Trapalhões no Auto da Compadecida (1987)
e a última criação para o cinema O Auto da Compadecida, em 2000, de
Guel Arraes, a partir da microssérie homônima de 1999.
6.2 Um ancestral português
Portugal dos séculos compreendidos entre o XII e o XV aprende a
ler e escrever latim, embora só os embaixadores usem essa língua, daí a
necessidade de um vocabulário bilíngüe: latim/português. Em tempos
de comunicação deficiente, dificuldade de transporte, poucos livros e
analfabetismo geral, o ensino concentra-se nas catedrais e escolas
episcopais localizadas nos conventos e mosteiros, evidenciando assim o
senhorio da Igreja, que não descuidava do ensino de religião, das
orações, do resguardo dos mistérios da e da manutenção regular da
missa. Só no final da Idade Média, as escolas passam a ensinar o
português, que era língua oficial desde o reinado de D. Dinis (1279
1325), o que permite uma certa formalização do que estava em uso em
92
termos lingüísticos e que aproximava a escrita da oralidade. O grosso
do povo, em termos atuais, a massa, adquiria conhecimentos práticos e
teóricos por via oral. As tradições populares, especialmente as
oralizadas, sermões e provérbios eram fundamentais nesse processo de
formação das pessoas.
A estrutura social de caráter medieval modifica-se vagarosamente
até que, no início da dinastia de Aviz (1385), com a vitória sobre os
castelhanos em Aljubarrota e a ascensão de D. João I, a burguesia
vitoriosa instala uma outra maneira de ver o mundo e um novo
caminho se abre os Descobrimentos. A tomada de Ceuta em 1415, a
chegada de Vasco da Gama às Índias e o descobrimento do Brasil
marcam a formação do império português. A produção cultural literária
em prosa, representada pelas novelas de cavalaria de caráter místico em
que a personagem o cavaleiro é concebido de acordo com as
expectativas da Igreja, herói casto, fiel, dedicado, que tem como
ocupação a peregrinação espiritual e contemplativa, sofre uma
mudança radical. Em Amadis de Gaula (1508), novela de cavalaria, de
autor desconhecido, em 12 livros, de origem ibérica, o herói, embora um
verdadeiro cavaleiro – cultor do amor cortês e vassalar – quebra a
ordem medieval ao se casar com Oriana. Está instaurado o término da
Idade Medieval e o início da Renascença, época de transição que tem
como grande representante em Portugal o dramaturgo Gil Vicente.
Gil Vicente vive no período Humanista (1434-1527). Os
Descobrimentos implicam maior desenvolvimento do comércio e do
poderio dos mercadores, desafiando a aristocracia e a nobreza. As
cidades crescem e passam a ser o espaço da competição,do comércio. O
homem, antes afeito à obediência ao senhor e aos princípios
teocêntricos, conscientiza-se de sua força criadora, de sua capacidade
de interferência no mundo e possibilidade de transformá-lo. A expansão
dos negócios exige um saber que vai do ler, escrever e contar aos
conhecimentos geográficos, de mercado – lei da oferta e da procura –, do
transporte, dos recursos de fabricação e tecnológicos (tecelagem,
tinturaria, decoração etc.). A crença nas forças ocultas, que eram tidas
como determinantes do destino, passa a ser vista como obsoleta, e é
93
substituída pela do lucro que sopra aos ouvidos dos homens quanto
maior o lucro, melhor a vida. A prensa móvel permite a aceleração da
informação, pela possibilidade de reprodução rápida e as estradas
abertas para o escoamento das mercadorias é trilhada pela informação.
Esse conturbado momento de transição é anunciado pela literatura
entendida como um dos modos de ver e pensar o mundo. Em Portugal o
marco inicial do Humanismo dá-se com a nomeação de Fernão Lopes
como cronista-mór do reino, mas o nome que nos interessa aqui é o
dramaturgo Gil Vicente.
Para entender Vicente, é preciso conhecer um pouco que seja sua
ancestralidade medieval. Embora não existam documentos que provem
a existência de um teatro português
157
, papéis que dizem das
proibições às representações populares levadas a cabo pelo povo, pelas
pessoas simples nos átrios das igrejas, e que incomodavam demais aos
padres e bispos. Nas praças e na corte, havia os jograis remedadores,
que imitavam de forma a ridicularizar as pessoas; o momo, uma
representação mascarada, em que o fundamento é a mímica; o
arremedilho que é uma farsa curta; o entremez, uma representação
entre os atos de uma peça; mistérios ou milagres, breves quadros
religiosos encenados preferencialmente em datas litúrgicas como a
Páscoa e o Natal. Nascido por volta de 1465/1466, Gil Vicente entra na
vida palaciana como ourives da rainha D. Leonor, mãe de D. Manuel,
que em 1513 o nomeia mestre da balança da Casa da Moeda de Lisboa.
Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro é sua primeira peça,
encenada em 1502, em comemoração ao nascimento do príncipe, futuro
rei D. João III. Assistido pela nobreza mais próxima ao rei e à rainha,
numa corte bilíngüe, Vicente o recitou em castelhano, à maneira
palaciana do poeta Juan del Encina. Gil obtém sucesso absoluto, é
convidado a repetir a encenação no Natal, quando espertamente (afinal
estava bafejado pela modernidade próxima), apresenta um outro
157
O mais antigo documento relativo ao assunto data de 1193. D. Sancho I pagava a Bonanis e
Acompaniado pelos seus arremedilhos. No Cancioneiro Geral aparecem peças dialogadas
próximas ao teatro e referências a momo e entremezes. MOISÉS, Massaud. A Literatura
Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1967, p.54.
94
trabalho: o Auto Pastoril Castelhano, marco inaugural do teatro
português.
Vivendo no contexto histórico dos grandes descobrimentos, ainda
influenciado pelo ambiente da corte medieval, religiosa e conservadora,
é natural que isso tudo transpareça em sua obra, apontando para sua
concepção de vida. Enquanto Portugal se debate na luta entre
mercadores e senhores que não aceitam o fim do feudalismo, o restante
da Europa vive a Revolução Comercial, a burguesia atua sobre a
estrutura feudal, iniciando a Idade Moderna. Gil Vicente se forma e
atua no ambiente gerador do Renascimento, mas não está nele inserido.
Humanista, reflete o estado oscilante de um mundo velho e de sua
decomposição
158
. Segundo Abdala e Paschoalin, Vicente recebia tenças,
isto é, pagamento pelo trabalho, o que anuncia um tempo de
transformação da obra em objeto de consumo. O capitalismo também o
bafeja.
O trabalho vicentino caracteriza-se por valorizar o texto sobre a
cenografia e o espetáculo, ou seja, diferencia-se daquilo a que os
espectadores estavam acostumados a assistir (momo, arremedilho,
entremez, mistérios e milagres), que fazia valer mais o visual da mímica
e dos arremedos. Vicente mantém esses ‘gêneros’, incorpora elementos
populares de domínio público como as narrativas de origem
cavaleiresca, as farsas (gênero popular satírico), mistura o cômico com o
religioso, a crítica social com o lirismo das cantigas.
Não se pode negar ao teatro vicentino uma certa precariedade,
fruto do momento inaugural e, embora representado para pessoas de
fino gosto à época a corte –, o drama vicentino, e mais ainda a
comédia, apresenta uma certa espontaneidade e, segundo os
estudiosos, organiza-se sob a lei do improviso. Pode-se tentar justificar
esse improviso pelo fato de, sendo um teatro crítico, popular e inserido
na sociedade, estar sempre alerta aos eventos do momento, ou seja, ao
cotidiano, e a oralidade ganha destaque, o primeiro bakhtiniano,
aquele que se forja na praça, na casa e que o dramaturgo incorpora ao
158
ABDALA JUNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História Social da Literatura
Portuguesa. São Paulo: Ática, 1982, p.27.
95
seu discurso segundo. Note-se, entretanto, que o improviso não
descarta o trabalho de criação, de elaboração em busca do
conscientemente artístico. Pelo contrário, o improviso exige do autor
vivacidade, senso de oportunidade e velocidade de execução.
Em termos de personagens, Vicente cria o judeu, o cigano e
coloca o camponês em cena; o papa, o médico, o fidalgo decadente; a
dupla alcoviteira e moça casadoira, mais o marido traído, como
componentes que são da sociedade da época. Define as personagens
pelo vestuário e pela linguagem um tanto peculiar, não esquecendo a
faceta psicológica. Tendo o homem como preocupação, qualquer que
seja a sua categoria social, é dele que o dramaturgo vai se ocupar.
Critica o homem que abandona o campo e vai em busca de dinheiro,
que julga fácil, aventurando-se ao mar. Censura os novos costumes
que, como bom católico, julga degradantes. Acredita na função
moralizadora do teatro, traz à cena as mazelas sociais, revela a
imoralidade dos religiosos, sua ambição desenfreada, a indisciplina que
mostra o paradoxo entre o ideal e a prática. A moralização se fará pela
volta aos valores religiosos mais ortodoxos, tradicionais, com respeito à
hierarquia, melhor dizendo, objetiva conscientizar o homem de seu
afastamento de Deus e exortá-lo ao retorno à Igreja Católica, pois ela
leva à redenção. Em nenhum momento Gil Vicente renega a Igreja, o
pensamento cristão, sua crítica se faz mais ao homem cristão do que à
Igreja propriamente dita.
Sendo nossa intenção buscar as relações entre o teatro
suassuniano e o vicentino, optamos por circunscrever nossas reflexões
àquilo que consideramos aproximações, daí não nos estendermos em
demasia na análise da produção do dramaturgo português.
Se Gil Vicente estabelece o marco inicial do teatro português,
Suassuna marca indelevelmente o panorama teatral brasileiro em 1956
com Auto da Compadecida. Quando de sua estréia na capital paulista,
já com elenco profissional, em 1967, vivemos um conturbado período de
nossa história uma ditadura militar que a cada dia se desenha mais e
mais repressora e prenuncia dias difíceis. No campo da cultura, a
96
censura, instalada em 1965, mutila textos, filmes, proíbe encenações. O
Vigário, de Rolf Hochhuth, é a primeira peça a ser proibida
integralmente, seguida, às vésperas da estréia, de O berço do herói de
Dias Gomes. !967/1968 marcam o período de maior antagonismo entre
o Estado e a produção cultural. O mais trágico dos anos para o teatro
1968 é contraditoriamente marcado por férteis produções o que
desemboca numa ampla campanha de difamação do teatro
desencadeada pelo Estado baseada na “imoralidade” e no uso de
palavrões nos espetáculos.
159
Classificada pelo próprio autor como
exercício da moralidade
160
, pensada por Décio A. Prado como não menos
nacionalista e populista como as do Teatro Arena, o Auto da
Compadecida passou incólume aos olhares moralizantes da época.
Note-se que, diferentemente de autores como Guarnieri e Vianinha, que
entendiam suas personagens enquanto classe social ou força
revolucionária, Suassuna aborda a personagem como o amarelo”, o
cangaceiro, o repentista popular com toda a carga de pitoresco que a
região lhes atribui
161
.
A estréia de Ariano nas letras ocorre em 1945, no Jornal do
Commercio, com o poema Noturno, bastante influenciado pelos
românticos ingleses. Na Faculdade de Direito do Recife, a partir de 46, o
caminho da literatura, e das artes em geral torna-se claro para
Suassuna, que se liga a um grupo liderado por Hermilo Borba Filho,
fundador do Teatro do Estudante de Pernambuco. O objetivo do grupo é
levar o teatro ao povo, usando para isso as representações em praças
públicas, pátios de igreja, centros operários, ou seja, desmistificar o
teatro, no sentido de (re)torná-lo às mesmas raízes nas quais Gil
Vicente se nutriu; criar uma consciência da problemática teatral,
estudar o teatro universal e seus grandes nomes, isto é, buscar, no
fundo, a teorização do teatro praticado na região e por fim estimular a
criação de uma dramaturgia enraizada na realidade brasileira,
159
GUERRA, Sonia Regina. A geração de 69 no teatro brasileiro: mudança dos ventos.
Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1988, p. 113.
160
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 15.
161
PRADO, Décio Almeida. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 79.
97
especialmente, nordestina. A influência desse grupo parece ter sido
importante para o autor na estruturação de sua produção, de sua
personalidade artística, sem deixar de levar em conta sua formação
familiar, sua vivência entre os cantadores de cordel, escritores de
folhetins, cantadores de feira e espetáculos circenses no sertão.
Sugerimos que essa múltipla experiência intelectual explique a busca
de Ariano por uma arte que seja, ao mesmo tempo, tradicional e
popular, clássica e barroca, trágica e cômica.
que se notar a importância da religiosidade no teatro
suassuniano. De família protestante, converte-se ao catolicismo ainda
jovem, pelos vinte anos, e isso vai influenciar fortemente sua
produção. Para Sábato Magaldi, Suassuna faz um teatro católico,
oriundo das formas medievais, de uma religiosidade simples e sadia, no
qual a Graça impera ao condenar os maus e salvar os bons e simples.
As lendas servem de base a um teatro popular-religioso desde que passe
pelo crivo artístico. Os “autos sacramentais”
162
, gênero no qual se
destaca o espanhol Calderon de La Barca, são modelos inspiradores
para Suassuna. Ainda segundo Magaldi, a mesma lenda que serviu a
Calderon de La Barca em La vida es sueno está em O arco desolado.
163
A
Compadecida é exemplo claro da retomada da crítica à hipocrisia
clerical, à fraqueza dos religiosos quase sempre mancomunados com o
prestígio da aristocracia, o dinheiro da burguesia. A Graça se faz
presente com a redenção de Severino, que é enviado ao céu, apesar de
todos os seus crimes, e com a oportunidade de retorno a João Grilo pela
interferência de Nossa Senhora que, mesmo reconhecendo sua
malandragem, encontra explicações que, no fundo, o desculpam.
Mesmo a condenação dos restantes, inclusive os religiosos, ao
purgatório e não ao inferno como requeria o Diabo, é uma mostra da
Graça. Chicó é o ingênuo tão decantado, o simples e humilde que tudo
o que faz o é por sobrevivência em um ambiente que lhe é hostil. A
realidade suassuniana não é a de ordem verista e sim feita do
sobrenatural, do milagre e com alta dose de poeticidade. Agindo assim,
162
Em momento posterior apresentamos uma fala de Suassuna em que ele declara sua
preferência pela linha vicentina em que o cômico e o satírico estão presentes.
163
MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo: Global, 2001.
98
Suassuna apropria-se da vertente vicentina, (re)tomando em língua
portuguesa o caminho aberto pelo pai do teatro português, mas com
sotaque brasileiro.
Não se pode esquecer da influência da produção ibérica assumida
pelo próprio Ariano quando afirma que o fato que deu origem à
Cultura
164
brasileira foi semelhante àquele que deu origem à Cultura
medieval ibérica. Lá foram os “bárbaros”, reinterpretando a cultura
greco-romana, aqui foram os Povos vermelhos e negros que, recriando a
Cultura barroco-ibérica, deram origem à nossa Cultura que,
especialmente entre o povo, mantém ligações nucleares com o medieval.
A percepção das semelhanças entre o sertão e a península, ocorre pela
leitura da obra de Lorca: parecia com o meu mundo, era um mundo de
cavalos, de touros, de ciganos e coisas parecidas com o sertão
165
.
Uma mulher vestida de sol (1947) está impregnada de grande
tragicidade, a mesma que está em Cantam as harpas de Sião (1947))
166
,
sua primeira peça levada à cena. Os dilemas humanos, as dores tão
próprias da vida são compreendidas, apreendidas e elaboradas em uma
dramaturgia que se caracteriza por traços românticos e dramáticos nos
quais o riso e a ironia não têm lugar. Anos mais tarde, em 1951, em
Torturas de um coração ou em boca fechada não entra mosca, a primeira
comédia suassuniana chega ao palco. A peça é dirigida pelo autor do
texto com a participação de mamulengos. Carrero considera 1953 o ano
da gestação do Auto da Compadecida. Neste ano, Suassuna recria O
castigo da Soberba, de origem anônima, em forma de entremez
(encenação curta, em tom burlesco, levada à cena entre os atos de uma
peça), que mais tarde utilizará para a última parte da consagrada
Compadecida. Duas coisas são importantes: a recriação assumida e o
164
Mantemos as iniciais maiúsculas em Povo e Cultura, respeitando a grafia autoral de
Suassuna em Carrero e a Novela Armorial In: CARRERO, Raimundo. A história de Bernarda
Soledade: a tigre do sertão. Recife: Bagaço, 1995.
165
SUASSUNA, Ariano. Uma dramaturgia da impureza, da misturada. Revista Vintém.
Ensaios para um teatro dialético. Especial dramaturgia. São Paulo: Hucitec. Companhia do
Latão, n. 2, p. 3-8. Apud NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassuna: o cabreiro
tresmalhado.
166
Cantam as harpas de Sião foi reescrita em 1958 sob o título O desertor de Princesa e
dirigida por Hermilo Borba Filho, na inauguração da Barraca, palco itinerante do Teatro do
Estudante de Pernambuco. CARRERO, Raimundo. Notas bibliográficas em forma de
exaltação. In: SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004.
99
tom burlesco que entra no trabalho composicional de Suassuna, esse
mesmo burlesco que é fundamental no trabalho de Arraes tanto na
televisão como no cinema.
No Auto da Compadecida, Ariano consegue reunir o religioso e o
popular. Mostrando sua atração pelo auto, harmoniza texto e
encenação, mantém um ar de improvisação, que contudo não esconde a
elaboração; regional e universal estão presentes e a linguagem comum,
descontraída, se casa com o que Magaldi chama de “estilo terso”.
Embora se trate de fala coloquial, entremeada de termos populares e
regionais, o cuidado com o idioma se faz presente de forma clara. Ao
referir-se ao seu gosto pelo auto, Ariano explicita que ele gosta não do
sacramental e sim do auto na linha vicentina, onde se une o pensamento
religioso e uma visão cômica e satírica.
167
O teatro de Suassuna tem algo semelhante ao vicentino, segundo
o próprio autor. Vicente, por ser artista da transição medievo/barroco,
ainda tem muito de medieval; a presença de intensa religiosidade
popular, por isso o culto à Compadecida, mãe de Jesus intermediando a
relação homem/divino. E como em Gil Vicente, em Suassuna está
presente a crítica à Igreja, especialmente ao clero, apontando de forma
irônica, humorística, risonha a corrupção, o interesse material que se
concretiza no dinheiro e na troca de favores e bênçãos entre religiosos e
poderosos ou endinheirados. A religiosidade típica do homem do sertão
aparece nas invocações de João Grilo: Lembra-te de Nosso Senhor Jesus
Cristo, Chicó.
168
Na apresentação, feita pelo Palhaço, fica patente a
pretensão autoral: Uma história altamente moral e um apelo à
misericórdia. Ao desenhar uma comunidade que se caracteriza pelas
tropelias provocadas por dois pobres diabos em busca da sobrevivência,
suas malandragens e mentiras; a corrida desenfreada pelos bens
materiais, no caso dos religiosos, dos donos da padaria e do ricaço do
lugar; a busca do prazer sexual sem censura; uma sociedade cheia de
167
SUASSUNA, Ariano. Uma dramaturgia da impureza, da misturada. Revista Vintém.
Ensaios para um teatro dialético. Especial dramaturgia. São Paulo: Hucitec. Companhia do
Latão, n. 2, p. 3-8. Apud NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassuna: o cabreiro
tresmalhado.
168
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1978, p. 30. Essa fala
desaparece na edição revista de 2004.
100
vícios, em que se vislumbra a falta de perspectiva, a impossibilidade de
conferir sentido à vida, como fica claro em O Santo e a Porca (1964). A
morte, o confronto com o Divino na forma de juiz, porém ‘uma
autoridade misericordiosa que aceita a intermediação da Virgem como
advogada dos pecadores perdidos, atenta para a moral, mas enaltece e
exaltação à misericórdia. Misericórdia esta, perfeitamente
compreensível, pois partindo de Cristo e da Virgem, que experimentados
na lida humana, compreendem as fraquezas dos homens.
Compadecida:
(…) É verdade que eles praticaram atos vergonhosos, mas
é preciso levar em conta a pobre e triste condição do
homem. A carne implica essas coisas turvas e
mesquinhas. Quase tudo o que eles faziam era por medo.
Eu conheço isso, porque convivi com os homens: começam
com medo, coitados, e terminam por fazer o que não
presta, quase sem querer. É medo.
169
Frente à pergunta do Encourado: Medo? Medo de quê? A resposta
crucial é dada pelo Bispo: Ah, senhor, de muitas coisas. Medo da
morte…. Esse talvez seja o medo primordial, aquele que seria o
começam com medo na fala da Virgem.
A presença do humor é outra característica forte, para não dizer
predominante, e pensamos o humor como elemento estrutural da obra.
Começando pela rubrica autoral que afirma e orienta: Fala [o padre]
afetadamente com aquela pronúncia e aquele estilo que Leon Bloy
chamava “sacerdotais”
170
. também os trocadilhos da fala de João
Grilo conversando com o padre sobre o cachorro, bem como a conversa
estapafúrdia entre o bispo e o padre. Os trocadilhos têm papel
importante ao lado da agilidade dos diálogos porque vão conduzindo a
narrativa. A ironia da fala do padre sobre dar e tomar, que aponta para
a questão dos interesses financeiros presentes nas ações e ritos
religiosos. No ato do julgamento, a fala de Manuel (Cristo) é muito
alegre em oposição à fala mal-humorada do Encourado (Diabo). São
procedimentos intencionais que, mais do que simples elementos, são
basilares ao discurso.
169
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 162.
170
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 21.
101
A fala de Chicó está sempre repleta de redundâncias: Não sei,
sei que foi assim
171
, responde ele quando João Grilo exige explicações
sobre suas lorotas, que são, elas também, redundantes no texto inteiro,
de modo a dar a característica ao personagem: contador de causos,
mais que isso, contador de histórias, ingênuo, mas não tanto, pois na
prática se safa bem das enrascadas, usando a própria característica
dita como ingênua. Assim também a fala “filosófica” de Chicó sobre a
morte:
Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único
mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho
destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que
iguala tudo o que é vivo num rebanho de condenados,
porque tudo que é vivo morre.
172
Fala, aliás, extremamente bem aproveitada e explorada
narrativamente, tanto em termos verbais como imagéticos, por Guel
Arraes na obra televisiva. O padeiro, por várias vezes, repete as últimas
palavras da mulher como a apontar a ascendência dela sobre ele. João
Grilo, em todos os atos até no julgamento, repete a queixa contra o
padeiro e sua mulher, pelo fato de deixarem-no passar fome e dar bife
passado na manteiga para o cachorro, atitude que João Grilo não
consegue desculpar e que move o sentimento de vingança que ele
mostra o tempo todo, a qual parece ser o móvel de seu comportamento
em relação ao casal dono da padaria.
As idéias de Suassuna sobre a encenação são mais do que
relacionadas com a linguagem utilizada, com a temática e a origem das
histórias. A simplicidade da linguagem e da narrativa está integrada à
encenação. O próprio Suassuna, ao instruir a encenação, nos textos dos
quais nos servimos
173
, conta como o primeiro encenador (Clênio
Wanderley) concretizou a sua sugestão de dar ao espetáculo um toque
circense. As sugestões do autor são bastante abertas e permitem ao
diretor recriar sobre o dado. A preocupação de Suassuna está em deixar
claro que seu teatro é mais aproximado do espetáculo de circo e da
171
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 48 e 55.
172
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 46.
173
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1978. SUASSUNA, Ariano.
Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004.
102
tradição popular do que do teatro moderno.
174
Quando sugere a
cenografia, a simplicidade ainda é maior:
(...) uma entrada de igreja à direita, com uma pequena
balaustrada ao fundo, uma vez que o centro do palco
representa um desses pátios comuns nas igrejas das vilas
do interior. A saída da cidade é à esquerda e pode ser
feita através de um arco. Nesse caso seria conveniente que
a igreja, na cena do julgamento, passasse a ser a entrada
do céu e do purgatório.
175
Nota-se um único cenário, no qual alguns arranjos simples comporiam
as diferenças necessárias para as cenas. Essa simplicidade da
encenação empresta ao texto, de si bastante significativo, forte
presença, e enfatiza o trabalho interpretativo, ou seja, o brilho fica por
conta do diretor e dos atores. Por outro lado, essa abertura vai permitir
maior espaço para Arraes (re)criar um outro discurso.
As personagens da peça: Palhaço, João Grilo, Chicó, Padre João,
Antônio Morais, Sacristão, Padeiro, Mulher do Padeiro, Bispo, Frade,
Severino de Aracaju, Cangaceiro, Demônio, Encourado (Diabo), Manuel
(Nosso Senhor Jesus Cristo), Compadecida (Nossa Senhora) são
detalhadas no item a seguir.
6.3 As personagens do Auto da Compadecida
Suassuna às personagens aspectos e características de uma
tropa de saltimbancos, que invade o palco de forma escancaradamente
alegre e exibida, atores caminhando com as mãos
176
, alguns tocando
corneta e todos fazendo uma barulheira própria de um espetáculo
circense. não aparece Manuel ou o Cristo, que sua negritude é
grande surpresa. A atriz que representa a Compadecida apresenta-se
em trajes comuns, com a finalidade de mostrar ao público que, naquele
174
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 13.
175
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 12.
176
Prática circense de caminhar em que as mãos funcionam como se fossem pés e estes são
mantidos na posição vertical e direcionados para o alto, conseqüentemente a cabeça fica
para baixo.
103
momento ela é somente uma pessoa que assumirá uma personagem, ou
seja, uma atriz. Entendemos nessa postura suassuniana a necessidade
de resguardar a Virgem. Sua grandeza como mãe de Cristo deve ficar
definida como verdade teológica. Ao mostrar-se como aquela que
representa, que ‘veste’ um papel na peça, a atriz desvincula-se material
e espiritualmente da Virgem como figura sagrada para a religião.
Como todo e qualquer circo, ao toque do clarim adianta-se o
apresentador um palhaço e a ele cabe a condução do espetáculo. A
microssérie cortou o palhaço e isso para Suassuna foi o único,
conquanto grande, senão da obra de Guel Arraes. O Palhaço apresenta-
se como representante do autor, que não se julga com direito de tocar
no assunto sobre o qual versa a peça: o combate ao mundanismo que
considera uma praga da igreja e o faz porque acredita que seu povo
sofre, é um povo salvo e tem o direito a certas intimidades
177
. Ao terminar
sua arenga, o Palhaço faz um apelo à misericórdia e a chance à
réplica de João Grilo. A partir de então, utilizando-se de um diálogo ágil
e ritmado, a fala das personagens toma conta da festa, enquanto o
Palhaço continua fazendo a ligação entre os atos. Para Carlos Newton
Jr. é ainda ele o responsável pelo que a peça possui de auto-
reflexividade, ou seja, através do Palhaço, de suas falas e comentários
dirigidos ao público, o espectador é convidado a atravessar a fronteira
estética que existe entre realidade e encenação.
178
As falas do Palhaço,
no início do primeiro ato, são um apelo à reflexividade e também de teor
elucidativo, pois expõem doutrina religiosa: a misericórdia, a Virgem
como co-redentora, Cristo como juiz, a pequenez humana.
A presença do Palhaço é constante na obra de Suassuna.
Equilibra a recorrência do Profeta e do Rei: a religião e a lei. O Palhaço
mostra a preocupação de criar uma obra popular não pelo conteúdo,
comprovadamente popular, mas pela intenção de criar uma obra que se
nutre do popular. No nosso entender temos aqui uma questão
estrutural, de linguagem. O Palhaço é a personagem através da qual
177
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1978, p. 24. SUASSUNA,
Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 16.
178
NEWTON Jr., Carlos. ‘Auto da Compadecida’: 50 anos. In: SUASSUNA, Ariano. Auto da
Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 207.
104
esse popular pleiteado é resgatado O Palhaço seria, segundo
Nogueira
179
, o arquétipo do qual Suassuna emerge como contador de
histórias. Daí se pode inferir a importância do contador, do narrador na
transmissão e manutenção do capital cultural. O Palhaço é o
apresentador:
Palhaço, grande voz:
Auto da Compadecida! O julgamento de alguns
canalhas, entre os quais um sacristão, um padre e um
bispo, para exercício da moralidade.
Toque de clarim.
Palhaço:
A intervenção de Nossa Senhora no momento
propício, para triunfo da misericórdia. Auto da
Compadecida!
Toque de clarim.
A Compadecida:
A mulher que vai desempenhar o papel desta excelsa
Senhora, declara-se indigna de tão alto mister.
Toque de clarim.
Palhaço:
Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo,
praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um
palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém que
sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de
solércia. Ele o tinha o direito de tocar nesse tema, mas
ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente,
porque acredita que esse povo sofre e tem direito a certas
intimidades.
Toque de clarim.
Palhaço:
Auto da Compadecida! O ator que vai representar
Manuel, isto é, Nosso Senhor Jesus Cristo, declara-se
também indigno de tão alto papel, mas não vem agora
porque sua aparição constituium grande efeito teatral e
o público seria privado desse elemento de surpresa.
Toque de clarim.
Palhaço:
Auto da Compadecida! Uma história altamente moral
e um apelo à misericórdia.
180
Como apresentador e fala representadora do próprio autor, para
Décio A. Prado, fazendo as vezes de autor
181
, o Palhaço não nega a
179
NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassuna: o cabreiro tresmalhado, p. 21.
180
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 15-16.
181
PRADO, Décio Almeida. O teatro brasileiro moderno, p. 83.
105
orientação ficcional e, particularmente, teatral do que ali vai ter lugar,
assim como emite juízo de valor quanto ao pensamento dos atores que
representarão Cristo e Nossa Senhora, mostrando o alto grau de
religiosidade e de respeito. Representar o Cristo e Nossa Senhora soaria
quase como a transgressão do mandamento de não tomar o nome do
Senhor em vão. Seria usurpar o status da divindade.
Ainda Nogueira afirma que o Palhaço faz parte da tríade dos guias
imaginários que subjazem à vida e às idéias: o profeta, o palhaço e o
rei…
182
. Para quem o Circo com maiúscula que Ariano escreve) é uma
das imagens mais completas da estranha representação da vida, do
destino do homem sobre a terra, e compreende-se a essencialidade do
Palhaço que, segundo Ariano, muitas vezes era o papel desempenhado
pelos donos dos circos que aportavam no sertão nordestino de sua
infância. O palhaço da infância, como todo palhaço, assume o riso e
tem a função de ligar presente, passado, e futuro. O palhaço é o
elemento que vincula, ata memória e imaginação.
O palhaço é, também, a possibilidade de libertação, assim como a
leitura. O circo funcionaria, no registro de Agnes Heller, como a
suspensão do cotidiano e a elevação do espírito no leque da arte. O circo
é a festa, o não-oficial que transforma o terreno baldio, na periferia da
cidade, nos cafundós do sertão, em praça, em riso, em carnaval. A
presença do circo na cidade transfigura não só o aspecto físico, a
aparência da vila com sua lona colorida, como muda o modo de vida
dos habitantes. todo um ritual a ser cumprido pelas pessoas:
arrumar-se, vestir-se adequadamente, sair de casa, dirigir-se ao local
onde o circo está instalado, comprar os bilhetes, acomodar-se nas
arquibancadas. A rotina é quebrada enquanto o circo permanece na
cidade. Mesmo os que a ele não se agregam diretamente pela freqüência
são atingidos pela presença dele. O centro do circo é a arena,
construída com madeira pintada, cola, papel colorido, é o palco do
mundo e desfilam os rebanhos de cavalos e outros bichos, entre os
quais ressalta o cortejo do rebanho humano os Reis, atores trágicos,
182
NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassuna: o cabreiro tresmalhado, p. 21.
106
dançarinas, mágicos, palhaços e saltimbancos que somos nós.
183
O fato
de o palco ser a arena de circo em toda a sua “artificialidade” remete ao
dado da ficção vista como elaboração artística. É ficção o que ali se
passa e é preciso perceber, conscientizar-se que assim é. O Palhaço é
uma figura essencial ao circo, ele quase que caracteriza, melhor,
identifica o circo. Não se concebe, na experiência cultural popular, um
circo sem palhaço. Não à toa a frustração demonstrada por Suassuna
pela ausência do Palhaço em Guel Arraes.
Se a influência de autores ibéricos e românticos ingleses deixou
rastros evidentes nos textos suassunianos, o universo nacional, melhor,
nordestino, é a referência principal. Mitos, contos e histórias narradas,
muitas sem dono, servem a Ariano para a criação de seu universo
ficcional e dramatúrgico. Nesse sentido, o primeiro ato do Auto da
Compadecida, baseia-se no folheto O enterro do cachorro (Leandro
Gomes de Barros) e o segundo na História do cavalo que defecava
dinheiro (anônimo), enquanto o terceiro se originaria no auto popular
nordestino O castigo da soberba
184
. Suassuna empresta da literatura
popular temas e modelos, portanto, é herdeiro (e apropriador) do
discurso oral, do improviso, do espontâneo, do primeiro bakhtiniano. E
tem um quê do narrador benjaminiano, aquele que conta o passado, o
vivido e faz reavivar a memória. Mais, dialoga com autores do passado e
os faz intertexto com os do presente, que buscam nos nacionais,
tradicionais e populares, material para recriação que retorna ao povo
em novos e elaborados formatos artísticos. As peças de Suassuna, e a
Compadecida é exemplo claro, recriam com a intenção de realizar uma
arte nacional de caráter universal.
Como o Palhaço, os outros personagens são também tirados da
vivência sertaneja, homens religiosos, de espírito um tanto mágico,
crentes em milagres e sempre abertos ao sobrenatural que, em extremo,
encontram explicação nas palavras de Chicó ao tentar justificar as
183
SUASSUNA, Ariano. O palhaço e o circo. Diário de Pernambuco, 19 novembro 1975, p. 5.
184
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 8-9.
107
histórias estapafúrdias que inventa e conta para João Grilo: Não sei,
sei que foi assim
185
.
João Grilo é personagem tirado de uma história conhecida em
toda a região. Tem algo de Arlequim: está sempre tentando desenrolar,
desembrulhar as encrencas e confusões por ele mesmo urdidas no seu
viver, ou na luta pela sobrevivência. Na cena do julgamento, quando o
Demônio aparece e declara ser a hora da verdade, João imediatamente
afirma: Então sei que estou desgraçado, porque comigo era na
mentira
186
. Em busca de melhores momentos, João Grilo arma
confusões, aprecia montar presepadas e se mostra mais corajoso do que
de fato é. Sua fala o identifica e seu discurso é o meio pelo qual
situações efetivas de vida se estruturam
187
Como toda proferição, a de
João Grilo reestrutura a situação e é por esse discurso que ele se a
conhecer:
Chicó:
João, deixe de ser vingativo que você se desgraça!
Qualquer dia você inda se mete numa embrulhada séria!
João Grilo:
E o que é que tem isso? Você pensa que eu tenho
medo? assim é que posso me divertir. Sou louco por
uma embrulhada!
Chicó:
Permita então que eu lhe dê os parabéns, João,
porque você acaba de se meter numa danada.
João Grilo:
Eu? Que há?
Chicó:
O Major Antônio Moraes vem subindo a ladeira.
Certamente vem procurar o padre.
João Grilo:
Ave Maria! Que é que se faz Chicó?
Chicó:
Não sei, não tenho nada a ver com isso! Você que
inventou a história e que gosta de embrulhada, que
resolva!
188
185
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 20.
186
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 129.
187
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998, p.
228.
188
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 28-29.
108
João Grilo é o “quengo”, o amarelinho esperto, que vence os
poderosos pela astúcia, o próprio Cristo reconhece: (…) Sei que você é
astuto
189
; pela mentira, pela safadeza, nem sempre “politicamente
correta”, mas compreendida e justificada, mesmo porque nossos
pequenos furtos latinos e mestiços não são nada, comparados com essa
vasta ladroagem, que não fomos propriamente nós, Povos escuros e
pobres do mundo, que planejamos e organizamos.
190
Grilo busca alguns
momentos bons, mas no fundo a questão é mais grave. Seu objetivo
primordial é a sobrevivência. É um homem do povo, e como tal, seu
maior problema é a luta pelo pão de cada dia. É preciso um lugar para
dormir, é preciso um trapo ao menos sobre o corpo e um bife no prato,
coisas que João Grilo e seu amigo Chicó não têm. Mas João Grilo não é
o malandro que extorque o outro. Ele um duro danado na padaria e
como trabalhador é sempre explorado pelo patrão que lhe nega até um
pedaço de pão por ele mesmo fabricado. Ao ser questionado por Chicó
sobre a raiva que sente da mulher do padeiro, fica clara essa situação
de exploração a que ele é submetido no trabalho e da qual seu discurso
comprova a consciência:
João Grilo:
O homem sem vergonha! Você inda pergunta? Está
esquecido de que ela deixou você? Está esquecido da
exploração que eles fazem conosco naquela padaria do
inferno? Pensam que são o Cão porque enriqueceram,
mas um dia hão de me pagar. E a raiva que eu tenho é
porque quando estava doente, me acabando em cima de
uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava
pr’o cachorro. Até carne passada na manteiga tinha. Pra
mim nada, João Grilo que se danasse. Um dia eu me
vingo!
191
Mesmo o aspecto da vingança encontra explicação. João Grilo
seria uma personalidade, um caráter vingativo ou a mágoa pelo
desprezo, pelo tratamento desumano o levou a se enraivecer
“justamente”? Em outras ocasiões, seu caráter é o de um homem justo.
Nunca, em nenhum momento ou circunstância, ele passa a perna em
Chicó. Quando da morte de Severino, ele surrupia o dinheiro que estava
189
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 150.
190
SUASSUNA, Ariano. Farsa da boa preguiça. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005, p. 25.
191
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 28.
109
nos bolsos do cangaceiro, sai cantando vitória e julgando-se a si próprio
como sendo o mais sábio dos homens, numa mostra de vaidade, mas
não esquece o amigo:
João Grilo:
E agora vida boa e independência para João Grilo e
para Chicó, graças à minha altíssima sabedoria e ao
testamento do cachorro.
192
Sua proximidade com Nossa Senhora, a quem chama de A mãe
da justiça e invoca de modo bastante familiar e na certeza de ser
atendido, aponta para sua religiosidade:
João Grilo:
Ah isso é comigo. Vou fazer um chamado especial,
em verso. Garanto que ela vem, querem ver? (Recitando)
Valha-me Nossa Senhora,/ Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite,/ a braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada,/ a braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio,/mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,/ só me falta ser mulher.
Encourado:
Vá vendo a falta de respeito, viu?
João Grilo:
Falta de respeito nada, rapaz! Isso é o versinho de
Canário Pardo que minha mãe cantava pra eu dormir. Isso
tem nada de falta de respeito!
Já fui barco, fui navio,/ mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem/ só me falta ser mulher.
Valha-me Nossa Senhora,/ Mãe de Deus de
Nazaré.
193
Nossa Senhora irrompe na cena em resposta à invocação e ainda
agradece a forma como foi chamada.
João Grilo é comparado por muitos críticos a Macunaíma, idéia
que não tem o apoio de Suassuna:
eu não concordo. Chego a brigar (risos). Não aceito
que João Grilo seja considerado um herói sem nenhum
caráter, pois, no meu entender, ele tem caráter, e muito.
Também minha concepção de herói é diferente. Ele é um
camarada nascido pobre, que passa por dificuldades,
mas, na peça, derrota a burguesia urbana representada
pelo padeiro e a mulher, vence o patriarcado rural no papel
do major Antônio Moraes, derrota até o demônio. Então, se
um personagem como esse não é herói, não sei quem é.
192
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 122.
193
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 157.
110
digo que Macunaíma não é, o que é dito pelo próprio Mário
de Andrade.
194
Fica claro que o lado Arlequim de João Grilo exibe uma esperteza
que é comum aos pobres diabos deserdados pela vida. Na Commedia
del’Arte, Arlequim é personagem emblemático. Geralmente acrobata de
circo, é vivaz, multifacetado, costumeiramente falta com a palavra.
Armada a confusão, ele precisa de perspicácia para se desvencilhar, ou
defender-se dos mais fortes. Invoca Nossa Senhora e argumenta em
busca de sua proteção como defensora e intermediária entre o Redentor
e os homens. Ele sobrevive pelo discurso:
Compadecida:
E pra que você me chamou, João?
João:
É que esse filho de chocadeira quer levar a gente
pro inferno. Eu podia me apegar, mesmo, com a
senhora.
………………………………………………………………………….
João Grilo:
E então? Você ainda pergunta? Maria vai-nos
defender. Padre João, puxe aí uma Ave-Maria.
João ainda orienta os réus, interrompendo a reza, sobre o quê e
como deveriam dizer:
João Grilo:
Um momento, um momento. Antes de
respondermos, lembrem-se de dizer em vez de “agora e na
hora de nossa morte”, “agora na hora de nossa morte”
porque do jeito que nós estamos, está tudo misturado.
195
As sutilezas discursivas são usadas por João Grilo de modo
competente, a exclusão de conjunção aditiva muda todo o significado.
Inclui os demais em seu pedido à Virgem: Maria vai nos defender.
196
Pode ser esperteza, estão todos no mesmo barco, e Nossa Senhora,
como o Cristo, talvez não gostasse de uma atitude egoísta, do tipo,
salvo-me e os outros que se danem. Algumas falas depois, João sabe
muito bem como buscar o melhor para si. Quando Manuel fala que o
194
BRASIL, Ubiratã. O Policarpo Quaresma do sertão no novo século. O Estado de S. Paulo, São
Paulo, 24 abril 2005, p. D8-D9, Caderno2/Cultura.
195
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 160.
196
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 160.
111
padeiro e sua mulher eram vistos pela Virgem e Ele do céu, fazendo
maldades com João Grilo, este imediatamente responde:
João Grilo:
Se é por mim, não há dificuldade, porque eu sou tão
sem-vergonha, que já me esqueci de tudinho.
197
Esse esquecimento, para o Cristo, deveria ter acontecido na terra
e não na hora do julgamento e no fundo ele não acontece, é um artifício
discursivo de João. A proposta de João Grilo de mandar os restantes no
julgamento para o purgatório, ficando de fora, é pura esperteza
travestida de bondade. Pede a palavra e:
João Grilo:
Os cinco últimos lugares do purgatório estão
desocupados?
Manuel:
Estão.
João Grilo:
Pegue esses cinco camaradas e bote lá!
198
………………………………………………………………………..
Manuel:
E agora, nós, João Grilo. Por que sugeriu o negócio
pra os outros e ficou de fora?
João Grilo:
Porque, modéstia a parte, acho que meu caso é de
salvação direta
199
.
Segue-se toda uma arenga, na qual João Grilo argumenta com a
Compadecida em termos realistas: é melhor pedir o céu para ficar mais
fácil negociar o purgatório com o Diabo. Por fim, a Compadecida solicita
a Manuel que o deixe voltar para a terra dos viventes, com o que o
Cristo concorda, impondo uma condição que põe à prova a vivacidade, a
perspicácia de João Grilo:
Manuel:
Você me faz uma pergunta que eu não possa
responder. Pode ser?
200
197
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 164.
198
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 168.
199
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 169.
200
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 173.
112
E João Grilo, depois de uma outra arenga, desta vez com Manuel,
se sai muito bem com a pergunta:
João Grilo:
……. Bom, se o senhor o faz objeção, minha
pergunta é esta. Em que dia vai acontecer sua segunda
vinda ao mundo?
201
Quando fala em objeção por parte do Cristo, João uma espécie
de cheque-mate. Se a sabedoria divina, a onisciência do Cristo
admitisse objeção, seu poder deixaria um flanco a ser explorado. Note-
se que, logo depois, o Cristo diz ter conhecimento antecipado da
pergunta e que já estava tudo combinado com a Compadecida – a
onisciência divina é preservada.
Assim como mostras de conhecer o texto sagrado, João Grilo
tem noções do texto da lei e não vai se deixar levar pelo autoritarismo
do Encourado:
João Grilo:
É assim, de vez? É só dizer “ora dentro” e vai tudo?
Que diabo de tribunal é esse que não tem apelação?
Encourado:
É assim mesmo e não tem para onde fugir.
João Grilo:
Sai daí, pai da mentira! Sempre ouvi dizer que pra
se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida!
202
João Grilo se safa, volta a terra, não sem antes levar algumas
repreensões para não se julgar melhor do que os outros viventes e
pecadores. Encontrando-se numa rede para ser enterrado por Chicó,
João acorda do desmaio sofrido pelo balaço de raspão que levara e,
reatada a “sociedade” com Chicó, explica que perdera o dinheiro. Segue-
se o diálogo em que Chicó conta a promessa feita à Nossa Senhora de
lhe entregar o dinheiro, o que os faz continuar pobres. João Grilo tenta
de todas as formas ficar com, pelo menos, parte do dinheiro, a metade
que lhe cabe. Mas frente aos argumentos de Chicó de que, quando
prometera, o dinheiro lhe pertencia inteiramente porque João estava
201
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 174.
202
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 132.
113
morto, Grilo acaba por concordar com a entrega total do dinheiro,
mesmo porque:
João Grilo:
Entrego. Palavra é palavra, e depois estive
pensando: quem sabe se a gente, depois de ficar rico, não
ia terminar como o padeiro? Assim é melhor cumprir a
promessa: com desgraça a gente já está acostumado e
assim pelo menos não se fica com aquela cara.
Não se pode negar a João uma postura ética, afinal palavra é
palavra, e depois estive pensando, quem sabe se a gente, depois de ficar
rico, não ia terminar como o padeiro?
203
, ou seja, com sua falta de
caráter, de solidariedade, de humanidade. Não valeria a pena. João
Grilo tem sua ética, seus valores.
Segundo Bráulio Tavares
204
, João Grilo é a encarnação de Pedro
Malasartes, herói picaresco brasileiro que tem seus antepassados em
Pedro Urdemalas na Espanha, e também Lazarillo de Tormes, guia de
cego que, na luta pela sobrevivência, torna-se sagaz e trapaceiro, para
não dizer cruel. São esses modelos para heróis picarescos do cordel
nordestino, encontrados nos folhetos de Leandro Gomes e Barros
(1865-1918) e de Manoel Camilo de Santos (1905-1992), que
reencarnam pela mão de Suassuna, pois suas características universais
se prestam muito bem a um trabalho de apropriação que é o que Ariano
faz ao (re)atribuir-lhes outras funções de personagens, conforme sua
conveniência e intenção.
Chicó é o companheiro inseparável de João Grilo. Um loroteiro de
primeira água, simples e ingênuo, homem do povo, mas que, à sua
moda também tem recursos para a sobrevivência, principalmente é um
grande inventor e contador de causos. O autor teria como modelo um
tipo real existente em Taperoá. É o ficcionista se apoderando do
indivíduo em seu cotidiano, num povoado nordestino, associando-o ao
picaresco universal, inserindo-o numa dupla conhecida pelo povo
castanho – O Palhaço e a Besta um palhaço espertalhão, no caso João
203
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 188.
204
TAVARES, Braulio. Tradição popular e recriação no ‘Auto da Compadecida’. In:
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 196.
114
Grilo, e um outro meio ingênuo e um tanto covarde, que se deixa levar
pelo mais esperto, sendo responsável muitas vezes por mais confusões
do que as esperadas pelo ladino. Mas a grande marca de Chicó é sua
habilidade de contador de histórias. O ‘mentiroso’, sem confiança no
dizer de Grilo, apossa-se do existente, muitas vezes matéria mítica, e
no seu inventar-contar vai desdobrando, qual Sherazade, uma outra
história e uma outra e assim, sucessivamente elas vão sendo
reinventadas, não encontrando nunca um final, permanecendo portas
abertas para outras. O contador também sabe em que momento da
trama que é vida dele, desencavar um causo, outro e um outro. Mil e
uma histórias. É a supremacia do poder criativo. No diálogo inicial entre
João e Chicó se evidencia a característica de contador do último.
Chicó avisa João Grilo da chegada do padeiro para pedir ao padre que
benza o cachorro da mulher que está morrendo. João não acredita, pois
desconfia de Chicó, um homem tão sem confiança. Chicó jura estar
dizendo a verdade e, para justificar a benzedura, afirma que tivera
um cavalo bento e … tome-lhe história:
João Grilo:
Que é isso Chicó? (Passa o dedo na garganta)
estou ficando por aqui com suas histórias. É sempre uma
coisa toda esquisita. Quando se pede uma explicação, vem
sempre com “não sei, só sei que foi assim”.
Chicó:
Mas se eu tive mesmo o cavalo, meu filho, o que é
que eu vou fazer? Vou mentir, dizer que não tive?
João Grilo:
Você vem com uma história dessas e depois se
queixa porque o povo diz que você é sem confiança.
Chicó:
Eu, sem confiança? Antônio Martinho está pra
dar provas do que eu digo.
João Grilo:
Antônio Martinho? Faz três anos que ele morreu.
Chicó:
Mas era vivo quando eu tive o bicho.
João Grilo:
Quando você teve o bicho? E foi você que pariu o
bicho?
115
Chicó:
Eu não. Mas do jeito que as coisas vão, não me
admiro mais de nada. No mês passado uma mulher pariu
um, na serra do Araripe, para os lados do Ceará.
205
No discurso de Chicó, histórias são para serem contadas e não
explicadas. Do cachorro a ser benzido para um cavalo bento foi um
átimo. Invoca uma testemunha morta, mas isso não o impede de
continuar sua história. O trocadilho montado por João sobre ter um
cavalo no sentido de parir, deu oportunidade a Chicó para enganchar
uma outra história, que não se desenvolveu porque Grilo jogou um
balde de água fria – Isso é coisa da seca. Acaba nisso, essa fome:
ninguém pode ter menino e haja cavalo no mundo. A comida é mais
barata e é coisa que se pode vender. Mas seu cavalo, como foi?
206
a fim
de recuperar o fio da meada da história primeira, ou seja, a do cavalo
bento. Ao retomar a história, Chicó começa correndo atrás de uma
garrota e acaba tangendo um boi.
João Grilo:
O boi? Não era uma garrota?
Chicó:
Uma garrota e um boi.
João Grilo:
E você corria atrás dos dois?
Chicó:
Corria, é proibido?
Na história de Chicó, ele vai de Taperoá, na Paraíba, para Propriá,
no Sergipe, correndo no lombo de seu cavalo bento:
João Grilo:
Mas Chicó, e o rio São Francisco?
Chicó:
podia estar seco nesse tempo, porque não me
lembro quando passei… E nesse tempo todo o cavalo ali
comigo, sem reclamar nada!
João Grilo:
Eu me admirava era se ele reclamasse.
205
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 18-29.
206
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 19.
116
Chicó:
É por causa dessas e de outras que eu não me
admiro mais de nada, João. Cachorro bento, cavalo bento,
tudo isso eu já vi.
207
As reticências estão para mostrar a hesitação resolvida, numa
fração de segundo, pelo exímio contador. A ironia da fala de João Grilo
tem resposta pronta, mas ela é formalizada de modo a dar a idéia de
que não foi percebida.
Para enterrar João Grilo, Chicó conta com a ajuda do Palhaço.
Quando João levanta-se na rede e fala, instala-se um diálogo que
mostra a falta de crédito que Chicó gozava. O Palhaço não acredita nele,
mesmo quando diz a verdade:
Chicó:
Você ouviu alguma coisa?
Palhaço:
Eu não.
Chicó:
Pois eu ouvi direitinho a fala de João!
Palhaço:
Ai, ai, ai, você já começa com suas histórias!
208
A fala de Chicó, quando da “morte” do amigo, mostra o afeto
existente entre eles, a expectativa da solidão que experimentaria, a
admiração que nutria pelo amigo, bem como a certeza de sua esperteza
e inteligência, assim como também sua postura em relação não à
morte, mas, à vida:
Chicó:
João! João! Morreu! Ai meu Deus, morreu pobre de
João Grilo! Tão amarelo, tão safado e morrer assim! Que é
que eu faço no mundo sem João? João! João! Não tem
mais jeito, João Grilo morreu. Acabou-se o Grilo mais
inteligente do mundo. Cumpriu sua sentença e encontrou-
se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de
nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem
explicação que iguala tudo que é vivo num rebanho de
condenados, porque tudo que é vivo morre. Que posso
fazer agora? Somente seu enterro e rezar por sua alma.
209
207
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 20-21.
208
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 177.
209
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 123.
117
Ao se perceber vivo, João por falta do dinheiro e fica
aperreado:
Chicó:
Pode ficar descansado, João, o dinheiro da
sociedade está aqui. Eu tirei de seu bolso, antes de você
se enterrar.
João Grilo:
Ah, cabra safado! Com pena de mim, mas não se
esqueceu do dinheiro, hein!
Chicó:
Homem, quer saber de uma coisa? Foi! Vo
estava morto, esse dinheiro não ia mais lhe servir, achei
que era mais seguro eu ficar com ele!
210
Pode ser ingênuo, nosso amigo Chicó, mas de espírito bem
prático, pragmatismo esse que é, se não derrotado, confrontado pelo
afeto:
Chicó:
Tem que eu, pensando que não tinha mais jeito, fiz
uma promessa a Nossa Senhora pra dar todo o dinheiro a
ela, se você escapasse!
E Chicó leva, pela sua retórica, que não dispensa a ironia, João a
compreender que seria preciso cumprir a promessa:
Chicó:
E eu sabia que você ia escapar, desgraça? Oh
homem duro de morrer, meu Deus.
………………………………………………………………………..
Chicó:
E reclama de mim! E você, por que achou de
escapar?
211
Contador de lorotas, um grande inventor de causos e de histórias,
mas um homem de caráter:
Chicó:
Está certo, homem, estou tão desgostoso quanto
você! Diabo de uma reclamação em cima da gente de
minuto em minuto! É melhor deixar de conversa: vamos
pagar o que se deve!
………………………………………………………………………..
210
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 182.
211
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 184.
118
Chicó:
Então fique com sua parte e assuma a
responsabilidade. Eu vou entregar a minha.
212
Esse traço de caráter não pode ser isolado do aspecto religioso
emprestado ao texto pelo autor. Protestante de formação, convertido ao
catolicismo, nunca renegando sua preocupação religiosa, fica clara a
preocupação de Ariano Suassuna com o divino. Frente à morte,
inexplicável e sem sentido, que faz da vida nada mais que um contrato
temporário, daí a ausência de significação, sendo Deus a única
possibilidade de ressignificação. Para Chicó, a vida do amigo é
prioritária e Deus, pela mediação da Virgem Maria, seria capaz de
devolvê-la. A promessa tinha de ser cumprida. O discurso de Chicó não
indicia em nenhum momento falta de caráter, mas esse traço positivo
pode ser creditado à sua religiosidade. Afinal, não se pode negar ao
discurso religioso um caráter de ameaça, o aceno com a pena, o castigo,
quando do não cumprimento das promessas feitas à Divindade e, em
contrapartida, a premiação para os cumpridores.
As personagens clericais poderiam ser classificadas de hilárias
se não fossem trágicas, no sentido do dito popular. Se a Igreja, na visão
do autor, deve ser preservada e é o único caminho para a salvação, seus
mais ilustres representantes são pouco dignos. Salvo o Frade, que na
hierarquia é o menor, os demais são alvos da ferocidade autoral.
Padre João, o pároco da paupérrima povoação, desenha-se,
independente das marcações Fala afetadamente com aquela pronúncia
e aquele estilo que Leon Bloy chamava de “sacerdotais”, em outro
momento com desprezo, referindo-se ao modo como o padre deve falar
213
como um vira-casacas logo de início. Avisado por Chicó da chegada
de uma pessoa que traria um cachorro para ser benzido, ele não se
recusa a fazê-lo como acha uma besteira, uma maluquice. Afirma que
benzer um motor é possível porque todo mundo faz, cachorro ele
mesmo nunca vira ser benzido. Mas ao saber que o cachorro pertencia
212
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 186.
213
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 21.
119
uma mentira de João Grilo) ao Major Antônio Moraes, poderoso das
cercanias, muda seu raciocínio:
Padre:
Zangar nada, João! Quem é um ministro de Deus
para ter direito a se zangar? Falei por falar, mas também
vocês não tinham dito de quem era o cachorro!
214
O Padre é nteresseiro, afinal o Major tem dinheiro e o poder que
dele advém. Um enunciado liga pessoas e, no caso, essa terceira,
Antônio Moraes, que entra no horizonte da comunicação, passa a
responder diretamente pela intenção discursiva do padre:
Padre:
Ora quanta honra! Uma pessoa como Antônio de
Moraes na igreja! quanto tempo esses pés o cruzam
os umbrais da casa de Deus!
Encontra desculpas para essa ausência:
Padre:
Qual o quê, eu sei de suas ocupações, de sua
saúde…
215
O diálogo entre o Major e o Padre vai mostrar um pobre diabo
inteiramente à mercê do autoritarismo e prepotência do outro. Essa
mesma subserviência aparece na conversa do Padre com Severino de
Aracaju, o malvado invasor de Taperoá, ao insistir em chamá-lo de
capitão:
Padre:
É que nós não temos coragem de chamar uma
pessoa tão importante de Severino.
216
E reaparece, quando, em presença de Cristo, no julgamento final,
o padre se declara não preconceituoso e o Encourado (Diabo) afirma
que batizava as crianças brancas sempre na frente das negras, ao que o
padre retruca:
Padre:
Mentira! Muitas vezes batizei os pretos na frente.
214
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 24.
215
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 32.
216
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 98.
120
Encourado:
Muitas vezes, não, poucas vezes: e, assim mesmo
essas poucas, quando os pretos eram ricos.
Padre:
Prova de que eu o me incomodava com a cor, de
que o que me interessava….
É interrompido, um ‘deslize discursivo’ na presença das
reticências, o revela:
Manuel:
Era a posição social, o dinheiro, não é, Padre
João?…
217
Ambos, Padre e Major, são vítimas da tramóia armada por João
Grilo. Enquanto o Major fala do filho a ser benzido, o Padre fala do
cachorro, ambos enredam-se e comprometem-se no discurso. O Major
ameaça queixar-se ao Bispo, deixando o Padre em pânico e a partir daí
ele está nas mãos de João Grilo, que tem prometido pelo Major um
emprego em sua fazenda, diz-se amigo do Major e promete livrar o
Padre da fúria do poderoso. O padre teme o Bispo e, principalmente, ser
suspenso; assim frente à promessa de Grilo de tudo se arranjar, afirma
que este não se arrependerá uma mão lava a outra e o pároco vai se
enredando na malha de desatinos urdida por João Grilo.
Padre:
Arranja mesmo, João? Como?
………………………………………………………………………….
Padre:
Pois arranje as coisas, João, que você não se
arrepende.
218
Da mesma forma que se enreda com João, o Padre o faz com o
esperto e pedante Sacristão que ouve a conversa sobre o testamento do
cachorro.
Grilo:
Estou aqui dizendo que, se é desse jeito, vai ser
difícil cumprir o testamento do cachorro, na parte do
dinheiro que ele deixou para o padre e o sacristão.
217
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 140.
218
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 36.
121
A partir daí, o Sacristão toma a si a responsabilidade de conseguir
que se enterre o cachorro em latim e, de posse da informação sobre o
testamento tem em suas mãos o padre:
Sacristão:
Mas eu não disse que fica tudo por minha conta?
Padre:
Por sua conta como, se o vigário sou eu?
Sacristão:
O vigário é o senhor, mas quem sabe quanto vale o
testamento sou eu.
219
A fala do Sacristão, a par de uma entonação cortante e calculista
sugerida por Suassuna, é recheada de afirmações que não admitem
recusas: E mesmo não será preciso que Vossa Reverendíssima
intervenha. Eu faço tudo! Logo em seguida: Faço.
220
E de fato, fez:
enterrou o cachorro e em latim. O padre não acompanha o enterro. De
acordo com a rubrica autoral, na cena, coloca a mão na boca, fica
angustiado, mas a única coisa que faz é correr para a igreja: o que não
é dito emerge da expressividade discursiva e dá conta da situação.
Atitude de Pilatos, como a dizer: “Foi o Sacristão, não eu, que enterrou
o cachorro”. Essa mesma tentativa de se eximir das responsabilidades e
de se julgar, por outro lado, inatingível, aparece quando ao ser acusado
pelo Encourado:
Padre:
De mim ele não tem nada o que dizer!
………………………………………………………………………….
Padre:
Mas não citei o Código Canônico em falso.
Acusado de falta de coleguismo, retruca:
Padre:
Mas o que eu fizer aqui ainda voga?
221
Durante todo o processo de acusação, o que se mais se ouve da
boca do padre é: Ah, patife! , referindo-se aos outros.
219
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 55.
220
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 57 e 58.
221
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 143.
122
Em relação ao Sacristão, é preciso dizer que seu discurso, além
de impositivo como já exposto, é tão hipócrita e interesseiro quanto o do
padre. Desde que beneficiado pelo testamento do cachorro, este passa a
ser um animal especial e o sacristão repete o padre: Que animal
inteligente! Que sentimento nobre!
222
Sem opinião própria, fraco, o padre pede o parecer de Chicó, o
sem confiança do lugar:
Padre:
Você o que é que acha?
Chicó:
Eu não acho nada de mais!
Padre:
Nem eu. Não vejo mal nenhum em se abençoar as
criaturas de Deus!
223
Mas não mantém nem mesmo a opinião alheia, pois logo a seguir
diz:
Padre:
Pensando bem, acho melhor não benzer! O Bispo
está e eu benzo se ele der licença. ... Aliás, não
permite nem a entrada do casal com o cachorro
agonizante, este tem de ficar fora da igreja: Parem, parem!
Um momento. Entre o senhor e entre a senhora: o cachorro
fica lá!
224
A ausência do Bispo, talvez permitisse que a opinião de Chicó
prevalecesse. O ximo da desfacetez do padre fica patente em seu
diálogo com João Grilo. Emocionado pela choradeira da dona do
cachorro, o padre exclama: Pobre mulher! Pobre cachorro! O marido se
aproveita do momento e:
Padeiro:
O senhor benze o cachorro, padre João?
João Grilo se mete na conversa e afirma que o padre só benzeria o
cachorro do Major Moraes, pois este é gente importante. O padre
sabe dizer, num tom apaziguador: Que é isso, que é isso? E essa fala é
uma constante no discurso do padre, aparecendo também na fala do
222
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 52.
223
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 24.
224
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 40- 41.
123
Sacristão. Esse apaziguamento nada mais é do que um ganhar tempo
para ver o que para fazer, pois o interesse de auferir lucros da
situação. Portanto, o discurso vai em linha oposta à intenção, ou seja,
na superfície é uma coisa, na realidade, outra. Ou seja, as entrelinhas
revelam a verdadeira intenção, aquilo que não é dito e significa.
O padre é um fraco que recorda, lamentando:
Padre:
Ai meus dias de seminário, minha juventude
heróica e firme!
225
Na atualidade, se dá ao desplante de dizer:
Padre:
Não me decido coisa nenhuma, não tenho mais
idade pra isso. Vou é me trancar na igreja e de lá ninguém
me tira!
226
Não à toa será acusado pelo Encourado, quando do julgamento,
de ser preguiçoso:
Encourado:
A preguiça. Deixava tudo nas costas do sacriso e
a paróquia ficava completamente entregue a esse patife,
por sua culpa.
227
A entrada em cena do bispo leva o discurso do padre a exibir seu
preconceito em relação ao pobre do João Grilo e também sua lentidão
de percepção:
Padre:
Um canalhinha amarelo que mora aqui e trabalha
na padaria. Chegou dizendo que o cachorro de Antônio
Moraes estava doente e que ele queria que eu o benzesse.
Quando o homem chegou, a confusão foi a maior do
mundo. Agora eu entendo tudo. Mas ele me paga!
228
Padre:
Porque você é um amarelo muito safado.
225
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 42-43.
226
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 41.
227
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 144.
228
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 64.
124
Ao se perceber em situação difícil diante do bispo, o padre vira
sua fala, numa tentativa de cooptar João Grilo, depois de simular um
mal-estar:
Padre:
Ai, João Grilo, meu querido, me acuda que estou
morrendo!
João Grilo:
Eu? Quem sou eu pra socorrer padre, eu, um
amarelo muito safado?
Padre:
Eu retiro o que disse, João.
229
O Bispo é apresentado pelo Palhaço como sendo uma grande
figura (…) am de bispo, um grande administrador e político (…) grande
príncipe da Igreja. Como personagem criada pelo autor, e na fala do
mesmo, trata-se de um medíocre e enfatuado que se faz acompanhar de
um Frade, alegre e bondoso a quem todos tratam com desprezo mal
disfarçado. Enquanto o Bispo desdenha o Palhaço, quando este se
curva perante ele, o Frade aponta o Palhaço e ri desbragadamente. De
quem ri o Frade? Ou de que ri? O discurso gestual diz ser do Palhaço.
Sugerimos o rapapé entre Bispo e Palhaço, também discurso, como
deflagrador do riso. Nessa perspectiva, o Frade ri dos dois, sendo seu
‘discurso-riso’ uma resposta ao ‘discurso-mesura’ do Bispo e do
Palhaço.
Apesar do salamaleque ao Bispo, a fala de apresentação do
Palhaço introduz a ironia que cerca todo o discurso sobre o Bispo, os
enunciados a ele dirigidos, assim como o discurso do próprio. Dirigindo-
se ao Bispo:
Palhaço:
Muito bem, olá, como está Vossa Reverendíssima?
Como vai essa prosápia, essa bizarria…
230
A resposta não tarda: Retro, onde está o padre?
A fala do Bispo sobre o Frade mostra bem o mau caráter do
primeiro:
229
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 68-69.
230
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 61.
125
Bispo:
É horrível ter de viver com um débil mental às
costas, mas meu antecessor gostava dele e não quis
desprestigiá-lo, porque afinal de contas era meu colega, de
modo que conservei essa lesma no lugar em que a
encontrei.
231
Ao dirigir-se ao Padre, as palavras do Bispo são ríspidas, sendo a
escolha e estrutura sintática responsáveis pela entonação e
expressividade que indiciam a questão do valor, isto é, a relação entre
os sujeitos discursivos e a situação discursiva, apontando para a
personalidade autoritária do Bispo.
Bispo:
Pois entenderá já. Quando eu lhe disser que
Antônio Moraes falou comigo
232
A conversa entre o Bispo e o Padre mostra a infantilidade de
ambos, apresenta-se inadmissível que a grande figura se preste a levar
um discurso desse tipo avante.
233
Acusado de chamar a mulher de
Moraes de cachorra, o padre nega e o bate-boca se instala:
Padre:
Não, nunca, Deus me livre! Mas juro que não
chamei a mulher dele de cachorra.
Bispo:
Chamou, Padre João!
Padre:
Não chamei, senhor Bispo!
Bispo:
Chamou, Padre João!
Padre:
Não chamei, senhor Bispo!
Bispo:
Chamou, Padre João!
234
Ao saber do enterro do cachorro, o Bispo se dispõe a suspender o
padre por achar sua atitude Uma vergonha! Uma desmoralização!, além
de uma afronta ao Código Canônico, que o Bispo cita com toda a
empáfia:
231
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 62.
232
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 63.
233
No item Carnavalização essa fala se explicará como sendo o processo de degradação
bakhtiniano.
234
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 64.
126
Bispo:
Se é proibido? É mais do que proibido! Código
Canônico, artigo 1672, parágrafo único, letra k. Padre, o
senhor está suspenso.
235
A vergonha e a desmoralização pelo enterro deixam de existir no
momento em João Grilo ironicamente declara:
João Grilo:
É mesmo, é uma vergonha! Um cachorro safado
daquele se atrever a deixar três contos de réis para o
sacristão, quatro para o padre e seis para o bispo, é
demais.
Bispo (mão em concha no ouvido):
Como?
………………………………………………………………………..
Bispo:
É por isso que vivo dizendo que os animais também
são criaturas de Deus. Que animal inteligente! Que
sentimento nobre!
236
As aparências – ou hipocrisia – precisam ser mantidas:
Bispo:
É preciso deliberar. É assunto pra se discutir com
muito cuidado. Vamos reunir o concílio.
Não à toa, um grande administrador e o divulgador dessa virtude
é o Sacristão:
Sacristão (do limiar, antes de entrar na igreja):
Na verdade, vê-se logo que é um grande
administrador.
237
Sem dúvida. Ao retornar à cena, a fala do Bispo é contundente:
Bispo:
Não resta nenhuma dúvida, foi tudo legal, certo e
permitido. Código Canônico, artigo 368, parágrafo terceiro,
letra b.
238
A pretensão do Bispo (e a ironia autoral) fica evidente no uso da
palavra “concílio”, pois o termo significa reunião de altos dignitários da
235
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 71.
236
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 74-75.
237
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 76.
238
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 89.
127
Igreja, especialmente bispos, deve ser presidido ou sancionado pelo
Papa. Não era o caso, mas impressionaria os envolvidos.
Mentiroso, até aqui ardiloso afinal quem iria conferir o Código
Canônico? agora passa a ser deslavado. Na presença de Severino,
finge desmaiar. Confundido com um cônego por Severino, mais que
depressa esclarece a situação: Bispo. Tentando comprar a simpatia de
Severino, trata-o de Capitão, como o padre faz. E pensa em salvar
sua própria pele. Em nenhum momento durante o embate com
Severino, que os mataria a todos, pensa em outra coisa que não seja
salvar-se a si mesmo, chegando ao ridículo de gritar:
Bispo:
É um louco! Socorro! Socorro!
239
E se não bastasse, chega ao cúmulo da crueldade quando o
Frade, numa atitude de profundo amor ao próximo, de responsabilidade
espiritual como religioso que era, absolve a todos os que iriam morrer:
Frade:
Severino!
Severino:
Senhor!
Frade:
Deixe eu confessar esse povo.
Severino:
O senhor Frade vai me perdoar, mas eu não tenho
tempo. A polícia pode voltar e tenho que matar vocês de
um por um.
Frade:
Então vou absolver todos condicionalmente, e peço
ao padre que faça o mesmo comigo.
Bispo:
Débil mental! (a Severino) Cavalheiro…
240
O julgamento mostra o Bispo com o mesmo ignóbil
comportamento a ponto de pedir clemência ao demônio e tratá-lo por
senhor: Senhor demônio, tenha compaixão de um pobre bispo!
241
Faz-se
de desentendido das acusações feitas pelo Encourado, continua
239
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 105.
240
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 106.
241
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 131.
128
maldizendo o frade mesmo sabendo, segundo Manuel, que o religioso
solicitara ser missionário, e será martirizado, estando assim a
caminho do processo de beatificação. Acaba como o padre, o sacristão e
o casal no purgatório a pedido de Grilo e por intermediação de Nossa
Senhora, porque ele mesmo não fez nada por si, menos ainda pelos
outros.
O padeiro e a mulher são personagens não nomeados. Para
Carlos Newton Jr. talvez o autor tenha com isso a intenção de fazê-los
personagens tipos, encarnando toda uma classe. As personagens
religiosas, à exceção de Padre João também não são nomeadas. A
mulher é aquela para quem o cachorro é o filho que eu conheço, daí seu
desespero em tentar salvá-lo através da benzedura e depois enterrá-lo,
como se fosse um ser humano, em latim e tudo o mais. Quando João
Grilo diz da impossibilidade de benzer o cachorro, porque isso seria
possível se o bichinho fosse do Major, gente mais importante, pode-se
pensar na sugestão de Newton Jr. e vê-los, o padeiro e sua mulher,
como representantes da burguesia e não da “nobreza” do lugar.
Burguesia essa detentora do poder econômico, pois o padeiro é
presidente e sócio benfeitor da Irmandade das Almas, à qual fornece
pão para as obras de caridade, além disso mantendo na paróquia uma
vaca que fornece leite para o vigário e custeando a reforma da igreja.
Mulher:
Está cortado o rendimento da irmandade!
Padeiro:
Está cortado o rendimento da irmandade!
Mulher:
Meu marido considera-se demitido da presidência.
Padeiro:
Considero-me demitido da presincia!
242
João Grilo organiza o enterro do cachorro: Vamos eu, o Chicó. Com
o senhor e sua mulher, acho que já dá um bom enterro!
Padeiro:
Você acha que está bem assim?
Mulher:
Acho.
242
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 50.
129
Padeiro:
Então eu também acho!
243
O marido é dono de um discurso redundante, está sempre a
repetir as falas da mulher e essa postura discursiva sugere a
ascendência dela sobre ele. A mulher prefere animais a gente. João
Grilo arranja-lhe um gato e ela fica feliz: Ai, João, traga pra eu ver!
Chega me uma agonia! Traga, João, estou gostando do bichinho.
Gente, não, é povo que não tolero, mas bicho gosto. Projetando essa
fala, lembramos uma autoridade que é dona de um discurso
semelhante.
Mas é sovina: Espere. Sabe do que mais, João? Não buscar o
gato que isso me traz aborrecimento e despesa. Não viu o que
aconteceu com o cachorro? Terminei tendo que fazer testamento.
244
Ao comprovar que o gato descome dinheiro, a mulher não
titubeia: Nossa Senhora, é mesmo! João, me arranje esse gato, pelo amor
de Deus!
Mulher:
Passe o gato, Chicó. Meu Deus, que gatinho lindo!
Agora a coisa é outra, tenho um filho de novo e vou tirar o
prejuízo.
245
Descoberta a lambança, é o padeiro que, na qualidade de
presidente da Irmandade das Almas, vai tirar satisfação com João Grilo
e prestar queixa ao Bispo. A queixa é aceita, mas nada se resolve,
porque Severino invade a cidade exatamente nessa hora. A mulher a
primeira mostra de afetividade (ou seria medo?) para com o marido, a
quem costumeiramente engana: ….Ai, meu marido de minha alma
João Grilo:
Deixe de besteira, Chicó, todo mundo sabe que a
mulher do padeiro engana o marido!
Chicó:
João, danado, ou você fala baixo ou eu esgano você
já, já.
João Grilo:
Mas todo mundo não sabe mesmo?
243
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 58.
244
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 83.
245
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 88.
130
Chicó:
Sabe, mas não sabe que foi comigo, entendeu? E
mesmo ela me deixou por outro! Uma vez, João, e não
posso me esquecer dela. Mas não quer mais nada
comigo.
246
O desprezo por Chicó tem a ver com a miséria deste: ….e a
fraqueza dela é dinheiro e bicho. Ela não teria deixado você se você fosse
rico
247
…, segundo Grilo.
A mulher é tão despida de censura e de respeito que tenta seduzir
Severino com a finalidade de se safar da morte: Então venha trabalhar
comigo na padaria. Garanto que não se arrependerá. Continua em seu
comportamento quando declara a Severino: É, sou casada com essa
desgraça aí, mas estou tão arrependida! gosto de homens valentes e
esse é uma vergonha.
248
O discurso da mulher carrega as tintas do
desprezo pelo marido. A afirmação inicial, o uso da expressão essa
desgraça, na qual o demonstrativo como que coisifica o homem culmina
com o advérbio . São índices discursivos que apontam para seu
desprezo pelo companheiro. Mas é corajosa e digna na hora da morte,
quando o padeiro comprova sua conhecida fraqueza de personalidade
e acresce a da vingança:
Padeiro:
Quero que ela morra primeiro, para eu ver.
Severino:
Concedido. Mate a mulher primeiro.
Mulher:
Ah desgraçado!
Padeiro:
Desgraçada é você que me desgraçava a testa sem
eu saber! E se ao menos fosse com uma pessoa de
respeito! Mas até Chicó!
………………………………………………............................….
Padeiro:
Eu não digo? Você me desgraçou. Caminhe na
frente! Faço questão de ver essa desgraça morrer!
Mulher:
E então, pensa que vou fazer cara feia? Es muito
enganado, tenho mais coragem do que muito homem
246
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 27.
247
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 27.
248
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 100.
131
safado! Você, sim, está em tempo de se acabar. Pensa
que não vi as pernas de suas calças tremendo, desde que
ele entrou? Frouxo, safado, não lhe dou o gosto de me
queixar de jeito nenhum. (Ao cangaceiro) Está pronto?
Severino:
Estou.
Mulher:
Pois vamos. (Sai firmemente, acompanhada pelo
marido que cambaleia) Eu o disse? Segure aqui que eu
ajudo.
249
Embora denotando desejo de vingança, o padeiro tem medo e não
consegue manter a aparência de coragem. A mulher consegue até
reverter a situação ao perguntar a Severino se ele está pronto, como a
sugerir que ela estava muito. O padeiro parece ser apaixonado,
pois na hora final não cumpriu o prometido e acabou abraçando-se à
mulher para morrer. Ou continuou sendo movido pelo medo? Para a
Compadecida foi amor, perdão: O perdão que o marido deu à mulher na
hora da morte, abraçando-se com ela para morrerem juntos. Note-se,
entretanto, que o padeiro não se defende, não age no sentido de
justificar ações e comportamentos, como se tudo que partisse dele fosse
normal e aceito A mulher o faz mais de uma vez, sendo a última diante
do tribunal, a dirigir-se à Compadecida, num triste e feminino discurso
no qual mostra um critério de justiça próprio:
Mulher:
Porque era maltratada por ele. Logo no começo do
nosso casamento começou a me enganar. A senhora não
sabe o que eu passei, porque nunca foi moça pobre casada
com homem rico, como eu. Amor com amor se paga.
250
Também há o discurso final do padeiro, que pode não ser ou ter a
solução, mas não deixa de revelar nobreza, pois aponta para o
espiritual: A prece que fiz por ela antes de morrer. O mais ofendido pelos
atos que ela praticava era eu e, no entanto, rezei por ela. Isso deve ter
algum valor
251
. Claro que ele o usa para ganhar pontos favoráveis no
julgamento, pontos esses que são estendidos à mulher, sendo que
249
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 110.
250
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 164.
251
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 166.
132
ambos acabam por receber a graça, pois não deixa de ser graça: a de ir
para o purgatório.
Severino do Aracaju é o violento, roubador que se faz
acompanhar de um acecla que é chamado de Cangaceiro. Severino é
nome emblemático e se aplica como uma metonímia do originário do
nordeste brasileiro. João Cabral também nos presenteou com um
maravilhoso Severino. O de Suassuna, irônico, não perde oportunidade
para mostrar sua valentia e disposição em fazer justiça com suas
próprias mãos. A primeira vítima de sua ironia é o Bispo que, ao vê-lo,
desmaia e é tido como um simples (para ele, cioso da hierarquia)
cônego:
Severino:
O que é isso que está aí deitado, um cônego?
252
O demonstrativo ‘isso’ é bem explorado na fala, à medida que
coisifica o humilhado bispo. Espírito prático, em Severino frescura
não encontra oportunidade. O título de capitão, que lhe é dado pelo
padre e pelo bispo, é renegado logo de saída: E deixe de me chamar de
capitão, que eu não gosto!… Severino que é meu nome de batismo! E
mais: sabe muito bem porque está sendo tratado de capitão, não nutre
ilusões:
Severino:
Isso tudo é porque quem está com o rifle sou eu! Se
fosse qualquer um de vocês eu era chamado era de Biu!
Deixem de conversa, que isso comigo não vale. Mostre o
bolso. (Tirando o dinheiro.) Seis contos! Mas é possível?
vi que o negócio de reza está prosperando por aqui.
253
Discurso irônico, em que transparece a crítica à capitalização da
igreja, e esperto na conversa com o padre, revelando outra faceta de
Severino, a inteligência:
Severino:
É mesmo padre? Não é possível! Numa terra em que
o bispo tem seis contos, o padre deve ter, no mínimo, ts
contos. […] Três contos! Estou quase pensando em deixar o
cangaço. Eu deixava vocês viverem, o bispo demitia o
sacristão e me nomeava no lugar dele. Com mais uns
252
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 97.
253
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 98.
133
cinqüenta cachorros que se enterrassem eu me
aposentava. […]
254
Crueldade que se manifesta cínica e ironicamente, quando mata o
padre e o sacristão:
Severino:
Que é isso quer deixar o padre sem poder rezar o
ofício?
Sacristão:
O ofício? Que ofício, o dos mortos?
Severino:
Nada, o do casamento. Vou casar vocês dois com a
morte. Ra…ra, essa foi boa!
255
Moralista, Severino o admite a tentativa de sedução da mulher
do padeiro, chegando a destratá-la de modo agressivo e ameaçador:
Severino:
Vergonha é uma mulher casada na igreja se
oferecer desse jeito. Aliás tinha ouvido falar que a
senhora enganava seu marido com todo mundo. [...] A
coisa que eu tenho mais raiva no mundo é de mulher
assim. Sabe o que é que eu faço com as que encontro com
esse costume?
256
Aparentemente contraditório, Severino ofende-se quando João
Grilo tenta comprar sua liberdade e a de Chicó:
João Grilo:
Homem, eu sei qual é a conversa que voquer
ter comigo. Tome logo meus duzentos e cinqüenta mil réis e
deixe eu ir-me embora. os seus também, Chicó, e
vamos sair daqui que o calor está aumentando.
Severino:
Nada disso. Você agora fica e vai morrer com os
outros. Está me chamando de ladrão? Severino do Aracaju
pode ser assassino, mas não mata ninguém sem motivo.
Até hoje matei para roubar. É assim que garanto meu
sustento. Mas você me chamou de ladrão e vai se
arrepender.
257
Ladrão Severino é, qualquer que seja a justificativa. A questão de
honra para ele está na motivação: mata para roubar, para se sustentar.
254
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 98-99.
255
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 108.
256
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 100.
257
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 104-105.
134
Ele mata, não vende a preservação, ou seja, não aceita suborno nem
resgate pela vida.
Sujeito religioso, Severino não mata defronte a igreja, manda
todos se retirarem e ordena ao seu cúmplice que os execute. Sua
devoção ao Padre Cícero acaba levando-o à morte. A esperteza de João
Grilo é grande, sua capacidade de forjar artifícios para sobreviver é
típica da personagem picaresca que é, mas ao vislumbrar para Severino
a possibilidade de ver Padim Ciço, ganhou definitivamente a parada:
Severino:
Nossa Senhora! tendo sido abençoada por Meu
Padrinho Padre Cícero! Você não está sentindo nada?
Este cai como uma criança que acredita em mágicas:
Chicó:
Disse (Padre Cícero) “Essa gaitinha que eu abençoei
antes de morrer, vocês devem dá-la a Severino, que
precisa dela mais do que vocês.”
Severino:
Ai meu Deus, só podia ser meu Padrinho Padre
Cícero mesmo! João me dê essa gaitinha!
………………………………………………………………………..
João Grilo:
Eu lhe dei uma oportunidade de conhecer Meu
Padrinho Padre Cícero e você me paga desse modo!
Severino:
Conhecer? Nunca tive essa sorte! Fui uma vez ao
Juazeiro para conhecer Meu Padrinho, mas pensaram
que eu ia atacar a cidade e fui recebido a bala!
258
E mesmo com toda a insistência do Cangaceiro, seu comparsa,
Severino se deixa levar pela safadeza de João Grilo e de Chicó e acaba
morto.
Mais tarde, na cena do julgamento, Severino revela-se um homem
consciente de suas culpas: Ai, meu Deus, vou pagar minhas mortes no
inferno! […] É. Matei, não vou negar.
259
Mas é um infeliz que nunca conheceu sequer a misericórdia,
quanto mais outro afeto. Quando João diz ser a mãe da justiça seu
258
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 114, 116-117.
259
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 131-147.
135
maior trunfo, e Manuel fala em misericórdia, o discurso de Severino é
terrível e remete à questão da universalidade do amor de Deus: Foi coisa
que nunca conheci. Onde mora? Como chamá-la? Deve ter conhecido o
amor de mãe, pois quando o Encourado critica o chamego da Virgem
com a humanidade, ele diz: Você só fala assim porque nunca teve mãe. É
considerado inculpável, assim como seu companheiro, por Manuel e vai
para o céu: Quanto a esses, deixe comigo. Estão ambos salvos. […]
Severino e o cangaceiro dele foram meros instrumentos de sua cólera (de
Deus). Enlouqueceram ambos depois que a polícia matou a família deles
e não eram responsáveis por seus atos. Podem ir pra ali.
260
Outra
questão está posta: Deus é passível de cólera? E cólera que permite
tamanha crueldade como a praticada contra uma criança? Pois
Severino era um menino quando presenciou a morte bárbara de toda a
família.
Se, como postula Bakhtin, palavra e discurso têm um caráter
ideológico e cada falante é um ideólogo, ou seja, expressa idéias,
reproduz a visão de mundo que lhe é peculiar no contexto interacional,
temos, no discurso de Severino e do Cristo suassunianos, dois ideólogos
que dão o que pensar. Em Suassuna temos um autor que trafegou
pelas esferas da filosofia e da teologia, em profícuo diálogo e os
resultados estão na sua criação artística.
Chegamos aos personagens que surgem no julgamento: o
Demônio, O Encourado (Diabo), Manuel (Cristo) e a Compadecida
(Virgem Maria).
O Demônio inicia a “sessão”, anunciando o que vai suceder:
Demônio:
Silêncio! Chegou a hora do silêncio para vocês e do
comando para mim. E calem-se todos. Vem chegando
agora quem pode mais do que eu e do que vocês. Deitem-
se! Deitem-se! Ouçam o que eu estou dizendo, senão será
pior!
261
O Demônio é tido como imbecil, imagem profundamente
repugnante, que reflete a do Encourado. Sai das sombras, anuncia a
260
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 166.
261
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 129.
136
chegada do Diabo, persegue os mortos com o objetivo de levá-los para o
inferno.
Encourado é o nome pelo qual o Diabo é tratado no sertão. De
acordo com a palavra do autor na rubrica inicial da cena do julgamento,
é, segundo uma crença do nordeste, um homem que se veste de
vaqueiro. Amedronta, assusta e ordena que todos o sigam para o fogo
eterno. Faz-se anunciar por pancadas ritmadas, o que lhe empresta
dignidade e ao ambiente ares soturnos, que remetem aos de um
tribunal (na minissérie, esse procedimento tem efeito de grande
expressividade). Seu discurso, autoritário e impiedoso, revela seu
caráter diabólico.
Encourado:
(…) Que vergonha! Todos tremendo! Tão corajosos antes,
tão covardes agora! Capaz de dizer verdades sem meias-
palavras: O senhor bispo, tão cheio de dignidade, o padre,
o valente Severino… E você, o Grilo que enganava todo
mundo, tremendo como qualquer safado.
É impiedoso, como pode ser o Diabo: Ah, compaixão… Como
pilhéria é boa!
262
. Sem respeito aos direitos humanos, ao ser
questionado por João Grilo sobre a ausência de apelação, responde: É
assim mesmo e não tem para onde fugir!
263
Sabedor dos maus atos cometidos pelo padre, diz: Muitas vezes,
não, poucas; e, mesmo essas poucas, quando os pretos eram ricos
264
.
Assim como estava muitíssimo bem informado sobre os atos e
comportamento do bispo e dos outros, à medida que, segundo a
doutrina cristã, o sendo onisciente como Deus, tem poderes para
‘enxergar’ os humanos
265
. Porque é o acusador no julgamento, e como
tal bastante esperto, pega as falhas dos acusados no ato: Em
compensação acaba de incorrer em falta de coleguismo com o bispo.
Intolerante e atrevido, a uma resposta brincalhona do Cristo, reage
262
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 131.
263
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 132.
264
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 139.
265
Agostinho em De Divinatione daemomum, III afirma sobre os demônios possuírem corpos
etéreos, extraordinária capacidade de percepção, competência para transportarem-se
velozmente através dos ares. VIDAL, Marly C.B.; MARQUES, Jane A. Porque Hoje é Dia de
Maria, Todos os Dias são Dias de Maria. In: Anais do XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação.
137
inclemente: Protesto contra essas brincadeiras! Aqui é um lugar sério.
Pelo Cristo, é acusado de ser preconceituoso, pois não o olha. A nós
essa atitude sugere a ojeriza ao homem santo e maior de todos, para
cultura cristã, que ali está e que o Encourado reconhece: Es um
que é maior do que esse não sei o quê e vai me entregar você. Embora
seja atrevido com o Cristo: Homem, dê-se o respeito! E com a Virgem: Lá
vem a Compadecida! Mulher que em tudo se mete!
266
A Compadecida traz no nome sua característica maior, a
misericórdia, nascida de uma profunda compreensão, conseqüente de
sua própria humanidade: convivi com os homens: começam com medo,
coitados, e terminam por fazer o que não presta, quase sem querer. É
medo. Tendo encontrado graça diante de Deus, por isso escolhida para
ser a mãe de Cristo, seu caráter misericordioso parece anteceder a
função de intercessora, que é bastante clara: Intercedo por esses pobres
que não m ninguém por eles, meu filho. Não os condene.
267
A
Compadecida não esquece de nenhum dos pobres réus e para todos e
por todos tem uma palavra intercessora, ditada pela experiência
humana por ela vivida: Seja então compassivo com quem é fraco
268
,
solidária com as mulheres: Eu entendo tudo isso mais do que você
pensa. Sei o que as mulheres passam no mundo...
269
.
Quando a situação dos réus já está altamente comprometida,
João Grilo decide chamar Por alguém que está mais perto de nós, por
gente que é gente mesmo!
270
. Segundo João Grilo, a Compadecida é a
mãe da justiça, que é a misericórdia e que ele invoca poeticamente com
uns versos que Canário Pardo fez para a Virgem e dos quais ela gosta
muito, principalmente porque Tem umas graças, mas isso até a torna
mais alegre e foi coisa de que eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza é
o diabo
271
. Portanto, é uma pessoa alegre. Tem o respeito e o crédito do
266
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 139, 143-144, 149-
158.
267
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 162.
268
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 164.
269
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p 165.
270
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 153.
271
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 159.
138
filho Manuel: Minha mãe o que é que achas
272
? Boa advogada, como ela
mesma se proclama, libertou a todos pelos quais intercedeu.
A Compadecida mostra grande intimidade com João Grilo, sabe
tudo sobre sua vida e busca argumentos para livrá-lo da condenação,
obtendo sucesso: João foi um pobre como nós meu filho. Teve de suportar
as maiores dificuldades numa terra seca e pobre como a nossa. Não o
condene, deixe João ir para o purgatório
273
. Acaba por fim conseguindo o
retorno de João Grilo à vida: Peço-lhe muito simplesmente que não
condene João.[...]Dê-lhe outra oportunidade.[...]Deixe João Voltar
274
. É
muito sugestiva a palavra oportunidade. O que João obtém, pela
intercessão da Compadecida, é uma oportunidade para mudar seu
modo de vida, pois na verdade, não morrera. Melhor ainda, sua “morte”
foi o modo encontrado pela autoria para, dando-lhe uma lição, que esta
se universalizasse. Afinal, a proposta declarada do autor é o exercício da
moralidade
275
.
A Compadecida tem conhecimento dos Evangelhos: Como todo
fariseu, o diabo é muito apegado às formas exteriores. É um fariseu
consumado
276
. Conhece e aceita a missão de Cristo proposta, pelo Pai,
quando consola Manuel, que diz ter morrido abandonado: Era preciso e
eu estava a seu lado, recorda-lhe o medo: Mas não se esqueça da noite
no jardim, do medo por que você teve de passar, pobre homem, feito de
carne e de sangue como qualquer outro e, como qualquer outro
abandonado diante da morte e do sofrimento
277
.
Por fim, mas não finalmente, cumpre com a profecia, esmagando
a cabeça do Diabo, quando este, furioso porque ela livrara João, vira-se
para ele e vê a Compadecida em toda sua bondade e beleza.
Manuel, também chamado Leão de Judá, Filho de Davi, Jesus, o
Cristo é compassivo e amoroso, permitindo a João que o chame de
Jesus. Mas, é também rigoroso no seu julgamento: sua obrigação é ser
272
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 168.
273
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 170.
274
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p, 171.
275
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 15.
276
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 159.
277
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 163.
139
humilde, porque quanto mais alta é a função, mais generosidade e
virtude se requer. Exerce seu direito:
Que direito tem você de repreender João porque
falou comigo com certa intimidade? João foi um pobre em
vida e provou sua sinceridade exibindo seu pensamento
Você estava mais espantado do que ele e escondeu essa
admiração por prudência mundana. O tempo da mentira já
passou.
278
A questão aqui foi o espanto de João Grilo ao se deparar com um
Cristo Negro, que ele esperava fosse menos queimado. Onisciente: ()
Você é cheio de preconceitos de raça. Vim hoje assim de propósito, porque
sabia que isso ia despertar comentário
279
.É também alegre, extrovertido:
É brincadeira minha, mas, depois que João chamou minha atenção, notei
que o diabo tem mesmo um jeito assim de sacristão.
280
Em sua profunda
humanidade lembra-se de que tem família:
(…) Davi fez coisa muito pior traindo o amigo com a mulher
e mandando ainda por cima o pobre homem na guerra e,
no entanto, era meu avô e grande amigo meu, um santo de
quem você não tem coragem nem de pronunciar o nome
281
.
Misericordioso e compassivo, busca a justiça. Quando Grilo se
julga merecedor de salvação direta e o Encourado lembra sua armação
para a mulher do padeiro, Manuel reconhece e aponta a gravidade: É
João, aquilo foi grave. Face à insistência da Compadecida na não
condenação do Grilo, Manuel declara: O caso é duro. Compreendo as
circunstâncias em que João viveu, mas isso tamm tem um limite. Afinal
de contas, o mandamento existe e foi transgredido. Acho que não posso
salvá-lo
282
. É o papel do juiz a quem não compete questionar a lei e sim
aplicá-la, por isso o não posso dito por Cristo. A condição imposta a
João para voltar funciona como uma atitude disciplinar, na linguagem
jurídica uma espécie de “pena”, e esta condição implica mais uma vez
inteligência e astúcia da parte do perguntado, e rigor da parte do
questionador: Você me fazer uma pergunta a que eu não possa
278
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 138-139.
279
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 139.
280
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 144.
281
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 148.
282
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 170-171.
140
responder. E desafiadora. Quando João declara ser difícil, Cristo
retruca: É possível, você que é tão esperto
283
? A interrogação funciona
como lembrete de autoridade, mesmo porque João Grilo estava muito
saído, segundo Manuel e precisava de uns apertos.
Major Antônio Moraes, rico proprietário de terras, dono de mina,
representante de um segmento ocioso da sociedade, Ocupações? O
senhor sabe muito bem que não trabalho e que minha saúde é perfeita,
segundo suas próprias palavras, Os donos de terra é que perderam hoje
em dia o senso de sua autoridade. Vêem-se senhores trabalhando em
suas terras como qualquer foreiro. Mas comigo as coisas são como
antigamente, a velha ociosidade senhorial
284
. Autoritário: Pois vamos
esclarecer a história, porque alguém vai pagar por essa brincadeira. (…)
Mas fique certo de uma coisa: hei de esclarecer tudo, e se você está com
brincadeiras pra meu lado, de se arrepender
285
. Orgulhoso de suas
origens e linhagem: (…) Meu nome todo é Antônio Noronha de Britto
Moraes e esse Noronha de Britto veio do Conde dos Arcos, ouviu? Gente
que veio com as caravelas, ouviu? Sabe recompensar os que o apóiam
(ou o bajulam). Quando Grilo lhe diz que o padre estava louco, mal
sabendo que toda a confusão fora armada elo próprio e que ele, Moraes,
havia sido passado para trás, afirma: Você tinha razão. Apareça nos
Angicos, que não se arrependerá
286
. Personagem que se presta a João
Grilo para detonar a confusão, constranger o padre e apontar a atitude
condescendente da Igreja para com os poderosos, os endinheirados.
O teatro, segundo Suassuna, assim como o cinema, o balé, a
ópera, está dentro da rubrica Artes de Espetáculo. Está presente uma
ação, o narrar de um acontecimento sucedido a uma personagem, a
presença de pessoas atuando num cenário único ou variado. um
texto, no qual diálogos e rubricas fazem o arcabouço, algo como um
esqueleto ao qual diretor e personagens encarnarão. uma
arquitetura de cenário, decoração, roupas, iluminação, música.
Elementos como a marcação, os gestos, a movimentação, a entoação
283
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 174-175.
284
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 32.
285
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 31.
286
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 35.
141
que existem coladas ao texto verbal, entendido como discurso. O
espetáculo seria, não a mistura de todos esses elementos e sim um todo
plasmado e (re)fundido, resultando na criação de uma outra arte.
Para Décio Almeida Prado
287
, a universalidade do teatro
suassuniano emerge na visão metafísica proporcionada pelo catolicismo
do autor. No catolicismo, dois fatos centrais impõem-se à humanidade:
a morte e a existência de Deus. A primeira, que não tem sentido e retira
qualquer possibilidade de sentido à vida
288
e a segunda, que restitui a
racionalidade e a significação moral perdidas. Antes da morte, a miséria
degradante concretizada pelos canalhas que vão a julgamento –; no
confronto com a eternidade, a esperança de redenção: A intervenção de
Nossa Senhora no momento propício, para triunfo da misericórdia. Auto
da Compadecida!
289
. Mantém-se a coerência da proposição quando, no
julgamento, ocorre a salvação ou o purgatório possibilidade de
purgação e conseqüentemente de garantia da salvação futura – de todos
os canalhas pela intermediação misericordiosa da Virgem e pelo amor
infindo do Cristo. O universal de Suassuna tem seu ponto de partida no
medo do começo, tão bem compreendido pela Virgem. Por outro lado,
além do medo, a luxúria, a mentira, a cobiça, a avareza, a soberba, a
ostentação, a prepotência, a arrogância são sentimentos
experimentados em escala universal, extrapolam a vivência individual,
estão presentes em qualquer sociedade.
As características simbólicas do teatro suassuniano apontam
para situações que, sendo típicas do nordeste brasileiro, nem por isso
carecem de representatividade política. Autores contemporâneos, como
Guarnieri, Vianinha e mesmo Boal, reduzem seus personagens a termos
universais de operário e patrão
290
. Suassuna, ocupa a cena com o
‘amarelo’, o cangaceiro, o pobre nordestino, injustiçado tanto quanto o
operário. A profunda ligação do autor com a região nordestina tem,
indubitavelmente, peso no desenvolvimento da temática. A personagem
287
PRADO, Décio Almeida. O teatro brasileiro moderno.
288
SUASSUNA, Ariano. O santo e a porca. Recife: Imprensa Universitária, 1964, p. 11. Apud
PRADO, Décio Almeida. O teatro brasileiro moderno, p. 81.
289
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 15.
290
PRADO, Décio Almeida. O teatro brasileiro moderno, p. 79.
142
suassuniana é o homem do povo, profundamente identificada com o
sertanejo a quem o autor empresta astúcia, esperteza, presença de
espírito Prado as nomeia qualidades imaginativas que o fazem capaz
de vencer todas as agruras às quais está constantemente exposto. A
ambientação também não disfarça a geografia regional, e o que se tem é
um nacional fluindo através do regionalismo que impregna a peça.
A peça está estruturada em 3 atos, embora essas divisões não
sejam rígidas, na fala do autor: Aqui o espetáculo pode ser interrompido
a critério do encenador marcando o fim do primeiro ato
291
. A primeira
parte encerra-se com o enterro de Xaréu, o cachorro. O Palhaço como
condutor e elo de ligação entre os atos entra em cena para anunciar o
segundo ato que narra o que acontece na cidade. O Bispo pede
satisfações ao Padre sobre o acontecido entre ele e o Major Moraes,
enquanto Grilo e Chicó engendram falcatruas para não só ganharem
dinheiro, como também para se livrarem das encrencas em que se
meteram. É nesse ato que vendem o gato que descome dinheiro para a
mulher do padeiro, assim como a extorquem em nome do enterro do
cachorro. Severino invade a cidade e todos acabam mortos, com exceção
de Chicó. O terceiro e último ato é o julgamento final, no qual alguns
religiosos e o casal vão para o purgatório. Severino e o Cangaceiro vão
para o céu, enquanto Grilo recebe a graça do retorno a terra. O dinheiro
ganho com as falcatruas da dupla fica em poder de Chicó, que o
promete à Virgem pela vida de Grilo; ambos levam o dinheiro à Santa e
continuam pobres como sempre foram. O Palhaço fecha a peça dizendo:
a história da Compadecida acaba aqui
292
. Canta um verso e pede
aplausos em pagamento. É o circo-teatro.
A fala final do Palhaço projeta o foco sobre a Compadecida e a
ilumina: a história é dela. As demais personagens e suas ações estão ali
por ela e para ela. Em conexão com Jesus Cristo, ninguém mais do que
Maria Santíssima esteve unida a toda a humanidade
293
, daí sua
mediação ser inclusiva, envolvendo todos os homens. Parece-nos
291
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 59.
292
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 188.
293
BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus. Petrópolis, RJ: Vozes, 1979, p. 190.
143
patente essa noção teológica na obra de Suassuna em seu profundo
diálogo com a fé, com a religião. Para a concretização dessa postura, ele
recria, em termos brasileiros, buscando no popular encontrado em sua
vivência de menino sertanejo o material a ser trabalhado e o faz
interdiscurso com o que, maduro, encontra nas andanças pelo
grande tempo onde habitam entre outros Gil Vicente, Cervantes,
Goldoni, Shakespeare...
145
P
ARTE
4
A
M
ICROSSÉRIE
O
A
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A afirmação de Henrique Oscar na apresentação da obra de
Suassuna Auto da Compadecida de que a aproximação do texto
suassuniano com as raízes populares, especialmente o romanceiro
nordestino e também os autos vicentinos e o teatro espanhol não é uma
mera cópia, transposição, adaptação e sim a recriação em termos
brasileiros tanto pela ambientação como pela estruturação, sendo uma
obra inédita em suas características, nova e, portanto, absolutamente
original
294
cabe igualmente para a obra homônima televisiva de Guel
Arraes, Adriana e João Falcão.
O que visualizamos em O Auto da Compadecida é um jogo de
aproximações ao texto de ancoragem, sempre marcadas e assumidas
pela autoria. Concomitantemente ocorrem afastamentos, à medida que
intromissões na trama, no enredo. Tendo como ponto de partida um
texto dramatúrgico, a autoria vai, através de operações de linguagem,
construir um outro discurso, inserido em um novo suporte: a TV. O que
temos agora é um discurso teledramatúrgico, com características
peculiares, um outro e novo produto cultural.
294
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1978, p. 10.
146
7.1 Inclusões-exclusões
O primeiro movimento que notamos em O Auto da Compadecida é
um jogo de inclusões e exclusões, considerando a inserção e a retirada
de personagens, resultando em modificações estruturais no modo de
contar, bem como no enredo. No âmbito do movimento de inclusões,
consideramos a extensão da participação de alguns personagens e as
mudanças no processo enunciativo, daí advindas com a conseqüente
diferenciação em relação ao texto-fonte.
Guel Arraes insere, em seu trabalho, elementos e personagens de
outras obras de Suassuna, atribuindo-lhes características e funções
diferentes, sem contudo, destruir sumariamente as originais, em busca
da adequação ao suporte televisivo. O núcleo amoroso que se forma a
partir da chegada de Rosinha, objeto da paixão de Chicó, e que agrega o
Cabo Setenta e Vicentão, não existe no texto-fonte e sim ancora-se em
personagens existentes em outras obras de Suassuna. O surgimento
desses personagens na narrativa provoca mudanças estruturais,
inclusive em termos dos diálogos que, muito próximos aos da obra
‘original’, sofrem modificações com as interferências, os acréscimos de
novas falas, de novos registros e modos de ser. Rosinha, que vive no
Recife, é dona de um registro urbanizado, do qual estão ausentes as
expressões e conteúdo próprios das vilas sertanejas. Vicentão, abusado
nos gestos tanto corporais como vocais, faz jus ao comentário de Dora
de que Deus lhe dera um corpão, mas tirara-lhe a cabeça. O Cabo
Setenta domina a linguagem empolada, própria da função social por ele
exercida, e dela só abdica quando em crise amorosa.
A trama sofre interferências importantes, como o romance Chicó-
Rosinha, que proporciona outras tantas presepadas de João Grilo para
ganhar dinheiro e mais confusões, dilatando o enredo. Herdeira de uma
porquinha de barro repleta de moedas, Rosinha torna-se tão pobre
como os sertanejos, ao descobrir que o dinheiro estava fora de
circulação. um remetimento para a situação do país que, de
147
muito, vem trocando inúmeras vezes de moeda. O retorno do Major
Antônio Moraes à vila (e à narrativa) ocorre como corolário do romance
Chicó-Rosinha, pois ele procura um noivo doutor e rico para a filha.
Para fazer com que o Major aceite Chicó, Grilo o apresenta como um
rico proprietário de terras e advogado. Dá como garantia do negócio o
casamento uma propriedade inexistente, mas nomeada, Fazenda de
Serra Talhada, nome comum à obra suassuniana. Como não há o
registro de propriedade solicitado pelo Major, Grilo como penhor um
naco, uma talhada, como se diz no nordeste, de couro do lombo de
Chicó. Na Veneza do século XVI, o jovem Bessânio quer conquistar
Portia, uma rica herdeira, e para tal pede ajuda financeira a Antônio,
seu amigo que, não tendo recursos disponíveis, faz um empréstimo com
o agiota Shylock, dando como garantia um pedaço da própria carne.
Como no contrato não se menciona a palavra sangue e seria impossível
a retirada da carne sem sangue, Portia livra Antônio da morte, quando
este não consegue pagar a dívida
295
. Tão inteligente e esperta como
Portia é Rosinha. Bem mais esperto do que Antônio é o amigo Grilo:
empenha o couro do próprio interessado, Chicó.
Suassuna, ao criar para João Grilo, picaresco de marca, um
amigo de estripulias como Chicó, faz surgir uma dupla fabulosa e assim
enriquece o universo da picardia. Arraes, ao criar Rosinha e um amor
para Chicó, subverte todo esse universo e desenrola uma série de
episódios que, pelos desencontros, confusões, humor e amor,
aumentam o interesse pela trama e, claro, fazem a alegria do espectador
de TV que tem nela seu momento de lazer e entretenimento. A amizade
entre João Grilo e Chicó incorpora Rosinha e o que antes era uma dupla
torna-se, de modo natural, um trio, sem nenhum sinal que não o da
relação de amizade, mantendo o amor entre Rosinha e Chicó. A
existência de um núcleo amoroso parece ser exigência de obras
ficcionais televisivas, disso resulta uma mudança estrutural face ao
gênero agora praticado, teledramaturgia televisiva, no qual suporte,
295
SHAKESPEARE, Willian. O Mercador de Veneza. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. O
MERCADOR de Veneza. Direção e roteiro: Michael Redford. Produção: Cary Brokaw,
Michael Cowan, Barry Navidi e Jason Piette. Produzido por Sony Pictures Classics,
California Filmes, 2004. 1 videocassete.
148
linguagem e modos operacionais não são os mesmos do teatro. Segundo
Guel Arraes a
Adaptação precisava ser maior, e uma das coisas que
criam interesse é uma história de amor. Era uma idéia
arriscada porque a característica dos personagens
picarescos, como João Grilo e Chicó, é a de não ter
preocupação sentimental. A busca deles é por comida e
comida. Quase que a gente dividiu Chicó em dois.
296
Figura 1 – O encontro de Chicó e Rosinha
O episódio do encontro com o Cristo na estrada que leva à vila é
outra criação da autoria da microssérie e possível, como conseqüência
da existência do trio de amigos, das confusões ocorridas no casamento
de Rosinha com Chicó, sua expulsão e deserdamento pelo Major. Grilo e
Chicó nunca tiveram nada de seu, afora a própria vida. Rosinha sempre
foi rica. Empobrecida, é a única que entende a mensagem contida no
julgamento: reparte com o mendigo o pouco que lhe ficara, ou seja,
exercita a misericórdia, reportando-se aos Evangelhos, que dizem do
Cristo se apresentar como mendigo para testar a bondade dos homens.
E os novos autores se apoderam do texto sagrado e o recontextualizam.
296
RIZZO, Sérgio. Guel Arraes. Revista SET Cinema, DVD e Vídeo. Disponível em:
<http:\\www2.uol.com.br\setonline\sessão_extra\ent_01_03_01_guel_arraesshtml>.
Acesso em: 28 julho 2004. Segundo acesso em: 10 março 2006.
149
A tropa policial que chega à cidade com a função de defendê-la é
de um ridículo de fazer pena. Logo em sua entrada, patética e pomposa,
evidencia, na pessoa de seu comandante, Cabo Setenta, a
incompetência, a falta de preparo e a covardia. Cabo Setenta, todo
maneiroso, com ares de importante, ao chegar à praça é recebido por
Eurico e Dora, tendo ao lado Vicentão, cena que mostra bem o modo de
ser da burguesia da vila. Dora, de olho no cabo, e Eurico todo elogios
para Rosinha que chega ao mesmo tempo, gerando uma ciumeira
danada na mulher do padeiro. Rosinha, filha do coronel ricaço do lugar
e que está na vila a fim de se tratar de ‘males da cidade’, bonita, rica,
urbana, sempre cheirosa e bem vestida, causa celeuma na comunidade.
Cabo Setenta encanta-se com ela e a cena em que bate em retirada
atrás dela, que se dirige à igreja, exibe, além do conluio da autoridade
com a igreja, a falta de compostura do comandante. Ele faz continência
e dispara: A autoridade militar vai visitar a autoridade religiosa. Mais
tarde, é envolvido numa confusão por João Grilo, na qual mostra toda a
sua fraqueza e despreparo: o episódio em que presenteia Rosinha com
dois brincos, ao mesmo tempo em que Vicentão lhe um broche, tudo
através do esperto João Grilo e suas safadezas. Nesse episódio, ambos,
Setenta e Vicentão, ficam à mercê de João Grilo, que os manipula a seu
bel-prazer e interesse, que, além de esperto, está lidando com dois
patetas apaixonados por uma mulher que não lhes dispensa o menor
interesse.
Vicentão, personagem enxertado, outro caso de Dora, valentão
metido a conquistador, dono de um físico avantajado e dotado de pouco
cérebro, cai, junto com Setenta, na armadilha arranjada por Grilo, com
a intenção dar cabo aos dois em benefício de Chicó, na disputa pelo
coração de Rosinha. No duelo de três participantes, armado por Grilo
–, ambos são tirados da parada amorosa e da cidade também, fazendo
de Chicó, o mais covarde dos três, um herói. Cabo Setenta e Vicentão
são personagens desencavadas das chanchadas brasileiras da década
de 50, em que a paródia e a maluquice herdada da comédia americana
dos anos 30, a ‘crazy comedy’, se fazem presentes
.
150
A caracterização visual das duas personagens valoriza a imagem,
que passa a ser usada como um cineminha de humor. Para Arraes, a TV
tem de si essa coisa de fazer paródias visuais.
297
O bigodinho, o
cabelo espetado pelo uso de gel, a importância dada ao quépi pelo Cabo
Setenta, bem como as mangas dobradas da camisa de Vicentão, de
forma a evidenciar sua musculatura avantajada, as escrachadas
cuspidas que dá, a choramingação dos dois por causa de Rosinha,
remetem ao cinema americano dos anos quarenta e aos filmes
brasileiros de Carlos Manga. Esses procedimentos já aparecem nos
programas televisivos de humor com certa freqüência e, no campo da
ficcionalidade, são prerrogativas de Sílvio Abreu e do próprio Manga, de
quem Abreu foi assistente. Arraes vai utilizá-los no seu Auto, bem como
em outros produtos teledramatúrgicos e cinematográficos
298
de sua
autoria.
A personagem Severino do Aracaju ganha um outro status em
termos participativos. Desde o início da narrativa
299
, ele está presente,
travestido de um pobre diabo, mendigo, cego, todos os dias a esmolar
na porta da Igreja, tratado aos trancos e barrancos por todos, inclusive
o pároco local. Enquanto ali permanece, fica sabendo das falcatruas
cometidas pelos outros personagens da trama, aprende sobre os
habitantes, seus hábitos, modos de vida e percebe a ausência da polícia
o que vai facilitar a invasão que planeja fazer à cidade. Ao mesmo
tempo, a maior presença do cangaceiro reforça o caráter crítico do
trabalho, especialmente, em relação à Igreja, ao clero e até mesmo aos
freqüentadores dos cultos e rezas, pelo desprezo com que tratam o
mendigo à porta do templo. Com esse procedimento, cria-se um diálogo
com os tempos iniciais do cristianismo, quando a presença de pedintes
era comum às portas dos templos e aos quais o Cristo dava atenção,
enquanto autoridades legais e eclesiásticas do judaísmo desprezavam e
297
In: SILVA, Gonçalo Jr. Pais da TV: a história da televisão contada por Gonçalo Silva Jr, p.
182.
298
Ver Lisbela e o prisioneiro; O coronel e o lobisomem, especiais de TV e fimes.
299
Na cena 6, quando João Grilo conversa com o Major Antônio Moraes em frente à igreja,
Severino aparece encolhido na porta da igreja. O Major ao entrar na igreja por pouco não o
atropela. O AUTO DA Compadecida. Direção: Guel Arraes. Roteiro: Guel Arraes, Adriana
Falcão e João Falcão, baseado em peça de Ariano Suassuna. Produção: Daniel Filho e Guel
Arraes. Produzido por Globo Filmes, 2000. DVD.
151
dos quais passavam à distância. O tratamento visual valoriza
sobremaneira a personagem. O aspecto de miserabilidade, de feiúra, o
exagero que caracteriza a aparência do mendigo, são elementos que
reforçam, aos olhos do espectador, a prática do descaso.
Figura 2 – Major Antônio Moraes e Severino de Aracaju na porta da igreja
O padeiro e sua mulher são nomeados - Eurico e Dora. Eurico
aparece em O Santo e a Porca, peça de Suassuna escrita em 1957.
Euricão Árabe, o protagonista, passa a vida a privar-se de tudo para
rechear uma porca de madeira com dinheiro e, quando se conta, ele
não vale mais nada. A vida o trai, segundo Suassuna no prólogo do
texto. De modo diferente, a vida trai o padeiro que, como seu ancestral,
tem grande preocupação com o dinheiro, paga mal seus empregados,
briga por dez tostões de pão. Seus bens são roubados por Severino e a
morte o leva na juventude. Rosinha, Chicó e Grilo são pegos na mesma
armadilha da porca; sendo ela mais traída do que os dois mequetrefes,
pois perde também a herança paterna.
No texto teatral, a ausência de nomenclatura poderia apontar
para a idéia de ‘tipos’, no caso um desejo de satirizar uma classe social,
a burguesia, no dizer de Newton Jr. em texto citado. A microssérie,
outra forma, outro veículo, outro público, emissão e recepção
completamente diferentes, suportaria essa ausência? Parece-nos
152
complicado, levando-se em conta tudo isso, a existência de personagens
não nomeados. A serialização em capítulos, a exibição fragmentada e
em circunstâncias de menos concentração e atenção, como é o caso da
televisão, exigem a nomeação.
Os atos libidinosos da mulher do padeiro, que não tem Chicó
como amante, são concretizados. Os encontros de Dora com Chicó e
Vicentão rendem à microssérie momentos de riso e de expectativa. Riso
pelo tipo feminino criado por Dora, a personalidade fogosa, o uso de um
figurino exagerado e o servir-se constantemente do xale, o que favorece
um hilário striptease que se repete – e mais uma vez, o procedimento da
redundância está presente de modo semelhante para os namorados e
para o marido. A expectativa existe, sendo também risível, à medida que
o espectador sabe de antemão que o flagrante não acontecerá, mas a
situação é usada para provocar o hilário, a crítica e a paródia. Dora
sempre escapará e mais estripulias ocorrerão: a inversão que ela
provoca quando ao chegar fora de hora em casa, a noite ao relento que
faz o marido passar à espera de um encontro dela com o namorado, a
surra que o pobre do Eurico, fantasiado de mulher, toma de Chicó atrás
da igreja. Esses episódios têm o mesmo caráter das chanchadas
brasileiras dos anos 50.
Rosinha é a personagem que chega para (des)ordenar, que
desestrutura/reestrutura as relações já estabelecidas. É o elemento
externo, o estranho que chega e modifica, para o bem ou para o mal, a
organização existente. Funciona como contraponto à Virgem quando
traz para a vida o amor sensual, mas sua vivacidade, alegria e beleza a
fazem semelhante a Nossa Senhora. Esperta e inteligente, disposta para
o amor, reconhecendo o homem que ama em todas as suas fraquezas,
inclusive a covardia, mas nem por isso recusando-o. Rosinha
transforma a relação Grilo/Chicó, mas de modo a, entrosando-se,
aceitá-los e à situação nova com a qual se depara. O final da
microssérie abre possibilidades. A estrada está à frente das três
personagens, elas continuarão a história.
153
Figura 3 – O final da história: Rosinha, Chicó e João Grilo
Outros elementos suassunianos são excluídos: o frade,
acompanhante do Bispo, e o sacristão, auxiliar do padre João. Essas
ausências permitem maior ênfase ao Padre e ao Bispo, que as ações
por eles praticadas são de responsabilidade exclusiva dos dois. O
Demônio surge na cena inicial do julgamento apenas para anunciar o
Diabo. Em Suassuna, o Demônio, pela intensa irritação contra ele
demonstrada pelo Encourado, faz um contraponto ao Frade, secretário
do Bispo, já que este sente pelo outro desprezo e irritação.
A ausência do Palhaço, condutor da narrativa em Suassuna,
altera a composição da obra, mas não tira dela a sugestão circense
postulada pelo autor. Em Suassuna, o Palhaço tem importância vital, à
medida que sua função não é somente a de anunciar o espetáculo. O
Palhaço estabelece ligações entre os atos e se responsabiliza pelo grand
finale e, como anotado no capítulo 2, é igualmente a voz da
reflexividade que a obra possui. Na microssérie, a ligação é feita por
procedimentos dramatúrgicos, próprios à linguagem televisiva,
utilizando-se do recurso do gancho.
O séqüito do enterro de Bolinha, (na peça teatral é o Xaréu) a
cachorrinha de Dora, fornece o motivo para o início do segundo, quando
a vinheta de abertura aparece durante o sepultamento e a conversa
sobre animal ter alma o mote para Chicó contar sua história. No
154
segundo capítulo, o velório de João Grilo na igreja fecha o bloco. O
terceiro capítulo inicia-se com o séqüito do enterro pelas ruas da Vila e
termina com o “duelo de três” e o espanto de Rosinha pela valentia de
Chicó. Inicia-se o último capítulo com a repetição da cena do duelo,
agora com Chicó todo empertigado pela vitória conquistada.
A rapidez, às vezes nervosa, que caracteriza a linguagem de Guel
Arraes, instala-se logo após a vinheta de abertura. Poucas tomadas, o
enredo é retomado, com episódios novos entrando de enfiada,
anunciados por uma vinheta do episódio. Um exemplo: no terceiro
capítulo após a vinheta de abertura, o povo se encontra na igreja, e o
velório foi retomado. João Grilo levanta-se e se diz portador de um
recado de Padre Cícero para Severino, que ameaça a todos,
especialmente o pobre Grilo. Numa sucessão de falas rápidas, tudo se
resolve. Severino bate em retirada e João Grilo está na rua, aclamado
pelo povo como herói. O padeiro e a mulher entram na cena e começa o
ajuste de contas entre eles e Grilo. A vinheta de episódio anuncia: A
peleja de Chicó contra os dois ferrabrás. A próxima tomada, na padaria,
resolve a briga entre patrões e empregado e João Grilo já aparece na rua
com a repetitiva queixa contra os patrões. Rapidamente, numa nervosa
sucessão de cenas, em que os diálogos acontecem simultaneamente às
ações das personagens, vão ocorrendo os episódios que perfazem o
capítulo que é totalmente enxerto, ocorrendo o maior desvio em relação
ao texto-fonte.
7.2 Interferências nos diálogos
Os diálogos originais, bastante ágeis, são mantidos, quase em sua
integridade por Arraes. Quando se apresentam mais longos, aceitáveis
no teatro, mas pouco adequados à televisão, o autor opera uma
dinamização, tornando-os mais ágeis. Exemplo notável é a conversa
entre o padeiro e o Major. Enquanto conversam, o padeiro serve uma
bebida ao major e as falas são como que decupadas em função das
155
tomadas de cena. O mesmo ocorre quando Grilo fala sobre o testamento
da cachorra para os clérigos; a fala de Severino quando entra na igreja e
surrupia o dinheiro que está em poder do Bispo e do Padre.
Algumas falas mudam de emissor. O sacristão que faz o enterro
do cachorro em Suassuna é substituído pelo Padre em Arraes, por isso
é ele que pergunta ao Bispo: Quer dizer que o agi mal? Quando João
Grilo entra na sacristia e coloca o dinheiro dentro do Código Canônico,
é o Bispo que, fingindo-se admirado, exclama: Que é isso? Que é isso
300
?
Fala esta, em Suassuna, do Sacristão. Levando-se em conta a
hierarquia, importância religiosa dos dois emitentes em relação ao
sacristão, podemos dizer que a crítica ‘gueliana’ torna-se mais
contundente. Em contrapartida, em Suassuna, a ironia de Manuel é
mais ferina:
Manuel:
Deixe a acusação para o colega dele.
Sacristão:
Colega?
Manuel:
É brincadeira minha, mas, depois que João chamou
minha atenção, notei que o diabo tem mesmo um jeito de
sacristão.
301
Há uma fala da Compadecida, em Arraes, belíssima, que em
Suassuna é do Padeiro: A prece que fiz por ela antes de morrer. O mais
ofendido pelos atos que ela praticava era eu e, no entanto, rezei por ela.
Isso deve ter algum valor
302
. Assim como, é do Padeiro, uma fala
anterior, em resposta à questão do medo suscitada pela Virgem: Medo
da solidão. Perdoei minha mulher na hora da morte, porque a amava e
porque sempre tive um medo terrível da solidão
303
. A personagem Eurico,
o padeiro, na microssérie, tem como traço marcante ser, antes de vítima
da infidelidade da mulher, um manipulável, sempre a repicar as falas e
posturas de Dora, um mero repetidor dos discursos da mulher. Sem
300
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 90. O AUTO DA
Compadecida, DVD, cena 19.
301
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 144.
302
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 166. O AUTO DA
Compadecida, DVD, cena 23.
303
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 163.
156
deixar de ser um tanto fraco, em Suassuna, o Padeiro, nas falas finais,
resgata sua dignidade. Em Arraes, a dignidade de Eurico é resgatada
pela fala da Compadecida, mas não se pode deixar de levar em conta
seu discurso na hora da morte, um discurso de amor que o engrandece
sobremaneira.
7.3 Desordem na fronteira
A microssérie recebe um tratamento diferenciado por meio da
filmagem em película de celulóide 35mm, de uso comum na produção
de filmes para televisão americana, com uma intenção futura como
de fato ocorreu de transformá-lo em filme cinematográfico. Segundo
Arraes, ele sonhava fazer da obra de Suassuna um filme, por
reconhecer nela uma vocação cinematográfica, mas a proposta da TV
Globo para uma minissérie atropelou seus projetos. É Daniel Filho
quem sugere a filmagem em película o que, de certa maneira, permite a
manutenção da intenção primeira.
A existência de uma tecnologia de ponta à disposição dos autores
provoca mudanças nos modos de criar. Uma cena pensada apóia-se na
existência dessa tecnologia, ou seja, o processo de contar a história de
Suassuna hoje leva em conta possibilidades tecnológicas atuais; assim
a autoria trabalha com uma visão impossível 20 anos. Mecanismos
desenvolvidos para televisão incorporam os desenvolvidos para o
cinema; diretores conceituados e criativos como Godard, Greenaway,
Antonioni, Coppola trabalham com equipamento eletrônicos; estudiosos
e pesquisadores, inclusive brasileiros, Fechine, Figueirôa, Machado
constroem um fecundo diálogo entre cinema e vídeo, o que, segundo
Figueirôa, permite considerar que a distinção entre cinema e televisão a
partir do suporte não faz mais sentido. Entretanto, esse mesmo autor
sugere a necessidade de não se ignorar até que ponto e de que maneira
esse trânsito do vídeo para película e vice-versa [apresenta] distinções
nos modos de organização interna dos discursos televisual e
157
cinematográfico
304
. Isso nos leva a pensar na necessidade de se estudar
a linguagem de Guel Arraes à luz das influências que o cinema exerce
em seus trabalhos. Ainda mais levando-se em conta que, ao chegar ao
Brasil, Guel incorpora-se a um grupo de profissionais que, bebendo na
fonte do experimentalismo preconizado pelo cinema, fizeram parte do
movimento do vídeo independente que busca a renovação da estética da
TV, muitas vezes subvertendo seus modelos de representação, da sua
linguagem e de seus formatos como estratégia para estimular o
surgimento de um público mais crítico e a demanda por uma TV mais
criativa.
305
É inegável que a preferência pelo vídeo tem a ver com a
questão de custos menores em relação à película, mas não é só isso que
caracteriza o vídeo independente. A paródia da própria TV, em termos
de produtos e sua produção, a preocupação em explorar a função
cultural da televisão, as possibilidades intertextuais que o próprio
veículo oferece são itens prioritários para essa turma pioneira em
inovações.
Na busca de um texto-fonte para reelaborá-lo, reorganizá-lo,
dando-lhe novas e plurais significações e nesse processo mostrar sua
heterogeneidade se revela a intertextualidade. Utilizar-se de
procedimentos cinematográficos explícitos: enquanto a Virgem faz seu
discurso em defesa dos pobres diabos que estão sendo julgados, suas
vidas pregressas aparecem ilustradas, em fotos em branco e preto, num
remetimento claro ao cinema verdade, presentifica-se o modo
cinematográfico no discurso microssérie. E mais: a Virgem funciona
como narrador, evoca o passado e este se materializa nas fotos.
Ao ingressar na TV Globo, Arraes vai trabalhar com Silvio de
Abreu e Jorge Fernando em telenovela, gênero dos mais tradicionais e
conservadores na televisão. Silvio trabalhara como assistente de
Carlos Manga, diretor de inúmeras chanchadas brasileiras. Arraes
304
FIGUEIRÔA, Alexandre. Os limites entre o cinematográfico e o televisivo no cinema de
Guel Arraes. In: Anais do VII Encontro Anual da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema.
Universidade Federal da Bahia. Salvador, 5-8 novembro 2003. Mesa Redonda: O cinema de
Guel Arraes, coordenação do autor.
305
YVANA, Fechine. Televisão e experimentalismo: o núcleo Guel Arraes como paradigma.
In: Anais do XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Belo Horizonte, 2-6
setembro 2003.
158
recupera sua infância de cinéfilo lá no nordeste. O humor ingênuo e um
tanto vulgar das chanchadas, sua tendência à paródia passam a ser
utilizados nas telenovelas revestidos de um toque de nobreza. Ou seja, o
gênero televisivo incorpora o cinematográfico. Por outro lado, Arraes
declara-se admirador do cinema popular, que ele entende como sendo
aquele que fala de perto do povo para o povo com um toque de erudição,
ou seja, que lança mão de uma estratégia culta, o que entendemos
como sendo a preocupação com a TV no seu papel cultural e, ao mesmo
tempo, remonta à idéia armorial, na qual a erudição é pedra de toque
na construção de uma obra popular. A obra de Arraes mostra o mesmo
cuidado com a língua que existe no texto de Suassuna, como que a
sinalizar, o popular não é o achincalhamento gratuito do idioma assim
como não é a vulgarização das informações veiculadas pelo produto. O
popular demanda, requer respeito àquilo que nasce na praça, entre o
povo em seu viver. O autor popular busca, no suburbano mundo dos
menos favorecidos economicamente, seus tipos e situações. Daí a
linguagem liberta dos cânones oficiais. Situações íntimas vividas de
modo menos discreto, desde as roupas até o comportamento
propriamente dito. Dora, seus trejeitos e vestimenta, é um bom
exemplo. A preocupação do casal em fazer do enterro da cachorra uma
cerimônia com toques de elegância burguesa: Dora de vestido preto e
chapéu, Eurico de terno. Numa comunidade como a de Taperoá, na
qual a Igreja tem papel fundamental, a presença da linguagem religiosa
se faz presente naturalmente. As orações, os diálogos entre os religiosos
e mesmo o modo desabusado de João Grilo dirigir-se aos religiosos
estão salpicados de expressões de tratamento, conjugação verbal em
segunda pessoa do plural, assim como uso freqüente de terminologia
clerical. Conte-se com o fator armorial. Trabalhar Suassuna é
impossível sem pensar as teses armoriais, especialmente a da criação
de uma arte brasileira que originária e fincada no popular não se
descure da erudição. No desespero de se ver a braços com um
“ressurreto”, Chicó se expressa com todo o maneirismo da linguagem
159
teológica: Ai Meu Deus, é João! João, dizei-me o que quereis e se estais
no céu, no inferno ou no purgatório. Segundo João Grilo, fala de alma
306
.
Por outro lado, o cinema popular recorre ao burlesco, que se vale
da comicidade para parodiar, ridicularizar obras anteriores renomadas,
situações sérias e pessoas socialmente importantes. Usa e abusa de
gags (efeito que sugere improvisação, utilizando-se de situações
inusitadas), da desproporção que empresta a uma coisa em relação à
coisa em si, usa de inversões na tentativa de ridicularizar. O palavrório
exagerado, verborrágico, acelerado de João Grilo, acompanhado de
movimentos corporais que o fazem assemelhar-se a um boneco de
molas em que, principalmente, os braços se agitam como se fossem
despencar do corpo, são explorados através de enquadramentos e da
marcação detalhada das deslocações do ator. Planos longos, abertos,
em contra-luz de grande eficiência na tela grande, mas que perdem
efeitos na televisão, nem por isso deixam de ser usados. uma
intenção autoral que percebe a necessidade ou as possibilidades desse
procedimento e dele se apropria, emprestando-lhe um novo uso, em
outro contexto. A panorâmica inicial em que João Grilo e Chicó estão
nas ruas de Taperoá fazendo a promoção do filme é rápida e
entrecortada de aproximações que permitem o foco no detalhe. O
espectador percebe o marasmo da vila, o desalento de seus moradores
às portas e Devagar...as janelas olham./Êta vida besta, meu Deus.”
307
.
O cortejo fúnebre da cachorra que trafega atrás da Igreja é um plano
mais aberto, porque é preciso que ele seja observado pelo olhar da
Virgem pintada na parede posterior da igreja. E mesmo assim o corte é
rápido, certeiro, e a visão da parede pintada exige a mesma rapidez do
olhar do espectador.
306
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 179. O AUTO DA
Compadecida, DVD, cena 24.
307
ANDRADE, Carlos Drummond de. Cidadezinha qualquer. Alguma poesia. Rio de Janeiro:
Record, 2001.
160
Figura 4 – Chicó e João Grilo fazem a divulgação do filme
A Paixão de Cristo
Figura 5 – O cortejo fúnebre de Bolinha
Aspecto notório na Compadecida é a rapidez com que cenas e
diálogos se sucedem no espaço da telinha, reclamando até um
espectador não típico de televisão dividido e desconcentrado em
conseqüência dos modos de recepção. Ao contrário da linguagem da
telenovela, em os diálogos são montados com o recurso do
plano/contraplano, Arraes decupa as falas de modo a não interromper o
diálogo, enquanto as ações das personagens são desempenhadas. Essa
excessiva aceleração, de acordo com Fechine
308
, estaria associada à
exorbitância de informações numa única seqüência o que vai exigir
308
FECHINE, Yvana. Televisão e experimentalismo: o núcleo Guel Arraes como paradigma, p.
6.
161
cortes rápidos, seqüências curtas. Se pensarmos o diálogo teatral
original, o da microssérie sofre algumas compressões de modo a
acompanhar a rapidez das cenas. Arraes concentra informações
verbais, visuais especialmente, e sonoras como forma de lidar com a
multiplicidade constitutiva das formas expressivas próprias à
contemporaneidade
309
. Rosinha chega à fazenda do pai, acompanhada
de João Grilo à noite. Numa tomada rápida e curta é possível vê-los
caminhando em direção a casa cuja fachada adquire um ar tétrico pelo
azul escuro, ‘noturno’ que a rodeia, o céu estrelado em contra-campo e
ouve-se Rosinha, dirigindo-se a João Grilo: Eu li que anos atrás, o sertão
também foi um mar. O Major Antônio Moraes assoma à porta com seu
vozeirão e idéias: Hoje uma moça entra na água solteira e sai casada
310
.
A mesma concentração pode ser verificada nas cenas em que o
filme A Paixão de Cristo é inserido na narrativa, presta-se a abrir uma
seqüência e também é pano de fundo para os créditos. Se o espectador
não for rápido, a cena já se foi. É o que os estudiosos de cinema
afirmam ser a “tomada vertical”, preconizada por Einsenstein, segundo
Fechine
311
: a superposição, a combinação numa mesma tomada de
diferentes sistemas semióticos. Atualmente, essa concentração de
informações num mínimo de tempo, torna-se possível a partir das
técnicas de pós-produção disponíveis. A primeira cena na igreja
apresenta o auditório sentado, João Grilo passando a sacolinha,
recebendo donativos e na tela, um lençol, ao fundo, o filme é exibido. A
câmera passeia sobre o auditório, afasta-se para alcançar João Grilo,
como se fosse uma tomada para um noticiário. O recurso ao filme A
Paixão de Cristo, que logo no inicio se faz presente, é uma forma de
referencialização ao cinema, no antigamente, nos primórdios da
sétima arte, pois é em preto e branco, não sonoro. Na microssérie,
recebe um tratamento de colorização que lhe empresta um tom pastel.
Vale notar seu papel diegético, pois é o filme, pela sua exibição na
309
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & Pós-cinema. Campinas, SP: Papirus, 1997, p. 237.
310
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 14.
311
FECHINE, Yvana. Televisão e experimentalismo: o núcleo Guel Arraes como paradigma, p.
6.
162
igreja, que vai nos apresentar os protagonistas, ao mesmo tempo
desencadeia as presepadas da dupla e mostra seu caráter picaresco.
Figura 6 – Cinema na igreja
Para Figueirôa
312
, a utilização do filme como recurso narrativo tem
uma carga metalingüística que desvelaria a intenção autoral de mostrar
a hibridização da linguagem caracterizada pela relação de meios
diversos de expressão imagética, independente da origem de seus
suportes. O filme não está apenas e simplesmente emoldurando, mas é
também diegético, criando uma simbologia própria. A Paixão foi, mais
do que tudo um ato de misericórdia, determinado pelo amor de Deus
para com os homens, segundo o ideário do texto-fonte que é, na forma
visual televisiva, a visão de Arraes pela apropriação e estilização.
A cena do aparecimento da Compadecida, no episódio do
julgamento, assim como a da morte do casal de padeiros são
procedimentos cinematográficos largamente utilizados de fusão e
superposição de imagens. Toda a cena do julgamento é uma mescla de
efeitos cenográficos e de computação gráfica. Quando Cristo aparece em
seu trono, com sua corte de anjos, ocorre um processo de fusão e os
lugares por eles ocupados são os mesmos do afresco na parede da
igreja. Por um processo de computação gráfica, os anjinhos são
deslocados, sobem aos céus e só o Cristo fica.
312
FIGUEIRÔA, Alexandre. Os limites entre o cinematográfico e o televisivo no cinema de
Guel Arraes, p. 4.
163
Figura 7 – Cristo em seu trono rodeado de anjos
Figura 8 – Ascensão dos anjos
Para as cenas das mentiras de Chicó, o relato é inserido,
apresentando imagens em preto e branco. Foi usado um cartoon feito de
tapadeiras de cenografia sobre o qual Ramazzini, o responsável pelos
efeitos visuais, desenhou árvores, rio, margens etc. É esse fundo feito
de tapadeira desenhada e recortada que se move. O efeito obtido é o de
uma litografia de cordel em movimento. Há, portanto, uma mescla de
procedimentos, até certo ponto artesanais, que se tornam sofisticados
pelo uso inteligente e criativo das possibilidades tecnológicas
313
. Ou
seja, uma composição imagética na qual se mesclam desenho, vídeo,
313
Esse processo, em detalhes, é relatado por Capy Ramazzini a Orofino, pesquisadora e
autora de Mediações na Produção de Teleficção: videotecnologia e reflexividade na microssérie
‘O Auto da Compadecida’.
164
fotografia e imagens que migram de um meio para outro, de uma
natureza para outra. Tudo é válido, e tudo está em relação o pictórico,
o fotográfico, o digital, o eletrônico.
Figura 9 – Chicó e seu cavalo bento
Mais do que uma desordem fronteiriça televisão/cinema, o que
Arraes provoca é uma (des)ordenação do estabelecido, do oficial, de
forma a (re)ordená-lo em outros modos. Esses outros modos estilizam
as possibilidades da linguagem cinematográfica em uma nova e criativa
disposição, introduzindo-a em um produto televisivo que é a
microssérie, fazendo dela um novo discurso no qual estão presentes
como elementos constitutivos duas (e mais) linguagens, dois (e mais)
modos de falar/mostrar. Aqui, especificamente, a linguagem
cinematográfica e a linguagem televisiva configurando dois estilos, duas
perspectivas semânticas e axiológicas. Ou seja, um híbrido que se
mostra abertamente como tal.
165
7.4 Sons e ruídos – leais acompanhantes
Um som manso, leve e fortuito, fingindo-se imprevisível, como que
sobrevém, delicada e discretamente, acompanhando as ações, nunca se
sobrepondo a elas. Música instrumental, na qual os ritmos típicos do
nordeste surgem entrelaçados, apontando para a idéia armorial
suassuniana, ou seja, música criada a partir do popular, das canções
de domínio público, das cantigas de roda e música negra que
expressam o espírito de fusão presente na sica nordestina, na
pernambucana em especial. Na mesma variedade dos ritmos, os
instrumentos se entrelaçam, sem preconceitos. O clarinete, o violoncelo,
a flauta transversal aliam-se ao som produzido pela rabeca, pelo pífano,
pela viola sertaneja. Alegre e brejeira é a música que acompanha a
‘ressurreição’ de Chicó. Esperta e safada, a música que acompanha as
picardias de João Grilo. Nas seqüências do julgamento, a música soa a
ladainha, música de romaria, de procissão, lamentosa e um tanto triste,
acompanhante perfeita para o ambiente, para a seriedade própria do
momento. A produção musical (João Falcão e Carlinhos Borges) exibe a
presença do cômico, do alegre e também o toque de erudição,
características presentes no pessoal do Armorial, no caso, Gomes e
Antônio Madureira. Na vinheta de abertura, segundo pudemos apurar,
a música é feita pelo marimbau
314
e lembra a sonoridade árabe, o que
não é de se estranhar à medida que Arraes, como Suassuna,
influências ibéricas na cultura nordestina e o que nos chega, da antiga
e boa península, guarda um parentesco próximo com o oriente árabe.
Assim como a música, os ruídos, o espoucar dos tiros que
acontecem quando Severino invade a cidade, ou quando o Cangaceiro
mata as personagens do lado de fora da Igreja, são acompanhantes
óbvios das ações. Note-se que a cena da invasão da cidade é um plano
longo, no qual a população em desabalada e doida correria, sem saber
314
O marimbau, espécie de berimbau tocado transversalmente, instrumento muito usado por
músicos de feira.
166
para que lado se bandear para se safar do bandido, faz lembrar em tudo
o cinema antigo. A confusão se instala de tal modo que tiros e gritos
formam um coro uníssono. Não ruídos ou músicas (trilha sonora)
que identifiquem, marquem a presença de uma personagem ou a ela,
especificamente, se refiram.
Em linguagem musical, teríamos o que se convencionou como
música incidental. A trilha sonora acompanha, nunca se sobrepõe à
ação das personagens, ou seja, não os pontua, menos ainda, caracteriza
ou anuncia presença de personagens.
7.5 Onde o Brasil é medieval
Segundo Suassuna, as três histórias que deram origem ao Auto
da Compadecida são de origem moura ou ibérica, com as raízes fincadas
nesse mundo mítico mediterrâneo que é tanto peninsular como árabe-
negro, e, portanto, brasileiro e nordestino.
315
Ariano, e Arraes vai na
mesma direção, tem como característica tomar emprestado temas e
modelos da literatura, para não dizer da arte, popular e num exercício
perene de reescritura, recriação e reorganização emprestar-lhes novos
significados. Afunilando a idéia, a literatura de cordel é o eixo
gravitacional da obra de um e de outro. Suassuna reconhece em Gil
Vicente seu ancestral um poeta que, cronologicamente, pertencente
ao período de transição Renascensa/Barroco, tem suas peças muito
mais ligadas às raízes medievais do povo português, mesmo porque
Portugal prolonga, em seu comportamento cultural, a Idade Média. D
a presença de traços medievais na Compadecida que Guel Arraes soube
captar e materializar no discurso visual.
A padaria funciona no mesmo espaço da casa dos donos, daí a
convivência dos mesmos com seus empregados, que circulam por ali,
315
SUASSUNA, Ariano. A compadecida e o romanceiro nordestino. In: DIÉGUES JR., Manuel
et al. Literatura popular em verso. Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro: Itatiaia, Edusp,
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986, p. 189.
167
como se a casa fosse um ambiente público, de caráter um tanto
coletivo, como acontecia com a moradia medieval. A especialização, ou
seja, cômodos feitos para uma determinada função, é precária, embora
a casa como um todo apresente uma divisão de ambientes: o quarto do
casal, uma espécie de ante-sala, pintados com cores muito fortes, e a
cozinha seriam a parte íntima da casa. Um salão, que se mistura ao
restante da casa pela extrema proximidade, faz as vezes da padaria.
Uma tosca mesa e um forno de barro, nos moldes de antanho, são os
equipamentos essenciais ao estabelecimento, que tem também um
balcão de atendimento. Uma gamela grande serve de recipiente no qual
a massa de pão, manualmente sovada, é deixada para crescer. Pás de
madeira, de longos cabos, servem para colocar os pães, que mais
parecem bolachas, no forno, os quais, depois de prontos, ficam numa
espécie de tabuleiro de madeira. Réstias de alho pendem das paredes da
padaria e se espalham pelo corredor da casa. Enquanto Dora cozinha
em um fogão de lenha e panelas de ferro, João Grilo e Chi armam
uma trempe no quintal e cozinham sua gororoba. A comida dos dois é
colocada em vasilhas que aparentam ser de barro e criam contraste com
a que Dora usa para o bife da cachorra, um utensílio moderno, próprio
para o animal. Os dois rapazes dormem em uma espécie de beliche que
fica como que encravado na parede, a uma certa altura do chão, no
fundo do salão em que funciona a padaria. Mas tudo é interligado.
Empregados e patrões, cachorro e namorados circulam livremente. A
simplicidade e austeridade, diríamos melhor, a precariedade ambiental,
fazem parte do medieval. Em contraste com o ambiente, a aparência, as
roupas do casal de padeiros, o que se relaciona aos empregados,
apresenta-se numa cor de terra. uma predominância de cores
terrosas, ocres, inclusive nas vestes, especialmente da dupla central. É
como se tudo fosse velho, muito velho, gasto pelo tempo. Em
determinadas tomadas, é possível a um espectador atento perceber a
textura dos tecidos usados nas roupas, as costuras e cerzidos.
O mesmo é aplicável a Severino. Ele parece caminhar carregando
um peso feito de roupas superpostas. Uma capa enorme, um chapelão
despropositadamente grande, cheio de penduricalhos, que esconde seu
168
rosto, lembrando os cruzados, as personagens shakespearianas e, por
que não, Dom Quixote em sua ancestralidade mourisca pelos caminhos
de La Mancha. Em contrapartida, as vestimentas do padre e do bispo
são elaboradas de acordo com os parâmetros requintados, formais e da
riqueza do clero. Assim como o anel do Bispo que tem lugar de destaque
nas cenas em que ele aparece. Os trajes, as jóias são signos carregados
de ideologia, símbolos, especialmente o anel, do poder da Igreja.
Em se falando de roupas, não como deixar de observar as
diferenças de figurino entre Dora e Rosinha, incluindo o penteado.
Enquanto Dora remete para a contemporaneidade, cabelos e vestidos
curtos, cores variadas; Rosinha, esguia e delicada, apresenta-se com
modelos longos e rendados, sempre em tons claros, quase brancos,
destoando também das cores terrosas e poeirentas do sertão. O uso e
abuso de rendas e de fricotes criam uma Julieta do agreste, cuja figura
os autores foram buscar nos figurinos dos 50/60, a famosa linha
diretório, e nas almofadas, toalhas e colchas das rendeiras nordestinas.
As roupas emprestam a Rosinha um ar etéreo, diáfano, mas muito bem
encarnado, embora de modo oposto ao de Dora. Cabelos longos, ora
soltos, ora trançados remetendo às mulheres-esfínges da Idade Média.
Rosinha se aproxima da santidade, pura e virginal; Dora é a terra na
sua quentura. As roupas de Rosinha não permitiriam o striptease. As
roupas de Dora são feitas para o striptease.
Figura 10 – O striptease de Dora
169
7.6 O gótico nos estertores do século XX
A arte Gótica tem seus primórdios no século XII, em meio a
grandes mudanças sociais e intelectuais originadas no norte da Europa,
que experimenta rápida expansão da população urbana e entrevê
possibilidade de grande progresso e de fortalecimento do poder real.
preocupação crescente com a educação e o conseqüente
desenvolvimento das habilidades técnicas e intelectuais da juventude.
As igrejas alargam suas portas, iluminam-se com belíssimos vitrais e
clareiam suas paredes internas decoradas com pinturas de teor
religioso e de caráter didático. A arte tica, com fins religiosos, faz-se
expressar por meio de ícones, facilitando assim a compreensão dos
fatos religiosos pela população, ao mesmo tempo em que motivam a
contemplação. O ícone se caracteriza por representar personagens e
cenas sagradas, pintadas na madeira. A técnica é chapada,
preferencialmente a personagem é vista de frente e se presta à descrição
e narração do sagrado.
Quando João Grilo e Chicó entram e saem da Igreja de Taperoá,
na prática de suas estripulias, o espectador pode ver, nas paredes que
fazem o fundo das cenas, uma série de quadros que têm como tema a
história sagrada. Esses mesmos ícones aparecem em uma conversa
entre o Bispo e o Padre, em que aquele procura justificativas para o ato
de corrupção praticado pelos dois. Enquanto os ícones indiciam a
sacralidade do local, a conversa é de teor ignóbil. Conteúdo,
participantes e local contrapõem-se de forma a rebaixar os valores
religiosos e o discurso assume um caráter grotesco, instala-se a
desarmonia entre a imagem dos locutores, o conteúdo da enunciação e
o local do pronunciamento. O mesmo se pode dizer da pintura na
parede externa anterior da igreja e que em várias cenas está presente
como ocorre no enterro da cachorrinha de Dora. Não sendo um ícone, e
sim um painel, ao que tudo indica um afresco, exerce a mesma função,
seja, identificar o local, narrar a história sagrada e estimular a prece e a
devoção. Quando Arraes escolhe esse espaço, para montar a cena do
170
enterro de Bolinha, com sua carga de histrionismo proveniente da
própria situação, do comportamento de Grilo e de Chicó, o discurso em
latim do Padre João e a imagem santa na parede sagrada da igreja
fazem irromper o contraste, a desarmonia do discurso que se degrada,
daí o grotesco.
Figura 11 – O sagrado representado no ícone da parede da igreja
Figura 12 – A negociação entre o bispo e o padre na igreja
O quadro televisivo e cinematográfico criado por Arraes, quando
da cena do julgamento, de alto impacto visual é bastante persuasivo e
de alta espiritualidade. O aparecimento do Cristo Negro que num
171
truque cinematográfico ‘desce’ do céu pintado na parede, assume o
trono, também pintado, e se achega a Terra. A subida dos anjinhos, que
ladeiam a personagem na pintura, lança o foco de importância para o
Cristo. Mais ainda, a chegada triunfal da Virgem, com vestes magníficas
e ornada com um diadema esplendoroso. Quando a Compadecida
chega, o foco de iluminação desloca-se para ela. O trono de Cristo fica
em uma meia-obscuridade. A Virgem adianta-se, como se naquele
instante se materializasse. Cena colorida, brilhante, em que a presença
de auréolas cintilantes, indicadoras de santidade, e a riqueza das vestes
criam uma contraposição ao terreno, pobre e simples da igreja e dos
humanos à espera do julgamento. O brilho do gótico e o opaco da
realidade.
Figura 13 – A chegada triunfal da Virgem
Figura 14 – Diálogo entre Mãe e Filho
172
A concretização da humanidade da Virgem, que habita o céu e a
terra, faz-se pela beleza singela esculpida no rosto de Fernanda
Montenegro e pela fala de João Grilo: Por alguém que está mais perto de
nós, por alguém que é gente mesmo!
316
Na cena da morte de Dora e de
Eurico, a imagem da Virgem, pintada na parede, dirige seu olhar para
eles e é transposta para o rosto de Fernanda Montenegro, utilizando
processos de fusão e superposição de imagens, ocorre o auge da
aproximação da Virgem com a humanidade, em sua humanidade.
As cenas descritas, todas elas bastante delicadas, contrastam
com a aparição barulhenta e escandalosa do diabo, suas falas irônicas e
agressivas. Sob vários nomes – o Encourado para homem do nordeste, o
Tisnado, e mais 91 sinônimos, no sertão roseano ele é sempre um
bicho elusivo que tende a se esquivar, a se esgueirar. O de Arraes bem
adequado, fisicamente, à personalidade: uma cara não tão assustadora,
segundo João Grilo, e uma outra medonha. Ou seja, nada claro, todo
ele vago e imprevisivo. Surge num escancarar de portas são as portas
da igreja – e no meio de línguas de fogo que persistem ao fundo,
lembrando as cores flamejantes de Hieronymus Bosch.
Figura 15 – A chegada do Encourado
316
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 22.
173
Figura 16 – Fala de Chicó: ... mas eu gostava mesmo era
de enganar aquela gente
O jogo de cores, a presença das trevas e da luz, o profano e o
sagrado, a atmosfera fantástica gerada pela presença de entes
sobrenaturais seria para os estudiosos da pintura o que se
convencionou chamar naturalismo gótico. São esses elementos que,
presentes nas cenas do julgamento, emprestam ao discurso “gueliano”
um tom gótico.
7.7 A vinheta de abertura
A vinheta de abertura feita por Hans Donner utiliza o mesmo
filme A Paixão de Cristo que é exibido na igreja e do qual Grilo e
Chicó fazem a promoção na cena inicial da microssérie. Logo de início,
portanto, a microssérie utiliza-se do cinema num jogo de
intertextualidade, mostrando uma característica gueliana, a de misturar
linguagens de diferentes suportes. O Cristo aparece, seguido por uma
multidão. Num outro plano os créditos dos atores aparecem
sobrepostos a um fundo em que Cristo anda sobre o mar. E assim
sucessivamente, ou seja, o filme, em diferentes planos, serve de suporte
aos créditos. E como em qualquer produto artístico nada é aleatório.
174
Matheus Nachtergaele e Selton Mello, que dão vida aos
protagonistas, aparecem num quadro emoldurado por uma espécie de
entalhe, o mesmo que aparece no logo da microssérie, o que permite um
aprofundamento da cena do filme em que Cristo caminha sobre o mar,
relatado nos Evangelhos como sendo milagre. João Grilo e Chicó, em
sua miséria ancestral, são viventes por milagre. O nome de Marco
Nanini (Severino) está numa cena belíssima e altamente sugestiva: o
Cristo de mãos postas, vestido com um manto cor de vinho, uma coroa
de espinhos à cabeça que se move meio tombada e tendo atrás, escrita
numa parede, sua identidade: ECCE HOMO. Não nos esqueçamos que
Severino é um cangaceiro, matador e contou com a extrema simpatia da
Compadecida e foi direto para o céu por determinação do próprio Cristo,
no julgamento. Lima Duarte (Bispo) tem seu nome na cena final da
crucificação, quando Cristo já está na cruz, ladeado por seus dois
companheiros e a multidão em torno. Fernanda Montenegro
(Compadecida) aparece imediatamente anterior ao nome de Guel Arraes
na cena em que Cristo está ascendendo ao céu, ladeado por um círculo
de nuvens, outro menor dourado. Quase são alçados, eles também.
Nota-se que, desde a vinheta, Arraes brinca, de modo sério, com a
miscelânea de linguagem. São escolhas intencionais a indiciam leituras
que ultrapassam o nível superficial e ali estão para sugerir idéias que
repousam nas entrelinhas, ou “entrecenas”.
7.8 Personagens de O Auto da Compadecida
Tratamos aqui das personagens que foram acrescidas pela autoria
da minissérie, levando em conta o fato, anotado anteriormente, que
não ocorrem mudanças de características, bem como em suas atitudes,
comportamento e ações com as personagens suassunianas
conservadas. A exceção, se assim podemos dizer, corre por conta de
Chicó. Na galeria das personagens picarescas, Chicó tem como
preocupação única a sobrevivência. No texto-fonte, segundo ele, tinha
175
estado de amores com a mulher do padeiro uma única vez e não
conseguia esquecê-la. Na microssérie as coisas acontecem de outra
maneira. O relacionamento entre os dois não é ocasional, pois os
encontros ocorrem com certa freqüência e concorrem para extensão da
narrativa, permitindo episódios hilariantes que envolvem o padeiro, o
padre, Vicentão e propiciam o striptease de Dora. Com a chegada de
Rosinha e a paixão que ela desperta em Chicó, a microssérie ganha um
ar “novelesco”, com as marchas e contra-marchas de um amor entre
diferentes, as oposições, lutas, encontros e desencontros. Entretanto,
mesmo contrariando o caráter picaresco não ter amores o cerne da
picardia permanece. Chicó, para sobreviver, acompanha Grilo em suas
falcatruas com o objetivo de ganhar um dinheirinho. Até o casamento
com Rosinha é efetuado na base da esperteza e da safadeza, se bem que
urdida por Grilo, mas com anuência e participação de Chicó. A
frouxidão e a covardia, sua decantada ingenuidade permanecem. Bom
namorador, sabe, e muito bem, como seduzir Rosinha.
A “transgressão” aos moldes picarescos cometida por Chicó
remete-nos a mestre Antonio Candido em sua análise do romance
Memórias de um Sargento de Milícias no ensaio Dialética da
Malandragem. Interessam-nos algumas idéias levantadas pelo autor
sobre a categoria ‘picaresco’. Para Antonio Candido, o romance
picaresco é narrado em primeira pessoa, portanto, o próprio pícaro
narra suas desventuras. A categoria narrador não entra em nossas
cogitações, visto que, segundo Prado
317
, a personagem teatral
dispensaria a mediação do narrador para dirigir-se ao público, por
extensão, pode-se considerar o mesmo em relação à dramaturgia
televisiva. Candido traça, entretanto, relações entre narrador e
personagem, no caso, Leonardo Pataca, com base na picardia
espanhola, para traçar seu caráter, considerado como um jogo de
aproximações e distanciamentos do modelo. Levando-se em conta a
aproximação, em termos bakhtinianos, o dialogismo cultura
317
PRADO, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In: CANDIDO, Antonio;
ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio A.; GOMES, Paulo E. S. A personagem de ficção. São
Paulo: Perspectiva, 1985.
176
sertaneja/cultura ibérica
318
, consideramos ser possível um diálogo com
as idéias de Antonio Candido.
O pícaro seria de origem humilde e ingênuo; largado no mundo,
arrastado à mentira e empulhação pela brutalidade da vida. O traço
básico do pícaro seria o choque áspero com a realidade que leva à
mentira, à dissimulação, ao roubo, e constitui a maior desculpa das
“picardias”
319
. A Compadecida, na cena do julgamento, nos fornece a
origem de João Grilo: comedor de macambira e espectador do
assassinato de sua família. Chicó desenha-se como se estivesse
perambulando, desde sempre, um andarilho na vida. Nada sabemos
sobre sua origem, seu passado a não ser, por suas histórias
estapafúrdias, uma estada em um seminário, o que, no caso dele,
sugere orfandade. As andanças de Chicó, levando-se em conta suas
histórias, são muitas. É típico da personagem picaresca, andar de um
lugar para outro, entrar em contato com grupos e até mesmo culturas
diferentes. Sob esse aspecto, Chicó sugere ser mais pícaro que João
Grilo. Todavia, ambos justificam a picardia pela dureza da vida, pela
luta insólita pela sobrevivência.
A origem humilde e o desamparo levariam o pícaro a uma
situação de subserviência. É sempre um criado e como tal passa de um
amo a outro, mudando de ambiente constantemente o que lhe permite
conhecer a sociedade em seu conjunto. O servilismo, como sendo a
submissão, a sujeição absoluta aos patrões, não encontra lugar em
nossos heróis, especialmente em João Grilo. A exploração a que são
submetidos tem seu contraponto nas maquinações, de todas as
espécies, que armam contra os patrões. Com a mesma rapidez que
abandonam o casal de padeiros, eles safam-se de Antônio Moraes e
caem no mundo, outra vez ‘largados’, outra vez pobres. Entretanto, o
aviso de João a Chicó Mas de outra vez, veja o que promete, infeliz,
318
Referimo-nos às idéias assumidas por Suassuna sobre a aproximação cultural entre o sertão
e a Península Ibérica. Ver capítulo 2.
319
CANDIDO, Antonio. A dialética da malandragem. In: CANDIDO, Antonio. O discurso e a
cidade. São Paulo, Rio de Janeiro: Duas Cidades, Ouro sobre Azul, 2004, p. 19.
177
porque essa, ah promessa desgraçada, ah promessa sem jeito !
320
-
indicia que ele aprendeu com a experiência vivida. A característica da
personagem picaresca de aprender e que a levaria a um
amadurecimento, conduziria também a uma visão desencantada da
vida que para João Grilo e Chicó estaria na aceitação da miséria: com a
pobreza já estamos acostumados
321
.
Retomando a ‘transgressão’ de Chicó, ou seja, seu casamento,
encontramos um aspecto contraditório da picardia. O pícaro agiria por
reflexo de ataque e defesa e não por sentimentos. Contumaz traidor de
amigos e enganador de patrões, não tem uma linha de conduta e
quando se casa, o faz por interesse, nunca por amor, acomodando-se a
situações foscas, como o pobre Lazarillo
322
. Ora, Chicó, contraria essa
peculiaridade, pois ele ama verdadeiramente Rosinha. A relação de
amizade entre Chicó e João é inabalável e também existe uma linha de
conduta senão ética, determinada pela religiosidade: o cumprimento da
promessa feita. Paradoxalmente, Rosinha manifesta uma faceta pícara.
Durante e negociação final para seu casamento, quando se revela que
Chicó não tem o dinheiro para pagar sua dívida com o Major, Rosinha
tem respostas e atitudes prontas e espertas a ponto de João Grilo
exclamar: Chicó, você ganhou uma parceira no amor, e eu achei uma
parceira na inteligência
323
. Inteligência aqui, pode ser lida como
esperteza.
No centro das personagens-filhas trazidas à trama pelo trio de
autores televisivos está Rosinha, encarnada por Virgínia Cavendish.
Jovem, urbana, bonita, bem tratada, rica, enjoada da cidade grande,
onde vive com a mãe, e casadoira. uma Rosa que morre por amor
em Uma mulher vestida de sol e não é o caso desta Rosa mas como
Rosinha, é uma linda e interessante mulher. Em Torturas de um coração
ou Em boca fechada não entra mosca, os personagens são alguns dos
320
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 188. O AUTO DA
Compadecida, DVD, cena 24.
321
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 25.
322
CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade, p. 21. Lazarillo de Tormes, ou La vida de Lazarillo de
Tormes y sus fortunas y adversidades. Obra anônima. Barcelona: Cátedra, 1989.
323
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 25.
178
“tipos” fixos do mamulengo nordestino Vicentão, Cabo Setenta
324
–, que
disputam o coração de Marieta (personagem do mundo mítico de
Suassuna). Aqui, Arraes os faz dialogarem com as personagens das
chanchadas nacionais. De acordo com o pai, Antônio Moraes, a jovem
recebera o nome Rosa em homenagem a avó. Ao chegar a Taperoá,
encontra-se com Chicó na quermesse, festa popular de rua, geralmente
nas cercanias da igreja, por ele se apaixona à primeira vista. Cortejada
pelo Cabo Setenta e por Vicentão, espertamente um jeito de livrar-se
deles para ficar com Chicó. Aliás, Rosinha mostra elegância ao se livrar
das grosserias de Dora, bastante enciumada com a chegada de tanta
belezura e já prevendo seu destronamento.
Por mim não sairia mais daqui, mas mainha
quer saber da cidade.
..............................................................................................
– Com licença. Tenho de ir à Igreja, antes de ir para a
fazenda. O Padre vai dar a bênção.
325
Romântica e sensível, encanta-se com a noite sertaneja quando
chega à fazenda, e ainda mostras de conhecimento: Eu li que há
milhões de anos o sertão já foi mar. Esperta, combina e, muito bem, com
Grilo na defesa de Chicó: A única palavra que se pronunciou nesse
contrato foi couro.
326
Bonita e inteligente, Rosinha não foge ao protótipo feminino. Sem
meios de sobrevivência, é dependente do pai e a ele se sujeita: o
candidato a marido, deveria ter diploma ou ser rico, era exigência do
pai. Como Chicó é um pobre diabo, Rosinha acaba deserdada e expulsa
de casa pelo Major, sem lágrimas nem reclamações, diga-se, embora
consciente de sua nova situação: Eu nunca fui pobre
327
.
Vicentão é o valentão típico com fortes traços de machismo.
Batendo escandalosamente na porta e aos berros, chega à casa do
324
SUASSUNA, Ariano. A pena e a lei. Rio de Janeiro: Agir, 2005, p. 150.
325
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 25.
326
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 17.
327
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 26.
179
padeiro: Abra aqui Dora. [...] Eta que hoje estou com a gota. Entrando
como se a casa fosse dele: Por que não abriu a porta logo que cheguei?[...]
E eu que sei? A casa é sua. Quem manda aqui é você.
328
Nada de
comprometimento, quando o dono da casa chega, Dora que se vire. De
pouca inteligência, custa-lhe muito compreender o plano de escape que
Dora arma, evidenciando bem o homem que tem corpo. Com o Cabo
Setenta faz a dupla que se enrola no duelo com Chicó e acaba cedendo
o título de valente ao mais covarde de todos.
Setenta não nega sua farda, sempre empolado, cheio de
maneirismos: Cabo Setenta para servi-la no que for preciso.
329
Para
seguir Rosinha, que vai para a igreja, e escapar dos outros usa o
artifício da autoridade: Com licença, a autoridade militar vai saudar a
religiosa. Apaixonado por Rosinha, perde completamente a compostura
e é feito de bobo pelo esperto João Grilo. Mais uma façanha do amarelo.
Há apropriação do discurso dramatúrgico suassuniano e uma
explosão gueliana. Amplia-se a trama, surgem outros personagens
novos discursos. O cenário se expande. O discurso agora se faz mais
rápido e ágil como exigência televisiva, decupados, os diálogos sugerem
menos extensão. As aventuras de João Grilo e Chicó são recontadas e
para tal são mobilizados fatores e valores vários, diferentes daqueles
próprios do teatro.
O que se tem em O Auto da Compadecida é uma recriação em
termos estruturais, o que faz dela uma obra inédita, nova, uma outra
em relação à ‘primeira’ na qual se ancorou. Por isso, em forma de
apropriação, fazemos da fala de Suassuna discurso de Arraes: Oxente!
Escrevi foi a microssérie!
328
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 10.
329
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 14.
181
P
ARTE
5
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EORIA E
O
BJETO EM
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IÁLOGO
8
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M
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
330
Mediadora entre homem e mundo, tendo a palavra como
constitutiva, a linguagem é condição necessária ao pensamento
conceitual: os sistemas de sinais, chamados línguas, são os suportes do
pensamento conceptual
331
, Circulando entre o social dado e o individual
criador, a linguagem é impregnada de traços ideológicos. Ela conserva e
transmite a experiência acumulada e incorpora as mudanças, ao mesmo
tempo que oferece as categorias necessárias à constituição do
pensamento conceitual
332
Não sendo inata, a palavra é transmitida e
desenvolve-se no processo social da educação, experiência social que
permite ao homem aprender a falar e pensar. O homem recebe um
produto feito: unidade linguagem-pensamento, que é a experiência
acumulada na filogênese e fixada nas categorias da linguagem
333
.Vemos
o mundo pelas lentes das gerações passadas, fator de fundamental
importância, mas não o único determinante, de nosso pensamento. A
linguagem, como mediadora, forma a base do pensamento e liga os
membros da mesma comunidade lingüística na qual se dá a criação
intelectual individual.
Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os
quais um sacristão, um padre e um bispo, para exercício da
moralidade.
334
330
A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Evangelho Segundo São João, 1:1. São Paulo: Paulinas, s.d.
331
SCHAFF, Adam. Linguagem e conhecimento. Coimbra: Almedina, 1974, p. 251.
332
MOTTER, Maria Lourdes. Ficção e realidade: a construção do cotidiano na telenovela, p. 21.
333
SCHAFF, Adam. Linguagem e conhecimento, p. 250.
334
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 15.
182
A primeira fala do Palhaço, no texto suassuniano, revela as lentes
de gerações passadas. De formação protestante, convertido ao
catolicismo na juventude, religiões que têm Cristo por ‘pedra angular’,
portanto, cristãs em sua essência, é natural a postura do autor. Tanto
para o protestantismo como para o catolicismo, o julgamento da
canalhice – o pecado – humana é doutrina e será exercido por Cristo, na
sua função de juiz, em sua segunda vinda a terra, no final dos tempos.
Para o catolicismo, a Virgem Maria é co-autora da redenção humana e
mediadora entre os homens e Cristo, exercendo a função de advogada,
muito bem pleiteada por João Grilo, lídimo representante da
humanidade pecadora.
– A mãe da justiça.
335
– Valha-me Nossa senhora, [...]
336
Com Deus e com Nossa Senhora, que foi quem me
valeu! [...] Até à vista grande advogada. [...]
337
Essa mesma posição de dependência e esperança na intervenção
da Virgem aparece na microssérie. No Julgamento, respondendo ao
Cristo, João Grilo, de frente para o trono e à frente dos demais sentados
no primeiro banco da igreja, declara com enorme fé e esperança:
Vou me apegar com alguém mais perto de nós.
João recita o poema invocatório, fazendo gestos simples, óbvios
mesmo, de quem está desesperado, rezando, clamando pela ajuda
divina. Os dois últimos versos em tom de quase desespero, as
derradeiras palavras em brados:
335
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 157. O AUTO DA
Compadecida, DVD, cena 23.
336
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 158. O AUTO DA
Compadecida, DVD, cena 23.
337
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 175. O AUTO DA
Compadecida, DVD, cena 22.
183
Figura 17 – Fala de João Grilo: Valha-me Nossa Senhora, /
Mãe de Deus de Nazaré!
338
A criação individual ocorre contaminada pela visão dos
antepassados, continente de um certo conhecimento objetivo do mundo
que nos permite mobilidade e adaptação, geradores de nossa
sobrevivência. Mas também de estereótipos. Schaff afirma: a linguagem,
que é um reflexo específico da realidade, é tamm, em certo sentido, a
criadora da nossa imagem do mundo. E continua: o reflexo da realidade
objetiva e a ‘criação’ subjetiva de sua imagem no processo do
conhecimento não se excluem, mas completam-se, constituindo um
todo
339
.
Tendo como referencial admitido sua realidade, Suassuna parte
do que é de seu conhecimento de mundo: os folhetos de cordel que
povoam a região onde vive. No primeiro ato da Compadecida, é notável a
presença de um folheto de cordel O dinheiro de Leandro Gomes de
Barros; no segundo estão presentes episódios de História do cavalo que
defecava dinheiro; no terceiro correspondência com o auto de autor
338
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 158. O AUTO DA
Compadecida, DVD, cena 23.
339
SCHAFF, Adam. Linguagem e conhecimento, p. 254.
184
anônimo O castigo da soberba.
340
O próprio autor afirma que, ao dar o
nome de João Grilo ao protagonista, pensava fazer uma relação entre
seu teatro e o cordel nordestino numa homenagem ao herói de um
romance de cordel, da autoria de João Martins de Athayde, intitulado
As proezas de João Grilo e acaba por descobrir que esse mesmo herói
picaresco existe em Portugal, com o mesmo nome. Suassuna, em
Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, à
página 516, faz (re)surgir João Grilo, um ajudante de padaria, líder de
um bando de desocupados na vila de Taperoá, que empurra ladeira
abaixo um pobre diabo paralítico que se locomovia em um carrinho de
mão empurrado pela filha. Na cidade em que viveu quando menino,
Ariano conheceu um esperto, astucioso, segundo ele, vendedor de jornal
com esse apelido. O companheiro inseparável e amigo para sempre de
João Grilo, Chicó, nasce de um indivíduo que vivia em Taperoá, no qual
Ariano diz ter se inspirado. Chicó forma com João Grilo a dupla de
palhaços, um esperto que se mete em situações arriscadas,
influenciando o outro, ingênuo e que, às vezes, acaba por atrapalhar o
espertalhão. Essa dupla é batizada de O Palhaço e o Besta
341
na região
sertaneja. Temos a convergência de dois aspectos fundamentais à
produção de Suassuna e que estão presentes na obra ‘gueliana’: o
enraizamento no popular e no cotidiano. O cordel de si está fincado
no popular, em sua maioria é de autoria anônima ou coletiva, do povo.
O autor/cantador de feira apossa-se do que existe entre o povo e
reelabora em matéria escrita o folheto de cordel que tematiza o dia-
a-dia da comunidade.
O visto por Suassuna é assimilado pelo olhar da trinca roteirista
(Arraes, Adriana e João Falcão) e por ela recriado, desenhando-se num
outro todo que é a microssérie. Não se pode negar a Suassuna a
prioridade dada à linguagem verbal. O teatro suassuniano caracteriza-
se pela essencialidade da linguagem verbal, daí a simplicidade da
encenação. O que se nota na teledramaturgia de Arraes é a manutenção
340
TAVARES, Bráulio. Tradição popular e recriação no Auto da Compadecida. In:
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 191-193.
341
TAVARES, Bráulio. Tradição popular e recriação no “Auto da Compadecida”. In:
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 191.
185
da importância da palavra, sem se descurar da linguagem televisiva, ou
seja, da imagem, tida como fundamental na televisão e no cinema. O
tratamento dado à imagem, cuidadoso, altamente tecnológico (note-se a
animação presente nos causos de Chicó, nas cenas do julgamento), a
par de muita criatividade artesanal, reflete/refrata uma visão própria, é
a imagem de mundo do homem simples, nem por isso despido de
sensibilidade, que vive nas brenhas e penhas do sertão, sobrevivendo
“picarescamente”. As histórias de Chicó, ao serem transplantadas para
outra linguagem a da imagem, e da animação –, o são dentro da visão
e do universo da personagem, daí a escolha dos traços, do desenho
como se fossem de cordel. Isso ocorre em face de, sendo modelada
socialmente, reflexo e refração, a linguagem constituir-se em resposta
às questões práticas, influenciando a produção cultural, seja ela
científica ou artística.
A microssérie corporifica os causos de Chicó, utilizando-se de
efeitos especiais (trucagens e soluções físicas na produção de efeitos) e
recursos próprios do campo de produção de imagens. O uso, tanto dos
efeitos como da técnica, é intencional, é uma decisão da autoria,
portanto, de um fazer que, para ‘reler’ eletronicamente a visão de Chicó,
utiliza-se de toda uma parafernália tecnológica só possível num estúdio,
com instrumental e pessoal altamente técnico.
9
9
O
O
D
D
I
I
S
S
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C
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S
O
O

Para Brandão, o discurso é efeito de sentido construído no
processo de interlocução
342
, portanto, recusa à mera transmissão de
informação, uma ação para Clark e Holquist
343
. O discurso não é uma
grande frase, nem um aglomerado de frases, mas um todo de
342
BRANDÃO, Helena N. Introdução à Análise do Discurso, p. 89.
343
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin, p. 237.
186
significação, para Fiorin
344
. Bakhtin entende o discurso como: (...)
fenômeno social social em todas as esferas da sua existência e em
todos os seus momentos, desde a imagem sonora até os estratos
semânticos mais abstratos.
345
O discurso nasce no diálogo com sua
réplica viva, forma-se na mútua orientação do discurso de outrem no
interior do objeto. A concepção que o discurso tem de seu objeto é
dialógica.
346
Espaço de exercício da linguagem por sujeitos em ação recíproca,
lugar em que enunciações manifestam ideologias. Espaço de luta,
arena, como diz Bakhtin, em que idéias defrontam-se, completam-se,
concordam, discordam, polemizam.
9.1 Enunciação
        
     ! 

347
O homem tem o poder da elocução expressão de idéias,
sentimentos e toda elocução é um elo em uma cadeia complexa de
comunicação: interlocução, vista como processo de interação entre
indivíduos através da linguagem verbal ou o verbal
348
. Essa interação
manifesta-se através da enunciação: conjunto de signos provenientes de
indivíduos socialmente organizados e, como tal, concreto,
compreendendo o produto (material) e o processo (situação), sempre em
interação orgânica.
Território comum do locutor e do interlocutor, a palavra determina-
se por proceder de alguém e dirigir-se a alguém, ou seja, serve de
344
FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação.o Paulo: Ática, 1999, p. 30.
345
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo:
Hucitec, 1993, p. 71.
346
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 88-89.
347
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 274.
348
BRANDÃO, Helena N. Introdução à Análise do Discurso, p. 90.
187
expressão a um em relação ao outro
349
. Mesmo se pensarmos em mundo
interior e reflexão individual, não podemos abster-nos de um auditório
social bem estabelecido, e a palavra continua mantendo uma dupla
orientação. A enunciação leva em conta o auditório, visto ser o discurso
manifestação que, supondo o diálogo (Bakhtin), caracteriza-se por
produzir um efeito de sentido
350
. Assim é determinante a inter-relação
entre locutor e seu parceiro de comunicação, bem como a situação
social mais imediata e o meio social mais amplo determinam
completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a
estrutura da enunciação
351
.
A enunciação, como conjunto de manifestações sígnicas que
cercam o ato de comunicação, precisa da voz do locutor, subentende o
receptor e seu contexto, assim como tempo e espaço de sua produção.
Uma palavra dita faz-se entender quando analisada dentro de um
conjunto de fatores em que implicam o que é dito e o que não é dito.
desta forma a enunciação é constituída e significa, sendo ela própria a
simultaneidade do que é dito e do que é pressuposto.
uma conexão concreta do locutor com o ouvinte e destes um
discurso liga pessoas com o existente de modo simultâneo e isso vai
permitir a enunciação, ou seja, a existência da enunciação depende
dessas relações. Na enunciação, mesmo que de uma única palavra,
um texto realizado e um nexo que o liga ao contexto de sua proferição e
essa ligação, essa ponte foi criada pela entonação expressão avaliativa
que pode estar num gesto, numa cor, num movimento. Toda palavra
contém um acento de valor ou apreciativo, isto é, quando um conteúdo
objetivo é expresso (dito ou escrito) pela fala viva, ele é sempre
acompanhado por um acento apreciativo determinado. Sem acento
apreciativo não palavra.
352
Quase sempre determinada pela situação
imediata e suas circunstâncias mais efêmeras, a entonação vai suprir o
que não se diz: categorias como posição social, grau de intimidade,
relações afetivo-emocionais, etc., são configuradas nos padrões sonoros
349
BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e filosofia da linguagem, p. 113.
350
BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e discurso: história e literatura, p. 91.
351
BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo de filosofia da linguagem, p. 113.
352
BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e filosofia da linguagem, p. 132.
188
das proferições concretas. A entonação modo como uma coisa é dita
torna evidente a simultaneidade do que é dito e do que não é dito
353
e
tem efeitos evidentes sobre a linguagem, pode se materializar num
trejeito, numa careta de João Grilo; num remexer de olhos de Chicó;
nos “modelitos” de Dora, nos longos vestidos e cabelos de Rosinha. Vai
existir também nos andrajos de João Grilo e Chicó, nas botinas que este
carrega debaixo dos braços.
Figura 18 – Chicó e suas botinas
Sob a repetida queixa de João Grilo: Três dias passei em cima de
uma cama pra morrer e nem um copo d’água me mandaram, fala
acompanhada de uma entonação vocal e corporal, abrigam-se mágoa e
ressentimento. A freqüência dessa fala também pode ser pensada como
valor, ela está como que entranhada na alma do pobre João Grilo o que
o leva a reiterá-la. A quem Grilo quer atingir? Qual a força desse
enunciado sobre o destinatário? A queixa é repetida frente à Virgem
quando do julgamento. Tem o mesmo valor da emitida durante a
conversa com Chicó? No julgamento, João Grilo intenta salvar sua pele,
precisa mostrar suas virtudes, ou ao menos o sofrimento por que
passara na terra como Cristo na sepultura antes da ressurreição, três
dias passara consumindo-se como que apostando na compreensão da
Virgem e ao mesmo tempo denunciando a maldade dos outros, seus
algozes na vida terrena, os patrões. Na tagarelice com Chicó, Grilo
353
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin, p. 225.
189
queixa-se, numa linguagem mais coloquial, ‘desabafa’, chega a maldizê-
los e exibe todo seu ódio.
Figura 19 – Fala de João Grilo: Três dias passei...
354
Em seu ensaio, O discurso na vida e na arte, Bakhtin preocupa-se
com a diferença entre os discursos da vida e os da arte, ou seja, a
comunicação na vida cotidiana e a comunicação estética. Ele pensava
então na inexistência de uma poética sociológica viável. Os formalistas,
ao estabelecerem uma teoria de interpretação de textos literários,
desconsideraram o contexto social e histórico e batem-se contra os
marxistas, que afirmavam ser a literatura um reflexo ideológico das
forças econômicas na organização social. Bakhtin entende o discurso
artístico como uma forma especial de comunicação social. Enquanto na
comunicação cotidiana, as conexões com o ambiente de formulação da
enunciação são fortes e intensas, criando sólida e evidente dependência
para o significado, os textos estéticos, embora inexistam como objeto
autotélico, são menos implicados em seus ambientes de percepção. O
discurso estético seria menos dependente do contexto imediato, embora
nunca deixe de existir o nexo relacional autor/obra/leitor, mesmo
porque o grande denominador do discurso é, para Bakhtin, a
enunciação e esta é a interação – ponte entre pessoas socialmente
determinadas. A forma artisticamente criativa formas antes de tudo
354
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 145. O AUTO DA
Compadecida, DVD, cena 12.
190
ao homem, depois ao mundo, mas mundo somente enquanto mundo do
homem.
355
Não como se negar ao discurso artístico sua inserção no
social, no contexto e no intertexto. O discurso artístico é um conjunto
prenhe de linguagens socialmente diversificadas e artisticamente
organizadas, no qual línguas e vozes individuais de autores, de
narradores, de personagens, os gêneros intercalados vivem/convivem e
é dessa pluralidade de linguagens, de vozes e visões, várias e diferentes,
em orquestração, que se faz o discurso artístico com toda sua carga
semântica, figurativa e expressiva.
A intensidade e importância do verbal na obra dramatúrgica
suassuniana, que se mantém na teledramaturgia gueliana é,
essencialmente, oral, é a fala em sua inteireza de entoação, de variação,
de musicalidade. Por outro lado, a televisão é tida e havida como veículo
imagético em sua essência. À riqueza de variação do oral se mescla a
imagem cuidada, intensa, produto do olhar da câmera, mas que
implode em outras: a animação que materializa os causos de Chicó; a
pictórica, com o aproveitamento do painel pintado no altar da igreja,
que vai ser “trazido” para a terra e tornar-se o trono do Cristo no
julgamento por efeito de trucagem cinematográfica. Deve-se ainda notar
que a parte anterior externa da igreja também apresenta um painel, no
qual se a Virgem e que em vários momentos e em diversas cenas
explode na tela, de forma rápida, mas que atrai para si o olhar do
espectador, apontando inapelavelmente para um elemento-chave: Nossa
Senhora. É ali, junto ao painel, que o padeiro, vestido de mulher, por
artimanhas de João Grilo, leva uma surra de Chicó e é objeto de riso e
escárnio, mais ainda, de repreensão por parte do padre. Principalmente,
é o painel pintado na parede que serve de cenário, em contracampo,
para as execuções praticadas pelo cangaceiro, sob as ordens de
Severino.
Chicó fala como personagem, dialoga com Grilo boa parte do
tempo, mesmo porque os dois se configuram como protagonistas, mas é
o narrador dos causos que, diz ele, viveu. A fala de Chicó manifesta-se
como discurso da memória que se anuncia como mistério: das
355
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 69.
191
baforadas do cigarro de Chicó, surge uma fumaça esbranquiçada e os
‘causos’ se materializam em imagem, diferenciada porque outra
linguagem. Personagem desses causos, Chicó, quando questionado
sobre a veracidade do que conta, replica: Não sei, sei que foi assim.
Se memória é ficcionalizada. Se ficção é memorializada e adquire foro de
verdade. Realidade e ficção constituem-se um todo discursivo e
linguagens entram em confronto na arena discursiva, visto que o
diálogo entre diferentes discursos nem sempre é harmonioso e
simétrico, daí a instauração da natureza da interdiscursividade da
linguagem.
A máxima ‘filosófica’ que repete a cada morte Cumpriu sua
sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a
marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem
explicação que iguala tudo que é vivo num rebanho de condenados,
porque tudo que é vivo, morre! revela a postura de Chicó diante da
morte. É a personagem ideólogo à qual Bakhtin refere-se, quando
afirma sobre o caráter ideológico da palavra e do discurso, pois exprime
idéias, expressa visão de mundo do falante.
Para Bakhtin, a enunciação é de natureza social, portanto a
situação social, isto é, a condição real da enunciação vai determinar
todo e qualquer aspecto da expressão objetivada. A enunciação é,
portanto, o processo interlocutivo, incluindo aí o contexto histórico,
social, cultural, as ideologias que perpassam as diferentes instâncias
sociais. Assim pensada, a enunciação tem como produto o discurso,
este sim, efeito de sentido, ponto de articulação dos processos
ideológicos e dos fenômenos lingüísticos.
356
Não existe texto, não existe
discurso fora da sociedade. O discurso não se encerra na unicidade da
língua como sistema, no código pictórico, musical nem no psiquismo do
indivíduo produtor ou intérprete. Só existe no, e para o social. O
discurso tem uma intensa vida social fora do atelier do artista, nas
vastidões das praças, ruas, cidades e aldeias, grupos sociais, gerações e
épocas.
357
356
BRANDÃO, Helena N. Introdução à Análise do Discurso, p. 12.
357
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 71.
192
Se o discurso de João Grilo, ao invocar a Virgem para socorrê-lo,
não adquire forma na praça, a situação na qual João encontra-se, que
se apresenta como sendo de total desesperança, impõe uma
ressonância, a de prece, de solicitação urgente e marcada pela relação
íntima que existe entre os dois interlocutores. Essa relação a João
Grilo a liberdade para invocar a Virgem através de versos simples,
populares, despidos de toda a pompa própria das invocações religiosas,
e à Compadecida condições para a compreensão e aceitação.
A rede de relações tecida entre interlocutores e situação permite a
expressão, que esta não é jamais organizada pela atividade mental e
sim organiza, modela e determina sua orientação. Em Questões de
literatura e estética lemos: O discurso nasce no diálogo com sua réplica
viva, forma-se na mútua orientação do discurso de outrem no interior do
objeto. A concepção que o discurso tem de seu objeto é dialógica.
358
9.2 O dialogismo
"       #
$%%%#&
359
Para os estudiosos da obra de Bakhtin, o dialogismo ocupa lugar
central no seu sistema de pensamento. Preocupado com uma filosofia
da linguagem, que para Stam é também uma ética e a base de um
método literário de análise
360
, o tema, linguagem e dialogia, percorre
toda a sua obra, recebendo, segundo Stam, diversos nomes
361
, mas
sempre relacionado com a comunicação através da diferença. Para o
358
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 88-89.
359
VARELLA, Flavia; IWASSO, Simone. Entrevista de Silviano Santiago: Em vez de remédio,
um bom livro. O Estado de S. Paulo, 09 outubro 2005, p. A-28.
360
STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa, p. 12.
361
Para Stam, os nomes com que esse tema é tratado são poliglossia, heteroglossia, polifonia,
dialogismo.
193
professor Boris Schaidermann
362
a dialogia é uma filosofia de vida
bakhtiniana, Bakhtin é dialógico. O dialogismo é marca do homem, a
alteridade seria a definidora da nossa humanidade, pois é impossível
pensar o homem sem relacioná-lo com o outro. Ao discutir o problema
do autor e do herói na atividade estética, Bakhtin afirma sobre o
primeiro:
Ele deve tornar-se outro relativamente a si mesmo, ver-se
pelos olhos de outro. Pois na vida nós fazemos isto (...)
julgando-nos do ponto de vista dos outros, tentando
compreender, levar em conta o que é transcendente à
nossa própria consciência (...) presumimos, levamos em
conta, o que se passará após nossa morte, o que é
resultado global da nossa vida e não existe, claro, senão
para os outros.
363
Princípio constitutivo da linguagem, o dialogismo é exigência,
condição do sentido do discurso. No capítulo referente à interação
verbal, em Marxismo e filosofia da linguagem, podemos rastrear
aspectos importantes do dialogismo entre interlocutores enunciador e
enunciatário do texto. Dando clara preferência à questão social,
Bakhtin enxerga uma oposição entre individual e social, por isso
atribuir fundamental importância ao interlocutor e considerar a
interação entre sujeitos como sendo a essencialidade da linguagem.
Bakhtin afirma que a linguagem é essencial para a comunicação e
também que a interação dos interlocutores funda a linguagem. Por seu
turno, sendo a enunciação carente da voz do locutor, do horizonte do
receptor, do tempo e espaço (contexto social e histórico) de sua
produção, o sentido se constrói na interação entre os sujeitos do
discurso, ou seja, na produção e interpretação do texto. O conceito de
sujeito bakhtiniano é a de um sujeito social, pertencente a um grupo ou
classe, participando de um sistema hierárquico, de um momento e de
um tempo, por isso histórico. E como tal, portador de voz, produzida a
partir de um determinado lugar e de um determinado tempo, o sujeito
362
Interferência do Prof. Schnaiderman na Mesa Redonda: Inter-relações entre sistemas e
linguagens, no I Encontro Internacional para o estudo da Semiosfera. São Paulo, 22-26
agosto 2005.
363
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 35-36.
194
aqui é ideológico e seu discurso vai situar-se em relação aos discursos
do outro.
O que temos agora é uma concepção de comunicação amplificada,
acontecendo entre sujeitos constituídos no diálogo e que se avaliam
constantemente. Emissor e receptor são sujeitos dotados de
competência comunicativa, lingüística, mas também de valores,
conseqüentes das relações sociais. Temos como locutores, seres sociais
que se constituem concomitantemente pela interação entre eles e pelas
relações “extra-lingüísticas”, com a sociedade. Sob essa ótica, o texto
364
legitima-se como objeto lingüístico-discursivo, social e histórico um
enunciado, um discurso que se produz na/pela enunciação, esta vista
como o contexto sócio-histórico, ou seja, o “outro”. Decorrente disso,
temos que os discursos dialogam entre si.
Preocupado com questões estéticas, especialmente no campo da
literatura, Bakhtin manteve intenso diálogo com outras disciplinas
filosóficas, com as recentes, para seu tempo, proposições da Física e
dos demais conhecimentos científicos. Daí o dialogismo visto como o
jogo das relações e seus estudos trafegarem por interstícios e
intersecções de várias disciplinas. Holquist, estudioso americano,
afirma que a obra bakhtiniana assume o caráter de uma teoria do
conhecimento pragmaticamente orientada
365
, portanto, ultrapassa os
limites propostos por cânones cristalizados dos modos de pensar a arte
e por extensão a produção cultural. Holquist afirma ser o difícil em
Bakhtin a exigência que seu modo de pensar faz ao nosso, a exigência
de mudar as categorias básicas que a maioria de nós utiliza para
organizar o próprio pensamento.
366
A ênfase dada à relação, a abertura
ao diálogo reenviam nosso pensamento ainda preso ao dialético ou
partitivo como norma mais ou menos universal ao pensamento
dialógico ou relacional.
364
Texto para Bakhtin é tudo aquilo que diz respeito à produção cultural fundada na
linguagem, não havendo produção cultural fora da linguagem.
365
HOLQUIST, Michael. Dialogism: Bakhtin and his world. London and New York, Routledge,
1990. Apud MACHADO, Irene. O romance e a voz: a prosaica dialógica de Mikhail Bakhtin,
p. 36.
366
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin, p. 33.
195
A dialogização discursiva orienta-se para outros discursos, outras
vozes, outras palavras que, contraditoriamente pluriacentuadas,
cruzam-se no interior do discurso e é desse entrecruzamento que o
sentido se constitui. Várias são as vozes ouvidas e muitas vezes vindas
de longe, de tempos outros, de culturas outras que situam o discurso
na história, exigindo a busca de um espaço semântico que explique as
relações entre os discursos, a polêmica que se instaura, exigindo uma
abordagem nova que permita a compreensão entre os diversos
discursos.
Assim como interagem internamente à obra os diferentes
interlocutores, as mais variadas vozes, que encarnam tempos e espaços
outros, cruzam-se no discurso que, assim construído, produz a
interação com seu destinatário e, concomitantemente, dialoga com
outros discursos.
Segundo Suassuna, a cena em que o padre enterra o cachorro,
Trata-se do mito de Fausto, as falsas mortes, de acordo com Guel
Arraes, têm sua origem no Decameron
367
. A imagem do cavalo que
defecava dinheiro foi usada por Cervantes, por isso a peça não causou
estranheza a outros povos. Segundo Suassuna: Essas histórias
nasceram na África e passaram para o sul da Europa e Península Ibérica
até chegar ao Brasil. Não é de estranhar que sejam tão familiares a
diferentes povos.
368
No contexto vivido na peça e na microssérie, o cavalo
vê-se substituído por um gato, pois se prestaria bem melhor às
intenções de Grilo e ao gosto de Dora, mantendo o espírito cervantino.
367
PORTO SEGURO BRASIL. Guel Arraes o humor constrói. Disponível em: <http:/
portosegurobrasil.abril.com.br/edições/1/nossagente/conteudo40172.html>. Acesso em: 4
agosto 2002.
368
LEITURA ESCRITA. Guel Arraes. Disponível em: <http:/www.edukbr.com.br/
leituraescrita/junho01/oauto.asp>. Acesso em: 4 agosto 2004.
196
9.3 Interdiscursividade
  %   #' 

369
Intertextualidade é o jogo dialógico entre os muitos textos da
cultura instalado no interior de cada texto e seu definidor. Para
Barros
370
afirmação do primado do intertextual sobre o textual: a
intertextualidade não é mais uma dimensão derivada, mas, ao contrário,
a dimensão primeira de que o texto deriva, tecido que é de múltiplas
vozes polemizando, que se completam ou respondem umas às outras.
Essas vozes encontram-se, internamente no texto, reproduzindo
diálogos. Texto aqui pensado como produção cultural fundada na
linguagem e que, por isso, apaga as linhas divisórias entre as
disciplinas, segundo Stam
371
.
Modernos estudiosos do discurso, Maingueneau, Ducrot, os
teóricos da semiótica da Escola de Tártu, os analistas dos estudos da
linha francesa como Althusser, Foucault, o primeiro ao estudar as
formações ideológicas e o segundo as formações discursivas, concordam
que não se pode desvincular os estudos de linguagem de suas condições
de produção. É necessário buscar as relações que se tecem entre os
discursos, os espaços semânticos em que emergem, as polêmicas que se
travam entre eles, os contratos ou conflitos acontecidos no interior de
cada discurso, remetendo a outras falas, recapturando outras vozes. É
necessário perceber as estratégias textuais que fazem um discurso,
caracterizado pela dialogia porque constituído de/pela linguagem,
permitir entrever as múltiplas vozes dos quais se tece ou, ao contrário,
como as resguarda, oculta, constituindo-se em discursos
pretensamente monofônicos. O que ocorre é a existência de um efeito
369
QUINTANA, Mário. A volta da esquina. Porto Alegre: Globo, 1979, p. 29.
370
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Dialogismo, polifonia, enunciação. In: BARROS, Diana L.
P.; FIORIN, José Luiz. (Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin.
371
STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa, p. 13.
197
monofônico ou polifônico como resultante de estratégias, de
procedimentos discursivos utilizados nos textos. Nenhum texto é
monofônico por constituição, visto a linguagem ser dialógica em sua
essência, mas alguns exibem a polifonia, outros, como o discurso
autoritário, o que se pretende ou se supõe objetivo, resguardam-na.
Produzidos num contexto social, por indivíduos em interação não
como um discurso ser uma voz única. Isso equivale a dizer que não só o
discurso poético é dialógico. Outros discursos, que vagueiam pelo
cotidiano humano da cozinha à intimidade do quarto, da sala à rua, da
escola ao jornal, estão embebidos na dialogia, estão em acordo ou
desacordo com outros discursos, outras falas, outras ideologias,
portanto são intertextualizados. Oral ou escrito, cotidiano ou não, um
discurso nunca é o primeiro.
Discorrendo sobre o diálogo, Bakhtin afirma que ele deve ser
compreendido não apenas como comunicação em voz alta entre pessoas
colocadas face a face, mas em toda comunicação verbal. Aceitando
bakhtinianamente o discurso como conjunto de manifestações de
linguagens em confronto ele é uma fração, um elo de uma corrente
comunicativa ininterrupta constituindo um momento na continuidade
evolutiva de um grupo social
372
. Justifica-se a importância dos estudos
das relações entre a interação concreta da enunciação com a situação
extralingüística. Esse espaço extralingüístico permite a inclusão de
outros tipos de comunicação, pois que situados na amplidão do social,
temos gestos do trabalho, atos simbólicos, rituais, cerimônias etc.,
participantes da concretude vivida o que implica a situação de
produção. Toda essa existência verbal e extraverbal ao discurso, através
de estratégias e procedimentos estilizadores, são nele introduzidos,
fazendo-o sempre um interdiscurso. O discurso se faz, portanto, a partir
de um lugar social e denuncia esse lugar. Aponta para uma situação,
um momento histórico, traz marcas desse social-histórico. Não à toa,
Quintana poetiza: O passado não reconhece o seu lugar: está sempre
372
Enunciação vista como conjunto de manifestações verbais e não-verbais que estão no
entorno do ato de comunicação.
198
presente.
373
E o presente sabe bem como capturar o passado,
estabelecer o diálogo, inseri-lo em suas reelaborações e construir um
outro discurso.
9.4 Estilização
(#%
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 -$-.
374
Por estilização entendemos, em princípio, os procedimentos que
permitem a um discurso a adoção de variações estilísticas, ou seja, a
exploração, no discurso, de outros estilos, como se a prosa
representasse artisticamente o estilo de outrem, modificando o tom.
Para Bakhtin, toda estilização é a representação do estilo lingüístico de
outrem
375
. Para falar de uma outra situação, numa outra conjuntura,
para elaborar/reelaborar um discurso denunciador de uma condição
social, afirmativo ou negativo, cotidiano ou artístico, informativo ou
científico, autores recuperam outras falas. Temos dois ou mais estilos
opostos em sua origem, em sua finalidade e situação extraverbal.
Entonações que são mudadas em função do novo falante, adquirem
outras significações porque circulam em outro momento e outro espaço.
Essa outra entoação, essas outras significações tocam, tangenciam a
vida e apontam para a interação social entre interlocutores de diferentes
posições sociais através do discurso, tendo, portanto, no caso de um
discurso artístico, índice de avaliação social estética. Discurso artístico,
inserido no social em que linguagens socialmente diversificadas,
373
QUINTANA, Mário. A volta da esquina, p. 29.
374
SUASSUNA, Ariano. Uma dramaturgia da impureza, da misturada. Revista Vintém.
Ensaios para um teatro dialético. Especial dramaturgia. São Paulo: Hucitec. Companhia do
Latão, n. 2, p. 3-8. Apud NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassuna: o cabreiro
tresmalhado.
375
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 159.
199
organizadas de modo a que várias vozes se entrelacem vozes
individuais, de autores, de narradores, de personagens, gêneros
intercalados provocam uma algaravia altamente significativa. A
crônica jornalística, tanto impressa como televisiva, tem com muita
freqüência, mesmo porque vive do cotidiano, do prosaico diário do
homem, se apropriado de discursos outros e os integrado de modo
inovador, emprestando-lhe outros acentos e conseqüentemente outras
valorações.
Referindo-se ao romance humorístico inglês, Bakhtin
376
aponta
para a utilização pelos autores, numa evocação humorístico-paródica,
das camadas da linguagem literária. Conforme o objeto de
representação, a narração reproduz parodicamente as formas da
linguagem jurídica, bem como as formas de protocolo, a linguagem
mercantil do centro econômico, o estilo moralizante dos sermões
religiosos, a complexa linguagem científica e a maneira de falar de
personagens social e concretamente definidos. Entretanto, o que
caracteriza o discurso desse tipo de romance é o emprego de modo
específico da “linguagem comum”
377
, tomada como opinião corrente, a
atitude verbal para com seres e coisas, normal para um certo meio social,
“o ponto de vista e o juízo correntes”
378
. Nesse momento, o autor estaria
objetivando a linguagem comum, obrigando-a a uma refração através do
meio da opinião pública. O autor estaria deformando parodicamente a
linguagem comum, revelando a sua inadequação ao objeto. Pode
também se solidarizar com essa linguagem e às vezes até faz ressoar
nela sua voz, confundindo-a com a voz outra.
Na estilização, apresentam-se duas consciências lingüísticas
individualizadas: a que representa (a consciência lingüística do estilista)
e a que é para ser representada, estilizada
379
. Essa segunda consciência
lingüística, do estilista e de seu auditório contemporâneo, permite o
aclaramento da língua estilizada:
376
Fielding, Smollet, Sterne, Dickens, Thackeray o tidos como exemplos típicos. Ver:
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
377
Linguagem comum é entendida como sendo aquela comumente falada e escrita pela média
de um dado ambiente.
378
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 108.
379
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 159.
200
(...) separa certos elementos, deixando outros na sombra,
cria acentos particulares de seus momentos, como
momentos da língua, cria ressonâncias especiais da
linguagem a ser estilizada com uma consciência lingüística
contemporânea, em uma palavra, cria uma linguagem livre
da linguagem do outro, que traduz não a vontade do
que é estilizado, mas também a vontade lingüística e
literária estilizante.
380
Arraes constrói sua linguagem, mantendo a de Suassuna que
aparece/transparece na criação gueliana. Guel apropria-se da
linguagem de Ariano, obriga-a a uma refração, deforma-a
estilisticamente e ela, agora, é outra e de outro. O terrível Antônio
Moraes de Ariano sobe a ladeira a e usa bengala; o de Guel ganha
cavalo, esporas, chicote, modos e ares de um autêntico cowboy da
época áurea do cinema americano, ou seja, de outros tempos e outra
cultura.
Figura 20 – A chegada do Major Antônio Moraes a Taper
A estilização, a paródia e o skaz
381
, aos quais Bakhtin acrescenta
o diálogo composicionalmente expresso e que se desagrega em réplicas,
seriam fenômenos com um traço comum: a palavra tem duplo sentido,
voltado para o objeto do discurso enquanto palavra comum e para um
380
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 160.
381
‘Skaz’ é um tipo específico de narrativa estruturado como narração de uma pessoa distanciada do
autor (pessoa concretamente nomeada ou subentendida), dotada de uma forma de discurso própria e
‘sui generis’, segundo Krátkaya literatúrnaya entsiklopédia (Breve Enciclopédia da
Literatura). Apud BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2005, p. 185.
201
outro discurso, para o discurso de um outro
382
. Isso implica a exigência de
conhecimento do contexto do discurso do outro, caso contrário a
interpretação da estilização ou da paródia será feita à luz do discurso
voltado para seu objeto: a estilização será interpretada como estilo, a
paródia como obra má
383
.
A estilização pressupõe o estilo, ou seja, pressupõe
que o conjunto de procedimentos estilísticos que ela
reproduz teve, em certa época, significação direta e
imediata, exprimiu a última instância da significação. A
idéia objetificada do outro (idéia artístico-objetiva) é
colocada pela estilização a serviço dos seus fins, isto é,
dos seus novos planos. O estilizador usa o discurso de um
outro como discurso de um outro e assim lança um leve
sombra objetificada sobre esse discurso. É verdade que a
palavra não se torna objeto. Afinal de contas, o importante
para o estilizador é o conjunto de procedimentos do
discurso de uma outra pessoa precisamente como
expressão de um ponto de vista específico. Ele trabalha
com um ponto de vista do outro.
384
Entre o estilo reproduzível enquanto discurso do outro, deve
existir um certo distanciamento do discurso estilizado, que se
manter a percepção da intenção da estilização, caso contrário, inclina-
se para a imitação. A sombra objetificada lançada sobre o ponto de vista
do outro convencionaliza o discurso e é essa convencionalidade que
permite a perceptibilidade deliberada do estilo reproduzível enquanto
estilo do outro
385
.
No discurso de Arraes, Dora e, mesmo Eurico, têm maior
destaque que no texto-base. O caráter sensual da mulher do padeiro é
intensificado e vários episódios são acrescidos em conseqüência. Dora
não tem Chicó como ‘caso’, tem também Vicentão e busca seduzir
Cabo Setenta e o próprio Severino de Aracaju, este com intenções
diferentes dos outros, mas sem deixar de ser jogo de sedução. Com
Grilo arma situações vexatórias para o marido, que fica uma noite toda,
ao relento, esperando por um encontro entre a mulher e Chicó. Em
382
BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da poética de Dostoiévski, p. 185.
383
BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da poética de Dostoiévski, p. 185.
384
BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da poética de Dostoiévski, p. 189.
385
BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da poética de Dostoiévski, p. 190.
202
outro arranjo, Eurico, vestido como Dora, leva uma surra de Chicó
atrás da Igreja.
Importante notar que Bakhtin valoriza bastante a dimensão oral
da linguagem. Machado
386
, ao discutir a televisão, melhor, os produtos,
os programas televisuais, refere-se à televisão como herdeira do rádio
que se funda primordialmente no discurso oral, daí a essencialidade da
palavra num suporte e numa linguagem que seqüestra para si a
primazia da imagem. É preciso pensar o caráter da oralidade, sua
função e importância, o papel que desempenha como elemento
fundante na ficção televisiva. se observou nesse trabalho a
manutenção da primazia do verbal suassuniano na microssérie.
Enquanto episódios, personagens e situações “originais” mantidas, foi
também anotado o intenso diálogo entre os dois discursos. Quando a
microssérie, como discurso, exclui e inclui, ocorre a estilização.
Ao excluir o Palhaço, Arraes apaga uma personagem considerada
fundamental pelo autor primeiro, entretanto, mantém a atmosfera
circense, mesmo quando dilata o espaço, fazendo-o transbordar de um
quase “picadeiro” sugerido pelo autor do texto e encenado, não pelo
primeiro, mas por outros diretores quando das várias montagens da
peça. Com o palhaço são excluídos o sacristão (que empresta ao grupo
eclesiástico uma enorme antipatia, no discurso teatral) e o frade, ao
contrário, dono de significativa afetuosidade e simpatia. Na fase do
julgamento, o agressivo diálogo entre o Demônio e o Diabo, existente na
peça, desaparece, pois o Diabo não tem seu arauto. Não perda, à
medida que o Diabo se incumbe de dar conta de toda a maldade
infernal.
O filho do Major é trocado por uma filha, que vai ser o centro de
um núcleo inexistente no primeiro discurso e se responsabilizar pela
característica dramatúrgica televisiva, que é uma história de amor, um
romance e suas conseqüentes ramificações em episódios e de novos
personagens, buscados por Arraes em outros textos suassunianos e em
outros autores.
386
MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério, p. 71.
203
O Major Moraes, por seu turno, desaparece depois do mal
entendido com o padre, sobre serem seu filho e sua mulher confundidos
com cachorros, para se queixar ao bispo. Ao retirar-se de Taperoá,
dirige-se a João Grilo, convidando-o para ir a Angicos, sua fazenda. A
abertura deixada para João Grilo é aproveitada por Arraes, quando
aquele busca um emprego em Angicos e acaba fazendo o santo
casamenteiro entre Chicó e Rosinha o que vai proporcionar as
peripécias que não reintegram o Major à trama como constroem a
sua finalização. O Major ganha, tendo maior presença na microssérie,
por fazer parte do núcleo romântico criado por Arraes e com sua
esperteza, rudeza e prepotência firma outros significados ao discurso
televisivo.
A maior presença de Severino, incluindo duas invasões a
primeira abortada por decisão do próprio, mas provocada pela primeira
pseudo-morte do Grilo faz emergir outros significados e gera outros
episódios. Há também o ataque perpetrado pelo bando ao chefe, quando
este sai da cidade após o período em que ficou esmolando e , ao mesmo
tempo, observando, melhor, espionando para articular a invasão. A
confusão armada pelo bando nesse episódio ajuda a manutenção do
clima circense da obra, e faz a crítica da incompetência, quando o grupo
não reconhece seu chefe. Cena cinematográfica aparentada à nossa
velha e boa chanchada que é aqui magistralmente recuperada em
termos de estilização.
Acreditamos que o jogo de inclusão/exclusão ocorra por questões
de economia narrativa e adequação ao suporte televisão com suas
inúmeras decorrências, especialmente as de ordem de recepção. É
preciso, como afirmou Arraes, criar interesse. O destinatário do
discurso segundo, a microssérie, tem especificidades que devem ser de
domínio do autor. O espectador tem na televisão seu lazer, sua
diversão. E nada melhor do que uma boa e divertida história de amor
para preencher o fim de noite. A obra em questão foi classificada como
sendo microssérie (nome dado pela produção) e é oriunda da minissérie.
O que se tem evidente é a similaridade menos a extensão que, na
microssérie, como o próprio nome sugere, é diminuída, o que não deixa
204
de ser uma interferência em termos constitutivos do produto. Menos
extensa, a microssérie exige maior concentração, enxugamento por
parte do criador, sem perda de interesse e de qualidade
387
. Considera o
receptor sob um outro ponto de vista, mais apressado, menor
disponibilidade de tempo, menos disposto a tramas longas, enoveladas.
A microssérie como produto cultural de massa está, inapelavelmente,
ligada ao mercado e suas exigências.
Sob o ponto de vista bakhtiniano, o que se tem é um discurso,
agora televisivo (posteriormente, mas previsto, cinematográfico), que
mantém, em relação ao discurso estilizado, um certo distanciamento, a
clara percepção de existência do outro e a intenção, nunca negada, de
estilização.
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388
O estudo dos gêneros discursivos sob a ótica bakhtiniana
demanda algumas explicitações. Tradicionalmente, os estudos sobre
gênero têm como base teórica os parâmetros aristotélicos, que
apresentam natureza poética e retórica, entretanto, foi a literatura que
os consagrou no interior da cultura letrada. Na Poética, Aristóteles parte
da representação mimética, classifica os gêneros como obras de voz e
temos a lírica, a épica e o drama. O estatuto dos gêneros literários se
consolidou e nada teria abalado seus domínios se o imperativo típico da
época de Aristóteles tivesse se perpetuado, quer dizer, se não tivesse
surgido a prosa comunicativa.
389
Esse objeto novo passa a reivindicar
387
Detalhado no item Minissérie, abordado no capítulo 4, item Inclusões-exclusões.
388
CALABRESE, Omar. La era neobarroca. Madri: Catedra, 1999, p. 197.
389
MACHADO, Irene. neros discursivos. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chaves.
São Paulo: Contexto, 2005, p. 264.
205
outros parâmetros de análise e essa é a procura de Bakhtin ao
desenvolver seus estudos sobre gênero, considerando o mais a
classificação das espécies e sim o dialogismo do processo comunicativo.
Sob esse novo prisma, requer-se pensar as práticas prosaicas exercidas
pela linguagem em diferentes usos do discurso, que se caracteriza por
uma manifestação plural. Para Irene Machado
390
, esse é o núcleo
conceitual que permite a Bakhtin pensar formulações sobre os gêneros
que, distantes da teoria clássica, concedem espaço para a heteroglossia,
ou seja, codificações não circunscritas à palavra. Fazem parte desse
espectro, os discursos dos meios de comunicação de massa até os
contemporâneos digitais, que sequer foram vividos por Bakhtin, mas
encontram nas formulações bakhtinianas permissão para inserção em
seu sistema de pensar a cultura.
Os gêneros discursivos são considerados produções culturais,
inseridos no sistema mais amplo de funcionamento da sociedade,
fazendo parte da dinâmica social em todos os seus aspectos. Portanto,
não podem ser pensados desvinculados de seu lugar de origem e de
suas condições de produção e consumo.
A realização de O Auto da Compadecida nega, de certa maneira,
os limites entre televisão e cinema quando se utiliza de câmera de 35
mm e película. Os autores apropriam-se de um texto teatral, suprimem,
expandem, acrescentam, reelaboram elementos. Buscam referências em
outras obras do dramaturgo de origem e de outros autores, muitos lá no
antigamente, para fazer acréscimos. Cometem aquilo que classificamos
como sendo estilização, exibindo, portanto, um outro modo de ser
linguagem, emprestando-lhe outras acentuações. Nas seqüências
iniciais, a autoria faz a inserção de imagens de um filme A Paixão de
Cristo, com intenções diegéticas. O uso da animação quando Chicó
conta seus causos, também é intencionalmente diegética. O painel
pintado na parede externa da igreja que serve como cenário de fundo
para muitas cenas, assim como a pintura interna que faz parte do altar
e que numa trucagem cinematográfica se transforma no cenário do
390
MACHADO, Irene. Gêneros discursivos em Bakhtin. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin:
conceitos-chaves, p. 152.
206
julgamento, são exemplos de codificações de naturezas diversas que se
acoplam ao verbal dos diálogos, concretizando a heteroglossia.
Ao discutirmos a ficção televisiva, afirmamos que na sociedade
letrada a ficção se acomoda em romances, contos, novelas, contos de
fada. Como criação do espírito humano que é, ela apresenta-se também
em múltiplas e diversas linguagens que circulam no universo cultural.
Estamos dizendo, portanto, que outras e variadas possibilidades de
linguagens, outras maneiras de se fazer ficção que não obrigatoriamente
com a língua, com o verbal unicamente.
Estamos também considerando que discurso é um processo
interlocutivo, gerador de efeito de sentido, prática social em todas as
esferas e momentos de sua existência. Levado a efeito por sujeitos no
exercício da linguagem através do jogo da enunciação (ou enunciações),
processo de interação entre indivíduos através da linguagem verbal ou
não-verbal
391
. E Bakhtin afirma:
Qualquer enunciação, por mais significativa e
completa que seja, constitui apenas uma fração de uma
corrente de comunicação verbal ininterrupta (concernente à
vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política,
etc.). Mas essa comunicação verbal ininterrupta constitui,
por sua vez, apenas um momento na evolução contínua,
em todas as direções, de um grupo social determinado.
Continua:
A comunicação verbal entrelaça-se
inextricavelmente aos outros tipos de comunicação e cresce
com eles sobre o terreno comum da situação de produção.
Não se pode, evidentemente, isolar a comunicação verbal
dessa comunicação global em perpétua evolução.
392
O que temos, num produto dramatúrgico televisivo, é um
entrelaçamento de linguagens que, mais do que qualquer um, pode ser
classificado como sendo global em perpétua evolução. Temos um
discurso polissêmico, polivalente, multifacetado e vário, no qual
linguagens em relação constituem o efeito de sentido. Consideramos, a
partir dessas observações, o uso do termo linguagens em seu sentido
391
BRANDÃO, Helena N. Introdução à Análise do Discurso, p. 90.
392
BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e filosofia da linguagem, p. 125.
207
amplo, englobando, portanto, os diferentes conjuntos sígnicos, próprios
de indivíduos socialmente organizados.
(...) cada enunciado particular é individual, mas cada campo de
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, os quais denominamos gêneros de discurso
393
. Múltiplas e
variadas são as esferas de atividade humana, múltiplos e variados serão
os gêneros discursivos, ou seja, modos de utilização das linguagens
através de enunciados, pensados aqui como processo e produto. Assim
sendo, o enunciado reflete condições específicas e finalidades das
variadas esferas (dos contextos), com as quais se encontra relacionado,
por seu conteúdo (temático), seu estilo (seleção e combinação operada
nos recursos oferecidos pela linguagem) e, sobretudo, pela sua
construção composicional (organização do material). Essa diversidade
contextual, isto é, a variedade virtual da atividade humana, comporta
uma larga variedade de discursos, pois cada uma das esferas admite
um número inesgotável e cada vez mais desenvolvido de gêneros,
diferenciando-se e ampliando-se à medida que a sociedade se torna
mais complexa. Por isso a ocorrência da heterogeneidade discursiva,
tanto oral como escrita: a réplica do diálogo cotidiano e sua diversidade,
a carta, o relato familiar, o contar da criança, os documentos oficiais, as
ordens de autoridades. Acrescentemos a isso tudo as comunicações
científicas e as formas literárias, dos mais simples ditados populares
aos mais elaborados e volumosos romances, as crônicas e ensaios, as
comunicações teóricas e empíricas de ordem científica. Ajuntemos a
heterogeneidade discursiva das demais enunciações não-verbais, o
desenho, a pintura, a gravura, o grafite e aquelas de si mescladas
como o cinema. Somemos a produção tecnologicizada da
contemporaneidade, o radiojornal, o telejornal e seus diferentes modos
de apresentação, a internet. As exigências do estilo, que num produto
televisivo, passa a ser estilo-linguagem, não mais verbal; a
construção composicional que vai demandar a manipulação de
inúmeras outras linguagens, de elementos, de recursos, inclusive os
altamente tecnológicos, pois o que temos agora, mais do que um
393
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 262.
208
conjunto sígnico heterogêneo, é um conjunto híbrido. Atualizando a
terminologia, um gênero híbrido. Mescla do existente, do anterior à
televisão, na literatura, no teatro, nas artes plásticas, no cinema, no
folhetim, na crônica jornalística, no rádio com o que tem sido
constantemente acrescido pela inventividade tecnológica e expressiva,
como o videoclipe, a publicidade, a computação gráfica. Tudo é passível
de acoplamentos, de migrações, de rupturas.
O aparecimento dos híbridos se torna possível pelo discurso
entendido como arena, campo de luta onde é possível a discussão de
idéias, a construção de novos pontos de vista sobre o mundo e de novos
códigos surgidos na cultura. E esse processamento se torna viável
porque é acompanhado pela dinâmica dos gêneros, a partir dos quais se
organizam os discursos. Ou seja, os gêneros estão em constante
mobilidade e processamento face às imensas possibilidades da atividade
humana:
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso
são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da
multiforme atividade humana e porque em cada campo
dessa atividade é integral o repertório de gêneros do
discurso, que cresce e se diferencia à medida que se
desenvolve e se complexifica um determinado campo.
394
10.1 A dimensão espácio-temporal do discurso
O gênero deve ser pensado em sua dimensão espácio-temporal,
aspecto estudado por Bakhtin em sua teoria do cronotopo. Esse termo
foi emprestado das ciências matemáticas e tem sua fundamentação na
teoria da relatividade de Einstein. Bakhtin está interessado nas
questões de literatura, especificamente, numa revisão da teoria do
gênero fundada na Poética de Aristóteles. Esse interesse o leva a
transportar o sentido – tempo-espaço – para o campo da crítica literária,
em que a expressão de indissolubilidade de espaço e de tempo vai ser
394
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 262.
209
tratada como essencial à compreensão do gênero discursivo, percebido
como uma existência cultural. Bakhtin passa então a trabalhar no
sentido de entender como se dão as interações tempo-espaciais na
literatura, ou seja, como o processo de assimilação do tempo e do
espaço, do individuo histórico real que se revela neles acontece, para tal
ele entende o cronotopo como sendo uma categoria conteudístico-formal
da literatura.
No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos
indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e
concreto. [...] Os índices do tempo transparecem no espaço
e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo.
Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais
caracterizam o cronotopo artístico.
395
Para Bakhtin, o cronotopo determina o gênero e suas variedades, assim
como a imagem do homem. Entende o tempo e o espaço como formas
da própria realidade efetiva, daí a importância que ao papel destas
formas no processo do conhecimento artístico concreto (visão artística)
396
.
Bakhtin desenvolve sua teoria do cronotopo, tendo por objeto de estudo
o romance europeu e suas variantes, desde o romance grego, passando
pelo de cavalaria, pelo de aventuras, pelo autobiográfico, chegando por
fim a Gargantua e Pantagruel da autoria de Rabelais.
Rabelais é o autor que nos serve de referência, por via da obra
bakhtiniana A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O
Contexto de François Rabelais, para trabalharmos a questão do popular,
do humor, do riso e, agora, a do cronotopo em O Auto da Compadecida.
A apropriação teórica ocorre amparada pelas formulações bakhtinianas
sobre o campo do sério-cômico e pela abordagem dialógica do gênero,
que o situa na cultura, onde estão depositadas as grandes conquistas
da humanidade e lugar de onde emergem as descobertas, as inovações
no campo do tempo e espaço. Isso nos permite perceber que a cultura
está em constante mobilidade e as obras artísticas dialogam com o
passado e apontam para o futuro
395
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 211.
396
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 212.
210
Dentro das múltiplas esferas da produção discursiva, o
surgimento de gêneros mediados filmes, programas, formatos etc.
deve-se às demandas culturais do momento e são enunciados concretos
da comunicação mediada por mídias e, portanto, gêneros discursivos da
cultura prosaica
397
. Essas idéias reforçam o dito no item anterior,
quando discutimos a microssérie como um gênero de produção cultural,
e nos permitem uma incursão ‘cronotópica’ sobre O Auto da
Compadecida.
Na Idade Média, ao mesmo tempo em que se desenvolvia a grande
literatura, nas camadas mais baixas da sociedade surgiam algumas
figuras, que seriam de importância vital para o desenvolvimento de
formas artísticas satírico-paródicas, que vão ter influência direta nas
modificações experimentadas pelos gêneros tradicionais, especialmente
o romance. São elas: o trapaceiro, o bufão e o bobo. Conhecidas desde a
Antiguidade, essas personagens vinculam a literatura ao teatro, aos
espetáculos de máscaras, aos ‘desfiles’ nas festas de rua, na praça, ou
seja, ao popular. Tudo o que essas personagens fazem ou dizem não
tem sentido direto e sim figurado. O trapaceiro é o único que tem um
fio, ligando-o à realidade. Segundo Bakhtin, elas são os saltimbancos da
vida e nunca se solidarizam com os modos de vida existentes, vêem o
avesso e o falso de cada situação. Elas riem e são objeto do riso; elas
vivem o outro lado da vida. No palco são perfeitamente aceitas,
compreendidas, até familiares, pois estão no seu lugar. Quando
inseridas na literatura artística, elas não só sofrem transformações
como influenciam elementos da prosa, especialmente, a romanesca.
No caso das produções culturais de massa, e especialmente, nos
discursos televisivos, essas personagens, nascidas no antanho, têm
encontrado destaque. O palhaço é recorrente na obra teatral de
Suassuna, desaparece em Arraes, mas a dupla de trapaceiros
permanece, bem como a atmosfera circense. Presença que garante a
definição da posição do autor diante da vida - como e de onde ele e
revela a vida e sua posição em relação ao espectador, ao público, pois
397
MACHADO, Irene. Gêneros discursivos. BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave, p.
162.
211
é desse lugar o trapaceiro que ele participa do “desmascaramento”
do mundo. Face ao seu enraizamento profundo no popular, essas
personagens adquirem privilégios consagrados, estão ligadas ao
cronotopo da praça pública e ao teatro de rua; o sentido figurado
alegórico de que são portadoras lhes permitem a função da denúncia do
convencionalismo pernicioso, falso nas relações humanas
398
. Os
denunciantes, no caso, os trapaceiros, assim como o bobo e o bufão,
não participam desse convencionalismo, pois são estrangeiros nesse
universo hipócrita e falso das aparências, mas são essas personagens
que ganham o status de protagonista, função que, quase sempre, é
portadora dos pontos de vista do autor. Para Bakhtin, os traços dessas
personagens encontram-se no romance picaresco, especialmente em
Dom Quixote, uma das mais fortes referências de Suassuna,
conseqüentemente, de Arraes.
João Grilo e Chicó são autênticas reencarnações do trapaceiro
medieval. Fazem da vida um palco, exteriorizam a vida pelo
desmascaramento das falsidades, funcionando como máscaras da
autoria. Em busca da sobrevivência tudo é válido, mesmo porque não
concordam com a ordem do mundo visto pertencerem à estirpe dos
saltimbancos. Desembarcam em pleno século XX e têm muito a dizer à
contemporaneidade.
As ações das personagens encontram-se relacionadas de modo
particular com o espaço-tempo. Taperoá é o sertão com sua imensidão e
secura. Lugar de mitos, mistérios, de imensa religiosidade popular, que
provoca a emergência de visões, de revelações. A localidade como marca
do acontecimento. Isso é muito claro na produção suassuniana e é
seguida (não sem motivo) por Arraes. É o espaço-tempo que permite a
fantástica experiência (sonho? situação de ausência de consciência, de
desmaio?) de João Grilo, encontrando-se com a Corte Divina no
julgamento. Chicó mente, inventa causos estapafúrdios porque o sol lhe
faz mal, segundo Grilo. Ao inventar, Chicó resgata um tempo mítico em
que os animais falavam, coisas fantásticas aconteciam. Nas histórias de
Chicó, o rolar do tempo não obedece à logicidade do tempo medido e o
398
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 274-278.
212
espaço é vencido de forma mágica: de Taperoá, na Paraíba, até Propriá,
em Sergipe, em seis horas, sem descanso do cavaleiro e da montaria,
porque era um cavalo bento, e o São Francisco estava seco
399
.
Há o outro lado de Taperoá – vila paupérrima, provinciana e
modorrenta. Enquanto Grilo e Chicó fazem a promoção da exibição do
filme na igreja, esse aspecto é evidente. Uma pessoa à janela, raríssimos
passantes. Quando o Major Antônio Moraes chega à cidade, o vazio é
tanto, que sua figura, trabalhada de modo a exibir toda sua arrogância
e poder, ganha ares de um gigante. O tempo, que parece parado, como
que rastejando, vê-se, repentinamente, sacudido, como diria Chicó, por
chegadas, encontros (considerado por Bakhtin como importantes
cronotopos temáticos), fatos inusitados. É tempo da invasão do
cangaceiro e por isso um novo batalhão policial desembarca na vila.
Chegam o Major, logo depois o Bispo. Rosinha não adentra a vila
lindamente como é romântico e doce seu encontro com Chicó. O espaço
comprime-se e restringe-se, em grande parte, à igreja, à padaria, e ao
pedaço de rua que faz a ligação entre eles. A igreja torna-se o espaço
preferencial e se alarga pelas intervenções das personagens: o painel
externo, lugar das execuções e cenário de fundo para os enterros da
cachorra e de João Grilo. Fato mais do que inusitado, a igreja torna-se o
lugar do Tribunal Celeste, espaço da procissão dos mortos, e a porta é a
soleira do inferno.
Para Bakhtin, o cronotopo da soleira está associado com o tema
do encontro, mas é, fundamentalmente, o cronotopo da crise, da
mudança. Lembremo-nos de que Severino passa o tempo a mendigar na
soleira da igreja. A soleira separa o interior da igreja do exterior da
praça. Lugares onde as coisas acontecem: as negociatas levadas a cabo
pelo Bispo e pelo Padre com a mediação de Grilo; a crise desencadeada
pela negativa do padre em enterrar a cachorra, a invasão da cidade que
culmina dentro da igreja. O julgamento acontece dentro da Igreja
também. A soleira marca o inferno. É pela porta entreaberta que o
Diabo surge e que podemos entrever o hades. Do lado de fora,
399
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 20. O AUTO DA
Compadecida, DVD, cena 7.
213
acontecem as mortes, inclusive a pseudo-morte de Grilo, depois de toda
a safadeza que ele arma contra Severino, o duelo entre os pretendentes
de Rosinha. Fatos, decisões que podem determinar uma vida. Espaço de
passagem, o cronotopo da soleira toca o tempo de modo a fazê-lo um
instante sem duração, instante em que tudo se entrelaça, presente,
passado e futuro. Ninguém sai ileso da crise.
Figura 21 – João Grilo à porta do inferno
Ao entender o cronotopo como sendo uma categoria conteudístico-
formal
400
, Bakhtin remete a questão para o significado temático. É no
cronotopo que se organizam os acontecimentos, os nós da trama são
feitos e desfeitos e por isso ele sustenta temas fundamentais. Cena
belíssima, que representa o processo de entrelaçamento de relações
tempo-espaço, ocorre no discurso da Compadecida, quando defende os
réus, recuperando o passado de cada um deles. Na fala da Virgem,
altamente reveladora, são enxertados momentos trágicos do passado
das personagens, através da inserção de fotos em branco e preto. Os
trágicos acontecimentos que marcaram para sempre suas vidas
funcionam como argumento para, se não a salvação imediata, a
possibilidade de uma salvação futura pela purgação dos pecados. É,
também, o momento em que a misericórdia tema é exercida em sua
plenitude.
400
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 211.
214
Aspecto fundamental do cronotopo é a possibilidade que ele tem
de construir, ou permitir a construção da imagem concreta dos fatos,
ou seja, ele tem um significado figurativo. É o cronotopo que
indicações sobre o lugar e o tempo da realização dos fatos, através da
condensação e concretização espaciais dos índices do tempo
401
. Ao
morrer o cachorro de Dora, Chicó conta a história do pirarucu que o
salvou de afogamento no Amazonas e o levou por três dias e três noites
rio acima, até um lugar seguro, nas proximidades de uma vila e então
morreu. As relações temporais e espaciais da história contada adquirem
um papel importante para os criadores da microssérie, à medida que,
ela elementos que permitem a ‘visualização’ da cena. Na microssérie,
a imagem é concretizada pela feitura do produto, tornando-se um
segundo nível do discurso narrativo, e as relações tempo-espaciais que
lhe são próprias interligam-se com o plano primeiro da narrativa.
Incluímos nas questões do cronotopo algo sobre o autor-criador.
O autor é um homem que vive sua vida biográfica, encontra-se dentro
da obra como criador, porém fora dos cronotopos representados, como
que numa tangente a eles
402
. Ele está na composição que organiza em
capítulos, atos, cenas etc., que variam conforme os gêneros. O criador
move-se em seu tempo, começa sua narrativa de onde bem entender,
ajeita os acontecimentos representados de modo a não perder o curso
temporal, ficando claro o tempo que representa e o que é representado.
10.2 Gênero primário e gênero secundário
Bakhtin distingue os gêneros em dois conjuntos básicos: os
primários e os secundários. Considera a diferença entre eles essencial
na definição do caráter genérico. Gênero de discurso primário, também
nomeado simples, é o praticado na atividade lingüística oralizante,
ligada ao cotidiano, que se constitui em circunstâncias da comunicação
401
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 355.
402
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 359.
215
discursiva imediata
403
,ou ainda, espontânea face à situação de produção
e que se apresenta em níveis variados, em constante trânsito pelo
diálogo cotidiano. Gênero secundário ou complexo abarca o romance, o
teatro, o discurso científico, ideológico, literário, etc., são discursos que
surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e
relativamente muito desenvolvido e organizado
404
. Bakhtin fala em outros
gêneros, de existência comum em seu tempo, como o teatro e a
literatura qual ele dedicou seus estudos, tempo e vida), mas aponta,
indicia uma comunicação cultural complexa, evoluída, artística.
Capturamos, atrevidamente, a permissão e passamos a considerar a
microssérie um gênero secundário.
Os gêneros secundários, ao se formarem, absorvem os primários e
os transmutam. Um gênero primário como, por exemplo, uma conversa
informal numa viagem de táxi, ao ser inserida num secundário perde
sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos
enunciados alheios, conservando sua forma e significado dentro do
novo discurso. Integra-se a outra realidade, é uma outra coisa, um
outro produto cultural ou artístico, pois passa a integrar essa nova
realidade que é um gênero secundário. A conversa no táxi também é um
enunciado e o que o diferencia é a condição de sua formação, mais
espontânea em relação à do secundário. É o secundário absorvendo o
primário: a cotidianidade, tão conhecida e trabalhada na telenovela por
Motter
405
, também transita na minissérie, na microssérie. Está nesses
discursos quando transmutada pela atividade segunda da produção
cultural artística. João Grilo, negociando o emprego na padaria com
Eurico e Dora seria uma conversa trivial e cotidiana, possível a
qualquer mortal que, apropriada e transmutada por Arraes com
procedimentos e acréscimos próprios da linguagem imagética, institui
um outro gênero secundário elaborado pela estilização, perseguindo o
jeito discursivo suassuniano: o ritmo e o trocadilho.
403
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 263.
404
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 263.
405
MOTTER, Maria Lourdes. Ficção e realidade: a construção do cotidiano na telenovela.
216
A inter-relação primário/secundário é de fundamental importância
para se entender a natureza do enunciado e também a correlação entre
linguagens, ideologias e visões de mundo. Língua, outras linguagens
(conjuntos de signos) e vida relacionam-se pelos enunciados que
circulam entre elas. Se o enunciado é moldado pelo gênero como afirma
Bakhtin, e este é determinado pelas diferentes esferas das atividades
humanas, justifica-se a importância dada ao caráter do gênero e este
é compreendido, estudando-se o enunciado. Ao tomar como objeto as
minisséries e suas inflexões históricas e políticas: a ficção no seu embate
com a realidade
406
, Lobo trabalha um discurso secundário, que
incorpora aquilo que ficara fora do discurso da história, do oficial, da
mídia, muitas vezes por obra da censura, conseqüentemente, e em
grande extensão, fora do conhecimento do país por questões ideológicas
do regime sob o qual se vivia e pela ideologia educacional reinante.
Linguagem e vida estão ali interacionados no processo enunciativo
estudado pelo autor. Ao analisar a minissérie Anos Rebeldes, Lobo
mostra o resgate histórico feito através do tratamento de um tema, por
muito tempo, tabu para a televisão a repressão, a luta armada. Muito
dessa história não fazia parte do repertório de uma geração que, embora
próxima dos fatos, desconhecia esse período de nossa história ou dele
tinha, tão somente, uma vaga idéia. Lobo demonstra que, sob o
tratamento ficcional de um produto televisivo de entretenimento, os
fatos obscuros e terríveis vividos por muitos de nossos irmãos e, por
extensão, pelo povo, estão lá, no enunciado minissérie, quando estuda a
linguagem televisiva: imagens, planos, ritmo, diálogos; a cuidadosa
ambientação.
O enunciado oral e escrito, primário e secundário, qualquer que
seja, em qualquer esfera da comunicação é individual e por isso pode
refletir a individualidade de quem fala (ou escreve). Em outras palavras,
possui um estilo individual
407
. Entretanto, nem todos os gêneros se
prestam ao estilo individual, por conseguinte a refletir a individualidade
na língua do enunciado. Os mais adequados são os artísticos. Os menos
406
LOBO, Narciso. Ficção e política: o Brasil nas minisséries, p. 19.
407
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 265.
217
adequados ou propícios são os gêneros que solicitam uma forma mais
padronizada: documentos, ordens de serviço, boletins quer
empresariais, quer governamentais, de serviços, etc. Com exceção dos
gêneros artísticos e literários, o estilo individual não entraria na
intenção do enunciado. Nos gêneros artísticos, o estilo individual é
parte integrante e intencional do enunciado. O autor de uma obra
manifesta sua individualidade, sua visão de mundo nos elementos
estilísticos. Esse fator de individualidade é o que permite a distinção
entre as obras, a percepção das obras que lhe antecederam, das obras
com as quais dialoga, as obras nas quais se apóia, com as quais o autor
luta, com as quais está em discordância. Ao discutirmos as
características dominantes na obra de Guel Arraes, em outro momento
desse trabalho, notamos a presença do humor e de um modo de fazer
humor televisivo que permite a distinção dos discursos guelianos, ou
seja, um modo operacional que os distingue, ou distingue a autoria, a
individualidade e a intenção. A estilização que julgamos praticada na
Compadecida possibilita a percepção do diálogo estabelecido com o
texto suassuniano, com outros discursos e outras linguagens.
A noção de enunciado nos é dada pelo seu acabamento a
capacidade responsiva, ou seja, a alternância dos sujeitos falantes. O
autor, ao criar sua obra o faz com uma intenção e para ser
ouvido/lido/visto/assistido, portanto pressupõe um receptor. Essa
alternância locutor/elocutário (interlocutores) permite a delimitação do
enunciado, ou seja, o fechamento do elo dentro da cadeia da
comunicação em que ele se constitui. Essa alternância termina, daí a
delimitação do enunciado, quando o autor disse tudo o que tinha ou
queria dizer num determinado momento, numa dada situação. O
critério para se notar essa finalização é a possibilidade de responder a
ele.
408
No caso de um enunciado do gênero ordem, executar a ordem. No
caso de um discurso artístico, formular um juízo, ou seja, ocorre uma
reação ao enunciado, o que é a possibilidade responsiva. Observe-se
que a esse enunciado não basta só ser compreendido, porque inteligível,
no nível da linguagem. É preciso que suscite uma reação e isso será
408
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 280.
218
possível se o enunciado se circunscrever numa totalidade, isto é,
constituir-se em um todo. É possível ao discurso caracterizar-se como
‘diálogo inconcluso’, mas o enunciado é sempre uma manifestação
conclusa, acabada, ou seja, uma ‘totalidade de sentido’, à qual se chega
pelo gênero.
Para que essa totalidade enunciativa possa ocorrer e provocar
uma possibilidade de compreender de modo responsivo são necessários
três fatores, organicamente relacionados ao enunciado: 1) a
exauribilidade do objeto de sentido; 2) projeto de discurso ou vontade de
discurso do falante; 3) as formas típicas composicionais e de gênero do
acabamento
409
.
O tratamento exaustivo do objeto do sentido pode ser quase total
em determinadas esferas, na vida prática (em algumas situações
normatizadas), uma ordem emitida, as trocas documentais nas quais
existem padronizações. Torna-se quase impossível nas esferas criativas,
sejam artísticas ou científicas. Nas ciências, o objeto é praticamente
inesgotável, daí a necessidade de transformá-lo em tema e dar a ele um
acabamento relativo, dentro de determinadas condições em função de
uma abordagem, definida desde o início pelo autor. A definição dada ao
objeto de sentido pelo autor é seu intuito. O intuito do autor é seu
querer-dizer e vai determinar a escolha do objeto de sentido, a
determinação de suas fronteiras enquanto tal nas circunstâncias
comunicativas (individual, social, política, histórica, ideológica, e suas
relações com outros enunciados). Esse objeto, a esfera da comunicação
operacionalizada pelo locutor, as necessidades de uma temática, o
conjunto de parceiros, a situação social na qual se a comunicação,
ou seja, todo o contexto vai determinar a escolha do gênero do discurso.
O intuito do autor, permeado pela sua subjetividade, pelo seu estilo
individual adapta-se e estrutura-se num gênero. A estruturação
processada pelo locutor para montar seu enunciado, a organização dos
elementos, ou seja, a composição vai ser determinada pelo gênero.
409
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 281.
219
Pressupondo essa estruturação como sendo a construção
composicional, a organização de todo material
410
, que se levar em
conta a expressividade do locutor perante seu objeto, determinada pela
relação que ele tem com o mesmo. A intensidade e a importância da
expressividade variam de acordo com a esfera comunicacional, mas são
presentes em todo e qualquer enunciado, pois a neutralidade inexiste.
Ao escolher uma palavra, um estilo, uma maneira de organizar, o
locutor parte das suas intenções (seu querer-dizer) e o todo intencional
construído. Interessado que era no discurso verbal, Bakhtin diz sobre a
palavra que ela se põe para o falante, o usuário em três aspectos:
pertencente à língua, a palavra é neutra e não é de ninguém; sob a
perspectiva de pertencimento aos outros, isto é, alheia, ela está prenhe
de marcas de outros enunciados; apropriada pelo sujeito do enunciado,
que sobre ela opera em uma situação determinada e com uma intenção
discursiva, a palavra se impregna da expressividade do falante,
atualizada através de um enunciado individual e expressa um juízo de
valor. O mesmo princípio pode ser aplicado aos elementos não verbais,
levando-se em conta as múltiplas codificações possíveis no campo da
produção cultural.
10.3 Expressividade discursiva
A expressividade é um indicador das relações do autor do
discurso com o outro, ou seja, mantém em relação ao outro enunciado
uma atitude responsiva, uma resposta àquilo que foi preocupação de
um dado objeto.
A expressividade relações valorativas de ordem subjetiva entre o
sujeito do discurso e o conteúdo do objeto e do sentido – é outro
determinante do estilo individual, ou seja, as escolhas a serem feitas
410
Conteúdo temático (o querer-dizer do locutor), estilo individual, relações entre
interlocutores, valores em jogo na relação autor/objeto de sentido, esferas de atividades
comunicativas e humanas, contexto comunicacional.
220
dos recursos de linguagem postos à disposição do autor e suas
possíveis combinações. No campo do verbal, palavras e mesmo orações
desvinculadas do enunciado são inexpressivas. O mesmo pode-se dizer
das codificações próprias da linguagem visual aliadas às possibilidades
tecnológicas
Palavras, assim como cores, seus tons e semitons; iluminação e
sua intensidade; som, ruído e silêncio; mobilidade e imobilidade
adquirem valor, portanto, expressividade dentro do conjunto do
enunciado, isto é, no processo de emprego na realidade do discurso.
Exemplo claro das escolhas expressivas foi anotado no item
Minissérie, quando da referência a Pallottini e seu unitário Sapicuá de
Lazarento. Deve-se também considerar que as escolhas feitas pelo
autor, nem sempre o são a partir do sistema de linguagem em sua
neutralidade e sim de outros enunciados congêneres. Aos espectadores
dos filmes de mocinho e bandido não é estranha a cena em que Chicó, e
sua proverbial covardia, fica entre dois revólveres o duelo de três
forjado por João Grilo, bem como o foco nas esporas de Antônio Moraes,
quando desmonta seu cavalo na praça de Taperoá, sua chegada à vila
como um autêntico homem do oeste americano retratado pelo cinema
hollywoodiano Também não é estranha a expressão patética do Cabo
Setenta as chanchadas brasileiras nos apresentaram tal espécime.
As cores e modelos usados por Rosinha e Dora têm um valor,
demonstram uma intenção dentro da obra. Os tons de ocre apontando a
secura da terra, internamente os aspectos medievais que ainda
subsistem no sertão. O verde escandaloso dos batentes das janelas da
casa de Eurico e Dora típicos da arquitetura interiorana dos séculos
XVIII e XIX, principalmente. Assim como o cenário pobre do quintal da
padaria, com a cerca feita de taquaras, dispostas verticalmente lado a
lado e amarradas com cipó, características da pobreza e simplicidade do
sertão. Escolhas feitas de acordo com a visão, o sistema de valores, a
subjetividade autoral. O mesmo pode ser aplicado à noite azulada e
fantasmagórica, quando da chegada de Rosinha à fazenda e a fala
profética do Conselheiro em sua boca, prenunciando grandes
mudanças.
221
Figura 22 – O pauperismo do quintal da casa de Dora e Eurico
Figura 23 – As cores da casa de Dora e Eurico
Não como confundir o discurso teatral (Suassuna), o discurso
televisivo ficcional, dramatúrgico, microssérie, o discurso
cinematográfico, e mais a edição em DVD. Cada um deles tem o
tratamento, o acabamento gerado pelo querer dizer e as formas de
estruturação do gênero, que permitem o acabamento do enunciado.
intenções e modos diferenciados entre o teatro, a televisão, o cinema, o
DVD. Outros auditórios, diferenciados interlocutores em condições de
recepção outras, variadas condições de produção e processos de
construção de sentido. O que não significa dizer ausência de
interdiscursividade, de intromissões, exclusões, migrações. Entre si,
222
todos os diferentes enunciados tocam-se, interpenetram-se e todos
estão, em maior ou menor grau, num processo de alteridade e de
assimilabilidade
411
em relação a outros discursos, a outras obras em
circulação no universo de sua existência. Todos carregam em si
expressões e valores alheios, que sofrem assimilações, reelaborações e
reacentuações.
Importante notar também que a época, o meio social, o momento
histórico geram seus próprios enunciados e estes acabam “prescrevendo
normas”: obras científicas, literárias, ideológicas às quais as pessoas se
referem e nas quais buscam apoio para confrontos, refutações,
concordância; às quais se referem, citam e imitam. Por isso a intensa
mobilidade dos gêneros, eles estão sempre em processamento.
Circulando entre diferentes esferas, em diferentes momentos, o gênero
está sempre em renovação face ao dinamismo do mundo, pois ele nada
mais é do que formas, maneiras de o homem perceber a realidade,
pensar o mundo.
O Brasil das telenovelas reinventou a fórmula existente a partir
das radionovelas e das telenovelas de extração caribenha,
especialmente cubana. Prescreveu normas que a caracterizam como
sendo produto diferenciado e próprio da televisão brasileira, um
produto cultural massivo brasileiro. Espaço e momento produtivo,
anseios de produtores culturais e demanda ou anseios do público
receptor integram-se e acabam por fazer surgir um gênero. Desse
gênero, é possível originar-se outro e outro e assim, sucessivamente,
buscando preencher, satisfazer as circunstâncias variadas da produção
cultural. É dessa corrente produtiva que surgem novos gêneros e
formatos. É essa dinâmica que permite a minissérie, a microssérie com
características que as diferenciam, embora pertençam à mesma matriz
ficcional televisiva.
411
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 294.
223
1
1
1
1
O
O
C
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A
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P
P
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I
C
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$$%
412
O gênero renasce e se renova [...] em cada obra individual de um
dado gênero. Nesse processo de renascimento, o gênero conserva
elementos da archaica, segundo Paulo Bezerra, tradutor de Problemas
da poética de Dostoiévski, entendida como Antigüidade ou traços
característicos e distintos dos tempos antigos. Essa archaica é
eternamente viva e tem a capacidade de renovar-se, daí Bakhtin afirmar
que o gênero vive do presente mas sempre recorda o seu passado, o seu
começo
413
, uma espécie de representante da memória criativa no
processo de desenvolvimento, o que assegura sua continuidade e
unidade.
Nos contornos dessa dinâmica, Bakhtin fala de alguns gêneros
denominados pelos antigos de “sério-comico”: os mimos de Sófron, o
“diálogo de Sócrates” (como gênero específico), a literatura dos
simpósios (referindo-se, segundo Bezerra, à literatura que descreve os
festins e bebedeiras na Grécia Antiga), a primeira Memorialística (Íon de
Quio, Crítias), os panfletos, a poesia bucólica e a sátira menipéiaque
estariam em oposição aos gêneros sérios: epopéia, tragédia, a história,
etc. Todos esses gêneros, em maior ou menor grau, estão imbuídos de
uma visão carnavalesca de mundo. Os gêneros carnavalescos seriam
aqueles que sofreram influências do espírito carnavalesco antigo e
medieval. Na mesma linhagem do diálogo socrático, estaria a sátira
menipéia, cuja denominação se deve ao filósofo Menipo de Gandara,
século II a.C., mas introduzido por Marco Terêncio Varro, no século I
a.C., escritor romano das saturae menippeia”. A menipéia configura-se
como uma farsa na qual se encontram misturados o erudito, o burlesco,
412
Frase de Guel Arraes. PORTO SEGURO BRASIL. Veja o que Guel fez. Disponível em:
<http://www.portosegurobrasil.com.br/edicao1entrevista.htm>. Acesso em: 31 abril 2004.
413
BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da Poética de Dostoiévski, p. 106.
224
o popular, promove, portanto, a quebra de rigidez genérica, à medida
que encerra em si vários gêneros. O aspecto que mais se sobressai,
entretanto, é o cômico, buscando a criação de situações inusitadas,
objetivando a comprovação da verdade.
Segundo Bakhtin, três seriam a peculiaridades do gênero sério-
cômico. Primeiro, a nova maneira de tratar a realidade, que seria não
objeto da representação. O dia-a-dia tomado como o ponto de partida
da interpretação e formalização da realidade. Os heróis, os mitos, as
personalidades históricas são atualizadas, funcionam na vida em
processamento. Decorrente disso, os gêneros sério-cômicos não se
baseiam na lenda e sim na experiência e na fantasia livre, tratando
aquela com espírito crítico e, até mesmo cínico e desmascarador. A
terceira peculiaridade seria a pluralidade de estilos, a renúncia à
unicidade estilística. Na prática, significa dizer fusão do sublime e do
vulgar, do sério e do cômico, [...] dos gêneros intercalados: cartas,
manuscritos encontrados, diálogos relatados, paródias dos gêneros
elevados, citações recriadas em paródias
414
etc. Muitas vezes, ocorre a
fusão entre prosa e verso, a inclusão de jargões e até mesmo de
dialetos.
Em O Auto da Compadecida, deparamo-nos com o dia-a-dia de
dois “filhos do mundo” e sua circunstância imediata o trabalho, os
afetos, a religião como ponto de partida e o objeto da representação.
Personalidades algumas importantes, como o Major, o Bispo e mesmo
o Padre numa vila interiorana são tornadas personagens e passam a
agir na atualidade inacabada da vida. A fantasia e a imaginação correm
soltas e mesmo as ações heroicizadas pela religião descem do u e
circunscrevem-se no espaço da vida, na zona do contato imediato e até
profundamente familiar, como diz Bakhtin. A cena do julgamento é um
exemplo claro dessa situação. Por isso a emergência da crítica séria
feita pela via do cômico. Os diálogos relatados de Chicó seus causos
são curiosos, engraçadíssimos e altamente imaginativos e fantasiosos; o
sublime da fé, da crença, não chegando à vulgaridade pelo seu risível,
414
BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da poética de Dostoiévski, p. 108.
225
afastam-se da seriedade requerida pelo oficial: a pseudo-morte de Chicó
assim como a de Grilo, a safadeza praticada com Severino em nome de
Padim Ciço, os modos e o comportamento de Grilo no julgamento. Os
gêneros intercalados: o verso invocatório a Nossa Senhora, os
provérbios, a citação canônica, também são elementos presentes a
comprovarem a presença do sério-cômico. Em relação ao código icônico
temos o modo como se marca a serialidade: aparece um estandarte e
essa é uma paixão de Suassuna num estilo de cordel, lembrando as
procissões e desfiles tradicionais como as cavalhadas, onde se lê a
seqüência e o título do capítulo: Episódio de hoje: A morte da cachorra.
Grilo e Chicó fazendo a divulgação do filme que será exibido na igreja, à
noite, portando placas pirulito, Chicó berra as qualidades do filme e
Grilo saracoteia, ao mesmo tempo em que reforça a fala de Chicó. Todas
essas intromissões pertencem a outros campos discursivos e inseridas
no segundo bakhtiniano são elementos dele integrantes, agora gênero
sério-cômico
415
. Até hoje é possível encontrar, mesmo nas grandes
cidades, esse tipo de técnica de propaganda os homens-placas.
Palhaços, homens de perna-de-pau, homens-sanduíches são utilizados
para divulgarem inaugurações de lojas, espetáculos circenses, shows e
outros acontecimentos sócio-culturais em cidades pequenas, bairros
afastados. Amesmo na região central de grandes cidades como São
Paulo e Rio de Janeiro, encontram-se esse tipo de divulgação: compra-
se ouro, tira-se foto. Ou seja, é a linguagem publicitária de antanho,
subsistindo na contemporaneidade. Essa linguagem é apropriada e
passa a integrar o todo da obra televisiva. E mais, cria um contraste,
sob certo ponto de vista cômico, considerando-se a tecnologia em uso
para a feitura do produto.
415
A importância do gênero sério-cômico para Bakhtin está em seu papel na evolução do
romance europeu. O nero romanesco se assentaria em três raízes básicas: a retórica, a
épica e a carnavalesca. É no gênero sério-cômico que Bakhtin situa os pontos de partida da
obra de Dostoiévski.
226
Figura 24 – A linguagem publicitária em Taperoá
A fantástica transformação do adro da igreja em trono de Deus
para o julgamento final lugar das últimas coisas. Independente da
tecnologia e dos truques utilizados, o que se concretiza como linguagem
é a fantasia exuberante. A igreja é transformada, repentinamente, em
uma passarela na qual a morte é representada pelos passantes, ao som
de uma ladainha. Cena de enorme beleza plástica, João Grilo está
deitado no chão, com uma vela entre as mãos, despertando, enquanto
ao seu lado o povo passa e a câmera aproxima-se, faz um close dos pés
calçados por sandálias de couro – objeto emblemático para o nordestino
– de um passante. A abertura súbita da porta do inferno, a ventania que
faz com que João Grilo se agarre a uma coluna e acabe por ‘flutuar’,
numa posição impossível ao ser humano. Especialmente a
transformação do quadro pintado ao fundo do altar da igreja que se
torna o trono de Cristo, o tribunal celeste, são exemplos de introdução
do fantástico, para os crentes, milagre, com a finalidade de criar
situações extraordinárias para mostrar aquilo que é a verdade a ser
transmitida: todos se deparam com a morte e serão julgados pelo juiz
supremo. Não se pode negar à cena criada a intromissão do gênero
sagrado. O livro de Apocalipse de São João é pródigo em imagens
fantásticas, que dizem respeito às últimas coisas, e muitas são as
227
remissões bíblicas ao julgamento, ao inferno, ao céu que devem ter
servido de referência aos criadores, e que não deixam de ser, elas
mesmas, fantásticas, resguardando aqui o respeito ao sagrado.
Para se pensar nero, formato, e/ou demais categorizações
possíveis em relação a produtos televisivos, de levar-se em conta,
antes de tudo, as especificidades do veículo, ele mesmo ainda um tanto
desconhecido em suas possibilidades, ainda se apresentando, face às
mudanças e desenvolvimento tecnológicos, um ‘mutante’. A cada
momento, novas e formidáveis possibilidades apresentam-se aos que o
utilizam como aparato comunicacional.
No caso do gênero (melhor seria utilizar gêneros), se torna
viável o seu estudo, uma possível identificação e classificação pela
análise da grade de programação, que se apresenta variada de emissora
para emissora. Isso em grande parte está feito sob a égide de nossos
pesquisadores acadêmicos
416
(estamos pensando, especialmente,
pesquisadores brasileiros, ligados à ficcionalidade televisiva nacional
que é nosso campo de interesse). Entretanto, para pensarmos
ficcionalidade televisiva, temos de considerar o que foi estabelecido,
em termos mais genéricos, sobre gêneros televisivos.
Pensemos inicialmente o termo ficção televisiva como inaugural e
que se desenrola em dramaturgia televisiva. Para Fadul
417
, a televisão
brasileira, pensada como lazer, tem apresentado dois grandes gêneros:
ficção e outros gêneros de entretenimento. Dessa categorização ela
afirma ser a telenovela um gênero a partir do qual originar-se-iam a
minissérie e, num dado momento, requerida pela situação, exigências
mercadológicas e do veiculo, a microssérie, consideradas, ambas, como
sub-gêneros. Portanto, a minissérie foi possível por ter como
antecessora a matriz telenovela, ou seja, estabelece um elo com o
passado, com o dado e permite o futuro, a microssérie. Para Bakhtin,
um gênero que como os demais correspondem a situações típicas da
416
Ver obras de Borelli, Fadul, Lobo, Motter, Ortiz, Sousa, dentre outros.
417
FADUL, Anamaria. Comentário registrado na fala da professora em participação na banca
examinadora da tese de doutorado O Protagonismo da Dramaturgia na TV Brasileira, de
Maria Ataíde Malcher em 23 de setembro de 2005. Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo.
228
comunicação discursiva, a temas típicos, por conseguinte, a alguns
contatos típicos dos significados [...] com a realidade concreta em
circunstâncias típicas
418
. Num mundo em que a velocidade, a rapidez são
virtudes muito mais valorizadas do que a reflexão, a maturação com
sua exigência de lentidão; o tempo que se escoa é capital e precisa ser
muitíssimo bem aproveitado, os modos de narrar buscam alternativas
para acompanhá-lo. Uma minissérie, melhor uma microssérie, nos leva
de cá pra lá em algumas noites, às vezes, apenas quatro. Bem de acordo
com a realidade e as circunstâncias concretas. Quando um país sofre
tanto pela inanição de um governo paralisado por escândalos,
rememorar os 50 anos em 5 de JK é um tema típico para um momento
típico. Resguarde-se aqui a idéia de ser a minissérie comemorativa dos
trinta anos da posse do Presidente Juscelino Kubitschek. Muito bem-
vinda a minissérie JK.
11.1 Carnavalização
Em sua obra seminal A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais, Bakhtin não intenta
escrever uma história do riso, do cômico, da derrisão, mas constrói uma
sólida teoria sobre a cultura cômica popular. Para tal, serve-se da
literatura, dos ritos e práticas tradicionais cultivados na Idade Média.
Dois elementos o essenciais ao conceito de cultura popular
bakhtiniano: o universo carnavalesco e o realismo grotesco que têm no
riso sua ancoragem mestra. O riso ocupa lugar essencial, altamente
expressivo nas formas e sistema de imagens, que compunham o mundo
das manifestações carnavalescas.
O mundo das formas e manifestações do riso opõe-se à cultura
oficial, ao tom sério, religioso. Manifesta-se de forma bastante variada
em festas públicas carnavalescas, ritos e cultos cômicos especiais, em
418
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 293.
229
que bufões e tolos, gigantes e anões, monstrengos, palhaços são
elementos importante; literatura paródica, teatro e, atualmente, em
produtos culturais de massa. Todas essas manifestações possuem,
entretanto, unidade de estilo e constituem partes, parcelas da cultura
cômica popular, especialmente daquilo que Bakhtin chama de cultura
carnavalesca una e indivisível. Essa unidade e indivisibilidade devem
ser observadas cuidadosamente quando da utilização dos conceitos
bakhtinianos para analisar a cultura contemporânea. Não se trata de
tão somente transpor, transferir conceitos. que se ater às idéias
bakhtinianas e mantê-las contextualizadas. Isso nos parece possível
trafegando em todo o universo teórico e conceitual, abarcando,
portanto, o pensamento dialógico do autor e suas categorias.
A multiplicidade de manifestações da cultura cômica popular é
subdividida por Bakhtin em: 1) formas dos ritos e espetáculos (festejos
carnavalescos, obras cômicas representadas na praça pública etc.); 2)
obras cômicas verbais (inclusive as paródias) e de diversas naturezas:
orais ou escritas, representadas em latim Bakhtin refere-se aqui às
obras antigas – ou em língua vulgar; 3) formas e gêneros do vocabulário
familiar e grosseiro (insultos, juramentos, blasões populares, etc.)
Categorias heterogêneas, mas que refletem um mesmo aspecto
cômico do mundo e inter-relacionadas, combinando-se de diferentes
maneiras. Portanto, entendemos carnavalização como uma visão de
mundo, do homem, das relações humanas diferente e deliberadamente
não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado, poderes dominantes. É a
construção de um segundo mundo, uma segunda vida aos quais o
homem pertencia e vivia em determinadas ocasiões, criando assim uma
dualidade de mundo. Tem um valor de concepção do mundo:
(...) o riso (...) é uma das formas capitais pelas quais se
exprime a verdade sobre o mundo na sua totalidade, sobre
a história, sobre o homem; é um ponto de vista particular e
universal sobre o mundo, que percebe de forma diferente,
embora não menos importante (talvez mais) do que o sério;
por isso a grande literatura (que coloca por outro lado
problemas universais) deve admiti-lo da mesma forma que
230
o sério: somente o riso; com efeito, pode ter acesso a certos
aspectos extremamente importantes do mundo.
419
Essa dualidade na percepção do mundo não era novidade na
Idade Média e no Renascimento. existia entre os povos primitivos em
que, ao lado do sério, manifestava-se o cômico: a conversão das
divindades em objetos de burla e blasfêmia. Entre os gregos antigos,
deuses e heróis convivendo com seus sósias paródicos, mitos sérios e os
injuriosos e cômicos no mesmo espaço. É preciso observar que numa
sociedade cujo regime não conhecia classes nem Estados, os aspectos
cômicos da divindade, do mundo e do homem tinham algo de sagrado e
por isso ‘oficiais’. Estabelecido o regime de classes e de Estado, as
formas cômicas perdem seu status e tornam-se, com o passar do tempo,
não-oficiais, modificam-se seus sentidos, tornam-se mais complexos e
profundos para se transformarem em formas fundamentais de
expressão da sensação popular do mundo, da cultura popular
420
.
O princípio cômico liberta-se completamente da religião, do
misticismo, da piedade. Ao mesmo tempo, as formas micas são
desprovidas de caráter encantatório e mágico, nada pedem, nada
exigem. Formas exteriores à Igreja, à religião, pertencem à esfera
particular da vida cotidiana, daí seu caráter concreto e sensível.
Apresentam um quê de jogo, relacionadas às formas animadas do
espetáculo teatral, mas seu núcleo não é uma forma puramente
artística e, de forma geral, não entra no domínio da arte, fica na
fronteira vida/arte: a vida apresentada com os elementos característicos
da representação. Mesmo porque o carnaval ignora a distinção
ator/espectador. Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o
vivem. Enquanto dura o carnaval não como não vivê-lo, pois ele não
conhece nenhuma fronteira, suas leis são as da liberdade. De caráter
universal, é um estado do mundo: seu renascimento e sua renovação.
Por isso a participação de todos: é a própria vida que representa e
419
BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais, p. 41.
420
BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais, p. 5.
231
interpreta uma outra forma, que preconiza liberdade de sua realização,
isto é, seu próprio renascimento e renovação sob melhores princípios,
uma vida nova, uma vida outra.
Bufões e bobos são personagens característicos dessa cultura e
de algum modo representantes consagrados do princípio carnavalesco,
não são atores e sim bobos e bufões em sua vida cotidiana, daí
encarnarem um tipo de vida especial, ao mesmo tempo real e ideal. O
carnaval é a segunda vida do povo baseado no princípio do riso, é sua
vida festiva. E a festa, qualquer que seja seu tipo, é uma forma
primordial, marcante da civilização humana
421
. As festividades tiveram e
têm um conteúdo essencial, um sentido profundo e sempre expressam
uma concepção de mundo e não apenas o que Bakhtin chama de
exercícios de regulamentação e aperfeiçoamento do processo de
trabalho o descanso, a trégua do trabalho cuja sanção vem dos
meios oficiais. A festa deve ter a chancela superior do mundo dos ideais,
sem o que não pode haver clima festivo.
Marcadamente relacionadas com o tempo, o natural (cósmico), o
biológico e o histórico, as festas ligam-se aos períodos de crise na vida
da natureza, do homem, da sociedade. Na base, sempre a alternância e
a renovação, a morte e a ressurreição. A festa é a forma com a qual se
reveste a outra vida, a segunda vida do povo, caracterizada pela
universalidade, liberdade, igualdade e abundância. A festa oficial não
cria essa segunda vida, nem arranca o povo de sua vida formal,
organizada, da ordem existente. Ao contrário, o oficial, consagra,
sanciona a ordem, o regime em vigor. É uma forma de homologar as
regras: hierarquias, valores, normas, tabus de todas as espécies em
vigor. A festa oficial aponta sempre para os ideais de verdade eterna,
imutável, perene e peremptória. Portanto, não comporta o riso, o
grotesco, a alegria desmesurada, sem censura do carnaval.
O carnaval opõe-se a toda e qualquer perpetuação, a todo
aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um futuro ainda
421
BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais, p. 7.
232
incompleto
422
. O banimento de toda e qualquer hierarquia consagra a
igualdade, o contato livre e familiar entre pessoas separadas na vida
cotidiana por barreiras intransponíveis, quer sociais, raciais, genéricas.
É essa segunda vida que permite o estabelecimento de novas relações,
verdadeiramente humanas das quais a alienação desaparece. Para
Bakhtin, o carnaval é o verdadeiro humanismo experimentado no corpo,
nesse contato vivo, material e sensível.
A abolição da hierarquia, o nivelamento dos desiguais provoca o
surgimento, na praça pública, de um novo tipo de comunicação
inconcebível fora da festa: vocabulário e gestos, liberação das normas
correntes de etiqueta e da decência. Em conseqüência, surge uma
linguagem típica, a carnavalesca, caracterizada pela lógica do avesso,
do contrário, das permutações constantes do alto e do baixo; da face e
do traseiro; das formas paródicas, dos modos travestidos um mundo
ao revés. Bakhtin lembra que essa linguagem foi utilizada por Erasmo,
Shakespeare, Cervantes, Tirso de Molina e também Quevedo. Esse é um
dado interessante para se entender Suassuna e, conseqüentemente
Arraes de O Auto da Compadecida, pois o próprio Suassuna afirma que
o fato histórico que deu origem à cultura européia foi semelhante ao
que originou a cultura brasileira. Na Europa foram os ‘bárbaros’ que
recriaram e reinterpretaram a cultura greco-romana e fundaram a
medieval. Aqui, teriam sido os povos negros e vermelhos – também
chamados ‘bárbaros’ que recriaram a cultura barroco-ibérica, que ele
considera ser medieval, dando origem à cultura brasileira, que entre o
povo mantém seu núcleo ligado aquilo que por falta de uma palavra
melhor, nós chamamos de medieval
423
. Segundo Amálio Pinheiro
424
o
brasileiro é tupi-negróide-imigrante. Nossa cultura é, de saída, plural,
múltipla Essa multiplicidade encontra, nos modelos populares ibéricos,
material e procedimentos dos quais se apropria e conjuga-os com
422
BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais, p. 9.
423
SUASSUNA, Ariano. Carrero e a Novela Armorial. Apud NOGUEIRA, Maria Aparecida.
Ariano Suassuna: o cabreiro tresmalhado, p. 11.
424
PINHEIRO, Amálio. Lotman e a questão das sociedades mestiças. Comunicação no I
Encontro Internacional para o estudo da Semiosfera. Centro Universitário Belas Artes, São
Paulo, promoção do Oktiabr, Grupo de Pesquisa para o estudo da Semiosfera, São Paulo:
PUC, agosto 2005.
233
efeitos de cenas próprios do teatro de final do século XIX e início do XX,
e na contemporaneidade espaço-tempo da Compadecida os dispõe
em suportes midiáticos, utilizando-se para tal de tecnologia avançada.
Ao modelo ibérico, equivalente ao imigrante, nós, brasileiros,
acrescentamos o já existente em Pindorama, o tupi e o negro que nos foi
trazido pela escravidão.
11.2 O riso
O Palhaço suassuniano é um contador de histórias. No teatro
conduz o fio narrativo, faz as ligações entre os atos, recruta os
personagens, organiza o cenário. O Palhaço remete à infância, de certa
forma resgata-a, e à memória. É o Palhaço que dá uma sugestão sobre a
continuação de uma história que está sendo narrada
425
. Na infância está
o circo, a festa, o momento de suspensão do cotidiano triste do menino
órfão de pai, na terra ressequida do sertão. estão as experiências e
as personagens, que permitiram a construção do mundo ficcional,
também ele outro, que se configura numa festa, no sentido bakhtiniano,
pois expressa a visão de mundo, o sentimento de mundo, sob as lentes,
por isso reflexo e refração, do dramaturgo. Mais uma vez justifica-se a
postura suassuniana de decepção pela exclusão do Palhaço na obra
teledramatúrgica. Entretanto, Arraes descarta o Palhaço, não o humor
do palhaço, não o clima circense, festivo postulado pelo autor primeiro.
O diálogo televisivo mantém, como anotado em outro momento deste
trabalho, o tom do texto que serve de base à estilização, os trocadilhos,
repetições, as arapucas lingüísticas, que resultam em mal entendidos
entre personagens e que constituem ou alavancam a história, são falas
muito próprias de um palhaço. Por outro lado, a seleção, a escolha dos
atores, especialmente os que personificam a dupla central, os recursos
425
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a Obra de Nicolai Leskov. In:
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica: arte e política: ensaios sobre a literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 200. Obras escolhidas.
234
histriônicos de que são portadores, a direção impressa ao espetáculo
desde cenário, ambiente, figurino, caracterização até a interpretação
propriamente dita, imprimem o clima circense que é o do riso.
Bakhtin chama a atenção para o caráter festivo desse riso visto
não apenas como uma reação individual diante de um fato cômico ou
ridículo. É patrimônio do povo. Universal, atinge pessoas e coisas, o
mundo é percebido em seu aspecto jocoso, risonho. O riso carnavalesco
escarnece dos próprios burladores, daí sua diferença maior em relação
ao riso moderno do qual o autor satírico se exclui, fica fora do objeto
aludido no/pelo riso. Esse é outro dado fundamental para se analisar o
moderno, empregando categorias bakhtinianas. Suassuna, contador de
histórias, parece-nos ter no humor, no riso, uma ancoragem para
compensar o palhaço frustrado que diz habitar seu ser. Entre 1972 e
1973, deu contornos mais tidos a essa faceta com o lançamento do
Almanaque Armorial do Nordeste, contendo idéias, enigmas,
informações, comentários e a narração de casos acontecidos ou
inventados, contados em prosa e em verso, no ‘Livro Negro do Cotidiano’,
pelo Bacharel em Filosofia e Licenciado em Artes, Ariano Suassuna
426
.
Como todo almanaque, este, uma coluna jornalística, é um espaço de
riso no qual Ariano inventa histórias, que emprestam algum sentido a
meus atos e palavras, àquilo que, por natureza, é desordenado e sem
brilho
427
. A forma escolhida por Suassuna para narrar é o humor, não o
gratuito, debochado e rasteiro, mas o humor feito para dizer do negro
cotidiano da humanidade. Suas invenções narrativas por mais trágicas
e sanguinolentas que sejam, acabam sempre tendo um elemento de
riso, de humor. Haja vista seu texto Romance d’A Pedra do Reino e o
Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta em que, num ponto alto da narrativa,
ocorre um duelo – Arraes monta um duelo de três, em sua Compadecida
– entre duas personagens, Samuel e Clemente, mentores intelectuais do
narrador e herói, Quaderna, editor de almanaques, decifrador e
astrólogo Chicó apresenta um currículo semelhante a Rosinha que
426
NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassuna: o cabreiro tresmalhado, p. 156.
427
NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassuna: o cabreiro tresmalhado, p. 157.
235
exercia a função de bibliotecário na vila de Taperoá a mesma de Grilo
e Chicó – em que as armas escolhidas são, no mínimo, risíveis:
[...] Mas nossa perplexidade durou pouco, e logo eu e
Malaquias começamos a rir ao mesmo tempo.
– São dois penicos! disse Malaquias com uma expressão
que exasperou logo o Fidalgo. Era esse o telengo-tengo,
Professor Clemente?
– O telengo-tengo era esse! – confirmou o Filósofo.
Samuel empalideceu e gaguejou exasperado:
Que brincadeira de mau gosto é essa, Clemente? Você
está gracejando com uma coisa séria como essa refrega?
Gracejando o quê? Por acaso eu iria faltar com o respeito
a um acontecimento no qual vou arriscar minha vida?
Samuel, para mim, a Revolução é uma coisa sagrada!
E como é que vem com uma palhaçada dessas? Como é
que escolhe dois objetos tão ridículos como armas para
nossa pugna?
Escolhi, em primeiro lugar, porque a Esquerda com seus
pontos de vista sérios e científicos, não vê nada de ridículo
em objetos úteis. Em segundo lugar, para desmoralizar a
Fidalguia. Em terceiro lugar, para mostrar como minha
luta é realmente uma luta do Povo, uma luta popular. E
finalmente, para desmascarar de uma vez para sempre
sua figura empafiada de falso Fidalgo dos engenhos de
Pernambuco! Você vai morrer por minha mão, hoje,
Samuel. E, o que é pior, vai morrer levando penicadas!
Duas tragédias de uma vez: primeiro, porque você vai
morrer e a morte é sempre uma coisa desagradável;
depois, porque vai morrer de morte engraçada, de modo
que nunca mais deixarão de rir à sua custa. “Como morreu
o Doutor Samuel Wan d’Ernes, descendente do homem de
confiança do Príncipe João Maurício de Nassau?”
perguntarão uns. E os outros responderão: “Morreu duma
penicada que levou na cabeça, dada por um Filósofo
negro-tapuia e comunista!”
428
É o riso em que o burlador escarnece de si próprio.
Em O Auto da Compadecida, usando a linguagem popular,
‘humor rasgado’ para contar a corrupção e a miséria, o amor e a
traição, sobretudo a misericórdia, colocando em cena a esperteza, a
alegria, a coragem e a desse povo tão sofrido e ... risonho, o trabalho
de Guel e seus companheiros Adriana e João apresenta o mesmo
humor que se espraia pela obra de Suassuna. Arraes, como seu êmulo
428
SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2005, p. 283-284.
236
(nesse trabalho), transfigura o real em algo prazenteiro, jovial, alegre e
sedutor. O que notamos é o humor como ponto central e certeiro no
trabalho “gueliano”.
Em resposta à pergunta se o humor traduz uma maneira de ver o
mundo, Arraes declara ser o humor seu alter-ego, aquilo que o salva da
sisudez, mesmo porque se considera otimista, mas não engraçado. De
formação cinematográfica, não esperava fazer televisão, quando retorna
ao Brasil. Para Arraes, a TV tem um lado carnavalesco
429
. Não bastasse
estar se iniciando num meio, considerado diversão, entretenimento,
Guel vai trabalhar com Sílvio de Abreu e Jorge Fernando, em Guerra
dos Sexos, uma comédia. Portanto, seu primeiro trabalho no Brasil,
está nos padrões do humor, do risível. O imediatamente a seguir,
Vereda Tropical, com suas tonalidades humorísticas, faz com que o
vilão, Oliva (Walmor Chagas), não fosse de todo mau. Segundo as
palavras de Guel, seu aprendizado televisivo, sua formação foi nas
novelas, com Jorge Fernando e Sílvio de Abreu. Foi com eles que aprendi
a fazer humor
430
.
TV Pirata, 1990, torna-se um ‘cult’ da televisão brasileira (coisa
que vai acontecer também com a Compadecida), melhor, do humor
televisivo. Para Guel, a grande marca do programa é ter sido
(...) feito por uma galera que era nova, a primeira turma de
humor nascida com a televisão. Não é à toa que o assunto
do programa era a própria TV. O TV Pirata era feito por
comediantes mais do que por humoristas, isso talvez tenha
a ver com a escolha dos atores. Eles o eram humoristas
típicos, era uma surpresa para o público ver um ator ou
uma atriz conhecida como o mocinho ou mocinha da novela
fazer humor rasgado. Quando a bora Bloch tirava sarro
da mocinha da novela, isso dava credibilidade.
431
Parece-nos que, para Arraes, o comediante tem mais características de
ator aquele que desempenha um papel em peças teatrais, televisivas
429
SELIGMAN, Airton. Guel Arraes: o humor constrói. Porto Seguro Brasil. Disponível em:
<http://www.portosegurobrasil.com.br/edicao1/entrevista.htm>. Acesso em: 31 abril
2004. (Entrevista de Guel Arraes.)
430
SELIGMAN, Airton. Guel Arraes: só o humor constrói. Porto Seguro Brasil.
431
SELIGMAN, Airton. Guel Arraes: só o humor constrói. Porto Seguro Brasil.
237
e como tal, sabe fingir, é um ‘farsante’
432
. Pensamos aqui a possibilidade
de se enquadrar nessa idéia de humorista diferente de comediante a
presença de Montenegro e Autran, tidos e havidos como atores de teatro
‘sério’, dramático, portanto não humoristas, se darem tão bem como
comediantes em Guerra dos Sexos, que tinha a ‘ainda mãozinha’ de
Arraes. Autran tem se revelado excelente comediante muitas vezes
com o corpo e, principalmente, gestos de mãos em suas últimas peças
teatrais como Visitando o Sr. Green e Advinha quem vem para rezar, esta
em cartaz atualmente no país. Nem é preciso falar em Marco Nanini e
Marieta Severo liderando filhos e genro, mais a amiga, uma verdadeira
usina de fazer rir, em A grande família, em que o cotidiano é tratado sob
a ótica do riso, ou seja, tem-se uma percepção carnavalesca do dia-a-
dia.
Ainda em relação ao humor diz Arraes:
Armação Ilimitada e TV Pirata foram autênticas criações
de grupo, traduzindo para a televisão um verdadeiro
movimento de renovação do humor e da comédia que
estava acontecendo na época. O grupo Asdrúbal Trouxe o
Trombone, o Teatro Besteirol, o Planeta Diário, os novos
cartunistas de São Paulo e os textos de Luis Fernando
Verissimo são grandes representantes desse período.
433
O grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, fundado em 1974, revela Luiz
Fernando Guimarães e Regina Casé, em sua primeira montagem,
Inspetor Geral
434
, de Nikolai Gogol. Em sua segunda fase, esse grupo
monta, entre outras peças, Ubu Rei
435
, utilizando-se da linguagem
circense, apresenta os atores vestidos de palhaços, figurino
coloridíssimo, maquilagem desenhada como para circo. Manhas e
Manias é outro grupo revelador de comediantes. Nele pontuam Débora
432
Talvez exista nesse pensamento gueliano a influência da Comédie Française (1680) que,
apesar do nome e do fato de guardar lembranças das ‘troupes de théâtres ambulantes’, não
é um teatro de comédia e da mesma forma que encena Moliére, encena Corneille e outros
grandes clássicos e trágicos. COMÉDIE-FRANÇAISE: Histoire de la Comédie Française.
Disponível em: <http://www.comedie-francaise.fr/histoire/pres.php>. Acesso em: 03 julho 2006.
433
INSTITUTO DE ESTUDOS DE TELEVISÃO. Diretor cabra da peste. Disponível em:
<http://www.ietv.org.br/pensar_tv_artigo.php?id=217>. Acesso em: 04 agosto 2004. Entrevista a
Ana Paula Conde, publicado originalmente no site: <www.cultura-e.com.br>, em 13 maio
2004.
434
Refere-se à comédia teatral Inspetor Geral, de Nikolai V. GOGOL, datada de 1836.
435
Refere-se à comédia teatral Ubu Rei, de Alfred JARRY.
238
Bloch e Andréia Beltrão, antecipando o que fariam em Armação
Ilimitada e TV Pirata. O pessoal do despertar de onde saem Maria
Padilha, Zezé Polessa, Daniel Dantas. Grupos contemporâneos
436
, todos
esses têm uma característica comum, postulada por Arraes para os
programas de humor, a criação coletiva. E mais, os atores oriundos
desses grupos estão freqüentemente nos trabalhos televisivos de Arraes.
Note-se, ainda, nessa fala, a presença dos cartunistas paulistas,
autores de peças criativas e inovadoras na área do humor. Verissimo
dispensa comentários, seus textos não conseguem deixar de ser
humorísticos por mais sérios que sejam tema e conteúdo. Como se
observa, Guel Arraes busca material para seu trabalho na própria TV,
até mesmo como assunto (TV Pirata), e também no teatro, no cartum,
na crônica jornalística.
Expandindo a idéia de ser o humor uma característica de
trabalho gueliano, retomamos Machado
437
quando afirma que a televisão
é um meio pouco “visual”, fazendo uso da imagem, salvo exceções, de
modo pouco sofisticado, e mais Herdeira direta do rádio, ela se funda
primordialmente no discurso oral e faz da palavra sua matéria-prima
principal. Interessam-nos essas anotações face ao que Saliba
438
, ao
analisar as representações humorísticas no Brasil desde a Belle Époque
até o início da era radiofônica, afirma:
(...) embora proveniente de alguns circuitos cultos da
cultura letrada, manteve-se ligada, de alguma maneira, às
práticas culturais que operavam noutros circuitos,
certamente diferentes dos circuitos cultos e exclusivamente
letrados. [...] A relação tem início no fato de alguns
humoristas da Belle Époque, a cuja produção nos
referimos nos capítulos anteriores, estarem envolvidos com
setores da produção cultural que utilizavam
procedimentos de criação e linguagem muito variados: o
teatro de revista, as várias formas de teatro musicado, a
publicidade, ainda que sob forma de réclame jornalístico
etc. Todos aqueles praticantes do humorismo [...] não
436
INSTITUTO DE ESTUDOS DE TELEVISÃO. Diretor cabra da peste. Disponível em:
<http://www.ietv.org.br/pensar_tv_artigo.php?id=217>. Acesso em: 04 agosto 2004. Entrevista a
Ana Paula Conde, publicado originalmente no site: <www.cultura-e.com.br>, em 13 maio
2004.
437
MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério, p. 71.
438
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da
Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002,
p.220.
239
abandonaram a produção cômica, pelo contrário,
desenvolveram-na utilizando-se de outros recursos
cômicos, mais apropriados às revistas, às legendas das
caricaturas, ao cinema, aos jornais falados, à música e,
afinal, ao humor radiofônico.
Independente das questões ideológicas da implantação e
desenvolvimento da radiofonia no Brasil, aqui não constantes por não
fazerem parte de nosso recorte, é notória a influência e, dentro de
alguns limites, a mesmo a determinação do rádio
439
no
desenvolvimento da linguagem televisiva, mesmo porque muitos de seus
nomes de relevo migraram para a TV, quando esta dava seus passos
iniciais no Brasil. Mas é fundamental notar que a linguagem radiofônica
também foi um constructo, que buscou elementos e modos de
formalização em linguagens que lhe são anteriores:
Enfim, quando o rádio procura uma linguagem
própria, rápida, concisa e colada no dia-a-dia, suscetível
de registrar o efêmero do cotidiano, ele vai encontrar
aquilo que as criações humorísticas haviam de certa
forma elaborado em estreita ligação com o teatro
musicado, o teatro de revista, e as primeiras gravações
fonográficas, e até mesmo as primeiras produções
cinematográficas: a mistura lingüística, a incorporação
anárquica de ditos e refrões conhecidos por ampla maioria
da população, a concisão, a rapidez, a habilidade dos
trocadilhos e jogos de palavras, a facilidade na criação de
versos prontamente adaptáveis à música, aos ritmos
rápidos da dança e aos anúncios publicitários.
440
Em plena ‘guerra paulista’, nos idos de 1932, segundo relato de
Saliba, Cornélio Pires utilizava-se do rádio e, em programetes, contava
‘causos’ e ‘episódios’ pitorescos da guerra civil que mais tarde aparecem
reunidos em um volume intitulado Chorando e rindo
441
. Como Pires,
muitos são os nomes de humoristas que gravaram discos de humor,
nos quais em forma de versos ou de ‘causos’ praticavam o humor
paródico, e, por que não dizer, ‘ácido’ no sentido de fazer a crítica da
sociedade da época. A ngua e sua multiplicidade, explorada na fala
caipira proposta por Cornélio Pires, vê-se acrescida pela verdadeira
439
MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério, p. 71-72.
440
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da
Belle Époque aos primeiros tempos do rádio, p. 228.
441
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da
Belle Époque aos primeiros tempos do rádio, p. 242.
240
babel promovida por Juó Bananére que, sob múltiplos heterônimos,
falava de uma sociedade múltipla e heterogênea como sempre se
apresentou a brasileira, numa linguagem também ela nem um pouco
homogênea – o sotaque e o modo de ser japonês, tão bem explorado nas
campanhas radiofônicas e televisivas da Semp Toshiba, faziam parte
do trabalho de Bananére nos anos 20/30, além de uma miscelânea
árabe-judaica da qual nos restam registros escritos, ainda de acordo
com Saliba. O Programa Casé, levado ao ar na Rádio Philips e depois na
Rádio Transmissora, na década de 30, apresenta um comediante que se
tornaria famoso, Jorge Murad, que contava com forte sotaque “anedotas
de turco”. Não pode ser esquecido nesse caldeirão de humor a figura de
Adoniram Barbosa
442
que, não conhecendo esses humoristas, tomou
contato com o rádio ouvindo as gravações de Juó Bonanére e Cornélio
Pires. Adoniram diverte o radiouvinte, a partir de 1941, com dezesseis
interpretações de tipos comuns da vida brasileira, desde o negro esperto
e tragicômico, passando pelo mascate de origem judia, chegando ao ator
de teatro francês e ao cronista “delicheuse” dos bairros elegantes da
cidade
443
. O rádio busca seus tipos e seu humor nos fatos do cotidiano
brasileiro, nos tipos humanos que circulavam pelas vilas e mais ainda
pela metrópole, que era o Rio de Janeiro, e pela ainda provinciana
São Paulo. Aceitando o diálogo ser fundamento da televisão, como
herdeira do rádio que ela é, o humor praticado pelo rádio está presente
no substrato do humor praticado pela televisão.
Guel Arraes afirma, em uma de suas entrevistas, que seu
interesse foi buscar, resgatar o humor radiofônico e reintegrá-lo na
televisão, diferenciando assim sua produção dos demais humorísticos
televisivos. Sugerimos aqui a existência de um humor crítico, ácido,
tendo como personagem a sociedade brasileira, e um humor no qual a
própria TV se coloca, como elemento participante dessa sociedade que
ela é: A TV no Brasil tem uma aceitação incomum. Ela é o teatro, o
442
Não sendo assunto deste trabalho, remetemos para a obra citada Saliba em que outros
famosos humoristas estão analisados: a dupla Lauro Borges e Castro Barbosa, Fidélis e
muitos outros.
443
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da
Belle Époque aos primeiros tempos do rádio, p. 253.
241
cinema e a TV do povo brasileiro
444
. Eu me sinto parte de um grupo de
comédia, de pessoas entre os 30/40 anos, que cresceu com a TV e entrou
para a televisão curtindo, o querendo destruí-la, mas sim usando-a em
nosso favor
445
.
A visão que Guel tem da televisão, como participante da vida, da
sociedade brasileira, revela-se com características de análise, de
distanciamento próprio de quem tenta percebê-la em suas relações com
o sujeito social. Ao afirmar que a televisão é TV, e também cinema e
teatro para o brasileiro, ele está mostrando a multiplicidade. O
telespectador, no processo de recepção, se apropria, negocia e
incorpora naquilo que lhe é familiar, a TV, o teatro, o cinema aos quais
muitas vezes não tem acesso. O sentimento que Arraes tem em relação
à TV, entretanto, é pessoal, é uma questão de afeto, de senti-la fazendo
parte de sua vida pessoal e do grupo ao qual ele pertence. Essa
dialética, se assim podemos dizer, tem sido demasiadamente favorável a
ele como criador de mundos televisivos ficcionais e para a televisão
como veículo de grande alcance na sociedade nacional. Ao entender a
televisão em termos positivos, Arraes abre uma brecha para produtos
culturais populares, em sentido duplo: nascidos coletivamente entre o
povo e nem por isso menos complexos, ao mesmo tempo passíveis de
elaboração intencionalmente artística. Assim atuando, Guel derruba a
barreira, ainda existente, erguida pelo segmento tido e havido como
mais informado da sociedade, segregatório que classifica a
programação, em geral, da TV como sendo ruim. A televisão pode sim
ser lugar de produtos de qualidade, suporta mesmo os produtos
culturais categorizados como sendo ‘nobres’. E mais, se pensarmos em
televisão aberta, e este é o caso da produção gueliana, ela permite o
acesso da maioria da população brasileira, levando em conta as
relações que esta tem estabelecido com a TV, a produtos de qualidade.
O Auto da Compadecida traz ao público televisivo um texto
popular, considerado um clássico da dramaturgia brasileira, que
444
INSTITUTO DE ESTUDOS DE TELEVISÃO. Diretor cabra da peste.
445
REVISTA ÉPOCA. Íntegra da entrevista com o diretor Guel Arraes. Disponível em:
<http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT586653-1661,00.html>. Acesso em: 18 agosto
2004.
242
resgata aspectos do teatro vicentino, ao mesmo tempo em que busca,
na cultura de extração popular, muitos de seus elementos. Era intenção
de Arraes fazer um filme baseado na peça, por ele percebida como
vocacionada para o cinema. Essa idéia encontra-se, de alguma maneira,
comprovada pela existência de duas obras cinematográficas
antecessoras ao trabalho de Arraes: A Compadecida (George Jonas,
1969) e Os Trapalhões no Auto da Compadecida (Roberto Farias, 1987).
A oportunidade de fazer a microssérie acabou por atropelar o projeto
cinematográfico. Aceita a idéia de rodar a microssérie com câmera
35mm e em película, Arraes sente, no decorrer da feitura, que era o
momento de aproveitar para fazer o filme e inicia o que ele chamou de
mapeamento do roteiro para o cinema; filmou alternativas para atalhos
na história e, antes mesmo de a microssérie ir para o ar, ele propõe a
(re)feitura para o cinema. Portanto, Guel faz um périplo, que está em
sua cabeça quando declara que a TV, para o brasileiro, é televisão e
também teatro e cinema. Ele coloca ao alcance do público, pelo
processo de estilização, a possibilidade de se acercar de três produtos
culturais diferenciados e, se pensarmos tecnologicamente, um quarto, o
DVD.
Por outro lado a microssérie, assim como os programas
humorísticos (a televisão de modo geral) não podem ser olhados sob o
prisma da unicidade e mesmo da binaridade de linguagens, senão o da
multiplicidade. Todas as séries culturais penetram no objeto e entram
em estado de fusão, de ebulição, interpenetração. O texto suassuniano
não é somente uma base, um ponto de partida para o novo objeto que
se tem. A microssérie toma para si e assimila o texto dramatúrgico,
produzindo um outro objeto cultural. O mesmo acontece em relação ao
cinema que se encontra presente na microssérie, como está notado em
sua descrição.
Entre o homem de teatro e o homem de televisão existe em
comum mais que latinidade-americana, a brasilidade. Existe o nordeste
que está no humor, no riso que se resguarda na memória de ambos e
para os quais tem um sabor popular. Um gosto, um cheiro de mato e
fruta, um tom tropical, solar, uma textura terrosa de cor castanha.
243
Guel Arraes defende a busca do humor que aproveite melhor os
criadores regionais sem cair no “folclorismo”. Temos uma cultura
popular muito viva e aqui não estou falando de folclore que permeia
as classes sociais
446
[...] O que me a cidadania é o fato de eu gostar
tanto do humor nordestino. Sei que o entendo, pois humor aprende-se na
infância, para toda a vida. Sobre a especificidade do humor nordestino
ao qual se refere, afirma Guel: A graça dele está no fato de ser vinculado
a pessoas muito sérias. Aparentemente o nordestino é carrancudo, essa é
a idéia que temos, mas essa tristeza é engraçada. O que é muito sério
tem humor.
447
O riso carnavalesco, para Bakhtin, é de natureza complexa, não
uma reação individual a um fato engraçado, cômico isolado e sim riso
festivo e patrimônio do povo, ou seja, tem um caráter popular, universal
permite que o mundo seja percebido de modo cômico, jocoso. Um riso
alvoroçado, mas burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e
ressuscita simultaneamente
448
. Bakhtin chama a atenção para o fato de
esse riso escarnecer dos próprios burladores. Essa característica é o
que diferencia esse riso do riso satírico da época moderna. O riso
popular, por expressar uma visão de mundo, e um mundo incompleto,
sempre em mudança, em evolução, d sua ambivalência, inclui o
burlador. TV Pirata escarne do burlador, coloca a própria televisão como
ator e centro de riso paródico e crítico, ‘pirateia’ a própria televisão.
João Grilo precisa se safar da situação de enrosco em que está
metido com o patrão. Monta toda uma trapalhada em que faz o Major e
o Padre antagonistas. A situação é séria, mas mostrada de modo risível.
A discussão entre os dois em que um fala da cachorra e o outro da filha
mostra bem a inserção do falante no circuito da burla, isto é, eles estão
inseridos no riso burlador. As cenas iniciais, especialmente estas, mas
não só, do pós-mortem, em que o Diabo de aproxima, em meio a um
verdadeiro vendaval, e um cheiro de enxofre nauseabundo invade o
446
PORTO SEGURO BRASIL. Veja o que Guel fez. Disponível em:
<http://www.portosegurobrasil.com.br/Edicao1/entrevista3.htm>. Acesso em: 31 janeiro 2004.
447
REVISTA ÉPOCA. Íntegra da entrevista com o diretor Guel Arraes.
448
BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais, p. 10.
244
ambiente, mostra uma situação mais do que séria à medida que todos
vão enfrentar o julgamento, e João Grilo, no que não deixa de ser
seguido pelos demais, arma um verdadeiro picadeiro com suas atitudes
e palavras. O que é muito sério, acaba, como diz Arraes, tendo humor.
Figura 25 – João Grilo fazendo sinal de corno para o Diabo
Figura 26 – Fala de João Grilo: Esse sujeito é um mistura de tudo o que
nunca gostei, promotor, sacristão, cachorro e soldado de polícia.
É preciso notar que Bakhtin afirma sobre a carnavalização ser o
núcleo de uma cultura. O espectador não o assiste, ele vive o carnaval.
O carnaval é o mundo às avessas, a quebra da hierarquia, a certeza da
incompletude, do provisório da vida. Durante o carnaval é a própria
245
vida que representa e interpreta. Aqui a forma efetiva da vida é ao
mesmo tempo sua forma ideal ressuscitada.
449
Todos querem uma vida
festiva.
Chicó inventa os causos, Arraes os anima. Chicó os [re]vive. O
espectador de TV, no jogo interativo emissor-texto-receptor, entra na
festa do riso, e o sério da vida se representa humoristicamente. A
animação, possível pela tecnologia, mantém traços arcaicos do cordel,
faz concreto o contar, desloca a personagem de uma esfera para outra
da narrativa, senão para outra narrativa, sem que abandone a primeira.
Na segunda esfera, a dos causos, em linguagem animada, tudo é
possível, a ordem natural do universo é alterada, o mundo é ao avesso e
nada precisa de explicação: Não sei, só sei que foi assim! Quando
percebem a morte da cachorra, Chicó inicia o causo do pirarucu. No
meio da discussão enterra, ou não, o cachorro e a revelação da
existência do testamento, Chicó põe-se a contar a história da travessia
do riacho Cosme Pinto. É a quebra do fluxo da seriedade do ‘real’ pela
maluquice dos causos mágicos, invertendo, revirando a lógica da
narrativa.
As manifestações do sério não dão conta da enormidade da vida.
É preciso o riso, esse sim, força criadora. Os grandes temas estão agora
na vida, no cotidiano. Esse cotidiano é tratado sob um ponto de vista
diferenciado, a ingenuidade de Chicó (a Besta da dupla nordestina) e o
arguto e um tanto safado João Grilo (o Palhaço) em luta pela
sobrevivência, heróis picarescos que, mirabolantemente, conseguem o
pão de cada dia, “loucos” diante das posturas da oficialidade. Não
escapam do riso a morte, o sepultamento. O enterro da cachorra se faz
seguido de um séqüito, no mínimo, pitoresco. As lamentações de Dora,
seguidas pela repetição que delas fazem João Grilo e Chicó. Benzer um
cachorro e enterrá-lo seguindo o ritual da Igreja, pois é isso que está
subentendido no enterrar em latim, é pôr em cheque uma norma que
implica até mesmo aspectos doutrinários. A Igreja apresenta uma série
de exigências, de ordem doutrinária, para enterrar os mortos. Se na
449
BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais, p. 7.
246
peça teatral é o Sacristão que faz o enterro para poupar o Padre da
potencial fúria do Bispo, na microssérie é o Padre mesmo a realizá-lo. O
mundo oficial é criticado pelo riso, pelo humor do não-oficial, do
carnavalizado.
Figura 27 – O velório de João Grilo
A falsa morte de Grilo chega à profanação, pois ele é velado na
igreja, ao som de cantorias e rezas, exibindo características
consideradas grotescas. O ‘cadáver’ encontra-se acomodado numa tosca
maca e com o rosto estrategicamente voltado para a câmera, exibindo
um meio sorriso. As provocações de João Grilo aos mortos quando do
julgamento. A ousadia das respostas ao Diabo quando este afirma ser
chegada a hora da verdade, degradação, pois palavras desse teor
estão em desacordo com o falante. Responde João Grilo: Então estou
desgraçado, porque comigo era na mentira. O modo como se dirige à
Virgem, utilizando-se um verso popular, da autoria de um tal Canário
Pardo e que ela reconhece ser engraçado.
450
450
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 158. O AUTO DA
Compadecida, DVD, cena 22.
247
Figura 28 – Fala de João Grilo: Por isso é que estou lascado,
comigo era na mentira.
Verso invocatório que Grilo diz no momento exato da entrada da
Virgem e não satisfeito, inicia sua fala defensória quando chega hora de
se defrontar com o Cristo, no que é impedido pela Virgem sorrindo,
levando a sério, mas de forma bem-humorada: lhe falta ser mulher,
João, sei. A Virgem percebe a redundância existente. João Grilo não
deixa escapar uma oportunidade de aperrear o Diabo. Dada a
permissão a ele para voltar ao mundo dos viventes, provoca o demônio:
Quem deve ficar danado é o filho de chocadeira.
451
Derradeiro confronto humano com o divino, o julgamento, não se
pode dizer de ele não ser levado a sério, mas com humor e esse humor é
sustentado, mais que pela imagem e jogo de cena, pelo diálogo rápido,
acelerado mesmo, conciso e risonho. A fala provocadora em dois
sentidos, como qualidade e como detonadora das ações, é a de João
Grilo, que mantém com sua movimentação, agilidade e colocação
espacial, o dinamismo que caracteriza a encenação, consideradas aqui
como de teor circense.
Questão fundamental que se nos apresenta é a produção verbal
da cultura cômica popular, imbuída da concepção carnavalesca do
mundo, linguagem de formas carnavalescas, riso festivo e ambivalente.
451
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 172. O AUTO DA
Compadecida, DVD, cena, 22.
248
A influência do espírito carnavalesco não poupava os clérigos que, na
solidão de suas celas, escreviam tratados paródicos e cômicos, textos
em que a ideologia religiosa e os ritos são descritos do ponto de vista
cômico: A ceia de São Ciprião (riso pascal), Vergilius Maro grammaticus,
tratado semiparódico sobre a gramática latina, o escolástico e os
métodos científicos da Idade Média, inauguram a literatura cômica
medieval em latim. Elogio à loucura, de Erasmo, é considerada criação
das mais iminentes do riso carnavalesco. Paródias e travestis laicos
tinham como tema o regime feudal e a epopéia heróica. Aparecem
duplos de heróis épicos: um Rolando cômico. Romances de cavalaria
paródicos. O riso carnavalesco ressoa nos fabliaux e na lírica dos
‘vagantes’ (estudantes cantores ambulantes). A dramaturgia faz-se
representar por Adam de La Halle com Le jeu de la feuillé.
452
Em ponto anterior deste trabalho, no capítulo 3 O Texto-Fonte,
Autoria, nero e Temática dissemos sobre o teatro suassuniano ter
suas raízes na dramaturgia vicentina. Uma das observações a ser feita
nesse teatro é a postura crítica do autor Gil Vicente em relação à Igreja
Católica, mais do que a ela aos homens que a lideram, ou seja, os
clérigos, a nobreza hipócrita e interesseira. Católico, Vicente critica o
que conhece, mas reconhece na Igreja o único caminho para a salvação.
No fundo, o que ele postula é uma mudança de atitude dos homens em
relação às coisas do espírito, ou seja, à religião, que nos parece
indispensável para ele. Vislumbramos em Suassuna a mesma postura.
Homem de formação religiosa, nunca negou a católica em seus
escritos. Entretanto, é um grande crítico da Igreja como se na
Compadecida e em outras obras de sua autoria em que personagens
mostram falhas de comportamento, que apontam para a falsidade, a
hipocrisia com que se conduzem em termos não religiosos, mas
éticos e até morais. O que temos aqui é um texto com características
carnavalescas, exibindo o riso e o humor ambivalente e crítico, ou seja,
produção verbal cômica falando de um assunto sério o combate ao
mundanismo na Igreja e seu séqüito de problemas conseqüentes. Essa
452
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais, p. 13.
249
mesma postura crítica, que usa de modo alegre e risível a linguagem, é
encontrada no trabalho televisivo.
O vocabulário cotidiano, familiar não fica excluído da
carnavalização. A quebra de hierarquia, permitindo contato sem
restrições, provoca o aparecimento de formas inéditas em termos de
gênero e terminologia. A linguagem da praça caracteriza-se por
grosserias, expressões e palavras injuriosas, às vezes longas e
complicadas, trocadilhos, juramentos, dísticos e ‘repentes’. No processo
de eliminação da linguagem oficial, no sistema criado de infração às
regras lingüísticas e socializantes, as expressões e palavras adquirem
valor cômico e tornam-se ambivalentes, entrando no sistema
regenerador do espírito carnavalesco
Chicó
Mas era vivo quando eu tive o bicho.
João Grilo
Quando você teve o bicho? E foi você quem pariu o
bicho Chicó?
453
Outro diálogo do mesmo tipo e que aparece na microssérie é o
de João Grilo com os patrões quando negocia o salário. A rapidez, os
trocadilhos levam os patrões e os espectadores a fazerem contas para
concluir sobre o contrato.
O trocadilho existente é possível numa linguagem
caracteristicamente oralizada. A apropriação da linguagem cotidiana
do primeiro é bem clara, fazendo-se um segundo elaborado
intencionalmente. Face aos falantes e a sua condição social, a
linguagem pode ser considerada adequada, própria de dois picarescos,
mas é usada por eles com a intenção clara de confundir. Armada a
trapalhada a respeito da benzedura do cachorro, que dizem eles, é do
Major Antônio Moraes, a chegada deste para falar com o Padre
desencadeia um diálogo completamente fora de propósito na boca de
um clérigo. Não há harmonia entre o conteúdo da fala e a imagem social
do falante. Ou seja, está tudo fora de ordem, ao avesso, o que se nos
453
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 18-19. O AUTO
DA Compadecida, DVD, cena 5.
250
apresenta é uma excrescência, mantida em toda sua extensão na
microssérie em referência ao texto-fonte.
Padre
Ah bem e na certa os antepassados da bichinha
também vieram nas caravelas, não é isso?
Antônio Moraes
Claro! Se meus antepassados vieram, é claro que os
dela vieram também. Que é que o senhor quer insinuar?
Quer dizer por acaso que a mãe dela procedeu mal?
Padre
Mas, uma cachorra!
Antônio Moraes
O quê?
Padre
Uma cachorra!
Antônio Moraes
Repita!
Padre
Não vejo nada de mal em repetir, não é uma
cachorra, mesmo?
454
Ainda mais do que na boca de bispo e padre, é surpreendente que
Arraes nos dê, pela palavra, um Cristo tão humano, crítico e irônico que
não se peja de sair-se com uma declaração nada peculiar em se
tratando de pessoa sagrada, quando diz, referindo-se ao Diabo: Esse
sujeito é meio espírita e tem mania de fazer magia.
O diálogo entre Dora e Eurico, depois de este se passar por padre
e ouvir a confissão da mulher, é bem característico de uma linguagem
em que o respeito se foi muito, se pensarmos o esperado
oficialmente. Aqui tudo foi pelos ares, para o brejo, no vocabulário
popular, da praça pública.
Dora
Bom para levar chifre.
..............................................................................................
Quando penso em parar me arrependo mais ainda.
455
454
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p 34-35. O AUTO DA
Compadecida, DVD, cena 6.
455
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 4.
251
Não tem morto que não se levante e cego que o espie. Do filósofo
taperoaense Chicó, segundo Arraes.
A presença de máximas populares, dos provérbios que passam a
fazer parte da fala das personagens, ou seja, mudam de um sistema a
outro e assim fazem parte daquilo que Bakhtin chama de gênero
secundário, no caso a microssérie. Chicó, falando sobre a sensualidade
de Dora e seus encontros, ouve de João Grilo à guisa de conselho: Onde
se ganha o pão, não se come a carne. Ainda Chicó, quando diz que o
Major deixa a fazenda quando a galinha criar dentes. Numa conversa
dos dois picarescos sobre mulher, Grilo afirma: existem duas
mulheres boas. Uma já morreu e a outra o está. Severino em conversa
com seu cupincha quando informa sobre a iminente invasão da cidade:
Vai ser mais fácil do que dar tapa em bêbado. Mas prudente o suficiente
para saber que Manda quem pode, obedece quem tem juízo
456
.
A obscenidade chega pela boca de Antônio Moraes, que afirma de
Taperoá: Isso aqui está uma merda de gato, venho por obrigação
457
.
Mas a mesma personagem quando conversa com o Bispo em sua casa e
conta-lhe que o Padre chamara sua mulher de cachorra, não diz a
palavra por classificá-la de blasfêmia e soletra com X. Como o Bispo
corrige e emite a palavra, Moraes chama-lhe a atenção e o cinismo
rabelaisiano revela-se: Eu falei cachorra com ch e como não existe
cachorra com ch eu não falei.
456
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 12.
457
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 6.
252
Figura 29 – A discussão entre o Bispo e Major sobre o fato de o Padre ter
ou não chamado a mulher do Major de cachorra
11.3 Realismo grotesco
Imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação das
necessidades naturais e da vida sexual, muitas vezes hipertrofiadas e
exageradas, imagens referentes ao princípio material e corporal são
heranças da cultura cômica popular, concepção que Bakhtin chama de
realismo grotesco. Do mesmo modo que o carnaval, o princípio material
e corporal é benfazejo, festivo, utópico. Opõe-se a toda separação das
raízes materiais e corporais, isolamento e confinamento em si mesmo, a
toda pretensão de significação independente da terra e do corpo.
Muitas são as imagens construídas, tendo Dora no centro, que
mostram as necessidades da vida sexual. Ela não é apresentada como
pervertida e sim uma mulher fogosa, que se recusa à negação,
sexualmente falando. Chicó, com sua aparência ingênua, também tem
necessidades corporais explícitas. Assim como as imagens, que
representam a necessidade de matar a fome sentida por Chicó e Grilo,
dispostos a comer aparas de pão e o alimento do cachorro. A troca dos
pratos de comida dos dois pelo bife na manteiga, que pertencia à
253
cachorrinha, é uma imagem forte que mostra a concretização das
solicitações corporais. A necessidade ditada pela fome, e por que não, o
desejo de um bife passado na manteiga, os leva a comer o alimento do
animal. As necessidades corporais são abordadas como sendo naturais,
próprias do homem e têm um sentido positivo.
Figura 30 – Chicó em uma noite com Dora
Figura 31 – Um bife passado na manteiga
O princípio material e corporal tem o povo como porta-voz, não o
individualismo burguês e sim o povo em sua evolução, crescimento e
renovação, daí sua representação exagerada, hipertrofiada apontando
para a infinitude, por isso seu caráter positivo e afirmativo. Figura
também a abundância, e como tal tem caráter festivo e alegre. É a festa,
254
o banquete da alegria, como diz Bakhtin. Na Compadecida a
abundância se manifesta numa antítese: é de fome, de miséria. Mas
existe um exagero positivo nas estripulias de Grilo e Chicó, nas
posturas de Dora, na idiotice de Eurico, na safadeza dos religiosos.
Tudo é demais, tudo é hipertrofiado, não à toa Severino carrega quilos
de roupas e de penduricalhos como se seus pertences fizessem parte de
seu corpo. E nada é aleatório. O exagero com sua carga de patético e de
risível está ali para evidenciar a crítica autoral.
O traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a
transferência para o plano material e corporal, a terra e o corpo em sua
indissolúvel unidade, revelando o outro lado, pois o grotesco existe em
oposição ao gênero elevado. Um dos procedimentos básicos da
comicidade medieval constitui-se em transferir para o plano material e
corporal os ritos, as cerimônias de ordem espiritual (a cultura elevada),
nas quais bufões e palhaços tinham um papel importante. Muitos
desses procedimentos aparecem em D. Quixote. Note-se que Cervantes
é um dos autores mencionados por Suassuna como sendo de sua
apropriação (portanto, de Arraes) para (re)criar sua arte.
Para a estudiosa de Bakhtin, Irene Machado, as formulações do
teórico russo sobre o campo do sério-cômico forneceriam instrumentos
para a análise dos procedimentos orais da prosa narrativa, fora dos
limites da literaturidade
458
. A literaturidade definiria o padrão expressivo
e lingüístico da cultura oficial. Bakhtin propõe um contraponto entre
linguagem culta (enobrecida) e vulgar (rebaixada). A literatura grotesca
praticada na Idade Média seria, portanto, entendida como manifestação
de rebaixamento dos valores da cultura oficial que inclui a religiosa à
medida que se viviam tempos teocêntricos. O grande interesse de
Bakhtin, não dúvida alguma, é o repertório lingüístico, de caráter
eminentemente oral, praticado na praça pública. Pensando a televisão
como fundada no diálogo e que tem na palavra sua matéria por
excelência, consideramos ser cabível a inclusão desse instrumental
para a análise de uma microssérie: produto televisivo no qual a palavra
tem lugar proeminente.
458
MACHADO, Irene A. O romance e a voz: a prosa dialógica de Mikhail Bakhtin, p. 184.
255
O tratamento dado às questões temáticas o mundanismo na
igreja e suas conseqüências pouco éticas pode ser considerado
grotesco, ou seja, um tratamento no qual a inversão do alto para o
baixo, do céu para a terra é flagrante. O interesse da Igreja está muito
mais no material grande administrador epíteto aplicado ao Bispo
(Nossa Senhora o justifica, diz que ele é trabalhador) mostra bem isso. A
sensualidade de Dora que a leva a constantes traições ao marido, e sua
religiosidade, suas relações com a Igreja: fornece pão e leite, Eurico
paga a reforma do templo. A imagem de Dora tem um componente
grotesco valorização do corpo, dos gestos. Logo nas cenas iniciais, ela
inicia o processo de sedução de Chicó. Também sua linguagem em um
dos entreveros, “discursivo-sedutores”, com Chicó, utilizando-se da
linguagem bíblica: Não cobiçarás a mulher do próximo.
459
E Chicó
rápido: Depende da brabeza do próximo e da belezura da mulher dele.
Os Dez Mandamentos, portanto, a citação é bíblica, entram no jogo sem
a menor cerimônia por parte dos falantes. Deve-se lembrar aqui a
extensão dada à personagem Dora na minissérie e anotada quando
da descrição do objeto. Dora é a personagem que, mais do que
nenhuma outra, chama a si a responsabilidade pelo ‘rebaixamento’. A
sensualidade ocupa lugar fundamental em sua vida e se manifesta
desde os trajes que usa quando faz um striptease para Chicó, Vicentão
e por último Eurico, passando pelos gestos corporais e expressões
faciais até a concretização dos atos libidinosos. A picardia de João Grilo
e Chicó também aponta para o rebaixamento se pensarmos que a
preocupação do herói picaresco é a sobrevivência física, é a comida e a
bebida. As questões espirituais passam a ter importância frente à
morte e mesmo assim João Grilo, no fundo, quer é safar-se dela, ou
seja, voltar ao mundo dos viventes. A maior prova do interesse em viver
e do esquecimento das experiências passadas é a rápida negativa ao
pedinte na estrada e a crítica que faz a Rosinha pela doação do pedaço
de bolo.
O cinismo da cena em que o Bispo consulta o Código Canônico
(que havia sido citado de cabeça, ou seja, sem comprovação, por ele)
459
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 4.
256
na sacristia em companhia do Padre, sendo observados por João,
com o dinheiro em os. O religioso conclui solenemente, utilizando-se
para tanto da empolada e formal linguagem religiosa:
Bispo
É preciso deliberar. É assunto pra se discutir com
muito cuidado. Vamos reunir o concílio.
460
..............................................................................................
Bispo
Não resta nenhuma dúvida, foi tudo legal, certo e
permitido. Código Canônico, artigo, 368, parágrafo terceiro,
letra b.
Padre
Quer dizer que não agi mal?
Bispo
Muito pelo contrário, você agiu muito bem.
461
E mais cinicamente, portanto, grotescamente, João Grilo chancela
a decisão: E aqui es a prova de que você agiu muito bem. Coloca o
dinheiro dentro do código e o Bispo ‘admirado’, retruca: O que é isso? O
que é isso? Mas embolsa rapidamente o dinheiro.
Figura 32 – Fala do João Grilo: E aqui está a prova
de que você agiu muito bem
460
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 9.
461
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 9.
257
Não se pode negar a essas cenas o tratamento grotesco dado a um
assunto sério, que é o da corrupção na Igreja, entre os religiosos. As
imagens grotescas, embora divertidas, são fortes e de impacto imediato.
O gato que descome dinheiro é igualado ao cachorro que deixa
testamento. O dinheiro é igualado a excremento. Dora e Eurico engolem
a história de João Grilo porque são desmedidamente ambiciosos, a
ponto de perderem o bom senso. A morte e a ressurreição de Grilo,
assim como o sangue da bexiga que se presta à morte e ressurreição de
Chicó. A cena é redundante. Morte e ressurreição, falsas todas elas, é o
que mais vemos. Tavares
462
afirma que essa linguagem é ideogrâmica,
expressa-se por imagens concretas mais do que abstratas. Podemos
pensar que, nessa linguagem, reside a vocação cinematográfica,
imagética diríamos, pleiteada por Guel Arraes para a obra de Suassuna.
O vocabulário grotesco traz a marca da o-oficialidade.
Grosserias, juramentos, maldições, “pregões de Paris” (reclames que os
mercadores da capital gritavam em voz alta dando-lhes uma forma
rimada e ritmada), anúncios, promoções de saltimbancos de feira e de
comerciantes inclusive de drogas não estão isolados dos demais
gêneros literários e de festas populares.
João Grilo e Chicó estão na rua, Chicó carrega um cartaz onde se
Cristo carregando a cruz e o título A Paixão de Cristo, João Grilo
segue atrás saracoteando em seu jeito destemperado, num arremedo de
dança, fazendo ‘reclame’ do filme que será exibido na igreja.
Uma aventura que mostra um cabra sozinho
enfrentando o Império romano todinho.
Um filme de mistérios e acontecimentos do outro
mundo.
A paixão de Cristo, um filme sobre o homem mais
arretado do mundo.
463
Os charlatães de feira, os escritores-vendedores de romances de
alguns centavos nas ruas flanavam aos berros fazendo a louvação de
seus produtos de modo persuasivo, pois levavam a clientela a acreditar
462
TAVARES, Bráulio. Tradição Popular e Recriação no ‘Auto da Compadecida’. In:
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 191-197.
463
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 2.
258
nos remédios como em Deus. O produto – objeto da propaganda – se via
envolvido por um jogo verbal profano/sagrado comum à praça visto que
irmanados. Tudo é redundante e hiperbólico, salpicado de ironia e
aleivosia. O vendedor de livros vai dizer que as crônicas são um bom
remédio para dor de dente e devem ser colocadas entre dois panos e
aplicadas no lugar dolorido: receita em paródia. O vendedor usa injúrias
ou elogios de acordo com a percepção que tem de seu ouvinte (provável
comprador), ou seja, seu receptor. São os vendedores (“marqueteiros”
também, diríamos hoje) abusados, impostores e sedutores e o
vocabulário usado persuasivo, se não chegando ao desbocado, muitas
vezes irônico, de duplo sentido.
Muitas são as questões doutrinárias cristãs tratadas de modo
hilário e mesmo irônico. Chicó conta sobre o tempo que vivera num
seminário, onde havia um papagaio, que sabia a Bíblia de cor e que se
converteu ao protestantismo e foi viver numa Igreja Batista, numa clara
alusão ao fato de, normalmente, os protestantes lerem com certa
constância a Bíblia e os Batistas serem um ramo, uma denominação
representativa do protestantismo histórico. João vai jogar com o Diabo
quando luta para se livrar do inferno de um modo esperto, dando
sugestões à Compadecida:
E o senhor vai dar uma satisfação a esse sujeito, me
desgraçando pra o resto da vida? [...] Para o purgatório?
Não faça isso não. [chamando a Compadecida à parte.]
Não repare eu dizer isso mas é que o diabo é muito
negociante e com esse povo a gente pede mais para
impressionar. A senhora pede o céu, porque o acordo
fica mais fácil a respeito do purgatório. [...] Confio, Nossa
Senhora, mas esse camarada termina enrolando nós
dois
!
464
Brincavam com coisas perigosas, sérias e condenavam, em suas
arengas, os incrédulos do mesmo modo que a Igreja fazia com os
descrentes de sua doutrina e idéias. O vocabulário é também
ambivalente, louvação e imprecação convivem. Se não imprecações
não se pode negar à fala de João Grilo o ‘destronamento’, a
464
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 170-171. O AUTO
DA Compadecida, DVD, cena 23.
259
dessacralização e a quebra de hierarquia, pois não se fala assim a um
superior e eclesiástico, mais ainda, sagrado, pois que é o próprio Cristo:
João Grilo
Então estou garantido. Eu me lembro de que uma
vez, quando padre João estava me ensinando catecismo,
leu um pedaço do Evangelho. se dizia que ninguém
sabe o dia e a hora em que haverá o dia do Juízo, nem o
homem, nem os anjos que estão no céu, nem o Filho.
Somente o Pai que sabe. Está escrito lá, assim mesmo?
Manuel
Está. É no Evangelho de São Marcos, capítulo treze,
versículo trinta e dois.
João Grilo
Isso é que é conhecer a Bíblia! O senhor é
protestante?
Manuel
Sou não, João, sou católico.
João Grilo
Pois na minha terra, quando a gente uma pessoa
boa que entende de Bíblia, vai ver é protestante. [...]
465
A fala é seguida de uma postura corporal nada condizente com o
que ali estava se desenrolando, o Juízo. A fala de Chicó sobre o
papagaio, em um de seus causos, tem uma relação com o de João Grilo
no julgamento protestante conhece a Bíblia: O papagaio sabia Bíblia
de cor.
Os problemas difíceis, temíveis, sérios e importantes são
transpostos para um registro alegre e ligeiro e todos têm um desfecho
que produz alegria e alívio. Bakhtin afirma que não se trata de
afirmações filosóficas e sim da direção do pensamento artístico e
ideológico, no sentido de uma percepção de mundo com outros tons,
uma abordagem do mundo como um jovial drama satírico e não um
sombrio mistério.
A multidão que enche a praça é um todo popular, organizado à
sua maneira, contrária a toda e qualquer coerção social, econômica,
racial, de classe, de gênero. Essa organização implica contato físico,
social e afetivo em conseqüência da quebra de hierarquia e do
nivelamento dos desiguais. A praça é praça, sua topografia é
465
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 173-174. O AUTO
DA Compadecida, DVD, cena 22.
260
tipicamente igualitária; não tem dono, é de todos. Não à toa, em
Taperoá, circulam pela praça Eurico e Dora, os ricos da vila; a
soldadesca e seu comandante, o valentão Vicentão, a bela Rosinha, a
dupla João Grilo e Chicó. É na praça que Rosinha, bonita, urbana, rica
se encanta por Chicó e faz charme para Vicentão e Cabo Setenta. Toda
a hierarquia social, econômica e de classe é rompida. Não mais que
de repente adentra Severino de Aracaju. O bispo desmaia.
João Grilo
Que grande administrador!
Severino
Um momento, ninguém corra! O primeiro que tentar
fugir, morre! O que é isto que está deitado, é algum
cônego?
Bispo (abrindo os olhos cioso do posto)
Bispo.
Severino
Ótimo. Nunca tinha matado um bispo, o senhor vai
ser o primeiro!
Bispo (desmaiando)
Ai!
Severino (dando-lhe um pontapé)
Levante-se e deixe de chamego. Xilique comigo não
pega [O Bispo levanta-se vagarosamente.] Vossa
Reverendíssima vai-me desculpar, mas deixe ver os
bolsos.
Bispo
Não tenho nada, o capitão compreende...
466
A ironia de Grilo, a grosseria de Severino, a covardia e as
mentiras do Bispo juntam-se para provocar o riso popular. O discurso
do Bispo entra em contradição com sua figura e status clerical. O
destronamento dá-se pela linguagem desabusada de João Grilo e de
Severino. O mesmo destronamento observa-se no diálogo entre o Bispo
e o Padre, no encontro inicial dos dois na igreja, no qual o Bispo o
questiona por ter chamado a mulher de Antônio Moraes de cachorra:
Bispo
Chamou, Padre João!
466
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 97. O AUTO DA
Compadecida, DVD, cena 20.
261
Padre
Não chamei, Senhor Bispo!
Bispo
Chamou, Padre João!
Padre
Não chamei, Senhor Bispo!
Bispo
Chamou, Padre João!
Padre
Chamei, Senhor Bispo!
Bispo
Afinal, chamou ou não chamou?
Padre
Não chamei, mas se Vossa Reverendíssima diz que
eu chamei é porque sabe mais do que eu!
467
Duas coisas podem ser pensadas nesse diálogo. O absurdo da
situação, dois clérigos, um mais graduado, ‘grande administrador’,
discutirem como duas crianças que se confrontam em uma situação de
mentira; atitude e conteúdo nada têm a ver com a imagem social dos
falantes. Ocorre também a existência de dois aspectos distintos, até
mesmo opostos, mas simultâneos na última fala do Padre, que nega e
concorda, mais ainda, justifica. O tom é de profunda ironia. Um diálogo
similar a esse ocorre entre o Bispo e o Major
Major
Ele chamou minha mulher de cachorra.
Bispo
Não chamou, Major.
Major
Chamou, Senhor. Bispo.
Bispo
Então chamou.
468
Na seqüência do julgamento, faz-se presente um diálogo
desabusado por parte do Diabo, de João Grilo e de Severino. Para eles o
Juízo nada mais é do que a rua, a praça, ou seja, o espaço do popular,
467
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 64-65. O AUTO
DA Compadecida, DVD, cena 9.
468
O AUTO DA Compadecida, DVD, cena 6.
262
do espontâneo, do tudo é permitido. Embora se deva notar a
consciência que todos têm da situação limite em que se encontram:
João Grilo (dirige-se ao Diabo, mas fala sobre a
Compadecida)
Está vendo? Isso é gente e gente boa, não é filha
de chocadeira não!
..............................................................................................
João Grilo (falando sobre São José). A Compadecida
elogiara o marido.
Grande novidade
Compadecida
O que, João?
João Grilo
Falei não.
Encourado
Falou sim. Ele disse: “Grande novidade.”
..............................................................................................
Encourado
A senhora está falando muito e vê-se perfeitamente
sua proteção com esses nojentos...
..............................................................................................
Encourado (Dirigindo-se a Manuel)
É, mas não posso ficar eternamente à espera. Qual é
a sentença?
469
João falta ao respeito em sua linguagem, se pensarmos o oficial,
especialmente no que concerne ao uso do pronome demonstrativo isso.
O Encourado trata a Compadecida de modo íntimo, abusado a censura
por falar demais, inverte posições ao cobrar de Cristo, em sua função de
juiz, ação imediata.
Na peça teatral, a carnificina que se concretiza na morte das
personagens, todas assassinadas a tiros, a mando de Severino, não
ocorre à vista do espectador. Todos são mortos fora da igreja. Ouvem-se
os tiros. Entretanto a cena em que Grilo tenta se livrar da morte através
da história da gaita milagrosa ocorre à vista do público e espectadores.
E tem-se a oportunidade de perceber o que é carnificina e o que é o
grotesco. A bexiga que está na barriga de Chicó é rompida pela facada
desferida por João Grilo, o sangue espalha-se pela cena/tela. Grilo toca
469
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 165-167. O AUTO
DA Compadecida, DVD, cena 22.
263
a gaita, Chicó ‘ressuscita’, tudo é demasiado cômico. É um assassinato
fictício praticado por João Grilo enquanto o capanga atira para matar, e
a mando do próprio Severino.
A morte de Severino e a pseudo-morte de João Grilo ocorrem num
ambiente de pura carnavalização. O humor e o cômico são tão
presentes e atuantes que o fato fica acima de qualquer impressão
negativa que porventura pudesse justificar a fala do Palhaço: Peço
desculpas ao distinto público que teve de assistir a essa pequena
carnificina, fala que na sua complementação é perfeitamente aceitável:
mas ela era necessária ao desenrolar da história
470
. Na microssérie, esta
fala é inexistente à medida que o Palhaço é excluído. Em contrapartida,
as mortes são mostradas, em flash-back, quando do julgamento. Elas
ocorrem na parte externa da igreja, tendo por cenário a parede do fundo
do templo, em contracampo, onde está pintado o rosto de Nossa
Senhora. Essa parede transformada em quadro ou painel aparece, como
notado, em várias cenas da microssérie. Na morte do casal Dora-
Eurico, ocorre um diálogo cheio de doçura e amor, de enorme
profundidade, ao mesmo tempo em que a morte é revestida de uma
beleza plástica ímpar. Quando os corpos dos dois escorregam pela
parede, para o lado direito do espectador, o olhar de Nossa Senhora os
acompanha pelo lado esquerdo e o rosto da Compadecida (Fernanda
Montenegro) vai se sobrepondo ao do quadro. Ocorre um processo de
fusão e superposição de imagens, recurso mais do que conhecido e
explorado pelo cinema, desde seus primórdios. Efeito de linguagem que
permite o jogo de inversão.
470
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 125. O AUTO DA
Compadecida, DVD, cena 22.
264
Figura 33 – O olhar Virgem na imagem parede
Figura 34 – A morte de Dora e Eurico acompanhada pelo olhar da Virgem
Severino é mandado direto para o céu por Cristo. Durante sua
defesa, feita pela Compadecida, vemos o extermínio brutal de sua
família pela polícia, assim como a vida pregressa de João Grilo,
caracterizada pela miséria desde sua infância. São ilustrações apostas
ao discurso da Compadecida. As fotos são em preto e branco, o que ao
mesmo tempo em que proporciona um ar sombrio, trágico e de
veracidade, agride menos o olhar do espectador, pois contrastado com o
colorido alegre e marcante da cena. O procedimento lembra o Guel
Arraes dos tempos franceses do cinema verdade, primeiras experiências
do então estudante brasileiro na França.
265
Figura 35 – Comedor de macambira
Todos julgados, Severino no céu, o casal e os religiosos no
purgatório, as mortes acabam por, de alguma forma, se enquadrarem
na idéia de renascer, pois o purgatório é, como o nome diz, lugar que
permite a purgação dos pecados, daí a chance de salvação, ou seja, a
vida eterna no Paraíso. Portanto, não há tristeza nessas mortes.
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471
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472
A intenção discursiva realiza-se pela escolha de um certo gênero
de discurso determinado pelas diversas situações de produção o
campo da comunicação, o tema, a situação concreta da comunicação,
os participantes etc. A expressão estrutura-se através de gêneros
471
Falas de Guel Arraes. INSTITUTO DE ESTUDOS DE TELEVISÃO. Diretor cabra da peste.
472
REVISTA ÉPOCA. Íntegra da entrevista com o diretor Guel Arraes.
266
discursivos, para Bakhtin formas relativamente estáveis e típicas da
construção do todo
473
, o que significa que, mesmo desconhecendo a
existência teórica dos gêneros, o usuário faz uso deles, aplica-os em seu
dia a dia e, não raras vezes, de forma hábil e segura. Para Borelli somos
capazes de ‘reconhecer’ este ou aquele gênero, falar de suas
especificidades, mesmo ignorando as regras de sua produção, escritura e
funcionamento
474
. O discurso molda-se, organiza-se em forma de gênero
o que permite seu reconhecimento embora sua variabilidade seja
imensa. Da vida cotidiana às esferas mais formais da comunicação,
uma padronização que impele a vontade discursiva individual de modo
a que ela se realize na escolha de um determinado gênero e na
entonação expressiva. A saudação rápida entre vizinhos, as informações
pedidas, as notícias breves trocadas no elevador são gêneros cotidianos
que apresentam diversidades determinadas pela situação, pela posição
social, pelas relações de reciprocidade entre os falantes. Dentro do
campo oficial, isto é, da comunicação formal exigida por situações
sociais, esses gêneros apresentam alto grau de estabilidade e a
expressão individual perde intensidade, mas mesmo essa oficialidade
pode sofrer reacentuação, por exemplo, a ironia. Assim como a mistura
de gêneros de diferentes esferas. Haja vista a mistura de gêneros que
ocorre nos discursos dos políticos, em tempo de CPIs e disputas
eleitorais. A esfera é oficial, o campo é formal, mas os gêneros estão em
constante mistura e entrelaçamento, chegando ao humor grosseiro, ao
achincalhe, passando pelo operístico, quando não pelo bufo.
Os gêneros discursivos orais caracterizam-se pela grande
mobilidade e reformulações, tal como os artísticos, prestam-se à
liberdade e criação, mas para que isso ocorra é preciso o domínio dos
processos articulatórios. Quanto maior for o domínio dos neros, mais
livremente o usuário pode empregá-los e tanto mais nítida se faz a
individualidade. Quanto maior for a habilidade discursiva, amplo o
repertório, o domínio das formas da linguagem entendida aqui como
473
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 285.
474
BORELLI, Silvia H. S. neros ficcionais, produção e cotidiano na cultura popular de
massa. Gêneros Ficcionais: matrizes culturais no continente. São Paulo: INTERCOM/CNPq,
1994, p. 137.
267
todas as possibilidades de linguagem, não somente a verbal mais
singular e criativo se fará o discurso. Para Bakhtin, a concepção sobre a
forma do conjunto do enunciado, isto é, sobre um determinado gênero do
discurso
475
é o guia no processo discursivo do sujeito do discurso que
leva em conta as tarefas a que se propõe (idéias centradas no objeto e
no sentido).
Na complexidade de um discurso artístico próprio de microssérie
intercambiam-se palavras, grupos de palavras, enunciados verbais em
sua variabilidade as narrações de Chicó, os diálogos no sentido strictu
–, os recursos próprios do veículo que vão dos efeitos especiais, muitos
simples e criativos, até a tecnologia mais avançada. Cor, luz, som,
música, no caso da Compadecida, a intromissão de um filme dos
primeiros tempos cinematográficos: A Paixão de Cristo, nada disso é
aleatório, tudo é muito bem pensado, escolhido, pois em busca da
realização da vontade discursiva. Na utilização de elementos
corriqueiros no cinema, mostra-se a intenção cinematográfica
subjacente. No imbricamento – dramaturgia teatral, cinema, literatura
fica claro o domínio que a autoria discursiva tem do gênero que está
sendo praticado e dos outros que estão sendo estilizados.
Face à grande aceitação da televisão pelo povo, seu grande
envolvimento com ela, é natural que os autores busquem modos de
fazer essa situação render dividendos artísticos e econômicos para si e
para a emissora. A escolha de um produto que preencha essas
intenções deve, portanto, ocupar as mentes dos autores e servir de
balizamento nas decisões. Criar um produto que, pela sua maneira de
ser, chegue ao público e o satisfaça demanda conhecimento, domínio do
que Bakhtin afirma ser gênero discursivo, forma do conjunto
enunciativo. Quando Arraes e sua trupe apossam-se do teatro
suassuniano e, praticamente, o catapultam para a microssérie, da
forma estilizadora como o fazem, eles demonstram claramente suas
intenções. A filmagem, em película de celulóide de 35mm, indicia o
futuro cinematográfico da microssérie. A visão “gueliana” do que é a
475
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 286.
268
televisão está posta em ação: Ela é o teatro, o cinema e a TV do povo
brasileiro.
476
12.1 Os outros para quem o discurso se faz
Cada gênero do discurso em cada campo da comunicação
discursiva tem sua concepção típica de destinatário que o determina
enquanto gênero.
477
A TV é um meio de comunicação de massa, seus
programas dirigem-se a públicos demasiado extensos se comparados
com outros meios massivos; permanecendo o dia inteiro no ar, seus
produtos são quase que voláteis. A dificuldade de se estabelecer
características desse público em relação ao gosto médio é tão grande
quanto ele mesmo. Como age esse público face às características
próprias do produto, à linguagem televisiva, à grade horária são
aspectos que dificultam o desenho, as concepções que o sujeito do
discurso, que busca sempre alcançar uma atitude responsiva, possa ter
de seu receptor. Paralelamente, estamos no reino da complexa
comunicação cultural, ou seja, os gêneros em questão estão na esfera
da comunicação cultural, na qual proliferam inúmeros e variados
discursos em constante intercâmbio, assimilações, reacentuações.
A microssérie, uma das esferas de uso da linguagem, é um
enunciado que se manifesta no discurso. Considerada em sua função
comunicativa, o processo dialógico instala-se em uma interação ativa
sujeito discursivo/espectador. O espectador, ao compreender o
significado do discurso, assume uma posição responsiva, ou seja, uma
reação manifesta: concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa-
o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc. Ocorre que muitas vezes o
espectador de televisão toma conhecimento de um produto televisivo
por ouvir falar, pelas peças promocionais exibidas pela própria TV, mas
não tem acesso direto a assistência à minissérie ou microssérie.
476
INSTITUTO DE ESTUDOS DE TELEVISÃO. Diretor cabra da peste.
477
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 301.
269
Esses discursos, do gênero informativo, acabam por provocar também
uma atitude responsiva. E a televisão passa a ser uma porta de entrada
para outros gêneros que não televisivos: a busca pelo livro, pelo filme,
pelo teatro. Uma resposta de outro tipo ou de efeito retardado.
Esquemas de processos que sugerem um autoria ativa e recepção
passiva para Bakhtin são ficção científica. O receptor é um participante
real da comunicação discursiva.
478
O que no texto suassuniano, e que é mantido exemplarmente
por Arraes, é o reflexo da realidade objetiva e a criação subjetiva de sua
imagem no processo de conhecer. O que no signo suassuniano está
refletido, está também refratado. O que temos em Ariano e o que temos,
a posteriori, em Guel, é um reflexo específico da realidade, mas em certo
sentido, a criadora da imagem de mundo de um e de outro. O olhar, o
ponto de vista desse olhar, o recorte feito do visto na realidade, os
acréscimos, as exclusões, configurando-se em duas obras, duas
linguagens, duas maneiras, dois discursos, dialogando com vários
outros que resgatados do grande tempo fazem-se actualizações em
interdiscursos com a contemporaneidade.
478
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 271.
271
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479
Muita coisa mudou desde A Coroação do Czar Nicolau II (1896),
filmado em Moscou, e que mostrava, em inúmeras cenas, o importante
evento. Câmeras fixas que, colocadas em um determinado lugar,
‘registravam’ o que estava na frente
480
. Iniciada a etapa ficcional, isto é,
o cinema prestando-se a contar uma história, as câmeras continuaram
por muito tempo fixas, o filme era uma sucessão de quadros,
entrecortados por diálogos, configurando-se naquilo que Bernardet
chama de tosca linguagem cinematográfica e que mantinha com o
espectador a mesma relação que o teatro. Para se tornar o contador de
histórias popular e querido que tem sido desde o início do século XX
as bases da linguagem cinematográfica foram lançadas em torno do ano
de 1915, pelos americanos –, buscas frenéticas ocorreram, sempre
direcionadas para a elaboração de uma linguagem própria às novas
tecnologias e balizadas pela ficção. Mesmo depois de muitas
experimentações em termos de linguagem, que permitiram e permitem
ao cinema descolar-se da ficção, esta continua a ter um lugar de honra
na cinematografia.
A primeira conquista foi passar do antes e depois para o
“enquanto isso”, e daí as vitórias foram sucedendo-se: o deslocamento
da câmera que hoje permite um giro de 360 graus, travellings para trás
e para frente, laterais, para baixo e para cima. Lentes especiais facilitam
o trabalho e permitem inovações. Equipamentos leves permitem grande
479
Frase de Guel Arraes. PORTO SEGURO BRASIL. Veja o que Guel já fez.
480
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 32.
272
mobilidade. Não satisfeita em se deslocar no espaço, a câmera o recorta,
ou seja, assume uma posição em relação ao que está sendo filmado: o
ângulo. Quando João Grilo “retorna”, temos uma bela cena,
cinematográfica, sem dúvida, e que está na microssérie: um plano geral
vertical focaliza Chicó, cavando uma sepultura para João Grilo, que
repousa numa carroça ao lado. O plano geral permite a visão do
descampado, sugerindo a extremada solidão vivida por Chicó. A
verticalização intensifica essa impressão. Chicó sozinho, não no
espaço, mas na vida, tendo ao lado o amigo morto. Recortado o espaço,
temos as imagens filmadas (atividade de análise) que, posteriormente,
são reunidas pelo processo de montagem (atividade de síntese). Ainda
para Bernardet, é nesse momento do caminhar da linguagem
cinematográfica que se evidenciam os modos básicos da expressão
cinematográfica: a seleção das imagens e sua organização numa
seqüência temporal. Nada é aleatório também no cinema, ele não é a
reprodução do real e sim manipulação levada a efeito pelas escolhas
autorais que se concretizam, basicamente, na captação das imagens e
em sua montagem.
Figura 36 – A volta de João Grilo
273
13.1 A supressão como procedimento de estilização
João Grilo e Chicó, fazendo a promoção da exibição de A Paixão
de Cristo na igreja de Taperoá, solicitam um plano aberto – maior
exposição de espaço; a falsa ressurreição de Chicó, porque falsa fora a
morte, inicia-se pelo mexer os dedos da mão, do ao som de uma
música alegre e saltitante plano fechado. Entretanto os elementos em
pauta não estão soltos, navegando cada um por si e sim inter-
relacionados, em termos de planos uns com outros e internamente em
cada plano. A câmara busca os movimentos das mãos, vai aos pés, à
cabeça para permitir a visão do corpo todo que se levanta saracoteando,
mostrando que está vivo. João Grilo está “morto”, com uma vela entre
as mãos, no chão da igreja, o espaço se comprime e um plano fechado
leva o olhar para a cabeça de João Grilo, em primeiro plano. Mas o
olhar de João Grilo dirige-se para o alto enquanto o do espectador é
deslocado para um pé, rude e maltratado, calçado com uma sandália de
couro: é a procissão dos mortos que João quando desperta. O fazer
artístico como processo para configurar o discurso, com todas as suas
implicações, pretendido pelo autor.
Figura 37 – O despertar de João Grilo para o Julgamento
274
Manipulações da linguagem estavam presentes no projeto da
microssérie, segundo o próprio autor
481
. Guel mostra-se consciente da
existência de desigualdades entre os dois suportes quando afirma que é
diferente a assistência a um e a outro, portanto a recepção do produto,
o cinema, exigindo atenção redobrada do espectador em relação à
televisão. O cinema tem exibição ininterrupta e situação específica: sala
escura, tela grande. A televisão tem o fluxo de exibição contínuo e
distendido, exibição dispersa a dona de casa passa roupa, fala ao
telefone, espia o adolescente no computador e ‘vê TV’. O cinema opera
por intensidade e a televisão por extensidade. No cinema não coube a
cena televisiva em que um vistoso estandarte, tão a gosto de Suassuna,
avisa: Episódio de hoje: a morte da cachorra, assim como as várias
entradas do filme A Paixão de Cristo, segundo estudiosos, é uma
maneira de o autor inserir o cinema em seu trabalho televisivo e a
metalinguagem no cinematográfico, foram apoucadas no filme.
Entretanto, nota-se, no filme, a manutenção da estruturação por
blocos, originalmente proposta pelo autor no texto-base, sendo seguida
com o acréscimo de mais um, O gato que descome dinheiro, na
microssérie. Na peça, esses blocos seriam o equivalente aos atos e
marcados pela fala do Palhaço.
482
Na microssérie essa estruturação foi
mantida, embora sem a presença do Palhaço. A segmentação própria da
linguagem televisiva, ou seja, sua serialização é que faz a marcação dos
blocos, daí 4 capítulos da microssérie. Esse mesmo material gravado
para a microssérie vai servir de base para a feitura do filme. A questão
agora é: como se deu essa ‘estilização’, recuperando o termo
bakhtiniano?
É fato que a serialização típica dos produtos dramatúrgicos
televisivos não é invenção da TV. Ela existia na literatura epistolar
(cartas, sermões), nas narrativas míticas (As mil e uma noites), nos
folhetins que, como demonstrou Motter, seriam o berço das telenovelas.
As radionovelas que nossas avós tanto apreciavam eram seriadas e
481
Remetemos ao item O riso, Parte 5 – Teoria e objeto em diálogo, desta tese.
482
Remetemos à Parte 3 – O texto-fonte, autoria, gênero, temática, desta tese.
275
também os filmes da matinê domingueira, lugar de encontros de nossos
pais. Segundo Machado, a serialização cinematográfica é que vai
fornecer o modelo para a televisão. Os antigos nickelodeons, pelos
anos dez do século passado, salas de exibição sem o mínimo conforto,
preferencialmente freqüentadas pelos moradores da periferia, exibiam
filmes curtos em oposição aos longas-metragens que surgiram nessa
época e exigiam salas maiores e melhores os salões de cinema. Os
filmes de longa duração, em partes, eram exibidos nos nickelodeons, e a
base para sua realização foi encontrada nos folhetins jornalísticos. A
serialização permitia o atendimento às duas demandas, ou seja, ela
nasce pela necessidade do mercado gerada pelas modificações sociais.
O que se em O Auto da Compadecida agora é um esquema inverso:
da serialização ‘original’ da microssérie, atendendo à demanda
televisiva, para o longa metragem feito para tela e sala grandes,
pressupostamente, outro público, o cinéfilo.
afirmamos anteriormente que os modos básicos da expressão
cinematográfica são seleção das imagens e sua montagem, sua
organização numa seqüência temporal. Das imagens captadas,
selecionadas e organizadas para microssérie, a autoria (re)monta o
filme. Estamos sugerindo a extrema valorização da montagem
483
, como
atestado por Bernardet ao referir-se às propostas da escola soviética
nos anos 20 do século XX. Para Eisenstein
484
a montagem não reproduz,
produz, ela é a própria estrutura do pensamento, daí o cinema não ser
meramente um contador de histórias, e sim capaz de produzir idéias.
Portanto, a montagem é algo mais complexo do que processo técnico de
articulação dos elementos de um texto audiovisual. Para Fechine é
(...) o como contar o quê com os recursos técnico-
expressivos desses meios que operam sincreticamente com
as imagens (imagem fixa, imagem em movimento, palavra
escrita, etc.) e com os sons (música, ruído, palavra falada,
etc.). [...] a montagem pode ser compreendida, enfim, como
modo de articulação (interligação ou inter-relação) das
partes em um todo, nos diferentes níveis de organização
textual: da articulação de planos numa seqüência fílmica
(nível discursivo) à articulação de segmentos narrativos
483
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema, p. 48.
484
EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
276
num percurso unificador (transformações de estados do
sujeitos cujas ações se entrelaçam no curso da narrativa
englobante com um início, um desenvolvimento e um ponto
final).
485
Ao decidir-se por como contar o quê a partir do existente, a
microssérie, Arraes estaria transitando novamente pelo campo da
estilização bakhtiniana. Sobre um discurso a microssérie –, exaurir
seu tema, acabá-lo de modo a obter responsividade, buscar uma
organização de modo a ressignificá-lo, ou seja, um outro discurso o
filme –, ele estaria rearticulando, rearranjando, (re)inter-relacionando os
elementos múltiplos de um discurso de modo a fazê-lo outro, agora,
fílmico. Se ao estilizar o auto suassuniano, Arraes, para atender às
demandas do suporte televisivo, com todas as suas implicações, inclui
mais do que exclui personagens, situações, episódios; aumenta a
atuação de personagens; utiliza-se de procedimentos mais próximos da
linguagem fílmica, de tecnologia de ponta a par de ações artesanais,
agora Arraes vai, atendendo a demandas produtivas e de consumo do
cinema, excluir, compactar, reduzir. E esse discurso outro demandará o
mesmo que os anteriores: um processo que o reorganize, que permita a
ressignificação, e o estilo agora representado será o de Guel Arraes por
Guel Arraes.
Circundando a narrativa principal: a faina de João Grilo e seu
companheiro Chicó pela sobrevivência, lutando contra os poderes
dominantes na pequena Taperoá, metonimicamente representados
pelas autoridades religiosas, o coronel, o comerciante, o cangaceiro, o
soldado, o valentão vários episódios agregam-se. Assim, houve
escolhas que nortearam permanências e exclusões sem que a obra, em
seu todo, perdesse as suas possibilidades de significação, o seu
acabamento discursivo A montagem fílmica é então um exercício do
pensar, é o desenvolvimento de idéias, como queria Eiseintein. O re-
arranjamento das seqüências narrativas obedeceu a um mecanismo de
supressão de cenas e episódios, enriquecedores em termos de
acréscimos de informações e de expressividade artística, mas não
485
FECHINE, Yvana. Montagem e remontagem na produção audiovisual de Guel Arraes.
277
impeditivas ao caminhar das personagens, no eixo principal, em busca
de suas proposições narrativas. A rearticulação, agora em filme, é outro
discurso e como tal configura-se em um todo significativo.
O filme se abre com a mesma panorâmica da microssérie, em que
João Grilo e Chicó são vistos nas ruas da cidade promovendo o filme A
Paixão de Cristo a ser exibido na igreja, à noite (vide figura 24). A
exibição dos créditos inicia-se após essa tomada e pelo nome dos dois
protagonistas sobre um quadro do filme. Na seqüência, os demais
créditos são apresentados inseridos em cenas de A Paixão de Cristo,
como já anotado na parte 4 deste trabalho. A história propriamente dita
inicia-se com os dois, Grilo e Chicó, na padaria onde se desenrola o
diálogo em que negociam o emprego com Eurico e Dora, cena que,
tendo como conseqüência a obtenção de trabalho pelos dois, estabelece
uma relação com o eixo narrativo central de modo a se tornar
indispensável. A surra que o padeiro leva de Chicó atrás da Igreja,
confusão também armada por João Grilo, o episódio (na microssérie,
capítulo) inteiro do Gato que descome dinheiro são suprimidos. A cena
em que Grilo finge estar doente na padaria e a pseudo-morte em que é
velado na igreja também são suprimidas. Episódios que não mantêm
entre si e com o eixo central uma relação de dependência e, na
rearticulação feita para o cinema, desaparecem.
O trabalho de re-montagem da minissérie para o filme se dá,
portanto, por supressão de episódios que não se subordinam
diretamente ao eixo principal da narrativa, ou seja, as ações da dupla
picaresca em busca da sobrevivência. A presença de Rosinha, na
microssérie, quebrando a tradição picaresca de ausência de
preocupação afetiva, é mantida como modo de interessar o público
televisivo e o mesmo ocorre com a audiência cinematográfica, à medida
que uma história de amor sempre prende a atenção.
Por outro lado, a microssérie apresenta elementos
cinematográficos, ou seja, ela dialoga com os modos cinematográficos,
incorpora modos expressivos imagéticos de outros suportes,
constituindo-se em um produto híbrido como anotado. Esses modos
278
expressivos borram as fronteiras entre linguagens
televisiva/cinematográfica como evidenciamos no item Desordem na
fronteira. Esse modo de ser híbrido é também característica da autoria.
Sugerimos que a preocupação cinematográfica, evidenciada no correr da
feitura da microssérie e que leva Arraes a mapear o roteiro para cinema,
segundo ele afirma, influencia a estrutura do produto de modo a,
posteriormente, facilitar a re-estruturação para o cinema.
Milton Hatoum
486
, discorrendo sobre as relações literatura/
cinema e a importância do roteiro, afirma que a
(...) gênese da montagem cinematográfica se encontra no
processo da escrita [...] um bom filme depende de algo que
é um atributo fundamental de uma obra de ficção: a
palavra escrita. Sem um roteiro plausível e capaz de dar
coerência à trama, as imagens correm o risco de perder
sua força e magia.
Do mesmo modo, um roteiro é capaz de permitir supressões sem perda
de coerência, de força e magia. Parece-nos que a gênese do filme está
na microssérie. O que no filme foi suprimido foi planejado pelo autor
na escritura e planejamento do produto televisivo.
Guel Arraes tinha experiência em lidar com a interpenetração
cinema/televisão, quando da feitura de sua Compadecida. O Coronel e o
Lobisomem, feito para a Terça-Nobre, exibido em 1994, foi,
explicitamente, uma experiência de cinema na televisão, feita dentro da
televisão, com a mesma equipe e apenas mudança de câmera. Para
Arraes
487
, foi um processo de desmistificação do fazer cinematográfico,
um modo de fazer cinema que nasce da televisão e não mais um corpo
estranho a ela. Se O Auto da Compadecida, não foi uma experiência
radical como O Coronel e o Lobisomem, não se pode negar a
interpenetrabilidade pré-existente televisão/cinema, desde seus passos
iniciais com a filmagem em 35mm, passando pelo que Arraes chamou
de mapeamento do roteiro para o cinema enquanto de sua feitura como
microssérie.
486
HATOUM, Milton. Flaubert e a pré-história do cinema. Entrelivros. São Paulo: Duetto, ano
I, n. 3, p. 26-27.
487
ARRAES, Guel. Humor e novas linguagens. In: ALMEIDA, Cândido José. M.; ARAÚJO,
Maria Elisa As perspectivas da televisão brasileira ao vivo. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
279
Das 27 cenas da microssérie
488
, 7 sublinhadas foram eliminadas:
1. Créditos iniciais; 2. Cinema na Igreja; 3. Emprego na padaria; 4.
Confissão de Dora; 5. Bênção para o cachorro; 6.Major Antônio Moraes;
7. A morte do cachorro; 8. O testamento; 9. Explicações para o Bispo;
10. Encontro com Chicão; 11.O gato que “descome” dinheiro; 12. A
morte de João Grilo; 13. Pedindo emprego ao Major; 14. A chegada de
Rosinha; 15. Presentes para Rosinha; 16. Duelo com Chicó; 17.
Pretendente; 18. Uma noite com Dora; 19. Divisão do dinheiro com o
Bispo; 20. Invasão dos cangaceiros; 21. Gaita milagrosa; 22. O
julgamento final; 23. Apelando para Nossa Senhora; 24. A volta de João
Grilo; 25. Chicó e Rosinha casados; 26. O dinheiro da porca; 27.
Créditos finais.
13.2 Uma palavra sobre roteiro
      
        

489
O homem é um contador de histórias. O ato de contar nasceu nas
primitivas culturas e vem atravessando tempo e espaço, modificando-
se, transmutando-se, mas persistindo. Dos velhos contadores em torno
da fogueira ao experimentado contador benjaminiano, aquele que conta
recebeu diversos nomes: escritor, romancista, cronista, dramaturgo. O
cinema nos deu um contador cinematográfico. Contemporaneamente,
temos um contador eletrônico. Esse contador cinematográfico e/ou
eletrônico recebe o nome de roteirista.
Como qualquer outro contador, precisa ter sensibilidade para
captar fragmentos, nuances, breves momentos do viver e elaborá-los
488
O levantamento foi feito a partir do DVD e das informações constantes do material
descritivo do mesmo.
489
COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro, 4ª. contracapa.
280
numa história, ou seja, escrever. Mas, escrever não é a única tarefa de
um roteirista. Ele se reúne com produtores, diretores, atores e muitas
vezes patrocinadores. Ele tem que, muitas vezes, saber como arranjar
dinheiro para seu projeto de pôr um roteiro em pé, isto é, alcançar a
plena função do roteiro: ser representado. Não entraremos nesses
aspectos. Apenas e tão somente, fazemos algumas observações, que
julgamos importantes, sobre o roteiro.
O roteiro, segundo Doc Comparato
490
, é o princípio de um processo
visual e não o final de um processo literário. A escrita de um roteiro tem
como especificidade a referência a códigos diferenciados e nisso reside
sua semelhança com a escrita dramática, pois esta também combina
códigos. Como um romance, o roteiro manipula a fantasia, a invenção.
Cria mundos e personagens que o habitam.
Um roteiro exige uma idéia. Segundo o senso comum, tudo se
contou, portanto a idéia para se contar algo deve buscar sua
originalidade no como contar o quê. Vários o os caminhos para uma
idéia, ou para se “ter” uma boa idéia. Guel Arraes achou uma idéia no
texto dramatúrgico de Suassuna, este a encontrou na sua vivência de
sertanejo e de homem de leituras várias e quase infindas. Nenhum dos
dois teria encontrado idéias se não estivessem dispostos, abertos e
preparados para percebê-las. Arraes não teria notado as possibilidades
do texto-fonte, não teria inventado tão interessantes e risíveis episódios
se, não estivessem, ele e seus colaboradores, predispostos a isso, em
outras palavras, se não fossem habilitados intelectualmente.
Do texto-fonte, sobre o qual Guel trabalhou já constavam conflito,
personagens, ação dramática, tempo dramático, unidade dramática,
categorias, que segundo Comparato, fazem a estrutura de um roteiro.
Há, entretanto, uma diferença crucial a ser vencida. Suassuna escreve
para o palco. Guel vai escrever para um “palco” eletrônico: a TV. Outras
linguagens, outros códigos. Por isso dizemos do trabalho de Arraes ser
estilização: apropriação e reescritura, reelaboração, de modo a fazer
nascer outro objeto artístico.
490
COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro, p. 20.
281
Sob o texto suassuniano, Arraes e seus colaboradores recriam um
texto, fazem-no roteiro para televisão. Interferem, inserem, excluem,
tudo em função do suporte (e já prevendo outro, o cinema). Nesse
processo alteram as categorias de base, recombinam e, num exercício
de pensar por imagem eletrônica, criam o roteiro para a microssérie.
Em um segundo, e cremos simultâneo, momento pensam
cinematograficamente, e nasce o roteiro fílmico.
A importância do roteiro está na necessidade de estabelecer-se
um caminho a ser palmilhado, um mapa que oriente a produção e seu
pessoal técnico, de apoio, diretores, produtores, e o elenco. Cada vez
mais, a produção percebe a impossibilidade de se trabalhar sem o
roteiro, sem um material escrito. É o roteiro que permite o dizer na tela,
seja ela pequena ou grande. Ainda Doc Comparato: Um bom roteiro não
é garantia de um bom filme, mas sem um bom roteiro não existe com
certeza um bom filme.
13.3 Vocação cinematográfica
Auto da Compadecida serviu de texto-fonte para dois filmes
anteriores ao de Guel Arraes. Em 1969, A Compadecida chega às telas
assinada por Suassuna e George Jonas, em versao considerada a
primeira tentativa de levar para o cinema as idéias estéticas armoriais.
O filme contou com a inestimável colaboração da arquiteta Lina Bo
Bardi, que fez os cenários e de Francisco Brennand, autor dos figurinos.
Marcado por um ritmo excessivamente lento, mais ainda se comparado
com a obra gueliana, caracterizada pela rapidez esperta própria da
autoria, A Compadecida ganha um toque poético ao lançar mão de
manifestações artísticas populares, muito a gosto de Suassuna, que
apontam as intenções armoriais presentes no filme: a Cavalhada, o
Bumba-meu-boi e o Mamulengo, tudo reforçado pelos cenários e
figurinos. Procedimento estilizador, pois apropriação de outros textos
culturais. Tanto Bo Bardi como Brennand estavam imbuídos do espírito
282
armorial e seus discursos-fontes foram as expressões populares do
nordeste, as festividades de rua bem ao espírito preconizado por
Bakhtin.
A Compadecida conta com Armando Bógus (João Grilo) e Antônio
Fagundes (Chicó) que caracterizavam a dupla Besta e Palhaço,
apresentando um baixinho fazendo o safado e um grandalhão, o
ingênuo e trapalhão. Felipe Carone é o Padre e o comediante Ari Toledo,
o Gangaceiro. Regina Duarte antecede a doçura de Fernanda
Montenegro como Nossa Senhora. Parece-nos ser impossível negar um
olhar “gueliano” sobre A Compadecida de Suassuna/Jonas trinta anos
depois.
Os Trapalhões no Auto da Compadecida é realizado em 1987, sob
a direção de Roberto Farias e roteiro de Suassuna. A maior virtude do
filme é a trilha sonora de Antônio Madureira e não pode ser esquecida a
cena do julgamento, muito bem feita e que recebeu da crítica o adjetivo
bela. É estrelado pelos Trapalhões, à época grupo formado por Didi,
Dedé, Mussum e Zacarias.
As 2 horas e 37 minutos da minissérie foram reduzidas para 1
hora e 24 minutos; das 27 seqüências, 7 foram suprimidas, resultando
no filme que foi exibido nas salas de cinema e nas versões para vídeo e
DVD. O filme contou com a propaganda generosa da Rede Globo. De
início, 80 cópias foram postas à disposição. Diz-se que o número cópias
chegou a 180, para atender a todos os pedidos.
Merecidamente a obra ganhou o Grande Prêmio Cinema Brasil:
Melhor Lançamento em cinema 2001; Melhor Diretor (Guel Arraes);
Melhor Roteiro (Guel Arraes); Melhor Roteiro (Adriana Falcão); Melhor
Roteiro (João Falcão); Melhor Ator (Matheus Nachtergaele) e o do
Festival de Cinema do Recife Troféu Guararapes/Voto do Júri Popular
– 2001.
284
C
ONSIDERAÇÕES
F
INAIS
R
EFAZENDO O
P
ERCURSO


491
A proposição deste trabalho, perceber as articulações das
diferentes linguagens, que suspeitávamos existir, na micróssérie O Auto
da Compadecida, revelou-se maior e mais complexo do que a suposição
inicial fazia crer. Traçado o risco, escolhidas as linhas e cores, agulhas
entre os dedos, partimos, de início, rapidamente, como toda bordadeira.
Logo, logo, as linhas embromaram-se e os nós apareceram. Para que a
linha deslizasse pelo fundo da agulha e pelo risco, configurando-se em
bordado, muitas foram as paragens e passagens belas, instigantes,
misteriosas que exigiram muito esforço, físico e mental, para que,
desfeitos os nós, prosseguíssemos.
O Auto da Compadecida é um produto televisivo, usando a
linguagem corrente, adaptado de um texto dramático e serviu à
adaptação para o cinema. Nesse processo, o que permanece, o que é
descartado? Se adaptado, qual o originalidade, a criatividade que
existe? Que riscos orientam as mãos que bordam? Que linhas e cores e
por que são escolhidas? Como se combinam, melhor, recombinam-se os
elementos? Por quem? Para desfazer o foi preciso buscar o processo.
Este visto como a sucessão de procedimentos que levam à formação de
um todo que consideramos ser O Auto da Compadecida.
um texto-fonte sob o qual a autoria da microssérie debruçou-
se de modo a conhecê-lo em seus meandros de feitura. Autores, num
primeiro e longo estágio; depois produtores, técnicos e atores fizeram-se
íntimos do sertão, da Taperoá ficcional e seus habitantes nada
ficcionais, para surpreendê-los em seus modos vivenciais. Arraes, desde
sempre, usa sandálias de couro. O texto suassuniano fez parte de sua
origem pernambucana, habitou a biblioteca dos Arraes. Seu objeto não
491
MALCHER, Maria Ataide. O protagonismo da dramaturgia na TV brasileira, p. 213.
285
é o teatro e sim a televisão, a longo prazo, o cinema, linguagens que se
fazem discurso, não no palco, olho no olho com o público, no momento
fugidio de uma encenação, mas na telinha e na tela grande, sob o olhar
da câmera e buscando uma atitude responsiva de um público massivo.
Arraes, com sua formação em cinema, cumprida na juventude
francesa, aporta no Brasil, onde aprende a fazer televisão e,
preferencialmente, comédia. Dessa pluralidade toda poderia nascer
um objeto múltiplo, heterogêneo em que o cruzamento de linguagens,
numa miscelânea bem urdida, faz-se heteroglossia diferentes
linguagens e sistemas de signos em interação –, permitindo sua
categorização como sendo um híbrido texto, que orientado
dialogicamente, interage com vários sistemas sígnicos. A originalidade e
novidade residem nessa arena discursiva, na qual linguagens em
simultânea ebulição nos presenteiam com uma outra e nova
Compadecida, um outro auto que não mais o de Suassuna.
A busca espraia-se por um amplo e rico universo linguageiro. O
cotidiano duro do sertanejo, de seu lugar seco e ventoso, fornece o
discurso da vida que, refletido e refratado, apresenta-se deformado
pelas articulações com antecessores que flanam pela realidade. Mas
esse discurso contata-se com manifestações de outras produções
culturais, muitas no grande tempo
492
, onde residem os esquecidos ou
incompreendidos em sua época de nascimento. Habitam também os que
estão sempre a espiar o presente e são por este espiados: os discursos
vicentinos, cervantinos, shakespereanos, goldonianos etc. e que
parecem ter vida eterna. Nas manifestações tecnológicas
contemporâneas, a autoria depara-se com as possibilidades discursivas
da computação gráfica, do olhar rápido, certeiro e vário das modernas
câmeras cinematográficas, com o agitado mundo do videoclipe e da
história em quadrinhos.
Essencialmente, O Auto da Compadecida tem como grande
parceiro dialógico o campo da cultura popular. O diálogo primeiro com o
texto suassuniano o marca como inserido no universo popular.
492
O grande tempo é o espaço-tempo onde vivem as obras que rompem os limites de seu
presente e remetem tanto ao passado como ao futuro, o devir.
286
Recriando e reorganizando em outro(s) suporte(s), produzindo um outro
discurso, a autoria mantém e reforça o interdiscurso, num diálogo
profundo e poético com as origens. Origens aqui pensada como a noção
de que o homem nordestino personagem da história vive os mesmos
problemas e as mesmas paixões que os experimentados em qualquer
lugar do mundo e, por isso, personagem histórico, universal. Taperoá é
a síntese do mundo e do Brasil, em particular; é o palco onde a vida se
revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditório. Não
nada perfeito, nem completo, é a quintessência da incompletude
493
. Nessa
contradição e incompletude reside o popular cuja expressão resiste aos
cânones estabelecidos, àquilo que Bakhtin chama de oficial. Como em
Rabelais, o que está em Suassuna e o que temos estilizado em Arraes, é
a marca do “caráter não-oficial”. As imagens “guelianas” recusam-se ao
dogmatismo, à estabilidade, à formalidade limitada, constituem-se a
partir das formas diversas e risonhas, próprias da praça, da festa, em
que a vida, em toda a sua seriedade, é tratada com humor e o riso
ocupa o trono. Os elementos limitadores próprios da cultura
desaparecem e subsistem os humanos, universais e utópicos
494
.
O espírito festivo e carnavalesco, da mesma forma que revoga as
relações hierárquicas, extingue as barreiras sociais e de classe,
desaliena o vocabulário. A comunicação na praça constrói-se num clima
desarvorado e livre, inconcebível em situações normatizadas. Os
trocadilhos, os jogos de palavras, a absorção e reutilização dos
provérbios e ditos populares, os juramentos, muitos proibidos ou
censurados na comunicação oficial, na cultura popular, circulam
livremente. Só no universo popular, é possível invocar a Virgem, através
de um verso de cordel, entre saracoteios e salamalaques em nada
condizente com o ambiente o Julgamento Final. É o grotesco
manifestando-se pelo cômico em oposição às formas elevadas ou oficias.
O Auto da Compadecida persiste na categoria dramaturgia, ficção
televisiva serializada, microssérie. Entretanto, O Auto da Compadecida
493
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais, p. 23.
494
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais, p. 11.
287
revelou algo a mais em termos de procedimentos, que o fazem especial
como produto cultural de massa. Sua feitura revela um processo de
estilização que sob a ótica bakhtiniana é a apropriação e a reutilização
em outros e novos tons do existente. É a emergência de uma outra(s)
voz(s) que, fazendo-se interdiscurso entre si e com a realidade, traz à
luz um outro em sua totalidade constitutiva, um enunciado completo,
mas um discurso em aberto, por isso prestou-se ao cinema, uma outra
obra e, como tal, uma totalidade. Em sua heterogeneidade e
heteroglossia, um híbrido. Estrategicamente dialógico, pronto para
outros embates discursivos.
Desvendar algo é fazê-lo conhecido e também torná-lo manifesto,
patente. Aquilo que é patente, manifesto o deixa dúvidas, daí o
desvendado ser o desprovido de dúvidas, de mistérios.
Pretensiosamente intentávamos desvendar, portanto, dar fim às
dúvidas e seqüestrar os mistérios linguageiros escondidos nas dobras
do manto da Compadecida. Fora melhor se tivéssemos um discurso
menos arrogante e pensado em diligenciar, esforçar-nos para conhecer
um pouco dos mistérios da feitura, da tessitura, dos riscos, linhas e
cores que sustentam o bordado brilhante e sedutor que é O Auto da
Compadecida. Mesmo porque, no mundo ainda não ocorreu nada
definitivo, a ultima palavra do mundo e sobre o mundo ainda não foi
pronunciada, o mundo é aberto e livre, tudo ainda está por vir e sempre
estará por vir.
495
495
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski, p. 167.
289
B
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O AUTO da Compadecida. Direção e Núcleo: Guel Arraes. Roteiro: Guel
Arraes, Adriana Falcão e João Falcão. Diretor de Produção: Eduardo
Figueira. Coordenação de Produção: Gustavo Nielebock. Gerência de
Produção: Andréa Cômodo. Direção de Arte: Lia Renha. Produção de
Arte: Moa Batsow. Direção de Fotografia: Felix Monti. Figurino: Cao
Albuquerque. Caracterização: Marlene Moura. Cenografia: Fernando
Schmidt. Câmera: Ricardo Fuentes. Efeitos Visuais: Capy Ramazzina.
Efeitos Especiais: James Rothman. Produção Musical: João Falcão e
Carlinhos Borges. Elenco: Aramis Trindade Cabo Setenta; Bruno
Garcia – Vicentão; Denise Fraga Dora, mulher do padeiro; Diogo Vilela
– Eurico, padeiro; Enrique Diaz – comparsa de Severino; Fernanda
Montenegro Compadecida; Lima Duarte Bispo; Luiz Melo Diabo;
Marco Nanini Severino, o Cangaceiro; Matheus Nachtergaele João
Grilo; Maurício Gonçalves Jesus; Paulo Goulart Major Antonio
Moraes; Rogério Cardoso Padre João; Selton Mello Chicó; Virginia
Cavendish – Rosinha. Produzida por Columbia Tristar Home Vídeo.
Microssérie exibida entre 5-8 janeiro 1999, 22h30, 04 capítulos. 2
DVDs.
O MERCADOR de Veneza. Direção e roteiro: Michael Redford. Produção:
Gary Brokaw, Michael Cowan, Barry Naviidi e Jason Piette. Produzido
por Sony Pictures Classics, California Filmes, 2004.
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